Pesquisa FAPESP 204

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Pesquisa FAPESP fevereiro de 2013

fevereiro de 2013  www.revistapesquisa.fapesp.br

entrevista erney camargo

Um cientista voltado para a medicina social cerveja

Led acelera a produção da bebida medicina

Partículas reduzem efeitos colaterais de drogas contra câncer

revistas científicas

Autocitação excessiva compromete internacionalização imagem positiva

EUA atraíram artistas brasileiros durante o regime militar

n.204

A era dos genomas comparáveis Bioinformática avança com métodos eficientes de análise da informação genética e novas máquinas de sequenciamento do DNA


MOSTRA DE PROJETOS FINALISTAS 12, 13 e 14 de março de 2013 das 14h às 19h venha visitar - entrada franca

Tenda de eventos FEBRACE Estacionamento da Escola Politécnica Av. Professor Luciano Gualberto, trav. 3 Campus da Universidade de São Paulo

Grupos com mais de 15 visitantes deverão agendar a visita www.febrace.org.br/agendar

www.febrace.org.br febrace@lsi.usp.br 11 30915430

Seja um voluntário da FEBRACE Acesse www.febrace.org.br/cadastro_voluntários

ORGANIZAÇÃO / REALIZAÇÃO


fotolab

Queda de gigantes O salão Gigantes Caídos faz parte da Caverna do Diabo (ou Gruta da Tapagem), uma das maiores grutas do Vale do Ribeira, em São Paulo. O nome se refere às duas enormes estalagmites que, em razão da erosão do piso provocada pelo rio subterrâneo da caverna, tombaram como estátuas monumentais. O salão fica a algumas horas de caminhada caverna adentro e está sendo estudado por uma equipe de geólogos que analisam a estrutura da rocha e a evolução da gruta.

Se você tiver uma imagem relacionada a pesquisa, envie para imagempesquisa@fapesp.br, com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.

Foto enviada pelo professor William Sallun Filho, pesquisador científico do Instituto Geológico da Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo e coordenador do estudo

PESQUISA FAPESP 204 | 3


fevereiro 2013 n. 204 38 62

16 CAPA Bioinformatas brasileiros criam ferramentas para estudar genomas ilustração  fabio otubo

entrevista 22 Erney Plessmann de Camargo Parasitologista fala de suas mais recentes descobertas científicas e do compromisso com a saúde pública

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA 30 Comunicação da ciência

Economias emergentes registram autocitação nacional excessiva e chamam atenção para os efeitos do isolamento

34 Amazônia

Economistas, arquitetos e geógrafos querem ajudar na gestão de municípios do Pará

CIÊNCIA 38 Medicina

seçÕes 3 Fotolab 5 Carta da editora 6 Cartas 7 On-line 8 Dados e projetos 9 Boas práticas 10 Estratégias 12 Tecnociência 72 Memória 74 Arte 76 Conto 78 Resenhas 80 Classificados

Substâncias que transportam medicamentos podem também reduzir toxicidade, ampliar ação, indicar novos usos e reduzir dosagem

44 Neurociência

Células vizinhas ajudam os neurônios a estabelecer conexões entre si

46 Geologia

Sedimentos coletados na Jureia, litoral de São Paulo, registram mudança climática radical ocorrida há 8,2 mil anos

48 Óptica

Físicos usam laser para sincronizar osciladores microscópicos que funcionam como os pêndulos dos relógios 4 | fevereiro DE 2013

TECNOLOGIA 50 Bebidas

Uma fonte de luz inserida na fase de fermentação acelera o metabolismo das leveduras e aumenta a produção

56 Silvicultura

Eucalipto transgênico rende 20% a mais que árvore convencional

60 Biotecnologia

Instituto Butantan produz as primeiras linhagens de anticorpos monoclonais para uma linha de produção

HUMANIDADES 62 Artes plásticas

Arquivos revelam interesses velados do governo americano em levar artistas brasileiros para Nova York

68 Diplomacia

Política externa da redemocratização buscou maior autonomia, mas sem abrir mão de sua essência

16


carta da editora

Da bioinformática à cerveja Mariluce Moura Diretora de Redação

H

á uns 15 anos, quando o projeto de sequenciamento completo do genoma humano despontava como a mais fascinante aventura científica do final do século XX e inspirava sonhos ambiciosos de grupos de biólogos – seduzidos pela ideia anacrônica de que a biologia substituiria a física como modelo por excelência da ciência –, o Brasil estava iniciando sua incursão pioneira na genômica, destinada, entre outros objetivos, a provocar aceleração considerável na competência nacional em biologia molecular. Essa primeira iniciativa, muitos se lembram, era o sequenciamento da bactéria Xylella fastidiosa e havia alguns obstáculos importantes a serem superados para que fosse bem-sucedida. Fazer a bioinformática do projeto era um dos grandes desafios, porque rigorosamente o Brasil não tinha capacidade alguma neste campo. No começo de 2000, quando o projeto foi concluído, a bioinformática, conduzida pela mestria de seus primeiros especialistas no país, se transformara indiscutivelmente numa das razões do sucesso. Desde então, formaram-se aqui três gerações de bioinformatas e os nossos especialistas seniores e juniores estão hoje bem incluídos na corrida internacional por ferramentas que, entre outras buscas, quer facilitar a comparação entre diferentes genomas e tornar o sequenciamento cada vez mais rápido e mais barato. É de algumas dessas ferramentas e do contexto de crescente maturidade da pesquisa nacional em bioinformática, que transita confortavelmente entre ciência e tecnologia, que trata a reportagem de capa desta edição de Pesquisa FAPESP, elaborada pelo editor especial Marcos Pivetta (página 16). Do mesmo terreno formado pela imbricação de ciência básica, ciência aplicada e inovação

tecnológica, esta edição traz a reportagem do editor especial Carlos Fioravanti sobre uma terapia anticâncer baseada no transporte do fármaco antitumoral em esferas de colesterol artificial. A combinação, que exigiu mais de 20 anos de pesquisa de uma das equipes envolvidas, parece reduzir a toxicidade do medicamento e ampliar sua ação, com a administração de uma dosagem menor aos pacientes (página 38). Já no campo propriamente da tecnologia, gostaria de destacar aqui uma reportagem cuja leitura pode involuntariamente induzir a uma súbita sede, particularmente em dias ensolarados. Trata-se do texto do editor de tecnologia, Marcos de Oliveira, sobre a aceleração do metabolismo das leveduras e consequente redução do tempo na produção da cerveja que se obtém mergulhando uma espécie de lanterna de luz LED nas dornas usadas durante o processo de produção da apreciadíssima bebida. Vale a pena se deleitar com os detalhes (página 50) e talvez, por que não?, saboreando uma cerveja. Para finalizar, sugiro que o leitor se detenha na bela entrevista do professor Erney Plessmann de Camargo, um dos mais respeitados parasitologistas em atividade no país, além de personagem cheio de histórias fascinantes. Entrevistado pelo editor-chefe e pelo editor de ciência da revista, Neldson Marcolin e Ricardo Zorzetto, o professor Erney fala de seu trabalho de pesquisa, da vinculação de seus estudos científicos com a preocupação a respeito da saúde pública, conta das peripécias a que o obrigou o duro cerceamento da ditadura militar a instituições de pesquisa e, muitas vezes, ao trabalho dos cientistas, e ressalta seu evidente gosto por fazer ciência. Boa leitura! PESQUISA FAPESP 204 | 5


cartas

cartas@fapesp.br

fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo Celso Lafer Presidente Eduardo Moacyr Krieger vice-Presidente Conselho Superior alejandro szanto de toledo, Celso Lafer, Eduardo Moacyr Krieger, fernando ferreira costa, Horácio Lafer Piva, Herman Jacobus Cornelis Voorwald, joão grandino rodas, Maria José Soares Mendes Giannini, José de Souza Martins, Luiz Gonzaga Belluzzo, Suely Vilela Sampaio, Yoshiaki Nakano Conselho Técnico-Administrativo José Arana Varela Diretor presidente Carlos Henrique de Brito Cruz Diretor Científico Joaquim J. de Camargo Engler Diretor Administrativo

issn 1519-8774

Conselho editorial Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Marcelo Leite, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira comitê científico Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Adolpho José Melfi, Carlos Eduardo Negrão, Douglas Eduardo Zampieri, Eduardo Cesar Leão Marques, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, João Furtado, Joaquim J. de Camargo Engler, José Arana Varela, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Luis Augusto Barbosa Cortez, Marcelo Knobel, Marie-Anne Van Sluys, Mário José Abdalla Saad, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Luiz Monteiro Salles Filho, Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner do Amaral, Walter Colli Coordenador científico Luiz Henrique Lopes dos Santos Diretora de redação Mariluce Moura editor chefe Neldson Marcolin Editores Carlos Haag (Humanidades), Fabrício Marques (Política), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência); Carlos Fioravanti e Marcos Pivetta (Editores espe­ciais); Bruno de Pierro e Dinorah Ereno (Editores assistentes) revisão Márcio Guimarães de Araújo, Margô Negro arte Mayumi Okuyama (Editora), Ana Paula Campos, Maria Cecilia Felli fotógrafos Eduardo Cesar, Léo Ramos Mídias eletrônicas Fabrício Marques (Coordenador) Internet Pesquisa FAPESP online Maria Guimarães (Editora executiva - licenciada) Júlio Cesar Barros (Editor em exercício) Rodrigo de Oliveira Andrade Rádio Pesquisa Brasil Biancamaria Binazzi (Produtora) Colaboradores Alexandre Affonso, Ana Lima, Daniel Bueno, Daniel da Neves, David José Lessa Mattos, Evanildo da Silveira, Fabio Otubo, Guilherme Conte, Igor Zolnerkevic, Joaquim de Almeida, João Carlos Ribeiro Jr., Larissa Ribeiro, Martha San Juan, Pedro Hamdan, Valter Rodrigues (Banco de Imagens) É proibida a reprodução total ou parcial de textos e fotos sem prévia autorização Para falar com a redação (11) 3087-4210 cartas@fapesp.br Para anunciar (11) 3087-4212 mpiliadis@fapesp.br Para assinar (11) 3038-1434 fapesp@veganet.com.br Tiragem 46.000 exemplares IMPRESSão Plural Indústria Gráfica distribuição Dinap GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia Governo do Estado de São Paulo

6 | fevereiro DE 2013

Empresa que apoia a ciência brasileira

Açaí

A crescente demanda pelo açaí e produtos derivados nos mercados nacionais e internacionais é, sem dúvida, uma boa oportunidade de negócios no ramo e de modernização e ampliação da cadeia produtiva (“Do pé para o lanche”, edição 203). Porém, sempre que um produto de consumo local ou regional alcança mercados mais amplos, aumentam as exigências de produtividade, uniformidade do produto e estabilidade da oferta. Com isto, aumenta também o risco de desestruturação das cadeias produtivas locais e de perda ou empobrecimento da identidade regional. No caso do açaí, sua exploração pelas comunidades locais pode ser mais bem caracterizada como um manejo agroflorestal do que como extrativismo, já que os caboclos dispersam sementes e plantam plântulas de açaí nas florestas de várzea. Esse manejo está embasado no conhecimento ecológico tradicional das populações caboclas e tem impacto ambiental mais baixo do que o de monoculturas. O desafio para a exploração comercial da biodiversidade é que ela seja feita de modo a não ameaçar o que se quer conservar: a biodiversidade e a rica cultura amazônicas. Maria Christina de Mello Amorozo Departamento de Ecologia/Unesp Rio Claro, SP

Água de beber

Parabenizo o pesquisador Roland Ernest Vetter pela iniciativa de proporcionar água de boa qualidade às populações indígenas da Amazônia (nota “Água potável na tribo”, edição 202). Contudo, ressalto que há tecnologias de tratamento de água, tais como a filtração lenta em areia, a sedimentação auxiliada por coagulantes naturais e a desinfecção solar, que são mais apropriadas às pequenas comunidades e regiões pouco desenvolvidas, principalmente pela simplicidade de operação e manutenção. Essas tecnologias, quando projetadas e dimensionadas corretamente, apresentam eficiência comparada às outras mais sofisticadas. Reatores de lâmpadas UV são eficazes para a desinfecção da água, mas exigem manutenção frequente

(controle da qualidade da água que alimenta o reator, limpeza e substituição das lâmpadas etc.), que deve ser feita por pessoal qualificado não encontrado em populações indígenas e ribeirinhas. José Euclides Paterniani Faculdade de Engenharia Agrícola/Unicamp Campinas, SP

Dinossauros

Muito boa a reportagem sobre um estudo desenvolvido por pesquisadores brasileiros e alemães de um crânio de dinossauro encontrado na África em que se procurou entender um pouco de como esse animal vivia (“Ruim de ouvido, bom de cabeça”, edição 202). Este tipo de pesquisa mostra cada vez mais a necessidade de se empregar técnicas sofisticadas (e caras!) na tentativa de procurar responder a algumas das interessantes perguntas que são feitas com relação aos organismos que outrora viveram no nosso planeta. Melhor, ainda, é saber que pesquisadores brasileiros também participam desse tipo de estudo. Alexander Kellner Museu Nacional/UFRJ Rio de Janeiro, RJ

Correção

Na reportagem “Intervenções na rua” (edição 202), a imagem no alto da página 91 refere-se ao rio Pinheiros, e não ao rio Tietê.

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar – CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.


on-line

Nas redes

w w w . rev i stapes q u i sa . fapesp . br

Novartis AG / Flickr

Arine Lyra_ Investimento nas pesquisas e apoio na elaboração dos artigos (tradução, revisão Rato de laboratório: pesquisa sobre memória foi realizada com roedores

técnica, escolha de periódicos). (Como tornar publicações nacionais impactantes) Sergio Michielon_ Palmas para FAPESP, mais uma vez! (Otimizar o tempo em projeto de pesquisa) Marcelo Miná Dias_ Legal, muito bom! Acho que algo importante é criar e fortalecer os comitês de ética. Aqui na UFV (Universidade Federal de Viçosa) a ação do comitê ainda

Exclusivo no site

não trata deste assunto, mas sua existência tem colocado a importante

x Um estudo feito por pesquisadores latino-americanos, entre eles brasileiros, revela a evolução dos assassinatos por armas de fogo ocorridos na Colômbia, Brasil, México e Argentina entre 1990 e 2007. Segundo a pesquisa, em 1990, os homicídios cometidos com armas de fogo eram 50,6% do total de assassinatos no Brasil. Em 2007, esse número saltou para 71,9%. As principais vítimas foram homens jovens e as taxas mais altas entre os que tinham de 20 a 29 anos. O trabalho, coordenado pela psicóloga Edinilsa Ramos de Souza, do Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde da Fiocruz, foi publicado em dezembro na revista Ciência & Saúde Coletiva.

questão da ética na pesquisa. (Plágios em trabalhos científicos) Ana Érika Inácio_ Matéria interessante, ousada e curiosa!!!! Gostei. (O crânio subversivo) Elaine Borges_ Grande reportagem, grande personalidade! (Entrevista com Roberto Salmeron) Selma Poltronieri_ Concordo. Um compromisso com toda a humanidade! (em referência à frase “Quem é cientista graças à educação pública que recebeu tem um compromisso com a sociedade”, na entrevista do astrofísico João Steiner)

Vídeo do mês Laura de Mello e Souza fala de Portugal, o primeiro império global da história

Assista ao vídeo:

http://www.youtube.com/user/PesquisaFAPESP

PESQUISA FAPESP 204 | 7

Para ler o código ao lado faça o download do leitor de QR CODE no seu smartphonE

x Cientistas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) desenvolveram uma estratégia que permite aprimorar a técnica para tratar pessoas com transtorno de estresse pós-traumático sem o uso de medicação. Liderada por Iván Izquierdo, Jociane Myskiw e Fernando Benetti, a equipe conseguiu sobrepor memórias de medo em ratos submetidos a sessões de terapia comportamental, ou sessões de extinção, procedimento capaz de reduzir a ocorrência de respostas condicionadas a certas situações, como ataques de pânico, por exemplo. O trabalho “Behavioral tagging of extinction learning” foi publicado na revista PNAS de 15 de janeiro.


Dados e projetos Temáticos e Jovem Pesquisador recentes Projetos contratados em dezembro de 2012 temáticos  Projeto de história do português paulista (PHPP – Projeto Caipira) Pesquisadora responsável: Clélia Cândida Abreu Spinardi Jubran Instituição: Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas de São José do Rio Preto/Unesp Processo: 2011/51787-5 Vigência: 01/12/2012 a 30/11/2017 Tema: Promover um diálogo entre teorias linguísticas, indispensáveis nas pesquisas contemporâneas da

linguística histórica, não só para dar conta da complexidade dos fenômenos a serem pesquisados, como também para complementar os subprojetos. Contemplam-se aqui as dimensões gramatical, semântica e textual-discursiva como constitutivas das categorias da língua em uso. Justifica-se, desse modo, a abrangência do projeto que, circunscrito ao português paulista, contribuirá para o Projeto de História do Português Brasileiro, no qual se integra com

estudos de mais 11 estados: Pernambuco, Bahia, Paraíba, Alagoas, Ceará, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Norte e Pará.

 Estudos de novos materiais complexos e avançados Pesquisador responsável: Marcelo Knobel Instituição: Instituto de Física Gleb Wataghin/Unicamp Processo: 2012/04870-7 Vigência: 01/01/2013 a 31/12/2016

Investimento em P&D Dispêndio em pesquisa e desenvolvimento com recursos estaduais (DEPD) e Produto Interno Bruto (PIB) DEPD 2010 (em milhões de R$)

PIB 2008 (em bilhões de R$)

DEPD (em %)

PIB (em %)

Acre

3,6

6.730

0,1%

0,2%

Alagoas

9,2

19.477

0,1%

0,6%

Amapá

4,4

6.765

0,1%

0,2%

Amazonas

45,5

46.823

0,7%

1,5%

Bahia

120,4

121.508

1,7%

4,0%

Ceará

63,5

60.099

0,9%

2,0%

Distrito Federal

70,3

117.572

1,0%

3,9%

Espírito Santo

16,2

69.870

0,2%

2,3%

Estados

Goiás

23,1

75.275

0,3%

2,5%

Maranhão

16,5

38.487

0,2%

1,3%

Mato Grosso

33,8

53.023

0,5%

1,7%

Mato Grosso do Sul

11,8

33.145

0,2%

1,1% 9,3%

Minas Gerais

213,9

282.522

3,1%

Pará

21,3

58.519

0,3%

1,9%

Paraíba

31,7

25.697

0,5%

0,8%

Paraná

413,5

179.270

5,9%

5,9%

Pernambuco

58,2

70.441

0,8%

2,3%

1,9

16.761

0,0%

0,6%

488,9

343.182

7,0%

11,3%

Piauí Rio de Janeiro Rio Grande do Norte

19,0

25.481

0,3%

0,8%

Rio Grande do Sul

92,9

199.499

1,3%

6,6%

Rondônia

0,3

17.888

0,0%

0,6%

Roraima

1,8

4.889

0,0%

0,2%

Santa Catarina São Paulo Sergipe Tocantins Total

209,9

123.283

3,0%

4,1%

5.012,2

1.003.016

71,6%

33,1%

13,3

19.552

0,2%

0,6%

2,6

13.091

0,0%

0,4%

6.999,7

3.031.864

100%

100%

Fonte: DEPD - Indicadores C&T MCT, http://www.mct.gov.br/index.php/content/view/317045/Brasil_Dispendios_dos_governos_ estaduais_em_pesquisa_e_desenvolvimento_P_D_por_execucao_segundo_regioes_e_unidades_da_federacao.html

8 | fevereiro DE 2013

Tema: Continuar a aprimorar ainda mais o estudo das propriedades eletrônicas, estruturais, magnéticas, de transporte e termodinâmicas sob condições extremas de altos campos magnéticos, altas pressões e baixas temperaturas em sistemas fortemente correlacionados de materiais metálicos, supercondutores, semimetálicos, semicondutores, semicondutores magnéticos diluídos, óxidos cerâmicos, multiferroicos, grafites, grafenos etc. Para aprofundar o entendimento dos fenômenos em estudo, pretende-se incorporar ao grupo as técnicas de RMN/RQN, EDX, WDS, FT-IR e um forno de lâmpadas para a preparação de novos óxidos monocristalinos, necessários para a análise e preparação dos novos materiais a serem sintetizados.

 Física de hádrons Pesquisadora responsável: Marina Nielsen Instituição: Instituto de Física/USP Processo: 2012/50984-4 Vigência: 01/12/2012 a 30/11/2016 Tema: Tem como objetivo a manutenção das atividades de um grupo de referência, que vem atuando como um dos polos centralizadores da física de hádrons no Brasil. Atualmente, diversos laboratórios trabalham em um esforço experimental consistente para estudar sistemas hadrônicos e determinar as respostas das partículas mésons, bárions e do próprio vácuo. Esses trabalhos geram boa perspectiva de obtenção de novos dados que permitirão um maior conhecimento sobre o tema. Jovem Pesquisador  Identificação, produção e caracterização de novos alérgenos regionais Pesquisadora responsável: Keity Souza Santos Instituição: Faculdade de Medicina/USP Processo: 2012/14019-2 Vigência: 01/12/2012 a 30/11/2016 Tema: Identificar novos alérgenos e estudar potenciais reatividades cruzadas com alérgenos já conhecidos por meio da criação de uma sistemática de investigação clínica e laboratorial com ênfase na abordagem proteômica. Além disso, a predição de epítopos – a menor porção do antígeno com potencial de gerar a resposta imune – por bioinformática pode auxiliar no desenvolvimento de moléculas hipoalergênicas no futuro. Buscamos, desta forma, a caracterização físico-química e imunológica dos alérgenos identificados.


Boas práticas Após avaliar centenas de publicações, um grupo de pesquisadores da Universidade de Barcelona, Espanha, e da University of Split School of Medicine, Croácia, constatou que, sem a formulação de políticas que definam explicitamente quais são os tipos de más condutas na ciência e quais procedimentos devem ser adotados, a padronização das boas práticas acadêmicas é dificultada. O artigo, publicado em dezembro na PLoS ONE, analisou 399 periódicos de todo o mundo com alto impacto na área de biomedicina, indexados ao Journal Citation Reports durante o mês de dezembro de 2011. Os autores observaram a predominância e o conteúdo das políticas voltadas para as boas práticas, analisando procedimentos adotados em casos de manipulação de dados e alegações de má conduta. Embora publicações na área de biomedicina tenham assumido posição de liderança na formulação de políticas editoriais, há poucas evidências de quais políticas estão voltadas para a prevenção de má conduta de pesquisa e quais aquelas que estão disponíveis ao público. Dos 399 periódicos científicos analisados, 140 forneceram definições explícitas de má conduta em pesquisa. Falsificação foi diretamente mencionada por 113 publicações; fabricação de dados, por 104; plágio, 224; duplicação, 242; e manipulação de imagem, por 154. O predomínio de todos os tipos de políticas voltadas para reforçar boas práticas foi mais elevado em revistas que endossaram qualquer política vinda de editoras, associações, Office of Research

Integrity (órgão dos Estados Unidos responsável, entre outras funções, pela prevenção de má conduta na prática científica) ou sociedades científicas. As editoras Elsevier e Wiley-Blackwell tiveram a maioria dos periódicos incluídos na pesquisa – 22,6% e 14,8%, respectivamente. Nas publicações da Wiley prevaleceram definições claras de falsificação e fabricação de dados, enquanto, nos periódicos da Elsevier, o predomínio foi de referências a serviços de checagem de plágio. Os autores concluíram que apenas um terço das principais publicações tem definições de má conduta disponíveis publicamente e menos da metade descreve procedimentos que devem ser adotados em casos de acusações de manipulação de informações. Como forma de incentivar a formulação de políticas internacionais a partir de órgãos

daniel bueno

Definições exatas de má conduta científica

associados à implementação de procedimentos, o estudo sugere que as revistas e suas editoras regulamentem e tornem públicas suas políticas, com o objetivo de aumentar a confiança em relação aos periódicos. Garantindo, ainda, o aumento dos níveis de transparência no âmbito acadêmico.

Reabilitação científica Uma alternativa para o tratamento de pessoas com dependência química, as clínicas de reabilitação serviram de inspiração para que James Dubois, um professor de ética da Universidade de Saint Louis, nos Estados Unidos, desenvolvesse um programa de recuperação para pesquisadores que cometeram deslizes de conduta, mas querem uma segunda chance. Certo de que treinamentos voltados para a prevenção de má conduta científica não são suficientes, Dubois criou o RePAIR (Restoring Professionalism and Integrity in Research), que, assim

como uma clínica particular convencional, cobra um preço alto de seus clientes: uma temporada de três dias sai por US$ 3 mil. O método de recuperação inclui avaliação sobre erros cometidos; discussão sobre medidas de boas práticas e, por fim, é feito um plano individual de prevenção, para que uma “recaída” seja evitada. O programa recebeu US$ 500 mil do National Institutes of Health. Críticos argumentam que o dinheiro deveria ser usado para financiar mecanismos de educação científica e prevenção, em vez de remediação. PESQUISA FAPESP 204 | 9


Estratégias

Referência latino-americana

O novo reitor da

continua na Pró-Reitoria

Universidade Estadual

de Pesquisa. O evento

Paulista (Unesp), Julio

contou com as presenças

Cezar Durigan, e a nova

do ministro do Esporte,

vice-reitora, Marilza

Aldo Rebelo, do

Vieira Cunha Rudge,

governador do estado e

tomaram posse no dia

dos secretários de estado

11 de janeiro durante

de Desenvolvimento

cerimônia no Memorial

Econômico, Ciência e

da América Latina.

Tecnologia, em exercício,

Durigan e Rudge, que

Luiz Carlos Quadrelli,

foram nomeados pelo

e da Educação, Herman

governador do estado

Voorwald. Professor da

de São Paulo, Geraldo

Faculdade de Ciências

Alckmin, cumprirão

Agrárias e Veterinárias

mandato de quatro anos.

da Unesp em Jaboticabal,

Com a nova gestão,

Durigan é doutor pela

foram escalados novos

Escola Superior de

pró-reitores. Laurence

Agricultura Luiz de

Duarte Colvara assume

Queiroz, da Universidade

Lançada oficialmente no

professores, 70 mil

a Pró-Reitoria de

de São Paulo (Esalq/USP),

final de novembro, a rede

pesquisadores e

Graduação; Eduardo

e foi coordenador da

on-line de repositórios

aproximadamente

Kokubun, a Pró-Reitoria

Área de Ciências Agrárias

institucionais de

15 milhões de estudantes

de Pós-graduação;

da FAPESP entre 1989

publicações científicas

do continente. Ao

Mariângela Spotti, a

e 1994. Formada em

da América Latina e

contrário de plataformas

Pró-Reitoria de Extensão

medicina pela Faculdade

Caribe, a LA Referencia,

nacionais, como a

Universitária; e Carlos

de Ciências Médicas e

permitirá o acesso livre

biblioteca virtual SciELO,

Antonio Gamero,

Biológicas de Botucatu,

a papers e teses de

no Brasil, LA Referencia

a Pró-Reitoria de

Rudge é doutora

mestrado e doutorado

não dependerá da

Administração. A

em ciências pela

produzidos no

decisão independente

bioquímica e membro

Universidade Estadual

continente. O projeto

de cada periódico para

do Conselho Superior

de Campinas (Unicamp)

é fruto da parceria entre

atualizar seu conteúdo.

da FAPESP Maria José

e especialista em saúde

nove países – Argentina,

Em vez disso, cada

Soares Mendes Giannini

da mulher.

Brasil, Chile, Colômbia,

instituição será

Equador, El Salvador,

responsável pela

México, Peru e

atualização de acordo

Venezuela – e começará

com a produção direta

a ser colocado em

de seus pesquisadores.

prática ainda neste

A iniciativa é

primeiro semestre.

financiada pelo Banco

A ideia é que, em junho,

Interamericano de

o projeto-piloto do

Desenvolvimento (BID)

website seja testado

e coordenado pela

na versão em espanhol.

Cooperação Latino-

Até lá Uruguai,

-americana de Redes

Costa Rica, Guatemala

Avançadas (RedClara),

e Porto Rico devem

órgão criado em 2002

decidir se aderem ao

para incentivar a

grupo. Estima-se que

integração acadêmica

a rede beneficie 700 mil

no continente.

10 | fevereiro DE 2013

Marilza Vieira Cunha Rudge e Julio Cezar Durigan assumem Reitoria da Unesp em cerimônia no Memorial da América Latina, em São Paulo

1

fotos 1 Chello fotógrafos  2 venetia dearden / médicos sem fronteiras  3 wikipédia  ilustraçãO daniel bueno

Novo reitor na Unesp


Cooperação contra doenças negligenciadas As chamadas doenças negligenciadas,

realizada pela organização internacional

tico. Segundo a organização não gover-

como leishmaniose, Chagas e dengue,

Médicos Sem Fronteiras e pelo Drugs for

namental Policy Cures, a União Europeia

constituem 11% do total de enfermidades

Neglected Diseases initiative (DNDi)

é responsável por 22% dos investimentos

no mundo, mas apenas 1,4% dos estudos

defende a intensificação da colaboração

governamentais em pesquisa sobre doen-

clínicos dedicam-se a elas. Do conjunto

global entre desenvolvidos e emergentes

ças negligenciadas, contribuindo com uma

de medicamentos desenvolvidos entre

para a produção de novos medicamentos.

média anual de €341 milhões voltados

2000 e 2011, apenas 3,8% são usados

O estudo, divulgado pelo SciDev.net, mos-

para a produção de novas drogas. Ainda

para tratar pessoas que sofrem de algu-

tra que, embora tenham recursos para

assim, a colaboração representa apenas

ma doença tropical, geralmente de países

pesquisa, Brasil, China e Índia ainda de-

0,0024% do Produto Interno Bruto (PIB)

pobres da América Latina, Ásia e África.

pendem do apoio de países que investem

da UE. O ideal é que países desenvolvidos

Para tentar reverter isso, uma pesquisa

pesado em inovação no setor farmacêu-

colaborem com pelo menos 0,01% do PIB.

Médicos atendem pacientes no Mali, África: cerca de 2 milhões de pessoas morrem todos os anos de doenças que podem ser prevenidas por vacinas

Geração Y e a ciência Estudo realizado entre 2009 e 2012 com 17 mil cientistas de mais de 70 instituições no Reino Unido, todos nascidos entre 1982 e 1994, mostrou que 70% dos entrevistados disseram ter consultado artigos publicados na

2

internet durante suas pesquisas mais recentes,

Política científica ambiciosa na Índia

e apenas 10% voltaram-se para manuscritos

A Índia começou o ano

no Indian Science

mas o desenvolvimento

digitalizados. Já o uso

anunciando novas

Congress. Segundo o site

e a comercialização

de dados brutos foi feito

medidas para impulsionar

da revista Sciencemag, a

dos espectrômetros

por menos de 5% dos

os investimentos em

Índia investe anualmente

de Raman só foram

estudantes entrevistados.

ciência, tecnologia e

US$ 12 bilhões em

realizados no Ocidente”,

A pesquisa, intitulada

inovação nos próximos

ciência e tecnologia –

explicou o ex-diretor do

Researchers of tomorrow,

cinco anos. A iniciativa,

cerca de 1% do Produto

Council of Scientific and

sinaliza que os trabalhos

que pretende colocar

Interno Bruto (PIB).

