Revista Amostra

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Amostra

Edição 001 | Ano I | Dezembro/2012 • Uma publicação do Grupo Peroba Prosa



O jornalismo por outros olhos

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enovar as expectativas e aprofundar o lado humanístico do jornalismo. É com esse intuito que esta Amostrase propõe a discutir temas contemporâneos sem se pautar pela lógica da velocidade e do distanciamento do jornalismo diário. Produzida pelo Peroba Prosa,grupo de produção de conteúdo opinativo dos alunos do 3º ano noturno de Jornalismo da Universidade Estadual de Londrina, essa edição traz cinco grandes reportagens que buscaram a essência do jornalismo literário, tendo a liberdade de expressão garantida por seu caráter público e acadêmico. Além das reportagens no formato folhetim, o leitor encontrará uma enorme gama de temas tratados sob os mais diferentes gêneros jornalístico-literários: crônicas, artigos de opinião e colunas segmen-

tadas. A dança ganha movimento na coluna de Giovanna Machado, enquanto as novas tecnologias são tema de Erick Lopes. Lais Taine observa as peculiaridades do dia a dia, Isabela Cunha analisa a cena cultural, e Roger Bressianini abre as portas para o MMA, esporte jovem e promissor no Brasil. É nessa ampla variedade de conteúdos e formatos que Amostra aposta. Abrindo o debate para questões atuais, pretendemos explorar a necessidade de se realizar também um jornalismo mais humanizado, sem os vícios e as incongruências que a lógica da velocidade imprime nessa atividade. Para interpretar o conteúdo dessa produção, o leitor precisará utilizar a mesma liberdade empregada na construção jornalística e artística da revista. Seja bem-vindo e boa leitura!

EDITORIAL


Neste número:

Museu dos dias de hoje

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sumário

Rocha Pombo

18

AIDS

Se a aids não é uma sentença de morte, por que a vida deveria ser?

Hoje tem Marmelada? Não tem, não, senhor!

98 04 | Amostra | Dezembro/2012

80

Especial Infância


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Especial Jornalismo

Alcoólatra desde os 14, abstêmio há 8 anos 34

Cinco sentidos 64

O retrato de uma região

E mais:

artigos | crônicas colunas | resenhas

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EXPEDIENTE Amostra AMOSTRA Edição anual do grupo Peroba Prosa, produção da turma do 3º ano noturno do curso de Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, da Universidade Estadual de Londrina. Disciplina: Técnica de Reportagem, Entrevista e Pesquisa Jornalística III Professor Responsável: Lauriano Benazzi Produção: Erick Lopes Giovanna Machado Isabela Cunha Lais Taine Roger Bressianini Planejamento Gráfico e Diagramação: Erick Lopes Lais Taine

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Especial

Jornalismo

Depois se atirou num prato ideológico e morreu engasgado Lais Taine

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oão Gostoso, o que vai ser quando crescer? - Astronauta. Tempos depois, com a barba já crescida e com os pés no chão, digeria o jantar na companhia dos pais, de um cachorro velho e do casal Willian e Fátima. Em um “boa noite”, que recebia do casal no fim de toda edição, João teve uma brilhante ideia: “Talvez eu seja Jornalista!” E foi pesquisar o que mais a profissão lhe escondia. Viciou em Jornalismo. Leu reportagens, crônicas, artigo de opinião... Ficou mais crítico, tinha opinião sobre filmes, livros e gastronomia. Tinha posição definida sobre vários assuntos e gostava de discuti-los entre amigos e inimigos. Ficou sabido. Tão sabido, que ria do motivo pelo qual teria levado à futura profissão, o casal Willian e Fátima já não representava nada. Menos que isso, o casal lhe causava entojo. Aprendeu na faculdade que grandes empresas de comunicação manipulam as pessoas, são más e perversas. Que Marx é um deus. E que esquerda não é uma posição política, é definição de bom caráter. Portanto, o Jornal

Nacional teria se tornado o próprio demônio na TV. Entretanto, viveu bem a época universitária. Teve participação no Diretório Central de Estudantes, organizou um jornal comunitário, frequentou festas de república, bebeu até cair e pôde fumar seu baseado tranquilamente após os jantares no R.U. Terminou o curso, ficou desempregado. Fez uns bicos como freelancer em um jornal sangrento da cidade, trabalhou com assessoria de imprensa, estudou para concurso público, sem sucesso, e voltou a trabalhar com matérias sangrentas. Um desperdício de genialidade, ele diria. Até que surgiu a oportunidade. Fez a entrevista de emprego e ouviu: “Grandes empresas, requerem grandes Jornalistas!” E foi convocado. Ia trabalhar orgulhoso, tinha o respeito dos familiares e reconhecimento de desconhecidos. Ele era grande, agora. Ligou para o filho e pediu à esposa que ligasse a TV para que pudessem ver o primeiro ao vivo do repórter, que, dessa vez, não estava em casa para digerir o jantar com a família em frente à TV.

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Eu, que esperei muito do Jornalismo Isabela Cunha

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uatro anos, doze semestres, disciplinas pelas quais eu não passei, outras de que pouco ou nada me lembro. Essa crônica – “crônica” pro caso desse texto resultar no esperado – devia tratar de qualquer coisa suada, comprometida, crítica, praticamente franciscana, enfim... Devia tratar disso que a gente imagina – e quer – que o jornalismo seja. Eu, porém, menos inspirada ou crente, prefiro falar de quatro anos, doze meses, disciplinas inúmeras, hierarquias idem, enfim... Disso que a gente espera – e quer - que seja a formação superior em Jornalismo. O que eu esperava quando me inscrevi no vestibular, ninguém me deu. Eu, confesso, desisti de correr atrás com um esforço acumulado que podia, concordo, ter sido maior do que foi. Mas é verdadeiro e justo dizer que tentei, sim senhor. Tentei ser otimista, me envolver com questões que se mostraram patologicamente burocráticas – às quais todo estudante estará sujeito enquanto responder pelo número de uma carteirinha. Tentei traçar a ponte entre as pessoas e esse mundo, muitas vezes descolado do real, a que chamam

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“Universidade”. Tentei uma movimentação que não incluísse pessoas que dependem da universidade para sobreviver, financeiramente falando, e mudei a estratégia quando percebi que tentar me fazia, única e exclusivamente, uma insistente. Que é quase sempre sinônimo de chata. Uma pena... As coisas que eu esperei, a universidade e o curso não me deram nem tentaram. O esforço – quase sempre sucedido de fracasso – era meu unicamente. Apoio existiu como existem milhares de tapas no ombro ao longo da vida. O que eu queria esteve quase sempre do lado de fora do campus, enquanto eu torci catolicamente para que se apresentasse – e fosse bem recebido – por ele. Não aconteceu. E se é pra falar sobre jornalismo, crítica, responsabilidade social, consciência coletiva, representação, qualquer coisa que se pareça com “ser a voz” de alguém, o que há na Universidade é apenas otimismo. Que podia ser mecanismo. Que podia dar origem a inúmeras coisas reais e positivas. Diferentes. Que, “bem procuradinho”, encontrei onde menos esperava. Fora daqui.


Continuando e tentando definir o Jornalismo Erick Lopes

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uando entramos na faculdade, lá no perdido e confuso primeiro ano, professores, familiares, colegas e conhecidos nos questionam sobre nosso curso e os motivos que nos levaram a escolhê-lo. O esperado é que essas perguntas parem ou diminuam com o passar dos dias, dos meses ou anos, certo? Mas não, elas se multiplicam. Você mesmo passa a ser um desses questionadores, inclusive. Análises e teorias de como tem sido seu aproveitamento do curso, no que ele tem te acrescentado e o que, de fato, ele ainda poderia te oferecer ao longo da grade restante. O que, afinal, o Jornalismo tem para oferecer? E, ampliando um pouco o campo de visão – e também o da dúvida -, como situar o jonalismo na Comunicação? Há poucos dias tive uma conversa não planejada sobre tal assunto com um dos meus professores do curso. Falávamos a respeito de estágio e toda essa burocracia que a minha universidade em particular insiste em adotar. Visto o complicado estado dos estágios em jornalismo, perguntei sobre a possibilidade de um estágio em comu-

nicação e então surgiram ainda mais dúvidas. Qual seria a função desempenhada? Quem seria melhor para essa função, um jornalista ou um relações públicas? O que seria, exatamente, um comunicador? O que se define como jornalismo? Um estudante de jornalismo não pode aprender com outra área da comunicação? Era uma discussão que levaria muito mais tempo do que eu tinha naquela hora. Refletindo um pouco mais e tentando ainda achar meu lugar nesse curso, vi que já perdi totalmente as esperanças. E não foi no jornalismo ou na comunicação. Perdi a fé na minha própria universidade. Fé essa que já não era muito grande, eu confesso. Quero, sim, terminar meu curso. O mais rápido possível, por favor. Porque fé em mim mesmo eu ainda tenho. Essa eu não perco. Não vou dizer que tenho certeza do que quero seguir exatamente porque eu realmente não tenho. Mas não vou ser podado pelas limitações que o local onde estudo tem me imposto a cada dia - e insiste em continuar com isso. “São só mais dois anos”. Tenho transformado esse pensamento em meu mantra diário. Amostra | Dezembro/2012 | 11


Melhor que trabalhar Roger Bressianini

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uardei as provas e trabalhos de um ano todo numa caixa de papelão. Tentei recobrar os conteúdos daquela papelada conforme ia depositando aquelas folhas, uma de cada vez. Não é o exercício mais agradável de realizar quando o mês de fevereiro já se despede com o fim do horário de verão. Nesse momento, podemos lembrar que a vida real não se parece nada com aquilo que estamos vivendo, que temos algumas obrigações a cumprir e um curso a seguir. É uma sensação paradoxal sentir nostalgia por algo que ainda se vive. Mas também é surreal a angústia das dúvidas que o futuro causa. Aí é o momento que chamo de início. Quais motivos, se é que eram perceptíveis sob as circunstâncias da época, me levaram a escolher fazer jornalismo? Qual o prazer em sentir

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morrer uma obra trabalhosa a cada sol que se põe? Qual a vantagem em trabalhar em algo que recomeça, a cada manhã, com mais rigor do que no dia anterior? São questões que o curso não responde. É preciso se virar para achar uma resposta e ainda se preparar para o caso dela não vir. Mas o tempo passa, e com ele os primeiros sonhos, as primeiras desilusões e também as primeiras falsas impressões. Algumas ideias se confirmam: não é fácil ganhar dinheiro fazendo isso. Porém, o jornalismo tem algo de dignidade, de defender o que é nosso, e é sempre muito difícil perceber e admitir que essa é uma ideia­idealizada sobre a profissão. Dias atrás, ouvi da boca de um professor: “Ainda é melhor que traba­ lhar”. Pronto, havia encontrado a minha resposta.


Sobre o tal do jornalismo Giovanna Machado

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or que você escolheu jorna­ lismo? O que espera do curso? Está gostando da área? No começo essas perguntas eram frequentes na faculdade. No ano em que entrei na universidade o diploma ha­ via caído, não era mais obri­ gatório. As perguntas fora da Academia eram mais constrangedoras: - Mas você vai ter emprego? Mas não tem diploma, por que você quer fazer? Na verdade isso não me interessava muito, aliás, não interessa. Não sei o que esperar do jornalismo. Não sei se vou ter emprego na área. O que eu sei, é que gosto, do assunto, das entrevistas, das edições, de ouvir ou ler as minhas­ ou as matérias alheias. Gosto até da famigerada diagramação. Aprendi que jornalistas e os estudantes do curso, acima de tudo são pessimistas. Quanto à pauta não ser

factual, o texto não ficar exatamente do seu gosto, o entrevistado desmarcar, o impresso acabar, o emprego não existir. O pessimismo reina na área, mas é para manter os pés no chão. O que acontecer é lucro. Um dia movimentado, um texto que não foi cortado ou alterado ou quem sabe um aumento do piso salarial Mas aprendi mais que isso. Entendi que os entrevistados não somente palavras, vozes ou imagens. São pessoas. Tem histórias, vidas e tudo isso é pauta, é matéria, pode ser escrito, e pode ser escrito por mim. O jornalismo me ensina a observar mais, a sentir o cheiro do lugar em que estou, a ouvir as vozes ao fundo, e não só a que está no microfone. Treina minha memória. Leva-me para longe, para conhecer e escrever sobre o mundo e me faz sentir parte dele.

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cr么nica


Isabela Cunha

Muitos quilômetros por hora

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urou o sinal vermelho, a mui­ tos quilômetros por hora. As luzes passaram rápidas e desfocadas, no vidro emba­ çado por dentro e molhado por fora. Chuva de final de mês de março, aba­ fada, molhando o asfalto por onde o pneu, quase careca, passava a muitos quilômetros por hora. A troca do pneu até estava nos planos. O salário de pro­ fessor de inglês ainda pagava a camisa comprada a credito e a cerveja que também bebia a muitos quilômetros por hora. Diariamente. Tinha perdido uma mulher, outra, uma filha e um labrador. Amigos eram inúmeros, enquanto não amanhecia. A mãe era a única a ligar, cobrava pre­ sença, responsabilidade, as refeições, o medicamento, sentia muita saudade, es­ tava preocupada, tinha encontrado o ex cunhado, engordou tanto, coitado, mas a mulher está bonita, tem os visto? Ele sempre respondia que sim, é claro, tudo certo, e até prestava atenção quando passavam os comerciais. Até logo, mãe. Agora, no banco do passageiro, uma

mulher alguns anos mais nova, não muitos, o fazia sentir jovem e vingado. Dirigia a muitos quilômetros por hora, enquanto alguma rádio muito jovem tocava algum hit repetitivo de que ele começou a gostar de repente. A mulher não tão jovem falava na mesma velo­ cidade do carro, o. O vento passava a muitos quilômetros por hora. Ele só ou­ via a música. Furou outro sinal vermelho, as lu­ zes passaram rápidas, o celular tocou, era a mãe, não parou, não diminuiu, o pneu estava quase careca, o asfalto molhado, tentou frear, o pneu cantou, a mulher não tão nova tentou segurar-se ao cinto que não tinha fechado. E ele, ironicamente, foi lento. Matou a mu­ lher, um ciclista, um poodle. A mãe, na linha, entendeu rapidamente. Pagou pra velar o corpo do filho. Enviou uma carta à mãe do ciclista, à dona do poodle, ao marido da mulher não tão jovem, Lisandra. Todos leram o mesmo pedido de desculpas e senti­ ram pena da mãe. Só ela perdoou o as­ sassino.


artigo por Giovanna Machado

Cultura? Onde? Como?

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ser humano possui inú­ meras necessidades, tan­ tas delas essenciais a sua simples sobrevivência, ou conforto momentâneo, que por vezes algo também de extrema importância para sua vivência, acaba sendo visto pela sociedade como algo supérfluo. Trata-se da cultura. Uma criança pre­ cisa de leite, mas também de uma can­ ção de ninar, de brincadeiras. Mais tarde isso se desenvolve para a música, a dança, a pintura, a escrita, a cultura artística que também é necessária para a vida do ser humano. Ambientando esse tema no cenário de Londrina, enxergamos uma cidade que vive intensamente a arte, uma ci­ dade que habita um dos maiores fes­ tivais internacionais do país, o FILO. Que faz todos os anos festivais de música, dança, apresentações de tea­ tro, que possui uma orquestra que já foi regida por grandes maestros inter­ nacionais. Também possui diversas Vilas Culturais, onde além de produzir arte e cultura também se pesquisa e discute ela. E não é só produção, a cidade pos­ sui um público forte. O FILO é famoso por suas filas para comprar ingressos que se esgotam rapidamente. Todos os anos a escola municipal de dança lotava o finado Ouro Verde durante três dias de apresentação no mês de dezembro, no festival de música viase a mesma lotação. E esse público não diz respeito apenas a parcela da população que pode pagar para ver grandes espetáculos. A produção cul­ tural é acessível, mas também inúmeros espetáculos e projetos cul­ 16 | Amostra | Dezembro/2012

turais são levados para a periferia de Londrina. Com tamanha produção cultural a cidade não possui um teatro mu­ nicipal. Possui espaços culturais, mas que necessitam de reformas urgen­ tes e que não abrigam o público que a produção cultural suportaria. Além disso a maioria desses espaços estão no centro da cidade, falta espaços cul­ turais na periferia da cidade. Como cidade com tamanha produção cultural, e com uma popu­ lação que apóia e participa dessas produções, pode viver com tamanho descaso e falta de apoio financeiro para a cultura? Em um recente debate sobre a cultura dos candidatos a pre­ feito de Londrina, um dos candidatos foi sincero em seu discurso e disse que se pensa muito em cultura antes das eleições, mas depois com a cobran­ ça do transporte, saúde, educação a cultura fica em último plano, por falta de planejamento. Planejamento caros políticos! Falta planejamento cultural para a cidade de Londrina. Um exemplo da falta de plane­ jamento cultural é o Festival de dan­ ça de Londrina, que em sua décima edição, não fará mostras locais, cur­ sos, nem trará a Londrina com­panhias internacionais como de costume, por falta de apoio financeiro. Londrina vive um paradoxo cultu­ ral. A produção cultural existe, o apoio da população existe, mas falta espaço, falta apoio financeiro para a cultura crescer. Está claro no cotidiano da cidade o quanto ainda falta para a cidade possuir um apoio cultural, no mínimo, decente.




ROCHA POMBO, museu dos dias de hoje Texto e fotos: Roger Bressianini


I - A arte da rua

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oão do Rio escreveu certa vez que nada como o inútil para ser artístico. Em 1908, o jornalista e escritor já atentava para a natureza pútrida do que não cabe no ambiente asséptico das máscaras sociais. São crianças magras com pés e faces sujas, mulheres de pele rasgada por chagas e cicatrizes que não posso decifrar a origem. Pessoas esparramadas pelos porcos gramados que o centro da cidade abriga com desdém. Uns dormem, outros alimentam a si e suas crias, molestados em silêncio pela realidade precária que a arte do inútil esculpe caprichosamente. Uns vendem cigarro de contrabando, mercadorias de qualidade questionável, cocadas, sanduíches, feijão de corda. São homens, memórias vivas, animadas, em movimento. São ruas centrais de uma cidade que expande cada vez mais sua área periférica. Sergipe, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo são estados brasileiros, mas em Londrina são ruas e avenidas contempladoras da história, guardiãs das memórias nobres e das malcheirosas. Procurar a arte nessa cidade é mais árduo para quem nasce aqui e se sente parte do concreto armado que vai aos céus, encobrindo a luz e retendo o calor do dia. Tudo é arte se a história é secundária. Na avenida São Paulo, logo do seu início, é possível mirar a plasticidade que se implantou na cidade e o que a cidade resolveu fazer dela. Na esquina com a rua Benjamin Constant, a antiga Estação Ferroviária de Londrina salta aos olhos como uma obra que não dá conta de outra função que não essa: ser notada. Os autênticos filhos dessas ruas não consomem seu suor aprimorando os saberes, já que a fome é de urgência maior e aquela construção imponente, de estilo profundamente excêntrico para os padrões da simplicidade atual, não precisa explicação. É o Museu Histórico e isso basta. Não há vantagem aparente em conhecer um lugar que não recebe indiferente alguém descalço. Caminhando mais à frente, conforme a rua toma vida e o comércio se responsabiliza pelo quase-caos das calçadas, placas de estacionamentos brilham suas 20 | Amostra | Dezembro/2012

luzes para atrair os automóveis que a rua não suporta. Ambulantes, desvalidos, homens de negócios, senhoras e crianças dividem seus medos e suas vergonhas, suas esmolas e preconceitos. Não vale o esforço apreciar o que é estático na paisagem da janela que não se tem. A janela da rua é o horizonte. Mas procuro a arte, não a miséria, essa filha bastarda da urbanização, adotada, nutrida e agasalhada pela rua. E a arte grita do silencioso concreto das plataformas onduladas que consigo avistar adiante, em outra construção exótica para o ambiente estético de escassa originalidade. É a antiga Estação Rodoviária e atual Museu de Arte da cidade, próximo à esquina com a rua Sergipe, mãe dos comerciantes, com seus nebulosos negociantes que entregam pequenos pedaços de papel com a mensagem “compro ouro”. Lojas de calçados, roupas, consultórios odontológicos, bazares, lanchonetes e casas de suco. Se a arte é o que desperta os sentidos e nos causa uma espécie de emoção represen­ tativa e sinestésica, a vitamina de frutas da rua Sergipe poderia ser considerada arte contemporânea. Mais uma vez, as calçadas infestadas de gente de toda sorte voltam a tumultuar a percepção de quem se ocupa exclusivamente da vadiagem de observar. Embora ainda haja o trabalho informal em larga escala, o comércio instalado na Sergipe é antigo e tradicional. Paro defronte a um carrinho de sanduíches estacionado na calçada do Museu de Arte e pergunto se vendem água. Pago pela água e aproveito para descontrair e perguntar à moça se ela costuma visitar os museus por trabalhar tão perto. É só uma conversa para não parecer antipático enquanto me reidrato, mas a resposta é sintomática, sincera e inteligente: “Bom mesmo é trabalhar na praia!”. Sorrio, concordo, agradeço e parto em direção à porta de entrada do museu com minha câmera fotográfica a tiracolo. Uma vez dentro do museu, sinto certo constrangimento ao ser abordado pelo funcionário: “Precisa de alguma informação?”. Observo ao redor, pouco ou quase nada de arte está exposto. “Não,

Tudo é arte se a história é secundária. Na avenida São Paulo, logo do seu início, é possível mirar a plasticidade que se implantou na cidade e o que a cidade resolveu fazer dela.


obrigado, só gostaria de fazer umas fotos do prédio”. Educadamente ele responde: “O espaço é público, fique à vontade!”. Pego uma rampa de acesso á minha esquerda e saio para o pátio que funcionava como plataforma de ônibus para a antiga rodoviária, faço fotos, me abaixo, procuro uma maneira de enquadrar o prédio em sua totalidade. Tarefa quase impossível para um edifício tão comprido e incrustado numa região repleta de outras edificações que não permitem o distanciamento adequado. Nessa busca pelo retrato mais abrangente possível, me aproximo de um portão com corrente e cadeado, observo o espelho d’água na praça que, ao mesmo tempo, une e separa os dois museus. A praça me parece um retrato fiel da civilização que forjou a cidade, assim como da cidade que forja diariamente esse povo. Entre dois museus, o de história e o de arte, um museu atual e muito mais democrático: a praça Rocha Pombo. Pronto, encontrei a arte que eu queria.

II - A arte de ferro Dos bancos da Rocha Pombo, usando algum golpe de vista para driblar os arbustos mal cuidados, avista-se o muro construído para afastar os vagabundos que viam o Museu Histórico de Londrina apenas como uma boa oportunidade de abrigo. Um muro jovem, inadequado à época da construção da antiga ferroviária, mas atualmente defendido. Políticos, administradores e leigos intrometidos oferecem o argumento de “preservação de patrimônio público”. Ora, sim, mas que público? Enfiei-me em livros, jornais e arquivos empoeirados para entender a história daquela construção. E foi tudo desnecessário para compreender o muro. A rua é democrática, útero dos bordões, dos escárnios e das maledicências que o tempo vadio é pai. O muro do museu é totalitário, forjado de material gabaritado para a função que lhe atribuíram e que cumpre militarmente: inibir. Amostra | Dezembro/2012 | 21


A primeira estação ferroviária da cidade era um rústico e amplo barracão de madeira cons­ truído na década de trinta. Era também a menina dos olhos dos pioneiros ingleses que vislumbravam os lucros que terra sadia podia oferecer com a plantação do algodão. Ali, aqueles estivadores do cais de ferro esperavam ansiosamente pelo espetáculo do novo, observando com melancolia a partida dos que careciam se aventurar para além do chão vermelho. A ferrovia era signo de progresso, um sinônimo de novidade e o retrato de uma elite local ávida por algo que não fosse apenas funcional, mas que representasse as ideologias e a ostentação que a prosperidade econômica proporcionava. Mas essa construção que agora me salta aos olhos é mais recente. Idealizada pelo prefeito Dalton Paranaguá e construída entre os anos de 1946 e 1950, a Estação Ferroviária de Londrina foi instalada no coração da cidade, imponente como desejava a parcela da sociedade que a planejou. Ela, assim como o muro que hoje a separa da rua, cortava a cidade em duas. Separava a região central da zona do meretrício, onde as putas e os malandros recebiam


reconhe­cimento por suas reputações, sem o ônus do juízo moral alheio. Com o desenvolvimento, tanto para o bem quanto para o mal, as peculiaridades da urbanização tornaram a estação ferroviária antiquada para as pretensões urbanísticas da cidade. O melhor a ser feito era deslocar aqueles trilhos de ferro para fora do centro das atividades comerciais, sem lançar mão da história representada por aquela construção de estilo pouco ortodoxo para os padrões da região. Em 1974, o prédio do museu foi tombado pelo Patrimônio Histórico do Paraná e passou a ser apenas uma obra de arte que perdia um pouco de sentido a cada nova geração de londrinenses que a contemplava. Pouco mais de uma década depois, em 1986, a antiga estação recebeu a função de abrigar o Museu Histórico de Londrina Padre Carlos Weiss, que foi criado na década de setenta na antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Londrina. Para essa nova e nobre função, o prédio da antiga estação precisou passar por ade­ quações, mas as reformas não diminuíram o caráter impactante da arquitetura da obra. Como resultado da interação entre os principais aspectos edificadores – o cultural, o político e o humano – essa mistura de influências determinou a arquitetura eclética

da construção, inspirada numa corrente arquitetônica do século dezenove. A fachada foi praticamente mantida intacta, com modificações pontuais, como a composição das portas laterais. Interiormente, trocaram pisos e eliminaram salas que inviabilizavam a utilização do espaço para exposições de um museu. A chamada “arquitetura de ferro”, amplamente difundida entre os ingleses, também dá formas ao prédio, com seu estilo moderno e paradoxalmente simples. É a imponência do ferro simbolizando o poder de uma era de expansão e prosperidade. Hoje, os telhados inclinados e altos, típicos de regiões de inverno rigoroso onde há muita neve, parecem zombar dos diabos que pisam o chão à luz do meio-dia. Os termômetros borbulham na cidade que alcança temperaturas quase negativas no início da primavera e ultrapassa quarenta graus no fim do inverno. Os jardins, entre os muros-sentinelas e o prédio do museu, não convidam a muitos com seus bancos de madeira. O espaço é amplo, bonito, com plantas e gramados bem cuidados, mas é quente e Londrina ferve. A arte, vista da rua, é fria. Ainda dos bancos da Rocha Pombo, às minhas costas, nem preciso driblar arbustos para ver uma escada dupla, em que um lado sobe de encontro ao outro e levam ao mesmo lugar: um portão. Mais um portão que não existia no projeto original de outra obra de arte. Arte nascida de outra estação, a antiga Rodoviária de Lon­ drina e atual Museu de Arte. De novo, a arte se funde com as paredes da cidade que ignora o planejamento dos projetos. A arte grita.


