Fernando Lopes-Graça e Eugénio de Andrade o diálogo entre a música e a poesia
EXPOSIÇÃO 10 anos da morte do poeta 20 anos da morte do compositor
Junho de 2015
Biblioteca Pública Municipal do Porto Museu da Música Portuguesa
A ALIANÇA ENTRE A PALAVRA E A MÚSICA Se a literatura portuguesa do seculo XX ficou marcada pela voz poética de Eugénio de Andrade, a música tem em Fernando Lopes-Graça uma das suas figuras centrais. Em 1948, a publicação de As Mãos e os frutos consagra Eugénio de Andrade como um dos mais notáveis poetas do seu tempo, autor de uma poesia de grande força lírica e de extraordinária musicalidade. Leitor incansável de toda a literatura portuguesa e atento aos movimentos literários emergentes, Fernando Lopes-Graça ficou rendido à obra do jovem poeta, para a qual compôs um ciclo vocal, cujo concerto de estreia se realizou em dezembro de 1959, no Ateneu Comercial do Porto. Se As Mãos e os frutos foi um livro fundamental na afirmação do poeta, tornou-se também uma das obras vocais maiores do compositor. Esta obra marcou o início de uma intensa e duradoura relação criativa e de amizade entre os dois, que daria ainda origem a duas composições para canto e piano inspiradas na poesia de Eugénio de Andrade, Mar de setembro e Aquela nuvem e outras. A poesia de Eugénio de Andrade é, para citar Óscar Lopes, “uma espécie de música”, e a música, sobretudo de câmara, foi constante companhia sua. Fernando LopesGraça encontrou na literatura inspiração frequente para a sua criação musical, transformando em canto os versos de muitos poetas portugueses. Nas palavras de Eugénio de Andrade, Lopes‑Graça “não abdica de sonhar essa aliança primogénita entre palavra e música, fazendo de ambas uma única e crispada alegria”. No ano em que se evoca o 10º aniversário da morte de Eugénio de Andrade e vinte anos passados sobre o desaparecimento do compositor, a Biblioteca Pública Municipal do Porto promove uma exposição que visa divulgar uma importante faceta da biografia e da obra de Eugénio de Andrade. O fio condutor da mostra são as dezenas de cartas que Lopes‑Graça escreveu ao poeta e que este conservou no espólio agora integrado no acervo da BPMP. Porém, o diálogo entre ambos só ficaria completo com as cartas que Eugénio de Andrade dirigiu ao compositor e que se encontram integradas no Fundo Lopes‑Graça pertencente ao Museu da Música Portuguesa, em Cascais. É pois com natural satisfação que aqui registo o apoio do Município de Cascais a esta nossa iniciativa, expresso na cedência de cartas e outros materiais que muito enriquecem e ajudam a documentar e compreender a profícua relação entre estas duas figuras notáveis do panorama artístico português do século XX. Paulo Cunha e Silva Vereador da Cultura da Câmara Municipal do Porto
Fernando Lopes-Graça sabia o seu lugar na história da Música e da Cultura do século XX português. Talvez possamos explicar desta forma o facto de ter guardado ao longo da sua vida todos os testemunhos da sua existência. Nem todos os artistas o fazem. No seu testamento à Câmara Municipal de Cascais, em 1994, o compositor legou todo o seu espólio para ser incorporado no Museu da Música Portuguesa e ser disponibilizado ao público. A sua obra musical composta por 260 títulos chegou com um imenso acervo de 694 documentos entre obras válidas, versões e esboços. Deixou-nos, claramente, todo o processo de composição, permitindo assim que seja possível estudá-lo adequadamente. Um outro testemunho importante é a vasta correspondência guardada, que remete para o mundo de relações do compositor, num contexto de história pessoal e profissional em que se trocam ideias, se expõem problemas, se comentam acontecimentos. Através desta documentação, alarga-se o horizonte a interlocutores que acrescentam história à história. A exposição Fernando Lopes-Graça e Eugénio de Andrade: o diálogo entre a música e a poesia surge no contexto da reflexão feita sobre a correspondência trocada entre estas duas personalidades e leva-nos aos momentos da composição dos três ciclos de canções sobre poemas de Eugénio de Andrade – As mãos e os frutos, Mar de setembro e Aquela nuvem e outras -, obras de relevo no catálogo do compositor. Fernando Lopes-Graça revela-nos o quanto aprecia a poesia de Eugénio de Andrade, essa «arte tão delicada e tão transparente, tão “musical”», quão grande desafio foi para a sua música e as dificuldades que sentiu em achar o «“tom justo”, a expressão a um tempo depurada e fremente que os seus poemas requeriam». Eugénio de Andrade consigna nas suas dedicatórias