O maior laboratório do mundo

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VENDA PROIBIDA

ASSINANTE

Nº 147 ■

EXEMPLAR DE

Maio 2008

Maio 2008 Nº 147 ■

INOVAR PARA ´ DA ALEM TECNOLOGIA ANIMAIS TRANSGÊNICOS NA PRODUCAO DE MEDICAMENTOS

PESQUISA FAPESP

ENTREVISTA JOSE´ DE SOUZA MARTINS

O maior

laboratório do mundo MAIS POTENTE ACELERADOR DE PARTÍCULAS ESTÁ PRONTO PARA FUNCIONAR >> ESPECIAL EXPOSICAO REVOLUCAO GENÔMICA II capa pesquisa assina-147.indd 1

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AFP/DDP/JENS SCHLUETER

IMAGEM DO MÊS

Bach

inédito A sorte tem sorrido para os apreciadores da obra de Johann Sebastian Bach (1685-1750) nos últimos tempos. Em 2005 descobriram uma ária inédita do compositor alemão e há pouco mais de 2 meses foi divulgada uma imagem tridimensional de seu rosto, reconstituído a partir do crânio. Agora pesquisadores da Universidade Martin Luther de Halle, Alemanha, encontraram uma composição para órgão da qual só se conheciam os primeiros cinco compassos. A partitura tem de 5 a 7 minutos, foi composta entre 1705 e 1710 e é uma transcrição da fantasia sobre a composição coral nº 178. Bach separou os versos do coral e trabalhou partes deles para órgão, segundo explicou Stephan Blaut, autor da descoberta junto com Michael Pacholke.

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CERN

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MIGUEL BOYAYAN

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BRAZ

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CAPA

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> CAPA

> ENTREVISTA

> POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

18 Quase 10 mil

pesquisadores, entre eles 68 brasileiros, fazem os ajustes finais no maior acelerador de partículas do mundo, que começa a funcionar este ano

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Para José de Souza Martins, as pessoas que estão à margem da sociedade são as melhores informantes para uma etnografia do que está acontecendo

34 COMPETITIVIDADE

Estudo mapeia estratégias de sete países que produzem inovações de classe mundial 38 INDICADORES

> ESPECIAL II 61 REVOLUÇÃO GENÔMICA

Debates e embates da ciência

Avaliação revela alto grau de eficiência em quatro programas da FAPESP

42 POLÍTICAS PÚBLICAS

Mapa do Biota-FAPESP vira parâmetro para retirada de verde nativo em São Paulo 43 PARCERIA

FAPESP e governo federal vão financiar projetos em bioenergia e mudanças climáticas 44 MEDICAMENTOS

Butantan aguarda aval da Anvisa para fornecer ao Ministério da Saúde fármaco que salva bebês prematuros

> SEÇÕES 3 IMAGEM DO MÊS 6 CARTAS 7 CARTA DA EDITORA 16 MEMÓRIA 28 ESTRATÉGIAS 50 LABORATÓRIO 79 SCIELO NOTÍCIAS .........................

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> POLÍTICA C&T

> AMBIENTE

> TECNOLOGIA

> HUMANIDADES

REPRODUÇÃO

46

> CIÊNCIA

WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR

VLADIMIR BENINCASA

> EDITORIAS

LUCIANO MOREIRA/FIOCRUZ

96

84

> AMBIENTE 46 AMAZÔNIA

Abertura para especialistas em ciências sociais, nacionalização e reestruturação orçamentária marcam nova fase de programa de pesquisas

> CIÊNCIA 54 GEOLOGIA

> TECNOLOGIA

> HUMANIDADES

84 BIOTECNOLOGIA

Supercontinente que existiu 1 bilhão de anos atrás ganha novas formas

96 ARQUITETURA

Animais transgênicos produzem proteínas destinadas à fabricação de medicamentos

102 ANTROPOLOGIA 58 NEUROLOGIA

88 FÍSICA

Por que adoramos comer tortas, bolos e outros doces

Fibras especiais, como as de cristal fotônico, ampliam uso desses materiais para além das telecomunicações 92 EDUCAÇÃO

Carteiras escolares reúnem tela sensível ao toque para a escrita manual e computador

............................. 80 LINHA DE PRODUÇÃO 110 RESENHA 112 FICÇÃO 114 CLASSIFICADOS

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Pesquisa revela riqueza da vida nas fazendas de café paulistas

Biografia intelectual de Claude Lévi-Strauss mostra vida de dilemas 106 LINGÜÍSTICA

Lendas urbanas disseminadas pela internet propagam pânico pela rede

CAPA MAYUMI OKUYAMA FOTOS CERN

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C ARTAS cartas@ fapesp.br

Extremistas britânicos Algumas reflexões sobre os textos “Radicalismo exportado” e “Doenças negligenciadas”, da seção Estratégias Mundo (edição 146). A ética é um campo do conhecimento que, por ser “humano, demasiadamente humano”, abarca criticamente nossa atuação mundana sob diversos aspectos. Abrange, portanto, a questão da defesa dos direitos dos animais (uma vez que nós utilizamos outros seres vivos na pesquisa científica). A alusão a Nietzsche foi feita para deixar claro que não nos cabe ponderar sobre a eticidade de um leão prestes a atacar sua presa na savana. Que há tortura animal pelo mundo afora não existe dúvidas. Como resolver então tal contenda sobre os direitos dos animais? Defender a total não utilização de animais nos estudos científicos é assumir, no mínimo, uma posição muitas vezes contraditória. É pensar talvez de forma fragmentária a ciência e a própria paradoxal condição humana. Neste contexto, num mundo de incertezas no qual temos de inventar a melhor posição possível, os animais de experimentação são fundamentais à medida que se busca como meta final o apaziguamento do sofrimento humano. A questão das doenças negligenciadas pela indústria farmacêutica (por afetarem, sobretudo, os países pobres) talvez seja um protesto mais adequado para os extremistas britânicos. Thiago Paes de Barros de Luccia

ras situações. Com base nela alguém poderia dizer a uma mulher grávida, “Esta coisa dentro de você não é uma vida humana, é uma massa de células que aguarda virar gente quando sair, apesar de se mover, de sorrir, de chorar e de sonhar”. Ou ainda, já que o funcionamento do cérebro é tão fundamental para que se considere a vida, poderíamos dizer a quem tem um filho com qualquer tipo de deficiência mental algo como, “Seu filho é menos um ser humano vivo do que eu, porque meu cérebro funciona melhor do que o dele”. Em outras palavras, parece uma versão moderna do biodeterminismo, que no passado julgava e condenava apenas pelo formato do crânio ou a cor da pele. O que mais salta aos olhos nesse debate, portanto, não é a discussão entre os defensores e os contestadores do uso de células-tronco embrionárias, mas a patente falta de metodologia científica de ambos os lados. Quando a ciência se propõe a estudar um fenômeno, ela estabelece hipóteses, faz testes exaustivos, analisa os resultados e retira conclusões. Na questão do início da vida humana, vemos que todos os debates se baseiam em pressuposições (conclusões) que pretendem se tornar o fenômeno à custa de muita conversa.

Referente ao texto “Em compasso de espera...” (edição 146), algumas considerações podem ser feitas para desviar os holofotes e iluminar também o lado obscuro das respostas fáceis para perguntas complexas. Por exemplo, a frase que pretendeu responder a uma dessas perguntas, “A vida humana é o fenômeno que ocorre entre o nascimento com vida e a morte cerebral”, tem conseqüências importantes em inúme6

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Thomaz Xavier Carneiro PUC-RS Porto Alegre, RS

Incubadoras A respeito da reportagem “Nascedouro de negócios’’ (edição 145), a relevância dos dados apresentados é incontestável para que se possa difundir a idéia de que incubadoras de empresas no Brasil é possível. Visto que o país não tem nenhum histórico de iniciativas empreendedoras, é necessário perpetuar na mente de jovens universitários o sucesso empresarial desperto por atitudes assim, fazendo-os se sentirem aptos a contribuir para o desenvolvimento tecnológico e econômico do país. Bruna Ribeiro C. Monti

Itajubá, MG

Cerrado Rogério Pietro Mazzantini

São Paulo, SP

Revista

Santos, SP

Células-tronco embrionárias

desconto aos bolsistas de pós-graduação, voltei a assinar a revista. Adiciono aqui uma sugestão, seria interessante alterar a embalagem de envio da revista via correio, que é plástico comum, por forma menos impactante como o papel comum ou o papel reutilizado.

Gostaria de manifestar meu apreço por Pesquisa FAPESP, publicação de qualidade ímpar na mídia brasileira. Comecei a receber a revista pelo convênio que havia com a Novartis na divulgação da rede TropiNet, porque minha mãe é pesquisadora em doenças tropicais. A revista, desde então, fez parte inclusive de minha formação acadêmica – a levei várias vezes para discutir assuntos em sala de aula (sou graduado em biologia). Então mudei-me para outra cidade a fim de realizar o meu mestrado e não consegui ficar muito tempo sem ela. Por conta do incentivo financeiro que é o

Os trabalhos desenvolvidos no Cerrado pela Estação Ecológica de Itirapina, em São Paulo, têm grande importância e revelam riquezas que a biodiversidade desse bioma possui (“Falcões do Cerrado”, edição 145). No entanto, são necessárias medidas urgentes na conservação dessa paisagem, pois a crise que ocorre no Cerrado é extremamente grave e sugere cuidados imediatos. Marte Ferreira da Silva

Atibaia, SP

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-m ail cartas@ fapesp.br,pelo fax (11) 3838-4181 ou para a rua Pio XI,1.500,São Paulo,SP, CEP 0546 8-9 01.As cartas poderão ser resum idas por m otivo de espaço e clareza.

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C ARTA D A E D ITORA

FUNDAÇ Ã O DE AMPARO À PESQ UISA DO ESTADO DE SÃ O PAULO

Vão começar as colisões

CELSO LAFER

PRESIDENTE JOSÉ ARANA VARELA

VICE-PRESIDENTE

Mariluce Moura - Diretora de Redação

CONSELHO SUPERIOR CELSO LAFER,EDUARDO MOACYR K RIEGER, HORÁ CIO LAFER PIVA,JACOBUS CORNELIS V OORW ALD,JOSÉ ARANA VARELA,JOSÉ DE SOUZ A MARTINS,JOSÉ TADEU JORGE,LUIZ GONZ AGA BELLUZ Z O,SEDI HIRANO,SUELY V ILELA SAMPAIO, VAHAN AGOPYAN,YOSHIAK I NAK ANO CONSELHO TÉ CNICO-ADM INISTRATIVO RICARDO RENZ O BRENTANI

DIRETOR PRESIDENTE CARLOS HENRIQ UE DE BRITO CRUZ

DIRETOR CIENTêFICO JOAQ UIM J.DE CAMARGO ENGLER

DIRETOR ADMINISTRATIVO

ISSN 1519 -8774

CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQ UE LOPES DOS SANTOS (COORDENADOR CIENTÍFICO), CARLOS HENRIQ UE DE BRITO CRUZ , FRANCISCO ANTONIO BEZ ERRA COUTINHO, JOAQ UIM J.DE CAMARGO ENGLER, MÁ RIO JOSÉ ABDALLA SAAD,PAULA MONTERO, RICARDO RENZO BRENTANI,W AGNER DO AMARAL, W ALTER COLLI DIRETORA DE REDAÇ Ã O MARILUCE MOURA

EDITOR CH EFE NELDSON MARCOLIN EDITORA SÊ NIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS EDITORES EX ECUTIVOS CARLOS HAAG (HUMANIDADES), FABRÍCIO MARQ UES (POLÍTICA), MARCOS DE OLIV EIRA (TECNOLOGIA), RICARDO ZORZ ETTO (CIÊNCIA) EDITORES ESPECIAIS CARLOS FIORAVANTI,MARCOS PIV ETTA (EDIÇÃO ON-LINE) EDITORAS ASSISTENTES DINORAH ERENO,MARIA GUIMARÃES REVISÃ O MÁ RCIO GUIMARÃES DE ARAÚ JO,MARGÔ NEGRO EDITORA DE ARTE MAYUMI OK UYAMA ARTE JÚ LIA CHEREM,MARIA CECILIA FELLI FOTÓG RAFOS EDUARDO CESAR,MIGUEL BOYAYAN SECRETARIA DA REDAÇ Ã O ANDRESSA MATIAS TEL: (11) 3838-4201 COLABORADORES ABIURO,ANA LIMA,ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS),BRAZ, DANIELLE MACIEL,FERNANDO DE ALMEIDA,GEISON MUNHOZ, GONÇALO JÚ NIOR,HÉLIO DE ALMEIDA,LAURABEATRIZ , LAURA DAV IÑ A,YURI VASCONCELOS,XICO SÁ

OS ARTIGOS ASSINADOS NÃ O REFLETEM NECESSARIAM ENTE A OPINIÃ O DA FAPESP É PROIBIDA A REPRODUÇ Ã O TOTAL OU PARCIAL DE TEX TOS E FOTOS SEM PRÉ VIA AUTORIZ AÇ Ã O

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FAPESP RUA PIO X I, Nº 1.5 00, CEP 05 468-901 ALTO DA LAPA – SÃ O PAULO – SP SECRETARIA DO ENSINO SUPERIOR GOVERNO DO ESTADO DE SÃ O PAULO

INSTITUTO VERIFICADOR DE CIRCULAÇ Ã O

N

a carta da edição de janeiro, por uma série de razões e bem fincada nas reportagens que então destacava, falei de meu apreço pelos começos. E agora, espicaçada pela capa desta edição, corro o risco da repetição inevitável porque não há como fugir da idéia de que começos, em especial daqueles projetos raros, preciosos por sua admirável grandiosidade e ousadia, são mesmo extraordinariamente excitantes. Imagino que para qualquer ser humano a sensação, ou melhor, a clara consciência de estar em dado momento participando do nascimento de algo fundamental, em termos individuais ou coletivos, pode ter uma dimensão tão espantosa que até atinge o inebriante. Mas em relação a essa categoria mais ou menos particular de pessoas que são os jornalistas, mais do que imaginar, sei que esse se ver no ponto de origem das coisas e poder relatá-lo em caráter público cria um sentimento poderoso de participação na própria tessitura da história dos homens. E esse sentimento, por exagerado que possamos achá-lo, para o bem ou para o mal, termina por moldar uma certa faceta do orgulho profissional que marca jornalistas que se lançam com afinco ao exercício pleno de seu ofício, mesmo que eles não o confessem nem sob tortura. Fico a pensar como nosso editor de ciência, Ricardo Zorzetto, se sentiu ao deparar o LHC, sigla de Large Hadron Collider, o maior acelerador de partículas do mundo, ou os quatro gigantescos detectores de partículas que dele fazem parte, tudo isso e muito mais num túnel subterrâneo com 27 quilômetros de extensão a 100 metros da superfície, no Centro Europeu de Pesquisas Nucleares, o famoso Cern, em Genebra, Suíça. Fico curiosa a respeito do que pensou então sobre o futuro da física de partículas amparada por tão portentosa infra-estrutura. Anteviu-o luminoso a revelar os segredos da origem de nosso Universo? Ele não detalhou seus sentimentos daquele momento, mas estou convencida de que irrigam muito positivamente a reportagem que produziu, preocupando-se inclusive com as possibili-

dades da participação brasileira no LHC. Vale conferir, a partir da página 18. Dentro dessa preocupação de observar o país no cenário internacional da produção de conhecimento – e de riquezas – foi que se estruturou a pesquisa Mobit – Mobilização Brasileira para a Inovação, cujo resultado, divulgado no final de abril, é um verdadeiro diagnóstico sobre o que aproxima e o que separa os ambientes acadêmico e empresarial no Brasil daqueles de sete países investigados que produzem hoje pesquisa e inovação de classe mundial. Os detalhes mais importantes do estudo são relatados pelo editor de política, Fabrício Marques, a partir da página 34, incluindo o conceito de inovação a que o coordenador da pesquisa dá destaque, muito além da idéia apenas de tecnologia a que de hábito é associado. Alguns conceitos de fato parecem estreitos e velhos para conter a mobilidade do conhecimento entre ciência, tecnologia e inovação. Sob que rubrica tratar, por exemplo, os animais transgênicos que mais e mais são criados já não apenas como modelos para o estudo aprofundado de doenças que acometem os seres humanos, mas como verdadeiras miniusinas de determinadas substâncias, especialmente fármacos? A reportagem sobre o tema, procurando localizar os grupos de pesquisa que no Brasil estão já nesse front, elaborada pelo editor de tecnologia, Marcos de Oliveira, abre exatamente a seção de tecnologia na página 84. Mas poderia transitar por outras editorias da revista sem maiores problemas. Para finalizar, recomendo a leitura muito atenta da entrevista do sociólogo José de Souza Martins, a partir da página 8, da qual vale a pena pular para a página 102, ler um pouco sobre Lévi-Strauss e sair com uma visão mais gratificante das produções das ciências humanas entre nós. Atenção depois à reportagem de Carlos Haag, editor de humanidades, sobre um estudo que revela muito da riqueza do passado nas fazendas paulistas de café, na página 96, e, claro, ao segundo suplemento especial Revolução genômica. PESQUISA FAPESP 147

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E N TRE V ISTA

José de Souza M artins A sociologia que exam ina

as m argens, os sonhos e a esperança Mariluce Moura e Marcos de Oliveira

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há pouco lançado numa segunda edição pela editora Contexto. É um dos 27 livros publicados por Martins, considerado por ele mesmo central em sua obra sociológica. Logo depois a Editora 34 lançou A aparição do demônio na fábrica: origens sociais do Eu dividido no subúrbio operário. Em tempo: Martins foi professor da Cátedra Simón Bolívar na Universidade de Cambridge, na Inglaterra, e professor visitante nas universidades da Flórida, nos Estados Unidos, e de Lisboa, em Portugal. É fotógrafo amador e faz parte do Conselho Superior da FAPESP. Uma versão mais completa desta entrevista está disponível no site de Pesquisa FAPESP (www.revista pesquisa.fapesp.br). ■ Gostaria de começar por um comentário de caráter estético: acho surpreendente a escrita de um sociólogo ter a beleza que seu texto exibe, por exemplo, em A sociabilidade do homem simples. Como é essa relação entre pesquisa sociológica e linguagem? — Eu aprendi sociologia no grupo do Florestan Fernandes, fui aluno dele. E o Florestan era famoso por ter uma linguagem absolutamente ácida. Isso era muito próprio da sociologia dos anos 1950, 60. O Talcott Parsons fez assim e era sucesso, portanto. Até o dia em que Wright Mills, outro sociólogo importante, disse que era preciso traduzir Parsons para o inglês (ora, ele tinha escrito em inglês!). Parsons foi derrotado na revolta estudantil de 1968, quando a rebelião juvenil mostrou que a sociologia daquele jeito não estava com nada. Há um filme com Anthony Quinn [R. P. M., 1970], em que ele é um professor de sociologia num campus universitário inglês e, em determinada cena,

está andando com o livro mais complicado de Parsons, Social System, embaixo do braço, em meio àquela revolta estudantil. É uma cena emblemática porque denuncia o envelhecimento de uma sociologia muito formal, muito positivista, na maneira de tratar as coisas. Eu tive sorte de ter professores que tinham preocupações com a linguagem, até por influência de Antonio Candido, que é sociólogo também, mas lida com a literatura, é um crítico literário que sempre escreveu de uma maneira muito clara e elegante. Mas a clareza se aprende também no trabalho de campo. O sujeito que se torna um sociólogo de gabinete acaba dialogando com ele mesmo, o que é muito ruim para a sociologia e as ciências em geral, porque ele fala para ninguém. No trabalho de campo, não se pode fazer perguntas teóricas para as pessoas numa linguagem teórica. E o pesquisador depois tem que ser o tradutor da linguagem popular para a linguagem científica, é essa a sua função. Então, como eu fiz muito trabalho de campo e, além disso, venho de uma família operária, pobre, eu sempre soube que aquela linguagem hermética tinha algum problema de tradução e de compreensão. Tenho sorte de estar no meio de duas culturas, a erudita, acadêmica, de um lado, e a cultura popular. Virei, digamos assim, um intérprete lingüístico. ■ Mas, além disso, tem um certo gosto, prazer mesmo, na lida com as palavras. — Ah, sim, porque gosto de ler, valorizo muito a literatura e acho que a sociologia, além de uma ciência, em sua expressão é também uma forma literária. O sociólogo não faz uma fórmula que explica

MIGUEL BOYAYAN

A

escrita do professor José de Souza Martins, 69 anos, é de surpreendente beleza, rara em textos sociológicos, a par de sua contundência analítica. A prosa, ou melhor, a conversa do sociólogo é densa, mas fluente, caudalosa, envolvente, pronta para fazer o interlocutor descortinar novas experiências, vislumbrar outros mundos, entregar-se ao inesperado das histórias, uma saindo de dentro da outra à maneira das narrativas que beberam na fonte das mil e uma noites. E tanto é assim que 3 horas de conversa com esse professor titular da Universidade de São Paulo (USP), articulista do Estado de S. Paulo, se reproduzida na íntegra, renderia exatamente cinco entrevistas do tamanho da que ocupa as páginas seguintes. E todas consistentes, transitando das questões teóricas que assolam contemporaneamente a sociologia a seus estudos sobre linchamentos; passando das análises do subúrbio às migrações da Região Sul a Rondônia nos anos 1970; indo da própria e diferenciada trajetória pessoal desse filho de operários, ele próprio um trabalhador muito precoce, tanto que aos 11 anos já estava nessa lida de adultos, aos debates sobre modernidade, cotidianidade e o lugar dos sonhos e dos resíduos de esperança na investigação sociológica. Sim, sociológica – o professor Martins não acredita que os sonhos sejam domínio exclusivo da psicanálise e da teoria freudiana. Em meio a tamanha riqueza de reflexões, os trechos a seguir resultam principalmente de uma escolha por um dos eixos da entrevista, aquele que diz respeito ao livro A sociabilidade do homem simples, PESQUISA FAPESP 147

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algo em três páginas ou menos. Pense em Einstein: sua fórmula famosa [E = mc2] expressa tudo que ele descobriu numa época, não tem que ter estilo. No caso do sociólogo, ele precisa fazer um discurso, e pode fazê-lo complicado, daí poucas pessoas vão entender, ou pode fazer um discurso que cumpra uma das funções da sociologia, idéia da qual, aliás, Florestan gostava muito, que é de ser autoconsciência científica da realidade social. Então, eu sempre cultivei muito essa preocupação, por isso sempre tentei não só falar claramente quando tenho que fazer alguma exposição, mas também escrever claramente. Esse livro, por exemplo [A sociabilidade do homem simples], foi escrito claramente, mas passou agora por uma grande revisão. ■ A propósito, o livro é de 2000, com uma reedição agora em 2008. O senhor diz, na página 11, que ele se situa na ampla temática do reencontro possível do homem consigo mesmo, na diferença da nossa especificidade histórica e, além disso, que contém uma proposta metodológica, a de tomar o que é liminar, marginal e anômalo, como referência da compreensão sociológica. O propósito de 2000 se manteve em 2008? — Sim, o mesmo, aliás, um propósito que em termos metodológicos aparece em vários dos meus livros a partir de 1975, mais claramente. Penso que uma das coisas boas da sociologia, em geral não muito cultivada pelos sociólogos, é o seguinte: quando se faz pesquisa de campo e entrevista pessoas, o melhor entrevistado é o que está no limite, porque ele tem uma compreensão crítica da sociedade. Se ele é um sujeito absolutamente integrado, não

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JOSÉ DE SOUZ A MARTINS

Forno da Cerâmica São Caetano

percebe nada – é uma vítima da situação, mais do que um agente, um ator qualificado da situação. Já as pessoas liminares – e eu aprendi muito isso na roça – conseguem ver. Por que na roça? Porque ali o mundo já está dividido, é um mundo tradicional que está sendo invadido pela ciência, pela tecnologia, pela grande política, com o grande capital chegando... Fiz pesquisa na Amazônia na época em que as grandes empresas estavam chegando, expulsando ou matando índios, roceiros etc. A coisa começa no fim dos anos 1960, mas se torna gravíssima nos anos 70. Então, as pessoas estão no limite da sociedade delas, quer dizer, aquelas sociedades não têm chance de ir adiante, estão sendo liquidadas, destruídas, pelo desenvolvimento econômico, tecnológico e social. No mesmo modo das populações ribeirinhas do São Francisco, que nos anos 1970 estavam sendo deslocadas das margens do rio para dar lugar às barragens e tinham que mudar radicalmente toda sua vida. — Exatamente. Essa população, ainda que não o possa explicar sociologicamente, tem melhor compreensão do que está acontecendo no conjunto da sociedade, das contradições, do que uma população que mora no Jardim Paulista. Elas sabem que o seu mundo vai acabar. Sentem-se socialmente ameaçadas, não só pessoalmente. O mundo que conhecem, as crenças, idéias, valores, as técnicas de cultivo, tudo isso será posto em xeque pela expansão da chamada sociedade nacional, do mundo capitalista. Então, são os melhores informantes para uma etnografia do que está acontecendo. Se imaginamos, como as ciências sociais em geral imaginaram,

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a economia sobretudo, que o desenvolvimento capitalista em si mesmo é bom, inexorável, e que sem ele não se pode mais viver, não entendemos o que é esse desenvolvimento capitalista, quais os problemas que ele cria. E ele não cria só soluções, cria problemas para populações que não vão ser integradas. Elas não têm chance porque estão numa outra cultura, são cultas em sua cultura, mas incultas na da sociedade que avança. É essa população que pode falar melhor sobre a sociedade da qual a sociologia faz parte. A sociologia não faz parte da sociedade liminar que está sendo ameaçada, embora possa dialogar com ela, ser um instrumento para preservar as sociedades indígenas, culturas agrícolas que não deveriam ser destruídas, concepções de botânica, de biologia, que o povo tem, mas que não estão codificadas no saber dominante. ■ Uma sua descoberta, afirmada no livro, é quanto é revelador o discurso dessas sociedades liminares. E aí vêm as questões sobre a renovação do pensamento sociológico. — O discurso e a prática, ambos são reveladores. Quanto à renovação do pensamento sociológico, acho que a sociologia desprovida de um certo tipo de esperança é inútil. A sociologia nasceu marcada pela esperança, e eu não vou falar de Marx já, mas de Durkheim. Qual é o núcleo da sociologia durkheimiana? É a questão da anomia social. Quer dizer, a sociedade se transforma por vários fatores que são imponderáveis, vamos dizer assim, e não há como segurar o desenvolvimento social, o desenvolvimento econômico etc. Nesse processo, ela vai transformando em dejetos sociais – sou eu que estou usando a expres-

são, não ele – pessoas que não se ajustam às mudanças, a maioria, que têm um problema grave de compreensão do que está acontecendo e de para onde o mundo está indo, mas o mundo está indo. A grande questão que se põe para a sociologia é se essas pessoas vão caminhar com esse mundo ou vão ficar à margem. A sociologia de Durkheim não aposta na margem, aposta na integração das pessoas, daí que tenha sido, em grande parte, uma sociologia da educação. Tudo o que se sabe da sociologia da educação está ligado a isso: trata-se de uma sociologia justamente para superar os estados de anomia, ou seja, situações que as pessoas estão vivendo socialmente, mas não sabem bem como estão vivendo, não conhecem as normas e os valores da sociedade que se desenvolve. Elas se mantêm atrasadas, presas no passado. Em Marx a coisa é igual, dito de outra maneira. Falo do núcleo do pensamento sociológico de Marx, o Marx político é outra coisa. No Brasil foi Florestan quem resgatou o Marx sociólogo e o trabalho dele foi pioneiro nesse sentido, porque na Europa só foi se fazer isso 20 anos depois. ■ E há um reconhecimento da sociologia brasileira e da ciência brasileira a esse respeito? — Aí tem uma questão complicada. No caso de Marx, ele diz que o núcleo do problema é a alienação do homem. Quer dizer, a sociedade muda e o homem pensa da mudança uma coisa que a mudança não é. Ele é explorado na relação de trabalho, mas não sabe como a exploração se dá, aí ele se torna conivente com a exploração. A sociedade muda em seu conjunto e ele fica confinado numa relação de conformismo relativo que o impede de acompanhar como agente ativo as mudanças que estão acontecendo. Isso é a alienação. Quer dizer, é a incompreensão que as pessoas têm do que vivem, e não é só o operário, somos todos nós, o próprio Marx era um alienado. Se você ler as cartas que escrevia para as filhas, por exemplo, verá que são de um alienado completo, com uma incompreensão medonha do que era a condição feminina numa sociedade que estava mudando. Era repressivo, punitivo, coisa que não se esperaria de uma pessoa nãoalienada. Mas ele era alienado porque essa é uma sociedade que sobrevive em cima da alienação. Aí a sociologia de Marx diz: a sociedade se desenvolve, cria riquezas, mas aliena, coisifica as pessoas, transforma-as em objeto. E se se trata de pensar a emancipação humana, que é a grande meta das grandes convicções filosóficas e religiosas, é preciso compreender esse processo

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e dominá-lo. Como? Sociologicamente, que é o que o Durkheim também, à moda dele, estava dizendo. No caso do Max Weber, outra grande referência estrutural, histórica, da sociologia, já é diferente. Ele diz o seguinte: “Posso compreender o que é racional. O que não é racional é residual nisso tudo, compreendo racionalmente o que não é racional, mas sei que não estou penetrando, digamos, nas sobrevivências, nas tradições etc. Explico de fora, não de dentro”. Portanto, a sociologia desde o começo se debate com esse problema, que é o de decifrar a sociedade como ela é hoje, extremamente complexa, e colocar esse deciframento à disposição dos sujeitos para que eles enfrentem sem sofrimento as mudanças que são inevitáveis. E mais: que tenham controle dos rumos das mudanças, em vez de serem sujeitos passivos de uma mudança que, deixada à sua própria conta, acaba provocando injustiças, iniqüidades, devastações, destruições humanas, neuroses e tudo o que se possa imaginar. É essa a idéia de uma sociologia que é crítica porque penetra na raiz das coisas. É crítica em relação à sociedade e aponta criticamente os equívocos de cada um de nós. Todos nós temos uma relação enviesada com a realidade. A função da sociologia é, em grande parte, explicar por que isso acontece e criar as condições de uma compreensão que seja superadora, digamos assim. ■ Como o sociólogo, posto ao mesmo tempo

num solo crítico e no terreno da alienação, pode, ao fazer a crítica, não estar alienado daquilo que está olhando? — Ele não tem como escapar da própria alienação, mas pode compreender a sua alienação sociologicamente. Fazer psicanálise talvez ajude a resolver um monte de problemas, mas não é por aí. Quer dizer, eu passei por isso, porque venho de uma família liminar, que veio do campo, migrou para a cidade, se tornou operária, e de repente me vi dentro da universidade. ■ Como depois de toda uma infância e ado-

lescência sacrificadas, cheias de reviravoltas, dramas familiares, trabalho precoce, e com vários anos sem estudar, se deu sua opção pela sociologia? — No curso Normal, que tinha 3 anos, do mesmo modo que o Científico e o Clássico, eu entrei em contato com a sociologia e a história e fiquei dividido entre ambas. Eu tinha uma professora de história, dona Margarida Amyr Silva, formada, como todos os docentes do curso secundário naquela época, pela Faculdade de Filosofia.

Ela não escrevia na lousa, sentava e fazia uma conferência erudita. Era fascinante, não era aquela história contada cronologicamente, ela fazia interpretações sociológicas, e nos víamos ali. Ela trazia livros da casa dela e nos fazia ler, me fez ler para um seminário um livro que eu nunca leria espontaneamente, O valeroso Lucideno, do século XVII [O valeroso Lucideno e triunfo da liberdade na restauração de Pernambuco, de Frei Manuel Calado, Lisboa, 1648], de um padre que foi testemunha da invasão holandesa, e escreve em versos uma espinafrada em cima dos holandeses. É um livro clássico, um documento da história da expulsão dos holandeses no Brasil. Tive uma professora de sociologia, dona Araci Ferreira Leite, também formada pela USP, que nos fazia ler livros de ciências sociais. Quando li O homem, de Ralph Linton, um clássico da antropologia, me surpreendi: a sociedade então era explicável, tinha lógica, coerência! ■ Quando ocorreu sua entrada na USP? — Em 1961. Fiz o vestibular certo de que não ia passar. Optara pelo curso noturno porque tinha que trabalhar de dia. Meus colegas eram todos gente de boa família, estabilizada, chique, enquanto eu estava com uma família em decomposição, vinha da periferia, literalmente vinha do subúrbio. Morava em São Caetano, na casa da minha mãe. Nem fui ver o resultado, até que alguém falou: “Mas deixa de ser besta, vai lá ver o que aconteceu!”. Fui, na véspera do encerramento das matrículas, e tinha passado. Depois uma colega de turma da faculdade me arrumou um emprego na Nestlé, na Sete de Abril. O trabalho, no departamento de pesquisa de mercado, era uma coisa próxima do que estudava, no sentido de me aproximar das

A esperanç a se tornou residual,ela nã o é m ais um a m eta para ningué m

técnicas quantitativas, fazer amostras, quantificar, analisar e interpretar. Depois de 1 ano lá, um dia, um professor chamado Fernando Henrique Cardoso a quem eu definitivamente devo muito, me perguntou o que eu estava fazendo. Daí me perguntou se eu queria pegar uma bolsa, porque ele e Luís Pereira estavam recrutando três ou quatro estudantes para trabalhar nas pesquisas do Centro de Sociologia Industrial do Trabalho, que ele tinha criado na cadeira do Florestan e que inaugura a sociologia industrial no Brasil. Falei “eu topo” na hora e pedi demissão da Nestlé. Era uma bolsa do Inep, Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, para trabalhar em um projeto sobre qualificação de mão-de-obra na empresa industrial, coisa que eu conhecia bem. Penso que Fernando Henrique levou isso um pouco em conta. Quando terminou a pesquisa, como o Florestan tinha planos de robustecer a cadeira dele, ampliar os cursos e explorar novos temas, ele iria escolher dois daqueles que tinham sido selecionados como auxiliares de pesquisa para ficarem como assistentes, auxiliares de ensino. Eu tinha certeza de que não seria escolhido porque não tinha pedigree. Isso sempre foi uma referência para mim, não é complexo de inferioridade, é não ser bobo, entendeu? Mas aí o Florestan sai lá de dentro, me chama e diz: “Você foi um dos escolhidos, providencie os papéis para se fazer o contrato”. Em abril de 1965 eu estava contratado. ■ A partir daí, a sua carreira acadêmica vai se desenvolvendo com vigor. — Sim. E eu me joguei de cabeça. Fui trabalhar no Centro de Sociologia Industrial do Trabalho, mas logo optei por um projeto na roça, de pesquisa sobre desenvolvimento social em regiões extremas. Peguei uma região caipira no Alto Paraíba, uma região decadente de café em Amparo e, na Alta Sorocabana, uma economia agrícola de ponta, porque queria estudar as resistências à inovação tecnológica nessas áreas. Consegui uma verbinha da FAPESP para fazer a pesquisa. Aí veio a ditadura, a crise das cassações, aquilo virou um inferno. Estávamos todos juntos, mas cada um ia se virar como pudesse. Fernando Henrique logo em 1964 teve que sair para o exílio, ele foi o primeiro perseguido, e nós fomos tateando até 1969, quando vieram as cassações. ■ E em 1969 como ficou a sua situação? — Na noite da cassação de Florestan, fomos todos para a casa dele, que exigiu que

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ninguém se demitisse em solidariedade. Em Brasília tinham feito isso e foi um desastre. Porque a ditadura se regozijou com as demissões, elas facilitaram o serviço sujo que eles iam fazer. Ele disse: “Os que não forem cassados ficam e a missão é dar continuidade ao que foi criado aqui na USP desde o Lévi-Strauss e o [Roger] Bastide. Vocês levam para a frente como puderem”. Alguns dias depois cassaram Fernando Henrique, Octávio Ianni e tal. A partir daí ficamos quebrando cara, com muita dificuldade, muita tensão dentro do grupo, porque estávamos relativamente desamparados. Eles estavam fora da faculdade e não queriam fazer nada que parecesse provocação e que levasse, portanto, à cassação dos demais. Nesse meio tempo, Jaime Pinsky, que era professor de história no que hoje é a Universidade Estadual Paulista, Unesp, começou a entrar em contato comigo e ficamos amigos. Ele era ligado à Editora Hucitec e resolveu lançar uma revista de ciências sociais, a Debate & Crítica. A revista funcionava na casa dele e eu ajudei a fazer os contatos com Florestan, Fernando Henrique, enfim, cassados e não-cassados se reuniam na revista. Não todos, porque muitos dos não-cassados não quiseram se expor. Mantivemos durante uns 2, 3 anos, aí a Polícia Federal veio em cena. Quis impor a censura prévia, e dissemos não. Lembro do Florestan furioso. Ele, Jaime Pinsky e eu, depois o Tamás Szmerecsányi, dissemos não. Isso significava, disseram, fechar a revista. Tamás chegou a ir a Brasília para conversar com o pessoal da Censura, explicar que era uma revista científica, mas não adiantou. A Debate & Crítica foi a única revista científica brasileira ameaçada de censura prévia e nunca tivemos a solidariedade de ninguém da área científica, coisa que me deixa abismado. Fechamos, esperamos alguns meses e abrimos a mesma revista com outro nome: Contexto. A revista durou enquanto foi possível, vendida em banca, livraria, com uma tiragem pequena, até 1978. ■ O senhor nunca teve vinculação com o partido comunista? — Não, e com nenhum partido. Os comunistas me convidaram, cheguei a ir a uma reunião no Parque Dom Pedro, mas fiquei muito mal impressionado, porque havia muito autoritarismo no partido e nas esquerdas em geral. Para mim, era muito complicado ser sociólogo e ter alguém mandando em minha consciência. Falei: “Olha, sou um cara de esquerda, sou contra a ditadura, quero que ela acabe o mais

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Sã o os m edos que nos regem quando estam os acordados, só que nã o sabem os,entã o eles ex plodem nos sonhos depressa possível, sou a favor de uma democracia social, alguma coisa mais avançada do que isso daqui, mas esse não é o caminho”. Bem, em 1975 eu decidi fazer uma pesquisa na Amazônia sobre a imigração, os conflitos e a violência, uma imprudência total que deu certo. Estávamos no fim da guerrilha do Araguaia e era um risco. Levei anos fazendo a pesquisa sem financiamento. Pedi um financiamento à FAPESP, ela levou 18 meses para me dar um parecer, e o que consegui, mesmo depois de uma audiência com o diretor científico, o professor William Saad Hossne, só deu para comprar uma passagem de avião de Curitiba, para onde eu tinha ido de ônibus, para Foz do Iguaçu, Cascavel, aquela era a região de onde a multidão estava saindo, dia e noite, de caminhão. A pesquisa foi então toda financiada pela “Fundação Martins de Amparo à Pesquisa”. ■ Quer dizer, foi de seu bolso. — Sim. Por sorte minha mulher [Heloísa Helena Teixeira de Souza Martins] também trabalhava na faculdade, era docente de outra cadeira na sociologia, e então nos equilibrávamos. Banquei tudo assim ou aceitando fazer conferência em Belém, em uma cidade, outra, em troca da passagem para chegar lá. Ali era uma grande fronteira, então o governo militar estava fazendo aquela estrada de Cuiabá a Porto Velho. O Brasil sempre pensou a fronteira, e continua pensando, em termos de uma guerra. Fizeram a estrada, resolveram fazer a colonização com colonos mesmo, diferente do que foi acontecer na Transamazônica, onde o negócio do colono deu muito pouco certo e acabaram surgindo as grandes fazendas, grandes latifúndios, terra grilada, todo tipo de patifaria. No

caso de Rondônia, a idéia era criar um estado de propriedade familiar, como no Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina, e criar uma classe média rural. Escrevi vários trabalhos sobre isso e tem um livro, Fronteira, que espero reeditar proximamente. São vários estudos, e um deles, com crianças, “Regimar e seus amigos”, foi uma das coisas mais gratificantes que eu fiz. Traz a fala de uma menina de um povoadinho na fronteira do Maranhão com o Pará, onde os jagunços de um grileiro puseram fogo em tudo, no povoado e na mata em volta, para matar os velhos e as crianças enquanto os pais estavam na roça. Por sorte, uma ventania levou o fogo para a direção contrária. As crianças tinham toda consciência disso. E então pedi para elas falarem e escreverem. Lembro dessa menina, a Regimar, me dando uma entrevista sentada num tronco de árvore que tinha sido trincheira dos moradores do povoado para se defenderem contra um dos tiroteios dos jagunços. Devia ter uns 9, 10 anos de idade. Eu tinha falado para as crianças na escolinha: “Eu venho amanhã conversar com vocês”. E no outro dia chegaram todos com a melhor roupa que tinham. Ela estava toda arrumadinha, um vestido bonitinho, clarinho, e me disse: “Professor, não fique preocupado, não. Tudo isso vai acabar. Nós vamos embora do Brasil, vamos para Roraima”. ■ Cada história de uma pesquisa sua parece puxar outra, simultânea... — Eu nunca fiz uma pesquisa só, nunca escrevi um livro de cada vez. O trabalho intelectual flui num ritmo que não é o da indústria. É importante desenvolver duas ou três pesquisas ao mesmo tempo, porque se descansa de uma fazendo a outra. Dessa forma, um dia começamos a colher vários frutos. Sobre o subúrbio, por exemplo, desde quando entrei na universidade já fazia pesquisa sobre isso. O subúrbio me parecia uma realidade não explicada. Mantinha muitas características rurais, era o que restava da roça no urbano. E vivíamos fazendo estudos aqui sobre o urbano na perspectiva americana, quando nos Estados Unidos a coisa se desenvolveu de outra maneira. Aqui, o urbano nunca se constituiu plenamente, a não ser no centro da cidade e nos bairros residenciais da elite. O resto era rural e urbano ao mesmo tempo. O fato é que no momento da crise das cassações eu tinha uma pesquisa na roça, cobrindo todo Vale do Paraíba, a primeira pesquisa de sociologia rural no Brasil baseada em aerofotometria para determinar as unidades e sortear

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até uma amostra probabilística, e ao mesmo tempo investigava a formação dos núcleos coloniais do subúrbio, a influência italiana nessa formação. Fui reunindo muito material sobre o subúrbio, fiz muita pesquisa histórica, porque a idéia original era produzir uma trilogia e esse livro reeditado agora, A aparição do demônio na fábrica, é um dos resultados de tudo isso. É diretamente sobre a questão da cultura popular e da consciência social que a classe operária tem no cotidiano. Não essa consciência de classe que os sociólogos discutem e que nunca se realiza. ■ Eu gostaria de pegar aquela questão da modernidade e do moderno como está em A sociabilidade do homem simples. Veja-se esse trecho: “Se a modernidade é o provisório permanente, o transitório como modo de vida, a moda; a nossa questão é saber qual a forma que ela assume em sociedades como as sociedades latino-americanas e na sociedade brasileira em particular e, em muitos aspectos, tão diversa do restante da América Latina”. Que forma ela assume? — Bom, a brasileira é uma sociedade híbrida em todos os sentidos. Temos em São Paulo índios e temos essa falsa Nova York que é a avenida Paulista, com suas riquezas, sua mentalidade pretensamente cosmopolita etc. A diversidade é muito grande e a modernidade, num certo sentido, é isso, essa combinação da diversidade. Mesmo na sociologia muita gente confunde a modernidade com moderno. O moderno é apenas um momento, um aspecto da modernidade. E alguns chamam de pós-modernidade essa combinação, essa mistura, digamos, de tempos. Eu acho que isso é inerente à própria modernidade, não existe modernidade e pós-modernidade. O Brasil é muito caracteristicamente essa estranha combinação. Não somos o Paraguai, a Bolívia ou o Equador, que estão mais parados no tempo e então a modernidade não é assim tão escandalosa, tão escancarada, tão visível. Aqui é. Quer dizer, você sai da avenida Paulista, desce numa estação de metrô, viaja uma hora em qualquer direção e chega ao século XIX ou mesmo XVIII, dependendo do lugar. ■ Ao examinar a questão da modernidade, seu livro entra no terreno da imagem, assunto fundamental nos estudos de comunicação. Destaco esse trecho que se segue à observação das antenas parabólicas nas favelas: “É como se as pessoas morassem no interior da imagem, e comessem imagens. A imagem se tornou, no imaginário da mo-

dernidade, um nutriente tão ou mais fundamental do que o pão, a água e o livro. Ela justifica todos os sacrifícios, privações e também transgressões” (p. 36). Isso me parece estranhamente próximo do conceito de Muniz Sodré sobre o que ele chama bíos midiático, a vida midiatizada. — Não é só do Sodré essa noção do viver no interior das imagens. É uma tese geral dos sociólogos que trabalham com a questão da modernidade. A modernidade é a sociedade da aparência, da imagem. Ali numa favela em que as pessoas moram em caixotes de 2 ou 3 metros quadrados e o esgoto passa por dentro do caixote tem pendurado no barraco, e eu tenho fotografias disso, a televisão mais moderna que elas podem comprar. Quer dizer, elas não têm o que comer, é essa presunção que a gente tem e no geral é verdadeira, mas a televisão, não dá para viver sem ela. Nesse mesmo capítulo sobre a modernidade há um diálogo seu com [Nestor García] Canclini (p. 20), e eu gostaria de saber se também não há ali, embora não explícita, uma resposta a Paul Baudrillard, nas referências à noção de simulacro. — Não necessariamente. Na verdade, um dos meus autores fundamentais de referência é o Henri Lefebvre, que foi pioneiro em relação a isso tudo e tratou desses conceitos ligados à modernidade de uma perspectiva muito mais sociológica do que eles porque considerou outros aspectos da realidade social. No retorno a Marx, ele era um autor que distinguia entre o Marx marxista e o Marx marxiano. Marx não era marxista, era marxiano. Disse isso ao genro, Paul Lafargue: “Se isso que você escreveu é marxismo, eu não sou marxista”. Marx era muito mais sociólogo do que dizem. Ele tentou entender o que era a sociedade contemporânea. Claro que caiu na tentação de achar que os sociólogos podem mudar a sociedade. O sociólogo não pode mudar nada.