III - A arte de concreto Em 1952, Londrina já era grande o suficiente para não dispor de uma estação rodoviária para acomodar passageiros da esperança e da agonia, sorridentes e confian­ tes, mas às vezes resignados e famintos. Não me parece diferente a condição dos transeuntes atuais, exceto o fato de esses não partirem nem chegarem de longe. São passageiros que vão à margem da cidade diariamente, retornando num flagelo indiscriminado. Seu Astor de Almeida é um desses que trabalha sob o mormaço vendendo cigarros. Acho constrangedor e desnecessário questionar a origem do produto, afinal seria inocente demais da minha parte. Começo perguntando o preço do maço, mesmo não fumando, e ainda assim estou distante, tentando invadir a história de um ocupado em exercer a atividade que lhe permite manter-se em pé. O preço é o mesmo dos outros dois vendedores do mesmo produto que estão a menos de cinquenta metros dali. Penso que o mercado deve ser competitivo, mas não muito sofisticado. Percebendo que Seu Astor já passa casa dos sessenta anos, suponho a experiência do homem e lhe pergunto se é filho do chão vermelho. “Não, 24 | Amostra | Dezembro/2012

eu sou paulista de Ibitinga, mas tô aqui faz muito tempo!”. Também pergunto se chegou a pegar algum ônibus naquele prédio ao lado onde agora funciona um museu de arte. “Não dá nem pra contar...”. Reticente, Seu Astor não está com paciência o suficiente para bater papo com alguém que não consome cigarros. O olhar raso, a camisa rasgada e o boné repousado sobre a cabeça com desdém falam por ele. Em outubro de 1983, naquele mesmo pátio onde os ônibus se apertavam pelas sete plataformas de cobertura ondulada, o arquiteto responsável pelo projeto, João Batista Villanova Artigas andou de olhos marejados pela última vez. Mesmo em uma época em que a construção já não suportava a demanda da cidade, Artigas não dava o braço a torcer quando o assunto era a funcionalidade da rodoviária desenhada por ele, mas não comentava a nova rodoviária da cidade, que estava sendo projetada por seu amigo Oscar Niemeyer. A entrada era no térreo, com acesso às bilheterias por meio de uma rampa, já que o edifício não tem escadas. No subsolo ficavam os sanitários, assim como as bancas


de doces, revistas e cigarros ocupavam o piso intermediário. Por outra rampa, chegava-se ao primeiro andar, onde existiam uma cozinha e um restaurante, além de outros sanitários. Além disso, a antiga rodoviária ainda contava com uma barbearia e as salas administrativas. A obra de corpo pequeno – pouco mais de quinhen­ tos metros qua­ drados levantados ao sul da Rocha Pombo – recebeu atenção especial quando construída, já que era projetada por um renomado arquiteto brasileiro e todo o material empregado na construção vinha de São Paulo, no antigo Douglas DC-3, avião que revolucionou o transporte de cargas e passageiros na década de quarenta. Inicialmente, o projeto não previa grades para cercar a obra. Mas inicialmente, o projeto também não previa a cidade nem a fome, nem a miséria nem a sorte, ou a falta dela. Assim, em 1988, com a nova rodoviária em pé e longe dali, o poder público logo resolveu o problema que acabava de se instalar no coração londrinense, erguendo grades e portões para afastar os bêbados e vagabundos que transformavam a antiga Rodoviária de Londrina em banheiro público, escarrando sua imundície pelos cantos, dividindo os bancos com os ratos que se alimentavam da podridão que maltratava o ambiente. Mais uma vez, uma estação de meio de transporte se transformava em arte pela arte, um asterisco reluzente no concreto pardo desse chão que imprime sua marca e torna tudo mais quente, alaranjado, vermelho.



IV – O museu dos dias de hoje Mas o espelho d’água sujo à minha frente é de um silêncio ensurdecedor. Os bicos do chafariz, alguns quebrados, outros faltando, não cumprem seu papel. Deles não se pode esperar por água, assim como do espelho não se pode esperar por reflexo. A água esverdeada num tom musgo encardido serve de repouso para garrafas plásticas, sacolas e todos os outros objetos descartáveis que se possa imaginar. Além de criadouro de girino, o espelho d’água também é muito apreciado pelas crianças que aproveitam o espaço para se refrescar. As crianças, por sua vez, administração após administração, são apontadas pelos gestores públicos como as verdadeiras responsáveis pela miséria da praça. Não faz muito que trocaram os bicos metálicos do chafariz, aliás, a manutenção tem que ser feita a cada vez que algum viciado resolve se apropriar da peça para vender o metal e comprar a pedra. É o crack. De onde estou sentado, leio frases homofóbicas pichadas nos muros das rampas de acesso da Rocha Pombo. Não vale a pena reproduzir a ideologia e o português igualmente precários do autor anônimo de tal vandalismo. Diariamente, casais das mais diferentes orientações trocam carícias que parecem zombar das ofensas inconsequentes gravadas nas paredes. Mais do que isso, mentes perversas fantasiam sem o menor alarde – quando não se arriscam à prática – toda configuração de transgressão comportamental possível no ser humano. São incalculáveis. Os postes de luz também dão o ar fantasmagórico do local depois do escurecer. É que os meninos que ali se instalam atiram pedras nas lâmpadas a fim de proporcionar o escuro adequado para o descanso noturno. Antes mesmo de ser construída, entre 1950 e 1952, a Rocha Pombo já viu de tudo um pouco. Serviu de palco para um desastre sem precedentes da cidade. Em 1947, dois monomotores se chocaram e um deles caiu sobre a praça e explodiu, vitimando o piloto. Ali, a praça já começava a se habituar com a desgraça que o tempo lhe incumbiria de parir e amamentar. Como parte do projeto de Artigas para a antiga rodoviária, ela também foi tombada em 1974 como patrimônio histórico e artístico. No apogeu da Rocha Pombo, os londrinenses levavam seus filhos para fazer piquenique e ver o tanque de carpas. Hoje, os filhos crescidos dos pioneiros londrinenses não querem saber de seus netos em local desandado, sujo e perigoso. Ponto de espertalhões fazendo o “jogo da tampinha”, vendedores de artigos roubados e produtos medicinais milagrosos, camelôs, pedintes e profissionais do sexo – a década de noventa não foi generosa com a Rocha Pombo. Passasse por ali às duas horas da tarde e veria mais de uma dezena de mulheres cobrando barato para saciar o desejo de homens casados e solteiros, viciados em retardar a volta para casa com uma desculpa sem cabimentos. Não vejo essa dezena, mas ao meu lado uma senhora já acima dos quarenta anos me olha indiscretamente, ávida por uma aproximação sorrateira com uma proposta entre os dentes. Como não estou interessado em seus serviços, apenas observo distante, tentando imprimir inocência em cada gesto ou olhar. Estou interessado na história daquela mulher, provavelmente mãe, provavelmente amarga, e certamente

batalhadora. Pelo machismo preconceituoso tra­vestido em rebeldia nas frases pichadas nos muros da Rocha Pombo, imagino que aquela senhora não está em local que lhe acolhe­socialmente. Está fora de lugar, como todos os ou­ tros elementos que paradoxalmente compõem a cena. Já são cinco da tarde. A mulher recebe a abordagem de um rapaz de calça suja de tinta e boné. Ele para a bicicleta, puxa conversa que não consigo escutar. Ela sorri, ele também. Trocam palavras e gestos por não mais que dois minutos e o homem vai embora, me indicando que realmente se trata de uma garota de programas. Então resolvo me aproximar e perguntar seu nome. “Suzane”, diz ela, logicamente sem especificar a grafia do nome, que não interessa nesse caso e nem deve ser o mesmo dos seus documentos. Ela diz que percebeu que eu a olhava e já fala que há um local onde se alugam quartos para as prostitutas e seus clientes a menos de quinhentos metros dali. Respondo que não é essa minha intenção e não tenho tempo de perguntar mais nada. A mulher é ríspida e com razão: “Então dá licença que eu preciso trabalhar”. Reconheço minha dose de inconveniência e resolvo conversar com dois taxistas simpáticos que falam sobre futebol num ponto alojado na calçada da praça. José Aparecido, 63 anos, londrinense torcedor do Tubarão e do Santos. “Torcer só pro Londrina hoje em dia tá difícil”, justifica após se dizer torcedor do clube praiano. Ele diz que está ali há menos de cinco anos, mas nem por isso deixou de acompanhar histórias peculiares da praça histórica. A Rocha Pombo dos dias de hoje é um pouco de tudo que passou por ali. Ela é a blusa amarela de Suzane, os olhos rasos de seu Astor, o sorriso de seu José. O vermelho da terra que sangra por seus filhos desprezados está no semblante de todos que vivem algum tempo na praça. Os que vivem ali, morrem diariamente, vítimas de um descaso inconsequente. Falo sobre curiosidades, busco entender além do óbvio que a praça transmite, mas os taxistas não ouviram falar do comício de Getúlio Vargas na praça na década de 50, nem da tragédia dos aviões antes da construção, já que a memória dos galos garnisés que moravam soltos por ali é mais recente e, na singela opinião deles, mais interessante e fraterna. José Francisco da Rocha Pombo foi um jornalista, advogado e político brasileiro propagador das ideias republicanas. Foi um abolicionista, defensor do fim da escravidão dos negros. Hoje é nome de praças, uma delas em Lon­ drina. Por ironia do destino ou apenas sarcasmo desse acaso anarquista, a Rocha Pombo londrinense não aboliu os seus escravos. Os camelôs, as putas e os pobres continuam tirando seu sustento das pedras daquelas calçadas. Os taxis­tas zombam do tempo e fazem piadas sobre os frequentadores, sobre os inválidos e sobre eles mesmos. O tempo não é mais o mesmo, as gerações não são as mesmas. São compilações, coleções de artigos vivos e mortos que ­ transcendem o entendimento contemporâneo. No coração da cidade, entre dois museus carregados de uma história saudosa, ainda respira a Rocha Pombo, um museu construído pelo tempo e contemplado com as raras imagens dos dias de hoje. Amostra | Dezembro/2012 | 27


Erick Lopes é estudante do 3º ano noturno do curso de Comunicação Social - Jornalismo da Universidade Estadual de Londrina e escreve periodicamente a sua coluna no site: www.perobaprosa.com

Da sociabilidade

coluna

E

tablet ou similares vai perceber, com o tempo, u estou te recrutando hoje. Sim, a par­ tir do momento que você terminar de uma leve dor de cabeça, que pode aumentar ler esse texto, tem uma missão vital e se tornar um problema não muito agradável. na sociedade: salvar um amiguinho Sem contar que nossas mãozinhas e dedinhos da dependência eletrônica. Isso porque não vai podem sofrer lesões pelo uso excessivo, já que adiantar eu ficar aqui discorrendo sobre o quão sua função original é apanhar coisas e não enviar cansado pode ficar um cérebro, os olhos ou até SMS. Claro que nosso corpo tende a se adaptar mesmo o espírito de quem é aprisionado pelo ao longo dos anos, como já é provado cientifi­ camente em vários outros aspectos, mas acho uso excessivo, descontrolado e escravista do que leva um tempinho razoável para isso, não celular, tablet, notebook, tamagotchi ou seja lá é? Talvez os olhos de nossa quarta ou quinta ge­ qual for o aparelho tecnológico. Ou apelar para o argumento de quão rápido pode morrer aquela ração já venham com filtro de LED embutido e noção de sociabilidade no ser dominado pela seus dedos mais espaçados e articuláveis. máquina. Não... Não vai funcionar. Porque quem Além dos fatores que envolvem a saúde, que precisa receber essas informações é o com­ por si só já não podem ser ignorados, podemos panheiro que está lá, incomunicável com o mun­ recorrer ao fator social. Se o seu amigo quiser do real, sendo hipnotizado pelas ondas e pixels se isolar do mundo em seu computador, seu devoradores de consciências. E ele nunca vai ler Doritos e sua Coca-cola, ótimo! Deixe-o lá então. esse texto... Mas você, sim! Você está lendo! Mas também o alerte que terá que lidar sozinho Percebe sua importância na salvação da hu­ com todas as complicações psicológicas que manidade? Mas calma. Isso não é um pedido desenvolverá. No máximo, poderá chamar seus para que você roube o celular do seu amigo, amigos virtuais que levam o mesmo “estilo de quebre seu notebook ou enterre o tablet da sua vida”. Agora, se a intenção é sair com os amigos colega de trabalho. Inclusive, já aviso que não reembolso ninguém por tais atitudes. Falo daquela sua prima que Mas veja bem: as tecnologias estão aí, todas fica trocando SMS o dia todo bem-intencionadas, sorrindo, estendendolhe as mãos e possibilitando inúmeras cois­ com quarenta e sete pessoas as magníficas, inclusive ler este breve texto. diferentes, sabe? O problema ao qual me refiro é o tipo de relacionamento que algumas pessoas aca­ bam desenvolvendo com essas carinhas bonitas para beber uma cerveja, curtir uma balada, can­ e convidativas. Falo daquela sua prima que fica tar parabéns para o filhinho do chefe ou qualquer trocando SMS o dia todo com quarenta e sete outro evento social da realidade, vale avisar que pessoas diferentes, sabe? Ou aquele seu amigo o celular é apenas um meio de comunicação que que não entrega os trabalhos escolares, mal dor­ pode ser usado periodicamente e não a atração me e come só o suficiente para lhe dar forças nas principal da noite. Frise que não é legal ter que mãos, pois ele precisa upar o level daquele jogo repetir a mesma frase sete vezes para que ele a novo que mês que vem não vai ter mais graça. É entenda ou, ainda, ficar no vácuo na esperança esse tipo de comportamento com o qual eu me de uma resposta, riso ou qualquer reação huma­ preocupo. E eu tenho esperança que eu não seja na perante uma interação. o único a pensar assim. Se a pessoa está perdida e desorientada nas Localizado o alvo de sua intervenção, com­ entranhas tecnológicas, nada como um toque preensivelmente vem a pergunta: “E o que eu humano para lhe servir de mapa para achar a saí­ posso fazer para livrar essa pobre pessoa dos da. Ainda podemos salvar essas pessoas e fazêcircuitos das trevas?”. Tentar uma conversa usan­ las entender que o mundo tecnológico é, sim, do aqueles meus argumentos iniciais é um bom bonito, mas pode ser espetacular se usado com ponto de partida. Nossos olhos e cérebro não es­ moderação. Aliás, como tudo na vida, sabe? Não tão tão desenvolvidos a ponto de estar prepara­ dê as costas ao coleguinha na hora que ele mais dos para serem expostos durante tanto tempo precisar de você. Ele pode não perceber que à iluminação LED e, por isso, o coleguinha que precisa de ajuda, mas cabe aos mais próximos teima em ficar horas na frente do computador, difundir o remédio da salvação: o semancol.


Touch Da amizade

O

uniam a todos. Mas veja bem: as tecnologias que é amizade para você? da informação transformaram muita coisa no Aquela tarde de domingo que aspecto comunicacional e nós... Bem, ainda começa com o almoço, suja a somos humanos, vivemos em sociedade e roupa, lava a louça e se estende pelo resto da tarde, com pote de sorvete, fo­ precisamos de alguém que nos compreenda focas, piadas, risadas e gritos até começar às vezes. Tanto acréscimo nos modos de a anoitecer? É aquele sábado à noite que, nos comunicarmos apenas potencializa esse na verdade, já é uma extensão da sexta, troço aí chamado de amizade. Não existe com cerveja, vodca ou tequila, música alta, ami­ zade mais ou menos verdadeira que a pessoas novas, tombos e machucados que outra. E se isso estiver sendo medido pelo resultam em flashes desconexos no dia se­ número de vezes que uma mão toca na outra, guinte? Beleza, as duas alternativas podem então há ainda mais falhas na comparação. ser colocadas no potinho da amizade, mas Ami­zade é sentimento e ele não tem limite de vamos lá, ainda tem muita coisa para com­ cobertura de rede, sabe... Vai do que cada pletar o pote. Amizade é um abraço forte, um é capaz de sentir e transmitir, indepen­ dente da tecnologia usada ou dispensada. um sorriso espontâneo, aquela lágrima com­ partilhada. É sinceridade, fidelidade e com­ Eu, particularmente, sou meio carente preensão. Também é lealdade, companhei­ e preciso de contato, de um abraço e até rismo e cuidado. É aquela sensação boa e uns tapas de vez em quando. Mas isso aí é reconfortante de dizer “oi” e ser enten­ dido. Amizade é segredo, partilha, con­ Sempre tem um ou outro fiança e, sobretudo, carinho. E, quando que diz que a tecnologia só essas coisas existem, elas aproximam as pessoas, e aproximam em um nível tem se desenvolvido para tão extremo que a noção convencional afastar as pessoas, acabar de distância perde o sentido. Já sacou onde eu quero chegar, né? com as relações humanas e Eu sei que tem gente que não acre­ suprimir os sentimentos que dita em amizade virtual. Eu também não acreditava. Mas também não quero fa­ antes uniam a todos. Mas zer o convertido chato e convencer todo mundo que o que eu acredito é verda­ veja bem: as tecnologias deiro e o resto das opiniões existentes não prestam. Não é assim. Até porque eu como eu funciono. Minhas amizades virtuais não tenho amigos virtuais. Não totalmente. de hoje são extensões de amizade-corpopresente que fiz durante minha vida toda. O Digo, depois que passei a morar em outra ci­ dade, mantive meus antigos amigos nas re­ meio virtual é apenas o suporte para o qual foi des sociais, mas ainda tem aquela amizade transposto o que já foi criado e cultivado an­ que começa pela internet e dura um tempão, tes e, ainda assim, busco rever aqueles que sabe? Alguns poucos encontros cara a cara são importantes para mim. Mas sei de gente que sente isso tão intensamente quanto eu na vida, isso quando existem, mas nada que afaste as pessoas e as impeçam de ter um re­ através de uma webcam, um microfone, um teclado, um celular ou até mesmo uma carta lacionamento saudável e verdadeiro. Porque amizade é uma coisa forte, gente. Fale a pa­ escrita. Acredito em toda forma de amizade, lavra em voz alta aí e tente sentir tudo o que desde que verdadeira: a totalmente virtual, a ela traz. Amizade. É um brilho bonito, que se semivirtual, a transposta, a temporariamente afastada e a inteiramente presencial. Porque acomoda lá na alma da gente, expande-se e nos nutre. É poderosa. a gente está falando de sentimento e ele não Sempre tem um ou outro que diz que a se manifesta igualzinho em todo mundo. Eu sinto assim. Você sente também; não assim, tecnologia só tem se desenvolvido para afas­ tar as pessoas, acabar com as relações hu­ mas sente. Pronto, não temos mais o que manas e suprimir os sentimentos que antes discutir.


cr么nica


João, o homem ilegítimo

Lais Taine

J

oão nasceu de parto natu­ ral. Já pequeno observava as oportunidades que a vida lhe traria. Começou engatinhando, logo criou habilidades com a mão, aprendeu a falar, a com­ preender e, por isso, se desenvolveu. Cresceu. Já andava com a postura ereta e foi ficando inteligente. Plan­ tava e caçava para sobreviver, viven­ do no seu espaço em harmonia com a população animal e vegetal. Na fase mais adulta, percebeu que sua capacidade de pensar era maior que a de outras espécies e usou isso a seu favor. Ficou tão inteligente, tão inteligente, que emburreceu. Domi­ nou outros animais, dominou os vege­ tais, dominou o próprio homem. En­ louqueceu. Suas engenhocas surgiam com o propósito de amenizar o esforço do trabalho. Tantas ideias lhe surgiram à cabeça que João transformou o mun­ do. Construiu novas pernas (melhores e mais rápidas), produziu alimentos mais fáceis de ser ingeridos e arma­ zenados, montou um sistema onde algumas pessoas trabalhavam em dobro para que uma pequena parcela sobrevivesse sem trabalhar. Ele gos­ tava do conforto. Tudo girou em torno do João. Os

animais e vegetais viviam para ele. O mundo era dele. Nada mais era natural, nem mesmo o seu rosto, pois havia descoberto meios de parecer mais jovem a partir da introdução de produtos na pele para amenizar as rugas. Quase perdeu a expressão. Teve filhos. Uma linhagem pura, porém artificial, porque nada mais em João era puro. Os filhos deram continuidade aos caprichos do pai, talvez com um pouco mais de em­ penho. Eram gordos, alienados e tristes, como muitos outros. Sentindo as consequências, João olhou o passado com nostalgia. O mundo era lixo, poluição e angústia. Chamou atenção para os problemas que havia criado, pediu ajuda. Era tarde, o mundo não ouvia. Não se vivia bem no mundo que ele mesmo inventou. Queria sentir o que sentia antes, queria paz, queria fazer parte do real e não de sua in­ venção. De cima de uma de suas mais al­ tas construções, observou toda a for­ ma que o mundo tomou: carros, ruas, fumaças… E na ânsia de se limpar de tudo que, originariamente, não per­tencia a ele, abriu os braços e se jogou para o último ato natural da sua vida, a morte.

Amostra | Dezembro/2012 | 31


resenha

Giovanna Machado

Veja o trailer do filme no site do Peroba Prosa


capote U

ma tragédia ocorrida no interior do estado de Kansas em 1959 é tema para o novo livro do consagrado jornalista Truman Capote. Para es­ crever sua obra ele faz investigações sobre a chacina com as pessoas envolvidas no caso, e durante cinco anos faz visitas regulares aos assassinos na cadeia, a fim de descobrir o que aconteceu naquela noite e concluir sua obra prima: “À Sangue frio”. Em cima dessa trama o filme dirigido por Bennett Miller e estrelado pelo ganhador do Os­ car por sua atuação, Phillip Seymour Hoffman, consegue prender o expectador acima de tudo pela atuação de seu protagonista. Como afirma o próprio título o filme tem como papel central o jornalista Capote. Tratando principalmente da forma como a sua investigação foi feita. Capote tem um grande poder de persuasão e conse­ gue tirar das pessoas o que ele necessita. O ator consegue com uma grande presença de cena transpor as características do jornalista. O filme mostra a frieza do personagem em suas investigações, para se aproximar de um dos assassinos, Perry Smith (Clifton Collins Jr), o jornalista compara o sofrimento de suas infâncias, passa a tratá-lo como um amigo, contratando inclusive um advogado para ten­ tar adiar a execução dos criminosos, tornando Smith seu confidente. A trama deixa a dúvida se existiu ou não, um amor platônico entre os dois. O filme consegue expor diversos fatos so­ bre o jornalista sem desviar o foco central, por exemplo, o fato de Capote ser gay. Quem não conhece o personagem consegue supor isso pelo fato dele morar com um homem e em suas atitudes.

