Pesquisa FAPESP Julho de 2012
Julho de 2012 www.revistapesquisa.fapesp.br
depressão
Crises podem acelerar envelhecimento partenogênese
Fêmeas de lagartos se reproduzem sem machos Entrevista
Eduardo Moacyr Krieger
Os executivos n.197
do conhecimento Grandes universidades criam novos mecanismos para transferir capital científico ao mercado e à sociedade
fotolab
Nanotecnologia e arte O que parece o movimento de tiras de tecido entrelaçadas é na verdade um amontoado de nanopartículas de óxido de ferro. Trata-se de um semicondutor do tipo n, utilizado na captação de fótons (partículas de luz) para transformação em energia elétrica. A foto da nanopartícula é feita por um microscópio eletrônico de altíssima resolução e depois colorida por pesquisadores ou técnicos. “O hábito de pintar as fotos de formações nanométricas deu origem à nanoarte, que hoje tem espaço garantido em exposições de galerias no mundo todo”, diz Elson Longo, coordenador do Laboratório Interdisciplinar de Eletroquímica e Cerâmica da Universidade Estadual Paulista, campus de Araraquara. A foto, batizada de Spirals, participou de uma exposição em Nova York em 2011.
Se você tiver uma imagem relacionada a pesquisa, envie para imagempesquisa@fapesp.br, com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.
Foto captada e colorida por Rorivaldo Camargo e enviada por Elson Longo, ambos do Liec/Unesp
PESQUISA FAPESP 197 | 3
julho 2012
n.
197
20 CAPA Escritórios de transferência de tecnologia de grandes universidades ampliam seu papel e buscam cada vez mais parcerias com empresas
20 Política científica e tecnológica 36 Desenvolvimento sustentável
Conferência Rio+20 produz relatório pouco ambicioso, mas avança em compromissos voluntários
entrevista 28 Eduardo Moacyr Krieger Fisiologista criou no InCor o mais importante grupo de pesquisa, multidisciplinar e integrado, em estudo da pressão arterial
3 Fotolab 6 Cartas 9 Editorial 10 Dados e projetos 11 Boas práticas 12 On-line 13 Wiki 14 Estratégias 16 Tecnociência 87 Resenhas 88 Memória 90 Arte 92 Conto 94 Classificados 4 | julho DE 2012
Uso de algas calcárias como adubo em lavouras de cana pode elevar a produtividade em até 50%
66 Indústria alimentícia
ciÊncia 40 Doenças mentais
68 Pesquisa empresarial
Crises de depressão e de euforia provocam desequilíbrios químicos que podem danificar as células e acelerar o envelhecimento do corpo
50 Acasalamento
Entre lagartos, nem sempre o macho é necessário para a reprodução
54 Distrofia muscular
seçÕes
62 Mineração oceânica
Biofilmes produzidos com mandioca, banana e quinoa protegem e garantem longa vida a vários alimentos
Ilustração da capa Colagem com imagens do Google Patents crédito Daniel Bueno
tecnologia
Uso combinado de células-tronco e fator de crescimento reduz sintomas da doença em camundongos
56 Serra da Borborema Teoria alternativa propõe que planalto nordestino se formou há cerca de 30 milhões de anos
59 Redes complexas
Padrões descobertos em uma rede de milhares de açudes no Ceará podem ajudar a enfrentar secas e enchentes
Braskem amplia mercados com polímero feito a partir de etanol e investe em rotas biotecnológicas
humanidades 72 Desenvolvimento
Estudo mapeia o processo de desconcentração industrial no estado de São Paulo
78 Relações exteriores
Ideia do Brasil no Conselho de Segurança, vista como “capricho” por analistas, partiu dos Estados Unidos
82 História da ciência
Músico, pai de Galileu influenciou filho na busca pela verdade experimental
78
agricultura
biodiversidade
Bioquímica
50 biotecnologia
ciências atmosféricas
diplomacia
40
economia
59
engenharia
evolução
física
genética
geografia
geologia
52
56 história
62
inovação
medicina
música
Neurociência
oceanografia
Psiquiatria
química
72
PESQUISA FAPESP 197 | 5
6 | julho DE 2012
fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo
cartas
cartas@fapesp.br
Celso Lafer Presidente Eduardo Moacyr Krieger vice-Presidente
Empresa que apoia a ciência brasileira
Conselho Superior alejandro szanto de toledo, Celso Lafer, Eduardo Moacyr Krieger, Horácio Lafer Piva, Herman Jacobus Cornelis Voorwald, joão grandino rodas, Maria José Soares Mendes Giannini, José de Souza Martins, José Tadeu Jorge, Luiz Gonzaga Belluzzo, Suely Vilela Sampaio, Yoshiaki Nakano
Revista
A edição de maio (nº 195) está simplesmente magnífica. Ao abrir o envelope deparei-me com a impressionante foto do Alpha Crucis, digna de um pôster, e já com grande curiosidade, uma rápida folheada fez antever mais uma vencedora edição. A revista é lisa, limpa, fácil e explicativa; não tem degraus nem tropeços. As reportagens mais complexas ficam de fácil alcance, o que causa prazer em ler, discutir e apreciar seus artigos. Digna em se mencionar é a matéria sobre a saga da vinda do navio Alpha Crucis. A equipe USP-FAPESP merece aplausos pela demonstração de garra, de raça para com os percalços e dificuldades advindas. A depender deles, que não só venha o Alpha Delphini como outros Alphas também. Antes que os afogue em elogios, vejam só que interessante: li a revista e a emprestei ao meu filho mais velho (engenheiro). Depois emprestei para o porteiro do meu prédio (técnico em mecatrônica), uma estudante de turismo deu uma espiadela mais demorada na revista e em seguida ela foi emprestada ao meu filho caçula (engenheiro) para leitura e considerações. Sabem o que parece? Aqueles antigos gibis que passavam de mão em mão... Concluo que a ciência é uma doença altamente contagiosa, que se adquire para toda a vida.
Conselho Técnico-Administrativo José Arana Varela Diretor presidente Carlos Henrique de Brito Cruz Diretor Científico Joaquim J. de Camargo Engler Diretor Administrativo
issn 1519-8774
Conselho editorial Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Marcelo Leite, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira comitê científico Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Cylon Gonçalves da Silva, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, João Furtado, Joaquim J. de Camargo Engler, José Arana Varela, José Roberto Parra, Luís Augusto Barbosa Cortez, Luis Fernandez Lopez, Marie-Anne Van Sluys, Mário José Abdalla Saad, Paula Montero, Sérgio Queiroz, Wagner do Amaral, Walter Colli
Coordenador científico Luiz Henrique Lopes dos Santos Diretora de redação Mariluce Moura editor chefe Neldson Marcolin Editores executivos Carlos Haag (Humanidades), Fabrício Marques (Política), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Maria Guimarães (Edição on-line), Ricardo Zorzetto (Ciência) editores especiais Carlos Fioravanti, Marcos Pivetta Editores assistentes Dinorah Ereno, Isis Nóbile Diniz (Edição on-line) revisão Márcio Guimarães de Araújo, Margô Negro editora de arte Laura Daviña ARTE Ana Paula Campos, Maria Cecilia Felli fotógrafos Eduardo Cesar, Léo Ramos Colaboradores Ana Lima, André Cavalheiro, André Serradas (Banco de imagens), Claudia Izique, Daniel Bueno, Daniel das Neves, Drüm, Eduardo Sancinetti, Evanildo da Silveira, Gabriel Bitar, Gustavo Fioratti, Igor Zolnerkevic, Luana Geiger, Paulo Ravieri Barreto Dourado, Sérgio Kalili, Victor Gentilli, Yuri Vasconcelos
Elias Felippe Arbex Netto Piracicaba, SP
Comissão da Verdade
Parabenizo a Pesquisa FAPESP pela reportagem “O parto da memória” (edição 196), sobre as políticas de memória no Brasil neste importante momento no qual se iniciam os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade. Aproveito para acrescentar um dado notável e que ficou ausente do texto: a condenação do Estado brasileiro na Corte de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) ocorreu devido ao não cumprimento de sentença da Justiça brasileira, julgada em última instância em 2006, exigindo do Estado a localização dos corpos desaparecidos e a responsabilização pelos fatos. Tal processo foi promovido por 22 famílias de desaparecidos na guerrilha do Araguaia e teve início em 1982. Este fato realça dois aspectos:
Para anunciar (11) 3087-4212 mpiliadis@fapesp.br Para assinar (11) 3038-1434 fapesp@acsolucoes.com.br
MAIO DE 2012
PESQUISA FAPESP JUNHO DE 2012
Para falar com a redação (11) 3087-4210 cartas@fapesp.br
PESQUISA FAPESP MAIO DE 2012
É proibida a reprodução total ou parcial de textos e fotos sem prévia autorização
WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR
CLIMA
Tiragem 45.500 exemplares IMPRESSão Plural Indústria Gráfica distribuição Dinap
Natura estimula conexão entre áreas para agregar conhecimento a produtos
ESTRELA GÊMEA
Astro a 200 anos-luz da Terra é cópia quase perfeita do Sol
COMISSÃO RONDON
Estudo revela importância da ciência na expedição
EXTERMÍNIO DE SAPOS
Tráfico de animais espalha fungo letal entre anfíbios
ENTREVISTA WALTER NEVES
PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, n 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP o
Como o homem chegou às Américas
ENTREVISTA LUIZ TRAVASSOS
Um salto no mar
A organização dos macacos-prego
As vitórias do “Doutor calouro”
FAPESP Rua Pio XI, n 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP
n.195
Alpha Crucis, o novo navio oceanográfico de São Paulo, dá impulso à pesquisa sobre clima, biodiversidade e pré-sal
n.196
o
Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia Governo do Estado de São Paulo
WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR
Por que só agora o Brasil investiga o destino dos desaparecidos políticos
EMPRESAS
GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP
JUNHO DE 2012
COMISSÃO DA VERDADE
Tempestades se tornam mais fortes e frequentes em São Paulo
Nova classificação amplia número de espécies de primatas das Américas Central e do Sul, hábeis no uso de ferramentas
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as famílias, desde o fim da ditadura, têm buscado por justiça; por outro lado, o Estado de direito, até o momento, optou por bloquear esta possibilidade. Universidade Federal de São Paulo, Unifesp
Público, do qual sou aposentado. Anos atrás os saudosos professores Oscar Sala e Crodowaldo Pavan, num evento na Unicamp, me disseram que fora eu o único bolsista da FAPESP oriundo da área jurídica.
São Paulo, SP
Renato Guimarães Jr.
Edson Teles
Comitê de Ética na Pesquisa Médica, Unicamp
FAPESP 50 anos
Os autores da edição especial “50 anos” mostraram a criatividade e o potencial do DNA da ciência brasileira quando devidamente suportados pelo poder público. Parabéns. Humberto Torloni Hospital A.C. Camargo São Paulo, SP
Nada mais apropriado do que comemorar os 50 anos da FAPESP com um número especial da revista. E que revista. A ideia de identificar um grupo de pesquisas significativas e mostrá-las diacronicamente foi bem pensada e melhor realizada. Queira, por favor, elogiar o grupo de intelectuais e jornalistas que deram conta da empreitada. Sei que, como antigo parecerista da FAPESP, sou suspeito, mas como diretor editorial da Editora Contexto (que, por sinal, comemora 25 anos) creio poder avaliar adequadamente o belo trabalho editorial feito. Jaime Pinsky São Paulo, SP
Ao cumprimentar a FAPESP por seus 50 anos, devo agradecer a bolsa que me foi concedida para eu poder obter meu Master of Comparative Law, na The George Washington University, nos Estados Unidos, onde, pela primeira vez, tomei conhecimento de dois temas, então inexistentes no Brasil: aviation law e environmental law. Foi graças a essa oportunidade que, anos depois, pude representar as famílias das vítimas mortas na tragédia do Boeing 707 da Varig, em Abidjan, na África, e na do Fokker 100, da TAM, no aeroporto de Congonhas, em São Paulo, 99 mortes, ambas condicionadas ao forum non conveniens, da judicial cause norte-americana. Quanto ao meio ambiente, pude colaborar na elaboração da Constituição e, depois, em numerosas ações civis públicas, para nada dizer do pouco que fiz às garantias constitucionais ao Ministério 8 | julho DE 2012
Campinas, SP
Quero parabenizar Pesquisa FAPESP pelo excelente conteúdo da edição publicada em comemoração aos 50 anos da Fundação. A contribuição da Fapesp à ciência e tecnologia brasileira nesses 50 anos é realmente fabulosa. Fico muito orgulhoso de ter participado um pouco dessa história, nos idos de 1983/1984, quando fui bolsista de iniciação científica da instituição. Apenas a título de contribuição, a plataforma P-37 está posicionada no campo de Marlim, e não Marlim Sul, conforme citado na reportagem “Desafios em águas profundas”, da edição especial. Sebastião Benedito Machado Perea Martins Macaé, RJ
Gostaria de parabenizar a FAPESP pelos seus 50 anos, uma Fundação que nos honra, nos enche de orgulho, que é um exemplo de dignidade e eficiência, que tanto tem ajudado a ciência brasileira e não só em São Paulo. É um exemplo raro em nosso país. Por meio de seus dirigentes e funcionários tem dado exemplo de dignidade, apoio aos pesquisadores, é inovadora e empreende tarefas fantásticas. Enfim, que pena que não tenhamos uma centena de FAPESPs em nosso país. Em particular, desejaria felicitar a jornalista e editora Mariluce Moura e seu staff pela maravilhosa revista que temos o prazer e a honra de receber, sempre muito bem escrita e ilustrada. Permite também aos pesquisadores de diferentes áreas interagirem entre si.
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Antonio Barros de Ulhôa Cintra, reitor da Universidade de São Paulo (USP); nº 5, Paulo Vanzolini; nº 6, Zeferino Vaz, que viria a ser o primeiro reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Na foto “Uma imagem da história”, o caminhão é um Mercedes-Benz, e não um fenemê (FNM, sigla de Fábrica Nacional de Motores).
Lycia Maria Moreira Nordemann São José dos Campos, SP
Correções
Na fotografia da capa de edição especial Pesquisa FAPESP 50 Anos, alguns dos retratados foram identificados erroneamente. O correto é: nº 1, governador Carvalho Pinto; nº 2, Hélio Bicudo; nº 3, José Elias de Paiva Neto, diretor do Instituto Agronômico (IAC), de Campinas; nº 4,
Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar - CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.
carta da editora
Vias estimulantes para reflexão Mariluce Moura Diretora de Redação
P
esquisa FAPESP oferece aos leitores nesta edição um material de inequívoca consistência para o debate atualíssimo – e vital para o Brasil – a respeito de como se transforma com eficácia conhecimento científico em produtos de alto valor agregado e em outros bens socialmente úteis. Em termos estritos, a reportagem de capa elaborada por nosso editor de política científica e tecnológica, Fabrício Marques, trata a partir da página 20 do papel dos escritórios de transferência de tecnologia de grandes universidades. Diga-se logo que, neste momento, de Harvard às universidades estaduais paulistas, esse papel vem sendo repensado, reformado e ampliado em função da necessidade de intensificar e tornar mais e mais eficiente a articulação dos centros produtores de conhecimento com os produtores de bens e serviços. A sociedade do conhecimento desdobra-se para encurtar e aplainar o caminho entre uns e outros. Conforme diz Fabrício, depois de relatar dados resultantes da reforma recente por que passou o Escritório de Desenvolvimento Tecnológico (OTD) de Harvard, o movimento feito por essa universidade de classe mundial é exemplar do fenômeno que se esboça em outros escritórios semelhantes mundo afora. Reproduzo suas palavras: “Além das tarefas rotineiras, que consistem em identificar descobertas com potencial econômico e protegê-las por meio de patentes, esses escritórios abraçam várias outras atividades, como fomentar colaborações de pesquisa de longo prazo entre empresas e laboratórios, auxiliar na criação de empresas baseadas em tecnologias nascentes, arregimentar investidores privados para financiá-las, oferecer a consultoria de pesquisadores para a indústria e estimular o empreendedorismo já entre os estudantes de graduação”. São vários os escritórios cujas práticas nesse sentido estão esmiuçadas na reportagem. E, para além da relevância do tema que ela traz e das reflexões que seja capaz de suscitar quanto à necessidade de se multiplicar no país experiências parecidas com as desses escritórios,
a reportagem tem em seu próprio texto, orgânico, fluente e vigoroso, uma razão a mais para ser lida. Outra reportagem muito diferente atravessou todo o mês de junho como objeto preferencial da capa da revista e só perdeu a posição, na última hora, pela força que a matéria dos escritórios de transferência de tecnologia revelou. Refiro-me aqui à reportagem do editor de ciência, Ricardo Zorzetto, sobre uma nova e audaciosa proposição teórica no campo neurológico/psiquiátrico, elaborada por um pesquisador gaúcho, bem plantado sobre o conhecimento desenvolvido nos últimos anos por colegas de outras partes do mundo a respeito da depressão e do transtorno bipolar. A hipótese em questão vê as crises de depressão e de mania típicas dessas doenças como responsáveis, a partir de um determinado número de ocorrências, por uma ação tóxica sobre o organismo como um todo, para além dos danos já conhecidos que produzem sobre a capacidade de raciocínio, planejamento e aprendizagem, e sobre o humor dos que as sofrem. É uma abordagem cientificamente bem embasada, que traz, com novas evidências, a psique para o corpo, a doença mental para seu substrato biológico e para seus efeitos sobre o corpo inteiro, devolvendo unidade e organicidade ao que tão longamente o conhecimento tentou separar. Vale a pena conferir a partir da página 40. Por fim, destaco nesta edição a entrevista do professor Eduardo Moacyr Krieger (página 28) sobre sua trajetória e seus trabalhos científicos seminais no campo da hipertensão, seu papel na organização de um dos grupos de pesquisa mais importantes nesta área e sua incansável militância em instituições de cientistas como a Academia Brasileira de Ciências, destinada a dar relevância à comunidade científica brasileira nos foros internacionais. Acrescente-se que o professor Krieger, 84 anos, é dono de uma conversa extraordinariamente estimulante para quem gosta de ouvir sobre caminhadas singulares pela construção do conhecimento e pela vida. Boa leitura a todos! PESQUISA FAPESP 197 | 9
Dados e projetos Temáticos e Jovem Pesquisador recentes Projetos contratados entre maio e junho de 2012
temáticos x Avaliação da terapia com células-tronco hematopoiéticas na doença renal crônica em cães Pesquisadora responsável: Lucia da Conceição Andrade Instituição: Faculdade de Medicina da USP Processo: 2010/19012-0 Vigência: 01/06/2012 a 31/05/2017
x Dinâmica em baixas dimensões Pesquisador responsável: André Salles de Carvalho Instituição: Instituto de Matemática e Estatística da USP Processo: 2011/16265-8 Vigência: 01/04/2012 a 31/03/2017 x O papel da estimação de custos de capital na otimização da estrutura de capital das empresas no Brasil Pesquisador responsável: Antonio Zoratto Sanvicente Instituição: Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) Processo: 2011/23090-0 Vigência: 01/06/2012 a 31/05/2017 x Amelioration of the autonomic imbalances of old age whit exercise exploring the molecular and physiological mechanisms (FAPESP-RCUK) Pesquisadora responsável: Lisete Compagno Michelini Instituição: Instituto de Ciências Biomédicas da USP Processo: 2011/51410-9 Vigência: 01/05/2012 a 30/04/2016
x Estudo de propriedades do condensado de Bose-Einstein: átomos dipolares e condensado de férmions Pesquisador responsável: Sadhan Kumar Adhikari Instituição: Instituto de Física Teórica da Unesp Processo: 2012/00451-0 Vigência: 01/05/2012 a 30/04/2017 x Wittgenstein em transição Pesquisador responsável: João Vergilio Gallerani Cuter Instituição: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP Processo: 2012/50005-6 Vigência: 01/06/2012 a 31/05/2015 Jovem Pesquisador x Síntese e degradação de espécies moleculares pré-bióticas em atmosferas planetárias, cometas e gelos interestelares simulados Pesquisador responsável: Sérgio Pilling Guapyassu de Oliveira Instituição: Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento da Universidade do Vale do Paraíba (Univap) Processo: 2009/18304-0 Vigência: 01/05/2012 a 30/04/2016
x Análise comparativa do transcritoma de transportadores de membrana da raiz de arroz associado a fungo micorrízico arbuscular e em resposta a arsênio Pesquisadora responsável: Sara Adrian Lopez de Andrade Instituição: Instituto de Biologia da Unicamp
Processo: 2011/18097-5 Vigência: 01/07/2012 a 30/06/2015
Processo: 2011/23874-0 Vigência: 01/06/2012 a 31/05/2014
x Biorrefinaria na indústria agroalimentar: reaproveitamento de resíduos para produção de novos compostos químicos e bio-hidrogênio Pesquisadora responsável: Tânia Forster Carneiro Instituição: Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp Processo: 2011/19817-1 Vigência: 01/06/2012 a 31/05/2016
x Caracterização e controle de mecanismos de internalização celular de nanopartículas Pesquisadora responsável: Dayane Batista Tada Instituição: Instituto de Ciência e Tecnologia da Unifesp Processo: 2011/23895-8 Vigência: 01/05/2012 a 30/04/2015
x Estudo de filmes de carbono-tipo diamante contendo nanopartículas incorporadas para aplicações biomédicas Pesquisadora responsável: Fernanda Roberta Marciano Instituição: Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento da Univap Processo: 2011/20345-7 Vigência: 01/06/2012 a 31/05/2016 x Classe social e valor na teoria social contemporânea Pesquisador responsável: Henrique José Domiciano Amorim Instituição: Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Unifesp Processo: 2011/23506-1 Vigência: 01/05/2012 a 30/04/2016 x Estresse oxidativo e plasticidade sináptica no córtex visual primário Pesquisador responsável: Roberto de Pasquale Instituição: Instituto de Ciências Biomédicas da USP
x Implementação de um laboratório para o estudo de funções cognitivas, por meio de avaliação neuropsicológica clássica e de técnicas de neuroimagem estrutural e funcional, em condições normais e patológicas (epilepsias refratárias) Pesquisadora responsável: Andrea Alessio Vieira Alves Instituição: Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp Processo: 2011/50043-2 Vigência: 01/05/2012 a 30/04/2016 x Células-tronco mesenquimais humanas do aparelho reprodutor feminino como vetores na terapia celular: avaliação da migração e do efeito de células expressando a il-12 murina no modelo de melanoma e carcinoma Pesquisadora responsável: Tatiana Jazedje da Costa Silva Instituição: Escola Paulista de Medicina da Unifesp Processo: 2011/51648-5 Vigência: 01/06/2012 a 31/05/2014
Estimativas de visibilidade Impacto relativo dos trabalhos produzidos por pesquisadores de alguns países em áreas do conhecimento selecionadas país
agricultura Impacto: 3,05
Medicina Impacto: 5,78
física Impacto: 4,46
química Impacto: 5,47
engenharia Impacto: 2,34
Biologia molecular e genética Impacto: 10,97
Impacto Argentina
2,78
6,95
4,09
3,87
2,32
6,13
Brasil
1,38
3,77
3,90
3,71
2,19
4,48 8,46
Chile
2,55
4,31
4,34
3,12
2,44
México
2,37
5,17
4,52
3,34
1,72
6,12
Espanha
3,91
6,56
6,12
6,66
2,65
10,71
Fonte: Dados do Thomson Reuters National Science Indicators (NSI, v. 2010) referentes a 2006-2010. Observação: As cifras mostram o impacto dos trabalhos na área = número de vezes em que os trabalhos da área foram citados/número de trabalhos na área; o impacto dos trabalhos dos países na mesma área.
10 | julho DE 2012
Boas práticas A Romênia vive uma sucessão de episódios de má conduta científica que já atinge o coração do governo. De acordo com a revista Nature, que investigou os casos, uma explicação para a atual situação é o fato de que membros da elite romena pós-comunista, incluindo políticos, têm buscado credenciais acadêmicas avidamente e muitas universidades se tornaram uma “fábrica de doutores”, menosprezando a qualidade e a ética da produção acadêmica. O Conselho de Ética de Pesquisa romeno julga, no momento, o caso de Ioan Mang, ex-ministro da Ciência e Educação. No mês passado, Mang, especialista em computação, renunciou ao cargo após denúncia de plágio em pelo menos oito artigos. O evento mais ruidoso até agora envolve o primeiro-ministro Victor Ponta, julgado sob a acusação de ter copiado grandes trechos de outros trabalhos acadêmicos, sem citar as fontes, em sua tese de doutorado, defendida em 2003 na área de direito. Se confirmadas, as acusações podem aumentar a pressão para sua renúncia. A Nature publicou uma reportagem sobre esse episódio em 18 de junho, após ter tido acesso a documentos indicando que mais da metade da tese de Ponta, de 432 páginas, consistia de textos acadêmicos já publicados, mas não identificados. A tese foi republicada como livro em 2004 e usada como base para outro livro, de 2010, sobre leis humanitárias internacionais. Trechos substanciais das três publicações parecem ser bastante similares aos de artigos publicados em romeno pelos especialistas em direito Dumitru Diaconu e Vasile Creţu e em inglês por Ion Diaconu.
“As evidências de plágio são avassaladoras”, disse à revista Marius Andruh, químico da Universidade de Bucareste e presidente do conselho romeno para reconhecimento de diplomas universitários. No dia 21 de junho, a Nature publicou uma carta da assessoria de imprensa do governo romeno negando as acusações de plágio. Nele, Victor Ponta se oferece para submeter seu trabalho a “qualquer tipo de teste”. Segundo o diário britânico The Guardian (19 de junho), o primeiro-ministro acusou o presidente romeno, Traian Basescu, um rival político, de orquestrar o ataque a ele. Ponta fez seu doutorado na Universidade de Bucareste enquanto era secretário de Estado
daniel bueno
Primeiro-ministro romeno acusado de plágio
do governo do primeiro-ministro Adrian Nastase, que foi também seu orientador. Ele se tornou o primeiro-ministro em maio deste ano depois de seu antecessor, Emil Boc, ter renunciado.
Intimados, cientistas entregam e-mails à BP O processo pelo qual os cientistas chegam a suas conclusões, testam e refinam seus métodos de trabalho em busca da maior precisão possível pode também se voltar contra eles – sob acusação de má conduta – quando usados em batalhas jurídicas. Christopher Reddy e Richard Camilli, do Instituto Oceanográfico Woods Hole (EUA), que ajudaram a estimar a dimensão do derramamento de petróleo no golfo do México em 2010, foram forçados a entregar mais de 3 mil e-mails pessoais à Justiça. O governo federal processou a BP, operadora da plataforma que explodiu, que, para se defender, requisitou e recebeu mais de 50 mil páginas de documentos
e mensagens dos pesquisadores detalhando como fizeram a estimativa do vazamento. A empresa alega que os documentos são necessários para se defender judicialmente. Os pesquisadores dizem que essa decisão pode prejudicar futuras deliberações científicas (The Chronicle of Higher Education, 5 de junho). Ao jornal The Boston Globe, eles afirmaram que a empresa encontraria mensagens em que eles próprios questionavam seus métodos, chegavam a becos sem saída ou modificavam suas perspectivas. Segundo os dois cientistas, esses movimentos não deveriam servir para pôr em dúvida suas conclusões, pois fazem parte do trabalho científico. PESQUISA FAPESP 197 | 11
on-line
@Lígia Paganini Obrigada, @PesquisaFapesp, pelo lindo material sobre a Rio+20 que vou usar
Rádio Comissão da Verdade e processos de anistia na América do Sul explicados por Glenda Mezarobba
plenamente na minha aula de geo.
crystal mcmichael / fit
Nas redes
www . re v istapes q uisa . fapesp . br
Assim fica fácil preparar aula! @felipemiguel Quero tornar público o meu amor pela @PesquisaFapesp, onde eu posso ler artigos sobre bactérias que comiam pterossauros. Obrigado. @Leiriane Alves Os artigos publicados na @PesquisaFapesp são extremamente ótimos. Amo receber minhas revistas e ler diariamente
Rio Amazonas próximo a Tefé, uma das áreas estudadas
algum artigo on-line.
Exclusivo no site
Linauria Do Carmo_ Hoje recebi a revista e digo que ela está perfeita, estou encantada com as matérias!!!!
} Um grupo de pesquisadores observou pela primeira vez um lago de metano líquido com cerca de 2.400 km2 na região próxima ao equador de Titã, a maior lua de Saturno. A descoberta publicada na Nature indica que o trópico árido do satélite pode ter ainda mais lagos e também sugere que eles são formados por alguma fonte subterrânea de metano, pois a região dos trópicos aparenta ser mais seca que o resto da lua. Os lagos são propícios para as moléculas orgânicas se chocarem e, assim, formarem estruturas mais complexas.
adorei tudoooo, inclusive a matéria sobre a Xylella fastidiosa!!!!!!, percebo que o nosso país começa a mudar a realidade da produção científica no âmbito internacional e nacional para nosso orgulho e admiração!!!! muitos e muitos sucessos à revista!!!! grande abraço. (Especial 50 anos) @Ana Paula Morales Chocada com dados do Núcleo de Estudos da Violência da USP em matéria da @PesquisaFapesp deste mês. (Especial 50 anos)
Vídeo do mês Pontas de flecha e de lança pré-históricas podem pertencer a cultura diferente da habitual tradição Umbu http://www.youtube.com/user/PesquisaFAPESP
12 | julho DE 2012
Assista ao vídeo:
Para ler o código ao lado faça o download do leitor de QR CODE no seu smartphonE
} Antes da chegada dos europeus, a Amazônia já era bem povoada. Sobretudo na porção leste, ao contrário da ocupação difusa imaginada antes. A novidade vem da análise de carvão no solo nas regiões central e oeste da Amazônia, por pesquisadores do Instituto de Tecnologia da Flórida (FIT) com participação de brasileiros. O carvão indicador de queimadas revelou a presença de humanos até 4 mil anos atrás, mas eram populações esparsas e pequenas, que provavelmente não praticavam agricultura, segundo artigo publicado na Science.
WiKi o que é, o que é? Norte geográfico e norte magnético
Pergunte aos pesquisadores Como funcionam os hidratantes corporais? Jogar água na pele também ajuda a hidratar? Claudia Chow [via e-mail] Maria Vitória Lopes Badra Bentley Universidade de São Paulo (USP) Os hidratantes criam
da camada córnea
um "filme" sobre a
(a mais externa da
pele evitando a perda
epiderme). Com isso,
de água da epiderme
evitam a descamação
(camada externa)
e a desidratação.
graças aos componentes
Outros hidratantes
bloqueadores como
podem conter
substâncias gordurosas
nanocompostos. Sua
ou silicone (oil free). Outra
eficácia é maior, pois
ação é umidificadora.
as substâncias ativas
Substâncias que atraem
nanoencapsuladas
a água como glicerina e
ficam mais estáveis,
sorbitol mantêm a pele
interagem mais com
hidratada por mais
a pele e são liberadas
tempo. Esse efeito pode
gradativamente.
Ilustracões daniel bueno
ser reforçado quando
A água na pele
a fórmula contém
hidrata por segundos,
substâncias do fator de
até secar. A exceção
hidratação natural como
é a água termal. Esta
a ureia e o lactato de
tem maior concentração
amônio, que substituem
de minerais (íons como
ou reforçam esses
zinco e silicatos) do
componentes em falta.
que a água comum.
Já os cremes emolientes,
Esses íons participam
além das duas ações,
da manutenção do
têm compostos oleosos
conteúdo de água
e lipídicos não gordurosos
dentro e fora das células
que aumentam a
da pele, mantendo
adesão entre as células
a hidratação.
Mande sua pergunta para o e-mail wikirevistapesquisa@fapesp.br, pelo facebook ou pelo twitter @PesquisaFapesp
Por muito tempo se pensou que o norte geográfico e o norte magnético eram um só. Em 1831, o explorador inglês James Ross verificou que não eram iguais ao chegar ao Ártico e ver que a bússola apontava para o chão, o norte magnético (as linhas de força eram verticais e a única posição em que a agulha aquietava era na vertical). O norte geográfico resulta do movimento de rotação da Terra, enquanto o norte magnético é o resultado do campo magnético gerado pelo movimento do metal fundido do núcleo externo em torno do núcleo metálico sólido da Terra. Os dois nortes, portanto, expressam fenômenos geofísicos diferentes. Usando esse princípio os chineses inventaram a bússola e os europeus se lançaram às grandes navegações. Uma agulha imantada aponta sempre para o polo norte magnético e, de modo aproximado, para o norte geográfico. O ângulo entre o norte magnético e o geográfico reflete a declinação magnética do lugar e varia geralmente de 20 a 30 graus. Como o campo magnético varia com o tempo, atualmente em São Paulo a diferença entre os dois nortes é de 23 graus. Uma confusão frequente é quanto à nomenclatura dos polos. Pela convenção física, o polo magnético norte estaria situado no sul da Terra e vice-versa. Para evitar essa confusão, convencionou-se chamar de polo norte magnético o polo que está próximo ao polo norte geográfico, o mesmo ocorrendo com o polo sul. Eder Molina, da Universidade de São Paulo (USP)
PESQUISA FAPESP 197 | 13
Estratégias Parcerias com o Reino Unido A FAPESP assinou
Florestas Tropicais
acordos de cooperação
Modificadas pelo Homem,
científica com três
envolvendo a FAPESP
instituições do Reino
e o Natural Environment
Unido: a Universidade de
Research Council.
Edimburgo (Escócia), a
Também participaram
Universidade Bangor
da assinatura dos
(País de Gales) e o
acordos representantes
Instituto de Educação da
das três universidades
Universidade de Londres
britânicas, o embaixador
(Inglaterra). Os acordos
do Reino Unido no Brasil,
foram assinados pelo
Alan Charlton, o diretor-
presidente da FAPESP,
-presidente do Conselho
Celso Lafer, e por Sir John
Técnico-Administrativo
Beddington, conselheiro-
da FAPESP, José
-chefe para assuntos
Arana Varela, e o
científicos do gabinete
diretor científico, Carlos
de Ciência e Tecnologia
Henrique de Brito Cruz,
do Reino Unido. Os
entre outros. De acordo
documentos buscam
com Brito Cruz, os
estimular a cooperação
mais de 30 acordos de
científica entre o Brasil
cooperação já assinados
e o Reino Unido a partir
com os RCUK e outras
Foi lançada em maio
redações dos Estados
do desenvolvimento
instituições britânicas
a Revista de Jornalismo
Unidos. O jornalista
de projetos conjuntos
são parte importante
ESPM, primeira versão
Alberto Dines, que
de pesquisa que poderão
da estratégia de
brasileira da Columbia
recentemente
incluir o intercâmbio
internacionalização da
Journalism Review,
comemorou 80 anos
de pesquisadores e de
FAPESP. “Trata-se de uma
uma das mais influentes
(ver Pesquisa FAPESP
alunos de pós-graduação.
cooperação que evolui
revistas sobre jornalismo
nº 194), escreveu sobre
Também foi lançada
muito bem. Não apenas
no mundo, criada há
o imediatismo nas
uma chamada de
o número de projetos
50 anos pela Escola
mídias digitais e o
propostas de pesquisa
aumentou, mas também
de Jornalismo de
prejuízo que provoca
colaborativa em Processos
o de organizações
Columbia, em Nova York.
ao jornalismo ao abrir
da Biodiversidade
envolvidas”, disse Brito
Além de apresentar
mão da consistência
e de Ecossistemas em
Cruz à Agência FAPESP.
traduções de artigos da
e alimentar-se
edição norte-americana,
de uma intensa
também traz material
carga de frivolidades.
exclusivo produzido
“Nossa revista será uma
no Brasil. O primeiro
ponte entre o universo
número abordou temas
acadêmico e o universo
como os desafios
profissional, com a
do jornalismo econômico
ambição de gerar
ante suas duas
conhecimento crítico
audiências, os
sobre a instituição da
investidores e o público
imprensa”, diz o editorial
leigo; a relação mal
da primeira edição.
resolvida entre
A revista é trimestral e
assessorias de imprensa
vendida por assinatura,
e mídia e a presença
através do link www.
dos negros nas
espm.br/espmcjr.