Em seu diálogo com Lefebvre, o que é mais enriquecedor para entender a sociedade brasileira? — A retomada do método dialético por Lefebvre, que é justamente considerar os extremos, as anomalias, as coisas estranhas e diferentes em relação aos modelos dominantes, como sendo uma referência de natureza metodológica fundamental.

No capítulo após o do exame da modernidade e dos desafios de renovação do pensamento sociológico, encontramos o seguinte sobre a crise dos grandes sistemas

explicativos (p. 52): “As grandes certezas terminaram. É que com elas entraram em crise as grandes estruturas da riqueza e do poder (e também os grandes esquemas teóricos). Daí decorrem os desafios deste nosso tempo. Os desafios da vida e os desafios da ciência, da renovação do pensamento sociológico”. Até pensando nos sociólogos em formação nesse momento, como traduzir na linguagem do senso comum esses desafios? — O que eu estou tentando sublinhar nesse texto é que a sociedade sempre se achou muito protegida contra grandes mudanças. Elas vinham devagar, havia tempo de se preparar para elas, só que hoje não é mais assim, elas acontecem da noite para o dia. Quer dizer, eu estou aqui discutindo sociologia com vocês, mas não tenho certeza que a sociologia seja essa, a essa altura. Porque tem gente criando em cima da tradição sociológica em tudo quanto é canto. Criando bem e criando mal. Eu estive em Cambridge há uns 2 anos, comprei um livro de Anthony Giddens, que é um grande manual de sociologia, um calhamaço, por uma libra esterlina. Achei estranho ser tão barato, aí consultei um colega meu e ele explicou que era porque o livro se tornara obsoleto e ele produziu um outro guia, em que teve que alterar tudo. Como trabalhara com temas do cotidiano, da vida miúda, o que sabia antes já não valia mais. ■ Ao lidar com as questões da teoria em A

sociabilidade, e pensando sobre a divergência de orientação de marxistas e fenomenologistas na sociologia, há uma referência à possibilidade de algum encontro, que cria um lugar de conhecimento. Como se costura essa possibilidade teórica em sua experiência? — Acho que consegui fazer isso e não estou dizendo que seja a solução melhor, pode ser que outro encontre uma melhor que a minha. A sociologia sempre se baseou no pressuposto de que as grandes correntes do pensamento sociológico são incompatíveis. Florestan Fernandes é muito criticado porque em Os fundamentos empíricos da explicação sociológica junta Marx, Weber e Durkheim, é verdade que separando em capítulos, mas num certo sentido ele defende a tese de que é possível combinar essas três orientações teóricas. Eu penso que o encontro pode se dar se eu tomo a perspectiva dialética, que é o único método que permite lidar com a esperança nos dias de hoje, no que ela tem de residual. A esperança se tornou residual, ela não é mais uma meta para ninguém. A modernidade acabou com a esperança. PESQUISA FAPESP 147

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■ Mas como é essa esperança residual? — Pela volta à dialética que Lefebvre preconiza, pela volta ao método de Marx, há que descobrir quem é o agente da esperança. Era a classe operária no século XIX por razões sociológicas que Marx mostrou. Mas temos que saber hoje quem são os protagonistas da esperança. Ou os portadores inconscientes das possibilidades de mudanças que realizem, no mínimo, essa utopia de que o mundo tem que ser um mundo de alegria, liberdade e fartura. ■Temos pistas para identificar esses atores? — Temos que fazer pesquisa. O caminho começa pela crítica da sociedade atual, como o Marx fez crítica da economia política que regia o século XIX, como Lefebvre fez crítica da vida cotidiana em relação ao começo da segunda metade do século XX. Onde é que a sociedade está se afogando? Está se afogando na vida cotidiana, no visível, no vivencial. Então, eu quero saber o que é que é isso. Porque, se não existe mais esperança, se a sociedade é só a vida cotidiana, eu tenho que entender a vida cotidiana para dizer: “O mundo, a sociedade é assim, tchau e bênção”. ■ Mas mesmo nesse momento em que o cotidiano parece engolir tudo, há algumas pistas de quem porta a esperança? — “Quem” é uma pergunta do marxismo vulgar. ■ Então, o quê? — Os chineses diziam “são os camponeses”. Os russos diziam “são os operários”. E cada um inventava o seu. Não, não é por aí. A pergunta está errada. Essa é uma pergunta que a crítica do marxismo tem que fazer para questionar. Se essa é uma sociedade dominada pelo cotidiano, há que pesquisar para saber que cotidiano é esse, como as coisas se põem na vida cotidiana. E, claro, como a dialética trabalha com o tempo histórico, com a questão da temporalidade, é nas contradições da vida cotidiana que vamos descobrir os resíduos de esperança. A esperança é residual na vida cotidiana, no mundo da cotidianidade. A grande questão posta por Lefebvre, que depende de pesquisa e não de uma resposta apressada do sociólogo, é saber em que condições pode haver uma coalizão desses resíduos que ganhe corpo e diga: “É por aqui, aqui tem uma brecha”. Isso é da condição do movimento estudantil de 1968. O operariado era conservador nos Estados Unidos, era conservador na França. Eram os jovens que estavam inquietos com as injustiças sociais,

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com o imobilismo social, não havia espaço para eles. Então, os jovens representavam o radicalismo daquele momento, a possibilidade da coalizão. ■ E o que aconteceu para que a coalizão não

se sustentasse? — Rapidamente eles foram cooptados. A questão é investigar como. Agnes Heller desenvolveu uma tese que está também, secundariamente, num livrinho de Lefebvre, A proclamação da Comuna, em que chama a atenção para o seguinte: os portadores do novo são os que têm necessidades radicais, que não podem ser resolvidas nessa sociedade. A fome de saber, por exemplo, de conhecimento, a fome de escola. Se analisamos o subúrbio, e eu já chamei a atenção para isso várias vezes, no ABC, enquanto os comunistas diziam que a classe operária lutava pelo salário, ela lutava por escola. Eu estava lá, sei o que é isso. Os políticos populistas perceberam, a esquerda não. Toda a demanda era no sentido de levar o ensino secundário ao ABC, levar a universidade, e levaram. Quer dizer, a demanda radical é outra. E as demandas mudam de lugar, de categoria social, de época e do modo de se expressar. Por isso precisamos de uma sociologia que saiba investigar isso e saiba responder. Sua investigação do sonho foi para ver como se apresentavam, numa outra instância, essas necessidades radicais? Se apropriar do sonho na sociologia é uma aposta ousada. — É, atrevida, né? Eu fiz uma recomendação expressa para os alunos que fizeram a pesquisa, cujos trabalhos publiquei depois, de que era proibido ler Freud. ■

Um enigm a é o nú m ero absurdo de filhos que m atam os pais e de pais que m atam os filhos

Porque eles tinham que descobrir por fora da teoria freudiana o que os sonhadores estavam dizendo de si mesmos com os sonhos. — Claro, o que disse foi que se eles lessem Freud, A interpretação dos sonhos, por exemplo, ou o que os freudianos dizem, não conseguiriam fazer um trabalho sociológico. Proibi para que conseguissem imaginar, criar e ousar. Freud explicou do ponto de vista da psicanálise. Agora, sociologicamente é outra coisa. E no Brasil, aqui na USP, tínhamos dois trabalhos de referência, um do Bastide e outro do Florestan. Bastide pesquisou o sonho do negro e descobriu uma coisa importante que deixa os negros furiosos hoje em dia: só é negro quem sonha como negro. Isso significa sonhar com os arquétipos da cultura negra, em que não existe a separação entre a vida e a morte. Esse trabalho é antigo, e depois ele voltou ao tema. ■

■ E quanto ao trabalho de Florestan?

— É uma pesquisa inacabada sobre sonhos. O Florestan da juventude era muito interessante, muito aberto à indagação. Ele não só fez o primeiro e um dos raríssimos trabalhos da sociologia no mundo inteiro sobre crianças, As trocinhas do Bom Retiro, como essa fez essa pesquisa sobre sonhos nos bairros de São Paulo. Ele estava interessado numa coisa muito original e muito criativa que é como as pessoas interpretam os sonhos. Porque, diz ele, e isso é bem sociologia: “Se eu descubro a chave da interpretação dos sonhos, a chave do homem comum, não do Freud, eu posso vasculhar a mentalidade, eu posso compreender o entendimento que ele tem da sociedade em que vive”. Florestan deu várias dicas nesse trabalho inacabado, publicado em Folclore e mudança social na cidade de São Paulo. Eu usei essas dicas, está citado em meu trabalho, porque é fundamental. É preciso voltar ao tema e fazer uma pesquisa específica. Então o sonho ajuda a entender quem é o sujeito? — Claro. Erich Fromm chamou a atenção para isso já há tempo em Consciência e sociedade industrial. A questão é a seguinte: essa sociedade dividiu o nosso mundo em mundo da vigília e mundo dos sonhos. E o negro que passou por isso é só residualmente negro. Todos nós, na sociedade ocidental, vivemos essa divisão. O cristianismo fez isso: separou, rachou o nosso eu em duas metades, uma oculta, que não reconhecemos a não ser ■

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indiretamente, e uma metade visível, essa em que estamos aqui, conversando, podemos falar. ■ O diurno e o noturno, o corpo e a alma...

■ Somos arcaicos mesmo, em certa medida. — Sim, ninguém é só moderno, somos arcaicos também e esse arcaico é regulador, é regulador dos medos, das inseguranças. Quer dizer, a pessoa passa medo o dia inteiro, mas de noite sonha com o útero da mãe, com a casa do pai e da mãe, se refugia lá dentro e se sente abrigada. Mas aí sonha que os carros começam a passar por dentro da casa, que os estranhos batem na porta e atravessam sem pedir licença, e por aí vai. Um leão entra em casa ou, então, ela está no banheiro e descobre que as paredes são todas de vidro, ela está totalmente exposta... ■ A pesquisa também encontrou que os ros-

tos na rua não são rostos revelados nos sonhos, não é? — É, as pessoas não conseguem identificar. É o difuso, o que não tem identidade, o que as pessoas não conseguem lembrar. Essa é a experiência de todos nós. Você anda na rua, sai do largo São Francisco e vai até o largo de São Bento. Aí eu lhe espero lá na igreja de São Bento, entrando naquela salinha da padaria lhe peço para me dizer como era a cara das pessoas que você encontrou na rua. Você vai lembrar da cor do vestido, do sapato, do nariz, mas não do rosto. Se for um sujeito vesgo, você vai lembrar da vesguice, mas não vai lembrar do restante. Quer dizer, é uma sociedade mutilada. Eu queria destacar esse trecho em seu livro (p. 60), porque acho de uma beleza extraordinária: “O que nos aterroriza nos sonhos é a denúncia que nós mesmos nos fazemos de nossos temores e terrores, matérias-primas de nosso conformismo. A coragem da nossa noite põe diante de nos■

Família de peões em Rondônia

sos olhos e da nossa consciência a coragem que nos falta durante o dia, em face do que nos conforma e nos obriga. A loucura da noite e do sonho denuncia a insanidade do dia e da vigília: a insanidade de um agir conduzido e demarcado por um querer alheio, não interrogado, nem questionado”. Além da beleza, alude à nossa alienação inevitável. — Exatamente. O tema do livro é a alienação. A pessoa é um conjunto de divórcios, porque ela é de dia o que não é de noite. Eu estudo linchamentos, em volume é uma das grandes pesquisas que eu faço, com 2 mil casos catalogados em meu banco de dados. O que mais me impressiona é que a violência nos linchamentos noturnos é imensamente maior do que nos linchamentos diurnos. Por quê? Porque a sociedade moderna é uma sociedade de covardes. Eles fazem na escuridão o que não conseguem fazer à luz do dia. Então ficam valentes no escuro. Atiram pedra, queimam o outro vivo, matam, esmigalham os olhos do outro etc., porque estão na escuridão, isso é de uma covardia espantosa. É o mesmo que o torturador faz na tortura. A covardia se transformou numa instituição. ■ Aproveito

sua afirmação de que “a pesquisa empírica faz a diferença enorme entre o ensaísmo sociológico de fundo filosófico e a sociologia propriamente dita”, para lhe perguntar: o que é a sociologia, em sua visão? — A sociologia é uma das ciências mais interessantes que surgiram nos últimos 100 anos, 150 anos. Não tanto quanto a antropologia, que é uma ciência concorrente e complementar, no fim das contas,

mas é muito interessante porque é um grande instrumento de conhecimento dos enigmas do mundo moderno. A sociedade antiga não tinha enigmas. Tudo estava explicado ou pelos filósofos ou pelos teólogos, e o senso comum assimilava isso sem nenhum problema. E todos viviam em paz. As guerras eram por outros motivos. Hoje a sociedade tem enigmas demais e os enigmas se multiplicam diariamente. Uma coisa, um enigma, por exemplo, um caso brasileiro: o número absurdo de filhos que matam os pais. E mais pais que matam os filhos. Isso nunca foi admitido como uma coisa aceitável, continua não sendo, só que está acontecendo. A sociologia pode ajudar a explicar isso e, eventualmente, até se traduzir em políticas públicas que, no fim das contas, evitem a tragédia, a mais grave das tragédias. O caso dos linchamentos também. Os sociólogos, em geral, têm se interessado mais pelos sistemas políticos do que pelos temas do cotidiano e da sociedade, das pessoas simples propriamente, que somos todos nós, o que não é bom. A sociologia por enquanto perdeu esse bonde, pode ser que ainda pegue. Mas ela se debate com um número tão grande de urgências que isso a levou ao equívoco de fazer opções temáticas. Duvido, por exemplo, que haja tantos projetos sobre cotidiano, na FAPESP e no CNPq, quanto há sobre o MST. E o MST, nessa altura, já se tornou irrelevante, porque ele está tão estudado, é tão conhecido e tão previsível que não há mais nenhum mistério em relação a ele. Não é mais um enigma para ninguém, portanto, não é mais um tema. Mas um dos grandes enigmas da atualidade é o ■ que aconteceu com a esperança. PESQUISA FAPESP 147

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JOSÉ DE SOUZ A MARTINS

— Sim, tudo isso separado. Então, o que colocamos lá no mundo do sonho? Os medos. Mas são os medos que nos regem quando estamos acordados, só que não sabemos. Então eles explodem no sonho. Fizemos então um banco de sonhos. As pessoas sonham com a casa, que é uterina na nossa cultura. Elas se refugiam dentro de casa, só se sentem tranqüilas dentro de casa, mesmo com os mortos da família ali. Elas têm medo da rua, da circulação, do movimento, elas têm medo do que não é comunitário, familístico e uterino. Somos primitivos nesse sentido.

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() FOTOS EDUARDO CESAR

M E M ÓRIA

Mal de amor

e saudades Disco pioneiro de m odinhas coloniais e im periais será relançado depois de 40 anos

Neldson Marcolin

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ma feliz conjunção entre música e história se tornará acessível aos interessados nestes 200 anos da chegada da Corte portuguesa ao Brasil. O disco Modinhas coloniais e imperiais, esgotado desde 1967, será relançado em São Paulo no formato de CD. A obra é o primeiro registro gravado em longplay (LP) totalmente dedicado à modinha, que atravessou o período colonial, estendendo-se ao Império, sempre cultivada nos salões do país. A gravação em longplay, o antigo disco de vinil, começou a tomar forma quando uma jovem pesquisadora em ciências sociais, a também cantora lírica paulistana Léa Vinocur Freitag, foi convidada para cantar modinhas coloniais acompanhada pelo pianista Osvaldo Lacerda no programa de televisão de Silveira Sampaio, em 1964. O convite partiu do pesquisador Mozart de Araújo, que lançava o livro Modinhas e lundus do século XVIII. Ele havia pesquisado em arquivos portugueses e brasileiros e incluiu no seu livro os versos de Marília de Dirceu, do desembargador e poeta árcade Tomás Antônio Gonzaga. Esses versos teriam sido musicados por Marcos Portugal, músico português que veio ao Brasil em 1811, nomeado por dom João VI mestre da Capela Real. A soprano Léa gostou da experiência e decidiu estudar esse gênero musical dos séculos XVIII e XIX. “As modinhas

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Capa do disco original e álbum de Mário de Andrade (es q .), partitura (acima) e versos de M ar ília de D ir ceu

tinham uma grande influência da ópera”, explica. “O centro da vida social e musical, tanto de Portugal como do Brasil daquela época, concentrava-se na igreja, na ópera e nos salões.” As musas do movimento literário Arcadismo eram sempre Marílias, Tirces, Márcias, que aparecem em quase todos os poemas anônimos como musas do amor infeliz. No entanto, Mário de Andrade aconselhava que se cantassem as modinhas – “esses textos de mal de amor e saudades” – com o “rosto sorridente”. No prefácio de seu livro Modinhas imperiais o escritor comentava: “Não é possível tomar

a sério toda essa choradeira sistematizada, e em nenhuma execução vai melhor do que nestas modinhas aquele sorriso aos ouvintes que o velho ‘mestre da solfa’ aconselhava os cravistas no tempo dele”. Até 1966 as descobertas de Mozart de Araújo e a compilação de Mário de Andrade não haviam sido gravadas. À época Léa já estava na pós-graduação estudando sociologia da literatura sob orientação de Ruy Coelho, pesquisando sobre a modinha. “Foi então que tive a idéia de

gravar parte desse material”, conta. Ela pediu e obteve financiamento da FAPESP para fazer um longplay inteiro com seu objeto de pesquisa. Convidou a pianista Maria do Carmo de Arruda Botelho, que já tinha uma carreira internacional, para acompanhá-la. No lado A, Léa gravou algumas “liras” de Marília de Dirceu, com harmonização de Osvaldo Lacerda e música de Marcos Portugal. No lado B, cantou as modinhas imperiais, que constam do álbum de Mário de Andrade. Em 1967 foram prensados 600 discos, distribuídos para pesquisadores, jornalistas e radialistas.

O trabalho foi saudado pelo pioneirismo e qualidade artística. Léa Freitag seguiu sua carreira musical, jornalística e universitária. Cantou em recitais no Brasil e no exterior, escreveu crítica em jornais e revistas, publicou o livro Momentos de música brasileira (Nobel, 1985), gravou o CD Sarau das musas e chegou a professora titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Aposentada, achou que era o momento de organizar e recuperar trabalhos importantes do passado. Quando gravou o disco de modinhas, ela queria apenas deixar registrado algo que nunca havia sido gravado. Agora transforma o velho LP em CD, para que todo o esforço despendido não fique perdido em velhas discotecas. Dessa vez Léa vai pagar do próprio bolso a remasterização do disco, transformando-o em CD e colocando-o à venda na Livraria Cultura do shopping center Villa-Lobos, em São Paulo. O CD será relançado no dia 12 de junho. Terá a mesma capa de 1967, com desenho da pintora Yola Cintra, representando parte da antiga Vila Rica, com a casa de Dirceu. Léa quer deixar registrado, em definitivo, esse momento incipiente da vida musical brasileira de séculos passados.

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CAP A

Choque frontal: simulação de colisões de íons de chumbo no detector Alice

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Ponto de

encontro Q uase 10 mil pesquisadores, entre eles 68 brasileiros, fazem os ajustes finais no maior acelerador de partículas do mundo Ricard o Zorzet to, de Genebra

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CERN

N

o domingo 6 de abril a cidade ainda dormia quando o bonde parou pontualmente às 8h28 da manhã na estação central de Genebra. Em poucos segundos, dezenas de pessoas apressadas lotaram seus vagões, rumo ao Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (Cern), laboratório internacional de física liderado por 20 países da Europa, nos arredores da capital dos relógios suíços. Ao chegar ao imenso globo de madeira à entrada do Cern, o pequeno grupo se somou a uma multidão de pessoas de línguas e países diferentes que aguardavam a abertura dos portões. Nem o vento, nem os 9 graus da primavera suíça os haviam impedido de trocar o conforto de suas casas aquecidas por horas de espera em longas filas ao ar livre. Ninguém queria perder a última chance de conhecer a caverna. Situada 100 metros abaixo da superfície, a caverna em questão nada tem a ver com os montes Jura, que se erguem a oeste do Cern, na fronteira da Suíça com a França, onde 2 séculos atrás o naturalista alemão Alexander von Humboldt encontrou fósseis de animais do período geológico que chamou de Jurássico. A caverna que todos queriam ver é uma das mais imponentes obras criadas pelo ser humano: um túnel circular com 27 quilômetros de extensão que abriga o Large Hadron Collider (LHC), o maior acelerador de partículas do mundo, que começa a funcionar nos próximos meses. Quando finalmente for ligado em julho ou agosto deste ano, após quase 2 décadas de planejamento, construção e atrasos, esse equipamento deve permitir aos 10 mil físicos e engenheiros que trabalham no Cern – entre eles 68 brasileiros – compreender melhor como a natureza se comporta num espaço infinitamente pequeno, bilhões de vezes menor que um grão de areia. 19

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Peso pesado: físicos e engenheiros concluem montagem do detector CMS, de 12 ,5 mil toneladas

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FOTOS RICARDO ZORZETTO

Sob a terra: homens, mulheres e crianças visitam o detector Alice

Antes de fechar o acesso ao túnel, os pesquisadores interromperam os trabalhos de rotina e os ajustes finais dos equipamentos no início de abril para outra atividade importante, repetida de tempos em tempos: mostrar ao mundo como foram investidos os quase US$ 9 bilhões consumidos de 1993 até agora na fabricação e montagem do LHC. “Eles sabem vender o peixe”, comentou o físico brasileiro Sandro Fonseca, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), durante uma caminhada pelos corredores do Cern, onde atualmente desenvolve seu trabalho de doutorado. “O cidadão europeu que paga impostos vem passear e ver como seu dinheiro foi empregado.” No primeiro domingo de abril 53 mil pessoas, um décimo da população de Genebra e cidades vizinhas, atravessaram os portões do maior laboratório de física de partículas do mundo. Assistiram a vídeos e palestras sobre o novo acelerador e receberam explicações sobre avanços que a física proporcionou a áreas como a medicina, a exemplo da tomografia, que permite fazer imagens de órgãos em funcionamento, ou as telecomunicações – em 1989 Tim BernersLee desenvolveu no Cern o sistema de comunicação world wide web, que tornou a internet acessível ao público. Quem deixou para trás o habitual almoço em família pôde também visi-

tar o museu de ciências Microcosmo e até mesmo conhecer o quartel-general do Cern: o centro de controle inaugurado em março, de onde serão monitorados oito aceleradores de partículas – o LHC é o mais novo e mais potente. “Aqui não há nada a esconder”, disse o engenheiro inglês Terry Pritchard, que durante anos desenvolveu e testou componentes eletrônicos para o LHC e, atualmente aposentado, guiou a visita de jornalistas. Na caverna - Das 53 mil pessoas que foram ao Cern, 20 mil desceram à caverna. E se impressionaram com o que viram. Entre espessas paredes de concreto, uma sucessão de 1.624 tubos azuis e brancos, cada um com 14 metros de comprimento e 1 de diâmetro, enfileiravam-se em seqüência formando um anel de 27 quilômetros. No interior desses tubos, dois feixes de partículas mais finos que um fio de cabelo viajarão em sentidos opostos a velocidades próximas à da luz (300 mil quilômetros por segundo). Guiadas por potentes eletroímãs resfriados a -271°C, as partículas percorrerão na maior parte do tempo trajetórias paralelas. Em quatro pontos do anel, porém, seus caminhos se cruzarão e, como nuvens de uma tempestade, amontoados de 100 bilhões de partículas de carga positiva (prótons) encontrarão outros 100 bilhões vindos em

direção contrária. Apesar desse número de prótons, apenas 20 colisões devem ocorrer quando uma nuvem passar pela outra. Por isso é preciso fazer essas nuvens colidirem milhões de vezes por segundo para gerar um número de choques elevado o suficiente para ser analisado pelos físicos. Ao lançar um próton contra outro a velocidades altíssimas e um nível absurdamente elevado de energia (7 trilhões de elétrons-volt ou teraelétronsvolt, TeV), os pesquisadores esperam fragmentá-los em seus componentes mais fundamentais: os quarks, partículas menores e indivisíveis formadoras da matéria; e os bósons, partículas responsáveis pela transmissão de três das quatro forças da natureza (eletromagnética, nuclear forte e nuclear fraca), que mantêm os quarks unidos em blocos maiores de matéria. Essas partículas – um total de 48, sendo 36 de matéria e 12 de carregadoras de força – estão previstas no Modelo Padrão, o conjunto de teorias desenvolvidas nos últimos 50 anos para explicar o comportamento da matéria no nível submicroscópico. Mas nem todas foram observadas experimentalmente. Acredita-se que a maior parte delas – à exceção de quatro ou cinco mais estáveis – seja extremamente fugaz e se transforme em outras partículas tão logo criadas. Com partículas escapando PESQUISA FAPESP 147

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F Á B RICA D E P ART Í CULAS No interior de um túnel de 27 q uilômetros de extensão, colisões devem estilhaçar partículas de carga elétrica positiva (prótons) em seus componentes mais elementares

LHCb

CMS

Blocos fundamentais da matéria: detector CMS rastreará a produção de partículas elementares ainda não observadas experimentalmente, como o bóson de Higgs

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ATLAS

ALICE

ILUSTRAÇ Ã O ABIURO | IMAGENS CERN

Anel acelerador: feixes de prótons serão impulsionados a velocidades próximas à da luz

Máquina do tempo: choques entre íons de chumbo, como o da simulação ao lado, podem gerar o quinto estado da matéria, o plasma de quarks e glúons, investigado pelo detector Alice

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FOTOS CERN

sileiro de Pesquisas Físicas, no Rio de Janeiro, membro de uma das equipes do Cern. “Mas não explica tudo. Talvez ele seja apenas uma boa aproximação de algo mais completo que não conhecemos.” Atrás da resposta, pesquisadores do mundo todo não vêem a hora de os prótons começarem a colidir dezenas de metros abaixo dos campos e plantações nos arredores de Genebra. As apostas são de que o LHC seja a tão aguardada máquina. Ainda que esse acelerador forneça energia suficiente para espatifar os prótons e resolver essas questões – o choque entre dois prótons resultará numa energia de 14 TeV, elevadíssima para uma partícula, mas insuficiente para ligar um celular por mais que alguns segundos –, os físicos terão muito trabalho antes de confirmar se encontraram o que buscavam. Como as partículas fundamentais são instáveis e em frações de segundo originam outras gerações de partículas, os pesquisadores se valem de gigantescos aparelhos chamados detectores para saber o que se passou no local da colisão. Com forma de barril ou de cilindro, os detectores são construídos ao redor do ponto em que ocorre o choque e são compostos por quatro camadas O princípio e o meio: Felix Bloch deposita de materiais distintos que pedra fundamental do Cern em 19 55, registram a energia e a veno alto, e John Adams anuncia recorde locidade das partículas que de energia em 19 59 os atravessam, além do caminho percorrido. Com base nesses dados, calculam entre os dedos, os físicos ficam na dúoutras propriedades como a massa e a vida: ou a teoria não representa suficarga elétrica. Mas têm de trilhar o cacientemente bem a realidade e algumas minho inverso feito pela segunda ou partículas de fato não existem, ou apeterceira geração de partículas – do ponnas não havia sido criada até o momento em que desaparecem àquele em que to uma máquina poderosa o suficiente surgem –, para descobrir quais foram as para encontrá-las. geradas inicialmente na colisão. “É uma “É consenso que o Modelo Padrão é espécie de engenharia reversa”, comenta bom”, diz Arthur Maciel, do Centro Bra24

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O LH C EM NÚ MEROS Os feixes de partículas serão mantidos à temperatura de -2 7 1°C As partículas serão aceleradas em um anel com 2 7 quilôm etros de extensão Os prótons atingirão a velocidade de 1,0 7 9 bilhão de quilôm etros por hora ou 99,9999991% da velocidade da luz A cada segundo, as partículas completarão 11.2 4 5 voltas no anel do acelerador Calcula-se que ocorrerão 6 0 0 m ilhões de colisões por segundo Energia da colisão será de 14 trilhões de elétrons-volt, elevadíssima para as partículas, mas suficiente para manter um celular ligado apenas por poucos segundos As colisões devem gerar 7 0 m il gigabytes de dados por segundo Cerca de 10 m il físicos e engenheiros participarão dos experimentos do LHC O orçamento do Cern foi de quase US $ 1 bilhão em 2007

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V elha conhecida - Um detector de dimensões mais modestas, o LHCb, investigará especificamente a desintegração de partículas elementares de matéria chamadas méson B em outras partículas. O objetivo é tentar compreender por que no Universo a quantidade de matéria é diferente da de antimatéria, formada por partículas de mesma massa, com cargas opostas e sentido de rotação contrário. “Os valores que outros dois experimentos, o BaBar e o Belle, já mediram não justificam a diferença observada no Universo”, explica o engenheiro eletrônico Rafael Nóbrega, que faz doutorado no Instituto Nacional de Física Nuclear de Roma e passou os últimos meses testando 15 mil chips e 1.400 câmaras de um siste-

ma de detecção do LHCb que registra eventos de bilionésimos de segundo. À medida que se aproxima a inauguração do novo acelerador do Cern, uma partícula em especial ganhou as páginas de jornais e revistas do mundo todo, a ponto de já ser tratada quase como uma velha conhecida: o bóson de Higgs. Talvez até se justifique o frisson, embora o estardalhaço tenha incomodado a comunidade dos físicos, em especial depois que o norte-americano Leon Lederman, que recebeu o Nobel de Física de 1988, chamou-a de partícula Deus no livro The God particle: if the Universe is the answer, what is the question?, publicado em 2006. Proposta pelo físico escocês Peter Higgs em 1964, essa partícula de interação, se encontrada, explicará a massa de todas as outras partículas elementares – ou por que algumas têm massa e outras não. “Os [físicos] teóricos se divertem discutindo o que seria pior: descobrir o bóson de Higgs com as propriedades previstas pelo Modelo Padrão ou descobrir que não há bóson de Higgs”, escreveu o físico inglês John Ellis, do Cern, em artigo publicado em julho de 2007 em um especial da Nature sobre o LHC. O primeiro caso representaria mais um sucesso dessa teoria, até o momento aprovada em todos os testes a

que foi submetida, mas não traria nada de novo para a física. Se essa partícula não existir, o Modelo Padrão estará condenado, e os físicos terão de justificar o resultado aos políticos que apoiaram o financiamento do LHC. “Seja qual for o caminho que a natureza escolher, a boa notícia é que o LHC nos dará uma resposta experimental definitiva e porá fim às especulações”, afirmou Ellis. “A física se tornará mais interessante se o bóson de Higgs não for encontrado, porque teremos de repensar tudo o que foi feito até agora”, comentou o físico brasileiro Roberto Salmeron, que vive em Paris e fala com a experiência de quem viu nascer boa parte da física moderna. Último assistente brasileiro do italiano Gleb Wataghin, que formou a primeira geração de físicos no Brasil, Salmeron foi trabalhar em 1956 no Cern, 2 anos após sua fundação. “O Prêmio Nobel Patrick Blackett, meu orientador na Universidade de Manchester, sugeriu ao Cern convidar físicos que estudavam raios cósmicos para pensar experimentos a serem feitos, quando o primeiro acelerador estivesse pronto”, disse. “No início do Cern trabalhávamos em barracas de madeira emprestadas pelo aeroporto de Genebra.” Em vez de barracos, hoje se assentam nos arredores da cidade centenas CERN

o físico Dílson de Jesus Damião, da equipe de Alberto Santoro na UERJ, que desenvolve seu doutorado no Cern. No LHC são quatro os principais detectores. Dois deles, o maior, Atlas, com 46 metros de comprimento, 25 de altura e 7 mil toneladas, e o mais pesado, o Compact Muon Solenoid (CMS), 21 metros de comprimento, 12 de altura e 12,5 mil toneladas, se encarregarão de analisar os choques entre prótons em busca de partículas ainda não encontradas do Modelo Padrão e fenômenos desconhecidos da física. Já o Alice, acrônimo de A Large Ion Collider Experiment, funcionará apenas 3 meses por ano para analisar o resultado do choque de partículas mais pesadas (núcleos do elemento químico chumbo) e verificar a existência de um quinto estado da matéria: o plasma de quarks e glúons. Formado por dois tipos de partículas elementares – os quarks, partículas de matéria, e os glúons, partículas que carregam força –, esse plasma só deve existir a temperaturas elevadíssimas como as produzidas nos primeiros instantes após o Big Bang, a explosão que teria originado o espaço e o próprio tempo 13,7 bilhões de anos atrás. Depois de criada, essa sopa primordial de partículas teria existido por uma ínfima fração de segundo, num período que o Universo era muito quente e pequeno: sua temperatura chegava a 1 quatrilhão de graus – hoje é de -270°C – e se estendia por apenas 300 milhões de quilômetros, quase nada ante os atuais 117 sextilhões de quilômetros.

Na fronteira: entre Suíça e França, acima da linha tracejada

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RICARDO ZORZETTO

Entre montanhas: campos se misturam às instalações do Cern

de prédios de poucos andares, que não dão o menor sinal de que abaixo da superfície pesquisadores investigam os fenômenos mais íntimos da matéria. O início do funcionamento do LHC representa a concretização de um sonho de pelo menos 3 décadas. Antes mesmo de o antigo acelerador entrar em funcionamento, os pesquisadores europeus já imaginavam substituí-lo por um equipamento maior e mais poderoso, razão por que insistiram na construção de um túnel tão extenso. A idéia ganhou força em meados da década de 1980, quando o grupo de planejamento de longo prazo do Cern – chefiado pelo italiano Carlo Rubbia, que compartilhou o Nobel de Física de 1984 pela descoberta das partículas carreadoras da força nuclear fraca (os bósons W e Z) – sugeriu que esta seria uma forma saudável de a física de partículas européia se manter competitiva diante da norte-americana. Na época os Estados Unidos pretendiam construir por conta própria o Superconducting Super Collider (SSC), um acelerador mais caro e cerca de seis vezes mais potente que o LHC. Mas o projeto foi cancelado em 1993 depois de o Congresso impor cortes ao financiamento. Os norte-americanos correram atrás de cooperações internacionais que haviam recusado anteriormente, mas não obtiveram sucesso. Era tarde demais. 26

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O poder de convencimento de Rubbia e palestras realizadas em diversos países da Europa criaram um ambiente favorável à construção do LHC. A extinção do SSC levou especialistas norteamericanos a recomendarem ao governo dos Estados Unidos a adesão ao projeto do novo acelerador do Cern, que também recebeu apoio da Rússia, do Japão e da Índia, conta Chris Llewellyn Smith, diretor do Cern de 1994 a 1998, no especial da Nature. Não foi a primeira vez que um projeto colaborativo multinacional prevaleceu sobre iniciativas individuais de países. Aliás, a união de esforços está na própria origem do Cern. Quando a Segunda Guerra Mundial terminou em 1945, a Europa estava arrasada do ponto de vista econômico e social, e alguns de seus mais importantes pesquisadores haviam migrado para os Estados Unidos. “Em uma conferência em 1949 em Lausanne, Suíça, o Prêmio Nobel de Física francês Louis de Broglie propôs a criação de laboratórios compartilhados pelos países europeus para reerguer a atividade científica no continente”, conta Salmeron. Outros dois físicos, o francês Pierre Auger e o italiano Edoardo Amaldi, gostaram da idéia e batalharam pela criação de um laboratório de física de partículas. “Amaldi, que tinha uma rara visão global da ciência e do seu impac-

to na sociedade, sugeriu a filosofia de comportamento do Cern, seguida desde a origem: um laboratório aberto a todos os países, sem atividade secreta nem influência militar”, disse Salmeron, cuja atuação nos últimos anos tem sido fundamental para a participação dos brasileiros no LHC. Instabilidade - Com prestígio no país e no exterior, Salmeron coordenou anos atrás as negociações entre o Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT), a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) que resultaram em um orçamento de US$ 1 milhão (cerca de R$ 2 milhões) por ano durante 5 anos – a última parcela deve ser paga em julho deste ano. “Foi concedido apenas R$ 1,8 milhão, suficiente para pagar passagens, estadia e anuidades, mas não para produzir equipamentos”, comentou Salmeron, inconformado com o fato de o Brasil ter perdido para o Paquistão a chance de fabricar componentes de um eletroímã do Cern. Segundo Salmeron, a participação brasileira só não é comprometida por causa da boa vontade de grupos amigos no exterior, que financiam os brasileiros. Ele não é o único a se queixar da falta de apoio consistente e constante do governo federal à física de partículas. Coordenadores das equipes brasileiras no Cern afirmaram que a falta de planejamento nacional de longo prazo gera uma instabilidade prejudicial à área. “Tudo funciona à base de pedidos de financiamento individuais”, diz Jun Takahashi, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que trabalha no detector Alice. “Num experimento desse porte, não pode haver incerteza.” Fernando Marroquim de Almeida, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), comenta: “Há quase 20 anos trabalho no detector Atlas e todo ano tenho de ir ao CNPq pedir dinheiro e explicar o que faço. Pelo visto, o governo não quer comprometimento de longo prazo. A direção do Cern cobra do Brasil um memorando de entendimento, já assinado por países menores e mais pobres, como o Marrocos, o Chile, o Arzebaijão e a Polônia”. “Há anos temos um acordo de colaboração, que precisa ser renovado oportunamente (o último convênio de coo-

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FOTOS CERN

No caminho das partículas: especialistas realizam ajustes nos equipamentos dos dois maiores detectores, o Atlas e o CMS, no centro

peração foi assinado em 2006)”, afirma José Roberto Drugowich de Felício, diretor de programas horizontais do CNPq. A agência mantém duas linhas de apoio: uma relacionada às taxas de manutenção e operação e outra para cobrir gastos com a construção de equipamentos. “De 1999 a 2004 o CNPq pagou R$ 1,2 milhão para a construção de um equipamento para o detector Atlas”, conta. “Além disso, temos apoiado os grupos de pesquisa com bolsas de doutorado sanduíche com duração de 2 anos, em vez de 1, como o normal.” A ausência de planejamento em nível nacional também pode comprometer o impacto do trabalho brasileiro nesse projeto, afirma a física Renata Funchal, da Universidade de São Paulo (USP), que anos atrás participou de uma equipe francesa que trabalhava no antigo acelerador do Cern. “A comunidade brasileira é pequena e se pulverizou nos quatro experimentos do LHC, enquanto, nesses programas grandes, os Estados Unidos e os países da Europa mantêm uma política agressiva e direcional, focando a participação em um ou outro experimento”, comenta Renata. Ainda assim o país atua de modo efetivo no projeto Cern. Na UFRJ, a equipe de Marroquim desenvolveu chips que foram produzidos e testados por duas empresas paulistas e estão instalados no detector Atlas. Também no Rio e em São Paulo os grupos de Alberto Santoro, da UERJ, Alejandro Szanto Toledo e Marcelo Munhoz, da USP, e Sergio Novaes, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), implantaram no país um complexo computacional que equivale a mil computadores trabalhando em rede, ligados entre si e ao Cern por conexões ultra-rápidas de internet. “Assim, o dinheiro investido e o conhecimento gerado ficam no Brasil e contribuímos de forma efetiva para analisar os dados do Cern”, afirma Novaes. Não são apenas partículas e possivelmente física desconhecida que devem surgir nos arredores de Genebra. “Há um ganho importante, difícil de medir, que é o educacional, obtido só nesse tipo de colaboração”, afirma Takahashi. “Meus alunos trabalham em cooperação com mil pessoas de forma produtiva, aprendem programação em linguagem avançada e depois vão para empresas nacionais.” ■ PESQUISA FAPESP 147

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EVOLUÇÃO NA REDE

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ESTRATÉGIAS MUNDO

DIVULGAÇÃO/UNIVERSIDADE CAMBRIDGE

Mais de 100 mil documentos, entre manuscritos e imagens, colecionados pelo naturalista britânico Charles Darwin (1809-1882) tornaram-se acessíveis gratuitamente na internet, no endereço darwin-online.org.uk. A iniciativa é da biblioteca da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, que desde 1942 cuida dos arquivos, repassados pela família de Darwin. Entre as preciosidades do acervo há os apontamentos do naturalista sobre a viagem de quase 5 anos no barco inglês HMS Beagle e o registro das suas primeiras dúvidas sobre a permanência das espécies, que o levaram a desenvolver a teoria da seleção natural. O primeiro rascunho de A origem das espécies – um livro que revolucionou a ciência ao introduzir a idéia de evolução a partir de um ancestral comum – também figura entre os itens on-line. “Esses documentos estavam disponíveis apenas para os eruditos”, disse à agência AFP John van Wyhe, especialista em história da ciência responsável pelo projeto. “Darwin mudou para sempre nossa maneira de entender a natureza e os documentos revelam os detalhes de suas investigações e o imenso trabalho que havia por trás de suas publicações.”

> Costa Rica pode perder doação Itens da coleção (acima): o trabalho de Darwin (à direita) para formular suas teorias

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A Costa Rica corre o risco de perder uma doação de mais de € 10,9 milhões concedida pela União Européia para a construção de um grande centro de biotecnologia agrícola no país. Ocorre que o governo costa-riquenho até agora não fez a sua parte, que é investir € 4 milhões no projeto, construir a sede do laboratório e remover barreiras para a aquisição de equipamentos. O governo começou a se mover, mas há

dúvidas se concluirá o trabalho até o final do ano, que é o prazo limite determinado pelos europeus. “Nossos procedimentos impedem que o dinheiro fique sem uso por mais de 3 anos”, disse à revista Nature o holandês Roelf Smith, chefe do escritório da União Européia na Costa Rica. O Centro Nacional para Inovação Biotecnológica (CENIBiot) ajudaria o país a ampliar sua competência na produção de biocombustíveis e melhorar a eficiência das culturas de café, banana e abacaxi.

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UUSC

> Em busca do tempo perdido

> Primavera portuguesa Pela primeira vez em sua história Portugal exporta mais tecnologia do que importa. Outras boas novidades, como o aumento nos gastos com pesquisa e desenvolvimento a níveis nunca experimentados no país e o crescimento de setores avançados, como o de empresas de tecnologia de informação, sugerem que

Agricultora paquistanesa: mais verbas para pesquisa

o país ibérico deu impulso à transição de economia manufatureira para a de serviços baseados no conhecimento. “A boa formação de jovens profissionais e o nível de remuneração inferior ao padrão europeu colocam Portugal em posição competitiva”, disse ao jornal Financial Times José Gonzaga Rosa, da consultoria Ernst & Young. Os dados revelam o sucesso das políticas públicas do primeiro-ministro socialista José Sócrates. Com um programa calcado na redução das barreiras burocráticas impostas ao setor privado e no investimento crescente em inovação, o premiê destinará à ciência o equivalente a 1% do PIB em recursos públicos, diante de 0,47% de 2003. Uma marca a ser atingida até 2010 é a proporção de seis pesquisadores por grupo de mil trabalhadores do país. Hoje essa relaçãoé de 3,6 pesquisadores por mil trabalhadores. Um problema para chegar lá é o número elevado de jovens que não completam o ensino secundário. Eles são 40% dos adolescentes portugueses, o dobro da média da União Européia.