Industrial Research de

de doutorado estão

o país entre os maiores

O objetivo agora é

Nova Delhi, Raghunath

cada vez mais dominados

produtores mundiais

chegar aos 2% do PIB

Anant Mashelkar.

por referências a artigos

de artigos acadêmicos,

até 2017. O primeiro

de publicações on-line,

difere de políticas do

passo será investir

em vez de privilegiarem o

passado, que destacavam

em qualificação

uso de fontes primárias,

a importância da

profissional para que

como bancos de dados,

inovação, mas não

surjam novos líderes da

arquivos, jornais e

especificavam ações

ciência nacional.

manuscritos. O estudo

práticas nesse sentido.

“Historicamente, a Índia

também revela um

“Ciência de ponta

não tem se saído bem

incentivando a

em inovação tecnológica.

inovação é a chave para

Nosso primeiro e único

o desenvolvimento”,

cientista laureado

afirmou o primeiro-

com um Nobel, o físico

-ministro Manmohan

C. V. Raman, descobriu

Singh, durante discurso

o efeito Raman em 1923,

excesso de confiança

3

O nobel indiano C. V. Raman: desenvolvimento e comercialização de sua descoberta só foram realizados no Ocidente

em ferramentas de busca: 30% dos estudantes optam pelo Google quando procuram alguma informação específica. PESQUISA FAPESP 204 | 11


Tecnociência Infecções silenciosas

1

Onde se forma o magma

Jato de lava de vulcão no Havaí: magma lançado à superfície terrestre

Com 2,5 milhões

dessas crianças haviam

de habitantes, Belo

tido contato com

Horizonte é uma

o parasita, embora não

das maiores cidades

apresentassem sinais

brasileiras em que a

da doença. Um ano mais

leishmaniose visceral

tarde, os pesquisadores

é endêmica – surgiram

repetiram os testes

1.255 casos entre 2001

em 199 crianças

e 2011. Causada por um

infectadas e viram que

parasita de uma só

permaneciam livres

célula – o protozoário

da enfermidade (PlOS

Leishmania infantum ou

NTD, dezembro de 2012).

chagasi – que se aloja

“Essas crianças

nas células de defesa e

apresentavam uma

compromete o baço, o

carga baixa de parasitas,

fígado e a medula dos

em média 56

ossos, pode ser letal se

protozoários por mililitro

não tratada. A fim de

de sangue, quase

conhecer o perfil

40 vezes menor que

epidemiológico

a observada nos casos

da leishmaniose nas

clínicos”, conta

Mistura de rochas líquidas

analisar a propagação

e incandescentes, o

de ondas sísmicas após

grandes cidades, o

Mariângela. “Por alguma

magma pode se formar

terremotos, os sismólogos

grupo chefiado por

razão que ainda não

em regiões mais

notavam que, em

Mariângela Carneiro,

entendemos, o

profundas do planeta

algumas regiões, essas

da Universidade Federal

organismo delas

do que se supunha.

ondas viajavam mais

de Minas Gerais, analisou

manteve a infecção sob

O geólogo Rajdeep

lentamente (indício da

o sangue de 1.875

controle.” Segundo a

Dasgupta e sua equipe

presença de rocha

crianças saudáveis da

pesquisadora, esse é

na Universidade Rice,

liquefeita e menos densa).

capital mineira. Os

o primeiro estudo com

nos Estados Unidos,

O grupo de Dasgupta

pesquisadores

um grande número

submeteram amostras

também verificou que as

verificaram que 16,9%

de pessoas a mostrar

de peridotito, rocha

rochas contendo dióxido

que os moradores de

encontrada no manto, a

de carbono e água

regiões endêmicas

camada abaixo da crosta

fundem-se a temperaturas

podem ser portadores

terrestre, a pressões

mais baixas. “O magma

assintomáticos.

bastante elevadas a fim

profundo é o principal

Em 2000, Mariângela

de verificar se elas se

agente que transporta

e sua equipe haviam

liquefaziam. As amostras

ingredientes-chave para

observado que, em

fundiram-se, mas só a

a vida, como água e

Sabará, município

pressões altíssimas como

carbono, para a superfície

vizinho a Belo Horizonte,

as encontradas 250

da Terra”, explicou

8% das pessoas tinham

quilômetros abaixo do

Dasgupta ao serviço

o parasita sem

assoalho dos oceanos

de imprensa da National

desenvolver a doença.

– antes se achava que isso

Science Foundation.

Apesar de portador,

ocorresse à profundidade

Formado a grandes

o ser humano não serve

de 70 quilômetros

profundidades, o magma

de reservatório do

(Nature, janeiro de 2013).

ascende a regiões mais

parasita, que, nas áreas

O resultado ajuda a

rasas e pode chegar à

urbanas, também infecta

explicar anomalias

superfície do planeta na

os cães e é transmitido

observadas nas camadas

forma de lava expelida

às pessoas pela picada

internas do planeta. Ao

pelos vulcões.

do mosquito-palha.

12 | fevereiro DE 2013


Feijoada de soja-preta

Tradução avançada Tradutores simultâneos

A novidade é que

eternizados pela ficção

a versão chinesa imita

Em alguns anos a

científica estão cada

a voz de Rashid.

tradicional feijoada

vez mais próximos da

O principal avanço

poderá ser substituída

realidade. O assunto foi

do tradutor da Microsoft,

nas mesas brasileiras

abordado, em janeiro,

feito em parceria com a

por um prato similar:

pela The Economist,

Universidade de Toronto,

a sojoada, feita com

que descreveu os

é que ele não identifica

principais avanços no

apenas fonemas

desenvolvimento de

separadamente, mas

softwares de tradução.

sequências articuladas

Um lançamento da

deles, conhecidas como

Microsoft no final de

“senones”. A identificação

soja em vez de feijão.

2

fotos 1 Wikimedia commons  2 Embrapa  3 Jensen, KH; Zwieniecki, M. PRL – 2013  ilustração daniel bueno

Pesquisadores da

Soja-preta: mais saborosa e mais fácil de fazer do que a soja tradicional

Empresa Brasileira de

rigor e em mais áreas

Pesquisa Agropecuária

de experimentação para

(Embrapa), da

verificar se realmente

Empresa de Pesquisa

serão lançadas como

outubro ganhou destaque

desse tipo de construção

de Minas Gerais (Epamig)

novos cultivares.” Se

na reportagem. Durante

fonética depende de

e da Fundação

tudo der certo, espera-se

uma conferência em

redes neurais artificiais,

Triângulo de Pesquisa

que estejam disponíveis

Tianjin, na China,

programas de

e Desenvolvimento,

em dois anos. Além das

enquanto Rick Rashid,

computador que operam

de Uberaba, estão

avaliações agronômicas,

chefe do Departamento

de modo semelhante ao

desenvolvendo duas

é preciso testar outras

de Pesquisa da empresa,

cérebro. Assim, reduziu-

novas linhagens de soja-

características. “Tem de

falava em inglês, seu

-se a taxa de erro no

-preta. Segundo

agradar ao produtor e

discurso era traduzido,

discurso em mais de 30%

Ana Cristina Juhász,

ao paladar exigente dos

ao vivo, para o mandarim,

em relação a métodos

pesquisadora da Epamig,

consumidores brasileiros”,

aparecendo primeiro

anteriores. Em vez de ter

o desenvolvimento das

explica Ana Cristina.

em legendas estampadas

uma palavra incorreta

linhagens começou

“Os testes que fizemos

em telões, antes de ser

em cada 4 ou 5, a taxa

em 2006, na Embrapa

até agora mostraram

reproduzido por uma voz

de erro foi de uma

Londrina. No início

que a soja-preta tem

gerada por computador.

incorreta para 7 ou 8.

eram 25 variedades, que

sabor mais agradável

foram reduzidas a duas.

e maior facilidade de

“Elas estão na fase

cozimento do que a

final do programa de

comum. Ela ainda tem

melhoramento”, diz

a antocianina, um

Ana Cristina. “Elas serão

antioxidante natural que

avaliadas neste ano e

reduz o envelhecimento

no próximo com mais

das células.”

Folhas de árvores de médio porte: a menor, do Ulmus parvifolia, tem 3 cm, e a maior, da Magnolia macrophylla, 60 cm

Nem tão grandes, nem tão pequenas

3

Em qualquer floresta, o tamanho das fo-

Jensen, da Universidade Harvard, e o bió-

to da seiva, que, por sua vez, limita o ta-

lhas das árvores mais altas varia muito

logo Maciej Zwieniecki, da Universidade

manho das folhas. A velocidade da seiva

pouco. Com raras exceções, ultrapassam

da Califórnia em Davis, acreditam ter

aumenta à medida que ela vai da folha

10 a 20 centímetros de comprimento,

encontrado a resposta. O fator que limita

para os galhos. De modo geral, quanto

mesmo quando as árvores alcançam qua-

o crescimento das folhas nas árvores mais

maior a folha, maior o fluxo. Mas no tron-

se 100 metros de altura – as folhas das

altas, afirmam, é a capacidade de trans-

co a seiva encontra resistência hidráulica,

árvores mais baixas podem ter de milí-

porte de seiva elaborada, rica em açúca-

que cresce com o tamanho da árvore. A

metros a 1 metro. Os botânicos sabem

res (energia), para áreas distantes (PRL,

partir de certo ponto o transporte perde

disso há tempos, mas faltava uma boa

4 de janeiro de 2013). Levando em conta

eficiência e folhas maiores não melhoram

explicação de por que essa limitação

as dimensões das folhas e dos troncos e

a distribuição de seiva – folhas muito pe-

ocorre. Depois de analisar o tamanho das

as características hidráulicas dos canais

quenas impediriam um fluxo mínimo. Essa

folhas e outras características de 1.925

condutores de seiva, eles concluíram que

limitação impede que as árvores tenham

espécies de árvores, o biofísico Kaare

o tamanho da árvore regula o escoamen-

mais de 100 metros.

PESQUISA FAPESP 204 | 13


Os perigos de nadar no Araguaia Em alguns trechos do rio Araguaia – e

neário do extremo norte do Tocantins,

da USP, montou uma equipe multidisci-

possivelmente de outros rios amazônicos

às margens do Araguaia. Depois de nadar,

plinar para investigar a causa do surto.

– não convém nadar com os olhos des-

elas passaram a reclamar de sensibilida-

Após um ano de trabalho, as biólogas

protegidos nem abrir os olhos embaixo

de à luz, vermelhidão, coceira, dor e ardor

Cecília Volkmer-Ribeiro e Twiggy Batista

d’água durante um mergulho. Partículas

nos olhos. Em muitos casos os arranhões

e o médico Henrique Lenzi demonstraram

microscópicas rígidas (espículas) do es-

e lesões superficiais se transformaram

que a causa do problema não eram para-

queleto de esponjas podem perfurar as

em pequenos nódulos ou manchas opa-

sitas encontrados na água, mas espículas

membranas que recobrem os olhos e

cas nas membranas mais externas, de-

das esponjas de água doce Drulia urugua-

causar problemas graves como os obser-

correntes de infecções por fungos e

yensis e Drulia ctenosclera. Luna suspeita

vados no município de Araguatins por

bactérias (Eye, janeiro de 2013). Duas

que o que viram em Araguatins possa

pesquisadores de Ribeirão Preto, São

crianças perderam a visão de um dos

ocorrer em outras áreas à medida que

Paulo e Porto Alegre. Por volta de 2005

olhos. Na época à frente da diretoria de

avance a ocupação da Amazônia.

um surto de problemas oculares atingiu

vigilância de doenças transmissíveis do

cerca de 100 crianças e adolescentes que

Ministério da Saúde, o médico Expedito

haviam tomado banho de rio nesse bal-

Luna, do Instituto de Medicina Tropical

Um gel que se regenera

1

Drulia ctenosclera e espículas microscópicas: causa de problemas oculares em Araguatins

Um tipo especial

essa auto-organização

de gel chamado

poderia ser guiada por

Belousov-Zhabotinsky,

estímulos luminosos

que pulsa sem estímulos

(PNAS, 8 de janeiro

externos, seria capaz de,

de 2013). Segundo

depois de partido em

o grupo de Pittsburgh,

pedaços, se auto-organizar

esses resultados

A grande seca que

das árvores. Esse dano

espontaneamente.

abrem caminho para

atingiu principalmente

pode, segundo o estudo,

A equipe da pesquisadora

o desenvolvimento

as regiões sul e oeste da

representar o primeiro

Anna Balazs, da

de materiais que podem

Amazônia em 2005

sinal de uma potencial

Universidade de

se organizar a partir do

deixou efeitos que ainda

degradação florestal

Pittsburgh, Estados

movimento autônomo de

persistem na região.

em larga escala devido

Unidos, desenvolveu um

partes com capacidade

O número de copas

às mudanças climáticas

modelo computacional que

de se comunicarem

secas e de árvores que

no planeta. O trabalho

simula o comportamento

entre si. Com o auxílio

desapareceram até 2010,

utilizou dados de

dinâmico desse gel,

de luz, acreditam os

quando outro período

radar de micro-ondas

sintetizado pela primeira

pesquisadores, seria

de extensa estiagem

do satélite QuikScat,

vez no final dos anos

possível controlar

atingiu a mesma área,

da Nasa, que coletou

1990, e obteve indícios

melhor a reconfiguração

é muito grande,

informações através

de que pedaços muito

da estrutura original.

conforme demonstrou

das nuvens e a poucos

um estudo liderado pelo

metros do chão

pesquisador Sassan

durante uma década,

entre si e se autoagregar

Saatchi, do Laboratório

além de estimar a

em um gel maior. Segundo

de Propulsão a Jato da

presença de água

os pesquisadores, essa

Nasa, a agência espacial

na floresta (PNAS,

propriedade, conhecida

norte-americana.

8 de janeiro de 2013).

como autoquimiotaxia,

O resultado sugere

O estudo contou

permitiria aos pedaços

que a ocorrência de

com a participação

do gel se reagruparem

secas na Amazônia

da pesquisadora Eliana

autonomamente

em intervalos de 5 a 10

Anderson, do Instituto

depois de cortados,

anos pode levar a

Nacional de Pesquisas

formando uma estrutura

alterações permanentes

Espaciais (Inpe), além

semelhante à original.

no dossel da floresta,

de pesquisadores de

Nas simulações, eles

a cobertura contínua

universidades inglesas

formada pelas copas

e norte-americanas.

pequenos poderiam trocar informação química

mostraram ainda que 14 | fevereiro DE 2013

2

Efeitos da seca na Amazônia

Separado em pedaços, gel se reorganiza controlado por pulsos de luz

3


fotos 1 volkmer-ribeiro et al. acta limnologica brasiliensia, 2008 2 Vanessa de Souza Machado  3 Anna Balazs Lab  4 Universidade Politécnica da Catalunha  ilustração daniel bueno

Concreto coberto de vida Pesquisadores do

na fachada de edifícios

Grupo de Tecnologia

e outras construções

de Estruturas da

por produzir um efeito

Universidade Politécnica

ornamental e melhorar

da Catalunha, na

o conforto térmico dos

Espanha, desenvolveram

prédios. Eles dizem ainda

um tipo de concreto

que o concreto biológico

capaz de abrigar líquens,

pode contribuir para

musgos, fungos e algas

diminuir a quantidade de

microscópicas. O novo

dióxido de carbono da

concreto, chamado de

atmosfera por abrigar

biológico, é feito a partir

microrganismos que

de dois materiais à base

fazem fotossíntese –

de cimento. O primeiro é

mas esse efeito, se

o concreto convencional

de fato existir, pode

carbonatado, produzido

ser pequeno. Os

com cimento Portland,

pesquisadores já

com pH levemente

patentearam a ideia e

A bateria de smartphones

o físico Varese Salvador

básico. O segundo

buscam uma forma de

dura pouco. Quem tem

Timoteo, da Faculdade

é produzido com

acelerar o crescimento

sabe que é preciso

de Tecnologia (FT) da

um cimento contendo

dos organismos vivos.

plugá-lo quase todos os

Unicamp. Segundo ele,

fosfato de magnésio,

O objetivo é acelerar a

dias à tomada para

o que faz os smartphones

ligeiramente ácido,

colonização natural para

recarregar. Uma

consumirem a carga

usado como biocimento

obter uma aparência

tecnologia criada por

da bateria rapidamente

por médicos e dentistas.

atraente em menos de

pesquisadores da

é a ativação contínua

Esses materiais são

um ano. Fachadas com

Universidade Estadual

dos canais de tráfego

usados em placas

o novo material devem

de Campinas (Unicamp)

de dados, mesmo

sobrepostas, uma delas

apresentar alterações de

poderá reduzir em até

quando recebem pacotes

capaz de reter água,

cor, que podem variar

20% o consumo de

indesejados que circulam

favorecendo o

segundo a época do ano

energia dos smartphones

pela rede. “A nossa

crescimento dos

e os organismos que

e diminuir a frequência

solução consiste em

microrganismos, e outra

vivem ali. O novo

das recargas. “A solução

implementar um

impermeável, para

concreto, dizem os

não requer alterações

modelo de predição no

proteger a estrutura do

pesquisadores, evita o

no hardware dos

dispositivo para que ele,

prédio da corrosão.

crescimento de plantas

telefones nem no das

‘observando’ o tráfego,

Segundo seus criadores,

com raízes que poderiam

redes. É uma inovação

‘aprenda’ quando

o concreto biológico é

comprometer a

implementada por meio

deve ativar os canais

indicado para ser usado

estrutura da edificação.

de software”, explica

para o tráfego de

Smartphones mais econômicos

Fachada viva: concepção artística de prédio com placas do concreto biológico

dados em banda larga”, afirma o pesquisador. O programa mostrou-se bem-sucedido em testes com dispositivos que usam o sistema operacional Android. A inovação, que já gerou uma patente, funciona tanto em dispositivos com tecnologia 3G como com 4G. Além de Timoteo, participaram do desenvolvimento Edson Luiz Ursini, também da FT, e o aluno de mestrado Tito 4

Ricardo Bianchin Oliveira. PESQUISA FAPESP 204 | 15


capa

Mais bits a serviço do DNA Bioinformatas brasileiros criam ferramentas para estudar genomas

H

á pouco mais de uma década quase não havia genomas completos para serem analisados. Hoje faltam programas e mão de obra especializada para dar conta da quantidade de sequências de DNA já depositadas em bases públicas de dados e que saem diariamente de uma nova geração de sequenciadores. Extremamente velozes, essas máquinas determinam os pares de bases do material genético, as chamadas letras químicas, a um preço milhares de vezes menor do que no início dos anos 2000, quando chegou ao fim a epopeia de sequenciar o primeiro genoma humano. De olho nesse desafio, o matemático João Meidanis, sócio-fundador da empresa Scylla Bioinformática e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), investiu numa linha de pesquisa: criar métodos mais simples e eficientes para comparar dois ou mais genomas.

Ao lado de Pedro Feijão, ex-aluno seu de doutorado, formulou em 2009 a base teórica de uma técnica para comparar genomas inteiros denominada single-cut-or-join (SCJ) e, no ano passado, testou-a na prática em genomas de alguns organismos, como plantas e bactérias. “Com nosso método, podemos comparar facilmente dois ou mais genomas sem aumentarmos exponencialmente o número de cálculos, como ocorre com outras técnicas”, afirma Meidanis. “Assim podemos construir árvores genealógicas e ver quais são os genomas mais próximos e os mais distantes do ponto de vista evolutivo.” O matemático foi um dos coordenadores de bioinformática do projeto que sequenciou, no ano 2000, o genoma da bactéria da Xylella fastidiosa, causadora da doença do amarelinho nos laranjais. O trabalho rendeu a primeira capa da revista científica Nature a uma pesquisa brasileira.

ilustração  fabio otubo

Marcos Pivetta


PESQUISA FAPESP 204 | 17


O tombo do DNA Em uma década, o custo de sequenciar o genoma humano caiu de US$ 100 milhões para menos de US$ 10 mil * eixo y em escala logarítmica (em US$)

100 milhões

10 milhões

1

3

2000

1 milhão

4

O genoma da bactéria

2002

Xylella fastidiosa é

O genoma do

sequenciado por grupo

camundongo

de pesquisadores

é publicado

2003

paulistas e o estudo

O projeto

é destacado na capa

internacional

da revista Nature

que sequenciou o genoma humano é

100 mil

declarado

2

oficialmente terminado

5

2001

10 mil

A versão inicial

2004

do sequenciamento

O rascunho dos

do DNA humano

genomas do rato

ganha as páginas

de laboratório,

dos periódicos

do cão, do boi, do

científicos

frango e do álamo é divulgado

1 mil 2002

Para confrontar todo o material genético de uma espécie com o de outra, os pesquisadores têm de recorrer a simplificações. A principal delas é considerar que os genes presentes nos genomas comparados são exatamente os mesmos, embora estejam ordenados de forma diferente na sequência específica de cada organismo. Partindo desse raciocínio, os métodos para comparar genomas contabilizam o número de rearranjos que teriam sido necessários para que um genoma se transformasse no outro. Esses rearranjos decorrem da movimentacão de grandes segmentos de DNA ocorrida ao longo do tempo na sequência original. Dessa forma, quanto menor for o número de rearranjos que separam dois genomas, mais próximos eles se encontram na árvore evolutiva. 18 | fevereiro DE 2013

2003

2004

2005

Em seu método, Meidanis e Feijão formularam uma definição alternativa para o conceito de ponto de quebra (breakpoint), parâmetro importante para encontrar rearranjos numa sequência e, assim, calcular a proximidade de dois genomas. Ponto de quebra é o local em que há uma interrupção num longo segmento conservado nos genomas que estão sendo comparados. No ano passado, a dupla ainda refinou outro método de comparação de genomas, mais elaborado que o SCJ. Inicialmente proposta no ano 2000, essa segunda técnica permitia confrontar apenas genomas circulares. Com o aperfeiçoamento, passou também a ser útil para comparar o material genético de cromossomos lineares. “Essa era uma das limitações da técnica origi-

2006

2007

4 Jane Ades / NHGRI  6 Maggie Bartlett / NHGRI  7 bgi  8 NHGRI

2001

fotos  1 elliot w. kitajima / usp  2 divulgação  3 e 5 wikimedia commons

2000


que regressou a São Paulo, já recebeu, por exemplo, 16 propostas para colaborar com iniciativas de outros pesquisadores. “Os sequenciadores de última geração geram uma quantidade astronômica de dados genômicos, de proteômica e do metabolismo dos organismos”, afirma Setubal, que também foi um dos coordenadores de bioinformática do projeto da Xylella. “Com o barateamento da tecnologia, hoje qualquer projeto de pesquisa com um mínimo de recursos pode sequenciar o genoma de um organismo.”

Lei de Moore   Até meados dos anos 2000, a queda no custo de sequenciar seguiu o barateamento tecnológico decorrente da

N

Lei de Moore. Depois o preço despencou

7

2011   Cientistas chineses do BGI anunciam projeto para sequenciar 3 milhões

8

de genomas de plantas, animais, seres humanos e microrganimos 2012  O genoma completo de 1.092

6

pessoas, de diferentes continentes, é publicado na revista Nature 2008  As máquinas de segunda ou última geração chegam ao mercado e derrubam o custo de sequenciar genomas

2008

2009

fonte NHGRI Genome Sequencing Program

2010

2011

2012

nal”, comenta Feijão, hoje funcionário da Scylla. O novo método, baseado no que os matemáticos denominam formalismo algébrico por adjacências, ainda não foi testado em genomas reais. Existe, por ora, na forma de teoria. Metagenômica

Meidanis, logicamente, não é o único a sentir os efeitos da nova realidade em seu campo de atuação. De volta ao Brasil desde meados de 2011, depois de oito anos no Virginia Bioinformatics Institute, nos Estados Unidos, João Carlos Setubal, hoje professor titular do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), nota que a demanda por serviços e pesquisa em sua área cresceu e se sofisticou nos últimos tempos. Desde

a última década, um campo que se abriu para o pessoal da biologia e da bionformática foi o da metagenômica, em que se estuda a microbiota de um nicho ecológico. O principal projeto de Setubal, um temático da FAPESP sobre microrganismos presentes no Zoológico de São Paulo, é nessa área. Por essa abordagem, em vez de isolar e cultivar os microrganismos a fim de se extrair em separado o DNA de cada espécie, o pesquisador retira uma amostra diretamente do ambiente a ser estudado. Nessa amostra, o DNA de várias espécies se apresenta “misturado” e cabe ao bioinformata encontrar técnicas para separar e caracterizar o material genético de cada uma delas. “Estamos estudando três microbiomas no Zoológico: a compostagem feita pelos funcionários do parque, a água dos lagos e as fezes dos macacos bugios”, afirma Setubal. A metagenômica é também uma forma de garimpar organismos desconhecidos num hábitat específico. A equipe de Ana Tereza Ribeiro de Vasconcelos, coordenadora do centro de bioinformática do Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC), em Petrópolis, participou da descoberta de bactérias magnéticas encontradas na lagoa de Araruama, no litoral do Rio de Janeiro, uma das mais salinas do mundo. Uma dessas bactérias encontradas foi a Candidatus magnetoglobus multicellularis. Identificada por Ulysses Lins, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a bactéria é difícil de ser isolada do ambiente e mantida em meio de cultura. “Hoje estamos envolvidos em uma dezena de projetos de metagenômica”, diz Ana Tereza, que conta com três sequenciadores em seu laboratório e um time de aproximadamente 25 pessoas. A escala de tempo e dinheiro envolvidos nos projetos dedicados a analisar o DNA de organismos mudou radicalmente na última década. Nos primeiros anos da era genômica, apenas grandes empreitadas ousavam se aventurar nessa nova seara. Em abril de 2003, quando o consórcio público internacional que sequenciou pela primeira vez um genoma humano chegou oficialmente ao fim, a megainiciativa tinha consumido 13 anos de trabalho de centenas de cientistas de ao menos 18 países (Brasil inclusive) e estimados US$ 2,7 PESQUISA FAPESP 204 | 19


bilhões. Numa proporção muito menor, mas ainda assim grandiosa, o sequenciamento da Xylella custara US$ 12 milhões à FAPESP e envolvera a contribuição de 192 pesquisadores por três anos.

A

gora sequenciar genomas se tornou uma tarefa entre 10 mil e 20 mil vezes mais em conta do que há pouco mais de uma década, segundo dados do National Human Genome Research Institute (NHGRI) dos Estados Unidos. A chegada em massa ao mercado no início de 2008 dos sequenciadores de segunda geração, que empregam uma tecnologia diferente das primeiras máquinas do tipo Sanger, tem feito o preço do sequenciamento despencar num ritmo acelerado que supera de longe os ganhos de desempenho decorrentes da Lei de Moore na informática. Hoje, em dois ou três dias, a um custo de uns poucos milhares de dólares, é possível determinar todos os 3 bilhões de letras químicas do DNA de uma pessoa. “A bioinformática é uma nova ferramenta, uma lupa, para entendermos melhor o fenômeno biológico, que não mudou, mas agora pode ser visto de outra forma”, diz Gonçalo Pereira, do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp. Mas sequenciar é uma coisa, extrair informação útil dos bilhões de dados que os computadores despejam cotidianamente nas mãos dos cientistas é outra, bem mais complexa. “O sequenciamento em si hoje é barato, virou uma commodity,

mas a análise dos dados é cara”, diz o cientista da computação João Paulo Kitajima, da Mendelics, empresa recém-criada que trabalha com Barateamento do diagnósticos genômicos personalisequenciamento zados. “A procura pelo trabalho de bionformática cresceu exponencialtornou as técnicas mente e há um gap entre a demanda e a oferta de especialistas no Brasil genômicas e no exterior.” É difícil estimar com precisão o acessíveis a tamanho da comunidade de bioinprojetos de todos formatas no país. Segundo Guillherme Oliveira, presidente da Associaos orçamentos ção Brasileira de Bioinformática e Biologia Computacional (AB3C), cerca de 300 pessoas, entre professores, alunos e pesquisadores, mantêm vínculos com a entidade. “Antigamente o bioinformata era um autodidata”, diz Oliveira, coordenador do centro de bioinformática da Fiocruz de Minas Gerais. “Hoje boa parte sai dos cursos de pós-graduação e em cada estado há algum especialista no setor. Uma novidade é que agora empresas também atuam na área.” Grandes universidades do país, como a USP, a UFRJ e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e a Fiocruz mantêm programas de pós-gradução específicos sobre bionformática. Outras universi-

China tem maior centro de sequenciamento Em menos de 15 anos, um centro chinês

da determinação da sequência genética

deste ano, o centro asiático recebeu

de bioinformática saiu da condição de

de um símbolo nacional, o panda-

o sinal verde dos americanos para

sócio menor do consórcio internacional

-gigante, feito alcançado há três anos.

comprar por US$ 177 milhões uma

que mapeou o primeiro genoma

Em 2010, por exemplo, o BGI

companhia da Califórnia, a Complete

humano para se tornar a maior

sequenciou o primeiro genoma completo

Genomics, que desenvolveu uma nova

potência global em termos de

de um ancestral do ser humano, o DNA

tecnologia de sequenciamento, cujos

sequenciamento de DNA. Fundado em

de um esquimó que viveu há 4 mil anos.

resultados seriam mais precisos do que

1999, o Beijing Genomics Institute (BGI,

Em 2012 forneceu o DNA de 100

os obtidos com os métodos atualmente

na sigla em inglês) é dono hoje de

chineses para um esforço internacional

em uso em todo o mundo.

180 máquinas sequenciadoras, a maior

que estuda o genoma de cerca de mil

parte delas de última geração,

indivíduos de diferentes regiões do

que podem produzir diariamente

planeta. Ainda no ano passado

6 terabytes de dados, equivalentes

o centro se propôs a sequenciar nos

aos genomas completos de 2 mil

próximos anos 3 milhões de genomas,

indivíduos. Tem 4 mil funcionários

de seres humanos, plantas, animais

e filiais nos Estados Unidos, Europa e

e microrganismos.

Japão. As ações dos chineses, que

A política dos chineses é agressiva

trabalham numa escala gigantesca,

em todos os sentidos, não só no campo

criam a expectativa de que o preço de

científico, mas também do ponto de

sequenciar um genoma humano caia

vista comercial. Além de vender seus

em breve para US$ 1.000 e os colocam

préstimos em bioinformática, o BGI

na condição de protagonistas em

tenta garantir para si o acesso aos mais

projetos de ponta, que vão muito além

recentes avanços do setor. No início

20 | fevereiro DE 2013

2

Panda-gigante: um dos genomas que os chineses do Beijing Genomics Institute (BGI) sequenciaram por completo


fotos  1 Manyman / wikimedia commons 2 Ebengtso / wikimedia commons

2

Águas hipersalinas da lagoa de Araruama, no Rio de Janeiro: estudos de metagenômica encontraram bactérias magnéticas no local

dades trabalham o tema como uma linha de pesquisa no âmbito da pós de uma área mais ampla, como biologia ou computação.