Análise do jornalismo
Revista de Jornalismo ESPM: textos traduzidos e produção própria
1
14 | julho DE 2012
fotos 1 eduardo cesar 2 Antoninho Perri – Ascom – Unicamp. 3 universidade de indiana ilustraçãO daniel bueno
Novo conselheiro
Fundaj ganha José Reis
O governador Geraldo
de São Paulo, que pela
A Fundação Joaquim
pesquisadores e
Alckmin nomeou
legislação participa de
Nabuco (Fundaj), de
interessados em ciência
Fernando Ferreira Costa,
outra representação),
Recife, ganhou o Prêmio
em geral; o Pesquisa
reitor da Universidade
inscreveram 19
José Reis de Divulgação
Escolar on-line, criado
Estadual de Campinas
candidatos. Costa fez
Científica e Tecnológica
em 2002, que é uma
(Unicamp), para integrar
graduação, mestrado,
2012, concedido pelo
atividade de divulgação
o Conselho Superior da
doutorado e livre-
Conselho Nacional
científica e apoia a
FAPESP. O mandato é de
-docência na Faculdade
de Desenvolvimento
formação escolar
seis anos. Ferreira Costa,
de Medicina de Ribeirão
Científico e Tecnológico
realizada pela Biblioteca
Erney Plessmann de
Preto (USP). Entre 1987
(CNPq). A 32ª edição
Central Blanche Knopf
Camargo e Cláudio
e 1989 cumpriu estágio
do prêmio, o mais
da Fundaj; e o Museu do
Shyinti Kiminami foram
de pós-doutorado na
importante da
Homem do Nordeste,
os nomes indicados por
Yale School of
divulgação científica do
espaço de difusão do
uma eleição, realizada
Medicine, nos Estados
país, contemplou a
patrimônio científico
pela internet entre
Unidos. Ingressou no
categoria Instituição e
e cultural da região.
11 e 15 de junho,
Departamento de
Veículo de Comunicação.
Idealizada pelo
destinada à elaboração
Clínica Médica da
Entre os serviços de
sociólogo Gilberto
da lista tríplice para a
FCM-Unicamp em 1990
divulgação científica que
Freyre, a Fundaj foi
escolha do conselheiro.
e se tornou professor
a Fundaj disponibiliza
criada em 1949 como
As instituições de ensino
titular em hematologia
estão a Revista Coletiva
Instituto Joaquim
superior e de pesquisa,
e hemoterapia em 1996.
(www.coletiva.org),
Nabuco de Pesquisas
oficiais ou particulares, em
Foi coordenador do
publicação eletrônica
Sociais. A menção
funcionamento no estado
Instituto Nacional de
dirigida a professores
honrosa da 32ª edição
de São Paulo (com
Ciência e Tecnologia
e estudantes do 2º grau,
do prêmio foi concedida
exceção da Universidade
do Sangue (2009-2011).
universitários,
ao Instituto de
2
Fernando Ferreira Costa: escolhido para o Conselho Superior
Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP), em São Carlos, no interior paulista, pelo
Elinor Ostrom (1933-2012)
projeto Ciência Web, portal da Agência Multimídia de Difusão
Elinor Ostrom, primeira mulher a ganhar
Científica e Educacional.
um Prêmio Nobel de Economia, morreu
Coordenado pela
Projeto Shoal: robô aquático identifica chumbo e cobre no mar
no dia 12 de junho, aos 78 anos, vítima de câncer. Professora da Universidade de Indiana e formada não em economia,
professora Yvonne Primerano Mascarenhas, o Ciência Web publica
mas em ciência política, ela foi laureada
vídeos na área de
em 2009, juntamente com Oliver Wil-
difusão científica e
liamson, por pesquisas no campo da go-
educacional. A produção
vernança econômica. Formada pela
é feita por estudantes de
Universidade da Califórnia em Los Ange-
ensino médio de escolas
les, ela estudou como as pessoas se or-
3
ganizam e colaboram para gerir recursos
A Nobel de Economia de 2009: como gerir recursos comuns
públicas de São Carlos, auxiliados por alunos
comuns, como florestas ou a pesca. Ela
do Estado ou do mercado. Em 1973, ela
contradisse a armadilha social conhecida
e o marido, Vincent Ostrom, fundaram o
por “tragédia dos comuns”, na qual inte-
Workshop em Teoria Política e Análise de
resses individuais se sobrepõem a um
Políticas da Universidade de Indiana,
objetivo coletivo, resultando em destrui-
ambiente de colaboração com pesquisa-
de ciências e divulgar a
ção dos bens públicos e dos recursos
dores de disciplinas diversas. Uma de
produção universitária.
escassos. Comprovou, na prática, que
suas últimas atividades foi a chefia do
A entrega do prêmio
interesses isolados de certos grupos po-
comitê científico da Planet Under Pres-
para a Fundação será
dem ser mais benéficos à economia e ao
sure, conferência preparatória da Rio+20,
na Reunião Anual da
meio ambiente do que uma intervenção
que ocorreu em Londres em março.
SBPC, neste mês,
dos cursos de jornalismo e imagem e som. Os vídeos têm como objetivo apoiar o ensino
em São Luís (MA). PESQUISA FAPESP 197 | 15
Tecnociência Aplicativo para celular auxilia deficiente visual
Benefícios do café da manhã
Um aplicativo para
georreferenciadas
celular destinado
(gravadas por outra
a facilitar a integração
pessoa usuária do
dos deficientes visuais
software) com dados
ao ambiente urbano foi
enviados pela rede de
desenvolvido por Renata
maneira colaborativa.
Claro, Gabriel Reganati
“A navegação não é
e Thiago Silva, alunos
exclusiva para deficientes
do último ano do curso de
visuais”, diz o professor
ciência da computação
Artur Rozestraten, da
do Instituto de
Faculdade de Arquitetura
1
Matemática e Estatística
e Urbanismo (FAU),
Pular a primeira refeição matinal estimula a obesidade
(IME) da Universidade de
que participou do
São Paulo (USP), sob a
desenvolvimento do
orientação do professor
projeto. O programa
Marco Aurélio Gerosa.
ficou com o terceiro lugar
Por falta de hábito
dos meninos e meninas
Chamado Smart Audio
na Imagine Cup, um
ou por estarem em briga
tomava café da manhã,
City Guide, o programa,
concurso mundial de
com a balança, crianças
de longe a refeição
que está em fase
inovação promovido
e adolescentes obesos
que era mais ignorada
experimental, consiste
pela Microsoft. Qualquer
deixam, às vezes, de fazer
(apenas 10% não
em um sistema baseado
pessoa que possua
uma refeição. A prática
almoçavam e pouco mais
em GPS e informações
o aplicativo pode enviar
não é recomendável,
de 20% não jantavam).
e receber informações,
especialmente se o café
Os pesquisadores
transmitidas em áudio,
da manhã for a refeição
acreditam que, ao
sobre o espaço urbano.
abolida. Um estudo
pularem o café da manhã,
Os avisos indicam desde
de pesquisadores das
as crianças passam
a existência de uma
universidades Estadual
um período muito longo
árvore ou degraus até
Paulista (Unesp), do
sem comer. O mau hábito
uma banca de flores.
Oeste Paulista (Unoeste)
altera mecanismos
A gravação é feita com
e Estadual de Londrina
neuroendócrinos e
um simples toque na tela.
(UEL) indica que não
estimula a produção pelo
Quando um usuário
comer na hora certa,
estômago da grelina, um
do sistema passar pelo
em especial a primeira
hormônio ligado à fome.
mesmo local em que foi
refeição matinal, pode
Dessa maneira, a maior
gravado um aviso, ele
estar relacionado com
produção de grelina
recebe uma notificação
índices mais elevados
levaria os adolescentes
com uma mensagem de
de glicose e lípideos
e crianças a terem mais
voz. A avaliação de quais
nas crianças. O estudo
apetite nas demais
informações são úteis
analisou 174 crianças e
refeições. Comendo mais
fica a critério dos demais
adolescentes obesos e
no resto dia, teriam
usuários. “A ideia é que
sedentários (80 meninos
índices maiores de açúcar
o aplicativo seja
e 94 meninas), com idade
e gordura no sangue do
complementar a outros
entre 6 e 16 anos, que
que as pessoas que fazem
recursos de amparo
moram na cidade de
as três refeições do dia.
à mobilidade, como
Presidente Prudente,
Em última instância, não
bengala, cão-guia e piso
interior paulista (Journal
tomar café da manhã
apropriado para cegos”,
of Pediatrics, 7 de junho de
pode até ser um fato que
diz Rozestraten (Agência
2012). Menos da metade
estimula a obesidade.
USP, 5 de junho).
16 | julho DE 2012
fotos 1 léo Ramos 2 Frédéric Vincent / wikimedia commons 3 eduardo cesar ilustraçãO daniel bueno
2
Um gene da pluripotência
As pedras da unificação
Círculo de pedras serviu para unir os antigos povos da Grã-Bretanha
A introdução de um
e está associado à
único gene numa
capacidade que essas
linhagem de células
células têm de gerar
humanas do endotélio, a
vários tipos de tecidos
camada que reveste os
e de se autorrenovar.
vasos sanguíneos, ativou
De difícil cultivo em
ao menos seis genes de
laboratório por
extrema importância
sucessivas gerações,
para os processos de
as células endoteliais
reprogramação celular.
normalmente não usam
Pesquisadores do Centro
ou usam muito pouco
de Terapia Celular
esses seis genes. Com a
e do Hemocentro da
implantação do Nanog
Faculdade de Medicina
ou de outros genes,
da Universidade de São
essa limitação pode vir
Paulo (USP) de Ribeirão
a ser contornada ou
Preto inseriram o gene
minimizada. “Estamos
Nanog nas células
tentando entender qual
Depois de 10 anos de
Bournemouth – exploraram
trabalho, arqueólogos
não apenas o conjunto
endoteliais e viram que,
é o papel específico do
concluíram que
de rochas, mas também
apenas com essa
Nanog e de cada um
Stonehenge foi um
o contexto social e
alteração, os genes Sox2,
desses genes ligados à
monumento construído
econômico da época
FoxD3, Oct4, Klf4, c-myc
pluripotência das CTEs”,
para unificar os povos da
de construção do
e β-catenin passaram a
explica Virgina
Grã-Bretanha, depois de
monumento, entre 3.000
ser expressos (ativados)
Picanço-Castro, uma
um longo período de
e 2.500 antes de Cristo.
por esse tipo de tecido
das autoras do estudo.
conflitos internos (Science
Para os pesquisadores, o
(Celullar Reprogramming,
O próximo passo é
Daily, 22 de junho). Agora
próprio ato de construção
junho de 2012). O Nanog
introduzir outros
se acredita que
do monumento foi em si
é um gene muito ativo
genes em células do
Stonehenge deve
um ato de unificação,
nas células-tronco
endotélio e observar
simbolizar os ancestrais
por exigir o trabalho de
embrionárias (CTEs)
quais são os resultados.
dos diferentes povos do
milhares de pessoas para
reino, alguns vindos da
mover e reunir os blocos
Inglaterra, ao sul, e outros
de rochas. Eles também
do oeste, no País de
rejeitam a possibilidade
Gales. Os pesquisadores
de Stonehenge ter sido
– das universidades de
usado como observatório
Sheffield, Manchester,
pré-histórico, um lugar
Southampton e
de cura ou um templo.
3
Lâminas de células solares fazem conversão da energia do sol em eletricidade
Silício brasileiro para células solares
3
Pesquisadores da Universidade Estadual
cânica, que coordena as pesquisas de
na fabricação dos painéis fotovoltaicos.
de Campinas (Unicamp) conseguiram
células solares em parceria com o pro-
“O país exporta o silício metalúrgico a
obter células solares com a mesma pure-
fessor Francisco das Chagas Marques, do
US$ 2 o quilo. Depois de purificado no
za das importadas. “Partimos do silício
Instituto de Física. A rota metalúrgica é
exterior é transformado em lâminas usa-
metalúrgico fornecido pela empresa Rima,
mais simples e sem os problemas de re-
das na fabricação de semicondutores ou
de Minas Gerais, com 99% de pureza, e
jeitos químicos produzidos pela rota
células fotovoltaicas que custam entre
o purificamos através da rota metalúrgi-
química utilizada no exterior para pro-
US$ 50 e US$ 1.000, dependendo da pu-
ca, utilizando um forno de fusão por feixe
duzir silício de alta pureza. Detentor das
reza e da cristalinidade”, compara Mei.
de elétrons, atingindo uma pureza de
maiores reservas mundiais de quartzo,
A empresa Tecnometal, de Campinas, a
99,999%”, diz o professor Paulo Rober-
mineral utilizado para fabricação do silí-
única fabricante de painéis fotovoltaicos
to Mei, da Faculdade de Engenharia Me-
cio, o Brasil importa as lâminas utilizadas
no Brasil, também é parceira da pesquisa.
PESQUISA FAPESP 197 | 17
Máquina fotográfica em gigapixel Quem não está feliz com sua câmera
mera capaz de capturar uma foto de 50
máquina no campus da Universidade de
fotográfica com 12 megapixels não perde
gigapixels ou 50 mil megapixels. As câ-
Duke e os resultados surpreenderam. O
por esperar. Pesquisadores das universi-
meras comerciais usadas por profissionais
campo de captura de fotos é de 120° e
dades de Duke e do Arizona, e da empre-
na atualidade atingem até 40 megapixels.
pequenos detalhes não identificados na
sa Distant Focus, dos Estados Unidos,
Superando dificuldades próprias dessa
foto comum podem aparecer depois da
mostraram em artigo na revista Nature
magnitude em câmeras fotográficas como
ampliação digital. Eles também garantem
(20 de junho) um protótipo de uma câ-
distorções geométricas nas lentes, sen-
que a câmera tem baixo custo e que em
sores de captação da imagem e sistemas
cinco anos ela pode se tornar comercial,
de captura digital e processamento de
quando os componentes eletrônicos da
imagens, os pesquisadores, coordenados
máquina deverão estar mais miniaturi-
pelo professor David Brady, testaram a
zados e eficientes.
Protótipo da câmera que capta pequenos detalhes nas imagens
1
Sem cheiro de cola
Migrações de leveduras Uma espécie rara de
identificação em locais
levedura pode contribuir
tão distantes um do
para o entendimento
outro está relacionada
da dispersão mundial
à dispersão humana.
de microrganismos
Os locais onde foi
por humanos. A
encontrada a S. fodiens
Saccharomycopsis fodiens
podem ser explicados por
foi isolada do néctar de
uma hipótese que leva
uma flor visitada por
aos antigos polinésios
besouros da família dos
em migrações para o sul,
nitidulídeos presentes
em Taiwan, e ao leste,
Uma cola sem cheiro e
substância altamente
em todos os continentes.
para as ilhas do Pacífico
que traz mais eficiência
aromática e alergênica.
Mas essa levedura
e eventualmente para
ao processo de blindagem
“Desenvolvemos
foi identificada, por
a América do Sul,
em automóveis foi
tecnologias em escala
pesquisadores das
levando plantas de
desenvolvida pela
nanométrica para
universidades Federal
batata-doce cujas flores
Adespec, uma pequena
adesivos e selantes, uma
de Minas Gerais (UFMG),
atraem besouros e
empresa paulistana.
à base de água e outra
Western, do Canadá,
abrigam leveduras. O
O novo adesivo que já
de poliéteres siloxanos,
e Católica do Equador,
trabalho foi liderado pelo
está em uso na Truffi
produto neutro e
apenas em três locais:
canadense Marc-André
Blindados, instalada
inodoro”, conta a
Austrália, Costa Rica
Lachance e contou
também em São Paulo,
engenheira química
e Ilhas Galápagos,
com os brasileiros Carlos
utiliza na sua composição
Wang Chen que fundou
no Equador. Outras
Rosa e Larissa Freitas
partículas na escala
a empresa em 2001 e
espécies de levedura
(International Journal
nanométrica e por isso é
teve financiamento da
são encontradas em
of Systematic and
chamado de nanosselante.
FAPESP em três projetos
besouros no mundo
Evolutionary Microbiology,
Essas nanopartículas
do Programa de
todo. Para eles, a
junho 2012).
são responsáveis pela
Pesquisa Inovativa em
eliminação do cheiro,
Pequenas Empresas
além de contribuir para
(Pipe). A novidade foi
melhorar a adesão entre
apresentada no Simpósio
o aço da carroceria e a
Novos Materiais e
manta de aramida, tecido
Nanotecnologia, realizado
de fibras sintéticas que
em junho em São Paulo,
resiste ao tiro de uma
promovido pela SAE
arma. O nanosselante
Brasil, entidade que
entra no lugar de
reúne engenheiros das
colas com base
indústrias automobilística
em poliuretano, uma
e aeronáutica.
18 | julho DE 2012
fotos 1 Universidade de Duke 2 Nasa / CXC / SAO / 2MASS / UMass /IPAC-Caltech / NSF 3 David Monniaux / Wikimedia Commons ilustraçãO daniel bueno
Buracos negros obesos Um estudo divulgado em
massa de 10 a 35 vezes
junho está fazendo os
maior do que o esperado.
astrônomos reverem
O halo de matéria escura
o que sabiam sobre a
que envolve essas
evolução dos buracos
galáxias também é muito
negros, corpos com
maior que o normal.
densidade tão elevada
Esses dados sugerem que
que nada escapa de sua
a evolução dos buracos
atração gravitacional,
de massa muito elevada
nem a luz. Imagens feitas
está ligada à massa dos
pelo telescópio espacial
halos de matéria escura,
Chandra, da Nasa,
e não à do bojo das
mostraram que os
galáxias. “Esse trabalho
buracos negros que
nos dá mais evidências
ocupam o centro de duas
da ligação entre dois
galáxias relativamente
dos mais misteriosos
próximas à Via Láctea
2
Galáxias NGC 4342, à esquerda, e NGC 4291: buracos negros com massa maior que o esperado
Esculpindo as rochas As elegantes ondulações
Politécnica de Turim,
das estalactites resultam
mostraram que as
fenômenos da astrofísica,
de padrões regulares
montanhas e vales
estão ganhando massa
os buracos negros
na taxa de deposição de
que se repetem
mais rápido do que
e a matéria escura”,
minerais trazidos pela
em intervalos de
deveriam. A massa
disse Akos Bogdan,
água que flui do teto das
5 a 10 milímetros nas
desses buracos negros
do Centro de Astrofísica
cavernas, concluíram
estalactites podem
em geral é centenas de
Harvard-Smithsonian,
dois pesquisadores
surgir da dinâmica de
milhões a bilhões de
coordenador do estudo,
italianos, por meio de
fluxos – neste caso,
vezes maior que a do Sol
apresentado na reunião
uma teoria que inclui a
o fluxo de água que
e equivalente a 0,2%
anual da Sociedade
dinâmica da água
desce do teto trazendo
da massa total do bojo,
Astronômica Americana.
pingando do teto de
minerais, especialmente
a região mais central
Ele acredita que esses
cavernas e simulações
calcita. A água, eles
e luminosa da galáxia.
buracos negros ganharam
em computador
verificaram, se move
Nas galáxias NGC 4342
massa rapidamente e
(Physical Review Letters,
em camadas paralelas a
e NGC 4291, porém,
consumiram o gás que
8 de junho). Carlo
uma superfície de rocha
o Chandra detectou
poderia ter originado
Camporeale e Luca
plana e a concentração
buracos negros com
mais estrelas.
Ridolfi, da Universidade
de minerais varia
Nas cavernas, estalactites podem ajudar a contar a história das chuvas
suavemente de cima para baixo, diminuindo à medida que a água desliza. Segundo eles, em qualquer ponto sobre a superfície da rocha a taxa de deposição depende principalmente da concentração local de solutos. Os vales e as montanhas apareceram de acordo com a variação da taxa de deposição de minerais. Os pesquisadores italianos acreditam que as equações que apresentaram, prevendo a formação das irregularidades das estalactites, podem ajudar a reconstruir os padrões de chuva de
3
milhares de anos atrás. PESQUISA FAPESP 197 | 19
capa
Muito além das patentes Escritórios de transferência de tecnologia de grandes universidades ampliam seu papel e estreitam a cooperação com empresas Fabrício Marques
20 | julho DE 2012
N
os últimos seis anos, a Universidade Harvard conseguiu melhorar seus indicadores relacionados à transferência de tecnologia, que representavam um ponto opaco no desempenho da líder de vários rankings internacionais de instituições de ensino superior. O número de invention disclosures, documentos com a descrição de resultados de pesquisas para avaliar a possibilidade de sua proteção por meio de direitos de propriedade intelectual, aumentou de 180, no ano de 2006, para 351, em 2011. No mesmo período, o número de patentes obtidas no escritório de marcas e patentes dos Estados Unidos (Uspto, na sigla em inglês) subiu de 35 para 60, enquanto o de tecnologias licenciadas cresceu de 11 para 45. O combustível dessa mudança foi uma reforma na estrutura e nas práticas do Escritório de Desenvolvimento Tecnológico (OTD) de Harvard, voltada para multiplicar a cooperação entre a universidade e o setor privado. Não por acaso, subiu de 12 para 75 o número de acordos entre Harvard e empresas envolvendo a chamada pesquisa patrocinada, modalidade em que companhias financiam o trabalho realizado em um laboratório da universidade muitas vezes em troca de privilégio no licenciamento de descobertas resultantes. O montante investido nesses acordos chegou a US$ 37,2 milhões em 2011, quatro vezes mais do que o total de 2006. Entre as empresas que celebraram parcerias estratégicas
ilustrações desenhos técnicos de patentes registradas pelo MIT, Harvard e stanford imagens google patents
recentes com Harvard destaca-se, por exemplo, a Novartis, para desenvolver fármacos a partir de células-tronco junto com Lee Rubin, do Instituto de Células-Tronco de Harvard. O movimento feito por Harvard é exemplar de um fenômeno que se esboça nos escritórios de transferência de tecnologia de universidades – e não apenas naquelas de classe mundial. Além das tarefas rotineiras, que consistem em identificar descobertas com potencial econômico e protegê-las por meio de patentes, estes escritórios abraçam várias outras atividades, como fomentar colaborações de pesquisa de longo prazo entre empresas e laboratórios, auxiliar na criação de empresas baseadas em tecnologias nascentes, arregimentar investidores privados para financiá-las, oferecer a consultoria de pesquisadores para a indústria e estimular o empreen dedorismo já entre os estudantes de graduação. “A experiência mostra que é possível alcançar resultados altamente positivos quando empresas e universidades, a despeito de suas diferenças culturais, comprometem-se com parcerias em que ambos os lados saem ganhando”, diz Todd Sherer, presidente da Associação de Gestores de Tecnologia das Universidades (AUTM), entidade que congrega 3,5 mil profissionais vinculados a 350 universidades, instituições e hospitais de pesquisa em vários países e lhes oferece treinamento e apoio sobre mecanismos de transferência de tecnologia.
A mudança em Harvard foi liderada por Isaac Kohlberg, desde 2005 o chefe do OTD. Depois de trabalhar na Universidade de Tel-Aviv, em Israel, onde fundou uma empresa com fins lucrativos para comercializar as patentes de pesquisadores, Kohlberg ajudou nos anos 1990 a New York University a construir um ativo escritório de licenciamento de patentes. Em Harvard, fundiu dois escritórios existentes, ampliou o número de funcionários de 12 para 35 e renomeou os antigos agentes de licenciamento de tecnologia como “diretores de desenvolvimento de negócios”. Um dos destaques de sua gestão foi a criação do Fundo Acelerador de Desenvolvimento Tecnológico, com recursos de doadores privados, com a vocação de catalisar o desenvolvimento de tecnologias ainda em estágio embrionário e facilitar o caminho para o licenciamento e a comercialização. O fundo fornece aos cientistas de Harvard os recursos necessários para conduzir pesquisas naquela fase posterior à descoberta e anterior à comercialização, como experimentos para gerar provas de conceito, modelos práticos capazes de testar descobertas. “Provas de conceito ampliam bastante a possibilidade de atrair a indústria para o licenciamento de uma tecnologia promissora”, disse Curtis Keith, diretor científico do fundo. Profissionais da indústria participam do processo de tomada de decisões do fundo, que já investiu US$ 5,2 milhões em 33 projetos. Doze deles resultaram em colaborações de pes-
inovação
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Pesquisa sobre células-tronco da multinacional Novartis e o prédio da Harvard Medical School: colaboração em busca de novos medicamentos
US$37,2 milhões foram obtidos por Harvard em projetos com empresas em 2011 22 | julho DE 2012
quisa com a indústria e licenças de transferência de tecnologia, que atraíram mais de US$ 10 milhões em parcerias para a universidade. Uma pesquisa do professor de Harvard Tobias Ritter sobre a adição de flúor em medicamentos para torná-las mais estáveis, potentes e capazes de penetrar no cérebro foi apoiada parcialmente pelo fundo acelerador. O projeto deu origem a uma empresa de Boston, SciFluor Life Sciences.
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Universidade da Califórnia, em Berkeley, criou seu Escritório de Licenciamento de Tecnologia em 1990, influenciada pela Lei Bayh-Dole, de 1980, que assegurou às instituições de pesquisa norte-americanas o direito de patentear descobertas feitas com investimentos federais em pesquisa e licenciá-las para empresas. Nos primeiros tempos, a estrutura do escritório separava o trabalho da proteção da propriedade intelectual e a missão de busca de parceiros privados para a pesquisa na instituição. Em 2004 foram unificados o escritório de projetos patrocinados e o de licenciamento de tecnologia, dando origem ao Ipira, sigla para Escritório de Propriedade Intelectual e Alianças de Pesquisa com a Indústria. Segundo Michael Cohen, especialista em licenciamento e empresas start-ups do Ipira, o escritório hoje se preocupa não apenas em dar apoio a pesquisadores, como também em estabelecer relações de múltiplas faces com as empresas no longo prazo. Em 2009, Berkeley firmou 97 acordos de pesquisa patrocinada com o setor privado, 25% mais do que em 2008. O Ipira busca aproximar empresas de todo tipo aos 13 centros de pesquisa de Berkeley que criaram programas de interação com o setor privado. Um exemplo é o Center for the Built Environment
de Berkeley, que pesquisa tecnologias para aumentar a qualidade ambiental e a eficiência no uso de energia em construções. Mais de 40 empresas de engenharia e arquitetura afiliaram-se ao centro. Com isso, conquistaram o direito de influenciar a escolha de linhas de pesquisa de curto e de longo prazo que sejam de seu interesse, além de ter acesso a dados e pesquisas. Já o centro de pesquisa Impact, voltado para ciência da computação e modelagem, oferece às empresas associadas o trabalho de recém-formados “com formação multidisciplinar e habilidades requeridas pela indústria” e prioridades em contratos de licenciamento de propriedade intelectual. O modelo da Universidade de Oxford, no Reino Unido, tem duas peculiaridades: criou uma empresa para tratar do assunto e oferece sua expertise para universidades e empresas de vários países na forma de serviços e aconselhamento. Oxford aplicou na empresa, batizada de Isis Innovation, £ 2,5 milhões no ano passado. O retorno desse investimento chegou a £ 4 bilhões, na forma de royalties e venda de participação em empresas. A empresa de Oxford atua em três frentes. Uma delas é a comercialização da propriedade intelectual gerada pela universidade. Em média, a Isis registra uma patente por semana. Atualmente gerencia cerca de 400 patentes e um portfólio de 200 licenças de comercialização de tecnologias. “As ideias saem da cabeça dos pesquisadores e a transferência de tecnologia não existe sem eles”, diz Tom Hockaday, diretor da Isis Innovation. “Nosso papel é ajudá-los e também lembrar a universidade dos benefícios que ela pode trazer à sociedade”. Uma segunda frente consiste em oferecer consultoria de pesquisadores de Oxford a empresas e órgãos públicos. E a terceira fren-
teresse, naturalmente, é de mão dupla. Para as empresas, as parcerias com as universidades são uma forma de partilhar custos em pesquisa e desenvolvimento em tempos de crise – o que tem sido uma necessidade principalmente para as indústrias farmacêuticas, carentes de lançamentos de fármacos inovadores. De acordo com o estudo da AUTM feito com universidades afiliadas, a pesquisa patrocinada por empresas manteve-se estável entre 2009 e 2010, com investimentos na casa dos US$ 4 bilhões, enquanto os fundos federais subiram de US$ 33 bilhões para US$ 39 bilhões. Crise de financiamento à pesquisa No Brasil, a missão de busdeu novo impulso à transferência car parcerias estratégicas com empresas ainda é incipiente. A de tecnologia nos Estados Unidos Agência de Inovação da Universidade de São Paulo (USP) só recentemente começou a criar iniciativas concretas para desenvolver colaborações. “Estamos universidades de pesquisa, que viram diminuir procurando setores da economia carentes de investimentos de governos e doações de empre- inovação e propondo parcerias orgânicas”, diz sários desde 2008, ano que marcou o início de um Vanderlei Salvador Bagnato, diretor da agênperíodo de retração econômica mundial. “Nossa cia. Em dezembro de 2011, a agência lançou um preocupação principal em relação à crise econô- programa em conjunto com a Associação Brasimica é seu impacto no financiamento federal à leira das Indústrias Têxteis (Abit) para estimupesquisa”, diz Todd Sherer, da AUTM. “O nível lar colaborações entre pesquisadores da USP e de investimento federal determina o ritmo das empresas. “Nossa indústria têxtil vem perdendo invenções nas universidades, hospitais e insti- competitividade”, afirma Bagnato. “A pesquisa da tuições de pesquisa. Se o número de invenções USP pode ajudar as empresas de várias formas a cresce, avançam também as patentes, os licencia- enfrentar a concorrência”, afirma. A agência já mentos, as start-ups e os empregos.” Segundo es- mira outros setores para interagir nos próximos tudo da AUTM, seus afiliados registraram cifras anos, como o da indústria eletromecânica e de cosda ordem de US$ 2,4 bilhões com licenciamento méticos. Segundo Bagnato, uma dificuldade para de tecnologia no ano fiscal de 2010. O montante as agências de inovação do país consiste em ené 3% superior ao de 2009, mas 30% abaixo dos contrar a clientela para suas tecnologias. “Temos US$ 3,4 bilhões contabilizados em 2008. O in- de ir atrás dos clientes e mostrar como podemos
fotos 1 novartis ag 2 see-ming lee / wikicommons 3 carlos fioravanti
te dedica-se a ajudar instituições de 30 países a comercializarem suas invenções. Recentemente firmou acordos com instituições de pesquisa da Rússia e abriu um escritório no parque científico de Madri, para ajudar suas empresas a comercializarem tecnologias. Um fator extra a impulsionar a transferência de tecnologia e as parcerias com a indústria é a crise de financiamento pela qual passam as
Universidade de Oxford, no Reino Unido: uma empresa comercializa a propriedade intelectual, oferece mão de obra de consultores e treina instituições de outros países
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A clientela dos escritórios de transferência de tecnologia brasileiros ainda está em formação
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ajudá-los. Somos uma universidade pública que tem entre suas missões transformar o conhecimento em bem-estar para a sociedade”, afirma. Outra preocupação da agência da USP é azeitar os convênios entre universidades e empresas. “Temos pelo menos duas centenas de projetos desse tipo na universidade e conseguimos avançar no combate à burocracia. Por determinação da reitoria, o trâmite de uma parceria, depois que a empresa demonstra interesse prático em fazer um convênio com a USP, não pode demorar mais do que 30 dias”, diz Bagnato. No caso da Agência de Inovação da Universidade Estadual Paulista (Unesp), o trabalho de aproximação com empresas tem se baseado em rodadas de interações tecnológicas, encontros entre pesquisadores da instituição e representantes de empresas com as quais poderiam colaborar. “Mesmo não suscitando colaborações imediatas, essas rodadas são importantes para mostrar para as empresas como poderíamos ajudá-las e mostrar para os pesquisadores como podem interagir com o setor privado”, diz Vanderlan Bolzani, diretora da agência. Entre as companhias que participaram dessas rodadas, iniciadas em 2009, destacam-se a Natura, a Whirlpool, a Cristália, a AstraZeneca, a Biolab, a Sabesp e a Sadia. As universidades brasileiras têm se notabilizado pela produção científica, diz Vanderlan, mas ainda persistem dificuldades em aplicar este conhecimento em projetos de interesse do setor industrial e também em atrair as empresas para investimentos em pesquisa fundamental que possa resultar num desenvolvimento mais tardio. “Embora a Lei de Inovação tenha sido implantada para agilizar as parcerias entre univesidades e empresas, ainda há dificuldades 24 | julho DE 2012
Peixe-robô (acima), luvas que podem substituir mouses e avião que consome menos combustível (dir.): exemplos de pesquisas do MIT que geram novas empresas e criam novos padrões para a indústria
de natureza burocrática”, afirma. Na esperança de ampliar a interação, a agência da Unesp planeja lançar um cadastro de pesquisadores reconhecidos pela agência por sua vocação para celebrar parcerias com indústrias. “Nossa expectativa é que muitos pesquisadores não citados tomem a iniciativa de se cadastrar”, afirma Vanderlan. Criada em 2007 e regulamentada em 2009, a Agência Unesp de Inovação registrou nos últimos dois anos 133 patentes, 53 contratos de inovação com empresas e 2 licenciamentos de tecnologia, um deles para uma empresa norte-americana. A ideia de associar o trabalho de proteção de propriedade intelectual com a prospecção de parcerias com empresas não chega a ser uma novidade no Brasil, observa Roberto de Alencar Lotufo, diretor da Agência de Inovação Inova Unicamp, da Universidade Estadual de Campinas. “A nossa agência foi criada em 2003 já reunindo estas três atividades que em muitas universidades acontecem em órgãos separados”, diz Lotufo, que participa da Associação de Gestores de Tecnologia das Universidades (AUTM). A grande diferença
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constituem atores imprescindíveis do ecossistema de inovação da região, trazendo oportunidades, orientação e financiamento no apoio na criação de empresas start-ups”, diz Lotufo. A FAPESP mantém desde 2000 o Programa de Apoio à Propriedade Intelectual (Papi), criado para estimular a proteção da propriedade intelectual e o licenciamento de direitos sobre os resultados de pesquisas financiados pela Fundação. O programa apoia pesquisadores e instituições, e também é voltado para o aprimoramento dos Núcleos de Inovação Tecnológica (NIT) das universidades e instituições de pesquisa paulistas.