a Lopes-Graça a expressão «o compositor admirável», na partilha da sua obra poética com o autor da música. Estes três ciclos integram o vasto e rico cancioneiro de Lopes-Graça sobre textos dos grandes poetas portugueses, uma plêiada de autores e obras que mostra a íntima ligação do compositor à língua e cultura portuguesa, inseparável da tentativa da modernização da melodia musical e da criação de uma música especificamente portuguesa. Fernando Lopes-Graça liga a sua música a um dos mais poderosos elos da tradição cultural portuguesa – a poesia. Neste contexto, esta exposição reveste-se de significado ao contribuir para o melhor entendimento da relação de amizade e dos laços que unem as produções artísticas destes dois vultos da cultura portuguesa e consequentemente para o conhecimento e divulgação das suas obras. A colaboração entre a Câmara Municipal de Cascais - Museu da Música Portuguesa e a Câmara Municipal do Porto - Biblioteca Municipal do Porto, na realização desta exposição pretende também homenagear estes dois autores no momento em que passam 10 anos sobre a morte de Eugénio de Andrade e 20 anos sobre a morte de Fernando Lopes-Graça. Carlos Carreiras Presidente da Câmara Municipal de Cascais
Desenho de Manuel Ribeiro de Paiva para a capa de As Mãos e os frutos _ 1948
FERNANDO LOPES-GRAÇA E EUGÉNIO DE ANDRADE
O DIÁLOGO ENTRE A MÚSICA E A POESIA Eugénio de Andrade e Fernando Lopes-Graça são dois vultos que marcaram a história da cultura portuguesa do século XX. Os nomes destes dois artistas representam bem mais do que um poeta e um compositor. Simbolizam uma identidade cultural, um património material e imaterial que resistiu aos mais diversos contextos e condicionantes, e que ultrapassa, em grande medida, a figura dos dois artistas para se tornar herança do mundo. A exposição Fernando Lopes-Graça e Eugénio de Andrade: o diálogo entre a música e a poesia tem como princípio fundamental traçar um itinerário histórico, evocando a relação artística entre estas duas figuras centrais da vida cultural portuguesa no século passado. Desse convívio resultam três ciclos de canções sob poemas de Eugénio de Andrade, compostos por Fernando Lopes-Graça: As Mãos e os frutos (1959), Mar de setembro (1961/1975) e Aquela nuvem e outras (1987). Trata-se de um universo de partilha e cumplicidade artística que compreende perto de quatro décadas, de acordo com o âmbito cronológico definido pela correspondência trocada entre ambos, desde 1956 até ao final da vida de Fernando Lopes‑Graça - o último bilhete enviado pelo compositor. Partindo do texto inerte das cartas, postais e partituras, e articulando esse legado com o contexto histórico e cultural em que decorreu, esse universo extremamente rico ganha nova orgânica através de todo um discurso - e decurso - da exposição, estruturado pelas palavras das personagens principais: Eugénio de Andrade e Fernando Lopes-Graça. Destacam-se entre as fontes utilizadas o recurso a excertos das próprias cartas e postais, bem como a todo um conjunto de documentos que permitem conferir uma maior envolvência, tais como: fotografias, programas de concerto, partituras, esboços e esquissos de composição, dedicatórias e outros. Todos estes elementos foram criteriosamente estudados e trabalhados de forma a criar um roteiro ilustrativo da comunhão artística que Eugénio de Andrade e Fernando Lopes-Graça cultivaram ao longo dos anos.
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Fernando Lopes-Graça e Eugénio de Andrade: o diálogo entre a música e a poesia
Fernando Lopes-Graça _ 1981 © foto. Augusto Cabrita
FERNANDO LOPES-GRAÇA 1906-1994
A 17 de dezembro de 1906, em Tomar, nasce um dos mais destacados compositores portugueses do século XX, com uma atividade marcante na vida musical e cultural portuguesa: Fernando Lopes-Graça. Estuda no Conservatório Nacional, onde concluiu os cursos de piano e composição em 1931. Antes, no ano de 1927, apresenta a sua primeira obra, Variações sobre um tema popular português (para piano). Em Coimbra, entre 1932 e 1936, leciona na Academia de Música da mesma cidade, mantendo uma atividade como intérprete, ao mesmo tempo que integra o histórico grupo da revista Presença. Seguem-se dois anos em Paris (1937-39) onde estuda Musicologia (com Paul-Marie Masson) e Composição (com Charles Koechlin), na Sorbonne. Este período marcará definitivamente a sua abordagem criativa e estilística, nomeadamente através de uma grande abertura às influências estéticas provenientes de elementos estéticos identitários do folclore português.