O filme trata também de dois lados de Ca­ pote, diversas vezes mostra o jornalista em festas com os amigos conversando sobre hones­ tidade, porém mostra também Capote enganando seu confidente em vários momen­ tos, como o fato de já estar escrevendo o livro e que ele se chama “À sangue frio”. E o interesse em manter os assassinos vivos apenas para acabar sua obra. O livro de Capote trouxe uma novidade, ele escreveu o livro enquanto os assassinos eram procurados até quando foram executados. Com isso conseguiu modificar a estrutura da literatura e também do jornalismo. Pois Capote escreveu seu livro enquanto o caso ainda era resolvido e também vivenciou o caso, o que não costuma ocorrer no jornalismo. Como Ca­ pote também conheceu a história, os objetivos do principal assassino, seu livro não mostrou apenas os fatos, mas também uma análise psicológica sobre eles. O que tornou sua obra tão diferenciada. Apesar de tratar de uma história de assas­ sinatos, procura, e solução de uma tragédia, o filme consegue colocar em primeiro plano o personagem que dá nome ao filme, Capote. Os trejeitos, hábitos, visual do jornalista realmente protagonizam o filme, levando o espectador a até mesmo analisar o comportamento do jor­ nalista. O filme não mostra Capote através de sua trajetória e carreira, mas através de sua obra prima. Capote foi produzido no ano de 2005 nos Estado Unidos, seu roteiro foi escrito por Dan Futterman, e dirigido por Bennett Miller. O filme tem duração de 98 minutos e é do gênero Dra­ ma. Amostra | Dezembro/2012 | 33


Alcoólatra desde os 14, abstêmio há 8 anos

Ayrton Oliveira Silva, 68 anos, abandonou 42 anos de alcoolismo para se tornar a criança que ainda não tinha tido a oportunidade de ser

texto Isabela Cunha



N

ão me lembro exatamente quando foi que conheci o Seo Ayrton. Sua presença durante os meus anos de vida foi sempre tão natural que penso, agora, que nunca fomos apresentados. Há quase 20 anos eu passo pela rua José Colli, onde moro, e ele acena com a cabeça, tira o boné e nem desconfia que me chama pelo nome errado. “Vai pela sombra, Isabel”. E eu vou, sempre que posso. A casa do Seo Ayrton foi construída por ele mesmo, antes de eu me mudar para a Rua José Colli, no jardim Acapulco, zona Sul de Londrina. As paredes de madeira tem o mesmo verde-água desde que a nossa casa foi cons­truída ao lado, e são retocadas anualmente por ele, que também vai dando um jeito construir novos cômodos e dependências para de abrigar a família dentro do terreno, “do jeito que dá”. “Aqui é assim, os filhos vão casando, vão ficando, trazendo netos. Mas a gente gosta, ver a meninada cre-

scendo junto não tem preço, não, to até fazendo um quar­tinho de visitas para os que ainda vão chegar”, ri seo Ayrton, contando nos dedos e lembrando pelo nome todos os membros da família a que ele deu início. Seu Ayrton e Dona Cândida se casaram há um tempo tão longo que ele nem sabe dizer ao certo “Ah, pode colocar na conta que minha filha mais velha ja tem mais de trinta, que só aqui nessa casa a gente mora tem mais tempo que isso. Ih, Isabel, eu devo ter, só de casamento, umas duas vezes o tempo que você tem de vida”. E, segundo o seu Ayrton, viver todo esse tempo não foi sempre fácil. “Pode anotar aí, desse jeitinho mesmo que eu to falando, a mulher aguentou muita coisa comigo, chegou a me apontar a faca e eu não tiro nunca a razão dela jamais. Foi o que me fez acordar”. A história que segue é a história de Ayrton Oliveira Silva. Jardineiro, pai, avô, alcoólatra desde os 14 anos, abs­têmio há 8.

O Começo Seu Ayrton nasceu em Minas, numa família pobre “mas que sempre me ensinou a ter vergonha na cara”, conta. O mais velhos de 6 irmãos, trabalhou desde muito cedo, sempre teve muita responsabilidade e tempo nenhum­para estudar. O resultado? Aprendeu a desenhar o nome e foi para a lida, calejar as mãos e queimar a pele de sol a sol. “Meu dinheiro nunca foi só meu. Alguma coisa ficava comigo, mas eu ajudava em casa, até porque, se não ajudasse não teria comida pra todo mundo. E que homem consegue dormir vendo a mãe tirar do seu pró­ prio prato pra poder dar pros irmãos?” A impressão que tenho depois pode ser resumida nessa última frase, que seu Ayrton reverbera sem a menor vaidade. Aos dez anos de idade já estava definido que precisava ser um homem. E foi. Talvez tenha sido assim (ou por isso) que começou a beber e fumar também tão cedo. “Eu tinha 9 anos quando bebi pinga pela primeira vez. Minha mãe me deu uma surra de marmelo, você sabe o que é isso? É uma vara tão fininha, que quando bate chega a queimar”, conta. Mas a surra não adiantou de muita coisa. Aos 14, seu Ayrton já bebia e fumava na companhia do pai, era

Aos dez anos de idade já estava definido que seo Ayrton precisava ser um homem. E foi.

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um homem, um igual. “Chegou uma hora que ninguém podia me dizer mais nada, Isabel. Eu trabalhava, ajudava a colocar comida no prato de todo mundo, sustentava meu vício sozinho. Era tratado como homem para todo o resto das questões da família. Por mais criança que eu fosse, não podia ser tratado como um moleque só na hora de fumar e beber”, explica. Pergunto, então, se seu Ayrton já sabia, aos 14 anos, que o que tinha era um vício. “Sabia e não sabia”, ele responde sem pensar demais. “Era, sempre foi uma coisa que fez parte de mim, não sei se você entende. Era uma necessidade do mesmo jeito que a comida é uma necessidade. Só que quando você come, não é considerado viciado, é uma coisa normal. Pra mim também era assim, eu precisava beber e fumar como precisava comer, mas não entendia que era uma coisa ruim”, argumenta. Seu Ayrton conta que levou a vida toda dessa forma, trabalhando, sendo um dos homens da casa, bebendo, fumando o cigarro de palha e compreendendo tudo isso como algo natural. E as coisas não mudaram quando conhe­ceu dona Cândida, sua esposa há quase 50 anos. “A gente era novo, e eu era mais arrumado, sabe?”, diz debochando de si. “Eu gostei dela, de certo que ela também gostou de mim, aí a gente deu umas voltas, eu mandava uns recados pelas amigas dela, até que começou um comentário na cidade e eu tive que falar com o pai dela, né.Falei das minhas intenções e ele permitiu. Rapidinho a gente casou.” Seu Ayrton quase esquece de me contar que tudo isso já aconteceu aqui em Londrina, ele veio pra cidade


O Vício

com as promessas do café. “Mas as coisas não deram tão certo pra mim, acabou que aqui em Londrina eu fui um pouco de cada coisa. Tive muitas profissões e não tive profissão nenhuma.” Seu Ayrton e Dona Cândida foram morar onde, hoje, fica o jardim Piza. Depois de 5 anos de casamento, seu Ayrton, desempregado, recebe da então empregada doméstica, Dona Cândida, a notícia de que a família ia aumentar. “Eu não sei se eu fiquei mais louco de felicidade ou de desespero”, conta seu Ayrton. “Eu ia ser pai, ia ter um filho que era uma coisa que a gente já queria, que a família já cobrava, mas de que jeito que ia ser, isso eu não sabia”. Seu Ayrton resolveu trabalhar por conta. Começou, nessa época, a fazer o que faz hoje: Jardinagem. “Londrina era uma cidade com algumas famílias ricas, a cidade tava crescendo e eu comecei a aproveitar essas oportunidades. Eu não sabia fazer outra coisa, sabe, e eu sempre gostei da natureza, você pode ver que eu cultivo minhas rosas, minha acerola, tudo aqui no jardim. O que eu mais quero é me aposentar e ir pra uma chácara. Aí eu

to feito”, conta seu Ayrton, que também já criou galinhas, foi pedreiro, carpinteiro, sapateiro e motorista. O trajeto até os trabalhos que arranjava, porém, sempre foram um dos grandes problemas de seu Ayrton. Nas palavras dele: “o problema é que sempre tinha um bar”. Seu Ayrton, até então, levava uma vida “sem grandes problemas fora as contas”, ri tranquilo. A primeira filha, Silvana, nasceu com saúde, Adriana chegou 3 anos depois. Em seguida veio Cristiana e, para a alegria do jovem Ayrton, o quarto filho foi um homem, Adilson. “Aí a gente encerrou a fábrica. A Cândida operou pelo SUS mesmo, e depois só os netos mesmo”, faz piada. As coisas começaram a piorar quando o trabalho foi ficando mais difícil. “Eu fui perdendo alguns patrões. O dinheiro que cegava na minha mão já virava minha pinguinha, e as contas foram apertando, apertando. Eu saía de um serviço e já passava no bar. Às vezes parava na metade, ia pro bar, e voltava a trabalhar. Eu não conseguia ficar um dia, uma hora sem beber”. Pergunto, então, se seu Ayrton sabe dizer o que o levou à dependência. “Foi a bebida”. Amostra | Dezembro/2012 | 37


O Vício A reposta também me pareceu um deboche no começo, mas logo entendo que o que seu Ayrton quer dizer é que o fato de não conhecer uma vida sem o álcool foi o que o levou a dar à substância mais importância do que dava a qualquer outra coisa. A bebida, não os problemas, tornou seu Ayrton um alcoólatra. “As coisas foram acontecendo. Eu só vejo essas dife­ renças nas fases da minha vida agora que olho pra trás. Enquanto eu estava viciado achava que todo mundo tava errado e que eu é que estava certo.” Conta seu Ayrton. “Você era menina, Isabel, mas lembra de mim naquela época, não lembra? Aqui em casa era só berreiro, briga, minhas filhas brigavam comigo, defendiam a mãe, não me queriam por perto”. E é verdade. Na minha memória de infância, a maior parte dos flashs sobre seu Ayrton tem relação com alguma briga, alguma fofoca entre as ­vizinhas, quedas que ele levava na rua, as filhas com medo. Lembro-me sempre de um Ayrton muito mais magro que hoje, quase esquelético, e ele mesmo explica os motivos. “O vício me tirou o paladar. Eu não via mais motivos pra comer, só pra beber. E eu fui emagrecendo por isso”, conta. “A maior tristeza é ver sua família não te querer por perto, em alguns momentos de lucidez eu sabia que estava errado, eu pensava em parar, até tentava, mas eu não conseguia, só precisava ver uma latinha, uma garrafa, que a boca salivava, eu queria beber.” Seu Ayrton conta que deixou de comer, de trabalhar, que começou a fingir que ia para o trabalho e, na verdade, ia para o bar. Que a abstinência, inclusive, o dei­ xava ainda mais violento. “Chegou uma hora que, sem a minha pinguinha, eu começava a tremer, suar, sentir frio. E ia ficando nervoso, nervoso, ninguém podia nem puxar conversa comigo, não podia ver ninguém conversando que achava que estavam falando de mim. A parte mais difícil pra mim foi tentar me recuperar, mas pra minha família essa fase mais intensa do vício com certeza foi a pior”, reflete. Entre os sintomas que seu Ayrton relata, o pior foram as alucinações. “Eu não sei exatamente quando, mas comecei a conversar sozinho, ver coisas, achava que a Cândida estava me traindo, e com isso vieram os momentos mais difíceis. A gente brigava todos os dias, eu não era mais eu”, lamenta. Seu Ayrton cita rapidamente um episódio que me lembro com muita clareza. Meu quarto tem parede comum com a casa do seu Ayrton, e, dormindo, comecei a escutar uma gritaria, muitas vozes nervosas.Acordei e minha mãe pediu pra eu não sair, nem ir para a janela. Obedeci. Esse foi o dia em que seu Ayrton provavelmente começou a refletir mais seriamente sobre um tratamento. “Foi isso mesmo que aconteceu, hoje eu dou risada, mas a Cândida levantou uma faca das grandes pra mim e 38 | Amostra | Dezembro/2012

me colocou na rua, porque a situação já estava ruim demais. Minhas filhas ficaram desesperadas e pediram pra eu ir embora. Acho que naquela hora nem foi tanto pelo alcoolismo, mas porque elas sabiam que a coisa tinha chegado em um ponto que a Cândida ia me matar mesmo. Eu tava dando motivo há muitos anos, ela suportou muita coisa”, reconhece. Talvez o leitor não esteja compreendendo exatamente a composição do quadro, um pouco pela pressa que tenho em desenrolar essa história. Mas seu Ayrton é um homem muito simples, e muito amável. Sempre, sempre, sempre muito simpático e prestativo. Magro, baixinho, pele morena do sol, calvo quase careca. Dona Cândida é, sim, mais brava. Italiana, sua figura é exatamente de uma matrona. Enérgica, porém não menos dócil e protetora. Dona Cândida trocou minhas fraldas por um bom tempo e, depois dela, sua filha cuidou da minha irmã. Essas histórias todas eu acompanhei muito de perto. Ouvir seu Ayrton repeti-las hoje, 15 anos mais velha e com alguma maturidade, me faz compreender que ali ninguém queria o mal de ninguém. O terror que senti quando escutei aquele alvoroço todo não pode ser utilizado como termômetro para a situação, de maneira nenhuma. Ali explodia uma bomba que vinha sendo pressionada há muitos anos. Uma esposa não quer matar o pai dos seus filhos, os filhos não querem ver o pai indo morar na rua. Mas, às vezes, essa é a opção que resta, querer o pai vivo e longe, para garantir, ao mesmo tempo, que a mãe continue sem nenhum assassinato na ficha criminal. Depois desse dia, seu Ayrton foi morar na chácara onde trabalhava. Lá, um quartinho e inúmeros conselhos ajudaram o jardineiro a refletir. “Minha patroa foi uma das maiores razões da minha recuperação”, conta. “Ela vinha aqui, conversava com a Cândida, e conversava comigo lá. Eu sofri muito. Quando tudo passou e eu fui pensar sobre o que aconteceu, chorei demais. Minha filha tinha acabado de ter minha neta e eu não podia pegar no colo. Minhas filhas, meu filho, todo mundo longe. Eu fiquei muito ruim”, relembra. “Se eu tivesse ido pra qualquer outro lugar, com certeza teria bebido ainda mais. Mas lá na chácara eles tiraram todas as bebidas da minha vista, esconderam. E olha que eu procurava, porque eu queria beber, mas não tinha, simplesmente não tinha. E lidar com isso foi muito difícil, porque eu não podia vacilar mais, eu estava morando de favor. Foi tudo muito complicado”, conta. Seu Ayrton ainda bebeu por mais algumas semanas, até que decidiu, ao 56 anos, abandonar um hábito que carregava há 42. Seguiu o conselho da patroa, que manteve um diálogo com Dona Cândida e os filhos de seu Ayrton para que todos, juntos, topassem acompanhá-lo até a Fundação Tamarozzi.


Tratamneto A Fundação Tamarozzi é uma entidade católica que trabalha com a ajuda de psicólogos na recuperação de dependentes de álcool e outras drogas. Segundo seo Ayrton, o método consiste em uma internação de 3 dias e, depois, em visitas diárias à fundação. “Eu falei com Deus, Isabel. E ele que me deu a vontade de me curar. Ele me falou que eu ia perder tudo, e eu já sabia que era verdade”, se emociona. Seu Ayrton, porém, não acredita que sua recupe­ ração tenha sido algum tipo de milagre. “Não foi milagre, não. A gente só se recupera quando quer. Eu mesmo já tinha ido em um monte de grupo de bêbado por aí” debocha “mas eu nunca quis nada de verdade. Bebia antes e depois das reuniões. Eu podia ter ignorado o recado de Deus como ignorei todos os recados de todo mundo que me deu a vida toda, mas naquele momento eu decidi, eu escolhi. Entrei ali sabendo que quando eu saísse era pra não por nem uma gota de cachaça na boca nunca mais”, explica. “E assim foi.” Seu Ayrton se recuperou e recuperou, também, 16 kg perdidos. “Tô até com uns pneuzinho aqui”, ri. Depois de meses de tratamento, pergunto como é estar

curado há 8 anos e ele me surpreende com a resposta. “Eu não estou curado. Estou treinado, Isabel. Meus cunhados debocham de mim, ficam falando que eu to aguado pra tomar uma. Não é verdade, eu não sinto mais nenhuma falta, encho o copo de todo mundo, abro a garrafa de quem quiser, posso até ir comprar. Mas eu sei que o dia que eu beber um, só um gole, tudo vai estar perdido. Isso não é estar curado”, explica, “mas ‘não estar curado’ há 8 anos já é alguma coisa também, né?”, comemora. Além dos quilos ganhos, seu Ayrton ainda se alfabetizou, juntou dinheiro para comprar uma moto, reformou sua casa e ganhou mais dois netos que paparica o dia todo. Porém, mesmo com tudo isso, seo Ayrton diz que abandonar o vício trouxe apenas uma vantagem: “Eu não ganhei nada, Isabel, parar e beber só me fez reconhecer o que eu sempre tive. Minha família e a capacidade de aprender mesmo depois de velho. Você veja, depois de 50 anos eu aprendi a ler, aprendi a brincar com os meus netos. Eu tive que ser responsável muito cedo, sabe, acho queeu parei de beber pra isso mesmo, pra parar de ser um velho ranheta e poder ser criança uma vez”.


resenha

Lais Taine

Arquitetos do Poder, os jogos por trás das campanhas eleitorais

I

magens de arquiteturas ligadas ao poder público, em Brasília, combinados com um samba tocando ao fundo. Assim começa o documentário “Arquitetos do Poder”, de Vicente Ferraz e Alessandra Aldé, produ­ zido em 2010, pela Urca Filmes e o Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ). O documentário procura traçar um panorama das relações entre a mídia e a política no Brasil, desde as campanhas de Getúlio Var­ gas, até a eleição do ex-presidente Lula, em 2006, levando em conta a grande influência que a comunicação tem na política. “Todo mundo tem o seu lado bom e o seu lado sombra, cabe a você, numa campanha, ressaltar o lado bom e neu­ tralizar o máximo o lado ruim”. Duda Mendonça, coorde­ nador de campanhas políticas - com destaque na eleição do presidente Lula, em 2002 - conseguiu sintetizar nessa frase, o que o documentário procurou demonstrar durante 100 minutos, através de relatos e fragmentos históricos: a ilusão vendida, e comprada, pelos eleitores. O vídeo traz relatos de grandes publicitários e pessoas ligadas ao marketing político, além de fragmentos históri­

cos retirados das publicações midiáticas sobre o assunto em meios variados: impresso, rádio e TV. O filme se preo­ cupa em contextualizar a publicidade das campanhas com a história da política brasileira, considerando o rápido de­ senvolvimento das tecnologias da informação. O primeiro presidente destacado no vídeo é Getulio Vargas com o seu excelente uso da linguagem radiofônica, falando pausadamente e de maneira clara para que a infor­ mação chegasse sem ruídos aos ouvintes. Nessa época, três atividades podiam ser consideradas carros-chefes de campanha: a presença do candidato nos comícios, a as­ sessoria de imprensa com competência no rádio e a for­ mação de grupos simpatizantes, como diretórios e comitês, locais e regionais, que tomavam conta da campanha. Em seguida, o documentário mostra a introdução de um mundo novo dado pela televisão, mudando completamente a linguagem do marketing político. Nas campanhas de 1974, ficam claras as figuras do profissional dessa área, o intelectual por trás das campanhas, com o uso intensivo da TV. No entanto, a lei Falcão foi instaurada na tentativa de travar as campanhas televisivas após a eleição do MDB em


cima do Arena, conquista devida, em grande parte, pelas campanhas na TV. Apesar do fim da ditadura, a censura continuou a vigorar por parte dos próprios veículos de comu­ nicação através da partidarização dos donos das empresas, que articulavam defesas de ideologia e de partido, o que causou um jogo entre os meios de comunicação e os arquitetos de campanha. “A gente tinha saído da ditadura dos generais e tinha­ caído na ditadura dos donos de televisão, eles ele­geriam quem eles quisessem”, depoimento de Chico Santa Rita, jornalista da Rede Globo nos anos 70 e 80. Para ilustrar o caso, o documentário mostrou a campanha de 89, primeira eleição di­ reta, e a edição perversa por parte da TV Globo em seu debate entre Lula e Fernando Collor, que encaminhou­para a eleição do último. Arquitetos do Poder mostra como a TV se tornou participante ativa no jogo político. Os noticiários es­ condiam e mostravam o que queriam, moldando o pensamento do povo. A ligação entre os arquitetos das campanhas com os meios de comunicação se tornou cada vez mais estreita, sendo comum a prática da venda de pautas aos jornais, além das preocupações com imagens e fotografia na produção das campanhas pela TV, que começaram a utilizar recursos de cinema em seus vídeos. O documentário traça o percurso do marketing político, tendo destaque os anos 90, onde surge um distanciamento das campanhas da verdade e

as causas políticas, o que leva a uma reflexão profunda sobre a influência que carrega sobre o eleitor. Apesar de não explicar como isso de fato ocorre e como são articuladas as estratégias de campanha, o filme retrata muito bem o engano em que vive­ mos na democracia, considerando a ética nos meios de comu­ nicação e dos ar­ quitetos do poder. Ainda que não seja o objetivo, o vídeo consegue acor­ dar o espectador de uma ilusão e parece lançar um desafio, indire­ tamente, ao elei­ tor: “você real­ mente conhece o seu candida­ to?”, depois do documentário fica difícil res­ ponder.

Veja uma parte do documentário no site do Peroba Prosa


Roger Bressianini é estudante do 3º ano noturno do curso de Comunicação Social - Jornalismo da Universidade Estadual de Londrina e escreve periodicamente a sua coluna no site: www.perobaprosa.com

Tolerar. Por quê?

coluna

A

pesar de não parar de con­ ma de tudo, a disciplina e o respeito. quistar adeptos e fãs pelo Além disso, as artes marciais foram mundo todo, o MMA (mis­ – e ainda são – importantes meios de tura de artes marciais) tem expressão cultural e educação. Outro aspecto que vale ressaltar é colecionado críticas negativas de uma parcela da sociedade que considera o o nível de profissionalização que o es­ esporte uma espécie de violência gra­ porte alcançou com o tempo. Preocu­ tuita. E como quase tudo o que rompe pações cada vez maiores com a pre­ paração dos atletas, várias divisões de com um padrão já estabelecido sofre uma rejeição inicial, é natural que as categorias de peso, além da adoção de regras que defendem a integridade coisas aconteçam dessa maneira. A modalidade já foi sucesso no dos lutadores. No Brasil, assim como Japão com o extinto Pride, possui eventos de menor ex­ No Brasil, assim como o futebol, pressão em inúmeros países o MMA surge como uma luz do mundo e alcançou seu no fim do túnel para muitos: auge com o evento estadu­ nidense “The Ultimate Fighting­ promessas de bons salários, Championship” (UFC). Foi por visibilidade, patrocinadores e meio da organização do che­ uma vida digna. fão Dana White que o MMA se tornou uma atividade re­ conhecida e rentável, cobiçada pelas o futebol, o MMA surge como uma luz no fim do túnel para muitos: promes­ grandes emissoras de TV. No Brasil, por exemplo, a gigante Rede Globo sas de bons salários, visibilidade, pa­ percebeu o potencial de popularidade trocinadores e uma vida digna. do esporte e tratou logo de comprar Se os próprios lutadores se os direitos de transmissão do UFC es­ reconhe­ cem como atletas profissio­ calando Galvão Bueno para transmitinais de alto rendimento, recebem por lo. isso e só lutam de forma legal e con­ Como já citado acima, o MMA é sentida, onde está a violência gratui­ uma mistura de artes marciais como ta? A começar pelo fato de não ser o caratê, o jiu-jitsu, o muay-thai entre gratuito. É um produto de entreteni­ outras. Muitas dessas artes carregam mento com público alvo e horários es­ tradições milenares que pregam, aci­ pecíficos para a realização.


Takedown UFC e as consequências do sucesso

D

ana White, pela primeira vez em 12 anos, não conseguiu evitar o cancelamento de um evento. O UFC 151, que seria realizado em primeiro de setembro no Mandalay Bay, em Las Vegas, foi com­ prometido pela lesão do veterano Dan Henderson­, que faria a disputa pelo cin­ turão dos meio-pesados com o fenôme­ no Jon Jones. Com a contusão de Hendo, o desa­ fio de bater o atual campeão foi ofereci­ do aos brasileiros Lyoto Machida e Maurício Shogun Rua, que negaram o combate sob a alegação de falta de tempo para preparação. E com razão, já que ambos haviam lutado no dia quatro de agosto, no “UFC Shogun VS Vera”. Além disso, os dois já foram derrotados traumatica­ mente por Jones na carreira: Shogun sofreu nocaute técnico e perdeu o cinturão, enquanto Lyoto foi finalizado com um ousado estrangulamento em pé e caiu desacordado dentro do octógono. O que chama a atenção nessa história é a frequência com que os lutadores vêm se lesionando, causando cada vez mais dores de cabeça no chefão Dana White. No “UFC Rio 3”, agendado para 13 de outubro, a luta principal seria a defesa de cinturão de José Aldo, que se con­ tundiu e foi cortado do evento. Quinton ­“Rampage” Jackson, outra estrela que estaria no card principal, também se con­

tundiu e será substituído pelo brasileiro Fábio Maldonado. O americano Erik Koch, que seria o desafiante de José Aldo, também se machucou e obrigou a organização a alterar completamente a programação inicial. Com isso, a luta principal do “UFC Rio 3” será entre An­ derson Silva e Stephan B ­ onnar, meda­ lhões que aceitaram o desafio e salvaram o UFC de novo cancelamento. Nos últi­ mos cinco eventos, todos tiveram lutas reprogramadas.