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Em 1970, o programa-piloto de Stanford substituiu advogados por funcionários encarregados de comercializar as invenções
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depósitos de patentes foram obtidos pela Unicamp entre 1980 e 2005. Só a Petrobras superou a marca
entre o Brasil e os Estados Unidos, observa Lotufo, diz respeito à capacidade e experiência em inovação, tanto do meio empresarial como acadêmico. “No Brasil, ainda são poucas as empresas que investem em pesquisa e desenvolvimento. Já nos Estados Unidos o foco em inovação das empresas é muito maior que aqui e uma boa parcela da comunidade acadêmica lá está engajada na inovação tecnológica. Isso faz muita diferença”, afirma. Entre 1980 e 2005, a Unicamp foi a vice-líder no país em patentes, com 405 depósitos no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). Só perdeu para a Petrobras, com 804 depósitos. Entre 2000 e 2011, celebrou 53 contratos de licenciamento de tecnologia, sendo 10 só no ano passado, tendo gerado R$ 2 milhões em royalties desde 2005. Ajudou a fechar mais de 300 projetos colaborativos com empresas, no total de R$ 65 milhões. Também mantém uma rede de relacionamentos, denominada Unicamp Ventures, composta por empresários, na maioria ex-alunos, fundadores de mais de 220 empresas com vínculo com a universidade. “Esses empreendedores
lgumas instituições foram pioneiras na criação das novas estratégias para transferência de tecnologia. A Universidade Stanford é uma delas. Incrustada no Vale do Silício, berço de empresas inovadoras desde a década de 1950, Stanford foi especialmente feliz na criação do que se convencionou chamar de um “ecossistema de inovação”. No ano fiscal que terminou em agosto de 2011 obteve uma receita de royalties de US$ 66,8 milhões – 98% desse montante veio de tecnologias licenciadas há vários anos. As 501 invenções apresentadas ao escritório, 60% em ciências físicas e 40% em ciências da vida, resultaram em 101 licenciamentos. Ao final de 2011, Stanford tinha participação em 109 empresas oriundas de tecnologias criadas na instituição. A venda da participação em cinco empresas no ano fiscal rendeu US$ 2,4 milhões. Seu Escritório de Licenciamento de Tecnologias (OTL) concluiu 1.100 acordos com instituições com e sem fins lucrativos em 2011. Desses, 120 são contratos de pesquisa patrocinada por empresas. Um fundo de capital semente do OTL oferece quantias de cerca de US$ 25 mil para patrocinar protótipos e experimentos em tecnologias não licenciadas. Oitenta e sete projetos já usaram esse financiamento. Stanford criou em 1970 um escritório de patentes que se tornaria referência para as demais instituições. Seu criador foi o engenheiro Niels J. Reimers, contratado em 1968 para ampliar o apoio de empresas e do governo a projetos da instituição. Ele constatou que existia interesse comercial em muitas das invenções apresentadas pelos pesquisadores de Stanford. Mas, embora a universidade mantivesse parcerias com empresas desde a década de 1950, o retorno obtido por licenciamento nos 15 anos anteriores era pífio. Ele foi conhecer os modelos de outras instituições, como os escritórios das universidades da Califórnia e do Massachusetts Institute of Technology (MIT), e observou que não serviam a seus propósitos: eles abrigavam advogados especialmente interessados em proteger as invenções, patenteando-as, para só depois pensar em levá-las para a sociedade. Propôs um programa-piPESQUISA FAPESP 197 | 25
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Sede do Google (esq.) e formandos em Stanford em 2012 (abaixo): ambiente empreendedor ajuda a criar start-ups. Universidade da Califórnia, Berkeley (dir.): fusão dos escritórios de patentes e de pesquisa patrocinada
loto que criava um escritório com funcionários encarregados de comercializar as invenções e com autonomia para trabalhar, terceirizando a atividade dos advogados e oferecendo algumas vantagens para os inventores. Quando o programa foi avaliado em seu primeiro aniversário, havia produzido uma renda de US$ 55 mil – mais de 10 vezes o valor recebido em 15 anos de licenciamento. Em 1974, Reimers leu no jornal The New York Times o anúncio de uma técnica chamada gene splicing, criada pelos professores Stanley Cohen, de Stanford, e Herbert Boyer, da Universidade da Califórnia. Em 1981 ofereceu licenças para uso da tecnologia. Setenta e três empresas se habilitaram. Até 1997, quando as patentes expiraram, rendiam a Stanford US$ 30 milhões por ano.
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embora o ano de 2011, por conta da crise, tenha sido fraco: 8 empresas foram formadas, ante 10 em 2010, 9 em 2009 e 14 em 2008. Stanford ganha mais em royalties do que em participação em jovens empresas. Mas a decisão de estimular a criação de start-ups é estratégica para amplificar a transferência de tecnologia para a sociedade. “Entre as grandes empresas, muitas estão satisfeitas com o próprio esforço de pesquisa e desenvolvimento. A maioria de nossa atividade de licenciamento é com as pequenas empresas, que não podem se dar ao luxo de gastar muito dinheiro em P&D”, disse Katherine Ku. Para outra instituição com grande tradição em transferência de tecnologia, o MIT, um ponto de inflexão remonta ao ano de 1986, quando Lita Nelsen, engenheira química formada na instituição 20 anos antes, assumiu o comando do Escritório de Licenciamento de Tecnologias (TLO) e mudou seus métodos. Antes do TLO, Lita havia atuado em empresas de biotecnologia. Sua primeira medida
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experiência influenciou a filosofia do escritório de Stanford, que se esmera numa estratégia conhecida como home run, referência à jogada mais cobiçada do beisebol. “Estamos mais interessados em patentes de conceito amplo do que de interesse restrito”, escreve Katherine Ku, diretora do escritório de Stanford, num artigo recente. Tentar adivinhar qual será a tecnologia mais apropriada para licenciamento é tarefa de resultado sempre incerto. Stanford produz uma invention disclosure para cada US$ 2,5 milhões de financiamento da pesquisa. Só 32 das 600 tecnologias atualmente licenciadas geraram mais de US$ 100 mil em royalties. E apenas seis geraram mais de US$ 1 milhão. Para cada caso de sucesso como o Google (que rendeu a Stanford mais de US$ 300 milhões), há um punhado de tecnologias que acabam custando mais do que o investimento feito nelas. Um ponto forte de Stanford é a criação de start-ups, empresas desenvolvidas a partir da propriedade intelectual da instituição –
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foi excluir os advogados, terceirizando seu trabalho. Aposta na criação A equipe hoje dispõe de 34 funcionários, entre os de pequenas quais 10 gerentes e 8 assessores de transferência de empresas é tecnologia. Para atuar como gerente no TLO é preestratégica para ciso ter formação científigarantir que ca e experiência de pelo menos 10 anos na indúsnovas tecnologias tria. A brasileira Ana Lopes, 30 anos, que atuou por chegarão quatro anos como assessora de transferência de tecao mercado nologia, sabia que dificilmente se tornaria gerente, a escala seguinte na hierarquia. “Me formei em astronomia e me interessei por trabalhar com transferência de tecnolo gia. Mas me faltava a experiência na indústria”, diz. Ela deixou o TLO em 2011 para trabalhar na E-Ink, uma empresa spin-off do MIT, que fabrica papel digital flexível. O TLO cuida do relacionamento com a indústria no que se refere a licenciamentos. Há outras estruturas para tratar da cooperação com o setor industrial, como o Escritório de Programas Patrocinados (OSP) e o Programa de Ligação Industrial (ILP). O ecossistema inovador é alimentaempresas por uma série de outras iniciativas. O Centro foram geradas do Deshpande para Inovação Tecnológica, criado em 2002, financia pesquisas em estágio inicial, a partir de com potencial de transferência, e oferece aos emtecnologias preendedores aconselhamento de especialistas da indústria. Uma competição organizada pelos do MIT desde oferece US$ 100 mil para o melhor 1984 – e 80% estudantes plano de negócios. Clubes de empreendedorismo se espalham em todas as unidades da instituição. sobreviveram
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modelo do MIT é diferente do de Stanford e adota a chamada “estratégia de volume”. Como lida com tecnologias das ciências físicas, o MIT acredita que é melhor negociar muitos contratos do que se ater apenas a contratos com as melhores ofertas, a fim de garantir a transferência para a sociedade. Segundo Lita Nelsen, a estratégia de volume maximiza tanto a participação de estudantes e pesquisadores no processo de transferência tecnológica quanto a possibilidade de conseguir um home run que rendeu US$ 3 milhões e 120 divulgações da invenção. Em 2010 foram 100 licenciamentos, que renderam US$ 75 milhões, e 600 divulgações de invenção por ano. Segundo Lita, o objetivo é fazer as tecnologias chegarem à sociedade. “Gerar receita é o resultado disso, não a razão principal”, sempre repete. Cerca de 300 empresas já foram geradas a partir de tecnologias criadas pelo MIT desde 1984 – e 80% sobreviveram. Um exemplo recente é a 3Gear Systems, que desenvolve aplicações para uma luva colorida e um sistema de algoritmos que se propõe a substituir o mouse. Mais de 700 empresas estão financeiramente comprometidas com o MIT, seja na participação de consórcios, nos quais as indústrias bancam pesquisas sobre um tema específico, ou no chamado investimento de portfólio, em que as financiam um conjunto de projetos como parte de um engajamento amplo. Também é comum que empresas invistam em assuntos que estão longe de chegar ao mercado. A companhia Schlumberger, que oferece tecnologias e serviços em exploração de petróleo e gás, patrocinou a pesquisa do robô-peixe do MIT, criado para ajudar na inspeção da exploração submarina. Um modelo conceitual de avião desenvolvido em parceria com a Nasa promete voar com apenas 30% do combustível usado atualmente por um avião de grande porte. O Laboratório de Mídia do MIT reúne empresas e acadêmicos para a pesquisa interdisciplinar em tecnologias de mídia digital – e compartilha os resultados com todos os membros associados. Consórcios do MIT já desempenharam papel-chave na definição de padrões da indústria, como os produzidos pelo World Wide Web Consortium (W3C), que gerou novos protocolos para serviços da web, em busca de uma versão mais colaborativa da web. Para Todd Sherer, da AUTM, a experiência das universidades de classe mundial pode inspirar mudanças em outros países. Segundo ele, a AUTM tem um intercâmbio para ajudar a construir conhecimento e capacidade de transferir tecnologia junto a países parceiros. “De todo modo, é preciso reconhecer que cada país tem necessidades e oportunidades diferentes, e que frequentemente demora um bocado de tempo para ver os benefícios da transferência de tecnologia”, afirma. n PESQUISA FAPESP 197 | 27
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entrevista eduardo moacyr krieger
O mestre da hipertensão Fisiologista criou no InCor o mais importante grupo nacional de pesquisa integrada de pressão arterial Mariluce Moura e Ricardo Zorzetto
léo ramos
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m dos planos que estava na cabeça do jovem gaúcho Eduardo Moacyr Krieger, quando se formou médico em Porto Alegre, em 1953, era se tor nar cardiologista e trabalhar na Fa culdade de Medicina. Mas logo ele seria desviado para sempre desse caminho, por influência deci siva de dois eminentes argentinos, os fisiologistas Bernardo Houssay, Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina de 1947, e Eduardo Braun Menéndez, responsável pela descoberta da angiotensina, em 1940. Nesse caso, em vez de reclamar dos vizi nhos como de hábito, só cabe aos brasileiros lhes agradecer, porque quem mais ganhou com essa mudança de rota foi o campo da fisiologia cardio vascular no país e, especialmente, a pesquisa da hipertensão. O professor Krieger, 84 anos, para além de suas seminais contribuições diretas ao conhecimento dos mecanismos de controle da pressão arterial, foi o criador, ainda nos anos 1950, de um importante grupo de pesquisa na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), em Ribeirão Preto, e adiante, em 1985, criador do mais respeitado grupo de pesquisa integrada em hipertensão do país, com considerável inserção internacional, o do Instituto do Coração (InCor) do Hospital das Clínicas da USP, em São Paulo. Krieger, um dos nove filhos de um comerciante de origem alemã radicado no pequeno município de Cerro Largo, perto da fronteira do Rio Grande do Sul com a Argentina, e o único destinado pela família a cursar faculdade, em paralelo às suas atividades de professor e pesquisador, manteve sempre um certo gosto pela política acadêmica. E nesse lado do seu currículo, entre vários outros,
há que se destacar o trabalho, por 14 anos, como presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), função em que buscou incansavelmente melhorar o posicionamento da ciência e da comu nidade científica do país na cena internacional. Pai de dois cientistas respeitados, José Eduar do Krieger e Marta Helena Krieger, e avô de três netos, casado com dona Lorena há 55 anos, o pro fessor Eduardo Moacyr Krieger, vice-presidente da FAPESP desde 2010, enquanto finaliza mais um projeto temático que coordena, encara neste momento um novo desafio: organizar a disciplina e um grupo de medicina translacional no InCor. A seguir, os principais trechos da entrevista que ele concedeu a Pesquisa FAPESP. Vamos começar pela linha de pesquisa a que o se nhor mais tem se dedicado, os mecanismos de re gulação da pressão arterial. Como isso teve início? Eu comecei, na realidade, quando iniciei minha carreira científica. Recém-formado em Porto Ale gre, na Faculdade de Medicina, encontrei o grupo de fisiologistas argentinos liderado pelo professor Bernardo Houssay, Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina de 1947. E entre os discípulos dele esta va Eduardo Braun Menéndez, que, em 1940, havia descoberto a angiotensina, uma das substâncias importantes na regulação da pressão arterial. Eu queria fazer carreira universitária e, em 1954, esse grupo veio a Porto Alegre num programa da Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior]. Eles vinham em rodízio, ficavam um mês. O próprio Bernardo Houssay passou me ses em Porto Alegre. Como eu tinha interesse em cardiologia, trabalhei nesta oportunidade com PESQUISA FAPESP 197 | 29
Braun Menéndez. Depois fui a Buenos Aires, fiquei lá sete ou oito meses, traba lhando no sistema renina-angiotensina. No laboratório de quem? Do professor Bernardo Houssay, que es tava havia quase 10 anos fora da univer sidade. Devido a manifestações contra a ditadura militar, o grupo foi expulso da Faculdade de Medicina em 1943. Houssay, que era um patriota, sempre dizia que a ciência não tem pátria, mas o pesquisador tem e, mesmo prêmio Nobel, ele nunca quis sair da Argentina. Trabalhava lá em condições precárias, numa casa adaptada da família de Braun Menéndez, que tinha muito dinheiro. Cada quarto se tornara um laboratório. A casa ficava na rua Costa Rica, num bairro bastante distante [Pa lermo]. O pessoal da faculda de de medicina não conhecia mais o Bernardo Houssay, e toda semana chegavam a seu laboratório grandes pesquisa dores do mundo inteiro. Era um ambiente fantástico. Ao lado da casa maior tinha uma casinha que alcançávamos passando por uma cancela do jardim. Ali era o laborató rio de bioquímica de Luis Le loir, prêmio Nobel de Química em 1970. Esse era o ambiente, cheio de prêmios Nobel pre sentes e futuros, ao qual eu chegara pensando só em fazer um estágio, voltar ao Brasil e fazer cardiologia. Mas tudo isso me despertou a atenção para a pesquisa básica e fui em seguida aos Estados Uni dos completar minha formação científica. Estive na Universidade da Geórgia, no sul dos Estados Unidos, lugar que Bernardo Houssay me indicou porque, segundo ele, os melhores fisiologistas cardiovasculares estavam lá. Eu ia com bolsa da Fundação Rockefeller, que disse que eu tinha de ir para uma universidade na costa leste ou na costa oeste. Mas Houssay disse: “A da Geórgia pode não ser a melhor universi dade, mas ela tem o melhor pesquisador cardiovascular”.
prio criador. Foi muito bom, fiquei um ano e pouco e fiz um treinamento em fisiologia e farmacologia cardiovascular fantástico. Lá recebi um convite para ir a Ribeirão Preto, porque a universidade estava se or ganizando, procurando pessoas eminentes do exterior e queria alguém do grupo de Bernardo Houssay. A universidade encon trou Miguel Covian, na Argentina. Ele veio para Ribeirão e me convidou para formar o grupo cardiovascular. Tomei a decisão nos Estados Unidos de, em vez de voltar a Porto Alegre, ir para Ribeirão. Eu não conhecia, mas sabia que era da USP e is so era uma boa informação. Sabia que era uma universidade que estava recebendo um auxílio maciço da Rockefeller para se dedicar à ciência. Cheguei a Ribeirão Pre to em 1957. Estava se formando a primeira
reflexos, cujo campo eu conhecia bem, descobri que no rato o nervo que con trola e dá informação sobre a pressão arterial, que chamamos de barorreceptor ou pressorreceptor, era isolado na re gião cervical. Isso era uma novidade. Caí nesse nervo isolado e resolvi fazer um estudo sistemático das vias de tráfego de pressorreceptores no rato. Com isso, consegui uma desnervação completa do sistema, um modelo usado até hoje. É o meu trabalho com mais citações, umas 600. Foi publicado em 1964 na Circulation Research, uma revista bastante im portante. É um trabalho importante que nasce de uma observação casual. Eu não estava procurando aquilo. Mas, tendo encontrado, resolvi fazer um estudo sis temático. Saíram vários trabalhos: como trafegam esses nervos, suas características nos ratos pa ra regular a pressão arterial. O senhor lembra o dia da descoberta? Lembro. Era final dos anos 1950, começo dos 1960. Não tínhamos ainda alunos de pós-graduação (o que acon teceria apenas a partir de 1970), mas tinha um grupo que vinha sempre de Buenos Aires para Ribeirão Preto nas férias e cada laboratório mos trava o que estava fazendo. Ao fazer umas demonstra ções para eles, percebi que, ao estimular a parte central do nervo vago, às vezes obti nha aumento e, às vezes, que da de pressão. Achei aquilo estranho e num dia disse a eles que na demonstração procuraria saber se o que estava achando era verdade, ou seja, que o curare administrado ao animal estava provocando a inversão da resposta. En tão, demos o curare, estimulamos o vago, e não aconteceu absolutamente nada. Aí observei com uma lupa maior e verifiquei que não era um nervo só, mas dois. Ao la do do vago, um nervo maior que facilmen te podemos isolar e estimular na parte central, vi que tinha um outro nervinho, o simpático, que na maioria das espécies não se separa, mas no rato estava separa do. Então estimulei os dois e um dava só queda de pressão e o outro, só aumento. Então descobri que no rato é possível ter isolado o simpático do nervo vago e que
Iniciei minha carreira com Eduardo Braun Menéndez, discípulo do Prêmio Nobel Bernardo Houssay
E quem era ele? Era William Hamilton. Junto com ele ti nha Raymond Ahlquist, que descobriu os alfa e beta adrenorreceptores. Então eu aprendi todos os receptores com seu pró 30 | julho DE 2012
turma, que começara em 1952, e encontrei um ambiente notável, cativante, uma se gunda faculdade de medicina da USP, mas toda voltada à pesquisa. Básica? E clínica. Ribeirão Preto foi a pioneira em dedicação exclusiva na área clínica no Brasil. Comecei a fazer pesquisas em regulação da pressão em hipotermia até que viesse um equipamento dos Estados Unidos. Eu precisava fazer reflexos pa ra examinar como o sistema nervoso e a regulação da pressão funcionavam a temperaturas cada vez menores. Tinha que estimular o sistema de várias formas, reflexa, central ou periférica. Foi muito interessante, porque nessa pesquisa de
o simpático continha as fibras pressorre ceptoras aórticas. E isso era uma beleza! Sua conclusão foi: “Acabo de descobrir algo que ninguém sabia”. Fiz um estudo sistemático, publiquei vá rios trabalhos sobre como transitavam esses nervos, dois ou três deles mostran do as possibilidades de trabalhar com os pressorreceptores do rato. Foi aí que publiquei o trabalho bem conhecido de desnervação dos pressorreceptores. Fi quei entusiasmado, porque uma das coi sas importantes em meu trabalho era saber como o sistema nervoso se adap ta às hipertensões. E o pressorreceptor está implicado o tempo todo nesse pro cesso. A cada batimento cardíaco, ele descarrega porque a pressão aumenta, distende o vaso e excita os receptores. Os pressorrecep tores são a principal fonte de informação para conseguir mos manter a pressão em níveis normais. Quando a pressão sobe e as descargas aumentam, inibimos o sim pático para fazer a pressão diminuir. Igualmente a exci tação dos pressorreceptores estimula o vago para dimi nuir a frequência cardíaca e o débito cardíaco, favorecendo a normalização da pressão arterial. É bem conhecido que na hipertensão crônica não há bradicardia, mostran do que o reflexo está adapta do. Decidi, portanto, estudar como esse nervo trabalha nas hipertensões. Tinha sido fei ta uma verificação de que quando se im planta uma hipertensão, que nesse mo mento é aguda, esses nervos se adaptam depois de um tempo. Por isso alguém hipertenso não tem uma redução da fre quência cardíaca, mas isso acontece se a pressão sobe de repente, porque há o reflexo. Em outras palavras, o reflexo se adapta cronicamente.
hipertensão, todos sabem disso. O pro blema era saber como isso ocorre. Ha via um trabalho no cão segundo o qual a adaptação começava quatro ou cinco dias depois do aumento da pressão arterial. Com o rato, um modelo em que se pode controlar melhor a pressão, um dos pri meiros trabalhos que fiz foi a sequência de adaptação dos pressorreceptores na hipertensão. Produzi uma hipertensão súbita por coarctação da aorta [compres são], tratei de mantê-la lá em cima e mos trei que após seis horas já se verifica uma pequena adaptação, 30%, e depois de 48 horas praticamente todos os animais já estão adaptados. O que é a adaptação? É o deslocamento do limiar de estimulação, deslocando toda a faixa de funcionamen to dos pressorreceptores. Mostrei que
seis horas. O que eu buscava com isso era entender como se comporta o principal mecanismo reflexo de controle nas di ferentes elevações e quedas de pressão. Ele se adapta? Como? E eu iria mostrar posteriormente que ele se adapta, sua fai xa de funcionamento sobe para níveis de hipertensão, mas sua sensibilidade passa a ser diferente, ele fica menos sensível, como mostramos pela primeira vez na literatura. Podemos testar a sensibilida de do mecanismo variando agudamente a pressão e vendo como se comporta a descarga do pressorreceptor que está na parede da artéria e que envia informação para o sistema nervoso central. É possí vel comparar a curva de descarga de um animal normal com a de um hipertenso, que é mais inclinada, mais deitada. Esse é o seu artigo de 1970? Não, o de 1970 mostra a se quência da adaptação. De pois publiquei muitos arti gos mostrando a reversão. Depois outros mostrando que na hipotensão – muito rara na clínica – também há adap tação em cerca de 48 horas e reversão bastante rápida. A sensibilidade é outra coisa e hoje tudo isso voltou a ter implicação clínica. Porque se alguém tem uma hipertensão de causa qualquer e o meca nismo principal de regulação está adaptado, mas apresen ta sensibilidade menor, ele é menos eficiente em contro lar a pressão. A pressão va ria de momento a momento, quando se dorme, senta, levanta, corre, enfim, ela sobe ou desce de acordo com as circunstâncias fisiológicas. Quando se tem um sistema de regulação menos efi ciente, as flutuações são muito maiores. Aí é que vem a explicação: todo hiper tenso que tem o presso adaptado, com a sensibilidade menor, tem uma variabili dade maior da pressão. E o que significa isso? Está já provado que não só o nível, mas também a variabilidade lesa muito os vasos. E nos últimos anos resolveu-se retomar algo que no passado não tinha funcionado muito bem, que é estimular o pressorreceptor para diminuir o sim pático e reduzir a pressão arterial. Com a melhoria das tecnologias tornou-se pos sível implantar eletrodos na carótida do
Houssay dizia que a ciência não tem pátria, mas o cientista tem; por isso não quis sair da Argentina
O senhor se referiu a uma bradicardia. Sim, uma redução da frequência cardía ca que é um dos principais indicadores do funcionamento do pressorreceptor. Quando se aumenta a estimulação, ele produz uma bradicardia e uma vasodila tação por diminuição do simpático. Esse é o reflexo principal e está adaptado na
uma adaptação completa leva 48 horas – alguns animais um pouquinho mais ou um pouquinho menos. Vamos dizer que, de cada 10 animais, nove haviam feito uma adaptação completa em 48 horas. Fiz muitos trabalhos a esse respeito e procurei também mostrar como quando a pressão volta ao normal também nor maliza a adaptação. Fazia modelos de hipertensão renal, coisa que já fazíamos havia muito tempo com Braun Menén dez, colocando um clipe na artéria renal para deixar o rato com a pressão aumen tada cronicamente e o presso adaptado. Então eu fazia uma reversão também súbita da hipertensão, retirando o clipe, e ia ver quanto tempo levava. E eu mos trei que para a reversão precisava-se de
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paciente que, aparentemente, não lesam muito o vaso e fazem uma estimulação mais de campo. E agora já tem vários tra balhos na literatura mostrando que em hipertensões resistentes a estimulação do barorreceptor pode ser uma medida terapêutica. Qual o papel do rim na regulação da pressão arterial? Não há mais dúvida de que a hipertensão primária é multifatorial. Ela resulta do desequilíbrio entre mecanismos pres sores e depressores. Dos primeiros, o mais antigo estudado é o simpático, que controla o calibre dos vasos e o débito cardíaco. Depois veio o sistema renina -angiotensina. A renina já era conhecida desde o fim do século retrasado, mas o mecanismo que faz aumen tar a pressão, a angiotensi na, foi descoberto por Braun Menéndez, simultaneamente com [Irvine] Page nos Esta dos Unidos. Isso deu força ao mecanismo do sistema reni na-angiotensina-aldostero na. A angiotensina estimula a glândula adrenal a produ zir aldosterona, o que pro voca retenção de sal. Esses são os dois mecanismos mais conhecidos. Já os mecanis mos depressores envolvem as cininas, como a bradici nina, descoberta no Institu to Biológico, em São Paulo, por Maurício Oscar da Rocha e Silva em 1948. Houve um avanço enorme quando Ro bert F. Furchgott, que ganhou o prêmio Nobel, descobriu há duas dé cadas que o endotélio, em vez de apenas proteger o vaso e impedir a coagulação, é uma fábrica de produtos hipertensores e hipotensores. Descobriu-se então que o óxido nítrico (NO) é o grande hipotensor e que tem uma ação tônica. Dentro de cada sistema que se considerava pressor ou depressor na verdade há elementos pressores e antipressores. Portanto, os mecanismos de regulação de pressão são muito complexos. Mas por que a pessoa se torna hipertensa? Com os dados que temos até agora sabemos o seguinte: pri meiro, o sistema de regulação da pressão arterial está intimamente ligado aos ge nes. Recebemos como carga genética os mecanismos controladores da pressão.
A síntese dos mecanismos pressores e depressores é feita pelos genes, portanto a carga genética pode facilitar a produ ção de substâncias pressoras ou formar menos substâncias hipotensoras. Através da carga genética já temos alguma pre disposição para ser hipertenso ou não. Mas não basta trazer essa predisposição, o problema seguinte é o meio ambiente, que está o tempo todo suscitando regu lação da pressão arterial. E quando o senhor fala de meio am biente... É o sal, a inatividade, a obesidade, o es tresse e, atualmente, a inflamação. To das essas coisas, de uma forma ou de ou tra, mexem com o sistema de regulação. Então, se você tem um sistema de regula
da genética dos últimos anos. Em que medida esses avanços ajudaram a di recionar algumas experiências? Durante 28 anos, em Ribeirão Preto, com os alunos de pós-graduação – e tinha muito aluno – as linhas de pesquisa eram quase todas ligadas ao sistema nervoso e a mecanismos de regulação de pressão arterial. Aí eu vim para São Paulo e con tinuei essa linha de pesquisa. Quando o senhor veio para São Paulo? Em 1985 me aposentei em Ribeirão e vim para São Paulo, com 56 anos de idade. Porque fui convidado para desenvolver a hipertensão no InCor e de forma inte grada. Então agora é que começa a parte clínica. Vim continuar minha pesquisa experimental, que era o que eu sabia fa zer, tinha o reconhecimento internacional pelo que eu es tava fazendo. Mas eu que ria também fazer a pesquisa clínica e em Ribeirão Preto eu trabalhava no Departa mento de Fisiologia só com animais de experimentação. Aqui tive a oportunidade de desenvolver toda uma linha de pesquisa com o pacien te. Estudei a regulação da pressão durante o sono e o exercício. Procuramos es tudar também a influência dos reflexos na pressão ar terial, investigando o presso e o quimiorreceptor, o siste ma cardiopulmonar. Desen volvemos uma técnica de re gistro do [funcionamento do sistema nervoso] simpático, que se mede com uma agulha colocada no nervo peroneiro. Conseguimos ver a atividade basal do simpático e como ele se comporta nas diferentes circunstân cias. Enfim, montamos uma linha muito grande. Também estudamos o papel dos pressorreceptores no sono e a partir do trabalho de um de nossos colaboradores com o grupo de Geraldo Lorenzo, aqui do InCor, que estuda sono, uma das li nhas importantes da hipertensão no In Cor é a regulação da pressão no sono. A apneia do sono tem uma ligação muito grande com a pressão arterial. Durante a apneia, diminui o nível de oxigênio e aumenta o de gás carbônico. Isso esti mula os quimiorreceptores, que estão localizados na carótida e são sensíveis
Alguém com o sistema de regulação ruim pode ficar sem comer sal, deitado na rede, que será hipertenso
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ção muito bom, pode acontecer o que for que não vai suceder nada com sua pressão. Se você tiver um sistema muito ruim, pode ficar sem comer um grama de sal, deitado numa rede e vai ficar hipertenso. Esse é o estado da arte atual sobre a hipertensão essencial, resultado da combinação do terreno com o meio ambiente. Não po demos mexer no terreno, a menos que futuramente se consiga – e vamos conse guir – saber a carga genética de cada um. Aí se pode até fazer um aconselhamento de casamento a partir dessa carga, no que diz respeito à hipertensão. O senhor já estava no campo da fisio logia, mecanismos de regulação etc., quando começaram os muitos avanços
à tensão dos gases. Quando se para de respirar, os gases se alteram, estimulam -se os quimiorreceptores e a pressão vai lá para cima. O efeito desses surtos de pois de algum tempo deixa consequência permanente. A apneia do sono altera a pressão? É muito comum associar-se à hiperten são. Quando se corrige a apneia, a pres são tende a diminuir. Continuando, essa interação... Aí vem a parte clínica. Tínhamos clíni cos, cardiologistas e pneumologistas. Mas havia também o pessoal da educação fí sica, que é o grupo do Carlos Eduardo Negrão, que começou aqui conosco fa zendo pesquisa em animal de experi mentação e depois nos seres humanos. Hoje ele tem uma linha independente. Na par te de enfermagem, comecei a fazer projetos em que as enfermeiras veem os proble mas de adesão ao tratamento. E em seguida veio a biologia molecular, que entra de for ma interessante. Meu filho se formou em Ribeirão Preto em 1984. Ele foi para os Estados Unidos e fez um doutorado experimental, em fisiologia clássica guytoniana. Guyton foi um dos grandes fisiologis tas. Ele terminou o doutora do no início de 1990, quando a biologia molecular estava entrando firme no estudo da hipertensão. Ele terminou o doutorado e foi para Harvard e depois Stanford estudar a biologia mo lecular da hipertensão. Na volta, se inte grou ao nosso grupo. O primeiro trabalho que fizemos foi acasalar ratos hipertensos com ratos normais. Depois de dois cru zamentos, os netos vão ser muito espa lhados, com pressão variada e tal. Então a ideia era examinar os netos. Se eles são hipertensos, é porque trouxeram alguma coisa do avô hipertenso. Então estudamos o genoma deles para ver as diferenças em relação aos normotensos.
