Pesquisa FAPESP 206

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abril de 2013  www.revistapesquisa.fapesp.br

biotecnologia

Droga anti-HIV é feita a partir de soja transgênica alpha-crucis

Navio oceanográfico mapeia depósitos de sedimentos no Atlântico clima

Geleiras encolhem em ritmo acelerado nos Andes entrevista beatriz barbuy

A formação e a química das estrelas

Sócios na inovação Empresas e universidades unem-se em parques tecnológicos e enfrentam novos desafios de pesquisa e desenvolvimento


Pesquisa Brasil Toda sexta-feira, das 13h às 14h, na Rádio USP, você tem um encontro marcado com a ciência falada

Apresentado por Mariluce Moura, diretora de redação da revista Pesquisa Fapesp, e por Celso Filho, diretor da Rádio Usp, o Pesquisa Brasil traz informações eduardo cesar, EDUARDO SANCINETTI, ricardo zorzetto, léo ramos, nasa / jpl, Latinstock/MEHAU KULYK/SCIENCE PHOTO LIBRARY/SPL DC

de ciência, tecnologia, meio ambiente, humanidades. Há sempre um pesquisador convidado conversando sobre o desenvolvimento de sua pesquisa, além de uma seleção musical com muito swing. E você pode participar do “Ouvinte Pesquisa” fazendo perguntas aos pesquisadores e concorrendo a uma assinatura anual da revista Pesquisa Fapesp.

Aguce seus sentidos e sintonize já! 93,7 mHz www.revistapesquisa.fapesp.br


fotolab

Cores da pecuária Os “fogos de artifício” sobre o mapa de Mato Grosso são, na verdade, uma outra maneira de identificar as zonas pecuárias mais produtivas do estado. Cada ponto representa um município mato-grossense, cada cor mostra um circuito pecuário diferente e o tamanho do ponto indica sua importância. A grossura das linhas que conectam os pontos é proporcional ao número de animais que circularam entre dois municípios. Os dados são do trânsito de animais relativo a 2007 e fazem parte do doutorado de José Henrique Grisi-Filho. Eles foram publicados em artigo na edição on-line de fevereiro da Preventive Veterinary Medicine.

Imagem enviada por José Henrique Grisi-Filho, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo Se você tiver uma imagem relacionada a pesquisa, envie para imagempesquisa@fapesp.br, com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.

PESQUISA FAPESP 206 | 3


abril 2013 n. 206

14 CAPA Laboratórios de empresas em parques de universidades enriquecem formação de estudantes e respondem a novas demandas em pesquisa e desenvolvimento ilustração  daniel bueno

22 Facility da Unicamp reúne, num mesmo prédio, equipamentos modernos para pesquisa em genômica, proteômica, bioinformática e biologia celular

entrevista 24 Beatriz Barbuy Astrofísica da USP fala sobre a formação das primeiras estrelas da Via Láctea

seçÕes 3 Fotolab 5 Carta do editor 6 Cartas 7 On-line 8 Dados e projetos 9 Boas práticas 10 Estratégias 12 Tecnociência 88 Memória 90 Arte 92 Conto 94 Resenhas 96 Carreiras

4 | abril DE 2013

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

TECNOLOGIA

32 Astrofísica

Medicamento anti-HIV é obtido de soja transgênica

Superradiotelescópio inaugurado no Chile procura as primeiras estrelas do Universo frio, escuro e distante

36 Brasiliana

Biblioteca que abriga acervo de José Mindlin é inaugurada na USP

CIÊNCIA 38 Oceanografia

Sedimentos revelam a história climática e evolutiva de ambientes desaparecidos há milhares de anos

62 Biotecnologia

66 Química

Nanopartículas feitas a partir de fungos são testadas com sucesso em tecidos antibacterianos e em ferimentos

70 Agricultura

Pequena empresa de automação agrícola de São Carlos ganha reconhecimento internacional

72 Empreendedorismo Cresce a participação da arqueologia empresarial em canteiros de obras de infraestrutura

62

44 Climatologia

Fotos aéreas e imagens de satélite registram encolhimento acelerado de geleiras da América do Sul

48 Especial Biota Educação II

Interferência humana ajudou a manter a diversidade biológica do pampa, um dos mais complexos ecossistemas brasileiros

53 Etologia

Experimentos demonstram a capacidade das abelhas-europeias de associar cores e sinais

56 Imunologia

Médicos se mobilizam para detectar precocemente doenças causadas por falhas nas barreiras contra microrganismos

HUMANIDADES 76 Artes

Exposição, acervo virtual e livro celebram centenário da primeira mostra de Lasar Segall no Brasil

81 História

Nos anos 1950, cultura e política tiveram ligação de mão dupla que interessava a artistas e ao Partido Comunista

44

84 Economia

Pesquisadores identificam e analisam como acontece o fenômeno da inserção produtiva em tempos de crise

32


carta do editor

Um bom caminho

E

mbora sejam patentes os problemas do ensino superior no país, a exemplo da nova lei que determina mudanças nas carreiras dos professores das instituições federais, alvo de duras críticas da comunidade científica (ver Pesquisa FAPESP nº 205), algumas universidades de pesquisa brasileiras parecem estar evoluindo seguindo exemplos bem-sucedidos no exterior. A criação do Parque Científico e Tecnológico da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) tem não só a preocupação de atrair empresas para montar laboratórios de inovação como a intenção de aprimorar a formação de estudantes. A reportagem de capa do editor de Política, Fabrício Marques, explica como a iniciativa poderá produzir desenvolvimento tecnológico e contribuir para a pesquisa fundamental. O parque tem pelo menos quatro modelos de financiamento utilizados na construção dos laboratórios, que terão pesquisadores de empresas, docentes e estudantes trabalhando no mesmo ambiente. O fato mais interessante é que a Unicamp não está sozinha nesse movimento. O Parque Tecnológico do Rio, dentro do campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e o TECNOPUC, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, têm caráter e objetivos semelhantes. O Sistema Paulista de Parques Tecnológicos agrega 27 outros empreendimentos espalhados pelo estado, alguns ligados à Universidade de São Paulo (USP) e à Universidade Estadual Paulista (Unesp). É verdade que o investimento contínuo na busca por esse modelo de inovação começou apenas por volta de 10 anos atrás no Brasil. Nos Estados Unidos, a experiência pioneira coube à Universidade Stanford, na Califórnia, no início dos anos 1950. Foi a articulação entre universidades, institutos de pesquisa e empresas de microeletrônica que deu origem ao principal conjunto de companhias tecnológicas do mundo, o Vale do Silício, na mesma Califórnia. Se tiver continuidade, o trabalho que vem sendo feito aqui poderá também contribuir para levar o país a um novo patamar de desenvolvimento tecnológico (página 14). Vem igualmente da cooperação entre cientistas outro destaque desta edição. A Embrapa Recursos Genéticos usou a engenharia genética para criar uma soja transgênica que produz sementes

com a enzima cianovirina-N, eficaz contra o vírus HIV, causador da Aids, de acordo com testes laboratoriais realizados em estudos pré-clínicos. A cianovirina foi isolada de uma cianobactéria nos Estados Unidos e poderá compor um medicamento em forma de gel idealizado por pesquisadores dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH, na sigla em inglês) e da Universidade de Londres para ser aplicado antes das relações sexuais. O problema era tornar viável comercialmente o medicamento dada a dificuldade de conseguir a proteína em grande quantidade para o gel. Aí entrou a Embrapa, procurada em 2007 pelos pesquisadores americanos para tentar produzir a enzima por meio da soja. Deu certo: a “soja engenheirada”, como é chamada no linguajar técnico, já tem sementes com a cianovirina. O desafio no momento é melhorar o processo de purificação da enzima para testar o princípio ativo em primatas e, posteriormente, em seres humanos, como relata o editor de Tecnologia, Marcos de Oliveira (página 62). Do campo para o mar: o editor especial Carlos Fioravanti passou nove dias a bordo do navio de pesquisa Alpha-Crucis, com 19 pesquisadores do Instituto Oceanográfico da USP (página 38). Ele acompanhou o trabalho dos cientistas de perto e conta como foi a primeira expedição de cunho geológico fora dos limites da plataforma continental em um navio bem equipado que permite ir mais longe, mais fundo e com mais conforto do que o anterior, o Professor Besnard, desativado em 2008. A reportagem também mostra um lado pouco exposto da ciência: o trabalho pesado e repetitivo, a tensão causada pelo cansaço e os imprevistos embaraçosos. Vale a pena conhecer essas histórias. No mês passado foi inaugurado na Cidade Universitária da USP, em São Paulo, o prédio que abriga a Brasiliana, notável biblioteca de 32 mil volumes de Guita e José Mindlin sobre temas brasileiros doada pelo casal à universidade (página 36). A iniciativa beneficia não apenas pesquisadores, porque o acervo já vem sendo digitalizado desde 2009 e está disponível on-line. Essa é mais uma boa história desta edição. Boa leitura. Neldson Marcolin  Editor chefe PESQUISA FAPESP 206 | 5


cartas

cartas@fapesp.br

fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo Celso Lafer Presidente Eduardo Moacyr Krieger vice-Presidente Conselho Superior alejandro szanto de toledo, Celso Lafer, Eduardo Moacyr Krieger, fernando ferreira costa, Horácio Lafer Piva, Herman Jacobus Cornelis Voorwald, joão grandino rodas, Maria José Soares Mendes Giannini, José de Souza Martins, Luiz Gonzaga Belluzzo, Suely Vilela Sampaio, Yoshiaki Nakano Conselho Técnico-Administrativo José Arana Varela Diretor presidente Carlos Henrique de Brito Cruz Diretor Científico Joaquim J. de Camargo Engler Diretor Administrativo

issn 1519-8774

Conselho editorial Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Marcelo Leite, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira comitê científico Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Adolpho José Melfi, Carlos Eduardo Negrão, Douglas Eduardo Zampieri, Eduardo Cesar Leão Marques, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, João Furtado, Joaquim J. de Camargo Engler, José Arana Varela, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Luis Augusto Barbosa Cortez, Marcelo Knobel, Marie-Anne Van Sluys, Mário José Abdalla Saad, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Luiz Monteiro Salles Filho, Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner do Amaral, Walter Colli Coordenador científico Luiz Henrique Lopes dos Santos Diretora de redação Mariluce Moura editor chefe Neldson Marcolin Editores Carlos Haag (Humanidades), Fabrício Marques (Política), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência); Carlos Fioravanti e Marcos Pivetta (Editores espe­ciais); Bruno de Pierro e Dinorah Ereno (Editores assistentes) revisão Márcio Guimarães de Araújo, Margô Negro arte Mayumi Okuyama (Editora), Ana Paula Campos (Editora de infografia), Maria Cecilia Felli e Camila Suzuki (Assistente) fotógrafos Eduardo Cesar, Léo Ramos Mídias eletrônicas Fabrício Marques (Coordenador) Internet Pesquisa FAPESP online Maria Guimarães (Editora executiva - licenciada) Júlio Cesar Barros (Editor em exercício) Rodrigo de Oliveira Andrade Rádio Pesquisa Brasil Biancamaria Binazzi (Produtora) Colaboradores Abiuro, Alexandre Affonso, Ana Lima, Daniel Bueno, Daniel das Neves, Fabio Otubo, Jaime Prades, José de Souza Martins, Joaquim de Almeida, Julián Fuks, Igor Zolnerkevic, Lauro Lisboa Garcia, Marcelo Motokane, Maria Hirszman, Valter Rodrigues (Banco de Imagens), Yuri Vasconcelos

É proibida a reprodução total ou parcial de textos e fotos sem prévia autorização Para falar com a redação (11) 3087-4210 cartas@fapesp.br Para anunciar (11) 3087-4212 mpiliadis@fapesp.br Para assinar (11) 3038-1434 e 3556-5204 fapesp@veganet.com.br Tiragem 48.200 exemplares IMPRESSão Plural Indústria Gráfica distribuição Dinap GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia Governo do Estado de São Paulo

6 | abril DE 2012

Olimpíadas

Merece os cumprimentos Fabrício Marques pela reportagem “Eles gostam de ciên­c ia e desafios” (edição 205) por trazer à baila o árduo envolvimento de alunos e professores nas olimpíadas científicas em nosso país. A escolha da seção em que o artigo foi colocado está perfeita, pois essa é uma atividade que deveria ser primordial na política nacional de C&T. Atividade que deveria ser mais e melhor estimulada. Há um celeiro de talentos trancafiados em nossas escolas que serão engolidos pelo sistema destruidor de cérebros e que jamais terão a oportunidade de participar da cultura científica. Temos de buscá-los. Além da dinâmica muito bem estabelecida para o trabalho de preparo e participação desse pessoal nas olimpíadas, há uma série de prêmios que também desafia os jovens. O Prêmio Jovem Cientista (CNPq, Fundação Roberto Marinho e outros parceiros) e o Prêmio CRQ-IV Região são certames anuais que também abrem espaço para estimular alunos do ensino médio, de forma talvez menos noticiada e de menor extensão que as olimpíadas, mas tão desafiadores quanto. Talvez não intencional, mas a reportagem foi uma alfinetada no Comitê Olímpico Brasileiro, que havia proposto o estapafúrdio impedimento do uso do nome “olimpíada” para os certames científicos. Página virada em um raro momento em que a lógica triunfou. Adilson Roberto Gonçalves Escola de Engenharia de Lorena/USP Lorena, SP

Revista

Há anos busco uma revista de nível tecnológico para compor meu mix de interesses. Um dia, em uma banca de revistas, vi Pesquisa FAPESP. Adquiri um exemplar e nunca mais deixei de ler. Ocorre que tive diabetes e catarata, o que é uma afronta para quem ama o raciocínio forjado na leitura e na reflexão. Com a doença nos olhos, a letra das publicações amiudou-se covardemente e ficou difícil ler. Eu uso o leitor Kindle e poderia digitalizar a revista. Mas, se os textos estiverem disponíveis em formato PDF, será mais fácil. Eu terei como voltar a ler

Empresa que apoia a ciência brasileira

porque conseguirei aumentar as letras. Quero agradecer o esforço intelectual, revestido e robustecido pela integridade científica, destas páginas de valor. Ricardo Loureiro Junger Serra, ES

Nota da redação: Pesquisa FAPESP está disponível gratuitamente em www. revistapesquisa.fapesp.br nos formatos HTML e PDF.

Mandioca

O vídeo sobre a reportagem “Mandioca vitaminada“ (edição 200), disponível na página da revista (www.revistapesquisa.fapesp.br), é o maior sucesso. Recebi vários cumprimentos. Méritos que são de nós todos: nossos, porque fizemos o trabalho, e de vocês, a equipe de texto, fotografia e vídeo de Pesquisa FAPESP, que teve a sensibilidade para captar a importância do trabalho. Parabéns. Teresa Losada Valle Instituto Agronômico, de Campinas (IAC) Campinas, SP

Correção

O título “Segredos nos Lençóis Maranheses” (edição 205) saiu grafado de modo errado, sem o n em maranhenses.

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar – CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.


on-line

Nas redes

w w w . r e v i s ta p e s q u i s a . f a p e s p. b r

j. m. Garg / Wikimedia

Eliane Chaves_ Lençóis Maranhenses, lindos para curtir e... Pesquisar! (Segredos nos Lençóis

Rádio

Dados sobre a ave felosa ajudaram os pesquisadores

Eurípedes Miguel, professor da USP, fala sobre o Transtorno Obsessivo Compulsivo

Maranhenses) Simone Cassiano_ O mundo precisa de mais caráter, de pessoas dispostas a construir novas perspectivas, em vez de se preocupar e se dedicar à construção e propagação de preconceitos. (O crânio subvertido) Vitor Cordeiro Costa_ Eu só preciso de professores que tenham o MÍNIMO de didática e de formação

Exclusivo no site

pedagógica, independentemente do título que tenham.

x A produção de etanol tornou-se mais sustentável com a mecanização da colheita da cana-de-açúcar, que reduz as emissões de gases de efeito estufa e de material particulado à atmosfera. A conclusão é de um estudo publicado na versão on-line da revista Applied Energy por cientistas do Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE), da Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp e do Instituto de Recursos Naturais da Universidade Federal de Itajubá, em Minas Gerais. O processo de produção de etanol no Brasil tem hoje potencial de aquecimento global 46% menor que no início da década de 1980.

(Mudança polêmica) Cledson Dinhero_ Não basta ser campeão em cálculos!! É preciso que se trabalhem a construção e a reconstrução do conhecimento. Falta ao Brasil a cultura de investimento em ciência e tecnologia! (Eles gostam de ciência e desafios) Miguel Oliveira_ Parabéns à pesquisadora do IAC, ao IAC e a todos que desenvolvem alimentos pensando no brasileiro! (Mandioca vitaminada)

Vídeo do mês Pesquisadores contestam tese de que as medidas do crânio determinariam o caráter da pessoa

Assista ao vídeo:

youtube.com/user/PesquisaFAPESP

PESQUISA FAPESP 206 | 7

Para ler o código faça o download do leitor de QR CODE no seu smartphonE

x É possível prever a evolução das espécies usando cálculos matemáticos? O físico Marcus de Aguiar, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), aplicou modelos teóricos a sistemas biológicos para criar um software que ajuda a entender o papel do espaço físico no surgimento de espécies. Como teste, simulou as transformações pelas quais passou a ave asiática felosa (Phylloscopus trochiloides). A conclusão é que as diferenças genéticas não se acumulam só quando uma população é forçada ao isolamento, mas também podem ocorrer quando o isolamento é parcial e até mesmo sem barreira geográfica.


Dados e projetos Temáticos e Jovem Pesquisador recentes Projetos contratados em fevereiro e março de 2013

temáticos

 Organização e funcionamento da política representativa no estado de São Paulo (1994 e 2014) Pesquisadora responsável: Rachel Meneguello Instituição: Centro de Estudos de Opinião Pública/Unicamp Processo: 2012/19330-8 Vigência: 01/05/2013 a 30/04/2018  Gift: melhoramento genômico de características relacionadas com a fertilização em gado bovino dinamarquês e brasileiro (FAPESP-DCSR) Pesquisador responsável: Marcelo Fábio Gouveia Nogueira Instituição: Faculdade de Ciências e Letras de Assis/Unesp Processo: 2012/50533-2 Vigência: 01/02/2013 a 31/01/2017  Agroindustrial wastes and its potential use as appropriate materials for housing and infrastructures (agrowaste) (FAPESPANR-BLANC-AWAPUMAT) Pesquisador responsável: Holmer Savastano Junior Instituição: Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos/USP Processo: 2012/51467-3 Vigência: 01/02/2013 a 31/01/2017  Role of fc receptors in bacterial immune evasion (FAPESP/ANR-BLANC-FCBACEVA) Pesquisador responsável: Irineu Tadeu Velasco Instituição: Faculdade de Medicina/USP Processo: 2012/51468-0 Vigência: 01/02/2013 a 31/01/2016

Processo: 2011/07282-6 Vigência: 01/02/2013 a 31/01/2017

Trabalhos mais citados desde o ano de publicação até hoje  Caracterização da rede de regulação cardiogênica controlada por Coup-TFII a partir de células-tronco embrionárias Pesquisador responsável: Henrique Marques Barbosa de Souza Instituição: Instituto de Biologia/ Unicamp Processo: 2012/09602-0 Vigência: 01/04/2013 a 31/03/2017  Envolvimento dos ácidos graxos de cadeia curta e seu receptor (GPR43) na resposta imune a bactérias anaeróbias in vivo e in vitro Pesquisador responsável: Marco Aurélio Ramirez Vinolo Instituição: Instituto de Biologia/ Unicamp Processo: 2012/10653-9 Vigência: 01/01/2013 a 31/12/2016  Revisão do inventário dimensional clínico da personalidade (IDCP) de acordo com o DSM 5 Pesquisador responsável: Lucas de Francisco Carvalho Instituição: Universidade São Francisco - Campus Itatiba Processo: 2012/12794-9 Vigência: 01/02/2013 a 31/01/2017  Resposta da porção oeste do oceano Atlântico às mudanças na circulação meridional do Atlântico: variabilidade milenar a sazonal Pesquisador responsável: Cristiano Mazur Chiessi Instituição: Escola de Artes, Ciências e Humanidades/USP Processo: 2012/17517-3 Vigência: 01/03/2013 a 28/02/2017

Jovem Pesquisador

 Nível de atividade e aptidão física e sua associação com o declínio da função pulmonar em adultos do município de Santos, Brasil Pesquisador responsável: Victor Zuniga Dourado Instituição: Instituto de Saúde e Sociedade/Unifesp

8 | abril DE 2013

Artigos quentes

 Transporte de grãos por leito móvel e instabilidades associadas Pesquisador responsável: Erick de Moraes Franklin Instituição: Faculdade de Engenharia Mecânica/Unicamp Processo: 2012/19562-6 Vigência: 01/03/2013 a 29/02/2016

com endereço de São Paulo 2008 Área

Número de citações

Colaboração internacional

Autor para correspondência no Brasil

Número de autores

Astronomia

230

Sim

Não

>90

Astronomia

229

Sim

Não

>100

Saúde

229

Sim

Não

6

Saúde

187

Sim

Sim

14

Física

179

Sim

Não

>50

Ecologia

154

Sim

Sim

4

Etanol

153

Não

Sim

4

Bio Mol

131

Sim

Não

8

Física

113

Sim

Sim

4

Física

112

Sim

Não

8

Número de citações

Colaboração internacional

Autor para correspondência no Brasil

Número de autores

Geociências

319

Sim

Não

>30

Genômica

275

Sim

Não

>100

Física

210

Sim

Sim

4

Genômica

165

Sim

Não

>100

Saúde

158

Sim

Não

>50

Física

157

Sim

Sim

4

Ecologia

142

Sim

Não

5

2009 Área

Física

131

Sim

Não

3

Engenharia

128

Não

Sim

3

Química

120

Sim

Não

3

Número de citações

Colaboração internacional

Autor para correspondência no Brasil

Número de autores

Saúde

201

Não

Sim

3

Física

161

Não

Sim

5

2010 Área

Astronomia

153

Sim

Não

>100

Astronomia

126

Sim

Não

>100

Física

97

Sim

Não

>100

Química

96

Sim

Não

2

Física

92

Não

Sim

5

Astronomia

88

Sim

Não

>100

Física

85

Sim

Não

>100

Saúde

83

Sim

Não

20

Fonte: Web of Science, artigos em inglês de São Paulo. (PY=(Ano) AND AD=(Brasil or Brazil) AND PS=(SP or Sao Paulo)) AND Language=(English) AND Document Types=(Article)


Boas práticas A terceira edição da Conferência Mundial sobre Integridade na Pesquisa, que ocorre entre os dias 5 e 8 de maio em Montreal, no Canadá, reunirá pesquisadores de todos os continentes com o objetivo de discutir os desafios da ética e das parcerias internacionais na ciência. O Brasil, que participará do evento com seis trabalhos acadêmicos, é apontado como líder na América Latina em pesquisas sobre integridade científica e deverá se posicionar como candidato para sediar a próxima conferência. A professora Sonia Vasconcelos, do Instituto de Bioquímica Médica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é autora de um dos trabalhos que serão apresentados e coautora de outros quatro. A apresentação que fará na conferência mostrará o progresso na abordagem dessas temáticas no Brasil. “Apesar de a inserção brasileira ser recente no cenário internacional de políticas em integridade na pesquisa científica, o país começa a ter voz nos debates mundiais, o que faz toda a diferença.” Nos últimos anos, algumas instituições passaram a investir na realização de reuniões e seminários para discutir o tema, e começam a surgir disciplinas na pós-graduação com o intuito de fomentar a pesquisa na área. Como exemplo, Sonia menciona iniciativas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que enviará à conferência um representante do governo federal, e da FAPESP, que em 2011 lançou seu Código de boas práticas científicas, com o objetivo de reforçar na comunidade científica de São Paulo uma cultura sólida de integridade ética da pesquisa.

Entre as contribuições do Brasil para as discussões está uma pesquisa sobre a inserção de consensos internacionais para a ética em publicações em periódicos ibero-americanos, realizada por Rosemary Shinkai, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, e outra sobre conflitos de interesse na comunicação da ciência contemporânea, de Márcia de Cássia Cassimiro, da Fundação Oswaldo Cruz. Nesta última identificou-se que cada vez mais a declaração de conflitos de interesse, inclusive financeiros, vem se tornando parte das demandas editoriais em várias áreas do conhecimento. Historicamente, a discussão de conflitos de interesse sempre foi muito concentrada na pesquisa biomédica. A segunda edição da conferência, realizada em 2010, em Cingapura, resultou em uma declaração com princípios gerais e consensos, fruto do acordo entre diversos países. A expectativa é que o encontro de Montreal produza um novo documento, dessa vez alertando para um assunto considerado central nas discussões que serão travadas: a busca de um maior envolvimento das instituições acadêmicas. A finalidade é promover o debate sobre as responsabilidades que elas devem assumir no gerenciamento das atividades de colaboração. “As colaborações entre grupos de pesquisa de diversos países exigem novos critérios de monitoramento, avaliação e disseminação dos resultados, e isso demanda novas políticas voltadas para a ética e as boas práticas em ambientes colaborativos”, explica Sonia. O encontro deste ano deverá ser marcado pela pluralidade nas

daniel bueno

Conferência discute integridade na pesquisa

O Brasil começa a ter voz nos debates mundiais sobre integridade na pesquisa, diz Sonia Vasconcelos, da UFRJ mesas de discussão. Isso porque os casos de má conduta científica são praticados em contextos culturais variados. Embora haja consensos em torno de alguns pontos comuns, como falsificação e fabricação de dados, existem ainda questões conflituosas, que tendem a aumentar conforme as colaborações internacionais entre pesquisadores se intensifiquem. As percepções de plágio, por exemplo, são influenciadas pelas culturas de diferentes áreas do conhecimento e muitas vezes de países. “O Oriente Médio, por exemplo, está participando mais da ciência globalizada, mas ainda sofre um choque cultural quando entra em contato com padrões estabelecidos pelo Ocidente. Isso levanta questões éticas, porque cada país vê um problema de uma forma diferente”, diz Sonia. PESQUISA FAPESP 206 | 9


Estratégias Contribuição em genética O geneticista Willy Beçak, pesquisador e ex-diretorgeral do Instituto Butantan, recebeu no dia 21 de março o Prêmio de Pesquisador do Ano de 2012, concedido pela rede social Biotech-Space, 1

que reúne empresários e pesquisadores em biotecnologia. Um dos pioneiros da genética brasileira, Beçak, de

Ligações com o Japão

80 anos, criou em 1960 o Laboratório de Genética

Realizou-se em março

elas. A JSPS recebe

do Butantan, o primeiro

em Tóquio o Simpósio

cerca de 100 mil pedidos

a realizar estudos

Brasil-Japão sobre

de financiamento

citogenéticos no país.