Regressa a Lisboa em 1939, intensificando e multiplicando a sua actividade nas mais variadas vertentes: pianista, compositor, crítico, teórico, ensaísta, regente coral, conferencista ou musicólogo, numa dinâmica de produção musical e literária que permanecerá consistente até ao final da sua vida. Logo em 1940 é galardoado com o prémio de Composição do Círculo de Cultura Musical, com o 1º Concerto para piano e orquestra, repetindo‑se a atribuição em 1942 (História trágico‑marítima), 1944 (Sinfonia per orchestra) e 1952 (Sonata para piano nº 3). Em 1965 vence o Prémio Príncipe Rainier III do Mónaco com o seu Quarteto de cordas. Contando com uma produção de cerca de 260 títulos que contemplam obras para as mais variadas formações e géneros, a música de Lopes-Graça teve grande difusão internacional, destacando-se aqui o Concerto da camera col violoncelo obbligato, estreado em 1968 por Mstislav Rostropovich. Lopes-Graça foi igualmente responsável por diversas iniciativas que marcaram incontornavelmente a história da música do século passado. Além de diversas colaborações com periódicos, foi fundador da “Sonata” (organização de concertos de música moderna, criada em 1942), bem como da revista Gazeta Musical (em 1950), entre muitas outras ações em prol da divulgação e debate em torno da música. Reflexo da sua formação humanista e intensa atividade cultural e política, foi condecorado com a Ordem da Amizade dos Povos (União Soviética, 1976), o título de Grande Oficial da Ordem Militar de Santiago de Espada (1986), a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique (1986), Ordem do Mérito Cultural (1988). Em 1986 foi-lhe atribuído o título Doutor Honoris Causa pela Universidade de Aveiro.
Fernando Lopes-Graça. Cortejo do 1º de Maio de 1975
Fernando Lopes-Graça viria a falecer no ano de 1994, a 27 de novembro, deixando um vasto legado que perdura como um património de incalculável valor para a cultura em Portugal.
Fernando Lopes-Graça e Eugénio de Andrade: o diálogo entre a música e a poesia
EUGÉNIO DE ANDRADE 1923-2005
Natural da Póvoa de Atalaia, onde nasceu a 19 de janeiro de 1923, de nome José Fontinhas, o poeta viria a marcar os caminhos da literatura portuguesa da segunda metade do século XX sob o pseudónimo de Eugénio de Andrade. Os estudos seus tomam lugar em Castelo Branco e posteriormente em Lisboa (entre 1932 e 1943). A partir de meados de 1935 desponta nele o interesse pela literatura, passando grande parte do seu tempo a ler e dando início à escrita poética. Em 1938, contacta com António Botto, que manifesta interesse em conhecer José Fontinhas e os seus escritos – consequência dessa relação, o jovem poeta é fascinado pela poesia de Fernando Pessoa. Em 1940 publica o seu primeiro poema, Narciso e em 1942 é publicado o seu primeiro livro de poesia, Adolescente, dedicado “à memória de Fernando Pessoa”, onde usa pela primeira vez o pseudónimo de Eugénio de Andrade.
Eugénio de Andrade _ 1990 _ © foto. José Rocha
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É em 1948, com a publicação de As Mãos e os frutos, que Eugénio de Andrade dá início à sua consagração como um dos mais destacados poetas do seu tempo. A partir deste período a sua produção será ininterrupta, resultando uma carreira especialmente rica em poesia, mas também com produção nos domínios da prosa, da tradução e da antologia. Paralelamente, foi responsável pela tradução para português de obras de grandes poetas estrangeiros, como Federico García Lorca, Safo, René Char, Pierre Reverdy, ou Yannis Ritsos. Eugénio de Andrade foi, e é, um artista do mundo. A sua obra difundiu‑se nacional e internacionalmente em grande medida através de cerca de duas dezenas de publicações suas traduzidas e publicadas pelos cinco continentes. Foi galardoado com vários prémios e homenagens, onde se destacam: Prémio da Associação Internacional dos Críticos Literários (1986); Grande Prémio de Poesia (1989), Prémio de Poesia (1999) e Prémio Vida Literária (2000), da Associação Portuguesa de Escritores; Prémio Jean Malrieu para o melhor livro de poesia estrangeira publicado em França (Blanc sur blanc, 1989); Prémio da Associação Paulista de Críticos das Artes (Brasil, 1991); Prémio Camões (2001); a Grã-Cruz da Ordem de Mérito (1988) e a Medalha de Honra da Cidade do Porto (1989). Em 1991 é criada a Fundação Eugénio de Andrade, que seria extinta em novembro de 2011, já após a morte do poeta. Eugénio de Andrade, viria a falecer a 13 de junho de 2005 na sua casa, na Foz do Douro.