apresentei na FAPESP nos últimos 10 anos sempre foram temáticos, integrados, em que nós temos a parte experimental e a parte da clínica. É isso que eu tenho feito nos últimos anos. Agora estou pas sando para outro campo. Eu consegui, e foi isso que eu vim fazer aqui, uma equipe integrada de profissionais da fisiologia, da clínica, da biologia molecular, educação física, enfermagem, psicologia, nutrição, todos voltados para estudar hipertensão. Essa é a grande equipe de ponta nos es tudos da hipertensão no Brasil. Não tenha dúvida. Conseguimos um dife rencial. Um dos primeiros do grupo que saiu foi para Milão para ver monitorização de pressão arterial. Outro foi para Paris estudar a propriedade elástica dos vasos
Santos, patenteou e está desenvolvendo com laboratórios brasileiros compostos com potencial de se tornarem medica mentos. E Maria José Campagnole dos Santos é a outra professora titular. Os dois trabalharam comigo em Ribeirão Preto. Tem Kleber Franchini, em Campinas, que também fez doutorado comigo. Ele tem uma molécula e está procurando fazer a inovação com a indústria brasileira. No grupo de Ribeirão tem dois ou três titu lares. Quem lidera a fisiologia cardiovas cular no Instituto de Ciências Biomédicas da USP é Lisete Michelini, que trabalhou comigo em Ribeirão. O senhor tem mais de 200 artigos cien tíficos. Qual foi o mais importante para o conhecimento da hipertensão? Eu diria que é a série de arti gos em que mostrei o funcio namento dos pressorrecep tores. É a sequência de adap tação desses receptores na hipertensão e na hipotensão e a sensibilidade deles. Com a Lisete Michelini, estudei o mecanismo pelo qual eles se adaptam. Conseguimos mos trar que a sequência de adap tação é a mesma da dilatação da aorta na hipertensão. Asso ciamos a adaptação às altera ções que ocorrem no vaso. A propósito, no Departamento de Fisiologia em Ribeirão ti nha um colega espetacular, José Venâncio de Pereira Lei te, dono de uma cultura técni ca e científica fantástica. Nós levávamos os problemas a ele, que procurava resolvê-los. Então lhe pro pus o seguinte problema: eu precisaria ver como se comporta o local onde estão os pressorreceptores na hipertensão agu da. Tinha na literatura um Strain Gauge [dispositivo usado para medir o estresse de um objeto], que era um silástico com mercúrio que funcionava numa das pon tas da ponte de wheatstone [medidor de resistências elétricas]. O silástico era colo cado no coração, ou em algum lugar, e era muito usado em medicina. Mas na aorta do rato, pequenininha, não dava, porque o mercúrio quebrava e tal. José Venân cio encontrou um jeito: fez uma solução saturada de nitrato de cobre e funcionou que era uma beleza. Colocávamos no si lástico esse líquido, que é condutor e tem
Achamos cinco regiões cromossômicas ligadas à hipertensão em nosso primeiro trabalho de biologia molecular
Foi aí que identificaram algumas re giões cromossômicas... Foi o nosso primeiro trabalho em colabo ração. Encontramos cinco regiões rela cionadas à hipertensão. Os projetos que
e como eles se alteram na hipertensão. Outro foi para Charleston estudar me tabolismo na hipertensão. Depois outra saiu e foi ver a parte neurogênica. O últi mo saiu para estudar apneia do sono na John Hopkins.Esse grupo aqui do InCor é um grupo de ponta, porque integra o conhecimento. E o senhor, como pai desse grupo, tem um imenso orgulho de tudo isso. Tenho. No Brasil formei 32 ou 33 douto res e uns 10 já são professores titulares. Tem gente muito boa. Tem um grupo de fisiologia em Belo Horizonte que é top no mundo. Eles estudam a angiotensina 1-7, que é diferente porque é a angiotensina boa. Esse grupo, de Robson Augusto dos
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certa estabilidade, e funcionava dois ou três dias, o suficiente para as experiên cias. Ele desenvolveu isso com a Lisete, que era aluna da pós-graduação. Conse guimos fazer vários trabalhos importan tes, mostrando como funciona o calibre da aorta na hipertensão. Relacionamos o tempo de adaptação com o tempo de modificação do vaso e vimos que o vaso se adapta. Nas primeiras seis horas resiste ao aumento de pressão, quando então tem uma pequena adaptação dos pressorre ceptores. A adaptação completa, a de 48 horas, varia um pouco, de rato para rato, e se dá quando a aorta se distende. Ela atin ge um novo limiar e agora passa a funcio nar, digamos, normalmente. Se antes ela funcionava assim, e o receptor estava ali, agora ela passa a funcionar com o calibre dilatado e o receptor passa a ser estimulado de maneira pa recida, mas não igual, porque as dimensões são diferentes e a sensibilidade cai. Quando essa aorta está mais alargada, porque acabou se adaptando ao processo, ela não determina que a passa gem do sangue seja mais len ta? O sistema circulatório não fica mais lento? Não, porque o problema to do da hipertensão é no nível das arteríolas, o aumento da resistência é ali. A aorta sofre a consequência de ter que a aumentar a pressão para ven cer a resistência. Ela se adap ta, porque é bem elástica. Ela armazena parte do volume sistólico. O coração bate e se a artéria fosse rígida, o sangue iria direto para os capilares e nós ficaríamos sem san gue durante a diástole, desmaiaríamos. O sistema arterial é muito interessante porque as arteríolas têm uma resistência enorme, são torneirinhas bem fechadas. Então quando o coração expele o sangue, ele tem mais possibilidade de distender as artérias grandes para acumular do que para fazer passar o sangue lá. Então as artérias acumulam sangue. Quando o coração para de expelir sangue e entra em diástole, cujo tempo corresponde ao dobro do da sístole, as grandes artérias liberam o sangue que tinham. No vaso capilar, onde o interesse é a troca, o flu xo é contínuo, graças a esse mecanismo
fantástico, mas perigosíssimo. Basta mo dificar um pouco a torneirinha que dá hipertensão. É um mecanismo fantástico que a natureza criou, sem isso teríamos um sistema precário. Como oxigenar as células cerebrais que precisam constan temente de sangue novo? É preciso ter câmara elástica e alta resistência. O senhor está deixando a coordenação de seu grupo no InCor. O que vai fazer? Tenho duas tarefas para completar: um temático, que deve durar mais um ano e pouco, com o qual estamos tentando obter biomarcadores da evolução tera pêutica dos pacientes, para saber se um paciente pode responder melhor ou pior a um tratamento, e um projeto do Minis tério da Saúde e do CNPq sobre hiper
Nos meus trabalhos mais importantes mostrei a ação dos pressorreceptores na hipertensão
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tensão resistente, do qual participam 26 centros e hospitais universitários. Quere mos saber a porcentagem de brasileiros resistentes à terapêutica da hipertensão. Há alguma hipótese? Sim. Nos países avançados de 20 a 30% dos pacientes, mesmo recebendo um tratamento ótimo, continuam hiperten sos. No Brasil não há trabalhos de fôlego. Num primeiro momento, o paciente será submetido ao tratamento padrão, com doses ótimas e controladas. Faremos monitorização de pressão para descobrir essa porcentagem. Em seguida, vamos randomizar os pacientes resistentes e ver qual é a melhor medicação para eles, uma que atua no sistema nervoso central
ou uma que age no sistema renina-an giotensina-aldosterona. Isso é medicina translacional, que tem dois aspectos. O primeiro é passar o conhecimento para a clínica. O segundo é transformar o que se vê na pesquisa clínica em medidas de saúde pública. Falta cerca de um ano e pouco para terminar. Estamos com mil dos 2 mil pacientes de que precisamos. O conceito de medicina translacional tem uns 10 anos... O termo é novo, mas a ideia de pesquisa translacional é antiga, remonta à década de 1940. Durante a guerra, premido pe la necessidade de tecnologia militar, foi criado o Vale do Silício em parceria com a Universidade Stanford. Aquilo simbo lizou a rapidez com que o conhecimento vai da universidade para o se tor privado. Ali começou um círculo virtuoso resultante da passagem rápida do conhe cimento para a aplicação. A medicina tardou a fazer isso. Começou há 12 anos. Primei ro o Instituto de Medicina da National Academy of Sciences começou a discutir por que a investigação clínica no país não avançava como a pesquisa básica biomédica, que é uma beleza. Os NIH [Institutos Nacionais de Saúde] come çaram a se preocupar com is so e o principal passo ocorreu quando Elias Zerhouni se tor nou presidente dos NIH. Ele fez o chamado road map dos NIH para três grandes áre as: as áreas estratégicas que precisavam ser estudadas; a formação de equipes multidisciplinares; e a reengenha ria da investigação clínica ou medicina translacional. Ele achava necessário um esforço para a investigação clínica bene ficiar a saúde pública. Criaram o progra ma para financiar os núcleos de medicina translacional nas universidades. Começa ram com 10 ou 12 universidades em 2007 e 2008 e hoje são umas 40 ou 50. Os NIH pretendem financiar a gestão da pesquisa universitária. Eles querem um núcleo de integração na universidade, principalmen te na área da saúde, que faça o avanço do conhecimento básico com interação com as outras disciplinas (física, química, infor mática etc), e que o conhecimento chegue rapidamente à clínica e à saúde pública.
Visitei a Universidade da Pensilvânia, que tem um núcleo de medicina translacional que é uma beleza. Aí o senhor pensou: como faço algo se melhante no Brasil? Pensei: o InCor nasceu translacional, nasceu com a ideia de que o conhecimento precisa passar da bancada para o leito. Então achei que era hora de ter uma disciplina chamada cardiologia translacional. Procuro auxiliar o pessoal a fazer projetos e a introduzir a inovação, uma das coisas que permeia esse tipo de medicina. Houve um simpósio sobre inovação no InCor, fiz uma revisão da lei federal de inovação, a Lei do Bem, e da lei estadual, mostrando a importância de ter núcleos de inovação tecnológica em vários centros. Também estou auxiliando o diretor a internacionalizar as atividades da Faculdade de Medicina. E sua experiência na Acade mia Brasileira de Ciências? Foram 14 anos. Me tornei presidente em 1993 e, em 1997 ou 1998, a academia re cebeu um convite para integrar uma espécie de federação das academias, a Inter-Academy Panel, IAP, com quase uma centena de associados. Em 2000 fizemos uma reunião em Tóquio e o estatuto foi aprovado. Fui eleito presidente para representar os países em desenvolvimento de 2000 a 2003. Também representei a ABC no Interacademy Council, composto por 13 academias. Essas duas entidades proporcionaram à ABC inserção internacional. Conheci a política científica, como as academias se auxiliam, os temas globais com que as academias e os pesquisadores devem se preocupar. Mas preciso destacar que minha chegada à presidência da ABC coincidiu com uma oportunidade de participar da política nacional. José Israel Vargas foi nomeado ministro da Ciência e Tecnologia quando era vice-presidente da ABC. Ele promoveu a academia, que se tornou reconhecida em plano nacional. A SBPC dominava o terreno. Conseguimos equilibrar o jogo e hoje as duas são consideradas importantes, se entendem e colaboram.
O senhor ajudou a criar o Brazilian Journal of Medical and Biological Research? Eu era presidente da Sociedade Brasileira de Fisiologia. Vínhamos conversando com o pessoal da bioquímica e da farmacologia que estava na hora de as áreas básicas de biomedicina criarem uma revista nacional em inglês, por que já tinha densidade e trabalhos o suficiente. Fomos procurados por Alberto Carvalho da Silva, que era fisiologista, e pelo pessoal do CNPq, com a seguinte ideia: Michel Jean, hematologista, tinha criado a Revista Brasileira de Pesquisas Metrobiológicas, que era indexada. Eles queriam que a gente pegasse a revista. Mas queríamos uma revista em inglês. A solução seria mudar o nome. Então o
publicado sobre a qualificação das revistas. Há um trabalho publicado por nós que é a primeira classificação das revistas. Precisávamos daquilo para decidir o que fazer. De tudo o que senhor fez na política científica, o que lhe é mais caro? O que teve mais repercussão foi a minha atuação como presidente da ABC porque conseguimos, na esfera nacional e internacional, projetar a ciência brasileira. E ter o reconhecimento da academia como um órgão de assessoramento do governo. Estou até hoje como membro do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia, subordinado à presidente, e vivo cobrando que aquilo tem de funcionar melhor. A fundação da FESBE também foi importante, assim como a criação da Sociedade Brasileira de Hipertensão. Sempre fiz parte dessas associações, porque eu estava trabalhando e continuei trabalhando na bancada. Sou professor e cientista, e também ativista. Quando nós criamos o IAP, Bruce Alberts, que foi presidente da Academia Americana por 12 anos, escreveu um artigo de que gostei muito. A tese dele é que as academias deviam se tornar mais ativistas. O cientista tem obrigação social de trabalhar para fazer com que a ciência reverta em benefício para a sociedade. O esforço que tenho feito hoje é o de entender a medicina com foco na prevenção. E a prevenção é educação.
O InCor nasceu com a ideia de que o conhecimento precisa passar da bancada para o leito Michel disse: “Eu passo a revista para vocês fazerem o que quiserem”. O CNPq apoiou. E foi o que fizemos. Para tornar viável, criamos a Associação Brasileira de Divulgação Científica, formada pelas mesmas sociedades que iriam integrar a Fesbe, criada quatro ou cinco anos depois. Para fazer a revista criamos uma associação que é a dona da publicação e eu passei a ser presidente da associação e o editor, junto com o Sérgio Henrique Ferreira. Fiz parte também do comitê de revistas da FAPESP. Trabalhei com a bibliotecária Rosali Duarte, que era da Revista de Genética, e percebemos que recebíamos pedidos das revistas e não sabíamos o que aquilo significava. Então fizemos o primeiro trabalho brasileiro
Sua relação com a medicina translacio nal mostra essa preocupação? É o foco. Estamos programando na faculdade uma conferência internacional sobre educação médica. Não podemos formar um médico que conheça todas as especialidades e sem noção do que vai trabalhar na atenção primária. É preciso ao mesmo tempo ensinar a curar o doente e prevenir a doença. Não temos recursos financeiros para dar tratamento a todos com a sofisticação tecnológica atual. Temos de trazer à cena a prevenção da doença, ela é muito mais barata e tem muito mais repercussão. Assim, as pessoas ficarão mais tempo gozando de boa saúde. n PESQUISA FAPESP 197 | 35
política c&T Desenvolvimento sustentável y
Consenso mínimo
Conferência Rio+20 produz relatório pouco ambicioso, mas avança em compromissos voluntários
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Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20), realizada no Rio de Janeiro entre 20 e 22 de junho, aprovou um documento final que ficou longe de caminhar na mesma velocidade com que os problemas ambientais do planeta avançam, embora tenha sido capaz de evitar retrocessos. Com 53 páginas, o relatório aprovado pelos 190 chefes de Estado ou seus representantes, intitulado O futuro que queremos, deixou a definição das questões importantes para o ano que vem, quando devem começar a tomar forma os objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS), com metas para água, cidades, energia e oceanos. Se as discussões prosperarem, os objetivos passarão a vigorar em 2015. “A estrada será longa e difícil”, admitiu o secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon, referindo-se ao trabalho que a diplomacia terá nos próximos três anos, uma vez que a Rio+20 não obteve consenso sobre o alcance desses objetivos. Dois grupos de trabalho serão criados: um vai delimitar as metas, enquanto o outro discutirá meios de ajudar os países pobres a alcançá-las. A adesão às metas, de todo modo, será voluntária. Um avanço foi o compromisso dos governos de viabilizar um programa de 10 anos para reavaliar os padrões de produção e consumo, que vinha sendo discutido desde 2004. “A direção do documento é positiva, mas a velocidade é muito lenta”, diz Jacques Marcovitch, reitor da Universidade de São Paulo entre 1997 e 2001. “Um desafio agora é construir novas coalizões, no âmbito setorial ou subnacional, a fim de avançar através de métricas apropriadas
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Ban Ki-Moon e Dilma, após o anúncio do documento final, e estande no Riocentro: 45 mil participantes
em tópicos específicos”, afirma ele, citando o exemplo bem-sucedido da moratória da soja, compromisso dos produtores e exportadores de não comercializarem soja plantada em áreas de desmatamento na Amazônia a partir de 2006, ou do avanço da etiquetagem de automóveis segundo a sua eficiência energética, adotada por vários países. Marcovitch coordenou o estudo Economia da mudança do clima no Brasil: custos e oportunidades, feito por um consórcio de instituições, que identificou as principais vulnerabilidades da economia e da sociedade brasileira em relação às mudanças climáticas. Os dois temas principais da conferência, que eram a economia verde e a reforma na estrutura das Nações Unidas para o desenvolvimento sustentável, acabaram esvaziados. O mote da economia verde, conjunto de estratégias voltadas a reduzir o impacto ambiental do desenvolvimento econômico, permeou a conferência de modo amplo e vago. Contemplaria desde o consumo eficiente da energia e dos recursos naturais até o investimento em tecnologia agrícola de baixo impacto em países pobres. “Foi uma tentativa de criar uma nova expressão motivadora, mas ela é fraca, ao contrário do que aconteceu com o conceito de desenvolvimento sustentável, carro-chefe da conferência Eco-92”, diz Carlos Joly, professor da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), coordenador do Biota-FAPESP e assessor sênior em biodiversidade do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). A Eco-92 beneficiou-se do Relatório Brundtland, documento de 1987 que estabeleceu o conceito abrangente de desenvolvimento sustentável. Seu desdobramento levou à percepção global de que a questão se apoia não só sobre um pilar ambiental, mas também sobre os pilares econômico e social. Tal clareza não se repetiu no conceito de economia verde. “Eu nunca entendi quando alguém fala que a economia verde vai tomar lugar do desenvolvimento sustentável, porque o desenvolvimento sustentável já é algo concordado amplamente”, diz Gro Harlem Brundtland, ex-primeira-ministra da Noruega, responsável pelo relatório de 1987. “Os países em desenvolvimento acharam que a economia verde embutia o risco de barreiras comerciais no futuro, enquanto os desenvolvidos se viram pressionados a reduzir sua pegada de carbono. Como não houve consenso sobre a forma de financiar os países em desenvolvimento, ela se manteve no terreno das intenções”, diz Carlos Joly. A criação de um fundo de US$ 30 bilhões para fomentar projetos no campo da sustentabilidade, proposta pelo G-77, grupo que reúne países como Brasil e China, foi excluído do texto final da Rio+20. pESQUISA FAPESP 197 z 37
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A ideia de criar uma organização voltada para o meio ambiente da ONU, combatida pelos Estados Unidos e pelo Brasil, mas acalentada por 140 países, não saiu do papel. Os países aceitaram, contudo, fortalecer o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma). Sediado em Nairóbi, no Quênia, o Pnuma sofre um isolamento na estrutura da ONU e, em quatro décadas de existência, amealhou pouca influência e escassos recursos. Uma novidade é que todos os países terão participação obrigatória no programa, o que não ocorria até agora. A Rio+20 fortaleceu o Pnuma por meio de um aumento dos fundos que a ONU repassa ao organismo. “Trata-se de um aumento importante se for levado em conta que atualmente 96% dos recursos são procedentes de contribuições voluntárias”, afirmou o diretor-executivo do programa, Achim Steiner. “Ponto de partida, não de chegada”
A liderança brasileira na Rio+20 foi criticada por patrocinar um consenso pouco ambicioso, na tentativa de evitar que a conferência terminasse sem um documento final. “É um ponto de partida, não de chegada”, defendeu a presidente Dilma Rousseff pouco antes de encerrar o encontro de cúpula. O Brasil assumiu a responsabilidade de redigir o documento final, apresentando-o na véspera do início da reunião de chefes de Estado sem os dispositivos que geravam divergências. 38 z julho DE 2012
Índios em evento paralelo no Aterro do Flamengo, plenária de chefes de Estado e a norueguesa Gro Harlem Brundtland, líder da Eco-92
“Em vez de deixar alguns pontos entre colchetes, que na linguagem diplomática significa ausência de acordo, para serem discutidos pelos chefes de Estado, preferiu-se um documento com um denominador comum mínimo minimorum, exclusivamente com pontos previamente acordados nas negociações até então”, diz Joly. Se a conferência de 1992 foi prestigiada por 114 chefes de Estado, a Rio+20 atraiu 86, e o documento final já estava pronto no dia 19, véspera do início da reunião dos chefes de estado. “Como não havia nada de concreto para ser decidido, muitos países foram representados por ministros, não por seus mandatários”, afirma. O resultado, diz Joly, foi um documento tímido. “Havia uma expectativa de apoio ao imediato desenvolvimento de um plano para conservação dos oceanos, mas no documento final isto foi empurrado para 2014.” As questões relacionadas à biodiversidade também tiveram sua relevância esvaziada e enfraquecida. O recém-criado Painel Intergovernamental para Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (Ipbes), por exemplo, precisava de um forte impulso. “Mas, no documento, os chefes de Estado afirmam que apenas ‘tomaram ciência’ do painel, o que é muito fraco”, diz Joly. Ministros de Estado reunidos num dos eventos da Rio+20 mostravam manchetes de jornais que declaravam o fracasso da conferência – mas os jornais eram de 20 anos atrás e tratavam do resultado da Eco-92, cujos desdobramentos transformaram-na numa reunião muito bem-sucedida. Com isso buscavam mostrar que o sucesso ou o fracasso da cúpula só poderão ser avaliados mais adiante. “A reunião foi positiva, pois apresentou temas de maneira objetiva e pode acelerar processos. Mas tenho medo de que fique parecida não com a Eco-92, mas com a Rio+10, realizada em Johannesburgo em 2002, da qual ninguém se lembra”, diz Carlos Joly. Cerca de 110 mil pessoas foram ao Rio de Janeiro participar da Rio+20 – e metade desse contingente esteve presente no Riocentro, que sediou o
fotos 1 un photo / nicole algranti 2 un photo / guiherme costa 3 e 4 un photo
encontro de cúpula e debates sobre temas diversos, da intolerância racial à situação dos oceanos ou às estratégias para melhorar o transporte urbano. Entre os eventos paralelos, destacaram-se a Cúpula dos Povos, no Parque do Flamengo, o Espaço Humanidade 2012, no Forte de Copacabana, e as exposições no píer Mauá. Se a reunião oficial alcançou um resultado aquém das expectativas, os eventos paralelos produziram compromissos mais fortes. Internacional e multidisciplinar
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No Fórum de Ciência, Tecnologia e A foto oficial dos chefes de Estado Inovação para o Desenvolvimento na Rio+20: Sustentável, realizado entre os dias presença menos 11 e 15 de junho na Pontifícia Uniexpressiva do que versidade Católica do Rio de Janeiro na Eco-92 (PUC-RJ), foi lançada a iniciativa Future Earth, um projeto internacional e multidisciplinar que busca coordenar pesquisas e políticas relacionadas às mudanças ambientais globais. O comitê científico do pro- Prefeitos de 59 grama será criado até 2013. Os temas dos estudos serão o esta- grandes cidades do do planeta, os riscos de catástrofe, lançaram metas as regiões mais críticas, as maneiras de reduzir as emissões de carbono, para a redução a relação com os oceanos e os caminhos para transformar a sociedade, de gases do entre outros. “Precisamos de uma abordagem mais interdisciplinar, efeito estufa, mais internacional, mais colaboranum compromisso tiva e mais ágil para lidar com os desafios críticos da mudança ambiental voluntário que global e o desenvolvimento sustentável”, diz Diana Liverman, codiretora animou a do Instituto do Meio Ambiente da Universidade do Arizona e uma das conferência coordenadoras da Future Earth. A iniciativa congrega instituições como o Conselho Internacional para a Ciência (Icsu, na sigla em inglês), que organizou o fórum, e a Unesco, braço das Nações Unidas para educação, ciência e cultura. Como membro do Belmont Forum – consórcio que reúne agências de financiamento a pesquisas no campo das mudanças climáticas globais –, a FAPESP participará da iniciativa auxiliando na escolha dos temas das pesquisas, na elaboração das chamadas e na análise, seleção e cofinanciamento dos projetos. Também no fórum da PUC-RJ os resultados de três grandes iniciativas da FAPESP, que estabeleceram uma nova abordagem em termos de organização científica, foram apresentados à comunidade científica internacional: o Programa
FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG), o Biota-FAPESP e o Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen). Foram firmados, na órbita da Rio+20, 705 acordos voluntários entre empresas, governos e sociedade civil que deverão garantir R$ 1,6 trilhão a programas nos próximos 10 anos. No evento paralelo Diálogo Global de Bolsas Sustentáveis, representantes de bolsas de valores de países como Estados Unidos, Brasil e África do Sul firmaram um compromisso para estimular boas práticas ambientais e sociais nas 4.600 empresas afiliadas. Um grupo de representantes das 59 maiores cidades do mundo, sob a coordenação de Michael Bloomberg, prefeito de Nova York, lançou metas para a redução de gases do efeito estufa, num evento paralelo à conferência. De acordo com o grupo, estratégias de redução de seus membros poderão reduzir a emissão de poluentes em até 248 milhões de toneladas de gases por ano, a soma das emissões de Argentina e de Portugal. O Banco Mundial vai disponibilizar R$ 13 bilhões por ano para sustentar as iniciativas. A conferência também foi o palco para o anúncio dos vencedores do Blue Planet Prize de 2012, considerado uma espécie de Nobel do meio ambiente. Foram agraciados os cientistas Thomas Lovejoy, da Universidade George Mason, Estados Unidos, William Rees, da Universidade de British Columbia (Canadá) e Mathis Wackernagel, da Global Footprint Network, da Suíça. O prêmio é concedido pela Asahi Glass Foundation, do Japão. Lovejoy, responsável pela introdução do termo biodiversidade na comunidade científica, também foi agraciado com o Prêmio Muriqui 2012, instituído pelo Conselho Nacional da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica em reconhecimento a ações que contribuam para a conservação da biodiversidade. Também receberam o prêmio Carlos Joly, do programa Biota-FAPESP, e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). n Fabrício Marques, do Rio de Janeiro pESQUISA FAPESP 197 z 39
ciência doenças mentais y
Tempestades do corpo e da alma Crises de depressão e de euforia provocam desequilíbrios químicos que podem danificar as células e acelerar o envelhecimento do corpo
ilustrações eduardo sancinetti
Ricardo Zorzetto
40 z julho DE 2012
Bioquímica
medicina
Neurociência
Psiquiatria
pESQUISA FAPESP 197 z 41
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esde 2009 o psiquiatra Rodrigo Bressan e outros pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) acompanham um grupo de adolescentes com alto risco de desenvolver doenças mentais graves como o transtorno bipolar e a esquizofrenia. Eles querem descobrir o momento adequado para agir antes que os problemas se manifestem e, assim, tentar evitar que se instalem. Ao mesmo tempo, procuram ensinar os adolescentes e seus familiares a lidar com situações estressantes que podem disparar as crises. Assim que possível, Bressan e os psiquiatras Elisa Brietzke e Ary Araripe Neto querem ver se compostos anti-inflamatórios, antioxidantes ou neurotróficos poderiam proteger as células cerebrais e, quem sabe, reduzir o risco de desenvolver essas doenças mentais. A estratégia de tentar proteger o cérebro com esses e outros compostos se baseia na hipótese de que os neurônios e outras células cerebrais sofrem danos gradatiA ideia de que vos a partir do primeiro o transtorno bipolar episódio mais intenso da doença – há quem suse a depressão se peite de que os danos podem começar até mesmo agravam a cada antes. Estudos recentes indicam que nesses dissurto pode indicar túrbios o cérebro produz a necessidade certos compostos em níveis nocivos que atrapade diagnóstico e lham o funcionamento das células e podem cauintervenção precoce sar danos irreparáveis à medida que se sucedem, levando à deterioração das capacidades de raciocínio, planejamento e aprendizagem e até a uma alteração leve e As crises que de tempos em tempos atormentam definitiva do humor. Simultaneamente ao au- a mente também intoxicam o corpo, acredita Kapc mento na concentração dessas substâncias, ha- zinski. Elas seriam como tempestades químicas veria também uma diminuição nos de compos- que desfazem o equilíbrio das células cerebrais tos neuroprotetores naturalmente produzidos e liberam compostos que, carregados pelo sanpelo organismo. gue, inundariam o organismo – às vezes levando Um dos pesquisadores que ajudou a desen- a um grau de intoxicação quase tão grave como volver essa hipótese é o psiquiatra Flávio Kapc o enfrentado por quem desenvolve uma infecção zinski, professor da Universidade Federal do generalizada (sepse). Repetidas ao longo de anos Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador do ou décadas, essas avalanches tóxicas precipitadas Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em por surtos de depressão ou de mania produziriam Medicina Translacional. Ele está convencido um desgaste lento e progressivo do cérebro e de de que a evolução dramática dos casos graves todo o corpo, reduzindo a capacidade de recupede transtorno bipolar e de depressão é conse- ração e acelerando o processo de envelhecimento. quência de alterações fisiológicas causadas pelas Kapczinski começou a elaborar esse modelo crises recorrentes. teórico com base em experimentos feitos por sua 42 z julho DE 2012
equipe e por outros grupos para explicar como e por que a depressão e o transtorno bipolar, uma vez instalados e sem o tratamento adequado, seguem um padrão de agravamento progressivo que pode culminar com a morte precoce por problemas cardiovasculares e até câncer. De acordo com o modelo, as outras doenças que aparentemente nada têm a ver com o que se passa no cérebro poderiam evoluir como resultado dos desequilíbrios orgânicos gerados pelos episódios severos de depressão e mania. Apresentada inicialmente em 2008 na Neuroscience and Behavioral Reviews, essa hipótese vem ganhando reconhecimento internacional. No último ano os estudos de Kapczinski já foram citados cerca de mil vezes em outros trabalhos. O psiquiatra australiano Michael Berk, da Universidade de Melbourne, acompanha essas pesquisas e, com Kapczinski, chamou esse novo modelo de neuroprogressão. “Sabemos que esses distúrbios são progressivos e essa proposta teórica explica por quê”, diz Berk. Para ele, a interpretação de que essas doenças se agravam a cada surto pode gerar um impacto importante no tratamento por indicar a necessidade de diagnóstico e intervenção precoce e por sugerir que terapias neuroprotetoras possam atenuar o efeito desses problemas. “A ideia está posta”, diz o pesquisador da UFRGS. “Agora é possível trabalhar para tentar confirmá-la ou refutá-la.” Ele sabe que o modelo é ousado e que é necessário reunir mais evidências para demonstrar que ele representa de modo adequado a evolução da depressão e do transtorno bipolar. “Temos trabalho para umas duas décadas”, diz Kapczinski. conceito e realidade
Corpo envenenado O gráfico abaixo mostra o nível médio de compostos tóxicos no sangue, que, nos surtos de mania ou depressão, é superior ao de pessoas saudáveis ou tratadas e inferior ao de pessoas com sepse Índice de toxicidade
fonte Kapczinski et al. / molecular psychiatry 2010
2,0
1,0
0,0
-1,0
Saudáveis
Tratadas
Mania
Depressão
Sepse
Segundo alguns especialistas, o conceito de neuroprogressão explica bem os sintomas clínicos, mas é possível questionar se essas alterações biológicas de fato ocorrem, uma vez que as evidências ainda são incipientes. Exames de imagens que indicam redução no volume de algumas áreas cerebrais em geral são feitos com pacientes de idades diferentes, que passaram por números distintos de surtos de mania e depressão. Provas mais consistentes exigiriam o acompanhamento de pacientes por vários anos, com a realização de exames de tempos em tempos para avaliar a evolução do problema. Ainda que esteja longe de ser comprovada, essa proposta está abrindo caminhos para a busca de terapias mais específicas e eficientes e para o desenvolvimento de estratégias que permitam identificar precocemente as pessoas com risco de desenvolver esses problemas, como vem fazendo a equipe da Unifesp. Se estiver correta, pode ajudar a entender como uma doença que de início se manifesta com um pESQUISA FAPESP 197 z 43
quadro relativamente benigno, em alguns anos deteriora a capacidade de raciocínio, planejamento e aprendizagem e altera definitivamente o humor a ponto de impedir uma pessoa de levar uma vida normal, como Kapczinski e outros médicos estão habituados a ver. “Esse é um dos múltiplos mecanismos de progressão da doença”, afirma o psiquiatra norte-americano Robert Post, autoridade internacional em transtorno bipolar. “A evidência mais clara [de que pode estar correto] é que o número de episódios precedentes de depressão ou mania está correlacionado com o grau de disfunção cognitiva”, afirma Post, com quem Kapczinski colabora desde 2008. Em um artigo publicado em maio deste ano no Journal of Psychiatric Research, Post, Kapczinski e Jaclyn Fleming analisaram quase 200 trabalhos com evidências de que a disfunção cognitiva aumenta, as alterações em algumas regiões cerebrais se intensificam e o tratamento perde eficiência à medida que cresce o número de crises e a duração da doença. No artigo, os pesquisadores reconhecem que não é possível saber se toda essa transformação é causa ou consequência da doença. Mas sugerem que, do ponto de vista clínico, parece prudente pensar em iniciar o tratamento o mais cedo possível e mantê-lo por um período mais prolongado. “De acordo com essa visão, um surto de mania ou depressão pode ser entendido da mesma forma que o infarto”, diz Elisa Brietzke, ex-orientanda de Kapczinski. “Todos são eventos agudos, resul-
tado de alterações que surgiram no organismo bem antes.” Ante essa interpretação, completa Araripe, “o objetivo do tratamento deixa de ser apenas a remissão dos sintomas e passa a ser evitar a recaída e auxiliar na manutenção da capacidade funcional”. Danos às células
O modelo sobre a progressão das doenças mentais proposto por Com a repetição Kapczinski e seus colaboradores das crises, representa um avanço em relação aos anteriores. A proposta teórica a disfunção mais aceita considera os transtornos mentais resultado da interação entre cognitiva as condições sociais, econômicas, psicológicas e culturais em que o aumenta, indivíduo vive (os fatores ambienas alterações tais) e sua propensão a desenvolver o problema, determinado por suas cerebrais se características genéticas. Essa abordagem mais antiga cointensificam meçou a ser construída há uma década pelos psicólogos Avshalom Caspi e o tratamento e Terrie Moffit, pesquisadores do perde eficiência King’s College, em Londres, a partir dos resultados de estudos em que acompanharam 1.037 crianças dos 3 anos de idade até os 26 anos. Nesses trabalhos, eles observaram que certas alterações em genes responsáveis pela produção de mensageiros químicos do cérebro (neurotransmissores) aumentavam o risco de
Círculo vicioso A partir da décima crise de mania ou depressão os surtos passam a ocorrer mesmo na ausência de fatores que provocam estresse
estresse no ambiente 1
4 5 6 7 8 9 10 2 3
Reorganização patológica
resposta ao tratamento Pacientes com múltiplos episódios apresentavam pior resposta ao tratamento, especialmente ao lítio
crise de mania ou depressão
dano celular
Melhora dos sintomas de humor
10
Valproato Lítio
8
Placebo
6 4 2 Nº de episódios
0 0
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2
4
6
8
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16
Tormenta química