> Floresta em pé vale mais O fundo britânico de capital de risco Canopy celebrou um acordo com o governo da Guiana para conservar 371 mil hectares de floresta da reserva de Iwokrama. O acordo testa um modelo

Surucuámiudinho em reserva da Guiana: florestas tropicais com valor de mercado

GODFREY R.BOURN E/N SF

O Conselho de Pesquisa Agrícola do Paquistão (Parc, na sigla em inglês) aumentou em 100% seu orçamento para projetos em agricultura e pecuária desde 2005, chegando a um valor anual de US$ 15 milhões. A instituição, vinculada ao governo, tenta recuperar o tempo perdido. Ocorre que os investimentos do governo paquistanês em tecnologia voltada para a agricultura haviam caído 31% entre 1991 e 2000 – período em que o país enfrentou desaceleração do crescimento econômico, revertida nos últimos anos. Iftikhar Ahmed, pesquisador do Parc, disse à agência Sci. Dev.Net que o longo período com baixo orçamento fez com que os laboratórios de pesquisa agrícola perdessem mais de 150 especialistas, incluindo 53 Ph.D. “O declínio dos investimentos foi trágico porque no Paquistão a agricultura é uma chave de desenvolvimento e exportação, além de atrair divisas que ajudam o país a industrializar-se”, disse Khair Mohammad Junejo, ministro da Agricultura entre 2000 e 2003.

de exploração de serviços de ecossistemas, buscando fazer com que as florestas tenham mais valor preservadas do que cortadas. A idéia é estabelecer qual é o valor aceito pelo mercado dos benefícios gerados pela floresta, como acontece com os créditos de carbono, comercializados na forma de certificados. O fundo Canopy propõe-se a custear parte do orçamento para preservação da reserva e, em troca, quer participação nos direitos sobre os “serviços ecológicos” gerados pela floresta, como a criação de chuvas e a regulação do clima. “Como é possível que serviços do Google valham bilhões e as florestas tropicais do mundo não valham nada?”, indagou Hylton Murray-Philipson, diretor da Canopy, segundo o jornal The Independent.

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DIVULGAÇÃ O

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ESTRATÉGIAS M U N D O

décadas de 1930 e 1940 com gigantes como Albert Einstein e Niels Bohr. Durante a Segunda Guerra Mundial participou do Projeto Manhattan, que produziu a primeira bomba atômica. Jamais demonstrou arrependimento de ter participado do esforço de pesquisa, ao contrário de outros colegas. Dizia que sua decepção foi não ter criado a bomba a tempo de abreviar o conflito na Europa. Seu irmão Joe morreu em 1944, num combate em território italiano. “Para mim, ele foi o último titã, o único físico super-herói ainda de pé”, afirmou sobre Wheeler o cosmologista Max Tegmark, do Massachusetts Institute of Technology (MIT), ao jornal The New York Times.

O atrator de Lorenz: complexidade infinita

(1917-2008) O matemático e meteorologista norte-americano Edward Lorenz morreu aos 90 anos. Professor do Massachusetts Institute of Technology (MIT), era conhecido como o “pai da teoria do caos”. Lorenz propôs na década de 1960 que pequenas alterações em sistemas dinâmicos podem gerar grandes transformações. Ele construiu um modelo matemático sobre o modo como o ar se move na atmosfera. Concluiu que variações tímidas nos valores iniciais das variáveis produziam resultados muito divergentes – o que, na prática, explicava a dificuldade em fazer previsões meteorológicas superiores a 15 dias. Lorenz apresentou em 1963 as suas conclusões num trabalho em 30

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que descreveu um sistema simples de equações que resultam num padrão de complexidade infinita, o chamado atrator de Lorenz. Em 1972 publicou um estudo que se tornaria famoso: Previsibilidade: o bater de asa de uma borboleta no Brasil pode originar um tornado no Texas?.

> Um satélite para o V ietnã Entrou em órbita o primeiro satélite de comunicações do Vietnã. O Vinasat-1 foi ESA

> Edw ard Lorenz

lançado no dia 18 de abril a bordo de um foguete Ariane, que também carregava um satélite brasileiro pertencente à empresa Star One. Construído pela empresa norte-americana Lockheed Martin, o Vinasat-1 é considerado estratégico para o país asiático. “Ele vai melhorar a estabilidade e a segurança de nossa rede de dados”, disse o diretor do projeto, Hoang Minh Thong, à agência AFP. O satélite promete integrar as regiões remotas do país, que não têm se beneficiado tanto quanto as grandes áreas urbanas do crescimento econômico acelerado do Vietnã. O Vinasat-1 custou US$ 200 milhões. A expectativa é de que permaneça funcional por até 22 anos. Dotado de 20 emissores e receptores, o satélite pesa 2,5 toneladas, tem capacidade de servir 200 canais de TV digital ou dezenas de milhares de estações de telefone ou de internet em banda larga.

> John A. Wheeler (1911-2008) Morreu aos 96 anos o físico norte-americano John Wheeler, que participou do desenvolvimento da bomba atômica na década de 1940 e, em 1968, criou o termo “buraco negro” para designar a formação de um campo gravitacional capaz de absorver tudo em torno de si. Wheeler trabalhou nas

Buraco negro: fenômeno batizado por Wheeler

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ESTRATÉGIAS BRASIL

chamada O Instituto Virtual de Pesquisas FAPESP–Microsoft Research lançou a segunda chamada pública de propostas para apoio à pesquisa fundamental e de classe mundial em Tecnologias de Informação e Comunicações (TIC). O objetivo é selecionar projetos que tratem de questões relacionadas ao desenvolvimento no estado de São Paulo. A data-limite para envio das propostas é 18 de junho. Os projetos deverão ter duração de no máximo 2 anos. O total de recursos é de R$ 834 mil. Foram contempladas na primeira chamada as áreas de saúde, educação, inclusão digital, agricultura e governo eletrônico. Os trabalhos são de grupos de pesquisa da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O Instituto Virtual de Pesquisas FAPESP– Microsoft Research é o resultado de um convênio assinado entre as duas instituições em abril de 2007. Trata-se de uma iniciativa pioneira no país que associa os setores público e privado para estimular a geração e a aplicação de conhecimento em TIC. O propósito é formar uma rede de pesquisadores que ajude a enfrentar desafios econômicos e sociais de comunidades desfavorecidas, rurais ou urbanas. Mais informações podem ser obtidas no endereço www. fapesp.br/chamadas/ms2008.

O médico e farmacologista Sérgio Henrique Ferreira foi o ganhador da edição 2007 do Prêmio Almirante Álvaro Alberto, de Ciência e Tecnologia, concedido pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Fundação Conrado Wessel. O prêmio será entregue no dia 6 de maio no Rio de Janeiro. Ferreira receberá um diploma, medalha e R$ 150 Sérgio Ferreira: reconhecimento mil. Professor titular da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), presidiu a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) por dois mandatos e é membro da National Academy of Sciences (NAS) e da Academia Brasileira de Ciências (ABC). Citado em mais de 11 mil artigos, é reconhecido pelas pesquisas que desenvolveu em farmacologia geral, sobre o processo inflamatório, mediadores da dor inflamatória e analgésicos. Em 1965 publicou um artigo no periódico British Journal of Pharmacology, onde anunciava: “Os resultados descritos no presente artigo indicam que o veneno da cobra Bothrops jararaca contém um fator que potencializa in vivo e in vitro algumas das ações farmacológicas da bradicinina, molécula de função vasodilatadora”. A molécula isolada foi o ponto de partida para o desenvolvimento de drogas anti-hipertensivas hoje largamente utilizadas.

> Novos dirigentes no Ipen e na Cnen O físico Nilson Dias Vieira Junior assumiu o cargo de superintendente do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) no dia 16 de abril, em cerimônia que teve a participação do ministro da Ciência e Tecnologia, Sérgio Rezende. Vieira ocupava o cargo de gerente do Centro de Lasers e Aplicações do Ipen, unidade de pesquisa na área de lasers aplicados à medicina, odontologia, indústria e meio ambiente.

Foi membro do conselho superior da FAPESP de 2000 a 2006. No mesmo dia, o ministro Rezende deu posse ao físico Marcos Nogueira Martins no cargo de diretor de pesquisa e desenvolvimento da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen). Martins é doutor em física pela Universidade de São Paulo (USP) e tem pósdoutorado pelo National Institute of Standards and Technology, nos Estados Unidos. Martins foi escolhido para o cargo por um comitê de buscas, método usado pelo Ministério da Ciência

e Tecnologia para seleção de dirigentes de unidades de pesquisa, mas nunca utilizado antes na Cnen. O comitê foi presidido por Roberto Salmeron, do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS-França), e teve como membros Celso Pinto de Melo, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Aquilino Martinez, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Cecil Chow Robilotta, da USP, e Hernan Chaimovich Guralnik, da USP e da Academia Brasileira de Ciência (ABC).

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JOEL SILVA/FOLHA IMAGEM

> Segunda

BIOGRAFIA NOTÁVEL

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ESTRATÉGIAS BRASIL

os tremores O terremoto de 5,2 graus na escala Richter que atingiu diversas cidades brasileiras na noite de 22 abril não chegou a surpreender os especialistas. Segundo Marcelo Assunção, professor do Instituto de Astronomia e Geofísica da Universidade de São Paulo (USP), a área do mar em que ocorreu o epicentro do fenômeno, a cerca de 215 quilômetros de São Vicente, no litoral paulista, é ativa em termos sísmicos. Mas os tremores, que acontecem todo mês e têm de 3 a 4 pontos na escala Richter, não chegam a ser percebidos pelas pessoas. Essa área instável, na região do talude continental, situase, no caso das regiões Sul e Sudeste, a cerca de 200 quilômetros do continente, enquanto no Nordeste suas bordas finais estão mais próximas, 50 quilômetros mar adentro. A ocorrência do fenômeno com intensidade maior reforçou a importância de promover estudos mais detalhados sobre a atividade sísmica. Há um projeto em desenvolvimento, bancado pela Petrobras, que irá monitorar com mais eficiência os tremores para evitar que eles afetem seus dutos e plataformas em alto-mar. Doze estações sismográficas devem ser instaladas no litoral, entre Linhares, no Espírito Santo, e Tubarão, em Santa Catarina, até o final de 2009. O custo total do projeto é de R$ 6 milhões. 32

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A Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) anunciou que destinará R$ 2,55 bilhões para instituições de ensino e pesquisa e empresas inovadoras em 2008. O orçamento será o maior dos 40 anos de história da agência da inovação do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). Caso seja executado integralmente, haverá R$ 1,2 bilhão para operações com empresas, enquanto o restante, cerca de R$ 1,35 bilhão, será destinado ao apoio a pesquisas em áreas prioritárias de cada um dos 14 fundos setoriais, como Petróleo, Infra-Estrutura, Energia, Transportes e Amazônia. Da parcela de recursos reservada ao setor privado, R$ 740 milhões ficarão disponíveis para contratos de financiamento com retorno. Nesse caso, os encargos financeiros são reduzidos. Já o programa de Subvenção Econômica à Inovação, modalidade que não prevê a devolução à Finep do valor investido no projeto, levará R$ 325 milhões. Dois editais do programa foram lançados nos últimos 2 anos, beneficiando 260 empresas. A previsão inicial do orçamento de 2008 era maior, de cerca de R$ 2,8 bilhões, mas sofreu cortes no Congresso Nacional. Segundo a Finep, existe a expectativa de recuperação, até o final do ano, dos R$ 250 milhões contingenciados. Em 2007 os investimentos da agência em inovação somaram R$ 1,9 bilhão.

ORÇAMENTO CRESCENTE

> Para sentir

> Contra os golpes da internet O Centro de Atendimento a Incidentes de Segurança (Cais) da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP/MCT) lançou um catálogo de golpes por e-mail em sua página na internet (www.rnp.br/cais/ fraudes.php). As fraudes em geral remetem a fatos do momento. Hoje circulam na rede e-mails sobre problemas no processamento na declaração do Imposto de Renda ou prometendo supostas novidades sobre o assassinato da garota Isabella Nardoni, em São Paulo. Uma vez abertos, os e-mails

descarregam softwares fraudulentos que, na maioria dos casos, roubam senhas pessoais do usuário. Ao longo do ano passado, os analistas do Cais receberam, em média, 80 arquivos maliciosos por dia. O centro trata, há 1 década, de incidentes de segurança ocorridos na rede nacional

acadêmica e científica – rede Ipê –, que conecta cerca de 400 instituições de ensino e pesquisa e mais de 1 milhão de usuários. Segundo técnicos do centro, a nova página atende à demanda de universidades, empresas e usuários, que têm enviado relatos sobre mensagens fraudulentas que recebem.

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ILUSTRAÇÕES LAURABEATRIZ

PORTAL REFORÇADO

O Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) foi agora reforçado com mais 176 títulos. O acervo faz parte da Coleção Artes e Ciências da JSTOR (sigla para Journal Storage). A base de periódicos foi criada em 1990 por um consórcio de universidades e laboratórios e tem 1 bilhão de acessos por ano oriundos de mais de 4 mil instituições de ensino. Atualmente é mantida por uma organização não-governamental e tem sede em Nova York. Os títulos abrangem 15 áreas do conhecimento, entre as quais ciências humanas e sociais, com destaque para economia, sociologia, ciência política, história, antropologia, ecologia, matemática e estatística. Segundo o presidente da Capes, Jorge Guimarães, outros bancos de dados da JSTOR devem incorporar-se ao portal. Criado em 2000, o portal de periódicos da Capes dispõe de 126 bases de publicações com 12,3 mil títulos no Brasil e do exterior, acessíveis em bibliotecas e computadores de instituições de ensino superior de todo o país.

> Apoio a museus de ciências A FAPESP e a Vitae – Apoio à Cultura, Educação e Promoção Social lançaram seleção pública destinada a apoiar projetos de pesquisa que busquem o aprimoramento e a ampliação das atividades educacionais e de divulgação científica de centros interativos de ciências e museus de ciências no estado de São Paulo. Podem participar pesquisadores de instituições de ensino

superior e de pesquisa paulistas. As propostas deverão obrigatoriamente ter a participação de um museu ou um centro de ciências. O prazo de inscrição termina no dia 18 de julho. O total de recursos disponível é de R$ 1,64 milhão. Espera-se selecionar em torno de oito propostas. Entre as atividades que poderão ser apoiadas estão a instalação e/ou aprimoramento de laboratórios, bibliotecas, salas de audiovisual e outros ambientes de apoio,

o treinamento de profissionais, a produção de material de apoio, didáticos e de divulgação e a produção de exposições. Para a fase I, cada proposta

poderá solicitar até R$ 20 mil. Para a fase II não há um limite estabelecido. Mais informações podem ser obtidas no endereço www.fapesp.br/vitae.

A Universidade de São Paulo (USP) GRADUAÇÃO vai oferecer, a partir de 2009, o curso INÉDITA de bacharelado em engenharia de biossistemas, uma nova área do conhecimento que surgiu da evolução tecnológica dos processos de produção agropecuária. O curso irá oferecer 60 vagas em período integral e será ministrado na Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos (FZEA), no campus de Pirassununga. Será o primeiro bacharelado do gênero na América Latina. “Apenas instituições dos Estados Unidos, Canadá e de países europeus ministram cursos como este em nível de graduação”, diz Celso Eduardo Lins de Oliveira, professor da FZEA. O curso da USP terá duração de 10 semestres. Para formar um profissional com competência para projetar sistemas que favoreçam a produção sustentável, contará com uma forte base em matemática, física, biologia e química e em fundamentos das engenharias. PESQUISA FAPESP 147

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POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

COMPETITIVIDADE

Lições dos

inovadores

Estudo mapeia estratégias de sete países que produzem pesquisa de classe mundial e faz recomendações para o Brasil

D

e que maneira o Brasil pode inspirar-se no exemplo de países que conseguiram aperfeiçoar seu ambiente acadêmico e empresarial e passaram a produzir pesquisa e inovação de classe mundial? Divulgada no final de abril, a pesquisa Mobit – Mobilização Brasileira para a Inovação teve o mérito de compilar as iniciativas adotadas por sete países para formar redes de pesquisa, articular recursos e esforços públicos e privados e, talvez o mais importante, formar um consenso sobre os objetivos a atingir. O estudo comparou as políticas industriais e de inovação dos Estados Unidos, França, Canadá, Irlanda, Reino Unido, Finlândia e Japão. E também se estendeu ao Brasil, onde foram entrevistados empresários e autoridades. O resultado é um diagnóstico do que aproxima e do que separa nosso ambiente do das demais nações. O estudo evita apontar soluções categóricas para o Brasil, pois as iniciativas deram certo em países com culturas e estágios de desenvolvimento bem diferentes. “Não é possível fazer transposições mecânicas nem afirmar que existem saídas únicas e salvadoras. Mas esses países compartilham um conjunto de estratégias e comportamentos que deixam lições”, diz o sociólogo Glauco Arbix, coordenador da

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Mobit e do Observatório de Inovação e Competitividade, sediado no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA/USP). O estudo foi encomendado pela Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI) e executado pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Durante 10 meses, os pesquisadores liderados por Arbix percorreram os sete países, entrevistaram autoridades e formuladores de políticas públicas e levantaram dados sobre os planos adotados e seus resultados. Observaram, por exemplo, que todos dão à inovação o status de fator mais importante de suas estratégias competitivas, engajando atores como o meio empresarial, as universidades e o governo. “Cada um a sua maneira, esses países caminharam para um paradigma em que o conhecimento ocupa lugar central na reprodução de novas relações econômicas e sociais”, diz Glauco Arbix. Isso se deu, segundo o estudo, por meio de mobilizações que aperfeiçoaram seus sistemas nacionais de ciência e tecnologia a fim de que produzissem pesquisa e inovação de classe mundial. “A preocupação deles é com o que está sendo feito de melhor no mundo”, afirma o sociólogo. Uma característica marcante é o lugar atribuído às empresas nessas estratégias. O setor privado tem um papel central. Todos os esforços estão orien-

tados para aperfeiçoar as atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação no ambiente empresarial. Há consenso de que é através da empresa que a economia irá movimentar-se e gerar bem-estar econômico. Nos sete países pesquisados as universidades são pressionadas a colaborar. “Não se trata de discutir sua autonomia, mas sim a relevância de sua pauta de pesquisa. As universidades são estimuladas a se adaptar às mudanças para ajudar as empresas e estão cumprindo esse papel cada vez mais”, diz Arbix. Ao setor público cabe a missão fundamental de articular os esforços, patrocinar políticas públicas e leis que desanuviem os entraves do ambiente empresarial e acadêmico e, é claro, de investir em educação básica e superior e na infra-estrutura de pesquisa. “Nos órgãos públicos dos países que visitamos a inovação não é vista mais como tecnologia. Inovar significa incorporar conhecimentos, novos ou maduros, de modo inédito, por meio de processos que podem se manifestar em todos os setores. No Reino Unido, por exemplo, há grande ênfase na inovação do setor financeiro, uma vez que o país pretende se consolidar como o maior centro de finanças do mundo”, afirma o coordenador da pesquisa. Outro importante denominador comum é a persistência e a durabilidade

NOKIA

Fabrício Marques

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Laboratório da Nokia: a Finlândia é um exemplo de articulação entre universidade e empresa

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SANDIA

Gerador de raios X dos laboratórios Sandia: parceria público-privada nos EUA

das políticas públicas voltadas à inovação. Entre os exemplos citados, um dos mais eloqüentes é o dos Estados Unidos, onde a política para a inovação adotada pelo governo Bush é rigorosamente a mesma traçada na década de 1990 pelo governo Clinton, apesar de todas as diferenças que separam os dois governos. Em alguns casos, a “concertação” é antiga, mas isso não é regra. Se a Finlândia alcançou esse consenso há décadas, a Irlanda estabeleceu seu Social Partnership em 1987 – experiência apontada como central para o crescimento econômico dos últimos anos. Até meados da década de 1980, as universidades irlandesas eram muito mais

voltadas à docência do que à pesquisa, pois se valiam dos avanços tecnológicos da influente vizinha Inglaterra. Incubadoras - As dificuldades do Bra-

sil também foram mapeadas e analisadas sob a perspectiva dos sete países visitados. O estudo aponta problemas, como o hábito de confundir política industrial com a redução do chamado “custo Brasil”, o baixo número de empresas inovadoras que exportam e as resistências para a ampliação da cooperação entre empresas e universidades. A lista é mais extensa: inclui a ausência de coordenação política, o baixo aproveitamento do poder de compra

Mesmo quando os governos mudam, as políticas públicas no campo da inovação são preservadas

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governamental, o prazo longo para a liberação de recursos, a incerteza jurídica, a deficiência de gestão e a carência de empreendedores, a ação insuficiente das incubadoras tecnológicas... O diagnóstico é acompanhado por um elenco de recomendações, como o aprofundamento do diálogo com lideranças empresariais, o levantamento dos pesquisadores brasileiros radicados no exterior e a conseqüente tentativa de engajá-los em redes nacionais, e a criação de um fundo nacional de inovação, com forte viés de capital de risco, para estimular o surgimento de novas empresas e de novos produtos. O estudo sugere incentivos para o desenvolvimento de pólos, arranjos e redes voltados à inovação e que envolvam obrigatoriamente empresas e instituições de pesquisa. A proposta se inspira na experiência francesa dos Pólos de Competitividade e no modelo finlandês dos Centros Estratégicos para Ciência,

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Uma das idéias é mapear os pesquisadores brasileiros

DIVULGAÇÃO/PEUGEOT

radicados no exterior e atraí-los para redes nacionais Tecnologia e Inovação. “Mas não vamos avançar em nossos parques tecnológicos ou arranjos produtivos regionais se não fizermos escolhas. A especialização é fundamental para alcançar resultados”, diz Arbix. Recomenda-se ainda o financiamento de dezgrandes projetos de desenvolvimento tecnológico a serem selecionados. Eles devem estar vinculados a problemas reais, a exemplo dos esforços feitos pela França para criar o TGV, trem de alta velocidade, e pelo Japão na pesquisa de supercomputadores. Os resultados do estudo Mobit tiveram boa repercussão entre especialistas do campo da inovação. Carlos Américo Pacheco, professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e ex-secretário executivo do Ministério da Ciência e Tecnologia, lembra que parte do diagnóstico já era conhecido, mas diz que o estudo avança ao apontar novos caminhos. “O que há de mais relevante para nós é a ênfase que o estudo dá para a necessidade de redesenhar as instituições envolvidas com inovação, de fechar coisas que estão em funcionamento e abrir novas, além de ter um consenso estratégico de onde se quer chegar. Temos grande dificuldade de fazer isso no Brasil”, afirma. Outra lição importante, segundo Pacheco, diz respeito à necessidade de discutir estratégias de médio e de longo prazo “Estamos sempre ocupados discutindo os instrumentos e há uma overdose deles. Se uma empresa for acompanhar todos os editais e chamadas que surgem todos os anos, não fará outra coisa. Mas não paramos para debater estratégias e encontrar mecanismos para atingi-las. Em que setores queremos nos destacar dentro de 20 anos? Que mecanismos institucionais precisamos criar para atingir esses objetivos?”, indaga. David Kupfer, professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), vê dificuldades em adotar algumas experiências dos países analisados no estudo. “A economia brasileira vive a transição para uma economia de serviços, mas não somos uma economia pós-industrial como es-

ses países. Ainda precisamos viver uns 20 anos como economia industrial até alcançar esse estágio”, diz. Ele avalia que a “concertação” observada nos países inovadores é uma quimera no Brasil. “Não temos consenso sequer dentro do governo sobre a política macroeconômica – o Banco Central pensa uma coisa e o Ministério da Fazenda, outra. Políticas de inovação são políticas de longo prazo. E há uma enorme dificuldade em criar políticas de longo prazo num país tomado pelas necessidades prementes de atacar mazelas do subdesenvolvimento.” Obstáculo cultural - Para o diretor

científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz, um aspecto fundamental do estudo é o papel central atribuído à empresa no ambiente de inovação dos sete países. “O Brasil perdeu muito tempo achando que as universidades e os institutos de pesquisa eram o lugar para desenvolver inovação”, diz Brito Cruz. A mudança do foco da inovação no Brasil – da universidade para a empresa – começou em 1999 e ganhou força em

2001, na 1ª Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia. A idéia de que os setores público e privado devem articular-se também foi destacada. “Ainda existe um obstáculo cultural em relação a isso no Brasil. Supõe-se que o setor privado quer se aproveitar do setor público ou que o setor público quer se pôr à venda. Os exemplos desses países mostram que os dois setores podem colaborar, em benefício tanto do interesse público quanto do privado, e que isso pode ser bom para o país.” Brito destacou também que é preciso entender e respeitar os diferentes papéis que as instituições devem ter num sistema de inovação. No caso da colaboração entre universidades e empresas, é preciso evitar a mistificação que tenta fazer da universidade um apêndice da empresa. Mesmo nos Estados Unidos os custos da pesquisa acadêmica são bancados majoritariamente pelo Estado e somente 7% desses custos são financiados por colaborações com empresas. “Não se trata de transformar a universidade no laboratório de pesquisa e desenvolvimento que a empresa não quer criar. É preciso ter uma universidade dedicada ao progresso do conhecimento, para que ela continue a gerar conhecimento relevante em favor da sociedade, e não apenas para contribuir com as empresas.” ■

Carro híbrido desenvolvido pela Peugeot: França inova com pólos de competitividade

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IN D IC A D O R E S

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O retorno do investim ento

uatro grandes programas de pesquisa oferecidos pela FAPESP passaram por um inédito processo de avaliação, que, em linhas gerais, revelou um elevado grau de eficiência no apoio a pequenas empresas de base tecnológica, no estímulo a parcerias entre empresas e universidades, no fomento à formulação de políticas públicas relevantes e no impulso à ascensão profissional de jovens pesquisadores com carreira consistente. A avaliação foi desenvolvida pelo Grupo de Estudos sobre Organização da Pesquisa e da Inovação (Geopi), vinculado ao Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT) do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a partir de uma iniciativa do Conselho Técnico-Administrativo da FAPESP. “O estudo apresenta não só os principais resultados de cada programa como também seus impactos, ou seja, os efeitos que esses resultados têm em diversas dimensões, entre elas econômica, social, industrial e de capacitação de recursos humanos”, disse Sergio Salles Filho, professor do DPCT e coordenador do projeto. “Estimamos, por exemplo, que as pequenas empresas de base tecnológica beneficiadas já recolheram em impostos um valor muito próximo ao investimento feito pela FAPESP”, diz Salles. Os dados foram coletados com os responsáveis pelos projetos de 38

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pesquisa encerrados até 2006 e vinculados a quatro programas: Pesquisa Inovativa na Pequena e Micro Empresa (Pipe), Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite), Programa de Pesquisa em Políticas Públicas e Apoio a Jovens Pesquisadores. O trabalho do grupo prosseguirá. De um lado, serão aprimoradas as metodologias de coleta de dados, para que o processo de avaliação se torne rotineiro na FAPESP. De outro, serão iniciadas as avaliações de outros programas da Fundação. A seguir, os principais resultados das avaliações: > Pe q u e n a s e m p r e s a s

A avaliação do programa Pesquisa Inovativa na Pequena e Micro Empresa (Pipe) mostra que aproximadamente 60% dos projetos avaliados geraram inovações tecnológicas, índice considerado bastante satisfatório. “Isso representou 111 inovações, sendo 59 consideradas novidades no país e 17 novidades em âmbito global”, afirmou Sergio Salles Filho. “Essas inovações se referem fundamentalmente a produtos, seguidos por softwares e processos. São inovações de base tecnológica, seguindo, assim, a proposta inicial do Pipe.” Ao todo, foram examinados 214 projetos – 63% do total de concluídos até 2006. Eles receberam R$ 52,9 milhões, média de R$ 247 mil por empresa.

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ILU S T R AÇ Õ ES B R AZ

Av a l i a ç ã o r e v e l a a l t o g r a u d e e f i c i ê n c i a e m

O Pipe foi lançado em 1997, com o objetivo de apoiar o desenvolvimento de pesquisas inovadoras em empresas com potencial de crescimento. O índice de mortalidade observado nas empresas, na casa dos 8%, foi muito inferior ao padrão brasileiro – 70% das pequenas e médias empresas desaparecem em 5 anos. O faturamento da maioria das empresas é modesto – em média R$ 480 mil anuais cada uma –, mas a tendência é de aumento crescente. A amostra estudada faturou, ao todo, R$ 146 milhões, mas 11 projetos concentram 90% desse valor. Dez por cento das empresas já obtiveram aporte de capital, sendo oito de capital semente (pequenos investimentos para transformar uma idéia em produto) e sete de capital de risco (investimentos para expandir a capacidade de produção). Apenas cinco tiveram aumento de faturamento ligado à atividade exportadora.

q u a t r o p r o g r a m a s d a FAP ES P

Um dos destaques da avaliação foi a identificação das características comuns às empresas de maior sucesso. De modo geral, trata-se de empresas que são spin-offs de outras (e herdaram competência empreendedora), não foram incubadas (certa fragilidade caracteriza as empresas que recorrem ao ambiente protegido das incubadoras), tiveram coordenadores que se tornaram sócios da empresa e que tinham formação em pós-graduação. Para João Furtado, professor da Escola Politécnica da USP e um dos coordenadores do Pipe, o desempenho superior das empresas cujos coordenadores são pós-graduados se explica pela experiência marcante que um mestrado ou um doutorado promovem no perfil profissional. “Quem fez pós-graduação tem uma vantagem, que é a experiência em cumprir prazos e metas e ter compromisso com resultados – comporta-

mentos que fazem diferença dentro de uma empresa”, diz Furtado. Ele julga que um dos dados mais relevantes é o que aponta o crescimento constante do faturamento dessas empresas. “O mercado está reconhecendo que o que essas empresas produzem vale dinheiro. E vários desses produtos têm um enorme potencial”, afirma. O número de empregados nessas empresas cresceu 29% na vigência do programa, mas os avaliadores encontraram um dado negativo: parte significativa dos coordenadores de projeto (40% do total) deixou os quadros após o término do projeto. Surgiu um dado curioso ao avaliar o que aconteceu com projetos contemplados na primeira fase do Pipe, mas que não foram aprovados para passar à fase II. Nada menos do que 20% dos projetos denegados alcançaram inovações, num sinal de que o rigor com que foram avaliados não os impediu de prosseguir. PESQUISA FAPESP 147

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> Pa r c e r i a p a r a i n o v a ç ã o

O programa Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite) semeou frutos duradouros. Um dado eloqüente: 69% das empresas e 76% das instituições de pesquisa celebraram novas parcerias após o Pite e apontam a experiência propiciada pela FAPESP como uma grande motivação para a repetição. O Pite foi lançado em 1995, com o objetivo de financiar estudos em instituições acadêmicas ou de pesquisa, desenvolvidos em cooperação e com co-financiamento de empresas. A intenção, pioneira na época, era estimular um tipo de parceria que tivesse como alvo pesquisas inovadoras ancoradas nas universidades e também garantisse o comprometimento das empresas com o processo de transfe40

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rência do conhecimento, por meio de contrapartidas financeiras e da participação nos riscos do projeto. Os avaliadores analisaram 65 projetos concluídos até 2006. As parcerias envolvem, na maioria, universidades e institutos públicos (95%) e grandes empresas brasileiras (67% com mais que 500 empregados; 82% com capital nacional). A iniciativa partiu das universidades em 70% das propostas, com os 30% restantes originários das empresas. A FAPESP investiu R$ 43,1 milhões neles, ou R$ 525 mil em média para cada um. Com a contrapartida das empresas, o valor total investido por pesquisa subiu para R$ 1,1 milhão. Os dados mostram que 60% dos projetos resultaram no desenvolvimento de tecnologias e conhecimento novo, mas sem aplicação

imediata, enquanto 30% geraram inovações em âmbito nacional e mundial e 10% inovações no âmbito da empresa. Esses dados levaram os avaliadores a considerar que o número de empresas que efetivamente produziram inovação, 26 num universo de 65, ficou aquém do esperado. “Cerca de 60% dos projetos Pite não geraram inovação e, por isso, devemos investigar melhor as razões para o não aparecimento de mais atividades dessa natureza”, observou. “Isso mostra que o Pite, muito mais do que um programa de inovação, é voltado às parcerias que geram desenvolvimento tecnológico de longo prazo”, apontou. Para Sérgio Queiroz, professor do Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp e um dos coordenadores do Pite, a interpretação desses dados pode levar a uma confusão. “Não se pode dizer que houve um desvio do objetivo na porção de projetos em que o Pite gerou avanços de conhecimento, mas não inovações”, afirma Queiroz. “Muitas empresas precisam desses avanços para superar gargalos que, mais adiante, permitirão que inovem. No orçamento de pesquisa e desenvolvimento (P&D) das empresas são gastos em geral 20% com pesquisa e 80% com desenvolvimento. Pode-se afirmar que, em muitos casos, as empresas recorrem à parceria para resolver entraves no campo da pesquisa que, num segundo momento, permitirão avanços em suas equipes de desenvolvimento”, diz Queiroz. O professor lembra ainda que os projetos Pite são classificados em três categorias (Pite 1, 2 e 3), divididas segundo o risco tecnológico envolvido na proposta – a contrapartida da FAPESP é maior nos projetos Pite 3, que têm maior risco. “É natural que em projetos de maior risco a produção de inovações não seja tão expressiva quanto nos de menor risco”, afirma. A percepção dos parceiros – universidades e instituições de pesquisa – revela uma elevada satisfação com o Pite. Do lado da instituição de pesquisa, a principal competência relatada foi P&D, mas também houve impacto em quesitos como a gestão de projetos e a identificação de demandas das empresas. Do lado das empresas, além do P&D, os destaques foram os ganhos de competência na negociação com atores públicos e conhecimento de fontes de financiamento.

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> Po l í t i c a s p ú b l i c a s

No Programa de Pesquisa em Políticas Públicas, que financia parcerias entre pesquisadores e instituições voltadas ao atendimento de demandas sociais, foram analisados 75 projetos de 1999 a 2006, o que representou 85% dos concluídos no período. A FAPESP investiu R$ 10,2 milhões na amostra examinada, uma média de R$ 137 mil por trabalho. Um resultado importante foi a criação de uma cultura de inovação nas organizações executoras de políticas públicas. Cinqüenta e quatro projetos relataram ter alcançado, no total, 180 resultados, entre os quais 89 inovações tecnológicas. Nada menos do que 89% desses resultados foram implementados, parcial ou totalmente, como políticas públicas pelas instituições parceiras. A FAPESP criou o programa em 1998 com o objetivo de apoiar pesquisas capazes de produzir e sistematizar conhecimentos relevantes para a definição e implementação de políticas públicas. Os projetos obrigatoriamente se desenvolvem por meio de parcerias entre pesquisadores e um órgão ou instituição governamental, ou com uma organização que atue no campo das políticas

A conclusão dos avaliadores é que o programa promove a interação entre instituições de pesquisa e as entidades que formulam políticas públicas e que a pesquisa é realimentada pelo contato com a política real. Entre as sugestões para aperfeiçoar o programa, figuram idéias como estimular mais a iniciativa das instituições parceiras – a maioria dos projetos veio de pesquisadores – e incentivar propostas mais densas em termos de recursos e parcerias. >Jo v e m

p e s q u is a d o r

O programa Apoio a Jovens Pesquisadores da FAPESP foi lançado em 1995 com a proposta pioneira de estimular a independência e o amadurecimento de doutores, naquela fase da carreira em que se enfrentam percalços como a falta de vínculo empregatício e as dificuldades materiais para liderar projetos robustos. O objetivo era criar oportunidade de trabalho para pesquisadores ou grupo de pesquisadores de grande potencial, de preferência em centros emergentes. “Entre as principais vantagens desse programa estão a fixação e a nucleação de novos grupos de pesquisa nos lugares por onde esses jovens pesquisadores passaram”, disse

Jovens doutores ajudaram a semear ou a fixar grupos de pesquisa nas instituições que os acolheram públicas. A intenção é assegurar que os resultados da pesquisa sejam levados à prática. No caso da amostra avaliada, a maioria dos parceiros eram instituições públicas da administração direta, sendo 48% na esfera municipal e 38% na estadual, e 12% com entidades privadas. Foram geradas ainda 3,8 dissertações de mestrado e 2,2 teses de doutorado por projeto do programa. “Mais de 80% dos projetos desenvolveram algum tipo de capacitação, sendo a maior parte para representantes das instituições parceiras que formularam e executaram políticas, o que contribuiu para a transferência mútua de conhecimentos. Isso sem contar que 89% dos resultados dos projetos foram implementados como políticas públicas pelas instituições parceiras”, disse Salles Filho.

Sergio Salles Filho. Foram examinados 340 projetos ou 86% das pesquisas finalizadas de 1996 a 2007. A FAPESP investiu R$ 64,6 milhões na amostra, o equivalente a R$ 190 mil por projeto. Os beneficiados foram profissionais já com densa experiência em pesquisa – 72% têm pós-doutorado. A média de idade é de 42 anos. Apesar do nome do programa, não há restrição em relação à idade dos proponentes. Os avaliadores constataram que vários propósitos do programa foram alcançados. Um deles foi a ambição de criar novos núcleos de pesquisadores. Os dados mostram que 70% dos jovens pesquisadores criaram ou impulsionaram grupos de pesquisa ativos, na maioria, até hoje. O destaque coube aos beneficiários instalados em instituições

privadas distantes dos grandes centros urbanos. As áreas que mais inspiraram a criação de grupos de pesquisa foram Ciências Exatas e da Terra, Ciências Biológicas e Engenharias. No total, 87% dos indivíduos estavam contratados no período em que o levantamento foi realizado. Cerca de 26% dos pesquisadores apoiados pelo programa já estavam contratados pelas instituições, 42% foram admitidos durante ou após o auxílio e 19% foram admitidos por outras instituições de ensino superior. Do universo de pesquisadores e instituições entrevistados, 70% afirmaram que o auxílio teve impacto nos programas de pós-graduação, especialmente quanto à criação de novas disciplinas. A produtividade média dos jovens pesquisadores, mensurada pelos números de publicações em periódicos científicos, também cresceu consideravelmente depois do recebimento do auxílio da FAPESP. Houve, contudo, objetivos do programa que não foram atendidos, segundo os avaliadores. Observou-se, por exemplo, que uma grande maioria de jovens pesquisadores vincularam-se a instituições públicas que já tinham programas de pós-graduação, sugerindo que a meta de estimular a criação de centros emergentes não foi propriamente alcançada. Essa conclusão desencadeou um debate durante a apresentação dos dados da avaliação, no dia 16 de abril, no auditório da FAPESP. Presente na apresentação, o professor Rogério Meneghini, um dos idealizadores do programa Jovens Pesquisadores, afirmou que a idéia inicial não era apenas criar novos centros, mas também fortalecer instituições com tradição em pesquisa ainda em desenvolvimento: “Já no ponto de partida o programa deu certo, porque as universidades com mais tradição, como USP e Unicamp, entendendo o propósito da iniciativa, apresentaram menos propostas do que, por exemplo, a Unesp, que tinha uma carência maior de desenvolver novos núcleos de pesquisa”, disse Meneghini. Entre as sugestões apresentadas pelos avaliadores para aperfeiçoar o programa, destacaram-se a melhor definição de centros emergentes e o fomento a propostas fora das instituições de pesquisa tradicionais. ■

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POLÍTICAS PÚBLICAS

Com força de lei Mapa do Biota-FAPESP vira parâmetro para retirada de verde nativo em São Paulo

O

s dados científicos acumulados pelo Programa BiotaFAPESP passaram a orientar os critérios para autorização de retirada da vegetação nativa em território paulista. Uma resolução da Secretaria Estadual de Meio Ambiente (SMA) estabeleceu que a análise de todos os pedidos para uso de áreas com florestas nativas deverá se basear nas categorias de importância para a restauração definidas no mapa “Áreas Prioritárias para Incremento para Conectividade”. Pesquisa FAPESP publicou em novembro de 2007 (edição 141) um grande mapa que contém os dados de conectividade, entre outros. O trabalho foi desenvolvido nos últimos 2 anos por 160 pesquisadores do Biota-FAPESP (Programa de Pesquisas em Caracterização, Conservação e Uso Sustentável da Biodiversidade do Estado de São Paulo) em parceria com a SMA. “Fornecer diretrizes às políticas públicas era um dos objetivos iniciais do programa. Depois de 10 anos, pudemos reunir um volume de dados suficiente para alcançar esse propósito”, disse à Agência FAPESP o coordenador do programa, Ricardo Ribeiro Rodrigues. Segundo ele, a resolução demonstra a efetividade do uso dos dados científicos na formulação das políticas públicas estaduais na área ambiental. “O mais importante é que os critérios agora terão uma base científica”, disse Rodrigues, que é professor do Departamento de Ciências Biológicas da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP).

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Desde sua criação em 1999 o BiotaFAPESP permitiu a descrição de mais de 500 espécies de plantas e animais espalhados pelos 250 mil quilômetros quadrados do território paulista, produziu 75 projetos de pesquisa, 150 mestrados e 90 doutorados, além de gerar 500 artigos em 170 periódicos, 16 livros e dois atlas, graças a um investimento médio anual de US$ 2,5 milhões feito pela FAPESP. Áreas prioritárias – A resolução utiliza os dados do Biota para determinar os critérios usados para não autorizar o uso de áreas que se prestam ao papel de corredores ecológicos e de abrigo de biodiversidade. O mapa de conectividade assinala essas áreas prioritárias. “Nos mapas identificamos os fragmentos que são considerados prioritários para conservação e indicamos essas áreas para a compensação da reserva legal das propriedades agrícolas, além de recomendar a interligação desses fragmentos pela restauração da mata ciliar funcionando como corredor ecológico”, disse. De acordo com o professor, dos 3,5 milhões de hectares de vegetação remanescente no estado, apenas 760 mil estão em unidades de conservação. “O

Os dados levantados pelo Biota já orientam as ações de governo

restante está em mãos de proprietários particulares. Para conservar esses locais a proposta é transformá-los em reserva legal. Para as melhores áreas desses trechos, recomendamos a transformação em Reserva Particular de Patrimônio Natural”, afirmou. Segundo a resolução, quem quiser solicitar a supressão de vegetação nativa dentro dos limites das áreas demarcadas como prioritárias pelo Biota deverá apresentar um estudo de fauna e flora, independentemente do estágio de regeneração em que se encontrar a vegetação. Só serão permitidas a supressão e a exploração da área nativa se a vegetação não abrigar espécies da fauna e flora silvestres ameaçadas de extinção. A concessão de autorização atenderá a critérios fixados pelo mapa de conectividade. ■

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P A R C E R IA

E sforço integrado

MIG U EL B OY AY AN

U

m protocolo de intenções celebrado entre a FAPESP, o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) estabelece a ampliação do Programa de Apoio aos Núcleos de Excelência (Pronex) para financiar projetos de pesquisa nas áreas de bioenergia e mudanças climáticas globais no estado de São Paulo. O documento foi assinado no dia 16 de abril, na presença de membros do Conselho Superior da FAPESP, pelo ministro da Ciência e Tecnologia, Sérgio Rezende, pelo diretor de programas horizontais e instrumentais do CNPq, José Roberto Drugowich de Felicio, pelo presidente da FAPESP, Celso Lafer, e pelo diretor científico da Fundação, Carlos Henrique de Brito Cruz. O MCT e a FAPESP comprometemse a prover R$ 40 milhões em 4 anos para a execução do Pronex. A FAPESP dará a metade do valor para financiamento de projetos e o CNPq concederá os outros R$ 20 milhões para o pagamento de bolsas. Outros R$ 30 milhões, de um convênio firmado em 2003 entre

FAP g o v v ã o p ro e m e m c lim

ES P e e rn o fe d e ra l f in a n c ia r je t o s b io e n e r g ia u d a n ç a s á t ic a s

FAPESP e CNPq, serão disponibilizados para o esforço conjunto. Sérgio Rezende afirmou que os dois temas escolhidos encaixam-se nas estratégias do Plano de Ação de Ciência, Tecnologia e Inovação, lançado pelo governo federal em 2007. “O plano tem quatro prioridades e, em uma delas, que é voltada para pesquisa e desenvolvimento em áreas estratégicas, as áreas de bioenergia e mudanças climáticas globais têm importância muito grande”, afirmou o ministro.“Em 2007, o MCT identificou que o estado de São Paulo, que tem peso muito grande em todos os setores de pesquisa, destaca-se ainda mais nessas duas áreas específicas, nas quais a FAPESP

estava trabalhando para ter programas estaduais mobilizadores. Por isso, nosso programa nacional terá uma parte importante no estado, que será feita de maneira articulada com a FAPESP”, afirmou. O presidente da FAPESP, Celso Lafer, ressaltou a importância da parceria. “A bioenergia é fundamental para o país e para o estado de São Paulo, ao passo que a preocupação com a mudança climática é sem dúvida nenhuma um dos grandes temas da agenda brasileira e da agenda internacional. Estamos convencidos de que, mediante os recursos que disponibilizaremos em conjunto, poderemos avançar no conhecimento nessas áreas e na sua aplicação prática”, disse. “Essas são preocupações de longo prazo e preocupações de Estado. O esforço que a gente está fazendo é de dar a isso um respaldo institucional, convencidos que estamos que esse é um interesse do Brasil que precisa ser cuidado”, resumiu. Segundo o diretor científico Carlos Henrique de Brito Cruz, o memorando sinaliza um compromisso da FAPESP, do MCT e do CNPq para o financiamento das duas áreas de pesquisa. “O objetivo é a criação de conhecimento relevante e de impacto mundial na área de bioenergia e na área de mudanças climáticas globais”, destacou. O diretor científico salientou que o protocolo conduzirá à articulação de projetos do MCT com dois programas organizados pela FAPESP, um sobre bioenergia e outro sobre mudanças climáticas, que ainda serão anunciados. “O MCT organizou uma rede nacional de pesquisas sobre mudanças climáticas globais, que vai trabalhar de forma articulada com o programa da FAPESP e, eventualmente, com programas que outras instituições do país venham a desenvolver. Ao mesmo tempo, vamos discutir como a FAPESP poderá contribuir com o Centro de Pesquisas sobre Bioenergia que o MCT está organizando”, afirmou Brito Cruz. ■ PESQUISA FAPESP 147

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> M E D IC A M E N T O S

P ronto para

com eç ar B u t ant an agu arda o av al da A nv isa para fornecer ao M inist é rio da S aú de fá rm aco qu e salv a bebê s prem at u ros

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á está pronta para entrar em operação a primeira fábrica brasileira de surfactante pulmonar, criada pelo Instituto Butantan, em São Paulo. Com capacidade para produzir 100 mil doses anuais do medicamento, a planta irá abastecer o Ministério da Saúde, que repassará gratuitamente o produto para as unidades de terapia intensiva neonatais de maternidades e hospitais públicos de todo o país. Espera-se que a distribuição tenha impacto nos índices de mortalidade infantil. Atualmente, cerca de 36 mil crianças recém-nascidas, a maioria prematuras, morrem no Brasil da chamada síndrome do desconforto respiratório (SRD). Essa doença se caracteriza pela deficiência de surfactante pulmonar, substância natural que protege os alvéolos pulmonares, mas só é produzida adequadamente no final da gravidez – metade dos nascidos antes das 32 semanas de gestação (8 meses) apresenta o problema. Quando o bebê nasce prematuro e os alvéolos não se abrem, é preciso aplicar uma dose de surfactante na traquéia prontamente. “Para salvar a criança, o medicamento precisa estar disponível logo após o nascimento”,

diz Flávia Saldanha Kubrusly, pesquisadora do Centro de Biotecnologia do Instituto Butantan. As versões importadas do produto custam de R$ 350 a R$ 500. Cada dose do surfactante do Butantan custará cerca de R$ 100. Por enquanto, a planta funciona apenas de forma experimental. Não há nenhuma restrição de ordem técnica para o início da operação, mas o Instituto Butantan só poderá começar a produzir e fornecer o surfactante quando o medicamento for aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A autorização, esperada desde 2007, não veio até agora. Os ensaios clínicos para validação do medicamento foram realizados, com sucesso, em 33 unidades de terapia intensiva neonatal distribuídas nas diferentes regiões do Brasil. A realização desses ensaios clínicos demonstrou que o surfactante produzido pelo Instituto Butantan é seguro e eficaz como os produtos do gênero produzidos fora do país e já disponíveis comercialmente. O projeto que resultou na fábrica do surfactante foi financiado em conjunto pela FAPESP e pelo Ministério da Saúde. Ca m i n h ã o f r i g o r í f i c o

O biofármaco é produzido a partir de pulmões suínos. O instituto celebrou uma parceria com a indústria de alimentos Sadia para fornecimento de pulmões de porco, usualmente descartados no beneficiamento. O processo de fabricação, desenvolvido a partir de 1997 e patenteado pelo Butantan, é baseado numa tecnologia original e calcado na reciclagem de insumos, o que permitiu a redução de custos. Quando o surfactante foi isolado pela primeira vez, a purificação foi possível graças a repetitivos processos de ultracentrifugação dos pulmões. A estratégia do Butantan é diferente. Um

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Ci c l o v i r t u o s o

Há outros dois projetos relacionados à planta do surfactante pulmonar que os pesquisadores do Butantan qualificam como “ciclo virtuoso”, por acenar com um aproveitamento ainda maior da estrutura da fábrica. Um deles consiste em criar uma nova formulação de surfactante para uso também de adultos vitimados por moléstias respiratórias. A idéia é purificar e utilizar ums das proteínas do surfactante (colectina SP-A), que usualmente se perde no processo de produção do biofármaco. Essa proteína, uma das quatro que compõem os surfactantes produzidos naturalmente pelo pulmão, não faz falta à formulação do medicamento para recém-nascidos. “Como a maioria das doenças respiratórias em adultos também apresenta algum tipo de comprometimento na ação dos surfactantes, o medicamento enriquecido com essa proteína poderia ampliar as chances de sucesso do tratamento”, diz Flávia Kubrusly. O segundo projeto é o aproveitamento de extratos pulmonares para purificar a aprotinina, proteína usada para controlar hemorragias durante as cirurgias de ponte de safena no coração. A aprotinina é um inibidor de enzimas.