Cooperação Científica,

para pesquisa por

Atualmente é professor

organizado pela FAPESP

ano e contempla

na Universidade Federal

e pela Sociedade

aproximadamente 30%

Japonesa para a

deles. Seu orçamento

Promoção da Ciência

é de cerca de US$ 3,7

(JSPS) na Universidade

bilhões anuais. Ela tem

Os diretores da FAPESP

Rikkyo, com apoio da

acordos com 85

estiveram também com

Embaixada do Brasil no

instituições de ensino e

seus colegas do Riken,

Japão. O evento ocorreu

pesquisa em 45 países.

um dos principais

como parte do processo

O professor Celso Lafer,

institutos de pesquisa

de intensificação das

que esteve acompanhado

japoneses, com centros

relações entre cientistas

do diretor-presidente

em diversas cidades

de São Paulo e de outros

do Conselho Técnico-

do país e ênfase em

países que a FAPESP

-Administrativo da

programas de

vem realizando. Ainda

FAPESP, José Arana

engenharia aplicada

como o professor Beçak,

não há nenhuma parceria

Varela, também foi

a biomassa, ciências da

que contribuem para a

formal entre a Fundação

recebido na Japan

computação, medicina

evolução da ciência

e uma entidade

Science and Technology

preventiva, estudos

e da tecnologia no Brasil.

japonesa. O presidente

Agency (JST), a segunda

do cérebro, biologia

da FAPESP, Celso Lafer,

principal fomentadora

quantitativa, entre outros.

e o presidente da JSPS,

de pesquisa do Japão,

Na Universidade de

Yuichiro Anzai, trataram

pelo seu presidente,

Tóquio, Celso Lafer

da possibilidade de as duas

Michiharu Nakamura,

e José Arana Varela

entidades estudarem o

e outros diretores. Com

reuniram-se com

estabelecimento de um

um orçamento anual de

o presidente, Jinichi

acordo de cooperação

cerca de US$ 1,2 bilhão,

Hamada, que lhes contou

para o desenvolvimento

a JST tem o foco mais

sobre o fórum que a

de projetos de pesquisa

direcionado para

instituição japonesa

conjunto por cientistas

pesquisas de caráter

realizará em São Paulo

de São Paulo e do

inovativo e de aplicação

nos dias 11 e 12 de

Japão financiados por

mais imediata.

novembro deste ano.

10 | abril DE 2013

da Integração Latino2

1 Plateia do simpósio na Universidade Rikkyo, em Tóquio 2 Celso Lafer, presidente da FAPESP, e Yuichiro Anzai, presidente da JSPS

Willy Beçak: pioneiro da genética no Instituto Butantan

-Americana (Unila). A representante do comitê que escolheu o vencedor, a professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Edna Frassom Montero, enfatizou que o objetivo da premiação é mostrar quem são os pesquisadores,

3


Acesso a livros científicos pela internet Pesquisadores de países em desenvol-

escrita científica, produzir pesquisas em

“Nosso objetivo com as iniciativas Re-

vimento vão beneficiar-se do acesso

temas de interesse internacional e me-

search4Life é apoiar a pesquisa de qua-

livre a 12.200 livros científicos em versão

lhorar programas de ensino. “Os livros

lidade nos países em desenvolvimento,

eletrônica. A editora John Wiley & Sons

estão capacitando universidades, facul-

fazer avançar a educação superior e

disponibilizou parte de seu acervo por

dades, institutos de pesquisa e órgãos

melhorar a qualidade de vida da popu-

meio da Research4Life Initiatives para

do governo”, disse Gillingham. Segundo

lação”, disse Mohamed Atani, diretor

80 nações pobres. Emily Gillingham,

ela, quase 6 mil dos títulos estão nas

responsável da unidade de publicação

presidente do conselho executivo da

áreas de química, ciências físicas e en-

da Divisão de Comunicação e Informação

Research4Life, disse à Agência SciDev.

genharia, 1.200 são de saúde e medici-

Pública do Programa das Nações Unidas

Net que o acesso pode ajudar os pesqui-

na e 2 mil estão ligados às ciências da

para o Meio Ambiente (Pnuma), com

sadores a desenvolver habilidades de

vida, agricultura e ciência dos alimentos.

sede em Nairóbi, no Quênia.

Perto da aposentadoria

fotos 1 heitor shimizu 2 JSPS / Divulgação  3 eduardo cesar  4 chimp haven  ilustraçãO  daniel bueno

Mulheres na ciência

Francis Collins, o diretor

invasivos que utilizam

dos Institutos Nacionais

esses animais deveriam

de Saúde (NIH), principal

ser encerrados, de

agência de financiamento

acordo com o grupo de

à pesquisa de saúde

trabalho. Caso Collins

nos Estados Unidos,

aceite as recomendações,

recebeu um relatório de

será “um marco nas

um grupo de trabalho

políticas de uso de

recomendando a

animais em pesquisa

aposentadoria das várias

e um aval à conclusão

centenas de chimpanzés

de que é cada vez

utilizados em pesquisas

menos necessário usar

patrocinadas pela

chimpanzés em

instituição – apenas 50

pesquisas”, segundo disse

seriam poupados.

à revista Nature Jeffrey

Seis dos nove estudos

Kahn, especialista em

Estão abertas até o dia

site loreal.abc.org.br.

13 de maio as inscrições

Podem participar do

do Programa L’Oréal

programa pesquisadoras

para Mulheres na

das áreas de ciências

Ciência, organizado pela

biomédicas, biológicas

fabricante de cosméticos

e da saúde, física,

Johns Hopkins. No final

L’Oréal em parceria

matemática e química.

de 2011, um documento

com a Organização das

Cada vencedora vai

do Instituto de Medicina

Nações Unidas para a

receber uma bolsa-

(IOM) das Academias

Educação, a Ciência e

-auxílio no valor

Nacionais dos EUA já

a Cultura (Unesco)

equivalente a US$ 20

havia afirmado que boa

e a Academia Brasileira

mil. Lançado em 2006,

parte dos chimpanzés

de Ciências (ABC).

o Programa L’Oréal para

poderia ser substituída

Essa é a oitava edição

Mulheres na Ciência

em pesquisas por outros

brasileira da premiação,

já beneficiou 47 jovens

modelos animais ou

que procura incentivar

cientistas no país,

experimentos in vitro.

a participação das

distribuindo mais de

Uma exceção apontada

mulheres na linha de

R$ 1,9 milhão em bolsas.

pelo IOM é a utilização

frente do conhecimento

O júri é presidido pelo

no desenvolvimento

científico e garantir

matemático Jacob Palis,

de uma vacina contra

visibilidade ao trabalho

presidente da Academia

a hepatite C, pois o

das pesquisadoras,

Brasileira de Ciências,

chimpanzé é o único

além de oferecer

e é composto por um

modelo animal

auxílio financeiro para

especialista da Unesco,

apropriado para testar

a continuidade de

um da L’Oréal

a resposta imunológica

projetos. As interessadas

e oito pesquisadores

devem inscrever-se no

membros da ABC.

Santuário na Louisiania, que abriga animais para pesquisa aposentados

bioética da Universidade

de candidatas à vacina 4

contra a doença. PESQUISA FAPESP 206 | 11


Tecnociência Laser contra tireoidite O uso de um laser de

e Giovanni Guido Cerri,

do hormônio sintético

baixa intensidade

da USP, o médico Danilo

que tomavam antes do

mostrou resultados

Höfling submeteu 23

estudo. As que passaram

promissores contra o

pessoas com essa forma

pela terapia placebo

hipotireoidismo causado

de tireoidite a 10

precisaram de doses

pela tireoidite crônica

aplicações de laser na

maiores (Lasers in Medical

autoimune, doença em

tireoide e outras 20 a

Science, 2012). O laser

que o sistema de defesa

um tratamento placebo,

parece ter reduzido a

ataca a tireoide,

com uma luz sem efeito

produção de anticorpos

glândula que produz os

terapêutico. Após nove

contra a tireoide. Para

hormônios que controlam

meses, as pessoas que

Höfling, esses resultados

o metabolismo. Em um

receberam o tratamento

sugerem uma melhora

estudo coordenado por

real precisavam de

no funcionamento

Maria Cristina Chammas

metade da dose

da glândula.

Pererecas marsupiais Duas novas espécies de

galhos, vocalizando”,

pererecas “marsupiais”

lembra Mauro Teixeira Jr.,

foram descobertas

doutorando da USP e

na mata atlântica por

primeiro autor do artigo

uma equipe coordenada

descrevendo as novas

pelo herpetólogo

espécies (Zootaxa,

Miguel Trefaut Rodrigues,

agosto 2012). A outra

da Universidade de

espécie, Gastrotheca

São Paulo (USP).

prasina, foi descoberta

Ambas as espécies são

vivendo dentro de

do gênero Gastrotheca,

bromélias em uma área

cujas fêmeas possuem

isolada da Reserva

A Agência Espacial

átomos se formaram,

uma espécie de bolsa

Biológica da Mata Escura,

Europeia divulgou em

380 mil anos depois do

nas costas, usada

em Jequitinhonha,

março a imagem mais

Big Bang. Lançado em

para carregar seus ovos.

Minas Gerais. Para

detalhada da infância

2009, o Planck observa

Protegidos dentro

Rodrigues, os achados

do Universo. Criada com

essa radiação com uma

da bolsa, os ovos se

ressaltam como

dados do satélite Planck,

resolução muito maior que

desenvolvem até

“ainda desconhecemos

a imagem é um mapa

a de seus antecessores,

se tornarem girinos,

profundamente a

de todo o céu que

o Cobe e o WMAP. Os

ou até mesmo

fauna do Brasil”.

mostra ínfimas variações

dados do Planck indicam

pequenas pererecas.

na radiação cósmica de

que o Big Bang ocorreu

Os pesquisadores

fundo, tênue radiação

há 13,8 bilhões de anos,

testemunharam 20

em micro-ondas que

100 milhões antes do

filhotes saírem das

permeia o espaço. Essa

que se pensava, e que a

costas de uma fêmea

radiação é a principal

energia escura representa

de Gastrotheca recava

evidência de que o

68,3% da energia do

Universo nasceu de

Universo – e não 72,8%.

uma grande explosão,

Também levou à revisão

o Big Bang, e vem se

da quantidade de matéria

expandindo. Ela seria o

do Cosmo: 26,8%

resquício da luz emitida

são matéria escura e

quando os primeiros

4,9%, matéria normal.

Primeira luz: mapa das flutuações de temperatura da radiação emitida 380 mil anos após o Big Bang

capturada na Estação Ecológica Estadual de Wenceslau Guimarães, no sul da Bahia. “Lá havia centenas delas penduradas nos 12 | abril DE 2013

1

Fêmea de Gastrotheca recava, da mata atlântica da Bahia: bolsa dorsal repleta de ovos

2

Retrato do Universo jovem


Imagens em 3D nos celulares

3

Satélite Goce: dados do campo de gravidade do planeta e de terremotos

fotos 1 mauro teixeira jr. / usp  2 ESA / Planck Collaboration  3 ESA / AOES Medialab  4 Léo ramos  ilustraçãO  daniel bueno

Sismógrafo em órbita

O futuro da

(21 de março) é que

tecnologia que equipará

as imagens projetadas

equipamentos

pelas telas dos aparelhos

eletrônicos móveis

poderão ser vistas

abrange as telas em 3D.

em movimento e

Pesquisadores da

tridimensionalmente de

empresa Hewlett-Packard

forma multidirecional,

(HP), de Palo Alto,

permitindo um ângulo

nos Estados Unidos,

de 180º de visão a uma

construíram o

distância não maior

protótipo de uma tela

que 1 metro. Essas

tridimensional usando

características ainda

um método que, dentro

estavam para ser

de algum tempo,

superadas. Os autores

Vem do espaço a nova

de ar. Os pesquisadores

poderá ser aperfeiçoado

do estudo afirmam que,

forma de detectar

da ESA, do Instituto de

para criar vídeos que

para criar imagens em

terremotos. A Agência

Pesquisa em Astrofísica

“dançam” na superfície

3D que podem ser

Espacial Europeia (ESA)

e Planetologia e do

de smartphones e tablets,

alteradas na mesma

anunciou em março a

Instituto de Física da

lembrando a ficção

velocidade de vídeos

confirmação de que o

Terra de Paris, ambos

científica em filmes como

comuns, eles tiveram

satélite Goce, sigla em

da França, e da

Guerra nas estrelas.

que usar o método

inglês para Explorador

Universidade de

O segredo da inovação,

simples de difração da

da Circulação Oceânica

Tecnologia de Delft,

que poderá ser

luz. Para isso, fizeram

e do Campo de

na Holanda, estudaram

visualizada sem o

uma sucessão de

Gravidade, é capaz

os dados captados

auxílio de óculos

ranhuras – as redes de

de captar as vibrações

pelo satélite durante o

especiais, é a tecnologia

difração – na superfície

da superfície terrestre

terremoto que devastou

autoestereoscópica

de uma fina placa de

durante os abalos

a costa nordeste do

multivisão, semelhante

vídeo e emitiram luzes

sísmicos. Elas geram

Japão em março de 2011.

à holografia. A novidade

a partir de LEDs

ondas de som que sobem

Eles chegaram à

desse estudo publicado

posicionados para

até a uma altitude

conclusão de que os

na revista Nature

gerar o efeito.

de 270 quilômetros,

deslocamentos verticais

na órbita do satélite.

da atmosfera funcionam

Somente baixas

de forma semelhante aos

frequências de som

sismógrafos na superfície

atingem tal altura e são

da Terra. Lançado em

capazes de provocar

2009, o Goce tem

movimentos verticais

feito um mapeamento

que expandem e

detalhado da gravidade

contraem as partículas

do planeta.

4

Teste em fita mostra resultado em até 25 minutos com apenas uma gota de sangue

Diagnóstico rápido para dengue Novos exames, baseados em diferentes

há infecção as proteínas liberadas pelo

cadores diferentes dos testes comerciais

tipos de nanopartículas e compostos por

vírus são detectadas na análise. Anticor-

que resultaram em maior capacidade

uma pequena e estreita fita branca, são

pos específicos presentes na segunda

diagnóstica”, diz Elisângela Linares, que

capazes de detectar a infecção de dengue

película se ligam a essas proteínas e,

desenvolveu o teste durante o seu dou-

nos estágios iniciais. Basta colocar o san-

quando elas passam para a terceira mem-

torado na Ludwig Maximilians Universität

gue na fita que o resultado aparece em

brana, são visualizadas por um sinal co-

& Helmholtz Zentrum München, na Ale-

até 25 minutos. O diagnóstico é realizado

lorido proveniente das nanopartículas,

manha, em colaboração com o professor

por três membranas. A primeira filtra o

confirmando a presença do vírus da den-

Lauro Kubota, do Instituto de Química da

plasma sanguíneo da amostra e quando

gue. “Incorporamos outros tipos de mar-

Universidade Estadual de Campinas.

PESQUISA FAPESP 206 | 13


capa

Desafios partilhados Laboratórios de empresas em parques de universidades enriquecem formação de estudantes e respondem a novas demandas em pesquisa e desenvolvimento

Fabrício Marques

A

missão da universidade como catalisadora da inovação e do desenvolvimento está ganhando novos contornos no país a partir de iniciativas como a construção do Parque Científico e Tecnológico da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), cujas obras de infraestrutura começaram a ser entregues no mês passado. Instalado numa área de 100 mil metros quadrados encravada na Cidade Universitária, o parque vai abrigar laboratórios de inovação em que trabalharão, num mesmo ambiente, pesquisadores das empresas e docentes e estudantes da Unicamp. O modelo, que só recentemente começou a difundir-se no Brasil mas está presente em várias universidades do mundo, tem o condão de enriquecer a formação de estudantes e o trabalho dos cientistas com as demandas trazidas pelas empresas e multiplicar o investimento em pesquisa nas universidades. “Os laboratórios na Unicamp produzirão desenvolvimento tecnológico, mas também darão uma contribuição importante para a pesquisa fundamental. Eles darão lastro a teses, dissertações, patentes e publicações de

14  z  abril DE 2012

Samsung Pelo menos 25 professores e estudantes do Instituto de Computação da Unicamp atuam no laboratório que a Samsung criou em parceria com a universidade. Funciona no prédio do Centro de Inovação em Software (Inovasoft), que também abriga centros em parceria com o Banco do Brasil e a empresa MC1

Nova Incubadora A nova sede da Incubadora de Empresas de Base Tecnológica da Unicamp vai ocupar um prédio com 2,6 mil metros quadrados e terá capacidade para abrigar 48 empresas nascentes


Embrapa

Enclave da inovação

Cinquenta pesquisadores e técnicos da Embrapa e da Unicamp trabalharão na Unidade Mista de Pesquisa em Genômica Aplicada a Mudanças Climáticas, investimento de R$ 50 milhões. O prédio será construído numa área de 2,5 mil metros quadrados

O Parque Científico e Tecnológico da Unicamp espalha-se por uma área de 100 mil metros quadrados na Cidade Universitária

Tecnometal Laboratório de 500 metros quadrados em parceria com a fabricante de painéis solares envolve pesquisadores do Instituto de Física e da Faculdade de Engenharia Mecânica. Os projetos estão ligados à fabricação de lâminas de silício e de células solares

LabRiser Patrocinado pela Petrobras, o Laboratório Experimental para Risers de Produção em Águas Ultra-Profundas e Sistemas Marítimos de Produção (LabRiser) terá um tanque capaz de simular as condições a que estruturas submarinas são submetidas na produção de petróleo no oceano

LaCTAD O Laboratório Central de Tecnologias de Alto Desempenho (LaCTAD), facility da Unicamp inaugurada em março, reúne num mesmo prédio equipamentos modernos para pesquisa em genômica, proteômica, bioinformática e biologia celular

ilustrações  daniel bueno

LIB O Laboratório de Inovação em Biocombustíveis funcionará num prédio de 1,6 mil metros quadrados e abrigará pesquisas sobre etanol, biodiesel e bioquerosene

Cameron do Brasil A fabricante de equipamentos para exploração de óleo e gás vai investir US$ 6 milhões num laboratório de mil metros quadrados. Parceria envolve a Faculdade de Engenharia Mecânica e o Centro de Estudos de Petróleo

pESQUISA FAPESP 206  209  z  15


alunos desde a iniciação científica até o pós-doutorado”, diz o reitor da Unicamp, Fernando Ferreira Costa. “Não se trata apenas de prestar serviço ou de resolver problemas, mas de aprimorar a formação dos nossos estudantes, que depois poderão levar essa experiência para fora da universidade, contribuindo para a inovação, o desenvolvimento do país e a formação de empresas de base tecnológica.” benefícios imediatos

Do lado das empresas, a criação de laboratórios em universidades traz benefícios imediatos, como a possibilidade de usar a expertise de bons pesquisadores em temas sensíveis, e outros de longo prazo, como a chance de interagir com outras empresas e pesquisadores atuantes no parque e de recrutar jovens pesquisadores para seus quadros entre estudantes talentosos. Empresas como a Tecnometal, do setor de mineração e energias renováveis, e a Cameron do Brasil, de tecnologia e serviços para o setor de petróleo e gás, já celebraram convênios para a implantação de laboratórios no campus. O parque também abrigará a Unidade Mista Embrapa Unicamp de Pesquisa em Genômica Aplicada a Mudanças Climáticas, um modelo de parceria inédito para a empresa de pesquisa, na qual pesquisadores das duas instituições trabalharão em busca de variedades agrícolas mais tolerantes aos efeitos do aquecimento global. Já funciona nos limites do parque o Inovasoft, o Centro de Inovação em Software da Unicamp, que abriga empresas nascentes e laboratórios criados em parceria com a IBM, a Samsung e o Banco do Brasil. E está em 16  z  abril DE 2012

construção o prédio do Laboratório de Inovação de Biocombustíveis (LIB), que funcionará num formato semelhante ao do Inovasoft, atraindo laboratórios de empresas. “A Unicamp tem uma longa história de colaboração com o setor produtivo, e o Parque Científico e Tecnológico vai estabelecer um novo patamar dessa colaboração”, explica Ronaldo Pilli, pró-reitor de Pesquisa da universidade. Há uma regra restrita nas negociações para incorporar novos laboratórios no parque: só são admitidas iniciativas que contemplem convênios com grupos de pesquisa da Unicamp. “O objetivo é fazer pesquisa competitiva. A empresa precisa reconhecer que a Unicamp será um parceiro estratégico”, diz Pilli. Segundo Roberto de Alencar Lotufo, diretor da Agência de Inovação Inova Unicamp, que articula a negociação com as empresas, o advento do parque permite que a universidade proponha e organize a construção de novos laboratórios colaborativos com empresas. “Até agora, quando surgia uma oportunidade de se construir um novo laboratório, a sua localização não seguia um planejamento, resultando na instalação de vários prédios espalhados pelo campus”, diz Lotufo. “O Parque Científico e Tecnológico vem organizar e apresentar um planejamento de construção de novos laboratórios de pesquisa colaborativa criando um ambiente sinérgico multidisciplinar. O parque funcionará como um condomínio, no qual as empresas pagam pelo uso do espaço e rateiam despesas com segurança e infraestrutura.” As empresas participantes do parque utilizam tipos variados de financiamento para construir seus laboratórios. No caso da Cameron do Brasil,

foto  genilson araújo

Centros de empresas no Parque Tecnológico do Rio: frutos da vocação da UFRJ em pesquisas sobre petróleo


haverá maquinário experimental, instrumentos laboratoriais e de análise e equipamentos de computação, patrocinados pela Petrobras. “Como nosso petróleo se encontra no mar, a Petrobras sempre se preocupou em desenvolver pesquisas sobre a perfuração de poços no oceano e produção de petróleo no oceano – e encontrou essa capacitação na Unicamp”, diz Celso Morooka, professor da Faculdade de Engenharia Mecânica e diretor do LabRiser. Também há parcerias que utilizam mecanismos de financiamento não reembolsável do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), no âmbito do Fundo Tecnológico (Funtec). Um exemplo é o laboratório de 500 metros quadrados que a Unicamp, O objetivo central das parcerias é em parceria com a Tecnofazer pesquisa competitiva, diz metal, está construindo no parque. O projeto obteve Ronaldo Pilli, pró-reitor da Unicamp R$ 12 milhões em recursos do Funtec para construção do prédio e compra com ênfase na camada pré-sal. O Cepetro, criado de equipamentos. A contrapartida da Tecnometal em 1987 em parceria com a Petrobras, ajudou a equivale a 10% do valor do projeto. A empresa tem multiplicar a expertise da Unicamp nas pesquisas uma fábrica de painéis fotovoltaicos em Campinas em engenharia de petróleo, que agora atraem a (SP) e já trabalha em conjunto com pesquisadoatenção de outras empresas. Em 2015, por exem- res da Faculdade de Engenharia Mecânica e do plo, serão concluídas as instalações do Labora- Instituto de Física Gleb Wataghin, da Unicamp, tório Experimental para Risers de Produção em em esforços de pesquisa relacionados ao proÁguas Ultra-Profundas e Sistemas Marítimos de cesso de purificação do silício grau metalúrgico, Produção (LabRiser), compostas por um tanque a fabricação de lâminas de silício grau solar e a experimental único no mundo capaz de simular fabricação de células solares. A Agência Inova as condições a que as estruturas submarinas são Unicamp mantém conversas adiantadas com pelo submetidas na produção de petróleo no oceano, menos três empresas interessadas em participar como a força das correntes marinhas. O tanque do parque utilizando recursos do Funtec. de 30 metros de profundidade e o prédio do laboratório custarão R$ 6 milhões e, além disso, biocombustíveis Há um terceiro modelo, seguido pelo Laboratório de Inovação de Biocombustíveis (LIB). Com 1.656 metros quadrados, o prédio em construção foi patrocinado pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) por meio do programa CT-Infra. A meta agora é buscar empresas interessadas em participar de projetos conjuntos com pesquisadores da Unicamp envolvendo a cadeia de produção de etanol, biodiesel e bioquerosene. Um quarto modelo é o da Unidade Mista Emmilhões é o brapa Unicamp de Pesquisa em Genômica Aplicada a Mudanças Climáticas, que terá investimentos investimento compartilhados entre a Embrapa e a universidade. Dez pesquisadores das duas instituições já da Petrobras estão trabalhando no projeto, que, no horizonte de três anos, contará com cerca de 50 pesquisano tanque dores e técnicos. O investimento estimado é de experimental R$ 50 milhões, em infraestrutura e operação. “O objetivo é ter em cinco anos tecnologia de base da Unicamp genética de tolerância à seca aplicável a culturas isso será feito com recursos da própria empresa – a Unicamp ofereceu isenção de 10 anos da taxa de ocupação em troca da construção do prédio pela companhia. O convênio foi assinado em 2011 e o laboratório da empresa já deveria estar em construção, mas a Cameron decidiu adiar em um ano sua implantação, por conta da recente retração de investimentos da Petrobras. A parceria envolve uma colaboração com a Faculdade de Engenharia Mecânica (FEM) e o Centro de Estudos de Petróleo (Cepetro) em projetos de pesquisa em equipamentos e processos submarinos para processamento e produção de petróleo,

R$ 6

pESQUISA FAPESP 206  z  17


importantes para o país, como milho, soja, cana e trigo”, afirma o presidente da Embrapa, Maurício Antônio Lopes. “A Embrapa teve um papel importante na adaptação de culturas como soja, arroz e trigo para as condições tropicais. Agora tem o desafio de se manter competitiva no mercado de sementes e de biotecnologia, que é cada vez mais complexo. A vertente de inovação da genômica aplicada ao melhoramento genético exige uma base de pesquisa fundamental que levou a Embrapa a se aproximar da academia”, diz. experiência da Allelyx

rantir que o pesquisador tenha disponibilidade para atender a empresa e, acima de tudo, interesse pela colaboração”, afirma Roberto Lotufo. A agência mantém um cadastro, conhecido como banco de competências, com informações atualizadas sobre grupos de pesquisa. A Inova atua em várias frentes. Ajuda os pesquisadores da universidade a depositar patentes, cuida da gestão da propriedade intelectual da Unicamp, faz a ponte com empresas interessadas em licenciar tecnologias, coordena a atuação de uma incubadora de empresas de base tecnológica e estimula o empreendedorismo entre pesquisadores e alunos de graduação e pós-graduação. Segundo Lotufo, o Parque Científico e Tecnológico será mais um instrumento na missão da agência de fomentar a inovação e estimular sua transferência para a sociedade. “É como acontece em grandes universidades de pesquisa do mundo. Quando recebemos delegações estrangeiras, os dirigentes de universidades sempre nos perguntam sobre nossa incubadora, nosso trabalho de licenciamento de tecnologia e nosso parque tecnológico. São elos de uma mesma cadeia”, afirma. Numa escala reduzida, as ambições do Parque Científico e Tecnológico já vinham sendo realizadas no prédio do Inovasoft, o Centro de Inovação em Software da Unicamp, que abriga

Segundo ele, a escolha da Unicamp, em cujo campus a Embrapa mantém sua unidade de bioinformática, foi natural. Lopes ressalta a importância de ter Paulo Arruda, professor do Instituto de Biologia, como líder do projeto na universidade. Arruda foi um dos fundadores da Allelyx, empresa de biotecnologia criada a partir do sequenciamento da Xylella fastidiosa e hoje incorporada pela Monsanto. “O professor Paulo Arruda é cientista conhecido no Brasil e no exterior e também tem a experiência de montar um pipeline em ambiente privado. Ele trabalhará com alguns pesquisadores que atuaram na Allelyx e hoje estão na Embrapa”, afirma o presidente da Embrapa. Segundo Arruda, o foco da unidade é garantir a sustentabilidade da produção agrícola no país. “O Brasil teve perdas agrícolas de R$ 5,4 bilhões no ano passado devido às intempéries climáticas. É preciso criar uma es“Vamos expor alunos de graduação, tratégia para sustentar a produção doutorado e pós-doutorado a uma de milho, soja e trigo, que são a base da alimentação”, afirma. “Trabalhaexperiência inédita”, diz Paulo Arruda remos na Unidade Mista com uma visão de pragmatismo empresarial, num formato semelhante ao do desenvolvimento de drogas na indústria farmacêutica”, afirma. Os benefícios para a Unicamp, segundo Arruda, serão variados. “Vamos expor alunos de graduação, doutorado e pós-doutorado a uma experiência inédita. Eles vão mergulhar no mundo do desenvolvimento tecnológico, com suas demandas, metas e prazos. Isso vai aumentar a empregabilidade desses profissionais e contribuir para formar uma massa crítica maior num tema de grande interesse para o país.” Uma das tarefas mais complexas da Agência de Inovação Inova Unicamp na montagem do parque é encontrar grupos de pesquisa da instituição talhados para atender as necessidades da empresa parceira – e promover a aproximação entre as partes. “Estamos trabalhando agora numa parceria com a Schreder, empresa de iluminação pública com sede em Valinhos. A primeira coisa é identificar quais são os grupos de pesquisa que podem ajudar, mas não só isso. É necessário ga18  z  abril DE 2012


fotos tecnopuc

laboratórios em parceria com várias empresas além de funcionar como incubadora de empresas de tecnologia da informação. Desde o final do ano passado, o Inovasoft sedia um laboratório montado pela Samsung, onde trabalham pesquisadores e estudantes do Instituto de Computação (IC) da Unicamp. Convênios que envolvem investimentos na casa dos R$ 3 milhões têm como foco pesquisa e desenvolvimento em diversos tópicos relacionados a plataformas computacionais móveis – a Samsung é líder em celulares. A parceria começou com três projetos e dois novos estão sendo incorporados. Uma das principais vantagens apontadas pelos participantes do projeto é a oportunidade de obter recursos e infraestrutura de pesquisa – a Samsung montou um laboratório com computadores, tablets e smartphones utilizados no trabalho dos pesquisadores e financia bolsas para os estudantes envolvidos no projeto. Sandro Rigo, professor do IC que lidera um dos projetos, destaca a oportunidade de os estudantes e pesquisadores trabalharem em temas de grande interesse das empresas. “É comum que alunos de pós-graduação nos Estados Unidos façam estágios em grandes empresas, mas isso aqui no Brasil acontece pouco”, diz. O vice-presidente de pesquisa e desenvolvimento da Samsung, Yeun Bae Kim, disse que a meta é o desenvolvimento conjunto de novas tecnologias a médio e longo prazo. “O objetivo é gerar resultados de alto impacto tecnológico, visando melhorias significativas no estado da arte nas linhas de pesquisa de interesse da Samsung”, afirmou, ao participar da inauguração oficial do laboratório, em janeiro. Outro laboratório do Inovasoft abriga um projeto de pesquisa colaborativa executado desde 2011 pelo IC da Unicamp com o Banco do Brasil.