Há tempos se sabe que em cada episódio leve ou intenso de estresse, provocado por um perigo real ou imaginado, o organismo reage liberando o hormônio cortisol. Produzido por glândulas situadas sobre os rins e lançado na corrente sanguínea em pequenas quantidades e por pouco tempo, o cortisol aumenta os batimentos cardíacos, eleva a pressão arterial e acelera a produção de energia. Enfim, prepara o corpo À medida que a doença para fugir do perigo ou enfrentá-lo. progride, os surtos de mania Mas, em doses altas e por períodos prolongados como pode acontecer e de depressão podem antes das crises, o cortisol começa a lesar os órgãos, entre eles o céreganhar autonomia e se bro (ver Pesquisa FAPESP n° 129). tornar independentes dos Pouco tempo atrás pesquisadores do Instituto Nacional de Saúde Menfatores que os disparavam tal dos Estados Unidos verificaram que, no interior das células cerebrais, em especial os neurônios, os níveis elevados de cortisol danificam as mitocôndrias, compartimentos em que o açúcar dos alimentos é convertido em energia. E danos nas mitocôndrias uma pessoa desenvolver comportamento antis- significam problema na certa. Elas produzem 85% da energia que as células consomem para se mansocial ou depressão. Além da influência dos genes e do ambien- terem vivas. Ainda que de modo indireto, o exceste, Kapczinski e seus colaboradores incluem no so de cortisol faz surgirem poros nas paredes das modelo novo um terceiro elemento: os danos às mitocôndrias, por onde vazam compostos tóxicos células do cérebro e de outros órgãos causados que avariam os lipídeos e as proteínas e alteram pelos surtos da própria doença psiquiátrica. Es- a estrutura da molécula de DNA no núcleo das ses surtos em geral se iniciam como uma resposta células. Toda essa transformação aciona os mecado organismo a um evento estressante, que po- nismos de apoptose, a morte celular programada. de ser intenso e breve, como um assalto a mão Por meio de uma técnica que permite avaliar as armada, ou mais ameno e duradouro, a exemplo milhares de proteínas produzidas pelo organismo daquele vivido por quem trabalha o tempo todo em certo momento, o biólogo brasileiro Daniel sob tensão. Repetidos muitas vezes, os episódios Martins-de-Souza, pesquisador do Instituto Max de mania ou de depressão acabariam por minar a Planck para Psiquiatria, na Alemanha, também capacidade do corpo de lidar com novos eventos obteve indícios de que o funcionamento dessas estressantes. “Nossa hipótese é que a doença se organelas está alterado nas doenças psiquiátricas. realimenta”, conta Kapczinski. Em especial, na depressão verificou diferenças Essa proposta parece explicar melhor o agra- na fase final da produção de energia, a chamada vamento dos distúrbios psiquiátricos marcados fosforilação oxidativa ou respiração celular, que por crises sucessivas, como a depressão e o trans- ocorre no interior das mitocôndrias. torno bipolar. Nessas enfermidades, a influência As consequências dos danos às mitocôndrias não de fatores ambientais sobre a propensão genéti- se restringem às células. Os compostos liberados ca seria fundamental para disparar os primeiros por elas alcançam a corrente sanguínea e ativam episódios de mania ou de depressão. Mas esses proteínas do sistema de defesa que disparam a fatores perderiam importância à medida que a inflamação, como a interleucina-6 (IL-6), a interdoença avança e os surtos se tornam cada vez leucina-10 (IL-10) e o fator de necrose tumoral alfa mais frequentes e prolongados – em alguns ca- (TNF-alfa). Chegando ao cérebro, essas proteínas sos, mesmo com o uso de medicamentos – e o ativam outras reações bioquímicas que causam a intervalo entre eles menores. Com o tempo, em morte de mais neurônios. Segundo Kapczinski, esse geral a partir da décima crise, os surtos ganham processo realimenta a destruição celular, reforçada autonomia e podem se tornar independentes das por outro fenômeno típico do transtorno bipolar: condições estressantes que antes os disparavam a superprodução do neurotransmissor dopamina, (ver infográfico na página ao lado). que também aciona a apoptose. pESQUISA FAPESP 197 z 45
Os Projetos 1 Análise estereológica post mortem das principais regiões cerebrais de indivíduos portadores de transtorno afetivo bipolar nº 09/51482-0 2 Prevenção na esquizofrenia e no transtorno bipolar da neurociência à comunidade: uma plataforma multifásica, multimodal e translacional para investigação e intervenção nº 11/50740-5 modalidade 1 Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa 2 Projeto Temático/Pronex Coordenadores 1 Beny Lafer – USP 2 Rodrigo Affonseca Bressan – Unifesp investimento 1 R$ 130.249,30 2 R$ 2.378.201,50
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Foi medindo os níveis desses compostos no sangue que o grupo de Kapczinski identificou um fenômeno ao qual pouco se dava atenção: os surtos causam uma toxicidade sistêmica. Segundo ele, durante os episódios de mania e depressão, o nível de compostos associados à inflamação era bem mais elevado que o normal no sangue de pessoas com transtorno bipolar – em alguns casos, era semelhante ao de pessoas internadas em unidade de terapia intensiva com infecção generalizada (sepse). Em roedores, já foi demonstrado que a toxicidade que se vê no sangue corresponde às alterações nas células cerebrais. Mas isso ainda precisa ser comprovado em seres humanos. “O melhor teste para comprovar os efeitos tóxicos dos episódios seria fazer uma intervenção para evitá-los e verificar se essa intervenção seria capaz de evitar alterações neurobiológicas”, diz Post. A maioria das células parece sobreviver a essa tormenta química, ainda que com danos. Imagens do cérebro em funcionamento e exames de microscopia do tecido cerebral post mortem indicam que, nas crises de mania ou de depressão, algumas regiões perdem 10% a 20% mais neurônios do que em condições normais. De acordo com psiquiatras e neurologistas, esse nível de perda não é suficiente para classificar
os transtornos de humor como doenças neurodegenerativas. Tanto no transtorno bipolar como na depressão o problema maior é que os neurônios que sobrevivem não permanecem íntegros: eles aparentemente perdem prolongamentos chamados neuritos, que os conectam com outros neurônios. Muitos pesquisadores da área acreditam que é a perda de conectividade neuronal que compromete o funcionamento das regiões cerebrais mais afetadas nos distúrbios do humor. O fato de serem alterações sutis pode explicar por que o neuropatologista alemão Alois Alzheimer, que descreveu 100 anos atrás os danos neuronais típicos da doença que leva seu nome, não encontrou alterações importantes no cérebro de pessoas com depressão – razão por que se passou a dizer na época que a neuropatologia era o túmulo dos psiquiatras. “Apesar de sutis, essas transformações seriam suficientes para causar uma reorganização patológica do cérebro”, afirma Kapczinski. As transformações anatômicas do cérebro nas doenças do humor começaram a ficar evidentes há cerca de 10 anos, quando Grazyna Rajkowska e seu grupo na Universidade do Mississípi verificaram uma redução no volume do córtex pré-frontal de pessoas com depressão. A diminuição de volume nessa área e também na região dos ventrículos vem sendo confirmada por exames de imagem também no transtorno bipolar. Localizado na parte anterior do cérebro, o córtex pré-frontal é responsável pela estruturação do raciocínio, pela tomada de decisões e pelo controle do comportamento. Essa alteração morfológica permite explicar por que, com o avanço da doença, quem tem transtorno bipolar perde progressivamente a capacidade de planejamento e aprendizado. Essas pessoas também se tornariam mais impulsivas e suscetíveis às emoções por ocorrer simultaneamente um aumento do volume da amígdala, que coordena a resposta ao medo e às emoções negativas. Hipótese em formação
Kapczinski começou a colecionar evidências de que uma tormenta química se instala no organismo de quem sofre de transtorno bipolar em 1997, quando retornou de seu doutorado na Inglaterra e de um período de estágio no Canadá. Na época o grupo chefiado por ele no Laboratório de Psiquiatria Molecular da UFRGS havia notado que pessoas com transtorno bipolar, além das alterações psicológicas e cognitivas em geral observadas pelos psiquiatras, apresentavam no sangue níveis elevados de compostos que indicam danos nas células cerebrais e taxas baixas de fatores que protegem essas células. “As moléculas que estudamos funcionam como
biomarcadores [indicadores de alterações biológicas] que permitem distinguir se a doença se encontra num estágio inicial ou avançado”, afirma Kapczinski. E conhecer o estágio da doença é importante para se indicar o tratamento adequado – e essa nova hipótese pode ajudar a aprimorar o uso dos medicamentos. Há evidências de que o controle da enfermidade logo após os primeiros episódios de depressão ou de euforia preserve a capacidade de recuperação do organismo, impedindo a degradação psicológica e cognitiva. Os medicamentos – estabilizadores do humor, antidepressivos, antipsicóticos e anticonvulsivos, usados sozinhos ou em combinação – em geral são eficazes em 80% dos casos de transtorno bipolar e de depressão e, comprovadamente, produzem efeito neuroprotetor, em especial o lítio, um estabilizador do humor barato e eficiente, que antes era usado para combater estresse, gota e pedras no rim. Mas os psiquiatras nem sempre conseguem acertar a medicação e a dose na primeira tentativa. Um estudo norte-americano recente, conduzido por pesquisadores da Escola Médica Mount Sinai com 4.035 pessoas com transtorno bipolar, verificou que 40% delas, em especial aquelas com quadros depressivos mais graves, só conseguiam manA cada crise, as ter a doença sob controle tomancélulas cerebrais do três ou mais medicamentos. Kapczinski acredita que, em podem sofrer geral, essas doenças atingem um estágio muito mais difícil de ser danos e perder controlado após a décima crise, que costuma ocorrer por volta parte das de 10 anos após as primeiras ramificações que manifestações da doença. Por essa razão, os psiquiatras conas conectam com sideram fundamental iniciar o tratamento com medicamentos outras células o mais cedo possível. Também já se havia observado que o lítio, um dos medicamentos mais usados para tratar o transtorno bipolar, perde eficácia após o décimo surto (ver gráfico na página 44). As pessoas com transtorno mental normalmente só vão ao psiquiatra muito tempo depois de surgirem os primeiros sinais da doença. Podem correr anos até um especialista fazer o diagnóstico correto e receitar os medicamentos adequados. No caso do transtorno bipolar, o período decorrido entre a primeira manifestação do problema e
início do tratamento varia de 5 a 10 anos, tempo suficiente para surgirem complicações no trabalho, na convivência com a família e os amigos e a vida se desestruturar. As partes e o todo
Foi analisando as variações nos níveis desses biomarcadores no sangue de pacientes que Kapc zinski sentiu necessidade de buscar uma explicação mais abrangente, que permitisse associar os sinais clínicos da doença às alterações fisiológicas e anatômicas que a ciência começava a detectar no cérebro de pessoas com transtorno bipolar, que em média atinge 1% da população – calcula-se que até 8% possam apresentar formas mais leves –, e outro distúrbio do humor bem mais comum: a depressão maior ou unipolar, que quase 15% dos adultos desenvolvem ao longo da vida. Kapczinski viu que não estava satisfeito com o que tinha em mãos quando recebeu um convite para apresentar os resultados de seu grupo em um simpósio internacional no Hospital Clínic de Barcelona, na Espanha, em meados de 2006. “Faltava uma cola teórica que mostrasse como os dados se encaixavam”, diz Kapczinski. Ele e sua equipe haviam coletado amostras de sangue de pessoas com transtorno bipolar durante os períodos em que se experimentam os estados pESQUISA FAPESP 197 z 47
extremos de humor, que variam de uma tristeza intensa e baixa autoestima a uma grande vitalidade e energia muito além do normal. Em uma bateria de testes, o psiquiatra Angelo Miralha da Cunha, então na UFRGS, observou um fenômeno novo tanto nas crises depressivas como nos episódios de mania: os níveis do fator neurotrófico derivado do cérebro (BDNF), de ação neuroprotetora, eram ao menos 25% mais baixos do que nas pessoas que não apresentavam o transtorno ou que o mantinham sob controle com a ajuda de medicamentos. Ao mesmo tempo, Ana Cristina Andreazza e Elisa Brietzke, que integravam a equipe de Kapc zinski, detectaram taxas mais elevadas de proteínas indicadoras de inflamação, além de níveis mais altos de radicais livres, moléculas altamente reativas, com potencial para lesar as células, durante os períodos de alteração do humor. Esses dados sugeriam que o sangue poderia guardar pistas do que se passava no cérebro. Mas, àquela altura, não era possível saber com segurança o que essa alteração significava nem por que ocorria. 48 z julho DE 2012
cola teórica
Kapczinski encontrou a cola teórica que procurava nos estudos do neurocientista norte-americano Bruce McEwen. Em 2000 McEwen havia proposto a hipótese de que situações estressantes obrigam o organismo a fazer ajustes para recuperar a estabilidade perdida. McEwen chamou essa adaptação de alostase, uma mudança necessária para restabelecer o equilíbrio (homeostase). E disse mais. Ao longo do tempo essa adaptação cobrava um preço: causava o desgaste do organismo. As propostas teóricas do psiquiatra Robert Post completavam essa ideia. Na década de 1980, Post havia sugerido que os sinais clínicos do transtorno bipolar se tornariam mais intensos a cada crise, em consequência da maior sensibilidade dos circuitos cerebrais afetados nos episódios anteriores. O fenômeno, chamado em inglês de kindling, havia sido descoberto duas décadas antes por Graham Goddard, neurocientista inglês que estudava a epilepsia. Durante testes
Os medicamentos controlam 80% dos casos de transtorno bipolar e depressão, mas os pacientes demoram a buscar tratamento e os médicos nem sempre acertam na primeira tentativa
com roedores, Goddard notou que estímulos elétricos de baixa intensidade, inicialmente incapazes de causar danos ao animal, passavam a disparar crises epilépticas depois de repetidos algumas vezes – sinal de que o cérebro havia se tornado mais sensível. “A partir desses experimentos, outros autores começaram a conceituar a ideia de que o cérebro aprendia a ficar doente também em outras situações, em especial no transtorno bipolar”, conta o neurofisiologista Luiz Eugenio Mello, da Unifesp. “De acordo com essa ideia, modificações no sistema nervoso central, possivelmente no nível das sinapses [conexões entre as células cerebrais], seriam capazes de transformar um cérebro pouco doente em muito doente”, explica. Ao analisar seus dados à luz da ideia de alostase e de sensibilização – mais tarde reunidas no conceito de neuroprogressão –, Kapczinski encontrou o vínculo entre o que seu grupo havia observado e as alterações de volume em algumas áreas do cérebro que equipes estrangeiras detectavam. Essa
unificação de conceitos poderia explicar a origem dos sinais clínicos característicos dessas doenças e, além disso, por que as pessoas com transtorno bipolar e depressão podem morrer entre 25 e 30 anos mais cedo do que as pessoas sem distúrbios psiquiátricos. Uma proporção maior das pessoas com transtorno bipolar e depressão desenvolve câncer e problemas cardiovasculares. Por influência do neurocientista Iván Izquierdo, Kapczinski fez algo pouco comum na área da saúde no Brasil: a formulação de uma teoria para explicar o desenvolvimento e os desdobramentos de doenças psiquiátricas. Como toda tentativa de reproduzir uma realidade a partir dos fragmentos que podem ser identificados e medidos, o modelo teórico idealizado pelo grupo gaúcho continua em constante aperfeiçoamento. Desde a apresentação em Barcelona, Kapczinski e seus colaboradores no Brasil, na Austrália, nos Estados Unidos e na Espanha trabalham para aprimorar essa proposta teórica e ver se estão no caminho certo. O próprio Kapczinski está pondo sua hipótese à prova ao testar em camundongos uma versão modificada do antidepressivo tianeptina, desenvolvida na UFRGS, com o propósito de aumentar a proteção dos neurônios. Outra forma de verificar se a hipótese está correta é examinar as alterações químicas e celulares em amostras de bancos de encéfalos de pessoas com doenças psiquiátricas, como o que os psiquiatras Beny Lafer e Helena Brentani estão organizando na Faculdade de Medicina da USP. Em outra linha de trabalho, Lafer iniciou recentemente um teste clínico com suplementos do aminoácido creatina, que deve melhorar o funcionamento das mitocôndrias e também pode aumentar a proteção celular. Ana Cristina Andreazza, atualmente pesquisadora da Universidade de Toronto, onde investiga os efeitos do mau funcionamento das mitocôndrias nas células cerebrais, lembra que uma dieta adequada e rica de antioxidantes também pode ajudar na proteção cerebral. “A hipótese da neuroprogressão é um dos modelos importantes hoje em dia para explicar a progressão dessas doenças”, comenta Lafer, colaborador do grupo gaúcho. “Há outras hipóteses, baseadas na genética, na interação entre genes e ambiente e na inflamação, mas ainda não existe consenso.” n
Artigos científicos 1 KAPCZINSKI, F. et al. Allostatic load in bipolar disorder: Implications for pathophysiology and treatment. Neuroscience and Behavioral Reviews. v. 32, p. 675-92. 2008. 2 BERK, M. et al. Pathways underlying neuroprogression in bipolar disorder: Focus on inflammation, oxidative stress and neurotrophic factors. Neuroscience and Behavioral Reviews. v. 35, p. 804-17. 2011. pESQUISA FAPESP 197 z 49
acasalamentos y
A flexibilidade sexual das fêmeas
Entre lagartos, nem sempre o macho é necessário para a reprodução | Carlos Fioravanti
“S
e Deus existe e tem sexo, certamente é mulher”, diz o biólogo Rodrigo Marques Lima dos Santos, entusiasmado ao ver o que os lagartos – ou melhor, os lagartos fêmeas – conseguem fazer. Várias espécies de lagartos exibem formas surpreendentes de se reproduzirem. As fêmeas geram filhotes de modo assexuado, sem a participação de qualquer macho. São independentes, mas não são radicais: em algumas espécies, se um macho passa por perto, permitem a cópula e podem ser fecundadas. A autonomia reprodutiva chega a tal ponto que em algumas espécies só existem fêmeas, que se reproduzem de um modo assexuado conhecido como partenogênese, que parece ser mais flexível do que se pensava. Biólogos da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), estudando diferentes aspectos da partenogênese, concluíram que alterações em um gene conhecido como c-mos poderiam permitir a transformação das células reprodutoras femininas (óvulos) em embrião, mesmo sem um espermatozoide. Rodrigo Santos entrou na pista desse mecanismo em seu doutorado, enquanto estudava os lagartos teídeos, grupo que
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evolução
tino mauricio
genética
Duas Aspidoscelis se abraçam no deserto: só assim é que o óvulo continua a se dividir e a formar um embrião, clone da mãe
inclui espécies de 10 centímetros de comprimento até os teiús, de até um metro e meio de comprimento. Sem esperar, ele começou a ver mutações no gene c-mos em grupos com espécies partenogenéticas. Em 2008 ele começou a trabalhar com Andréa Balan, do LNBio, para modelar as formas da proteína produzida pelo c-mos nos lagartos e em cobras e, em conjunto, identificaram mutações em um dos quatro sítios ativos (pontos de interação) da proteína, reforçando as hipóteses iniciais. O gene c-mos produz uma proteína que bloqueia o final da divisão celular do óvulo até a chegada do espermatozoide. A célula sexual masculina, ao fertilizar o óvulo, desativa a proteína, a divisão celular termina e um embrião se forma. A hipótese dos pesquisadores é que, quando sofre alterações, o c-mos não funciona direito e pode fazer com que o óvulo continue a se dividir, mesmo sem o espermatozoide. Eles acreditam que defeitos nesse gene poderiam atenuar o bloqueio da divisão do óvulo e permitir que outros estímulos, como hormônios, reativem a divisão celular.
Se avançar, esse trabalho poderá elucidar um dos mecanismos da partenogênese. Hoje mal se sabe como surgiram as espécies de lagartos capazes de se reproduzirem de modo assexuado – e menos ainda como elas adquiriram e mantêm essa habilidade. De acordo com a hipótese mais aceita, cobras e lagartos partenogenéticos podem ser resultado do cruzamento entre espécies próximas. O Leposoma percarinatum, uma das espécies encontradas no Brasil, está mostrando o alcance desse labirinto genético. Os lagartos dessa espécie, reconhecida como partenogenética em 1952, têm no máximo cinco centímetros de comprimento e vivem entre folhas nas matas de uma região ampla – da Venezuela até o norte do estado de Mato Grosso, dos Andes até o leste do Pará. Uma hipótese apresentada nos anos 1970 sugere que o L. percarinatum seria o resultado do cruzamento entre duas espécies diferentes, Leposoma guianense e L. parietale, encontradas em florestas úmidas da América do Sul. pESQUISA FAPESP 197 z 51
Fotos miguel rodrigues
Iguais por fora, geneticamente diferentes: os Leposoma percarinatum podem ser diploides (acima) ou triploides (ao lado)
Katia Pellegrino, da Unifesp, e Miguel Rodrigues, da USP, encontraram uma situação inusitada: as fêmeas de Leposoma percarinatum eram praticamente iguais por fora, mas apresentavam uma espantosa diferença do ponto de vista genético. Algumas fêmeas, as diploides, tinham 44 cromossomos (dois conjuntos iguais de 22 cromossomos) em cada célula, enquanto as triploides tinham 66 cromossomos (três conjuntos de 22). “Dentro do que se supunha ser uma mesma espécie existem duas linhagens diferentes, que nos permitirão reconstruir sua história e seus mecanismos de origem”, Katia concluiu. Para ela, a variedade triploide deve ter surgido de outro evento de hibridização entre a forma diploide de L. percarinatum e L. osvaldoi, já que L. guianense não ocorre tão ao sul do país. Às vezes surgem bichos que desfazem as explicações que estavam se formando. De uma viagem ao arquipélago de Anavilhanas, no rio Negro, Rodrigues trouxe exemplares de Leposoma guianense, e alguns indivíduos que se revelaram pertencer a um novo clone de Leposoma percarinatum e outros diferentes a ponto de representarem uma nova espécie, que ganhou o nome de Leposoma ferrerai – todos diploides, vivendo no mesmo espaço. O calango da restinga, ou Cnemidophorus nativo, uma das poucas espécies exclusivamente partenogenéticas de lagartos brasileiros – e ameaçada de extinção –, é apenas diploide, de acordo com as análises de Santos. Encontrados nas matas do norte do Espírito Santo e do sul da Bahia, esses animais pertencem a uma família irmã à dos Leposoma, mas podem chegar a 30 52 z julho DE 2012
centímetros de comprimento. Segundo Santos, outras espécies partenogenéticas que vivem na Amazônia, como Cnemidophorus lemniscatus e Gymnophthalmus underwoodi, parecem mesclar populações diploides e triploides. Os biólogos trabalham com a possibilidade de a partenogênese não formar apenas clones da mãe, mas também permitir alguma variabilidade genética, embora menor que a da reprodução sexuada, por meio da recombinação entre os cromossomos do óvulo. “Um estudo recente mostrou que uma cobra, por partenogênese, gerou um filhote albino, indicando que há, sim, recombinação genética mesmo na reprodução assexuada”, argumenta Santos. “A origem espontânea da partenogênese, uma hipótese alternativa à teoria híbrida, não pode ser descartada em Leposoma e Cnemidophorus, uma vez que esse mecanismo já foi sugerido para exemplares de Gymnophthalmus underwoodi de Roraima”, acrescenta Katia.
3 Estudos citogenéticos e moleculares em lagartos microteídeos (Squamata, Gymnophthalmidae) com ênfase em espécies do gênero Leposoma das florestas amazônica e atlântica nº 1998/05289-7
Abraço indispensável
modalidade
Santos cogita que o Cnemidophorus nativo possa ter um comportamento similar ao dos lagartos do gênero Aspidoscelis. Encontrados em regiões desérticas da Ásia e América do Norte, os Aspidoscelis só começam a formar embriões depois de um abraço, que os biólogos chamam de pseudocópula. Uma delas, detectando o toque ou o raspão da outra, deve ativar a liberação de hormônios que desbloqueiam o c-mos, acreditam os biólogos da USP. “Para algumas espécies partenogenéticas do gênero Aspidosceles se reproduzirem”, comenta Santos, “a cópula entre as fêmeas é obrigatória”.
1 Projeto Temático
Os Projetos 1 Sistemática e evolução da herpetofauna neotropical nº 2003/10335-8 2 Diversidade genética em espécies unissexuais e bissexuais de Cnemidophorus do grupo Ocellifer (Teiinae) e caracterização estrutural da proteína Mos nos Squamata nº 2008/56444-6
2 e 3 Bolsa de Pós-doutorado Coordenadores 1 Miguel Trefaut Rodrigues – USP 2 Rodrigo Marques Lima dos Santos – USP 3 Katia Cristina Machado Pellegrino – Unifesp investimento 1 R$ 975.589,35 2 R$ 277.872,66 3 R$ 37.720,00
David Crews e Jon Sakata, da Universidade do Texas, Estados Unidos, mostraram em 2000 que as fêmeas abraçadas apresentavam um ciclo hormonal inverso, uma com altos níveis de estrógeno, hormônio mais abundante nas fêmeas, e outra com altos níveis de testosterona, produzida mais intensamente pelos machos. Em 2011, pesquisadores da Universidade de Kansas, Estados Unidos, conseguiram induzir a hibridação e confirmar que a reprodução sexuada pode formar uma espécie partenogenética ao cruzarem duas espécies de Aspidosceles. Fazer uma fêmea partenogenética se reproduzir em laboratório, sozinha ou sob o aconchego de outra fêmea, porém, permanece um dos sonhos dos biólogos. Entre as 5.634 espécies de lagartos já identificadas, cerca de 40 são partenogenéticas – e geralmente vivem em regiões de florestas tropicais ou de climas desérticos da Ásia ou Oceania. “A reprodução por partenogênese resulta em uma variabilidade genética menor que a reprodução sexual, mas pode ser uma resposta adaptativa de sobrevivência a ambientes extremos”, comenta Yatiyo Yassuda, geneticista especializada em genética de lagartos que acompanha o estudo sobre as possíveis origens da partenogênese. Na década de 1980, Yatiyo enfrentou um problema semelhante e, a muito custo, conseguiu convencer outros geneticistas de que os lagartos do gênero Tropidurus apresentavam diferenciação sexual – os machos tinham um cromossomo diferente do das fêmeas, mas, de tão pequeno, era quase imperceptível. Muitas espécies de lagartos apresentam o mesmo conjunto de cromossomos e se diferenciam sexualmente por meio de genes desconhecidos ou da variação de temperatura enquanto se desenvolvem – se mais alta, pode
O estudo da partenogênese talvez traga respostas novas para uma pergunta básica da biologia: para que serve o sexo?
Calango da restinga: uma das poucas espécies brasileiras de lagartos formadas apenas por fêmeas
favorecer o desenvolvimento de embriões machos em algumas espécies ou fêmeas, em outras. A sala de Yatiyo, onde Santos conta de seu trabalho, exibe algumas pinturas de flores, algumas figurativas, outras abstratas. “Esse foi o começo. Já pintei mais de 300 quadros depois que me aposentei”, diz ela, imaginando o sol que pretendia pintar no dia seguinte, um sábado. “Mas ainda venho para cá todos os dias.” Clonagem induzida
“A partenogênese meiótica é uma forma de clonagem natural com algumas semelhanças à clonagem induzida para reprodução de animais de interesse comercial”, observa. Em 2004, pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Jaboticabal indicaram que o etanol e o elemento químico estrôncio podem induzir os óvulos de vacas a seguir a divisão celular, funcionando como um estímulo externo análogo à célula sexual masculina. Do mesmo modo, os óvulos de animais experimentais como a ovelha Dolly só se desenvolveram depois de terem recebido um choque elétrico, que deve desativar o c-mos. Santos acredita que a partenogênese, se puder ser regulada, poderia ajudar na pecuária ou na conservação de espécies silvestres em risco de extinção. “Os mamíferos têm mecanismos que evitam a partenogênese, como o imprinting”, observa. Outra aplicação seria médica, já que mutações nesse gene poderiam fazer os óvulos se dividir sem controle, originando tumores. Se avançarem, os biólogos talvez encontrem respostas novas para duas perguntas básicas da biologia. A primeira: para que serve o sexo? A outra: qual a vantagem da reprodução sexuada? Segundo Santos, a reprodução sexuada exige que dois organismos se encontrem para formar filhotes, enquanto na partenogênese apenas um organismo já é o bastante para gerar outro. E nem sempre a variabilidade genética trazida pela reprodução sexuada é benéfica para as espécies, argumentam os biólogos. “A reprodução sexuada é melhor para ambientes em transformação, com alto risco de predação e doenças, mas é ruim em ambientes estáveis e populações saudáveis, pois um indivíduo bem adaptado pode formar filhotes mal adaptados”, diz ele. “Em ambientes estáveis, a reprodução clonal, como se faz com animais de criação e plantas, resultando em filhotes com rendimento ótimo, é a mais indicada.” n pESQUISA FAPESP 197 z 53
Distrofia muscular y
Tratamento em dobro Uso combinado de células-tronco e fator de crescimento reduz sintomas da doença em camundongos Marcos Pivetta
O
emprego de injeções periódicas de um tipo de célula-tronco humana adulta combinadas com doses diárias de um fator de crescimento pode ser uma alternativa promissora para o tratamento de distrofias musculares progressivas. Pesquisadores do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo (USP) obtiveram resultados animadores com essa abordagem em testes com células musculares de pacientes com distrofia de Duchenne e em camundongos com uma forma congênita de distrofia muscular. A terapia em dose dupla usou células-tronco mesenquimais (CTMs) obtidas do cordão umbilical de recém-nascidos conjuntamente com doses do fator de crescimento semelhante à insulina 1 (IGF-1). Nos tecidos humanos, o esquema terapêutico aumentou a expressão (ativação) da distrofina, proteína essencial para a manutenção da integridade dos músculos. Nos roedores, o protocolo de tratamento testado diminuiu a inflamação e a fibrose dos músculos, levando a uma melhora da condição clínica dos animais. Os resultados do trabalho foram publicados em 4 de junho na versão on-line da revista científica Stem Cell Reviews and Reports. A dobradinha células-tronco mais IGF-1 não gerou novos músculos sadios, como, em princípio, era esperado. Mas parece ter criado condições mais favoráveis para a preservação da funcionalidade da musculatura já existente. Dessa forma, a abordagem poderia ser uma alternativa para evitar ou minorar a degeneração causada por distrofias em geral. A terapia conjugada também apresenta uma vantagem extra. “As células-tron-
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co mesenquimais têm propriedades imunossupressoras”, explica Mayana Zatz, coordenadora da equipe que fez o estudo e do centro da USP, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP. “Com elas, reduzimos o risco de haver rejeição do material injetado.” O sistema imunológico dos camundongos do experimento, por exemplo, não precisou ser “desligado” antes de os animais receberem as injeções de células-tronco humanas. Normalmente, quando o doador e o receptor de tecidos ou células não são o mesmo indivíduo, é preciso destruir temporariamente as defesas imunológicas do organismo alvo do implante, procedimento sempre arriscado que deixa o paciente vulnerável a agressões externas. No entanto, se isso não for feito, o material cedido pelo doador será interpretado pelas defesas do receptor como um agente potencialmente perigoso e o implante será fatalmente rejeitado. Com o emprego de células mesenquimais, a questão da rejeição pode ser aparentemente contornada sem a necessidade de anular o sistema imunológico do doente – mesmo em casos extremos, como no experimento feito na USP, em que o receptor (camundongo) e o doador (ser humano) são de espécies distintas. Há indícios de que ambos os componentes da candidata a terapia conjugada contra distrofia podem ser benéficos para os músculos. As células-tronco mesenquimais são bastante indiferenciadas e têm a capacidade de gerar muitos tipos de tecidos, como ossos, cartilagem, gordura, células de suporte para a formação do sangue e também tecido fibroso conectivo. Suspeita-se também que elas podem desempenhar algum papel no
O Projeto Centro de Estudos do Genoma Humano nº 1998/14254-2 modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) Coordenadora Mayana Zatz – IB-USP investimento R$ 34.412.866,53
imagens mariane secco infográfico laura daviña fonte Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo (USP)
Uma possível terapia contra a distrofia Uma vez por semana
Bomba de dose diária
IGF-1
Células-tronco mesenquimaIS
Uma terapia que combina o uso de células-tronco mesenquimais (CTMs) humanas, obtidas do cordão umbilical de recém-nascidos, e do fator de crescimento semelhante à insulina 1 (IGF-1) foi testada por dois meses em camundongos doentes
Sem tratamento
Os roedores apresentavam um quadro clínico tido como modelo das distrofias congênitas. Tinham fraqueza muscular e expectativa de vida reduzida, em razão de uma disfunção causada por uma mutação genética
Com IGF-1
processo de regeneração muscular. Entre outras funções, o IGF-1 está envolvido nos processos de desenvolvimento e crescimento muscular. Avaliar, portanto, os possíveis efeitos de um esquema terapêutico com os dois ingredientes fazia todo o sentido. Nos testes in vivo, os pesquisadores avaliaram por cerca de 60 dias diferentes protocolos de tratamento em 46 camundongos que apresentavam um quadro clínico tido como modelo das distrofias musculares congênitas. Devido a uma mutação no gene da laminina alfa 2, os animais tinham uma deficiência na produção da proteína merosina, disfunção que provoca fraqueza muscular e reduz a expectativa de vida. “Eles arrastam a pata traseira e têm considerável redução na força muscular”, afirma a bióloga Mariane Secco, principal responsável pelos experimentos em tecidos humanos e nos animais.
A combinação de células-tronco e do fator de crescimento não gerou novos músculos, mas diminuiu a inflamação e a fibrose nos já existentes. Animais tratados apenas com as CTMs ou só com o IGF-1 tiveram uma melhora discreta
Fator de crescimento
As injeções de CTMs eram semanais. Uma bombinha implantada sob a pele dos roedores fornecia uma dose diária de IGF-1. Ao final do experimento, houve uma melhora clínica significativa dos animais submetidos ao tratamento
Com CTMs
Fibras musculares: terapia combinada reduz inflamação e tecido conjuntivo (pontos brancos)
IGF-1 + CTMs
Os roedores foram divididos em quatro grupos: o primeiro não foi tratado e funcionou como controle; o segundo recebeu apenas injeções de células-tronco; o terceiro, somente doses do fator de crescimento; e o quarto foi alvo da terapia combinada. As células-tronco foram injetadas uma vez por semana nos roedores. Uma bombinha implantada sob a pele fornecia diariamente uma dose de dois miligramas de IGF-1 por quilo corpóreo dos animais. No final do estudo, foi feita a biópsia dos tecidos musculares e constatada uma melhora significativa entre os animais que receberam a terapia conjugada. Diante dos resultados positivos, Maya na, Mariane e seus colaboradores sus peitaram, inicialmente, que o IGF-1 tinha estimulado as CTMs a virar células musculares. Mas essa transformação não foi detectada em nenhum dos quatro grupos de camundongos. A melho-
Músculo sadio
ra constatada foi ocasionada pela diminuição da inflamação e do nível de fibrose muscular, que, por sua vez, podem ter levado a um aumento na forca da musculatura esquelética dos animais doentes. Aparentemente, o fator de crescimento potencializa os efeitos das células-tronco e vice-versa. “Acreditamos que não é necessário ocorrer a diferenciação das células-tronco injetadas em células musculares para que haja um benefício clínico”, diz Mayana. O tratamento combinado será testado em cachorros com distrofia para ver se os resultados positivos também se manifestam nesses animais. n Artigo científico SECCO, M. et al. Systemic delivery of human mesenchymal stromal cells combined with igf-1 enhances muscle functional recovery in LAMA2dy/2j dystrophic mice. Stem Cells Reviews and Reports. Publicado on-line em 4 jun. 2012. pESQUISA FAPESP 197 z 55
Serra da Borboremay
A origem da montanha Teoria alternativa propõe que planalto nordestino se formou há cerca de 30 milhões de anos
A
lguns estudos atribuem as origens do planalto ou serra da Borborema aos efeitos do clima. Ao longo de milhões de anos, as intempéries teriam moldado o relevo acidentado dessa região, formada pelas terras altas que dão um ar montanhoso a porções do interior de Pernambuco, Paraíba, Alagoas e Rio Grande do Norte. Outros trabalhos debitam as origens do platô na conta de processos geológicos que ocorreram no período Cretáceo, entre 136 e 65 milhões de anos atrás. A separação da América do Sul e da África, que até então formavam um único bloco no antigo supercontinente Gondwana, fez nascer o oceano Atlântico e, segundo a teoria mais aceita, provocou um estiramento da crosta terrestre em trechos do Nordeste brasileiro. A camada mais externa da Terra se tornou mais fina na região e uma das consequências desse estirão seria o aparecimento de elevações em certos pontos, como o planalto da Borborema. Um novo trabalho, feito pelos geofísicos Walter Eugênio de Medeiros, da Universidade Federal 56 z julho DE 2012
do Rio Grande do Norte (UFRN), e Roberto Gusmão de Oliveira, do Serviço Geológico do Brasil (CPRM), defende a hipótese de que outro mecanismo geológico, mais recente e de natureza distinta do esticão ocasionado pela separação dos continentes, também pode ter desempenhado um papel importante na formação do planalto nordestino. Segundo um artigo da dupla de pesquisadores, a ser publicado em agosto no Journal of South American Earth Sciences, o soerguimento da Borborema pode ser consequência de atividade magmática e de uma anomalia térmica profunda que teriam se iniciado há cerca de 30 milhões de anos naquele trecho do Nordeste. Durante seu trajeto de ascensão das profundezas para a superfície do globo, material quente e fundido, basicamente magma basáltico, teria ficado aprisionado na zona limítrofe entre a crosta e o manto, respectivamente a camada mais externa e a intermediária da Terra. A diferença de densidade entre o magma e as rochas vizinhas teria provocado uma força no sentido vertical, o
Trecho da serra do Bodopitá, na Paraíba: magma basáltico aprisionado na zona limítrofe entre a crosta e o manto terrestre estaria na origem do planalto da Borborema
foto Fabio jr sm / wikimedia
geologia
empuxo. “Essa força teria deformado a crosta e feito a região se elevar, dando origem assim ao planalto da Borborema”, diz Oliveira. “Não estamos dizendo que esse foi o único processo que levou à formação do planalto, mas, sim, que esse mecanismo também pode ser a causa profunda do surgimento da Borborema”, afirma Medeiros. O foco do estudo são as chamadas condições isostáticas do planalto da Borborema, ou seja, as alterações no equilíbrio gravitacional entre duas estruturas internas da Terra: a litosfera, parte rígida que abrange a crosta e a parte superior do manto, e a astenosfera, segmento fluido do manto. Variações nesse equilíbrio produzem modificações no relevo terrestre e podem dar origem a montanhas ou depressões. As alterações podem ser causadas por forças localizadas na superfície ou no interior do planeta, ou em ambos. “O sistema funciona como uma estrutura elástica que flexiona quando as cargas são colocadas, mas recuperam sua condição inicial quando elas são removidas”, compara Oliveira.