O

s trabalhos de sequenciamento e análise do genoma do Schistosoma mansoni, parasita causador da esquistossomose, são o projeto de maior visibilidade a que o centro de bionformática da unidade mineira da Fiocruz tem se dedicado nos últmos anos. Mas as seis máquinas sequenciadoras e os 15 especialistas em bionformática do setor comandado por Oliveira participaram de cerca de 60 projetos distintos, que incluem estudos sobre o genoma do câncer, de agentes infecciosos, de raças de bovinos e trabalhos de metagenômica. Hoje o centro ainda gera e analisa dados para a Rede de Pesquisa de Identificação Molecular da Biodiversidade Brasileira (BR-BoL), coordenada por Cláudio Oliveira, do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Botucatu, que deverá catalogar 120 mil exemplares de 24 mil espécies da natureza em quatro anos. A BR-BoL é o braço brasileiro de um projeto internacional, o Barcode of Life (Código de Barras da Vida), que visa identificar espécies por meio da caracterização de seu DNA. A bioinformática se espalhou pelo país e atingiu centros longínquos das grandes capitais do Sudeste. Na Universidade Federal do Pará (UFPA), Artur Silva faz pesquisas no setor e colabora com grupos de São Paulo. Desde maio do ano passado, Sandro de Souza, que por anos chefiou essa área no Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer de São Paulo, está no Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Ele não tem um sequenciador a seu lado na capital potiguar. Nem por isso se mostra preocupado. “Dá para fazer sequenciamento até na nuvem da internet se a gente quiser”, afirma Souza. “Estou começando

meus trabalhos em neurociências sem problemas.” Até porque Souza ainda tem acesso a todas as máquinas do Ludwig, que, com o fechamento do instituto na capital paulista, foram transferidas para a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, onde começou a funcionar no ano passado o Centro de Medicina Genômica. “As técnicas de genômica e bionformática farão uma revolução na prática médica assim como fez a medicina baseada em imagens ”, diz Wilson Araújo da Silva Júnior, um dos responsáveis pelo novo centro da FMRP. Para tornar mais acessíveis os serviços de sequenciamento e análise de DNA e RNA, a Unicamp inaugura em 1º de março o Laboratório Central de Tecnologias de Alto Desempenho (LacTAD), que atuará nas áreas de genômica, proteômica, biologia celular e bioinformática propriamente dita. Entre os equipamentos do laboratório há dois sequenciadores de nova geração da empresa Illumina, daqueles que em poucos dias é capaz de sequenciar por completo um DNA humano, e um terceiro para sequenciar regiões específicas de genomas. A rigor, as máquinas do centro já estão em uso desde o ano passado, quando chegaram à universidade, mas espalhadas em distintas unidades. A partir do próximo mês elas passam a operar no prédio de 2.000 metros quadrados construído para o LacTAD. “Acreditamos que haja uma demanda reprimida por esse tipo de serviço e a bionformática se tornou um gargalo de muitas pesquisas nas áreas biológicas”, afirma o químico Ronaldo Pilli, pró-reitor de Pesquisa da Unicamp, que está à frente do projeto do novo laboratório. “Acompanhamos a tendência mundial de oferecer esse tipo de serviço de forma centralizada. Assim é mais fácil comprar, operar e manter atualizados os equipamentos.” Os equipamentos do LacTAD custaram cerca de R$ 5,5 milhões e foram adquiridos por meio do programa Multiusuários da FAPESP. Orçado em R$ 4 milhões, o prédio foi bancado pela universidade. O LacTAD prestará serviços a pesquisadores da Unicamp e também de outras universidade e empresas. No site do laboratório há um formulário para pesquisadores interessados em cotar os preços dos seus serviços. “Faremos trabalhos que podem custar de R$ 100 até R$ 100 mil”, comenta Pilli. É a democratização da bioinformática. n

Projetos 1. Estudos da diversidade microbiana no Parque Zoológico de São Paulo – n° 11/50870-6; 2. EMU: Laboratório Central de Tecnologia s de Alto Desempenho – n° 09/54129-9. Modalidades: 1. Programa Biota – Projeto Temático; 2. Programa de Equipamentos Multiusuários.Coordenadores: 1. João Setubal – USP; 2. Fernando Ferreira Costa – Unicamp. Investimento: 1. R$ 1.711.698,25 (FAPESP); 2. R$ 6.034.431,00 (FAPESP). PESQUISA FAPESP 204 | 21


eduardo cesar

Erney Plessmann de Camargo 22 | fevereiro DE 2013


entrevista

O cientista das doenças negligenciadas Neldson Marcolin e Ricardo Zorzetto

O

idade 78 anos especialidade Parasitologia formação USP (graduação, doutorado e livre-docência) Instituto Pasteur (pós-doutorado) instituição Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP

professor Erney Plessmann de Camargo encerrou a entrevista a seguir de forma categórica: “Gosto de fazer ciência e não preciso mais pensar em carreira”. Aos 78 anos, o parasitologista se referia ao mais recente interesse: pesquisar os protozoários do gênero Trypanosoma sem importância médica. A revelação sobre esse trabalho soa surpreendente para quem se acostumou a vê-lo como pesquisador e administrador preocupado em arrumar soluções com impacto na saúde pública e na gestão da ciência. Ao mesmo tempo, parece natural para um pesquisador cujo gosto pela ciência sempre esteve em primeiro lugar. As histórias de Camargo trazem em si os ensinamentos do professor Samuel Pessôa (1898-1976), catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), que influenciou gerações de estudantes a fazer medicina ligada aos problemas sociais brasileiros. Camargo procurou ser fiel a eles e produziu importantes trabalhos científicos ligados à doença de Chagas e à malária, duas doenças negligenciadas, que atingem a parte mais desfavorecida da população. Perseguido pelo regime militar de 1964, o parasitologista, que nunca negou sua ligação com a esquerda, saiu do país para trabalhar nos Estados Unidos. De volta ao Brasil em 1969, sem lugar na USP, trabalhou por dois anos em empresas privadas até ser contratado pela Escola Paulista de Medicina (EPM), hoje Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Ficou por lá 15 anos e remodelou o Departamento de Parasitologia. Em 1986 estava de volta à USP como professor titular. Seu concurso reuniu duas centenas de pessoas como desagravo em nome dos que foram injustiçados pelo regime que findou em 1985. Na sua casa de origem, também reestruturou a Parasitologia e foi o primeiro pró-reitor de Pesquisa, antes de assumir a presidência do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Foi presidente do Instituto Butantan e hoje preside a Fundação Zerbini, que gerencia o Instituto do Coração (InCor) da FMUSP. Casado, com quatro filhos – todos cientistas –, Camargo falou a Pesquisa FAPESP. PESQUISA FAPESP 204 | 23


O senhor se formou em 1959, numa época importante da Faculdade de Medicina da USP. Seus colegas e mestres do período se tornaram pesquisadores renomados, como Luiz Hildebrando Pereira da Silva e Victor e Ruth Nussenzweig, entre tantos outros. O Luiz Hildebrando e o Victor são um pouco mais velhos que eu. Aquela foi uma época excepcional na Faculdade de Medicina. Muitos estudantes se tornaram cientistas respeitados. Sérgio Henrique Ferreira, Walter Colli, Nelson Fausto, Ricardo Brentani, por exemplo, formavam um grupinho que estava começando a trabalhar. Eu, por minha vez, desde o segundo ano de graduação optei por ficar no Departamento de Parasitologia. Os principais grupos da faculdade que recebiam os estudantes e pesquisadores eram a Bioquímica, onde estava o Isaías Raw; a Fisiologia, para onde foram o Gerhard Malnic e o Maurício Rocha e Silva; a Histologia, que era o melhor departamento da faculdade, onde estava a nata da ciência, dirigido pelo Luiz Carlos Junqueira. E tinha a Parasitologia, que também era de primeira qualidade. Lá estavam o Hildebrando, o Nussenzweig e o Luís Rey. O Samuel Pessôa [chefe da Parasitologia] já tinha se aposentado quando cheguei.

O melhor lugar para aprender história natural era a Faculdade de Medicina da USP

Havia alguma característica especial naquele momento que levou os estudantes a serem atraídos pela pesquisa cedo? Foi um período muito importante na história das ciências biológicas, porque a dupla hélice havia sido descrita havia pouco tempo, em 1953, e se estava começando a entender como funcionava o DNA. Peter Mitchell tinha descoberto o processo de produção de energia na mitocôndria em 1961 e criado toda uma linha de pesquisa em torno disso, que, até então, era um mistério. Com a microscopia eletrônica, a estrutura celular começou a ser desvendada. Descobriram o ribossomo e como se dava a síntese de proteínas mais ou menos nessa época em que estávamos na graduação. Havia circunstâncias muito favoráveis para se interessar pela ciência. E grandes professores que mostravam isso para a gente, como Michel Rabinovitch, Isaías Raw, Roberto Carvalho da Silva, Luiz Carlos Junqueira, Ferreira Fernandes, e o pessoal da Parasitologia. Tínhamos seminários nada formais, muito vivos, em que todos estavam querendo saber das coisas. Havia também o pessoal de

24 | fevereiro DE 2013

genética humana, do professor Pedro Henrique Saldanha, que se reunia conosco. A cada semana alguém falava sobre temas mais diversos, não só sobre parasitas. Fiz um que deu muito trabalho, sobre o vírus T4, que estavam começando a mapear, era o início do entendimento de como a informação ficava no DNA. Estudávamos muito. Era extremamente excitante. O curso de medicina foi uma espécie de graduação em ciências, então? Foi uma graduação em ciências, certamente, embora não se conseguisse escapar das obrigações de estudante de medicina. A faculdade era muito boa. Mesmo que não quiséssemos, acabávamos aprendendo medicina direito. Não importava se o interesse estava em outro lugar. Fiz duas ou três dezenas de partos, por exemplo. Era obrigado. Tive de fazer cirurgia de apendicite, evidentemente com um médico experiente do lado. Não adiantava dizer que não queria ser cirurgião. O internato obrigatório em medicina havia sido criado fazia pouco tempo. Minha turma foi uma das primeiras a fazê-lo. Mas não tenho queixa nenhuma, ao contrário. Como é que o senhor seguiu na pesquisa em parasitologia? Eu gostava muito de história natural. Naquele tempo, nos anos 1950, o melhor lugar para aprender história natural era a Faculdade de Medicina. A Biologia, essa que nós temos hoje e é muito boa, estava começando. Grandes pesquisadores daquele tempo, como Paulo Vanzolini, fez medicina e depois se tornou professor da Biologia. Além disso, havia a vantagem de o médico poder ser biólogo, não o inverso. O senhor tem quatro filhos. Eles seguiram seu modelo? Dois são médicos. O Marcelo, que atua em Rondônia, e o Fernando, que é médico do Hospital Albert Einstein, aqui em São Paulo. Os outros dois também são cientistas. Um é da Esalq, o Luís Eduardo, e a outra é a Anamaria, bióloga do Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer. Não exigi nada deles nesse sentido. Foi natural. Minha esposa, Marisis, é pesquisadora de literatura, foi diretora da PUC-SP. Mas ninguém fez literatura, só biológicas. O seu artigo mais citado, sobre crescimento e diferenciação do Trypanosoma cruzi, protozoário causador da doença de Chagas, foi o primeiro que o senhor escreveu. Por que foi importante? Hoje já está com 704 citações e continua sendo citado. Havia um problema: o Trypanosoma cruzi era muito difícil de cultivar. Usava-se o chamado meio de Muniz, uma base de sangue com ágar e muito pouco líquido. Para conseguir 1 grama de


Trypanosoma precisava-se de uns 50 frascos de Muniz. Eu já tinha me graduado e era meu primeiro trabalho. Queria estudar a bioquímica do Trypanosoma. Para isso era preciso quantidade grande do bicho, não dava para fazer com uma ninharia. Uma das coisas que eu queria saber era como o T. cruzi se diferenciava. A diferenciação celular, ainda hoje, é um problema central da biologia. Para conseguir o meio ideal de cultivo para o T. cruzi, passei um bom tempo em atividades culinárias: tirava um sal, punha outro, misturava algo a mais... Enquanto isso, fui estudando o parasita. Tanto que o título do artigo é “Crescimento e diferenciação do Trypanosoma cruzi”, não é “Produção do meio de cultura”. Havia um meio de cultura básico que um pesquisador da Flórida, nos Estados Unidos, usava para bactérias. Usei-o e comecei a acrescentar outros ingredientes. Aí cheguei a um meio que se chama LIT ou liver infusion tryptose. Foi muito importante, não só para mim, mas porque possibilitou que todos que viessem a trabalhar com Trypanosoma pudessem produzir o protozoário em escala. Comecei em 1962 e passei um ano fazendo isso. Mas o artigo saiu em 1964. Tudo aconteceu graças ao seu gosto pela história natural... O mais próximo da história natural na Faculdade de Medicina era a Parasitologia. Poderia ter escolhido a Microbiologia também, mas não era um departamento tão bom como a Parasitologia. No segundo ano fiquei amigo do pessoal do departamento e comecei a frequentá-lo. É preciso dizer que havia algo mais que me aproximou da Parasitologia: todos lá eram de esquerda. Era o Departamento Vermelho da Faculdade de Medicina. Minhas simpatias políticas estavam com esse grupo e isso facilitou a aproximação. Inicialmente trabalhei com o Luís Rey e com o Kurt Kloetzel, em esquistossomose, durante a graduação. Eles me davam umas tarefazinhas e eu participava, o que era mais importante, das reuniões do departamento. Mais adiante comecei a trabalhar com Luiz Hildebrando. Ele estava fazendo a tese de livre-docência e ajudei um pouco. Luiz não fez doutorado, foi direto para a livre-docência, algo permitido na época. Me formei achando que devia aprender um pouco mais de bioquímica e fiz um estágio de dois anos com o Sebastião Baeta Henriques, no Instituto Butantan. Nesse período conheci o Leônidas Deane, figura importantíssima – talvez a mais importante do nosso grupo, embora não a mais famosa –, respeitadíssimo por todos nós. Era o guru depois do Samuel Pessôa. Samuel era hors concours, pela atuação acadêmica, política e social. Era nosso referencial. Mas depois dele era o Deane, que assumiu a cátedra por um ano na Parasitologia, conseguiu uma vaga e me levou para lá. Fiquei como auxiliar de ensino. Isso foi em

1962 e foi aí que eu comecei o trabalho do meio de cultura LIT, publicado em 1964. Depois do golpe militar de 31 de março de 1964 fomos cassados pelo Ato Institucional nº 1. Eu, Hildebrando, Thomas Maack, Pedro Saldanha... Foram cinco ou seis da medicina. Eu tinha todos os dados da pesquisa acumulados e pretendia trabalhar devagar. Com a cassação, decidi acabar e comecei a trabalhar 24 horas por dia no artigo do LIT, com muita dificuldade porque era meu primeiro artigo e eu não sabia como é que se fazia isso. Hildebrando e Victor já tinham saído e quem me ajudou a montar o paper foi o Michel Rabinovitch. Como era a atividade política na Faculdade de Medicina? Samuel Pessôa assumiu o Departamento de Parasitologia em 1931, como catedrático. Catedrático era intocável e ele podia se dar ao luxo de ser comunista numa instituição extremamente conservadora como era a Faculdade de Medicina. O espírito de corpo prevalecia sobre as convicções políticas. Samuel sempre procurou fazer uma medicina ligada aos problemas sociais. O que ele queria era resolver o problema do povo brasileiro. Não estou exagerando, era ele quem dizia isso. Foi candidato do Partido Comunista, era amigo do Luís Carlos Prestes e tinha um carisma e uma atuação além da faculdade. Dona Jovina, a mulher dele, era uma ideóloga, até mais comunista do que ele. Pessoalmente eram pessoas agradabilíssimas, cativantes, simpáticas. Isso trazia grande união ao grupo. Eu, embora fosse garoto, acabei ao longo dos anos ficando amigo do Samuel. Não era só relação professor-aluno. Íamos tomar caipirinha no Riviera, um bar na esquina da avenida Paulista com a Consolação, que mais tarde veio a ser muito frequentado pelo pessoal de esquerda. Dona Jovina ficava brava. Quando se aposentou, ele foi trabalhar no Instituto Butantan. De graça.

A Parasitologia tinha vários comunistas e era conhecida como Departamento Vermelho

Vocês chegaram a ser presos? Ele foi várias vezes. Antes e depois de 1964. Eu fui quando voltei dos Estados Unidos, em 1969. O delegado Sérgio Paranhos Fleury surtou e montou a Operação Tarrafa, no jargão da repressão, para prender intelectuais de esquerda. Provocação pura. Com o golpe militar em 1964, os docentes da PESQUISA FAPESP 204 | 25


Parasitologia ficaram visados. Aquelas reuniões científicas, extremamente interessantes, foram classificadas como reuniões subversivas. Num certo sentido elas até eram. Na ciência experimental, quando queremos descobrir coisas novas, é necessário ir contra o conhecimento estabelecido. E a Faculdade de Medicina, extremamente conservadora, vivia do conhecimento estabelecido, da erudição. Aquele grupo de que falei era realmente a antierudição, era o grupo da criação. Nesse sentido fomos subversivos. Mas, a rigor, ninguém tinha atividade partidária, comunista. Nós nos encontrávamos na Maria Antonia. Conhecia o pessoal todo, conversávamos muito. Às vezes, apareciam o Fernando Henrique Cardoso, o Florestan Fernandes, o Mário Schenberg, o Vilanova Artigas, um grupo qualificado de intelectuais que admirávamos. O senhor saiu do país preventivamente? Depois de 1964 houve um Inquérito Policial Militar, o IPM, que se instalou na Faculdade de Medicina. Em uma sala ficavam um militar e dois auxiliares interrogando a gente. Na Medicina de Ribeirão Preto isso não aconteceu. O diretor José de Moura Gonçalves era uma figura espetacular – foi meu orientador simbólico de doutorado– e não deixou o IPM ser feito na faculdade. Disse que, se quisessem fazer, teria de ser na delegacia. Na Faculdade de Medicina daqui foi o contrário, o inquérito foi muito bem acolhido pela direção. Passaram três meses lá interrogando todo mundo. Gerou um ambiente muito ruim. Mas, ainda assim, nesse período tivemos algumas surpresas. Como éramos visados, principalmente na Parasitologia, vários amigos próximos se afastaram, nem falavam conosco. Já outros que eram distantes vinham se oferecer para ajudar. Saí do país porque o IPM nos acusou formalmente perante o Tribunal Militar e, em breve, seríamos julgados. Nessa altura, um pesquisador americano, Walter Plaut, me convidou para ir para Madison, em Wisconsin, nos Estados Unidos. Fui embora antes do julgamento, no qual todos foram absolvidos. Fui para Wisconsin com um bom salário.

Mais de 200 pessoas foram ao meu concurso para titular da USP, como forma de desagravo

Qual foi a surpresa que ocorreu nessa época? Nesse período, entre sermos demitidos pelo Ato nº 1 e irmos embora, ficamos sem salário. Eu ti26 | fevereiro DE 2013

nha mulher e três filhos, o Hildebrando também. Um grupo de pessoas – não vou dizer quais – se organizou para coletar dinheiro e pagar o nosso salário. O líder desse grupo era um militante da União Democrática Nacional, a UDN, partido muito conservador. Recebemos nesse período o salário integral graças à ajuda de colegas da universidade que nem sabíamos quem eram. Tempos difíceis sempre trazem essas surpresas. Por exemplo, o Moura Gonçalves era uma pessoa honradíssima, mas não tinha nada de esquerda. Ele não só evitou que o IPM fosse feito dentro da faculdade de Ribeirão Preto como nos ajudou quando foi editado o AI-5, logo depois que Hildebrando e eu voltamos do exterior, em 1969, e estávamos prestes a começar a trabalhar em Ribeirão. O Moura me deu, em segredo, o salário integral dele para comprar as passagens para a família do Hildebrando sair do país outra vez. Como foi sua passagem pelos Estados Unidos? Foram cinco anos muito bons. Eu queria continuar as pesquisas com Trypanosoma cruzi, mas o laboratório em que eu estava era de citologia e não permitiam estudos com agentes patogênicos. Tive de inventar outro sistema e fui trabalhar com um fungo aquático de lá. Pude fazer uma bioquímica decente. Me associei ao grupo do professor Jack Strominger, que descobrira o mecanismo de ação da penicilina, onde estavam meus amigos Carl Peter von Dietrich e Julio Pudles. Trabalhamos juntos na síntese da parede do meu fungo, constituída por quitina. Juntos, descobrimos o mecanismo de síntese da quitina. Foi um trabalho importante, citado até hoje. E por que o senhor decidiu voltar em 1969, quando o regime estava se fechando? Aparentemente não estava se fechando. O governo fez um programa de reintegração de cientistas e nos convidaram, o Hildebrando e a mim, para voltar, com vantagens. Quem coordenava era o Paulo de Góes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Por isso viemos. Mas, quatro meses depois, veio o AI-5. Ficou claro que havia conflitos dentro do regime. Sem emprego na universidade fui para a atividade privada. Trabalhei na Editora Abril a convite do Pedro Paulo Popovic, um intelectual no sentido do termo, com muito prestígio junto aos Civita, donos da editora. Ele levou muita gente de esquerda para lá. No meu caso, fui fazer a Enciclopédia Médica e Medicina e Saúde. Os artigos vinham da Itália e nós ajeitávamos para publicação aqui, colocando informações de doenças brasileiras. Também trabalhei no laboratório de análises Lavoisier. Vivi uns dois anos assim e ganhei mais do que ganharia em 10 anos de academia. Mas eu queria mesmo era voltar para a universidade.


Foi quando veio o convite da Unifesp? Nesse período em que fiquei na Abril e no Lavoisier trabalhei também no Instituto de Gastroenterologia do professor José Pontes. Montei lá o laboratório de análise e pesquisa. Quando estava no instituto, o professor Leal Prado me convidou para ir para a Escola Paulista de Medicina, EPM, a atual Unifesp. Tinham criado o curso de Ciências Biomédicas e me chamaram para ser professor na Microbiologia e Parasitologia. Achei formidável, mas avisei o professor Leal dos problemas com o AI-7, que impedia quem havia sido cassado de assumir cargo público. Ele disse para conversar com o diretor. Aí tive outra daquelas surpresas. O diretor era o Horácio Kneese de Mello, que simplesmente me contratou porque ele dizia não ser obrigado a obedecer a ato institucional nenhum. Fui para a EPM e comecei como assistente, logo depois passei a adjunto e depois titular.

Para pesquisar malária vi que teríamos de ir a Rondônia e não ficar apenas em São Paulo

E quando concluiu o doutorado? A pós-graduação como existe hoje foi criada em 1967. E eu fiquei entre fazer o doutorado antigo e o novo. Optei pelo antigo, em que só era preciso escrever uma tese. Como tinha meus trabalhos dos Estados Unidos, foi só organizar isso e arrumar com meu orientador pro forma, o professor Moura Gonçalves.

Quanto tempo passou na Escola Paulista? Fiquei 15 anos lá. Quan­ do cheguei, a Parasitologia estava numa fase ruim. Contratei bioquímicos e biólogos, mas não contratei nenhum parasitologista, para mudar um pouco o feitio do departamento. O pessoal que foi para lá trabalhou bastante, ganhou projeção nacional. Hoje é pequeno, mas espetacular cientificamente. Isso foi algo importante na minha carreira: a recuperação do departamento e a criação do curso de pós-graduação em Microbiologia, Parasitologia e Imunologia da Escola Paulista, junto com Luiz Trabulsi e Nelson Mendes. É um curso que é nota 7 na Capes desde o começo.

Por que decidiu sair? Na EPM a Parasitologia tinha três ou quatro docentes e não podia crescer. Na USP o departamento congregava umas oito faculdades com um corpo docente de 20 a 25 professores. A di-

ferença era enorme. Voltei para a USP a convite de Flávio Fava de Morais, que era diretor do Instituto de Ciências Biomédicas, o ICB. Todo mundo entendeu as razões da volta para a USP e me apoiou. O concurso foi muito bonito. Devia ter umas 200 pessoas assistindo, o que é raríssimo. Normalmente o concurso para professor titular tem no máximo umas 20. No meu ocorreu uma espécie de desagravo. Veio gente de todas as áreas da universidade. Quando cheguei o reitor era o Hélio Guerra Vieira e o José Goldemberg veio em seguida. Goldemberg perguntou o que era preciso para mudar o departamento e me deu todo o apoio. Contratei oito ou nove docentes, conseguimos comprar máquinas e material. Demos um salto. Rapidamente a produção científica passou de 0,2 artigo por ano por docente para 4 artigos. Na mesma época mudou o regimento da universidade e foi criado o cargo de pró-reitor de Pesquisa, entre 1989 e 1990, cargo pra o qual o Goldemberg me indicou. Fui o primeiro pró-reitor de Pesquisa da USP. O Roberto Leal Lobo sucedeu o Goldemberg. A pedido de Lobo, continuei no cargo de pró-reitor. O senhor remodelou o departamento e montou a Pró-reitoria ao mesmo tempo? Sim, foi uma época de muito trabalho. Mas como tinha gente muito boa aqui no departamento, não precisava ficar tutelando meus colaboradores. O que me deu muito trabalho foi gerir, na gestão do Goldemberg e depois na do Lobo, um empréstimo grande no Banco Interamericano de Desenvolvimento para a universidade. Com todas essas atividades de gestão, como ficou o trabalho de laboratório? Eu sempre continuei trabalhando com meu pessoal. Minha produção caiu, claro, mas não zerou, nunca. Após minha saída da chefia do departamento, fui para o Instituto Butantan como diretor e depois para o CNPq. No meu período do Butantan não teve crise, foi um ano tranquilo. Como sou membro do conselho, tive depois de assumir a presidência outras duas vezes para acalmar as coisas em momentos de crise. Mas foram só dois meses em cada vez. E a ida para o CNPq? Fui no início do primeiro governo de Lula. No começo foi meio complicado porque havia uma rejeição grande ao ministro da Ciência e Tecnologia, Roberto Amaral. O CNPq estava sem dinheiro e não pagava os auxílios que tinha concedido. Para a surpresa de todos nós, Lula nos deu todo o apoio. Quando o Roberto conseguiu uma verba, a primeira coisa que fiz foi pagar todas as dívidas do CNPq, porque não ia ter credibilidade com a comunidade científica se não pagasse. Depois eu pensaria nos projetos futuros. Foi uma boa estraPESQUISA FAPESP 204 | 27


tégia. Ao fim, o ministro Roberto Amaral revelou-se um grande ministro, sensível e competente. Deu-me todo o apoio. Somos amigos até hoje. A Plataforma Lattes é de sua gestão? Ela já funcionava antes apenas off-line. Era necessário baixar o programa para preencher os dados e enviar de volta. Era complicadíssimo. Simplificamos o processo e colocamos on-line. Foi em 2004, logo depois que cheguei lá. Naquele período também criamos a Plataforma Integrada Carlos Chagas, para uso dos pesquisadores e contato com o CNPq. Antes do CNPq o senhor passou um período pesquisando em Rondônia. Como foi essa experiência? Foi importante. Antes de trabalhar lá, nos anos 1980 fiz um pós-doc no Instituto Pasteur para aprender mais sobre biologia molecular. Na época, pensava em qual seria o grande problema das doenças parasitárias naquele momento no Brasil. O mal de Chagas já tinha sido praticamente controlado. Concluí que o problema maior era a malária em consequência da decisão do governo militar de promover a ida de pessoas do sul para a Amazônia. Houve um aumento da incidência de casos, de 1 milhão a 1,5 milhão de casos por ano, só em Rondônia. Quando vim para o departamento na USP, vi que não poderíamos esquecer a malária. Tínhamos de ter um projeto de campo. Montamos um projeto para a Amazônia e aproveitamos a experiên­cia do professor Marcos Boulos, que dirigia um núcleo de pesquisa em Rondônia. Propus ao Hildebrando, na época no Pasteur de Paris, um projeto a ser desenvolvido em conjunto. Se fosse preciso faríamos a biologia molecular no Pasteur e no meu laboratório, mas o campo teria de ser feito em Rondônia. Fui em 1982 e o projeto aconteceu em 1990. O projeto foi bancado em parte pela Organização Mundial da Saúde, pela Finep – para montar a estrutura em Rondônia –, e mais tarde viemos a fazer um Pronex para Rondônia. A ideo­ logia desse processo era “precisamos participar do programa de saúde nacional e a melhor coisa é trabalhar com malária”. Havia duas coisas a fazer. Uma era entender melhor a epidemiologia da doença, e publicamos muitos trabalhos sobre o tema. A segunda era usar a biologia molecular

Avaliar ciência pelo impacto é algo perigoso porque a medida é feita em áreas diferentes

28 | fevereiro DE 2013

para esclarecer muitos aspectos inexplorados da doença. Foi um projeto muito bem-sucedido. As condições no início eram precárias. Como sempre, é difícil trabalhar na Amazônia, mas conseguimos montar o projeto aos poucos. Nessa ocasião, meu filho Luís Marcelo e o Marcelo Urbano Ferreira, hoje chefe do Departamento de Parasitologia da USP, prestaram concurso para o departamento e foram alocados no projeto em Rondônia. Luís Marcelo está lá até hoje. Vocês montaram um posto avançado em Porto Velho? Havia o Cepem [Centro de Pesquisa em Medicina Tropical], do governo de Rondônia, que funcionava em um hospital de Porto Velho. Nós começamos a trabalhar lá, era nossa sede. Num determinado momento, entramos mais para o interior. O [Luís] Marcelo foi para Monte Negro e Hildebrando continuou em Porto Velho. Hildebrando montou uma fundação da qual sou conselheiro. A segunda doença importante da Amazônia, entre as parasitárias, é a leishmaniose. Mesmo assim não tinha um único serviço em Rondônia para atender pessoas com esse mal. Montamos um serviço em Monte Negro e já atendemos mais de 5 mil pessoas, porque vem gente de todo o estado. É um braço oficial do ICB. Em paralelo a esse serviço de assistência, continuamos a produzir ciência e publicamos anos atrás um artigo muito importante sobre malária assintomática. Por que a malária assintomática é importante? Pensávamos que o grande responsável pela disseminação da malária era o garimpeiro. Quando eles chegavam a uma região nova, todos pegavam malária. Mas não eram os garimpeiros que levavam a malária, era o contrário. Eles se misturavam com uma população que tinha malária e contraíam a doença. Não sabíamos disso porque não se sabia que aquelas pessoas da comunidade ribeirinha estavam infectadas. Eram assintomáticas e viviam normalmente. Elas desenvolviam uma resistência ao plasmódio depois de ter muitas vezes a doença. Não é uma resistência estéril. Elas pegavam a doença, mas uma forma atenuada. O programa de combate à malária recomenda o tratamento do sujeito que está com malária. Pegou malária? Trata. Só que o melhor é tratar o sujeito que não tem a doença, porque ele é o reservatório da malária. O Hildebrando mostrou claramente numa região de Porto Velho que, tratando os assintomáticos, a malária voltou enfraquecida no ano seguinte. Quando se trata é possível eliminar o parasita do sangue? Completamente. Zera, mas depois a pessoa pode pegar outra malária.