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Fernando Lopes-Graça e Eugénio de Andrade: o diálogo entre a música e a poesia
I. LEITURA DE UM DIÁLOGO ARTÍSTICO As Mãos e os frutos Quando, em 1956, Fernando Lopes-Graça escreve em registo desanimado a Eugénio de Andrade dando nota de que ainda não havia encontrado o “tom” para os versos de As Mãos e os frutos, é evidente que o projeto dessa composição já tinha sido dado a conhecer anteriormente ao poeta. No entanto, teremos de esperar até 1959 para ambos retomarem correspondência, desta feita de forma intensiva até ao ano de 1993. O retomar da comunicação por via postal tem o seu ponto de partida através de carta do compositor, a 20 de janeiro de 1959, dando notícia da composição finalizada, na sua primeira versão. Lopes-Graça já apresenta aquela que será a estrutura final do ciclo de 11 canções, alterando a ordem dos poemas escolhidos em relação ao livro, de modo a atingir um fio condutor que percorre três climas fundamentais. A obra revela-se através de um discurso que vai desde o carácter de exaltação amorosa das primeiras canções – bem presente em “Quando em silêncio passas entre as folhas” ou “Tu és a esperança, a madrugada” - passando por um clima de introspecção e melancolia – patente em “A tua vida é uma história triste” - para culminar num enquadramento mais denso, onde o tema da noite é valorizado, de que a última canção é exemplo capital. Lopes-Graça aplica uma abordagem musical extremamente fiel para inteligibilidade do discurso poético de Eugénio de Andrade, na medida em que as atmosferas musicais e toda a construção melódica e harmónica de cada canção refletem o pendor dramático e as diferentes tonalidades do conteúdo literário. Simultaneamente, há uma preocupação do compositor em garantir uma unidade estética – «psicologicamente», como o próprio refere – perante uma nova criação, na qual o cunho pessoal, extremamente enformado e atento, permite a Lopes-Graça exponenciar o sentido da obra. Sem dúvida que o compositor tinha encontrado o melhor “tom” para abordar a poesia de Eugénio.
O entusiasmo em torno desta obra-prima leva o poeta a propor a sua estreia no Porto – o que tem lugar a 20 de dezembro de 1959, no Ateneu Comercial do Porto -, bem como uma gravação para a Orfeu, editora discográfica de Arnaldo Trindade (figura de proa na história da produção discográfica no século XX), que viria a ser lançada no mercado já no final de 1960. Entre os anos de 1959 e 1961, desde a composição do ciclo de canções, passando pela organização do concerto de estreia no Ateneu Comercial do Porto e culminando em várias peripécias em torno da gravação e edição para a Orfeu, há uma grande articulação entre os dois artistas. Destaca‑se aqui a preocupação na escolha do cantor, com enfoque na exigência técnica da obra e na clareza da dicção no canto da língua portuguesa. Há, igualmente, a preocupação na preparação do público para uma obra cujo idioma estético poderia causar alguma apreensão, o que viria a resultar num texto de Francine Benoît publicado no Comércio do Porto no início de dezembro de 1959.