No caso do planalto da Borborema, os dados da dupla de pesquisadores sugerem que essa serra foi formada pelo soerguimento da crosta em razão de forças localizadas imediatamente abaixo da camada mais superficial da Terra. As medições indicam, segundo a interpretação dos geofísicos, que as forças na base da crosta são maiores do que o peso da topografia ali formada. “Aparentemente, a julgar pela intensa atividade sísmica da região, o processo ainda está ativo”, afirma Medeiros. Ou seja, o planalto da Borborema ainda não teria atingido o equilíbrio isostático e, na medida em que a denudação das rochas ocorre, a crosta lentamente retorna de forma elástica para sua condição inicial. Dados produzidos em viagens pela região serrana do Nordeste amparam a tese dos geofísicos, cujo estudo faz parte dos trabalhos patrocinados pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) de Geofísica do Petróleo. A dupla de pesquisadores realizou medições da intensidade do campo gravitacional (gravimetria) em vários ponpESQUISA FAPESP 197 z 57
tos do planalto da Borborema e também usou informações produzidas por outros centros de pesquisa. A partir desse tipo de dado, é possível inferir a densidade das rochas e a espessura das camadas geológicas numa região. Os pesquisadores registraram alguns tipos de perturbação, como a chamada anomalia de geoide positiva, que pode ser interpretada como um indicativo de que ali a camada geológica mais superficial é mais espessa. “A crosta é cerca de quatro quilômetros mais grossa sob o planalto do que fora dessa região”, diz Oliveira. Em certos pontos da serra ela atinge 35 quilômetros de espessura.
Uma serra no Nordeste oriental O planalto da Borborema tem altitude média de 500 metros e seus pontos mais elevados passam dos mil metros
Altitude (em metros)
De Campina Grande a Caruaru
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Planalto da Borborema fonte OLIVEIRA, R.G. e MEDEIROS, W.E. JSaES. 2012
Com altitude média de 500 metros e picos extremos que chegam a 1.200 metros, o planalto da Borborema é uma das formações naturais mais interessantes e desafiadoras para os geofísicos brasileiros. Seus domínios englobam cidades conhecidas, como a paraibana Campina Grande e a pernambucana Caruaru. Seu formato se assemelha a uma elipse alongado na direção norte-sul, atingindo um comprimento máximo de 470 quilômetros e uma largura que varia de 70 a 330 quilômetros. Ao lado da depressão sertaneja, uma planície com altitudes entre 0 e 200 metros situada no norte do Nordeste, e da chapada do Araripe, um planalto mais modesto do interior de Pernambuco, Ceará e Piauí, a serra da Borborema faz parte de um enorme bloco de rochas que abarca quase todo o Nordeste: a província Borborema. “No passado tectonismo e vulcanismo foram duas marcas significativas dessa região serrana, ainda hoje palco de pequenos terremotos e falhamentos que reforçam os indícios de que a província Borborema tem uma litosfera diferente da do restante do escudo brasileiro”, comenta Naomi Ussami, geofísica da Universidade de São Paulo e estudiosa da Borborema. Sob a província, a astenosfera, onde a temperatura do manto passa de 1.300 graus, é mais rasa. Estima-se sua profundidade em 80 quilômetros, enquanto no restante do Brasil – em especial nos crátons, pedaços antigos e frios de continente – é de 200 quilômetros. Como consequência, a litosfera da Borborema deve ser mais fina e quente. “Uma grande região no interior da litosfera com maior temperatura faz diminuir a densidade das rochas, que tendem a
flutuar e se deslocar para profundidades menores. Esse pode ser um mecanismo alternativo para o levantamento e a erosão de partes da província Borborema”, cogita Naomi. A hipótese formulada por Medeiros e Oliveira para explicar a formação do planalto da Borborema não é consenso entre os estudiosos. Trabalhos feitos com outras técnicas, como a refração sísmica profunda, permitem formular teorias distintas sobre o surgimento dessa importante serra nordestina, mais na linha de que as origens da serra estariam mais associadas ao processo de separação da América do Sul do continente africano. A refração sísmica consiste em gerar explosões próximas à superfície a fim de medir a propagação das ondas de choque no interior da Terra. Quando passam de um meio a outro, as ondas são parcialmente refletidas e refratadas, mudando de velocidade. Como as camadas geológicas da Terra apresentam densidades diferentes, a velocidade varia em distintos pontos das entranhas do planeta. Dessa forma, é possível estimar onde fica a divisa entre a crosta e o manto.
Para José Eduardo Soares, geofísico da Universidade de Brasília, as análises com a técnica de refração sísmica profunda sinalizam que a gênese da serra da Borborema ocorreu de forma diversa da proposta por Medeiros e Oliveira. “Nossa ideia é que o processo de formação do planalto foi muito simples”, afirma Soares. “Houve uma delaminação da litosfera, uma perda de material que levou ao soerguimento do planalto.” O processo teria ocorrido no Cenozoico, como consequência da separação dos continentes iniciada cerca de 100 milhões de anos atrás. Como se vê, as técnicas até hoje usadas para estudar esse importante acidente geográfico ainda não levaram a um consenso sobre as origens das elevações que marcam o interior de uma parte do Nordeste. n Marcos Pivetta
Artigo científico OLIVEIRA, R.G. e MEDEIROS, W.E. Evidences of buried loads in the base of the crust of Borborema Plateau (NE Brazil) from Bouguer admittance estimates. Journal of South American Earth Sciences. v. 37, p. 60-76. ago. 2012.
ilustração gabriel bitar
redes complexas y
A ordem U da escassez Padrões descobertos em uma rede de milhares de açudes no Ceará podem ajudar a enfrentar secas e enchentes Igor Zolnerkevic
ma equipe internacional de físicos e hidrólogos se surpreendeu ao analisar como a água flui pelos rios e riachos que conectam as quase 4 mil barragens ou açudes da bacia hidrográfica do Alto Jaguaribe, no sudoeste do Ceará. Eles descobriram que, embora a maioria das barragens tenha sido construída sem levar em conta nenhum planejamento regional, juntas elas formam uma rede que está longe de ser aleatória. Ao contrário, a rede parece organizada de forma a fazer com que a água seja relativamente bem captada e distribuída pela região. “O homem do campo, mesmo tomando decisões locais, sem olhar para o todo, construiu um sistema muito próximo daquele que teria sido construído se fosse planejado para ser ótimo”, afirma o engenheiro hidráulico José Carlos de Araújo, da Universidade Federal do Ceará (UFC), um dos autores do estudo publicado em abril no site da revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS). Várias propriedades dessa rede de açudes, em especial a frequência com que acontecem transbordamentos em série nos períodos de chuva, obedecem a padrões probabilísticos bem conhecidos dos físicos que estudam redes complexas como as redes de centrais elétricas, os neurônios no cérebro pESQUISA FAPESP 197 z 59
2 Açude Riacho Verde, um dos 4 mil reservatórios de pequeno porte da região 1
e a internet. Explorando essas regularidades matemáticas, seria possível intervir na rede para torná-la mais eficiente e menos vulnerável a secas, a enchentes e ao rompimento de barragens. Inserido no polígono das secas, o Ceará sofre o ano todo com a estiagem, interrompida apenas na estação chuvosa, que dura de fevereiro a maio. A evaporação média anual ali supera de três a quatro vezes a precipitação, fazendo com que a maioria dos cursos d’água sejam efêmeros. Para complicar a situação, a maior parte de seu território é de rochas cristalinas, impermeáveis, cobertas por um solo raso, que quase não armazena água subterrânea. Toda a água das chuvas escorreria direto para o mar não fosse pelas mais de 30 mil barragens espalhadas pelo estado, que formam uma das redes de açudes mais densas do mundo, com uma média de um reservatório a cada seis quilômetros quadrados. “Houve ao longo das décadas uma construção desenfreada dessas barragens, para dar certa segurança hídrica para as populações”, explica o hidrólogo George Leite Mamede, da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), autor principal do artigo na PNAS. Os pesquisadores analisaram uma porção da bacia do Jaguaribe, o principal rio do Ceará, que vai de suas cabeceiras, no sudoeste do estado, na divisa com o Piauí, até onde o rio deságua no segundo maior açude cearense, o Orós. A chamada bacia do Alto Jaguaribe cobre uma área de 25 mil quilômetros quadrados, onde 500 mil habitantes vivem principalmente da criação de gado e da agricultura. Além do Orós, que é capaz 60 z julho DE 2012
Embora traga benefícios como a melhor distribuição da água, o número de pequenos açudes ultrapassou o limite dos recursos hídricos disponíveis de armazenar quase 2 bilhões de metros cúbicos de água, a bacia conta ainda com outros 17 açudes estratégicos de capacidade superior a 1 milhão de metros cúbicos, que garantem água mesmo durante períodos de secas contínuas de até três anos. Esses reservatórios estratégicos são monitorados constantemente pelos técnicos da Companhia de Gestão de Recursos Hídricos (Cogerh) do Ceará. A maioria dos quase 4 mil açudes do Alto Jaguaribe, entretanto, são pequenas construções, com volume inferior a 100 mil metros cúbicos, feitas por fazendeiros e pequenos agricultores, às vezes com apoio das prefeituras locais, mas sem nenhum levantamento dos impactos que a obra poderia causar. “Além disso, eles não são usados racionalmente”, explica Araújo. “Não há um sistema de gestão para os pequenos açudes.” De fato, essa profusão de reservatórios pequenos não é vista com bons olhos pela maioria dos gestores de recursos hídricos do estado. Primeiro, porque não conseguem suprir a população por toda
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a estação seca, pois armazenam pouca água e perdem muito dela por evaporação e infiltração. Depois, por estarem geralmente rio acima em relação aos grandes reservatórios estratégicos, os pequenos açudes retêm água que chegaria a esses últimos, onde o uso dela é mais bem controlado. A vez dos pequenos
Mas o Grupo de Pesquisa Hidrossedimentológica do Semiárido da UFC, coordenado por Araújo, vem acumulando evidências de que os pequenos açudes têm seus aspectos positivos. O mais evidente é a distribuição espacial mais igualitária e econômica dos recursos hídricos pela região. Se toda a água escoasse diretamente para os grandes açudes rio abaixo, haveria um custo de energia para bombeá-la de volta. Os estudos do grupo também sugerem que os pequenos açudes retêm boa parte dos sedimentos arrastados pela água que, caso contrário, se acumulariam nos grandes açudes, diminuindo sua capacidade de armazenamento. Há ainda indicações de que a rede de pequenos açudes funcione como uma espécie de filtro para os grandes reservatórios, retendo a poluição gerada sobretudo pela pecuária. Mesmo com esses benefícios, porém, os pesquisadores alertam que a construção de mais pequenos açudes – que prossegue na região, ainda que em um ritmo menor que no passado – precisa parar. Um estudo liderado por Vanda Malveira, da UFC, e publicado em janeiro no Journal of Hydrologic Engineering, comparou o crescimento da rede de açudes no Alto Jaguaribe de 1961 a 2005 com o de redes simuladas por computador. Os pesquisadores concluíram que uma rede atinge um ótimo de aproveitamento de seus recursos hídricos quando a soma da capacidade dos açudes chega a três vezes o volume da água que escoa pela
fotos 1. arquivo dnocs / 2. George Mamede
1 Açude Orós, o segundo maior do Ceará, na bacia do rio Jaguaribe
Conexões inesperadas Interligados por rios e riachos, os 3.978 açudes (pontos coloridos) da bacia do Jaguaribe formam uma rede complexa, mostrada em parte no gráfico à direita. As cores representam faixas de valores para o número de açudes que ligam o açude em questão ao Orós, o segundo maior do Ceará graus de separação em número de açudes
ceará
15 a 20
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5a9
0
3a4
mapa e infográfico PNAS
Açude Orós
bacia anualmente. Além desse ponto, ultrapassado no Alto Jaguaribe nos anos 1990, não há ganho com novos açudes. A água que seria armazenada por um açude rio abaixo simplesmente é transferida para outro rio acima. Intrigados com as semelhanças entre a rede real de açudes e a rede virtual otimizada, Mamede e Araújo procuraram a ajuda dos físicos especialistas em sistemas complexos Nuno Araújo, Christian Schneider e Hans Herrmann, do Instituto Federal Suíço de Tecnologia de Zurique (ETH), para analisar a dinâmica do transporte de água na bacia. O primeiro desafio da equipe foi determinar a localização e a área máxima de cada açude da bacia, desconhecidas para mais de 95% desses reservatórios. Caracterizaram os 3.798 reservatórios por imagens de satélite disponibilizadas pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, tomadas em anos excepcionalmente úmidos (2004, 2008 e 2009). Em seguida, usando imagens de alta resolução do relevo obtidas pela Missão Topográfica Radar Shuttle, da Nasa, reconstruíram em computador o traçado de cada curso d’água da bacia, descobrindo assim como cada açude se ligava a outro. Para a surpresa de todos, verificaram que não havia um valor típico médio para
o tamanho dos açudes, cuja área varia de 10 mil a 10 milhões de metros quadrados. O mesmo vale para o número de suas conexões: há açudes isolados, conectados somente com o Orós, bem como outros interligados com quase 400 açudes. “Há uma heterogeneidade muito grande, o sistema não tem um tamanho característico”, explica Nuno Araújo. “Dizemos que é uma rede livre de escala.” Com o mapa completo da rede e os dados de precipitação de 131 estações meteorológicas espalhadas pela região e dados de evaporação da estação Campos Sales, os pesquisadores criaram um modelo hidrológico que computou o quanto de água cada açude recebia e vertia diariamente, de 1991 a 2010. Descobriram que, nos dias de chuva intensa – pelo fato de os açudes receberem água de um ou mais rios e riachos, mas só verterem por uma única saída –, aconteciam transbordamentos em série. Em um efeito em cascata, o vertimento de um açude desencadeava o transbordo de outros rio abaixo. As cascatas geralmente envolviam apenas dois açudes, mas podiam com frequência considerável alcançar 10, 100 e até mil reservatórios. As frequências com que cascatas de intensidades diferentes aconteceram obedecem a uma distribuição de pro-
babilidade típica de outros fenômenos, como os terremotos e os blackouts em redes elétricas, que os físicos explicam por meio de modelos conhecidos como sistemas criticamente auto-organizados. Eles são chamados assim porque são sistemas feitos de muitas partes interagindo aparentemente de maneira aleatória, mas da qual emergem leis estatísticas simples, ditando que pequenas alterações têm chance de provocar grandes reações em cadeia pelo sistema. No momento, o grupo da UFC usa esse modelo para quantificar o papel dos pequenos açudes em atenuar o impacto das enchentes nos grandes reservatórios. Eles esperam em breve acrescentar mais detalhes ao modelo, como o transporte de sedimentos e poluição e a integridade estrutural dos açudes, para que ele possa ser usado na avaliação de áreas de risco. n
Artigos científicos MALVEIRA, V. T. C.; ARAÚJO, J. C.; GUENTNER, A. Hydrological impact of a highdensity reservoir network in the semiarid northeastern Brazil. Journal of Hydrologic Engineering. v. 17, p. 109-17. 2012. MAMEDE, G.L.; ARAUJO, N. A. N.; SCHNEIDER, C. M.; ARAÚJO, J. C.; HERRMANN, H. J. Overspill avalanching in a dense reservoir network. Proceedings of the National Academy of Sciences. v. 109, p. 7.191-95. 2012. pESQUISA FAPESP 197 z 61
tecnologia mineração oceânica y
Fertilizante marinho Uso de algas calcárias como adubo em lavouras de cana pode elevar a produtividade em até 50% Yuri Vasconcelos
P
ode estar no fundo do mar a solução para o Brasil elevar em até 50% sua produção de açúcar e etanol sem que seja necessário plantar nem um metro quadrado a mais de cana-de-açúcar. O montante que o país deve produzir este ano é de 37 milhões de toneladas de açúcar e 23,6 bilhões de litros de etanol. Estudos realizados pela Universidade Federal de Lavras (Ufla), no interior de Minas Gerais, em parceria com a empresa TWB Mineração, com sede no Guarujá, no litoral paulista, revelaram que o uso de biofertilizante a partir de algas marinhas calcárias, chamado granulado bioclástico, é capaz de gerar um significativo ganho de produtividade nos canaviais por elevar o teor de açúcar – ou sacarose – presente na planta. Os pesquisadores descobriram que, ao ser aplicado na lavoura como adubo misturado à vinhaça, um resíduo da produção sucroalcooleira já empregado como fertilizante por várias usinas do país, o granulado bioclástico possui um efeito remineralizador e condicionador do solo e agrega mais de 40 nutrientes importantes para o desenvolvimento da cana, entre eles cálcio, silício e magnésio. “Essa nova fonte de nutrientes para a agricultura tem um papel importante na correção da acidez do solo. Ela retifica o pH dos solos ácidos, melhorando a assimilação dos elementos nutritivos”, afirma o engenheiro agrônomo Paulo César Melo, professor da Ufla e um dos primeiros pesquisadores a analisar o uso do granulado na adubação de lavouras no Brasil. “Ao mesmo tempo, o granulado elimina o característico odor fétido da vinhaça, ao absorver os gases voláteis exalados por ela.”
62 z julho DE 2012
ilustração drüm
agricultura
Os granulados bioclásticos são areias e cascalhos constituídos principalmente por algas marinhas da família Corallinaceae. Essas algas, cuja espécie mais conhecida é a do gênero Lithothamnium, precipitam magnésio em suas paredes celulares, além do carbonato de cálcio num volume de concentração em seu corpo maior do que qualquer outro organismo vivo. De origem vegetal, elas crescem em profundidades que variam de 10 a 40 metros e em seu estado natural possuem uma tonalidade avermelhada ou azulada. A plataforma continental brasileira detém um dos maiores depósitos de algas calcárias do mundo, numa faixa de 4 mil quilômetros que se estende do litoral do Pará ao do Rio de Janeiro. A existência de amplas ocorrências dessas algas na plataforma continental das regiões Norte e Nordeste foi relatada na década de 1960 por pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). A última descoberta foi uma área de 21 mil quilômetros quadrados identificada na região do arquipélago de Abrolhos no sul do litoral do estado da Bahia (ver Pesquisa Fapesp nº 196). “Na Europa, principalmente na França, essas algas já são empregadas há décadas para nutrição animal e vegetal. Aqui no Brasil seu uso é recente e foi iniciado apenas há cerca de 20 anos. Mas o potencial de exploração econô-
mica das algas na plataforma brasileira é maior do que a dos depósitos franceses”, ressalta Melo. O uso do granulado bioclástico como fertilizante foi objeto da tese de doutorado defendida pelo pesquisador no departamento de ciência do solo da Ufla. Na ocasião, ele avaliou a eficiência do produto nas lavouras de milho-doce e feijão. Isso foi em 2002. Seis anos depois, Melo foi procurado pela empresa TWB, que explorava uma jazida de algas calcárias a 300 milhas da costa do Espírito Santo, e queria encontrar aplicações economicamente rentáveis para a matéria-prima. “Naquela época, meus estudos já mostravam que o granulado aumentava a concentração de açúcar em frutas, como laranja, maracujá, pitaia, mamão e goiaba. Tivemos, então, a ideia de testá-lo na lavoura de cana-de-açúcar, uma das mais importantes do país”, lembra o pesquisador. Para isso, foi firmado um acordo com a Cooperativa Agroindustrial de Rolândia (Corol), no interior do Paraná, para uso do granulado em canaviais da Fazenda Santa Rosa, no município paranaense de Jaguapitã. Antes da aplicação no campo, foram conduzidos estudos nos laboratórios da Ufla para definição da dose recomendada do produto, de acordo com a análise do solo do local, o histórico da área cultivada e a quantidade de adubo aplicado na plantação.
oceanografia
pESQUISA FAPESP 197 z 63
Alta produtividade Saiba quais foram os ganhos gerados pelo uso do granulado bioclástico na usina da Cooperativa Agroindustrial de Rolândia (PR)
limites marinhos davis Vitória
sem vinhaça
com Vinhaça + Granulado bioclástico
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aumento de
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açúcar
Em novembro de 2009, os pesquisadores misturaram o granulado em 18 mil litros de vinhaça, um resíduo da indústria sucroalcooleira, que foram aplicados no canavial. Para avaliar a eficiência agronômica da inovação, o pesquisador utilizou uma metodologia chamada de arranjo produtivo local (APL), usado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), que consiste em avaliar e validar determinado produto numa cultura e num local específicos, comparando seus resultados com o de uma lavoura que não recebeu aquele produto. No estudo conduzido por Melo, uma área de 3.600 metros quadrados de canavial da Fazenda Santa Rosa foi dividida em três partes. A primeira teve aplicação de granulado e vinhaça; a segunda, somente de vinhaça; e a terceira não recebeu nenhum dos dois produtos. Onze meses depois, a cana foi colhida e foram realizados testes para avaliar a eficiência agronômica do granulado. “O emprego do granulado associado à vinhaça, em comparação ao uso apenas da vinhaça, gerou um aumento significativo de açúcar. Constatamos também que houve uma elevação de 52% na produção de açúcar e álcool. O granulado bioclástico potencializou a ação da vinhaça”, diz Melo. A produção por hectare de álcool na área adubada com granulado e vinhaça atingiu 4.210 litros, ante 2.770 litros na área tratada apenas com vinhaça. A produção de açúcar, por sua vez, alcançou 9.020 quilos, ante 5.937 quilos. A comparação entre a área onde foi aplicada a mistura de granulado e vinhaça com aquela que não recebeu nenhum dos dois produtos revelou um ganho ainda maior, da ordem de quase 100%. Uma vantagem do uso do granulado como biofertilizante, de acordo com Melo, é seu baixo custo de processamento. Depois que as algas calcárias são retiradas do fundo do mar, por dragagem, 64 z julho DE 2012
52%
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ilha de trindade
No litoral do Espírito Santo existem vários campos de algas. O Davis foi explorado comercialmente, mas a licença foi cancelada porque estava fora do mar territorial de 200 milhas. O governo brasileiro reivindica a ampliação para 350 milhas.
O granulado é um produto orgânico e atóxico ao homem, mais barato e mais eficiente do que os fertilizantes químicos não é necessário nenhum tipo de beneficiamento industrial. O processamento das algas se dá por secagem natural, ensacamento e estocagem do produto. “O granulado bioclástico é um produto orgânico e atóxico ao homem, mais barato e mais eficiente do que os fertilizantes químicos convencionais. Todo seu ciclo produtivo – extração, processamento e transporte – não traz impacto ao meio ambiente”, afirma o professor da Ufla. “Durante a dragagem, extraímos apenas as formas livres das algas – ou seja, o exoesqueleto, que é a parte morta delas –, como rodolitos, nódulos e seus fragmentos. A área do fundo do mar desses bancos de algas se parece com um deserto, praticamente sem vida marinha, a não ser pela presença de grandes peixes.” Impacto ambiental
Esse tipo de exploração das algas preocupa a comunidade científica que estuda os rodolitos. “A exploração das algas calcárias provoca impactos ambientais por tratar-se, na prática, de um recurso natural não renovável. Os rodolitos crescem muito lentamente e têm o tamanho um pouco maior do que uma bola de tênis. Eles podem levar mais de 8 mil anos para serem formados”, diz o biólogo Rodrigo Leão de Moura, professor do Instituto de Biologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Segundo ele, os rodolitos são responsáveis pela complexidade do fundo e agregam biomassa
ilustração drüm fontes paulo césar melo / ufla, rodrigo leão de moura / ufrj e twb
de algas, invertebrados e uma série de espécies de importância comercial, tais como lagostas e peixes de recife. “O impacto sempre irá existir, mas pode ser reduzido se a extração se der em áreas pequenas e cuidadosamente selecionadas, o que não temos visto nesse tipo de empreendimento.” Pelo menos três empresas brasileiras com minas aprovadas pelo Ministério de Minas e Energia já comercializam o produto ou demonstraram interesse na extração de algas calcárias no litoral brasileiro. A Oceana Brasil explora atualmente uma jazida a 50 quilômetros da costa de Tutoia, no Maranhão. O produto moído e ensacado custa na fábrica o valor de R$ 750,00 a tonelada e recebe o nome de Algen. Outra empresa, a Algarea Mineração, extrai o recurso de uma reserva na costa do Espírito Santo. A TWB explorou por três anos uma grande jazida de algas calcárias no chamado banco Davis, situado há cerca de 300 milhas náuticas da costa, na cadeia submarina Vitória-Ilha de Trindade, no litoral capixaba. Em 2008, a empresa obteve a concessão de dois alvarás do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), órgão ligado ao Ministério de Minas e Energia, para exploração da jazida, mas em 2011 teve as licenças anuladas sob a alegação de que a reserva estava em águas internacionais, além da fronteira marítima brasileira, cujo limite são 200 milhas náuticas (370 quilômetros) a partir da costa. O potencial de exploração dessa reserva, de 150 mil hectares, é enorme. Segundo Paulo César de Melo, num ritmo de extração de 1 milhão de toneladas por ano, a jazida só se esgotaria em 2 mil anos. “O cancelamento das autorizações de pesquisa fez com que a TWB perdesse o inte-
4.210 litros é o volume de etanol produzido com adubo composto por granulado de algas e vinhaça
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fotos 1 léo ramos 2 paulo melo / ufla 3 guilherme H. Pereira-filho / ufrrj
1 e 2 Granulado calcário já triturado e a aspersão na lavoura de cana com a vinhaça
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3 Amostra de alga calcária com coral
resse no projeto.” A empresa investiu aproximadamente R$ 5,8 milhões sem que tivesse obtido uma perspectiva de solução para uma operação continuada”, afirma o consultor e sócio da TWB, João Manoel de Lima Monteiro. “A empresa paralisou o projeto e está se concentrando em outras áreas de suas atividades”, diz ele. Uma das alternativas para viabilizar a exploração do banco Davis seria estender a plataforma continental brasileira para além das atuais 200 milhas náuticas. O governo brasileiro está pleiteando, junto à Comissão de Limites da Plataforma Continental (CLPC) da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), a extensão de sua plataforma continental com a incorporação de uma área de quase 1 milhão de quilômetros quadrados aos 3,5 milhões de quilômetros quadrados de espaços marítimos que já pertencem ao país. Chamada de “Amazônia Azul”, em função de sua grande extensão e dos recursos naturais que abriga, essa região guarda em seu subsolo uma extensa lista de recursos minerais, como diamante, zircônio, potássio, areia e cascalho – além dos depósitos de algas calcárias. n
Artigo científico
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Moreira, R.A. et al. Crescimento de pitaia-vermelha com adubação orgânica e granulado bioclástico. Ciência Rural online. v. 41, n. 5. mai 2011. pESQUISA FAPESP 197 z 65
Indústria alimentícia y
A
Proteção vegetal Biofilmes produzidos com mandioca, banana e quinoa protegem e garantem longa vida a vários alimentos Sergio Kalili
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1 Filme de banana para uso em sacolas 2 Laranjas e carambolas cortadas e protegidas com biofilme
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3 Aplicação de gel de mandioca em morangos
s mudanças nos hábitos alimentares e a falta de tempo no dia a dia de quem vive nas grandes cidades, além da busca por um consumo sem desperdícios, têm provocado aumento nos estudos sobre alimentos frescos que possam durar mais tempo na prateleira ou na geladeira. As novidades estão surgindo na forma de embalagens dotadas de biofilmes biodegradáveis e coberturas comestíveis que estão ganhando forma na Faculdade de Engenharia de Alimentos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Nos grupos de pesquisa das professoras Miriam Dupas Hubinger e Florência Cecilia Menegalli o desafio é conseguir embalagens baratas, práticas e não poluentes, além de fáceis de produzir. Desde 2000, o grupo de Florência se volta para o desenvolvimento de embalagens biodegradáveis e coberturas comestíveis para frutas secas. Miriam e suas orientandas especializaram-se em coberturas para frutas frescas e hortaliças, os chamados produtos minimamente processados. “Nossas coberturas aliam dois benefícios: a praticidade para quem vai consumir, já que a fruta está prontinha, descascada e cortada, e o aspecto saudável do alimento”, diz Miriam. Ela explica que suas coberturas funcionam como uma barreira, conservando a água e os sais minerais da fruta, protegendo-a de microrganismos e do contato com o ar. Simplicidade foi uma das razões que levaram Miriam a trabalhar com coberturas à base de farinha de fécula de mandioca na forma de gel. A concentração desse material para formar uma cobertura é menor do que a usada para fazer um filme sólido, semelhante ao plástico, que necessita da adição de agentes plastificantes para ficar flexível. “Privilegiamos o custo, a disponibilidade e a facilidade no preparo da cobertura, em uma farinha que se gelatiniza a baixas concentrações e não altera o sabor dos alimentos”, explica Miriam. “As coberturas precisam ter resistência ao oxigênio do ar, ao vapor de água e a microrganismos, sem esquecer o principal: a aceitação sensorial do consumidor.” Somada aos polissacarídeos da farinha, que é a base da cobertura, a professora utiliza uma mistura de dois componentes naturais, o ácido cítrico, encontrado na laranja, por exemplo, e o ácido ascórbico (vitamina C). Eles são adicionados antes de mergulhar a fruta na cobertura, inibindo a atividade enzimática, um dos fatores que levam ao escurecimento do alimento em contato com o ar. Depois o alimento é deixado para escoar o líquido em temperatura ambiente.
fotos léo ramos
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Os Projetos 1 Amido de amaranto: estudo das propriedades reológicas e termofísicas, características estruturais e fisioquímicas de amido e de seus produtos (géis, coberturas e biofilmes) nº 2002/12137-6 2 Avaliação da qualidade de frutas minimamente processadas com coberturas comestíveis nº 2009/51420-4 modalidade 1 e 2 Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa Coordenadoras Florência Menegalli – Unicamp Miriam Dupas Hubinger – Unicamp investimento R$ 47.909,00 e US$ 16.092,00 (FAPESP) R$ 33.108,04 (FAPESP)
A solução de cobertura de fécula de mandioca cria uma barreira com baixa permeabilidade do oxigênio do ar, mas não protege o produto do vapor-d’água, presente na atmosfera. O recurso encontrado para proteger o alimento foi a produção de coberturas emulsionadas ou em camada dupla que mistura a farinha de mandioca com lipídeos como, por exemplo, cera de carnaúba ou de abelha. Os resultados oriundos dessa estratégia foram animadores. Atividade correta
O morango coberto com fécula de mandioca, sem nenhum agente antimicrobiano, durou 12 dias, quando o normal são cinco. No caso do abacaxi sem casca, que normalmente tem uma vida de prateleira de quatro dias, a sobrevida também foi em torno de 12 dias. A manga cortada, coberta com cobertura de mandioca, chegou a resistir 15 dias. O normal é escurecer em dois dias apenas. Marcela Chiumarelli, aluna que colaborou no estudo das coberturas, explica que “o manuseio de produtos minimamente processados ainda é recente no país, e muitos mercados e atacadões não realizam a atividade corretamente”. Florência e seu grupo estão testando várias composições para a produção laboratorial de
biofilmes eficientes para diferentes funções como resistência, flexibilidade e comestível. Entre os ingredientes utilizados estão fontes não convencionais para a produção de farinha e amido de cereais como o amaranto, originário da região dos Andes, na América do Sul, e mais recentemente de banana, em um filme reforçado por nanofibras de celulose obtidas da casca da própria fruta, além do uso de nanocompostos com base na montmorilonita, uma argila mineral presente no subsolo de algumas regiões de Minas Gerais. Do amido de quinoa, uma planta também nativa dos Andes, foram produzidos filmes incolores com reduzida solubilidade em água. A professora esclarece que as experiências com nanocompostos são as mais recentes e complexas. “Usamos a própria farinha da banana e do biri, que é uma planta ornamental. Isolamos os biopolímeros e fizemos a produção de uma fibra celulósica dos resíduos. A microfibra feita de nanopartículas deixa o filme menos permeável, menos solúvel”, diz Florência. Esse produto, no entanto, vai levar mais tempo para chegar ao consumidor. “Não podemos buscar acordos comerciais porque precisamos primeiro observar qual é o efeito no homem da ingestão de nanopartículas.” Outro estudo do grupo é na área de coberturas de frutos secos com biopolímeros que são aplicados antes da secagem. Já foram testados em carambola, figo e caqui. No âmbito comercial, nos Estados Unidos, a empresa Nature Seal produz coberturas comestíveis que, aplicadas à superfície de frutas e hortaliças, mantêm, por exemplo, maçãs em pedaços com coloração clara, sem perder sabor e vitaminas por mais de 10 dias. Os trabalhos do grupo de Miriam, precisamente a pesquisa com morangos, chamou a atenção de uma importante cadeia de lanchonetes dos Estados Unidos e de uma grande empresa da Bélgica que comercializa cerejas, framboesas e mirtilos. Um mercado bilionário está se formando porque lanchonetes como McDonald’s, Burger King, Wendy's e Jack in the Box tornaram seus cardápios mais verdes, adicionando saladas e frutas frescas ao menu. O que as coloca entre potenciais consumidores de biofilmes. n
Artigos científicos CHIUMARELLI, M. et al. Stability, solubility, mechanical and barrier properties of cassava starch – Carnauba wax edible coatings to preserve fresh-cut apples. Food Hydrocolloids. v. 20, n. 1, p. 59-67. jul. 2012. ANDRADE-MAHECHA, M.M. et al. Development and optimization of biodegradable films based on achira flour. Carbohydrate Polymers. v. 88, n. 2, p. 449-58. abr. 2012. pESQUISA FAPESP 197 z 67
Pesquisa empresarial y
Além dos derivados de petróleo Braskem amplia mercados com polímero feito a partir de etanol e investe em rotas biotecnológicas Dinorah Ereno
A Da esquerda para a direita, Patrick Teyssonneyre, Marcelo Farah e Mauro Oviedo, na fábrica em Triunfo (RS) 68 z julho DE 2012
petroquímica brasileira Braskem, sexta colocada no ranking mundial do setor, produz anualmente mais de 16 milhões de toneladas de intermediários químicos e resinas termoplásticas, como polietileno, polipropileno e PVC, e lidera a produção do chamado polietileno verde, feito a partir do etanol da cana-de-açúcar, resultado de um trabalho de pesquisa e desenvolvimento tecnológico dos pesquisadores da área de polímeros. Apenas três anos atrás ela ocupava a 11ª posição. A rápida escalada deve-se principalmente à compra da empresa brasileira Quattor e da divisão de polipropileno da petroquímica norte-americana Sunoco, na Filadélfia, em março de 2010, o que abriu espaço para a atuação fora do Brasil, e de quatro fábricas de polimerização da Dow Chemical, duas nos Estados Unidos e duas na Alemanha, no ano passado. A inauguração da fábrica de polímero do etanol de cana em setembro de 2010 com capacidade de produção de 200 mil toneladas por ano no polo
petroquímico de Triunfo (RS), onde está localizada a petroquímica, também contribuiu para esse resultado. Sozinha ela representa 28% do mercado mundial de biopolímeros produzidos em 2010, que totalizou 724.500 toneladas, segundo a European Bioplastics, associação europeia que representa os fabricantes, transformadores e usuários de bioplásticos e polímeros biodegradáveis. A projeção é de um mercado com grande fôlego de crescimento. A associação europeia estima que em 2015 a produção atinja 1,7 milhão de toneladas. No Brasil, o polietileno verde é usado, por exemplo, pela Danone em embalagens de iogurte, pela Faber Castell em embalagens de lápis e pela Natura nos seus produtos da linha erva-doce. A Braskem vende o polímero bruto para os seus clientes, que se encarregam da transformação da resina em embalagens de cosméticos, protetores solares, brinquedos, sacolas de supermercado e outras aplicações. Fora do Brasil, os acordos comerciais para a utilização do polímero da cana têm se ampliado, a exemplo da parceria firmada
andré cavalheiro
biotecnologia
no início de junho com o grupo alemão Tecnaro, empresa que desenvolveu uma espécie de madeira termoplástica chamada Arboform, para dar outros usos para a resina. A possibilidade de voltar a produzir um polímero verde pela petroquímica, que tem como principais acionistas o grupo Odebrecht e a Petrobras, surgiu em 2004, mas só em 2006, quando a empresa contratou uma consultoria externa para fazer um mapeamento do mercado global, o projeto tomou forma. “Na conversa com clientes, percebemos que a questão da sustentabilidade estava ganhando importância no mercado consumidor”, diz Patrick Teyssonneyre, diretor de inovação e tecnologia para polímeros, de 35 anos e há 12 na Braskem. Para o trabalho de prospecção a empresa tem uma equipe de 70 pessoas, composta pelas áreas comerciais, de marketing, desenvolvimento de mercado e engenharia de aplicação, que estão sempre em campo consultando clientes e consumidores finais sobre as necessidades e tendências no setor.