Sede do TECNOPUC (abaixo), em Porto Alegre, croqui de seu novo condomínio de empresas (acima, à esq.) e centros de inovação de empresas de informática: parque alavancou recursos para pesquisa

O foco é o estudo e o apoio à implementação de soluções para cadastramento de computadores e autenticação de clientes do Banco do Brasil no autoatendimento via internet. “O banco nos deu liberdade para sugerir soluções. Propusemos tanto uma solução nova quanto o robustecimento do sistema de que eles já dispõem”, diz Ricardo Dahab, professor do IC e líder de um dos projetos do Banco do Brasil. “Foi um trabalho importante, porque a demanda era muito sofisticada. Rendeu trabalho a três alunos de doutorado e bons artigos acadêmicos publicados.” O projeto envolveu três professores e oito alunos entre doutorandos, mestrandos e bolsistas de iniciação científica. Para a MC1, empresa paulista de softwares e serviços, a recém-assinada parceria com pesquisadores do Instituto de Computação busca não apenas encontrar soluções inovadoras. “Não esta-

R$50

milhões é o investimento da Embrapa e da Unicamp na Unidade Mista

pESQUISA FAPESP 206  z  19


sem precisar criar uma cópia customizada para cada cliente”, afirma. O investimento da MC1 no projeto está na casa dos R$ 170 mil. Uma das principais inspirações para os mais de 900 parques tecnológicos espalhados pelo mundo é a experiência pioneira da Universidade Stanford, na Califórnia, no início dos anos 1950, em que a articulação entre a universidade, empresas de microeletrônica e instituições de pesquisa deram origem ao Vale do Silício, o principal enclave de empresas tecnológicas do planeta. No começo dos anos 1970, o Japão aderiu de forma entusiasmada aos parques, criando 25 ‘tecnópoles’. Entre os principais parques encravados em universidades no mundo, destacam-se os das universidades de Wisconsin Madison e de Purdue, nos Estados Unidos, e os de Cambridge e Oxford, na Inglaterra.

1

1 Vista aérea do Parque de Pesquisa de Stanford, inspiração para cidades tecnológicas nos Estados Unidos e em vários países 2 Parque Tecnológico de São José dos Campos, um dos mais avançados entre as 27 iniciativas do Sistema Paulista

20  z  abril DE 2012

mos simplesmente buscando informação e atualização tecnológica e científica para a empresa. Um de nossos objetivos é aproveitar nos nossos quadros pessoas que participarem do projeto”, diz Kayo Hisatomi, coordenador de desenvolvimento de software da empresa. A empresa já fez outros convênios com universidades, mas é a primeira vez que investe num laboratório próprio. “Ficamos sabendo desse formato e resolvemos investir nele”, conta Kayo, que se formou em engenharia de computação da Unicamp em 1998 e mantém contato com a universidade até hoje. O líder do projeto é o professor do IC Luiz Fernando Bittencourt, que vai coordenar uma equipe de 15 pesquisadores e estudantes no desenvolvimento de uma plataforma que permita à empresa oferecer suas soluções a vários clientes ao mesmo tempo, utilizando recursos de computação em nuvem. “O objetivo é criar uma arquitetura de software que permita à empresa oferecer seus softwares

O Brasil decidiu investir nesse modelo de forma mais tardia. Um dos empreendimentos de maior expressão é o Parque Tecnológico do Rio. Criado há 10 anos nos limites do campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tem como ênfase a pesquisa e o desenvolvimento no setor de petróleo e gás, ancorados no trabalho desenvolvido nesta área há décadas pela UFRJ, especialmente por seu Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação em Engenharia (Coppe) e pelas parcerias estabelecidas com o Centro de Pesquisas e Desenvolvimento (Cenpes) da Petrobras. O parque ocupa uma área de 350 mil metros quadrados e vai abrigar centros de pesquisa e desenvolvimento de mais de 20 empresas de grande e médio portes até 2015. O investimento, entre 2003 e 2014, é estimado em R$ 1 bilhão. Já estão em operação os centros da francesa Schlumberger, das norte-americanas Baker Hughes, GE e FMC Technologies, e da BR Asfaltos, da Petrobras. Estão previstos para entrar em funcionamento ainda neste ano os centros de empresas como Siemens e Halliburton. “O parque foi criado há 10 anos, mas sua história começou muito antes disso”, diz Maurício Guedes, diretor do parque. “Assim como aconteceu com a Unicamp, a UFRJ é um exemplo de universidade com cultura empreendedora e experiência com relacionamento com empresas por meio, por exemplo, do Coppe, que já estabeleceu mais de 3 mil convênios somente com a Petrobras, com quem temos uma experiência muito bem-sucedida de mais de 40 anos desde a implantação do Cenpes dentro do campus da UFRJ”, diz Guedes. O Parque Científico e Tecnológico da Unicamp é um dos pré-credenciados no Sistema Paulista de Parques Tecnológicos, que reúne 27 iniciativas espalhadas por várias cidades do estado de São Paulo, várias delas com vínculos estreitos com universidades, caso do parque de Botuca-

fotos 1 Aerial Archives / Alamy / Glow Images  2 pqtec sjc

vale do silício


tu, ligado à Universidade Estadual Paulista, e o de Ribeirão Preto, ligado à Universidade de São Paulo. Um dos mais adiantados – e o primeiro a receber credenciamento definitivo – foi o Parque Tecnológico de São José dos Campos, iniciativa lançada pela prefeitura da cidade que reúne centros de inovação nas áreas de saúde, tecnologia de informação, aeronáutica, energia e recursos hídricos. O parque atua com empresas-âncora como Embraer, Vale, Ericsson e Sabesp e tem parceiros como o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), as escolas Politécnica (Poli) e de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo, além da Federal de São Paulo (Unifesp) e o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT). A tarefa de criar um parque tecnológico dentro da universidade está longe de ser trivial. “Um entrave comum é o de espaço. Não são muitas as universidades que contam com terrenos para criar parques. Até mesmo grandes instituições, como Harvard e o MIT, tem essa limitação”, diz Roberto Lotufo, que participa anualmente da reunião da Association of University Research Parks (Aurp), entidade criada em 1986 que congrega hoje 32 parques científicos e tecnológicos de propriedade de universidades americanas. No Brasil há também, segundo Lotufo, a dificuldade jurídica de manter dentro do campus um encla-

ve que segue regras diferentes das que regem as universidades públicas. Um parque vinculado a uma universidade comunitária resume os benefícios que iniciativas desse tipo podem render a empresas e bilhão é o ao ambiente acadêmico. O Parque Tecnológico da Pontifícia Univerinvestimento sidade Católica do Rio Grande do Sul (TECNOPUC), em Porto Alegre, no Parque reúne hoje 101 centros de inovação de empresas e instituições de diTecnológico versos tamanhos, onde trabalham do Rio em 4,8 mil pessoas. O parque surgiu em 2003, como parte da estratégia da 10 anos PUC gaúcha para se qualificar como instituição de pesquisa. “Havia um desequilíbrio entre a tradição consolidada da PUC em ensino e a pesquisa da instituição que precisava ser resolvido e havia também uma dificuldade de levantar recursos para investir em pesquisa, pois nossa fonte de recursos, as mensalidades dos alunos, era destinada majoritariamente para custear o ensino”, diz Roberto Moschetta, diretor do TECNOPUC.

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parque esgotado

“A convivência entre as empresas gera interações surpreendentes nos parques”, diz Roberto Moschetta

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A criação do parque, inicialmente com uma vocação em tecnologia da informação e comunicação tendo como âncoras os laboratórios das empresas Dell e HP, buscava atrair recursos privados para a pesquisa na instituição. Hoje o condomínio reúne centros de empresas como Microsoft e TOTVS e ampliou sua atuação para os campos da energia e da saúde, com convênios com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária e a Petrobras. Não há mais espaço para abrigar novas iniciativas – o terreno de 15 hectares vizinho à PUC adquirido do Exército está esgotado. A expansão do parque se dará numa área ampla a 12 quilômetros do campus da universidade. “Claro que nem todos os centros de empresas desenvolvem alta tecnologia. Há empresas que buscam a expertise da universidade para aplicações simples”, afirma Moschetta. Os resultados da iniciativa vão além do que se esperava. O diretor do TECNOPUC ressalta que cursos de pós-graduação na área de tecnologia da informação oferecem bolsas a praticamente todos os alunos, financiadas por empresas instaladas no parque. “Ocorre um círculo virtuoso. Conseguimos atrair alunos de alta qualificação e os nossos cursos ganham ainda mais prestígio e consistência”, afirma. “A convivência entre as empresas nos parques também gera interações surpreendentes. Acabam acontecendo parcerias e troca de experiências que não poderiam ser previstas no início do projeto. O ambiente é catalisador e sinérgico. A energia que se vê no ambiente do parque resulta mais das conexões que se formam do que do próprio ambiente”, diz. n pESQUISA FAPESP 206  z  21


capa  Infraestrutura

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Facility da Unicamp reúne, num mesmo prédio, equipamentos modernos para pesquisa em genômica, proteômica, bioinformática e biologia celular

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Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) inaugurou um laboratório que reúne, num mesmo prédio, equipamentos de última geração destinados a pesquisas em genômica, bioinformática, proteômica e biologia celular. Instalado no Parque Científico e Tecnológico da instituição e criado nos moldes das research facilities de universidades no exterior, o Laboratório Central de Tecnologias de Alto Desempenho (LaCTAD) busca garantir um patamar elevado de qualidade em pesquisas realizadas na Unicamp e no estado de São Paulo – as instalações são franqueadas a pesquisadores de outras instituições. “A universidade assinou dois convênios importantes por causa da existência do laboratório. Esta unidade será muito útil para as pesquisas nas áreas contempladas e dará um importante impulso à ciência do país”, afirmou o reitor da Unicamp, Fernando Ferreira Costa, na cerimônia de inauguração. 22  z  abril DE 2013

A FAPESP investiu cerca de R$ 5,5 milhões na compra dos equipamentos para o laboratório, no âmbito do Programa de Equipamentos Multiusuários (EMU), enquanto a construção do prédio e a contratação dos funcionários couberam à universidade. “De particular interesse são a Unicamp ter investido quase o mesmo valor que a FAPESP e o LaCTAD ter uma estrutura de custos bem demonstrada e com apoio institucional decisivo para contratar funcionários em bioinformática e técnicos de apoio com doutorado”, disse Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP, que esteve presente na inauguração do laboratório, no dia 1º de março. A proposta de criação do LaCTAD foi submetida ao edital do Programa de Equipamentos Multiusuários da FAPESP em 2009. Em 2011 foi iniciada a oferta de serviços em instalações provisórias nas unidades de ensino e pesquisa.

Para trabalhos no campo da genômica, foram adquiridos três modernos sequenciadores. Há dois modelos HiSeq 2500, da Illumina, que permitem estudos complexos de sequenciamento, graças a sua capacidade de produzir um grande número de sequências genômicas para análise em bioinformática. O outro modelo é o ABI 3730XL DNA Analyzer, da Applied Biosystems, que produz um número não tão grande de sequências, mas é capaz de mapear um número maior de pares de bases. “É difícil encontrar um trabalho científico no campo das ciências da vida publicado numa boa revista que não tenha algum componente ligado ao sequenciamento de genes ou mudanças no genoma e que não use esse tipo de dado para fazer o desenho da pesquisa ou o planejamento dos experimentos”, diz Ronaldo Pilli, o pró-reitor de Pesquisa da Unicamp. “Esses equipamentos estão melhorando a qualidade das pesquisas feitas na Unicamp.” A prestação de serviços em bioinformática, outra vocação do LaCTAD, ampara-se num parque de computadores que inclui servidores IBM e máquinas da HP. “Temos investido na formação de recursos humanos, com a oferta de cursos de bioinformática em todos os semestres”, diz Pilli. Já foram treinados cerca de 160 estudantes.

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fotos Léo ramos

Endereço de excelência


No LaCTAD há equipamentos como calorímetro de titulação isotérmica (1 e 2), cromatógrafo (3) e microscópio confocal (4)

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epilepsia

Um dos projetos em andamento na facility é liderado por Iscia Lopes-Cendes, professora do Departamento de Genética Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Ela está utilizando um dos sequenciadores do LaCTAD num projeto de pesquisa sobre os mecanismos moleculares na gênese da epilepsia, que busca identificar a expressão gênica em tecidos cerebrais de ratos. Grupos neuronais selecionados no hipocampo de modelos animais induzidos a apresentar a doença são submetidos a um sequenciamento profundo, em busca de transcritos (RNA mensageiro) que podem ser relevantes para diferenciar o estado patológico e o normal. “Como se trata de um sequenciamento profundo, necessitávamos de um sequenciador rápido e inclusive ajudamos a fazer um upgrade de seu software com recursos do nosso projeto de pesquisa”, diz ela. A pesquisadora Gláucia Mendes de Souza, professora do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP) e uma das coordenadoras do Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen), também utilizou os serviços da facility da Unicamp no sequenciamento de um genoma de referência da cana-

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O LaCTAD tem investido na formação de recursos humanos, com a oferta de cursos de bioinformática

-de-açúcar. “O LaCTAD está provendo sequências obtidas com o sequenciador Illumina que complementam o que fizemos com o sequenciador Roche 454. Temos na USP um 454, mas não um Illumina, daí a importância dos serviços prestados por eles”, afirma a pesquisadora. Paulo Arruda, do Instituto de Biologia da Unicamp, também vem utilizando os serviços do LaCTAD. Um projeto de seu aluno de doutorado Vagner Katsumi Okura relaciona-se à construção e ao sequenciamento da biblioteca de cro-

mossomo artificial de bactéria (BAC) da cana-de-açúcar. As bibliotecas BAC são ferramentas fundamentais para a caracterização de regiões cromossômicas que contêm genes de interesse. Uma segunda pesquisa, do doutorando Pedro Barreto, investiga como as plantas regulam a biogênese mitocondrial. A mitocôndria é uma organela responsável pela bioenergética da célula. “Há conhecimento razoável sobre a biogênese mitocondrial em mamíferos, mas em plantas é pouco conhecido”, diz Arruda, cujo trabalho previu o sequenciamento de RNAs de plantas que superexpressam a proteína desacopladora da mitocôndria (UCP1). No campo da proteômica, o LaCTAD dispõe de um equipamento de cromatografia líquida para análise e purificação de proteínas, além de um calorímetro, utilizado para determinar parâmetros termodinâmicos de interações bioquímicas. Um espectrômetro de massas modelo Xevo Q-TOF MS, que pertence ao Instituto de Química da Unicamp, será franqueado aos usuários do LaCTAD enquanto o laboratório não adquirir seu próprio equipamento. No campo da biologia celular, o laboratório é equipado com um microscópio confocal da marca Leica, capaz de produzir imagens fluorescentes de alta resolução de uma variedade de materiais de amostras biológicas. Outro equipamento é um imunoensaio Multiplex da marca Bio-Rad, capaz de realizar dosagens rápidas e precisas de hormônios ou de citocinas, as moléculas envolvidas na emissão de sinais entre as células durante as respostas imunes. “Estamos organizando para maio um workshop internacional na área de biologia celular. Vamos receber especialistas de fora, com o mesmo tipo de atuação em ciências da vida em um laboratório central, para trocar experiências e aperfeiçoar nossos serviços. A ideia é dar um impulso maior para o LaCTAD em biologia celular”, diz Pilli. n Fabrício Marques pESQUISA FAPESP 206  z  23


entrevista Beatriz Barbuy

No rastro das primeiras estrelas Marcos Pivetta e Ricardo Zorzetto

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paulistana Beatriz Barbuy é uma das vozes mais influentes da astrofísica brasileira e uma das cientistas nacionais mais produtivas. Ao longo de uma carreira que ultrapassa três décadas, a professora titular do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP) publicou cerca de 210 artigos em revistas científicas internacionais, que foram alvo de citação em 8 mil trabalhos de pesquisadores. Especialista na caracterização química de populações estelares, em especial de estrelas velhas e frias, Beatriz identificou algumas das estrelas mais antigas da Via Láctea, com idade de 12,5 bilhões de anos. Entre dezembro de 1976 e janeiro de 1982, passou cinco anos na França, onde foi uma das primeiras brasileiras a fazer doutorado em astrofísica. O período no Observatório de Paris, no grupo chefiado por Roger Cayrel, marcou definitivamente sua carreira. “O doutorado era mais pesado do que aqui e era preciso publicar vários artigos”, relembra a pesquisadora, que, desde 2006, é membro da Academia de Ciências da França. “Tive de aprender a trabalhar.” Articulada e bem-sucedida, Beatriz ocupou cargos importantes no Brasil e no exterior. De 2003 a 2009 foi, por exemplo, vice-presidente da União Astronômica Internacional (IAU, na sigla em inglês) e teve significativa participação na escolha de 2009 como o Ano Internacional da Astronomia. Além de fazer ciência propria-

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especialidade Astrofísica estelar e extragaláctica formação Universidade de São Paulo (graduação e mestrado) Universidade Paris VII / Observatório de Paris (doutorado) Observatório Lick (pós-doutorado) instituição Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo


Léo ramos

PESQUISA FAPESP 206 | 25


mente dita, também esteve à frente de iniciativas nacionais que construíram instrumentos para consórcios de telescópios dos quais o Brasil é sócio e tem tempo de observação, como o Observatório Austral de Pesquisa Astrofísica (Soar), no Chile. A astrofísica sempre defendeu a ideia de que o Brasil deveria ser sócio de um dos três projetos de grandes telescópios, com espelhos entre 30 e 40 metros, que estão sendo gestados para o início da próxima década e podem levar a astronomia a um novo patamar. Em dezembro de 2010, o governo federal optou por se tornar membro do Observatório Europeu do Sul (ESO), consórcio de 14 países do Velho Mundo que conta com observatórios no Chile, inclusive o maior de radioastronomia do mundo, o recém-inaugurado Alma (ver reportagem na página 32). O ESO planeja construir o maior telescópio óptico baseado em terra firme, o European Extremely Large Telescope (E-ELT), no início dos anos 2020. Nesta entrevista, a pesquisadora fala de sua trajetória pessoal, de suas pesquisas com estrelas e de por que é a favor da entrada do Brasil no ESO, cujo acordo de adesão se encontra agora no Parlamento nacional para ser ratificado. “Sem o ESO, não temos futuro, pois, para uma comunidade fazer boa ciência, é necessário ter acesso a um grande número de instrumentos que tenham bom desempenho. Os americanos não têm uma estrutura parecida”, afirma Beatriz.

cidade de São Paulo], tinha uma ameixeira. Meu galho ficava lá em cima. Meus irmãos pegaram os galhos mais grossos, mais embaixo, e sobrou para mim aquele lá de cima. Eu chegava da escola, subia lá e ficava olhando o céu. Não sei se teve influência, mas dos 6 aos 10 anos eu fazia isso. Pensei em fazer psicologia ou línguas. Li a obra inteira do Freud, que minha mãe havia retirado na PUC [Pontifícia Universidade Católica] e pensei: “Vou pirar se fizer só isso”. Só entendi algumas partes. Mas achei que podia estudar psicologia por outras vias. Li muito, até hoje leio, e me interesso pelo tema. Línguas, também poderia aprender por outras vias, como de fato fiz, embora não seja expert em nenhuma.

Nunca imaginei fazer outra coisa que não fosse seguir uma carreira intelectual

Como surgiu a ideia de se tornar cientista? Foi com 16 anos. Li o livro Um, dois, três... Infinito, do George Gamow. Estava no primeiro ano do clássico e decidi que iria para o científico. Nem avisei meus pais. Tive de estudar muito para acompanhar porque não tive o primeiro ano do científico. A partir daí, nunca mais parei de trabalhar. Tem também outra coisa. Quando era pequena, na minha casa, na rua Groenlândia [no Jardim Paulista, 26 | abril DE 2013

O que seus pais faziam? Eram professores de filosofia, os dois. Meu pai na USP e minha mãe na PUC. Tiveram muita influência sobre minha formação. Nunca imaginei fazer outra coisa que não fosse seguir uma carreira intelectual. Via meu pai trabalhando a noite inteira, minha mãe dava aulas. Além disso, meu irmão mais velho, que fazia o científico, era muito mais animado do que minhas colegas de clássico. Isso também influenciou. E eu gostava de matemática. Então achei que estava perdendo meu tempo no clássico. Logo depois de ler o livro pensou em ser astrofísica?

O livro falava de ilhas no Universo, de um telescópio não sei onde que partilhava o tempo. Perguntei para alguém como podia ser astrofísica e me disseram que tinha de estudar física. Entrei na USP, sempre com esse objetivo. Tinha poucas mulheres na sua turma? Até que não eram tão poucas. O problema é que havia a ditadura. Entrei e o Mário Schenberg foi preso. Um professor que ia dar aula foi preso. Outro colega sumiu, essas coisas. Isso tirou muito o impacto do curso. Os banheiros não tinham fechadura. Isso foi entre 1969 e 1972, quando o regime ficou duro para valer. Trabalhei um período com computação, mas depois voltei para o que eu queria. Havia o IAG, que ainda ficava na Água Funda, e tinha um grupo de astronomia lá. No último ano da Física fui lá conversar, mas a astronomia estava começando. Fiz o mestrado na USP, mas as coisas melhoraram quando fui fazer doutorado no Observatório de Paris, em 1976. Minha carreira estava bem no início e foi importante ter ido para a França. Fui com bolsa do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] e tive também uma bolsa do consulado da França. Embora pequenas, as duas permitiram que eu estudasse. O sobrenome Barbuy é de origem francesa? É francês, mas meu bisavô veio da Itália para o Brasil. Na Itália escrevem Barbuy com I no lugar do Y. Em princípio, os Barbuy foram para a Itália com Napoleão, mas ninguém sabe direito. Minha irmã, que trabalha no Museu Paulista, encontrou um documento de 1758 de um Barbuy, com trema no Y, no norte da França. Era um padre católico. No Observatório de Paris a senhora foi trabalhar com Roger Cayrel? Os contatos foram feitos por Licio da Silva, do Observatório Nacional, com Roger e Giusa Cayrel, que estavam de partida para o Havaí, onde trabalha-


riam na construção do telescópio Canadá-França-Havaí. A Monique Spite, que estava voltando de longa estadia no Chile, aceitou ser minha orientadora. O grupo todo é excepcional, tanto que estão produzindo até hoje.

ra ser um bom pesquisador. Tem gente que não tem, pega umas imagens e sai olhando para tudo. É preciso alguns anos para ser bom. Como trabalhei com um grupo muito bom, essa é a força da minha pesquisa.

Qual era o tema de sua pesquisa? Eu queria trabalhar com evolução química e fazer observações. Fiquei cinco anos na França. O doutorado era mais pesado do que aqui e precisava ter vários artigos publicados. Foi muito legal porque era um grupo que tinha várias personalidades. A Monique era bem prática. Tudo o que era complicado ela reduzia a uma única instrução e o Roger tinha um nível incrível, demorei uns 10 anos para conseguir entender o que ele falava. Era um grupo com bastante gente em torno, com trabalho de observação de estrelas. Tive de aprender a trabalhar. Aqui o aluno às vezes nem aparece todo dia. Lá todo mundo trabalha todo dia por não sei quantas horas e você se dá conta de que está numa das profissões mais sérias. Astrofísica é interessante. Há a teoria – tem que ler bastante –, mas também tem os dados. Quando você está cansado da teoria, trabalha nos dados. Essa diversidade de coisas ajuda a trabalhar várias horas.