O senhor acredita em vacina? Produzir uma vacina não será fácil, principalmente por causa do polimorfismo do plasmódio. Tanto quanto o Victor e a Ruth Nussenzweig, acredito que uma vacina virá, mas não sei quando. E sobre o mal de Chagas? Depois da Segunda Guerra Mundial, surgiu o DDT e começou-se a pulverizar as casas para eliminar o barbeiro. Em 1960, a doença de Chagas tinha praticamente desaparecido do estado de São Paulo, mas ainda era muito comum no restante do país. Nos anos 1970, começamos a ter reuniões em Caxambu sobre doença de Chagas, em função do Programa Integrado de Doenças Endêmicas, o Pide, financiado pelo CNPq. As reuniões envolviam todos os que trabalhavam com Chagas. Isso criou uma consciência na comunidade científica da importância da doença. Os resultados foram ótimos. Pesquisadores que faziam ciência básica se conscientizaram da importância da doença de Chagas para o país e acabaram convencendo o governo militar do João Figueiredo a criar um programa nacional de combate à doença, que acabou praticamente com sua transmissão domiciliar em poucos anos e por menos de US$ 100 milhões. Hoje o programa está sendo adotado por todos os países da América Latina. O Brasil produz 2,3% de toda a ciência mundial. Mas essa produção ainda não tem muito impacto. A média de citação de trabalhos brasileiros é baixa. Como melhorar isso? Vamos pegar a parasitologia brasileira. Hoje ela oscila entre a segunda e a terceira mais produtiva no mundo. O primeiro lugar é dos Estados Unidos, claro. O segundo é da Inglaterra. O terceiro, a gente disputa com a França. A parasitologia é a ciência brasileira de topo. Porém, o público de parasitologia no mundo é muito pequeno, comparado com o público do câncer, por exemplo. Os trabalhos de parasitologia ou de moléstias infecciosas têm impacto pequeno porque esse impacto é medido pelo número de leitores, e não pela qualidade intrínseca do trabalho. Julgar e avaliar ciência pelo fator de impacto é algo muito perigoso porque se comparam áreas muito diferentes. E suas pesquisas hoje? O que o senhor faz? Vamos ver se vocês descobrem. Dengue? Não. Esquistossomose? Não. Voltei aos meus tripanossomas, aqueles sem importância médica. Hoje pertenço a uma equipe que estuda tripanosomas de animais silvestres e de insetos. Estudamos a biodiversidade e as relações filogenéticas desses tripanossomas. Trabalhamos e coletamos material em todo o mundo: no Brasil, nas Américas e em Madagascar, na África. O Samuel Pessôa fez a mesma coisa. Depois que se aposentou foi para o Butantan e passou a estudar

malária de cobra. Nós também temos estudado tripanossomas de jacarés, cobras, macacos, roedores, e, sobretudo, de insetos e morcegos. O senhor está tentando traçar a história evolutiva desses parasitas? Sim. Com o uso de técnicas moleculares, temos tentado traçar a história evolutiva dos tripanossomas. Vou dar um exemplo. Existe um tripanossoma, o T. erneyi, descrito pela professora Marta Teixeira, que parasita morcegos da África. Na África, os parasitas do gênero Trypanosoma causam a doença do sono; aqui, causam a doença de Chagas. Os continentes se separaram há mais ou menos 100 milhões de anos. A pergunta é: como o Trypanosoma cruzi apareceu nas Américas? Ele não é o mesmo que o africano. É diferente. A hipótese era que os dois existiam no antigo supercontinente Gondwana e que, quando de sua divisão, um ficou para lá e outro para cá. Agora que começamos a estudar Trypanosoma de morcegos do Brasil, da África, da Europa, encontramos nos morcegos da África um tripanossoma igualzinho ao nosso, da doença de Chagas. Pesquisadores ingleses, junto com a professora Marta Teixeira, já publicaram um artigo criando uma hipótese novíssima. O Trypanosoma (Schizotrypanum) erneyi seria o T. cruzi da África que provavelmente veio para cá em algum momento trazido por morcegos. A estimativa é que isso tenha ocorrido entre 20 milhões e 15 milhões de anos atrás, quando os continentes já estavam separados. Outro exemplo do que andamos fazendo diz respeito aos tripanossomas de jacarés e crocodilos. Há cerca de 10 milhões de anos o gênero Crocodylus surgiu na Indochina, na Indonésia e atravessou o oceano Pacífico, vindo parar na América. No Amazonas esses répteis se encontraram com o nosso jacaré, do gênero Caiman, e daí foram para a África. Nossos estudos com tripanossomas de jacarés e crocodilos mostram que durante sua passagem pelas Américas jacarés e crocodilos trocaram tripanossomas. Hoje os tripanossomas de jacarés e crocodilos são muito parecidos, quase gêmeos. Esses estudos têm me dado muito prazer intelectual. Circulo entre o mundo e nosso laboratório, sem outro compromisso que o da própria pesquisa. Não há falta de recursos: temos apoio do CNPq, pelo Pró-África, da FAPESP e da USP. Continuo trabalhando e é um prazer. Gosto de fazer ciência e não preciso mais pensar em carreira. n

Hoje pertenço a uma equipe que estuda tripanossomas de animais silvestres e de insetos

PESQUISA FAPESP 204 | 29


política c&T  comunicação da ciência y

Conhecimento

ilhado Economias emergentes registram autocitação nacional excessiva e chamam atenção para os efeitos do isolamento

S

e alguém um dia disser que a China, o Brasil ou o Irã são ilhas, demonstrará pouca ou nenhuma familiaridade com conceitos básicos da geografia. No campo da cienciometria – ramo que estuda elementos quantitativos da produção científica – a afirmação, no entanto, não soa estranha. Os três países citados, entre outros, tornaram-se ilhas num mar de publicações e citações acadêmicas. O fenômeno tem sido chamado de scientific insularity (insularidade científica) e ocorre quando o nível de autocitação nacional encontra-se acima da média em um país, isto é, quando boa parte das citações recebidas é feita por pesquisadores do próprio país. As causas vão desde uma agenda científica voltada mais para temas localizados até o precário ensino das práticas metodológicas em universidades. Uma pesquisa publicada no ano passado pela revista Scientometrics lança novo olhar sobre o problema ao sugerir que características políticas e geográficas, como a extensão

30  z  fevereiro DE 2013

territorial do país, exercem forte influência nos índices de autocitação nacional. “Países grandes têm mais chances de desenvolver tradições de pesquisa e redes acadêmicas independentes, principalmente quando há um grande número de grupos potencialmente ligados entre si”, explica Richard Ladle, autor principal do estudo e pesquisador sênior associado da Universidade de Oxford. Já cientistas de países pequenos acabam sendo forçados a colaborar e estabelecer diálogo com colegas de outros países, o que amplia o número de citações estrangeiras. Para chegar a essa constatação, Ladle e sua equipe, que inclui a esposa brasileira Ana Malhado, do Instituto de Ciências Biológicas e da Saúde da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), analisaram informações sobre números de publicações e citações por países, disponibilizadas entre 1996 e 2010 pelo SCImago, portal de indicadores científicos amparado pelo banco de dados Scopus.

ilustração  larissa ribeiro

Bruno de Pierro


Países do chamado Brics (Brasil, Índia, China e Rússia), junto com outros casos particulares, como o Irã, têm registrado elevados índices de autocitação nacional, provocando o chamado isolamento científico

A pesquisa revelou que o grupo de campeões em autocitação nacional reúne países com grande extensão, como os Brics (Brasil, Rússia, Índia e China), e aqueles que constituíram, ao longo da história, sistemas políticos fechados, destacando Irã e Cuba, além de ex-integrantes do bloco soviético (Sérvia, Ucrânia e Polônia). Países com menores níveis de autocitação são, na maioria, aqueles com pequeno território, mas alta proporção de programas de pós-graduação ministrados em inglês, como Israel, Dinamarca, Cingapura e Emirados Árabes Unidos. Enquanto a China registrou, no período analisado, 51% de autocitações, do total de citações que o país recebeu, apenas 15% eram de artigos de Israel feitos por autores do próprio país. A influência que a área territorial exerce sobre a autocitação nacional está atrelada a outros fatores. Índices elevados de autocitação nacional em países grandes e desenvolvidos, como os Estados Unidos, com taxa de 47%, são esperados. O país

produz o maior volume de pesquisas no mundo, geralmente com artigos de alto impacto; portanto, espera-se que seus papers sejam muito citados. O Brasil, que apresenta índice de autocitação nacional alto e crescente, também é um país grande, mas menos desenvolvido, o que significa que as causas são distintas das dos Estados Unidos. Para se fazer compreender melhor, Ladle compara a Inglaterra, seu país de origem, com o Brasil, onde trabalha, desde 2009, como professor visitante no mesmo departamento da esposa na Ufal. “Uma das diferenças que notei é o baixo número de professores e alunos estrangeiros aqui e o considerável número de instituições acadêmicas na Inglaterra”, conta. Nos tempos de professor em Oxford, Ladle chegou a registrar 70% de alunos estrangeiros em seu curso. Dos colegas de departamentos, 50% eram acadêmicos vindos de várias partes do mundo. “Os cientistas ingleses escrevem principalmente para revistas internacionais e são, portanto, obrigados a ‘vender’ seus pESQUISA FAPESP 204  z  31


Exemplos pelo mundo Taxas de autocitação nacional com base em artigos indexados ao Scopus entre 1996 e 2011 Países

Citação total

Autocitação nacional

China

9.288.789

5.014.506

54%

114.546.415

54.226.872

47%

657.186

269.132

41%

Índia

3.860.494

1.335.686

34%

Brasil

2.884.793

965.615

33% 30%

Estados Unidos Irã

Porcentagem

Rússia *

2.811.862

837.763

Japão *

18.441.796

5.520.032

30%

2.149.143

571.333

26%

Polônia * Alemanha *

23.229.085

6.171.727

26%

Inglaterra

27.919.060

6.703.673

24%

Argentina

1.027.553

230.483

22%

592.148

115.648

19%

Chile Holanda

8.928.850

1.524.755

17%

Suécia

6.111.804

1.005.775

16%

Israel

3.283.119

483.335

14%

*Obs.: Alguns países podem apresentar índices semelhantes, mas isso não significa que as causas sejam as mesmas. Embora tenha a mesma taxa de autocitação da Rússia, o Japão indexou mais artigos ao Scopus - 1,6 milhão, diante de 527 mil papers russos. Além disso, cada artigo japonês recebeu 11,5 citações em média, enquanto a Rússia teve apenas 5,3 citações por artigo. Assim, a interpretação dos dados não pode levar em conta apenas o índice de autocitação isolado, mas todo o contexto por trás das atividades de cada país. Fonte Scopus

trabalhos à comunidade internacional logo no início da carreira”, acrescenta. Essa preferência pelos periódicos de prestígio internacional, a despeito dos nacionais, é uma característica comum das nações que fazem questão de cortar o cordão umbilical que conecta um paper à mãe-pátria. De 2006 a 2011, os artigos da Suécia receberam mais de 6 milhões de citações, dos quais apenas 1,06 milhão são autocitações. A diferença entre a Suécia e a China está no que se pode chamar de “milagre da multiplicação” dos periódicos científicos. No Scopus, a China tem indexadas 537 publicações e a Suécia se satisfaz com apenas 49 publicações no banco de dados. “Quanto mais revistas científicas um país tiver, mais autocitação receberá”, explica Rogério Meneghini, coordenador científico da biblioteca virtual Scientific Electronic Library Online (SciELO), que também chama a atenção para as diferenças entre os sistemas adotados pelos bancos de dados internacionais mais reconhecidos. O Web of Knowledge, da Thomson Reuters, é o mais tradicional e tem cerca de 12 mil periódicos indexados. O concorrente Scopus, da Elsevier, chega a 23 mil publicações, revelando, portanto, um sistema de seleção menos exigente. A disputa pelo mercado entre ambos cria condições favoráveis para que publicações de baixo prestígio internacional sejam incorporadas rapidamente. 32  z  fevereiro DE 2013

5 mil

é o número estimado de periódicos brasileiros

A eclosão de novos periódicos em alguns países tem por trás motivações políticas e de mer­cado. Na contramão da tendência mundial, em que a questão nacional vem deixando de ser o principal elemento de classificação de qualidade, países em desenvolvimento têm sido tratados como verdadeiras “ilhas do tesouro perdido” por parte das grandes editoras de publicações científicas. “Hoje quem está tomando conta do mercado de revistas científicas são os publishers comerciais, como a Elsevier e a Springer, cuja margem de lucro chega a 45%”, diz Meneghini, ao salientar que os maiores alvos de investimentos têm sido a China e o Brasil, entre outros. “A Suécia considera mais relevante ter pesquisadores atuando como editores-chefes de importantes publicações internacionais, ditando os rumos da ciência no mundo, do que simplesmente ter um número alto de periódicos nacionais”, completa. internacionalização de periódicos

No Brasil, a razão da alta produção de periódicos é simples: dar vazão à produção científica que não encontra lugar em revistas internacionais. “Temos um número extremamente alto de periódicos, algo em torno de 5 mil (não há uma contagem exata de quantos sejam), o que demanda sempre novos artigos”, diz Meneghini. O problema, segundo ele, é que muitas instituições nunca estiveram preparadas para publicar artigos, mas como desejam inaugurar cursos de pós-graduação a edição de um periódico pode contar pontos na avaliação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). “A publicação que aqui é considerada referência e apresenta artigos de excelente qualidade no exterior pode ter a importância reduzida quando levado em conta seu índice de citação nacional”, afirma Gilson Volpato, professor do Instituto de Biociências da Unesp em Botucatu e autor de livros sobre redação científica. Um exemplo lembrado por ele é o da Revista Brasileira de Zootecnia, editada pela Sociedade Brasileira de Zootecnia. Embora ainda bem classificada pela avaliação Qualis da Capes, a publicação foi praticamente congelada no Journal Citation Reports (JCR), ligado ao Web of Knowledge, ao atingir taxas altíssimas de autocitação nacional. O conjunto de publicações brasileiras que foram, em 2011, suprimidas do Journal Impact Factor, ligado ao JCR, inclui ainda as revistas Planta Daninha, Revista Brasileira de Farmacognosia e Revista Ciência Agronômica, por terem desenvolvido padrões anômalos de citação, provocando distorções em seus fatores de impacto. O índice de autocitação da CA, A Cancer Journal for Clinicians, uma das principais publicações médicas, editada pela American Cancer Society, é de 0,029%, e seu fator de impacto, segundo o


Insularidade em periódicos brasileiros Taxas de autocitação nacional em publicações nacionais em 2011 Alto índice de autocitação

Porcentagem

Fonte  homson Reuters – Journal Citation Reports

Baixo índice de autocitação

Porcentagem

Revista Brasileira de Política Internacional

76%

Revista Brasileira de Psiquiatria

9%

Anais Brasileiros de Dermatologia

60%

Revista de Saúde Pública

8%

Revista Brasileira de Oftalmologia

57%

Brazilian Journal of Infectious Diseases

5%

Revista Brasileira de Cirurgia Cardiovascular

56%

Brazilian Journal of Chemical Engineering

2%

Pesquisa Veterinária Brasileira

50%

Brazilian Journal of Medical and Biological Research

1%

Natureza e Conservação

47%

Brazilian Journal of Physics

1%

JCR, é de 101. As conhecidas Nature e Science apresentam autocitação de 0,158% e 0,136% e fatores de impacto 36 e 31, respectivamente. Alguns exemplos de mecanismos para dar maior projeção aos trabalhos realizados em seu campus podem ser encontrados nas universidades de São Paulo (USP) e Estadual de Campinas (Unicamp). Nos últimos três anos, ambas passaram a investir na realização de workshops para discutir ferramentas de escrita de teses e papers e metodologias para a apresentação de dados e resultados. “Refletimos sobre como melhorar a redação em inglês e as práticas de citação, e criamos estratégias para a internacionalização de nossas publicações”, afirma Sueli Mara Soares Pinto Ferreira, coordenadora do Sistema Integrado de Bibliotecas da Universidade de São Paulo (SIBi-USP), que reúne 104 periódicos produzidos na USP. “Quanto A Unicamp mantém, desde 2008, o Esmais revistas paço da Escrita, com o objetivo de apoiar a tradução de artigos científicos para outros científicas um idiomas. O primeiro workshop organizado na Unicamp, em 2010, contou apenas com país tiver, mais a participação de 57 pessoas. Em 2012, o número havia saltado para 800. Há, ainda, autocitação um projeto em andamento para criar um ele receberá”, repositório para os 44 periódicos editados pela universidade. “O repositório deve codiz Rogério meçar a receber as primeiras publicações ainda neste primeiro semestre, e futuraMeneghini mente será vinculado a um repositório maior hospedado no site do Conselho de Reitores das Universidades Estaduais de São Paulo (Cruesp)”, explica Ronaldo Pilli, pró-reitor de Pesquisa da Unicamp. “Quando realizei o doutorado em Oxford, meu projeto inicial de descrever padrões de morfologia de folhas da Amazônia foi completamente desconstruído”, relata Ana Malhado, coautora da pesquisa. Segundo ela, foi preciso desenvolver hipóteses e adotar uma nova abordagem muito mais afinada com a literatura mundial. Muitos estudantes e pesquisadores parecem preferir escrever um artigo descritivo para um periódico

nacional do que usar os mesmos dados para tratar importantes temas de forma global, generalizante. O depoimento de Malhado reforça como a insularidade pode dificultar a vida de muitos brasileiros que pretendem estudar no exterior. “Todos os países têm um nível de autocitação nacional considerado saudável, porque seus cientistas devem tratar de interesses do país”, pondera a pesquisadora. Para ela, o principal ponto que merece ser destacado é que desenvolvedores de políticas públicas devem ficar mais atentos para a insularidade com a finalidade de refinar as agendas de pesquisa em todos os níveis. No Brasil, as áreas agrícola e de saúde pública são bons exemplos de setores que se voltam para o local, mas que, ao mesmo tempo, produzem artigos reconhecidos internacionalmente. “Muitos países estão interessados em saber como o Brasil driblou uma situação climática ou de solo para determinada cultura vegetal. Trata-se de utilizar dados locais para depois generalizá-los”, afirma Meneghini. Como exemplo, Volpato menciona o educador Paulo Freire (1921-1997), que estudou a alfabetização de adultos e ficou conhecido internacionalmente ao desenvolver, com dados locais, conceitos globais. “Não fazer isso é uma questão de fragilidade na postura científica de nossos pesquisadores”, conclui. Outra medida para que a insularidade seja evitada é a contratação de professores estrangeiros, como Ladle. A própria pesquisa do casal é exemplo de como a parceria entre pesquisadores de diferentes países pode atribuir ao trabalho o desejável caráter global, e, em alguns casos, mostrar que a superação das fronteiras nacionais também pode render frutos para além dos interesses científicos. Pais de primeira viagem, Ladle e Malhado concederam entrevista à revista Pesquisa FAPESP numa semana atrapalhada, logo após assistirem ao nascimento da filha, a pequena Jasmine. n

Artigo científico LADLE, R. J. et al. Assessing insularity in global science. Scientometrics. 28 mar. 2012. pESQUISA FAPESP 204  z  33


amazônia y

As novas terras

das cidades Economistas, arquitetos e geógrafos querem ajudar na gestão de municípios do Pará Carlos Fioravanti, de Belém

E

m 2010, professores e estudantes da Universidade Federal do Pará (UFPA) ajudaram os moradores da ilha de Murutucum, próxima a Belém, a voltar a produzir bolsas, mochilas e calçados impermeabilizados com o látex de seringueiras que não eram exploradas há mais de um século. Professores e pesquisadores da UFPA estão agora olhando mais longe, desta vez com o propósito de mapear, entender e ajudar a gerir as cidades de um estado com uma área quase três vezes maior que a da França. “Queremos auxiliar os municípios a resolver problemas e a construir seus planos de ação”, disse Fábio Carlos da Silva, diretor adjunto do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (Naea) e secretário executivo da Incubadora de Políticas Públicas da Amazônia (Ippa), que reúne universidades, órgãos do governo, organizações não governamentais e empresas de nove estados da Amazônia. Uma das ações previstas para este ano são cursos de administração pública para prefeitos e vereadores.

34  z  fevereiro DE 2013

“Não conhecíamos quase nada do interior do Pará”, observou a arquiteta Ana Claudia Duarte Cardoso, pesquisadora da UFPA e do Instituto Tecnológico Vale (ITV). Em 2004, pouco depois de voltar do doutorado na Inglaterra, ela participou de um grupo de pesquisadores que percorreu 14 cidades do estado para ajudar na elaboração do plano diretor, que seria exigido a partir de 2006 para municípios com 20 mil habitantes. “Vimos que o problema era mais profundo”, ela constatou. “Muitos municípios não conseguiam fazer os planos diretores porque não tinham informação sobre seu território, nem diagnósticos de suas necessidades e potencialidades, nem cartografia.” Em julho de 2012, Ana Claudia voltou à região de Marabá, agora como uma das coordenadoras do Urbis Amazônia, um projeto de pesquisa implantado em 2011 com um financiamento de R$ 2,3 milhões do ITV de Belém e da Fundação Vale para se conhecer melhor os processos de formação e evolução do espaço urbano na Amazônia.

Fogo à vista: motoqueiros atravessam a rodovia PA-239 coberta por fumaça de incêndios em pastos na região de São Félix do Xingu, em agosto de 2010


Um estado dividido Urbis deve analisar os fenômenos urbanos em três regiões do Pará

Altamira

Santarém

foto  Apu Gomes / Folhapress  mapa daniel das neves

Itaituba

Pará

URBIS-2 URBIS-1

URBIS-3

Marabá Parauapebas Canaã dos Carajás São Félix do Xingu

Novo Progresso

Fonte  Inpe / Urbis

pESQUISA FAPESP 204  z  35


URBANIZAÇãO ACELERADA no Sudeste do pará Taxa de crescimento demográfico anual, de 2000 a 2010 (em %) n n Total n n Urbana n n Rural

5,73 Belém

2,04 1,55

4,81

3,74

Pará Brasil

1,17

urbis-1

2,34

urbis-2 2,51

1,44 0,85 0,83

2,28 1,37

-0,11 -0,65

Arquitetos, urbanistas, economistas e geógrafos do Pará, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo pretendem identificar tensões e contribuir para a formulação de políticas públicas em três regiões do estado (ver mapa). “Estamos construindo uma cartografia do espaço urbano da Amazônia”, afirmou Antonio Miguel Monteiro, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e coordenador do Urbis. “Não é uma cartografia tradicional, porque reflete as relações sociais, espaciais e culturais entre lugares, não apenas as posições dos lugares.” Na primeira expedição, de 4 a 15 de junho de 2012, 10 pesquisadores visitaram 58 comunidades ribeirinhas do município de Santarém, ao longo do rio Tapajós. São comunidades pequenas, com 50 a 100 famílias cada uma, mas “em conjunto funcionam como se fossem uma cidade, complementando funções ou serviços”, observou Monteiro. O posto de saúde pode ficar em uma comunidade e a escola em outra, e todas as famílias os usam. “Pretendemos dar

fonte  nepo / urbis

visibilidade a esses núcleos e às formas como se organizam entre eles e com outros espaços, para que sejam de fato considerados no planejamento regional.” Em outra expedição, de 19 de julho a 5 de agosto, nove pesquisadores percorreram as cidades do sudeste do Pará (Urbis-1) e entrevistavam moradores, empresários, secretários municipais e diretores de organizações não governamentais. Viram núcleos urbanos que não estavam nos mapas e fenômenos inesperados, como cidades que nascem grandes e espalhadas, com milhares de moradores atraídos pelos empregos gerados por empresas mineradoras ou agropecuárias. Muitas cidades estão subordinadas à atividade rural, invertendo a hierarquia habitual. Eles começam a ver o que deveria ser feito. Em dois condomínios do programa do governo federal Minha Casa Minha Vida, com um total de 2.500 casas em construção na periferia de Marabá, não detectaram linhas regulares de ônibus capazes de evitar o isolamento dos novos bairros. “As obras acontecem de forma

atabalhoada, mais pela possibilidade de acesso a recursos do que como resultado de um planejamento consistente e coerente”, concluiu Ana Claudia. Condomínios populares em situações semelhantes tomam forma também em Parauapebas e Canaã dos Carajás. “Metade da área urbana de Parauapebas é loteamento, porque quem chega, em vez de comprar apenas um terreno, compra quatro ou cinco, já que o preço da terra é baixo”, ela observou. “A consequência são cidades cheias de espaços vazios.” A urbanização, por sua vez, transforma radicalmente a paisagem natural: “Os topos de morros e as margens dos rios, que deveriam ser preservados, estão carecas em todas as cidades que passamos”. Espaços híbridos

Roberto Monte-Mor, pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e do Urbis, voltou angustiado da expedição. “Vimos um processo de destruição total, estradas asfaltadas, muita gente ganhando dinheiro com venda de terrenos e motos.” Em Tucumã as motocicletas e motonetas respondem por 80% da frota de veículos e em Parauapebas e Marabá por 50%. “O que estamos vendo no Pará”, disse Monte-Mor em um seminário no final de outubro na UFPA, “é o espaço urbanizado que é ao mesmo tempo campo e cidade, não é nenhum dos dois, mas integra os dois”. Arquiteto e urbanista de 65 anos que percorre a Amazônia há 40 anos, trabalha há 30 anos com economistas e há 15 com geógrafos, Monte-Mor lançou em 2004 o conceito de urbanização extensiva, que a equipe do Urbis adotou para analisar o espaço urbano na

2

36  z  fevereiro DE 2013


fotos  1 Carlos Fioravanti  2 Ana Claudia Cardoso / UFPA

Urbis, “com a constituição de bolsões de pobreza em 19 assentamentos informais instalados em áreas públicas”. É difícil encontrar paraenses nessas cidades do Pará, porque a maioria dos moradores veio de outras regiões do país. Em Parauapebas, reconhecida como cidade em 1985, 56% dos moradores são migrantes ou filhos de migrantes. Em Canaã dos Carajás – cidade ainda mais nova, reconhecida em 1994 –, 54% dos moradores vieram de outros estados. Canaã apresenta uma das maiores taxas anuais de crescimento populacional do país, de 18,11%; a média nacional é 1,55%. Bois e praias

1

As garras do espaço urbano: a cidade de Itaituba, oeste do Pará, avançando sobre a floresta (acima) e o morro do Chapéu, em Parauapebas, ocupado por assentamentos precários (ao lado)

Amazônia. “Os limites da cidade se expandiram e o território rural sofreu um processo de urbanização. Quem mora no campo também quer viver como na cidade, com eletricidade, TV por satélite e senso de cidadania. A cidade jogou seus tentáculos sobre o campo”, observou. Não são fenômenos exclusivos da Amazônia. A partir de 1960 a construção de estradas e a ampliação das redes de eletricidade, telefonia e saneamento têm levado o conforto da cidade para os moradores do campo por todo o país. Monte-Mor tem encontrado fenômenos similares em aldeias indígenas do norte de Minas Gerais, cujos moradores reivindicam eletricidade e ruas pavimentadas em frente de suas casas de alvenaria. Do ponto de vista econômico, as cidades da primeira região percorrida estão bem, crescendo e gerando riquezas. Por causa principalmente da mineração e da agropecuária, a participação da renda

“É triste ver os moradores discutindo o que é pior, se a mineração ou a pecuária”, observou Monte-Mor

bruta dos municípios da Urbis-1 na economia do Pará passou de 8,6% em 1996 para 20% no final da década seguinte. Em Canaã dos Carajás, um dos maiores projetos de exploração de minério de ferro do mundo, com investimentos estimados em US$ 20 bilhões, motivou a construção de estradas, puxou o preço da terra e atraiu novos moradores: a população do município deve passar de 20 mil para 100 mil em 10 anos. Nem sempre, porém, a construção de casas acompanha o ritmo de chegada dos migrantes. “Desde 2002 o perímetro urbano de Canaã dos Carajás mudou mais de seis vezes”, como registrado em um dos relatórios do

Em São Félix do Xingu o rebanho bovino cresceu de modo impressionante – de 9 mil cabeças em 1994, 682 mil em 1999, 1 milhão em 2001, 2 milhões (declarados) em 2010, o que implica uma média de 22 bois para cada morador. “Em 1980”, testemunhou Monte-Mor, “São Félix era uma vila perdida em um mundo arcaico, com menos de 2 mil habitantes, e de repente se transformou em uma cidade de quase 50 mil pessoas, com lojas imensas de produtos químicos, anúncios de rodeios e placas de protesto do Greenpeace. São Félix e Xinguara têm gado dos dois lados do rio, tudo desmatado, não têm mais castanhais. É triste ver a expulsão dos camponeses e dos seringueiros. É triste ver os moradores discutindo o que é pior, se a mineração ou a pecuária. O desmatamento foi brutal. Vai deixar de ser Amazônia logo, logo”. Muita gente vai se divertir nas praias fluviais ou pescar nos rios de São Félix do Xingu e Marabá. Monte-Mor, que esteve na região em 1984 e em 2001, espantou-se ao ver centenas de barracas vendendo peixe na areia e dezenas de jet-skis cortando o rio Xingu: “Turismo tão popular quanto este nunca tinha visto. O diabo é a música. Caixas de som monstruosas e música péssima.” “Estamos diante do desafio de combinar as muitas Amazônias, de explorar elementos integradores e enfatizar diferenças internas”, ressaltou Monte-Mor. Fábio Silva vê o risco de mais uma vez se confiar em empreendimentos econômicos de grande porte como forma de promover a economia da região Norte: “Os grandes projetos servem ao país e ao mundo, mas a longo prazo não trouxeram a esperada melhoria para a região”. n pESQUISA FAPESP 204  z  37


ciência  medicina y

Carteiros notáveis Partículas sintéticas reduzem toxicidade e ampliam ação de medicamentos contra câncer

Uma rede de artérias, em representação artística

38  z  fevereiro DE 2013

imagem  PASIEKA/SCIENCE PHOTO LIBRARY / SPL RF / Latinstock

Carlos Fioravanti


V

inte e um anos atrás, ao apresentar em revistas científicas nacionais e internacionais uma estratégia para tratamento de câncer com base em partículas compactas artificiais de colesterol, o médico Raul Maranhão não imaginava que encontraria tantas surpresas, decepções, reveses e desvios para levar sua proposta adiante. Passo a passo, ele fez experimentos em modelos animais, depois em grupos limitados de pessoas com câncer, e concluiu que as nanoemulsões lipídicas chamadas de LDE poderiam funcionar como uma plataforma de fármacos, capaz de levar medicamentos para alvos predefinidos e reduzir a toxicidade, um problema sério – e comum – nos antitumorais: muitas vezes os efeitos indesejados são intensos a ponto de limitar o uso, forçar a redução da dosagem e motivar a interrupção do tratamento. “Domesticamos alguns quimioterápicos”, diz Maranhão, com tranquilidade, no início deste ano, em sua sala no segundo subsolo do Instituto do Coração (InCor) da Universidade de São Paulo (USP).