As melhores ideias são convertidas em projetos que podem ter como objetivo desde um novo produto ou tecnologia até um novo serviço e aplicação para algum produto já existente. “Buscamos universidades no mundo que são as mais destacadas nos assuntos em pauta nos projetos e fazemos propostas de trabalho conjunto”, diz Teyssonneyre, engenheiro de materiais formado pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). O primeiro contato com a Braskem foi durante um estágio feito quando cursava a universidade. “Comecei como engenheiro de desenvolvimento de produtos e depois passei a gostar dos laboratórios”, conta o diretor, que fez MBA em gestão na Fundação Getúlio Vargas. Entre as instituições parceiras da empresa estão a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e as universidades Clemson, Massachusetts e Stanford, nos Estados Unidos. Com Stanford, por exemplo, a Braskem firmou um
química
pESQUISA FAPESP 197 z 69
contrato para o desenvolvimento de uma resina de polipropileno para o segmento de fibrocimento, que apresentou excelente desempenho em comparação com as alternativas existentes no mercado. Em maio, a empresa depositou uma patente da tecnologia desenvolvida e o lançamento comercial do produto está previsto para outubro deste ano. A Braskem tem 35 plantas industriais distribuídas pelo Brasil, Estados Unidos e Alemanha, e dois centros de pesquisa dedicados a petroquímicos, um em Triunfo com 180 pesquisadores e o outro em Pittsburgh, na Pensilvânia, Estados Unidos, com 40 pesquisadores. Além disso, ela dispõe de um laboratório de biotecnologia e um de fermentação, sediados no Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), em Campinas, com 25 pesquisadores. Esses laboratórios atuam na pesquisa e desenvolvimento de tecnologias renováveis e contam ainda com uma equipe de processos renováveis. Engenheiros químicos, engenheiros de materiais, químicos e, mais recentemente, biólogos, bioquímicos e bioinformáticos compõem o quadro de pesquisadores. Cerca de 40% têm graduação, mestrado ou doutorado e o restante é formado por técnicos de laboratório. “Os três laboratórios se complementam e operam de forma integrada”, diz Teyssonneyre. Em 2011, a Braskem investiu R$ 155 milhões em pesquisa e teve renda líquida de R$ 33,2 bilhões, um aumento de 19% em relação ao ano anterior. “Um diferencial da Braskem no desenvolvimento de produtos é a sua proximidade com o cliente e diferentes centros de pesquisa nacionais e internacionais, além da qualificação dos integrantes”, diz Mauro Alfredo Soto Oviedo, de 41 anos, pesquisador da área de polímeros em Triunfo, com
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1 e 2 Pesquisadores no laboratório de biotecnologia instalado no LNBio, em Campinas 3 Maria Carolina Grassi dedica-se à seleção de microrganismos robustos e competitivos
graduação em bioquímica pela Universidade de Concepción, no Chile, mestrado em biotecnologia industrial na Universidade de São Paulo (USP) e doutorado em química na Unicamp, além de um estágio em química na Universidade Birmingham, na Inglaterra, onde estudou mecanismos de degradação de materiais poliméricos, e pós-doutorado em nanotecnologia de polímeros, também na Unicamp. Toda a sua pós-graduação, inclusive o estágio na Inglaterra, foi apoiada pela FAPESP. A política da petroquímica é garantir que os recursos sejam bem investidos.
Instituições que formaram os pesquisadores da empresa Patrick Teyssonneyre, engenheiro de materiais, diretor de inovação e tecnologia para polímeros
UFSCar – graduação FGV – MBA
Mauro Alfredo Soto Oviedo, bioquímico, pesquisador da área de polímeros
Universidade de Concepción, Chile – graduação USP – mestrado Unicamp – doutorado e pósdoutorado
Marcelo Farah, engenheiro de materiais, pesquisador da área de polímeros
UEPG – graduação UFSCar – mestrado e doutorado
Maria Carolina Grassi, bióloga, pesquisadora do laboratório de biotecnologia
Unicamp – graduação e doutorado
Maria Ignez Broglio, engenheira química, coordenadora de pesquisa no laboratório de tecnologias renováveis
Unicamp – graduação, mestrado e doutorado
70 z julho DE 2012
“Sabemos que a inovação tem risco e nem todos os projetos vão dar certo, por isso procuramos identificar nos estágios iniciais aqueles que não são promissores”, diz Teyssonneyre. A cada etapa do projeto é feita uma análise detalhada de riscos, tanto técnico quanto comercial, para avaliar o grau de viabilidade. Oviedo, por exemplo, foi convidado para trabalhar na Braskem em junho de 2006 como integrante de um grupo criado para desenvolver pesquisas na área de nanotecnologia para a classe das poliolefinas, da qual fazem parte o polietileno e o polipropileno. “O desenvolvimento da tecnologia avançou em escala piloto, mas o mercado para esse tipo de poliolefinas especiais não cresceu conforme o previsto, por isso os recursos destinados a essa linha de pesquisa foram alocados para projetos de maior prioridade”, diz Oviedo. Enquanto aguarda o momento certo para produzir essa tecnologia, o grupo que durante três anos ficou envolvido com o projeto foi realocado para outras áreas. “Hoje trabalho na área de ciência de polímeros.” A equipe conta com 18 pesquisadores, entre químicos, engenheiros, farmacêuticos e bioquímicos, todos com mestrado ou doutorado. Marcelo Farah, de 37 anos, graduado em engenharia de materiais pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), no Paraná, com mestrado e doutorado em ciência e engenharia dos materiais pela UFSCar, também com bolsa FAPESP, faz parte desse grupo desde 2005. “Trabalhamos com assuntos diferentes e um tempo
fotos léo ramos
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de resposta rápida para atender às necessidades e estratégias bastante diversas das requisitadas na universidade”, diz Farah. Uma das tarefas do grupo é fazer a ponte com a academia. “Buscamos capturar oportunidades de pesquisas, com resultados que nos interessam para incorporar a tecnologia no nosso dia a dia.” A Braskem não destina um percentual fixo para a pesquisa. O valor anual varia em função dos projetos em andamento. Para a implantação da fábrica de polietileno de etanol da cana, por exemplo, foram destinados R$ 500 milhões. Embora não seja biodegradável, já que sua estrutura química é idêntica à do plástico obtido do petróleo, o que confere à resina as mesmas propriedades físicas e mecânicas, o polímero verde tem atraído a atenção do mercado por ser oriundo de uma fonte renovável. tecnologias renováveis
A estrutura de pesquisa de tecnologias renováveis, instalada no LNBio desde setembro de 2010, originou-se de uma parceria entre a Braskem e o laboratório de Genômica e Expressão da Unicamp em 2007, por meio de um projeto coordenado pelo professor Gonçalo Guimarães Pereira, que teve apoio da FAPESP na modalidade Programa Parceria para Inovação Tecnológica (Pite), intitulado Rotas verdes para o propeno (ver Pesquisa FAPESP
Seis alunos da Unicamp que participaram do projeto Pite sobre rotas verdes foram contratados pela petroquímica nº 177). Os seis alunos de pós-graduação que participaram inicialmente do projeto foram contratados pela Braskem. “Meu doutorado em genética e biologia molecular, que está sendo finalizado, foi iniciado na Unicamp dentro desse projeto”, diz a pesquisadora Maria Carolina Grassi, de 27 anos, formada em biologia pela mesma universidade e uma das contratadas. “A equipe de processos renováveis acompanha tudo o que é desenvolvido em escala microscópica pelos pesquisadores da biotecnologia, avaliando e otimizando os principais aspectos da transformação em escala industrial”, diz Maria Ignez Broglio, 47 anos, engenheira química formada pela Unicamp, onde também fez mestrado, que coordena uma das linhas de pesquisa com foco em catálise. A tarefa da equipe de Maria Ignez, que durante
20 anos trabalhou na indústria química de base e desde 2010 está na Braskem, é desenvolver uma rota inovadora para a produção de monômeros que serão utilizados na produção de plásticos verdes. No laboratório de biotecnologia são desenvolvidas vias metabólicas para a produção de compostos químicos de interesse. “Buscamos microrganismos que sejam robustos, com alto rendimento e alta produtividade do composto químico final, a exemplo dos utilizados na produção industrial de etanol e ácido lático”, diz Maria Carolina. Maria Ignez coordena uma linha de pesquisa que tem como objetivo chegar mais rapidamente a moléculas verdes com o uso de fontes de carbono renováveis e a utilização de novos catalisadores (responsáveis pela aceleração dos processos químicos). Ela cita o exemplo do álcool da cana que foi transformado em monômero verde por meio de catálise ácida. Por esse método, o catalisador ácido desidrata o etanol, transformando-o em eteno, processo com altíssimo rendimento. “A vantagem desse processo é que não é preciso mexer nas instalações na etapa posterior de polimerização da molécula obtida pela catálise”, diz. Para produzir o polietileno verde, por exemplo, a Braskem fez investimentos na primeira etapa, chamada reacional, e na purificação. A estratégia tem como objetivo dispor de rotas alternativas para produzir novas moléculas verdes para o mercado e assim ganhar tempo para a evolução dos microrganismos modificados biotecnologicamente. n pESQUISA FAPESP 197 z 71
O relevo econômico do interior
Estudo mapeia o processo de desconcentração industrial no estado de São Paulo | Claudia Izique
72 z julho DE 2012
léo ramos
humanidades desenvolvimento y
economia
O
Rodovia dos Bandeirantes, rumo ao interior do estado: expansão do eixo do desenvolvimento
processo de desconcentração industrial no estado de São Paulo, iniciado na década de 1970, alterou profundamente seu mapa e território: a mancha metropolitana da capital se expandiu em direção ao Vale do Paraíba, Sorocaba e às regiões de Campinas e Ribeirão Preto, conglomerados urbanos especializados se formaram ao longo de uma densa malha rodoviária e as cidades médias assumiram a liderança do mercado em seu entorno. “O interior não é mais um espaço plano. Tem ‘relevo’ econômico”, afirma Eliseu Savério Sposito, do Departamento de Geografia da Faculdade de Ciência e Tecnologia (FCT) da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Presidente Prudente. À frente de um grupo de pesquisadores, Sposito coordenou um projeto que mapeou o movimento e as características do processo de desconcentração da indústria no estado. Eles constataram, por exemplo, que muitas empresas deslocaram fábricas para o interior, mas mantiveram a sede, assim como o seu board, na cidade de São Paulo. Esse divórcio dos processos de gestão e de produção, que Sposito qualifica de “disjunção produtiva”, obedece à “lógica da acumulação capitalista” de reduzir custos de produção que, nos anos 1980, cresciam significativamente na metrópole. Essa lógica, no caso de São Paulo, conferiu um caráter particular à desconcentração industrial. “O processo limitou-se a uma área bem definida e, por extensão, ao território nacional, não se tornando nítida e
geografia
pESQUISA FAPESP 197 z 73
Em 2010, 75% da indústria de alta e média tecnologia estava concentrada nas regiões administrativas de São Paulo e de Campinas
Eixos de desenvolvimento
Os fatores determinantes da nova geografia econômica do estado, os eixos de desenvolvimento em torno dos quais se aglomeraram indústrias migrantes e a nova conformação das cidades foram analisadas no âmbito do projeto O novo mapa da indústria no começo do século XXI: novas dinâmicas industriais e o território, coordenado por Sposito, que começou em 2006 e foi concluído em 2011. A iniciativa reuniu 11 pesquisadores do Grupo de Produção do Espaço e Redefinições Regionais (Gasperr), da Unesp, bem como das universidades de São Paulo (USP), Federal do Paraná (UFPR) e da Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste). O grupo já publicou dezenas de artigos, que serão reunidos em três livros, e promete editar um atlas digital com cerca de 400 mapas que descrevem a nova geografia econômica de São Paulo. Assim, a atual configuração geográfica do estado não descreve um território homogêneo: revela uma Região Metropolitana “transbordada” em direção a quatro regiões administrativas
Linha de montagem da GM em São José dos Campos, região do Vale do Paraíba: no interior, mas perto da capital 74 z julho DE 2012
– Campinas, São José dos Campos, Sorocaba e Santos –, que mantém centralidade em relação às demais áreas de produção e de consumo do estado, analisa Maria Encarnação Beltrão Sposito, do departamento de geografia da Unesp de Presidente Prudente. “Essa formação caracteriza uma macrometrópole, se quisermos adotar a ideia de François Ascher para conceituar as novas configurações espaciais de Paris e sua bacia de influência”, diz Maria Encarnação. A nova cartografia se traduz num mapa recortado por eixos de desenvolvimento orientado pela malha rodoviária e infoviária, corredores ferroviá rios e uma hidrovia, em torno dos quais se aglutinam grandes empresas industriais com acesso ao mercado nacional e global por meio de quatro aeroportos de carga e o porto de Santos. Dinâmica semelhante se reproduz em conglomerados urbanos formados por cidades de porte médio, em que prevalecem pequenas e médias indústrias fornecedoras de mercadorias e de serviços em âmbito local e regional. Articuladas por eixos de desenvolvimento, a macrometrópole e o interior do estado formam o maior e mais diversificado parque industrial do país, com participação de 33% no Produto Interno Bruto Nacional (PIB). Para compreender o novo mapa do território paulista, os pesquisadores investigaram a evolução da indústria em São Paulo à luz do materialismo histórico e seus desdobramentos efetuados a partir das transformações observadas nos séculos XX e XXI. Nessa perspectiva, explicam a desconcentração industrial como resultado da transição de um sistema fordista de produção – baseado na estra-
foto Lucas Lacaz Ruiz/Folhapress mapa drüm
forte nas cidades médias do oeste do território do estado”, diz Sposito. Os pesquisadores utilizaram informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade) e Relação Anual de Informações Sociais (Rais), entre outras organizações.
caminhos de são paulo Alguns dos maiores PIBs
Goiânia
regionais e suas principais conexões nos diversos Uberlândia
eixos de
Belo Horizonte
transporte no estado Campos dos Goycatazes
de São Paulo Interior de São Paulo RMSP PIB cidade Eixos rodoviários
Rio de Janeiro
Eixos ferroviários (bitola mista) Porto de Santos
Eixos ferroviários (bitola larga) Curitiba
Eixos ferroviários (bitola estreita) Terminal Mairinque
Joinville Porto de Santos
O Projeto O novo mapa da indústria no começo do século XXI: novas dinâmicas industriais e o território – nº 2004/16069-0 modalidade Projeto Temático Coordenador Eliseu Savério Sposito – FCT/Unesp investimento R$ 196.879,45 (FAPESP)
tégia de linha de montagem e produção em massa, em que é forte a relação entre empresas e território – para um sistema de acumulação flexível do capital –, onde os investimentos não reconhecem fronteiras, e que também norteiam o processo de globalização de empresas. “As necessidades locacionais passam a ser ditadas pelo acesso aos transportes, pelas possibilidades de conexão à internet, aos satélites e às telecomunicações”, afirma Arthur Magon Whitaker, da FCT/Unesp. “As distâncias relativas tornam-se cada vez mais importantes do que as distâncias absolutas”, ele escreveu em Uma discussão sobre o conceito de produção do espaço urbano, que integrará a publicação do grupo. investimento público
A descentralização da indústria amparou-se nos investimentos públicos, principalmente estaduais, na reorganização do território para atender às demandas corporativas e permitir maior fluidez e competitividade territorial das empresas, analisa Márcio Rogério da Silveira, que foi docente da Unesp, no estudo sobre os sistemas de transporte e logística no estado de São Paulo. Em 2007, a
Escala 1 : 7.000.000
malha rodoviária paulista somava mais de 198 mil quilômetros. Deste total, 5 mil quilômetros de rodovias – exatamente aquelas com maior fluxo de transportes, traçados em mão dupla e conectados à capital – já eram operados por concessionárias privadas. “As rodovias são o esqueleto do crescimento econômico do estado”, enfatiza Sposito. O estado conta ainda com quatro grandes aeroportos, por meio dos quais circulam passageiros e cargas de maior valor agregado. O de Viracopos, em Campinas, é o segundo maior terminal de cargas do país. A infraestrutura de transporte, associada à disponibilidade de mão de obra qualificada e especializada, patrocinou o que Sandra Lencioni, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, qualifica de “desconcentração concentrada”. Nas regiões administrativas que circundam a capital, os indicadores mostram que o crescimento em valor agregado foi maior que o número de unidades industriais, demonstrando um movimento de empresas mais capitalizadas e/ou de porte grande ou médio, exemplifica Maria Encarnação. Em outras regiões – Marília, por exemplo –, embora a participação no total do pESQUISA FAPESP 197 z 75
fotos 1 Leonardo Wen/Folhapress 2 Edson Silva/Folhapress, FOLHA RIBEIRÃO
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Fábrica de máscaras em Itapetininga (esq.) e linha de produção de calçados para exportação em Franca: maior oferta de empregos
No noroeste do estado destacam-se as atividades relacionadas a agricultura, pecuária e serviços afins
estado em valor adicionado tenha crescido, os dados dão conta de que esse movimento é resultado do aumento do número de empresas. A macrometrópole não se diferencia do interior apenas pelo porte das empresas. “A desconcentração industrial se deu em paralelo e simultaneamente à intensificação do adensamento da indústria inovadora na Região Metropolitana de São Paulo e em seu entorno”, afirma Sandra. É aí que se adensam “condições gerais de produção” necessárias ao desenvolvimento de atividades de ponta: universidades, centro de pesquisa, parques tecnológicos e apoio à pesquisa e desenvolvimento (P&D), bem como uma extensa rede de circulação material, de fibra óptica e uma importante concentração de serviços. Em 2010, o estado de São Paulo abrigava 70% das indústrias de alta e média intensidade tecnológica da Região Sudeste. Deste total, 75% se localizavam em duas regiões administrativas, a de São Paulo e a de Campinas, e empregavam 79% do pessoal ocupado na indústria com curso superior. “A capacidade da indústria de ponta de gerar riqueza indica que, no bojo do processo de desconcentração da indústria paulista, o que parecia indicar um 76 z julho DE 2012
caminho para minimizar as disparidades regionais, criou diferenças de outra natureza que mantêm o quadro de desigualdade”, observa Sandra. Distantes da macrometrópole, nas cidades médias predominam empresas de capital local e os setores industriais, de serviços e o comércio se mantêm ligados ao mercado consumidor regional. A distância de São Paulo foi, reconhecidamente, um obstáculo para a diversificação e ampliação do parque industrial, mas induziu o fortalecimento da centralidade dessas cidades, analisa Sposito. “O mercado consumidor local e regional próximo é o principal motivo para a predominância das empresas de micro e pequeno porte em todos os setores da economia.” Essas empresas, em geral, são constituídas por capital local, empregam mão de obra de baixa qualificação e remuneração e, em sua maioria, oferecem serviços ou mercadorias básicas para um mercado consumidor pouco exigente. “Mas são fundamentais para a economia regional”, destaca. Nas duas maiores cidades do oeste paulista, São José do Rio Preto e Bauru, 90% das empresas são de micro ou pequeno porte. “Nas demais cidades a proporção é próxima de 80%”, diz Sposito. Predominam o comércio varejista e reparação de objetos pessoais e domésticos, comércio e representação de veículos automotores e motocicletas, varejo de combustíveis e serviços prestados às empresas, alojamento e alimentação, saúde e serviços sociais, segundo a Classificação Nacional da Atividade Econômica. Mesmo assim, outra tendência mostra indício de mudanças: há empresas que, mesmo localizadas em cidades médias ou pequenas, articulam-se diretamente com o exterior, sem a intermediação da metrópole. Em Marília, Araçatuba e Presidente Prudente, a noroeste do estado, destacam-se as atividades relacionadas a agricultura, pecuária e serviços afins.
Essa especialização entre cidades deixa nítida a existência de uma rede urbana em que prevalece uma “divisão do trabalho” entre municípios e regiões do estado. “E o centro dessa rede é São Paulo”, insiste Sposito. A especialização das cidades do interior é reforçada por 39 arranjos O Estado teve produtivos locais (APLs) – segundo um papel central estatísticas do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas no processo de (Sebrae) – que articulam cerca de 120 descentralização municípios em todo o estado. O APL da cadeia produtiva de calçados masculinos da região de Franca, por exemplo, da indústria ao reúne mais de 3,7 mil micros, pequenas dar velocidade e médias empresas de cinco municígera 51 mil empregos e produz ao deslocamento pios, cerca de 37 milhões de pares de calçados por ano, segundo informações de pessoas, da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico de São mercadorias Paulo. A indústria calçadista atende ao e informações mercado nacional e é responsável por algo em torno de 3% das exportações de calçados do país. Os negócios da indústria exportadora instalada no interior com o mercado externo prescindem da metrópole: a conexão com o cliente é feita por meio de 30 estações aduaneiras do interior (Eadi) instaladas em todo o estado. Também conhecidas como Porto Seco, as EADIs são um dos terminais diretamente ligados por estrada, via férrea ou área ao ponto de escoamento do produto. do interior para a capital Estimativa de deslocamentos diários em direção à Região Metropolitana de São Paulo para os próximos anos – em número de veículos
Eixo
2010
2013
2023
2038
Anhanguera / Bandeirantes
439.019
478.754
636.531
893.441
Castello Branco / Raposo Tavares
432.271
475.090
609.610
781.830
Régis Bittencourt
220.252
245.362
324.691
452.483
Imigrantes / Anchieta
288.647
312.765
419.835
595.133
Ayrton Senna / Dutra
315.039
355.261
463.163
646.992
Fernão Dias
123.971
143.525
180.463
236.504
1.820.096
2.010.756
2.634.293
3.606.384
Total
Fonte DER, 2012
A presença da indústria manufatureira do interior na pauta paulista de exportação, no entanto, é pequena: em 2006, apenas 3 das 15 regiões administrativas do estado eram responsáveis por 70% das exportações: São Paulo, Campinas e São José dos Campos. Apenas uma entre as 210 empresas exportadoras de Franca, por exemplo, tinha uma carteira de exportação superior a US$ 100 milhões por ano. Na grande maioria dos casos, as vendas externas não ultrapassavam a casa de US$ 1 milhão por ano. As mesmas estatísticas revelam também que os produtos da agroindústria e os da indústria de alta tecnologia têm participação quase idêntica na pauta de exportação: as vendas de açúcar de cana e de aviões – primeiro e segundo colocados no ranking dos principais setores exportadores, por exemplo – somaram US$ 2,5 bilhões e US$ 2,3 bilhões, respectivamente. Sandra ressalva, no entanto, que do ponto de vista do valor agregado o preço das commodities e produtos de alta tecnologia são díspares: “O valor de uma tonelada de circuito integrado, por exemplo, equivale a 21 mil toneladas de minério”, ela compara. Investimentos públicos
O estado teve um papel central no processo de descentralização da indústria. “Organizou a infraestrutura regional, dando velocidade ao deslocamento de pessoas, mercadorias e informações”, ressalva Sposito. As políticas municipais também tiveram peso: as cidades criaram distritos industriais e utilizaram estímulos fiscais para atrair empresas e ampliar a oferta de empregos. Na avaliação de Sposito, a força do interior do estado tem, ainda, raízes históricas. A economia cafeeira, ele lembra, constituiu uma rede de cidades dinâmicas e um mercado consumidor forte, formando uma rede urbana no interior. “Na primeira metade do século XX foi no interior que ocorreu a maior acumulação capitalista. Capitais privados financiaram a construção de galpões, rodovias, ferrovias que posteriormente foram encampados pelo estado.” O mesmo aconteceu com os bancos regionais que ao longo dos últimos 50 anos foram sendo incorporados pelos grandes bancos. No mesmo período, uma parcela de empresas com origem em cidades de interior se metropolizou. O Bradesco, que nasceu em Marília, tem sede em Osasco; a TAM, também criada em Marília, voou para São Paulo, e a rede Eldorado começou em Catanduva antes de se instalar na capital. “A economia de São Paulo não tem um movimento único. Há agentes do interior fundando empresas que se deslocam para São Paulo, ao mesmo tempo que se tem um movimento de empresas em direção ao interior”, conclui Sposito. As três publicações que estão sendo elaboradas pelos integrantes do grupo e o atlas da indústria paulista revelarão o mapa desse intenso movimento. n pESQUISA FAPESP 197 z 77
Relações exteriores y
A dança das cadeiras da ONU Ideia do Brasil no Conselho de Segurança, vista como “capricho” por analistas, partiu dos Estados Unidos
E
strela do encontro, Rui Barbosa confessou sua decepção com os rumos práticos da Conferência de Haia, de 1907. “Mas seus resultados invisíveis foram muito longe, pois mostraram aos fortes o papel necessário dos fracos na elaboração do direito das gentes.” Esse conceito de superação das relações assimétricas de poder por novas formas ideais de interação diplomática, em que o estatuto igualitário seria um dado essencial, permanece no discurso diplomático brasileiro até hoje, presente, em especial, na candidatura do país a um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Para muitos analistas, essa aspiração é uma misperception da nossa real estatura internacional, o desejo por um status que, alcançado, traria um ônus financeiro e militar elevado. A ação recente do Executivo nesse sentido seria até uma “obsessão”. A história, porém, revela que a pretensão de ser o “sexto membro” do conselho não é fruto de uma visão distorcida, mas fez parte da agenda da criação da Organização das Nações Unidas (ONU) em seus primórdios. “Em 1944, na Conferência de Dumbarton Oaks, que reuniu as potências aliadas, foram aprovadas propostas para a criação de uma nova organização internacional encarregada de manter a paz futura, pela força se necessário. O Brasil, ausente do encontro, foi o único país a ser cogitado como detentor de uma sexta cadeira permanente no futuro Conselho de Segurança”, conta o diplomata Eugênio Garcia, professor titular do Instituto Rio Branco e autor de O sexto 78 z julho DE 2012
membro permanente: o Brasil e a criação da ONU (Contraponto). A sugestão partiu do presidente Roosevelt, que instruiu sua delegação a trabalhar pela candidatura brasileira. Fazer parte do órgão que realmente detinha o poder na ONU, responsável pela segurança global, era um sonho de consumo, privilégio dos chamados Quatro Policiais: Estados Unidos, Inglaterra, União Soviética e China. A França, posteriormente, se juntaria a eles e formaria o grupo dos P-5. “Relatei ao presidente que havíamos levantado a questão de um lugar permanente para o Brasil no Conselho de Segurança, que o grupo soviético e o britânico se opuseram e que pressionar ainda, a esta altura, não seria aconselhável. O presidente, finalmente, concordou em não incluir o Brasil na minuta inicial, mas que uma cláusula geral deveria ser incluída na proposta, de maneira a deixar uma porta aberta para que, trabalhando com Stalin e com o primeiro-ministro britânico, ele pudesse, mais tarde, voltar a tocar no assunto, antes do início do funcionamento da organização”, escreveu o subsecretário de Estado americano Edward Stettinius em seu diário pessoal em agosto de 1944. Dias mais tarde, completou: “Entreguei ao presidente o memorando sobre o Brasil que recomendava que não pressionássemos por um lugar permanente para o Brasil. A princípio, ele não gostou, mas depois concordou. O presidente declarou que isso era importante porque, no futuro, ele poderia querer propor um lugar para um país islâmico e que o Brasil era um trunfo escondido para uso posterior”.
Bertha Lutz assina pelo Brasil na Conferência de São Francisco (1945)
onu
Carlos Haag
diplomacia
história
pESQUISA FAPESP 197 z 79
O projeto de um grupo que pairasse bem acima de uma assembleia geral de países “menores” foi uma maneira de repartir o papel de “segurança” pelas várias regiões, desonerando os Estados Unidos de terem que intervir militarmente em todo o globo. “O governo brasileiro não foi consultado e só soube da proposta em outubro de 1944, quando foi divulgada a minuta de Carta aprovada na reunião sigilosa. A iniciativa nem sequer foi amadurecida nos círculos decisórios americanos, mas assim como incluíra a China no grupo, a despeito da resistência dos outros aliados, Roosevelt achou que a sugestão vingaria”, observa o autor. Um memorando interno, de setembro de 1944, levou ao Departamento de Estado uma conversa com o representante brasileiro em Washington: “O embaixador explicou as dificuldades advindas de completa ignorância em que são mantidos sobre as negociações de Dumbarton Oaks. Disse que o presidente Vargas estava muito embaraçado por admitir que só sabem o que sai na imprensa e que até o governo argentino está tão informado quanto eles”. Rio Branco
A resistência imediata da Inglaterra e da União Soviética ligava-se ao pró-americanismo brasileiro, explícito desde os tempos de Rio Branco. O Brasil, no conselho, diziam, seria “voto duplo” dos Estados Unidos. Mesmo a delegação americana desaconselhou Roosevelt, porque os Estados Unidos seriam “responsáveis” pelo desempenho brasileiro. Acordou-se,
EUA voltaram atrás e só se dispuseram a defender o Brasil como membro não permanente
então, que o apoio de Washington seria limitado à candidatura do Brasil a um lugar temporário no órgão, o que aconteceu em 1946. “Mas as alegações eram muito seletivas. Falava-se que o poder militar era condição para um assento, mas a China, então, só controlava uma fração de seu território. A imposição americana foi estratégica, para fortalecer o aliado asiático na luta contra o Japão”, analisa Eugênio. A Inglaterra, por sua vez, contrária ao Brasil, deixou de lado sua restrição a um novo membro para dar um assento à França gaullista. No Catete o balão de ensaio de Roosevelt encheu-se de entusiasmo, visto como recompensa ao único país sul-americano a enviar tropas à Europa.