Uma delas é a elastase, que, durante grandes inflamações respiratórias, como a provocada pela pneumonia, agride o pulmão e complica ainda mais o quadro causado pela infecção. A proteína poderia ser usada como um fator protetor. “O objetivo é bloquear os mediadores químicos que lesionam o pulmão”, diz Celso Moura Rebello, coordenador da Unidade de Pesquisa Experimental do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), que participou do desenvolvimento do surfactante. Um estudo publicado numa edição recente da revista Biotechnology Letters, assinado por pesquisadores do Butantan, mostra que os pulmões suínos também podem fornecer a aprotinina – até então imaginava-se que ape-

nas órgãos de ruminantes, como os bois, fossem fontes da proteína. O aguardado aval da Anvisa também permitirá que o Butantan comece a exportar seu surfactante para países como Paquistão, Índia e Coréia do Sul, que já demonstraram interesse em adquirir o fármaco e algumas vacinas produzidas pelo instituto, como a anti-rábica. No caso do Paquistão, será necessário substituir o pulmão suíno pelo bovino, pois a religião muçulmana restringe o uso de produtos de origem suína. Já no caso da Índia, onde a população de origem hindu venera as vacas como animais sagrados, o surfactante de pulmão suíno seria a escolha acertada. ■

Fabrício Marques

A

FOT OS EDU AR DO C ES AR

caminhão frigorífico foi adquirido para buscar, todas as semanas, entre 150 e 300 quilos de pulmões num matadouro da Sadia em Uberlândia (MG). Inicialmente os pulmões são lavados e moídos. Depois são submetidos a processos extrativos. Os dois componentes mais caros usados no processo – uma resina e um dos solventes orgânicos – são recuperados quase integralmente, permitindo um gasto muito baixo com reagentes.

plant a do B u t ant an: 1 0 0 m il doses anu ais

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AM BIE N TE

Sinais da longa história da Amazônia: urna antropomorfa dos tapajós-konduri, de Santarém, Pará

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AMAZ Ô NIA

A SOC IE D AD E D A F LORE STA Abertura para especialistas em ciências sociais, nacionalização e reestruturação orçamentária marcam nova fase de programa de pesquisas Carlos Fioravanti, de Manaus*

REPRODUÇÃO DO LIV RO B RASIL 5 0 MIL ANOS/EDUSP-MAE

S

ociólogos, antropólogos, economistas, geógrafos e todos aqueles que se sentem pouco à vontade diante de um microscópio ou da famosa equação de Einstein, a E=mc2, são agora bem-vindos na segunda fase do maior programa de pesquisas da Amazônia. Durante os primeiros 10 anos do Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia (LBA) predominaram especialistas em ciências naturais, que estudaram fenômenos essencialmente físicos e biológicos como a dispersão de gases atmosféricos e a formação de chuvas. À medida que mais especialistas em ciências humanas se integrem à equipe (até agora eram raros e se diluíam na multidão de físicos, biólogos e agrônomos), a Amazônia pode deixar de ser vista essencialmente como uma floresta e começar a ser analisada mais intensamente como uma sociedade humana sujeita a conflitos políticos, econômicos e sociais. Outros fenômenos além do desmatamento e da transformação da floresta em pastagens ou plantações, já estudados no LBA, poderão ganhar força. Um deles é a urbanização, cujas conseqüências se tornam visíveis. “Temos congestionamentos todo dia”, conta o taxista Edmilton Castelo Branco Feitosa, acrea-

no que vive há 15 anos no trânsito de Manaus. No final de abril, chuvas mais fortes que o comum nesta época do ano inundaram os bairros periféricos desta metrópole de 1,6 milhão de habitantes. Como as outras cidades da região, a capital do Amazonas cresce, se adensa e se transforma. Sob um olhar mais abrangente, porém, o vazio demográfico ainda impera: em uma área equivalente a dez Franças, os nove estados da Amazônia Legal abrigam 23 milhões de pessoas – um pouco menos de um terço da população da França e pouco mais que a da Grande São Paulo. Outra mudança em andamento é a nacionalização do LBA. A Nasa e outras instituições dos Estados Unidos cobriram cerca de metade dos US$ 100 milhões (R$ 300 milhões, considerando a variação do dólar) gastos nos primeiros 10 anos, o Brasil entrou com 40% e a Europa com o restante. Como a Nasa anunciou que não participaria da segunda etapa do programa, que começa no próximo ano, a principal fonte de financiamento agora é o Plano Plurianual (PPA) do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), que assegura a liberação anual de R$ 3,8 milhões, o bastante para cobrir os custos fixos com instalações, equipamentos e pessoal. Aos poucos começam a brotar apoios

complementares. Antonio Manzi, gerente executivo do LBA, cita como exemplo os fundos setoriais, dos quais os líderes de dois grupos conseguiram R$ 7 milhões. Segundo ele, a necessidade de reestruturação orçamentária, ainda que crie incertezas, poderá beneficiar a formação de pesquisadores no Brasil: “Equipes e instituições de outros países podem participar e ajudar, mas as pesquisas adiantam pouco se não formarem massa crítica local”. A mudança da sede do LBA – do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) em São José dos Campos, interior paulista, para o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) em Manaus em 2004 – parece ter funcionado para aumentar o interesse das instituições da Região Norte para o maior programa de pesquisas sobre a Amazônia: em 10 anos o LBA motivou a publicação de quase 1.500 artigos em revistas científicas e a criação de cursos de graduação e de pós em áreas como ciências atmosféricas e antropologia nos estados do Amazonas, Acre, Mato Grosso, Pará e Rondônia. Começa agora a etapa de aproveitar ao menos uma parte dos pesquisadores e estudantes que cresceram com o LBA. José Aldemir de Oliveira disse que em breve a Secretaria de Ciência e Tecnologia, que

* Carlos Fioravanti esteve em Manaus a convite da Fundação de Amparo à Pesquisa do Amazonas (Fapeam).

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Máscaras da etnia jurupixuna (bicéfala, ao lado, e zoomorfa, abaixo): objetos simbólicos colhidos por Alexandre Rodrigues Ferreira na expedição de 1783 a 1793 pela Amazônia

ele coordena, publicará um edital de R$ 1,2 milhão para financiar projetos do estado do Amazonas. Mateus Batistella, pesquisador da Embrapa em Campinas, assumiu em maio de 2007 a presidência do comitê científico internacional do LBA com a tarefa de batalhar por financiamentos e atrair geógrafos, economistas, sociólogos e antropólogos que conhecem a história e os povos da Amazônia, mas se mantinham como observadores do LBA. Adalberto Val, diretor do Inpa, considera-se otimista sobre as possibilidades de maior interação entre especialistas de áreas diferentes. “Já atravessamos momentos mais difíceis”, conta. A seu ver, não será fácil, porém, lidar com uma sociedade regional marcada por uma rica e muitas vezes conflitante diversidade cultural – de pecuaristas a quilombolas, de migrantes a mais de cem povos de etnias nativas. Cada grupo social pa48

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rece agora mais convencido de que pode expressar e defender seus interesses. No início de abril, por exemplo, representantes de povos nativos de 11 países latino-americanos se reuniram em Manaus para contar que querem saber o que exatamente se passa em suas florestas. Querem também ser ouvidos – e participar – nas negociações sobre as possibilidades de reduzir os impactos das mudanças climáticas. Desconfiança mútua - “Já procura-

mos fazer pesquisas integradas, sempre que possível”, informou Flávio Luizão, que não achou difícil lidar com quem não era biólogo como ele. Algumas áreas são evidentemente mais permeáveis que outras: economistas e sociólogos possivelmente vão se sentir mais úteis nos estudos sobre mudanças no uso da terra do que nos que tratam da geoquímica do solo. Todos, porém, te-

rão de vencer a desconfiança recíproca, em parte justificável porque adotam metodologias de trabalho distintas e nem sempre convergentes. “Diferentemente dos cientistas naturais, é comum encontrar cientistas sociais que nem cogitam a possibilidade de existirem leis universais”, observa Diógenes Alves, pesquisador do Inpe e caso atípico de matemático que nos últimos anos tem intensificado as leituras sobre filosofia e sociologia da ciência. O LBA parece cada vez mais aberto a pensadores multidisciplinares dispostos a pensar o futuro da Amazônia de modo amplo. Batistella é outro exemplo: fez duas graduações, em biologia e em filosofia, e passou por um doutorado em ciências ambientais nos Estados Unidos que exigiu muita leitura de sociologia e antropologia. Os cientistas sociais, embora menos numerosos que os colegas das naturais, também têm o que contar. Em 2004 Alves foi um dos coordenadores de um seminário em que economistas, antropólogos e geógrafos procuraram as lacunas do conhecimento sobre a Amazônia, mapearam os interesses que regem a ocupação da região e selecionaram alguns temas, como urbanização, demografia e uso da terra, relacionados às mudanças climáticas, já estudadas no LBA. Esse encontro resultou no primeiro volume da coleção Dimensões humanas da biosfera-atmosfera na Amazônia; o segundo deve sair ainda este ano, com estudos sobre demografia, ordenamento territorial e economia regional. Tanto quanto os povos nativos, os cientistas sociais circulam há bom tempo na região que cobre metade do Brasil. Um exemplo é o antropólogo cubano naturalizado norte-americano Emílio Moran, que chegou à Amazônia há 30 anos para estudar as mudanças provocadas pela construção da rodovia Transamazônica. Mesmo depois de ter sido contratado como professor na Universidade de Indiana, Estados Unidos, não deixou de acompanhar as transformações econômicas e sociais vividas por pequenos agricultores do Pará – e foi um dos primeiros a propor um olhar mais amplo sobre os impactos do aquecimento global, normalmente visto apenas sob a abordagem das ciências físicas e biológicas. Novamente foi a campo, desta

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Clima favorável - “Precisamos não só de mais investimentos, mas também de mais aliados”, afirma Odenildo Sena, diretor-presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Amazonas (Fapeam). Um dos especialistas atentos a essas alianças – já formadas ou potenciais – é o sociólogo norte-americano Timmons Roberts, que atualmente leciona no College of William and Mary, uma das mais antigas escolas de ensino superior dos Estados Unidos, fundada em 1693. Em 1989 e 1990 Roberts viveu em Parauapebas, no Pará, para estudar as formas de sobrevivência dos trabalhadores subcontratados da Companhia Vale do Rio Doce para extrair minério de ferro da serra de Carajás. “A Vale foi pioneira em terceirizar a força de trabalho. O resultado foi uma extrema desigualdade entre os funcionários da empresa e os que formavam a força de trabalho periférica”, diz ele. “Mostrei que a Vale tinha mais responsabilidade pelos impactos sociais e ambientais na área além de seus portões, já que tinha criado todos aqueles problemas e se beneficiado da força de trabalho que custava muito pouco.” Em 2007, como um dos organizadores de uma conferência na Inglaterra sobre a Amazônia, ele se impressionou com o interesse de biólogos e físicos sobre temas políticos e sociais. “Estávamos separados

no início, mas depois de 1 ano começamos a trabalhar de fato juntos e a entender melhor dos temas um do outro.” Em outro artigo da Philosophical Transactions, ele e a economista brasileira Maria Carmen Lemos defendem a idéia de que as redes de organizações não-governamentais ambientalistas se tornaram relevantes para deter as políticas de desenvolvimento econômico, geralmente apoiadas por instituições financeiras internacionais, que induzem à destruição da maior floresta tropical do mundo, cada vez mais pressionada pelo desmatamento, pelas commodities agrícolas como a soja e pela expansão das cidades (a edição de 27 de maio de 2008 da Philosophical Transactions of the Royal Society B reúne 25 artigos de acesso aberto sobre mudanças ambientais e perspectivas de integração entre ciências naturais e sociais na Amazônia). O papel da maior floresta brasileira na regulação do clima no mundo emergiu nos últimos anos como um argumento extra que reforça a atenção e a participação de instituições de outros países; essa é também uma fonte de tensões entre o governo e as organizações não-governamentais e outros países. “Estes são tempos cruciais para o futuro da Amazônia e para o clima global”, diz Roberts. No livro A climate of injustice – Global inequality, North-South politics, and climate policy, lançado em 2007, Roberts e Bradley Parks oferecem alterna-

tivas conciliatórias às percepções opostas que regem os debates sobre mudanças climáticas e examinam as possibilidades de ação de países em desenvolvimento como o Brasil. Agora, no recémlançado Greening aid?: Understanding the environmental impact of development assistance, Roberts, Parks e outros dois co-autores avaliam o impacto dos projetos financiados todos os anos por doadores internacionais como forma de ajudar os países pobres a resolver seus problemas ambientais. Ainda não se sabe ao certo como motivar os cientistas sociais a entrarem no LBA – possivelmente por meio de editais de financiamento a projetos de pesquisa – nem se eles aceitarão o convite. Outro desafio de Batistella – e de quem o suceder à frente do comitê científico do LBA – é descobrir como converter em políticas públicas as pesquisas que possivelmente chegarão às páginas de revistas científicas. Em um dos momentos de avaliação da primeira fase, Carlos Nobre, um dos idealizadores e coordenadores do programa, observou que haviam falhado em transformar as descobertas sobre a Amazônia em ações concretas que beneficiassem os moradores da região. Talvez a nova equipe do LBA consiga unir o mundo da ciência com o das políticas públicas à medida que especialistas de áreas diferentes comecem a formular e a estudar em conjunto as mudanças ambientais e suas conseqüências na sociedade. ■

REPRODUÇÃO DO LIV RO O B RASIL D OS VIAJANTES/ANA MARIA DE MORAES BELLUZ Z O

vez com seu colega Eduardo Brondizio, antropólogo brasileiro e atual chefe do departamento de antropologia em Indiana, para ver como os pequenos agricultores do interior do Pará reagem às alterações climáticas extremas. Concluíram que as famílias que vivem no campo estão bastante vulneráveis e desamparadas, sem informação sobre como agir e onde buscar ajuda. Observaram também que variações climáticas intensas como o El Niño de 1997-1998 podem arruinar as plantações e forçar a migração para as cidades. Os resultados não são puramente acadêmicos. Além de um artigo publicado em uma edição da Philosophical Transactions of the Royal Society B dedicado à Amazônia, esse trabalho inspirou um manual para os próprios agricultores preverem – e se prevenirem contra – modificações bruscas do tempo acompanhando as variações de freqüência e intensidade das chuvas.

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> No calor das ondas

> Recordistas

nível dos oceanos – estão derretendo cada vez mais. Estudos na Groenlândia vêm confirmando esses temores, e notícias de degelo vêm também da Antártida.

da ocupação

JOÃO ALEXANDRINO

Medições recentes da temperatura dos oceanos deixaram os oceanógrafos boquiabertos. Eles ainda não sabem por quê, mas, segundo a agência espacial francesa, o Centro Nacional de Estudos Espaciais (Cnes), de 2003 para cá a dilatação térmica dos oceanos se estabilizou. A expansão causada pelo aquecimento da água é um dos fatores que levam à elevação do nível do mar: cerca 1 milímetro por ano entre 1993 e 2003, o dobro do observado nos 40 anos anteriores. Resta explicar por que nos últimos 5 anos o nível do mar continua subindo o mesmo 1,5 milímetro anual registrado nos últimos 30 anos. Se a dilatação térmica parou e os mares continuam a subir, Anny Cazenave, especialista do Cnes em elevação do nível do mar, declarou ao jornal francês Les Echos que só pode supor que as geleiras – o outro fator que contribui para elevar o

Para informações sobre o mercado financeiro, uma boa estratégia é medir as taxas hormonais dos operadores. Por 8 dias, pesquisadores da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, fizeram exatamente isso. Eles recolheram saliva às 11 da manhã e às 4 da tarde para medir os teores dos hormônios testosterona e cortisol de operadores financeiros de Londres. Os resultados, publicados em abril na revista Proceedings of the National Academy of Sciences, mostram uma Emoções fortes: investir afeta organismo relação dinâmica entre o mercado, os hormônios e o comportamento dos operadores. A equipe verificou que, quando o mercado está em crescimento e as chances de lucros são boas, aumenta o teor de testosterona nos operadores, que por isso tendem a tomar maiores riscos e acelerar ainda mais a tendência ascendente. Já em situações de instabilidade financeira, o hormônio dominante se revelou ser o cortisol, que induz à cautela e acaba exacerbando a baixa no mercado. Essas relações podem explicar uma certa inércia comum nos movimentos financeiros, e por que muitas vezes especialistas envolvidos em tendências do mercado têm dificuldade em tomar decisões racionais.

Mar de dúvidas: temperatura parou de subir 50

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Nos últimos anos, cerca de 400 espécies animais e vegetais introduzidas na China se instalaram e proliferaram à custa da fauna e flora locais, com danos também às atividades agrícolas e florestais. Segundo artigo publicado em abril na Bioscience, o mais assustador é a rapidez com que o fenômeno evolui: em 1999, cerca de 200 espécies estrangeiras foram interceptadas nas fronteiras da China. Em 2005 foram mais de 2 mil. Um exemplo é o aguapé

EDUARDO CESAR

LABORATÓRIO MUNDO

HORMÔNIOS EM ALTA

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(Eichornia crassipes), introduzido em corpos d’água como complemento alimentar para o gado. Mas os animais não apreciaram a iguaria e a planta proliferou a ponto de bloquear a navegação nos canais da China meridional e ameaçar o funcionamento de algumas barragens hidrelétricas. Agora é o momento de prestar atenção ao alerta: em preparação para as Olimpíadas que se realizarão este ano, o governo chinês já importou 60 toneladas de sementes e mais de 31 milhões de plantas ornamentais para embelezar Pequim e seus arredores (Le Monde).

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> No fundo da ravina Imaginar que dinossauros freqüentaram o Grand Canyon, nos Estados Unidos, era até pouco tempo atrás um cenário fantasioso – geólogos estimavam a idade da ravina em 6 milhões de anos, quando já não havia dinossauros. Mas em março um artigo na revista Science concluiu, a partir da datação de minerais no teto de cavernas nas paredes do cânion, que ele teria começado a se formar por volta de 17 milhões de anos atrás. Agora pesquisadores do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech) analisaram o mineral apatita, que apesar de raro no cânion traz informações

De olho nela: tamarutaca tem visão especial

importantes. As amostras retiradas das zonas mais profundas estavam perto da superfície entre 55 milhões e 65 milhões de anos atrás, mais ou menos à época em que os dinossauros foram extintos. Mais do que isso, a nova pesquisa sugere que o Grand Canyon reúne sistemas de ravinas que surgiram em épocas diferentes (Science Now). NASA

A enorme riqueza biológica amazônica também vale para micróbios. Um estudo coordenado por Joseph Vinetz, da faculdade de medicina da Universidade da Califórnia em San Diego, revelou na Amazônia peruana uma nova espécie da bactéria responsável pela leptospirose. Transmitida na água de animais para humanos, a leptospirose ataca dezenas de milhões de pessoas por ano no mundo todo, em algumas regiões matando até 25% dos doentes. A nova espécie recebeu o nome Leptospira licerasiae e não é detectada pelos testes comuns. Entre 881 pacientes testados, os pesquisadores encontraram a nova linhagem da bactéria em 41% deles. O achado indica que muitos dos casos de leptospirose, que pode causar icterícia, falência renal e hemorragia pulmonar, não são detectados pelos métodos

disponíveis. Será preciso rever os dados epidemiológicos de incidência da doença, pelo menos na região amazônica (PLoS Neglected Tropical Diseases).

ROY CALDWELL/UC BERKELEY

na Amazônia

CORREIO ELEGANTE

> Biodiversidade

Grand Canyon: mais antigo do que se pensava

As tamarutacas, camarões que mais parecem pequenas lagostas coloridas, têm olhos especiais para a paquera. Elas conseguem distinguir luz com polarização circular, em que o campo elétrico dá voltas como um saca-rolhas em torno do raio de luz. E mais, o sentido em que o campo gira, para a direita ou para a esquerda, faz diferença para esses invertebrados raros da Indonésia. O biólogo Roy Caldwell, da Universidade da Califórnia em Berkeley, nos Estados Unidos, estranhou quando observou um macho de 10 centímetros através de filtros para polarização circular e viu tons de vermelho diferentes conforme o sentido em que a luz era filtrada. Ele acredita ter descoberto a forma de comunicação com o sexo oposto mais secreta que existe – nenhum outro animal é capaz de enxergar luz com esse tipo de polarização. Os resultados estão publicados na edição de março da revista Current Biology.

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LABORATÓRIO BRASIL

FOTOS JOÃO ALEXANDRINO E AGUSTÍN CAMACHO

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Cerrado: grande variedade de plantas e animais, como a cuíca (ao lado)

> Casa de máquinas Presentes aos milhares nas células, os ribossomos funcionam como maquininhas de ler instruções genéticas e executá-las produzindo proteínas. A definição é da física Ana Carolina Zeri, do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, em Campinas. Durante um pós-doutorado na Universidade da Califórnia em Berkeley, nos Estados Unidos, ela participou do experimento que usou um sistema de pinças ópticas para caracterizar em detalhe 52

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de RNA mensageiro, que reproduz fora do núcleo celular trechos da seqüência do DNA, o ribossomo avança sempre de três em três passos. Esses passos LAURA LANCASTER E COURTNEY HODGES

como essas maquininhas funcionam. O trabalho, publicado em abril na Nature, confirma o que modelos teóricos já desconfiavam: ao ler a fita

Quanto mais os biólogos trilham VEREDAS DA os meandros do Cerrado, mais se DESCOBERTA surpreendem com a biodiversidade desse ecossistema tipicamente brasileiro. Ao percorrer o Cerrado da Bahia, Piauí, Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás, uma equipe da Universidade de Brasília (UnB), da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) catalogaram 12 mil espécies de plantas – duas vezes o estimado por eles há 10 anos. Não só o número impressiona: pesquisadores e moradores da região concordam que cerca de 70% das ervas do Cerrado têm ação medicinal. E as plantas não estão sozinhas, entre elas vive uma grande diversidade animal, como revelou um outro estudo. Um grupo da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Federal de São Carlos (UfsCar), da Universidade Federal do Tocantins e da ONG Conservação Internacional encontrou 440 espécies de vertebrados no Cerrado da Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins, na serra do Jalapão. Estimam que 14 dessas espécies – oito peixes, três répteis, um anfíbio, um mamífero e uma ave – sejam novas para a ciência. Os ecólogos esperam que essas descobertas sejam um estímulo para encontrar estratégias de exploração sustentável da região, que vem perdendo boa parte de sua área para agricultura e pastagens.

correspondem a trios de bases nitrogenadas que indicam aminoácidos específicos, as unidades que compõem as proteínas. E mais: o avanço dos ribossomos depende de haver aminoácidos e energia suficientes disponíveis no meio. Sem isso, ele pára e espera. Os pesquisadores também mediram a força que o ribossomo faz para prender-se ao RNA.

> Notícias do Norte

Ribossomo: ação detalhada

Neste ano em que se registram recordes de mortalidade no Rio de Janeiro como resultado da dengue, más notícias vêm também do

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aos laboratórios “Mas moscas... Você acredita que tem gente que faz criação?” A pergunta é da bióloga e ilustradora Francisca do Val, no poema que abre Drosófila, a mosquinha famosa. Publicado pela editora

SORRISO REGIONAL

Crianças das regiões Norte e Nordeste do Brasil têm mais cáries e perdem mais dentes do que as que brincam pelo Sul e Sudeste. E não adianta lhes dizer que escovem melhor os dentes. Um estudo feito por pesquisadores da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e da Faculdade de Odontologia da Universidade Estadual de Campinas, em Piracicaba, e publicado em abril na revista BMC Oral Health, mostrou que o problema maior sai das torneiras: água sem flúor. Organizações de saúde internacionais indicam a Água fluoretada: rara em áreas pobres fluoretação da água tratada – recomendação que no Brasil foi adotaTerceiro Nome, o livro da em 1974 por uma lei federal. Porém um levantamento que apresenta ao público infantil amostrou 246 municípios do país todo deixa claro que a ima mosca que freqüenta plementação da medida não foi homogênea. No Norte e no fruteiras e encanta Nordeste 89,8% dos municípios não têm flúor adicionado à geneticistas. Encantará água, uma região que coincide com carência social. Já em também os leitores de todas áreas mais privilegiadas boa parte dos municípios tem água as idades com as belas fluoretada, alguns desde os primeiros anos da iniciativa. Para aquarelas que ilustram as a equipe, os resultados mostram que a desigualdade não se páginas. E ajudam a contar limita à distribuição de recursos econômicos e esperam chamar onde as drosófilas vivem, a atenção para a necessidade de estender iniciativas de saúde se tomam banho, como pública para as regiões mais pobres.

namoram, como nascem e crescem, por que elas são estudadas por geneticistas e o que o futuro lhes reserva. Francisca reuniu sua vasta experiência de uma carreira de estudos sobre moscas brasileiras e havaianas para

produzir desenhos não só bonitos mas também cientificamente exatos: pernas, ovos, pêlos e mutações que podem ensinar um tanto sobre genética.

REPRODUÇÃO

> Das bananas

MIGUEL BOYAYAN

Amazonas. Apareceu por lá o sorotipo 4 do vírus causador da doença, ausente do Brasil há 25 anos. O achado veio de um levantamento feito pela Fundação de Medicina Tropical do Amazonas, com colaboração de pesquisadores da Fundação Alfredo da Matta, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e da Universidade Federal do Amazonas, todos em Manaus, que amostrou 128 pacientes com dengue em 14 municípios do estado. Três dessas pessoas estavam infectadas com o sorotipo 4. O artigo, publicado na revista Emerging Infectious Diseases, sugere que essa forma do vírus veio da Venezuela ou da Colômbia. A preocupação é que a presença de todos os quatro sorotipos no Brasil aumente a incidência de dengue hemorrágica no país: pessoas já recuperadas de infecção por uma forma do vírus que são infectadas por um segundo sorotipo correm maiores riscos de contrair a versão mais letal da doença.

Charme inesperado: moscas e mosquitos de Francisca do Val

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CIÊNCIA

G E O L O G IA

Terra em

trânsito Su p e r c o n t i n e n t e q u e e x is t iu 1b ilh ã o d e a n o s a t r á s g a n h a n o v a s fo rm a s Maria Guimarães

C

erca de 1 bilhão de anos atrás, boa parte das massas terrestres fazia parte do supercontinente Rodínia, nome derivado do termo russo para Terra-mãe. Até aí os especialistas parecem estar de acordo. Mas reconstituir essa imensa extensão de terra é um quebra-cabeça difícil de resolver mesmo com todas as ferramentas da geologia moderna. Em busca de se aproximar desse passado distante, um grupo internacional arquitetado em 1999 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) juntou esforços e reuniu novas evidências nos respectivos continentes. Eles não chegaram a um consenso, mas a edição de fevereiro da revista Precambrian Research traz a versão até agora mais cotada entre os autores. O mundo se aglomerava num único continente, praticamente inteiro ao sul do Equador. Os resultados vêm em bom momento, já que a própria Unesco declarou 2008 como o ano do planeta Terra. Segundo o trabalho multinacional, Rodínia estava quase inteiramente ao sul do Equador. “Sabemos isso por causa de vestígios de glaciação que indicam quais regiões estavam perto dos pólos naquela época”, explica Benjamim Bley Brito Neves, do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (IG-USP). Territórios que hoje são a Índia e a China, agora no hemisfério Norte, estavam na linha equatorial. Ao norte estavam blocos que hoje integram Austrália e Sibéria. A Amazônia estava colada ao sul de Laurentia, que hoje é a América do Norte, com um fragmento a leste que hoje faz parte do México. O oeste da África estava ao sul da Amazônia, com parte de seu território no pólo Sul. A região

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que hoje abriga parte do sertão nordestino e por onde corre o rio São Francisco fazia parte da porção oeste da Amazônia e do ocidente africano. Já o que hoje é Bahia estava mais a noroeste, no bloco do Congo. Comparado à distribuição atual dos continentes, esse mapa parece insano aos olhos de quem não é geólogo. Parece que as peças que formam o mundo estavam misturadas ao acaso. Os especialistas vêem algum sentido nos movimentos das massas terrestres, mas as informações de que dispõem para uma época tão remota não permitem certezas. As informações que permitiriam localizar com mais precisão os continentes naquela época são escassas porque estão preservadas em rochas e associações rochosas raras. O geólogo da Universidade de Brasília (UnB) Reinhardt Fuck, que participou do projeto da Unesco, explica que rochas vulcânicas são material precioso porque se formam por um resfriamento rápido que cristaliza em seu interior o registro do campo magnético terrestre daquele momen-

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IZAN PETTERLE/SAMBAPHOTO

to. Milhões e milhões de anos depois, um especialista pode analisar esses dados paleomagnéticos e determinar a que distância do pólo aquela rocha se formou e qual era a sua orientação naquele momento. A partir disso o pesquisador pode reconstruir a trajetória que aquele pedaço de continente percorreu desde a sua origem. Esse tempo, a idade das rochas, é determinado por técnicas de datação por isótopos radiogênicos, em que elementos químicos se transformam por decaimento radioativo. “Isótopos de urânio e de tório se transformam em isótopos de chumbo”, conta Fuck, “numa taxa que conhecemos razoavelmente bem”. É essa taxa que lhe permite estimar a idade das

Mapa mais recente de Rodínia inclui terras do atual sertão nordestino

rochas a partir das proporções de elementos que as compõem. O paleomagnetismo resolve parte do quebra-cabeça: permite dispor as peças na orientação em que estavam, o lado superior para cima e assim por diante, e na distância correta em relação aos pólos. Mas qual fica à direita e qual à esquerda? Como elas se encaixam? Encontrar essas informações – a paleolongitude – requer um trabalho meticuloso: analisar a composição química e outras propriedades das rochas e compostos rochosos de cada área estudada e procurar onde há composições semelhantes em outros pontos do mundo. “Comparar fragmentos da crosta com base na geologia é o que os geóloPESQUISA FAPESP 147

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gos fazem todos os dias”, conta Fuck. Quando encontram associações de rochas com composição e idades semelhantes em continentes diferentes, presumem que aquelas regiões estiveram juntas em algum momento da história geológica. Assim o quebra-cabeça vai aos poucos encontrando forma, mas os encaixes dependem muito de interpretação. “Cada um tem sua opinião”, diz o geólogo da UnB, “e as hipóteses obviamente pululam”. É por isso que o mapa de Rodínia está em constante mutação desde a primeira proposta em 1991 (ver Pesquisa FAPESP no 75). Nessa época o canadense Paul Hoffman, agora na Universidade Harvard, nos Estados Unidos, cometeu o que Bley bem-humoradamente descreve como “um ato de irresponsabilidade científica” e, ao mesmo tempo, “um golpe de genialidade”. Consultado sobre por que os fósseis de plantas indicavam não haver barreiras à livre circulação e reprodução dos seres vivos, Hoffman reuniu as (insuficientes) informações já publicadas por ele e por outros pesquisadores, e propôs um supercontinente. Essa primeira versão era necessariamente inexata – e por isso

Sem certezas – Parte das rochas neces-

sárias para reconstruir Rodínia está agora inacessível – embaixo de cadeias montanhosas, de bacias sedimentares ou no fundo do mar. O custo de amostrar essas áreas é proibitivo para pesquisadores, que acabam dependendo de empreendimentos de grande porte como perfurações em busca de petróleo. Foi esse tipo de amostras que permitiu incluir no mapa do projeto da Unesco a região de Paranapanema, hoje no Sudeste brasileiro, cujas rochas se escondem debaixo da bacia do Paraná e que por isso até agora fora ignorada em reconstituições de Rodínia.

Os pesquisadores brasileiros estão bastante convencidos de que o bloco amazônico compunha Rodínia pelo menos nas proximidades do continente Laurentia, que reunia as atuais América do Norte e Groenlândia. Talvez estivesse encostado. Mas há discussões quanto à posição relativa das duas massas terrestres. Manoel D’Agrella Filho, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), é um dos que não estão convencidos da versão publicada pelo grupo ligado à Unesco. Para ele, o bloco amazônico se chocou contra o sul de Laurentia, que depois contornou em sentido horário. Esse modelo, proposto pelo norte-americano Eric Tohver, também do IAG, explica as cicatrizes deixadas pelo choque no continente norte-americano – deformações geológicas conhecidas como cinturão Grenville – e encaixa o território amazônico a sudeste da posição atual da América do Norte durante o período de Rodínia. A grande diferença entre a proposta internacional e a dos pesquisadores do IAG não é a posição relativa das atuais Amazônia e América do Norte. Eles discordam, porém, a respeito das características da colisão entre as duas massas terrestres. Para D’Agrella, o mapa de Rodínia era mais dinâmico do que aparece nas propostas vigentes. Um trabalho coordenado por ele, publicado este ano

MANOEL D`AGRELLA/USP

Diques agora em Ilhéus, na Bahia, já existiam na época de Rodínia

poderia ser chamada de irresponsável – mas teve o efeito importante de lançar especialistas do mundo todo em busca de melhores encaixes. Geólogos brasileiros até agora acharam em poucas áreas rochas com cerca de 1 bilhão de anos, a época de Rodínia. O mais recente mapa dos descendentes desse supercontinente na América do Sul está também na Precambrian Research de fevereiro. Elaborado por Fuck, Bley e Carlos Schobbenhaus, do Serviço Geológico do Brasil, o trabalho mostra que representantes de Rodínia se concentram no sul da Amazônia, no estado do Mato Grosso, e na Região Nordeste, sobretudo Bahia e Pernambuco. “A América do Sul é um mosaico de fragmentos de Rodínia”, afirma Bley.

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O m u n d o h á 1b i l h ã o d e a n o s Mapa proposto por grupo internacional agrupa as massas terrestres em um único continente

Tarim

Rodínia

ZHENG -X IANG LI

A ustrália

Índia

A ntártida S ul da Ch ina K alahari

S aara

S ibéria

N orte da Ch ina

Laurentia

Rio de la Pla ta C ongoS ão Francisco A mazônia

B áltica

Á frica O cidental

na Earth and Planetary Science Letters, uma das revistas de maior prestígio nas ciências da Terra, reforça a idéia de que o bloco amazônico deslizou em torno de Laurentia e dá força a um continente em que a posição relativa das massas terrestres mudou constantemente. Diante do trabalho do grupo da Unesco, o pesquisador do IAG mantém sua opinião, mas admite que por enquanto não há como declarar vencedores no debate. “Os dados paleomagnéticos podem ser interpretados de diversas maneiras”, diz. E as informações disponíveis não permitem refutar nenhuma das hipóteses. Outro ponto de contenda diz respeito à bacia do rio São Francisco. No mapa do grupo internacional, o bloco que hoje abriga a bacia do rio São Francisco faz parte de Rodínia. Para D’Agrella, porém, essa interpretação não leva em conta indícios do grande oceano Brasiliano que nessa época separaria boa parte dos blocos africanos e sul-americanos – a região do São Francisco inclusive – do conjunto formado por Amazônia, Laurentia e oeste da África. Para D’Agrella, o oceano

realmente separava Rodínia do território que agrupava o que hoje é a bacia do rio São Francisco e as regiões africanas do Congo e o Kalahari. C o n t i n e n t e s c i g a n o s - Seja qual for seu tamanho e forma, um continente muito grande não pode persistir. “Estamos sobre uma bomba térmica”, explica Bley. Debaixo dos nossos pés há entre 150 e 300 quilômetros de litosfera, ou crosta terrestre, sólida. É uma membrana finíssima em relação ao resto do planeta – cerca de 6 mil quilômetros até o centro da Terra. As altas temperaturas do manto terrestre, a camada abaixo da crosta, conferem características viscosas aos minerais que o compõem, que ao longo dos milhões de anos fazem movimentos com o efeito de liberar o calor. Quando um supercontinente se forma, o calor se acumula sob a litosfera e pode chegar a rachá-la, como quando se apóia uma chaleira com água fervente sobre uma mesa de vidro. É o que aconteceu com Rodínia: o continente se quebrou em quatro grandes massas – Laurentia, Gondwana, Báltica

Faltam dados para definir os contornos exatos da área cinza

e Sibéria – que há cerca de 230 milhões de anos voltaram a congregar-se em Pangéia. Foi esse supercontinente, mais conhecido, que deu origem ao mapamúndi de hoje. Enquanto geólogos discutem hipóteses e escavam rochas em busca de respostas, os continentes continuam sua incansável migração. As placas oceânicas são mais pesadas do que as continentais e por isso tendem a entrar por baixo dos continentes. Nesse processo o oceano Pacífico enrugou a América do Sul, dando origem à cordilheira dos Andes, e causa terremotos freqüentes ao longo do litoral. Muito lentamente o Pacífico se está fechando, enquanto o Atlântico, o Índico, o Tasmânico, o mar Vermelho e o golfo Pérsico se alargam alguns centímetros por ano. Se as rotas atuais continuarem as mesmas, em cerca de 50 milhões de anos os geólogos prevêem que Ásia e América se encontrarão num novo grande continente. Ele ainda não existe mas já tem nome: Amásia. ■ PESQUISA FAPESP 147

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A

trás da vitrine de uma doceria, tortas de limão, musses de chocolate e outros doces atiçam o apetite. Cremosos, crocantes ou macios, para fincar os dentes ou derreter na boca, doces de sabor delicado, forte ou azedo deixam as glândulas salivares em polvorosa. Difícil não querer uma porção, mais difícil ainda parar na primeira colherada. Gula? Neurocientistas têm outro nome: sistema dopaminérgico de recompensa. Sentir o gosto açucarado na língua leva o cérebro a produzir dopamina, neurotransmissor que estimula neurônios responsáveis pelo prazer. Esse mecanismo fez com que por muito tempo o paladar fosse considerado o principal instigador ao consumo de açúcar, mas o neurocientista Ivan de Araújo descobriu que a absorção de calorias pelo organismo também estimula o sistema de recompensa. Os resultados, publicados na edição de março da revista científica Neuron, podem ajudar a entender a atração por doces na origem de muitos problemas de obesidade. Radicado no Laboratório John B. Pierce, afiliado à universidade norteamericana Yale, Araújo acredita que o paladar, uma ferramenta para encontrar alimentos calóricos na natureza, ajuda os animais a sobreviver. Mas ele queria entender melhor o mecanismo que leva à preferência por calorias. Por isso aprofundou sua especialização durante um pós-doutorado na Universidade Duke, nos Estados Unidos, onde Sidney Simon e o brasileiro Miguel Nicolelis uniram conhecimento sobre o

funcionamento das células que detectam o paladar na língua a técnicas de registro detalhado de atividade cerebral que acompanham a atividade de conjuntos de neurônios em tempo real. Os dois pesquisadores criaram assim uma linha de pesquisa que busca esmiuçar as conexões entre as papilas gustativas da língua e o cérebro – a neurofisiologia da gustação. Associado a esse grupo, Araújo montou um experimento usando camundongos geneticamente modificados que não produzem uma proteína necessária para sentir sabores doces, amargos ou de aminoácidos. Ele verificou que se puderem optar por beber água pura ou com sacarose, camundongos normais preferem a água doce. Para os alterados, não faz diferença. O pesquisador deu então aos camundongos alterados um tempo maior para que pudessem usar os efeitos metabólicos para avaliar cada um dos líquidos. Em dias alternados, punha em um lado da gaiola uma garrafa com água pura ou uma garrafa com água doce no lado oposto. Ao oferecer cada líquido separadamente, o animal tinha tempo suficiente para absorver – ou não – o açúcar e sentir seus efeitos. O resultado apareceu no comportamento: quando o pesquisador punha garrafas de água nos dois lados das gaiolas ao mesmo tempo, os camundongos sem paladar rapidamente preferiam o lado da gaiola onde nos dias anteriores encontravam água adoçada. Eles tinham aprendido a associar a localização da garrafa ao conteúdo energético do líquido.