As Mãos e os frutos não se trata de mais um ciclo de canções. Pelo contrário, revela-se um momento de charneira na vida de ambos os artistas. É a primeira obra de referência de Eugénio de Andrade, em 1948, mas mantém-se extremamente actual no contexto de um movimento de superação do legado de Pessoa por uma nova geração de poetas, durante a década de 1960 (período da publicação da segunda edição em livro e do disco da Orfeu com o ciclo composto por Lopes-Graça). Ao mesmo tempo, não será demais salientar a importância que Lopes-Graça confere às composições sobre poemas de grandes autores (musicou Camões, Pessoa, Lorca, entre outros), revelando-se este ciclo um “filho querido”, como podemos comprovar através das várias vezes que o apresentou nos seus programas de recitais de canto e piano que efetuou. É, ainda, através desta produção que Lopes-Graça toma contacto com Fernando Serafim, tenor que acompanhará o compositor daí em diante, quer no foro artístico e profissional, quer através de uma frutuosa amizade. Prova disso, é o facto de a própria partitura de As Mãos e os frutos ser dedicada a Fernando Serafim.
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Mar de setembro Remonta a agosto de 1962 a primeira carta, conhecida, que Eugénio Andrade recebe de Lopes-Graça após ter oferecido um exemplar de Mar de setembro. Muito fiel ao seu próprio estilo, o compositor surpreende o poeta com a notícia de que havia acabado de compor um ciclo de canções sobre poemas desse mesmo livro. A própria estrutura inicial do ciclo estava já estabelecida, de acordo com aquela que viria a ser a sua primeira versão publicada. Como Lopes-Graça refere na mesma carta, após As Mãos e os frutos: «a mão já estava um pouco feita para os seus versos, para o seu especial ‘clima’ poético…» Eugénio de Andrade escreveu grande parte dos poemas de Mar de setembro durante uma estada sua no País Basco, em férias no ano de 1961. Contrariamente a As Mãos e os frutos, este livro tem um carácter marcadamente celebratório. Obra de uma outra profundidade dramática quando comparada a As Mãos e os frutos, em Mar de setembro predominam formas exclamativas e quadros contemplativos, atmosferas muito bem potenciadas musicalmente por Lopes-Graça através do contraste recorrente entre as passagens com voz e piano, e episódios que dão espaço à voz e ao piano isolados, momentaneamente - uma “receita” aplicada logo desde a primeira canção, “Mar de setembro”. O compositor permite-se salvaguardar a clareza do texto, não causando isso qualquer condicionante para uma composição musical bem elaborada e integrada no espírito da obra poética. O ciclo de canções assume mesmo, em determinados momentos, um carácter puramente declamatório (da voz do cantor, até à “voz do piano”) em interligação com o canto. Publicada ainda no ano de 1962, Mar de setembro é transmitida em primeira audição pela Emissora Nacional a 3 de fevereiro de 1963. Ao contrário das impressões mais singelas do compositor, é evidente o agrado de Eugénio de Andrade, tanto em relação a essa primeira audição, como, sobretudo, aquando de edição discográfica posterior, da Valentim de Carvalho (1975). Num cartão-carta manuscrito de 5 fevereiro 1976, o poeta refere que «Mar de setembro, foi o ciclo que mais me surpreendeu. A novidade, para mim, aí foi quase total. E há no ciclo canções tão belas!»
Intermezzo Os anos que se seguem à concretização do ciclo de Mar de setembro são marcados por um intervalo – intermezzo – na produção criativa conjunta. São anos de partilha de trabalhos literários e musicais, como é o caso das Cuatro Canciones de Federico García Lorca de Lopes-Graça, editadas em 1966 pela Decca (Londres). Desse período, que corresponde sensivelmente aos anos entre 1964 e 1969, sobressai a revisão e edição da partitura de Nana, obra para coro feminino (a capella) escrita em 1957 sobre um poema anteriormente renegado pelo poeta, mas que, como o próprio viria a referir ao compositor, «continua a existir para a sua música». Conferido o aval do poeta, Lopes-Graça cria um texto musical para coro feminino (a capella) que viria a gravar para a televisão em 1968. É também neste intervalo que Eugénio de Andrade lança livros marcantes na sua obra, como as edições de Ostinato rigore (1964), Poemas, 1945-1965 (1966) ou Os Afluentes do silêncio (1968), ao mesmo tempo que Lopes-Graça edita Páginas escolhidas de crítica e estética musical (1967), uma coletânea de vários artigos e crónicas de referência, que o poeta elogia pela profundidade científica e discursiva.