O que chama a atenção nessa história é a frequência com que os lutadores vêm se lesionando, causando cada vez mais dores de cabeça no chefão Dana White. Alguns treinadores e preparadores físi­ cos têm manifestado certa preocupação com o aumento do número de eventos por ano e, consequentemente, um maior número de exibições dos atletas. É claro que o crescimento da marca UFC impli­ caria situações como essa, mas se quiser manter o prestígio comercial que alcançou com as emissoras de televisão que trans­ mitem as lutas, o presidente Dana Whiste precisará avaliar a frequência dos eventos com maior rigor técnico, esquecendo o lado puramente empresarial do esporte.


cr么nica


Giovanna Machado

FIXAÇÃO I

magino que você já deve um dia, ter perce­ bido a disposição das palavras num texto es­ crito. Um desses textos de jornais, apostilas, livros, em parece que antes de ser impressos cada palavrinha foi cuidadosamente colocada uma na frente da outra, nem um milímetro para baixo, nem meio para cima. Elas parecem ser impedidas tam­ bém de transitar para frente ou para trás, sua função é, paralisadas, dar coerência ao texto que faz parte. Até aí tudo bem para nós humanos, afinal quem se importa com a fixação das palavras, se elas es­ tão condenadas a levar páginas e páginas na cara, é o destino não é mesmo? Cada um com o seu. O problema é quando um desses conjuntinhos de letras resolve rebelar-se contra o seu leitor. Não é sempre que essa, digamos, mágica, acon­ tece. E é sempre quando menos se espera, quando está lendo uma notícia sobre inquéritos, um texto de Marx, uma matéria sobre sucos energizantes, e de repente uma das palavras parece entrar na sua ca­ beça, de súbito sem que ao menos pudéssemos per­ ceber, ela se infiltra e fixa-se em nossos pensamentos e promete não arredar mais o pé de lá. Da última vez que isso aconteceu comigo, foi num

texto sobre história do Brasil. Não sei ao certo, mas a palavra era... Tenho até receio de escrever, era a palavra paulatinamente. Se me lembro bem era al­ guma mudança de governo, ou algo assim que iria acontecer paulatinamente. Mas quando entrou na minha cabeça, veio com mala, cuia, base, sufixos, e vogal temática e avisou que iria demorar, eu percebi. Foram dias tomando banho e repetindo a palavra na minha mente. Escrevendo texto, comendo, andando, assistindo aula, e ela piscando como um letreiro na minha mente, pau-la-ti-na-men-te. Acostumada com sua presença eu começava a criar outras palavras, até frases através dela, e já estava imaginando uma Paula latindo na minha mente. Não foi fácil, mas da mesma forma que veio ela foi embora. Numa certa manhã acordei e não con­ seguia lembrar minha acompanhante de tantos dias. Tomei o cuidado de não fazer nenhum esforço para lembrar-me dela. E assim foi, já faz um tempo que uma delas não me ataca. Mas pode ficar tranquilo leitor, as minhas palavras são tratadas muito bem, deixo até elas transitarem à vontade no texto, podem trocar de lugar, tudo bem, assim não corro o risco delas atacarem ninguém.


artigo por Isabela Cunha

Da massa à cobertura

N

ão é preciso muito esforço para encontrar paradoxos na cultura. Particular­ mente, penso o próprio termo “cultura” como um gerador de paradoxo. É, sim. Você não tem direito de olhar o Luan Santana e dizer que ele “não é cultura”, a moça semi-nua na avenida também é uma forma de ex­ pressão cheia de “tradição”. E todos eles se esforçam na tentativa de gerar algum conteúdo, cuja profundidade você até pode questionar, mas o selo “cultura”, enquanto forma de expressão de um grupo, indiscutivelmente lhes pertence. É cultura de massa. O avesso - bem mastigado - das câmaras e cochias. Das orquestras e peças teatrais. Dos coques e pas de deux. Esse, bem pomposo, mais caro, ainda com algum espaço na mídia, é o “elitizado”. Calmo, sempre no com­ passo, não cante junto com o barítono, não dance junto com a primeira-baila­ rina. Sente-se, não fale, aprecie. Porque é lindo, senhoras e senhores. É cultura. Além, sem ser muito avesso, nem muito direito, tem alguém que em al­ gum lugar trabalha pra gerar tanto con­ teúdo quando o Luan Santana, e tam­ bém trabalha demais. Mas, por alguma razão, não tem a mesma grana ou as fãs descabeladas arrombando seu camarim. Aliás, eu disse camarim? hahahaha. Essa pessoa talvez não tenha estuda­ do tantos acordes e instrumentos clássi­ cos quando o barítono, é verdade. Ficou lá. Num canto compondo, ou escreven­ do uns roteiros que nunca serão roda­ dos, fazendo shows pros churrasqueiros e bêbados amargurados. Até arranjar um emprego e largar mão. Outros deles gravaram um EP. Um CD. Emplacaram uma música na aber­ tura de uma minisérie blasè. Deram au­ tógrafos e umas entrevistas. E hoje en­ 46 | Amostra | Dezembro/2012

saiam as músicas do Lulu Santos - que também é cultura - pra tocar naquele bar que cobra 15 reais no couvert, mas não paga cem pila pra seu ninguém. Quer dizer. Num país que passeia de “Ex my love” a “Quando a maré ench­ er”, de Joelmas a Tulipas, que já conhe­ ceu “O Mundo é um Moinho” e “Pare de tomar a Pílula”, que recebe de bom grado “Like a Rolling Stone” e “Waka Waka”, ter a coragem de apontar isso ou aquilo pra dizer que “é” ou “não é” cultura, é exercitar arbitrariedade. E ser um pouco chato. Agora, olhar pra esse monte de ar­ tistas, que tenta e desiste todos os dias, e não reconhecer paradoxos é, no mí­ nimo, um monte de preguiça. Porque o Luan Santana tem essa grana e essa fama aos 19 e outros caras, melhores e piores, não podem nem chamar a cultu­ ra de trabalho. Imagine viver dela com conforto. Aí a gente pode começar a falar de incentivos, investimento, força de von­ tade, merecimento, alienação, acessi­ bilidade... De um sem fim de coisas que geram os paradoxos e são, ao mesmo tempo, sua consequência. Uns ganham, outros não. Uns insistem, outros desis­ tem. Uns começam e mudam de “ares” pra se dar melhor. E produzem cultu­ ra, “aquele todo complexo que inclui o conhe­cimento, as crenças, a arte, a mo­ ral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e capacidades adquiridos pelo homem como membro da sociedade”. O que isso quer dizer? Que, para o bem ou para o mal, esperar algo dife­ rente de paradoxo seria, da nossa ­consciente e curiosa parte, ser inocente demais. O paradoxo, porém, não precisa gerar uma homogeinização de gostos, certo? Só que isso já é papo pra outra discussão...



AIDS


Três décadas após seu descobrimento, a ciência tem alcançado significativo avanço no combate ao vírus e à doença. Combate maior, entranto, é o intelectual e social. Se a aids não é uma sentença de morte, por que a vida deveria ser? texto Erick Lopes


O INÍCIO

O

primeiro caso de aids no Brasil foi registrado em 1982, com a morte do paciente que teria se infectado dois anos antes. Nessa época, a doença era nomeada Doença dos 5H, representando os homossexuais, hemofílicos, haitianos, usuários de heroína e hookers, nome em inglês dado às profissionais do sexo. Ao longo da década de 1980 foi se entendendo a doença, sua causa, efeitos, forma de transmissão, prevenção e tratamento, mas não sem antes nascerem e se disseminarem as mais confusas explicações e teorias. Algumas, inclusive, que perduram até hoje no senso comum. Falar de aids hoje não é algo fácil. Ela foi apresentada ao mundo como uma peste, um castigo e, então, o tabu foi estabelecido, justamente por envolver assuntos já evitados. Sexo e comportamento sexual, drogas, morte. Além do estigma, durante a própria década de 1980 começam a nascer organizações de apoio, medidas de saúde pública são implantadas e há um grande e rápido avanço na luta contra aids. Entretanto, até hoje a falta de informação ou a informação errônea têm sido os principais aliados do vírus HIV. E, ainda mais, do preconceito.

Havia flores na janela. E uma cachorra já velha e doente. “Ela tem catarata, tá bem cega”, disse J. logo depois de me cumprimentar. Havia um cheiro de café, misturado com incenso ou qualquer outro aromatizante de ar. A casa tinha uma decoração sincretista: uma estátua de Padre Cícero, um pequeno Buda acima das centenas de DVDs – a maioria de animação –, um quadro de Iemanjá, bonecas russas e eslovenas, fotografias em preto e branco retratando dor e desespero, um capelinha de Nossa Senhora Aparecida, outra de São Jorge e uma série de quadros coloridos de um artista amigo dele. J. me serviu um café e nos sentamos. Era um homem de quase cinquenta anos, cabelos ralos, levemente grisa­ lhos. Uma tatuagem discreta no braço direito. A manga da camiseta a tampava e não perguntei o que era. Olhos pequenos, magro, mas não um magro doente. Normal. Esperava, talvez, encontrar olhos tristes, um semblante cabisbaixo ou timidez. Mas não. Assim como sua casa, havia nele um animal doente cercado de elementos alegres e coloridos. Sorria, sempre que possível, eliminando, aos poucos, a tensão que eu havia imaginado existir. Procurava sempre me deixar confortável. “Eu tinha vinte e poucos anos...”, começou, sem eu ao menos perguntar. Ele já sabia o que eu procurava. Talvez ele não gostasse de lembrar e falar no assunto, então experimentei do café, assenti com a cabeça e liguei o gravador, deixando que prosseguisse. “Naquela época eram poucas as boates gays, os bares, lugares que podíamos nos encontrar e ficar à vontade. Na verdade, não existia lugares onde podíamos ficar à vontade. Sempre havia o medo de batidas, policiais ou não (risos).” “Eu era muito jovem quando encontrei um cara se masturbando no banheiro de um cinema fedido do centro da cidade... Alto, magro, corpo atraente. Olhos verdes lin50 | Amostra | Dezembro/2012

dos. Ele sorriu e se ofereceu. Depois do ato rápido, fomos conversar. Rolava um filme em PB muito antigo. “Seu nome era José Maria e tinha uns 40 anos. Ele me deu seu telefone e, depois de alguns dias, nos encontramos no apartamento de um primo que saía em viagem. Conversamos muito sobre a vida, sobre a muita experiência dele, sobre a pouca minha... Eu ficava perdido em sorriso. “Certa hora, fomos tomar banho, e acabamos transando. Ele estava lindo ali, molhado, excitado. Não havia naquela época nenhuma preocupação com nada. Queríamos viver. Não havia uma cultura de camisinha, de preservação. Enquanto transávamos, José Maria começou a chorar compulsivamente, querendo sair de mim. Eu não deixei. Achei lindo aqueles olhos verdes chorando. O tesão. O segredo. Tudo me excitava. O amor. “Ejaculamos. “Ele se sentou no chão do box, soluçando. Eu o abracei, enxuguei seu corpo e fomos pra cama. Em silêncio. Ficamos assim por um bom tempo e não tocamos no assunto nem na manhã seguinte. Nos despedimos. “Senti saudades e liguei. Uma vez, duas. Ligava incansavelmente do orelhão pra casa dele e ele não respondia. Ninguém atendia. E quando alguém atendia, era a mãe dizendo que ele não estava. Com o passar do tempo, não o procurei mais. Entendi que ele não queria mais me ver. “Encontrei o primo do José Maria na rua, depois de meses. Não resisti e perguntei dele. O primo me disse que o Zé Maria havia morrido há algumas semanas. Complicações respiratórias, coisas. Perguntei que coisas. Coisas... provocadas pela aids. “O meu mundo veio abaixo e voltou, num piscar de ­olhos. Eu já era meio informado sobre o assunto, mas nunca pensava que poderia acontecer comigo. E vi toda a nossa história na minha frente. As lágrimas, a desistência, o silêncio... “Fiz o teste e foi comprovado: eu estava soropositivo.”


Dez anos após a aids ter sido identificada, a Organização Mundial de Saúde anuncia que 10 mi­ lhões de pessoas estão infectadas com o HIV pelo mundo. O Brasil soma 11.805 casos de aids até então. A partir da década de 1990, o medo dá lugar à vontade. Uma vontade profunda de permanecer vivo. Uma sede por respeito e pelo direito de ser tratado, de viver. No Brasil, as pessoas se unem, se organizam e manifestam. Em consequência, há importantes avanços rumo à vida: alguns antirretrovirais – medicamentos que dificultam a multiplicação do HIV – passam a ser fabricados nacionalmente; além disso, torna-se direito fixado por lei o recebimento gratuito da medicação para tratamento da aids. Ao fim da década, já são 15 o número de medicamentos disponibilizados pelo Ministério da Saúde, a mortalidade dos pacientes de aids cai 50% e a qualidade de vida dos portadores de HIV melhora de forma significante. O Brasil entra no século XXI contabilizando 220.000 casos de aids acumulados. Os índices mudam: aumenta-se a incidência em mulheres (a proporção nacional de casos notificados é de uma mulher para cada dois homens). Apesar de tudo, a luta pela vida continua a impulsionar o avanço contra a doença. O Brasil reduz em mais de 50% o número de casos de transmissão vertical, isto é, quando o HIV é passado de mãe para filho, durante a gestação, o parto ou a amamentação. Com a ameaça da quebra da patente dos medicamentos, há uma significativa redução em seus preços e o teste que permite detectar a presença do HIV em 15 minutos é nacionalizado, barateandose. Há um intenso crescimento em campanhas de conscientização e prevenção e o governo bate recorde na distribuição de preservativos a cada ano, além de incentivar a testagem. Inicia-se pesquisas em vacinas e tratamentos ainda mais eficientes. A sobrevida das pessoas com aids no Brasil aumenta.

Chego à casa de N. por volta do meio dia. Não há cães, nem gatos. Nenhum animal. Cumprimento-a, me apresento e ela me oferece um assento no sofá de sua sala de estar. Sem maquiagem, cabelo para trás, camisa branca e calça jeans básica. N. é inteira básica. Não desarrumada, apenas básica. É alta e bonita, mas tem os olhos tristes, quase estáticos. Ao falar comigo, olha sempre para os lados, nas diagonais. Sua boca sorri algumas vezes, mas os olhos não a acompanham. Conta que trabalha em uma clínica de estética há alguns anos. Leva um estilo caseiro, livros e filmes. De terror e drama. Para ler, histórias de amor. Poucos amigos. Alguns jantares. Sua família mora em outro estado, longe. Apesar da saudade, ela me confessa: “ainda bem”. N. não tem namorado. Teve um na adolescência, mas não diz o nome dele. Talvez porque queira esquecer, ou por já ter esquecido. “Choro fácil”, confessa. N. tem vinte e oito anos e descobriu que tinha HIV aos vinte e dois. Quando pergunto, um pouco sem jeito, como ela acha que tenha acontecido, N. fica um tempo calada, olhando para baixo, para o tapete ou para a mesa de centro, difícil dizer. Mexe nos dedos, respira fundo. Tento não encará-la, pois aquele olhar me tira qualquer coragem de dar continuidade na entrevista. Penso em perguntar de novo, mas ela começa a falar de maneira calma e voz baixa. “Ele parecia ser tão sincero... Nós dois tínha-

mos amigos em comum e um desses amigos nos apresentou. Uma noite, fomos a uma festa de ani­ versário em uma boate e ficamos, nada sério. Ele disse que era solteiro, que fazia Direito e que havia me achado linda. Falou que tinha medo de se apai­ xonar. E eu fui acreditando, em cada palavra. “Acabamos indo para o apartamento dele. E rolou. Transamos. E começamos um namorico. Nos víamos sempre, e eu cada vez mais apaixonada. Me dava presentes, mandava mensagens, às vezes me ligava para dar bom-dia... Eu estava no último ano da faculdade de Estética e confesso que já pensava até em me casar com ele. “Um dia ele mudou, assim, do nada. Disse que não queria mais, que estava ficando muito sério e que precisava experimentar outras coisas. Não respondeu mais minhas mensagens, nem atendeu minhas ligações. Fiquei bem triste, bem mal. Mas como sempre: passou. Sempre passa, a gente só não lembra disso na hora.” “Eu tinha vinte e um quando ele me deixou. Meses depois, já com vinte e dois anos, amanheci com uma gripe. Minha mãe disse que dali uma semana eu estaria melhor. Mas não melhorei. Era inverno e fiquei com medo de pegar uma pneumonia. O médico me pediu uns exames, fez umas caras estranhas, pediu mais exames. Quando fui pegar o resultado, me levaram para uma sala onde uma psicóloga me esperava. Só pensava em duas coisas: meu tempo acabou e meu tempo nem tinha começado direito”.


A DOENÇA

S

ubi os cinco degraus circulares daquele prédio de aparência histórica meio amarelado. Coloquei minha identificação assim que passei pela porta metálica quadriculada, antes mesmo de subir os outros dez degraus, agora quadrados, que dão acesso ao saguão do Centro de Referência Dr. Bruno Pian Castelli Filho, parte do Centro Integrado de Doenças Infecciosas (CIDI) de Londrina. O lugar fica bem no centro da cidade, entre a Catedral e a Concha Acústica e, talvez por isso, há sempre um volume muito grande de carros e pessoas contornando aquela rotatória com flores recém-plantadas, passando de um lado para o outro, todas com tanta pressa e preocupadas. Eu, pelo contrário, não estava com pressa nenhuma. Seria minha primeira visita oficial para conhecer o procedimento de identificação e tratamento de pacientes soropositivos. O Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA) e o Ambulatório do Centro de Referência ficam ambos no segundo andar, de modo que é preciso subir mais alguns lances de escadas em direção à grande janela de vidro, quando mais escadas se abrem em dois braços opostos para chegar ao complexo de salas e corredores no qual passarei o dia. O saguão do segundo andar tem um formato que não consigo definir muito bem, como um trapézio, ou um triângulo, projetando as duas escadas de acesso e mais dois corredores de salas como seus tentáculos. O início de cada corredor encontra-se com o fim de uma das escadas e eles seguem caminhos opostos. Há cadeiras pretas, de couro, em toda extensão lateral do paralelepípedo central e também dos corredores. Estão um pouco desgastadas, mas dão conforto aos meus minutos de espera, juntamente com as revistas da mesa ao lado das cadeiras e dos vários quadros em preto e branco pendurados na parede. Uma notícia de jornal, fotos de algumas personalidades importantes. Muitos cartazes do Ministério da Saúde, esses coloridos. Tudo é bem limpo, bem cuidado. A moça quieta e educada da limpeza passa com certa frequência com seu carrinho com baldes, vidros de álcool e um grande saco azul de lixo. Permaneço no banquinho de madeira da sala do CTA o tempo suficiente para que verifiquem meu RG e cartão do SUS para preencherem meu cadastro. Cinco minutos, uma ficha para novas consultas e sou liberado para a orientação coletiva. “É preciso passar por ela antes de fazer o teste”, explica Hilda de Cássia Bapestistotti, a moça do CTA que me atende, de cabelo castanho curto e aparência de mais ou menos 30 anos. Seguido de um sorriso ao fim de sua explicação, ela me conta que “além do diagnóstico, o nosso principal objetivo é a prevenção, através da disseminação de informações”. O processo é de demanda espontânea, ou seja, é a pessoa que procura o serviço por vontade própria e, junto comigo, entram na sala da palestra mais cinco pessoas: uma senhora com o braço machucado, um homem adulto com um pouco de sono, duas moças jovens, uma delas com tatuagens por todo o corpo e outra de cabelo e saia compridos, acompanhada por sua mãe, igualmente trajada. A sala é pequena, retangular e com três fileiras das mesmas cadeiras de couro preto. Um quadro negro está fixado na frente da fila de cadeiras, logo depois de uma grande mesa branca um pouco desgastada. 52 | Amostra | Dezembro/2012

Quem realiza a palestra é o enfermeiro Edivilson. Ele fala bem. Desenha, interage, pergunta, responde, ri, concorda, discorda. Explica como funciona os testes rápidos de HIV, sífilis e hepatites B e C em todos os seus detalhes. “Apenas um furo no dedo”. Alerta da importância do teste e, mais ainda, da prevenção. “Como vocês acham, então, que o HIV é transmitido?”. Então eu me surpreendo. Duas vezes. Após uma listagem de comportamentos de risco já conhecidos, como sexo oral, vaginal ou anal sem preservativo, compartilhamento de seringa e transfusão de sangue, a moça acompanhada da mãe sugere “...uso da mesma roupa íntima? Sentando no banco quente que alguém que tenha aids sentou?”. Antes mesmo de qualquer reação do enfermeiro-palestrante, o moço que, até então, parecia estar anestesiado pelo sono, vira-se para trás: “Isso não é risco, é discriminação!” O furo no dedo realmente não é sequer sentido. O resultado do exame sai em 15 minutos e sua entrega é individual e sigilosa. É até possível pedir para que os pais ou parceiro(a) entre na sala, mas apenas após a entrega do resultado e preenchimento do questionário. Ele não é pequeno e não é hora para ter vergonha. Usa drogas? Quais? Com que frequência? Quantos parceiros sexuais no último ano? Homens? Mulheres? Ambos? Usou camisinha? Por que não usou? Parceiro(a) fixo? Quantos?... Se o resultado para HIV for positivo, o paciente é encaminhado para o Ambulatório, onde se abre um prontuário e se agenda os exames de carga viral e células de defesa, para que se possa dar início ao tratamento adequado a cada caso. Isso porque ser diagnosticado com HIV não é a mesma coisa que ter aids. “É preciso verificar se a imunidade está afetada ou não”, explica, Luiz Toshio Ueda, o enfermeiro responsável pelo Ambulatório do Centro de Referência, solícito e atencioso comigo desde nosso primeiro contato. “Após o resultado dos exames de TCD4 [células de defesa] e carga viral, verificamos a necessidade do tratamento antirretroviral ou não. O paciente portador do vírus HIV, aquele que ainda não está doente, não precisa tomar o medicamento.” E fez uma pausa, como que tendo certeza de que eu entenderia ou, mais do que isso, repassaria essa informação de maneira clara. Posicionando as pontas dos dedos na mesa, daquele jeito explicativo que algumas pessoas costumam fazer, e alinhando nossos olhos por entre os óculos, continuou: ”Mas deve mudar comportamentos, levar uma vida mais saudável – o que, às vezes, implica em mudanças radi­ cais –, estar bem emocionalmente e ter um acompanhamento médico regular, para que sua taxa imunológica fique em um nível bom. O paciente já doente também deve mudar seus hábitos e manter o emocional equilibrado, mas ainda deve incluir em sua rotina a medicação antirretroviral – o chamado coquetel – para auxiliar na diminuição da carga viral e no aumento das células de defesa. [...] O começo do tratamento é sempre mais conturbado e o paciente passa a frequentar o ambulatório quase que regularmente, duas ou três vezes ao mês. Após isso, realizamos as consultas e exames de rotina a cada quatro meses ou até mesmo semestralmente, de acordo com o paciente.” Muitos soropositivos vivem anos sem apresentar sintomas ou desenvolver a doença e poderiam estendê-los seguindo o trata-