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L im ã o ou chocolat e: aç ú car at iv a o cé rebro

“Fica claro que a recompensa que os animais buscam não é o paladar, mas as calorias”, conclui Araújo. Para não deixar margens à dúvida, repetiu o experimento com camundongos novos. Desta vez usou sucralose, um adoçante com sabor semelhante ao do açúcar, mas que não é absorvido pelo intestino. De novo as cobaias com paladar intacto escolhiam a água doce. No entanto, como o produto não é usado pelo organismo, os camundongos modificados já não podiam contar com a via metabólica para detectar açúcar e não desenvolveram preferência por nenhum dos lados da gaiola. Para investigar o mecanismo por trás do comportamento, o grupo mediu os teores de dopamina no cérebro das cobaias. Viram que nos animais normais a quantidade do neurotransmissor no cérebro aumenta tanto em resposta à água com sacarose como na com sucralose, mas os alterados só reagiram à sacarose. Para Araújo, os resultados provam que duas vias independentes estimulam o sistema de recompensa: a gustativa e a metabólica. Os adoçantes se acoplam aos receptores nas células da língua da mesma forma que o açúcar, e assim enganam o organismo. Mas não por muito tempo. Um estudo publicado este ano por pesquisadores norte-americanos mostrou 60

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que alimentos com adoçantes na verdade levam animais a ingerir mais calorias no longo prazo. “É provável que o perfil temporal da liberação dopaminérgica nas duas vias seja diferente”, explica Araújo. O paladar provoca uma produção instantânea de dopamina, mas o pesquisador acredita que a estimulação não dure mais do que alguns segundos. Já o efeito da via metabólica, que depende da absorção do açúcar pelo organismo, pode durar minutos ou mesmo horas. Por isso mesmo provoca uma produção mais sustentada de dopamina. “Parece que a via metabólica tem um efeito cumulativo que a via do paladar não tem”, especula o neurocientista, que ressalta a importância de mais estudos usando uma tecnologia mais precisa para medir as concentrações de dopamina ao longo do tempo. C i r c u i t o s a ç u c a r a d o s - Quando um

animal consome sacarose, o organismo produz insulina, um hormônio essencial para processar açúcares. Essa insulina é transportada para o cérebro e ali potencialmente estimula os neurônios dopaminérgicos. A dopamina que é produzida em conseqüência ativa uma série de circuitos cerebrais que afetam as emoções. Araújo ainda não sabe em detalhes como essa via que parte da detecção de calorias pelo organismo atua no cérebro.

MIG U EL B OY AY AN

A dificuldade em traçar a rota do paladar não é problema para o pesquisador. Pelo contrário, ele parece preferir trajetos intrincados. Formado em filosofia, Araújo se encantou pela lógica e fez mestrado em matemática. Ainda em busca da lógica, se embrenhou por redes neurais virtuais num mestrado na área de inteligência artificial e robótica. Descobriu ao fim que as redes de neurônios reais são mais interessantes e se doutorou em neurofisiologia do comportamento alimentar. Agora quer mapear as conexões entre os neurônios ligados ao paladar e os que incitam a comer. Em busca de parceiros de pesquisa, Araújo apresentou um seminário no Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP). Lá conheceu a neuroanatomista Sara Shammah-Lagnado, que lhe mostrou os resultados da exploração anatômica pela região cerebral que abriga o reconhecimento de alimentos calóricos. Em artigo a ser publicado este ano na revista Neuroscience, Sara e sua equipe mostram interconexões entre uma área do cérebro ligada a motivação e outra vinculada a reações motoras. “É uma interface entre motivação e ação”, resume a pesquisadora. O encontro fortuito entre grupos de pesquisa deu início a uma busca multidisciplinar. Araújo espera em breve ter um mapa detalhado dos circuitos cerebrais envolvidos na via de sinalização entre a insulina e o sistema de recompensa, entre ver um chocolate e comêlo. “Nós vemos relações anatômicas e não podemos lhes atribuir funções”, diz Sara, “e o Ivan faz experimentos funcionais que permitem testar hipóteses baseadas em circuitos neurais”. Com a abordagem integrada, a equipe da USP espera indicar exatamente em que zonas do cérebro Araújo deve medir a concentração de dopamina depois que um camundongo ingere calorias. Os dados preliminares do grupo de Sara indicam que estão procurando a relação entre comer e sentir-se satisfeito no lugar certo. “É uma linha de pesquisa que ainda vai frutificar”, ressalta ela. É a busca pela morada da gula, que antes de ser pecado garantiu a sobrevivência e a proliferação da vida animal no planeta. ■

Maria Guimarães

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especial: revolução genômica ii

Ciência, embates e debates 62 Apresentação 63 Alan Templeton A evolução humana nos últimos 2 milhões de anos: genes 65 Alan Templeton Usando a biologia evolutiva para estudar doenças arteriais coronarianas 69 José Fernando Perez Samba, futebol e genômica – a saga do Programa Genoma brasileiro 72 Carlos Henrique de Brito Cruz e Roberto Freire O avanço da ciência faz a humanidade melhor? Por quê?

MARCIA MINILLO

75 Esper Abrão Cavalheiro Tecnologias convergentes e a construção do novo homem

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Apresentação O gosto colorido das indagações Este segundo suplemento especial referente às palestras e debates organizados por Pesquisa FAPESP no âmbito da exposição Revolução genômica, que tem à frente, no Brasil, o Instituto Sangari, traz à tona, como o primeiro, alguns resultados instigantes do olhar de um pesquisador em face de seu próprio fazer científico – refiro-me aos textos que tratam das duas conferências do cientista norte-americano Alan Templeton, feitas no Ibirapuera no final de semana de 29 e 30 de março. Mas esta edição apresenta também ao leitor algumas reflexões de caráter mais geral sobre o lugar, os propósitos e os efeitos poderosos do conhecimento científico sobre a conformação das sociedades contemporâneas, via o debate do físico Carlos Henrique de Brito Cruz com o político Roberto Freire, ocorrido no fim da tarde da terça-feira, 8 de abril. Mais: permite-lhe a livre especulação a respeito do homem futuro (uma espécie de cyborg?) que as chamadas tecnologias convergentes – um encontro das tecnologias da informação com a biotecnologia, a nanotecnologia e a neurociência – talvez ajudem a compor, a partir do texto relativo à palestra do neurocientista Esper Abrão Cavalheiro, feita também num final de tarde na terça, 1º de abril. E finalmente abre espaço para a visão de um conhecedor engajado sobre o Programa Genoma da FAPESP, seus fundamentos e seus desdobramentos, inclusive na iniciativa privada, oferecida na terça, 15 de abril, por um de seus grandes idealizadores, o físico e hoje empresário José Fernando Perez, que foi diretor científico desta Fundação de 1993 a 2005. Como disse no primeiro suplemento, todos os textos aqui reunidos buscam insistentemente pôr em cena a fala particular de cada palestrante, com suas tonalidades próprias e mais características. O que esta edição não consegue, entretanto, e nenhuma conseguirá, é transportar para o leitor a textura especial, o sabor e as surpresas do encontro e do debate do público com pesquisadores que vão lhe contar algo relevante sobre atividades e propostas aparentemente muito distantes da vida cotidiana dos cidadãos que não lidam usualmente com os temas científicos. Esses traços mais afetivos, digamos assim, da troca de idéias e informações, se negam em sua verdadeira riqueza ao texto jornalístico para se refugiarem na presença efetiva. Em certa medida, negam-se até as imagens do vídeo e a íntegra das falas e debates que transcrevemos para o site da revista. Por isso mesmo, vale a pena para quem está em São Paulo e pode abrir espaço em sua agenda se deslocar até o Ibirapuera e, antes ou depois de ver a exposição, ouvir os especialistas que Pesquisa FAPESP está trazendo para falar ao público até julho. E, quem sabe, lançar-lhes algumas indagações importantes para a reflexão dos cientistas sobre o seu fazer. Mariluce Moura

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Alan Templeton Biólogo evolucionista afirma que o homem deixou a África três vezes, a primeira delas há quase 2 milhões de anos Marcos Pivetta

especialista em genética evolutiva e de populações. Para ele, o verdadeiro nascimento do homem se deu aproximadamente 1,9 milhão de anos atrás. Nesse ponto da história evolutiva, argumentou Templeton, afloraram as diferenças que marcaram a divisão entre os homens e os outros primatas, como os chimpanzés e gorilas. Os hominídeos experimentaram então uma série de mudanças capitais, segundo o pesquisador: passaram a ocupar novas áreas geográficas; estabeleceram pela primeira vez uma estrutura social avançada; seu cérebro exibiu os indícios primordiais de aumento de tamanho (e essa característica passou a ser importante no mecanismo de seleção natural); sua face e a mandíbula começaram a diminuir, evidenciando o surgimento de ferra-

FOTOS MARCIA MINILLO

MARCIA MINILLO

Costuma-se afirmar que o momentochave do surgimento dos humanos ocorreu há cerca de 100 mil anos, quando apareceram os traços anatômicos comumente associados ao homem moderno. Em sua primeira palestra dentro da programação cultural paralela à mostra Revolução genômica, proferida no dia 29 de março (veja reportagem sobre a segunda palestra na página 65), o biólogo evolucionista Alan Templeton, da Universidade Washington, em Saint Louis, Missouri, refutou essa idéia amplamente difundida e disse que o processo teve origens muito mais remotas. “Se analisarmos somente algumas características anatômicas modernas (surgidas há 100 mil anos), veremos que elas são relativamente triviais quando comparadas ao que estava ocorrendo muito tempo antes”, opinou o

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mentas que os teriam auxiliado na tarefa de arrumar comida. Templeton questionou algumas conclusões normalmente tiradas por estudiosos do momento em que os ancestrais do homem moderno deixaram a África. Não refutou de forma alguma a famosa hipótese Out of Africa, mas fez uma interpretação alternativa à visão dominante sobre o tema. Segundo o pesquisador, os hominídeos primordiais abandonaram três vezes a África em direção à Eurásia – a primeira há cerca de 1,9 milhão de anos, a segunda há 650 mil anos e a terceira há 130 mil anos – e em nenhuma dessas migrações promoveram o extermínio das populações do continente em que se instalaram. “A noção mais difundida é a de que os africanos acabaram com todos os eurasianos”, comentou. “Mas essa teoria da eliminação é falsa.” Afirmou também que, desde a migração inicial, as populações de hominídeos dos dois continentes trocaram constantemente material genético, ou seja, tiveram contatos sexuais e se reproduziram. Para o pesquisador, todos os humanos vivos descendem de uma única linhagem evolutiva que se desenvolveu como uma unidade coesa por pelo menos 1,5 milhão de anos devido à troca de genes e à expansão populacional por meio do acasalamento. “Não há raças biológicas entre os humanos”, afirmou. “As populações humanas atuais apresentam diferenças genéticas, mas elas são pequenas quando confrontadas com as encontradas em outras espécies de grandes mamíferos e refletem primariamente a sua distância geográfica.” Ele também questionou a taxonomia tradicional que classifica diferentes formas de hominídeos (casos do Homo erectus e do Homo ergaster, ou do próprio Homo sapiens e o Homo neanderthalensis) como espécies distintas. Para o pesquisador, as distinções entre essas espécies eram mínimas e deve ter havido troca de genes (relações sexuais que geraram descendentes) entre os membros dessas populações. Em sua apresentação, Templeton falou sobre a evolução humana nos últimos 2 milhões de anos a partir do ponto de vista de um bió-

Templeton: o verdadeiro nascimento do homem se deu há 1,9 milhão de anos, muito antes do que se pensa

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pesquisa fapesp especial revolução genômica ii ■

cência na cabeça e muitos cálculos estatísticos feitos no computador, os cientistas montam então a chamada árvore de haplótipos. Um conjunto de genes que são herdados como se fossem uma unidade recebe o nome de haplótipo. Essa árvore indica basicamente o caminho evolutivo desse trecho do DNA. Mostra que as moléculas atuais foram criadas a partir de uma única molécula ancestral que existiu no passado. “Podemos construir árvores de haplótipos para o DNA mitocondrial, genes do DNA nuclear e o DNA do cromossomo Y”, exemplificou.

Eva mitocondrial Embora seja uma ferramenta fundamental da biologia para o estudo da evolução humana, uma árvore de haplótipos deve ser analisada com cuidado e critérios. “Alguns de vocês devem ter ouvido falar da Eva mitocondrial”, disse Templeton à atenta platéia. Há alguns anos foi construída uma árvore de haplótipos para o DNA mitocondrial, um tipo de material genético passado exclusivamente das mães para os filhos, que foi rapidamente interpretada por muitos cientistas como a árvore da história evolutiva de toda humanidade. Mas essa idéia é uma simplificação tentadora que ronda muitos estudos genéticos relacionados à evolução humana, de acordo com o biólogo da Universidade Washington. Templeton disse que não se deve pegar um gene ou um segmento de DNA e considerálo como portador da história evolutiva da população humana. “Segmentos diferentes de DNA de um genoma poderão ter, na verdade,

histórias evolutivas diferentes”, exemplificou. “A história evolutiva de uma região do genoma humano não é a história evolutiva do homem. A Eva mitocondrial é somente a árvore da variação genética desse segmento de DNA.” Para amparar essa tese, Templeton afirmou que, de acordo com o trecho do DNA usado como base de comparação, o homem pode estar mais próximo evolutivamente do chimpanzé ou mesmo do gorila. Um trabalho do ano passado feito por Ingo Ebersberger, da Universidade de Viena, que analisou mais de 23 mil segmentos do genoma humano, concluiu que, em mais de 80% dos casos, os humanos e os chimpanzés são os primatas mais aparentados sob a ótica molecular. Não é à toa, portanto, que essa é a visão amplamente dominante em termos evolutivos. No entanto, o estudo, publicado na revista Molecular Biology and Evolution, também revelou que 10% do genoma indicam que os chimpanzés e os gorilas são mais próximos evolutivamente. Por sua vez, outros 10% do DNA, ainda de acordo com o trabalho, situaram os humanos e os gorilas como os primatas mais próximos evolutivamente. “Todas essas informações são significativas estatisticamente”, comentou o biólogo molecular. “Podemos concluir, então, que partes diferentes do genoma humano têm, na verdade, histórias evolutivas diferentes.” Em seus trabalhos, Templeton usa ferramentas estatísticas, em especial uma técnica desenvolvida por ele e denominada análise de clados aninhados (nested clade

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logo com formação na área de estatística. Para amparar suas teses, usou dados publicados em estudos de sua própria autoria e em trabalhos escritos por outros especialistas em genética de populações. Em menor escala, recorreu também a informações arqueológicas e paleontológicas. Em sua argumentação, empregou a genética molecular como uma das ferramentas essenciais na tarefa de reconstruir o passado da espécie humana. “Os genes podem ser vistos como fósseis”, afirmou. “O DNA de uma geração é uma cópia do DNA de gerações passadas.” Uma cópia com erros, com modificações, as tais de mutações, mas, ainda assim, uma cópia com informações importantes sobre a nossa história evolutiva. “Se voltarmos no tempo, veremos que todas as cópias de DNA dos bilhões de pessoas que existem hoje, mais cedo ou mais tarde, derivaram de uma única molécula que existiu no passado”, disse Templeton. Reconstruir o passado dessa forma é possível porque os geneticistas estudam um processo denominado coalescência, que é a observação da replicação do DNA a partir do presente em direção ao passado. Segundo essa teoria, todas as variações de um gene (seus diversos alelos) ou de segmento de DNA encontrados no homem atual derivam, em última instância, de uma versão inicial dessa molécula presente numa população do passado que abrigava o ancestral comum a todos os humanos. O fenômeno ocorre em qualquer parte do genoma que for analisada e é válida para qualquer espécie que se estude. Com o conceito de coales-

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Templeton discorda da taxonomia que classifica hominídeos parecidos com espécies distintas

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analysis, no original em inglês) para extrair dados que julga relevantes a partir das análises genéticas. Clado significa ramo. Com essa abordagem, que depende de cálculos pesados e de grandes amostragens, o pesquisador acredita ter levantado evidências de que não se deve falar numa árvore genealógica para a espécie humana. Não se deve ver a história evolutiva da humanidade como uma sucessão de espécies de hominídeos que foram substituindo umas às outras ao longo do tempo sem promover a troca de material genético. Segundo o geneticista, seus estudos com o DNA humano revelam, na verdade, uma estrutura na forma de treliça, com ramos interligando as diversas formas de hominídeos. Fica mais fácil entender essa idéia se, como no caso das árvores reais, as pessoas enxergarem as árvores evolutivas como construções com ramos que, por sua vez, podem se conectar a ramos ainda maiores. “Essas séries de ramos podem ser pensadas como aninhamentos naturais”, explicou. “Podemos converter qualquer árvore de haplótipos num esquema de aninhamentos e bifurcações.” O emprego da análise de clados aninhados em 25 regiões do genoma humano – como o DNA mitocondrial, o cromossomo Y (de origem paterna) e trechos genéticos herdados de ambos os pais – levou Templeton a concluir que houve ao menos três expansões de hominídeos da África, continente-mãe do homem, em direção à Eurásia. Ainda de acordo com esse estudo, as populações humanas estão trocando genes há, no mínimo, 1,5 milhão de anos. “Podemos afirmar isso com 95% de certeza”, comentou. Os cálculos que embasam esse cenário são bastante complicados e têm de levar em conta uma série de desvios, como mutações ocorridas nessas regiões genômicas no passado. Templeton, no entanto, acredita que sua afirmação tem forte amparo estatístico e está embasada na análise combinada de vários trechos do genoma humano – e não de apenas um ou dois genes. “Creio que há uma probabilidade muito baixa de que tenha havido somente um evento de expansão para fora da África. Rejeito essa hipótese”,

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comentou o pesquisador. “Nós, cientistas, fazemos isso o tempo todo. Rejeitamos hipóteses. Provamos algo como sendo falso, mas nunca podemos comprovar de fato o que é verdade, mesmo que algumas vezes afirmemos o contrário.”

Raça e subjetividade A serenidade com que Templeton, um homem cordial, fez a palestra não o livrou de uma bateria de perguntas ao final da apresentação. O tema mais polêmico: sua opinião de que o conceito biológico de raças humanas não tem fundamentação científica. Os questionamentos não o fizeram recuar nem um milímetro de sua idéia central. “Não há raças humanas, nem mesmo algo parecido, do ponto de vista biológico. Diria que o conceito de raça como um

todo causa mais enganos do que traz esclarecimentos. Deveríamos eliminá-lo”, afirmou. “Ainda podemos falar de populações e de padrões de diferenciação, mas há várias maneiras de diferenciarmos essas populações. Podemos distingui-las por meio da fragmentação, do isolamento por distância.” Para o biólogo evolucionista, muitos cientistas aplicam conceitos de raça e taxonomia para o homem de forma bastante tendenciosa e subjetiva. “Se adotássemos os mesmos critérios taxonômicos que empregamos para outros organismos, classificaríamos os humanos, os chimpanzés e os gorilas como pertencentes ao mesmo gênero”, comentou. “As diferenças genéticas não são tão grandes. Devemos utilizar critérios objetivos que nos forcem a ser honestos.” ■

A gordura, o cérebro e o coração Alan Templeton explica como a evolução da espécie humana favoreceu o desenvolvimento de problemas cardíacos Ricardo Zorzetto

Alan Templeton é um pesquisador versátil. Dedica parte de seu tempo a estudar a diversidade genética de lagartos e salamandras. Na outra parte, continua a trabalhar na mesma linha de pesquisa que iniciou há 34 anos durante o doutorado: investiga as causas genéticas de doenças humanas complexas. Ao unir seus conhecimentos de genética e evolução a ferramentas de estatística, vem ajudando a compreender por que os seres humanos desenvolveram características que os tornam atualmente mais propensos a sofrer problemas cardíacos, a principal causa de morte nos países industrializados. No domingo, 30 de abril, em sua segunda palestra na programação cultural paralela à mostra Revolução genômica, Templeton falou sobre como vem usando a história

evolutiva da espécie humana para explicar o risco elevado de doenças coronarianas, caracterizadas pelo bloqueio por placas de gordura das artérias que nutrem e oxigenam o coração, podendo levar à morte. “Dependendo da região em que ocorre esse bloqueio, os sintomas são tão brandos que as pessoas nem os percebem”, disse Templeton. “Mas, em 20% dos casos, o primeiro sintoma é cair morto.” Por essa razão, nos últimos anos tem havido uma intensa busca de fatores que permitam prever o risco de doença coronariana. Entre esses fatores estão os genes. Como a evolução é um processo genético decorrente da alteração no número ou na estrutura dos genes nas populações através dos tempos, analisar como, quando, onde e em que situação essas modificações ocorre-

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REPRODUZIDO DE NATURWISSENSCHAFTEN, 1926

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ram permite compreender como surgiram na espécie humana traços como o que favorece o bloqueio das artérias coronárias. “A evolução nos permite entender por que desenvolvemos uma característica que nos faz tombar mortos”, disse Templeton, que começou a investigar essa associação em 1974, durante seu doutoramento sob orientação do geneticista Charles Sing, da Universidade de Michigan. “Entender esse passado evolutivo pode nos ajudar a compreender os fatores de risco atuais.” Mas não basta olhar para os genes. Também é preciso analisar em que contexto determinadas alterações genéticas surgiram e verificar se esse contexto sofreu ou não mudanças. A razão é simples: os genes não determinam por si sós as características dos seres vivos. As informações contidas nos genes interagem o tempo todo com o ambiente. “Os genes podem sofrer alterações e mudar nossos traços, mas mudanças no ambiente também podem afetar nossas características. O DNA não é tudo”, explicou Templeton. “Sabemos que algumas características se modificaram tão rapidamente na história da evolução humana que não podem ter caráter evolutivo, não se trata de alterações nos genes”, disse o biólogo norteamericano. Se os genes não mudaram, as alterações só podem ter ocorrido no ambiente. Uma carac-

terística que mudou muito, em especial no último século, foi a obesidade, que vem aumentando nos Estados Unidos e em vários outros países. Em 1991 na maioria dos estados norte-americanos menos de 15% dos adultos apresentavam obesidade clínica. Em 2004 já não havia estado com menos de 15% de obesos – em vários deles a taxa de obesidade já havia alcançado 25%. “Não é preciso ser um cientista genial para descobrir o motivo. Os norte-americanos estão obesos porque comem muito”, disse Templeton, apontando para gráficos que mostravam o aumento da média de calorias ingeridas diariamente. “Essas alterações ocorreram tão rapidamente que sabemos que são ambientais.” E mudanças na alimentação afetam não apenas a probabilidade de desenvolver doenças coronarianas, mas também de se ter outras enfermidades, a exemplo de hipertensão e diabetes, que aumentam o risco de problemas cardíacos e acidente vascular cerebral. Todos esses problemas, segundo Templeton, vêm se tornando mais e mais comuns principalmente em decorrência de mudanças no ambiente e no estilo de vida: hoje as pessoas comem mais e exercitam-se menos. Se o excesso de peso não favorece a longevidade – aliás, comprovadamente aumenta o risco de morrer –, por que os seres humanos teriam genes que reforçam essa caracterís-

tica? Quem deu as primeiras pistas para responder a essa questão foi um dos pioneiros da genética humana, James Neel, que chefiava o departamento em que Templeton fez seu doutorado. Em 1962, muito antes de se ter acesso ao volume de informações sobre genética disponíveis hoje, Neel publicou no American Journal of Human Genetics uma hipótese considerada radical para explicar a origem desses problemas. No artigo Diabetes mellitus: a “thrifty” genotype rendered detrimental by “progress”? (Diabetes mellitus: um genótipo “poupador” que se tornou prejudicial pelo “progresso”?), ele sugeriu que genes associados a doenças modernas como diabetes, hipertensão e obesidade teriam sofrido um intenso processo de seleção que teria tornado algumas formas de genes (alelos) muito freqüentes em determinadas populações.

Reservas vitais A razão por trás dessa seleção teriam sido episódios de extrema escassez de alimentos. “Quando há fome, muita gente pode morrer. Nessas condições, Neel disse que haveria seleção do genótipo poupador: qualquer gene que tornasse os seres humanos mais eficientes no uso das calorias seria favorecido”, explicou Templeton. Assim, os mesmos traços que teriam permitido a sobrevivência em um ambiente sem comida facilitariam o desenvolvimento da obesidade e do diabetes tipo 2, quando as calorias se tornaram abundantes. Esse efeito se tornou evidente ao se documentar a história de populações que passaram por situações de extrema escassez de alimento. Um exemplo são os índios Pima, um dos primeiros grupos humanos a habitar a América do Norte. Vítima de freqüentes episódios de falta de alimentos tanto no passado quanto mais recentemente, metade dos adultos Pima desenvolve diabetes tipo 2 em meio à fartura de comida. O mesmo ocorreu com os habitantes da ilha Nauru, na Micronésia, que até a Segunda Guerra Mundial eram muito pobres e sofriam com a falta de alimentos. Depois de descobrir que um recurso natural da ilha – o guano, excremento de aves marinhas, usado como fertilizante

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ano de vida levam à deposição de gordura nas artérias quando se vive em um ambiente com muitas calorias disponíveis. “Os seres humanos são mais propensos do que qualquer outro mamífero a sofrer de doenças coronarianas”, disse Templeton. “É nosso legado evolutivo.”

Desafios estatísticos

“A evolução nos permite entender por que desenvolvemos uma característica que nos faz tombar mortos”

Nos últimos anos, em parceria com Charles Sing, da Universidade Michigan, Andy Clark, da Universidade Cornell, e Eric Boerwinkle e Jim Hixson, da Universidade do Texas, Templeton e Jim Cheverud, também da Universidade Washington, vêm usando a história evolutiva da espécie humana na tentativa de identificar genes ou variações genéticas que funcionem como indicadores do risco de doenças coronarianas. Mas têm um grande desafio pela frente: o número de variações no genoma humano é muito elevado – já se identificaram aproximadamente 12 milhões de alterações –, embora poucas delas estejam ligadas a doenças. Dez anos atrás a equipe coordenada por Sing analisou o material genético de 71 pessoas de três populações distintas e encontrou 88 variações do gene responsável pela produção de uma proteína que digere um tipo de gordura. Combinadas de diferentes formas, essas 88 variações resultam

“Reservas de gordura diferenciam bebês humanos de chimpanzés”, disse Templeton

MARCIA MINILLO

na agricultura – poderia ser exportado, os naurus enriqueceram e passaram a comprar comida industrializada. Em poucas gerações, metade deles tornou-se portador de diabetes. “Quando se analisam populações que não sofreram com escassez de alimento, a taxa de diabetes é de 2,8% entre os adultos”, afirmou Templeton. Essa mesma hipótese vem sendo utilizada para explicar outras enfermidades que afetam o organismo todo, como as doenças coronarianas: a história evolutiva da espécie humana teria favorecido a seleção de genes que favorecem o acúmulo de lipídios (gorduras), como o colesterol. Por que esse perfil prevaleceu ao longo da evolução? Porque os seres humanos têm cérebros grandes. Segundo Templeton, uma das características da evolução nos últimos 2 milhões de anos foi o aumento de tamanho do cérebro – o cérebro humano cresce a taxas semelhantes às de outros primatas durante o desenvolvimento intra-uterino, mas mantém esse índice por muito mais tempo do que outras espécies, até 1 ano depois de nascer. Mas há um preço para se adquirir cérebros maiores. Eles consomem muita energia. Só para ter uma idéia, um terço da energia consumida por um recém-nascido é destinada para manter seu cérebro vivo e em crescimento. Além de serem importante fonte de energia, as gorduras entram na composição do próprio cérebro. De acordo com o biólogo da Universidade Washington, os bebês humanos conseguem manter a taxa de crescimento cerebral mais elevada durante o primeiro ano de vida porque são os mais obesos entre os primatas. “Os seres humanos passaram por uma seleção muito intensa que favoreceu a característica de poupar gorduras para manter um cérebro grande”, disse Templeton. Assim, a seleção de genes que favorecem o acúmulo de colesterol e outros lipídios foi uma adaptação essencial para permitir o desenvolvimento de cérebros que, na vida adulta, chegam a pesar 1,5 quilograma. O problema é que os mesmos genes que proporcionam o acúmulo de gordura necessária ao crescimento cerebral no primeiro

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em 3.916 possibilidades distintas. “Esse é um estudo antigo”, disse Templeton. No trabalho atual o número de combinações (genótipos) possíveis é maior que o número de elétrons do Universo, estimado em 10130 (o número 1 seguido de 130 zeros), o que torna impossível o trabalho de qualquer estatístico. Para contornar a impossibilidade de analisar o efeito de cada uma dessas variações, Templeton e seus colaboradores desenvolveram uma nova maneira de tentar identificar apenas aquelas que causam alteração na estrutura ou no funcionamento das proteínas. Em um primeiro passo, eles avaliam a história evolutiva dessas variações gênicas (haplótipos) – como surgiram e se acumularam através dos tempos – e as organizam em uma estrutura semelhante a uma árvore, a chamada árvore de haplótipos. Em seguida, usando uma estratégia descrita em 2005 na Bioinformatics, que denominaram TreeScan (análise de árvore), confrontam o efeito de uma variação contra todas as demais agrupadas, como se fossem apenas duas alterações, em vez de comparar uma a uma centenas ou milhares de mutações. Assim, reduzem muito o número de possibilidades, tornando possível analisá-las do ponto de vista estatístico. “Na árvore, temos o mais eficiente desenho estatístico para estudar como uma mutação está associada a uma doença”, disse Templeton, que em sua apresentação no Ibirapuera comparou a árvore de haplótipos a um mapa que não informa a distância entre São Paulo e Rio de Janeiro, mas mostra como ir de uma cidade a outra.

Além dos genes

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O grupo de Templeton demonstrou que variações em um gene específico, responsável pela produção da apolipoproteína E (apoE), permitiam estimar o risco de desenvolver bloqueios de gordura nas artérias que irrigam o coração, em estudo feito anos atrás com pacientes idosos da Clínica Mayo, em Minnesota. Na década de 1980, Charles Sing demonstrou que, isoladamente, o gene da apoE permite prever parte do risco de desenvolver doenças coronarianas. Essa proteína liga-se

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“Mudanças no ambiente também podem afetar nossas características. O DNA não é tudo”

a um dos tipos de colesterol e permite que seja transportado do intestino, onde é absorvido, para os diferentes órgãos e tecidos do corpo – entre eles, o cérebro. Usando a TreeScan, o grupo de Sing e Templeton constatou que uma das quatro variantes do gene da apoE – a apoE-4 – realmente favorecia o aumento no sangue dos níveis do colesterol LDL, que adere à parede dos vasos sangüíneos formando placas de gordura, e elevava o risco de problemas coronarianos. Em seguida ao anúncio da descoberta, a imprensa passou a rotular a apoE-4 como a variante assassina ou alelo assassino desse gene. Essa classificação, que seduz por indicar um culpado pelos problemas cardíacos, irritou profundamente os pesquisadores porque as pessoas estavam olhando apenas uma parte da questão – os genes – e haviam se esquecido da influência do ambiente. A equipe das universidades Michigan, Cornell, Texas e Washington constatou que a afirmação da imprensa não fazia o menor sentido ao comparar como se associam duas a duas as variações mais fre-

qüentes do gene (apoE-2, apoE-3 e apoE-4) com os níveis de colesterol dos idosos (baixo, normal ou elevado). Não havia um alelo assassino. “Os genes explicam apenas 7% do risco de desenvolver doença coronariana”, afirmou Templeton. Os outros 93% dependem de fatores ambientais, como o nível de colesterol no sangue, determinado pela dieta e pelo estilo de vida sedentário. A combinação mais perigosa para o coração foi apresentada pelos portadores de uma cópia do alelo apoE-2 e outra do apoE-3, que tinham níveis de colesterol elevados. Essas pessoas corriam um risco até 10 vezes maior de desenvolver problemas cardíacos do que as demais. Já os idosos com ao menos um alelo apoE-4, taxado de assassino, mas que mantinham níveis considerados normais de colesterol, foram menos suscetíveis a desenvolver problemas coronarianos do que aqueles que, nessa mesma condição, eram portadores dos alelos apoeE-2 ou apoE-3. Segundo Templeton, esses dados mostram que há interação entre os genes e os fatores ambientais. “Qual o gene assassino? Não sei. Depende do contexto.” “Infelizmente os médicos usam essas duas informações separadamente”, comentou Templeton. Mas a natureza é mais complexa e não funciona assim, porque há interação entre os genes e o ambiente. Quando se analisa apenas a informação genética ou ambiental separadamente, o resultado pode ser enganoso. “Essa complexidade nos desafia”, disse Templeton, “mas temos mais informações sobre o risco de doenças coronarianas quando avaliamos as duas informações juntas”. Os genes são parte, e apenas parte, dessa história, reforçou o pesquisador, que em 1974 deu aulas durante 3 meses na Universidade de São Paulo. “Hoje a medicina tenta tratar a doença coronariana. Com esses dados estamos dizendo que é preciso tratar o indivíduo com doença coronariana. Os bons médicos já fazem isso”, disse Templeton. A razão é que o que funciona para uma pessoa não necessariamente funciona para outra. O pesquisador lembrou ainda ser mais fácil alterar as condições ambientais do que modificar os genes. ■

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Ex-diretor científico da FAPESP fala sobre o pioneirismo dos primeiros projetos Genoma e as conseqüências para a biotecnologia brasileira Marcos de Oliveira

“Samba, futebol e... genômica.” Essa frase inicial de uma reportagem publicada na edição 8.180, de julho de 2000, na prestigiosa revista semanal inglesa The Economist sobre os bons resultados dos projetos Genoma financiados pela FAPESP, foi o nome com que o físico José Fernando Perez deu a sua palestra no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, durante o ciclo de palestras da exposição Revolução genômica. Ex-diretor científico da Fundação no período de 1993 a 2005, Perez disse que acrescentou no dia anterior a palavra “depois” no título porque gostaria de falar no que veio após a finalização dos projetos, como a formação biotecnológica de centenas de profissionais e a criação de pelo menos quatro empresas brasileiras de biotecnologia, inclusive uma dele mesmo, a Recepta, que agora ele comanda, depois de se aposentar no Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP). Da mesma forma que comandou os projetos Genoma, ele coordena uma série de pesquisadores e instituições no desenvolvimento da parte clínica dos testes de quatro candidatos a medicamentos anticâncer. Bem-humorado, ele disse não gostar de saudosismo do tipo “como era bom o meu genoma...”. Mas voltou à frase seguinte da mesma matéria da The Economist – a lista de coisas pelas quais o Brasil é renomado repentinamente cresceu – como ponto de partida para rememorar a história do Programa Genoma comandado por ele entre 1997 e 2003. A revista elogiou o seqüenciamento do genoma do primeiro organismo patógeno de uma planta, a bactéria Xylella fastidiosa, que provoca a praga amarelinho

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nos laranjais, e também o fato de o Brasil ter ficado atrás apenas dos Estados Unidos e Inglaterra no número de seqüências expressas do genoma humano, com o projeto genoma do câncer que os pesquisadores paulistas ajudaram a formatar. “Isso foi surpreendente, muito forte”, disse Perez. “O que havia ocorrido para justificar esse sucesso?”, perguntou Perez. “Aconteceu o seqüenciamento da Xylella, num prazo bom e com orçamento bara-

MARCIA MINILLO

José Fernando Perez

to elaborado por um instituto virtual modelo, em que pesquisadores não estavam reunidos em um ambiente apenas, mas interligados via computador em dezenas de laboratórios espalhados pelo estado de São Paulo.” A The Economist na verdade estava se referindo à Onsa, sigla para Organization for Nucleotide Sequencing and Analysis, ou Organização para Seqüenciamento e Análise de Nucleotídeos, a rede virtual de laboratórios do Programa Genoma da FAPESP. “Era uma brincadeira com a sigla TIGR (semelhante à grafia de tigre em inglês) nos Estados Unidos, The Institute of Genetics Research, porque o nosso bicho é a onça. “Visitamos o Craig Venter (biólogo e um dos criadores do TIGR e depois da empresa Celera) em janeiro de 1998 e ele disse que precisávamos ter sucesso, para que não houvesse nenhuma maldição contra os felinos.” A saga do genoma da Xylella começou em 1997, abriu as portas de uma série de outros genomas e cul-

Perez: “Precisávamos de uma idéia nova que provocasse uma mudança na biotecnologia brasileira e criasse competência”

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MIGUEL BOYAYAN

Na Recepta, empresa de Perez: cultivo de células de anticorpos monoclonais, candidatos a medicamento contra câncer

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minou com a capa da revista Nature, em 13 junho de 2000, e repercutiu em forma de análise e de notícias em vários periódicos no mundo, além da The Economist, como os jornais The New York Times e o francês Le Figaro. “Precisávamos de uma idéia nova que proporcionasse uma mudança na biotecnologia brasileira, criando competência, porque era uma área estratégica que responde às características econômicas, à biodiversidade, à agricultura, à pecuária e a problemas de saúde pública específicos do país”, disse Perez. “Precisávamos também de um método novo para formarmos bastante gente, e rápido, produzindo resultados na fronteira do conhecimento.” Para ele, existia em São Paulo expressiva competência instalada, mas lento desenvolvimento em genética molecular. A idéia do seqüenciamento da Xylella partiu de Fernando Reinach (professor do Instituto de Química da USP e, na época, um dos coordenadores de área da diretoria científica da FAPESP), que sugeriu o nome da bactéria que atacava os laranjais paulistas. “Seu nome Xylella fastidiosa não se deve a uma razão poética, é uma característica físico-química da bactéria, ela cresce muito lentamente, tanto in vitro como dentro da planta.” A escolha e a decisão de decifrar o seu genoma não foram

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uma tarefa fácil, principalmente porque não havia quem soubesse cultivar aquele microorganismo. Fazer crescer uma bactéria é como crescer cristais: é uma receita. “Em uma reunião, lembro-me que saí da sala para atender alguém, quando o Andrew Simpson (do Instituto Ludwig e coordenador de DNA do projeto), que já tinha entrado no circuito, dando estímulo muito forte ao projeto, me disse a decisão na volta. Eles utilizariam a bactéria Thiobacillus ferrooxidans e outra bactéria, não me lembro o nome, muito usada em biomineração, que depois foi seqüenciada pelo TIGR. Ela é uma bactéria interessante, mas eu disse que deveríamos dar uma atenção à Xylella”, lembra Perez. O Fundo de Defesa da Citricultura (Fundecitus) estava interessado e trouxe ao Brasil a pessoa que tinha trabalhado e dominava a cultura da bactéria: o professor Joseph Bové, do Instituto Nacional de Pesquisa Agronômica, Inra na sigla em francês, que trabalhava com genética molecular. “Ele deu uma contribuição decisiva. Convenceu o grupo de que sabia fazer o crescimento da bactéria. Bové sabia porque tinha sido o primeiro pesquisador a provar a correlação causal entre o microorganismo e a doença na planta e nós precisaríamos produzir muita bactéria. Ele foi convincente e nós escolhemos a Xylella.”

A escolha aconteceu com a consciência de que o genoma dessa bactéria não resolveria o problema dos laranjais assim que terminasse. “Sabíamos muito bem que se tivéssemos o genoma da Xylella não resolveríamos nada no dia seguinte.” A escolha dos laboratórios foi uma surpresa para a equipe que coordenava o projeto. “Tínhamos medo de que não fossem aparecer muitos laboratórios, porque era um tipo de contrato diferente. As pessoas tinham de fazer uma certa quantidade de seqüenciamento em um certo intervalo de tempo e com qualidade.” O resultado foi que a maioria era de pesquisadores jovens, como os coordenadores esperavam. Propunha-se que se fizesse em São Paulo uma pesquisa científica em bases quase industriais. Em janeiro de 2000 o genoma pioneiro da Xylella foi concluído, antes do prazo. Depois veio o da bactéria Xanthomonas axonopodis, causadora do cancro cítrico. Logo em seguida vieram o da cana-deaçúcar e o do Schistosoma mansoni, verme responsável pela esquistossomose. “Aí, os projetos se transformaram no Programa Genoma.” Também foram seqüenciados os genomas da Leptospira, bactéria causadora da leptospirose, do café, do eucalipto, o genoma bovino e o da cana-deaçúcar. A partir da cana, o seqüenciamento se concentrou nas seqüências expressas, trechos de DNA que codificam proteínas. A rede Onsa cresceu muito. O orçamento que foi gasto de 1997 até 2003 foi de US$ 39 milhões. “Isso nunca passou de 2,4% do orçamento da FAPESP”, disse Perez A rede Onsa chegou a ter 60 laboratórios com esse orçamento.

Hora da bioinformática O investimento também contemplava a bioinformática, área essencial para dar ordem ao quebra-cabeça que é fazer um genoma. “Esse é um capítulo interessantíssimo, porque os assessores internacionais nos advertiram que teríamos um gargalo nesse ponto. Decidimos, então, convidar dois jovens, o João Setúbal e o João Meidanis, ambos do Instituto de Computação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que trabalhavam

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a telefonar: ‘Acertaram o Pentágono’. Aí resolvi avisá-la e fomos até a sala do Conselho da FAPESP para ver na TV o que acontecia. Mas a entrevista saiu numa matéria bem interessante.” Na palestra, Perez também deu ênfase às contrapartidas de empresas ou de cooperativas, como o Fundecitros, na Xylella, a Cooperçúcar, na cana, e o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, na Xylella da uva, o Instituto Ludwig, no genoma do câncer, além de empresas como Suzano, Ripasa, Votorantim e Duraflora, no projeto genoma do eucalipto, a Embrapa, no genoma do café, e a Central Bela Vista, no projeto genoma do boi. Ao todo foram US$ 11,7 milhões em contrapartidas ligadas ao Programa Genoma. No âmbito da palavra “depois” inserida um dia antes no nome da palestra, Perez começa perguntando: “O que aconteceu com a biotecnologia?”. Apareceram

“A liderança internacional conquistada com a bioinformática levou os laboratórios brasileiros a participar de projeto nos Estados Unidos”

empresas, como a Alellyx, que traz tanto os recursos dos genomas como outras ferramentas da biotecnologia para a agricultura, a Scylla, empresa que presta serviços em bioinformática, e a CanaVialis, especializada em novas variedades de cana-de-açúcar. “Fernando Reinach (atualmente diretor executivo da Votoratim Novos Negócios) é responsável por tudo isso. O próprio investimento da Votorantim tem relação com o Reinach, que teve uma projeção muito grande com o Programa Genoma.” Ele lembrou também de Simpson, atual diretor científico do Instituto Ludwig internacional. “E eu fui parar aonde? Abri uma empresa de biotecnologia.” É a Recepta Biopharma para investigar anticorpos monoclonais, moléculas candidatas a medicamentos contra vários tipos de câncer. A empresa tem um modelo parecido com o que foi usado no Genoma, com redes de pesquisa fortalecida por parcerias com diversas instituições como o Instituto Butantan e o Instituto Ludwig. “Quem visitar minha empresa verá que não há nenhum laboratório por lá.” As pesquisas são desenvolvidas nos laboratórios das instituições parceiras que compõem a rede da Recepta. São 25 colaboradores na empresa, sendo 12 doutores e 6 mestres, muitos deles participantes do Programa Genoma. ■

MARCIA MINILLO

na área de bioinformática. Eles simulavam os genomas, tinham publicado um livro sobre o assunto, que até hoje é considerado uma referência importante, mas nunca haviam trabalhado com genoma real.” Por isso havia uma insegurança. “Os assessores internacionais não acreditavam que conseguiríamos”, diz Perez. Mas a bioinformática foi um dos grandes sucessos do projeto. A liderança internacional conquistada em bioinformática, com Setúbal e Meidanis, foi tanta que eles foram convidados para participar de um projeto que estava sendo realizado na Universidade de Seattle, nos Estados Unidos, e tinha problemas. Era o genoma da Agrobacterium tumefaciens, bactéria utilizada em estudos de plantas transgênicas. Outro fato nesse sentido foi a epidemia provocada por uma variante da Xylella nas vinhas da Califórnia. “Eles nos pediram para seqüenciar essa variedade da Xylella. Algumas pessoas acharam que o pedido era porque fazer com a Onsa sairia mais barato. Na verdade, o discurso do ‘mais barato’ foi derrubado porque um pesquisador da Califórnia publicou uma matéria no jornal San Francisco Chronicle reclamando do governo americano por mandar para o Brasil esse projeto, dizendo que eles fariam muito mais depressa, e de graça. No final, esse grupo americano acabou colaborando com a gente no projeto e foi um sucesso o seqüenciamento da Xylella da uva.” Sobre a repercussão na imprensa americana, Perez contou um caso curioso que aconteceu em 11 de setembro de 2001, dia dos atentados a edifícios nos Estados Unidos. Naquela manhã, Perez dava uma entrevista à jornalista Abigail Trafford, do jornal Washington Post, em seu gabinete na sede da FAPESP, sobre a colaboração com os norteamericanos quando sua mulher liga e diz que um avião acertou a primeira torre do World Trade Center. Na vontade de falar sobre o Programa Genoma e não desviar atenção, ele não falou nada à repórter norteamericana. “Depois minha mulher ligou novamente e disse: ‘Um segundo avião acertou a outra torre.’ Eu não disse nada. Então ela tornou

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Brito Cruz e Roberto Freire Os dois debatedores lembraram que cabe à sociedade e a seus representantes escolher se, quando e como usar o conhecimento criado com o método científico

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pesquisa fapesp especial revolução genômica ii

Carlos Fioravanti

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Um físico que faz incursões pela política e um político com incursões no mundo da ciência encontraramse no final da tarde do dia 8 de abril no auditório da exposição Revolução genômica, no Parque do Ibirapuera em São Paulo: Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP (e presidente da Fundação de 1996 a 2002), um interessado nas políticas para o desenvolvimento científico e tecnológico, e Roberto Freire, o senador, o primeiro parlamentar a falar em Lei de Inovação, inspirada na lei francesa de 1998. No encontro não trataram estritamente de inovação, mas de algo mais amplo – os benefícios e limites do conhecimento –, personificando trajetórias e linhas de raciocínio distintas, mas convergentes. Brito ressaltou o valor do método científico para o progresso do conhecimento, que fez o homem “mais senhor de seu destino e mais capaz de entender a natureza e, dentro dela, a si mesmo”, enquanto Freire valorizou o uso social, amplo e participativo do conhecimento. Ambos falaram em torno das duas perguntas que nortearam o debate: “A ciência torna o mundo melhor? Por quê?”. Concordaram que a ciência faz o mundo melhor, mas não sozinha: as escolhas da sociedade sobre o uso do conhecimento são tão importantes quanto o próprio conhecimento. Ao abrir sua exposição, Brito Cruz valeu-se da constatação de que há no mundo atual uma tendência para se ver o conhecimento científico sob uma ótica excessivamente utilitarista. Essa visão, lembrou, ganhou força depois da Segunda Guerra Mundial, quando o finan-

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ciamento da pesquisa científica passou a ser feito de forma sistemática, organizada pelos governos, com recursos públicos. Esse fato tornou essencial “estar preparado para explicar ao contribuinte os benefícios da ciência”. Segundo ele, essa explicação ao contribuinte deve ter horizontes amplos: idéias nascidas da ciência podem, muitas vezes, ajudar a humanidade de forma indireta e pouco evidente. Por isso, a explicação deve fugir do utilitarismo e da propaganda fácil. Até mesmo descobertas com aplicações evidentes e que poderiam ser imediatas, como a descoberta do fungo que poderia exterminar bactérias – a penicilina – , exigiram algumas décadas antes de ela se tornar o primeiro medicamento da classe dos antibióticos – os medicamentos mais usados no mundo.