De onde veio a ideia de estudar a evolução das estrelas da Via Láctea? Foi durante o mestrado provavelmente que me interessei por essa parte de evolução química. Quanto ao tema das estrelas frias de baixa massa, foi ideia do Roger, pai do grupo. Martin Schwarzschild, que era muito conhecido nessa área de evolução estelar, estava em Paris nos anos 1950 e falou para o Roger que, se ele quisesse estudar formação

ração de estrelas da galáxia. A primeira geração era bem massiva. Por que as primeiras estrelas tinham altas massas? Porque não havia metais para resfriá-las. Provavelmente as primeiras eram todas de alta massa. Esfriar é importante para que haja condensação e as nuvens de gás possam ir se fragmentando. Com isso, nuvens menores darão origem a estrelas menores. O que é uma estrela fria? Estrelas com temperatura abaixo de 7 mil graus Kelvin, que são a maioria. O que ocorre nessas estrelas mais frias? Estão convertendo hidrogênio em hélio no núcleo se forem anãs ou em suas camadas mais externas. Uma das contribuições mais conhecidas do Schenberg diz respeito às estrelas anãs, como o Sol. Quando tiver queimado 10% do seu hidrogênio em hélio, o Sol vai se expandir e virar uma estrela gigante.

Sempre me interessei por elementos químicos. É uma área que mistura física atômica, química

Seu primeiro artigo foi sobre o quê? Era sobre uma estrela velha do halo da Via Láctea, a HD 76932. Determinei a sua abundância de elementos pesados e a temperatura com espectroscopia estelar. Na minha área, elementos pesados são aqueles mais pesados que o ferro, como o cério e neodímio. O interessante de ter um artigo publicado é que você aprende a escrever. Saiu na Astronomy and Astrophysics, uma revista europeia, hoje editada em conjunto com Brasil, Chile e Argentina. A senhora continua nessa mesma linha de pesquisa até hoje. Na mesma. Aprendi uma expertise e acredito que é preciso ter expertise pa-

e evolução da galáxia, tinha de estudar estrelas de baixa massa. Esse palpite fez toda a diferença. Essas estrelas são muito velhas, se formaram quando a galáxia surgiu. Então quando as observamos, estamos observando o início da galáxia. As estrelas de mais alta massa explodem logo. As que observamos hoje são jovens. Nas de baixa massa existe o que existia quando a galáxia se formou. Em geral, os elementos químicos encontrados na superfície dessas estrelas refletem o material original da galáxia, como a baixa concentração de ferro. Estrelas bem pobres em metais são a primeira geração de estrelas de baixa massa. Mas elas não são a primeira ge-

Essas estrelas em geral têm que idade? As estrelas velhas de baixa massa do halo têm mais ou menos 13 bilhões de anos. Um dos objetivos é descobrir quais são as primeiras estrelas de alta massa com os telescópios terrestres gigantes que estão sendo planejados e com o futuro telescópio espacial James Webb.

A senhora sempre trabalhou com estrelas da Via Láctea? Trabalhei também com estrelas de galáxias próximas, do chamado grupo local, como as Nuvens de Magalhães. As estrelas de galáxias mais distantes são mais fracas, não dá para observar. Talvez dê para ver um aglomerado de estrelas, que pode ser observado bem de longe por seu alto brilho. Mas com espectroscopia de alta resolução ainda não dá. Uma das ideias é fazer isso com os telescópios gigantes. Também tenho alguns artigos sobre populações estelares em galáxias elípticas, que se estuda usando sua luz integrada. Formei três alunos nessa linha. PESQUISA FAPESP 206 | 27


As estrelas da Via Láctea que a senhora estuda estão exatamente onde? Primeiro, estudei as estrelas do halo [região esférica que envolve a galáxia e contém gás rarefeito e estrelas muito antigas], mais fácil de serem vistas. Nos anos 1980 começou a discussão de qual seria a primeira geração de estrelas, que deve ser mais pobre em metais. Minha tese foi sobre estrelas do halo pobres em metais, mas, ao longo dos anos, fui me interessando pelo centro da galáxia. Atualmente esse é meu principal interesse. Hoje há certa discussão se as estrelas não se formaram primeiro no centro da galáxia, onde esse processo teria sido mais intenso. As mais velhas devem estar lá no centro. Então, nos últimos anos, trabalhei mais com o bojo da galáxia, mas continuei igualmente com os estudos do halo. Por que especificamente se interessou pelo tema? Sempre me interessei por evolução química em nossa galaxia. É uma área que mistura física atômica, química e na qual tem de se saber as características de uma transição atômica ou molecular. Minha especialidade são linhas moleculares, campo em que há pouca gente trabalhando. É preciso saber nucleossíntese [processo de criação de novos núcleos atômicos a partir de núcleos preexistentes], como os elementos se formam, sua evolução química, a formação de estrelas. Enfim, envolve muitas coisas.

elementos químicos. Podem ter mais elementos alfa [cujos isótopos mais abundantes são múltiplos de quatro, a massa do núcleo do hélio], como o oxigênio 16 e o cálcio 20. Elementos alfa indicam se houve ou não enriquecimento rápido por estrelas massivas. Isso é o que eu faço. Procuro esses elementos, evidências de que supernovas enriqueceram o gás do qual se formou aquela estrela. Meu doutorado era voltado para ver qual foi a primeira geração de estrelas, aquelas primeiras supernovas. Isso é a busca das origens. Por isso é interessante. A senhora é um dos autores de um estudo que, em 2001, encontrou aquela que foi considerada então a mais antiga

Astrofísica é interessante. Quando você está cansado da teoria, trabalha nos dados

Em nossa galáxia, o que a senhora vê em termos de evolução química? O bojo da nossa galáxia é muito parecido com o bojo de outras galáxias espirais e elípticas. Tem sempre aquelas linhas, fortes, de magnésio e ferro, em diferentes proporções. Ou seja, suas populações estelares são semelhantes. Isso não era de se esperar? Era de se esperar. É uma coisa muito uniforme. Provavelmente o processo de formação das galáxias foi bem semelhante. Existem diferenças na proporção de 28 | abril DE 2013

das estrelas, a CS 31082-001. Como foi esse trabalho? Foi a primeira vez que se detectou urânio numa estrela fora do sistema solar. É um elemento químico pesado e radioativo. Seu decaimento fornece a idade da estrela diretamente, não é necessário mais nada. O trabalho saiu na Nature. Num primeiro cálculo, a estrela tinha 14 bilhões de anos. Depois um grupo da Suécia mediu transições atômicas do urânio e recalculamos em 12,5 bilhões de anos a idade da estrela, com margem de erro de mais ou menos 2 bilhões de anos. Essa estrela é da primeira geração de estrelas?

Talvez. Em algumas dessas estrelas pobres em metais há evidências de que seu conteúdo é resultado de uma única supernova. Ela seria, portanto, de uma segunda geração. Num trabalho em parceria com a Cristina Chiappini [astrofísica brasileira do Leibniz-Institut für Astrophysik Potsdam], que saiu em 2011 na Nature, mostramos que as abundâncias em metais de um aglomerado estelar no bojo da galáxia NGC 6522 poderia ser resultado de supernovas de alta rotação e alta massa. O que é uma supernova de alta rotação? São estrelas que rodam a 400 quilômetros por segundo. As estrelas quentes, em geral, têm alta rotação. Mas ninguém nunca tinha feito o cálculo de nucleossíntese dessas estrelas e esse grupo da Europa fez. Agora já estão no ponto de fazer previsões. É uma colaboração entre mim, que sou observadora, esse grupo de teóricos e a Cristina, que faz modelos de evolução química. Quais são os seus trabalhos que tiveram maior impacto? Um dos artigos de maior impacto foi um de 1988. Minha tese tinha sido sobre a presença de carbono, nitrogênio e oxigênio em estrelas frias. Fiz um pedido de tempo no ESO e tive sete noites ótimas de observação. Mostrei que nas estrelas do halo [da Via Láctea] há excesso de oxigênio. Isso era uma constante. E o que isso significa? Significa que o halo foi enriquecido rapidamente por supernovas do tipo 2. O oxigênio só é produzido em estrelas massivas, que vão virar supernovas do tipo 2. Foi a primeira evidência clara do excesso de elementos alfa no halo. O mesmo acontece nos núcleos das galáxias, em seus bojos. Esse foi o trabalho que me tornou conhecida. Em 1992 saiu um trabalho sobre ocorrência de alta concentração de magnésio nas galáxias. Depois disso, muitas das coisas que fiz foram nessa linha. Outro trabalho importante foi sobre a grade de espectros estelares.


Para seu cálculo se incluem as linhas atômicas e moleculares. Trabalhei 20 anos nesse tema com meus alunos. O espectro de um aglomerado de estrelas pode ser usado para compor a população de estrelas de uma galáxia, por exemplo. Uma galáxia tem todo tipo de estrelas. Dessa forma, é necessário fazer uma soma ponderada de acordo com os brilhos dessas estrelas. Calculamos os espectros de estrelas com diferentes valores de gravidade, metalicidade e temperatura, desde gigantes até anãs. Então, numa tese de doutorado, uma aluna, a Paula Coelho, juntou isso tudo e publicamos um artigo feito em conjunto com outros três ex-alunos que haviam trabalhado nisso. Esse trabalho tem sido muito citado. Acho que sou a astrofísica mais citada do Brasil atualmente, com números parecidos com os de Eduardo Bica [da Universidade Federal do Rio Grande do Sul] e Luiz Alberto Nicolaci da Costa [do Observatório Nacional]. São 8.500 citações na base Nasa/ADS e 7.500 no ISI. Qual é sua linha mais recente de pesquisa? São os aglomerados pobres em metais no bojo da Via Láctea, que devem ser os mais velhos da galáxia. Um deles tem duas populações distintas de estrelas. Esse é um tema atual da literatura. Sempre se achou que os aglomerados eram formados por uma única população.

outras nacionalidades, têm esse desejo de voltar. E, por fim, havia a questão do clima e da família, claro. O que a senhora encontrou na volta ao Brasil? Quando voltei, o que eu tinha? Uma mesa, que, aliás, já era esta aqui, só que estava no endereço antigo do IAG. Só tinha isso. Não tinha computador, não tinha nada. E, pior, tinha aquela lei dos anos 1980, que não permitia comprar computador. Essa lei matou até hoje certas áreas da engenharia. Foi a pior coisa que aconteceu com o Brasil. Até hoje não temos nosso computador [nacional]. Nos anos 1980, eu ia todo ano para a França, ficava lá meses calculando, porque aqui

o exterior, que não era preciso. Não entendiam que eu tinha de calcular. Ficava 12 horas no computador para calcular em Paris. Então os anos 1980 foram terríveis, atrasaram muito a minha carreira. Trabalhava como uma condenada. Cheguei a ir ao CCE três vezes num dia. E olha que eu trabalhava lá na Água Funda. Tinha uma energia tremenda, ia e voltava. Perdi meu tempo. Se tivesse ficado na Europa, teria sido melhor. Nos anos 1990 brigamos para ter um bom computador e a FAPESP financiou um Vax. Aí mudou a situação. Mas isso ocorreu oito anos depois da minha volta. Apesar de todas essas dificuldades, a partir dos anos 1990 sua carreira já estava bem estabelecida. Em 1992, por exemplo, a senhora já era presidente da Sociedade Astronômica Brasileira (SAB). É verdade. Apesar das dificuldades, consegui mostrar trabalho. Ser mulher não atrapalhou. Sempre debati essa questão [da discriminação da mulher] com a Mayana Zatz [geneticista do Instituto de Biociências da USP] e a Belita Koiller [física da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ] em um grupo de discussão sobre o assunto na Academia Brasileira de Ciências [ABC]. No Brasil, se você trabalha e produz, ninguém fala nada. Se fazemos o dobro do que outros fazem, por que iriam falar?

Há um pouco de machismo no Brasil. Mas, se você for séria e trabalhar, ninguém atrapalha, não

Voltando para a sua trajetória pessoal, por que a senhora retornou ao Brasil? Voltei, primeiro, porque havia assinado um acordo com o CNPq dizendo que ficaria aqui o dobro do tempo que passaria fora. Passei cinco anos na França. Então tinha que passar 10 aqui. Não gosto de assumir compromisso e não cumprir. Essa foi a razão mais forte. Em segundo lugar, voltei porque você sempre vai ser estrangeiro no exterior. Passei os três primeiros anos em Paris querendo voltar. Só gostei mais de lá nos dois últimos anos. Sempre quis voltar. Acho que os brasileiros, mais do que as pessoas de

no Centro de Computação Eletrônica [CCE] da USP não tinha plotter [um tipo de impressora de alta definição, usada para produzir gráficos vetoriais]. O plotter ficava quebrado 11 meses por ano. Eu trabalhava com espectros, tinha de ver o espectro. Comecei a pedir tempo no ESO e também em telescópios do Havaí e conseguia. Naquela época era mais fácil obter tempo, mas tinha que ficar lá para tratar, reduzir os dados. Aqui não tinha nada. Passava vários meses no exterior. Normalmente era o Observatório de Paris que pagava a minha viagem. Devo muito à França. Aqui raramente consegui alguma coisa. Sempre recusavam meus pedidos. Achavam que eu ia muito para

Mas não tem aquela história de que uma mulher tem de fazer mais do que um homem para ser reconhecida como pesquisadora? Tem. Acho que tem de fazer mais por ser mulher. Há um pouco de machismo. Mas, se você fizer mais, tudo está resolvido. O Brasil não é muito rígido nessa questão. Mas se fizer um pouco menos... Se for séria e trabalhar, ninguém atrapalha, não. Sentiu algum preconceito por ser estrangeira e mulher na França? Não tinha diferença alguma, era ainda mais igual do que aqui. Por um lado, tive PESQUISA FAPESP 206 | 29


sorte de ter ido para a França. Nos países anglo-saxões, nos Estados Unidos, não é assim. A França, em particular, tem muita simpatia pelo Brasil e tudo isso conta. Por outro lado, fui para Paris quando havia uma ditadura no Brasil e não fui assim tão bem tratada. Cheguei à França e me disseram: “Ouvi dizer que no Brasil tem 36 generais”. Lá 36 é que nem o nosso 1 milhão, quer dizer muito. E eu respondi: “Só 36?”. Essa coisa de ligarem o Brasil apenas a Pelé, café e samba me irritava. Mas, hoje, graças ao Fernando Henrique e ao Lula, o respeito pelo Brasil mudou completamente. Pensando bem, acho que fui um pouco maltratada, sim. Todo mundo foi. Não dá para comparar com os últimos 20 anos, quando as coisas melhoraram. Como a senhora chegou a vice-presidente da IAU, entre 2003 e 2009? Já havia sido presidente da Comissão 29, sobre Espectros Estelares, e da Divisão 4, sobre Estrelas. Foi natural em vista disso. De qualquer forma é um reconhecimento, ninguém do Brasil tinha estado lá. Há também o fato de que ser brasileira e mulher ajuda. Isso dá visibilidade. Então, às vezes, ajuda em vez de atrapalhar em nível internacional. Tive uma grande participação na coisa mais importante que a IAU já fez, o Ano Internacional da Astronomia, em 2009. O Brasil, aliás, teve uma participação importante. E sabe por quê? Porque os países grandes não querem saber de ano disso e ano daquilo. Antes houve também o Ano Internacional da Física e foram uns poucos países, incluindo Brasil e Portugal, que fizeram o pedido oficial a favor dessa iniciativa. O Brasil é um dos sete países que pediram o Ano Internacional da Astronomia. O apoio do pessoal do Ministério das Relações Exteriores foi ótimo. Os outros países não votam porque não querem distração com ano disso e daquilo. Mas esse tipo de iniciativa é importante. Fui a eventos no exterior, fiz tudo o que pude, divulgamos bem e foi bastante importante. Poderia ainda des-

tacar a Assembleia Geral da IAU, que também ocorreu em 2009 no Rio de Janeiro, como outra iniciativa em que tive participação. Qual é o ponto mais importante de sua carreira? Acho que foi ter entrado para a Academia de Ciências da França. Fui durante 30 anos para a França, trabalhando duro, ficando em hotel sem estrelas. Em dezembro de 1976 comecei o doutoramento lá e em dezembro de 2006 fui aceita na academia. Foi um reconhecimento muito importante. Só há 150 membros estrangeiros na academia, muitos deles Prêmio Nobel. Parece que minha votação foi excelente.

No Instituto do Milênio, o objetivo era começar a desenvolver no país o know-how para fabricação de instrumentos para telescópios internacionais, dos quais o Brasil é um dos sócios. Como avalia essa experiência? Queríamos fazer instrumentos para os telescópios Soar e Gemini [ambos situados no Chile, nos quais o Brasil dispõe de tempo de observação]. Em última análise, quem faz um instrumento é quem o conhece melhor e pode tirar melhor proveito dele. Se você quer observar alguma coisa, é melhor construir um instrumento para essa finalidade. É isso que fazem por aí. Esse Instituto do Milênio tinha como objetivo passar de uma situação incipiente em termos de instrumentação para uma situação com infraestrutura e conhecimento para fazê-lo. Só que deu um trabalho terrível fazer o espectrógrafo Sifs em conjunto com o pessoal do LNA [Laboratório Nacional de Astrofísica]. Estamos aprendendo, lentamente. Quais dificuldades ocorrem nesse processo? Não sabemos nem negociar com as empresas. Houve uma companhia que queria que dobrássemos seu pagamento e queria bloquear o processo de construção de um instrumento. Elas fazem o que querem. Pensamos que todo mundo é cientista e que está interessado na pesquisa, mas as coisas não são assim. É preciso trabalhar de outra forma. O que a gente quer? Inovação. Astronomia desenvolve tecnologia de ponta. O Sifs gerou duas patentes de novos materiais, que estão sendo usadas agora num outro instrumento. O Sifs dispõe de fibras ópticas que não podem ter jogo. Têm de se manter firmes no lugar. O instrumento tem uma lente lá na frente e as fibras têm de ficar bem presas. Todo mundo fixa as fibras com um material duro. Mas o Antônio César de Oliveira, que estudou em São Carlos, criou um material, uma mistura flexível, que é fácil de ser furado e com muita precisão. Essa é uma das patentes. O Sifs, portanto, permitiu que ficássemos experts em fibras ópticas.

Ter entrado para a Academia de Ciências da França é o maior reconhecimento que recebi

30 | abril DE 2013

A eleição para a academia foi um reconhecimento inesperado? Nunca imaginei isso. Fizeram tudo sem me falar. Essa é a maior honraria que recebi. Em 2008 recebi o Prêmio Trieste, da Academia de Ciências do Mundo em Desenvolvimento [TWAS], que também foi superimportante. Teve também o Prêmio L’Oréal-Unesco para Mulheres na Ciência em 2009. Este último de certa forma me mudou de patamar, pela grande promoção midiática. Por exemplo, no mês passado havia painéis ao longo da avenida Champs Elysées com fotos das laureadas nos 15 anos de existência do prêmio, incluindo as cinco brasileiras.


Quais são os outros dois instrumentos que estão sendo desenvolvidos? O espectrógrafo de alta resolução Steles, do Soar, que é desenvolvido pelo Bruno Castilho, e deve ficar pronto no fim do ano. E há o BTFi [um imageador ajustável do Soar]. Todos os três instrumentos contam com financiamento da FAPESP. É importante esse apoio. Como surgiu a aproximação do ESO com o Brasil? Muitos brasileiros observaram no ESO a vida inteira. Entre 2006 e 2011 produzimos, por exemplo, 77 artigos com o Gemini, 25 com o Soar e mais de 200 com o ESO, onde há tudo quanto é tipo de instrumento de observação. Mas a aproximação ocorreu assim. Dentro do INCT-A [Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Astrofísica], propus que fizéssemos parte de um dos grandes telescópios em planejamento. Contactamos os três grandes projetos, o GMT [Giant Magellan Telescope], o TMT [Thirty Meter Telescope] e o do ESO. O TMT exigiria US$ 100 milhões para incorporar o Brasil. O GMT disse que não ia se comprometer a usar nossa indústria, o que para nós era um ponto importante, e o deixamos de lado. O ESO pediu o dobro dos outros projetos para nos aceitar como membro. Na Comissão Especial de Astronomia (CEA), criada pelo MCT, refletimos que no GMT e no TMT a comunidade teria de esperar 10 anos até os telescópios ficarem prontos e só depois poderia começar a produzir. Entrar no ESO permitiria fazer tudo desde já, pois eles já disponibilizariam seus telescópios.

grande maioria foi a favor. No Plano Nacional de Astronomia, em que esse tema foi prioridade, a questão também foi extensamente discutida por um grande número de participantes. O mesmo ocorreu em plenárias da reunião da SAB em 2010. Sem o ESO não temos futuro. Os americanos não têm uma estrutura parecida. Perguntamos ao então ministro da Ciência e Tecnologia, Sérgio Rezende, qual era nosso limite. Ele disse para escolhermos o melhor projeto e ele veria como faríamos. Fizemos isso. Os valores foram negociados por uma comissão montada pelo Ministério de Ciência e Tecnologia, da qual faziam parte o então presidente da SAB, Eduardo Janot Pacheco, Albert Bruch, então diretor do LNA, e Ademar

projeto tem 10% do tempo de observação. No ESO não é assim. Não iríamos pagar muito e correr o risco de não conseguir nenhum tempo de observação? Pelo acordo com o ESO, o valor de nossa contribuição aumentará de forma gradativa até um teto e, para nos adaptarmos, temos inicialmente 3% do tempo de observação. A questão central é que, se não formos membros do ESO, não podemos ser, em muitos casos, os principais pesquisadores de um projeto, não podemos ser o primeiro autor de um artigo. Precisamos aprender a competir, e para isso é preciso fazer pesquisa de ponta, integrada na comunidade internacional. Algum tempo atrás, a senhora estava envolvida numa inicia­ tiva de relançar os kits de ciência que existiram nos anos 1970. Como está esse projeto? Os kits vão ser lançados agora. No começo, serão cinco kits: um de química, um de óptica, um de genética, um de matemática e um galileoscópio. O motor disso é o Herch Moysés Nussenzveig [físico da UFRJ]. Os outros membros também são do mais alto nível: Vanderlei Bagnato (Instituto de Física de São Carlos da USP), Mayana Zatz, Eliana Dessen (IB-USP), Henrique Toma [Instituto de Química da USP], Eduardo Colli [Instituto de Matemática e Estatística da USP], Carlos Henrique de Brito Cruz [do Instituto de Física da Unicamp e diretor científico da FAPESP]. O objetivo é motivar crianças e adolescentes para a ciência, por meio de experiências propostas nos kits. Nunca vimos kits de tão bom nível como o de óptica. E já há interessados também no exterior. A Capes gostou do projeto e deu financiamento inicial para a realização de testes com alunos de escolas. São mil kits de cada tipo, 5 mil no total, a serem testados neste semestre. Os passos seguintes são o aperfeiçoamento do material, a depender do resultado dos testes, e o lançamento em maior número. Está ainda em planejamento a elaboração de outros 20 kits. n

Sem a adesão ao ESO, não temos futuro. Os americanos não têm uma estrutura parecida

O processo de adesão ao ESO foi discutido entre os astrofísicos? Foi discutido. Em 29 de março de 2010 convoquei todos os pesquisadores principais do Brasil e vieram 80 pessoas. Na reunião, a grande maioria votou a favor de entrar no ESO. Depois disso, pela CEA, a Sociedade Astronômica Brasileira consultou todos os doutores e, novamente, a

Cruz, do Ministério das Relações Exteriores. Economizamos € 100 milhões na negociação com o ESO. O Brasil deverá pagar pouco mais de € 130 milhões, em 10 parcelas, para entrar no ESO, além de uma anuidade. Há quem diga que esse valor é elevado para uma comunidade pequena de astrofísicos, como a brasileira? Não é uma comunidade pequena. São 700 astrônomos, 330 com contrato e outros tantos com pós-doc, além dos estudantes. No modelo de alguns telescópios o sócio que entra com 10% do orçamento do

PESQUISA FAPESP 206 | 31


política c&T  Astrofísica y

Sentinela das trevas cósmicas Superradiotelescópio inaugurado no Chile procura as primeiras estrelas do Universo frio, escuro e distante Marcos Pivetta, de San Pedro de Atacama

32  z  abril DE 2013

S

ituado a pouco mais de 5 mil metros de altitude, a cerca de uma hora da localidade turística de San Pedro de Atacama, no norte do Chile, o platô de Chajnantor se tornou palco do maior projeto de observação astronômica construído pelo homem em terra firme. Nesse ponto elevado do deserto mais seco do planeta, onde o céu quase não tem nuvens e a média anual de chuvas é menos de 100 milímetros, o Atacama Large Millimeter/submillimeter Array (Alma) foi oficialmente inaugurado no dia 13 de março. “O Alma é um radiotelescópio que nos permitirá dar um zoom em objetos do Universo frio e distante, com uma sensibilidade de 10 a 100 vezes maior do que a que temos disponível hoje”, afirmou o holandês Thijs de Graauw, diretor do observatório, que deixa o cargo em abril. A máxima resolução angular do Alma é de 0,004 segundo de arco. Isso equivale a ter, da Terra, a capacidade de distinguir um caminhão localizado na Lua. Composto de um conjunto de 66 antenas de rádio gigantes, que podem funcionar de forma sincronizada como se fossem um único superradiotelescópio de 16 quilômetros de diâmetro, o observatório tem como objetivo principal desvendar os primórdios do Universo, entre 1 e 2 bilhões de anos depois do chamado Big Bang, a explosão que teria dado início a tudo. Após esse grande movimento de liberação de energia, o Universo se resfriou e se tornou escuro. Entrou temporariamente numa Idade das Trevas da qual começou a sair com o surgimento das primeiras estrelas, galáxias e planetas. Esse Universo frio e distante é o alvo por excelência, embora não o único, do Alma. O observatório também procurará pela presença no espaço de moléculas, como açúcar e água, que possam estar relacionadas a formas de vida. Os ciclos solares, que periodicamente provocam ejeção de grandes quantidades de massa de nossa estrela-mãe, serão ainda alvo de outras observações.