Foto: Heron Heloy

Centro de Referência Dr. Bruno Pian Castelli Filho

mento adequado. Quando ocorre a infecção pelo vírus HIV, o organismo leva de 30 a 60 dias para produzir anticorpos anti-HIV e, como os primeiros sintomas são muito parecidos com os de uma gripe, muitas vezes passa despercebido. O vírus passa por muitas mutações, mas demora de oito a dez anos até destruir as células de defesa a ponto de enfraquecer o organismo de forma que seja perceptível. E o perceptível não é bom. Quanto mais tardio o diag­nóstico, mais complicados se tornam o tratamento e a vida do paciente. Qualquer infecção considerada boba e passageira pode ser grave e evoluir para doenças que podem ser fatais. O paciente pode sofrer de diarreias que resultam em perda de peso, hepatites virais, pneumonia, tuberculose, toxoplasmose, neurotoxoplasmose, neurocriptococose, citomegalovirose, pneumocistose e, ainda, alguns tipos de câncer. O coquetel de antirretrovirais distribuídos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) é montado de acordo com a necessidade de cada paciente. Comprimidos, soluções orais ou injetáveis. Ao todo, são 40 os medicamentos ofertados pelo SUS. E nenhum deles está à venda. “Sempre começamos com um esquema básico, mais fraco, para não agredir o paciente e o organismo dele se adaptar”, explica a coordenadora do Centro de Referência, Regina Cortez, sendo o mais delicada possível para completar que “se esse paciente chega em um estágio muito avançado, fica difícil encontramos uma combinação certa a tempo, porque quanto mais doente ele chega, mais cedo será seu óbito.” A adaptação é um ponto importantíssimo no tratamento, daí a importância do acompanhamento para possíveis substituições, já que os coquetéis antiaids são fortes e podem causar diversos efeitos colaterais desagradáveis. Diarreia, náuseas, manchas avermelhadas pelo corpo, agitação e insônia estão entre os mais frequentes no começo do tratamento e tendem a desaparecer rápido, sendo importante seguir as orientações médicas para contorná-los. Automedicação nunca. E sem possibilidades de abandonar o tratamento. Além dos temporários, os pacientes po-

dem sofrer com alterações a longo prazo, resultantes da soma dos efeitos do medicamento e o efeito do vírus. Danos aos rins, fígado, ossos, estômago e intestino entram nessa lista. Também podem ocorrer alterações neuropsiquiátricas, mais comuns em usuários de drogas ou álcool, como agitação, alucinações, amné­sia, ansiedade, confusão mental, convulsões, depressão, dificuldade de concentração, irritabilidade, insônia, pesadelos e ­sonhos vívidos. E, ainda, modificações no metabolismo, provocando diabetes, hipertensão ou lipodistrofia, que é a má distribuição de gordura pelo corpo, juntas ou isoladas: perda de gordura no rosto, glúteos, pernas e braços e acúmulo no abdômen, costas, pescoço e mamas. Só em Londrina, são atendidos aproximadamente 2.500 pacientes, sendo que cerca de 1.200 fazem uso do coquetel. De acordo com os dados preliminares da prefeitura, de 1985 – quando começou o trabalho de identificação na cidade – até 2011, foram registrados quase 2.000 casos de aids. E, a cada ano, uma média de 130 pessoas é diagnosticada com HIV. Quando olhamos para os dados nacionais, vemos que desde o início da epidemia até junho de 2011 foram registrados 608.230 casos de aids. O Ministério da Saúde ainda estima que um quarto dos brasileiros infectados com o vírus HIV desconhece sua situação. O número continua maior entre os homens, mas vem aumentando entre as mulheres. E os números maiores concentram-se na transmissão sexual, entre jovens de 20 a 35 anos. O que deixa Hilda, a moça sorridente do CTA, em sua forma simpática, indignada: “Vocês são uma geração que já conhece a doença, já sabe o que ela faz e como se prevenir. Vocês já nasceram plastificados. Já nasceram com camisinha.” E Regina, a coordenadora, pondera: “O ponto positivo desse número elevado é que a procura pelo teste tem aumentado. O que falta agora é conscientização e, principalmente, cuidado” e me incita, como se saísse de toda sua calma, puxasse minha orelha pelos jovens do Brasil todo e ainda gritasse: “vamos, temos muito o que fazer!” Amostra | Dezembro/2012 | 53


A VIDA O olhar de N. deixa qualquer um sem palavras. Calada, mística. Se abre aos poucos, e como e quando ela quer. Revela rastros de verdade. Apenas. — Tem esperança em algo?, pergunto quase que com medo de sua reação. Ela me olha, em silêncio, por cerca de cinco segundos. E segundos são tão longos em momentos como esses... — Não. E não é por ser pessimista, porque não me vejo como uma pessoa pessimista. Me vejo realista. Não quero me matar. Não vou fazer nenhuma besteira. Só não vejo esperança pra algo. Quando conheço alguém, e isso raramente acontece, me vejo na obrigação de falar pra pessoa: tenho HIV. E você não tem ideia de como é ver a expressão dele mudar. O sorriso some, o olhar abaixa. Dali meia hora surge uma desculpa. “Preciso voltar ao trabalho”. “Preciso dormir, amanhã acordo cedo”. “Preciso estudar”. Enfim. E eu fico pensando: o que eu

preciso? Cura? Amor? Já li autores que tratam do tema: Susan Sontag, Caio Fernando Abreu, Herbert Daniel. Todos muito bem, falando da doença, estando doentes. Eu não consigo ser assim. Peço desculpas por isso. Não consigo ser assim... Já leu Susan Sontag? Foi o primeiro livro que comprei depois de descobrir que tinha o vírus. Ela escreve que devemos aceitar a doença, pois ela pode ser impulso vivificador. Não me sinto fortalecida. Que ninguém me ouse dizer que “o que não te mata, te fortalece”. O HIV não me matou, mas está me matando e me enfraquece. Não quero pena ou piedade. Queria viver, amar. Ser amada. Mas não dá mais tempo.” No olhar dela, agora novamente me encarando, vejo tristeza. Um ar de velório antecipado. Autovelório. N. morre aos poucos por não morrer de uma vez. Diz que toma corretamente o coquetel e isso a mantém viva. Mesmo depois de sair da casa dela, ainda me pego refletindo sobre tal modo de “vida”.

A aids foi vista como sinônimo de morte quando descoberta. Até o começo da década de 1990, o prazo entre diagnóstico e óbito era curto e essa foi sua fama. Hoje, embora a realidade não seja a mesma, o pensamento, infelizmente, ainda é. O tratamento com antirretrovirais mantém a carga viral do sangue baixa, diminui os danos causados pelo HIV e aumenta o tempo de vida da pessoa infectada, o chamado tempo de sobrevida. Esse tempo varia de uma pessoa para outra, mas, ainda assim, os Boletins Epidemiológicos vêm sinalizando quedas nas taxas de mortalidade ao longo dos anos. Regina Cortez, a coordenadora do CIDI, tem perspectivas ainda mais animadoras: “ela [a aids] é a única doença que tratamos hoje sem registros na história. Ela foi reconhecida por uma geração muito recente e tivemos que descobrir tudo em muito pouco tempo. Meio de transmissão, de proteção, de controle... E seremos nós que vamos descobrir a cura.” A cura física é o objetivo final, sem dúvidas, mas, de imediato, é preciso uma cura social, uma libertação do julgamento que se agrega ao vírus. O preconceito enfraquece o organismo tanto quanto a doença, porque “qualquer outro problema pessoal do paciente reflete no seu tratamento”, explica a calma psicóloga do ambulatório do CIDI, Fernanda Ribeiro da Gama Leme. Estar bem emocionalmente impulsiona a resistência do organismo e o combate ao vírus, por isso a saúde mental é de extrema importância. Com a fala pausada e sempre acompanhada dos movimentos com as sobrancelhas e as mãos, Fernanda me conta que o preconceito, às vezes, está até mesmo na família e que isso tem que ser combatido com informação e orientação. “Para que eles saibam que não é preciso separar um copo ou um prato na casa”. Fora de casa, a pessoa opta, muitas vezes, pelo segredo, para evitar qualquer que seja o problema ou constrangimento. “É contra a lei o empregador demitir um funcionário por conta do diagnóstico, mesmo assim, a maioria dos pacientes não abre o diagnóstico no trabalho e, quando abrem, há todo um preparo antes”, complementa a assistente social do CIDI, Sheslaine Souza. Além do sigilo, ela ainda cita outros direitos do paciente de HIV/aids, dentre eles a assessoria jurídica, saque do FGTS, auxílio-doença, benefício de prestação continuada, entre outros. No site www.aids.gov. br é possível visualizá-los e entendê-los, além de se ter acesso à Declaração dos Direitos Fundamentais da Pessoa Portadora do Vírus da Aids, criada em 1989 por profissionais da saúde e membros da sociedade civil, com o apoio do Departamento de DTS, Aids e Hepatites Virais. Foi também em 1989 que se formalizou, em Londrina, a Associação Londrinense Interdisciplinar de Aids (Alia), uma organização não governamental e sem fins lucrativos que tem como objetivo a defesa e garantia de direitos. Com base no trabalho da Abia, a associação brasileira de mesmo nome, a Alia buscava – e ainda busca – “disseminar as informações mais claras, precisas e cientificamente respaldadas para, a partir delas, fomentar diálogos na sociedade. E também acolher aqueles que já estão so­ frendo com o estigma e o preconceito gerado”, me explica o presidente atual da associação, Ronildo Lima, que me acolhe de forma muito receptiva e me pede, desde nosso primeiro contato, que o chame apenas de Roni. Assim fiz. 54 | Amostra | Dezembro/2012


“A Alia, inicialmente, foi trabalhar com populações que a sociedade tem um olhar atravessado ou até mesmo não quer ver, como usuários de drogas ou profissionais do sexo.” Começou Roni, já me apresentando os métodos de trabalho da ONG: “Antes a gente usava a informação para enfrentar a questão do medo. Hoje a gente a usa para enfrentar o estigma, o preconceito. Mas só informação não muda comportamento. É preciso um trabalho de educação continuada num tema tabu que é a sexualidade. [...] A gente trabalha com o conceito de vulnerabilidade e isso é uma coisa que vai se somando de acordo com o histórico de vida da pessoa. Escolaridade, formação profissional, estrutura familiar, moradia, orientação sexual, sexo, idade, nossa, a lista é imensa!”. A associação trabalha direto na comunidade, mas também atende aos que vão até a sede no Conjunto Vivi Xavier em busca de orientação ou apoio. Tecnicamente, a casa branca do fim da rua é a sede administrativa da ONG, mas, só de estar lá dentro por poucas horas, é possível sentir um clima muito mais acolhedor, amigável, humano. Não é uma casa-abrigo, mas acolhe os sentimentos e esperanças de muita gente. Todo o empenho possível “para que a pessoa pare de pensar em fragilidade e passe a pensar em potencialidade”. Nesse momento, Roni relembra todo seu histórico e, com certo orgulho nos olhos, declara: “Eu, Roni, só estou vivo hoje porque transformei minha doença em um mote político para poder intervir na sociedade. [...] A aproximação do setor governamental e o não governamental fez com que o Brasil fosse reconhecido pela Organização Mundial de Saúde como um dos países em que o programa de enfrentamento da epidemia de aids melhor funcionou no mundo. E isso é reconhecido em todos os relatórios da ONU”.

J. atende uma ligação. Pede desculpas e sorri. Ele e um amigo vão ao teatro mais tarde. Comentamos algo sobre a peça em cartaz, Luiz Antônio – Gabriela, documentário cênico autobiográfico sobre um travesti que morre de aids na Espanha. Pergunto se ele tem contato com a Arte que trata do assunto. J. responde que sim. Que é uma forma de firmar sua identidade. “Desculpe, mas a sua geração não teve que lutar por nada. A minha geração tinha que lutar por uma identidade que na sua já nasceu pronta. Não é culpa sua e muito menos mérito meu. Só digo que tínhamos que criar, moldar e lutar por uma identidade. Quando achávamos que já estava tudo certo, apareceu a peste. E vimos que tudo estava perdido. Que nossa liberdade sexual só nos matou. E até entendermos que não era bem assim, foi um abismo. “Demorei para conseguir dizer: tenho HIV. E demorei mais ainda para dizer que tinha algum sintoma da aids, isso porque eles não apareciam. Há uns quatro anos tive uma pequena crise e resolvi parar de tomar o coquetel. Queria ver a cara dessa doença. Queria conhecer essa minha hóspede que ainda não havia se apresentado formalmente. Minha­psicóloga disse que era um babaca por pensar assim, mas eu precisava. Por favor, entenda isso que eu digo: eu precisava ver a cara da doença que, provavelmente, iria me matar. “Resultado: peguei uma gripe do cacete e tive que tomar uma sequência de Benzetacil devido a uma infecção. “O que mais me dói não é ter visto amigos morrendo. Muitos amigos morreram de aids nos anos 80 e 90. O que mais me dói é ver amigos, hoje, vindo até mim e dizendo que estão infectados. Naquele tempo não tinha o cuidado que existe hoje. Não existia camisinha de graça em posto de saúde, nem coquetel, nem propaganda em jornal,

revista, televisão. Tínhamos a impressão que queriam mesmo nos matar. Matar todos os gays com o seu próprio câncer (risos). Hoje não: em todo lugar tem um cartaz dizendo para se usar camisinha. E ainda vejo amigos chorando, dizendo que estão contaminados, e é sempre a mesma história: pensei que fosse o amor da minha vida, que ele fosse fiel, que podia confiar. E nunca se pensa que a morte ainda existe. J. repete algumas vezes que briga por uma vida normal, intensa e plena. “Eu me jogo sem medo. Preciso dar um up na vida”. Nesse momento, ele joga um brinquedo para a cachorra. Ela corre pelo corredor e pega o brinquedo, parando antes de bater o focinho com tudo na porta. “A imagem dele chorando, para mim, foi única. Mas sigo em frente. Começo novos relacionamentos. E encerro também. Trato meu desejo com muito respeito.” Despeço-me. Entro no ele­ vador e desço tranquilo os nove andares. Tenho a impressão que ele me olha. E penso naquela cachorra já velha, cega e doente, que, ainda assim, corre atrás do seu brinquedo toda feliz. Torço para que esse espírito de esperança e vida se multiplique e se espalhe. E também para que ela sempre consiga parar antes de bater na porta fechada.


crônica

Roger Bressianini

Comunicação e silêncio


A

to ou efeito de comunicar. Processo de emissão, transmissão e recepção de mensagens por meio de métodos e sistemas convencionados. A mensa­ gem recebida por esses meios. A capacidade de trocar ou discutir ideias, de dialogar com vista ao bom entendimento das pessoas. Essas são as definições de comunicação se­ gundo o Aurélio. E é claro que, no cotidiano, em qualquer conversa de elevador, o sentido da palavra se transfigura em um turbilhão de im­ pressões e sensações distintas. O modo de nos comunicarmos com o porteiro do prédio não é o mesmo que usamos com a namorada ou o irmão, por exemplo. Assim como os gestos e acenos tão bem recebidos pelo porteiro podem não ser mui­ to simpáticos para um velho amigo que encontra­ mos ca­minhando por aí. A questão é que comunicar não pressupõe abso­lutamente falar ou gesticular. O silêncio que precede uma dura repreensão é, muitas vezes, mais constrangedor que o próprio enfurecido dis­

curso e possui um caráter tão repreendedor quan­ to. Não se pode negar a importância do silêncio para a compreensão da comunicação. É nesse abismo, que parece isolar os dois termos,- onde encontramos uma relação entre coisa e outra. Não se pode conceber a ideia de luz sem o conhecimento da ideia de escuridão. É por isso também que não se pode excluir da comunica­ ção a importância do silêncio. O cinema, por sinal, utiliza brilhantemente essa via de comu­ nicação não muito convencional. Em “We need to talk about Kevin”, lançado no Brasil com o título “Precisamos falar sobre Kevin”, a direto­ ra escocesa Lynne Ramsay explora a tensão do silêncio de forma sutil e adequada ao conteúdo dramático do filme. É por meio do silêncio que a atriz Tilda Swinton consegue expressar uma an­ gústia que os humanos ainda não coanseguiram definir por palavras ou símbolos. E, num mundo tão povoado, é o excesso de barulho que nos faz confrontar com um silêncio tão assustador e ­significante.


Giovanna Machado é estudante do 3º ano noturno do curso de Comunicação Social - Jornalismo da Universidade Estadual de Londrina e escreve periodicamente a sua coluna no site: www.perobaprosa.com

Do you wanna dance?

coluna

Q

uer dançar comigo? Essa Por isso caro leitor, eu posso dizer pergunta é muitas vezes para você que dançar livremente e do esperada pelas pessoas jeito que você quiser, é uma delícia. numa festa. Uns já tem seu Mas que o pessoal anda exigente com parceiro certo, mas a maioria busca a isso, é uma verdade. Os homens estão sorte do momento. Na apresentação cada vez mais a procura de academias dessa coluna, escrevi aqui que uma para que possam conduzir as mulhe­ das coisas essenciais para dançar, é res na dança. As moças estão espa­ não ter vergonha. Mas e quando se tra­ lhando por aí que homens que dançam ta de dançar com alguém? Não falo de ganham o coração delas. De fato uma dança pode dizer muito de uma pes­ dançar com um grupo de amigos, na­ quela conhecida rodinha que se forma soa. Quer charme maior do que con­ nas baladas por aí. Eu me refiro a uma versar ao pé de ouvido com seu fler­ dança com um parceiro. Nesses mo­ te? Corpos se encostando, mas nada mentos surge sempre o medo de pisar de malícia, deixa disso leitor, é apenas uma dança! Que mal tem?! no pé do outro, de não saber conduzir, ou nem por onde começar. Apesar dos atuais ritmos de Com tantos ritmos as música permitirem uma dança academias de dança foram “solo”, a dança em dupla conse­ se adaptando ao mercado, guiu se manter em alta desde o tempo feudal. Surgiram inúmeros e nos últimos anos, com estilos, a valsa, passo Double, fo­ cursos rápidos de férias, ram abrindo espaço para o swing conseguem formar multidões (ritmo famoso nos anos 50), sam­ ba de gafieira, tango, salsa até o de pessoas querendo treinar famoso forró e o hit do momento, seu aprendizado. o sertanejo universitário. Com tan­ tos ritmos as academias de dança É por isso que eu convido você a foram se adaptando ao mercado, e nos últimos anos, com cursos rápidos de correr atrás do prejuízo. Não, não pre­ férias, conseguem formar multidões de cisa correr para se matricular numa pessoas querendo treinar seu aprendi­ academia de dança. Comece com o zado. Com essa profissionalização da dois pra lá, dois pra cá, em casa, em dança, as pessoas andam mais exi­ frente o espelho. Em quem sabe não gentes, espera-se que você já saiba ganha uma companhia nesse treino?! dançar, pelo menos o mínimo de cada O famoso “Quer dançar comigo” pode ritmo! deixar de ser constrangedor. Boa sorte!


Dois pra lá, dois pra cá Faz sentido?

O

campo da dança é algo bastante abrangente, en­ volve uma série de tipos, ritmos, técnicas, enfim uma série de coisas que alteram, e bastante o público dessa arte. Um tipo de dança que provoca discussões é a dança contemporânea. Quando se diz, contemporâneo pode-se pensar em algo que ocorre no tempo que vivemos. Ou seja, qualquer dança livre que qual­ quer pessoa faça é uma dança contem­ porânea? Digamos que esse estilo vai bem além disso. Tratando-se de dança contemporâ­ nea existe uma liberdade muito grande de criação. O coreógrafo tem a liberda­ de de escolher qualquer figurino, trilha sonora e principalmente a coreografia em si, que pode ser baseada em qualquer técnica. Até mesmo uma criada por ele próprio, aliás, falando-se de companhias profissionais de dança contemporânea, a maioria delas possui técnica própria. A palavra-chave desse tipo de dan­ ça é desconstrução. Fala-se muito da desconstrução dos movimentos do ballet clássico, este sempre muito es­ truturado, controlado. O estilo contem­ porâneo, geralmente (digo geralmente por ser um estilo bastante livre), é de­ sestruturado, a postura muda, o corpo fica solto, por vezes descontrolado. E por essa enorme variação de estilos, muitas vezes o público desaprova esse estilo de dança. A discussão em torno da dança con­

temporânea é justamente em torno da interpretação do público. Afinal, a arte da dança deve fazer sentido? O público deve sair da apresentação “tocado” de alguma forma, talvez emocionado, an­ gustiado, deslumbrado? São pergun­ tas que sinceramente não sei a respos­ ta. Como bailarina, posso afirmar que quem dança, de alguma forma sente a emoção, talvez não seja o que o públi­ co esperava ver, mas a emoção existe. Já como espectadora, digo que inúme­ ras vezes apresentações de dança não fizeram sentido nenhum para mim e me incomodei com isso. Talvez fosse real­ mente esse o objetivo do coreógrafo, incomodar

As discussões em torno de qualquer tipo de arte são sempre difíceis de resolver. As discussões em torno de qualquer tipo de arte são sempre difíceis de re­ solver. Afinal, arte é opinião própria, tanto de quem faz, como de quem as interpreta, assiste. É bom assistir algo belo, emocionante, mas também nos toca, quando assistimos algo forte, violento. Creio que dificilmente terei as respostas das perguntas que fiz nesse texto. Opinião é algo que muda com o tempo também, podemos ter várias respostas para os questionamentos. Mas por enquanto, acredito que arte é questão de opinião, cada um com a sua, o interessante é descobrir o novo.


resenha

Erick Lopes


Hunter S. Thompson

Rum: Diário de um Jornalista Bêbado

U

m título desses nos faz imaginar uma história muito boa... Talvez um drama, com um cunho meio político e social, algumas sequências de páginas engraçadas e um pouco de ação, por que não? Ainda mais vindo de Thompson, o nome que criou o chamado jornalismo gonzo. É muita expectativa mesmo. E só. O livro é tão empolgante quanto o filme produzido a partir dele e estrelado por Johnny Depp: selo sonífero de qualidade. Não estou falando que Hunter Thompson é um Zé Nin­ guém, de texto ruim e fama injusta. Até porque quem sou eu, no alto da minha falta de conhecimento e experiência, para julgar e desqualificar o cara? O fato é que Diário de um Jornalista Bêbado é desinteressante porque re­ trata uma história desinteressante. Aliás, uma sequência de histórias paralelas desinteressantes de uma época da vida do autor com o mesmo adjetivo já repetido tantas vezes. Calma, eu explico. Hunter Stockton Thompson foi um ser humano notório, um ícone. Nasceu em uma família meio problemática, de pais alcóolatras e aos 15 anos já tinha sido preso. Quando começou a estudar e escrever, mantinha-se pou­ co tempo em um emprego só e suicidou-se com um tiro de espingarda na cabeça aos 68 anos. Mas, sobretudo, ficou lembrado por seu estilo de vida contestador, de fre­ quentes embates às autoridades, de crítica ao “american­ way of life” e pela falta de limites no uso de álcool e alu­ cinógenos. Essa personalidade o influenciou no seu tra­ balho, levando-o a receber o título de criador do jorna­ lismo gonzo, um estilo de escrita subjetivo e imersivo, no qual não há fronteiras entre o escritor e o relato, entre autor e sujeito, entre ficção e não ficção. E, claro, também tem o fato de presenciar e escrever a história em estado não muito lúcido: drogado, bêbado ou os dois. Ao longo dos anos, os livros de Thompson tornaramse referência e uma série de artigos produzidos para a re­ vista Rolling Stone, que se definia no subtítulo como “uma jornada selvagem ao coração do sonho americano”, se tornou seu livro de maior sucesso, sendo levado, ainda, para o cinema. Medo e delírio em Las Vegas (Fear and Loathing in Las Vegas) foi dirigido pelo montypythoniano­ Teery Gilliam, estrelado por Johnny Depp e mostra a viagem de Thompson a trabalho embalada por muitos e diferentes tipos de drogas, resultando em alucinantes experiências. Tanto o livro quanto o filme cultivaram uma legião de fãs do escritor e do novo estilo jornalístico. No entanto, Thompson ainda não era essa figura fasci­ nante e cultuada em 1960, quando foi trabalhar em Porto Rico. E é esse período de sua vida que está retratada em Diário de um Jornalista Bêbado. Sobre essa época de

autoconstrução de sua personalidade, pode-se dizer ser um ensaio, ou um esboço, do que viria a ser realmente Hunter S. Thompson. Assim, a história principal do livro é, na verdade, essa formação e reflexão do escritor, o que o torna enfadonho e, como dito anteriormente, desin­ teressante. O livro não tem necessariamente uma trama ou roteiro para seguir. Ele se propõe a descrever a pas­ sagem de Thompson, representado por ser alter ego Paul Kemp, pela capital San Juan, quando foi trabalhar em um jornal de língua inglesa da ilha. Paul Kemp ainda carrega uma certa preocupação e responsabilidade de um Thompson anterior ao desre­ grado conhecido e o consumo alcoólico que a narrativa descreve mais parece um hábito rotineiro do que pro­ priamente um excesso. O livro conta com seus poucos momentos engraçados, um tom quase sério às vezes e, ainda, uma história de amor, sexo ou atração paralela. Diversas micro-histórias sem profundidade começam, se desenrolam e se misturam, sem ter, necessariamente, o objetivo de terminar; elas vão apenas se entrelaçan­ do com todas as outras presentes. O foco não está nos acontecimentos, mas no personagem e seu desenvolvi­ mento reflexivo e moral. A narrativa, então, torna-se um pouco cansativa e insossa, e o livro acaba passando essa impressão vazia e confusa, simplesmente porque não há um fato a ser contado; não há um clímax e nem expectativa. Mas esse é o livro em si, tratado de forma individual. Vale repetir que o período retratado é o anterior ao célebre Thompson conhecido e que, mesmo nessa história-semhistória, é possível identificar traços do que viria a ser o escritor-jornalista e o próprio estilo gonzo de jornalismo. Particularmente, não é o tipo de li­vro que me agrada, porque me cansa e me distrai a falta de algo para espe­ rar ou torcer. Entre­ tanto, se o objetivo é conhecer melhor o autor, entender o estilo ou até mesmo for de seu agrado ser expectador das histórias alheias, vale a pena dar uma conferida. E sem muita expectativa, eu aconselharia.


resenha

Roger Bressianini

Sexo, álcool e jornalismo

N

o filme “Diário de um jornalista bêbado”, baseado no romance do jornalista e escritor norteamericano Hunter Thompson, Johnny Depp vive Paul Kemp, um mal sucedido escritor da década de 1960 que se aventura como empregado de um precário jornal em San Juan, Porto Rico. Den­ tro das características peculiares do jornalismo investigativo, apesar de se tratar de uma obra de ficção, Thompson recria no personagem um alter ego de sua própria personalidade. Regado a rum e ácido lisérgico, as ex­ periências reais do autor se misturam com a fantasia vivida por Kemp em uma narrati­ va leve e sarcástica. Seguindo os conceitos do jornalismo gonzo, do qual Thompson é um dos idealizadores, a história é apresen­ tada ao espectador sob a ótica do protago­ nista, que vivencia a experiência e imprime na mensagem parte de suas interpretações pessoais. A imersão do personagem na trama que se propõe é outro aspecto do jornalismo praticado por Thompson: existe ali uma certa tensão proporcionada pelas incursões do per­ sonagem pelo submundo da investigação, pela estreito caminho da apuração das infor­ mações mais obscuras. O trama do filme é estruturada sobre o alucinado ofício de um jornalista alcoolizado em um jornal à beira da falência, com um con­ selho editorial pautado exclusivamente pelos interesses financeiros da elite econômica que explora as belezas naturais porto-riquenhas. Através do convite de um misterioso homem

de negócios que se autodeclara um asses­ sor de relações públicas, Kemp passa a ter acesso a informações que sua ingenuidade não dá conta de perceber. Hal Sanderson, o tal assessor, trabalha junto a um grupo de empresários no ramo da especulação imo­ biliária e conta com o apoio de um banco e da imprensa caribenha compromissa­ da com os interesses privados de seus anunciantes – entre eles, o banco. Num esquema em que os di­ versos setores empresariais convergem na finalidade do bene­fício próprio, Sanderson­ oferece a Kemp uma oportunidade de ganhar­ dinhei­ ro fazendo uma publicidade velada para os seus empreendi­ mentos nas matérias jornalísticas. Kemp, percebendo que está envolto num pântano de corrupção, decide obedecer seu idealis­ mo ideológico e de­ nunciar as falcatruas de que toma ciência. Mas antes, Kemp se torna parte do esque­ ma, para ter acesso às informações confi­ denciais, assim como é natural no jornalismo gonzo investigativo.