DDT e Prometeu Brito Cruz acredita que uma pergunta mais ampla – se o conhecimento, não só o produzido pela ciência mas também pela arte, pela literatura e pela filosofia, serve para tornar a vida da humanidade melhor – deveria se sobrepor à preocupação de aplicação utilitarista e imediata do conhecimento obtido com a pesquisa científica. “Mais do que pensar somente se o conhecimento serve ou servirá para fabricar alguma coisa, é necessário valorizar a idéia de que o exercício da curiosidade leva o ser humano a descobertas científicas que podem ajudá-lo a entender o mundo”, disse. “Conhecer mais e melhor ‘apenas’ para saber mais é tão importante quanto conhecer mais para

criar aplicações.” Para ele, a astronomia é uma área de pesquisa que representa esse desejo primeiro e o esforço da humanidade para entender a origem e os destinos do Universo. O conhecimento que nasce daí pode também levar a aplicações – na forma, por exemplo, de mapas que ajudem a guiar os viajantes –, mas não é a expectativa da aplicação que move o astrônomo. Em seguida, Brito Cruz falou sobre as formas pelas quais a humanidade lida com a ciência e sobre como uma mesma criação científica pode ter destinos distintos dos originalmente imaginados: “A humanidade aprendeu que o exercício de querer entender coisas novas, na maioria das vezes, tende a criar melhores condições de vida; acontece também de o avanço do conhecimento criar problemas novos, diferentes daqueles que se pretendia resolver”. Como exemplo, citou o inseticida conhecido pela sigla DDT (dicloro-difenil-tricloroetano), de baixo custo e bastante eficiente, largamente utilizado depois da Segunda Guerra Mundial, principalmente em lavouras, mas que, como se descobriu mais tarde, poderia causar doenças e provocar graves desequilíbrios ambientais. Em 1962 a bióloga norte-americana Rachel Carson escreveu Primavera silenciosa, o livro em que apresentou o caso contra o DDT de forma contundente. Segundo ele, os problemas causados pelo DDT não são motivo para banir a ciência, mas sim para buscar mais conhecimento que ajude a realizar os desejos de progresso. Brito lembrou que a busca de conhecimento e o paradoxo de conseqüências inesperadas acompanham a humanidade há muito tempo. Tanto o receio do conhecimento quanto a paixão por ele aparecem nas histórias que sustentam a civilização – os mitos – e expressam valores profundos do ser humano. Um exemplo é Prometeu, que levou aos homens o segredo do fogo, até então mantido somente entre os deuses. Como punição, os deuses o acorrentaram a uma coluna de pedra. Não era o bastante: toda noite uma águia bicava o fígado de Prometeu acorrentado e ainda vivo. Seu suplício não tinha fim, porque o fígado, como os gregos pareciam

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saber há milênios, antecipando-se ao que a medicina confirmaria mais tarde, é um dos únicos órgãos do corpo humano capaz de se regenerar. Assim, a águia que voltava toda noite sempre tinha o que comer. “De forma interessantemente análoga – obter o conhecimento e ser castigado por isso –, a Bíblia cristã e a Torá judaica narram a expulsão de Eva e Adão do Paraíso por terem provado o fruto da árvore do conhecimento.”

FOTOS MARCIA MINILLO

Viver mais Mas a convivência dos homens com o conhecimento tem manifestações menos trágicas. Um benefício claro do conhecimento científico acumulado nos últimos séculos é a possibilidade de viver mais: se durante a Idade Média as pessoas raramente chegavam aos 30 anos, abatidas por infecção, fome ou doenças, hoje ter 90 anos não é mais tão surpreendente. Viver mais, porém, lembrou Brito, traz novos desafios: “Se a sociedade não se organizar, viver mais pode trazer um problema, por exemplo, para o sistema previdenciário, que depende da relação entre o número de anos de trabalho e o número de anos na aposentadoria. Como não se fará um argumento sobre viver menos, torna-se essencial criar condições para o sistema previdenciário funcionar quando todos vivem mais. Esse exemplo simplista ilustra como às vezes saber não é o suficiente: mesmo que cada um saiba que o sistema não pode funcionar, a sociedade tem dificuldades para organizar uma sistemática legítima, que arbitre quem vai sofrer, e quanto, com as perdas da mudança”. Brito Cruz observou que freqüentemente não é possível antecipar o que vai acontecer em conseqüência de uma descoberta, mesmo quando se trata de objetivos positivos como a ampliação da expectativa de vida ou do bem-estar humanos. “Uma das ilusões sobre a ciência é esperar que a humanidade possa chegar um dia a descobrir tudo que há para ser descoberto. Há limites: a complexidade de certos sistemas e fenômenos desafia a compreensão humana. Mas o homem insiste e prossegue, adicionando elementos à explicação do mundo que vem sendo construída”, comentou, citando em seguida o avanço do conheci-

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Brito: “O conhecimento tem de ser tratado com cuidado e atenção” Freire: “Os cientistas brasileiros deveriam ter posições mais abertas”

mento sobre o corpo humano obtido desde o trabalho marcante de Andreas Vesalius, um dos pioneiros em descrever os órgãos do corpo humano e suas funções, ainda no século XVI. Embora a ciência contribua para o desenvolvimento da sociedade, “não pode ser somente o cientista que vai dizer o que fazer com o conhecimento”, ressaltou. A ciência deve servir à sociedade, e não o contrário. “A sociedade precisa se organizar e criar os instrumentos para escolher como deseja usar o conhecimento científico no interesse público.” Essa é uma das razões, segundo ele, pela qual qualquer cidadão, “para não ficar submetido a crendices ou a agendas ocultas”, deveria conhecer noções básicas de ciência. No mundo de hoje, para ele, é preciso ter noções sobre o átomo, sobre as funções do DNA e sobre as teorias que explicam a origem do Universo da mesma forma que é preciso saber algo sobre o funcionamento da economia, da inflação e da histó-

Freire (acima) e Brito: ciência à sociedade

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Freire contou que entrou em contato com os conceitos sobre inovação tecnológica a partir dos movimentos políticos e sociais que emergiram em maio de 1968 na França e rapidamente ecoaram por outros países, como Checoslováquia e Itália, chegando também ao Brasil. Nessa época já havia iniciado sua própria trajetória política como militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e mais tarde se tornaria deputado estadual e senador. “Para os comunistas”, lembrou, retomando a efervescência do ano de 1968, “toda aquela movimentação representava uma discussão concreta, porque a classe operária e o PC entraram em choque com o movimento estudantil francês. Mas por que na França, onde o PC tinha uma presença hegemônica, os operários não haviam se associado aos estudantes?”

Maio de 1968 Pouco depois Freire leu um livro que continha muitas das repostas que procurava. Era o Toda verdade, cujo autor, o filósofo comunista francês Roger Garaudy, examinava as perspectivas do socialismo, a partir da atuação do PC no movimento de 1968 na França e da intervenção soviética na então Checoslováquia. Lendo Garaudy, que mais tarde seria expulso do PC francês por causa das críticas que publicou, Freire constatou que, em paralelo à visão de luta de classes entre operários e burgueses, que conduzia os comunistas, a rebelião estudantil em maio de 1968 na França havia mostrado que os estudantes detinham o conhecimento, essencial para promover mudanças econômicas. “O processo de acumulação de conheci-

mento havia dado um salto que não era apenas definidor da cultura, mas representava uma ruptura com ciclos definidos”, observou. “Era o início de uma nova civilização, a primeira expressão política do valor do conhecimento.” Foi um momento decisivo também para o próprio Freire, que começou então a discutir – “inicialmente nos setores mais à direita do partido comunista” – o valor estratégico da inovação tecnológica. “A esquerda era então o que tentava entender o futuro, o mundo que está aí, não o que está preso ao passado. Como nos preparamos para a revolução científica e tecnológica? Na Constituinte de 1988 percebemos que não era difícil falar de ciência para os políticos. Em alguns estados essa questão avançou mais que em outros, como em São Paulo, em que a verba para ciência está vinculada à arrecadação de tributos.” Possivelmente, acrescentou, esse avanço representa uma herança da Constituinte estadual de 1947, que permitiu a criação da FAPESP. Pouco depois, indagado por um dos participantes, ele retomou esse ponto e explicou que os debates sobre ciência e tecnologia corriam com relativa facilidade na Assembléia Nacional Constituinte “porque os políticos respeitam e admiram os cientistas”. Segundo ele, a imagem mais comum dos cientistas é de pessoas que salvam vidas, que passam a vida em um laboratório e, portanto, tornam-se pessoas diferenciadas. “Muito mais difícil”, prosseguiu, “é fazer o país investir em ciência, especialmente neste governo, que gerou ambigüidades para a política nacional de ciência e tecnologia”. Para MARCIA MINILLO

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ria. Para Brito, a ciência pode ajudar a sociedade a tomar decisões melhores, mas para isso é necessário que mais pessoas na sociedade entendam o método da ciência. “A história das descobertas mais impactantes ajuda a entender o método”, defendeu. Um exemplo clássico de desconhecimento sobre um fato básico da natureza é a resposta de entrevistados a uma pesquisa de opinião feita na França. “À pergunta se comeriam DNA, os entrevistados com freqüência respondiam: ‘Não, de jeito nenhum!’ Mas há DNA nas verduras, na carne, em muitos dos alimentos de todos os dias. A ignorância leva o ser humano ao medo e à prevenção, numa atitude defensiva compreensível, mas atrasada, como a dos que, no passado, temiam que cometas, raios ou trovões fossem sinais do descontentamento dos deuses com os humanos”. “Mais ciência ajuda o ser humano a ser mais dono de seu próprio destino”, prosseguiu Brito. Ele acredita que a sociedade, para construir o próprio destino, deve se fazer representar por pessoas que conheçam o método científico, que ele definiu como “uma criação dos homens, não de Deus, que nos permite acertar muitas vezes, corrigirmos os erros em outras e sempre aprender mais sobre o que ainda não sabemos”. Em seguida, acrescentou: “A ciência é uma das formas de adquirir conhecimento relevante para a humanidade, mas não é a única. Por exemplo, um conjunto muito importante de conhecimentos a humanidade adquire pela arte, pela literatura, pela cultura”. Em sua vez de falar, Roberto Freire lembrou que havia se formado em direito e nunca havia tido contato próximo com temas puramente científicos – até entrar na política e se tornar “um político que pela primeira vez inventou de fazer uma lei de inovação tecnológica no Brasil”. Nesse percurso, relatou, teve de enfrentar fortes preconceitos, que barravam a possibilidade de os cientistas se integrarem à economia de mercado. Freire encontrou na França uma lei que representava a possibilidade de desfazer esse bloqueio e depois correu no Brasil sem maiores imprevistos, a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso.

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Freire, o Brasil perdeu dinamismo nesse campo. Segundo ele, os impasses da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CNTBio) mostram a dimensão dessa perda de dinamismo. “Em 1995 o governo sancionou uma lei, mas não conseguimos avançar na aprovação das pesquisas com células-tronco – estava proibido. A CNTBio permitiu que as pesquisas nessa área avançassem, inclusive com seu aproveitamento na economia de mercado. Com o governo Lula a CNTBio tem dificuldade para funcionar, até para se reunir. Porque criaram um Conselho de Ministros que vai autorizar se as pesquisas liberadas pela CNTBio podem ser aproveitadas pela economia. Estamos lá parados. O que é que podemos falar da esquerda hoje, como a Via Campesina, que destrói laboratórios de pesquisa? Isso é fascismo da pior espécie.” Em seguida, Roberto Freire sentenciou: “A esquerda não pode ser Torquemada”, referindo-se ao frade dominicano Tomás de Torquemada, um dos líderes da Inquisição na Espanha do século XV. Segundo ele, a ciência pode ser Galileu ou Giordano Bruno, dois físicos do século XVI que enfrentaram resistências por causa de suas idéias novas, “mas não Torquemada”. Não é só no Brasil, porém, ressaltou, que a esquerda bloqueia o avanço e repudia novos conhecimentos. “Para concluir, gostaria de dizer que se nós hoje temos a vida que temos é por causa do conhecimento, por causa dessa nossa capacidade de construir um mundo melhor.” Quando a apresentação se abriu à participação dos até então ouvintes, um dos integrantes da platéia lembrou que às vezes o conhecimento é utilizado para destruir, como quando é aplicado em armas nucleares. A ética, perguntou, não deveria vir antes da ciência? Em resposta, Brito comentou que é responsabilidade da sociedade escolher como usar o conhecimento: “A história da bomba atômica ilustra o permanente dilema da humanidade e dos cientistas. Lembrem-se de que naqueles anos a civilização travava uma luta contra uma das ameaças mais terríveis que já a intimidaram, o nazi-fascismo, e havia uma preocupação legítima de que os nazistas estivessem desenvolven-

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do bombas do mesmo tipo, pois as principais descobertas sobre fissão nuclear foram feitas na Alemanha do pré-guerra”. Para ele, a resposta a esse dilema não tem a ver só com ciência, mas com escolhas políticas: o conhecimento ajuda a humanidade, mas tem de ser tratado com atenção e cuidado pela sociedade. O futuro da humanidade, segundo ele, não é determinado somente pelo conhecimento científico, mas pode, sim, ser ajudado pelo conhecimento científico. “Estamos falan-

do de uma jornada que, para o ser humano, não tem fim. Vamos viver o tempo todo atormentados para descobrir como tornar os próximos 40, 50, 100 anos melhores.” “Vamos dar maior dimensão pública à ciência”, sugeriu Roberto Freire, ao comentar como evitar que a ciência cause a destruição da humanidade. “Os cientistas brasileiros deveriam ter posições mais abertas e sentar para conversar mais com professores e outros representantes da sociedade.” ■

Esper Abrão Cavalheiro Neurocientista explica por que é importante criar grupos de pesquisa em torno das tecnologias convergentes Neldson Marcolin

Um pouco antes do século passado se encerrar, em 1999, grupos de pesquisadores começaram a se reunir nos Estados Unidos para estudar de modo interdisciplinar as interações entre os sistemas vivo e artificial com o objetivo declarado de desenhar dispositivos que permitissem expandir ou melhorar as capacidades cognitivas e comunicativas, a saúde e a capacidade física do homem e, assim, produzir, em tese, um maior bem social. Esses estudos deram origem ao que foi batizado de tecnologias convergentes, pesquisadas hoje em profundidade na Europa, nos Estados Unidos, na Austrália e no Japão. No Brasil, o tema começou a ser discutido graças, em grande parte, ao neurocientista Esper Abrão Cavalheiro, pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ex-presidente do Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Científico (CNPq) e atual assessor do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), uma organização social vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia. Na agenda cultural da exposição

Revolução genômica, Cavalheiro expôs o tema “Tecnologias convergentes e a construção do novo homem”. Seu objetivo é fazer o Brasil se integrar ao debate internacional e criar grupos de estudo. “Nos dois maiores documentos já redigidos sobre o assunto, o norte-americano e europeu, há capítulos específicos discutindo as convergências para o Terceiro Mundo”, diz. “Eles debateram o que poderia ser apropriado para nós nessas áreas sem a participação de pesquisadores do mundo em desenvolvimento.” As tecnologias convergentes são a união de quatro áreas da ciência e tecnologia. Em comum, elas têm o fato de serem recentes e importantes para a economia e desenvolvimento da sociedade em geral. A proposta é que caminhem entrelaçadas para contribuir com o aprimoramento do ser humano. São elas: nanotecnologia, biotecnologia, tecnologia da informação (TI) e neurociência (ou ciências cognitivas). A nanotecnologia mostra como se pode construir e trabalhar no universo do imensamente pequeno e tirar vantagem desse conhecimen-

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Áreas da nova convergência [NBIC] Biotecnologia [B]

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Tecnologias da informação [I]

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Neurociência (ciências cognitivas) [C]

Nanotecnologia [N]

to. Na biotecnologia há um conjunto de metodologias que permite compreender a vida de forma geral, utilizando as ferramentas da genômica. A TI pode ser definida como o conjunto das atividades e soluções oriundas da computação para geração e uso da informação. “A força da TI pode ser vista, por exemplo, nos pequenos celulares. Já há alguns deles com 140 funções, embora eu, pessoalmente, só use como telefone e, talvez, para tirar fotos”, diz Cavalheiro. As ciências da cognição são a fronteira do ainda pouco conhecido, de como o cérebro funciona e de como pode ser alterado a favor do homem.

Maior eficiência Juntas, as quatro áreas formam a sigla NBIC (iniciais das palavras em inglês). “Essas linhas de pesquisa têm caminhado em paralelo. Muitas vezes elas se encontram, como é o caso da nano e da bío, por exemplo, e depois voltam a se afastar.” O que se quer agora é a união das quatro para além da simples multidisciplinaridade. “Mais recentemente uma quinta linha se uniu às outras quatro – trata-se da biologia sintética, a capacidade de modificar um gene por meio da engenharia genética.” A primeira reunião formal com pesquisadores dos quatro setores ocorreu em 2001, nos Estados Unidos, na qual foram propostas aplicações para as tecnologias convergentes. Foram elas: a expansão da cognição e da comunicação humana, o aprimo-

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ramento da saúde, da capacidade física e do alongamento da vida, segurança nacional, unificação da ciência e tecnologia com educação, redimensionamento das organizações dos negócios, nova dimensão política, investimentos e nova infra-estrutura para a ciência, tecnologia e educação. O assessor do CGEE detalhou algumas dessas aplicações no decorrer da palestra. Sobre a expansão da cognição e da comunicação humana, por exemplo, o mais importante é criar um programa que permita entender a mente humana. “Depois devemos desenvolver dispositivos para uma interface entre o cérebro e a máquina que permita aprimorar a mente ou levar informações muito mais rápidas para ela, enriquecer a comunidade por meio de tecnologias mais humanizadas e aprender a aperfeiçoar instrumentos que facilitem a criatividade”, diz. Já para melhorar a saúde e a capacidade física são pesquisados, na área de nanotecnologia, nanobioprocessadores que possam ser utilizados para novas estratégias terapêuticas. Também se pesquisa a possibilidade de implantes de base nanotecnológica com o objetivo de regenerar ou aprimorar órgãos e sistemas. Hoje já existem chips colocados experimentalmente na musculatura do animal que o faz andar mais rápido. “Imagine se conseguirmos usar isso em pessoas sem que elas tenham fadiga, aumentaríamos muito nossa capacidade física sem estresse”, comenta.

Na parte de aprimoramento das relações sociais, Cavalheiro acha que seria fantástico se a barreira de comunicação pudesse ser rompida com cada um falando uma língua diferente e todos se entendendo graças a chips instalados nas pessoas que funcionassem como tradutor. Haveria um óbvio aumento da eficiência e cooperação dos ambientes educacionais. “O que é importante e está presente nos documentos dos Estados Unidos, da Europa, da Austrália, do Japão é a palavra ‘produtividade’”, ressalta. “Isso significa que queremos seres humanos mais eficientes e produtivos.” Nas discussões internacionais de que participa, Cavalheiro também nota grande preocupação com a questão da segurança nacional. Para todos os países seria importante se antecipar a ameaças externas, construir veículos de combate teleguiados para evitar mortes e elaborar respostas adequadas a possíveis ataques químicos e biológicos. Nas questões de saúde, é comum as pessoas aceitarem transplantes e outras conquistas tecnológicas. “Na verdade, a única coisa que eu me recusaria a trocar é o cérebro, porque o cérebro sou eu”, avalia. Vale receber coração, braço, perna, fígado, tudo quanto estiver ruim, mas o cérebro é a identidade de cada um. Os anos 1990 foram instituídos como a década do cérebro pelo então presidente George Bush (pai). Ele convocou todos os organismos públicos para que participassem com programas, cerimônias e atividades especiais. Agora foi proposta a década da mente, para começar em 2010. Os objetivos são entender, tratar, enriquecer, modelar e proteger a mente. Nem tudo, no entanto, traz apenas benefícios pessoais para o “novo homem”. Os avanços na neuroimagem são enormes e, a partir dos estudos que verificam quais são as áreas ligadas à emoção e à tomada de decisão, há toda uma indústria atrás. Como é que se pode influenciar a tal “tomada de decisão” a partir de estímulos adequados aplicados na área da emoção? “As bolsas de valores norte-americanas calculam que esse mercado, isto é, a possibilidade de influenciar mais diretamente as escolhas ‘comerciais’ das pes-

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soas, pode gerar US$ 1 trilhão por ano”, informa Cavalheiro. A pergunta que se faz é quem tem o direito de usar informações como essa sem que as pessoas saibam? Hoje, as drogas que atuam no sistema nervoso central, chamadas de neurocêuticas, aparecem divididas em três categorias. As cognecêuticas são as que atuam nos processos de tomada de decisão, aprendizado, atenção e memória. As emociocêuticas atuam no humor, sentimentos, motivação e alerta – as drogas antidepressivas e ansiolíticas podem entrar nessa categoria. E as sensocêuticas agem na recuperação e aprimoramento dos sentidos permitindo ver, ouvir e sentir cheiro e gosto de forma diversa. O glutamato de sódio poderia estar nesta última categoria já que altera a sensibilidade dos receptores gustativos ressaltando o sabor dos alimentos. “Se existirem instrumentos e drogas que façam aprender melhor e mais rápido quem irá decidir em quais indivíduos e em que condições eles poderão aplicados? Esse é um novo problema que surge.”

que se possa ‘ler’ os sinais neuronais”, diz. Em sites na internet há produtos à venda para “aprimorar” o cérebro. “É um jeito de ganhar dinheiro fácil, mas mostra a imensa curiosidade do homem por essa última fronteira do conhecimento.” Para Cavalheiro, será necessário um acordo ético e social: é preciso que a sociedade decida o que poderá ser feito e usado pelo “novo homem”. “Isso pode e deve acontecer antes de termos os produtos resultantes da convergência à nossa disposição.” Depois da palestra, Cavalheiro foi perguntado se conseguia perceber avanços sobre a convergência tecnológica no Brasil. Ele lamentou não ver nada aqui parecido com o que já existe no exterior, especialmente na área médica. De acordo

Se o Brasil não entrar no debate sobre as convergências tecnológicas correrá o risco de ver os países desenvolvidos decidindo por nós, alerta Cavalheiro

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MARCIA MINILLO

Consulta à comunidade As possibilidades de intervenção para o tratamento das funções cerebrais têm crescido tão velozmente que, nos últimos anos, os termos neuroindústrias ou neuroempresas têm sido utilizados cada vez mais. Em paralelo, ações dessas empresas têm sido comercializadas na Nasdaq. Outras questões também merecem reflexão. “Imaginemos, por exemplo, a implantação de um braço robótico, tal como foi feito recentemente em uma pessoa quer perdeu o braço na Guerra do Iraque. Caso esse braço robótico, por meio de uma informação proveniente de uma fonte a distância, seja induzido a ferir ou a matar outra pessoa, quem seria o culpado?”, questiona Cavalheiro. “Faz-se necessário uma discussão social bastante ampla. Não podemos esperar que o fato aconteça para tomar as providências necessárias, principalmente quando temos a consciência de que isso pode realmente ocorrer.” Há outras coisas acontecendo nos grandes laboratórios que apenas parecem estar num futuro distante. “Já existem culturas de neurônios sobre chips biológicos para

com o neurocientista, o tema ainda não foi assimilado pela comunidade acadêmica brasileira na mesma velocidade com ocorre no exterior, principalmente nas ciências humanas e sociais. Foi feito um primeiro estudo no CGEE e há um grupo trabalhando na conceituação internacional existente. Ainda neste semestre a equipe de Cavalheiro fará entrevistas com os líderes das áreas NBIC e haverá uma consulta à comunidade. “São etapas que pretendemos concluir até o final do ano para entender as percepções locais de nossos pesquisadores – não só das áreas estritamente ligadas ao tema – e, também, verificar a possibilidade de participarmos da construção desse novo futuro e dos seres humanos que ali viverão”, conta. ■

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R EVO LUÇÃO GENÔMICA programação cultural | organização PESQUISA FAPESP Genômica: modelando a biologia do século XXI

DEBATE

MARIO EDUARDO COSTA PEREIRA E SIDARTA RIBEIRO

JAN HOEIJMAKERS

17/05, sábado, às 15:00

18/05, domingo, às 11:00

(Costa Pereira é psiquiatra, professor do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Unicamp. Ribeiro é neurocientista e diretor científico do Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra)

nonnonononoo de 2008 pesquisa fapesp especial revolução genômica

(Pesquisador de genética molecular, professor da Universidade Erasmus, em Roterdã, Holanda. Fez estudos importantes sobre os princípios básicos de organização e processos de reparo de DNA em células vivas)

> Envelhecimento e longevidade: quanto duram seus genes?

> Novos fundamentos neurológicos para a teoria freudiana MUNIZ SODRÉ

FERNANDO REINACH

27/05, terça-feira, às 17:00

01/06, domingo, às 11:00

(Professor da Escola de Comunicação da UFRJ, publicou mais de 30 livros nas áreas de comunicação e cultura. É presidente da Biblioteca Nacional)

(Pesquisador em bioquímica e biologia molecular da USP e diretor executivo da Votorantim Novos Negócios. Foi um dos coordenadores do Projeto Genoma da Xylella fastidiosa)

> Impactos da genômica na agricultura brasileira

> O bíos midiático na cena social contemporânea CARLOS NOBRE

ANDREW J.G. SIMPSON

14/06, sábado, às 15:00

08/06, domingo, às 11:00

(Pesquisador do Inpe e presidente do comitê científico do Programa Internacional Geosfera-Biosfera. Integrante do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, IPCC)

(Bioquímico, diretor executivo de programas e operações do Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer em Nova York. Foi coordenador do projeto brasileiro de seqüenciamento do genoma da bactéria Xylella fastidiosa)

> Aspectos genômicos do câncer

> Ciência do sistema terrestre e a sustentabilidade da vida no planeta EMILIO MORAN

As ciências do século XX e as novas fronteiras do conhecimento no século XXI NIÉDE GUIDON

11/05, domingo, às 11:00 (Arqueóloga e diretora-presidente da Fundação Museu do Homem Americano, no Piauí)

> Primeiros habitantes do Brasil: as descobertas de São Raimundo Nonato

21/06, sábado, às 15:00 (Professor de antropologia e diretor do Centro Antropológico para Treinamento e Pesquisa em Mudanças Ambientais Globais da Universidade de Indiana, nos Estados Unidos)

> Expansão internacional da antropologia ambiental: experiências na Amazônia

Para entender a divulgação contemporânea da ciência DEBATE

WALTER COLLI E HERTON ESCOBAR

10/05, sábado, às 15:00 O evento ocorre no Parque do Ibirapuera, Pavilhão Armando de Arruda Pereira, antigo prédio do Prodam.

(Colli é bioquímico, presidente da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, CTNBio. Escobar é jornalista de O Estado de S. Paulo)

> Transgênicos e mídia

Outras apresentações e debates que vão ocorrer de maio a julho serão divulgados no site de Pesquisa FAPESP: www.revistapesquisa.fapesp.br A íntegra das palestras também estará disponível no site.

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B ibliot eca de R ev ist as C ient í ficas disponí v el na int ernet w w w . scielo. org

Notícias Gi n e c o l o g i a

T e r a p ia h o r m o n a l

MIG U EL B OY AY AN

Existem evidências de que estrogênios, progesteronas e androgênios têm efeito modulador sobre as respostas imunes humoral e celular. Estes efeitos ocorrem via interações imunoneuroendócrinas, envolvendo a hipófise, esteróides sexuais, hormônios do timo e a presença de receptores específicos. As respostas imunes, tanto a celular como a humoral, podem ser alteradas durante a gravidez, ooforectomia, menopausa e terapia hormonal (TH). O estrogênio deprime a imunidade celular, suprime a atividade das células matadoras naturais e aumenta a produção de anticorpos. Progesterona/progestogênios têm efeito imunossupressor sobre a imunidade celular. Androgênios, após a conversão em estrogênios, podem estimular o sistema imunoumoral. A TH é, ainda, usada após a menopausa para eliminar os sintomas do hipoestrogenismo e prevenir atrofia genital e perda da massa óssea. Seu uso permanece em debate. Poucos estudos foram efetuados com o propósito de examinar o efeito da TH na pós-menopausa sobre o sistema imunológico e as reações inflamatórias. Há evidências de que o hipoestrogenismo possa resultar em menor resistência às infecções. A revisão “Efeitos da terapia hormonal na menopausa sobre o sistema imune”, de Sebastião Freitas de Medeiros, Alexandre Maitelli e Ana Paula Barros Nince, da Universidade Federal de Mato Grosso, fundamenta o entendimento da interação entre esteróides sexuais e sistema imune e examina a aplicabilidade da TH, durante a menopausa, na modulação das respostas imunes celular e humoral. Concluiu-se que a TH normaliza a resposta imunocelular. Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia – v. 29 – nº 11 – Rio de Janeiro – nov. 2007 ■

En g e n h a r i a a g r í c o l a

T ijo lo d e r e s íd u o d e c o n c r e t o No trabalho “Tijolos prensados de solo-cimento confeccionados com resíduos de concreto”, de Márcia I. B. Souza, Antonio A. S. Segantini, Joelma A. Pereira, da Faculdade de Engenharia da Uni-

versidade Estadual Paulista, são apresentados resultados de ensaios de laboratório para avaliar a possibilidade de aproveitamento dos resíduos de concreto na confecção de tijolos prensados de solo-cimento. Foram realizados ensaios de caracterização do solo utilizado, das composições desse solo com resíduos de concreto e das misturas de solo-cimento produzidas com essas composições. Conforme os resultados de ensaios realizados em corpos-deprova cilíndricos e em tijolos de solo-cimento, verificou-se que a adição dos resíduos proporcionou melhoria nas propriedades mecânicas do solo-cimento, favorecendo a redução do consumo de cimento e a obtenção de tijolos de melhor qualidade. Revista Brasileira de Engenharia Agrícola e Ambiental – v. 12 – nº 2 – Campina Grande – mar./abr. 2008

Ne u r o p s iq u ia t r ia

Do m

P e d r o II d o e n t e

O objetivo do artigo “O declínio do império e da saúde de Dom Pedro II: implicações neuropatogênicas”, de Marleide da Mota Gomes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é conhecer os médicos do imperador, o tratamento preconizado e o conhecimento da ocasião sobre o diabetes, principalmente sobre suas repercussões no sistema nervoso do imperador e suas implicações políticas. Isso foi feito por uma revisão narrativa, baseado em fontes primárias e secundárias. O imperador foi examinado na ocasião pela aristocracia da medicina, a ressaltar Jean-Martin Charcot, dentre os de reputação internacional, e Cláudio Velho da Motta Maia, dentre os brasileiros. Charcot diagnosticou, além de tensão mental, neuropatia diabética e quadro vascular cerebral que diferenciou de outras obliterações vasculares em localizações diversas. Ele demonstrou o seu conhecimento sobre neuropatia diabética, alternativas topográficas para justificar a incontinência urinária e fraqueza nas pernas. Dom Pedro II, ao longo da sua doença, apresentou manifestações que contribuíram para a sua fragilidade física e certamente para o seu declínio político, deposição e proclamação da República.

R EP R ODU Ç Ã O

Arquivo de Neuro-Psiquiatria – v. 65 – nº 4b – São Paulo – dez. 2007

> O link p a r a a í n t e g r a d o s a r t i g o s c i t a d o s n e s t a s p á g i n a s e s t ã o d i s p o n í v e i s n o site d a Pesquisa FAPESP,w w w .r e v i s t a p e s q u i s a .f a p e s p .b r

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LINHA DE PRODUÇÃO MUNDO

Sensor supercondutor com refrigeradores nas pontas

> Carro híbrido em alta Estudo apresentado no congresso mundial da Sociedade de Engenheiros da Mobilidade (SAE), em Detroit, nos Estados Unidos, no mês de abril, mostrou que, por volta de 2030, carros com propulsão elétrica poderão reduzir sensivelmente ou até mesmo eliminar a dependência do setor de transportes ao petróleo. Mas, para isso tornar-se realidade, os pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), responsáveis pelo trabalho, alertam que novas tecnologias ambientalmente limpas devem ser desenvolvidas e incorporadas à frota de veículos elétricos. Caso contrário, a emissão dos gases estufa, que provocam o aquecimento global, terá 80

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redução inexpressiva ou poderá mesmo aumentar. Para chegar a essas conclusões, os pesquisadores fizeram uma série de simulações com quatro diferentes tipos de veículos elétricos: dotados de motores híbridos convencionais (que também usam gasolina), propelidos a célula combustível com hidrogênio, com propulsão elétrica e com baterias recarregáveis. Este último, segundo o MIT, mostrou-se mais vantajoso,

Um novo dispositivo combinando duas MICROCHIP minúsculas, mas potentes, invenções em POTENTE um simples microchip foi criado por pesquisadores do Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia dos Estados Unidos (Nist, da sigla em inglês). As duas invenções em questão são um sensor com tecnologia TES (Transition-Edge Sensor), um filme supercondutor fino que identifica assinaturas de raio X com muito mais precisão do que qualquer outro equipamento e um refrigerador de estado sólido baseado num sanduíche de metal, um material isolante e um supercondutor. O chip final, um pequeno quadrado medindo cerca de 6 milímetros em cada lado, tem capacidade de se autoresfriar, graças aos refrigeradores colocados em suas pontas. Os pesquisadores acreditam que o dispositivo poderá ser usado no futuro para diversas aplicações, como, por exemplo, a realização de análises detalhadas de materiais semicondutores usando a tecnologia de raio X. Na área espacial, o chip auto-refrigerado poderá fazer parte de telescópios e ajudar na detecção de sinais de microondas no espaço profundo.

sendo capaz de apresentar redução superior a 80% no consumo de petróleo em comparação com veículos movidos a gasolina.

> Borracha versátil Um material com propriedades emborrachantes capaz de se auto-reparar foi desenvolvido por franceses do Laboratório da Matéria Mole e Química, ligado

ao Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS) e à Escola Superior de Física e Química Industrial de Paris, em parceria com a empresa química Arkema, também francesa. O trabalho foi publicado na revista Nature, em fevereiro (nº 451). O “segredo” do novo material, elaborado conforme o conceito de química supramolecular, está na sua microestrutura, construída a partir de um LAURABEATRIZ

NIST

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> Motor em

LAURABEATRIZ

escala nano Um nanomotor térmico, movido por diferenciais de temperatura, foi desenvolvido por pesquisadores do Conselho Superior de Investigações Científicas, da Espanha, da Universidade Autônoma de Barcelona e do Instituto Catalão de Nanotecnologia. O nanodispositivo pode girar tanto ao redor de um eixo, como faz um motor rotativo normal, quanto correr ao longo desse eixo, transformando-se em um motor linear. O nanomotor térmico é formado por um nanotubo de carbono recoberto por outro nanotubo, mais largo e mais curto, que pode se movimentar mais livremente ou girar sobre ele mesmo, fazendo o papel de rotor. Os pesquisadores conseguiram controlar os movimentos aplicando uma diferença de temperatura

nas extremidades do nanotubo interno. O rotor do nanomotor se desloca da região mais quente em direção à mais fria, de maneira semelhante ao que ocorre com o ar ao redor de uma estufa, de acordo com o estudo publicado na edição

on-line da revista Science de 10 de abril. A pesquisa abre as portas para a criação de novos dispositivos nanométricos capazes de realizar tarefas mecânicas com futuras aplicações em campos como a biomedicina e novos materiais.

Classmate PC: tela de 9 polegadas

visual a tela de 9 polegadas, em vez da antiga de 7 polegadas, e uma câmera para vídeo. A nova versão do laptop tem duração mais longa de bateria, teclado resistente à água e maior resistência a choques. O equipamento é compatível com Windows XP ou Linux. Em comunicado, a Intel disse que versões futuras do Classmate PC, concorrente do One laptop per child, ou OLPC – Um laptop por criança (leia matéria na edição 137 da Pesquisa FAPESP), virão equipadas com processador Atom da empresa, que tem recursos de consumo reduzido de energia. O computador projetado atualmente oferece diferentes opções aos fabricantes para que cada um possa fabricar modelos de notebooks sob medida para atender a variadas necessidades educacionais.

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JOHN RUSSELL/UNIVERSIDADE DE VANDERBILT

SENSOR DE INSULINA

Um novo método para detecção de insulina, desenvolvido na Universidade de Vanderbilt, dos Estados Unidos, abre caminho para o monitoramento, em tempo real, da produção desse hormônio secretado pelo pâncreas. Os pesquisadores, liderados pelo professor David Cliffel, utilizaram nanotubos de carbono de paredes múltiplas para a fabricação de eletrodos utilizados em um aparelho chamado microfisiômetro. O equipamento monitora as condições de uma célula viva pela medição das variações em seu metabolismo. Para isso, ela fica confinada dentro de uma pequena câmara, onde é mergulhada em uma solução salina. A insulina produzida por células especiais do pâncreas, chamadas de ilhotas de Langerhans, ou panMonitoramento em tempo real creáticas, pode ser determinada em função da corrente elétrica que flui pelos eletrodos. Entre outras aplicações potenciais, o método poderá ser utilizado para melhorar a eficá> Nova versão cia de um tratamento médico recente usado para o diabetes da Intel tipo 1, também chamado de juvenil ou insulino-dependente. Esse tratamento, que consiste no transplante das células A segunda geração do conhecidas como ilhotas pancreáticas, pode dispensar o Classmate PC, da Intel, tem uso de injeções de insulina por vários anos. como principal diferença

INTEL

sistema de pequenas moléculas de ácidos graxos retirados do milho e de outros vegetais e da uréia, produto bastante usado na indústria. Embora essa nova borracha não seja adesiva, suas superfícies se juntam novamente após sofrer uma ruptura. Para isso, basta colocá-las em contato, sem que seja necessário aquecê-las ou fazer uma forte pressão. Depois de restaurada, a amostra tolera nova deformação, de 100% a 400%, antes de romper-se novamente. O processo pode ser repetido diversas vezes e a reparação acontece algumas horas após a quebra do material.

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LINHA DE PRODUÇÃO BRASIL

Imagens de satélite apontaram redução da queima da palha de cana-de-açúcar na safra 2007 a 2008 em comparação com a anterior, de 2006 a 2007, no estado de São Paulo. A colheita sem o uso do fogo foi feita em 656 mil hectares, o que representou aumento de 34% para 46% da área total colhida em São Paulo, de 3,79 milhões de hectares. Os dados foram coletados pelos satélites do projeto Canasat, que utiliza imagens de sensoriamento remoto para mapear a área plantada com cana nos estados de São Paulo, Paraná, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Criado em 2003, o projeto é uma parceria do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) com a União da Agroindústria Canavieira de São Paulo (Unica), o Centro de Tecnologia Canavieira (CTC) e o Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea) da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo.

contra a dengue Garrafas plásticas de refrigerantes, as populares PETs, sigla de poli(tereftalato de etileno), tornaram-se aliadas no combate ao Aedes aegypti, mosquito transmissor da dengue. A armadilha, que recebeu o nome de mosquitérica, foi criada pelo professor Malouri Cabral, do Departamento de Microbiologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Para construí-la é preciso apenas uma garrafa PET, um pedaço de microtule – tecido utilizado em véus de noiva –, lixa, fita isolante, alpiste ou arroz e uma tesoura. 82

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A armadilha atrai as fêmeas de mosquitos em busca de um local para depositar seus ovos, que ficam fixados na borda interna da tampa, pouco acima da lâmina d’água. Como a água evapora muito rápido na mosquitérica, as fêmeas depositam os ovos cada vez mais abaixo. Assim, quando o nível d’água for novamente completado, os ovos ficarão encharcados. As larvas que eclodirem ficarão presas na armadilha, por onde permanecerão durante todas as fases da vida. As instruções para a fabricação da armadilha encontram-se no endereço eletrônico www.faperj.br/ downloads/mosquiterica.pdf.

de xisto Um equipamento que permitirá aumentar em 25% a extração de petróleo de uma rocha sedimentar popularmente conhecida como xisto está em desenvolvimento na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli/USP), sob a coordenação do professor Giorgio De Tomi, em parceria com a Petrobras. Chamado de folhelho – por

ser uma rocha sedimentar de granulação fina que se divide em folhas – betuminoso, o xisto é encontrado em vários estados do Brasil, que possui a segunda maior reserva do mundo desse mineral, atrás apenas dos Estados Unidos. O aproveitamento de 25% com o equipamento, que está no primeiro protótipo, será possível porque ele é capaz de extrair óleo de fragmentos finos de xisto, que hoje não são aproveitados no processo de extração usado pela

EDUARDO CESAR

> Armadilha

> Mais petróleo

LAURABEATRIZ

MENOS QUEIMA

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Lax resinannn especial utilizada Polpa de caju transformada em hambúrguer de hilos

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atualizadas A atualização de radares paulistas, completada recentemente, permitiu uma melhora sensível na capacidade de detecção de tempestades feita pelo

Radar de detecção de tempestades

Instituto de Pesquisas Meteorológicas (IPMet) de Bauru, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), que faz parte do Sistema Integrado de Meteorologia do Estado de São Paulo. Além da atualização dos radares de Bauru e

Hambúrgueres à base de polpa de ALTERNATIVA caju foram desenvolvidos e testados VEGETAL pela Embrapa Agroindústria Tropical, unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária sediada em Fortaleza, no Ceará, para aproveitar o excedente produzido. A comparação foi feita com quatro tipos de hambúrgueres comerciais, um deles à base de carne e os demais com proteína vegetal de soja. Os produtos feitos com caju apresentaram, em média, menores teores de proteína do que os outros avaliados. Em contrapartida o teor de gordura foi inferior e o de carboidratos superior ao da maioria dos produtos comerciais, caracterizando o produto como uma alternativa de alimentação para pessoas que não comem derivados de carne. O estudo, coordenado pela pesquisadora Janice Ribeiro Lima, aponta que o baixo teor de proteína pode ser compensado com a adição de produtos derivados de soja na formulação. O hambúrguer vegetal de caju teve boa aceitação no teste de avaliação sensorial.

Presidente Prudente, feita com apoio da FAPESP, um software especializado no tratamento e aplicações das informações de radares meteorológicos, chamado Titan, foi disponibilizado pelo Centro Nacional de Pesquisa Atmosférica, dos Estados Unidos. “Conseguimos melhorar não só a capacidade de detecção, mas também o tempo necessário para realizar essa tarefa e a resolução da informação”, diz Ana Maria Gomes, diretora do IPMet. As novas ferramentas servirão de base para a geração de alertas a tempestades severas, melhorando a chamada previsão imediata (Nowcasting). Essas informações são importantes não só para evitar enchentes, como também para ajudar os agricultores a tomar decisões relativas a colheita e plantio (leia matéria sobre sistema hidrometeorológico na edição 108 de Pesquisa FAPESP).