Era também a chance de ajustar contas com as grandes potências após o desastrado episódio da Liga das Nações de 1926, quando o governo de Arthur Bernardes apostou todas as fichas na “candidatura natural” do Brasil a membro permanente do órgão. Preterido pela Alemanha, o país desligou-se da instituição. O assento traria a retomada do multilateralismo brasileiro de escopo universal. Vargas, que dirigia pessoalmente a política externa brasileira, em detrimento da chancelaria do amigo Oswaldo Aranha, tinha fé na sua amizade pessoal com Roosevelt e apostou na conversação bilateral para barganhar seu lugar no conselho. Mais tarde, conformado com um assento provisório, a diplomacia varguista continuou focada no conselho. “O Brasil fez essa opção porque viu que ali seria jogada a partida principal. Que Vargas tenha tomado essa decisão é digno de nota. Apesar do seu foco no desenvolvimento econômico, ele não renunciou a conseguir um papel para o Brasil na esfera da segurança internacional”, diz Eugênio. A ligação “especial” com Washington fez com que o Brasil mantivesse vínculos débeis com a vizinhança, que retribuía o “dar as costas” com desconfiança, em especial a Argentina. “Vargas, no entanto, oscilava entre afinar-se com os Estados Unidos e precaver-se contra a deterioração das relações com os argentinos”, conta o autor. Afinal, entre 1944 e 1945, com o fim do conflito, o Brasil não era mais um parceiro estratégico e os Estados Unidos foram se afastando do “ami-
A onu em ritmo brasileiro
1944
1945
1946
1994
2003
2011
Em Dumbarton Oaks,
Na Conferência de
Brasil consegue
Brasil, com o
Presidente Lula,
Presidente Dilma
criou-se a ideia
São Francisco, a
um lugar
chanceler Amorim,
em seu primeiro
abre a Assembleia
de um organismo de
delegação brasileira
temporário
lança candidatura
discurso na ONU,
da ONU falando
segurança, a futura
aceitou os termos,
e participa
oficial ao Conselho
retoma projeto
sobre necessidade
ONU. Roosevelt
mas tentou
da primeira
de Segurança
de candidatura
da igualdade entre
defendeu a entrada
incluir revisão do
reunião do
e pede a
brasileira
os países e que o
do Brasil como
documento em cinco
conselho
sua reforma
membro do Conselho
anos em busca do
desejar seu assento
de Segurança
assento permanente
entre os grandes
80 z julho DE 2012
Brasil continua a
fotos onu
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1 Encontro de Dumbarton Oaks, em 1944, que “inventou” a ONU 2 Dutra, ao centro, olha o projeto do prédio da ONU, em 1947
go leal”. A morte de Roosevelt em 1945 sepultaria de vez a era das relações bilaterais “especiais”. A Conferência de São Francisco foi convocada naquele ano para formalizar as propostas de Dumbarton Oaks com os “45 países menores”. pressão
Vários países foram pressionados a estabelecer relações com a União Soviética, como condição para participar da conferência, atendendo às reclamações de Stalin. O Brasil foi o primeiro a ser “trabalhado” pelos americanos. Desde 1917 o país não tinha laços diplomáticos com os russos. Vargas, a contragosto, viu-se constrangido a fechar um acordo com Moscou. A amizade duraria pouco: em 1947, o presidente Dutra, no fogo cruzado da Guerra Fria, rompeu relações com a URSS. Mas a pressão de 1945 já antecipava o tom do encontro, que deveria apenas ratificar as decisões dos Policiais, incluindo-se o poder de veto dentro do Conselho de Segurança. A conferência
serviria para manter a essência da Carta “na marra”: ou se aceitava a manutenção das prerrogativas dos membros permanentes, ou, avisaram, não haveria organização alguma. O Brasil, que de início se opôs à concessão do veto ante a ameaça de malogro da conferência, voltou atrás e aceitou os termos. Antes de se render, a delegação brasileira propôs a revisão da Carta em cinco anos com a “emenda Velloso”, nome do chanceler que substituíra Aranha. Seria um mecanismo de revisão quinquenal, a cargo da Assembleia Geral, com poderes constituintes para mudar a Carta por maioria de dois terços, sem veto. Foi igualmente derrotada. De notável restou a participação de Bertha Lutz, a escolha menos conservadora de Vargas para a delegação, que se empenhou na defesa dos direitos das mulheres. “O Brasil apostou na intercessão americana como caminho curto para o seu objetivo, mas a estratégia falhou, porque os Estados Unidos não viam mais o país como
estrategicamente vital. Quando o governo brasileiro mais ansiava o reconhecimento de sua lealdade para colher os frutos da relação especial que acreditava ter com os Estados Unidos, estes abandonaram o país. Foi o início do desencantamento”, observa o autor. Se o país ganhasse o assento em 1945 seria uma consequência da intervenção americana, como no caso da China, ou, voltando no tempo, da mesma forma que o Brasil entrou no Conselho da Liga das Nações, em 1919, por indicação do presidente Wilson. Sobraram concessões como um assento temporário (já ocupado uma dezena de vezes), a participação de Oscar Niemeyer na equipe que projetou o edifício-sede da ONU, em Nova York, e a convocação de Aranha para presidir a espinhosa sessão da Assembleia Geral que ratificou a partilha da Palestina em 1947. Os fortes ainda não reconheciam o papel necessário dos fracos na elaboração do direito das gentes. Apenas em 1989 o então presidente José Sarney voltou a tocar na questão do assento em seu discurso na Assembleia Geral. Em 1994, durante o governo de Itamar Franco, o Brasil relançou oficialmente a sua candidatura a uma vaga permanente e atuou em favor de uma reforma do conselho. Durante o governo Lula, a reforma e o assento tornaram-se um dos principais tópicos da sua política externa, e o presidente, já em 2003, em seu primeiro discurso na ONU, defendeu abertamente o projeto. Foi a mesma atitude adotada em 2011 pela presidente Dilma Rousseff, que insistiu na defesa da candidatura nacional. Para Eugênio, as chances brasileiras, hoje, são maiores. Mas adverte: “A cadeira permanente não significaria que o Brasil se transformou em uma ‘potência mundial’ da noite para o dia, mas que o conselho se abriu a países em desenvolvimento aceitando-os como membros permanentes via eleição da Assembleia Geral”. Segundo ele, o órgão, importantíssimo, não reflete a realidade em sua composição. “É preciso que ele seja mais representativo para ser mais legítimo e eficaz”, observa. O pesquisador acredita que o país está preparado para a função. “Se em 1945 o presidente Roosevelt achava que o Brasil poderia integrar o conselho, quando o país era muito menos do que é atualmente, porque o Brasil não pode ser hoje o sexto membro permanente? É preciso pensar nisso”, diz. n pESQUISA FAPESP 197 z 81
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história da ciência y
Ainda assim o som se move Músico, pai de Galileu influenciou filho na busca pela verdade experimental
“A
Retrato de um cavalheiro que se presume seja o compositor Vincenzo Galilei, pintado por Alessando Allori e datado do século XVI
ciência descreve as coisas como são; a arte, como são sentidas, como se sente que são”, escreveu Fernando Pessoa. A certeza do poeta foi motivo de debates e de uma profusão de tratados filosóficos na passagem do século XVI, com sua crença platônico-pitagórica na matemática como fundamento da ciência e da arte, para o século XVII, quando se percebeu que nem tudo podia ser reduzido a números. Em especial as coisas sentidas. Um pioneiro dessa visão crítica foi o músico Vincenzo Galilei (1520-1590), pai de Galileu Galilei, que antes do advento da revolução científica já percebia os limites da “matematização”, capaz de gerar mudanças positivas na classificação de algumas ciências, mas ineficaz em outras. “Não somente porque a busca da natureza dos objetos de algumas ciências estava sendo posto em dúvida, mas porque as diferentes formas de interação entre os conhecimentos práticos, teóricos e dos artesãos se deram de maneiras diversas”, afirma, a historiadora Carla Bromberg, que trabalha os vários tratados teóricos de Vincenzo, a maioria inéditos, na sua pesquisa de pós-doutorado Do número ao som: a transformação do conceito quinhentista de música defendida por Vincenzo Galilei. “Ele demonstrou que a música era um fenômeno natural sonoro, contradizendo a tradição vigente que a entendia apenas como número e proporção”, explica. “Em seus escritos, fruto de experimentações práticas e observações matemáticas, Vincenzo proporcionou esclarecimentos
música
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incompatibilidade
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A tocadora de alaúde, pintura de Andrea Solario, datada do século XVI, em Roma
sobre o descompasso que havia entre a teoria e práticas musicais de sua época e propôs ideias que se tornaram fundamentos da acústica, da música barroca e do sistema tonal que perdurou por mais de 150 anos”, observa a pesquisadora. Embora mais conhecido como o pai de Galileu, Vincenzo influenciou filósofos naturais contemporâneos a ele e posteriores como Marin Mersenne, Simon Stevin e o próprio filho astrônomo. Se, hoje, é mera fonte de prazer, a música, desde a Idade Média, era considerada como uma ciência que tinha por fundamento a aritmética e, consequentemente, seu objeto não era o som, mas o número. Nas universidades, só se aceitava que se teorizasse sobre o mundo sonoro. Dentre os autores desses tratados poucos pratica84 z julho DE 2012
vam a música. “Foi o choque das formas de conhecimento prático e técnico com o teórico que mostrou a necessidade de uma mudança e método. Defender ideias que contradiziam autoridades e estruturas do pensamento ocidental foi algo que Vincenzo já fazia antes de Galileu.” Em seus tratados musicais, o tocador de alaúde e teórico musical esboçou um método investigativo inovador. “Na contramão da sua época, Vincenzo preconizou a supremacia da observação e dos experimentos”, nota a pesquisadora. Vincenzo não hesitava em questionar doutrinas tradicionais. “Como ninguém havia explicado os problemas de forma a satisfazer o intelecto, foram necessárias uma averiguação e a arguição dos fatos teóricos”, escreveu. Para ele, qualquer que fosse o autor, antigo ou moderno, era preciso contestar alegações falsas, pois uma ideia não deveria ser propa-
Segundo a pesquisadora, ao experimentar, na prática, as variações nos comportamentos dos corpos, ou seja, da matéria, e perceber que isso gerava diferenças sonoras, Vincenzo viu que havia fatores que as ciências matemáticas não davam conta de explicar. Foi essa evidência da incompatibilidade do mundo matemático, com seus objetos abstratos, e o mundo físico, de objetos reais, que levou Galilei a concluir que, se a natureza do material estudado, o som, era sensorial, a evidência da experimentação era o caminho indicado para a investigação. Não se devia privilegiar o estudo da música especulativa ao estudo das sonoridades, campo das coisas “como se sente que são”. Mas, como faria o filho, a briga do pai mexia com conceitos já estabelecidos há muito tempo. A argumentação de Zarlino baseava-se na teoria de razões de números inteiros, transmitida pelo filósofo Sevério N. Boécio e baseada nos gregos. Era ilustrada historicamente através da lenda da invenção das consonâncias atribuída a Pitágoras e seu monocórdio, instrumento descrito como composto por uma única corda estendida entre dois cavaletes fixos. Segundo se acreditava, o filósofo investigara a relação entre o comprimento de uma corda vibrante e o tom musical produzido por ela. Pitágoras observou que pressionando um ponto situado a 3/4 do comprimento da corda em relação a sua extremidade – o que equivale a reduzi-la a 3/4 de seu tamanho original – e tocando-a a seguir, ouvia-se uma
fotos 1 DEA / G. DAGLI ORTI /De Agostini /Getty Images 2 Art Images Archive / Glow Images
gada apenas por causa da autoridade do seu criador. O alvo de Vincenzo era justamente os adeptos dos conceitos pitagóricos, como Gioseffo Zarlino (1517-1590), mestre-capela da catedral de São Marcos, em Veneza. Embora tenha sido mestre de Galilei por algum tempo, Zarlino tinha uma leitura tradicional da natureza matemática da música, tentando encaixar na velha moldura pitagórico-platônica legitimada na tradição textual as “novidades sonoras” advindas dos excessos da polifonia. Galilei, a partir de seus experimentos, concluiu que muitas das razões propostas teoricamente não existiam na prática. Vincenzo também percebeu que muitos dos intervalos musicais que o sistema vigente negava existiam e eram matematicamente representáveis.
quarta acima do tom emitido pela corda inteira. Com 2/3 do tamanho original da corda, ouvia-se uma quinta acima e com 1/2 obtinha-se a oitava. A música, como tudo no Universo, era matemática. Para Vincenzo, porém, números não eram sonoros, mas tinham que ser aplicados a algum corpo sonoro, ou seja, a música tinha nos números apenas uma representação dos sons. A matemática passava a instrumentalizar a música, e não a fundamentá-la. Logo, a música não era um sistema numérico perfeito que existia em reinos celestiais, como queriam os pitagóricos, mas composta de sons emitidos de corpos cujas diferentes composições afetavam a percepção auditiva das razões teóricas dadas. Com seu alaúde, ele demonstrou que a altura de uma nota poderia variar não apenas em função do comprimento ou da tensão da corda, mas também quando se alterava a sua espessura ou o material do qual era feita. A legitimação dos intervalos musicais de acordo com a teoria pressupunha também que os intervalos excluídos do sistema não eram naturais. Contudo, para Galilei, um som era tão Capa do tratado Della musica antica e della moderna, de Vincenzo Galilei, datado de 1581
O Projeto Do número ao som nº 2009/52252-8
modalidade Bolsa de Pós-doutorado Coordenadora Carla Bromberg – Cesima/PUC-SP investimento R$ 144.869,89 (FAPESP) 2
Vincenzo tratou a música como se fosse um fenômeno físico e cultural ao mesmo tempo
A grande ousadia de Galilei foi trabalhar diretamente sobre os corpos sonoros, experimentando o som usando vasos de metal e outros objetos de tamanho, largura e volume diferentes, além de cordas feitas de materiais variados, observando que os sons sofriam alterações de acordo com o comportamento de cada material. “Vincenzo demonstrava assim, de forma inédita, a relevância da matéria e de seu comportamento”, analisa a pesquisadora. ciência da acústica
natural quanto outro: se ele agradava ou não o ouvido não podia ser explicado por um sistema numérico, mas pela própria audição particular e individual. A matemática não tinha poder sobre os sentidos. Vincenzo libertava a música do domínio dos números ao mostrar que a realidade empírica não combinava necessariamente com as antigas razões que, se acreditava, organizavam o Universo.
Vincenzo, através dos instrumentos musicais, introduziu princípios que seriam estudados, no futuro, pela ciência da acústica, desenvolvida por Joseph Saveur no século XVII”, nota Carla. Ao “desnumeralizar” a música, Vincenzo fez uma investida ousada. “Os teóricos do século XVI enfatizavam as razões pitagóricas porque estas faziam parte de uma forma de compreender o mundo. Segundo o pensamento pitagórico, tudo o que existia era representado por números e suas relações, por razões matemáticas”, lembra a autora. “Ao invalidar, no campo musical, o conceito das razões pitagóricas, Galilei abalava uma ordem maior. Mas, talvez por não pertencer a nenhuma corte, entidade religiosa ou universidade, sua obra não causou o impacto que deveria.” Vincenzo tratou a música simultaneamente como um fenômeno físico e cultural. Era uma criação humana, baseada em leis físicas que governavam a produção do som, bem como um fenômeno sonoro sujeito a regras culturais definidas. “Para ele, a combinação dos sons, descrita como consonâncias ou dissonâncias, dependia tanto de causas naturais como da convenção e era isso que explicava por que a música que agradava aos italianos não tinha o mesmo efeito sobre outras nações”, lembra a pesquisadora. Para muitos, essas visões influenciaram diretamente o filho, Galileu. “Os estudos do pai apontavam para o que seria a acústica, e os do filho, para a mecânica. Ambos atacaram pilares da sabedoria aristotélica, como o fundamento matemático da música e a perfeição do mundo celeste e abraçaram outro pilar, o da relevância da matéria e do comportamento dos materiais para o estudo do movimento e da mecânica”, analisa Carla. n Carlos Haag pESQUISA FAPESP 197 z 85
obituário y
Entre a ética e o espírito Tuca Vieira / Folhapress
Flávio Pierucci foi um dos maiores intérpretes da atual religiosidade brasileira
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le, que entendia como poucos o “desencantamento do mundo” weberiano, uma de suas especialidades, sem querer acabou incrementando com sua morte, em 8 de junho, aos 67 anos, esse desencanto. O sociólogo Flávio Pierucci atuou no campo da sociologia da religião a partir do referencial de Max Weber e, recentemente, discutia o fenômeno da religiosidade brasileira a partir dos dados dos vários censos demográficos. Interessava-se em particular pelo crescimento do pentecostalismo em suas várias vertentes, pela predominância da Igreja Católica, a despeito da queda percentual dos fiéis, e lamentava a diminuição dos adeptos das religiões africanas como umbanda e candomblé como fruto dessa expansão neopentecostal. Especializou-se em teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (1970), graduou-se em filosofia (1973) e obteve os títulos de mestre em ciências sociais, em 1977, com a dissertação “Igreja Católica e reprodução humana no Brasil”, defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); doutor em sociologia, em 1985, com “Democracia, igreja e voto: o envolvimento do clero católico nas eleições de 1982”; e livre-docente, em 2001, com “Desencantamento do mundo: os passos do conceito em Max Weber”, este último pela Universidade de São Paulo, onde foi professor titular e chefe do departamento de sociologia até o seu falecimento. Entre 1971 e 1987 foi pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Entre 1978 e 1985, foi professor do departamento de sociologia da PUC-SP. Entre 1992 e 1996, foi secretário executivo da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) e, de 2001 a 2012, foi secretário-geral da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Entre as dezenas de trabalhos publicados, destacam-se os livros A realidade social das religiões 86 z julho DE 2012
no Brasil e Igreja: contradições e acomodação. Um de seus trabalhos analisava a relação entre o crescimento das igrejas neopentecostais e seu envolvimento com a política. Foi um dos estudos pioneiros nesse tema. Para Pierucci, o Brasil assiste a uma oferta enorme de religiões, assim, afirmar que religião hoje é um negócio não seria um erro. E para aboca nharem mais fiéis, ou clientes, segundo Pierucci, as igrejas usam estratégias de marketing como as empresas. As pessoas não procuram mais a salvação depois da morte, seus desejos são imediatos. É isso que as novas religiões procuram oferecer. As que não oferecem, perdem clientes. “As pessoas estão procurando um novo tipo de religião, que são as igrejas pentecostais, que na verdade prometem para você não a lealdade a seu passado religioso, mas a ruptura com seu passado religioso. É uma religião que cola muito na cultura capitalista”, afirmava. “A religião faz hoje muito marketing de si mesma. Ela diz: olha, é preciso religião para ser feliz, para ter saúde, mental e física. Alguns precisam e outros não. Uns vivem muito bem sem religião”, avisava. n
Pierucci, em 2004: análise dos movimentos pentecostal e católico
resenha
Getúlio pelo olhar de um repórter Victor Gentilli
eduardo cesar
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ira Neto é repórter. E a magnífiprimeiro, uma briga em Ouro Preca trilogia sobre Getúlio Vargas, to, onde estudava com seus irmãos a maior personalidade política mais velhos, resultou na morte do do século XX no Brasil, cujo primeifilho de um quatrocentão paulista. ro tomo foi lançado em maio pela Nas centenas de páginas, lidas uma Companhia das Letras, é seu grana uma, Lira encontrou uma descride projeto de vida. Iniciado há dois ção do assassino feita por uma tesanos, resultará em três volumes que temunha-chave: usava bigode. Meterão, cada um, ao menos 600 págininote, Getúlio naquela época ainnas. Completa, a trilogia ultrapassada era imberbe. No outro, de uma rá 1.800. É projeto para cinco anos. índia no interior do Rio Grande, Este primeiro volume cuida do encontrar o inquérito não foi fácil. período de formação até a RevoluNão estava arquivado na pasta em ção de 1930, quando Getúlio assume Getúlio – Dos anos de que deveria estar. A persistência do o poder. O segundo, a ser lançado em formação à conquista repórter que não desiste fez com poder (1882-1930) 2013, tratará do período entre 1930 do que terminasse encontrando-o. Lira Neto e 1945, época em que ocupa o poder Companhia das Letras O assassino chamava-se Getúlio ininterruptamente, a partir de 1937 664 páginas, R$ 52,50 Dornelles de Vargas. Era um homôcomo ditador. O terceiro tratará dos nimo. Na certidão de nascimento anos de exílio, de seu retorno em 1950 “nos braços do assassino, os nomes dos pais eram outros. Sem do povo” e culminará com seu suicídio. Será lan- este esforço de busca, tais documentos mofariam çado em 2014, exatos 60 anos depois da sua morte. nos arquivos sem que ninguém os tocasse. Cearense, Lira trabalhou em O Povo, onde, muiEssa obsessão pelas minudências resulta que a to jovem, chegou a ser ombudsman. Ainda em narrativa de cada episódio de sua vida seja descrita Fortaleza, fez seu primeiro experimento biográ- num texto leve, fluente e de leitura agradável, que fico narrando a vida de Rodolfo Teófilo, escritor envolve, encanta e segura o leitor. Embora mere médico sanitarista, um equivalente cearense a gulhe fundo e se envolva profundamente com seu Oswaldo Cruz. Em 2004, já em São Paulo, lançou a biografado, não se deixa contaminar pela paixão biografia de Castello Branco. A seguir vieram José e não perde a isenção. A realidade do Rio Grande Alencar (2006) – que lhe rendeu um Jabuti –, de do Sul na virada do século XIX para o século Maysa (2007) e Padre Cícero (2009). Como se XX e o Brasil da República Velha são bem aprevê, Lira sempre escolhe para biografar persona- sentados como pano de fundo da narrativa. E o lidades fascinantes, complexas e contraditórias. leitor já identificará no biografado atributos que Getúlio Vargas talvez seja o brasileiro mais es- se tornarão marcas do Getúlio maduro. tudado. Sobre ele produziram-se livros, perfis bioTrabalho de jornalista, a obra é dedicada ao gráficos, biografias, dissertações e teses. Lira leu grande público. Mas para pesquisadores, historiatudo o que encontrou. E também buscou fontes dores e outros interessados, todos os fatos narrados primárias como jornais, documentos em arquivos são referidos em notas ao fim do volume. Neste e bibliotecas, folhetos, marchinhas, fotos, tudo. tomo, são exatas 1.773. Pela primeira vez, Getúlio Estudos de primeira qualidade e muito material Vargas contará com uma biografia exaustiva feita produzido por áulicos ou detratores. Também “com base numa pesquisa impressionante”, como tirou da poeira inquéritos e processos. anotou Boris Fausto na contracapa. Maria Celina Todo este garimpo resultou em várias descober- D’Araujo fala em “imensidão de dados”. Os brasitas. Dois assassinatos atribuídos a ele foram escla- leiros precisam conhecer a vida deste homem cujo recidos: Getúlio é inocente em ambos. Antes de legado permanece e ainda gera tanta polêmica. Lira, outros pesquisadores já trataram destes casos. Mas o autor, nos dois casos, foi o primeiro a se Victor Gentilli é jornalista, mestre e doutor pela ECA-USP e professor debruçar e dissecar os inquéritos e processos. No da Universidade Federal do Espírito Santo. PESQUISA FAPESP 197 | 87
memória
O homem que computava Há 100 anos nascia Alan Turing, que criou as bases teóricas da ciência da computação Neldson Marcolin
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palavra computador era usada somente em um sentido até as primeiras décadas do século XX. O significado indicava apenas uma pessoa que fazia cálculos, um profissional envolvido no uso dos algoritmos. Computar exigia muitas horas de trabalho com grande concentração e o auxílio apenas de instrumentos como o ábaco ou a máquina de somar. Em 1936, o inglês Alan Mathison Turing, nascido há 100 anos, escreveu um trabalho acadêmico de lógica propondo uma estrutura matemática abstrata que chamou de “máquina universal” capaz de fazer qualquer tipo de cálculo. O artigo On computable numbers, with an application to the Entscheidungsproblem, publicado no início de 1937, é considerado um dos fundadores da ciência da computação. Quando escreveu On computable numbers, ele não estava pensando em uma máquina que poderia vir a ser construída – o objetivo era apenas resolver um problema de lógica.
Protótipo da máquina ACE, de 1952, projeto de Turing que posteriormente foi abandonado
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fotos 1 NATIONAL PHYSICAL LABORATORY © CROWN COPYRIGHT / SCIENCE PHOTO LIBRARY/ SPL DC / Latinstock 2 LSA 2007 3 NPL Archive, Science Museum 4 Divulgação
“Sua máquina universal, conhecida como ‘máquina de Turing’, na verdade era uma metáfora das ideias fundamentais que viriam a ser usadas para se construir o computador”, diz o matemático Ubiratan D’Ambrosio, professor emérito da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). No mesmo artigo Turing apresentou uma solução para uma questão matemática, o Entscheidungsproblem (problema de decisão): determinados problemas não podem ser resolvidos por máquinas ou computadores teóricos. O inglês não foi o único a pensar nisso. Também em 1936 o lógico americano Alonzo Church, já Ph.D., escreveu e publicou de modo independente um artigo com a mesma conclusão. Turing, então com 25 anos, foi fazer seu doutorado sob a orientação de Church na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. Em 1939 ele voltou à Inglaterra e passou a trabalhar para o governo. Tudo começou porque os militares ingleses ficaram sabendo de seu gosto por criar e decifrar códigos e o convocaram para trabalhar com um grupo de cientistas em um projeto secreto. O objetivo era decifrar as ordens alemãs – codificadas por uma máquina chamada Enigma – enviadas aos submarinos que patrulhavam o Atlântico. A questão era capital para
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Cópia da Bomba (esq.) projetada por Turing para decifrar os códigos da encriptadora alemã Enigma (abaixo): trabalho ajudou a mudar o rumo da guerra 2
Matemático lançou as primeiras ideias que resultaram no campo da inteligência artificial
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os ingleses. Os submarinos alemães impediam a circulação dos navios britânicos, quase isolando a Inglaterra. Turing conseguiu quebrar o código ao aperfeiçoar uma enorme máquina decodificadora chamada Bomba, cuja primeira versão havia sido construída por cientistas poloneses. Com isso a esquadra inglesa deixou de ser surpreendida pelos ataques do Terceiro Reich. “Além de ser um teórico brilhante, Turing tinha um lado prático forte”, diz Newton da Costa, matemático aposentado da Universidade de São Paulo e professor de filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina. Entre outros projetos, por exemplo, ele criou a máquina-piloto ACE, sigla para Automatic Computing Engine, uma espécie de ancestral do computador, para “atacar problemas complexos”. Em 1950 o matemático publicou seu artigo seminal, Computing machinery and intelligence. “Proponho que consideremos a questão:
‘as máquinas podem pensar?’”, escreveu ele na primeira linha do texto. “Turing introduz uma discussão sobre se é justificável chamar um computador de cérebro eletrônico e lança as bases do que viria a ser o campo de inteligência artificial”, explica D’Ambrósio. “Com trabalhos como esse, ele exerceu influência em toda cultura contemporânea e não apenas na lógica e na matemática”, diz Costa. A vida pessoal de Turing foi muito mais difícil do que a acadêmica. Homossexual, ele foi preso em 1952 acusado de indecência grave com outro homem com base em lei de 1885, a mesma que levou Oscar Wilde à prisão em 1895. O matemático aceitou trocar a pena por uma castração química e usar estrogênio para “ser curado” da homossexualidade. Em 1954, aos 41 anos, Turing morreu ao morder uma maçã envenenada com cianeto. Para a polícia inglesa foi suicídio. A família e os amigos nunca aceitaram essa versão. PESQUISA FAPESP 197 | 89
Arte
Ciranda 1
Figurações orgânicas Anita Colli transforma peças de laboratório de pesquisa em esculturas Gustavo Fioratti
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ubos de ensaio são ferramentas essenciais para pesquisas de laboratório. Pipetas e ponteiras podem quantificar medidas milimétricas na manipulação de soluções diversas. E outros universos podem se esconder por trás da faceta científica dos pequenos frascos. Se manipulados por Anita Colli, esses três materiais se transformam em objetos de arte. Em sua pesquisa sobre volumetrias produzidas a partir de materiais descartáveis, a artista plástica descobriu que, em galerias de arte ou na sala de casa, equipamentos das áreas científicas também dão boa química. Anita é médica, profissão que exerceu desde 1965, quando se formou pela Universidade de São Paulo (USP). Ela aposentou-se em 1998 e, em um primeiro momento, passou a dedicar-se às oficinas de pintura. Fez retratos e pinturas abstratas, mas descobriu que tinha mais afinidades com o plano tridimensional.
fotos Waldo Bravo
Suas primeiras colagens foram realizadas com materiais escolhidos dentro de casa, em 2010. A artista guarda em seu acervo trabalhos produzidos a partir de peças de fogão, de controles remotos, carretéis de linha, válvulas de gás, que receberam um tratamento monocromático com spray, nas cores vermelha, verde e cinza. Por conta da similaridade com robôs, acabaram ganhando de Walter, marido de Anita, um carinhoso apelido: são chamadas, até hoje, de “máquinas mortíferas”. Anita deu sequência a sua pesquisa com peças feitas a partir de rolhas de garrafas de vinho, depois de fios e outras sucatas extraídas de equipamentos tecnológicos. Até que, por fim, chegou aos materiais translúcidos de laboratório, em geral feitos de plástico e com detalhes nas cores vermelha, verde e azul. A justaposição ou o encadeamento desses objetos, sempre em torno de um ou dois eixos, dá origem a formas que transitam entre o orgânico e o geométrico. São trabalhos carregados de uma herança construtivista. Ou, como escreveu Waldo Bravo, o curador de sua última exposição, realizada na galeria da Unimed Paulistana, “uma opção pelo pensamento concreto e racional, com base na aglutinação de objetos multiplicados”. Para Bravo, ao multiplicarem-se no trabalho de Anita as peças de laboratório “multiplicam-se também seus sentidos e significados”. Anita tem cinco séries principais. Girolos, com peças em geral fixadas em um único eixo; Anelídeos, feitas a partir de objetos que têm formas arredondadas encaixados
uns aos outros; Cirandas, com tubos articulados em dois eixos formando círculos; Labirintos, em geral com ponteiras encaixadas a um suporte fixo; e Tramas, que se assemelham a persianas. A ideia inicial da artista, ela própria conta, era “tirar esses objetos de suas funções cotidianas, dando-lhes nova significação”. Ela não imaginava qual seria o resultado de sua pesquisa, e ainda se surpreende com as associações feitas por aqueles que entraram em contato com sua obra. Em geral, essas associações apontam para figurações orgânicas. “Foram anos trabalhando com medicina, com certeza esse imaginário ficou em mim”, ela diz.
Anelídeo 6
Trilha 4
Embora sejam feitas a partir de volumes geométricos, as composições podem formar imagens semelhantes a amebas, por exemplo. Ou remeter a ossaturas. Ou ainda representar sequências de DNAs. São associações que, segundo análise de Bravo, em algum ponto fazem lembrar o trabalho da brasileira Lygia Clark (1920-1988), artista que a partir dos anos 1960 se dedicou a sua famosa série batizada como Bichos. Bravo explica que os bichos de Lygia também eram feitos a partir de figuras geométricas articuladas, só que de metal. O curador identificou também um ponto em comum com o trabalho do americano Alexander Calder (1898-1976), muito conhecido por seus móbiles. A maior parte do trabalho de Anita pode ser pendurada e pode se movimentar ao sabor do vento. Na exposição Transformações, os objetos foram dispostos ainda em suportes parecidos a mesas. Todos eles podiam ser manipulados, para que o público reinventasse também, a seu modo, as formas possibilitadas por cada composição. PESQUISA FAPESP 197 | 91
conto
Bartolomeu Lourenço, inventor Paulo Raviere Barreto Dourado
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artolomeu Lourenço, singular entre os mancebos, foi um milagre entre os homens. Como contam os livros, nasceu em São Vicente, cidade vizinha a Santos, no ano da graça de 1685. Por lá cresceu e, no intercâmbio dos séculos, mudou-se com dois de seus irmãos para a Bahia — terra de absurdos sem precedentes. Cachoeira era uma das maiores cidades do país, e se atualmente parece pequena não é porque encurtou, mas o mundo ao redor que cresceu muito rápido. A vista atual do rio Paraguaçu não é tão diferente da que passou por seus olhos, os de Alexandre e os de Simão. Filiou-se à Companhia de Jesus, onde conheceu o padre Alexandre de Gusmão, de quem mais tarde adotaria o sobrenome. Com apenas 20 anos, inventou um sistema que bombeava água ladeira acima, livrando o esforço de escravos e animais (estavam livres, logo se deduz. Mas nada disso; apenas gastariam suas energias em atividades outras.) Mente engenhosa, memória fantástica; o que de mais importante lhe aconteceu nesta pequenina cidade, porém, não entrou pros anais da história: um milagre substancial. Estavam a passear próximos ao rio, os três irmãos, quando avistaram uma frondosa mangueira, recheada de frutos suculentos. As mangas eram novidade no país. Rosadas, macias, lisas, como a divina Vênus. Zombavam deles, com tanta beleza. Simão, em contrapartida, graceja para uma delas, a mais gorda de todas, com os olhos cerrados e a mão esticada. — Ó, fruto de mel celeste, permiti que Simão, vosso humilde servo, sinta em seus delgados dedos a aurora que haveis de despertar-lhe. — Para sua surpresa, o belo fruto desaba em sua mão. Ele o segura com firmeza, como se o milagre fosse esperado.
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— Que coincidência! — exclama Bartolomeu. — Nada disso. Chama-se fé o que aconteceu — responde Alexandre. Simão concorda, rasgando com os dentes a casca do fruto. — Certamente, então, os senhores não conhecem os recentes trabalhos do Mr. Isaac Newton — afirma Bartolomeu, com certo pedantismo. — Aquele alquimista? — graceja Alexandre. — Um sonhador, talvez. Mas estes trabalhos explicam os movimentos propulsores da natureza, sendo que a gravidade é um deles — explica Bartolomeu. — A gravidade? — pergunta Alexandre, enquanto Simão, com ferocidade, destrói o fruto olímpico. — Sim. É a força que rege a queda das mangas e de todas as outras coisas. — Então duvidas da fé de Simão? — desafia Alexandre. — A fé move montanhas — completa Simão, terminando de lidar com o fruto. — Mas certamente não move mangas — responde o inventor, sorrindo. Alexandre propõe uma comprovação divina e também estica o braço. Menos de um minuto, e também lhe cai uma manga, que ele segura como um gavião agarra sua presa. Bartolomeu se assombra. “Dois eventos repetidos estão além da mera coincidência. Testarei, também, minha fé.” E, à maneira dos irmãos, espera seu fruto nervosamente. “Se o próprio Newton tem suas crenças, por que haveria eu, reles seminarista, de contestar as forças supremas?” Não foi como ele planejou. Antes que acusem o humor destas celebridades históricas, convoco-lhes, judiciosos leitores, a se lembrarem de que todos os homens eminentes
luana geiger
foram, um dia, garotos. Ao ver o irmão em agonia, um dos galhofeiros lhe lambuza a palma com o caroço da manga chupada. Não merece julgamento assim como Bartolomeu não o merece, pela ira visível e estridente que lhe surgiu com a brincadeira. Eram, antes de tudo, fedelhos. Bartolomeu foge pranteando às alturas, menos pela manga que lhe faltava aos dedos, mais pela falta de fé que deixava uma lacuna em seu coração. •• Pensativo, vaga pelos vales que circulam a cidade e encontra uma mangueira selvagem, pagã, aberração da espécie ainda mais frondosa que a primeira. Resolve testar sua fé novamente: reza temendo os céus; reza para que possa estar com seus irmãos, pois eles não tinham culpa de suas moléstias; reza para que lhe caia uma manga, como prova de sua crença e de sua intrínseca força de vontade. E lá ela estava, lisa, perfumada, porém leve demais, como se estivesse suspensa por algo. Mais uma peça daquela dupla, logo deduz, e abre os olhos. Se num segundo penetrava a copa da mangueira, no outro caía como um fruto maduro, olhando para o chão com absoluto terror. Mas antes que toque a sombra na terra, para sua sorte, consegue refrear-se no ar, paralisado, sem fôlego. Controlando sua respiração, ele sobe em linha reta, como se estivesse preso a uma roldana. A manga ainda estava na árvore, por isso a leveza. Estava marcada por seus dedos como a ferro quente. Não era obra diabólica, pensa, senão já teria sido fulminado. Havia alguma relação entre o calor e a gravidade. Ele reflete, enquanto a chupa, no ar: “Claro! Há coisas quentes que flutuam, e nada há de mais ardente que as vontades”. Con-
trolando as suas, ele domina a arte de voar, desengonçadamente. Lidava com os ventos como um nadador, enfrentando-os, ou deixando-se levar. Subia cada vez mais. Viu a mangueira de cima, como um arbusto, e as edificações da cidade, como uma maquete viva, e as pequenas pessoas, iguais a insetos, e as curvas do rio, uma serpente adormecida. “Como as coisas são minúsculas em relação aos poderes do universo.” Percebia os benefícios da nova técnica, que lhe era a ciência em estado puro. As viagens estariam livres dos ladrões e pedregulhos, por terra, e dos piratas e tempestades, por mar. O mundo evoluía. O país ainda haveria de gerar outros pássaros miraculosos. Pergunta-se quanto tempo levaria para alcançar Salvador, a capital da colônia. Tentaria mais tarde, com uma bússola. Mas vem abaixo antes mesmo que a ideia fugisse por completo de sua mente, e desaba como um meteoro. No outro dia, após as buscas desesperadas dos irmãos de sangue e de culto, é encontrado desacordado, debaixo da mangueira, rodeado por um mar de frutos verdes, rosas, amarelos. — Esse vai longe — diz Alexandre, ignorando as verdadeiras distâncias. Bartolomeu, a partir de então, passaria a coletar vontades, na tentativa de realizar voos seguros. Vontades fortes, ardentes, febris, como a que uma vez tivera. Dali iria a Salvador, e depois a Lisboa, onde estavam os homens mais ambiciosos do planeta. Foi a esta sensação de ver o mundo de cima que Bartolomeu dedicou o resto de sua vida. Esta sensação de se estar mais próximo dos céus. n Paulo Raviere Barreto Dourado nasceu em Irecê (BA), em 1986. É mestrando pela UFBA, onde se graduou em língua estrangeira. Publicou em antologias e no blog Confraria de Tolos.
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