CINCO SENTID o retrato de uma regi達o Texto e fotos: Lais Taine


DOS,


E

screvo a memória e o presente no intuito de buscar a identidade do lugar que me criei e que vivo até hoje, lugar o qual eu possa descrever de forma verdadeira através da palavra. Cinco sentidos (audição, visão, olfato, tato e paladar) e cinco bairros onde tudo começou (João Paz, Luis de Sá, Aquiles Stenghel, Violin e Sebastião de Melo). Me limito aos sentidos animais, pois não gostaria de cansar o leitor com todas as impressões de uma apaixonada pelo local. Não venho com intenção de explicações e números da região. Pretendo uma descrição profunda. Não sei se atingirei a realidade de forma especial, no entanto, se o objetivo não for alcançado, que fique o meu registro e o meu agradecimento por ter vivido tão bem num local que tinha muito para dar errado. Cincão, que seja simples e belo, que continue alimentando sonhos e que seu abraço acalente o povo que continua a chegar empurrado.

Da canção “As máquinas, o trânsito, os pássaros, o riso, o assovio. O Cincão é um samba com rima de rap e saudade sertaneja”. “Está passando na sua rua o carro dos ovos, ovos fresquinhos direto da granja, faça pão, faça bolo, faça ge­ mada, o que você quiser. Traga a sua vasilha!” – Venda certa nas tardes de sábado no norte de Londrina, no Cincão. As senhoras saem para as ruas munidas de tigelas. Aproveitam para conversar enquanto o vendedor para o carro no meio do quarteirão. A narração continua a chamar a cliente­ la enquanto os assuntos se misturam entre a fila bagunçada de pessoas que aguardam pelo atendimento. Ninguém tem pressa. É natural que as vizinhas, mesmo depois de comprarem os ovos, continuem na calçada conversando. O vendedor parece gostar, pois se alguma quer uma desculpa para encontrar as ou­ tras, busca sua tigela e compra ovos só para se inteirar do assunto e saber das últimas novidades do bairro. Ovo nunca é demais. O carro que convoca a assembleia não é o único a passar pelo Cinco Conjuntos. A Kombi do Churros, o carro das bolas coloridas, o sorvete da máquina barulhenta e a moto do gás também passam por aqui. Todos anunciando que o produto está che­ gando e que você só precisa sair no portão para adquiri-lo. Há também outro sistema de carros de sons por aqui, aquele que anuncia. Promoção no mercado, evento de igreja, liquida­ 66 | Amostra | Dezembro/2012

ção de uma loja. Todos chamam os cli­ entes numa narração entusiasmática. Esse é o Cincão. Ele vive um dilema, parece pedir silêncio na balbúrdia e barulho na quietude. Pois, adent­ rando nos bairros, os dias da semana são normalmente silenciosos. Nas manhãs,­ quando o sol pede os mais cinco minutinhos na cama, dá para ou­ vir o eco de um galo cantando. Sim, há por entre o concreto, um galo urbano. Você precisa de atenção para ouvi-lo, pois entre o silêncio e o eco, há latidos espalhados por toda parte. Não muito mais tarde, os pássaros anunciam o que o galo não conseguiu: já é dia, hora de acordar! Aos poucos, o som natural vai mesclando ao humano e sem se dar conta, o primeiro fica como um fundo para o segundo. E quando o sol se cansa, as cigarras começam a cantar e os carros vêm che­ gando entre um assovio e outro do freio do ônibus, que chega nas paradas das esquinas com mais frequência, muita gente está voltando. É quando as mães gritam os filhos, uma, duas, três vezes, até que eles escutem e voltam para a casa cabisbaixos apesar de terem pas­ sado o dia todo brincando na rua. O batuque da semana vai emanan­ do o estado de espírito, e quando che­ ga a sexta-feira, o ritmo já está mais animado. Ainda que alguns trabalhem na manhã de sábado, o ritual do dia é outro, há muita música e conversa


boa. Funk, rap, sertane­ jo, gospel... Uma infini­ dade de ritmos correndo a Avenida Saul Elkind. Nos botecos, a camara­ dagem: uma brincadei­ ra, um riso, um assovio e gargalhadas. Em um deles, a música chama pra dançar e invade a calçada do comércio vizinho, tudo vira um ­ palco de dança. Com tanta harmonia concentrada em uma região, nasce uma fonte de informação que chega aos ouvidos dos mora­ dores daqui: a Associa­ ção Rádio Comunitária Cincão FM, rádio que está em atividade desde maio de 2005, combi­ nando música, cultura, informação, eventos promocionais, shows e­ ­­_­campanhas comuni­ tárias beneficentes. Uma representante da comu­ nidade suburbana. Houve, tempos atrás, comícios e shows lota­ dos na Avenida. Na fal­ ta, os carros equipados com sistema de som to­ cam a trilha para que as moças desfilem seu es­ tilo próprio de chamar atenção dos rapazes, no domingo ensolarado. Entre um barulho e outro, um silêncio e outro, o local cria a sua própria música, uma orquestra sem regente em harmonia plena. Cada morador, um ins­ trumentista. Dos basti­ dores, também emito o meu som. As batidas do meu coração soam um batuque baixo, vibrando no mesmo ritmo. Então, no compasso da canção, percebo que faço parte dessa ópera. Amostra | Dezembro/2012 | 67


Do aroma “O olfato é um dos sentidos responsáveis por memórias intensas e emocionalmente fortes. Daí lembrar do cheiro da casa da avó, do perfume do pai, do açúcar queimado para a calda do pudim... Para mim, o Cincão tem cheiro de festa em família”. Numa respirada profunda, encheu os pulmões de ar, a cabeça de calma e o estômago de vontade. Fumaça indica fogo, no Cincão tem uma que leva à fome repentina. Por mais que esteja de barriga cheia, que tenha voltando de uma fei­ joada e tomado um caldo de cana na sobremesa, a fumaça dos espe­ tinhos de carne assada em grelha de calçada, ainda irá te convidar para um tira-gosto com a mesma intensidade com que o canto da Sereia Iara convidada os pescado­ res a se afogarem de paixão. Há vários pontos desse feitiço es­ palhados pela Avenida. A fumaça, que parece atravessar as barreiras do tempo e espaço, hipnotiza até mesmo os cães que passavam des­ percebidos pelo local. A fome vem como o cheiro, de supetão, disfar­ çada de nuvem acinzentada. A fumaça é uma espécie de cheiro visível. A volatilidade do ar quente leva consigo o odor, ativan­ do a percepção humana. Mas assim como há fumaça que causa senti­ mentos bons, há outros dois tipos de fumaça que não agradam nada e que marcam bem o cheiro do local: lixo e combustível queimados. Por mais que o Cincão cresça, acrescentando cimento e tijolo como se fossem vagões a serem car­ regados rapidamente de um trem prestes a partir, ainda há terrenos baldios espalhados ao redor dos bairros pioneiros. Um espaço de respiro em meio à ebulição do de­ senvolvimento. Nele o mato cresce tão rápido quanto à região. Uma das soluções que encontraram foi transformar mato em fogo. O chei­ 68 | Amostra | Dezembro/2012

ro incomoda a vizinhança, a atitude incomoda todo o meio ambiente. Os de faro aguçado ou quem utiliza o transporte público com frequência sabe que a fumaça do ônibus também é marcante. Isso porque, hoje, há um número grande da frota que carrega os moradores do local. São aproximadamente 40 tipos de linhas de ônibus indo e voltando da região norte. Bem dife­ rente do início, onde nem o asfalto chegava e muitos trabalhadores iam a pé do Cincão ao centro. Mas se há uma memória olfati­ va que remete ao local, é a da feira livre, dos domingos. O número de transporte passeando pelas ruas cai, a feira interdita onze quar­ teirões da principal Avenida. O ambiente dá espaço para que as frutas espirem nas quitandas e exalem o melhor dos aromas. Se fechar os olhos, consegue desco­ brir o que é vendido em cada barraca. Pastel, frutas, vegetais e grãos. Manga, melancia, ce­ bolinha, café... Tudo registrado num domingo de delícias, iniciado pela feira, passando pela tarde de churrasco em família e a sobreme­ sa da avó. O Cincão não tem cheiro especí­ fico. É misturado o cheiro de toda a gente e seu cotidiano. Cheiro de ro­ tina urbana, de costume de cidade interiorana, de amizade e de famí­ lia. Então, o cheiro se torna acon­ chego, de lugar hospitaleiro, que te faz se sentir bem, que se entristece quando vai embora, mas o recebe com grande alegria quando voltar. Cheiro de comemoração, de festa em família e de colo de mãe.



Da pele “Faz parte do tato o reconhecimento espacial do corpo. O meu não tem dúvidas, sabe que está no Cincão. E não tem interesse em sair”. Correu com os pés descalços no chão quente. O par de chinelo criava o limite do gol improvisado na Rua Sebastião Carneiro Lobo, no João Paz. Não sentia queimar, os pés não doíam, corria natural­ mente como se o chão fosse almofada de carimbo, que pretejava a sola. O sol estava quente, mas os meninos tiveram a preocupação em desenhar o campo debaixo das árvores mais antigas, algumas já estão sendo trocadas e as mais jovens não são altas o suficiente para sombrear os dois lados da Rua. Quando cansados, sentam ao meio fio debaixo da sombra. Riscam no chão qualquer desenho com um pedaço de tijolo e voltam a jogar. Só retornam para a casa à noite, quando o piche desiste de pin­ tar e espera que eles voltem no dia seguinte com os pés branquinhos novamente. Sujeira nos pés, poeira no corpo, a textura não é agradável, mas faz bem. Sentir a bola no pé e fazer parte de um time grande é o sonho de qualquer menino. Não é dife­ rente por aqui. O Cincão Esporte Clube, patrocina­ do por comércios da região, alimenta esse sonho. E munidos do uniforme e chuteiras nem sempre tão confortáveis, treinam até sentir o cansaço no corpo, buscando reconhecimento. É a percepção de uma dor que talvez valha a pena. 70 | Amostra | Dezembro/2012

Além da dor, é através da pele que se tem a per­ cepção de temperatura. No Cincão é sempre calor. Há um clima de solidariedade muito grande por aqui. Um abraço ou um aperto de mãos nunca são negados. Os amigos se encontram, cumprimen­ tam-se com tapinhas nas costas e sorriso honesto. O contato físico carinhoso gera desde a infân­ cia uma sensação de bem-estar, segurança e afeto. É comum andar no Cincão e ver mães carregando os filhos mesmo quando dão uma saidinha rápida para comprar ou pagar alguma coisa. Dificilmente você passará pela avenida numa tarde de sol sem se deparar com uma mãe andando com carrinho de bebê ou com o próprio bebê no colo. Para dias exaustivos, um passeio no lago Cabrinha te faz sentir o vento na cara e o frescor da água. Antes um sítio com grandes pés de manga. Algumas ainda estão de pé, evidenciando o pas­ sado e formando sombras sobre a grama macia. O corpo reconhece o Cincão como se fosse a própria casa. O local acolhe a todos que chegam como um forte abraço e põe no colo todas as es­ peranças e sonhos. O calor humano, a textura e as percepções através do tato, só mostram o quanto o local abriga toda a gente, demonstrando que os gestos de carinho e solidariedade estão sempre presentes na região.


Do gosto “De chinelo e bermuda, sentar nas cadeiras improvisadamente distribuídas na calçada e conversar com os amigos. O paladar do cincão não está no sabor da comida. Está na simplicidade”. Como todo final de domingo após a missa, a famí­ lia passou na barraquinha de sorvete italiano da Saul Elkind. A pequena pediu a sua casquinha preferida: um misto de morango e creme, talvez porque a cor rosa te chame atenção. O menino pediu o de choco­ late enquanto os pais decidiam quais dos sabores iriam querer. Todos se sentaram nos bancos de ma­ deira espalhados na calçada e ficaram observando a movimentação. Nem sempre foi tão doce viver no Cinco Conjun­ tos. Famílias vindas do êxodo rural, isoladas do res­ tante cidade, sofriam com a distância, com a falta de estrutura e com o gosto amargo do preconceito. A região crescia e com ela a marginalidade. A violên­ cia espalhou a fama pela cidade: “lugar de bandido”. Nos anos 90 e 2000, o Cincão não saia dos progra­ mas policias da TV. Muitos jovens morreram sentin­ do a bala no corpo e o gosto do sangue escorrendo pela boca. Às mães, sobraram a lamentação e o gosto salgado das lágrimas. As coisas mudaram, a violência ainda continua, infelizmente, mas agora na mesma proporção que o restante da cidade. A região se desenvolveu e há comércios de todo o tipo, que não precisa mais sair daqui para resolver as questões cotidianas. Há bons mercados, farmácias, bancos, hospital e boa comida. Há uma pizzaria tradicional que está há mais de 15 anos no Cincão, depois dela muitas se instalaram aqui, uma já tem filiais na Higienópolis, no Mercado Palhano e no Londrina Norte Shopping. Espalhando

sabor da periferia para a cidade. Em questão de restaurante, há um em especial. Aberto pela primeira vez há aproximadamente 20 anos, o local ainda funciona, tem nome, mas é conhe­cido pelo nome da cozinheira, a dona do co­ mércio. Na hora do almoço, a marmitex é entregue em vários pontos da região. Aos sábados, há fila de espera para conseguir uma quentinha. Dentre as comidas que mais caracteriza o Cincão, o Pastel é o que mais se destaca. Isso porque há lanchonete famosa especializada no salgado e as barracas de pastel da feira e na esquina do Centro Cultural. Locais onde você pode visitar de chinelo e bermuda, sentar nas cadeiras de lata e conversar com os amigos, saboreando a casquinha frita de um recheio à sua escolha. Pelas ruas dos bairros, existem casas transfor­ madas em boteco e que sempre tem um cliente fiel. Talvez a pinga e a cerveja estejam presentes na vida dos moradores daqui, mas há outro tipo de bebida que se vende há muito tempo e se mantém forte: o caldo de cana. As Kombis têm seus pontos fixos de venda e estão bem distribuídas na avenida. Com um pouco de sorte, você conseguirá encontrar ao menos uma em funcionamento nas tardes de calor. Antes, a acidez do preconceito. Hoje, o sabor do desenvolvimento. Em pequenas lanchonetes, em barracas ou restaurantes, o Cincão mostra que não é menos capaz e mostra que, de todos os sabores, a simplicidade sempre é bem-vinda.

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Do que se vê Meus olhos acompanharam toda a evolução do subúrbio. Grande mudança em pouco tempo, mas na essência, o Cincão continua o mesmo. Á noite, quando sair do centro da cidade, desça qualquer rua em direção ao norte e suba uma vez, se­ guindo até o topo. De lá enxergará uma estrada que leva às pequenas luzes acesas como se fossem vagalumes formando o fundo do cenário. Não verá edifícios, nem grandes casarões, só uma porção de casinhas e postes de luz entre as árvores. É o Cincão estampando o fundo de Londrina. As ruas são estreitas, árvores dos dois lados e casas construídas num formato padrão, algumas já reforma­ das ganharam estilo e aspecto grandioso, recebendo destaque entre as outras. Mas no geral, todas guardam na sua estrutura, marcas do passado. O Cincão foi cons­ truído pela COHAB para afastar da cidade a pobreza que chegava com esperança de vida melhor. Todas as casas iguais, colocadas uma do lado da outra, na mesma estru­ tura, mesma cor e mesmo pequeno tamanho. No início da década de 90 ainda existiam pés de cafés onde hoje o concreto habita. A estrutura vertical tam­ bém chegou. Os prédios do Residencial Catuaí, Bourbon­ e Ouro Verde marcaram, por mais de uma década, a Avenida Saul Elkind. Até que o comércio viu na região um potencial a se explorar, tapando a maior parte dos pequenos prédios ao fundo. A visão contrária também revela alguns fatos. Do alto da Saul Elkind, há espaços que fazem enxergar o quão afastada do centro está. Se consegue ver o centro de Londrina: os arranha-céus, o espaço da praça Tomi Na­ kagawa e o relógio central. Todos virados para o Cinco conjuntos. No espaço que os distanciam, outros bairros foram surgindo. Entre as duas pontas, casas e pedaços ainda não habitados. Quase saindo dos bairros, na rotatória da Rodovia

Carlos João Strass, dois lagos enfeitam a entrada dos bairros pioneiros do Cincão: o lago Cabrinha e o lago Norte. Uma calmaria que vê os carros passando apres­ sados ao seu redor. O mesmo aconteceu com o Cemité­ rio Jardim da Saudade. Um local de reflexão, perdido no meio da avenida. Se a visão permite a leitura, talvez caiba dizer que existem jornais específicos da região. Um retrato mais sério do que o antigo Hot News, caderninho semanal de entretenimento e anúncio, feito em papel sulfite A4, distribuído gratuitamente nos comércios. A sensação do folheto era a página de recados que as pessoas podiam escrever sem custo algum. Na Avenida, nenhuma casa, só comércio. Saindo da região leste, na ponta dos bairros que iniciaram a ur­ banização da região e seguindo a oeste pela Avenida, se encontram: o campo de futebol do Aquiles, a Igreja Pres­ biteriana Independente, o Centro Cultural, num ambi­ ente onde fica o ponto alto dos antigos comércios. A via de mão dupla tem um espaço em gramado dividindo as ruas, alicerce aos Ipês que floreiam na primavera e deixa tudo mais poético. Os correios, a locadora que luta para sobreviver nesse tempo moderno, a barraca de sorvete italiano, o semá­ foro. A partir daí, uma ala nova: a dos grandes comér­ cios que enxergaram a potencialidade da economia da região. Diria que não faz parte do Cincão, não do velho e tradicional Cinco Conjuntos. Mas é Cincão. Tem cara, jeito, cheiro. E tudo que se vê tem uma característica específica, em principal, a população. A cor e a luz revelam um povo de personalidade forte, que enfrentou o preconceito, mas que hoje bate no peito o orgulho de morar no Cincão.



resenha

Isabela Cunha

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ma delicada relação se es­ conde por trás das louças e jantares da cidade de Jackson,­no Mississipi dos anos 60. Em plena luta pelos direi­ tos civis, as empregadas negras veem as crianças que carregaram no colo crescerem para tornarem-se suas pa­ troas. E das mais cruéis. Esse é o drama de The Help (Histó­ rias Cruzadas), filme de Tate Taylor que relata, com alguma pitada de humor, através do discurso da jornalista recémformada, Skeeter (Emma Stone), a re­ alidade a que as serviçais negras eram submetidas nas casas das famílias bran­ cas do Mississipi. O filme é baseado no Best seller da escritora norteamericana Kathryn Stockett,­ que no Brasil foi traduzido como “A resposta”. O romance conta a história de duas empregas negras que trabalham em casas de famílias brancas, e de Skeeter, a jornalista recém forma­ da que irá relatar a história dessas mu­ lheres e, inevitavelmente, os bastidores vergonhosos da sociedade racista do Mississipi. Skeeter volta da faculdade de jor­ nalismo ansiosa por um emprego numa redação. Sem outras possibilidades, a jornalista aceita a vaga na coluna de di­ cas domésticas. Porém, sem entender nada do assunto, conta com a ajuda de Eibeleen (Viola Davis), empregada de uma velha amiga, para a tarefa. É nas visitas à casa onde Eibellen trabalha, além dos chás e festas benefi­ centes, que skeeter começa a perceber os abusos. Além de não cumprimentarem as empregadas e exigirem o máximo de­ las, as mulheres discutem, entre outras coisas, a criação de uma lei que obrigue as casas a terem banheiros separados, do lado de fora, para as empregadas negras. Além disso, expressões precon­

ceituosas, condições sub-humanas e péssimos salários chocam skeeter, que convence as duas empregadas a conta­ rem suas histórias para o livro The Help, que a jornalista pretende publicar. Nesse meio tempo, Skeeter vê sua própria vida pessoal ser influenciada por preconceitos igualmente fortes. Sua mãe e amigas passam o tempo todo tentando lhe arran­ jar um marido, e o namorado que a escritora finalmente conquista não concorda com seus ideais e não considera digno que uma mulher se ocupe de tais preocupações. The Help traz a tona um roteiro encorpado, com boa trilha­sonora, incluindo “Jackson”,­na voz de Johnny Cash e June Carter, e fotogra­ fia igualmente boa. Além disso, o tom de humor e a atuação premiada de Octávia Spencer­ (Minny­Jackson) também dão ao filme um colorido indescritível,­carregado de emoções. Porém, tais caracterís­ ticas também acabam por romantizar demais o longa. A jornalista é pintada como uma grande salvadora da pátria, a profissão da mocinha branca e rica acaba por “salvar” as empre­ gadas, mantendo uma relação de gratidão e satisfação em relação ao “homem branco do bem”, sem trazer alguma discussão mais concreta . Por fim, penso que apesar doa boa discussão e do tema fortíssimo, The Help acaba por cair no óbvio Happy End. O que não tira o brilho das exce­ lentes atuações e dos questionamentos importantíssimos que o filme inevitável e felizmente - nos impõe.


The Help (Hist贸rias Cruzadas)


cr么nica


Erick Lop es

Aquele cabelo J

á acordava pensando em Clara. Na cama, diversos fios longos de seu cabelo escuro, formando linhas e mais linhas de lem­ branças. Dormiu bem? Perguntava sem resposta, enquanto sorria e sentia o resquício do perfume que os cabelos partilharam com os lençóis. Era uma sensação boa, reconfortante, essa de poder partilhar de sua presença mesmo na ausência. Au­ mentava aquela minha saudade que, quando morta, fazia-me sentir completo. Mas dessa vez, ela não se encerraria. Cultivar essa falta já não me trazia somente alegria. Com as memórias, vinha outra saudade, uma que não poderia mais ser sanada. A falta doía. E o cabelo incomodava. Tratei de trocar toda a minha roupa de cama. Lavei. E queimei. Comprei uma nova. E os fios tei­ maram em se espalhar pelo chão. Limpei. Desinfe­ tei. Dedetizei. E percebi que não encontrava mais nenhum. Procurei até ter certeza de que não havia mais nenhum daqueles transportadores de agonia. Deitei relaxado em minha cama e sorri. Aliviado. Agora é só uma questão de tempo e ocupação, pen­ sei. Mas quando me levantei, um frio tomou conta de mim e me senti mole. Aquele cabelo em meu travesseiro não era escuro, nem longo e não trazia o cheiro dela consigo. Mas era um cabelo. Sem pensar no assunto, me levantei, peguei minha chave e sai do apartamento. Quando voltei, tinha certeza que nenhum outro pensamento semelhante me possuiria novamente. Repeti todo o ritual de pu­ rificação. Varri, lavei, troquei, queimei, chequei. E deitei, enfim, sem medo. Acordar se tornou mais fácil. Os dias se tornaram mais fáceis. E o novo visual agradou a todos.