Em seguida ele põe na tela do computador uma tabela que sintetiza os efeitos colaterais indesejados nas 46 pessoas tratadas com carmustina, um antitumoral de toxicidade elevada, combinada com as esferas de colesterol artificial. Com esse tratamento, os efeitos mais comuns, como náusea, vômito, alopecia (perda de cabelo), anemia, perda intensa de células de defesa e alterações hepáticas ou renais, avaliados em graus 1, 2 e 3, foram mínimos, mesmo em uma dosagem de 350 miligramas, quase três vezes maior que a normalmente adotada. “Não há dúvida de que os resultados são consistentes, sem perda da ação farmacológica”, comenta. Fazer essas estratégias darem certo não é nada simples. Há uma batalha mundial para se reduzir a toxicidade de medicamentos, o que poderia significar mais opções terapêuticas para os médicos e menos mal-estar para as pessoas em tratamento. Equipes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e do Instituto Butantan também estão avançando com outros tipos de partículas que estão se mostrando eficazes para melhorar a ação

pESQUISA FAPESP 204  z  39


Principais destinos Concentração de partículas de colesterol (LDE) com taxol, marcados com elementos radioativos, em tecidos ou órgãos de camundongos 6.000 5.000 4.000 3.000 2.000 1.000 0 cpm/g*

Fígado Tumor

Rim

Baço Intestino Coração Pulmão Testículo Cérebro

Pele

*cpm/g: radioatividade das partículas por grama de tecido

de medicamentos ou de vacinas. Em cada caso, as novas combinações terão de passar por todos os testes de segurança e toxicidade em modelos animais e em seres humanos até – se apresentarem um desempenho satisfatório em todos os experimentos – serem aprovadas para uso amplo. Maranhão teve de superar muitas difi­culdades científicas, técnicas e burocráticas até ver que as esferas contendo medicamentos se concentravam nos tumores (ver gráfico acima) e seguir adiante. Ricas em colesterol, com uma estrutura semelhante à lipoproteína de baixa densidade (LDL) e diâmetro de 20 a 60 nanômetros (1 nanômetro corresponde a 1 milionésimo de milímetro), as LDE são captadas pelas células por meio dos receptores de LDL, abundantes nas células de tumores. “Enganamos as células tumorais ao oferecer uma matéria-prima de que necessitam para se multiplicar, junto com um fármaco que deve destruí-las”, diz ele. Outros dois antitumorais, paclitaxel (taxol) e etoposídeo, deram mais trabalho para ser domesticados. Com Hélio Stefani, colega da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP, Maranhão embebeu-os com ácido graxo, um tipo de gordura, para aumentar a adesão às esferas de LDE. “Nos testes em camundongos e em pessoas com câncer”, ele afirma, “a toxicidade diminuiu drasticamente”. Nem sempre dá certo. A toxicidade do metotrexato não caiu. “Não sei explicar por que, mas talvez seja possível reduzir a dosagem, já que a combinação com as LDE amplia a captação do medicamento pelas células tumorais.” Testes em hospitais

Uma intensa produção científica e os resultados dos testes clínicos iniciais – realizados desde 1990 em cerca de 200 pessoas – serviram como argumento para dois estudos clínicos mais amplos, 40  z  fevereiro DE 2013

em andamento em hospitais públicos da cidade de São Paulo. Em um deles, 23 pessoas com câncer de próstata, mama, ovário e pulmão, alguns já com metástase óssea, depois de passarem por outros tratamentos, estão recebendo taxol e LDE no Instituto do Câncer Arnaldo Vieira de Carvalho. Em dois homens, o nível de antígeno prostático específico (PSA) caiu de 100 para até 10 nanogramas por decilitro de sangue, indicando uma regressão do câncer de próstata após sete meses de tratamento, segundo Sílvia Graziani, médica do serviço de oncologia clínica do instituto. “Em câncer de ovário e de mama, verificamos uma estabilização da doença e uma melhora significativa do quadro clínico, devido à ausência de efeitos adversos comuns à quimioterapia”, diz ela. “Vi muitos pacientes almoçando enquanto faziam quimioterapia”, relata Maranhão. As medicações usadas para evitar o vômito, um efeito comum do tratamento, haviam sido dispensadas. “As LDE têm alta afinidade por tecidos inflamados ou áreas de intensa divisão celular”, diz Maranhão. Essa característica levou a outras possibilidades de uso, como para tratar aterosclerose, uma doença inflamatória crônica caracterizada pelo acúmulo de placas de gordura em veias e artérias. Em um dos experimentos, artérias de coelhos com placas de colesterol, de modo similar aos tumores, captaram três vezes mais LDE que os outros tecidos ou órgãos. “As LDE com paclitaxel limparam a artéria de coelhos”, diz ele, mostrando uma sucessão de fotos e gráficos. As informações que ele reuniu serviram como argumentos para testar a segurança de uso de uma combinação de taxol com LDE em um grupo de 10 pessoas selecionadas em tratamento no Instituto Dante Pazzaneze de Cardiologia, em São Paulo. Os resultados, detalhados em um artigo em fase final de ela-

imagens 1 LQES / unicamp  2 e 3 incor / USP

fonte Laboratório de Lípides / Incor-USP


boração, indicaram que essa estratégia pode reduzir a inflamação que acompanha a formação de placas de gordura nas artérias coronárias em pessoas que já haviam sofrido um infarto. “Quase zeramos a toxicidade”, ele celebra. As evidências impressionam também porque abrem a possibilidade de usar um antitumoral, o taxol, para tratar doenças cardíacas.

Veículos especiais: nanotubos de carbono purificados (em vermelho) e nanoemulsão lipídica sozinha (esquerda) e com metotrexato (direita)

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do sangue em condições reais, imersas no plasma, independentemente da carga elétrica da superfície das partículas; estudos anteriores, feitos em uma solução de células, haviam sugerido que poderiam destruir. Um tipo de sílica porosa nanoestruturada chamada SBA-15 está se mostrando eficaz para transportar vacinas por via oral, de acordo com estudos realizados desde 2002 em colaboração com o Instituto Butantan, a Universidade de São Paulo e o Laboratório Cristália. TesNanotubos de carbono ativaram tes com a vacina contra hecélulas de defesa e ampliaram patite B em camundongos indicaram que antígenos as respostas contra antígenos virais transportados pelas esferas de sílica conseguem atravessar o ambiente extremamente ácido do estômago, ao qual a maioria das proteínas não resiste, Novas vacinas à vista As partículas que transportam medicamentos e ser absorvidos no intestino. “Estamos agora na fase de planejamento dos podem fazer mais do que se esperam delas e alterar outras características que dificultam o uso testes em voluntários humanos”, diz Osvaldo de medicamentos. Na Unicamp, a equipe do quí- Sant’Anna, pesquisador do Butantan que está mico Oswaldo Alves aparentemente conseguiu entusiasmado com a possibilidade de ampliar a eliminar uma limitação da camptotecina, antitu- vacinação por via oral, limitada à Sabin, contra moral difícil de ser aplicado por ser insolúvel, de poliomielite. Ele acredita que, se os testes avanacordo com os testes em células tumorais feitos çarem com resultados positivos, as partículas na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). de sílica poderiam levar mais de uma vacina por “Fizemos uma suspensão com nanopartícu- vez, de modo mais amigável ao organismo que as las de sílica e a camptotecina entrou nas células técnicas atuais de aplicação (injeções), e permicomo se fosse solúvel”, observa Amauri Jardim tir uma economia considerável, por dispensar o de Paula, pesquisador do grupo de Alves. “Ho- uso de agulhas e seringas, ampliar o número de je podemos sintetizar nanoestruturas com um pessoas vacinadas, possibilitando uma aplicação alto controle das propriedades química e físi- de doses menores que as atuais. ca da superfície e do interior, de modo que a Diego Stéfani Teodoro Martinez, da equipe de superfície consiga atrair e o interior repelir as Alves, preparou nanotubos de carbono com 10 a moléculas de água.” 40 nanômetros de diâmetro e até 10 micrômetros No artigo de capa da Journal of the Brazilian de comprimento embebidos em antígenos. Essa Chemical Society de outubro de 2012, Alves apre- combinação ampliou a resposta do organismo, em sentou uma indicação importante da segurança comparação com a induzida apenas por antígenos, de uso das nanopartículas mesoporosas de sílica: em testes preliminares feitos em camundongos no essas nanoestruturas não destroem as hemácias Butantan, em parceria com Sant’Anna. “Os nano-

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3

pESQUISA FAPESP 204  z  41


42  z  fevereiro DE 2013

imagens  1 LQES / unicamp  2 e 3 incttox / instituto butantan

tubos aparentemente têm um efeito imunoesti- Científico e Tecnológico (CNPq), dos Institutos mulante”, diz Martinez, “porque possivelmente Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos ativaram os macrófagos, um tipo de célula de de- e da Unesp de Botucatu, o P-Mapa se mostrou fesa, e a liberação de citocinas”, as moléculas de capaz de deter a progressão do câncer de bexiga e reduzir o crescimento de colônias de bactérias comunicação do sistema imune. Outras combinações de transportadores e fárma- causadoras de tuberculose em modelo animal. cos também podem levar a resultados impressio- Em estudos com ratos portadores de câncer de nantes. Grupos da Unicamp, USP e Unesp coorde- bexiga, o P-Mapa apresentou uma eficácia supenados por Wagner Fávaro e Nelson Duran, ambos rior à da vacina BCG, o melhor tratamento dispoda Unicamp, conseguiram reduzir em cerca de 10 nível contra essa doença, como detalhado em um vezes a dosagem do fármaco imunomodulador artigo publicado em junho de 2012 na Infectious P-Mapa, sem perda de eficácia contra câncer de Agents and Cancer. Os resultados que agora parecem simples bexiga, usando um polímero comercial conhecido como poloxâmero ou Pluronic, em testes preli- nasceram de decisões difíceis. Em 2006 Os­wal­ do Alves se viu diante da minares feitos em modelos animais. seguinte dúvida: deveria “O Pluronic deve ter facilitado a encomprar ou sintetizar natrada do P-Mapa na camada de células notubos de carbono? Ele que reveste internamente a bexiga “Quase comprou, mas notou que urinária”, comenta Fávaro. “É um reninguém está não era uma substância sultado excelente.” Esse efeito, se conpura, como deveria ser, firmado nos estudos em andamento, questionando e começou a desconfiar pode permitir uma notável economia dos resultados – positido medicamento e melhorar sua ação, a origem e a vos ou negativos – dos além de reduzir o risco de eventuais experimentos, sem saber efeitos tóxicos; o P-Mapa e as esferas pureza das se eram decorrentes da de LDE aparentemente não geram amostras de ação dos nanotubos ou reações hostis nem apresentam riscos das impurezas. para a saúde, de acordo com os testes nanoestruturas “A pureza tem sido um feitos até agora. assunto negligenciado”, Em estudos feitos na Unicamp e utilizadas nos diz ele. “Por causa da presna Universidade do Estado do Cosa em publicar os resultalorado, Estados Unidos, com finanexperimentos”, dos, quase ninguém está ciamento da rede de pesquisa Fardiz Alves questionando a origem das mabrasilis, da FAPESP, do Conseamostras de nanoestrutulho Nacional de Desenvolvimento ras utilizadas nos experimentos, apenas supondo que sejam puras.” Alves, com seu grupo, desenvolveu suas próprias técnicas de purificação e hoje remove 98% dos resíduos metálicos e carbonáceos dos nanomateriais importados. A substância resultante da purificação no Laboratório de Química do Estado Sólido da Unicamp é diferente da original a ponto de ter ganho os nomes de LQES-1 e LQES-2. Outro desafio permanente, segundo ele, é “identificar outros químicos, físicos, biólogos e médicos que queiram trabalhar com nanoestruturas e acreditem que é possível fazer ciência brasileira de qualidade”. “Sozinhos, não conseguimos avançar”, reitera Maranhão, que também passou por muitos dilemas. Um deles: onde publicar os resultados? Se divulgasse demais, procurando as revistas mais lidas, poderia ser atropelado por outros grupos, que poderiam avançar com mais rapidez. Deixar de publicar era inviável porque são os artigos científicos que conferem credibilidade e visibilidade a qualquer pesquisador. A saída que ele encontrou foi publicar em revistas médicas de 1 impacto médio, “sem muito alarde”.


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Dois tipos de nanopartículas mesoporosas de sílica: a da Unicamp, com poros que repelem água e superfície que a atrai (na página ao lado); e a do Butantan-USP, com poros hexagonais (acima, esquerda) e em forma de tubos cilíndricos (direita)

Quando ele começou, não havia lei de patentes para novos fármacos, nem o conceito de nanotecnologia médica, nem empresas nacionais interessadas em desenvolver medicamentos nacionais no país. Ele tentou algumas estrangeiras, com a esperança de encontrar parceiros que o ajudassem na produção e no desenvolvimento das nanopartículas, mas as fusões e aquisições de empresas interromperam as negociações. Ele próprio viu que teria de produzir e instalou um laboratório de produção ao lado de sua sala no InCor e pagou uma fortuna por quimioterápicos importados até os indianos e chineses começarem a vender por preços bem menores. “É um jogo de xadrez”, ele diz. “Muitas vezes, a estratégia precede a ciência.” A Próxima batalha

Maranhão teve de entrar em áreas que não conhecia e formar equipes, outro risco, porque o ritmo de trabalho e o rigor metodológico dos integrantes de um grupo podem divergir. “Por sorte nunca tive problemas com meus colaboradores”, ele assegura, “e devo muito a meus colegas médicos e professores, como Sílvia Graziani, Noedir Stolf, Vânia Hungria, Eloisa Bonfá, Roberto Hegg, Jesus Carvalho, Durvanei Maria e muitos outros que têm colaborado nesse projeto há muitos anos e fazem um trabalho de altíssima qualidade”. Ele conta que teve problemas, sim, com os pareceristas necessariamente anônimos de seus pedidos de financiamento, que criticavam a falta de foco, já que ele explorava outras aplicações médicas das LDE, ou pediam detalhes que ele não tinha nem o preocupavam. “Somos nossos próprios algozes”, comentou outro professor da USP, que acompanha o trabalho de Maranhão há anos. Para quem descobriu uma molécula aparentemente fantástica e acha que as etapas seguintes da pesquisa e desenvolvimento serão simples, Maranhão avisa: “Não se deve ficar afoito. Se quiser mesmo topar essa parada, tem de estar

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preparado para a longa jornada”. A dele ainda não terminou. A próxima batalha à vista será a do registro das combinações das LDE com medicamento nos órgãos reguladores do governo. “Nos Estados Unidos”, ele diz, “diante do que já temos de argumentação científica e médica e da urgência de novos medicamentos contra câncer, nosso pedido de registro poderia entrar como fast track, tranquilamente”. Fast track é um caminho rápido e simplificado de aprovação de novos medicamentos adotado pelo governo federal dos Estados Unidos. No Brasil não há fast track e o processo de registro costuma exigir muita papelada e tomar muitos anos até sair o carimbo final. Uma empresa nacional relatou ter enviado 70 quilos de documentos ao órgão responsável por essa área em Brasília e esperado sete anos até sair o registro de um medicamento brasileiro similar ao Viagra. n

Projetos 1. Nanopartículas lipídicas: aplicações no estudo da fisiopatologia, no diagnóstico e terapêutica das doenças degenerativas – n° 06/58917-3; 2. Novas estratégias terapêuticas para o câncer de bexiga urinária não músculo invasivo – n° 12/20706-2; 3. Produção de nanoestruturas mesoporosas à base de sílica para o transporte de agentes antitumorais hidrofóbicos – n° 09/10056-8. Modalidades: 1. Projeto Temático; 2. Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa; 3. Doutorado. Coordenadores: 1. Raul Cavalcante Maranhão – USP; 2. Wagner José Fávaro – Unicamp; 3. Amauri Jardim de Paula – Unicamp. Investimento: 1. R$ 1.406.940,52 (FAPESP); 2. R$ 133.260,00 (FAPESP); 3. R$ 110.201,13 (FAPESP)

Artigos científicos FÁVARO, W.J. et al. Effects of P-Mapa immunomodulator on toll-like receptors and p53: potential therapeutic strategies for infectious diseases and cancer. Infectious Agents and Cancer. v. 7, n. 14.2012 (on line). KRETZER, I.F. et al. Drug-targeting in combined cancer chemotherapy: tumor growth inhibition in mice by association of paclitaxel and etoposide with a cholesterol-rich nanoemulsion. Cellular Oncology. v. 35, n. 6, p. 451-60. 2012. PAULA, A.J. et al. Suppression of the hemolytic effect of mesoporous silica nanoparticles after protein corona interaction: independence of the surface microchemical environment. Journal of the Brazilian Chemical Society. v. 23, n. 10, p. 1.807-14. 2012. pESQUISA FAPESP 204  z  43


fotos  luan diniz / ufrj

Neurociência y

Os astros do momento Células vizinhas ajudam os neurônios a estabelecer conexões entre si Martha San Juan França

44  z  fevereiro DE 2013

P

or muito tempo consideradas meras coadjuvantes no funcionamento cerebral, as células gliais só entraram em evidência nos últimos anos à medida que trabalhos começaram a comprovar sua importância para o desenvolvimento, a regeneração e a estruturação do sistema nervoso. Elas representam quase metade das células cerebrais – a outra metade são os neurônios – e seu mau funcionamento, sugerem estudos recentes, está ligado ao desenvolvimento de doenças neurodegenerativas. Agora pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) identificaram mais uma função essencial das células gliais. A equipe da bióloga Flávia Alcantara Gomes verificou que são os astrócitos, o tipo mais comum de células da glia, que controlam a formação de conexões (sinapses) entre os neurônios, as células que transportam e armazenam informação no cérebro. “Sem as células gliais, grande parte das sinapses não ocorreria de forma eficiente”, afirma Flávia. Em artigo publicado em novembro no Journal of Biological Chemistry, ela e seus colaboradores demons-

Criando redes: proteína secretada por astrócitos (acima) induz formação de sinpases, pontos coloridos nos neurônios (no alto)

traram que uma proteína produzida em abundância pelos astrócitos – o fator de crescimento transformante ß1 (TGF-ß1) – regula a formação de sinapses em camundongos e em seres humanos. Para Flávia, a descoberta abre perspectivas para se entender melhor o papel das células gliais no desenvolvimento de distúrbios neurológicos e no envelhecimento. Há sinais de que nos estágios iniciais de algumas doenças e do envelhecimento, antes de começar a morrer, os neurônios perdem as conexões com outros neurônios. Já havia pistas de que os astrócitos ajudassem na formação de sinapses. Há cerca de 10 anos Ben Barres, Frank Pfrieger e colegas da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, relatavam que neurônios de camundongos criados em laboratório faziam mais sinapses na presença de astrócitos. Eles haviam, inclusive, identificado moléculas secretadas pelos astrócitos que induziam a formação de sinapses. Mas essas moléculas apenas estimulavam a formação da fenda química


Ação indireta infográfico ana paula campos  ilustração pedro hamdan

Estimulado pelo astrócito, neurônio produz conexões com outras células

1

2

L-serina

astrócito

TGF-ß1

3

L-serina D-serina Glutamato

TGF-ß1 ativa conversão de L-serina em D-serina TGF-ß1 TGF-ß1

Ativação dos receptores por glutamato e D-serina

L-serina D-serina Glutamato

Glutamato

neurônio

Formação de sinapses

Os astrócitos, a mais abundante das células

No neurônio, a TGF-ß1 desencadeia reações

No meio externo, a D-serina se associa ao

da glia, lançam no meio extracelular a proteína

que levam à produção do aminoácido

neurotransmissor glutamato, ativando no

TGF-ß1, que é absorvida pelos neurônios

D-serina, que é exportado para fora da célula

neurônio a formação de sinapses

O TGF-ß1 aciona a produção do aminoácido (unidade formadora das proteínas) D-serina, que é secretado pelo neurônio e, no meio extracelular, se associa ao neurotransmissor glutamato (ver infográfico acima). Atuando juntos, a D-serina e o glutamato ativam a produção de sinapses no neurônio. E quanto mais D-serina, maior a quantidade de sinapses.

micos as células têm o mesmo comportamento dos astrócitos de camundongos. “Esse trabalho é fruto de uma ciência multidisciplinar com a colaboração entre diversos grupos de pesquisa básica e clínica”, diz Flávia. Pensando nisso, atualmente, o grupo analisa se astrócitos derivados de modelos animais da doença de Alzheimer ou de pacientes com epilepsia mantêm seu potencial de induzir a formação de sinapses. Em paralelo, o grupo pretende fazer teste semelhante com astrócitos de pessoas com esquizofrenia. “A habilidade cognitiva humana está associada ao complexo das conexões sinápticas”, diz Flávia. “Da mesma forma, disfunções no processamento de informações no cérebro podem levar a sérias desordens neurológicas. A compreensão do mecanismo pelo qual as sinapses são formadas e reguladas é um passo-chave para o conhecimento do cérebro e para o desenvolvimento de terapias de reparos do sistema nervoso.” n

fonte  flavia gomes, luan diniz / ufrj

ou da estrutura onde ocorre a transmissão do impulso nervoso de um neurônio a outro, que nem sempre eram funcionais. O grupo da UFRJ comprovou que o TGF-ß1 é capaz de fazer as duas coisas: induz a formação dessas estruturas e de sinapses funcionalmente ativas. “Usamos dois caminhos para chegar à mesma conclusão”, explica Flávia. “Uma avaliação bioquímica com modelo in vitro e a análise por eletrofisiologia, que identifica correntes elétricas características de sinapses.” Durante o desenvolvimento do sistema nervoso embrionário, as células gliais funcionam como células-tronco do córtex cerebral e no sistema nervoso adulto podem dar origem tanto a células neuronais como a astrócitos. Antes, os pesquisadores da UFRJ já haviam descoberto que o TGF-ß1 induzia a diferenciação das células-tronco progenitoras em astrócitos, mas não em neurônios. Na pesquisa atual, o TGF-ß1 oriundo dos astrócitos ganhou um novo papel. Neurônios que cresceram no meio de cultura com essa proteína fazem até três vezes mais sinapses do que no meio de cultura comum. O mesmo acontece quando o TGF-ß1 é injetado diretamente no córtex do animal vivo. Na verdade, o grupo comprovou que o papel do TGF-ß1 na formação das sinapses do córtex cerebral se dá de forma indireta.

Agora, em humanos

“O grande mérito desse trabalho é, primeiro, mostrar como os astrócitos contribuem em termos bioquímicos para a formação da sinapse e, segundo, mostrar isso com células derivadas de tecido humano”, comenta o neurocientista Luiz Roberto Giorgetti de Britto, da Universidade de São Paulo. Isso porque, até agora, os estudos sobre a relação complexa entre neurônios e astrócitos haviam sido realizados apenas em camundongos e não em seres humanos. Para o ensaio com tecido humano, a equipe extraiu astrócitos do tecido cerebral que seria descartado de pacientes submetidos a cirurgias para tratamento de epilepsia no Hospital Universitário da UFRJ. “Como o encéfalo humano é mais complexo e difícil de trabalhar, não existia padronização adequada”, afirma Flávia. Os resultados foram parecidos, demonstrando que em termos bioquí-

Artigo científico DINIZ, L.P. et al. Astrocyte-induced synaptogenesis is mediated by transforming growth factor beta signaling through modulation of D-serine levels in cerebral cortex neurons. Journal of Biological Chemistry. v. 287(49), p. 41.432-45. 30 nov. 2012. pESQUISA FAPESP 204  z  45


GEOLOGIA y

Testemunho de uma

catástrofe

Sedimentos coletados na Jureia, litoral de São Paulo, registram mudança climática radical ocorrida há 8,2 mil anos

A

análise de uma coluna de lama com uns poucos centímetros de diâmetro e quase seis metros de profundidade, coletada por geólogos na mata atlântica da Estação Ecológica Jureia Itatins, no litoral sul de São Paulo, revelou a primeira evidência encontrada na costa brasileira da mudança climática global mais radical e repentina que a Terra sofreu nos últimos 10 mil anos, o chamado evento 8.2 ka. Segundo a coordenadora do estudo, a geóloga Alethea Sallun, do Instituto Geológico de São Paulo, é muito raro encontrar sinais de um evento relativamente curto como o 8.2 ka, que durou menos de 400 anos – um piscar de olhos na história geológica de 4,5 bilhões de anos do planeta. “Foi muita sorte ter conseguido um registro nos sedimentos”, ela diz. O evento 8.2 ka aconteceu devido ao aumento das temperaturas globais no fim da última era glacial, há 11 mil anos, quando as geleiras que cobriam a América do Norte deram lugar a imensos lagos. Em torno de 8.200 anos atrás (pode 46  z  fevereiro DE 2013

ter sido algumas centenas de anos antes ou depois), a geleira que represava dois desses lagos se rompeu, descarregando um volume gigantesco de água doce no Atlântico Norte. Num período curto, talvez menos de 10 anos, a mudança abrupta de salinidade do oceano interrompeu temporariamente a corrente do Golfo, que transporta calor dos trópicos para a Europa, congelando o continente e forçando migrações humanas em massa. Registros geológicos sugerem que a influência do evento se espalhou rapidamente pelo globo, causando secas na África, avanços de geleiras na Nova Zelândia e nos Andes. As correntes marinhas alteradas teriam intensificado as monções de verão na América do Sul. Em 2009, pesquisadores identificaram em estalagmites de cavernas brasileiras evidências de aumento das chuvas naquela época. Além disso, simulações sugerem que a costa do Brasil tenha sofrido uma subida brusca do nível do mar de cerca de um metro (ver figura no alto). Na verdade, há registros de que o nível do mar da costa brasileira subiu e desceu

pelo menos seis vezes nos últimos 10 mil anos, chegando a até cinco metros acima do nível atual cerca de 5 mil anos atrás. “Há muitas contradições sobre a variação do nível do mar nos últimos 10 mil anos”, explica o oceanógrafo Michel Mahiques, da Universidade de São Paulo (USP), que não participou do estudo. Na verdade, eram evidências desses recessos marinhos que Alethea e seus colaboradores foram buscar em expedições mata adentro na Estação Ecológica Jureia Itatins em 2007. Um dos coordenadores do projeto, o geólogo Kenitiro Suguio, professor titular aposentado do Instituto de Geociências da USP, havia realizado um mapeamento pioneiro da história geológica recente dos litorais paulista e sul-fluminense nos anos 1970, em parceria com o geólogo francês Louis Martin. No litoral sul de São Paulo, a dupla descobriu que na planície fluvial a poucos quilômetros da costa e a apenas dois metros acima do nível do mar atual, entre a serra do Itatins e o morro da Jureia, havia sob a floresta camadas de lama deposita-

foto alethea sallun / Instituto geológico  infográfico ana paula campos

Nos meandros da Jureia: pesquisadores gastavam 2 horas de barco por pequenos rios até o ponto de coleta

Igor Zolnerkevic


Viagem ao passado Em meio à mata atlântica, depósitos de lama guardam informações sobre o clima de milhares de anos atrás

Serra do Itatins

1.000

Morro da Jureia 500 Rio Ribeira

Oceano Atlântico

distância da superfície (m)

1.400

0 0,10 0,50

hoje 350 2.120 4.240 4.640 6.205 7.450 7.575 7.615

depositou-se

1,5 m

Variação no nível do mar (m) -2

8.375

Em apenas

10 anos

2,5

Lama marrom-escura Lama amarelo-escura Lama cinza-escuro Idade de radiocarbono (anos)

8.000 anos

7.975

2 0

Em cerca de

de sedimentos

1 1,50

tempo (anos)

Coluna de sedimentos

Elevação (m)

8.385

acrescentou-se cerca de 1 m de sedimentos

3

Em quase

Determinando as idades da lama pelo método de datação por radiocarbono, os geólogos descobriram que a coluna coletada apresentava uma história contínua da deposição de sedimentos de 9.400 anos atrás até o presente. Mas, enquanto o primeiro metro da coluna guarda informações sobre 7.600 anos dessa história, com pequenas deposições (da ordem de um milímetro por ano), o restante preserva os detalhes de uma quantidade enorme de sedimentos depositada nos 2 mil anos anteriores. A maior taxa de deposição aconteceu entre 8.385 e 8.375 anos atrás, quando um metro de lama se assentou ali. Alethea

0,8

1

Evento 8.2 Ka Com o fim da última era glacial há 11 mil anos, a temperatura do planeta aumentou e transformou as geleiras

desses lagos se rompeu e lançou grande volume de água doce no Atlântico. Esse evento, chamado

de sedimentos

8.2 ka, mudou a salinidade e os níveis

3m 8.700

do mar (gráfico acima) e alterou correntes marinhas, causando frio intenso na Europa, secas na África

9.400

fonte  Sallun, A.e.m. et al. quaternary research, 2012

Registro conveniente

0,6

acumularam-se

5,5

das durante milhares de anos, quando ali existiam lagoas de água salobra. A coluna de sedimentos das antigas lagoas não apresentou os sinais claros de variações recentes do nível do mar que os pesquisadores buscavam. Em vez disso, eles encontraram evidências de algo diferente e mais antigo. “Aquilo me pegou de surpresa”, lembra Suguio.

0,4

atrás, a geleira que represava dois 8.545

1.000 anos

base

0 0,2

lagos. Entre 8,4 mil e 8 mil anos

4,5 5

-0,5

da América do Norte em imensos

3,5 4

-1

explica que não há dados suficientes para dizer exatamente o que aconteceu, mas provavelmente uma grande quantidade de chuva, aliada à elevação do nível do mar, manteve um ambiente de água parada tempo o suficiente para que a deposição acontecesse e fosse preservada. Uma equipe de 16 pesquisadores do Instituto Geológico, da USP, da Universidade Guarulhos e da Universidade Estadual de Washington, nos Estados Unidos, colaborou nas análises dos elementos químicos encontrados na coluna de sedimentos, publicadas em janeiro de 2012 na revista Quaternary Research. Os resultados indicam que uma mudança ambiental e geográfica muito brusca aconteceu na Jureia entre 8.500 e 7.800 anos atrás. Nesse período, a origem da fonte de sedimentos mudou, enquanto a influência marinha e a produtividade das plantas e animais cresceram, para depois voltar ao normal. Suguio é mais cauteloso que seus colegas mais novos em associar a mudança na Jureia ao evento 8.2 ka. “Pode ter sido

e chuvas na América do Sul. fonte  kendall, r. et al. geology, 2008

um evento local, sem relação com o que aconteceu no hemisfério Norte”, ele diz, embora considere que “é muita coincidência para ser apenas coincidência”. É possível que algo parecido com o evento 8.2 ka ocorra novamente, caso o aquecimento global provoque o degelo da Groenlândia, como lembra o ex-vice-presidente dos Estados Unidos Al Gore no documentário Uma verdade inconveniente, de 2006. Para Alethea, seu estudo ajuda a entender um pouco melhor como um evento assim afetaria a costa brasileira. n

Projeto Estação Ecológica Jureia-Itatins (SP): flutuações de níveis marinhos abaixo do atual no Holoceno – nº 06/04467-7. Modalidade: Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa. Coordenador: Kenitiro Suguio – IGc/USP. Investimento: R$ 206.024,65 (FAPESP).