> Tratamento simplificado Um novo medicamento para combater a malária foi lançado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, vinculada ao Ministério da Saúde. A combinação em dose fixa do artesunato (AS) e da mefloquina (MQ) em um único comprimido garante que os dois sejam tomados juntos e na proporção correta, simplificando o tratamento. O medicamento ASMQ deve ser tomado por adultos e crianças com uma dose diária de um a dois comprimidos por 3 dias e

estará disponível a preço de custo para os setores públicos dos países endêmicos. O tratamento completo para adultos ficará em US$ 2,50. O medicamento é uma iniciativa da Fiocruz e da organização Medicamentos para Doenças Negligenciadas, formada pela Fiocruz, Instituto Pasteur, da França, e organização não-governamental Médicos sem Fronteiras.

> Exposição nanotecnológica Seis instalações interativas que integram arte, ciência e tecnologia, criadas na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, compõem a exposição Nano, poética de um mundo novo, em cartaz no Museu de Arte Brasileira da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap) desde o dia 13 de abril até 1º de junho. A proposta da mostra é dar ao visitante a oportunidade de entender como se comportam átomos e moléculas em seu próprio mundo, por meio de imagens processadas eletronicamente. As obras já foram apresentadas em vários eventos e museus internacionais.

Combate à malária em dose dupla

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FIOCRUZ

> Previsões

IPMET

empresa petrolífera. Pelo processo atual, a rocha, depois de lavrada, é transportada para um britador, onde é reduzida de tamanho e em seguida aquecida em um reator, o que faz com que o óleo seja liberado. Ocorre que somente as frações maiores da rocha, com mais de meia polegada, podem ser processadas. O equipamento criado na Poli, que já tem pedido de patente, é capaz de processar partículas bem finas da rocha, com menos de meia polegada de espessura. Jatos de água sob pressão lançam os fragmentos de xisto em um anteparo de metal. Com o impacto, as frações são quebradas em partículas ainda menores e o óleo é separado.

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>

TECNOLOGIA

BIOTECNOLOGIA

Alternativa animal

Mosquito com a proteína verde fluorescente marcadora da transgênese

Cabras, vacas, galinhas e camundongos transgênicos são um novo meio para produção de medicamentos | Marcos de Oliveira

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LUCIANO MOREIRA/FIOCRUZ

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m medicamento em forma de ampolas com caixa azul e branca semelhante a muitos outros existentes em farmácias e hospitais acaba de ser lançado na Europa para tratamento de tromboembolismo em cirurgias de pacientes com deficiência antitrombina hereditária, doença que provoca coágulos no interior dos vasos sangüíneos. Até aí nada de muito inusitado em lançar um medicamento. A grande diferença é que ele é produzido a partir de uma substância extraída do leite de cabras transgênicas desenvolvidas pela empresa norte-americana Genzyme Transgenics Corporation (GTC) Biotherapeutics, também produtora do medicamento, e distribuído pela dinamarquesa LEO Pharma para toda a Europa e Canadá. A substância é a antitrombina humana III (AIII), proteína introduzida no genoma de uma cabra por uma técnica conhecida como DNA recombinante. Essa molécula, por meio de recursos biotecnológicos, é colocada no embrião, nos primeiros momentos da sua formação, na forma de um gene codificador da mesma proteína. Posteriormente, a AIII é produzida nas células mamárias do animal. Cada cabra produz, durante o período de amamentação, 3 litros de leite por dia, o que equivale à produção de cerca de 3 quilos de proteína (já purificada) por ano. A estratégia tecnológica de transgenia animal está presente em muitas empresas e institutos de pesquisa principalmente nos países europeus e nos Estados Unidos. Vários medicamentos estão em testes, em diferentes fases, antes de serem liberados para o mercado. No Brasil, esse tipo de pesquisa está restrito a grupos de pesquisadores em universidades e centros de pesquisa. São cerca de dez grupos de pesquisa no país que produzem animais transgênicos para expressar alguma proteína de interesse medicamentoso ou para uso em experimentos científicos, como camundongos modificados geneticamente. Grande parte desses pesquisadores esteve presente no I Simpósio Brasileiro de Tecnologia Transgênica realizado em março

na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e assistiu à palestra de abertura com o ganhador do Nobel de Fisiologia e Medicina de 2007, Oliver Smithies (leia em Pesquisa FAPESP nº 146). “Fiquei muito surpreso com os grupos de pesquisa brasileiros. Não sabia que existiam tantos e percebi que muitos se conheceram no simpósio. Isso é muito importante para a indústria do país”, disse o espanhol Lluís Montoliu José, presidente da Sociedade Internacional de Tecnologia Transgênica, ISTT na sigla em inglês, criada em 2006, e também professor da Universidade Autônoma de Madri, na Espanha. Para Montoliu, o uso de animais transgênicos tem um amplo espectro para a ciência e para outros setores econômicos. “Há muito o que pesquisar, mas já sabemos, por exemplo, que purificar proteínas no leite é relativamente fácil enquanto no sangue é mais complicado (pela possibilidade de transmissão de doenças). Além da produção de proteínas humanas e de futuras vacinas por meio do leite de animais, temos também a produção de exemplares para estudos de doenças, animais transgênicos para melhorar a produção e evitar doenças na pecuária, curar enfermidades em peixes e transplantar órgãos de porcos, por exemplo, para seres humanos.” Os animais transgênicos usados para produção de proteínas, chamados de biorreatores, estão se tornando uma solução para se obter fármacos que funcionam como repositórios de substâncias produzidas naturalmente pela maioria dos humanos, mas ausentes ou em níveis diminutos em alguns. “Esse sistema é mais barato que as técnicas de produção de proteínas recombinantes feitas em grandes estruturas de laboratório com o auxílio de bactérias, leveduras ou células de mamíferos e com a necessidade de um reator de custo alto ou ainda de plasma humano para ser produzida”, diz o professor João Bosco Pesquero, diretor do Centro de Desenvolvimento de Modelos Experimentais para Medicina e Biologia (Cedeme) da Unifesp e coordenador do simpósio. Entre os medicamentos fabricados com a técnica de

DNA recombinante com bactérias ou com o cultivo de células de ovários de hamster-chinês, na sigla CHO em inglês, estão o hormônio de crescimento humano (hGH) e o fator IX de coagulação sangüínea, essencial aos hemofílicos e também produzido com plasma humano. O gasto atual por paciente hemofílico pode ultrapassar R$ 70 mil por ano no Brasil com medicamentos comprados no mercado externo e pagos pelos governos estaduais e federal. São proteínas fundamentais para evitar hemorragias em pessoas hemofílicas. Dois anúncios feitos em abril último prometem garantir com tecnologia tradicional o suprimento dos fatores VIII e IX com produção nacional e baixo custo. O primeiro pela Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobras), vinculada ao Ministério da Saúde, em parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e o outro pelo Instituto Butantan, que começa a preparar a sua Unidade de Processamento de Plasma. mbora prometendo preços baixos, os novos medicamentos com origem transgênica ainda são caros. No caso do Atryn, nome do antitrombótico da GTC, o preço de cada ampola é de € 2,5 mil no mercado europeu. Nos Estados Unidos, ele está na fase final de aprovação clínica. “O desenvolvimento de animais transgênicos está ligado a empresas de biotecnologia que têm investido muito nesses últimos anos na área. Com eles fica mais fácil e barato testar novas drogas porque se experimenta o princípio ativo contra determinada proteína humana no camundongo, por exemplo”, diz Pesquero. “Isso elimina algumas etapas dos testes clínicos. Um gene importante para o diabetes pode ser testado num camundongo preparado com um gene humano no lugar do gene do animal. Se a droga se ligar na proteína humana, ela funciona. Isso diminui o tempo para testes de novas drogas e verificação dos efeitos colaterais. Além disso são usados muito menos animais de laboratório.” Pela ajuda que traz ao estudo de doenças e no desenvolvimento de novas dro-

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FLAMÍNIO ARARIPE/SECRETARIA C&T DO CEARÁ

Cabritos transgênicos da raça canindé no Ceará

gas, os animais transgênicos mais presentes são aqueles destinados a laboratórios. “Já são milhares de animais transgênicos, principalmente camundongos, em todo o mundo. A maioria produzida por laboratórios associados às universidades.” Existem até empresas, como a australiana Ozgene e a suíça Polygene, que produzem tais animais também sob encomenda. Um grupo de camundongos que tenham o gene nocauteado, a técnica que faz desligar um gene e conseqüentemente a não produção de uma proteína, situação que pode provocar uma doença, por exemplo, pode custar até US$ 45 mil. A equipe de Pesquero da Unifesp desenvolve camundongos para pesquisadores da Unifesp e de outras instituições, como o Instituto do Coração, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Uma das conquistas do grupo foi a produção de uma fêmea que expressou no leite o fator IX (leia em Pesquisa FAPESP nº 117). Em 2005, a idéia era expressar a proteína no camundongo e, se tudo corresse bem, o sistema seria transferido para gerar bovinos na Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, de Brasília. “A meta no momento é a geração de vacas ou cabras capazes de transformar capim em leite de uma forma barata. Mesmo com a fase de purificação da proteína no leite, essa opção custa menos”, diz Elíbio Rech, pesquisador da Embrapa. “Precisa86

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mos pensar ainda que os anticorpos monoclonais, moléculas produzidas por engenharia biotecnológica, estudados principalmente para tratamentos de câncer, além de poder atuar como meio de diagnósticos e em vacinas, também podem ser produzidos nas glândulas mamárias”, lembra.

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pesquisa e a produção desses animais são muito importantes para o Brasil. Se não produzirmos animais transgênicos aqui estaremos dentro em breve importando-os,” prevê Pesquero, que atualmente também trabalha com coelhos transgênicos para expressar proteínas terapêuticas e de interesse comercial como fator IX e hormônio folículo estimulante (FSH) para bovinos. “Uma vez estabelecida a técnica em coelhos poderemos produzir diferentes proteínas.” O simpósio mostrou que o país já possui grupos produzindo em diferentes níveis. A mais recente novidade nesse sentido foi o nascimento de dois caprinos, uma fêmea e um macho, entre 11 e 20 de março deste ano em Fortaleza, no Ceará. São dois animais transgênicos que possuem em seu genoma o gene produtor da proteína do fator estimulante de colônia de granulócitos humanos, que possui a sigla em inglês hG-CSF, usado em casos de imunodeficiência, como Aids, na recuperação de pessoas com

câncer que fazem uso de quiomioterapia ou que tiveram infarto do miocárdio ou isquemia cerebral (derrames). O experimento foi realizado por uma equipe da Faculdade de Veterinária da Universidade Estadual do Ceará (Uece) coordenada pelo professor Vicente José Freitas em parceria com a equipe do professor Antonio Carlos Carvalho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), além das pesquisadoras Irina Serova e Ludmila Andreeva, da Academia de Ciências da Rússia. No começo de abril, Freitas obteve a confirmação de que os dois caprinos mais um natimorto, num lote de 23 nascidos, possuíam em seu genoma o gene para o hG-CSF. Os testes foram realizados na universidade cearense e confirmados na UFRJ. Essa é a segunda tentativa do grupo. A primeira, realizada em 2006, apenas um cabrito nasceu transgênico, mas morreu 19 dias depois com infecção não relacionada ao procedimento de transgenia. O método utilizado por Freitas é o mais comum usado por pesquisadores do mundo, o de injeção pró-nuclear, em que uma solução com cópia do DNA e o gene da proteína que se quer expressar são injetados no óvulo recém-fecundado. Depois o embrião é transferido para o útero de uma fêmea procriadora que não necessariamente é a doadora do óvulo. Agora com um casal transgênico, será possível cruzar o bode com a cabra para obter cerca de 75% de filhotes com a proteína humana. “Nossa alegria se estende também ao fato de o casal ser da raça canindé, em via de extinção no Nordeste brasileiro”, diz Freitas. A raça foi formada por animais trazidos pelos portugueses desde os tempos da colonização. “Com a transgenia agregamos valor à raça porque o bode transgênico pode cruzar com uma fêmea não-transgênica da mesma raça, com a chance de 50% dos filhotes serem transgênicos, produtores da proteína hG-CSF.” Outra possibilidade é a clonagem desses animais. O cruzamento deles resultaria em 100% de transgênicos. Freitas acredita, como a GTC, que as cabras levam vantagem sobre outros animais no papel de biorreatores para produzir grande parte das proteínas de uso médico. “Elas não raro parem três filhotes em 5 meses de gestação, enquanto um bovino tem ape-

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MIGUEL BOYAYAN

nas um filhote numa gestação de 9 meses, e raros são os gêmeos.” Na América Latina, nos estudos com transgenia em animais, o Brasil está atrás da Argentina. A empresa Bio Sidus daquele país já havia anunciado em 2004 a produção de uma vaca que produz hormônio de crescimento humano no seu leite, embora ainda não comercialize o produto do animal. Em abril do ano passado, a empresa divulgou também o nascimento de vacas transgênicas capazes de produzir insulina humana no leite. São quatro vaquinhas da raça jérsei, especializada na produção de leite. A empresa informou que um lote de 25 vacas seria suficiente para suprir toda a necessidade de insulina na Argentina, país com cerca de 1,5 milhão de diabéticos. Mas a Bio Sidus diz corretamente que a produção de animais transgênicos com esse potencial é apenas uma parte do caminho tecnológico para se chegar a um produto final. É preciso elaborar com segurança a extração e a purificação da proteína humana no leite bovino para eliminar possíveis contaminações. No Brasil, outro grupo, dessa vez na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), no Rio Grande do Sul, inicia pesquisas com galinhas transgênicas. Por meio da diluição do gene codificador da proteína verde fluorescente, GFP na sigla em inglês, no esperma de galo, seguida da inseminação, os pesquisadores, coordenados pelo professor João Carlos Deschamps, conseguiram um exem plar que nasceu morto, mas que expressou tal proteína. “O experimento serviu para mostrar que a técnica funciona”, diz a professora Denise Bongalhardo, do mesmo grupo. “Experimentos realizados na Europa mostram que os ovos transgênicos são viáveis, embora expressem muito pouca proteína e, portanto, ainda não são viáveis comercialmente”, explica Denise. “As galinhas têm como vantagem o fato de produzirem cerca de 330 ovos por ano e possuírem pequeno intervalo entre as gerações, além de ter a clara de ovo naturalmente estéril. Afinal, o ovo é fácil de estocar e a proteína já vem empacotada.” O próximo passo do grupo gaúcho é expressar uma proteína de coagulação sangüínea humana, como o fator IX, em ovos de galinhas. Denise também aponta futuros usos de frangos transgênicos, como a manipulação de carac-

terísticas de produção, melhoramento genético e resistência a doenças. Além da produção de medicamentos via leite dos animais para obtenção de proteínas humanas ou mesmo de ovos, é possível combater enfermidades como dengue e malária, por meio da manipulação genética dos mosquitos transmissores dessas doenças. Uma alternativa que ainda dá seus primeiros passos para verificação de sua possibilidade prática é a introdução num mosquito vetor, o Aedes aegypti, da dengue, ou o Anopheles spp., da malária, de um gene que possa bloquear a atividade tanto do vírus da primeira como o protozoário da segunda, que vivem dentro desses insetos, e conseqüentemente barrar a transmissão das doenças. Com esse objetivo, a equipe do pesquisador Luciano Andrade Moreira, do Centro de Pesquisas René Rachou, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Belo Horizonte, Minas Gerais, desenvolveu uma linhagem de mosquitos Aedes fluviatilis que pode ser vetor do parasita da malária aviária. ação contra o Plasmodium gallinaceum no interior do mosquito é acionada por meio da proteína fosfolipase A-2, na forma mutada e inativa, encontrada no veneno da abelha e já muito estudada. “Essa proteína deve formar uma barreira no intestino do mosquito que não deixa o plasmódio penetrar na parede intestinal e, após formar um cisto, atingir a glândula salivar do inseto e ser transferida para outra ave no momento da picada”, diz Moreira. Para fazer os insetos transgênicos, Moreira e sua equipe utilizam a técnica

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de microinjeção da construção de DNA nos ovos do mosquito, na fase de embrião. “Estamos na trigésima geração de mosquitos transgênicos criados em laboratório”, conta Moreira. Pesquisa semelhante com o mosquito da dengue está em desenvolvimento sob a coordenação da professora Margareth Guimarães, da Universidade de São Paulo (leia em Pesquisa FAPESP nº 131). A transgenia animal começou a dar seus primeiros passos em 1982 com pesquisadores norte-americanos das universidades de Washington, Pensilvânia e Califórnia que produziram um camundongo que expressava o hormônio de crescimento de um rato. Resultado: o camundongo cresceu mais que o normal. “Hoje existe muita gente trabalhando com transgênicos, o que torna fundamental patentear o resultado dos estudos”, alerta Pesquero. “Em biotecnologia, qualquer desenvolvimento é passível de patenteamento, mas o animal transgênico não é patenteável no Brasil. A patente deve ser do projeto de construção genética do animal”, afirma o engenheiro químico especializado em propriedade intelectual Ricardo Amaral Remer, sócio na consultoria Atem&Remer que deu palestra sobre o tema no simpósio na Unifesp. “É o sistema de expressão ou a construção gênica, ou ainda o conteúdo e a forma de introduzir o gene no animal que é patenteável”, explica Remer. Mesmo expressando uma proteína presente em outro animal, como o fator IX, é possível patentear outro processo de produção relacionado a essa substância. ■

Camundongo com gene do fator IX humano

Lax resinannn especial utilizada en la fabricación de hilos y fibrnn de colchones

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FÍSICA

Filamentos versáteis Nova geração de fibras ópticas amplia uso desses dispositivos para além das telecomunicações Yur i Vasconcelos

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IFGW/UNICAMP

á cerca de 30 anos o Brasil patentes relativas às fibras de cristal fodiferenciam das demais. A principal ingressava no então seleto diferença entre as fibras de cristal fotôtônico, que serão discutidas no workshop grupo de países que pesquinico e as tradicionais é que as primeiinternacional Fibras Ópticas Especiais savam e usavam fibras óptiras possuem um arranjo regular de e Suas Aplicações, programado para cas, filamentos de vidro ou buracos, da ordem de 1 micrômetro de acontecer na cidade de São Pedro, no material polimérico da espesdiâmetro, equivalente a 1 milionésimo interior paulista, em agosto deste ano sura de um fio de cabelo cado metro, e que corre paralelo ao eixo (www.wsof2008.org). O evento deve da fibra e por todo o seu comprimento. pazes de transmitir em alta velocidade reunir especialistas mundiais nesse tipo A vantagem desses microfuros é permide fibra óptica desenvolvida no final dados em forma de luz. Uma das pritir um rígido e extenso controle do dos anos 1990 pelo britânico Philip meiras redes construídas com o mateguiamento da luz, o que torna a fibra Russell, na Universidade de Bath, na rial foi instalada na Universidade Estamais versátil. Isso ocorre porque a miInglaterra, um dos principais centros de dual de Campinas (Unicamp), em croestrutura pode ser projetada de dipesquisa desse material. maio de 1977, para testes de telecomuferentes formas, de maneira a lhes conAs fibras de cristal fotônico fazem nicações, setor que passou por uma ferir as propriedades que se desejar. parte de um grupo maior conhecido verdadeira revolução com a massificaAssim, é possível elaborar fibras para como fibras ópticas especiais, porque ção do uso das fibras ópticas no lugar um amplo conjunto de aplicações. possuem inovações estruturais que as de fios de cobre. Hoje, três décadas deAlém de redes e equipapois, a Unicamp contimentos do setor de telenua na vanguarda das comunicações, as fibras pesquisas sobre essa tecde cristal fotônico, tamnologia e sedia um labobém conhecidas pela ratório focado no estusigla PCF (de Photonic do e desenvolvimento Crystal Fiber), podem de fibras de cristal fotôser usadas na fabricação nico, consideradas uma de dispositivos a laser, nova geração de fibras fontes de luz ou sensoópticas que ampliam o res ópticos ultra-sensíuso desses materiais, veis capazes de monitopor exemplo, para a biorar um ambiente com logia e para a química, um gás perigoso ou um na análise de gases e lílíquido contaminado quidos. No ano passapor bactérias, por exemdo, pesquisadores desse plo. “As fibras de cristal laboratório depositafotônico representam ram, em conjunto com uma inovação de largo pesquisadores de ouespectro”, afirma o físico tras instituições brasileiCristiano Monteiro de Fibra em Y: aplicações em sensoriamento biológico e químico ras e estrangeiras, três

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Barros Cordeiro, professor do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW), da Unicamp. “A liberdade que temos para mexer nas características das fibras ópticas tradicionais é muito limitada, mas quando inserimos buracos em sua estrutura a liberdade de escolha de suas propriedades ópticas aumenta muito”, diz Cordeiro.

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Fios guiados – Apesar de ser uma tec-

nologia relativamente nova, as fibras de cristal fotônico já chegaram ao mercado. A empresa pioneira é a dinamarquesa Crystal Fibre, que desde o ano 2000 comercializa diferentes tipos de fibras, bem como equipamentos feitos com esse material para a área de telecomunicações. Na Unicamp, uma das principais inovações desenvolvidas é uma fibra de cristal fotônico com eletrodos (fios metálicos) integrados a ela, num trabalho do mestrando Giancarlo Chesini. Com isso, simultaneamente ao guiamento de luz, é possível aplicar voltagem à fibra ou fazer passar corrente elétrica por ela. “A luz pode ser modulada com a corrente elétrica, abrindo novas perspectivas de uso do material na área de sensoriamento e de dispositivos, como, por exemplo, na fabricação de moduladores ópticos usados em redes de transmissão de dados”, explica Cordeiro, que fez seu pós-doutorado junto ao Centro de Fotônica e Materiais Fotônicos da Universidade de Bath.

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Outra novidade do grupo, que integra o Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica de Campinas (CePOF) sediado também no IFGW-Unicamp e financiado pela FAPESP, é uma fibra batizada de Y. A particularidade estrutural dela é o núcleo reduzido, de apenas 1 micrômetro de diâmetro – o núcleo das fibras tradicionais mede por volta de 10 micrômetros e seu diâmetro total chega a 125 micrômetros. Além disso, ela tem apenas três buracos em sua microestrutura, que são bem grandes quando comparados aos das fibras de cristal fotônico comuns. A redução do núcleo torna a fibra mais sensível e adequada para aplicações de sensoriamento químico ou biológico. Isso ocorre por causa do efeito de difração que estende a propagação da luz para além do núcleo. “O fenômeno da difração é péssimo na transmissão de dados numa rede de telecomunicações, mas desejável em sensoriamento. Os buracos da fibra permitem que a luz entre em contato com o material de interesse a ser identificado e analisado, como um líquido ou gás qualquer”, explica o pesquisador da Unicamp. A primeira patente depositada em abril do ano passado pela Agência de Inovação da Unicamp (Inova) trata da estrutura das fibras de cristal fotônico. “Além dos buracos em torno do núcleo, fizemos outros nas laterais, perpendiculares ao eixo da fibra, para desvincular a entrada da luz e do material. Assim, a luz continua entrando pela

Fibras de cristal fotônico possuem arranjo regular de microfuros

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EDUARDO CESAR

vez em parceria com a Universidade Mackenzie, é relativa a uma fibra de cristal fotônico com núcleo e casca (a parte da fibra que envolve o núcleo) preenchidos com diferentes líquidos como água, etanol ou metanol. “Nesse trabalho usamos água na casca e uma mistura de água e glicerina no núcleo. Ela será empregada principalmente nas áreas de sondagem e sensoriamento, como, por exemplo, para realizar a análise espectroscópica de líquidos, para medir a emissão ou absorção de radiações eletromagnéticas da substância. O núcleo líquido das fibras microestruturadas pode proporcionar alta interação da luz com o material examinado, facilitando sua análise. “Mas para evitar que a onda de luz viaje em velocidades e caminhos diferentes dentro do núcleo líquido, um fenômeno conhecido como dispersão modal, usamos um segundo líquido na casca da fibra, controlando o guiamento do primeiro”, diz Christiano de Matos, do Mackenzie. Criouse, assim, uma fibra monomodo, um dos tipos das fibras tradicionais, as preferidas do mercado, por permitirem que a luz faça uma “viagem” mais regular, proporcionando um melhor sinal. O desenvolvimento dessa fibra exigiu a superação de vários obstáculos, como, por exemplo, preencher espaços tão diminutos, como o núcleo e a casca de uma fibra óptica, sem misturar os dois líquidos. A fibra de núcleo e de casca líquidos deverá ser mostrada no workshop a ser realizado em São Pedro e que já conta com o apoio de sociedades internacionais como OSA e SPIE além da própria FAPESP. Dos 30 palestrantes convidados, 25 são de outros países, entre eles o físico inglês Jonathan Knight, da Universidade de Bath, que participou do desenvolvimento da primeira fibra de cristal fotônico, e a pesquisadora australiana Maryanne Large, da Universidade de Sydney, responsável pelo desenvolvimento pioneiro das fibras plásticas de cristal fotônico. ■

Fio metálico integrado à fibra óptica garante passagem de corrente elétrica

extremidade da fibra, exatamente como acontece com qualquer outra, enquanto o material a ser examinado entra pelas laterais”, conta o também físico Christiano José Santiago de Matos, professor do Laboratório de Comunicações Ópticas e Fotônica da Universidade Presbiteriana Mackenzie, co-autor da patente. Para funcionar como um sensor, a luz precisa entrar em contato com o material examinado. A análise acontece por meio da difração de parte da luz que viaja no núcleo para a casca da fibra, gerando um campo evanescente, em que a luz tenta escapar para fora do núcleo. Com a abertura dos furos laterais, o material analisado, seja líquido ou gás, adentra a fibra por eles e entra em contato com este campo evanescente. O pedido de patente dessa tecnologia deu entrada no Instituto Nacional da Propriedade Intelectual (INPI) no final do ano passado. Um processo parecido, com o mesmo objetivo de acessar o interior da fibra pelas laterais, resultou numa segunda patente, desta vez internacional, que contou com a parceria entre o grupo da Unicamp e o do Centro de Tecnologia de Fibra Óptica (OFTC) da Universidade de Sydney, na Austrália, um dos mais avançados no estudo de fibras ópticas especiais. No lugar de furos laterais foi feito um rasgo de dezenas de centíme90

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tros ao longo da fibra. “Essa tecnologia teve um grande impacto não apenas por ser internacional, mas porque é a que está mais próxima de uma aplicação prática na área de sensoriamento químico, monitorando, por exemplo, vazamentos químicos em indústrias ou mesmo em poços de petróleo”, diz Cristiano Cordeiro. Um artigo sobre esta tecnologia foi publicado recentemente na Optics Express, revista on-line da Optical Society of America, considerada de grande impacto na área de óptica. A terceira patente, depositada em outubro de 2007 no INPI, mais uma

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O PROJETO Fibras de cristal fotônico

MODALIDADE

Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) COORDENADORES

HUGO FRAGNITO – Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica (CePOF) na Unicamp CRISTIANO CORDEIRO – Subprojeto INVESTIMENTO

R$ 1.000.000,00 por ano para todo o CePOF (FAPESP)

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EDUCAÇÃO

Carteiras

informatizadas Mesas reúnem tela sensível ao toque para a escrita manual e computador Dinorah Ereno

ILUSTRAÇÕES LAURA DAVIÑA | FOTO MIGUEL BOYAYAN

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o lugar do caderno, o aluno escreve com uma lapiseira comum de grafite diretamente numa tela de vidro sensível ao toque, ou tablet digital, que substitui o tampo de uma carteira escolar convencional. Para apagar o que foi escrito, basta usar pano, algodão ou estopa secos ou umedecidos com álcool. Enquanto as letras, textos ou desenhos estão sendo produzidos na tela sensível, um microcomputador integrado à carteira processa as informações. Dessa forma, o que está sendo escrito ou desenhado é simultaneamente exibido num monitor plano e delgado, que pode ser de cristal líquido (LCD) de dimensões até o limite da tela sensível e acoplado a ela. O tampo de vidro sensível ao toque pode também ser colocado em posição vertical ou inclinada por conta de um mecanismo de articulação, o que permite ao aluno utilizar opcionalmente um teclado e um mouse para operar o computador ou acessar a internet. Todas essas possibilidades encontram-se reunidas em um produto novo, que está em fase final de elaboração e validação, chamado Lap Tup-niquim, iniciais de Linha de Apoio Pedagógico Tupiniquim, desenvolvido em parceria pelo Centro de Pesquisas Renato Archer (Cenpra), de Campinas, instituição do Ministério da Ciência e Tecnologia, e pela Associação Brasileira de Informática (Abinfo), empresa abrigada na Companhia de Desenvolvimento do Pólo de Alta Tecnologia de Campinas (Ciatec), no interior paulista. A carteira informatizada, também chamada de prancheta ou carteira digital, tem como base uma sólida estrutura de aço. A tela sensível ao toque é simples e de baixo custo, sendo constituída por um vidro comum recoberto com um filme fino transparente e condutor de eletricidade, à base de dióxido de estanho. A tecnologia de fabricação do tablet digital foi desenvolvida pelo pesquisador Victor Pellegrini Mammana, chefe da Divisão de Mostradores de Informação do Cenpra, e já teve a patente concedida em 2001 nos Estados Unidos, além de um pedido em análise pelo Instituto Nacional da Propriedade Intelectual (INPI) no Brasil. “Uma importante inovação foi introduzida na carteira digital em relação à tecnologia anterior do tablet, que foi a sua construção em grandes áreas, da ordem de 25 polegadas de diagonal, o que requereu o desenvolvimento de novos processos”, diz Victor. PESQUISA FAPESP 147

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Avaliação prática – O projeto de desenvolvimento, feito por encomenda da prefeitura de Serrana, cidade a 315 quilômetros de São Paulo, na região de Ribeirão Preto, teve início em agosto do ano passado, sob coordenação da Abinfo. Desde então, foram desenvolvidas oito versões da carteira digital, para chegar ao protótipo que começará a ser avaliado neste mês de maio pelos alunos e professores da rede municipal de ensino, inicialmente na Escola Maria Celina. Cerca de 200 carteiras Lap Tupniquim e cinco lousas digitais comerciais serão colocadas em cinco salas de aula utilizadas por alunos do período da manhã e da tarde das quintas séries do ensino fundamental, além de duas turmas noturnas do curso de Educação de Jovens e Adultos (EJA). A integração da tela sensível ao toque com o computador vai permitir ao aluno escrever como se estivesse utili-

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zando o caderno, ou seja, ele vai continuar a usar a escrita manual. Como cada sala de aula terá um servidor para gerenciar o conteúdo didático, os alunos só poderão acessar sites autorizados pelo professor. Um outro computador servidor, da escola, permitirá que disciplinas dadas em qualquer sala de aula possam ser acessadas pelo professor quando necessário. Sem sair da cadeira, ele também poderá acompanhar o desempenho de cada aluno. Victor credita a uma experiência anterior na área, quando coordenou uma das avaliações do projeto Um Computador por Aluno (UCA) do governo federal, que incluía ergonomia, tecnologia de display, modelo de negócios e cadeia produtiva e tinha a colaboração da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro, o aval e o direcionamento necessários para o desenvolvimento do protótipo da carteira digital. “Isso atraiu muitas idéias para a educação, porque o assunto estava na mídia”, diz Victor. “Quando fui procurado pelos representantes de Serrana, eles vieram com idéias novas mais vantajoAluna escreve com lapiseira comum sobre tela de vidro sensível ao toque na carteira digital

sas do ponto de vista do custo e também da ergonomia, e isso incluía o uso do vidro sensível ao toque.” O projeto da carteira é baseado no software livre, no caso o Linux Educacional adotado pelo Ministério da Educação. Dessa forma, o professor poderá trabalhar com o conteúdo pedagógico que quiser. “Uma equipe multidisciplinar, composta por pedagogos e técnicos, está trabalhando no conteúdo pedagógico que será utilizado nesse projeto”, diz o diretor de Projetos e Desenvolvimento Econômico da prefeitura de Serrana, Miguel João Neto. Tudo o que for anotado pelo aluno em sala de aula ficará armazenado no computador e poderá ser copiado em uma memória portátil, como um pen-drive. “Na fase inicial o projeto teve a participação de uma estudante de engenharia holandesa, em programa de treinamento na Abinfo, que contribuiu no desenvolvimento de um outro conceito de carteira e de projeto ergonômico”, diz Carlos Mammana, que é pai de Victor. “Conforme o projeto foi sendo elaborado, nasceu um novo conceito, o

VICTOR MAMMANA

Embaixo da tela de vidro sensível é instalado um computador com processador Intel Celeron, memória flash para armazenar dados e placa para conexão sem fio. “A ferramenta que estava restrita ao laboratório de informática vai entrar de forma definitiva na sala de aula, criando condições de convivência com o mundo digital”, diz Carlos Mammana, diretor da Abinfo e professor aposentado da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que também dirigiu o Cenpra durante 28 anos. “Em vez de o aluno receber noções básicas de computação por um curto espaço de tempo, a carteira digital, inserida no contexto da sala de aula, fará parte do seu dia-a-dia.”

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Como cada sala de aula terá um servidor para do Lap Tup-niquim, muito mais versátil, com a vantagem adicional de utilizar as carteiras existentes nas escolas públicas.” O design da carteira é ergonômico e o uso da lapiseira evita torções no pulso, responsáveis por lesões decorrentes do uso do mouse ou do teclado. A tela de vidro sensível ao toque possibilita vários ângulos de utilização da superfície de escrita. Softwares especialmente desenvolvidos para o projeto fazem a leitura da lapiseira e do mouse. Os pesquisadores fizeram um depósito de patente da carteira como conceito. “É um sistema muito simples, com interfaces que facilitam o uso da máquina”, ressalta Victor. Apoio pedagógico – O primeiro modelo da carteira digital era de madeira compensada. A partir do segundo, ela foi fabricada em aço, de acordo com o padrão do Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação (FNDE), vinculado ao Ministério da Educação, já com o dispositivo de articulação. Em novembro do ano passado, durante um evento internacional de tecnologia realizado em Campinas, o Latin Display 2007, foi apresentada a versão número três do projeto. “A carteira informatizada foi muito bem recebida como uma ferramenta de apoio pedagógico”, diz Miguel Neto. A partir dessa aplicação que será feita com cerca de 200 carteiras, os pesquisadores vão verificar o que tem de ser melhorado para depois transformar o protótipo em um produto final, que já tem uma grande demanda. Cidades da região de Campinas, como Paulínia e Hortolândia, já estão na fila de espera.

gerenciar o conteúdo didático, os alunos só poderão acessar

sites autorizados pelo professor

“Mas antes precisamos dessa validação dos alunos e professores para ter certeza de que o modelo realmente funciona”, diz Victor. “Com essa iniciativa, é possível replicar a experiência em qualquer outro município”, ressalta Carlos Mammana, referindo-se ao fato de que é mais fácil começar uma experiência desse tipo em cidades de pequeno porte. Serrana, com 40 mil habitantes e cerca de 10 mil estudantes no ensino fundamental e médio, é uma das cidades da região que mais investem em educação, segundo o Centro de Estudos e Pesquisas em Gestão Industrial (Cepegi), de Ribeirão Preto. Pesquisa do Cepegi divulgada no final do ano passado mostra que o investimento médio em educação em cidades com os maiores Índices de Desenvolvimento Humano (IDHs) do Brasil é de 13%, enquanto Serrana investiu 17,4% no ano passado. O porcentual de 25% previsto na Constituição é complementado com investimentos em autarquias e outros setores da educação. O município tem uma receita em torno de R$ 45 milhões

por ano, sendo que o investimento total na área educacional no ano passado foi de R$ 15,9 milhões. O protótipo do Lap Tup-niquim custa cerca de R$ 1.300,00, mas este custo deve cair conforme a produção for feita em grande escala. O custo atual das carteiras é maior do que o dos laptops educacionais como o XO, da One Laptop per Child (OLPC – Um laptop por criança), ou o Classmate, da Intel (leia em Pesquisa FAPESP n° 131), mas o Ministério da Ciência e Tecnologia está em busca de diferentes alternativas de inclusão digital. Para baixar ainda mais os custos das carteiras digitais, os pesquisadores envolvidos com o projeto estão avaliando a possibilidade de reaproveitar computadores de máquinas caçaníqueis apreendidas e que estão estocadas em depósitos. Só na região de Ribeirão Preto existem milhares dessas máquinas confiscadas. “A maioria delas possui monitor de LCD de 15 polegadas e processador Pentium satisfatório para uso nas carteiras”, diz Victor. Os recursos para equipar as cinco salas das quintas séries com as carteiras e lousas digitais, de cerca de R$ 400 mil, têm sido providos pela prefeitura de Serrana, pela Abinfo e pelo Cenpra. Encerrado o processo de validação – e com a aprovação da carteira digital pelos usuários –, a prefeitura pretende estender o projeto a todas as 15 salas de aula municipais. Para isso, já começou a negociar recursos com o governo federal. “O projeto propõe ainda a utilização de mão-de-obra local em pequenas empresas a serem criadas em Serrana para produzir a parte mecânica das carteiras”, diz Carlos Mammana. ■

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HUMANIDADES

ARQUITETURA

Moradas do

pretérito Pesquisa revela riqueza da vida nas fazendas de café paulistas Carlos Haag | fotos Vl adimir Benincasa

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li tudo foi, nada é. Não se conjugam verbos no presente. Tudo é pretérito. As fazendas são Escoriais de soberbo aspecto visual vistas de longe, entristecedoras quando se lhes chega ao pé. Ladeando a casa-grande, senzalas vazias e terreiros de pedra com guanxumas nos interstícios. O dono está ausente. Cafezais extintos”, escreveu Monteiro Lobato sobre as “cidades mortas” que abrigaram as “fábricas de café”, o responsável pela transformação da capitania da Colônia, sem riquezas e poder, no estado mais desenvolvido do país. “A cafeicultura no estado de São Paulo, em 150 anos, produziu um acervo importante de edifícios que hoje ajuda a explicar a sua história. Infelizmente boa parte desses prédios vem sendo destruída ou descaracterizada ao longo dos anos, com poucos registros sobre o cotidiano das pessoas que os construíram e usaram”, lamenta Vladimir Benincasa, autor da recém-defendida tese de doutorado “Fazendas paulistas”, apresentada ao Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Escola de Engenharia de São Carlos (USP), orientada por Ângela Bortolucci, com apoio da FAPESP. “As mudanças da economia dos últimos 50 anos, que provocaram um intenso êxodo rural, criaram uma ge-

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ração desapegada de suas tradições e que desconhece suas origens”, explica o pesquisador. Foram 3 anos visitando, medindo e fotografando mais de 300 fazendas, que resultaram em 15 mil fotos e 200 plantas de casarões. O objetivo de Benincasa era conseguir uma visão geral do acervo arquitetônico rural produzido durante o ciclo cafeeiro, entre o início do século XIX e a década de 1940, a fim de detectar como se deu a criação do modo paulista de construir e morar e de que forma esse foi influenciado pelo impacto das transformações do capitalismo (como a mecanização, eletrificação, linhas férreas etc.) na configuração dos espaços de produção e moradia. A dificuldade estava em voltar ao tempo para entender o espaço. Afinal, hoje abandonadas ou transformadas em “pousadas”, as casas de fazenda que restaram encontram-se isoladas na paisagem, desprovidas do conjunto de instalações que compunham o complexo de produção cafeeiro. “Dificilmente o observador será capaz de fazer idéia do movimento e da atividade que havia. Era uma sucessão contínua de casas formando pátios, com lugares para beneficiamento, engenho, moinho, tulha, ferreiro, senzala, enfermaria, rancho, venda, pouso; e gente, muita gente. Quase tudo desapareceu e restam apenas enormes edifícios residenciais”,

observa o arquiteto Marcos Carrilho, do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), em seu artigo “Fazendas de café oitocentistas no Vale do Paraíba”. Se a decadência foi rápida, o apogeu foi demorado. Apenas a partir da segunda metade do século XVIII, com o fim do ciclo minerador, é que a Corte lusitana passou a valorizar a fertilidade das terras do sul do Brasil, que fizeram surgir uma economia paulista agrícola significativa. O café, hoje paixão nacional, se chegou ao Brasil em 1727, levou quase o século inteiro para atingir o Rio de Janeiro, alcançando o Vale do Paraíba em 1790. Como pouco se sabia da nova cultura, surgiram variedades de textos (como os manuais de Laborie, Saia e do barão de Paty Alferes) para ajudar os pioneiros, descrevendo técnicas de implantação das lavouras, máquinas e, acima de tudo, a configuração espacial da fazenda. “Os toscos estabelecimentos rurais caipiras de subsistência deram lugar aos mais do que especializados e complexos conjuntos de edifícios da fazenda cafeeira”, nota Benincasa. “Principiareis a vossa fazenda edificando primeiro uma casa ordinária para a vossa moradia temporária e tantas quantas forem precisas para acomodar os escravos e camaradas; mas tudo isto deve ser

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Fazenda Serra Negra, em Botucatu

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Fazenda Bella Aliança, em Descalvado (acima); Fazenda Vassoural, em Itu (abaixo)

feito de forma que não estorve o risco da fazenda”, avisa o compêndio de 1847 de Paty Alferes. O projeto do estabelecimento era a base de tudo e nessa base estava a cultura do café e, logo, o terreiro, centro de todo o conjunto. “Além do cuidado de situar as plantações, é desejável implantar a residência do proprietário de modo a garantir o domínio visual das instalações, evidenciando o propósito do controle do conjunto de atividades”, completava Laborie. Para funcionar, a “indústria” cafeeira deveria ser construída de forma a permitir o encadeamento das articulações.