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Isabela Cunha é estudante do 3º ano noturno do curso de Comunicação Social - Jornalismo da Universidade Estadual de Londrina e escreve periodicamente a sua coluna no site: www.perobaprosa.com

Dilminha não é paz e amor

coluna

A

presidenta Dilma Rousseff está uma porcentagem sobre ela, acordo feito se livrando de uma. A grande im­ com o site já na gestão Ana de Hollanda. prensa, talvez enjoada do cai-cai, Você, porém, conhece alguém -– fora da in­ ignora o incômodo que a minis­ dústria -– que tenha recebido repasses de tra-irmã-do-Chico tem causado. Enquanto verba por ter postado um vídeo na internet? inúmeros eleitores esperaram uma continui­ E mais, esses repasses foram significativos? dade das políticas culturais de Lula -– e ex­ Eu também não conheço ninguém. Isso vale, pressam isso em blogs, sites e redes sociais é bom lembrar, para músicas, álbuns, vídeos, -–, Ana de Hollanda parece segura de que singles, etc etc etc. A Ana acha que você tem sua postura no MinC é apoiada pelo governo que cobrar pelo que você quer que as pes­ atual e está tranquila, já que a grande impren­ soas conheçam, mesmo que isso seja ape­ sa sequer especula o fato. A crise é a mesma nas uma ferramenta de divulgação do seu de sempre: o direito autoral e a internet. trabalho, mas o repasse, este os comparti­ Quando assumiu a pasta, a ministra tomou lhadores ainda esperam. duas atitudes simbólicas que, mal suspei­ távamos nós, davam sinais claríssimos da Ana de Hollanda parece postura que seria praticada durante os anos seguintes. Ana de Amsterdã­ barrou segura de que sua postura no a reformulação do Ecad – órgão respon­ MinC é apoiada pelo governo sável pela arrecadação de direitos auto­ atual e está tranquila, já que rais – (Escritório central de arrecadação de direitos), iniciada por Juca Ferreira, e, a grande imprensa sequer não bastasse, retirou o selo do “Creative especula o fato. Commons” do site do MinC. Foi simbólico. Mas a questão é que, há duas semanas, o blog Farofafá (http:// Além disso, outra discussão acesa www.farofafa.com.br/) denunciou um esque­ é a questão pura e simples do repasse. ma de favorecimento dentro do Ministério O “Escritório Central de Arrecadação e da Cultura e reacendeu o debate. O Ecad, é Distribuição”de Direitos faz um repasse per­ bom que esteja claro, é um órgão civil que, centual: recolhe fundos por toda música re­ desde Fernando Collor, não é fiscalizado, produzida na internet, na rádio, na novela, na que cobra direitos de todas as reproduções festa de 15 anos da sua vizinha. Mas, ao final mas repassa a porcentagem a poucos. É um de cada ano, repassa apenas aos mais toca­ órgão que, especula-se, é corrupto há muito. dos nas paradas. O artista independente, que Nesse momento dois pontos são os de ainda está lá, gritando em 140 caracteres, mais atenção: jovens que difundem a cul­ curtindo e compartilhando, não é atendido. tura independente e, para isso, se utilizam Embora tenha produzido. da rede mundial de computadores pessoas, Isso, concordo, já é assunto requentado. a internet, estão preocupados com o desti­ A novidade, porém, é o silêncio. Da impren­ no da sua produção. A retirada do Creative sa, que não tem nenhuma Betânia para Commons foi uma bandeira vermelha ao livre ilus­trar o jornal, e da presidenta, que, além compartilhamento de dados -– que não deve de não comentar a velha novidade, não dá ser confundido com pirataria. sinais, nem da queda da ministra, nem das Se você, leitor, quiser produzir uma músi­ continuidades às políticas de compartilha­ ca, para nossa alegria, e quiser compartilhámento livre e disseminação independente. la no Youtube, por exemplo, o Ecad receberá Aguardemos o F5.


Un Passant De quê independe o independente?

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udo – ou quase tudo – que é co­ mercial no mundo moderno tem sua versão independente. Grupos de teatro, produtoras, meios de comunicação, bandas. Muitas ban­ das. Sem nenhum formato estabelecido, sem receita, e isso também não quer dizer que o movimento seja caótico. “Movimento”, na ver­ dade, pode nem ser a palavra mais adequada, já que o independente é tão difuso e perdido quanto pode ser unido e absolutamente orga­ nizado. Pensando bem, “movimento” até que cai bem. Vamos ver... Nos últimos anos – os úl­ timos mais recentes – vimos a linha do indie e do mainstream se confundirem. Enquanto o Pato Fu, por exemplo, voltava ao estúdio pes­ soal, no fundo de casa, sem renovar com a sua gravadora nem assinar com uma nova, bandas como o Mombojó migravam de uma garagem em Pernambuco para a Tra­ ma – que também pode ser considerada independente no meio dessa confusão de definições, se você quiser. Os discos da banda podiam ser encon­ trados nas Lojas Americanas, por exem­ plo, mas os pernambucanos também dis­ ponibilizaram toda a discografia em seu blog, sem custos . Ao mesmo tempo e curiosamente, o Mombojó também conta com um enorme aparato – técnico e humano –, que garante, por exemplo, que os garotos não precisem passar o som antes dos shows. Eu mesma vi a equipe técnica fazendo isso em lugar deles. E também vi o Pato Fu, com muito mais tempo de estrada, “tessstando” micro­ fones às três da tarde. Acontece que as duas bandas são in­ dependentes. Ou “são consideradas”, você escolhe. O fenômeno novo – e, se você me permite, diferente dos dois casos – é a “ga­ ragem como ponto final”. Para a maior parte dos músicos, shows em botecos, CDs com quatro faixas em capinhade papelão, enfim, “a garagem”, são só um estágio para o es­ trelato, é uma fase, um degrau. Outras ban­

das, por sua vez, consideram a “garagem” o ponto de chegada. É o discurso mais básico da produção independente. O fulano não quer aparecer no Faustão, nem concorrer ao VMB, mas quer tocar. E ele pode fazer isso. Essas pessoas sobrevivem de um jeito diferente. Alguns tocam covers nas horas va­ gas, mantém um emprego formal, com salário no final do mês. E circulam, contando com o apoio de amigos, conhecidos ou estranhos, para divulgar seu trabalho. A internet é outra salvador da pátria. Até redes sociais para en­ curtar o caminho entre músicos e produtores, ou músicos e festivais, músicos e músicos, já foram criadas e funcionam. A própria Trama desenvolveu um esquema de download remu­ nerado, que já está um passo a frente da pro­ posta free que o independente quase sempre tem.

É o discurso mais básico da produção independente. O fulano não quer aparecer no Faustão, nem concorrer ao VMB, mas quer tocar. E ele pode fazer isso. O problema, ou o lado bom, é que nenhuma­ dessas coisas dá um caráter uni­ forme ou define as fronteiras do independente no Brasil. A própria Trama já gravou NX Zero que, cá entre nós, nunca viu problemas em to­ car no Faustão – o que também não é ­nenhum crime. A verdade é que, enquanto o ‘indie’ americano/inglês é facilmente re­conhecido pelas guitarras sequinhas e batidinhas ele­ trônicas, nós, do lado de cá, temos no bolso um material muito mais plural. De Macaco Bong à Vanguart, de Cansei de Ser Sexy à Tulipa Ruiz. Ritmos, intenções, e ferramentas totalmente distintas. Mas tá lá, todo mundo no pacote do independente. E não, amigo, isso não é algo ruim.



Hoje tem marmelada? Não tem, não, senhor! A história do Circo Funcart, espaço cultural alternativo de Londrina, que agora toma a posição de um dos principais teatros da cidade por Giovanna Machado


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hegando ao fim da Avenida Senador Souza Naves em Londrina, pode-se en­ xergar uma lona verde armada na beira do lago Igapó. Os desavisados podem passar pelo local e pensar que há um novo circo na cidade. Mas o espaço que existe próximo a barragem de Londrina, não é um picadeiro.

Criado no ano de 1998, por um grupo de londrinenses, com destaque para três nomes da cultura da cidade: Leonardo Ramos, atual secretário de cultura e diretor da companhia Ballet de Londrina, Silvio Ribeiro vice-presidente da Funcart e diretor da Escola Municipal de Teatro e Neli Beloti, presidente da Funcart. O Circo foi criado numa brincadeira dos três artistas que queriam um teatro permanente para expor as criações artísticas da Funcart, idealizada também por eles, em 1994. A preocupação deles seria facilitar o acesso à formação e produção cultural, tornar essa produção acessível a todos. Com um teatro teriam mais facilidade para levar o trabalho ao público. Em seu ano de criação o circo foi nomeado como Circo Funcart Teatro de lona, e foi inaugurado com a apresentação da turma de formandos da escola municipal de teatro com o espetáculo: “Cabaret Munchausen”. A ideia da criação do teatro não teve apoio do governo na época, mas foi subsi­ diada por outro projeto. “A iniciativa não teve apoios oficiais. A compra foi financiada em 24 vezes pela Caixa Econômica Fe­ deral, através do Projeto Nacional de Artes Cênicas do Ministério da Cultura”, afirmou Leonardo Ramos. Para erguer o circo, a Funcart bancou com recursos próprios toda a estrutura de metal, a cerca e as cadeiras utilizadas na época. Em 1998, na estreia do teatro o circo não tinha a mesma aparência atual, suas cadeiras eram vermelhas com estrelas brancas,e a lona que cobre o teatro era vermelha, amarela e azul, tudo no maior estilo circense. Acima da lona cruzavam dois fios com pequenas lâmpadas que quando estavam acesas era sinal de que haveria espetáculo naquele dia. O teatro de lona não tinha uma boa estrutura, muitos de seus equipamentos eram emprestados do Ballet de Londrina, na época com seis anos, mas já possuía uma estrutura cenográfica própria. Porém quando a companhia saía em turnê, o circo ficava com cerca de 30% de sua estrutura. Ou seja, o teatro precisava de apoio financeiro para se manter na cidade. No ano de 2001 esse apoio chegou. 82 | Amostra | Dezembro/2012

Apenas três anos depois de sua criação o circo já precisava de reformas, o espaço apesar de impro­visado tinha uma grande demanda de espetáculos e precisava de mais estrutura. Em 2001 então, foram substituídas algumas estruturas de iluminação, o palco foi aumentado e a lona foi reformada ganhando uma pintura azul com estrelas prateadas. Mesmo com a reforma de 2001, o circo ainda necessitava de estruturas para tomar realmente o posto de um teatro na cidade de Londrina, até então ele ainda era visto apenas como um espaço alternativo. Foi então no ano de 2003, com recursos disponibilizados pelo PROMIC, (Programa de incentivo à cultura), que o circo ganhou a cara que tem até hoje. O teatro Ouro Verde havia passado por uma grande reforma e as antigas cadeiras foram doadas para o circo. O teatro também ganhou­melhores estruturas de iluminação e som, porém manteve apenas a lona como cobertura, essa por sua vez foi novamente pintada, mas desta vez apenas de verde. Verde por fora, preto por dentro, essas cores garantiram melhores condições de iluminação para os espetáculos, criando realmente um ambiente de teatro. Sobre a lona do circo é preciso mais que algumas características para descrevê-la. Para quem nunca entrou no circo Funcart, informo que não há nenhuma estrutura abaixo da lona, como laje ou algo do tipo. É a lona e suas estruturas de suporte formam o teto do teatro. Até o ano de 20008, a lona do circo foi a mesma, a única coisa que era feita eram remendos e pinturas, porém nunca foi trocada. De tempos em tempos então, a lona por causa das chuvas de granizo e ventanias, encontrava-se toda furada. Eram pequenos, às vezes minúsculos furinhos que se espalhavam por toda a cobertura do teatro, o que muitas vezes impossibilitava a apresentação de espetáculos. Apesar do transtorno, a lona se tornava um grande espetáculo de quem estudava ou trabalhava na Funcart, pois durante o dia, a lona se assemelhava muito a um céu inteiramente estrelado. Outra característica marcante do circo era sua temperatura. Justamente por


causa da lona, a temperatura durante o verão era altíssima dentro do teatro. A lona se aquece rapidamente e o sistema de ventilação era bastante precário, combinação que tornava o ambiente para o público e artistas, bastante desconfortável. Durante o inverno a situação desconfortável não mudava, por ter apenas a lona como cobertura, o vento frio entrava no teatro, dando a sensação de estar ao ar livre, temporadas de espetáculos durante o mês de julho eram complicadas para os artistas. Durante muitos anos o circo manteve sua lona erguida mesmo com todos esses impasses, falta de verba, de estrutura, mas sempre com uma grande demanda de apresentações. No ano de 2008 uma verba foi aprovada pelo governo estadual para a reforma da sede da Funcart e também do circo. A reforma da sede, porém só conseguiu ser realizada em 2011, e do circo apenas em 2012. Com essa reforma aprovada o circo ganhou um novo nome: Circo Funcart Sala de espetáculos, e também uma programação a ser cumprida. O Circo ganhou então uma lona nova de melhor qualidade, que manteve a cor verde, uma estrutura de madeira ao redor do palco, o que melhorou a acústica e iluminação do lugar. O ambiente também foi climatizado com ar condicionado, uma das características da reforma, mais elogiadas pelos frequentadores do local. Depois de quase quatorze anos de existência, o circo ganhou uma cara de teatro, com estruturas melhores, um ambiente

agradável para quem faz arte e para quem assiste ela. Isso se tornou realidade justamente no ano em que Londrina perdeu seu teatro principal, o Ouro Verde. A grande demanda de apresentações culturais sempre foi para o Ouro Verde, o maior palco, com as melhores estruturas técni­cas da cidade. Porém com o incêndio no início deste ano de 2012, a cidade se viu órfã de seu palco principal. O circo tornouse então uma alternativa financeiramente possível para quem produz cultura na cidade e quer mostrar sua arte ao público. Neste ano o circo já abrigou dois festivais da cidade, o FILO e o festival de dança. A agenda do teatro está lotada desde o mês de agosto deste ano, os houveram apresentações em todos os finais de semana, e agora no fim do ano, também durante a semana. Além das características de um lugar desconhecido por parte da população londrinense, esta reportagem quer mostrar a importância artística e talvez, porque não, sentimental, do Circo Funcart para os artistas de Londrina. Mais que apenas um teatro, para um artista o palco é o lugar onde estão os personagens que ele compõe, é onde a arte acontece realmente. Por mais que se treinem todos os dias, uma peça, uma música, uma dança, é no palco que o exercício se transforma em arte. “Para muitos jovens, que iniciam a carreira na Escola Municipal de Dança e Escola Municipal de Teatro, o palco do Circo Funcart é a porta de entrada para o mundo das artes.”, confirma Leonar­do. Amostra | Dezembro/2012 | 83



Pretensiosamente, eu convido você leitor, agora que você já sabe um pouco da história desse lugar cheio de produção artística, a se sentar confortavelmente na poltrona, porque as luzes estão se apagando e a cortina já vai abrir. Então você vai poder assistir... Ou ­melhor, ler também a história de alguns personagens que fazem parte desse espetáculo de produzir­arte. As histórias e a relação das pessoas que criaram e mantiveram a lona desse teatro erguida durante esses 14 anos.

CAPÍTULO 2: QUEM FAZ ACONTECER “A idéia surgiu de uma piada, numa reunião eu disse: - A gente podia fazer um circo ali no jardim para acabar com o problema de lugar das apresentações. A Neli (Beloti) levou a sério e a ideia foi para frente” Ele é natural de Olinda (PE), tem 50 anos, e conheceu o mundo da dança por acaso. Leonardo Ramos, já foi citado nessa reportagem, mas é preciso dizer mais do homem que teve a ideia de criar um circo para acabar com seus problemas. Leo, como é comumente conhecido na Funcart, conheceu a dança acompanhando sua irmã nas aulas de ballet. Mais tarde se tornou também professor, ele diz que desde o primeiro momento sabia que aquele seria seu futuro. Ele já citou algumas vezes sua primeira experiência como professor. Colocaram-no numa sala para dar aula de pré-ballet, para crianças com menos de sete anos de idade, que não falavam português, depois de algumas tentativas frustadas de iniciar a aula, Leo balançou a cabeça negativamente, as crianças o imitaram, então e ele entendeu de alguma forma tinha atingido as crianças e conseguiria trabalhar nesse ramo. Além de professor, Ramos também foi bailarino, e iniciou seus trabalhos como

iluminador, trabalho que executa diversas vezes, ainda nos dias de hoje. Consolidou também sua carreira de coreógrafo e diretor com o Ballet de Londrina, com destaque especial para os balés: Nunca, Eternamente, Decalque e A Sagração da Primavera, que deixaram o Ballet conhecido no Brasil e também em diversos países como Peru, França, Argentina, Paraguai e alguns do continente africano. Leo tem altura mediana, barba no rosto e usa uns óculos quadrados que é possível identificá-lo de longe. Tem um leve sotaque de sua terra natal, e seu humor sarcástico costuma ser memorável. Ramos busca sempre a excelência em seu trabalho, inteligente, nenhum detalhe coreográfico costuma escapar de sua vista e principalmente ouvidos. Leo não costuma demonstrar facilmente suas emoções, mas é fácil perceber o carinho que ele tem com a Funcart e o circo. É nítido o cuidado e o zelo dele que está todos os dias observando cada detalhe do lugar.

“-Acabou o serviço aí, e agora ? - Você não quer ficar aqui com a gente? - Mas eu não entendo nada do que vocês fazem. – Você aprende ué. -Ah se vocês vão ensinar é outra coisa!”


Ele tem nome de celebridade, e apesar de estar rodeado de artistas e trabalhar num palco, ele não costuma aparecer. Roberto Carlos Rosa é o diretor da equipe técnica do circo Funcart. Roberto tem 50 anos, de forma nenhuma aparenta sua idade. Mas é carrancudo, leva seu trabalho muito a sério e não brinca em serviço, uma frase muito comum dele é: “- Hoje tem pepino pra resolver, hein?!”. Quem convive com ele diariamente costuma dizer que ele está sempre bravo com alguma coisa. Mas é fachada, Roberto na verdade é um grande personagem da Funcart, está sempre por ali, lendo jornal de manhã, tomando um café, e sempre carregando alguma coisa, sempre à trabalho, é daqueles tipos que não descansam nunca, mas sempre pode parar um segundo para conversar com os colegas. Ele começou na Funcart em 1997, quando estavam começando a construir o circo. Mas entrou na Funcart para ajudar numa reforma atrasada, quando acabou o serviço ficou por ali, traba­ lhando como faz-tudo, e aprendendo técnicas de iluminação e cenário. Depois de anos de prática como técnico, ele conta que uma das maiores dificuldades de seu trabalho é a falta de pessoal na equipe. Hoje o circo tem

uma demanda muito maior que o costume. Com o Roberto trabalha apenas mais um técnico, o Ballet de Londrina frequentemente viaja e leva Roberto junto, o Circo fica então com apenas um técnico para tomar conta das apresentações. “Esse trabalho aqui precisa de pelo menos três pessoas, isso resolveria o trabalho”, afirma ele. Ele conta também que o salário não é dos melhores, e até já recebeu outras propostas para trabalhar como técnico em outros lugares, mas o coração falou mais alto. “A gente aqui, acaba virando uma família, o ambiente é muito bacana para trabalhar, as viagens, acaba um apoiando o outro, isso ajuda bastante.” Apesar de estar na maioria das apresentações do circo, música, teatro, Ro­ berto acabou focando nas apresentações de dança, sendo o técnico do Ballet de Londrina. Ele conta que depois de assistir tantas apresentações, aprendeu muito sobre a dança. “Eu sei tudo o que o Ballet faz, as horas das coreografias, só não sei dançar”. Sendo o expectador mais assíduo do Ballet tem também suas preferências, um espetáculo marcante para ele, foi justamente o da estreia do Ballet no Circo, o Lúdico e o Cidade. “A montagem era muito legal, e logo depois da estreia, saimos para a turnê no nordeste, ficou marcado”.

“Minha vida era um palco iluminado/Eu vivia vestido de dourado/Palhaço das perdidas ilusões (...) Mas a lua, furando o nosso zinco/Salpicava de estrelas nosso chão” (Silvio Caldas)


Ele acorda todos os dias as seis da manhã, sai da sua casa no Jardim Tóquio e segue com sua bicicleta até a Funcart. Para desestressar corre de 10Km à 15Km por dia, depois segue sua rotina de aulas e ensaios das oito da manhã até as nove e meia da noite. O dono dessa rotina puxada e disciplinada é Marciano Boletti, 40 anos, bailarino do Ballet de Londrina e professor da escola Municipal de Dança. Marciano está na Funcart desde sua criação, dançava com o grupo Oficina de Dança, coordenado por Leonardo Ramos antes da criação do Ballet de Londrina. Pouco tempo depois se tornou professor da escola coordenando os espetáculos de fim de ano, e participando de outros projetos envolvidos com a Funcart, como o Projeto Dança nas Escolas e Faces. Dificilmente se você for à Funcart não encontrará o Marciano. Ele está sempre lá, incluindo sábados e domingos, em época de fim de ano, por causa dos inúmeros ensaios gerais da escola de dança. Mas no restante do ano, ele costuma ir para passar o tempo, para verificar se está tudo certo, e também fazer exercícios. “Ali é como se fosse minha casa e da nossa casa a gente cuida”, conta ele. Marciano não é somente bailarino e professor, ele realmente toma conta do circo e da escola. Ajuda os técnicos a montar e desmontar iluminação e cenário, verifica se há algo errado no

circo, faz de tudo pelo lugar que ele trabalha. “A gente não pode trabalhar aqui somente pelo dinheiro, eu tento sempre manter a ordem, fazer a minha­ parte que eu sei que vai ajudar de algum jeito (...) e mesmo organizando tudo, cuidando de tudo, sempre surge um pepino, imagina se a gente não cuidasse”. Marciano conta que não sabe o que faria sem o seu trabalho, “Ali eu fiz a minha vida, não sei se eu vou conseguir fazer outra coisa, não sei se saberia viver sem aquilo ali, existe o medo de ficar sem”. Ele também zela pelo circo e conta que fica realmente triste quando acontece alguma coisa com o lugar, há alguns anos roubaram o lugar e leva­ ram parte da iluminação, no ano passado uma forte chuva arrebentou parte da lona, e há alguns anos atrás uma forte chuva e granizo provocou furos por toda a lona. Marciano conta que dizia naquela época que o Circo era o seu “chão de estrelas”, o palco da sua vida, seu barraco iluminado pelo sol e pela lua, citando a música de Silvio Caldas. “Morro de medo de acontecer alguma coisa com o circo, porque senão a gente perde uma oportunidade muito grande”, lamentou. Para o artista seu grande momento é estar no palco, é mostrar o trabalho de tanto tempo, o esforço, estar no palco é a alma do artista. O Circo é o palco do bailarino Marciano, por isso tanto cuidado, tanto zelo.


Esforço para crescer O Circo só se manteve tanto tempo em pé por causa de pessoas como o Leonardo, Roberto e Marciano, que como diz o bailarino, mantêm o pensamento positivo, acreditam no lugar, que pode crescer ainda mais. O Circo só existe até hoje porque sempre existiram pessoas cuidando para a lona ficar erguida. Mas de nada adiantaria tanto esforço, trabalho para manter o espaço de pé se não existissem as produções culturais da cidade e o público cativo do espaço. Mas o que acontece no circo?