peru

A região das antenas do alma

bolívia

Altitude 5.000 m

San pedro de atacama

Pluviosidade

ALMA

Menos de 100 mm por ano Atmosfera Tem apenas 5%

deserto do Atacama

do vapor-d’água

ilustrações fabio otubo  fotos  alma/c. padilla

e 60% da camada

argentina

de gases que envolve a Terra ao nível do mar santiago

oceano pacífico

fonte Observatório Alma

Entre planejamento e construção, o empreendimento científico nos Andes chilenos, distante cerca de 1.600 quilômetros da capital Santiago, consumiu 15 anos e US$ 1,4 bilhão. Em cooperação com o governo do Chile, a montagem do Alma foi custeada por seus três grandes sócios. A Europa investiu 37,5% do valor do projeto por meio do Observatório Europeu do Sul (ESO), do qual fazem parte 14 países do Velho Mundo mais o Brasil, que está em processo de confirmação de sua adesão à organização (ver entrevista da astrofísica Beatriz Barbuy, da Universidade de São Paulo, na página 24). Os Estados Unidos contribuíram com um montante igual ao dos europeus e sua participação é coordenada pelo Observatório Nacional de Radioastronomia (NRAO). O Japão e Taiwan entraram com 25% da verba do Alma, e o Observatório Nacional Astronômico do Japão (Naoj) organiza a participação dos asiáticos na empreitada. Os radiotelescópios do Alma são de dois tamanhos. Há um conjunto maior, composto de 54 antenas com 12 metros

de diâmetro. Cada uma dessas parabólicas pesa cerca de 100 toneladas. O segundo grupo é formado por 12 antenas com 7 metros de diâmetro. Usando técnicas de interferometria, os sinais de todos os radiotelescópios – ou de uma parte deles no caso de observações que não necessitem de dados produzidos pelo conjunto de antenas – são combinados e transformados em dados astronômicos num supercomputador instalado no Array Operations Site (AOS), uma unidade de apoio também situada no platô. Desse ponto no altiplano, as informações processadas são transmitidas para o Operations Suport Facility (OSF), um centro operacional localizado a 25 quilômetros de distância do Chajnantor, a uma altitude aproximada de 2.900 metros. Do total de antenas do projeto, 57 já estão em funcionamento no platô e outras 9 se encontram no OSF sendo preparadas para iniciar sua operação provavelmente ainda neste ano. Inserido na peculiar geografia árida do deserto do Atacama, frequentemente usada como cenário em filmes de ficção científica que tentam reproduzir a su-

Antenas do Alma no platô Chajnantor: operação conjunta como se fossem um superradiotelescópio de 16 quilômetros


As etapas do processo de captação, transmissão e processamento de dados pelo conjunto de 66 antenas

1

Radiação do espaço Certos objetos celestes emitem radiação nos comprimentos de onda milimétricos e submilimétricos em que operam as antenas

4

Processamento Nesse centro há um supercomputador

5

Armazenamento

que combina bilhões

Os dados produzidos

de vezes por segundo

são enviados até a

o sinal de cada antena

central de operações

e gera assim os dados

do Alma, situada num

Digitalização

e imagens astronômicas.

ponto mais baixo dos

As parabólicas captam

Os sinais analógicos são

Sua capacidade

Andes, a 2.900 metros

os sinais, que são medidos

digitalizados e transmitidos

de processamento

de altitude. Aí a

por receptores extremamente

por fibras ópticas para um

equivale à de 3 milhões

informação é arquivada

sensíveis resfriados

centro de apoio situado nos

de laptops comuns

e passa por um

a -269 ºC e instalados

arredores das antenas, ainda

em cada antena

a 5 mil metros de altitude

2

Captação

3

perfície de Marte, o platô Chajnantor foi escolhido para ser a sede do observatório devido ao céu transparente e estável. A 5 mil metros, o ar é rarefeito e 40% da atmosfera terrestre se encontra abaixo dessa altitude. A presença de vapor-d’água, elemento que distorce e dificulta o registro das emissões em frequências de rádio, é apenas 5% da quantidade registrada ao nível do mar. Essas características tornam os arredores de San Pedro de Atacama um lugar extremamente favorável ao tipo de observação feita pelo Alma. O conjunto de radiotelescópios capta a porção (invisível a olho nu) do espectro eletromagnético com comprimentos de onda entre 0,32 e 3,6 milímetros (mm). A luz nesses comprimentos de onda vem de grandes nuvens frias do espaço interestelar, onde a temperatura é apenas alguns graus acima do zero absoluto, e de algumas das mais 34  z  abril DE 2013

antigas galáxias do Universo. Ela pode ser usada para estudar a composição química e a física de regiões densas em gás e poeira onde novas estrelas estão sendo formadas. Frequentemente tais regiões são escuras e não podem ser observadas nas frequências da luz visível. No entanto podem ser “vistas” de forma clara na parte do espectro de luz em que o Alma trabalha. “Os primeiros resultados do Alma são espetaculares”, afirmou Pierre Cox, que está assumindo a direção do observatório no lugar de Thijs de Graauw. Cox acredita que, no futuro, o observatório poderá detectar até a matéria escura, uma misteriosa componente que representa cerca de um quarto do Universo. Primeiros resultados

Embora tenha sido oficialmente inaugurado apenas neste ano, o Alma está

controle de qualidade fonte  Observatório Alma

produzindo dados para trabalhos científicos desde setembro de 2011, quando começou a operar com um número reduzido de antenas, em geral 16. Os primeiros estudos com dados coletados pelo superradiotelescópio começaram a ser publicados em 2012. Os resultados mais interessantes ganharam as páginas da revista Nature em 14 de março deste ano. Uma equipe liderada por pesquisadores do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech), Estados Unidos, mediu com o Alma, no comprimento de onda ao redor de 3 mm, a distância de 26 galáxias longínquas e poeirentas, onde havia grande formação de novas estrelas, e descobriu que elas estavam mais longe e eram, portanto, mais velhas do que se pensava. “Quanto mais distante estiver uma galáxia, mais longe no tempo a estamos vendo. Por isso, ao medir

infográfico  ana paula campos

O Alma em ação


distâncias, podemos reconstruir a linha cronológica de quão vigorosa é a formação estelar no Universo nas diferentes épocas da sua história de 13,7 bilhões de anos”, disse Joaquin Vieira, do Caltech, principal autor do artigo. Os pesquisadores viram que, em média, os picos de formação estelar ocorreram 12 bilhões de anos atrás, 1 bilhão de anos mais cedo do que se supunha. Duas dessas galáxias são as mais distantes deste tipo já observadas. Tinham 12,7 bilhões de anos. Numa outra galáxia os astrofísicos detectaram moléculas de água. Segundo os autores do trabalho, essa é a evidência mais longínqua de água já identificada no Universo. Projetos de brasileiros

eso/c. malin

Zulema Abraham, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, foi a primeira astrofísica brasileira a usar o Alma para estudar um objeto celeste. Seu projeto disputou tempo de observação com cerca de mil propostas internacionais e foi uma das 112 iniciativas agraciadas com acesso a dados produzidos pelo observatório. Em novembro do ano passado, 23 radiotelescópios do Alma foram apontados por cerca de 20 minutos na direção da enigmática Eta Carinae, um sistema composto de duas estrelas gigantes de grande luminosidade, a maior com cerca de 90 massas solares e a menor com 30 massas solares. Distante 7.500 anos-luz da Terra, a Eta Carinae apresenta uma espécie de apagão periódico. A cada cinco anos e meio, deixa de brilhar por aproximadamen-

te 90 dias consecutivos em certas faixas do espectro eletromagnético. Com o Alma, Zulema mediu as emissões de rádio do sistema binário de estrelas em quatro comprimentos de onda: 3 mm, 1,3 mm, 1 mm e 454 micrômetros. Alguns desses comprimentos de onda nunca haviam sido usados para observar a estrela. “Há poucos dados sobre o ciclo da Eta Carinae nas frequências de rádio”, afirma a pesquisadora, que tenta identificar o local exato do sistema binário onde esse tipo de emissão se origina. Em janeiro e fevereiro deste ano, Zulema recebeu 15 gigabytes de informação produzidos pelo observatório nos Andes chilenos, algo

A máxima resolução angular do radiotelescópio permitiria observar um caminhão na Lua

Radiotelescópios do Alma: transparência e estabilidade do céu dos Andes favorecem observações

como três DVDs cheios de informação. A resolução angular dos dados é impressionante, de 0,4 segundo de arco. No radiotelescópio de Itapetinga, em Atibaia, a 60 quilômetros da capital paulista, Zulema consegue observar a Eta Carinae com uma resolução máxima de 2 minutos de arco, centenas de vezes pior do que a do Alma. A astrofísica Thaisa Storchi-Bergmann, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), também obteve tempo de observação no Alma, em trabalho conjunto com Neil Nagar, da Universidade de Concepción, Chile. O projeto, cujas observações ainda não foram feitas, consiste no mapeamento da distribuição e da cinemática de gás molecular numa região de 100 parsecs, distância equivalente a 326 anos-luz, em torno do núcleo de galáxias ativas onde um buraco negro supermassivo devora matéria ao seu redor. Trabalhos feitos por Thaisa em comprimentos de onda da luz óptica e do infravermelho mostraram a presença de estruturas espirais nessa região, que parecem ser canais para alimentar o buraco negro supermassivo. “Como onde há poeira, há gás molecular, estamos atrás da emissão de gás molecular frio, que emite nas bandas espectrais cobertas pelo Alma, para verificar se ele está de fato se movendo em direção ao núcleo”, afirma a pesquisadora gaúcha. Além de pleitear o uso do Alma, um grupo de astrofísicos brasileiros está negociando a instalação de uma antena de 12 metros de comprimento, igual às maiores compradas pelo observatório recém-inaugurado, numa localidade dos Andes argentinos. Denominado Long Latin American Millimeter Array (Llama), o projeto prevê a construção de um pequeno observatório em San Antonio de Los Cobres, cidade localizada a 200 quilômetros de distância do platô Chajnantor. A iniciativa seria uma parceria de brasileiros e argentinos. “Nós compraríamos a antena, que custa € 6 milhões, e eles construiriam e operariam o observatório”, diz Jacques Lépine, astrofísico do IAG-USP e coordenador do Núcleo de Apoio à Pesquisa em Radioastronomia(Nara), principal articulador do Llama. Se sair do papel, a antena do projeto binacional poderá trabalhar de forma independente ou integrada ao observatório em San Pedro de Atacama. “Com o Llama, poderíamos melhorar até 10 vezes a resolução angular do Alma”, diz Lépine. n pESQUISA FAPESP 206  z  35


brasiliana y

Aquarela do Brasil Biblioteca que abriga acervo de José Mindlin é inaugurada na USP

A

Universidade de São Paulo (USP) inaugurou no dia 23 de março a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, que acolhe 32 mil títulos da coleção brasiliana doada em 2006 pelo empresário e sua mulher. O evento, que reuniu mais de 500 pessoas, entre autoridades, patrocinadores e intelectuais, também apresentou duas exposições ao público. A primeira, permanente, traz registros sobre a vida do casal Mindlin e os esforços para erguer a biblioteca e resume a história do livro e da imprensa; e a segunda, que ficará aberta para visitas até o dia 28 de junho, apresenta 100 destaques da coleção. São livros e manuscritos, como o original de Vidas secas, de Graciliano Ramos. Desde 2009, uma parcela do acervo vem sendo digitalizada e oferecida na internet. Atualmente, a biblioteca digital conta com cerca de 3,6 mil títulos, que podem ser acessados no site da Brasiliana USP (www.brasiliana.usp.br), operada pela Biblioteca Mindlin. O bibliófilo José Mindlin (1914-2010), que além de empresário também era advogado e jornalista, começou a colecionar livros antigos em 1927. Nas prateleiras de sua biblioteca particular podiam ser encontradas obras raras do século XVI e 36  z abril DE 2013

outras sobre literatura brasileira e portuguesa, manuscritos, periódicos científicos e de arte. Mindlin costumava receber em casa amigos e pesquisadores fascinados em conhecer a coleção, cuja preservação era feita pela esposa Guita, que morreu em 2006. Emocionado, Sérgio Mindlin, filho do casal, lembrou, na cerimônia de inauguração, a dedicação dos pais à frente da biblioteca. “Enquanto eles eram vivos, a biblioteca era o mundo deles. Agora ela se torna institucional e abre o acesso de uma forma antes impensável, através das amplas instalações de pesquisa e de estudo e do acesso pela internet”, disse. Sérgio e as três irmãs participam do conselho da instituição. O reitor da USP, João Grandino Rodas, destacou a importância da doação realizada por Mindlin e sua família. “No Brasil, não existe essa tradição de doações, o processo não é simples, mas aqui foi plantada a semente para que outras pessoas façam o mesmo gesto”, disse o reitor à Agência USP de Notícias. A inauguração também prestou homenagem à memória do historiador István Jancsó, um dos mentores do Projeto Brasiliana USP, falecido em 2010. Para o presidente da FAPESP, Celso Lafer, "a digitalização significa não só a

preservação, mas o acesso generalizado e a possibilidade de expandir a informação”. A Fundação foi responsável pela compra do equipamento de digitalização robotizada de livros encadernados, apelidado de Maria Bonita. A máquina é capaz de fotografar até 2.400 páginas por hora, o que representa aproximadamente 40 livros por dia (ver Pesquisa FAPESP nº 161). O crítico literário Antonio Candido disse que o amigo José Mindlin não era apenas um colecionador de livros. “Ele foi sobretudo um leitor dotado de discernimento crítico, uma espécie de autor de sua biblioteca”, declarou. O historiador Boris Fausto, que também prestigiou a abertura da biblioteca, enfatizou a preocupação do casal Mindlin em tornar o acervo disponível para a sociedade. “É importante destacar a generosidade do casal de doar uma biblioteca desse porte e desse valor, e também o papel da família, que ratificou esse gesto dos pais.” Para a construção do edifício, que inclui também o Instituto de Estudos Brasileiros e o Sistema Integrado de Bibliotecas da USP, foram gastos R$ 130 milhões. Parte dos recursos veio da própria USP, mas o projeto também obteve recursos de patrocinadores, como a Petrobras e

fotos  léo ramos

Bruno de Pierro


O interior da biblioteca, que reproduz a organização dos livros na casa de Mindlin (esq.); a estrutura externa que abriga o acervo; e a versão original de Vidas secas, com o título modificado por Graciliano Ramos

o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, disse que o exemplo de Mindlin pode incentivar iniciativas semelhantes. “Espero que essa atitude abra uma nova fronteira de diálogo entre grandes empresários e instituições de ensino”, declarou. Recém-chegada de uma viagem a museus e bibliotecas dos Estados Unidos, a ministra da Cultura, Marta Suplicy, afirmou que o novo prédio da USP não fica atrás dos padrões internacionais. Também destacou que ainda neste primeiro semestre deve ser levada para o Congresso a nova Lei dos Direitos Autorais, para permitir que novas digitalizações, como as que são feitas pela Brasiliana, sejam disponibilizadas. “Caso contrário, não será possível colocar todas as obras, a não ser que sejam de domínio público”, explicou. O secretário de Cultura do Estado de São Paulo, Marcelo Mattos Araújo, que representou o governador Geraldo Alckmin, também saudou a iniciativa da Biblioteca Mindlin.

benefícios à pesquisa

Desde o início da digitalização, vários pesquisadores se beneficiaram com a transferência de obras para a tela do computador. “O trabalho da Biblioteca Brasiliana Digital é um dos mais importantes para as ciências humanas no Brasil”, declarou Jaime Rodrigues, professor do Departamento de História da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Na biblioteca de Mindlin, ele encontrou relatos de viagens, que o ajudaram a enriquecer sua pesquisa sobre a cultura marítima nas embarcações que passaram por águas brasileiras entre os séculos XVI e XIX. “Era possível achar obras esparsas, em outras bibliotecas, mas boa parte foi encontrada, em versões originais, no site da Brasiliana”, disse Jaime. Para o diretor da Biblioteca Mindlin, Pedro Puntoni, o acesso a livros físicos vai exigir cuidados extras. O pesquisador deverá realizar um cadastro e pedir agendamento. Isso dependerá do julgamento dos curadores da biblioteca, que

analisarão o estado do livro e como ele deve ser consultado. “Mas o acesso continuará aberto pela internet, dentro dos limites dos direitos do autor.” Puntoni, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, explicou que a biblioteca já realiza parcerias com instituições internacionais, principalmente com as que têm acervos sobre o Brasil, como a Oliveira Lima Library, em Washington, e a John Carter Brown Library, em Rhode Island, nos Estados Unidos. “Poderemos oferecer a essas bibliotecas acesso gratuito a obras que interessam a elas e, em contrapartida, elas nos fornecem, digitalmente, livros que não temos”, disse. Outra parceria foi a consultoria de Beatriz Haspo, conservadora-chefe da Library of Congress, que participou das discussões sobre conservação e preservação. “A biblioteca firmará novas parcerias internacionais, porque ela é viva, aberta, e pretende ser um polo ativo da cultura brasileira em conexão com outras instituições”, concluiu. n pESQUISA FAPESP 206  z  37


ciência  oceanografia y Nove dias no Atlântico

Ubatuba

24 de fevereiro

Alpha-Crucis sai de Santos e retorna em Ubatuba em viagem de coleta de sedimentos

Ponto de coleta 16 metros 24 fevereiro

1

121 m 25 fev

chegada partida

28 de fevereiro

2

20 de fevereiro

47 m 25 fev

3

Cinturão de lama da plataforma de Ubatuba

308 m 26 fev

5 4

120 m 26 fev

Cinturão de lama da plataforma de Santos Depósito de sedimentos lamosos com organismos marinhos

841 m 26 fev

6

Paleolaguna

7 8 9

360 m, 27 fev 680 m, 27 fev 1.400 m, 27 fev

Ponto mais distante e mais profundo da viagem [315 km da costa, 2.000 m de profundidade]

Fim da plataforma continental

Início do talude [200 metros até o fundo] Fonte IO-USP


A preciosa lama do mar Sedimentos revelam a história climática e evolutiva de ambientes desaparecidos há milhares de anos texto e fotos  Carlos Fioravanti, do Alpha-Crucis

mapa  carta náutica com anotações do comandante josé rezende  infográfico ana paula campos

O

mar está agitado e o navio balança muito nesta manhã de segunda-feira, 25 de fevereiro. As ondas entram no convés. Quatro homens de capacete branco e cobertos de água salgada puxam o cabo de aço com uma estrutura piramidal que oscila antes de assentar na superfície vermelha do convés. A pirâmide metálica finalmente traz 12 cilindros transparentes com uma amostra generosa da lama a 121 metros de profundidade, ao largo da ilha de São Sebastião, litoral norte paulista. Na tentativa anterior, a 47 metros, os cilindros trouxeram apenas água e areia, sem a desejada lama que 19 pesquisadores do Instituto Oceanográfico (IO) da Universidade de São Paulo buscaram durante nove dias em um cruzeiro no navio de pesquisa oceanográfica Alpha-Crucis. Cada um por vez, Edilson de Oliveira Faria, Marcelo Rodrigues, Rodolfo Jasão Dias e Gilberto Dias carregam os cilindros e os depositam em uma caixa plástica. A lama que trazem é fina, grudenta, verde-escura, de cheiro desagradável. “É perfeita!”, comemora Till Hanebuth, professor

da Universidade de Bremen, Alemanha, sentindo-a entre os dedos. “O que é apenas lama para a maioria das pessoas tem muito significado para nós”, diz Michel Mahiques, diretor do instituto e coordenador científico da primeira parte da expedição, de 20 a 24 de fevereiro, centrada na identificação de lugares para a coleta de sedimentos em diferentes profundidades, realizada nos quatro dias seguintes. “É o sedimento lamoso, como chamamos, que vai fornecer os melhores registros da história climática, ambiental e evolutiva de uma região.” Em estudos anteriores, as análises de sedimentos ajudaram a definir a variação do clima dos últimos 10 mil anos no litoral paulista e dos níveis de poluentes em Santos e em Iguape nos últimos 100 anos. Por definição, essa massa de modelar que vem do fundo do mar é uma mistura de grãos com diâmetro inferior a 62 micrômetros, menor que o da areia. “Partículas de rochas ou de sal, restos de esqueletos, qualquer material pode formar a lama”, diz Samara Goya, técnica do IO e professora universitária em Santos. “A lama funciona pESQUISA FAPESP 206  z  39


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1 Michel, Edilson, Gilberto e Mônica planejam a viagem

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2 Primeira coleta, no dia 24 3 Gilberto transportando um dos cilindros do multicore 4 e 5 Patrícia Neves e Amanda Spera e Fernando Carneiro cortando os blocos de lama 6 Till checando o trajeto

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mar da costa da ilha de Stromboli, na Itália, causando um tsunami e agravando os efeitos de uma erupção vulcânica. Aparentemente, essa possibilidade é remota no litoral paulista. Com base nas informações sobre o fundo do mar, Michel concluiu que uma hipótese sobre a movimentação de sedimentos da costa para o oceano neste trecho do litoral, que ele havia apresentado em 2004 com base em amostras de superfície, poderia estar mesmo correta. “Agora Os pesquisadores detectaram vales estamos vendo efetivamene canais que podem ter a função te a migração de sedimento da costa para o fundo”, code receber e distribuir sedimentos menta. “Passamos por uma série de vales e canais, alguns com 5 quilômetros de largura e 160 metros de proAtlântico Sudoeste nos últimos 7 mil anos. O cru- fundidade, que podem ter a função de receber e zeiro faz parte de um dos projetos apoiados pela distribuir sedimentos.” Os gráficos sobre a variaPró-Reitoria de Pesquisa por meio do programa ção da espessura e da consistência das camadas Núcleos de Apoio à Pesquisa (NAPs) e reúne pes- de areia e lama indicavam que o talude – a região quisadores do IO, do Instituto de Geociências e mais profunda além da plataforma continental – do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências tinha a forma de um anfiteatro, com o palco nas regiões mais profundas, como ele havia previsto. Atmosféricas da USP. “Esta é a nossa primeira expedição de cunho essencialmente geológico que ultrapassa os limi- Titãs em alto-mar tes da plataforma continental desta região”, diz A escolha dos pontos de coleta de sedimentos Michel, que prefere ser chamado pelo primeiro resultou de um trabalho árduo que começou na nome. Até agora, por falta de equipamentos ade- tarde de quarta, dia 20, logo depois de o navio quados, era possível coletar sedimentos no máximo deixar o porto de Santos, e terminou na madrua 150 metros de profundidade. “O Alpha-Crucis gada do domingo, dia 24. A equipe da USP se renos permite ir mais longe, mais fundo e com mais vezou dia e noite para acompanhar e analisar as conforto que o Besnard”, ele diz, referindo-se ao informações sobre o fundo do mar que chegaram navio Professor Besnard, desativado desde 2008. durante 83 horas seguidas nos monitores dos três No dia 28, depois de percorrer quase 2 mil quilô- equipamentos de um dos laboratórios do navio: metros, o Alpha-Crucis atracou em Santos, ao la- um batitermógrafo, que registra a variação de sado do antigo navio, com centenas de amostras de linidade e temperatura por meio de sensores lansedimentos de até 1.400 metros de profundidade. çados manualmente a cada 18 quilômetros; duas “De onde vêm os sedimentos encontrados ao ecossondas, que informam sobre a consistência e norte de São Sebastião? Não sabemos”, inquieta- os limites das camadas superficiais de sedimentos -se Michel. Os rios que deságuam nessa região são do fundo do mar por meio da emissão e reflexão pequenos e aparentemente incapazes de trans- de ondas sonoras; e um perfilador sísmico, cujas portar tanta areia e lama. Ao sul, a situação pa- ondas, em outra frequência, penetram mais nos rece mais clara. Em trabalhos anteriores, Michel sedimentos porque funciona com uma frequência e outros pesquisadores do Instituto Oceanográ- de onda menor que as ecossondas. A cada meio fico concluíram que o rio da Prata, a quase 2 mil segundo o perfilador emitia estalos que ecoavam quilômetros de distância, deve ser a principal pelo navio, principalmente no andar inferior, que fonte da lama que chega até o sul da ilha de São abrigava os camarotes da tripulação e de parte Sebastião, empurrada pelas correntes marinhas. dos pesquisadores. Dias antes da viagem, em De imediato, o mapeamento do fundo do mar uma reunião de planejamento, Michel alertou realizado nos primeiros quatro dias de viagem que seria “uma viagem barulhenta”. forneceu indicações sobre a estabilidade do asFoi também movimentada. Seguindo contra soalho marinho, essencial para a extração de o vento, o navio balançou bastante na quinta, petróleo e gás natural, e sobre a possibilidade 21, primeiro dia de viagem. Mesmo os mais exde escorregamentos de depósitos de sedimentos, perientes passaram mal, com enjoos e tonturas. que podem gerar tsunamis. Em 2002, uma massa “Comparado com o Besnard, este é flat [plano]”, enorme de sedimentos escorregou e empurrou o diz Michel com tranquilidade, no café da manhã. como uma esponja, atraindo elementos químicos ou organismos dispersos na água. A areia tem uma estrutura fixa e não atrai outros materiais.” O objetivo da viagem é identificar depósitos ou fluxos de lama, cujos elementos devem ajudar a reconstituir o ambiente e o clima regional, as correntes marinhas e a evolução do oceano

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O comandante José Rezende, mineiro de Juiz de Fora que mora em Niterói, confirma: “O Besnard era mais caturro”. Ou seja: a proa subia e descia, fazendo o navio balançar no sentido do comprimento e não só dos lados como o Alpha-Crucis. À noite o navio chega ao ponto mais distante da viagem, a 315 quilômetros da costa, e mais profundo, 2 mil metros; lá embaixo, de acordo com um dos equipamentos, a temperatura era de 3 graus Celsius. Michel, Till, Edilson, Jasão, Marcelo e Gilberto, revezando-se à frente dos monitores, passaram o dia apreensivos, pedindo para o comandante ajustar o rumo porque não estavam captando nada de relevante sobre o fundo do mar. No final do dia o navio aquietou-se e eles começaram a identificar sinais de antigos vales de rios e lagunas, que emergiam como possíveis pontos de coleta de sedimentos na segunda parte da viagem. “Tudo o que estamos fazendo aqui é novo para nós”, comentou Till, o coordenador da equipe diurna que em 2009 percorreu a bacia do rio da Prata, em uma expedição semelhante. Mesmo dormindo pouco, Michel estava feliz. Sem internet, telefone e problemas urgentes para resolver, ele pôde deixar de lado as preocupações de diretor do Instituto Oceanográfico e vestir a camiseta de seu Botafogo (ele nasceu no Rio e aos 9 anos se mudou com a família para São Paulo). Seu computador tocava sem parar Titãs, Fábrica do Som, Village People, Elis Regina, como ele diz, “músicas boas e músicas de que eu gosto”. A turma da noite parecia um grupo de velhos amigos. Alto e magro, Marcelo Rodrigues, técnico do instituto desde 1992, viajava pela última vez com eles porque pediu demissão para trabalhar como consultor em geologia. Edilson é do tipo forte, cabelo rastafári, fala calmamente. Estudou biologia, foi contratado como técnico no IO em 1998 e dois anos depois Marcelo perguntou se ele queria participar de uma viagem à Antártida. Ele sonhava ir desde 1982, quando servia na Escola Naval do Rio e leu sobre os planos da primeira expedição científica para lá. Pouco depois ele viu o navio Barão de Tefé passar rumo sul. “Aquela imagem nunca saiu de minha memória.” Ele foi em dezembro de 2002, ficou um mês e gostou muito. “A impressão que eu tenho é que eu nunca saí de lá.” Ao deixar a equipe, no domingo, dia 24, em Ubatuba, Michel passou o comando científico para sua colega Silvia Helena de Mello e Souza, que embarcou com seu grupo no início da tarde. Michel lhe entregou um mapa com os 10 pontos de coleta de sedimentos, que ele e Till haviam elaborado naquela manhã, com base no mapeamento dos dias anteriores. No mesmo dia lançaram os equipamentos, que só trouxeram areia do fundo, e à noite religaram os equipamentos de mapeamento das camadas de sedimento do fundo do mar. 42  z  abril DE 2013