Artigo científico SALLUN, A.E.M. et al. Geochemical evidence of the 8.2 ka event and other Holocene environmental changes recorded in paleolagoon sediments, southeastern Brazil. Quaternary Research. v. 77, p. 31-43. 2012. pESQUISA FAPESP 204  z  47


ópticay

Em sintonia com a luz Físicos usam laser para sincronizar osciladores microscópicos

A

o pendurar em uma mesma prancha de madeira dois relógios de pêndulo, um ao lado do outro, o famoso cientista holandês Christiaan Huygens observou em 1665 que os relógios tendiam rapidamente a tiquetaquear em uníssono, mesmo se seus pêndulos estivessem inicialmente balançando fora de sincronia. A experiência impressiona até hoje (faça uma busca por synchronization no site do Youtube para assistir a várias demonstrações curiosas do fenômeno), embora não haja mais mistério algum sobre como acontece a sincronização espontânea dos relógios. Atualmente os físicos conseguem calcular muito bem como os relógios interagem por meio de vibrações mecânicas trocadas através da prancha, que acaba forçando ambos a oscilarem da mesma maneira. Quase 350 anos depois, a experiência de Huygens acaba de ser refeita no mundo microscópico, usando-se, no lugar dos pêndulos, dois osciladores esculpidos em um microchip de silício. Cada oscilador tem 40 milésimos de milímetro de diâmetro ou 40 mil nanômetros. São tão pequenos e flexíveis que vibram balançados pela tênue força da luz de um feixe laser com uma potência mil vezes menor que a de um ponteiro de laser comum. Mais espantoso ainda, a própria luz trocada entre os osciladores faz o papel da prancha de madeira, sincronizando suas vibrações. 48  z  fevereiro DE 2013

A façanha é trabalho de uma equipe de pesquisadores da Universidade Cornell, nos Estados Unidos, liderada pela física norte-americana Michal Lipson, que contou com a participação do brasileiro Gustavo Wiederhecker, que desde 2011 é professor do Instituto de Física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Outros grupos já haviam construído micro-osciladores sincronizados por pequenas conexões mecânicas. “Fomos os primeiros a mostrar que é possível induzir sincronismo usando apenas luz”, diz Wiederhecker. “Tínhamos uma ideia de que poderia ser feito, mas não era óbvio que fosse possível.” Mais que uma curiosidade, a demonstração apresentada no artigo de capa da revista Physical Review Letters de 5 de dezembro passado sugere que os chamados micro-osciladores optomecânicos podem se tornar a base de uma nova tecnologia portátil de marcação de tempo de alta precisão, necessária para que computadores, celulares e sistemas de navegação funcionem corretamente. Em geral esses dispositivos portáteis usam como relógios internos a vibração regular de pequenos cristais de quartzo, acionados e sincronizados por sinais elétricos. Sua precisão é boa, mas a indústria microeletrônica está sempre em busca de alternativas, pois os cristais precisam ser fabricados à parte dos microchips de silício para depois serem soldados neles, aumentando o custo de

Desenho extraído do livro Horologium oscillatorim, de 1673, em que Christiaan Huygens descreve o movimento pendular, também observado nas bordas dos osciladores microscópicos

infográfico ana paula campos  imagem Mian Zhang / Cornell Nanophotonics Group  desenho reprodução de Horologium oscillatorium, 1673 de Christiaan Huygens

que funcionam como os pêndulos dos relógios


Interações a laser Leves e flexíveis, discos microscópicos de silício vibram com a força exercida pela luz

A

B

fótons 200 nm 40.000 nm

1

repouso

A

B

Luz

Luz

Um feixe contínuo de laser incide nos discos de modo que a luz com um comprimento de onda específico penetre no espaço entre eles

2

oscilação

A

Pulsares uníssonos

B

A luz pressiona as paredes dos discos, força o espaço a aumentar e escapa. Assim, os discos vibram e emitem pulsos luminosos

3

sincronia

A

B

A luz emitida pelo par de discos da esquerda entra no espaço do par de discos da direita, e vice-versa, sincronizando suas vibrações fonte  gustavo wiederhecker - unicamp

produção. Já os micro-osciladores desenvolvidos pela equipe de Lipson, feitos de nitreto de silício, poderiam ser manufaturados junto com o restante da estrutura interna dos microchips, sem custo adicional. “Qualquer fábrica no mundo seria capaz de executar o projeto”, afirma Wiederhecker. A pesquisa começou em 2008, quando, interessado em investigar como a luz poderia ser usada para movimentar partes de um mecanismo microscópico em um chip de silício, ele iniciou seu pós-doutoramento em Cornell, sob a supervisão de Lipson. Já em 2009, o físico brasileiro assinava como primeiro autor um artigo na revista Nature, mostrando, pela primeira vez, que era possível fabricar uma microestrutura que vibrasse regularmente ao ser acionada pela força da luz de um comprimento de onda específico. Em 2011 a equipe registrou a patente de um filtro baseado nesse dispositivo, capaz de selecionar sinais luminosos de telecomunicação enviados por fibra óptica de vários comprimentos de onda. No trabalho mais recente, os pesquisadores produziram osciladores duplos. Cada um deles é formado por um par de discos sobrepostos, separados por 0,2 milionésimo de milímetro ou 200 nanômetros (ver o infográfico acima). Os discos vibram quando um feixe laser de intensidade constante envia continuamente uma luz com o comprimento de onda adequado para entrar no espaço entre os discos. Quando isso acontece, as partículas de luz viajam ao redor da borda dos discos e exercem pressão contra suas paredes, fazendo-as se afastarem. Com a expansão do espaço entre os discos, a luz escapa e as bordas dos discos voltam à posição original. Então, mais luz vinda do laser entra no espaço e o ciclo recomeça. O resultado é um par de discos oscilando com uma frequência constante que emite uma luz que pulsa na mesma frequência. Os físicos descobriram que, colocados lado a lado, dois desses osciladores

poderiam, em certas condições, interagir por meio desses pulsos de luz. Com a frequência de vibração correta, a luz piscante emitida por um oscilador pode acabar entrando no espaço entre os discos do oscilador vizinho. “Esse piscar da luz força o par de discos da direita a vibrar na frequência do par de discos da esquerda, e vice-versa”, explica Wiederhecker. “Eventualmente eles entram num acordo e vibram em sincronia, numa mesma frequência intermediária.” Wiederhecker construiu a primeira versão do par de micro-osciladores em 2010. Em seguida, o físico Mian Zhang, do grupo de Lipson, desenvolveu uma técnica para ligar e desligar a interação entre os osciladores, também por feixe laser. Para Paulo Nussenzveig, especialista em óptica quântica da Universidade de São Paulo, a vantagem da sincronização pela luz é que ela permitiria a interação entre uma rede de micro-osciladores tão distantes uns dos outros quanto se queira, por meio de fibras ópticas. “Aprecio bastante a qualidade e a criatividade desse trabalho”, diz. Com um projeto Jovem Pesquisador da FAPESP recentemente aprovado, Wiederhecker espera que seu laboratório na Unicamp tenha condições de, até o próximo ano, realizar esses e outros experimentos com dispositivos optomecânicos. Ele e o físico Thiago Alegre, seu colega na Unicamp, estão interessados principalmente em investigar o que acontece quando os osciladores são resfriados a temperaturas próximas do zero absoluto (-273,15 graus Celsius) e as leis bizarras da mecânica quântica controlam sua dinâmica. “O que significa sincronizar objetos no mundo quântico?”, pergunta Wiederhecker. “É algo que estamos começando a explorar.” n Igor Zolnerkevic

Artigo científico ZHANG, M. et al. Synchronization of micromechanical oscillators using light. Physical Review Letters. v. 109, p. 233.906-10. 5 dez. 2012. pESQUISA FAPESP 204  z  49


tecnologia  bebidas y

Cerveja brilhante Uma fonte de luz inserida na fase de fermentação acelera o metabolismo das leveduras e aumenta a produção Marcos de Oliveira


Chris Stein / getty images

Í

cones recentes do mundo da eletrônica, presentes em telas de TV ou de computadores, ou ainda usados para substituir lâmpadas comuns, os LEDs acabam de ganhar uma nova e inusitada função. Eles agora servem também para acelerar a fase de fermentação na produção de cerveja, reduzindo o tempo gasto nesse processo de 15% a 20% sem alterar a qualidade da bebida. Isso acontece quando fontes de LEDs, diodos emissores de luz fabricados com material semicondutor na forma de dispositivos semelhantes a lanternas, são mergulhadas nas dornas em que as leveduras Saccharomyces cerevisiae se nutrem dos carboidratos do malte de cevada para produzir álcool, gás carbônico e consequentemente cerveja. A novidade foi elaborada no Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC-USP) e já está em uso na microcervejaria Kirchen na mesma cidade. Os pesquisadores da USP descobriram que sob determinados comprimentos de onda característicos de uma faixa do espectro vermelho e de outra do infravermelho o metabolismo da levedura se acelera. “A luz melhora a permeabilidade da membrana celular da Saccharomyces e isso favorece a troca entre o meio interno e externo da levedura. Assim ela metaboliza de forma mais rápida o açúcar contido no malte e excreta etanol e CO2 para fora do meio celular”, diz o pesquisador Éverton Estracanholli. Ele teve a ideia de usar a luz no processo de fabricação de cerveja enquanto pESQUISA FAPESP 204  z  51


Malte

Água

Lúpulo

Os LEDs são inseridos durante a fase de fermentação e podem encurtar o tempo do preparo da bebida em 20%

Levedura

1 preparo do mosto

LED

2 fermentação e maturação o metabolismo das leveduras. A fase seguinte é a maturação por períodos de até 21 dias, quando uma série de reações bioquímicas confere o aroma e o sabor definitivo da cerveja

A produção da cerveja começa com malte de cevada, água e, se for o caso, adjuntos cervejeiros como arroz e milho, formando um caldo, o mosto. Ele é aquecido para beneficiar algumas reações enzimáticas e depois fervido com a adição de lúpulo

O mosto é resfriado e adiciona-se a levedura Saccharomyces cerevisiae. Nessa fase, segundo os estudos realizados pela USP, os LEDs são mergulhados no líquido para acelerar

fazia seu doutorado no IFSC, desenvolvendo pesquisas junto com os professores Vanderlei Bagnato, orientador da tese, e Igor Policarpov. O alvo era o uso de luz para quantificar carboidratos em amostras de mosto cervejeiro na fase de fermentação. O mosto é formado por água e malte, além de outros cereais dependendo da cerveja, que são misturados e aquecidos até a formação de um caldo açucarado. Depois da separação dos grãos, o mosto recebe o lúpulo (inflorescência de uma planta aromática em forma de pellets), que confere o amargor e parte do aroma da bebida, e é fervido. Então, ele segue para a fermentação em que são adicionadas as leveduras. “A incidência da luz nas células da levedura facilita a troca de elétrons no ciclo de Krebs, que é uma sequência de reações químicas associada ao processo respiratório das células. Assim os elétrons ficam pulando de uma cadeia para outra e aceleram as reações”, diz o pesquisador. “Ao interagir com a luz, vários tipos de moléculas apresentam estados eletrônicos excitados, o que altera o processo biológico no nível molecular”, diz Bagnato. “A reação química que ocorre dentro do mosto cervejeiro envolve grandes transferências de elétrons de certas moléculas para outras e a luz aumenta a velocidade dessas transferências”, explica. “Mas não é qualquer luz que serve, é preciso determinar os parâmetros, porque existem doses e faixas de luz que matam as leveduras. Nosso estudo identificou as cores [comprimentos de onda], a intensidade

de luz utilizada, a dose fornecida e o tempo de iluminação necessária”, explica Estracanholli. A fotoestimulação em sistemas biológicos é um fenômeno conheOutro cido. A utilização de lasers e LEDs equipamento em leveduras como a própria Saccharomyces ou Endomyces magnusii, com LEDs ou bactérias como a espécie Escherichia coli, já demonstrou ser estipoderá quantificar mulante da atividade respiratória desses microrganismos e assim fae monitorar a vorecer a reprodução celular. “Popresença de álcool rém, até agora, não encontramos na literatura científica citações sobre e carboidratos o uso de radiação eletromagnética [a luz visível ou infravermelho] na fabricação para acelerar os processos de fermentação, sejam alcoólicos ou não da bebida alcoólicos”, diz o pesquisador. O novo processo gerou um depósito de patente com os três pesquisadores como inventores e a USP como provedora. O físico que já tinha o hobby de fazer cerveja em casa herdado do pai resolveu utilizar os LEDs em sua produção caseira que logo se transformou na microcervejaria Kirchen. Estudioso do assunto, ele chegou a ganhar um prêmio como a melhor cerveja do tipo Irish Red Ale – cerveja de cor vermelho-escura com sabor seco e de malte bem acentuado – na edição 2012 do Concurso Nacional das Acervas, as associações regionais de cervejeiros artesanais.

52  z  fevereiro DE 2013

infográfico ana paula campos  ilustração alexandre affonso

Processo de produção de cerveja


Barril

Latas

Garrafas

3 filtragem

4 envase para consumo

Impurezas e materiais particulados, como leveduras residuais, são retirados e a cerveja torna-se transparente

A cerveja em garrafas e latas é pasteurizada para eliminar microrganismos e ter validade maior. Nos barris é para consumo rápido fonte Éverton Estracanholi

qualquer alimento industrial, como massa de tomate, por exemplo.” Os pesquisadores também acreditam que o uso será possível na indústria sucroalcooleira tanto para monitorar produção de etanol como para verificar a quantidade de açúcar presente na cana ainda no campo. A emissão de luz sobre o caule, a análise da resposta espectral, que é a parte de luz absorvida pelo material, e o consequente processamento das informações por um computador, em poucos segundos, podem mostrar a hora certa do corte da cana. Os primeiros protótipos desses aparelhos deverão ser iniciados ainda neste ano. “Durante a elaboração da tese de doutorado de Éverton, ele demonstrou a viabilidade de monitoramento em tempo real do álcool e dos carboidratos. Agora, por meio do convênio da USP com a empresa que ele constituiu, deverá ser dado um passo adiante para mostrar a funcionalidade desse conceito. Na produção-piloto que ele está montando, que já é diferente de um pequeno protótipo de laboratório, a ideia é gerar um equipamento que possa ser empregado na fabricação de vários tipos de bebida”, diz Bagnato. “O objetivo é usar feixes de fibras ópticas que levarão a luz até o material a ser analisado e farão a coleta dos componentes da luz que não foram absorvidos. Com isso será possível fazer o monitoramento em tempo real do processo produtivo”, diz. O sistema também utiliza redes neurais artificiais que são programas baseados em neurônios biológicos capazes de aprender por meio de exemplos utilizando interconexões computacionais e matemáticas. Em tempo real

fotos eduardo cesar

Acima, difusores na ponta dos LEDs deixam todo o liquido iluminado. Ao lado, experimento na empresa Kirchen, em São Carlos

Outro experimento realizado no IFSC e com depósito de patente dos mesmos três pesquisadores e a USP é a aplicação de técnicas de análise para monitorar e quantificar a presença de carboidratos e álcool, em curto espaço de tempo, na produção de cerveja. A técnica que eles desenvolveram determina a quantidade de açúcares e álcool presente no mosto em fermentação. “Ela age a partir da absorção obtida pela reflexão da luz incidida sobre uma amostra de cerveja ou

Dentre os processos de fermentação possíveis de serem analisados com arranjos de LEDs em faixas de luz visível e infravermelho estão a fermentação de caldo de cana para obtenção de etanol combustível ou produtos destilados como a cachaça, além de vinagres e derivados. Na produção específica de cerveja o novo sistema de análise em tempo real na linha de produção poderá quantificar os principais carboidratos presentes na fermentação do mosto da bebida, como glicose, maltose, maltotriose e dextrina, além do etanol. A prática fabril atual em todo o mundo é a coleta de amostras na linha de produção e a posterior análise em laboratório, que quase sempre está dentro da própria fábrica. “A realização dessas análises na própria linha de produção é pouco ou quase nada usada”, diz Bagnato. Para o professor Waldemar Venturini Filho, da Faculdade de Ciências Agronômicas da Universidade Estadual Paulista (Unesp) na cidade de Botucatu, que trabalha há mais de 20 anos com fermentação e estudos de cerveja – e também participou da banca de doutorado de Estracanholli –, o novo equipamento de análise em pESQUISA FAPESP 204  z  53


fotos  1 e 2 eduardo cesar  3 e 4 fábio colombini  5 iac

tempo real da produção é fantástico e deve favorecer principalmente o controle da fermentação alcoólica, considerado o coração do processamento da cerveja. “É um sistema promissor e poderá inclusive ser usado na academia em estudos dos processos fermentativos”, diz Venturini. Apoio da universidade

O professor Bagnato acredita que o projeto em parceria da USP com a Kirchen poderá gerar um produto inovador. “Quem sabe, no futuro, combinar a análise em tempo real com a estimulação fotônica deverá produzir uma forma totalmente diferente de promover e controlar a fermentação. Assim, a luz injetada no sistema se tornará um novo parâmetro na área”, diz. “A minha filosofia é que as empresas nascentes devem ter apoio dos laboratórios que as produziram, no caso o IFSC. A empresa do Éverton não poderá de imediato ter toda a infraestrutura que temos na USP. Dessa forma, é essencial que tenhamos uma colaboração, disponibilizando nossos equipamentos para que ele realize as caracterizações e outros estudos que se tornam difíceis de outro modo. Essa é a verdadeira forma de gerar um spin-off no meio acadêmico”, acredita Bagnato, que também é coordenador-geral da Agência USP de Inovação. Os equipamentos de controle e estimulação fotônicos deverão servir, principalmente no iní-

1

cio, às microcervejarias, um ramo que cresce no país levado pela curiosidade dos consumidores brasileiros e pela melhor aceitação de cervejas premium ou gourmet. Elas são mais caras porém feitas com ingredientes mais refinados, maiores porcentagens de malte e lúpulos especiais, além do maior tempo na maturação, a fase

Microcervejarias que produzem cervejas especiais ou premium podem ser as primeiras fábricas a experimentar os LEDs na produção

Frutas tropicais e mel A relação cerveja e academia também

nessas frutas e também os compostos

já ganhou outros caminhos, além

aromáticos que podem incrementar

da presença da bebida nos centros

as cervejas feitas nesta região do país”,

acadêmicos. Os estudos têm se

diz o professor Giovani Brandão

concentrado em encontrar formulações

Carvalho, coordenador do grupo.

inovadoras e agregar novos adjuntos

Para estudar essas composições

2

cervejeiros, como são chamados os

ele montou uma minicervejaria no

outros ingredientes que substituem

Laboratório de Fermentação da

Além de um leve gosto da fruta na

parte do malte de cevada e servem

UEFS dentro do Programa de Apoio

bebida, ela possui alto teor de potássio.

para diminuir o custo de produção e

a Núcleos Emergentes (Pronem)

“Ela tem 600 miligramas [mg] de

tornar a bebida mais leve. As grandes

com recursos da Fundação de Amparo

potássio ante 200 mg em 1 litro

cervejarias utilizam milho e arroz para

à Pesquisa do Estado da Bahia e

de uma pilsen comum”, diz Carvalho.

esse fim. Eles aparecem nos rótulos

Conselho Nacional de Desenvolvimento

“Publicamos dois artigos em revistas

como cereais não maltados. No Brasil,

Científico e Tecnológico (CNPq).

científicas internacionais e agora ela

o caminho mais recente em pesquisa

“Queremos trazer microcervejarias

já está sendo fabricada na Costa Rica”,

de adjuntos cervejeiros em ambiente

e fortalecer a agricultura familiar na

diz o professor, revelando que foi

acadêmico vem da Bahia. Um grupo

região”, diz Carvalho. Os estudos com

inocente ao não fazer uma patente do

de pesquisadores na Universidade

cerveja começaram no seu doutorado

processo. Para as próximas ele já cuida

Estadual de Feira de Santana (UEFS)

na Escola de Engenharia de Lorena

da propriedade intelectual. O professor

estuda a produção de cerveja, com

da USP. Sob a orientação do professor

Almeida e Silva acredita que esse

frutas encontradas no semiárido

João Batista de Almeida e Silva, ele

tipo de cerveja seria ideal se tivesse até

nordestino, como umbu, cajá e cacau,

desenvolveu uma cerveja pilsen tendo

1% de álcool porque serviria para repor

entre outras. “Queremos aproveitar a

banana como adjunto misturado em

nutrientes em esportistas. Ele também

alta fonte de carboidratos encontrados

forma de suco ao mosto cervejeiro.

já fez experimentos com o uso de

54  z  fevereiro DE 2013

Banana, cajá, umbu-cajá e arroz-preto estão entre os ingredientes que podem substituir parte do malte de cevada nas cervejas e são objeto de pesquisa acadêmica


final da fermentação da cerveja, responsável pela harmonização do sabor e aroma da bebida. No Brasil, existem cerca de 180 microcervejarias, além de 30 cervejarias de médio porte com mais de 60 marcas. Juntas, elas ainda O Brasil passou, estão longe da produção das grandes em 2010, cervejarias como Ambev – detentora das marcas Brahma, Antarctica, Skol a ser o terceiro e Bohemia –, Schincariol e Heineken, também proprietária das marcas Kaiprodutor ser e Bavaria. “Nosso mercado futuro tanto para o equipamento que leva o mundial de LED para acelerar a fermentação cocerveja, atrás mo o que faz análise em tempo real da produção está voltado principalmente da China e dos para as microcervejarias, mas também deve atingir unidades da grande indúsEstados Unidos tria”, prevê Estracanholli. Ao saber do potencial da estimulação de LEDs nas leveduras durante o processo de fermentação, André Oliveira, sócio da microcervejaria Mão na Roda, de Botucatu, há dois anos no mercado, disse que seria muito bom ter um equipamento desse porque a produção poderia crescer sem a necessidade de aumentar a área da fábrica. “Acredito que para as grandes empresas o uso dos LEDs na fermentação também poderá ser uma boa novidade”, diz

Estracanholli. “Não existe equipamento semelhante no mercado.” Conforme o relatório Global Beer Consumption by Country in 2010, do Instituto de Alimentação e Estilo de Vida, da empresa de bebidas Kirin do Japão, que em 2011 comprou a brasileira Schincariol, o Brasil é o terceiro maior produtor de cerveja do mundo, com 12,1 bilhões de litros produzidos em 2010, atrás da China, 44,6 bilhões, e dos Estados Unidos, 24,1 bilhões, e ficando à frente da Rússia e da Alemanha. Em consumo per capita de cerveja os brasileiros estão em 27º lugar, com 65 litros por habitante, enquanto os líderes são a República Tcheca com 131 litros, seguida da Alemanha, com 106, Áustria, 105, e Irlanda, 103. A líder em produção, a China, está em 49º lugar com 31 litros em consumo. Segundo a Kirin, o crescimento da produção cervejeira no Brasil foi de 16% em relação a 2009. No total, o faturamento das vendas totais de cerveja no país atingiu a marca de R$ 62 bilhões em 2010. n

3

4

5

arroz-preto, do Instituto Agronômico (IAC)

e Silva estão o uso do pinhão e do

devem ser neutros e não conferir sabor

de Campinas, como adjunto de cerveja.

caldo de cana, também como adjuntos.

e aroma à cerveja. Nas microcervejarias

Projeto Estímulo a projeto de inovação em biofotônica – nº 1998/14270-8. Modalidade: Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid), Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica de São Carlos. Coordenador: Vanderlei Bagnato – USP. Investimento: R$ 180.000,00 apenas para o subprojeto que durou três anos (FAPESP)

“Nosso intuito foi aproveitar a perda

Outro experimento, dessa vez

de até 25% do arroz-preto durante

realizado pelo professor Waldemar

são usados para enriquecer o aroma

o beneficiamento, que se quebra

Venturini Filho, da Unesp de Botucatu,

e o sabor da cerveja.”

facilmente e não tem valor de mercado.

resultou em uma cerveja com mel

O resultado foi uma cerveja tipo pilsen

na formulação. “Para uma bebida ser

um pouco escura, quase marrom, que

considerada cerveja pela legislação

possui o processo patenteado”, diz.

brasileira é preciso que ela tenha pelo

Em um projeto com a Universidade

menos 55% de malte. Assim, entre as

Estadual do Amazonas, ele já

cervejas do tipo comum, extra e forte,

experimentou com bons resultados

definidas pelo tempo de maturação

a semente da palmeira pupunha, muito

e teor alcoólico crescente, apenas

utilizada para extração de palmito.

a última apresentou sabor e aroma

“A semente é pouco aproveitada e tem

mais evidente em relação ao mel”,

alto teor de amido”, diz. Entre os atuais

diz Venturini Filho. “Nas cervejarias

experimentos do professor Almeida

industriais os adjuntos, milho e arroz,

os adjuntos, como frutas, mel e outros,

Projetos 1. Utilização de mel como adjunto de malte na elaboração de cerveja – n° 2011/21823-0; 2. Obtenção de cerveja pelo processo de alta densidade, utilizando como adjunto o arroz-preto iac 600 (Oryza sativa) – n° 2007/01347-3. Modalidades: 1. e 2. Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa. Coordenadores: 1. Waldemar Venturini Filho – Unesp; 2. João Batista de Almeida e Silva – USP. Investimento: 1. R$ R$ 17.921,50 e US$ 13.290,00 (FAPESP); 2. R$ 102.818,27 e US$ 26.708,00 (FAPESP).

pESQUISA FAPESP 204  z  55


silvicultura y

Mais celulose por centímetro quadrado Eucalipto transgênico rende 20% a mais que árvore convencional Evanildo da Silveira

56  z  fevereiro DE 2013

N

a aparência, a pequena plantação de 2,2 hectares de eucaliptos, numa fazenda no município de Angatuba (SP), não tem nada de incomum. Mas as diferenças existem e estão nas células dessas árvores que receberam a inserção de um gene de outra espécie, a Arabidopsis thaliana, uma planta-modelo muito usada em experimentos genéticos. Com a alteração, elas se tornam capazes de produzir 20% mais madeira em relação aos congêneres Eucalyptus. A pequena floresta de eucaliptos transgênicos em crescimento é um dos quatro plantios experimentais dessa árvore geneticamente modificada realizados pela FuturaGene, empresa dedicada ao melhoramento da produtividade e sustentabilidade de florestas cultivadas para os mercados de celulose, bioenergia e biocombustíveis. O objetivo é avaliar a biossegurança dos transgênicos para verificar se eles causam impactos e interferências no ambiente e em outros vegetais. A FuturaGene foi fundada em Israel, em 1993, como uma empresa incubada na Universidade Hebraica de Jerusalém, dedicada à engenharia de proteínas, com o nome de CBD Technologies. Em julho de 2010 ela foi comprada pela brasileira Suzano Papel e Celulose. Os experimentos realizados no interior paulista, na Bahia e no Piauí são um passo necessário para a liberação comercial de plantas geneticamente modificadas, exigido pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), órgão responsável no Brasil pela avaliação de produtos transgênicos. “Esses quatro plantios que realizamos em 2012 totalizaram nove hectares”, conta Eugenio Ulian, vice-presidente de assuntos regulatórios da FuturaGene. “O objetivo é fazer observações e colher dados para atender aos requisitos da lei de biossegurança e no futuro apresentar um pedido de liberação comercial à CTNBio.


léo ramos

A perspectiva é de que esse produto possa ser aprovado para uso comercial em aproximadamente quatro anos.” O gene que foi introduzido no eucalipto codifica uma das enzimas específicas que participam da formação química da celulose, a endoglucanase. “A FuturaGene descobriu uma forma de, por meio da expressão do gene da Arabidopsis thaliana para essa enzima nas plantas, alterar a estrutura da parede celular (que é composta de celulose) das árvores transgênicas”, diz Ulian. “Dessa forma, o gene exógeno faz com que as células depositem mais celulose na formação das paredes celulares da árvore, o que, no caso de espécies como o eucalipto, resulta num maior volume de madeira.” A parede das células de uma planta é um composto químico que consiste de celulose, um polímero de unidades de glicose, emaranhada em outros polímeros complexos, como hemicelulose e lignina. Isso forma uma estrutura rígida em volta da célula vegetal, que relaxa apenas para permitir que ela aumente de tamanho e se divida. “A tecnologia da FuturaGene torna possível a produção de espécies com paredes celulares modificadas, capazes de acelerar seu relaxamento e sua reconstituição durante o crescimento normal da árvore”, explica Ulian. “A inserção do novo gene no eucalipto resulta em um crescimento acelerado e maior produtividade.” São bons motivos para que as indústrias de papel e de energia se sintam atraídas por essa tecnologia. A celulose extraída da parede celular da planta é a matéria-prima de toda fibra industrial utilizada na fabricação de papel, chapas e madeira. Além disso, gera material para uma série de outros produtos florestais ou agrícolas, incluindo os açúcares que serão usados no Eucalipto geneticamente futuro na produção modificado com do etanol de segunda 6 anos de idade, geração, ou ainda em em Angatuba, compostos químicos no interior paulista pESQUISA FAPESP 204  z  57


utilizados em bioplásticos. No caso do eucalipto transgênico desenvolvido pela FuturaGene, além de produzir 20% a mais de celulose do que as plantas normais – que geram em média 45 metros cúbicos por hectare –, ele pode aumentar a produtividade de madeira de 30 a 40% para uso em outras aplicações, como em bioenergia, por exemplo. Até chegar a essa planta geneticamente modificada, a FuturaGene percorreu um longo caminho. As primeiras pesquisas, que levaram ao eucalipto transgênico, começaram a ser realizadas logo depois de sua fundação na Universidade Hebraica de Jerusalém. “Muitos estudos foram realizados com diversos genes envolvidos na formação da parede celular que foram clonados e introduzidos para superexpressão em espécies-modelo como a própria Arabidopsis, em álamo e no próprio eucalipto”, conta Ulian. “O gene de endoglucanase foi escolhido para continuar os trabalhos porque apresentou os melhores resultados.” A FuturaGene já plantou 12 áreas experimentais com eucalipto transgênico. Os primeiros cultivos foram realizados

A empresa faz plantios com sementes oriundas do cruzamento de transgênicos com plantas convencionais para verificar a produtividade

1 Laboratório de biotecnologia na FuturaGene, na cidade de Itapetininga (SP)

1

2 Manipulação de folhas de eucalipto para replantio 3 Duas fases de plantio transgênico em Angatuba 2

em 2006 e 2007 em Israel e no Brasil. Os trabalhos continuaram depois de sua aquisição pela Suzano, com novos plantios no Brasil. Em 2012, além dos nove hectares cultivados com a espécie geneticamente modificada original, outros seis foram plantados com sementes oriundas de cruzamentos realizados entre o transgênico e matrizes convencionais, visando selecionar clones melhorados com a característica de aumento de produtividade. Desde 1998 a Suzano também desenvolve projetos em parceria com o professor Carlos Alberto Labate, do Departamento de Genética da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo (USP). “São trabalhos voltados para a área de biotecnologia e genômica funcional do eucalipto”, conta Labate. “Nós já tivemos dois projetos financiados pelo Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite) da FAPESP aprovados e agora estamos no terceiro.” No primeiro projeto Pite o objetivo era o de desenvolver a metodologia de transformação genética do eucalipto. “O meu aluno de doutorado Esteban Roberto González foi contratado pela Suzano e hoje é o gerente de pesquisa e desenvolvimento da FuturaGene”, diz o pesquisador da Esalq, que assumiu em janeiro a função de diretor do Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE). “A metodologia que desenvolvemos foi patenteada e todo o conhecimento que geramos foi de certa maneira transferido para a empresa. Além disso, até hoje nós realizamos reuniões frequentes e treinamentos de pessoal na FuturaGene, o que nos permite uma interação muito boa com a empresa.”