CAPÍTULO 3: O QUE ACONTECE Já disse Leonardo Ramos, “Para muitos jovens, que iniciam a carreira na Escola Municipal de Dança e Escola Municipal de Teatro, o palco do Circo Funcart é a porta de entrada para o mundo das artes”. A Funcart é quem mais utiliza o palco do seu jardim, a Escola Municipal de Teatro (EMT) monta em média quatro a cinco espetáculos por ano, todas são apresentadas no circo. Inclusive o espetáculo de estreia do circo, em 1998 foi uma das montagens da EMT, a peça “Cabaret­ Munchausen”. O extinto grupo de humor “Quarta Tosca” costumava apresentar uma vez por mês uma de suas montagens, apresentadas também no Bar Valentino. Recentemente a turma formanda da EMT apresentou no Circo o peça “O Santo e a porca”, de Ariano Suassuna, com adaptação e direção de Carol Ribeiro. A peça utilizava também o pátio do circo Funcart, e apresentou um cenário inovador. Durante muito tempo as “Tardes de dança”, composta por pequenas apresentações de várias escolas de dança de Londrina, movimentaram o Circo Funcart. Mais tarde, o nome do evento mudou passando a se chamar Festival de Dança de Londrina, ampliando também o período de apresentações, oferecendo cursos de dança e contando com a participação de grupos de dança do Brasil e internacionais. O Festival estreou no Circo, com o evento crescendo passou a ter sede no teatro Ouro Verde, mas continuou usando o Circo para apresentações menores. Porém com o incêndio deste ano, o Festival voltou para sua sede original. Não só o Festival de dança usa o palco do circo, famoso por utilizar os espaços culturais alternativos de Londrina, o FILO tem presença garantida na lona. Leonar­do Ramos afirma que não tem estimativa de quantas montagens do FILO passaram pelo Circo, foram muitas. Em época de FILO, a Funcart também se agita, artistas de fora, vem conhecer o palco, e acabam sempre se surpreendendo com o que encontram debaixo da lona. Ago­ra com a reforma e a climatização, os artistas de fora também tem mais conforto. Os londrinenses já estavam acostumados com o espaço, mas quem vem de fora ­sofria com o calor ou frio exagerado do lugar.

A Escola Municipal de Dança costumava usar mais o palco do Ouro Verde para suas montagens. Todos os anos a escola apresenta um espetáculo de final de ano com todos seus alunos, contando com todos os cursos, a estimativa passa dos trezentos alunos. Com o número grande de bailarinos e principalmente público, a escola acabava indo para o Ouro Verde para abrigar ­melhor a todos. Mas esse ano a escola volta ao circo, em 2002 com a reforma do Ouro Verde a escola também se apresentou no espaço. Para readaptação, a escola ampliou os dias de espetáculo, geralmente o que geralmente chegava a três dias, esse ano passa a ser oito, com ingressos limitadíssimos. Mas neste ano também, um novo projeto fez com que a escola usasse bastante o palco do circo. As apresentações “Do clássico ao contemporâneo” acontece­ram quatro vezes nesse ano, movimentando e dando mais experiência ao aluno. O bailarino que tem mais contato com o palco, ganha presença em cena, se habi­tua ao público, ao nervosismo comum de apresentações. Os espetáculos no Circo ajudam esses alunos a crescer profissionalmente. Um dos grupos amadores de dança contemporânea da Funcart, o Ballezinho de Londrina, também é figu­ rinha carimbada no palco. Anualmente o grupo que conta com a participação de alunos da escola de dança, apresenta suas montagens para o público. Assim como o Ballet de Londrina, o Ballezinho costuma viajar com as produções, mas tem como casa o palco do Circo. O Ballet de Londrina, também como já foi citado aqui, comumente apresenta suas produções na sala de espetáculos. Neste ano foram quatro temporadas de apresentações do Ballet no circo. O espetáculo de estreia do Ballet foi o Lúdico apresentado junto com o Cidade. Leonardo diz que foram nove montagens do Ballet­ que estrearam ali. Mas todas tiveram apresentações no circo. Por ser considerado a casa, o palco do Ballet de Londrina, é costume o ballet se apresentar no circo antes de sair em turnê, uma forma de primeiro mostrar à cidade, buscar apoio de seu público, para então, sair para outros lugares.

Lugar pequeno, arte gigante Quem trabalha no Circo Funcart, é apaixonado pelo que faz e pelo lugar. Ninguém fica ali se não gostar realmente do seu trabalho. Há 14 anos o Circo está de pé, com a lona estendida para o que for, as chuvas vieram, os buracos surgiram, mas o teatro se manteve, a arte o protegeu. Hoje ele vem ganhando espaço, as pessoas que antes achavam longe demais, difícil de achar, se acostumaram com a lona sempre em pé na beira do lago. O Circo, diferente de outros teatros, tem um cheiro

quente, cheiro de mato por estar tão perto do lago, mas guarda também um ambiente acolhedor, e uma atmosfera extremamente agradável, o humor que o fez surgir talvez nunca tenha saído do lugar. Também por ser pequeno, o circo une o público e os artistas, o público ouve a respiração dos bailarinos, os passos dos atores, cada detalhe é visível e tateado pelo público. Quem sabe seja essa a receita de sucesso, arte e expecta­dor unidos nesse lugar. Amostra | Dezembro/2012 | 89


Lais Taine é estudante do 3º ano noturno do curso de Comunicação Social - Jornalismo da Universidade Estadual de Londrina e escreve periodicamente a sua coluna no site: www.perobaprosa.com

Entre a Segurança e a Ignorância

coluna

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le fumou pela primeira vez ainda de dormir tranquilo. E roubar é crime! na adolescência, parou de estudar Porém, inúmeras famílias têm os seus di­ quando reprovou um ano no colé­ reitos roubados, como os de ter saúde, edu­ gio e se tornou depósito de crítica cação, habitação, emprego e alimentação de do pai alcoólatra, da mãe grávida do sexto qualidade e pouca gente se importa. filho, da tia doente, da avó beata boca-suja, Muitos acreditam que polícia na rua é a do tio que ofereceu emprego. E Ele foi. solução. Mas se o Estado não dá condições Com 14 anos a vida era cimento, tijolo e de qualidade de vida à população mais po­ bolacha recheada. Tornou-se apaixonado bre, ela busca por conta própria. Muitas pelo doce quando comeu pela primeira vez, crianças são retiradas da escola para tra­ na escola, uma amostra doada pela nova balhar, algumas nem vão e outras caem da marca de biscoitos da cidade. criminalidade progredindo em pouco tempo Trabalhando podia comprar, mas escon­ o que várias gerações levariam se fizessem dido. O dinheiro ficava em casa como castigo pelo caminho oferecido pelo Governo, isso de um crime que não cometeu, a família pre­ se alcançassem. O crime seria muito atrativo, cisava. se não fosse trágico. Mesmo assim muitos Ele não se lembra de quando foi que tro­ prefe­rem o risco. cou a fissura pelo biscoito por drogas O traficante ficou de pesadas. Também não se lembra de quando foi feita a primeira ameaça por acertar as contas quando não pagar a dívida. Lembra do primeiro ele saísse da prisão e ele não roubo, pegou escondido o celular do tio, pagou a conta e ficou livre para de­ ficou por muito tempo, a ver mais. Perdeu o emprego, perdeu a vida nunca foi justa com ele, noção, mas não perdeu o vício. Em um dos assaltos foi parar na TV, por que ia de ser agora? foi preso, chamado de sem-vergonha e vagabundo pelo apresentador. O traficante O problema de segurança pública en­ ficou de acertar as contas quando ele saísse volve toda a sociedade, que deve cobrar da prisão e ele não ficou por muito tempo, a por melho­res condições de vida, por justiça vida nunca foi justa com ele, por que ia de e cobrar a si mesmos, menos pré-conceito, ser agora? menos julgamentos e mais atitude. Ninguém Foram cinco tiros e uma morte. O sobri­ quer ter o seu carro roubado, mas também nho prometeu vingança, o filho ficou órfão e não tem coragem de oferecer emprego a a esposa, viúva. “Eu fiz tudo por ele!”, gritou quem já cumpriu pena por algum crime co­ a mãe, agora de cinco filhos. “Bandido bom metido no passado. é bandido morto!”, comentou a reportagem, Medidas de segurança, o Brasil todo pre­ um dos senhores que jogava dominó entre cisa. Porém é preciso crer que segurança não cigarros na praça central. E lá se foi mais uma se resume em polícia nas ruas, que enquanto morte registrada na cidade. tivermos esse pensamento, continuaremos Essa história é fictícia de problemas muito repetindo o mesmo erro do pai alcoólatra, da reais e comuns. O rapaz existe e morre mais mãe grávida do sexto filho, da tia doente, da de 100 vezes por ano em Londrina, seja por avó beata boca-suja, do tio que ofereceu em­ dívida de drogas ou por problemas familiares. prego, do apresentador de TV e do senhor Ele era criminoso porque roubava o direito de comentarista da praça central, apenas críti­ ter paz, de caminhar pelas ruas sem medo e cos sem iniciativa.


Rodo Cotidiano Sobre o grito de socorro e a surdez

N

a última semana, saiu na Fo­ de agir da nova sociedade. Seria mais fácil lha de São Paulo a notícia de seguir outros caminhos, como fizeram os uma jovem que morreu após culpados pela morte da garota, que apesar um assalto. Ela tinha 15 anos e do feito, não sentiram peso na consciên­ caminhava com o namorado, 24, por uma cia: “é o que acontece com quem reage”, Rua em São Paulo. Eles foram abordados disseram em defesa. É o que acontece… por dois rapazes, enquanto outro esperava Diferentes formas de levar a vida. De um num carro roubado. Um deles estava ar­ lado, a de quem tenta viver honestamente, mado, puxou a bolsa e disparou dois tiros de outro, de quem decide dar o troco. Entre na moça. Os três fugiram logo em seguida. eles, a passividade. Um grande número de Já comentei a morte nessa mesma co­ pessoas que simplesmente não se impor­ luna. A intenção agora é comentar a vida, tam. Desde que não sejam afetadas. uma em especial, que parece nunca ter É espantoso ver que se a morte do exis­ tido. Alguns veículos passaram pela outro parece não preocupar, com que im­ via, o namorado pediu socorro, entrou na portância então é tratada a vida dessa pes­ frente dos carros, mas ninguém parou para soa? A individualidade só é boa para os ajudar. Os vizinhos, moradores dos pré­ que querem ficar longe dos problemas so­ dios, demoraram mais de 10 minutos para descer. No hospital, não foram Um jovem cheio de atendidos com urgência. A namorada esperança, de vontade e morreu. Há na matéria um depoimento co­ generosidade, recebido com movente. O jovem contou os planos o mais puro egoísmo, marca que tinham e as dificuldades que pas­ savam, morando juntos, de favor, nos desse estranho jeito de agir fundos de uma academia. Pelo de­ da nova sociedade. poimento, os dois levavam uma vida difícil, mas continuavam sonhando. “Para muitas pessoas que estão no ciais, que ao que parecem, não são deles. poder, eu sou um lixo. Mas meu propósi­ Enquanto isso, milhões de brasileiros gri­ to sempre foi ajudar as pessoas. Ter uma tam por socorro e não são ouvidos. sociedade melhor”, talvez o servente de Caroline talvez não fosse salva com pedreiro tenha explicado nessa frase ajuda. Talvez sim. Para alguns, viveu pou­ que, apesar de todos os obstáculos, suas co, para outros, nunca existiu, nem mesmo escolhas­ainda seguem ideias positivas, para o governo que é responsável por ga­ otimistas, lutando por uma vida melhor e rantir o mínimo de dignidade. Dignidade… justa. É esse o motivo que leva o namorado a Um jovem cheio de esperança, de von­ continuar lutando e que, apesar do grito tade e generosidade, recebido com o mais ainda não ouvido, continua tocando a vida, puro egoísmo, marca desse estranho jeito mesmo que ignorada.

A notícia da morte de Caroline pode ser vista no link do Peroba Prosa: www.perobaprosa.tumblr.com



Especial

Infância

Aquela outra realidade

A

queles olhos me in­ trigavam. Não estavam apenas me vendo. Olhavam e analisa­ vam. Rastreavam. Julgavam. Não transmitiam nenhuma expressão, estavam apenas fixos em mim, eu sei. E eu, mesmo a poucos centí­ metros, não me arriscaria a tomar nenhuma atitude. Não estou apto para entender a mente por trás daqueles olhos. Ninguém está. Nem mesmo seus companheiros de bando o compreendem. Arriscaria a dizer que ele próprio não saberia o que pensa ou planeja, se é que realmente já tenha uma estratégia traçada. Seu objetivo se resume, na verdade, em simplesmente olhar e aprender. Não quer se entender e não quer que ninguém o entenda ou tente. Faço bem em deixar ele se afastar assim, aos poucos, sem pressão ou ações precipitadas. Apesar dessa sua aparência inocente e seu jeito desinteres­ sado, é uma criatura fascinante, em uma fase perfeita. Vai, pode sair correndo despreocupado, afi­ nal, já tem tudo o que pode querer e não precisa nem se preocupar com as dores do mundo. Não tem problemas financeiros, amorosos

Erick Lopes

ou profissionais e sei que não está nenhum pouco a fim e saber deles. É um alívio saber que está ape­ nas de passagem por aqui. Seu temperamento não é fácil de li­ dar e o mundo não suportaria que ele permanecesse. Mesmo que os do seu grupo não se pareçam, não se entendam ou sequer se co­ muniquem, podem ser mortais se unidos. E ainda há quem acredite que tragam o bem... Não estão dando a mínima para o seu bem. São egoístas e aproveitadores. Umas sanguessugas. Podem não dizer uma palavra, mas sua lábia é infalível. Sabe-se lá que poderes emergem daqueles olhos, se é in­ tencional ou apenas acontece, mas as pessoas ficam enfeitiçadas por aquele olhar. Talvez se tivesse ­consciência do poder que tem, es­ taríamos perdidos. A cada passo que esse ser dá na direção oposta ao meu banco, fico mais aliviado. Vai, corre, mons­ trinho, aproveite sua vida curta. Não se preocupe mesmo com esses simples humanos a sua volta. Você não tem tempo pra isso. Olhando pra você assim, todo poderoso, sin­ to vontade de voltar a ser assim, criança também.


Esperando, esperando…

E

u repetia sempre: — Pai, dez para as seis eu saio, você vai estar aqui? E ele: — Vou, vou estar aqui. Nunca estava. Mesmo assim todos os dias eu repe­ tia minha pergunta antes de sair do carro, para entrar na escola e ele repetia sua resposta. Não sei dizer ao certo que tipo de insegurança era a minha. Era um medo de criança mesmo, de ser abandonada, de nunca mais voltar para casa, essas coisas. Mas não era de tudo exagerado o meu medo. Como eu disse, o sinal da escola tocava exatamente 17h50, papai sempre me deixava cerca de uma hora e meia esperando. Isso para uma criança desesperada é mais que certeza de abandono. Era um colégio de freiras, normas rígidas. Para se ter uma idéia até a pedagoga se chamava Norma. E rezava-se bastante, antes, durante e depois das aulas. Dias de prova então, era um terço antes de tudo começar. Tudo bem, não eram tantas rezas assim, mas quase. Apesar de tudo isso, era uma escola tranquila, grande, todos brincavam e se davam bem com as Irmãs que coordenavam. Um medo, porém, sem­

Giovanna Machado

pre rondava nós estudantes, quando os pais demoravam para buscar as crianças, elas iam para a casa das freiras. E nin­ guém sabia o que elas faziam com as crianças lá. Não se sabia se era bom ou se era ruim, mas eu é que não queria descobrir. Como papai sempre demorava, a secretária já me conhe­ cia. Quase todos os dias, a coitada dizia que não podia esperar mais: — Vou esperar até as sete e meia, depois você vai ficar com as irmãs. Quando você faz esse tipo de “ameaça”, incluise qualquer experiência que uma criança nunca fez e que não parece ser boa. E o que se passa naquela cabecinha não pode­ ria ser explicado nem nos mais terríveis filmes de terror. Mas também todos os dias a “luz da salvação” aparecia. A luz do carro do meu pai refletia nos vidros das janelas e eu já até reconhecia o formato dos faróis de um Fiorino cinza, com duas listras laterais. Era meu pai que aparecia para me salvar. Nem sei se me despedia, sei que corria dali… Nunca briguei ou reclamei com papai da demora. Nesses momentos meu sentimento era somente de alívio, por continuar não sa­ bendo o que as freiras fariam comigo… Até hoje não sei.


Ainda Infância

Q

Lais Taine

uando criança, a minha única preocupação era com o dia escurecendo. Era hora de pegar os chinelos na calçada e voltar para a casa com o pé sujo de piche. O mesmo pé em que eu fu­ rei subindo numa goiabeira, foram três pontos que, quando retirados, fizeramcócegas, mas eu gritava uma dor inexis­ tente. Dor existente era quando eu ralava o joelho ou lascava a ponta do dedão do pé. Isso acontecia porque eu não gos­ tava mesmo de correr de chinelos. Também doía quando a gente perdia a bola em algum quintal com cachorro bravo ou quando chovia e o céu impedia a correria na rua. Dentro de casa, um cobertor por cima das cadeiras virava cabana enquanto a chuva respingava no vidro da janela. Hoje recebi um presente, o passado. Minha madrinha me enviou, via internet, uma foto digitalizada de quando eu era bebê, uma raridade. Naquele tempo meus pais não tinham uma câmera fotográfica e, mesmo que tivessem, os filmes de 36, 24, 12 poses, da época, não podiam ser des­ perdiçados, talvez isso explique porque tantas fotos posa­ das em dias especiais. A minha era de um profissional que estava ali, como quem não queria nada, em um domingo de batismo na igreja matriz de Americana (SP). Essa foto deu início a uma sessão nostalgia, peguei os álbuns empoeirados e revivi minhas amizades, a escola, as brincadeiras na rua... E calculando o que fui, em pouco eu mudei. Em casa, continuo andando com os pés descalços mesmo em dias frios. Fico apreensiva em quintais com ca­ chorro bravo e dias nublados me entristecem, mas ver a chuva respingando na janela me encanta. Se a infância é uma fase de percepção do mundo através dos sentidos, entendo que, apesar dos conhecimentos ad­ quiridos, os sentimentos continuam os mesmos. Na infância eu descobri o meu mundo e o carrego até hoje. A ingenui­ dade se foi, mas a infância continuará em mim. Até meus pés se enrugarem pisando descalços no chão frio, até os respingos de chuva na janela continuar me encantando.


A criança que a gente é, o adulto que a gente vai ser

Isabela Cunha

Qual foi a última vez em que você viu um grupo de meni­ nas pulando corda, elástico ou amarelinha? Ontem, na mesa do jantar, eu e minha mãe, que tem 47 anos, falávamos sobre a infância e todas as coisas que as crianças – elas que não nos ouçam as chamando assim – estão, na nossa opinião, per­ dendo. Começou com a nostalgia clássica. Minha mãe contando como eu lasquei o dedão do pé três vezes num mesmo dia de férias, como eu comi sabão em pó e tatu-bola. Dois tatus. Como eu caí num buraco enquanto a casa da minha avó era aterrada, cortei o queixo tentando escorregar em um toboá­ gua que estava desligado. Essas coisas. Minha mãe, na época dela, brincava no terreiro da fazenda, caçava vaga-lume, dava “aula” para os irmãos. Tudo, claro, depois de estudar e ajudar a mãe dela nas tarefas de casa, que não eram poucas. Minha mãe também vendia ovos de galinha pra comprar os botões dela e, por volta dos doze anos, já estudava à noite. Aí começamos a pensar nos meus primos mais novos. Chei­ os de tablets, celulares, computadores, games. Um deles tem até um kit-DJ. De verdade. Ele também tem hiperatividade e reclamações no prédio, na escola, no clube. Ele não suporta ler e, aos trêsanos, batia a cabeça na parede se era submetido a qualquer castigo. Qualquer. Seria cômico, se não fosse trági­ co e se ele não fosse se tornar um adulto um dia. Ele é uma simpatia enquanto tudo está certo. Foi morar com o pai – que ficou responsável por “dar um jeito” nele e, parece, as coisas estão dando certo. Ele depende de acom­

panhamento psicológico e nutricional. É um pequeno obeso que chora quando não pode repetir a sobremesa, mas está emagrecendo, gastando energia na natação - e no desespero do porteiro. Meu outro primo (não tenho primas mais novas), é um pouco diferente. Está na natação, não tem tablets, mas tam­ bém depende de auxilio nutricional. A mãe é cozinheira de mão cheia e não sabe dizer não ao filho único, que tem posse diária do controle da TV e não perdoa o pai por não ter com­ prado um carro zero. “Você não sabe comprar, papai”. Ele sabe, só não sabe quanto custa. Ainda tem um terceiro primo, que quer ser cientista. Gosta de soltar umas informações a la Discovery Chanel na mesa do almoço. Não para de falar, de correr, de imitar bichos, ganhou um ovo do Ben 10 essa páscoa e ofereceu a todo mundo. E pediu, também, na maior cara de pau. Eu não sei dizer se existe infância certa ou errada. E se algum dos meus primos será mais feliz que os outros. Sei que minha mãe e eu concluímos que tive sorte com o sabão em pó, com os tatus, com os machucados. E que essas crianças, que se maquiam, vão ao shopping, choram por tablets, talvez não estejam se preparando de verdade para o futuro e as frus­ trações que os aguardam. A saída? Eu também não conheço. Talvez seja uma amarelinha touch, um aplicativo para pular corda. Isso ou um mundo que se satisfaça com adultos que des­conhecem uma cantiga de roda. Que nunca tiraram as cas­ cas dos seus próprios machucados.


Minha infância, minhas fases Roger Bressianini

Só fui me dar conta do quanto é bom ser criança depois de adulto. Isso porque a infância é algo efêmero, sutil, quase como um sopro sem direção ou objetivo. Entender questões como o amor, a existência e a morte é tão difícil para uma criança que pode fazê-la envelhecer. Aliás, desconfio que é isso o que acontece com os seres humanos. Quando criança, não me dava conta da necessidade de se ter alguém para amar durante a vida e a velhice. Não en­ tendia os filmes românticos nem o comportamento dos casais apaixonados que via pela rua. Apenas admirava com a natu­ ralidade de quem vê com frequência. Essa fase, hoje chamo de inocência. Já na adolescência, tinha certeza de que a vida valia por si só e nada pedia explicação, afinal o que importava era a perspectiva de sucesso nas investidas amorosas. O sexo oposto começava a interessar na mesma medida em que intrigava, e isso já era motivo suficiente para evitar divagações acerca de outros temas. A essa fase dou o nome de ignorância. Depois de adulto e já um tanto experimentado pela vida, percebi a importância do amor, mas passei a questioná-la de maneira insistente, quase perturbadora. A certeza da perda de pessoas próximas se tornou uma via que não posso evitar. Se um dia me faltar companhia, estarei ausente do mundo, sem ligação com o externo que me reconhece. Se faltar amor, es­ tarei rancoroso com algo que admirava quando criança. E por fim, se me faltar a morte... Não, a morte não faltará. E certeza é o nome dessa fase. Nessas horas, nada como ser criança.


artigo por Roger Bressianini

Twitter proibido, pensamento não

H

á algum tempo é recor­ rente na imprensa bra­ sileira o debate sobre a importância de fiscalizar – ou vigiar – as redes sociais e o com­ portamento dos internautas. A verda­ deira eficiência e os motivos reais para esse tipo de intervenção é o que deve ser posto em análise nesse momento. Dois fatos recentes podem ser discutidos sob essa perspectiva: a morte de dois torce­ dores envolvidos em briga de torcidas organizadas em São Paulo e a proibição pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) da utilização do Twitter por candidatos durante o período eleitoral no país. É bem verdade que, há alguns sécu­ los, o planeta abrigava menos pessoas do que o Facebook comporta hoje, mas o potencial de mobilização desses ca­ nais de comunicação ainda não pode ser precisamente dimensionado. Para o diretor do Departamento de Defe­ sa dos Direitos do Torcedor, Paulo Castilho,­é necessário que a polícia faça uma espécie de rastreamento nas redes sociais para identificar membros de torcidas organizadas que utilizam a rede para definir data e hora de con­ frontos. Segundo a Polícia Militar, uma das torcidas era escoltada por apenas duas viaturas no momento em que 500 torcedores rivais entraram em conflito. Há aproximadamente dois meses, uma briga de torcidas no Egito deixou mais de 70 mortos. O governo egípcio 98 | Amostra | Dezembro/2012

tratou logo de admitir falha no sistema de segurança do estádio e não colocou em questão a utilização do Facebook pelos torcedores/assassinos. Cabe lembrar que o Brasil já experimentou inúmeros casos de brigas de torcidas organizadas antes mesmo da genial in­ venção de Mark Zuckerberg. Já sobre a proibição do Twitter para os candidatos no período eleitoral, é cabível questionar a quem a decisão irá afetar. De acordo com a medida to­ mada pelo TSE, há uma idéia implícita de que as redes são utilizadas para a divulgação de conteúdo com grande probabilidade de não corresponder à realidade. Será que divulgar suas propostas e idéias – além de ampliar o campo de debate – não seria um legíti­ mo direito dos bons candidatos? Seria o caminho mais rápido a intervenção na livre circulação de ideias? A proibição da circulação livre de ideias era a forma pela qual a Igreja Católica conseguia manter seus fiéis sob o domínio dos sacerdotes na Idade Média. Além disso, o período estático que a Idade Média proporcionou às ciências e às artes no ocidente tam­ bém é um sinal de que a proibição da expressão pode se tornar uma perigosa ferramenta de controle da sociedade. Cabe ao cidadão se manifestar, de ma­ neira livre, para decidir se considera justas essas amarras que ocasional­ mente são impostas.




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