“Só neste pedaço da margem continental temos mais 20 anos de trabalho, pelo menos”, diz Michel

O lado sujo da ciência

A lama que os homens do convés trazem nos cilindros ganha donos e identidades à medida que passa para os pesquisadores, organizados em uma linha de produção, cada um com uma tarefa específica. “As amostras deste cruzeiro serão as que vou usar no doutorado”, diz a oceanógrafa Amanda Spera, que corta os blocos de lama em fatias de 1 centímetro de espessura que suas colegas colocam em pratos metálicos. Amanda pretende analisar compostos orgânicos sintetizados por microalgas marinhas e plantas terrestres para reconhecer os padrões de variação de temperatura e clima da região há milhares de anos. Quanto maior a temperatura, menor o número de ligações duplas na cadeia carbônica das alquenonas, um dos grupos de compostos a serem analisados. Desse modo, diz ela, “se as algas viviam em ambiente mais quente, o número de ligações duplas das alquenonas é menor”. No almoço do dia seguinte, Jasão, oceanógrafo e especialista em mergulho científico, anunciou, referindo-se a uma das coletas da manhã, a 841 metros de profundidade: “Já temos um recorde do Instituto Oceanográfico”. Por meio de um dos equipamentos – um cilindro metálico de 4 metros de comprimento e 450 quilos de peso chamado piston core –, eles coletaram três amostras, de


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1 O multicore (à esquerda) e os homens trabalhando no convés para trazer um pouco do fundo do mar 2 Organismos marinhos misturados a restos de sedimento

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4,10 metros, 1,68 metro e 2,40 metros de comprimento, mantidas em um tubo plástico branco. Em laboratório cada coluna será cortada em fatias de 2 centímetros. “Eu é que vou datar as colunas”, diz o químico Rubens Figuera, professor do IO que faz uma conta rápida: cada coluna deve render de 300 a 400 fatias, das quais ele examinará o teor de 15 elementos químicos: portanto, 6 mil resultados para cada coluna de lama. Acompanhar essa movimentação é fascinante. Pode-se ver um pouco das engrenagens da ciência e as coisas que os papers não contam: o trabalho pesado e repetitivo, a tensão causada pelos imprevistos, as hipóteses de trabalho nascendo, o lado literalmente sujo da ciência expresso nos rostos enlameados. Sutilmente, emergem as forças geralmente ocultas da ciência, que se faz não só com boas perguntas, instituições e dinheiro, mas também com amizade, respeito e companheirismo. “Estou aqui para o que precisarem”, lembrou Edilson no domingo à noite, diante do grupo, ao planejarem as coletas. No dia seguinte, observando o movimento no convés, Till comentou que 40 pessoas haviam se mobilizado para a coleta de sedimentos, incluindo os marinheiros que pilotavam os guinchos para conduzir os equipamentos de coleta, os cozinheiros que mantinham o ânimo de todos com uma comida deliciosa e os mecânicos da casa de máquinas. Os artigos científicos que resultarem desse trabalho, porém, trarão o nome de apenas uns poucos cientistas. Os relatos enfatizam resultados positivos que parecem ter surgido como mágica, sem esforço, mas o cansaço expresso na voz rouca, no silêncio e nas olheiras destas pessoas indica que não é bem assim. “Temos de desfazer a mística do Jaques Cousteau, que só mostrava as coisas que

davam certo”, lembra Michel. “Em uma das expedições de que participei tudo deu errado. Faz parte. Só não pode perder o élan, o entusiasmo.” Às 13 horas da terça-feira, dia 26, Rubens entra afobado no laboratório e avisa Silvia e Till: “Perdemos o piston core!”. Por causa de uma falha em um gatilho que controlava a descida do equipamento ou da força da corrente, o cabo de aço se rompeu e o equipamento ficou no fundo. Silêncio pesado no convés. Três horas depois, Silvia Helena chama o grupo e conta que, em consequência do acidente, eles adotariam outra estratégia de coleta, concentrando-se em uma área que chamaram de cinturão de lama. Ainda calados, fazem uma coleta à noite, a 120 metros de profundidade, apenas com o equipamento em forma de pirâmide, o multicore. Aos poucos o ânimo reaparece. Em uma das noites Till jogou truco com a rapaziada; ensinaram-lhe as regras, em inglês, e ele ganhou duas partidas seguidas. Os Próximos 20 Anos

Na quarta, 27, bateram outro recorde, de 1.400 metros. No meio da tarde, encerradas as coletas, o multicore, sem os cilindros, está amarrado no fundo do convés. Durante três horas, Mônica Petti, bióloga do IO, peneirou lama em busca de poliquetas, moluscos, crustáceos e outros organismos marinhos, que depois serão examinados sob microscópio em laboratório. “Fazia tempo que não coletávamos organismos nessas profundidades”, ela comentou. “Conhecemos muito pouco da biodiversidade marinha do Brasil”, comenta José Eduardo Marian, biólogo da USP que em 2012 descreveu os mecanismos sofisticados da reprodução em lulas. A estimativa atual do número de espécies do mar brasileiro é 30 mil, mas pode ser muito mais, de acordo com os resultados preliminares de um levantamento nacional coordenado por Antonio Carlos Marques, também da USP. Uma das metas é dobrar o número de registros de ocorrência sobre organismos marinhos catalogados na Ocean Biogeographic Information System (Obis), uma base de acesso livre, acrescentando 100 mil registros até março de 2014. Os problemas também vêm à tona. Um deles, de difícil solução, é a falta de especialistas em vários grupos de animais marinhos. “Precisamos de mais especialistas para dar conta de nossa diversidade”, alerta Marian. “Só neste pedaço da margem continental temos mais 20 anos de trabalho, pelo menos”, diz Michel. n Projeto Incremento da capacidade de pesquisa em oceanografia no estado de São Paulo (10/06147-5). Coord. Michel Michaelovitch de Mahiques – IO-USP; Modalidade Programa de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PPMCG); Investimento R$ 15.461.637,78 (FAPESP).

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CLIMATOLOGIA y

Degelo nos Andes Fotos aéreas e imagens de satélite registram encolhimento acelerado de geleiras da América do Sul

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m 2009 a geleira Chacaltaya desapareceu de vez da paisagem boliviana. Havia tempos que ela vinha encolhendo porque a quantidade de neve que ali se acumulava a cada ano não era mais suficiente para mantê-la. Mas não se esperava que sumisse de vez tão cedo, seis anos antes do que os pesquisadores haviam calculado. Situada a cerca de 30 quilômetros ao norte de La Paz, a capital da Bolívia, Chacaltaya era uma geleira pequena, mas internacionalmente conhecida por abrigar a pista de esqui mais alta do mundo, a 5.300 metros acima do nível do mar, e por ser o local onde o físico brasileiro César Lattes realizou em fins dos anos 1940 parte dos experimentos que levaram à descoberta do méson-pi, uma partícula subatômica. Seu fim antecipado deixou os bolivianos sem ter onde esquiar e virou notícia mundo a fora por um motivo bem mais importante: o que aconteceu com ela também vem ocorrendo com muitas das geleiras dos Andes e de outras regiões do planeta. Na opinião de especialistas, a retração das geleiras andinas pode sinalizar o destino de boa parte do gelo tropical caso a temperatura da atmosfera continue subindo no ritmo das últimas décadas: virar água. 44  z  abril DE 2012

Hoje as geleiras bolivianas ocupam cerca de metade da área que tinham até meados do século passado. E, de modo geral, se encontram num processo de encolhimento acelerado – em especial as pequenas, com menos de 1 quilômetro quadrado (km2), como Chacaltaya –, segundo estudos recentes realizados por pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em parceria com colegas bolivianos. “O que estamos vendo nas pequenas geleiras dos Andes é uma indicação antecipada do que pode ocorrer com as geleiras maiores dessa região e de outras”, explica o glaciologista Jefferson Cardia Simões, diretor do Centro de Pesquisa Climática e Polar da UFRGS e coordenador do grupo brasileiro. Em colaboração com a equipe do glaciologista Edson Ramírez, da Universidad Mayor de San Andrés, em La Paz, os pesquisadores brasileiros trabalham num amplo levantamento da situação das geleiras do vizinho andino. Usando fotografias aéreas e imagens de satélite, eles conseguiram avaliar até o momento a transformação por que passaram cerca de 600 geleiras que se distribuem por dois trechos dos Andes

Nevado Illimani, visto a partir da capital da Bolívia, La Paz: geleiras ocupam área 35% menor do que tinham em 1963

gettyimages / john coletti

Ricardo Zorzetto, de Porto Alegre


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relhos de GPS de alta precisão os limites de algumas geleiras da cordilheira Real, onde ficava Chacaltaya. A comparação das fronteiras atuais de 476 geleiras com as registradas nas décadas anteriores permitiu estimar que, em 40 anos, elas encolheram 43%: elas se distribuíam por 325 km2 nos anos 1970 e ocupam apenas 185,5 km2 hoje, segundo trabalho apresentado no ano passado na assembleia-geral da União Europeia de Geociências. Analisando uma região específica da cordilheira Real – o nevado Illimani, que pode ser visto a partir de La Paz –, Ribeiro notou que o encolhimento das geleiras acelerou recentemente. As geleiras do Illimani haviam perdido 12% de sua área entre 1963 e 1983 e encolheram o dobro disso nas três décadas seguintes, como descreve em artigo a ser publicado no Annals of Glaciology. Ana Maria Sanches, outra geógrafa da equipe de Simões, observou encolhimento até mais intenso em um conjunto de

Redução rápida Índice de retração de geleiras das cordilheiras Real e Apolobamba, nos Andes bolivianos, aumenta a partir dos anos 1980

nevado cololo

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n 2011 n 2008

As manchas coloridas nas imagens ao lado representam a área ocupada por geleiras no nevado Cololo, na

n 1997

1000 m

n 1989 0

1000 m

n 1975

nevado illimani

divisa da Bolívia com o Peru, e no nevado Illimani, perto de La Paz, em diferentes períodos. O Cololo perdeu 42% de seu gelo entre 1975 e 2011 e o Illimani, 35% entre 1963 e 2009

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n 2009 n 1963

geleiras situadas a 250 quilômetros ao norte do Illimani, na cordilheira Apolobamba, na divisa da Bolívia com o Peru. De 1975 a 2011, a área de gelo do nevado Cololo diminuiu 42% – hoje restam só 24,7 km2 – e sobraram apenas 48 das 122 geleiras originais. A retração das geleiras, de modo geral, não é homogênea. As pequenas são as mais abundantes e também as que estão desaparecendo mais rapidamente. Ribeiro verificou que no Illimani as geleiras grandes perderam, em média, 15% de sua área no período analisado, enquanto entre as pequenas a taxa média de retração foi quase cinco vezes maior.

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derretimento das geleiras não é exclusivo da Bolívia. No Peru, onde está a maior parte (70%) do gelo tropical, as geleiras já perderam quase um quarto de sua área nas últimas décadas. Em uma compilação recente sobre as condições atuais das geleiras andinas, o glaciologista francês Antoine Rabatel, ao lado de outros especialistas no tema, afirma que dos anos 1970 para cá as geleiras dos Andes tropicais passaram a encolher num ritmo jamais visto nos últimos 300 anos, desde que começaram a retrair após o fim da pequena idade do gelo, no final do século XIX – durante a pequena idade do gelo a temperatura da atmosfera havia baixado cerca de 0,6 grau. Além de menores, as geleiras andinas estão ficando restritas às áreas mais elevadas das montanhas. “No nevado Cololo, por exemplo, antes havia geleiras abaixo da cota de 4.500 metros de altitude”, conta Ana Maria. “Hoje elas só são encontradas acima de 4.950 metros.” Ainda não se conhecem ao certo as causas do encolhimento das geleiras andinas. Há sinais claros de que o clima regional mudou: a temperatura média nos Andes subiu 0,8 grau ao longo do último século e, do fim dos anos 1970 para cá, aumentaram a frequência e a intensidade do fenômeno El Niño – o aquecimento da água superficial do oceano Pacífico, que impede a chegada de umidade vinda da Amazônia e reduz a precipitação de neve. Os especialistas suspeitam que essas alterações regionais estejam ligadas às mudanças climáticas que parecem estar em curso no planeta e que o Painel Intergovernamental sobre Mudanças

imagens 1 ana maria sanches-ufrgs  2 rafael da rocha ribeiro / ufrgs

– as cordilheiras Real e Apolobamba – na Bolívia, país que concentra 20% do gelo dos trópicos (quase 99% do gelo tropical está nos Andes). “Estimamos uma redução da ordem de 50% na área das geleiras da Bolívia nesse período, o que é uma perda muito rápida”, afirma o geógrafo Rafael da Rocha Ribeiro, integrante da equipe de Simões e um dos autores do levantamento. “Essas geleiras são bons indicadores de alterações no clima porque respondem muito rapidamente às mudanças”, conta. A razão dessa sensibilidade é que nas regiões montanhosas tropicais o gelo se encontra a uma temperatura próxima de zero grau Celsius, o ponto em que começa a se fundir – os especialistas o chamam de gelo quente ou ameno, em contraposição ao gelo frio do centro das regiões polares, que está a dezenas de graus negativos. Nos últimos anos Ribeiro e o grupo de Ramírez marcaram com o auxílio de apa-


gettyimages / peter essick

Manto de gelo Quelccaya, no Peru: derretimento gerou lago que rompeu em 2006, inundando um vale próximo

Climáticas, o IPCC, já associou às atividades humanas. “As mudanças regionais e o derretimento das geleiras tropicais [de modo geral, elas estão encolhendo no mundo todo, embora algumas possam ter aumentado de tamanho] coincidem com a elevação da temperatura global”, explica Simões, que coordena também o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Criosfera. Mas ninguém afirma categoricamente que a razão é o aquecimento global, porque o derretimento das geleiras e os outros fenômenos climáticos são complexos e envolvem muitos fatores.

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pesar dessa dúvida, os especialistas acreditam que em breve os efeitos do encolhimento dessas geleiras devem se tornar evidentes, com consequências locais e até regionais. A maioria dessas geleiras tem pequeno porte, menos de 2 km2. Mas elas fornecem boa parte da água usada na produção de energia elétrica, na agropecuária e no abastecimento das cidades andinas – em especial no outono e no inverno, o período mais seco do ano. Um estudo conduzido em 2008 por Ramírez já demonstrou que nos últimos 50 anos houve uma retração de 44% a 55% nas geleiras que alimentam os rios de onde vem parte da água usada nas cidades de La Paz e El Alto, que juntas abrigam 1,5 milhão de pessoas. Ainda que até o momento não se tenha identificado

redução no fornecimento de água, vários pesquisadores preveem que ela pode vir a faltar. “É importante preparar as comunidades locais para um cenário futuro em que mudará a disponibilidade de água”, comenta Ribeiro. Simões teme que o derretimento acelerado torne mais frequente um tipo de desastre natural a que estão sujeitas as regiões com geleiras, vulcanismo e terremotos como os Andes: o rompimento dos lagos formados pelo derretimento dessas geleiras. Em artigo publicado em 2011 na revista Annals of Glaciology, o paleoclimatologista norte-americano Lonnie Thompson relata o que ele e sua equipe testemunharam no Peru. Desde que começaram a fazer pesquisas no manto de gelo Quelccaya, nos anos 1970, eles acompanharam o aumento do volume de um riacho que passava próximo ao acampamento e a formação de um grande lago diante da geleira. Esse lago, resultado do degelo, se rompeu em 2006 depois de uma avalanche e inundou o vale logo abaixo, eliminando a pastagem onde os moradores de um povoado vizinho criavam lhamas. Além do impacto local, é possível que haja um efeito regional, ainda desconhecido. Nas geleiras da porção oriental dos Andes nascem riachos que, à medida que se encaminham para leste, ganham volume e originam importantes rios da bacia amazônica, como o Madeira e o Solimões. É dos Andes que vem parte dos sedimentos que fertilizam esses rios e são carregados até o Atlântico. Ninguém sabe o que pode acontecer com esses rios e com os ecossistemas que integram se as geleiras andinas e o aporte de sedimentos diminuírem muito nas próximas décadas. “Precisamos mudar o conceito que há no Brasil de que esse gelo não vai afetar o país”, diz Simões. “Toda a porção oeste da Amazônia está muito perto dessa massa de gelo.” n

Artigos científicos RIBEIRO, R.R. et al. 46 years of environmental records from the Nevado Illimani glacier group, Bolivia, using digital photogrammetry. Annals of Glaciology. v. 54 (63). 26 fev. 2013. RAMIREZ, E. et al. Glacier Inventory of the Cordillera Real - Bolivia using high resolution satellite images ALOS and CBERS-2B. Geophysical Research Abstracts. v. 14. EGU2012-11692. 2012. THOMPSON, L.G. et al. Tropical glaciers, recorders and indicators of climate change, are disappearing globally. Annals of Glaciology. v. 52 (59). 2011.

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especial biota educação II

Intervenções sustentáveis Interferência humana ajudou a manter a diversidade biológica do pampa, um dos mais complexos ecossistemas brasileiros

Rodrigo de Oliveira Andrade

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uso do fogo e a pecuária, juntos, têm desempenhado papel importante, e muitas vezes essencial, para a manutenção da diversidade biológica do pampa, um dos mais ricos, complexos e heterogêneos ecossistemas brasileiros. Pode soar estranho, mas estudos sugerem que essas duas formas de interferência humana, quase sempre agressivas à biodiversidade local, se bem manejadas, podem contribuir para conservar a vegetação campestre do sul do país por conter a invasão de florestas de araucária e o adensamento de plantas lenhosas na região e por favorecer o rebrotamento da vegetação nativa, muitas vezes usada na alimentação do rebanho bovino. Essa concepção pouco habitual de conservação ambiental foi o destaque das palestras dos biólogos Márcio Borges Martins e Ilsi Iob Boldrini, ambos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), durante o segundo encontro do Ciclo de Conferências Biota-FAPESP

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Educação, realizado em São Paulo no dia 21 de março. Promovido pela coordenação do Programa Biota-FAPESP em parceria com a revista Pesquisa FAPESP, o evento contou também com a participação do biólogo Eduardo Eizirik, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). De acordo com os pesquisadores, nos últimos mil anos o clima úmido, característico de zonas subtropicais, tem favorecido a expansão das florestas em detrimento dos campos, os quais originalmente constituem a paisagem recente da região sulina. “Se considerarmos o clima atual, praticamente toda a região sul do Rio Grande do Sul seria naturalmente coberta por vegetações florestais”, ressaltou Martins. Segundo ele, isso só não ocorreu devido à presença de grandes herbívoros que viviam ali e, mais recentemente, à introdução da pecuária. “O gado tem desempenhado papel fundamental na conservação dos pampas”, disse. E também o fogo, por frear o


ilustrações  jaime prades  foto márcio borges martins

Pampa, palavra de origem quíchua que significa região plana: reconhecido como bioma brasileiro apenas em 2004

rápido avanço das florestas. “As queimadas podem ter sido essenciais na manutenção da dinâmica natural da vegetação campestre”, afirmou o biólogo. Alguns estudiosos acreditam que sua utilização esteja relacionada à chegada das populações indígenas à região, que o usavam para caça e manejo da terra, juntamente com um clima mais sazonal. Para Martins, além do fogo e da pastagem, outros fatores que condicionam a composição e as características fisionômicas da vegetação dos campos incluem o tipo de solo, as secas, as geadas, o pisoteio dos campos por animais e as roçadas periódicas. Logo, concluiu o pesquisador, tais perturbações precisam ser levadas em conta ao se propor formas sustentáveis de manejo dos campos da região, já que esses são fatores que impedem a expansão das florestas em áreas campestres. O biólogo destacou, porém, que a má gestão dessas perturbações pode levar à degradação desse ecossistema.

Atualmente o pampa é o segundo bioma mais devastado do país – o mais degradado é a mata atlântica. Seus campos se espalhavam por 176,5 mil quilômetros quadrados (km2), o que corresponde a 63% do território gaúcho e a 2,1% do território brasileiro. Hoje apenas 36% da vegetação original dos pampas se mantém preservada, destacou Ilsi Iob Boldrini. Segundo a bióloga, por estar restrito ao sul do Rio Grande do Sul, o bioma tem recebido pouca atenção do poder público no que diz respeito à implementação de políticas de conservação ambiental. Em parte, isso se deve ao fato de a região ter sido reconhecida oficialmente no mapa dos biomas brasileiros apenas em 2004, sendo sua diversidade biológica subestimada até então. “Mesmo abrangendo uma área relativamente pequena, o bioma pampa é bastante heterogêneo; detém uma diversidade fisionômica e de hábitats variada, com campos planos, áreas rupestres e areais, além das áreas baixas, formadas por sopESQUISA FAPESP 206  z  49


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los hidromórficos, inundáveis em muitas épocas do ano, e ambientes florestais. Trata-se de um bioma complexo, formado por uma diversidade de fitofisionomias, dentre as quais o campo dominado por gramíneas é o mais representativo”, comentou. Para a pesquisadora, impressiona também a quantidade de novas espécies identificadas na região nos últimos anos. Mais de 2 mil espécies de plantas foram catalogadas, 990 delas endêmicas dos pampas. “Costuma-se pensar que a vegetação campestre é homogênea, que campo é tudo igual. No entanto, a diversidade de espécies encontradas nesses locais chega a ser três vezes

3

Da esquerda para a direita: Eduardo Eizirik, Ilsi Iob Boldrini e Márcio Borges Martins

maior que a de áreas florestais”, afirmou Ilsi. As famílias vegetais mais ricas nos pampas são a Asteraceae, com 380 espécies, a Poaceae, com 373, a Leguminosae, com 190, e a Cyperaceae, com 118. Muitas, porém, estão ameaçadas de extinção, devido à substituição da vegetação original por lavouras de inverno e verão (sobretudo de soja, trigo e arroz), às práticas de silvicultura e ao sobrepastoreio pela pecuária, situação em que a exposição excessiva ao gado impede a recuperação dos campos. “A vocação da região é a pecuária, não a agricultura. Mas quando os rebanhos são mal administrados, também há degradação da vegetação”, destacou.

A redução drástica dos campos sulinos Vegetação típica dos pampas ocupa hoje 36% de sua área original no país, que era de 176,5 mil km2 retrato atual O mapa da esquerda pr

Vegetação original remanescente Vegetação campestre modificada

mostra a distribuição dos pampas e dos ecossistemas que o cercam, enquanto

SC

o mapa ao lado RS

RS

destaca as áreas remanescentes de

n Campos sulinos

vegetação característica

n Floresta estacional

dos campos sulinos

n Floresta com araucária

(vermelho-escuro)

n Formações pioneiras n Mosaico campo-floresta n Água

50  z  abril DE 2013

fonte ufrgs

e as áreas de vegetação alterada (vermelho-claro)


fotos  1 a 3 léo ramos  4 márcio borges martins mapa daniel das neves

O estabelecimento de sistemas evolutivos naturais. “Popuagrários diversos, e nem sempre lações de uma mesma essustentáveis, também tem acelerapécie distribuídas por reApesar dos do a alteração da cobertura vegetal giões geográficas distintas avanços, a original. Em muitas propriedades, podem se tornar geneticaa quantidade de animais é, por vemente diferenciadas”, cobiodiversidade zes, muito maior que a capacidade mentou. Segundo o pesquide suporte da vegetação campestre. sador, isso pode se dar por dos pampas E na falta de pasto nativo muitos diversos fatores, entre eles permanece em produtores acabam recorrendo ao o isolamento por distância, plantio de espécies exóticas de graa própria seleção natural e o grande parte míneas e leguminosas com aplicasurgimento de barreiras que ção de herbicidas, o que contamina impedem o fluxo gênico. Espouco conhecida, o solo e a água subterrênea. Além sas barreiras podem variar da superexploração dos campos, a de rios e regiões desérticas segundo os sua substituição por lavouras para a a florestas densas, como as pesquisadores produção de grãos ou a obtenção de de eucalipto. “Ignorar tais celulose está conduzindo à descaquestões pode levar ao deracterização da paisagem do bioma. saparecimento de algumas A aplicação de herbicidas sobre espécies importantes para a vegetação original do pampa paa manutenção da biodiverra introdução de espécies forrageiras, o manejo sidade local”, explicou Eizirik. Para ele, esse é inadequado dos campos naturais e o uso indis- um problema preocupante, já que o pampa se criminado do fogo também têm contribuído para estende por outros países da América Latina, a destruição desse bioma. E, apesar dos avanços como a Argentina e o Uruguai. “Por isso é funrecentes, a região dos campos sul-brasileiros damental a realização de estudos filogenéticos e permanece em grande parte insuficientemente filogeográficos como base para a formulação de conhecida. “Levantamentos florísticos e fitos- políticas de conservação da fauna de vertebrados sociológicos ainda são necessários para se obter nos campos sulinos”, afirmou. estimativas mais concretas da riqueza de espécies Da mesma forma, as redes de unidades de na região”, concluiu a bióloga. conservação atuais estão muito aquém do ideal. Hoje a região conta com 11 unidades de conservação de proteção integral, entre parques Mudanças na paisagem Pouco conhecida também é a fauna de vertebrados do bioma pampa, destacaram os biólogos Eduardo Eizirik e Márcio Borges Martins. Atualmente, a preocupação com a conservação da diversidade da fauna da região tem aumentado devido à forte expansão da monocultura e do cultivo de eucalipto para celulose (silvicultura). “Desde a última década tem havido um forte incentivo por parte do poder público à prática da silvicultura em regiões mais carentes do estado tendo em vista seu desenvolvimento econômico”, disse Martins. Segundo ele, muitas empresas já compraram vastas extensões de terra para o cultivo de eucalipto destinado à produção de celulose antes mesmo da realização de um zoneamento para identificar em quais áreas se poderia plantar. “A substituição de uma paisagem campestre por uma floresta densa como a de eucaliptos pode gerar diversas complicações para a manutenção da biodiversidade dos campos”, afirma. Uma delas é o bloqueio do fluxo genético entre espécies. De acordo com Eizirik, as políticas de conservação da diversidade biológica lo4 cal devem almejar a manutenção dos processos

Introduzido pelos jesuítas no século XVI, o gado pode ter contido o avanço das florestas sobre os pampas

pESQUISA FAPESP 206  z  51


e reservas ambientais, os quais cobrem uma área de 1.130 km2. “Isso corresponde a apenas 0,64% da área dos pampas”, ressaltou Martins. Em 2006, a Comissão Nacional da Biodiversidade (Conabio) já havia estabelecido nas Metas Nacionais da Biodiversidade para 2010 o objetivo de proteger 10% dos biomas terrestres em unidades de conservação, com exceção da Amazônia, para a qual o índice é de 30%. Para o biólogo, uma das razões pelas quais os pampas têm sido negligenciados pelas políticas de preservação é o pequeno impacto visual causado pela degradação dos campos. “Quando se perde parte de uma floresta há uma significativa mudança da paisagem. O mesmo não acontece quando se trata dos campos”, comentou. conhecer para melhor usar