Edição Valentim de Carvalho e os anos 70 A década de 1970 é representativa de novo fôlego em torno dos dois ciclos de canções. Nessa altura, Lopes-Graça revê o ciclo de Mar de setembro, acrescentando três poemas – “Ostinato”, “À tua sombra” e “Espelho”. A essas revisões sucede a gravação de novas interpretações de As Mãos e os frutos e Mar de setembro, em 1975. Nesta época, a editora Valentim de Carvalho dominava a indústria fonográfica de música erudita em Portugal, sendo responsável pela edição de grande parte da obra de Lopes-Graça. A Valentim de Carvalho efetuou inúmeras edições daquilo que se viria a configurar como a Discografia Lopes-Graça (posteriormente reeditada em CD nos anos 90). Embalada pelos seus moderníssimos estúdios em Paço de Arcos - um projeto megalómano que consistiu numa réplica dos famosos estúdios de Abbey Road, em Londres – a empresa garantia um incremento de qualidade nas suas edições discográficas nunca antes visto em Portugal. É isso mesmo que Eugénio de Andrade comprova nas suas impressões sobre o disco já referido: «Foi uma bela surpresa, em vários sentidos. A gravação é muito superior à anterior, e a interpretação também, sobretudo no que se refere ao Fernando Serafim, a quem mando um abraço.» É ainda neste período que assistimos a uma maior circulação dos ciclos de canções, através de sucessivos concertos em território nacional e também estrangeiro, nomeadamente na Rússia (1977) e Roménia (1978).
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Aquela nuvem e outras Eugénio de Andrade escreve Aquela nuvem e outras em 1986. Trata‑se de uma obra de características distintas da sua restante produção poética, resultando numa série de poemas para crianças, imbuídos pelo imenso afeto que o poeta nutria pelo seu sobrinho, Miguel. Disso é prova o texto do último poema e da última canção do ciclo homónimo, que Fernando Lopes-Graça viria a apelidar de «cançõezinhas do Miguel». Tal como acontece com Mar de setembro, a iniciativa de musicar os poemas é comunicada já em fase de finalização da obra, num registo sigiloso durante a fase criativa que resulta na surpresa do anúncio da obra em estado de maturação: «“Aquela nuvem e outras” – que delícia, que ternura! E eu já puz em música, para crianças e adultos, boa parte dos poemazinhos. Espero acabar dentro em breve, mas receio que as minhas canções não estejam à altura da simplicidade admirável dos seus versos. Perdoará, mas eu não pude resistir.» A resposta de Eugénio de Andrade a estas palavras, que Lopes-Graça escreve a 2 de janeiro de 1987, é bem reveladora de uma relação de crescente cumplicidade entre os dois vultos, assumindo o poeta uma postura de grande generosidade em relação à complementaridade da obra de arte: «Fiquei encantado com as suas notícias. Ao enviar-lhe os poemazinhos, qualquer coisa dizia em mim que V. iria gostar deles e talvez pôr-lhes a música que lhes faltava.»
Aquela nuvem e outras viria a ter a sua estreia já no ano de 1993, na Casa das Artes do Porto, num concerto emblemático em que figuraram em programa os três ciclos que a comunhão artística entre Eugénio de Andrade e Fernando Lopes-Graça permitiu criar. Um momento que o poeta eternizou através de um texto intitulado Na morte de Lopes‑Graça: «[…] cantaram-se pela primeira vez na mesma noite os três ciclos de melodias sobre versos meus […]. Graça […] disse-me que a audição das melodias num mesmo recital fora das maiores alegrias da sua vida.»
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«E assim, o aroma das violetas de Safo chegou à nossa varanda: a amada de Dante, “benignamente d’ulmità vestuta”, acaba de atravessar a rua; e nunca ninguém saberá se a música que ouvimos na noite é a do alaúde de Dowland ou aquela que Marco António escuta no poema de Kavafis. Dos bisontes de Altamira às Infantas de Velázquez, da Lettera Amorosa de Monteverdi ao Adagio do Concerto em Sol de Ravel, das “briosas” flores do navio do almirante Chariño às «conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos» de Pessanha, tudo é só um puro dizer no tempo, uma entrega à luz das imagens primogénitas que nos habitam e obsessionam.» Eugénio de Andrade, “Tudo é só um puro dizer no tempo”. In Os Afluentes do silêncio
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II. MÚSICA E POESIA EM EUGÉNIO DE ANDRADE E FERNANDO LOPES-GRAÇA Na génese de todo o diálogo entre compositor e poeta, está uma grande inclinação precedente: a do músico conhecedor e divulgador da produção poética e literária do seu tempo, e a do poeta para o qual a música está sempre presente e é condição inerente à vivência e fruição do texto poético. O binómio Eugénio de Andrade/Fernando Lopes‑Graça encontra-se enquadrado de forma indireta numa mesma rede de pensamento e estética artística, através de um conjunto de relações que ambos cultivaram, com maior ou menor proximidade, mas que acabam por cruzar os seus caminhos: António Nobre, Federico García Lorca, Camilo Pessanha, são alguns exemplos.