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configuração típica era um terreiro de secagem de café ao redor do qual se achava o casarão em posição de destaque, foco central do conjunto. Essa conformação em quadras permitia a dominação visual e, assim, a social, já que tudo acontecia diante do casarão, incluindo-se a posição da senzala, sempre próxima da casa-grande,

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dada a necessidade de vigilância sobre os escravos, cujos preços eram, às vezes, superiores aos da terra”, explica o pesquisador. Ao lado do café, veio o “leite”: com a decadência da mineração, grupos de mineiros foram atraídos para a cultura cafeeira, trazendo a influência de sua arquitetura, mais sofisticada, e de técnicas mais modernas que a paulista, baseadas na taipa de pilão. Foram também os mineiros que deram às fazendas novos toques formais, como a inclusão da área de serviço no corpo principal da edificação, adoção de alpendres e escadarias externas, dos ornamentos, da leveza da obra. “Em várias regiões a população mineira era superior à paulista. Por isso, tem-se a presença da casa tipicamente mineira nas mais diversas épocas e regiões do estado de São Paulo.” Isolada em meio à mata, a fazenda de café do século XIX se assemelhava a uma vila, concentrando um grande número de profissionais para a execução

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de atividades diárias. A tipologia arquitetônica dessa primeira fase da cultura cafeeira, nota André Ferrão, da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo, da Unicamp, autor de Arquitetura do café, é a “fazenda autárquica, sem relação com o meio externo, porque produzia todo o necessário para sua subsistência”. “A antiga casa paulista rústica, que perdurou até o século XVIII, de poucos móveis, com ganchos de rede espalhados pelos batentes das portas, vai aos poucos dando lugar a casas com salas mobiliadas com móveis importados, pianos, quadros e bibelôs”, observa Benincasa. “Já não se recebe mais no antigo alpendre embutido; agora o visitante é conduzido ao lance principal por uma escadaria.” Nascia a casa-grande suntuosa, feita para mostrar o poder da elite cafeeira monarquista. “A chegada da missão francesa ao Rio também introduziria elementos novos nessas casas, como maior preocupação com a elaboração do desenho

da fachada, busca pela simetria, maior harmonia na distribuição dos vãos, a adoção do porão para evitar o contato direto com o solo, maior insolação e ventilação, dentro dos pressupostos higienistas da época. A fazenda cafeeira em São Paulo possui especificidades que não existem em propriedades semelhantes de outros países”, avisa o autor. Os manuais de Laborie e do barão igualmente preconizavam a necessidade de organizar o lugar de abrigo dos escravos, até então construídos, pelos próprios, reproduzindo o esquema de suas habitações africanas. “A partir da década de 1840 se difundiu um novo modelo de senzala em lanços corridos ou em quadras, forma de exercer maior controle sobre os cativos.” Hoje existem poucas dessas edificações, já que não sendo lugar de moradia, antes de abrigo, eram construídas com técnicas e materiais precários e rústicos. “Em geral as que estão em pé apresentam modificações feitas para abrigar, após a abolição, as famílias de imigrantes; outras viraram depósitos.” De toda forma, se localizavam próximas do casarão, para que o olho do dono não desgrudasse dos seus escravos. Afinal agora ele tinha novas obrigações sociais que decretaram o fim do alpendre, antes lugar para receber as visitas, uma descortesia impensável em inícios do século XIX nas fazendas do Paraíba. Os visitantes tinham que ser recebidos diretamente no interior das casas, em salas de recepção, para depois

serem conduzidos a uma sala de visitas. “Isso modificou a fachada do casarão, agora composta por uma escadaria e um patamar de acesso que carregavam forte simbolismo, marcando a recepção e criando uma expectativa para a entrada na casa do senhor da propriedade.” is outra inovação em relação à antiga casa paulista: na morada do rico fazendeiro do café o espaço destinado à recepção, a área de convívio geral, é muito mais generosa. “São as salas sociais onde ocorrem os saraus, as tertúlias literárias e onde se admite em certo grau a sociabilidade, cumpridos os rituais mínimos de admissão e de representação de que se revestiam esses encontros”, explica Benincasa. A capela dentro do casarão da mesma maneira ressaltava a ligação do poder do fazendeiro com a poderosa Igreja Católica. “O interior desses casarões guardava funções exclusivas que não poderiam ser desenvolvidas em outro lugar da fazenda, dado o seu valor simbólico; até práticas religiosas foram levadas para dentro da casa do fazendeiro.” A ostentação estava em todos os cômodos: dos assoalhos encerados à água encanada e à eletrificação, passando pelas pinturas murais decorativas, papéis de parede importados, forros elaborados, janelas e portas almofadadas, no melhor estilo da Corte carioca, cujos hábitos foram adotados pelas fazendas de café. Novos tempos, novos costumes: a expansão da cafeicultura pelo interior de São Paulo,

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Fazenda São Sebastião, em Catanduva, Fazenda São João do Tibiriçá, em Gália, Fazenda Engenho das Palmeiras, em Itapira, Fazenda Santa Veridiana, em Casa Branca (acima); Fazenda Brejão, em Casa Branca (abaixo)

bem como a campanha antiescravista, trouxe os colonos europeus e suas habilidades. “Esse processo, aliado ao surgimento de uma elite cafeeira e à vinda de profissionais, como arquitetos e engenheiros europeus (além dos vários artesãos transformados em colonos), iria modificar a paisagem das fazendas cafeeiras. Além disso, a expansão de linhas ferroviárias, usadas para levar a produção ao porto de Santos, e o desenvolvimento da navegação a vapor facilitaram a importação de materiais de construção da Europa e dos Estados Unidos.” urgem casas de maior liberdade formal, com uma violenta segmentação do espaço. “Há salas e saletas destinadas às mais diversas atividades: salas de visita, de chá, de jogos, de costura, de música, de almoço, de jantar, fumoir etc. Surgem os corredores, destinados ao trânsito interno pelas várias alas da casa sem a percepção do visitante, reflexos de um processo de aburguesamento da classe rural”, afirma Benincasa. A arquitetura de terra foi substituída pela modernidade da alvenaria de tijolos e o novo ideal é a casa ensolarada, arejada e limpa, em que o banheiro vira peça fundamental. “A casa rural de fins do século XIX e início do XX incorporava os confortos da vida moderna, passando a expressar, dessa maneira, a solidez financeira e o cosmopolitismo do fazendeiro pau-

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lista.” Tão distante da austeridade caipira da casa bandeirante, o casarão moderno era testemunho da disposição dos barões do café de transformar suas residências em lugares aprazíveis e confortáveis que se refletiam, nota o pesquisador, mesmo nas relações de gênero. “Havia oportunidades de convívio para as mulheres. Embora as áreas de permanência delas ainda fossem separadas das dos homens, havia sido criada uma faixa intermediária que todos poderiam partilhar, inclusive pessoas de fora do convívio doméstico.” A casa-grande e as senzalas, aos poucos, foram substituídas por sedes rodeadas de jardins e casas de colônia. “Preservando elementos arquitetônicos da fazenda típica, surgia uma nova tipologia que incorporava a modernidade técnica, a fazenda ganhando ares de empresa agroindustrial como as instaladas na região de terras roxas da região de Ribeirão Preto”, escreve André Ferrão. Essa evolução arquitetônica seria quebrada ainda mais uma vez com a depressão de 1929 e a Revolução de 30. “Surge uma nova arquitetura, não a da grande fazenda, mas a do sítio de café, diante da nova lógica do processo produtivo”, anota Ferrão. É o início do fim das grandes propriedades do Vale do Paraíba e da sua evolução para as empresas agroindustriais do oeste paulista. Segundo o pesquisador, é o momento em que o núcleo industrial das fazendas diminuiu de

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tamanho e complexidade, pois as operações de beneficiamento e armazenamento do produto passaram a ser feitas nas cidades e, assim, as casas-sede, colônias e demais instalações tornaramse mais modestas, quando não desapareciam. “O dono não está”: a frase de Lobato descrevia a mudança do proprietário para as cidades grandes, de onde podia, apenas passando temporadas em suas propriedades rurais, controlar todo o processo. Afinal, agora havia meios de transporte rápidos que permitiam essa vida dupla, tão diversa do antigo isolamento da fazenda. “A arquitetura do complexo produtivo da maioria das propriedades do oeste novo paulista tornou-se bastante identificada com a própria arquitetura do cafezal”, anota Ferrão. “As sedes das primeiras décadas do século XX têm uma arquitetura simples, singela, em que desaparecem os adornos; uma arquitetura prática, destinada prioritariamente ao trabalho e não tanto à moradia. Foi mesmo comum um fazendeiro ter várias fazendas, já que, com o automóvel, podia se locomover rapidamente entre elas. É expressivo revistas e almanaques do início do século XX não mostrarem casas de fazendas, como era comum, mas escritórios e casas de administração, como para justificar a ausência de um casarão mais suntuoso”, completa Benincasa. As casas dos colonos refletia a modernização econômica. “Há grande se-

melhança entre elas e as casas de vilas operárias, cujo ideal se propagava pelo mundo capitalista e a fazenda cafeeira paulista não poderia deixar de ser influenciada por isso, principalmente no que diz respeito ao aumento de pro-

dutividade e controle do trabalho e do trabalhador”, explica o pesquisador. Vão também se tornando comuns, continua, as torres com relógios, sinos, mirantes e sirenes nessas fazendas convertidas em complexos agroindustriais: eram símbolos da modernidade e organizavam o dia em vários turnos de trabalho, que agora podia adentrar a noite, graças à iluminação elétrica. Mas o tempo corria contra o sistema. “Na década de 1940 era nítida a tendência de que o sítio de café, possuindo uma arquitetura específica e apropriada aos novos parâmetros impostos pelo sistema produtivo, virou a principal unidade de produção do complexo agroindustrial de café. Na maioria desses sítios, a colônia desapareceu, devido ao êxodo dos trabalhadores para as cidades, surgindo a figura do bóia-fria. Algumas casas isoladas, em geral de madeira, são espalhadas pela propriedade. A sede tornou-se muito simples, ou até inexistente”, escreve Ferrão. Tudo é pretérito, embora os verbos sejam conjugados no futuro. ■

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te; admira certos artistas modernos, pois recriam relações com um tempo imemorial; não se refugia no passado contra o atual, mas o busca como um instrumento para ultrapassar os tempos, chegando às profundezas mais distantes, onde só há vida e os objetos de arte são os únicos capazes de concentrá-la, perpetuando-a”, observa Dorothea. Filho de artista (daí, a sua nacionalidade belga: o pai, pintor, estava trabalhando na Bélgica), admirador do cubismo e amigo dos surrealistas, em especial de André Breton, fez a ciência dialogar com a arte, base fundamental de seu pensamento. “A ciência, com ele, deixará de se opor à arte, ao mito e à filosofia. Cultivando seus próprios métiers, esses domínios

dialogarão entre si na construção de saberes atingindo níveis mais profundos”, avalia a pesquisadora. O especialista, com Lévi-Strauss, se verá obrigado a deixar de ser burocrata. “O novo produtor de conhecimentos escolhe um território de pesquisa cujas fronteiras são maleáveis e penetráveis, ultrapassando-as por meio de uma reflexão profunda e extensa.” Para tanto, contribuíram três viagens fundamentais à sua formação: ao Brasil (entre 1935 e 1939), vindo com a “missão francesa” na USP, quando realizou suas pesquisas etnográficas (permeadas de dúvidas sobre a importância dos objetos de arte e indígenas) e definiu sua condição de etnólogo em detrimento da de filósofo; aos Estados Unidos, durante R EP R ODU Ç Ã O DO LIV R O LÉVI-STRAUSS, ANTROPOLOGIA E ARTE, MINÚSCULO – INCOMENSURÁVEL

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um mundo em que o ideal é estar sempre certo sobre tudo, ele optou pelo mote de que a dúvida é o princípio da sabedoria. Talvez, esta saudável escolha seja a fonte da sua longevidade, pois Claude Lévi-Strauss (torçamos) vai completar 100 anos em novembro. “A cronologia de sua vida revela um autor movimentando-se em meio a questionamentos, dúvidas, recuos e retiradas, num percurso avesso à linearidade que vive o conflito da criação. Isso o orientou a colocar-se a distância dos seus objetos e aprender a lidar com a temporalidade e aliar o sensível e o inteligível para construir um saber multifacetado e complexo”, explica a antropóloga Dorothea Voegeli Passetti, autora do recémlançado Lévi-Strauss, antropologia e arte: minúsculo, incomensurável, da Edusp/ Educ, fruto de sua tese de doutoramento em ciências sociais, defendida na PUCSP. No que foi bem-sucedido. “Ele não só propôs uma nova antropologia como indicou uma nova maneira de ser antropólogo. Quer uma antropologia útil às nossas sociedades, tornando os homens mais humildes, descentrando-os em função do conhecimento que o ‘outro’ lhes oferece”, afirma. No seu percurso, mudou sempre. Foi etnógrafo crítico, ex-filósofo que questiona a metafísica, antropólogo que quer criar uma ciência nova, ex-militante socialista que encontrou o budismo. Incorporou diversos saberes: lingüística, matemática, biologia, psicanálise, filosofia. “É o definitivo pensador de nosso tempo, um dos seus críticos mais intoleráveis, buscando o passado por trás do presente: pesquisa e defende as sociedades indígenas contemporâneas, sem deixar de se debruçar sobre o modo como pensaram e como viveram tradicionalmen-

Claude Lévi-Strauss à beira do rio M achado, 1938

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P AS C AL P AV AN I/AFP

B i o g r a f i a i n t e l e c t u a l d e Lé v i -S t r a u s s r e v e l a v i d a d e d i l e m a s

os anos 1940, em que, nota a autora, o indeciso professor de sociologia que deseja conhecer os índios se transforma em americanista, “vestindo um escafandro e mergulhando na etnologia indígena e na lingüística”; à Índia, em 1950, em que tomou contato com o budismo, que se aproximará, nota Dorothea, com adequação, ao já criado estruturalismo. Inquietude curiosa para quem inicia seu livro Tristes trópicos (1955) com a frase: “Odeio as viagens e os exploradores”. Em 1935, porém, quando faz seu primeiro contato com os índios brasileiros, é levado, nota a pesquisadora, “pelo desejo de compreender a América, operando uma espécie de corte na etnografia e na geografia brasileiras”. “A partir de então, pergunta-se se vale a pena abrir mão de uma carreira universitária e uma possível vida política para se tornar um burocrata de evasão, que passa seu tempo aplicando instruções, anotando em fichas as particularidades físicas dos índios encontrados.” Chega mesmo, continua a autora, a se desesperar por saber que nunca conseguirá desvendar a cultura da sociedade que teve a sorte de encontrar. “Mas foi no Brasil que Lévi-Strauss começou a entender que deveria ver a sua sociedade como um ator nô. Esse distanciamento implicou também abrir mão da política, pois cabia ao etnólogo pensar todas as sociedades de longe, não se envolvendo em acontecimentos históricos.” Para não deixar de ser objetivo, o etnólogo, segundo Lévi-Strauss, deve evitar julgar, seja a sua sociedade, seja as outras. A opção é por uma moderação de julgamento. “Essa reflexão, na qual ele parece carregar todo o remorso ocidental pela destruição dos povos, resulta num distanciamento. Ele passa a ver as sociedades, inclusive a sua, através de um filtro.” Inicia, então, uma paixão duradoura com a natureza e, observa a pesquisadora, se coloca em posição

Bororos paramentados, foto de Claude Lévi-Strauss, 1936

Lévi-Strauss: 10 0 anos de sabedoria

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Pendente cerimonial de unha de tatu, coletado por Claude e Dina Lévi-Strauss, em 1936

de crítico da sociedade que procura os selvagens numa atitude de evasão para o exótico. “Seu tormento girava em torno da busca de uma fórmula de retorno à sua própria sociedade. Não é o bom selvagem que procura, mas o estado mínimo de sociedade.” O exótico, avalia Dorothea, atrai Lévi-Strauss pelo seu caráter intacto e virgem, referente à natureza, e por sua afinidade com os começos. O mundo estava ficando pequeno para suas viagens. “Ao contrário do colecionismo dos museus, o que importava era poder escolher, pinçar algum objeto entre tantos outros e não reproduzir a postura que tanto o atordoou em suas pesquisas etnográficas no Brasil, nas quais se viu obrigado a recolher todos os objetos possíveis de uma cultura”, nota a autora. Nexo - Os objetos que procurava in-

vestigar e entender não eram apenas os materiais, e o nexo que os unia deveria ser encontrado em outra dimensão. “Esses objetos relatam mais do que a materialidade passada ou presente das culturas: são mais propriamente formas de pensar o mundo que, embelezando ou dissimulando, incorporam em sua concretude a sociedade, a 104

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natureza, o sobrenatural. Conectam e atravessam culturas, expõem a natureza como parte intrínseca da vida ou como designação criada para dignificar superioridades culturais muitas vezes traumáticas.” O morticínio da Segunda Guerra Mundial marcaria muito essa visão. “Perguntar-se sobre sociedades nas quais não há injustiças e terror e refletir sobre o homem natural que representaria uma humanidade que não conhece os males da civilização significou desiludir-se e encontrar a tristeza nos trópicos, no Planalto Central brasileiro ou em Martinica, resultado dessa experiência. Se os primitivos o atraem mais é porque foi entre eles que encontrou a fraternidade”, nota Dorothea. A passagem por Nova York, o contato com a antropologia americana, bem como lembranças das leituras contínuas de Freud o levam a colocar a cultura em oposição à natureza: “O parentesco passou a ser seu tema central, unindo etnologia, lingüística e discussão psicológica sobre o inconsciente. A aliança, além da consangüinidade, garante ao parentesco um primeiro caráter artificial, que marca o distanciamento dos homens do universo natural”. As estruturas passam a marcar seu novo pensa-

Bororo: labrete (ao lado) e brinco (acima), coletado por Claude e Dina Lévi-Strauss, em 1936

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MU S EU DE AR Q U EOLOG IA E ET N OLOG IA DA U N IV ER S IDADE DE S Ã O P AU LO,MAE-U S P / W AG N ER S OU Z A E S ILV A

mento e, com elas, chegam as elaborações racionais, científicas, matemáticas. “Para ele, não havia avanço em se continuar medindo ossos e crânios, levando ao seu desligamento da antropologia física. As culturas existem, afirmam-se e se mantêm pelas diferenças, uma em relação à outra, e será o jogo das diversidades que possibilitará a dinâmica cultural”, nota a autora. Chega a propor que se entenda o homem integrado à natureza e que se acabe com o antropocentrismo. “A etnologia não é nem uma ciência à parte, nem uma ciência nova: é a forma mais antiga do que chamamos de humanismo, devendo englobar a totalidade da Terra.” Nos anos após a publicação de Tristes trópicos, lembra a autora, Lévi-Strauss foi acusado de anti-humanista por reduzir o homem a estruturas e por não levar em consideração a história ou a vontade humana. Estava na hora de tomar outro caminho. Lévi-Strauss, observa a pesquisadora, cada vez mais aproxima arte e antropologia. “O motivo pelo qual a antropologia se interessa pela arte é que a arte é uma parte da cultura e é, em mais alto ponto, a tomada de posse da natureza pela cultura, que é o protótipo dos fenômenos que os etnólogos estudam.” Nada, porém, é simples e sua curiosidade intelectual o leva a novos caminhos. “Tenho uma consciência neolítica”, escreveu LéviStrauss. Falava de si e de seus novos interesses ao mesmo tempo. “Como a ciência do concreto, o pensamento selvagem é simultaneamente analítico e sintético. Tem ambição simbólica e se volta à percepção e classificação do universo imediato e empírico. Ao contrário do pen-

samento domesticado, é descontínuo, pretendendo ser sincrônico e diacrônico, expressa uma compreensão atemporal do mundo”, explica a pesquisadora. Daí mais um laço entre a arte primitiva e o pensamento mítico: a significação de seres míticos na arte é atemporal, dialogando com um tempo primevo no qual sincronia e diacronia se fecham. “O pensamento selvagem identifica-se com o mito, a magia e a arte, podendo conviver com o pensamento científico moderno.” Ele chegou lá. “O pensamento das sociedades primitivas solicita novos modos de pesquisa, que devem investigar as formas pelas quais ele constitui como objeto os seres e os fenômenos da natureza.” Como nota a autora, ser antropólogo adquire uma nova dimensão, em que o diálogo com a arte não se restringe a uma especialização. “O domínio se ampliou e os territórios se interpenetraram, tornando obsoleta a figura do antropólogo da arte, especialista que pesquisava objetos primitivos, que, por serem primitivos, eram exóticos.” Apenas com as pesquisas sobre o caráter simbólico dos objetos

é que foi possível reunir natureza e cultura novamente, não mais apartando objetos culturais de naturais. “Descobrir que esse é o procedimento da arte permite, enfim, reunir os olhares e aliar antropologia (e por extensão, as outras ciências) e arte.” A arte deixa de ser apenas ilustração, mas que “é possível rearticular essas duas formas de pensamento ao se perceber que qualquer arte é produto intelectual”. É a aliança entre o sensível e o inteligível. “Assim, num nível profundo, formas de pensamento científico e artístico podem coincidir.” A emoção estética proporcionada por qualquer arte advém de sua carga reflexiva e intelectual. Chegam ao ápice as viagens e explorações do homem que odiava ambas. “A partir desse momento, não haverá mais necessidade de se questionar as fronteiras entre diversas especialidades, pois as novas modalidades de pesquisa e produção de conhecimento terão diluído as antigas demarcações entre a ciência e outras formas de pensamento”, conclui a pesquisadora. ■

Carlos Haag

Bororo: diadema de plumário de penas de arara e outros materiais

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LINGÜÍSTICA

Rede de intrigas Lendas urbanas disseminadas pela internet levam pânico pela rede Gonçalo Junior ilustrações Hélio de Almeida

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a mais pura verdade, pode acreditar: no último fim de semana, um rapaz foi seduzido e embriagado por uma loira daquelas de cinema numa boate e acordou numa banheira de hotel cercado de gelo, com uma mensagem escrita no espelho com batom vermelho para que procure imediatamente um médico, pois seu rim fora retirado. Uma variável dessa história é a do menino – “filho da vizinha de um primo” – que desapareceu quando comprava lanches no McDonald’s de um famoso shopping da cidade e foi encontrado uma semana depois, pálido. Quando a mãe foi dar banho nele, viu um grande corte não cicatrizado e o levou ao pronto-socorro, onde descobriram que traficantes de órgãos tinham retirado um de seus rins. Que usuário regular de internet em todo o planeta nunca recebeu pelo menos uma mensagem assim, repassada por amigo ou conhecido com o relato de algum caso que lhe pareceu bizarro ou absurdo, capaz de causar calafrios? Provavelmente, nenhum. O objetivo desses incríveis porém possíveis relatos sobre ameaças e conspirações, quase sempre, é difundir o medo e o pânico. Uma das primeiras e mais famosas mensagens do gênero contava a história de uma pessoa que fora infectada em lugar público por alguém que lhe furou com uma seringa – cinema, ônibus, metrô etc. – e recebeu uma mensagem onde se lia: “Bem- vindo ao mundo do HIV”. Sobram ainda casos so-

bre alimentos e refrigerantes contaminados e armadilhas de bandidos para assaltar pessoas desatentas nos grandes centros urbanos. A paranóia que se seguiu aos atentados de 11 de setembro de 2001 em relação à política intervencionista americana fez surgir no Brasil a história de que nas escolas dos Estados Unidos as crianças estariam aprendendo nas aulas de geografia que a Amazônia era uma zona livre internacional ou que pertencia àquele país e não ao Brasil. Outra garante que um vídeo de uma empresa americana “vende” a idéia de que a Amazônia não fazia parte de uma nação (Brasil), mas do mundo, e que todos aqueles que tiverem receio de ver a floresta desaparecer deveriam se tornar sócios desse grupo para ter o direito de começar a “comprar” ou a tomar posse de suas terras. Todos esses relatos, jamais provados, são o que se convencionou chamar de lendas urbanas, inven-

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A circulação de tais relatos tem a ver com o “vácuo” deixado pela sensação de impotência, a falta de compreensão das causas

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cionices criadas há séculos, principalmente de forma oral, mas que parecem ter encontrado na internet um campo bastante fértil para multiplicação e difusão. São tantas que despertaram a atenção do pesquisador Carlos Renato Lopes há 6 anos e o levaram a defender na USP o doutorado “Lendas urbanas na internet: entre a ordem do discurso e o acontecimento enunciativo”. Ele conta que, muito antes de se debruçar sobre o assunto, percebia que algumas delas vinham e voltavam após um tempo, às vezes com pequenas mudanças ou acréscimo de detalhes. “Busquei saber mais sobre esse tipo de texto e vi que só havia material a respeito na própria internet. Resolvi, então, apresentar um projeto de doutorado sobre o tema propondo um estudo do ponto de vista do discurso, isto é, da prática social do uso da linguagem que é afetada pela história e pela ideologia.” Sua intenção era investigar como as histórias são construídas e circulam dentro de práticas discursivas. Absurdo – Durante 2 anos, Lopes recolheu e analisou nada menos que cerca de 12 mil mensagens espalhadas pela internet. Se tivesse de definir a lenda urbana como um gênero narrativo, com características próprias que as distinguissem de outros, ele apontaria basicamente, em primeiro lugar, o fato de se tratar de um relato inusitado ou absurdo (oral ou escrito) que envolve algum elemento do cotidiano da(s) comunidade(s) em que circula, proposto para ser acreditado, uma vez que é contado como ocorrido de verdade, não a quem conta, mas sempre a uma terceira pessoa com quem normalmente não se poderá checar as informações. “Em sua forma mais comum, a lenda apresenta algum alerta ou um apelo para que se esteja prevenido contra as possíveis ameaças, possíveis danos que tais elementos – aparentemente banais – do nosso cotidiano podem nos apresentar.” Seu aparecimento está ligado a medos, preocupações, ansiedades recorrentes que circulam em um determinado momento histórico. “De fato, acontecimentos marcantes como o 11 de Setembro, o advento da Aids, o surgimento de novas tecnologias, catástrofes naturais como o furacão Katrina ou

os tsunami na Ásia são todos catalisadores em torno dos quais surge toda a sorte de relatos não-comprovados e, em alguns casos, francamente fantasiosos.” É importante ressaltar, acrescenta ele, que a ampla e rápida circulação de tais relatos em momentos como esses se relaciona diretamente com o “vácuo” deixado pela sensação de impotência, a falta de compreensão das causas e fatores materiais que afetam esses acontecimentos, abrindo-se aí, dessa forma, um espaço para todo tipo de especulação e desinformação se proliferar. Em suas conclusões, Lopes observa que as lendas urbanas se confundem tanto com outras formas de narrativas ficcionais quanto “factuais” (como as do jornalismo dito popular) para tecer uma trama simbólica de leitura da realidade. Particularmente, acrescenta ele, medos, ansiedades e preocupações que marcam as sociedades urbanas contemporâneas. De acordo com o pesquisador, essas histórias são tecidas dentro de um processo discursivo dinâmico, não se atendo a textos fechados, mas, antes, inserindo-se em práticas multifacetadas, como os produtos midiáticos de cultura popular, as conversas de bar, os chats virtuais, entre outros contextos. Assim como tantos outros gêneros de discurso da cultura popular, as lendas da rede merecem uma consideração que vai além do simples elemento “anedótico”, na medida em que transcendem as insistentes dicotomias entre falso versus verdadeiro, fato versus mito, situando a todos, enquanto leitores, numa prática complexa de elaboração da experiência social. “Desse modo, apresentam-se como uma espécie de marca, traço ou sintoma que, por meio do discurso, apontam para o desejo de conjurar o acaso, de dar sentido à percepção vaga e generalizada de insegurança e falta de controle sobre os ‘riscos’ que enfrentamos nas sociedades contemporâneas.” O tempo de vida de uma lenda urbana na internet é variável. Para Lopes, uma história pode “morrer” rapidamente, nos casos de rumores cuja falsidade pode ser facilmente atestada, o que é facilitado pela própria imediatez da comunicação pela internet. Outras conseguem permanecer no imaginário popular por dezenas de anos. Um exem-

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plo clássico desse segundo caso seria o da lenda da loira do banheiro, que o pesquisador já tinha conhecimento desde quando freqüentava a escola primária no interior, no início da década de 1980. “Qual não foi minha surpresa ao saber que, mais de 20 anos depois, a mesma história ainda circulava (em São Paulo e aparentemente em todo o país) e assustava as crianças a ponto de terem medo de ir ao banheiro da escola sozinhas.” O limite de alcance da lenda urbana é o limite da crença, diz Lopes. Enquanto houver pessoas acreditando ou simplesmente atraídas pelo encanto dos relatos que, embora quase sempre inusitados demais para serem verdadeiros, parecem sobreviver em grande parte pelo apelo ficcional que carregam. Como diria Jan Harold Brunvand, um pioneiro e grande divulgador do estudo de lendas nos EUA e citado pelo pesquisador brasileiro, “nada se põe no caminho de uma história quando é boa e saborosa demais para ser verdade”. Dentro dessa questão, rassalta Lopes, seria ainda interessante mencionar como algumas das histórias chegam até os internautas tendo sido traduzidas ipsis litteris de outras línguas, especialmente do inglês e do francês, o que atesta seu alcance em nível global. Uma delas, cita ele, dá conta de que o pai da modelo Daniela Sarahyba morreu por ter bebido cerveja de uma latinha contaminada com fezes de rato. “Isso nada mais é do que uma adaptação local de um texto de idêntico teor publicado e circulado inicialmente na França há pelo menos 7 anos.

com a origem dificilmente suplanta o apelo ficcional que faz com que as histórias sejam retomadas, revisitadas, adaptadas e atualizadas sempre, e cada vez mais. “É como se o verdadeiro atrativo dessas lendas residisse no fato de serem consumidas como narrativas, tão ficcionais (e ao mesmo tão plausíveis) quanto quaisquer outras. Talvez isso explique o modo como elas se prestam a apropriações e releituras dentro de outras formas bem populares de cultura de massa, como o cinema, as séries de televisão, os quadrinhos.”

Tudo isso é feito dentro da máxima popular; quem conta um conto aumenta um ponto. Assim fazem-se desde correções gramaticais a acréscimos de elementos que lhes dêem mais veracidade. “Essa é talvez uma das características mais marcantes desse tipo de texto. Aliás, tentei mostrar isso ao longo de toda a tese: como as lendas, enquanto textos, são indissociáveis dessa prática social dinâmica dentro da qual elas são produzidas e transmitidas, é praticamente impossível que se restrinjam a uma única versão, a uma trama invariável.” ■

Detetives – Há pessoas, afirma o pesquisador, que se colocam como verdadeiros “detetives” das lendas. Seja para provar sua falsidade, seja para traçar seu histórico e (tentar) chegar à sua fonte primeira. “No grupo de discussão que eu analisei havia vários desses participantes. Nas enciclopédias e coletâneas que consultei há também esse esforço de se fazer um trabalho de pesquisa rigoroso, bem documentado sobre as ‘fontes primárias’ desses relatos.” O mais curioso, no entanto, em sua opinião, é que esse tipo de preocupação PESQUISA FAPESP 147

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RESENHA

Universidade e ditadura Nova edição de estudo reacende o drama da UnB 40 anos depois Michel Paty

livro de Roberto A. Salmeron em sua segunda edição, 8 anos desde a publicação da primeira, não perdeu nada do seu interesse. Sob o título A universidade interrompida: Brasília 1964-1965, o autor descreve e analisa a história, breve, mas significativa, da primeira Universidade de Brasília (UnB). As datas mencionadas no título são as das lutas dos protagonistas da UnB contra as ameaças e perseguições que esta sofreu por parte do governo militar até o fim desta primeira fase pioneira, a sua “queda”, que ocorreu em dezembro de 1965, e que justifica o título do livro. A primeira Universidade de Brasília era um projeto pioneiro, concebido em função dos problemas do desenvolvimento. A idéia inicial era do próprio Lúcio Costa, o urbanista que concebeu o plano orientador da cidade e inspirou sua realização (com a colaboração do arquiteto Oscar Niemeyer, autor dos grandes edifícios públicos). Lúcio Costa conseguiu convencer o então presidente da República, Juscelino Kubitschek, da necessidade de dar uma alma à cidade do futuro e pediu ajuda a Anísio Teixeira, o maior especialista em educação do país, lembra Salmeron, ressaltando com muita precisão a importância dos dois na delineação do projeto. Darcy Ribeiro foi rapidamente associado ao empreendimento e nomeado primeiro reitor (substituído em seguida por Anísio Teixeira, demitido em abril de 1964 pelo governo militar). A esse apelo a nomes prestigiosos cabe acrescentar os de dezenas de docentes vindos de vários lugares do Brasil e do exterior. As duas fases foram, em dois modos diferentes, heróicas: o que se pode dizer é que a luta e a queda foram à altura do espírito do projeto e da sua atuação, transcendendo o contraste entre a perspectiva de um ideal elevado a cumprir e

O A universidade interrompida: Brasília, 1964-1965 Roberto A. Salmeron Editora UnB 486 páginas R$ 40,00

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a ignorância e a mediocridade moral, intelectual e política das forças que finalmente acabaram com ele. Era o papel fundamental de uma universidade, na sua vocação profunda, que se tratava de defender, e este o foi por um ato coletivo de resistência madura e refletida contra uma situação e um rumo inaceitáveis que o poder ditatorial queria lhe impor, na negação dos valores fundamentais que correspondem à vocação de uma verdadeira universidade, no primeiro plano da qual a liberdade de pensar, tão fundamental no ensino e na pesquisa. Este livro nos oferece assim uma magnífica lição de história. O autor, Roberto Salmeron, físico de cunho internacional, tinha voltado do grande laboratório Cern em Genebra para participar da realização deste projeto novo para o Brasil, a UnB. Salmeron escreveu seu livro levado pela convicção da importância, pela memória coletiva, em primeiro lugar brasileira – mas a experiência é de alcance universal –, dos acontecimentos que ele viveu intensamente com outros, professores, estudantes, funcionários. Já no início o tom é dado com o resumo em poucas frases do acontecimento final, um evento bem fora do comum: ante uma série de repressões arbitrárias do poder militar, a última sendo a demissão de um grupo de professores, “os coordenadores [dos institutos] solidamente apoiados pela maioria do corpo docente e dos estudantes travaram intensa luta pela defesa da autonomia universitária, usando todos os argumentos racionais possíveis. (…) Mas o reitor [nomeado algumas semanas antes para servir ao governo] cumpria ordens, não os ouviu, e manteve as 16 expulsões. Como conseqüência, 223 professores demitiram-se e partiram da universidade que estavam construindo. Como os 16 que tinham sido expulsos constituíam 80% do corpo docente, a universidade daquele ímpeto inicial foi interrompida”. Todo o livro é, em seguida, a colocação em situação desse evento excepcional e a narrativa detalhada de como foi que se chegou, pela força das coisas, a uma tal grave decisão. Encontramos na narração desses acontecimentos a unidade de tempo (uma fatia delimitada e limitada de tempo), a unidade de lugar (Brasília, a universidade atuando até suas invasões pelos militares, objeto dos comentários e das decisões dos políticos) e a unidade de ação (um ano e meio de ditadura militar tentando impor seu controle sobre a universidade). Para que esses acontecimentos sejam inteligíveis, Salmeron tinha que situá-los na concatenação dos que os precederam, na ordem cultural, universitária, política. Evocamos brevemente as duas partes do conteúdo do livro. A primeira, intitulada “A construção”, comporta dez capítulos. Nestes são descritos a idéia e o projeto (na verdade, o sonho) de

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uma universidade que seja à altura das apostas e dos desafios de um país do Terceiro Mundo em via de desenvolvimento ante a cultura e o conhecimento, e do Terceiro Mundo em geral, e os episódios dos primeiros anos de sua realização. A UnB preparava, por sua própria existência através de estruturas inéditas no Brasil (em institutos, voltados para o conhecimento fundamental, e faculdades, mais para o trabalho prático, o ensino sendo pensado juntamente com a pesquisa), uma nova concepção da universidade (que, aliás, passaria posteriormente nas reformas das demais universidades do país). A UnB desde o seu início andava em quase todas as frentes da formação e da criação intelectual, e da aprendizagem desta última, das ciências exatas às ciências sociais e às artes, incluindo jornalismo, arquitetura, música, cinema com mestres prestigiosos (entre os quais Oscar Niemeyer, Claudio Santoro, Nelson Pereira dos Santos…). Enquanto em todo o Brasil da época existiam ainda poucas teses de mestrado e de doutorado (as universidades existentes eram de fundação recente, a primeira sendo a USP, fundada em 1934), na primeira UnB os cursos de pós-graduação foram lançados imediatamente, pois já havia estudantes bem treinados (seja os que tinham seguido seus professores, seja os que foram atraídos pelo projeto de vanguarda), o que permitiu de início um ensino do melhor nível e logo a realização de teses com os laboratórios montados e pesquisas. Solidariedade - A narrativa dá a ver a solidariedade, em um tal empreendimento, do corpo docente, dos coordenadores de institutos, e uma organização concebida e vivida em vista do interesse geral mais do que de ambições particulares, a direção sendo pensada segundo a colegialidade através de conselhos (até os diretores eram chamados de coordenadores), quando nas demais universidades brasileiras da época funcionava o sistema hierárquico e esterilizante das cátedras. Tudo isso sem esquecer as personalidades marcantes dos primeiros inspiradores (Anísio Teixeira, Lúcio Costa) e reitores (Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira) e de professores e coordenadores, que foram pioneiros e responderam à chamada para desenvolver uma concepção nova da universidade no país. A segunda parte (o ato propriamente dramático) ocupa o resto do livro, isto é, os 15 capítulos restantes, sob o título “As violências”, e vai das primeiras intervenções até as últimas que determinaram a decisão da recusa definitiva de quase todo o corpo dos professores em admitir as intrusões injustificadas do poder político na designação dos docentes. Repressões contra as universidades ocorreram também em outros lugares do país; esta, além do seu projeto próprio, nitidamente progressista, es-

tava localizada na vizinhança imediata da sede do poder político da ditadura, na capital federal, o que podia ser considerado por este como uma incitação exatamente oposta a sua ideologia. O título escolhido pelo autor para esta parte enfatiza precisamente o contraste entre o rumo que tinha tomado o projeto e as dificuldades que lhe foram impostas do exterior por um poder político totalmente estranho ao que representa a idéia de universidade, vendo a liberdade de pensar inerente a esta como isto que devia ser rejeitado por se opor à “ordem” e à “disciplina” (esta foi a palavra-chave das autoridades e até dos dois reitores interventores). Já resumimos o essencial dos acontecimentos, que só a leitura do livro pode render. “As violências” foram “a força ostensiva das tropas militares”, mas também a espionagem dentro da universidade mesma, as delações, as encarcerações arbitrárias de professores e de estudantes, as cassações de professores considerados como personae non gratae das autoridades político-militares e de seus inspiradores e partidários, o clima de insegurança, a imposição de reitores-interventores. As demissões compulsórias, assinadas pelos reitores-interventores, vinham, na verdade, como foi confirmado depois, da organização dos serviços secretos do Exército e do ministro da Educação, Suplicy de Larcerda, representante da linha mais dura da extrema direita no poder. É possível distinguir nesta segunda parte o papel particular dos quatro capítulos (16 a 19) que relatam a atividade de uma Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a Universidade de Brasília que, embora programada anteriormente aos acontecimentos terminais, veio a funcionar exatamente na última e mais grave fase da crise, a partir de outubro de 1965. Esta coincidência tem um efeito bem interessante na narração: os depoimentos dos principais protagonistas, tanto dos coordenadores e demais professores, como dos reitores-interventores, que se explicaram diante dos deputados, eleitos e não todos dependentes do poder e da sua linha dura. Assim sendo, esta Comissão aparece como uma espécie do coro da tragédia antiga. As perguntas dos deputados membros da Comissão, as respostas dos testemunhos citados a comparecer, colocam o cenário, apresentam os atores, os “caracteres”, designam o que está em jogo. Enfatizam, já antes de tudo se transformar em memória, as significações históricas dos acontecimentos e das ações narradas nos outros capítulos, em contraponto a estas. Michel Paty é diretor de Pesquisa Emérito do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS). Equipe REHSEIS, CNRS e Université Paris 7 Denis Diderot. PESQUISA FAPESP 147

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FICÇÃO

Ai de mim, Walter Benjamin!

Xico Sá

epois de uma paixão à primeira vista, de um namoro relâmpago, avexadíssimo, e de uma lua-de-mel mais às pressas ainda, gênero bate-e-volta, ali no balneário mais próximo, Copacabana, princesinha dos mares, ela afundou o juízo, determinadíssima, nos estudos. Tese de doutorado. Eu a procuro e nada. Eu chego perto, faço carinho, insinuo, abro um vinho... – Desculpa, amorrrr, mas estou em cima do prazo – ela diz com voz de filme macabro. Puro Alfred Hitchcock. – Só um recreiozinho de nada, meu bem – insisto, beijando no cangote, tentando as safadezas possíveis. – Minha bolsa está expirando, amorrr, já te falei – ela argumenta, na maior neura, tensa, tudo bem, acontece. – Eu te sustento – faço uma graça para ver se amoleço aquele coração acadêmico. – Eu te avisei da tese, disse como você teria que ser compreensível – ela relembra. – Disse e repeti como era importante para a minha carreira. Tese de doutorado. Sobre umas coisas complexas que não entendo direito, mas finjo que manjo só para agradá-la. Não, não sou analfa de tudo, até engano muito bem, sou capaz de discorrer horas, principalmente depois de uns vinhos, sobre livros e filmes nas mesas dos restaurantes com os amigos. Depois do São Google, então, meu santo protetor, dou um baile. Eles abrem a discussão, eu vou ao banheiro, acesso a milagrosa ferramenta no celular e haja sabedoria, frases feitas ditas com solenidade, citações, datas, picaretagens. Outro dia puxaram um papo sobre Brecht e mandei de primeira: “Pensa na escuridão e no grande frio...

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Que reinam nesse vale, onde soam lamentos”. Sim, da Ópera dos três vinténs, mandei na lata, para impressionar geral, para a minha deusa acadêmica ficar orgulhosa e, quem sabe, me recompensar, esquecer um pouco aquela tese sinistra. Recitei o Brecht em tom dramático, lindo, lindo, lindo, tão sério que até dom Ailton, nosso garçom predileto, virou estátua de sal por alguns segundos. Mais uma garrafa e eu estava discorrendo sobre a teologia negativa em Adorno... e não me pergunte que diabo entendo por isso. É que um advogado de júri, criminalista acostumado a defender ou acusar as piores almas, tem as suas manhas e representa como um grego. Chegamos em casa. Estávamos altos, no ponto, era a minha crença. Depois de alguma peleja... ela correu para o escritório e me sobrou um telecine de quinta. Maldito Walter Benjamin. Esse é o cara da tese. A afetividade narrativa não-sei-lá-o-quê em Walter Benjamin ou, dois pontos, e mais uma ladainha sem tamanho, dane-se! Aqueles títulos enormes de tese. Alemão desgraçado, miserável, afetividade só se for lá com as suas negas, aqui em casa mesmo tem sido um jejum maior do que o de Jesus na Quaresma. Eu não desistia, afinal de contas não casei com a doutora da Escola de Frankfurt, casei, com todas aquelas promessas, “na saúde e na doença”, “na riqueza e na pobreza”, com a futura mãe dos meus filhos. E para ter filhos, digamos, é preciso que haja pelo menos a conjunção carnal mínima, mesmo que seja sem nenhuma sombra de perversão ou de sacanagem, mesmo que seja estritamente dentro dos limites do catolicismo mais romano.

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FERNANDO DE ALMEIDA

Não, não sou o porco chauvinista, machista, que você pode julgar a essa altura, mas essa tese tem, como digo, me tirado das minhas pobres e limitadas faculdades mentais. É grave a crise. Nem em Lisístrata, a greve do sexo, de Aristófanes, peça que vimos juntos, na fase da conquista, há tanta perversidade. Juro que não sei mais o que fazer. Nem beijo na boca, daqueles beijos de recém-casados, tem ocorrido na alcova. A futura doutora está enlouquecendo, à vera, mal posso pegar na sua bunda, ela já salta, nervosa, passando-me pitos que me fazem brochar na hora: – Um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo que veio antes e depois. São pitos ditados por Walter Benjamin. Em uma brabeza alemã de que o afetivo W.B. jamais seria capaz. Ela citando o objeto de estudo, porém, é de um autoritarismo que nem o Adorno, coleguinha mais esquentado da Escola de Frankfurt, faria com tanta ênfase. Pior são os trajes com os quais ela estuda essa coisa séria. Queria que você visse os shortinhos. Não sou de ferro, velho Benjamin. Ela de bruços, eu balbuciando envergonhadamente um “GOSTOSA”... e ela lendo algo como um mantra benjaminiano: – Quanto mais esquecido de si mesmo está quem escuta, tanto mais fundo se grava nele a coisa escutada. Sim, amigo, tem hora que passa pela cabeça a vontade de ir atrás da loura mais vagabunda e burra da esquina.

Mas a perversão da futura doutora triunfa, não se sabe até quando, mas a tudo vence. Isso mesmo, você já acompanhou teses de perto, isso mesmo, é como se ela nem estivesse ali naquele ambiente. Amigo, trago as melhores sobremesas, tortas, ambrosias, chocolates que lhe eram afetivamente caros... Parece que nem tem paladar ou olfato. Amigo, é duro, mas a defesa está marcada. Defesa marcada, ou seja, a mulher está mais louca ainda. Agora nem dorme, agora nem bom dia ou pão na chapa. Está chegando a hora. A banca. Ave!, a banca! Ela tem pesadelos com os “gorilas marxistas”, como ela trata a banca nos pesadelos. “Aqueles neoliberais trogloditas”, ela tem pesadelo com os possíveis gorilas da ala dos marxistas arrependidos, que por acaso poderão compor a mesa. Ela tem pesadelos. Eu faço chás incríveis, lexotans da caatinga. Haja também comprimidos. Ela não dorme. Estamos há meses sem sexo. AMANHÃ É A DEFESA! Se houver amanhã, amigo Sidney Sheldon, será o dia mais feliz da minha vida! Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de Caballeros solitários rumo ao sol poente (romance); Catecismo de devoções, intimidades e pornografias; Modos de macho & modinhas de fêmea, entre outros. PESQUISA FAPESP 147

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Abertura de Processo Seletivo A Universidade de São Paulo estabeleceu um programa que possibilita a contratação de até 15 professores, com notoriedade em sua(s) área(s) de pesquisa, para desenvolver projetos de pesquisa e orientação de recursos humanos (mestres e doutores). A contratação dar-se-á na condição de Professor Colaborador, nos termos do artigo 86 do Estatuto da Universidade de São Paulo. 1 Os candidatos deverão ter nível de Professor Titular, conforme art. 80, parágrafo 1º, do Estatuto, e serão selecionados por Comissão designada pela Reitora.

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2 A seleção será feita com base: a) em projeto de pesquisa a ser desenvolvido no Departamento no qual o candidato pretende ser contratado, envolvendo atividades de pós-graduação, aprovado pelo Departamento e referendado pelo Diretor da Unidade, e contendo, necessariamente, proposta que promova o intercâmbio entre a USP e instituições estrangeiras, bem como contribuição inovadora para o Departamento/Unidade; b) memorial do candidato, que deverá indicar a sua condição de especialista, com méritos amplamente reconhecidos; c) na adequação do projeto apresentado pelo postulante e as metas a serem atingidas. 3 A remuneração será em nível de MS-6 em RDIDP, e pagamento de auxílio para custeio de despesas. O valor desse auxílio será fixado pela Reitoria. 4 As inscrições estarão abertas nas Diretorias das Unidades até o dia 30/05/2008 (exceto sábados, domingos e feriados), das 9h às 16h30, podendo ser feitas pessoalmente ou por intermédio de procurador legalmente constituído, sendo posteriormente encaminhadas ao Departamento de Recursos Humanos, na Seção Técnica de Recrutamento e Seleção (Rua do Anfiteatro, 181, Favo 5, Colméias), até 16/06/2008. Serão aceitas inscrições para seleção em todos os Departamentos, e cada Departamento poderá apresentar somente uma inscrição. A relação de documentos necessários para a inscrição pode ser acessada no site www.usp.br/drh, através do link Vagas / Docentes / Processo Seletivo.

Informações complementares poderão ser obtidas na Reitoria da USP, através dos telefones (11) 3091-3359 ou (11) 3091-3571.

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