3

No segundo projeto Pite o pesquisador da Esalq desenvolveu várias plantas transgênicas de eucalipto com alteração na expressão de genes relacionados à síntese de carboidratos da planta. “O objetivo do projeto foi aumentar a quantidade de xilanas na madeira do eucalipto”, explica. “Essas plantas transgênicas estão com a FuturaGene, que deve realizar os ensaios de campo.” A xilana é uma hemicelulose, um polímero de xilose (um açúçar presente na madeira), que tem um papel importante no branqueamento de polpas de celulose e nas propriedades do papel. Modificar os teores desse açúcar 58  z  fevereiro DE 2013

fotos  1 e 2 futuraGene e 3 léo ramos

Teores de açúcar


infográfico  ana paula campos

na planta permite aumentar a produção e diferenciar as propriedades das polpas e dos papéis produzidos. Para 2013, os planos da FuturaGene são plantar 30 hectares com eucaliptos geneticamente modificados para testes. “O objetivo é testar novas alterações genéticas, que eventualmente poderão dar origem a outros produtos, com a mesma característica de aumento de produtividade já presente no primeiro eucalipto transgênico, mas contendo genes diferentes ou construções genéticas melhoradas”, informa Eduardo José de Mello, vice-presidente de operações Brasil e gerente de melhoramento florestal da FuturaGene. “Por isso, consideramos que os experimentos deste ano servirão para a seleção de novos produtos.” Além disso, a empresa está trabalhando em seus laboratórios para desenvolver espécies com resistência a pragas e doenças e que possibilitem um melhor manejo de plantas daninhas e melhoramento da qualidade da madeira. Além da biossegurança, nos testes que a FuturaGene realiza também está sendo verificado o comportamento do eucalipto transgênico em diferentes espaçamentos de cultivo. “Essa informação será importante para o planejamento de futuros plantios em função de sua finalidade, como produção de energia, chapas ou celulose, por exemplo”, diz Mello. “Devido à alta produtividade do transgênico e dependendo da finalidade da biomassa, as colheitas poderão ser realizadas em idades mais precoces, com 5 anos e meio.” O eucalipto convencional só atinge a mesma produtividade aos 7 anos. Hoje, de acordo com Mello, o Brasil detém a maior produtividade mundial na cultura do eucalipto. Esta superioridade foi alcançada em razão do clima favorável e do desenvolvimento tecnológico realizado no país. “O melhoramento genético convencional, por meio da seleção e propagação dos melhores indivíduos, ofereceu uma importante contribuição para os ganhos de produtividade, mas a tendência é que eles fiquem cada vez mais difíceis de ser superados”, diz Mello. “A biotecnologia, por meio do uso de transgênicos, será uma ferramenta importante para o Brasil manter-se na dianteira da produtividade e continuar competitivo no mercado de madeira de eucalipto e seus derivados.” A Suzano é atualmente a segunda maior produtora mundial de

Crescimento acelerado O eucalipto transgênico ocupa menos tempo a terra e se torna mais rentável para todo o segmento de papel e celulose convencional transgênico

convencional

Tempo de maturação

A inserção de um novo gene reduz o tempo entre o plantio e a colheita

5,5 anos

Produção de celulose

O transgênico produz 20% mais celulose porque o tronco é mais largo que o tradicional

54

m3/ha

7

anos

45

m3/ha

fonte futuragene

A manipulação genética de plantas poderá ter um papel importante na manutenção e preservação das florestas nativas

celulose de eucalipto e a receita líquida da empresa atingiu R$ 4,8 bilhões em 2011, sendo que mais de 50% das vendas seguem para o mercado externo. A manipulação genética de plantas também poderá ter um papel importante na manutenção e preservação das matas nativas de todo o mundo. Segundo dados da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), há no planeta cerca de 4 bilhões de hectares cobertos com floresta, o que representa em torno de 27% da área das terras emersas do globo. Estima-se que hoje o consumo mundial de madeira chegue a cerca de 3,4 bilhões de metros cúbicos por ano, com previsão de um aumento de 25% até 2020. Para atender a essa demanda, as matas nativas do planeta são derrubadas a uma taxa de 12 milhões de hectares por ano. Segundo um estudo do Centro para Avaliação do Risco Ambiental de Culturas Geneticamente Modificadas (Cera), da Ilsi Research Foundation, uma fundação

que reúne instituições de pesquisa de todo o mundo, em 2000 as matas plantadas representavam apenas 5% do total de florestas do planeta, mas contribuíam com cerca de 35% da madeira colhida. Desde então a área de cultivo de espécies arbóreas aumentou para 264 milhões de hectares, o que representa 6,6% das selvas mundiais. Calcula-se que desde o final dos anos 1980, quando os primeiros vegetais transgênicos foram liberados para cultivos comerciais, já tenham sido realizados no mundo mais de 800 experimentos de campo com árvores geneticamente modificadas de cerca de 40 espécies. n

Projeto Genômica funcional aplicada à descoberta de genes de resistência a ferrugem do eucalipto – nº 2008/50361-1. Modalidade: Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite). Coordenador: Carlos Alberto Labate – USP. Investimento: R$ 330.195,78 e US$ 242.235,41 (FAPESP) e R$ 1.376.000,00 (Suzano) pESQUISA FAPESP 204  z  59


biotecnologia y

Alta produtividade Instituto Butantan e Recepta produzem as primeiras linhagens de anticorpos monoclonais para tratamento de câncer

60  z  fevereiro DE 2013

H

á cerca de 20 anos o Instituto Butantan desenvolve estudos para a produção de anticorpos monoclonais e, em 2012, atingiu o mais alto grau de especialização neste tipo de molécula quando foi finalizada uma linhagem celular de alta produtividade e estabilidade que é candidata a combater vários tipos de câncer. Num projeto de parceria com a empresa paulistana Recepta, que recebeu financiamento da FAPESP e da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), a equipe liderada pela professora Ana Maria Moro produziu o material biotecnológico com características escalonáveis pronto para entrar em uma linha de produção. A Recepta enviou o material para uma empresa na Holanda onde está sendo produzido o anticorpo que poderá se tornar um medicamento no futuro. Esse produto na forma de ampola será usado em testes clínicos que começam neste ano. Inicialmente serão testes de toxicidade, na fase 1 dos ensaios clínicos, depois o anticorpo monoclonal que leva o nome de RebmAb 200 será avaliado em relação aos efeitos terapêuticos. Somente após os resultados se apresentarem positivos é que a droga poderá ser liberada para a comercialização. Os anticorpos monoclonais são um produto biotecnológico que ganha importância no tratamento de cânceres. Eles reconhecem e se ligam de forma seletiva a determinadas moléculas na superfície dos tumores, caracterizadas como antígenos. Com isso, podem agir diretamente na célula tumoral ou ativar o sistema imunológico dos pacientes que passa a combater os tumores. “No mundo já existem 30 medicamentos com anticorpos monoclonais aprovados para uso comercial. Desses, 13 são para cânceres e os restantes estão relacionados principalmente a doenças autoimunes e à rejeição em transplantes”, diz Ana. Identificar anticorpos monoclonais e reproduzi-los é uma tarefa difícil, cara e demorada. No caso dos anticorpos da Recepta, tudo começou no Instituto Ludwig de Pesquisa contra o Câncer, de Nova York. Os pesquisadores injetaram células tumorais em ca-


léo ramos

mundongos e fizeram uma triagem para identificar e isolar os anticorpos produzidos pelos roedores. “Desenvolver anticorpos monoclonais diretamente de humanos é muito difícil no caso de câncer pela dificuldade em identificar e isolar células que possam reconhecer o tumor”, diz Ana. A empresa brasileira obteve os direitos e firmou um acordo com o Ludwig para pesquisar, desenvolver, realizar testes clínicos e comercializar quatro anticorpos. Depois a Recepta procurou o Butantan e formou-se uma parceria para que os anticorpos pudessem ser desenvolvidos em formato humanizado que é a adaptação às características dos anticorpos do homem, além de serem clonados em grande escala laboratorial. A equipe de Ana Moro já havia realizado outros experimentos com anticorpos monoclonais, porém sem a alta produtividade e estabilidade necessárias para a fase de produção. Eles desenvolveram anticorpos monoclonais para controle de rejeição de transplantes com o Instituto do Coração (InCor) e com a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Por meio de financiamento próprio da empresa, de um projeto do Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite) da FAPESP e de um projeto da Finep, de parceria entre empresas e instituições de ciência e tecnologia, ambos coordenados por Ana Moro, o Laboratório de Biofármacos do Butantan, em 2007, foi remodelado e recebeu equipamentos adicionais no valor de R$ 2,5 milhões. A partir daí seis pesquisado-

Microscopia de clones de células produtoras de anticorpo monoclonal humanizado

res do Butantan e mais cinco da Recepta passaram a trabalhar nos projetos. Eles tiveram a tarefa de transferir e expressar os genes com as sequências humanizadas do anticorpo para uma célula hospedeira. A partir dessa célula foram geradas centenas de clones. “Depois fizemos uma cuidadosa seleção desses clones analisando o crescimento das células, a produtividade e a capacidade de se ligarem a células tumorais in vitro”, explica Ana. No final foram escolhidos três que apresentaram potencial para tratamento de cânceres de ovário, rim e pulmão. A equipe agora finaliza as linhagens do RebmAb 100, que deve ser destinado ao tratamento de uma variedade de carcinoma epitelial (tecido que recobre certos órgãos do corpo humano), além de cânceres de mama e cólon.

“Com o RebmAb 200 fizemos um processo completo de geração de linhagens celulares em larga escala. Foi um trabalho pioneiro”, diz Mariana Lopes dos Santos, bióloga da Recepta, doutora em oncologia, que esteve na Austrália, na filial do Instituto Ludwig, onde recebeu treinamento para a realização de ensaios de caracterização dos anticorpos. “Acredito que teria sido muito difícil ter atingido esse resultado em outro lugar que não o Butantan, pela experiência acumulada em anticorpos monoclonais e processos de produção”, diz Mariana. Para José Fernando Perez, diretor-presidente da Recepta, professor aposentado da Universidade de São Paulo e ex-diretor científico da FAPESP, a parceria foi muito bem-sucedida. “Ela cumpriu de forma exemplar as finalidades do Pite. As atividades foram desenvolvidas em conjunto, com a geração de produtos e transferência de conhecimento tecnológico para a empresa.” Perez cita também o parecer de um dos assessores da FAPESP que, na avaliação do projeto, afirmou ser de importância estratégica para o país o domínio da tecnologia de geração de linhagens celulares de alta produtividade. n Marcos de Oliveira

Projeto Linhagens celulares de alta produtividade e estabilidade de anticorpos monoclonais humanizados para a terapia de câncer – nº 05/60816-8. Modalidade: Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite). Coordenadora: Ana Maria Moro – Instituto Butantan. Investimento: R$ 377.708,00 e US$ 810.616,85 (FAPESP) R$ 1.793.198,00 (Recepta)

No Butantan: plataforma de clonagem de anticorpos monoclonais pESQUISA FAPESP 204  z  61


humanidades   artes plásticas y

Os matizes

da boa vizinhança latino-americana Arquivos revelam interesses velados do governo americano em levar artistas brasileiros para Nova York

E

m 1958, o então vice-presidente Nixon visitou vários países da América Latina, incluindo o Brasil. Recebido com vaias e manifestações estudantis furiosas, chegou a ser cercado pela multidão, apedrejado e quase morto na Venezuela. Ficou evidente para a administração Eisenhower que a imagem dos EUA na região era péssima. Até então centrados no combate ao comunismo na Europa, o governo americano voltou seus olhos para o Sul, postura intensificada após a Revolução Cubana. As medidas econômicas para reverter essa situação são conhecidas. Já as iniciativas culturais da Guerra Fria, mais sutis, foram pouco estudadas no Brasil. “As artes serviram como estratégia para a construção de uma imagem positiva que o governo dos EUA usou para atrair simpatias. A Bienal de São Paulo, por exemplo, era um espaço privilegiado na execução desta ‘política de atração’, que, entre outras ações, promovia viagens de pesquisa para artistas e intelectuais”, conta Dária Jaremtchuk, professora de história das artes da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universidade de São Paulo (USP), autora da pesquisa Trânsitos e política: artistas brasileiros em Nova York durante a ditadura civil-militar no Brasil.

62  z  fevereiro DE 2013

Embora o governo americano não se concentrasse nos artistas, mas nos intelectuais em geral, figuras como Amilcar de Castro (1966 e 1971), Rubens Gerchman (1967), Hélio Oiticica (1970), Antonio Henrique Amaral (1973), Ana Maria Maiolino (1971), Antonio Dias (1972), entre outros, a partir dos anos 1960 passaram uma temporada em Nova York com bolsas concedidas por fundações como a Guggenheim e a Fullbright, bem como da Organização dos Estados Americanos (OEA). “Esse trânsito dos artistas visuais e o envolvimento com atividades políticas até hoje são pouco analisados a fundo, vistos como meros dados biográficos desconectados de um fenômeno maior ligado a fatores históricos comuns”, diz a pesquisadora. “Mesmo as manifestações contra a ditadura militar foram pouco mencionadas na bibliografia, assim como a aproximação desses brasileiros com a comunidade latino-americana que estava em Nova York”, conta. De início, Dária viajou aos EUA apenas para mapear as experiências desses brasileiros, mas as descobertas feitas nos arquivos americanos ampliaram o espectro da pesquisa. “Há muitos documentos com claras indicações das ações do governo americano para atrair artistas e intelectuais brasileiros. Até então esse trânsito parecia

todas as imagens que ilustram esta matéria foram gentilmente cedidas pelo mac-usp

Carlos Haag


Ainda assim, as instituições hoje negam que tenham concedido bolsas tendo por critério outros fatores que não o “mérito”. “É curioso que entre 1920 e 1950 apenas seis artistas receberam o auxílio, mas esse número sobe para 20 entre 1950 e 1970. Além disso, nos arquivos do governo americano há documentos que provam a participação das fundações nessa política”, conta Dária. Na contramão do esperado, a ditadura se empenhou em facilitar o trânsito. “Isso é visível pela criação do Brazilian American Cultural Institut (Baci), organização de intercâmbio vinculada ao Itamaraty, mas idealizada pela diplomacia americana, uma hipótese reforçada pela presença de congressistas americanos no seu board of directors”, nota a pesquisadora. Criado em 1964 e fechado em 2007, foi “esvaziado” em meados dos anos 1970, com a mudança de foco de Washington, agora interessado em conquistar “corações e mentes” na Ásia por causa da Guerra do Vietnã.

S Marcello Nitsche, Aliança para o progresso, 1965

apenas consequência do momento político repressivo que teria levado grupos a um ‘exílio’ em Nova York”, fala. “Mas Washington agiu sem levar em consideração especificamente o regime militar. Os EUA estavam interessados em receber esses brasileiros, sem se importar com o tipo de governo em vigor. Era importante estabelecer uma imagem positiva na América Latina”, diz. “Claro que há os famosos elementos ‘conspiratórios’ imperialistas, mas no caso das artes tudo é muito sutil, parte do ideal de setores da burguesia ilustrada americana que se viam como ‘civilizadores’, colaborando com o governo em ‘prol’ dos latino-americanos”, afirma Dária.

e Paris fora crucial para as experiências com a modernidade, para os artistas contemporâneos esse papel seria cumprido por Nova York, a despeito dos credos ideológicos e políticos, em geral antiamericanos, dos que se candidatavam às bolsas. “Os EUA se transformaram numa alternativa promissora para os artistas brasileiros que se ‘exilavam’, voluntariamente ou não, nas décadas de 1960 e 1970, apesar das contradições envolvidas na escolha”, analisa Dária. Os próprios artistas, no entanto, não gostam de ser rotulados de “exilados”, já que podiam voltar ao Brasil, onde, aliás, eram reconhecidos e viviam do seu trabalho, o que, com raras exceções (o caso de Antonio Henrique Amaral), não acontecia em Nova York. “Era difícil para os colegas latino-americanos entender por que os brasileiros voltavam para a ditadura. Mas eles não se sentiam ‘cooptados’ pelo governo americano, vendo-se numa perspectiva individualizada, não como um coletivo sujeito a políticas.” Nos EUA viveram as dificuldades da nova cidade, com pouco dinheiro e uma grande falta de reconhecimento profissional no meio americano, o que provocou uma pausa ou a interrupção de seus trabalhos. Para o público americano, a arte latino-americana deveria ser figurativa, colorida e exótica. Não havia interesse em criações pESQUISA FAPESP 204  z  63


conceituais “internacionais” que não traziam uma marca regional, como, no passado, foram os muralistas mexicanos ou as pinturas de Frida Kahlo. “Também, repetindo a postura do governo americano, o público não via a arte brasileira de forma especial, colocando-a num bloco rotulado como arte latino-americana”, diz a pesquisadora. “Foi, no entanto, nesse ambiente que os brasileiros experimentaram uma perspectiva menos nacionalista, convivendo com um grupo heterogêneo e cosmopolita, onde a experimentação e a exploração dos suportes tecnológicos, como vídeo, fotografia e xerox, estavam na ordem do dia”, fala a professora. “Os brasileiros se juntaram aos latino-americanos na luta contra a visão massificadora e estereotipada da arte exótica. Até hoje, porém, são raros os artistas conceituais do Brasil que fazem sucesso nos EUA”, nota Dária. As palavras de Darcy Ribeiro foram precisas: o Brasil só descobriu a América Latina no exílio. Antonio Henrique Amaral, por exemplo, foi mais bem-sucedido que seus colegas, entre outros fatores, por usar a banana como temática de seus quadros. Para os americanos isso lembrava o Brasil dos tempos da “boa vizinhança” de Roosevelt na Segunda Guerra Mundial, com pitadas fortes de

64  z  fevereiro DE 2013

crítica à ditadura. “Nesse trânsito, os brasileiros se deram conta de que tinham pares, que havia sentimentos compartilhados com a América hispânica, até então desprezados. Não se formou uma identidade, mas um compartilhamento”, observa a professora.

A

Maureen Bisiliat, Sem título, 1968

temporada americana igualmente levantou novas discussões sobre o que era a arte, o uso de materiais e suportes diferentes dos costumeiros. “Amilcar de Castro, por exemplo, não tinha matéria-prima para suas esculturas e passou a empregar outras técnicas. Gerchman também repensou sua arte a partir do que viu nos EUA”, conta a pesquisadora. Vindos de um país em que o mercado de artes era tímido, com poucas galerias e exposições, a passagem por Nova York, nas palavras de um artista, os fazia sentir como “crianças num parque de diversões”. “Expostos a uma realidade intensa de mercado, cosmopolita, os brasileiros começaram a entender como funcionava o mundo moderno da arte e passaram essa experiência para a geração que se seguiu a eles, deixando marcas que ainda hoje são visíveis.” Por razões econômicas, os artistas viviam na parte “menos nobre” da metrópole, entre Tribeca e West End, onde seus apartamentos viravam estúdios e pontos de encontro. “Essas reuniões casuais ajudaram a definir os artistas latino-americanos como uma comunidade, criando células sociais em Nova York que permitiram que negociassem suas vidas cotidianas e preservassem suas diferenças do universo anglo-saxônico em que viviam. Como muitos artistas que não eram latino-americanos frequentavam esses espaços, havia sempre a chance de se ganhar visibilidade nos círculos mais tradicionais”, explica a historiadora americana Jacqueline Barnitz, da Universidade do Texas, autora do estudo Twentieth-century art of Latin America (2000). Mas, em geral, os artistas “em trânsito” optaram por construir uma cena de exposições e galerias paralela a esse mercado oficial. “Havia apenas um espaço expositivo em Nova York aberto à América Latina, por interesses empresariais explícitos por nosso continente: era o Center for Inter American Relations (Ciar), na elegante Park Avenue, com sede auspiciada pelo grupo Rockefeller. Na época mais dura do regime militar, contudo, a presença nesse espaço era vista por nós com grandes reservas. Hoje os jovens que expõem lá não têm ideia do ‘clima’ existente em torno desse espaço no início dos anos 1970”, diz Aracy Amaral, crítica de arte e professora aposentada de história da arte na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU-USP). A pesquisadora, porém, não acredita na relação entre as bolsas e uma política do governo ame-


Antonio Henrique Amaral, Brasiliana 9, 1969

Bienal de São Paulo, ao lado da Bienal de Veneza, era considerada “vitrine política” da Guerra Fria

ricano. “As bolsas da Guggenheim eram muito cobiçadas, consideradas como uma premiação para artistas, pesquisadores e cientistas, pois sua outorga era independente de critérios políticos, e sim por mérito. Podia-se ser de esquerda ou de qualquer facção política e obter a premiação desde que o projeto e o currículo fossem aprovados pelo exigente board”, fala. Segundo ela, mesmo nos anos 1960 Paris ainda era o destino preferencial de brasileiros, onde, a despeito de suas tendências pessoais, participavam com outros latino-americanos de exposições coletivas do continente. “Sentiam-se irmanados, em especial com a situação ditatorial que dominava os países do Cone Sul. O interesse pelos EUA começou como fenômeno novo em 1969, quando

Kynaston McShine, do Museum of Modern Arte (MoMA) de Nova York, esteve no Brasil e convidou Cildo Meirelles, Hélio Oiticica, Guilherme Vaz e Artur Barrio para a exposição Information, de 1970, considerada a primeira mostra coletiva de arte conceitual num museu americano”, lembra Aracy. A visita de McShine aconteceu no mesmo ano do boicote à X Bienal de São Paulo, organizado por artistas após uma série de censuras no meio artístico brasileiro. O chamado à não participação ganhou tamanha magnitude que impediu os EUA de estarem presentes, provocando desconfortos políticos e diplomáticos. Afinal, a Bienal paulista, ao lado da Bienal de Veneza, era considerada pelos políticos americanos como uma importante “vitrine política” no cenário da Guerra Fria. Até 1961 as representações americanas nesses eventos eram responsabilidade do MoMA, mas, a partir de 1962, a United States Information Agency (Usia) assumiu as mostras. Logo, a bienal do boicote incomodou os diplomatas americanos. “É preciso colocar maior importância na participação americana na próxima bienal. Nossa incapacidade de produzir uma grande exposição de arte em 1969 ainda é assunto de conversa frequente e uma fonte de embaraço”, escreveu um funcionário do Country Public Affairs Office, num memorando encontrado por Dária. pESQUISA FAPESP 204  z  65


M

ais de 80% dos artistas convidados não compareceram, a exemplo de Carlos Vergara, Gerchman, Burle Marx, Sérgio Camargo e Oiticica. Expositores dos Estados Unidos, México, Holanda, Suécia, Argentina e França juntaram-se ao protesto. Ciccillo Matarazzo, presidente da bienal, foi a Brasília para pedir o envolvimento do governo militar a fim de evitar o fiasco da próxima edição, além de solicitar ajuda financeira. O esforço foi bem recebido, pois o regime ficou preocupado com a “difamação da imagem do país” no exterior a partir das denúncias de tortura reveladas pelos exilados. Era preciso oferecer outro perfil do Brasil no estrangeiro. Foram organizadas mostras de artistas nacionais em diversos países para mostrar que havia “liberdade de expressão” no meio artístico. A partir de 1970 o Itamaraty passou a organizar exposições sistematicamente, bem como levantar fichas de artistas no país e no exterior. “Chegou-se a fazer uma ‘lista negra’ de quem poderia ou não receber auxílio do governo, como me contou o embaixador Rubens Ricupero, responsável pela Divisão de Difusão Cultural do Itamaraty entre 1971 e 1974”, conta Dária. “Ele chegou a trabalhar próximo da Assessoria Espe-

Antonio Dias, Fumaça do prisioneiro, 1964

cial de Relações Públicas (Aerp), pois o governo queria diminuir a força dos relatos dos exilados.” A diplomacia brasileira foi, então, convocada a ajudar no esforço para trazer de volta, em 1971, os países ausentes na bienal de 1969. “Era fundamental a presença dos EUA e sua ausência não poderia significar desacordo político, como foi, por exemplo, o caso da Holanda, que se declarou contrária à ditadura”, fala a pesquisadora. Por meio do Baci e do próprio staff do Itamaraty, a chancelaria brasileira se transformou num agente importante para determinar quais exposições seriam levadas para fora. O aumento do investimento do Itamaraty nesse setor, logo após o boicote à bienal, afirma Dária, também é sintomático, quase um similar à “política de atração” dos EUA. Apesar disso, os artistas americanos novamente não vieram na XI Bienal. Jornais brasileiros questionaram a declaração americana de que a ausência se devia à “falta de recursos” de Washington. “O boicote internacional representou mais do que o cancelamento de uma exposição. Foi um golpe certeiro na influência da bienal como catalisadora dos desenvolvimentos mais recentes nas artes visuais da América Latina”, observa a historiadora Claudia Carliman, do John Jay College de Nova York, autora de Brazilian art under dictatorship (Duke University Press, 2012). A historiadora lembra que o boicote só foi encerrado em 1979, quando o governo brasileiro concedeu anistia a prisioneiros políticos. “Assim, artistas visuais, que não eram vistos como ameaça pelo regime e não sofriam o controle rígido exercido sobre o teatro, a música ou a literatura, ajudaram a denunciar no exterior os abusos da ditadura. Além disso, estavam dispostos a reconfigurar o papel do público, questionar o mercado de arte e desafiar o poder e a legitimidade das instituições artísticas”, observa a pesquisadora brasileira.

E

sse debate surge, curiosamente, como decorrência inesperada da “política de atração” americana. “O interesse crescente dos chamados centros hegemônicos pela arte produzida em países culturalmente distantes também favoreceu o aprofundamento do debate conceitual nas ‘margens’, ao provocar uma relação tensa e conflitante com a leitura ‘externa’”, afirma Maria Morethy Couto, professora de história da arte da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que está pesquisando o tema em O trauma do moderno: arte e crítica de arte na América do Sul (1950-1970). Segundo Dária, isso consolida a ideia de um “trânsito”, e não de exílios. “A arte brasileira desse período, de certa forma, acontece nesse percurso Brasil-EUA. A bienal do boicote vai resultar na Contrabienal, uma publicação que se transformou em manifesto político conduzido por grupos de artistas latino-americanos em Nova

66  z  fevereiro DE 2013


Carlos Zilio, Para um jovem de brilhante futuro, 1973/74 (acima) Rubens Gerchman, É proibido dobrar à esquerda, 1965 (ao lado)

Interesse americano, aos poucos, foi decaindo e, com ele, a chance de inserção dos brasileiros nos EUA

York, um dos casos em que a comunidade desenvolveu projetos em conjunto”, fala a pesquisadora. “Fruto do mesmo contexto será o Museo Latinoamericano, resposta dos artistas às políticas conservadoras do Center for Inter-American Relations, em cujo conselho estavam figuras como Dean Rusk e Lincoln Gordon, ligados a golpes militares em vários países do Cone Sul. A ideia era criar um museu feito a partir de vários ateliês. O público receberia um mapa com os endereços e passaria a conhecer diretamente a produção sem passar pelos trâmites tradicionais”, conta a professora. Foi a partir de Nova York, por meio do Museo Latinoamericano, que veio a proposta da ampliação do boicote de 1969 e das denúncias da prática da tortura nas ditaduras. Gerchman, por exemplo, participou do movimento do museu, ao mesmo tempo que se distanciou dos desenhos e pinturas ligados às imagens urbanas e cariocas que o vinculavam à Nova Figuração. O abandono dos pincéis e a utilização de palavras nesse período, porém, não podem ser creditados ao ambiente conceitual americano, mas como desdobramentos de questões iniciadas no Rio. “No entanto, as proposições plástico-poético-visuais seriam pro-

blematizadas de outra forma na atmosfera nova-iorquina”, observa Dária. As peças se encaixam com perfeição ao se pensar no trânsito de artistas. Mas o interesse americano, aos poucos, foi decaindo e, com ele, a chance de inserção dos brasileiros nos EUA. “Instituições com obras de latino-americanos, como o MoMA, por exemplo, não se preocupavam em expor mostras permanentes dessas peças. A falta de representação de artistas latino-americanos em museus americanos deixava as galerias relutantes em promovê-los. O público, por sua vez, não se interessava por obras de estrangeiros sem espaço nas instituições mais respeitadas, o que parecia indicar que não eram dignas de atenção”, diz a pesquisadora. No Brasil, o Baci foi, cada vez mais, sofrendo com a falta de verbas, até que, em 2007, foi desativado, quando o governo Lula declarou que em sua política externa os EUA não eram mais prioridade. “Do mesmo modo, se a América Latina foi deixando de ser um foco dentro da política do governo americano, com menos atividades oficiais para as artes, nas últimas décadas a função de aproximação passou a ser feita pelo mercado de arte”, observa Dária. A promoção, hoje, é realizada por galerias e feiras, e só assim os museus passam a se interessar um pouco mais pela diversidade da produção dos países da América Latina. n

Projeto Trânsitos e exílios: artistas brasileiros nos Estados Unidos durante a ditadura militar no Brasil – nº 2011/08888-5. Modalidade: Bolsa de Pesquisa no Exterior. Coordenadora: Dária Gorete Jaremtchuk – USP. Investimento: R$ 29.105,04 (FAPESP), R$ 242.235,41 (FAPESP) e R$ 1.376.000,00 (Suzano). pESQUISA FAPESP 204  z  67


diplomacia y

O tamanho do

Brasil no mundo Política externa da redemocratização buscou maior autonomia, mas sem abrir mão de sua essência

Prédio do Ministério das Relações Exteriores, Brasília 68  z  fevereiro DE 2013

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fotos 1 clara lacerda  2 PEDRO MENDEZ / afp

diplomacia existe para defender o Estado, não um governo”, afirma o embaixador Fernando de Mello Barreto. “Daí, a perenidade da política externa brasileira, com uma linha de coerência suprapartidária ligada, como a maioria dos países, aos interesses econômicos, que são permanentes. No caso brasileiro, isso vai ainda mais longe: as determinações da nossa política externa estão na Constituição”, explica. Não se trata de mera opinião. Barreto “prova” essa estabilidade, na contramão do senso comum, numa minuciosa análise da atuação dos chanceleres dos últimos 25 anos que resultaram em A política externa após a redemocratização (Fundação Alexandre de Gusmão). Nas quase 1.400 páginas do estudo, o que se percebe é que, apesar dos diversos presidentes, o Itamaraty é uma rocha de estabilidade. “Claro que há diferenças de prioridade entre os vários governos, em geral sutis, apesar da aparência externa de ‘ruptura’, em geral mudanças de rota por causa de alteração no quadro externo, que demanda ajustes. Mas são raros os momentos de alteração de políticas tradicionais”, analisa o diplomata. Mesmo o advento da redemocratização não mudou o quadro: Olavo Setúbal, chanceler de José Sarney e o primeiro após o fim da ditadura, em

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seu discurso de posse afirmou que daria continuidade à política exterior dos militares. O que Barreto comprova pela trajetória cronológica dos chanceleres é a tese da pesquisa de Tullo Vigevani, professor titular aposentado da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e pesquisador do Centro de Estudos de Cultura contemporânea (Cedec) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Estudos dos Estados Unidos (INC-Ineu), apoiada pela FAPESP. “Mesmo no governo Lula não se viu uma ruptura significativa com paradigmas históricos da política externa, mas uma mudança nas ênfases dadas a certas opções abertas anteriormente à nossa ação exterior”, analisa Vigevani. “O que há são tradições diplomáticas distintas, com diferenças nas ações, nas preferências e nas crenças, buscando resultados específicos distintos, mas procurando não se afastar do objetivo sempre perseguido de desenvolver economicamente o país, preservando certa autonomia política”, observa. Assim, para o pesquisador, o conceito central que explica o desenvolvimento da política exterior, de 1985 até hoje, é a busca da autonomia. A hipótese de Vigevani está expressa em seu livro Brazilian foreign policy in changing times: the quest for autonomy from Sarney to Lula (Lexington Books),

Assinatura do tratado que criou as bases do Mercosul, em março de 1991 em Assunção, Paraguai. A partir da esquerda: Collor de Mello, Andres Rodriguez, do Paraguai, Carlos Menen, da Argentina, e Luis Lacalle, do Uruguai pESQUISA FAPESP 204  z  69


Presidentes e seus chanceleres

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ssim, apesar da inexistência da ruptura do governo Sarney (1985-1989), pressões americanas fizeram com que as chancelarias de Setúbal e Abreu Sodré adotassem posturas mais liberais e menos autárquicas, em razão da negociação da dívida externa e dos contenciosos das patentes farmacêuticas e da informática. O fim da Guerra Fria colocou o governo Collor (1990-1992) entre posturas divergentes na atuação diplomática: embora tenha se distanciado das práticas tradicionais, alinhando-se aos valores dos países desenvolvidos, aproximou-se do Cone Sul. Rezek e Celso Lafer (que voltou à chancelaria com FHC), seus ministros no Itamaraty, foram responsáveis pela formulação de uma política para o Mercosul, tratado assinado por

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que acaba de ganhar sua segunda edição nos EUA. Autonomia é entendida como a capacidade dos latino-americanos de se proteger contra os efeitos negativos do sistema internacional e da pressão feita pelos países mais poderosos. Ela seria expressa em três formas: pela distância desses países (opção do governo Sarney); pela participação ativa em instituições internacionais (como no governo Fernando Henrique); e pela diversificação de parcerias e fóruns de atuação (no governo Lula e ainda em vigor na administração Dilma).