«O poema só o é plenamente numa leitura oral e não mental. Há um poder encantatório na poesia que só pode ser comunicado dessa maneira.» Eugénio de Andrade em entrevista ao jornal El País
A música marca uma presença bem vincada em toda a produção literária de Eugénio de Andrade, mas não só. Trata-se, na verdade, de um elemento basilar à própria vivência e forma de estar do poeta. Não é por acaso que, muitas vezes escreve sobre a música, bem como lhe confere um papel preponderante na sua narrativa sobre as suas próprias memórias, onde a quinta essência aparece de várias formas. Para Eugénio de Andrade poesia e música, leitura e canto, constituem um universo próprio, conjunto e congregador, quase uma nova forma de discurso artístico, numa dialéctica onde a inteligibilidade é concretizada através da fusão desses elementos. Será difícil encontrar um único livro seu onde não conste uma referência, por mais singela que seja, à música, ao canto. Por outro lado, o poeta não se coíbe de escrever sobre a sua leitura da arte dos sons, em trechos de grande sensibilidade, como Música ou Nascimento da música.
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«Ó noite, ó dia, ó música de guitarras...» “Litania com o teu rosto”. In Mar de setembro. 1961
Se as marcas da música tradicional portuguesa e a erudição da música “moderna” são características sobejamente conhecidas da música de Lopes-Graça, a verdade é que a sua obra revela desde a primeira hora, acima de tudo, uma profunda natureza de “bem” cultural. Esse facto advém do próprio enquadramento social do compositor, um acérrimo e ativo dinamizador da cultura portuguesa numa perspetiva do presente, com uma consciente noção do passado e uma lúcida visão do futuro. Nesse sentido, são fundamentais as relações que desenvolveu no seio da literatura portuguesa, numa perspetiva bem mais alargada, alicerçada em ideias sociais, políticas e culturais que marcaram várias gerações.
«[… A] produção poética oferece possibilidades largas e riquíssimas de tratamento musical – é só uma questão deles, compositores, vencerem o que possivelmente será […] um mal entendido prejuízo acerca do que é essa tão depreciada poesia moderna, começando por ter a coragem de… lê-la.» Fernando Lopes-Graça, “Acerca dos poetas e dos compositores modernos portugueses”. Seara Nova, 5 de Setembro de 1942
A paixão de Lopes-Graça pela produção poética reflete-se em composições que passam desde os versos de Nobre, Pessoa, Lorca, Teixeira de Pascoaes, Pessanha, até culminar numa das figuras proeminentes do seu tempo: Eugénio de Andrade. Assim, não será de surpreender o grande domínio da poesia que encontramos em Lopes-Graça, e que é notório na sua capacidade singular e incomparável de compor ciclos de canções através de uma leitura extremamente verosímil, reflectida na sua música. Esta simbiose entre música e poesia confere um campo de fundo extremamente rico que, na comunhão artística entre Eugénio de Andrade e Fernando Lopes‑Graça, dá luz a uma obra de referência, que eleva a herança cultural que estes dinamizaram de forma plena e insuperável.