Para os pesquisadores, apesar de a interferência humana historicamente fazer parte da manutenção da biodiversidade dos campos sulinos, ainda se está longe de alcançar um nível de compreensão que permita manejá-los de forma sustentável, sem comprometer a dinâmica natural da biodiversidade do bioma e a produtividade econômica da região. É fundamental, ressaltaram, revisar os modelos de gerenciamento dessas unidades de conservação, que impedem o manejo pelo fogo e pelo gado. “Há uma série de estudos que indicam formas sustentáveis de manejo da biodiversidade local que garantem as características dos pampas e o desenvolvimento da pecuária”, afirmou Martins. E completou: “É importante considerar os potenciais da região para outras finalidades, como a produção de energia eólica”. O Ciclo de Conferências Biota-FAPESP Educação se estenderá até o mês de novembro e irá tratar dos conceitos, dos desafios e das principais ameaças relacionadas aos seis biomas brasileiros: pampa, pantanal, cerrado, caatinga, mata atlântica e Amazônia, além dos ambientes marinhos e costeiros e da biodiversidade em ambientes antrópicos urbanos e rurais. O objetivo é apresentar o estado da arte do conhecimento científico gerado no âmbito do Biota-FAPESP ao longo de seus 13 anos, em linguagem acessível para públicos diversos, de modo a melhorar a qualidade da educação científica e ambiental de professores e alunos do ensino médio do país. n 52  z  abril DE 2013

Programação

Ciclo de Conferências Biota-FAPESP Educação 2013 Para mais informações: www.biota.org.br  . www.biotaneotropica.org.br . www.agencia.fapesp.br www.fapesp.br/eventos/biota_biomapantanal/inscricao 18 de abril (14h00-16h00)

Helena Bergallo (Ibrag/Uerj)

Bioma Pantanal

Márcia Hirota (SOS Mata Atlântica)

Conferencistas Arnildo Pott

19 de setembro

(UFMS, Campo Grande, MS)

(14h00-16h00)

Walfrido Moraes Tomas

Bioma Amazônia

(CPAP-Embrapa) José Sabino (Universidade para o

Conferencistas

Desenvolvimento do Estado e

Maria Lucia Absy (Inpa)

da Região do Pantanal–Uniderp)

Carlos Peres (Universidade East Anglia, Reino Unido)

16 de maio (14h00-16h00)

Helder Queiroz (IDSM)

Bioma Cerrado Conferencistas

24 de outubro (14h00-16h00)

Vânia Regina Pivello

Ambientes marinhos

(IB-USP, São Paulo)

e costeiros

Jader Marinho Filho

Conferencistas

(ICB-UnB, Brasília) Vanderlan S. Bolzani

Mariana Cabral de Oliveira

(Unesp, Araraquara, São Paulo)

(IB-USP, São Paulo) Maria de los Angeles Gasalla (IO-USP, São Paulo)

20 de junho (14h00-16h00)

Roberto S .G. Berlinck

Bioma Caatinga

(IQSC-USP, São Paulo)

Conferencistas Luciano Paganucci (UE, Feira de Santana)

21 de novembro

Fernanda Werneck

(14h00-16h00)

(ICB-UnB, Brasília)

Biodiversidades em

Bráulio Almeida Santos

ambientes antrópicos –

(UFPB, Paraíba)

urbanos e rurais

22 de agosto (14h00-16h00) Bioma Mata Atlântica

Conferencistas Luciano M. Verdade (Cena-USP, São Paulo)

Conferencistas

Elisabeth Höfhling

Carlos Alfredo Joly

(IB-USP, São Paulo)

(IB-Unicamp, Campinas, São Paulo)

+10

Roseli Buzanelli Torres (IAC)


etologia y

Doce aprendizado Experimentos demonstram a capacidade das abelhas-europeias de associar cores e sinais Igor Zolnerkevic

foto  kathy keatley garvey

M

esmo com um cérebro do tamanho de uma semente de gergelim, a abelha-europeia (Apis mellifera) é capaz de aprender algo sobre um fenômeno que, embora simples, é a base da capacidade dos seres humanos de pensar e se comunicar por meio de símbolos. Nos experimentos dos psicólogos Antonio Mauricio Moreno e Deisy de Souza, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), no interior de São Paulo, junto com a entomóloga Judith Reinhard, da Universidade de Queensland, na Austrália, abelhas interessadas em ganhar um gole de água com açúcar aprenderam a realizar uma escolha baseada em uma relação arbitrária entre dois tipos de sinais (cartões coloridos e listrados). Uma relação tão arbitrária quanto aquela entre a palavra bola e o objeto real a que ela se refere. “O trabalho é relevante para os estudos de aprendizagem, pois confirma que um invertebrado é capaz de aprender relações arbitrárias”, afirma Dora Ventura, psicóloga da Universidade de São Paulo (USP) especialista em visão animal, que não participou dos experimentos. Antes desse estudo, publicado em dezembro de 2012 na revista PLoS One, havia resultados sugerindo que as abelhas também podiam apresentar esse tipo de aprendizagem, o mais simples dos comportamentos pré-simbólicos, chamados assim por serem pré-requisito para o desenvolvimento da linguagem. Mas era preciso reunir evidências. Com o trabalho do grupo de São Carlos, ganha força a ideia de que mesmo o cérebro de uma abelha – maior que o de muitos insetos, ainda que com menos de 1 milhão de neurônios (o humano tem 86 bilhões) – é capaz de tal desempenho, por muito tempo considerado exclusivo de vertebrados com um cérebro bem maior, como macacos e seres humanos. A abelha-europeia começou a chamar a atenção dos pesquisadores na década de 1940, quando o zoólogo austríaco Karl von Frisch descreveu um comportamento único da espécie: a sua famosa dança, uma complexa coreografia feita por uma abelha ao voltar à colmeia que indica a suas companheiras a localização das flores que encontrou. De lá para cá, dezenas

Cérebro de abelha » Volume  1 mm3 » Capacidade Cerca de 1 milhão de neurônios » Habilidade  Capaz de aprender a distinguir cores, padrões complexos e contar até quatro

pESQUISA FAPESP 206  z  53


A prova das abelhas

Apis mellifera

Pesquisadores treinaram duas espécies para responder a estímulos visuais

1 Estímulo condicional

Esquema do experimento A

O teste de discriminação condicional começa

Bebedouro com xarope

quando uma abelha em busca de alimento

Bebedouro com água

atravessa uma abertura sinalizada por um cartão

Estímulo de escolha 1

Há xarope apenas atrás de uma das aberturas

Estímulo condicional

passando no teste A

Duas situações eram apresentadas eram verticais, o xarope estava atrás do cartão

1

2

3

4

5

6

7

Dias de treino

Após seis treinos, o índice de acerto chegou a quase 70%,

B

Entrada

amarelo; (B) quando horizontais, atrás do azul

melipona rufiventris Escolha correta Índice de acerto

2

Aberturas

coloridos, os chamados estímulos de escolha.

alternadamente às abelhas: (A) quando as listras

0

dos cartões foi invertida

2 Estímulo de escolha um par de aberturas sinalizadas com cartões

50%

mas caiu quando a ordem

listrado, o estímulo condicional

A abelha então chega a uma câmara onde há

Índice de acerto

Escolha correta

50% 0

1

2

3

4

5

6

Dias de treino

A taxa de acerto da espécie brasileira não superou 50%, a mesma que ocorreria ao acaso fonte  moreno, a. m. et al. plos one. 2012

de comportamentos foram observados, um repertório comparável ao de aves e mamíferos, incluindo a capacidade de contar até quatro. As experiências com abelhas são diferentes daquelas com outros animais. Ratos e pombos ficam engaiolados e privados de comida antes do treinamento. Já as abelhas são livres para retornarem à colmeia, instalada fora do laboratório. “No começo do experimento, coloco um bebedouro com xarope feito de água com açúcar perto da colmeia”, explica Moreno, que trabalha com abelhas desde 2002. “Se não estiver chovendo, as abelhas vão descobrir o bebedouro.” Em um minuto, uma abelha se enche de xarope e retorna à colmeia para despejá-lo. Logo ela volta ao bebedouro para recolher mais. Moreno então o afasta da colmeia em direção ao interior do laboratório, com algumas abelhas em seu encalço. Quando chegam ao aparelho experimental, ele usa um pincel com tinta guache para marcar as abelhas que treinará em seguida. “Às vezes elas se assustam e fogem, mas tento marcar com delicadeza, enquanto estão compenetradas sugando o xarope”, conta. A tarefa mais elementar que os pesquisadores ensinam às abelhas é distinguir entre dois sinais diferentes, um posto em frente a um bebedouro contendo água e outro em frente a um bebedouro com o xarope. Depois de duas horas de treino, uma abelha aprende que só um dos 54  z  abril DE 2013

Em experimentos feitos na Austrália, a Apis mellifera foi capaz de diferenciar quadros de Picasso dos de Monet

sinais indica a presença de açúcar. Esse experimento, refeito desde os anos 1920, é chamado de discriminação simples. Em geral, os sinais usados são pares de cartões com cores, padrões ou figuras geométricas simples. Com base em estudos de Dora Ventura sobre a capacidade visual das abelhas e depois de várias tentativas, Moreno concluiu que esses insetos distinguem melhor cartões amarelos de azuis e cartões listrados em preto e branco com listras horizontais de cartões com listras verticais. Estética açucarada

Isso não quer dizer, porém, que as abelhas sejam incapazes de reconhecer sinais mais complexos. Enquanto fazia uma parte de seu doutorado na Universidade de Queensland, entre 2010 e 2011, Moreno colaborou com outro estudo do laboratório de Judith, no qual a Apis mellifera aprendeu a diferenciar quadros de Picasso dos de Monet. Em experimentos de discriminação simples usando car-

tões com reproduções de várias obras, um grupo de abelhas recebia xarope se preferisse o cubista ao impressionista, enquanto o outro grupo foi treinado ao contrário, ambos com sucesso. Para as abelhas, vale tudo para conseguir o xarope. Se, por exemplo, o xarope estiver sempre à esquerda, a abelha pode responder corretamente porque memorizou sua posição, e não por distinguir os sinais visuais. Para evitar isso, a posição dos bebedouros foi trocada constantemente. Os bebedouros também eram frequentemente substituídos por novos, para que as abelhas não se orientassem pelo cheiro deixado por gotas de xarope. Num estágio seguinte, Moreno e seus colegas realizaram testes chamados de discriminação condicional, em que acrescentavam um passo ao experimento. Antes de se deparar com os sinais azul e amarelo, por exemplo, a abelha encontrava na sua frente um cartão listrado. Quando as listras eram verticais, o xarope estava atrás do cartão amarelo.


Já se as listras fossem horizontais, o cartão correto era o azul. Para se dar bem, a abelha precisava deduzir essa relação arbitrária, isto é, entender que a escolha da cor dependia da condição das listras. Depois de seis dias seguidos de treinos, as abelhas-europeias conseguiram acertar em torno de 70% das discriminações condicionais. Mesmo quando os bebedouros eram retirados, elas acertavam em suas escolhas. Animados com o resultado, os pesquisadores resolveram verificar se as abelhas podiam ir além e aprender outro pré-requisito do pensamento simbólico: criar novas relações a partir das relações arbitrárias aprendidas anteriormente. Eles, então, alteraram o teste, invertendo a ordem dos cartões. Queriam ver se, por exemplo, uma abelha treinada para optar por amarelo caso tivesse passado antes por listras verticais era capaz de escolher as listras verticais ao passar por um cartão amarelo. A resposta foi negativa. “Nesse ponto sou pessimista”, diz Moreno. “Não sei como poderíamos produzir comportamentos mais complexos do que o que obtivemos.” De volta ao Brasil, Moreno refez os experimentos de discriminação condicional no laboratório de Deisy, na UFSCar, dessa vez testando a tujuba (Melipona rufiventris), uma abelha nativa do país

e sem ferrão, o que dispensa o traje de apicultor usado com a Apis mellifera. Embora conseguissem discriminar bem os cartões, quase todas tujubas testadas falharam em aprender as relações arbitrárias entre eles. “Em um experimento semelhante, conduzido um ano antes, apenas uma abelha aprendeu, mas só depois de treinar três semanas, seu tempo de vida”, lembra Moreno. “Logo depois ela morreu.” Fatores desconhecidos

O resultado contradiz os experimentos pioneiros de comportamento animal realizados pelo psicólogo e romancista Isaias Pessotti, nos anos 1960, na USP de Ribeirão Preto. Pessotti, que chegou a inventar um aparelho automático que sinalizava às abelhas com luzes coloridas ao lado de bebedouros abertos e fechados por pequenas alavancas acionadas pelos próprios insetos, concluiu que a tujuba era capaz de discriminações condicionais. No aparelho de Pessotti,

Melipona rufiventris: nos testes, não aprendeu a relação arbitrária entre os cartões coloridos e os listrados

porém, os sinais de condição e de escolha eram exibidos simultaneamente. Por essa razão, muitos pesquisadores questionam se, em vez de estabelecer uma relação condicional, as tujubas não teriam aprendido a escolher pares de sinais como se eles fossem uma coisa só. Para evitar essa possibilidade, Moreno e seus colegas não apresentavam os cartões coloridos e listrados ao mesmo tempo, mas um depois do outro. Moreno, Deisy e Judith arriscam uma explicação para a aparente superioridade da abelha-europeia. Natural de um clima temperado, a Apis mellifera teria evoluído de modo a ser capaz de fazer associações mais complexas, como a que existe entre as estações do ano e as floradas das diferentes espécies de plantas. Já a tujuba vive em colmeias menores, que não precisam de uma grande variedade de flores para sobreviver. Além disso, as floradas tropicais são mais constantes ao longo do ano e assim não haveria por que a tujuba variar suas escolhas. “Mas é apenas uma especulação”, ressalta Moreno. “Precisamos de mais estudos comparando o forrageamento da Melipona com o da Apis.” “O resultado negativo da Melipona não deve ser levado muito a sério”, afirma Randolf Menzel, neurobiólogo especialista em abelhas, da Universidade Livre de Berlim, Alemanha. Como os próprios autores do estudo reconhecem, o insucesso delas nos experimentos pode ter sido causado por efeitos desconhecidos. “O aparato experimental pode ter sido percebido de modo diferente pelas duas espécies”, explica Martin Giurfa, da Universidade de Toulouse, na França, outra autoridade em comportamento e neurofisiologia de abelhas. “A experiência pode ser mais estressante para as abelhas brasileiras, diminuindo seu desempenho.” n

ib / usp (projeto vinces / fapesp)

Projetos 1. Emparelhamento com o modelo em abelhas (Melipona quadrifasciata) – nº 2008/50576-8; Modalidade Bolsa de doutorado; Coord. Antonio Mauricio Moreno; Investimento R$ 132.486,12 (FAPESP). 2. Instituto de estudos sobre comportamento, cognição e ensino (nº 2008/57705-8); Modalidade Projeto Temático; Coord. Deisy das Graças de Souza – UFSCar; Investimento R$ 575.983,91 (FAPESP).

Artigo científico MORENO, A.M. et al. A comparative study of relational learning capacity in honeybees (Apis mellifera) and stingless bees (Melipona rufiventris). PLoS One. v. 7 (12). 2012.

pESQUISA FAPESP 206  z  55


imunologiA y

Defesas vulneráveis Médicos se mobilizam para detectar precocemente doenças causadas por falhas nas barreiras contra microrganismos

56  z  abril DE 2013

em geral detectadas tardiamente, o consórcio é constituído inicialmente por médicos e pesquisadores de quatro centros do Nordeste (Fortaleza, Natal, Recife e Salvador), dois do Centro-Oeste (Brasília e Cuiabá), sete do Sudeste (Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Campinas, Ribeirão Preto, Botucatu e dois em São Paulo) e três do Sul (Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre). Em todo o país, estima-se que 160 mil pessoas apresentem IDPs, mas apenas 2 mil estão em tratamento e mais de 18 mil aguardam o diagnóstico. Como primeira medida, o grupo começou a divulgar folhetos em português, inglês e espanhol com uma lista de 12 sinais de alerta que podem ajudar pediatras a reconhecer as imunodeficiências primárias já no primeiro ano de vida, como a persistência de infecções ou diarreias, ausência de timo, uma glândula do sistema imune facilmente visível nos exames de raios X de tórax, lesões na pele e reações intensas a vacinas com microrganismos ate-

As imunodeficiências primárias acometem principalmente bebês

Claudia Guimarães / Folhapress

P

ediatras, representantes do governo e pesquisadores do Brasil e de outros países se reuniram no primeiro sábado de março, abrindo uma Escola São Paulo de Ciência Avançada em Imunodeficiências Primárias, e formalizaram a criação de um consórcio de centros médicos de referência no diagnóstico e tratamento das chamadas imunodeficiências primárias (IDPs), conjunto de cerca de 180 doenças raras e de alta letalidade, caracterizadas pelo mau funcionamento do sistema imune. Por causa da incapacidade em produzir células de defesa ou anticorpos contra vírus e bactérias, crianças e adultos com IDPs são muito suscetíveis a infecções, mesmo as causadas por microrganismos geralmente inofensivos em pessoas normais, e podem desenvolver doenças autoimunes como diabetes, além de câncer, em uma frequência maior que na população considerada saudável. Formado para ampliar o acesso ao diagnóstico e aprimorar o tratamento dessas doenças,


Brasileiro de Pneumologia os 10 sinais de alerta do Grupo Brasileiro de Imunodeficiência. Adaptado da proposta apresentada em 1999 pela Fundação Jeffrey Modell, dos Estados Unidos, e da Cruz Vermelha Americana, o conjunto de medidas inclui “duas ou mais pneumonias no último ano”, “quatro ou mais novas otites no último ano” e “história familiar de imunodeficiência”. Os riscos da BCG

160 mil é o número estimado de brasileiros com IDPs

nuados, especialmente a BCG, usada contra tuberculose e aplicada nos primeiros dias após o nascimento (ver quadro na próxima página). “Como as imunodeficiências primárias acometem principalmente bebês, não podemos esperar a repetição de infecções”, diz a pediatra Magda Carneiro Sampaio, coordenadora do grupo de IDPs do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP) e do novo consórcio de instituições. “Temos de pensar nas primeiras manifestações.” As recomendações aos pediatras, já divulgadas na página do Ministério da Saúde na internet, se apoiam em uma revisão de propostas semelhantes e nos 35 anos de experiência de médicos da USP e foram publicadas em 2011 na revista Pediatric Allergy and Immunology. Essa é a proposta mais recente de sinais de alerta, focada nas primeiras manifestações das imunodeficiências, mas não a única. Em 2009 o médico e professor da USP de Ribeirão Preto Pérsio Roxo Júnior publicou no Jornal

A incapacidade de produzir células de defesa ou anticorpos pode ser detectada por meio de um simples exame de sangue, Magda argumenta. Do mesmo modo, alguns cuidados simples poderiam ajudar a reduzir o número de mortes que geralmente acompanham essas doenças. Segundo ela, as enfermeiras deveriam sempre perguntar aos responsáveis pelo bebê se houve casos na família de crianças que morreram com infecções ou sobre casamentos consanguíneos, que podem facilitar o surgimento dessas doenças, quase todas de origem genética, antes de aplicarem as vacinas obrigatórias como a BCG. “Em caso de suspeita, o melhor é não vacinar e encaminhar para um centro de referência capaz de fazer o diagnóstico e o tratamento”, ressalta Magda. “Crianças com imunodeficiências primárias não deveriam ser vacinadas.” As vacinas podem ser fatais para bebês cujo organismo é incapaz de produzir células de defesa ou anticorpos contra bactérias ou vírus. “Estamos na fase de sensibilizar os médicos para darem mais atenção a esses problemas, porque a maior parte das crianças com imunodeficiências primárias morrem de infecção ou septicemia, antes do diagnóstico correto”, diz ela. Com base na frequência populacional das IDPs nos Estados Unidos (um caso para cada grupo de 1.200 pessoas), estima-se que no Brasil devem viver 160 mil com IDPs, das quais 34 mil no estado de São Paulo, mas apenas 3 mil foram diagnosticadas. Um trabalho publicado em janeiro na Journal of Clinical Immunology examina 1.008 casos de crianças e adultos de todo o país diagnosticados e tratados de 1978 a 2011 no Hospital das Clínicas da USP. É o maior levantamento nacional – e um dos maiores do mundo – realizado em um único centro médico. pESQUISA FAPESP 206  z  57


las-tronco extraídas da medula óssea de irmãos. É uma terapia com grande chance de cura, que possibilita à criança uma vida normal no futuro”, diz Magda. As infecções são combatidas por meio de antibióticos, em doses similares às utilizadas em pessoas com sistema imune normal, mas geralmente por mais tempo. Rastreamento neonatal

Em adultos, o uso contínuo de medicamentos pode abalar as defesas contra microrganismos causadores de infecções

Na Escola São Paulo de Ciência Avançada em Imunodeficiências Primárias, o encontro internacional apoiado pela FAPESP que se seguiu à formação do consórcio, o médico Jorge Andrade Pinto, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), anunciou um projeto-piloto de rastreamento de um grupo de doenças conhecido como imunodeficiência severa combinada (SCID), que reduz a produção de linfócitos B e T e deixa os bebês altamente suscetíveis a infecções. Os exames devem começar a ser feitos no segundo semestre deste ano no Hospital das Clínicas da UFMG, com financiamento do Ministério da Saúde. Um projeto similar de triagem neonatal para IDPs está em andamento desde 2010 em São Paulo.

Os 12 sinais de alerta Como detectar imunodeficiências no primeiro ano de vida

1!

Infecções fúngicas, virais e/ou bacterianas graves ou persistentes

5! 9!

Lesões cutâneas extensas

História familiar

de imunodeficiência

ou de óbitos precoces por infecção

Fonte  Instituto da Criança – HC / USP

58  z  abril DE 2013

2!

Reações adversas a vacinas de germe vivo, em especial BCG

6! 10! Diarreia

persistente

7!

Linfocitopenia (< 2.500 cel/ mm 3) ou outra citopenia ou leucocitose sem infecção, persistentes

3!

Diabetes mellitus persistente ou outra doença autoimune e/ou inflamatória

Cardiopatia congênita (em especial anomalias dos vasos de base)

11!

Hipocalcemia com ou sem convulsão

SciencePhotoLibrary / Glow Images

Nesse estudo, os médicos identificaram 62 tipos diferentes de imunodeficiências primárias. A deficiência na produção de anticorpos – principalmente imunoglobulina A (IgA) – representou a categoria mais comum (61% do total). A porcentagem de deficiência na produção de anticorpos aumentou de acordo com as faixas de idade, de 15% no grupo de crianças de até 2 anos até 84% no grupo de pessoas com 30 anos ou mais. Como esperado, já que a maioria das IDPs graves é causada por falhas no funcionamento de genes do cromossomo X, os bebês do sexo masculino e os homens predominaram (566 casos ou 56% do total), embora a distribuição por gênero tenha variado bastante entre os grupos de idade. Os meninos constituíam 75% dos pacientes com até 2 anos de idade e 64% no grupo de 2 a 5 anos, enquanto as mulheres predominavam (58%) no grupo com 30 anos ou mais. Uma vez diagnosticadas, várias imunodeficiências primárias podem ser tratadas por meio da aplicação mensal de anticorpos, sob a forma de gamaglobulina, disponível na rede pública de saúde. Os casos mais graves implicam o transplante de células-tronco hematopoiéticas, oferecido em três centros médicos ligados ao Sistema Único de Saúde (SUS). “Normalmente usamos células do cordão umbilical armazenadas em bancos públicos, mas em alguns casos é possível usar célu-


Se infecciona, a cicatriz deixada pela BCG pode indicar uma deficiência do sistema imune

4! 8! 12!

Quadro

sepse-símile, febril, sem identificação de agente infeccioso

Atraso na queda

do coto umbilical (> 30 dias)

Ausência de imagem tímica ao raio X de tórax

“Pretendemos avaliar 250 mil recém-nascidos em 12 meses”, disse ele à Agência FAPESP. Com base na prevalência registrada em estudos norte-americanos, de 1 caso em 35 mil triados, Andrade Pinto espera encontrar de 5 a 10 recém-nascidos portadores de SCID e de outras doenças graves caracterizadas pela redução na população de linfócitos no sangue. Nos Estados Unidos, 20 bebês com SCID foram identificados por meio da triagem neonatal, feita de forma rotineira na maioria dos estados. “Com certeza, muitos bebês morriam sem o diagnóstico”, comentou John Routes, do Hospital das Crianças de Wisconsin. “Se a doença for descoberta antes que o bebê fique doente, a chance de cura é de 90% a 95%.” As causas e os tipos de tratamento de algumas formas de imunodeficiências primárias ainda são pouco conhecidos. É o caso da linfo-histiocitose hemofagocítica ou HLH, em que os macrófagos eliminam outras células de defesa. Em uma das apresentações, Geneviève de Saint-Basile e Fernando Sepúlveda, ambos do Hospital Necker, de Paris, mostraram os avanços com o estudo de camundongos em que conseguiram induzir essa doença, de modo similar ao das pessoas. Segundo eles, a superativação dos macrófagos pode ser causada pela infecção com o vírus Epstein-Barr (EBV), que infecta linfócitos B, geralmente sem maiores consequências, e pode causar alguns tipos de câncer, principalmente em adultos. “Adultos também podem ter imunodeficiências primárias, em geral menos graves que as das crianças”, diz Cristina Kokron, uma das

coordenadoras de um ambulatório do HC que nos últimos 15 anos atendeu 840 adultos com suspeita de IDPs, a maioria com diagnósticos já definidos (449 casos) e com deficiência na produção de anticorpos (398 casos). Muitas vezes as infecções persistem durante décadas até serem associadas à incapacidade de produzir células ou anticorpos capazes de deter os microrganismos que as causam. Um dos 155 pacientes que recebem imunoglobulina por via endovenosa todo mês tem 81 anos e tinha diarreias constantes desde criança. “Em adultos”, diz ela, “nem sempre as infecções causadas pela deficiência na produção de anticorpos são fatais”. O uso de medicamentos que enfraquecem as defesas do organismo, como os corticosteroides, é a causa de 58 casos de imunodeficiências (secundárias) tratados no hospital da USP. “Qualquer médico deve prestar muita atenção nos efeitos colaterais dos medicamentos que prescrevem, porque as consequências podem ser dramáticas”, alerta Cristina. Dos 14 adultos com agamaglobulinemia, um tipo de IDP, 9 vieram do Instituto da Criança do HC, indicando que as crianças que antes morriam agora sobrevivem. Em um dos estudos, Cristina, Ana Karolina Oliveira e Maira Pedreschi verificaram que a vacina contra gripe aplicada em 22 adultos com deficiência na produção de anticorpos ajudou a reduzir a frequência de gripes, sinusites e pneumonias e a reduzir o uso de antibióticos, apesar de não estimular a produção de de anticorpos contra o vírus da gripe. n Carlos Fioravanti Projetos 1. Autoimunidade na criança: investigação das bases moleculares e celulares da autoimunidade de início precoce (20008/582384); Coord. Magda Maria Sales Carneiro Sampaio – FM-USP; Modalidade Projeto Temático; Investimento R$ 1.827.061,70 (FAPESP). 2. São Paulo Advanced School on Primary Immunodeficiencies (2012/50308-9); Coord. Magda Maria Sales Carneiro Sampaio – FM-USP; Modalidade Escola São Paulo de Ciência Avançada; Investimento R$ 354.969,80 (FAPESP). 3. Avaliação do perfil TH17 em pacientes com imunodeficiência comum variável (ICV) com ou sem autoimunidade (2011/22076); Coord. Cristina Maria Kokron – FM-USP; Modalidade Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa; Investimento R$ 108.770,83 (FAPESP).