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“A diplomacia é política, sempre. Basta ver que a grande maioria dos chanceleres veio da política”, afirma Barreto

fernando henrique cardoso

Collor, adaptado aos novos tempos de regionalismo aberto. “Invariavelmente, porém, presidentes e chanceleres deram alta prioridade às relações com os países vizinhos, em especial os muito próximos, como a Argentina, ainda hoje uma peça central para o consenso no Mercosul”, concorda Barreto. “Essa postura também veio com a redemocratização, que possibilitou ao Brasil perceber que temos problemas comuns com o resto da América Latina”, diz. Na gestão de FHC como chanceler de Itamar Franco e, mais tarde, como presidente (1995-2002), foram resgatados temas tradicionais da diplomacia brasileira, como a ampliação da autonomia nacional, sintetizada na pretensão brasileira de ocupar um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, uma ideia levantada ainda na administração Sarney. “Mais uma vez a diplomacia se beneficiou da democracia. Se estávamos num país redemocratizado, podia-se exigir o mesmo da ONU e das outras nações, o que explica a questão do assento permanente”, nota Barreto. “Claro que nos governos militares essa questão não poderia sequer ser levantada.” “Com o fim da ditadura, foram adotadas políticas de direitos humanos, de rejeição à proliferação de armas nucleares e de apoio às novas demandas ecológicas (nos governos Sarney, Collor, Itamar

fotos  divulgação / Itamaraty

fernando collor

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Luís inácio Lula da silva 2001

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Franco e FHC). O Brasil, agora, não estava comprometido com as denúncias dos governos militares e podia se colocar mais no cenário internacional, buscar maior autonomia, facilitando o trabalho dos diplomatas”, fala Barreto. Segundo Vigevani, o ápice desse novo movimento se deu no governo FHC, quando se buscou internalizar as mudanças liberais propostas pela globalização, ao mesmo tempo mantendo-se o apoio a instrumentos econômicos estatais. “Era uma perspectiva cooperativa, sem deixar de denunciar as assimetrias internacionais e criticar a política americana do unilateralismo”, avalia Vigevani. A coerência com a agenda global permitiu a adoção da “autonomia pela participação”, em que o Brasil não se isolava, mas se articulava com o mundo em busca de posição mais adequada ao seu novo peso internacional. “O relacionamento com os EUA, apesar disso, foi de reproduções ininterruptas. A mudança bilateral se deveu mais a atos e fatos concretos do que por mudanças na política externa brasileira”, observa Barreto. O governo Lula (2003-2011) não mudou essa essência, embora tenha optado pelo que Vigevani chama de “autonomia pela diversificação”. “A tônica foi a aproximação de países do Sul para obter maior inserção e maior poder de barganha nas negociações internacionais, buscando sempre solu-

ções multilaterais, em vez de um mundo unipolar”, explica o pesquisador. No segundo mandato de Lula as diretrizes foram aprofundadas, com destaque para a relação com países emergentes como China, Índia, Rússia e África do Sul, sem que isso prejudicasse o eixo Brasília-Washington. “Apenas a melhoria das condições econômicas do Brasil permitiu que se pudesse partir para uma política que incluísse a África subsaariana, desde a ‘ação vocal’ contra o apartheid, do governo Sarney, até a mais recente aproximação e cooperação”, diz Barreto. No Oriente Médio, as posições brasileiras também se mantiveram estáveis. “No governo Collor houve o apoio à revogação da resolução que igualava o sionismo a uma forma de racismo; no governo Lula, o reconhecimento da Palestina como Estado. Nos dois casos, apesar das diferenças aparentes, houve apenas uma acentuação de tendências claras, que não divergiam muito de outros membros da ONU”, fala o diplomata.

A

s diferenças no trato com o Mercosul são relevantes entre os vários governos. “No governo de Fernando Collor houve forte receptividade. No de Fernando Henrique Cardoso o governo impôs regras na administração da parceria. E no de Lula foi criado um processo de negociação que chegou ao colapso da relação”, nota Barreto. Vi-

geani observa o mesmo em sua pesquisa, ressaltando a contradição entre as pretensões brasileiras de global trader e global player. “A busca de diversificação de parcerias com países em desenvolvimento, como China e Índia, é um obstáculo ao aprofundamento de acordos com países do Mercosul, porque se concentram recursos e esforços de cooperação com atores mais importantes do que os vizinhos”, analisa o professor. A baixa sensibilidade de certos grupos às questões regionais aliada à prioridade dada pelo governo Lula a questões globais, como a intervenção no Irã, dificultam que o país exerça sua autonomia por diversificação com seu entorno. Mas Fernando de Mello Barreto rejeita a crítica de que a política externa de Lula foi “politizada”. “A diplomacia é política, sempre. Basta ver que a grande maioria dos chanceleres veio da política, com apenas dois diplomatas de carreira, Luiz Felipe Lampreia e Celso Amorim”, lembra. “Seja como for, a redemocratização foi um caminho que levou o Brasil a uma nova posição internacional. Como disse o atual chanceler, Antonio Patriota, em seu discurso de posse: ‘Deixamos para trás o tempo em que um acúmulo de vulnerabilidades nos limitava o escopo de ação internacional’. Essa frase resume o legado dos 25 anos de política externa e dá as perspectivas para o futuro”, afirma Barreto. n Carlos Haag pESQUISA FAPESP 204  z  71


memória

Uma boa relação Dicionário anônimo botânico do século XIX tinha forte ligação com a química Neldson Marcolin

P

or mais de um século, um manuscrito de 1.657 páginas contendo verbetes de botânica agrupados por ordem alfabética dormiu esquecido em prateleiras e gavetas. Durante uma temporada de estudos no Arquivo Histórico do Museu Imperial de Petrópolis, em 2003, a pesquisadora Nadja Paraense dos Santos foi consultada sobre a importância do calhamaço, que trazia numerosas referências à análise química de plantas. Com formação em engenharia química e história das ciências, Nadja percebeu ali um documento importante que merecia atenção especial. Tratava-se de um dicionário de botânica desconhecido, sem data e com autor anônimo. “O livro é do século XIX, escrito provavelmente por mais de uma pessoa, e foi guardado no arquivo da família imperial”, conta Nadja, professora do Programa de Pós-graduação de História das Ciências das Técnicas e Epistemologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Sem capa nem ilustrações, o dicionário traz textos descritivos de 2 mil plantas divididos em verbetes pelo nome popular – a denominação científica, às vezes de mais de um autor, vem logo depois – e em português. “É uma obra pensada com um caráter mais popular e poderia ser entendida por qualquer fazendeiro, por exemplo.” Das 2 mil plantas, 334 têm verbetes completos, divididos em história natural, análise química e propriedades. Em história natural conta-se a origem conhecida da espécie e descreve-se sua aparência; na análise química fala-se da consistência, do gosto, do cheiro e das substâncias

À esquerda, detalhe manuscrito do dicionário. Ao lado, craveiro-da-Índia em desenho de 1887, em Köhler’s Medizinal-Pflanzen

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fotos 1 Acervo do Museu Imperial-Ibram-MinC  2 Caliban.mpipz.mpg.de/koehler/NELKEN.jpg  3, 4 e 5 Flora von Deutschland Österreich und der Schweiz, de Otto Wilhelm Thomé

Da esquerda para a direita, desenhos de embaúba, zimbro e espinheiro-vinhedo, de 1885, em Flora von Deutschland Österreich und der Schweiz, de Otto Wilhelm Thomé

de que é composta; e em propriedades os autores indicam sua serventia para debelar doenças. “Uma das originalidades da obra para a época é a relação forte entre a química e a botânica”, observa Heloisa Maria Bertol Domingues, historiadora das ciências do Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast), do Rio de Janeiro, e atualmente também diretora interina da instituição. Outro ponto importante, de acordo com ela, é o interesse dos autores do dicionário pelo saber popular. “Eles se preocupavam em avalizá-lo, ou não, para o consumo da população”, diz. Além da descrição sensorial e química da planta, há também um trabalho de fitogeografia. Sempre que possível, os verbetes indicam em quais regiões do país determinadas espécies

Os autores se interessaram pelo saber popular e em localizar as regiões do país onde as plantas eram mais comuns

são mais comuns e como são conhecidas pela população. Nadja e Heloisa se uniram em um projeto, que se tornou viável graças ao apoio do Mast e Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, para estudar o dicionário e tentar descobrir seus autores. Este último objetivo não foi alcançado. “Pensamos que Theodoro Peckolt, naturalista e farmacêutico alemão radicado no Brasil, ou frei Mariano Velloso poderiam ter feito o trabalho, mas não conseguimos comprovar essas hipóteses”, relata Nadja. A última referência citada na obra é de 1865, o que leva a crer que o livro não avançou depois disso. Elaine Andrade Lopes, pesquisadora bolsista do Mast e aluna do programa de história das ciências da UFRJ, foi quem fez a transcrição do manuscrito original. Ela viu diferenças

de estilo, vocabulário e letra no documento, indícios de um trabalho realizado a várias mãos. “Há muitas citações de periódicos e livros brasileiros e estrangeiros, especialmente franceses, além de naturalistas e médicos do período”, conta Elaine. Segundo ela, os autores copiavam de almanaques, revistas e livros as informações que consideravam confiáveis, mas nem sempre davam os créditos. Isso não significa, no entanto, que eles não tivessem feito pessoalmente algumas análises químicas. Para tornar pública pelo menos a parte mais importante do dicionário, Heloisa e Nadja criaram um projeto multimídia abrigado no endereço eletrônico do Mast. É possível acessá-lo a partir da home page www.mast.br pelo título “A química e o dicionário anônimo de botânica”, no ar desde outubro de 2012. Lá estão hospedados os 334 verbetes. As pesquisadoras ilustraram quase todos os verbetes on-line com pranchas de plantas desenhadas em períodos próximos do estimado para a obra anônima. O mesmo foi feito nestas duas páginas. PESQUISA FAPESP 204 | 73


Arte

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Grupo Tapa aposta no treinamento dos atores e na pesquisa dos melhores textos Guilherme Conte

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U

m teatro de excelência: grandes textos, nas mãos de atores excepcionalmente treinados, em uma cena construída com atenção ao detalhe. Esta é a maneira de trabalhar do Grupo Tapa – Teatro Amador Produções Artísticas, fundado no Rio de Janeiro em 1979 e paulistano desde 1986. “O que mais me interessa no teatro, o que o difere de qualquer arte, é a presença viva. São os atores. Algo que acontece na frente do público com a qualidade de uma partida de futebol.” A afirmação de Eduardo Tolentino de Araújo, que dirige o grupo desde sua criação (com uma peça de sua autoria, o infantil Apenas um conto de fadas), revela mais do que poderia se supor inicialmente. Essa aposta na necessidade do treinamento profundo e constante e na falta de concessões trouxe, antes de tudo, um reconhecimento a toda uma carreira de criação de teatro de alto nível. Os anos 1980 viram marcantes montagens como Viúva, porém honesta (1983), de

Órfãos (2012), com Renaldo Taunay, Isabela Lemos e Marcelo Pacífico

Fotos 1 Marcelo Piovan/Grupo Tapa  2 Claudinei Nakasone/Grupo Tapa  3 Grupo Tapa/divulgação

Atenção ao detalhe


Nelson Rodrigues, O Tempo e os conways, de J. B. Priestley (1985), e o início do projeto Festival de Teatro Brasileiro. A pesquisa e divulgação de grandes textos de autores nacionais foi sempre uma missão incorporada pelo grupo, prestando um inestimável serviço ao público com grandes montagens de Nelson Rodrigues, Martins Pena, Jorge Andrade, Machado de Assis, Artur e Aluísio de Azevedo, Plínio Marcos e João Cabral de Melo Neto, entre tantos outros. Espetáculos como Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues (1994), e Corpo a corpo, de Oduvaldo Vianna Filho (1995), fazem parte da história das grandes montagens do teatro brasileiro. Além de manter um regime constante de novos espetáculos e remontagens do repertório, o Tapa tem cursos regulares de teatro, em sua sede na Barra Funda, ministrados por seus integrantes. Para Maria Silvia Betti, professora de pós-graduação em letras da Universidade de São Paulo, levar em conta o aspecto da formação é fundamental para se compreender a importância do grupo. “O Tapa cumpre um papel formador que diz respeito não só ao estudo e à prática do ofício, o fazer teatral, mas também ao desenvolvimento de um pensamento crítico”, afirma. “É algo que as escolas de teatro não têm podido dar mais e que também acabam não se configurando dentro da formação universitária ou escolar comum, por todos os motivos fartamente conhecidos.” Para ela, o Tapa “tem uma história que diz respeito a tudo o que de mais importante aconteceu pensando o teatro como encenação e dramaturgia desde o final dos anos 1970 até o pre-

De um ou de nenhum (2012), com Daniel Volpi, Natália Moço e Bruno Barchesi

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Eduardo Tolentino fala com equipe: no Tapa desde o início

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sente”. Fato ainda mais notável quando se leva em conta que esta longevidade, sem perda de qualidade, se configura sem apoios ou recursos públicos, o que faz do grupo um ponto de referência não só na criação artística, mas também para aqueles que desejam fazer do ofício do teatro sua profissão. Clara Carvalho, Zécarlos Machado, Denise Weinberg, Brian Penido Ross, Guilherme Sant’Anna, Sandra Corveloni, André Garolli, Fernando Paz, Sérgio Matropasqua, entre tantos outros, formam a lista de atores que fizeram e ainda fazem grandes trabalhos dentro e fora do Tapa, sempre marcado pelo convívio de diferentes gerações. Não é diferente hoje, em que uma nova geração, com jovens como Isabella Lemos, Marcelo Pacífico e Renato Caldas em espetáculos como Órfãos, de Dennis Kelly, e De Um ou de nenhum, de Luigi Pirandello (ambos de 2012 e ainda em cartaz). Fazer esta arte sem concessões, pautada pela excelência e forjada no encontro com o outro, dentro e fora da cena, situa o Tapa em uma linha de frente de resistência do teatro como fonte de reflexão e pensamento crítico. “Quando eu comecei a assistir a espetáculos, tinha-se muito mais pretensão de domínio do ofício”, afirma Tolentino. “O teatro é a renovação da repetição. Você superar o fastio, o cansaço, e encontrar o novo. É isso que te permite entrar em camadas mais profundas, nas sutilezas.” É o teatro como artesanato. n PESQUISA FAPESP 204 | 75


conto

Iniciação científica João Carlos Ribeiro Jr.

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. Descobri o que era iniciação científica quando já estava no segundo ano de faculdade e com um indecoroso 6.1 de média ponderada. 1.1. Eu estava prestes a procurar emprego porque a grana da venda do Monza do meu avô estava acabando.1 Fui alertado do transtorno que uma média ponderada baixa poderia me causar em projetos pós-graduados futuros. Fiquei uma noite inteira fazendo contas de quanto precisaria tirar em todo o resto do curso para alcançar, ao menos, 7.5. Perdi minha série favorita na tevê. 1.2. Aproveitei a calculadora e fiz contas para descobrir as chances do meu time no Brasileiro. Era muito difícil. 1.2.1. A vaga de iniciação científica era em sociologia da tecnologia digital. 1.2.2. Na entrega do trabalho de seleção, gaguejei diante do professor, cuja fama de rigoroso atravessava departamentos e congregações. Depois me contaram que o único que não se intimidou na entrevista foi o cara mais velho que já era formado em economia. 2. A bolsa de iniciação científica valia um pouco menos do que um salário mínimo. Era o suficiente pra mim. Minha mãe me dava o vale-transporte dela. 2.1. O professor de sociologia da tecnologia digital falou que eu não poderia obter a bolsa porque minha média ponderada era menor do que 7.5. Eu disse que tinha tirado 8.5 na matéria dele sobre sociologia do amor virtual e me achei muito perspicaz. 2.1.1. Poucos tinham tirado mais de 8.5. Nenhum deles queria bolsa de iniciação científica em sociologia da tecnologia digital. 2.1.1.1. O economista mais velho achou o valor da bolsa um acinte e não compreendeu a exigência de exclusividade.

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2.1.1.2. Eu falei que lia em inglês e em espanhol numa boa, mas francês não. Fiz meu currículo Lattes. 3. Meus amigos não se interessavam por sociologia da tecnologia digital. Eu também não, mas ganhava quase um salário mínimo. 3.1. Não precisei procurar emprego e pude participar do movimento estudantil, onde fiz meu principal círculo de amizades. 3.1.1. E de inimizades, sobretudo. 3.2. Eu não conversava sobre política com meu orientador, mas, quando sozinho, usava o telefone de seu escritório para convocar reuniões ordinárias e extraordinárias. 3.2.1. Também usei sua sala para contatar Michelle, uma ex-estudante da Química que se envolveu na luta armada. A única vez que a vi foi num documentário disponível no youtube. Disse que o nome, obviamente, tinha a ver com os Beatles. 4. Meu time estava sob risco de rebaixamento. 5. Michelle perguntou qual era o sentido do debate e eu disse que queríamos rediscutir a lei da anistia, colocar o tema em pauta. Dar visibilidade, afinal. Mencionei o exemplo argentino.2 5.1. Entusiasmada, Michelle disse que escrevia um livro sobre o período e que só teve coragem de iniciá-lo vinte e três anos após sua volta do exílio.3 5.2. Não havia rigidez de tempo, mas esperava-se uma exposição de até 40 minutos para que houvesse perguntas ou intervenções dos presentes. Após a fala inicial de Michelle, fariam comentários um professor que pesquisava o luto em narrativas literárias e uma professora especialista em legislação sobre direitos humanos. 5.2.1. Os dois eram professores doutores e riram quando perguntei se era assim que eles queriam ser nomeados no cartaz de divulgação.


joaquim de almeida

Notas

5.2.2. Na maioria das salas dos professores as plaquinhas de identificação registram o “Dr.”, por isso perguntei. 6. Ao fim do semestre, a minha média ponderada já tinha saltado para 6.9. O professor de sociologia da tecnologia digital me propôs um projeto sobre os efeitos do uso do celular na sociabilidade dos jovens em idade escolar no ensino fundamental II. Eu achei a ideia interessante, mas preferia fazer um trabalho ligado ao período da ditadura militar. 6.1. Ouvi que a ditadura militar já era muito estudada e que outros problemas sociais ainda precisavam de um empurrão teórico para ensejar soluções. Eu contra-argumentei, mesmo sendo difícil para um graduando dobrar um professor doutor convicto. 6.1.1. Insisti.4 6.1.2. Ele disse que eu tinha pegado o espírito. 7. Michelle não pôde comparecer ao debate porque estava com uma grave pneumonia.5 Ela enviou a introdução do livro que escrevia e seu texto comoveu a maioria dos presentes, seguramente.6 Usei um trecho desse texto como epígrafe do meu novo projeto de iniciação científica. 8. Meu time safou-se de ser rebaixado na últi­ ma rodada. Eu estive no estádio para apoiá-lo e na saída foi a maior festa. Uma torcida organizada levou seus tambores para a rua e uma pequena multidão a acompanhou, interrompendo o trânsito. A polícia agiu com rapidez e saí de lá quando as primeiras bombas de gases tóxicos foram lançadas.7 Já um tanto afastado, fui informado por telefone de que meu amigo Celso tinha sido preso. Corri para a delegacia porque é notória a severidade dos espancamentos nesses ambientes.

1. O Monza 1985 foi uma herança. Quando meu avô já não conseguia descer escadas, eu era responsável por ir à garagem e ligar o motor por dois ou três minutos para não descarregar a bateria. 2. O fim da ditadura militar na Argentina ocorreu em 1983. Dois anos depois, um longa chamado A história oficial foi lançado. Vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro, ele trata do roubo e a adoção de filhos de militantes assassinados pelo regime. Neste mesmo ano, a sociedade argentina mobilizada julgou e condenou por crimes contra os direitos humanos os ex-presidentes Jorge Rafael Videla e Roberto Eduardo Viola, entre outros chefes militares. Em 1990 eles foram perdoados pelo presidente recém-eleito Carlos Menem, que governou o país até 1999 e legou ao seu sucessor uma crise econômica que redundou num vórtice político. Em 2001, os panelaços argentinos tornaram conhecida mundialmente a palavra de ordem Que se vayan todos, muito efetiva: as manifestações derrubaram quatro presidentes em 13 dias. Após o curto período presidencial de Eduardo Alberto Duhalde, foi eleito em 2003 Néstor Carlos Kirchner, ex-governante da inexpressiva e gelada província de Santa Cruz. Ele determinou a revisão da lei de anistia. O tema do roubo de crianças pelo regime de exceção ainda rendeu outros filmes tocantes, como Infância clandestina, de 2012. 3. Ela demorou muitos meses para achar a forma adequada de narrar os dias que passou na geladeira, um tipo de tortura em que o preso era colocado nu em uma sala pequena o bastante para impedir que ele conseguisse ficar em pé. A temperatura da cela era controlada e os torturadores variavam-na absurdamente, do calor ao frio insuportáveis. Alto-falantes emitiam ruídos enervantes. 4. A despeito de minha média ponderada, meus contatos do movimento estudantil me permitiram publicar um artigo curto na revista argentina Espacio sociologico e o professor doutor ficou muito satisfeito. O texto não tinha nada a ver com sociologia da tecnologia digital. Eu disse que poderia publicar em outras revistas, que tinha fôlego para ao menos um por semestre. Ademais, se desenvolvesse o tema no mestrado, batalharia para que cada capítulo da dissertação fosse publicado separadamente. 5. A ditadura brasileira contou com assistência médica frequente em sessões de tortura. Os médicos tanto orientavam os torturadores a utilizar técnicas que não deixavam marcas quanto assinavam laudos fraudulentos sobre a causa mortis de muitos que expiraram nos porões. Não raro, militantes que perdiam a consciência durante as agressões eram reanimados para que a tortura continuasse. 6. Como fui responsável pela leitura, pude conferir as reações. 7. A granada lacrimogênea utilizada para dispersar os torcedores era igual à que foi lançada em manifestantes gregos que protestavam em junho de 2011, na cidade de Atenas, contra os ajustes econômicos impostos pela União Europeia e o FMI ao país. No Bahrein, em janeiro de 2012, ativistas antimonarquia denunciaram a morte de uma criança por intoxicação com os gases desta arma, considerada não letal. As cláusulas de confidencialidade dos contratos de exportação destes artefatos autorizam o silêncio da fabricante brasileira: a empresa Condor. João Carlos Ribeiro Jr. é editor e publicou contos nas revistas Cult, Mouro, Cronópios e no jornal Brasil de Fato.

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resenhas

Aulas de jornalismo científico Mariluce Moura

O

Médico e repórter: meio século de jornalismo científico Julio Abramczyk Publifolha 288 páginas, R$ 59,00 (preço estimado)

* Retirei da lista três conferências e o discurso proferido pelo autor quando recebeu do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em 1986, o prêmio José Reis de Divulgação Científica, que constam do último capítulo.

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s 23 artigos e reportagens que traçam a doença e a agonia do presidente eleito Tancredo Neves, da véspera de uma posse nunca efetivada à morte em 21 de abril de 1985, constituiriam sem sombra de dúvida uma espécie de cerne dramático, clímax central da narrativa, se como tal pudéssemos tomar o conjunto dos textos de Julio Abramczyk em Médico e repórter: meio século de jornalismo científico. Na impossibilidade de fazê-lo, dado que seria licença excessiva considerar uma mesma narrativa os 62 fragmentos jornalísticos presentes no livro*, cobrindo variados temas da pesquisa cientí­fica em saúde, ainda assim é possível examinar os textos sobre o drama final do presidente como os mais instigantes, didáticos e representativos dos desafios do jornalismo científico de quantos a obra oferece. Primeiro de tudo, porque há neles lições basilares de como lidar com a escassez de dados para oferecer ao leitor um quadro o mais próximo possível de uma realidade que se escamoteia do olhar público, a despeito do interesse público que ela tem. Ou lições magistrais de como arrancar da opacidade de cifrados e minimalistas boletins médicos um relato que devolva ao leitor algo da dimensão viva da luta que um sujeito – para o qual se voltam todos os olhos da nação – trava contra e com o corpo que derrapa e se esgota. E lições ainda sobre o quanto a medicina, mesmo a mais avançada, é campo incerto de provas largamente baseadas em tentativa e erro. Jornalista e cardiologista, Abramczyk recorre a todo o arsenal de que pode dispor para, ao longo de 37 dias, sem jamais ferir a sensibilidade do público expectante ou incorrer em desrespeito à pessoa alvo de sua investigação, tentar contar passo a passo ao leitor da Folha de S.Paulo o que realmente está se passando com o homem por cuja recuperação, e consequente posse na Presidência da República, o país inteiro torce. Sempre baseado em sua formação e longa prática médica, ele não hesita em recorrer ao conhecimento que ambas somadas lhe facultam para imaginar cenários prováveis onde a informação escasseia. No derradeiro artigo da série, por exemplo, intitulado “Sedação impediu dor nos últimos dias”, publicado em 18 de maio, portanto quase um mês após a morte do ilustre paciente, Abramczyk

explica que “o estado de inconsciência foi obtido com uma associação de drogas dissolvidas em um frasco de soro, gotejando gota a gota na veia. As drogas (possivelmente uma associação de Amplictil, Fenergan e Dolantina), quando suspensas, revertiam o paciente para um nível superficial de consciência, porém não muito bem acordado”. Por trás dessas frases é possível enxergar informação em off e dedução de quem conhece. Na longa e desafiadora cobertura da agonia de Tancredo, que esgotou jornalistas e redações inteiras em Brasília, São Paulo e Minas Gerais, Julio Abramczyk antecipou corajosamente prognósticos certeiros. “Se a cirurgia foi uma simples intervenção, porém urgente, não haveria maiores razões para o paciente permanecer no centro de recuperação pós-operatória, pelo menos até ontem à noite”, dizia ele em 16 de março, dia seguinte à posse do presidente em exercício José Sarney. “Ou, então, o problema foi distinto daquele divulgado oficialmente, tendo-se verificado ou uma perfuração intestinal que resultou em um grave caso de peritonite, ou foi mais grave ainda, sendo até viável a hipótese de um tumor que poderia eventualmente ter produzido uma oclusão intestinal, cuja solução tem que ser resolvida cirurgicamente e também em situação de emergência.” Na mosca: havia um tumor benigno no começo do torturante caminho final de um paciente idoso, marcado por sete intervenções cirúrgicas em menos de 40 dias. Como o jornalismo é um caminho coalhado de armadilhas, Abramczyk não só acertou. Também errou ou confundiu anseio com informação. “É claro que o presidente Tancredo Neves irá recuperar-se. Mas o prazo para assumir a presidência da República será dilatado. Agora, no mínimo de três a seis meses”, dizia ele em artigo de 27 de março. Também por vezes permitiu que a terminologia técnica do médico soterrasse a clareza do jornalista. Mínimos pecadilhos de um portentoso jornalista. Há muito mais temas e questões, da pioneira cirurgia de ponte de safena no Brasil aos problemas de saúde de índios no Xingu, tratados brilhantemente por doutor Julio no belo volume organizado pelo jornalista Carlos Eduardo Lins da Silva. Nenhum jornalista de ciência ou candidato a sê-lo deveria dispensar essa leitura.


Teatro para todos David José Lessa Mattos

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Tatiana Belinky: uma janela para o mundo – Teatro para crianças e para todos Maria Lúcia de Souza Barros Pupo (org.) Editora Perspectiva 456 páginas, R$ 55,00

atiana Belinky: uma janela para o mundo – Teatro para crianças e para todos é o mais novo volume lançado na coleção Textos da Editora Perspectiva. Organizado pela professora Maria Lúcia de Souza Barros Pupo, do Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP), com a colaboração de Karin Dormien Mellone e Júlio Carrara, este livro reúne 18 pequenas peças teatrais dentre as dezenas que Tatiana Belinky escreveu especialmente para o público infantojuvenil numa carreira literária que já se estende por mais de seis décadas. Criteriosamente selecionados, esses textos revelam a vasta amplitude temática das criações dramatúrgicas desta admirável escritora e toda a riqueza de seu universo ficcional. São peças escritas entre os anos 1949 e 1963, época em que ela e seu marido, o médico psiquiatra Júlio Gouveia, dedicaram-se com entusiasmo à realização de pequenos espetáculos teatrais, buscando desenvolver nas crianças e nos adolescentes uma atitude ética diante da vida e uma compreensão justa dos valores humanos. Primeiro, fundaram em 1949 o grupo teatral amador Teatro Escola de São Paulo – Tesp e com ele percorrem escolas públicas, clubes, teatros e cinemas de bairro da capital paulista fazendo apresentações teatrais aos domingos pela manhã. Depois, a partir de 1952, passam a realizar seus espetáculos na recém-inaugurada TV Tupi de São Paulo, começando com Fábulas animadas e Era uma vez, programas semanais de teleteatro infantil, e com o seriado semanal Sítio do Picapau Amarelo, baseado na obra de Monteiro Lobato. Permanecem na televisão por mais de 10 anos, ele na direção artística dos programas e ela escrevendo peças originais ou adaptando histórias diversas extraídas de contos, narrativas populares, mitos, fábulas, relatos bíblicos e de importantes obras da literatura infantil mundial. Para a compreensão do significado do trabalho teatral que realizavam nessa época, contribuição importante é o ensaio de autoria de Júlio Gouveia, escrito em 1954, intitulado “Bases psicológicas, pedagógicas, técnicas e estéticas do teatro para crianças e adolescentes”. Este texto, pouco

divulgado e nem sempre disponível, é reproduzido muito oportunamente nesta edição dedicada à dramaturgia de Tatiana Belinky. Também nesta edição, no texto “Desde que o mundo é mundo”, Karin Mellone, autora de dissertação de mestrado sobre a obra de Tatiana Belinky, oferece ao leitor importantes referências históricas e culturais que marcam o percurso artístico e intelectual desta escritora, apresentando em separado minuciosa cronologia de sua vida e obra e um levantamento bibliográfico do que se escreveu sobre sua produção literária. Completando a publicação vem o texto “Tecelã dos fios da ficção”, um estudo de Maria Lúcia. Partindo da noção de intertextualidade, ela analisa o conjunto das 18 peças reunidas no livro, revelando de que modo traços, marcas e elementos de diferentes obras literárias impregnam os textos dramáticos de Tatiana e como as personagens, as temáticas e os enredos de histórias já contadas ganham expressão e significados novos em suas peças. Por fim, não posso deixar de externar minha satisfação com o lançamento deste livro em que, pela primeira vez, a obra de Tatiana Belinky é objeto de uma análise acadêmica – uma obra, aliás, que não se limita apenas à dramaturgia infantojuvenil, traduzindo-se também numa série de contos, crônicas e poesias. Confesso que, ao ler este livro, emoções antigas carregadas de afeto e de sentimentos de solidariedade irromperam em mim. Ao mesmo tempo, uma vaga lembrança de mim mesmo em meus tempos de infância e adolescência se insinuou na minha consciência. Afinal, durante anos, dirigido por Júlio Gouveia, interpretei na TV Tupi de São Paulo diversas personagens de histórias escritas ou adaptadas por Tatiana. Por exemplo, fui o Grilo Falante, de As aventuras de Pinocchio; o Tom Sawyer, de As aventuras de Tom Sawyer; e o Pedrinho, do Sítio do Picapau Amarelo. Agradeço a ela e a ele por persistirem em mim até hoje esses valores humanos, esses sentimentos fraternais e essas emoções de afeto e encantamento diante da vida. David José Lessa Mattos é mestre em sociologia da cultura (Universidade de Paris X – Nanterre), doutor em história social (USP), professor aposentado do Instituto de Artes da Unicamp e autor de O espetáculo da cultura paulista, editora Códex, São Paulo.

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