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«[… O] lied, no qual a música, por intermédio da voz humana, tem por missão interpretar, traduzir, comentar, determinado texto poético, levando (sobretudo modernamente) o seu cuidado e o seu escrúpulo de tradução até ao ponto de seguir passo a passo a substância do poema, de desposar-lhe a cadência, a acentuação, as mais subtis nuances, e de quase dar um equivalente sonoro a cada imagem e mesmo a cada palavra significativa do texto.» Fernando Lopes-Graça, Música e músicos modernos, 1943
«Ele [Lopes-Graça] não abdica de sonhar essa aliança primogénita entre palavra e música, fazendo de ambas uma única e crispada alegria. […] No seu Cancioneiro figuram quase todos os nomes capitais da poesia portuguesa, fazendo assim prova não só de cultura como de gosto seguro.» Eugénio de Andrade, Nos 70 anos de Lopes-Graça. 1976
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BIBLIOGRAFIA ESSENCIAL DE EUGÉNIO DE ANDRADE 1948 | As Mãos e os frutos
1979 | Rosto precário
1950 | Os Amantes sem dinheiro
1980 | Matéria solar
1951 | As Palavras interditas
1982 | O Peso da sombra
1956 | Até amanhã
1984 | Branco no branco
1958 | Coração do dia
1986 | Aquela nuvem e outras
1961 | Mar de setembro
1987 | Vertentes do olhar
1964 | Ostinato rigore
1988 | O Outro nome da terra
1968 | Os Afluentes do silêncio
1992 | Rente ao dizer
1968 | Daqui houve nome Portugal
1993 | À Sombra da memória
1971 | M emórias de alegria
1993 | A Cidade de Garrett
1971 | Obscuro domínio
1994 | Ofício de paciência
1973 | Véspera da água
1995 | O Sal da língua
1974 | Escrita da terra e outros epitáfios
1997 | Pequeno formato
1976 | Limiar dos pássaros
1998 | Os Lugares do lume
1977 | História da égua branca
2001 | Os Sulcos da sede
1978 | Memória doutro rio
BIBLIOGRAFIA ESSENCIAL DE FERNANDO LOPES-GRAÇA 1944-1973 | A música portuguesa e os seus problemas, 3 vols. 1943 | M úsica e músicos Modernos 1959 | Sobre a evolução das formas musicais 1960 | Musicália 1967 | P áginas escolhidas de crítica e estética musical 1977 | Escritos musicológicos 1981 | Cancioneiro popular português. Coletânea de Michel Giacometti, com a colaboração de Fernando Lopes‑Graça. 1984-1985 | Opúsculos, 3 vols.
DISCOGRAFIA DA MÚSICA DE FERNANDO LOPES-GRAÇA SOBRE POEMAS DE EUGÉNIO DE ANDRADE 1960 | As Mãos e os frutos. Orfeu. Fernando Lopes-Graça, piano; Fernando Serafim, tenor 1975 | As Mãos e os frutos; Mar de setembro. A Voz do Dono/Valentim de Carvalho. Fernando Lopes-Graça, piano; Fernando Serafim, tenor 2006 | F ernando Lopes-Graça e os poetas. Tradisom. Elsa Saque, soprano; Nuno Vieira de Almeida, piano 2009 | Aquela nuvem e outras. Casa da Música. 2009 | C lepsidra; As Mãos e os frutos; 3 Canções de Fernando Pessoa. Tradisom. Ana Maria Pinto, soprano; João Rodrigues, tenor; Nuno Vieira de Almeida, piano 2013 | C anções para crianças. Althum. Coro infantil da Academia de Música de Santa Cecília
FICHA TÉCNICA CÂMARA MUNICIPAL DO PORTO Rui Moreira [PRESIDENTE] Paulo Cunha e Silva [VEREADOR DA CULTURA] PELOURO DA CULTURA Guilherme Blanc [ADJUNTO] Olga Maia [DIRETORA MUNICIPAL] Sofia Alves [DIRETORA DE DEPARTAMENTO] Maria João Sampaio [CHEFE DE DIVISÃO] Patrícia Campos [COMUNICAÇÃO] COLABORAÇÃO CÂMARA MUNICIPAL DE CASCAIS FUNDAÇÃO D. LUÍS I MUSEU MÚSICA PORTUGUESA CURADORIA Tiago Manuel da Hora (Universidade Nova de Lisboa / INET-MD) COORDENAÇÃO Jorge Costa Maria João Sampaio INVESTIGAÇÃO Conceição Correia (Museu da Música Portuguesa) Sílvio Costa Tiago Manuel da Hora TEXTOS Tiago Manuel da Hora FUNDOS DOCUMENTAIS Câmara Municipal do Porto | Biblioteca Pública Municipal do Porto Câmara Municipal de Cascais | Museu da Música Portuguesa Coleção Particular Fernando Serafim DESIGN GRÁFICO Pedro Velho RESTAURO Lucinda Oliveira MONTAGEM Francisco Manuel Sousa Jorge Costa Lucinda Oliveira AUDIOVISUAIS Tiago Manuel da Hora João Pedro Santos Rui Oliveira Telmo Teixeira AGRADECIMENTOS Catarina Roquette (Museu da Música Portuguesa) Fernando Serafim António Tilly (Instituto de Etnomusicologia - Centro de Estudos em Música e Dança / INET-MD) IMPRESSÃO Greca - Artes Gráficas DEPÓSITO LEGAL 393983/15 ISBN 978-972-634-124-6