Artigos científicos CARNEIRO SAMPAIO, M. et. al. Primary immunodeficiency diseases in different age groups: a report on 1,008 cases from a single brazilian reference center. Journal of Clinical Immunology. 2013 (on line). CARNEIRO SAMPAIO, M. et. al. A proposal of warning signs for primary immunodeficiencies in the first year of life. Pediatric Allergy and Immunology. v. 22, p. 345-6. 2011. ROXO, P. Imunodeficiências primárias: aspectos relevantes para o pneumologista. Jornal Brasileiro de Pneumologia. v. 35, p. 1.008-117. 2009.

pESQUISA FAPESP 206  z  59


O Governo Federal leva Educação e Saúde às escolas públicas, promovendo a atenção e os cuidados com a visão, prevenindo a obesidade, estimulando a prática de atividades físicas e alertando sobre os riscos e danos do uso de drogas; entre outras doenças.


Turma do Centro Educacional de Sobradinho - DF


tecnologia  Biotecnologia y

Remédio na planta Medicamento anti-HIV é obtido de soja transgênica

O

uso milenar de plantas para aliviar doenças ganha outras formas sob o domínio da biotecnologia. Dezenas de experimentos em todo o mundo, em empresas ou instituições acadêmicas, utilizam técnicas de inserção de genes em genomas de plantas que possam codificar enzimas de interesse farmacológico. Assim é possível que o cultivo de soja, milho e batata ou mesmo plantas ornamentais possa no futuro ser usado em larga escala, em versões transgênicas, para a produção de medicamentos. Um exemplo desses experimentos que acontecem no Brasil, na unidade de Recursos Genéticos da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), em Brasília, é o desenvolvimento de uma variedade de soja com um viricida ou microbicida, capaz de prevenir a contaminação pelo vírus causador da Aids. Com a ajuda da engenharia genética, essa leguminosa está produzindo sementes, em uma estufa na capital federal, com a enzima cianovirina-N que já teve comprovada sua eficácia contra o vírus em testes laboratoriais em estudos pré-clínicos. Esse tipo de experimento ganhou força em maio de 2012, quando a Food and Drug Administration (FDA), a agência federal norte-america62  z  abril DE 2013

na de regulação de medicamentos e alimentos, aprovou para uso comercial o primeiro fármaco produzido com engenharia genética em células de plantas para seres humanos. O princípio ativo é a proteína taliglucerase alfa, produzida em células de cenoura transgênica para tratamento da doença de Gaucher, uma enfermidade genética e rara provocada pela falta no organismo da glucocerebrosidase, uma enzima atuante no processamento de glicocerebrosídeos, um tipo de gordura celular. O paciente tem anemia e aumento do baço e do fígado. O medicamento desenvolvido e produzido pela empresa israelense Protalix, e distribuído em parceria com a norte-americana Pfizer, foi também aprovado em Israel e no Brasil, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em março deste ano, com o nome de Uplyso. O tratamento até agora era feito com outro fármaco em que a proteína é produzida em linhagens de células modificadas de hamsters, num processo biotecnológico que está mais sujeito a contaminações. A proteína sintetizada na cenoura é similar à produzida pelo próprio organismo humano. No caso da cianovirina a história é diferente. Ela foi isolada na década de 1990 de uma cianobactéria,

ilustrações Abiuro

Marcos de Oliveira


que leva o nome científico de Nostoc ellipsosporum, em pesquisas do Instituto Nacional de Câncer (NCI, na sigla em inglês) e dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos. As cianobactérias são bactérias azuis e chamadas erroneamente de algas azuis. Pesquisadores dos NIH e da Universidade de Londres, na Inglaterra, idealizaram um gel com a cianovirina para ser aplicado antes das relações sexuais. O princípio ativo inibe a replicação do HIV ao se ligar aos oligossacarídeos (açúcares) do vírus. “A cionovirina-N está no estágio de desenvolvimento pré-clínico, portanto ainda não foi testada em seres humanos”, diz o pesquisador Barry O’Keefe, vice-chefe de biologia molecular do laboratório de alvos moleculares do NCI. Ele liderou um estudo publicado em 2003 que demonstrou a atividade da proteína também contra alguns vírus da gripe (influenza A e B) e participa dos estudos para o desenvolvimento da cianovirina. “Falta um meio comercialmente viável, de baixo custo, de produção em larga escala da cianovirina-N, e as plantas são um bom caminho para esse fim”, diz O’Keefe. Obter a proteína em grande quantidade foi a dificuldade inicial dos pesquisadores norte-americanos logo depois dos estudos laboratoriais que indicaram as atividades contra alguns tipos de vírus. Os NIH tentaram a produção via DNA recombinante, em que o gene codificador da proteína é inserido no genoma de outra bactéria mais fácil de cultivar, a Escherichia coli, para a posterior extração da substância. Mas a produção foi baixa e se mostrou economicamente inviável. A solução encontrada pelo pessoal dos NIH, liderado por O’Keefe, foi procurar o professor Elíbio Rech, da Embrapa, coordenador do grupo brasileiro que havia depositado uma patente no exterior, de uma técnica para inserção de genes em soja, e tinha experiência no desenvolvimento de culturas transgênicas. “Os norte-americanos nos procuraram em 2007 e fizemos a parceria. Eles nos repassaram a sequencia genética codificadora do gene que inserimos no genoma de uma variedade de soja da Embrapa, a 10-16. E deu certo, já temos as sementes das plantas engenheiradas por nós produzindo a cianovirina”, diz Rech. Eles isolaram o princípio ativo da soja. O ensaio viral para a confirmação da ação da cianovirina produzida pela Embrapa foi feito pESQUISA FAPESP 206  z  63


Isolamento e purificação produção da soja transgênica

produção do medicamento

1 Cianobactérias Nostoc ellipsosporum

DNA da cianobactéria

Gene produtor da cianovirina

o princípio ativo do medicamento está pronto para

cianobactéria Nostoc

seguir para a formulação e

ellipsosporum, em outros

produção de um gel ou spray

organismos os pesquisadores sequenciaram a bactéria codifica a proteína

Conhecendo o gene,

Depois de isolado e purificado,

cianovirina, isolada da

para verificar qual gene

2

5

Para introduzir a proteína

é possível por técnicas

4

Obtidas as sementes transgênicas passa-se ao processo de purificação da cianovirina, feito com a interação de

biotecnológicas

uma espécie de suco de soja com resinas

introduzi-lo no

específicas que fazem a separação

genoma da soja

das proteínas contidas no vegetal

DNA da cianobactéria

extração da cianovirina

3

Cianovirina e outros componentes

DNA da soja

Resina

Depois da verificação da inserção e ativação do gene, novas sementes de soja transgênica

Cianovirina purificada

Semente de soja modificada geneticamente

são produzidas para iniciar uma plantação em estufa

Soja transgênica fonte  Elíbio rech/embrapa

2g

é o total do medicamento extraído a partir de 1 kg de soja. A meta é extrair 5 g

64  z  abril DE 2013

pelo professor Amilcar Tanuri, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e também no laboratório de O’Keefe, nos Estados Unidos. E o resultado foi positivo.

O

desafio atual é melhorar o processo de extração da proteína, purificando quantidades maiores da cianovirina das sementes de soja. “Nossos resultados apontaram a presença de 10 gramas (g) da proteína por quilo de sementes frescas. Sabemos que não podemos tirar os 100% de fármaco do grão da leguminosa porque é normal que ocorram perdas no processo de purificação. Até agora já atingimos os 20%, ou 2 g, e nossa meta é atingir 50%”, diz Rech. O processo de purificação de proteína é trabalhoso, exige várias fases. No caso da Embrapa, a purificação está sendo realizada com resinas. Conforme o óleo de soja passa por um processo semelhante a uma filtração em que as resinas fazem o papel de filtros, as proteínas contidas na soja vão se dissolvendo, inclusive a cianovirina.

“Nossa intenção é produzir uma quantidade suficiente da proteína para testar o principio ativo em macacas nos Estados Unidos, e posteriormente em seres humanos”, explica Rech. O propósito do trabalho dos NIH, da Universidade de Londres e do Conselho para a Pesquisa Científica e Industrial (Csir Biosciences) da África do Sul, que são grupos que participam da pesquisa, é levar o gel para o continente africano, onde a transmissão de Aids ainda é grande. A produção da cianovirina também está sendo testada em plantas de tabaco na Inglaterra, na Universidade de Londres, e nos Estados Unidos. “No tabaco, o medicamento não está apenas nas sementes, mas se expressa na planta toda. Na África, sob a liderança da pesquisadora Rachel Chikwamba, do Csir, os experimentos também seguem o caminho de produzir a cianovirina em soja e em tabaco, mas ainda não obtiveram sucesso”, diz Rech. Outra conquista da Embrapa em Brasília foi o desenvolvimento de algumas linhagens de soja transgênica que produzem em suas células o fa-

infográfico Ana paula campos

Proteína com atividade anti-HIV é extraída de bactéria e introduzida na soja


tor IX de coagulação, um componente existente no sangue humano cuja falta é uma das causas da hemofilia, doença genética em que a pessoa sofre problemas na cicatrização e na contenção de hemorragias. Ele é produzido atualmente de plasma sanguíneo, a partir do sangue doado nos hospitais, ou em cultura de células de camundongos por meio da inserção no genoma do roedor do gene que codifica a proteína do fator IX. “Há um gargalo também no desenvolvimento de siste-

O futuro dos métodos de produção à base de plantas é muito promissor para os biofarmacêuticos

Plantas de soja transgênica com a proteína cianovirina em estufa da Embrapa, em Brasilia

mas de purificação mais eficientes e produtivos”, diz Rech. “Terminamos essa soja com fator IX no ano passado depois de cinco anos, testamos a molécula presente nas sementes e agora repassamos o material para a Fundação Hemocentro de Ribeirão Preto [da Universidade de São Paulo (USP)], parceira do projeto, para a sequência da fase de purificação da molécula.” “Recebemos 360 g de soja liofilizada transgênica e já foram feitos os testes que mostram a presença dessa proteína, o fator IX. Agora, como assumi o cargo de professora do Departamento de Genética da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, esses estudos estão sob a coordenação dos professores Dimas Tadeu Covas e Lewis Joel Greene, do Hemocentro de Ribeirão Preto”, diz a bióloga Aparecida Maria Fontes, que era pesquisadora do Hemocentro e

parceira na pesquisa. “A produção de fator IX em planta é muito importante porque, além de não se utilizar o material dos bancos de sangue que é escasso, cria-se uma alternativa com outro veículo de produção. Até o momento, a única molécula do fator IX produzida com técnicas biotecnológicas é elaborada em células de hamsters”, diz Aparecida. Em todas as pesquisas e mesmo em futuras plantações de soja transgênica, que vão produzir medicamentos, são levadas em conta várias iniciativas de biossegurança. “As plantas são produzidas sob contenção, em casas de vegetação [estufas] totalmente teladas. Isso acontece para evitar situações que são até muito difíceis de acontecer como, por exemplo, que um pássaro pegue uma semente e leve para outro lugar onde a soja germine e alguém possa comer as sementes. Não é veneno, mas devemos lidar com essas plantas como fonte de medicamento, de forma diferente da soja usada na alimentação. As plantações futuras também deverão ser cercadas, de modo a que nenhum estranho tenha acesso”, diz Rech.

E

ntre as vantagens da geração de fármacos em plantas estão os custos mais baixos, com produção de larga escala e também com a segurança se comparada com células humanas, fungos, bactérias e animais. “Também é mais fácil de manipular o produto agrícola. A vantagem da soja ou de outro vegetal é que podemos colher e estocar”, diz Rech. Em um artigo publicado na revista Nature em 2012 (10 de maio) na seção News in Focus, que comentou a aprovação para uso comercial do medicamento para doença de Gaucher produzido com cenouras, o autor, Amy Maxmen, diz que o Elelyso, ou Uplyso, remédio aprovado pela FDA, pode ser vendido por 75% do valor do medicamento tradicional, o Cerezyme, produzido com células de hamsters. O tratamento tradicional pode custar até US$ 300 mil por ano por paciente. Maxmen informa que o mercado global de fármacos de produtos biotecnológicos alcançou a marca de US$ 149 bilhões em 2010. “O futuro dos métodos de produção à base de plantas é muito promissor para os biofarmacêuticos. É um momento muito emocionante para quem trabalha com esse tipo de pesquisa”, diz O’Keefe à Pesquisa FAPESP. “Elibio Rech e seus colegas na Embrapa fazem parte de uma indústria crescente de grande importância para o futuro.” n

Artigos científicos

embrapa

O’Keefe, B.R. et al. Potent Anti-Influenza Activity of Cyanovirin-N and Interactions with Viral Hemagglutinin. Antimicrobial Agents and Chemotherapy. v. 47, n. 8, p. 2.518-25. ago. 2003. Rech, E.L. et al. High-efficiency transformation by biolistics of soybean, common bean and cotton transgenic plants. Nature Protocols. v.3, n. 3, p. 410-18. fev. 2008.

pESQUISA FAPESP 206  z  65


Fungos isolados de manguezais paulistas cultivados em laborat贸rio do Instituto Butantan


QUÍMICA y

Prata biológica Nanopartículas feitas a partir de fungos são testadas com sucesso em tecidos antibacterianos e em ferimentos Dinorah Ereno

fotos  léo ramos

R

esponsáveis pela decomposição de substâncias orgânicas na natureza e por contaminar alimentos e produtos industrializados, os fungos podem ser encontrados em diversas formas, cores e dimensões, que abrangem desde os cogumelos a formas microscópicas. Presentes em vários processos industriais de fermentação, esses microrganismos também são capazes, por meio de um processo químico mediado por suas enzimas, de produzir nanopartículas de prata biológicas com potencial para tornar tecidos – como lençóis, fronhas e aventais usados em hospitais – com propriedades antibacterianas, para uso como revestimento de azulejos e no tratamento de micoses de unhas e de ferimentos causados pela leishmaniose cutânea. Desde 2003, os professores Nélson Duran, coordenador do Laboratório de Química Biológica, e Oswaldo Luiz Alves, coordenador do Laboratório de Química do Estado Sólido da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), dedicam-se, entre outras linhas de pesquisa, a estudar processos e usos que envolvem esses seres unicelulares. “O efeito das nanopartículas de prata biológicas no tratamento de feridas causadas pela leishmaniose cutânea é muito

melhor do que com o antifúngico comercial de referência, como mostra pesquisa realizada com a colaboração da professora Bartira Rossi-Bergmann, do Instituto de Biofísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro”, diz Duran, que também é professor visitante do Centro de Ciências Naturais e Humanas da Universidade Federal do ABC, em Santo André. Nos testes foram comparados os efeitos do tratamento com nanopartículas de prata obtidas pelos métodos químico e biológico com o antifúngico comercial Anfotericina B. “Nosso sistema, o biológico, é cerca de 300 vezes mais eficiente do que o antifúngico utilizado nos tratamentos convencionais e três vezes mais do que a nanopartícula obtida pelo método químico”, diz Duran. Nos experimentos feitos com fungos que atacam as unhas, principalmente as dos pés, os resultados também foram bastante promissores. A próxima etapa da pesquisa para as micoses de unhas serão os testes clínicos, que ficarão a cargo de pesquisadores da Faculdade de Medicina da Unicamp. Os fungos utilizados são da espécie Fusarium oxysporum, causadora da fusariose, doença que faz a planta murchar e ataca culturas agrícolas. As primeiras cepas foram obtidas do banco de pESQUISA FAPESP 2XX  206  z  67


Microrganismos selecionados possuem enzima capaz de transformar prata em nanopartículas

1

preparo do Fungo

Filtrado fúngico

Incubação 28oC

1 semana

72 horas

Fungo

Filtração Biomassa de fungos

Biomassa do fungo + Água destilada estéril Os fungos são

Após esse período são colocados

Em seguida é feita

cultivados em placa

em água destilada estéril para

uma filtração para

de Petri durante

extração de enzimas, proteínas

separar a biomassa de

uma semana

e compostos extracelulares

fungos da parte líquida

2

produção das nanopartículas Pontos pretos: nanopartículas de prata

Nitrato de prata [AgNO3] Reação de redução (ganho de elétrons)

24 horas

Enzima 40 nm

Filtrado fúngico [fungos+ enzimas] A prata reúne-se O nitrato de prata é

As enzimas e compostos

em aglomerados

adicionado ao filtrado

como as quinonas são

de átomos, formando

fúngico, que tem em

responsáveis pela reação

as nanopartículas de

sua composição

de redução em que os íons

prata, caracterizadas

enzimas e outros

da prata (Ag+) ganham

pelo tamanho uniforme

compostos orgânicos

elétrons e tornam-se Ag0

e estabilidade

3

esterilização de tecidos Proteína

Nanopartícula de prata As nanopartículas de prata são

malha de tecido

Bactéria

isolados de manguezais

Reação com enxofre

recobertas por proteínas extracelulares do fungo, o que

Ação bactericida da prata

lhes confere alta atividade

Ao entrar em contato com a bactéria,

antimicrobiana, alta estabilidade

as nanopartículas de prata penetram

e maior aderência às superfícies

em seu interior e reagem com

onde são aplicadas como agentes

elementos celulares compostos por

antimicrobianos, como em tecidos

grupos de enxofre, produzindo a morte celular do microrganismo

fonte Unicamp

68  z  abril DE 2013

Fusarium do microbiólogo João Lúcio de Azevedo, professor aposentado da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP) em Piracicaba. “Fizemos testes para selecionar as cepas com potencial químico para transformar o íon prata [ganho de elétrons] em prata metálica, processo que resulta na formação das nanopartículas”, diz Alves. Enzimas presentes no fitopatógeno, como a nitrato redutase, são responsáveis por essa transformação química. “Em alguns casos as condições estão presentes no fungo, mas em vez de nanopartículas monodispersas há a formação de grandes agregados de partículas”, relata. A partir da seleção dos fungos eles são cultivados até atingir o tamanho ideal, depois a biomassa fúngica é incubada em água destilada para extrair do fungo enzimas, proteínas e compostos químicos extracelulares. É feita então uma filtração, para separar a biomassa da parte líquida. Em seguida adiciona-se o nitrato de prata, fase em que ocorre o processo de redução química, com a formação das nanopartículas. Pela técnica de espectroscopia de absorção na região do ultravioleta visível é possível observar a formação da prata metálica. “A vantagem do método biológico em vez do químico é que o fungo deixa uma parte de suas proteínas sobre a superfície das nanopartículas, o que lhes confere características diferenciadas, a exemplo de maior aderência a tecidos para torná-los antibacterianos.” Os pesquisadores testaram a prata biológica impregnada em tecidos de algodão e poliéster em contato com colônias de bactérias Staphylococcus aureus, presentes em ambientes hospitalares e responsáveis pelas infecções. “Após 30 lavagens, as propriedades antibacterianas do tecido permaneceram pouco alteradas”, diz Alves. Um outro estudo feito no Instituto Butantan, coordenado pela professora Ana Olívia de Souza, do Laboratório de Bioquímica e Biofísica, também testa a propriedade antimicrobiana das nanopartículas de prata incorporadas em tecidos. Nesse caso os fungos utilizados são da espécie Aspergillus tubingensis e Bionectria ochroleuca, isolados de manguezais do estado de São Paulo durante um projeto financiado pela FAPESP e coordenado pelo professor Itamar Soa-

infográfico ana paula campos ilustrações  alexandre affonso

Fungos habilidosos


1

1 Microscópio eletrônico de transmissão no laboratório da Unicamp 2 Fungo em meio líquido da coleção do Instituto Butantan

res de Melo, da Embrapa Meio Ambiente, com sede em Jaguariúna, do qual Ana Olívia participou. “Dentre as cepas utilizadas no estudo, 15 fungos mais interessantes do ponto de vista biotecnológico foram selecionados e avaliados no laboratório do Butantan”, diz Ana Olívia, orientada no doutorado pelo professor Duran. Após a triagem inicial, cinco cepas foram escolhidas. A etapa posterior de avaliação da capacidade de formação das nanopartículas e se elas apresentavam atividade antimicrobiana foi desenvolvida com apoio da FAPESP dentro do programa Biota, que estuda a biodiversidade brasileira. Uma nova seleção resultou na escolha de dois fungos. “Fizemos a caracterização físico-química das nanopartículas obtidas a partir destes fungos para verificar se tinham tamanho uniforme, requisito importante para incorporação da prata em tecidos de algodão e poliéster ou materiais plásticos”, diz Ana Olívia. Para a pesquisadora, além dos tecidos com atividade antimicrobiana para uso hospitalar, um grande mercado para as nanopartículas de prata biológicas são os materiais plásticos para uso doméstico.

nesse estudo que a prata, mesmo usada isoladamente no tratamento, ou seja, sem antibióticos, funciona muito bem”, diz Duran. As duas pesquisas tiveram a participação dos professores Marcelo Brocchi, do Instituto de Biociências, e Ljubica Tasica, do Instituto de Química, ambos da Unicamp, Simone Picoli, da Universidade Feevale, de Novo Hamburgo (RS), Gerson Nankazato, da Universidade Estadual de Londrina (PR), Priscyla Marcato, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP de Ribeirão Preto, e do professor indiano Mahendra Rai, da Universidade de Amravati, que está na Unicamp. Pioneiros nos estudos das nanopartículas de prata biológicas no Brasil, Duran e Alves iniciaram essa linha de pesquisa na mesma época em que surgiram os primeiros trabalhos na área na Índia. Em vez de fungos, os indiaProteínas dos fungos tornam nos usam plantas paas nanopartículas de prata ra obtenção da prata, utilizada para commais aderentes aos tecidos bater principalmente pragas na agricultura. Agora os pesquisadores se preparam para Os pesquisadores da Unicamp foram o aumento da produção dessas nanoparalém da preparação das nanopartículas e tículas em planta-piloto. Outra novidafizeram um estudo enzimático de fungos de no Instituto de Química é a integraselecionados. “Separamos as enzimas e ção dos dois laboratórios – de Química conseguimos construir nanopartículas Biológica e do Estado Sólido – em um iguais às fabricadas pelo microrganis- só, chamado NanoBioss. A proposta de mo”, diz Duran. O artigo “Mechanistic integração foi aprovada em fevereiro aspects of biosynthesis of silver nano- pelo Ministério da Ciência, Tecnologia particles by several Fusarium oxysporum e Inovação, como parte do SisNano – sisstrains”, publicado em 13 de julho de tema de nanotecnologia nacional. “Como 2005 no Journal of Nanobiotechnology e laboratório associado, vamos colocar o de acesso aberto, contabiliza mais de 30 conhecimento e técnicas que dominamil downloads. Eles também estudaram mos a serviço da indústria e da academia a propriedade antibacteriana da prata, brasileira”, diz Alves. n ou seja, como o metal destrói bactérias. A bactéria escolhida foi a Escherichia coli. Com um microscópio eletrônico de Projeto Utilização de fungos de manguezais na biossíntese de transmissão, os pesquisadores observananopartículas de prata e aplicação na produção de ram quando as nanopartículas de prata tecidos antimicrobianos (nº 10/50186-5); Modalidade começaram a atuar sobre a superfície da Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa – Programa Biota; Coord. Ana Olívia de Souza – Instituto Butantan; Invesbactéria, depois se agruparam ocupando timento R$ 248.424,03 (FAPESP). toda a sua volta e por último penetraram no seu interior e produziram a sua morte. Artigos científicos Em outra pesquisa foi avaliada a ativiMARCATO, P.D. et al. Biogenic silver nanoparticles: andade das nanopartículas biológicas com tibacterial and cytotoxicity applied to textile fabrics. isolados de enterobactérias – causadoras Journal of Nano Research. v. 20, p. 69-76. 2012. de infecções no trato urinário e na corRODRIGUES, A.G. et al. Biogenic antimicrobial nanorente sanguínea, além de pneumonias – particles produced by fungi. Applied Microbiology and resistentes a antibióticos. “Comprovamos Biotechnology. v. 95, p. 1-8. 2012. 2

pESQUISA FAPESP 206  z  69


agricultura y

Lavoura lucrativa Pequena empresa de automação agrícola de São Carlos ganha reconhecimento internacional Yuri Vasconcelos

O

Brasil se prepara para colher neste ano a maior safra de grãos de sua história. Mas essa não é a única boa notícia que vem do campo. A empresa de automação agrícola Enalta, com sede em São Carlos, no interior paulista, foi eleita uma das 50 companhias mais inovadoras do mundo pela revista norte-americana de tecnologia Fast Company. Única representante nacional na lista, que é encabeçada pelas multinacionais Nike e Amazon, a Enalta ficou na 43ª posição, à frente de gigantes como Microsoft (48º) e Tumblr (50º). No ranking setorial da América do Sul, a empresa surge na primeira posição. A Enalta, segundo a revista Fast Company, garantiu a posição por “apoiar a indústria de biocombustíveis do Brasil, ao lançar sensores e softwares de GPS que monitoram o plantio e a irrigação, proporcionando uma colheita mais rica aos agricultores”. Este é o segundo ano consecutivo que o Brasil está presente no ranking, elaborado anualmente. Em 2012, a start-up Bug Agentes Biológicos, de Piracicaba (SP), ficou em 33º lugar (ver Pesquisa FAPESP nº 195). “Nos últimos dois anos, somos reconhecidos como uma das empresas que

70  z  abril DE 2013

Computadores de bordo, sensores e sistemas instalados em máquinas agrícolas permitem um maior controle da produção

mais crescem no país. Nossa meta é lançar duas soluções no mercado por ano”, diz o engenheiro Cléber Manzoni, dono da empresa. Criada em 1999, a Enalta é uma das pioneiras do ramo de automação agrícola na América Latina. É especializada no desenvolvimento de ferramentas de otimização de processos produtivos e softwares de gestão para a agricultura que ajudam a elevar a produtividade das lavouras. O foco é o setor sucroalcooleiro, mas a empresa também fornece aparelhos para a indústria florestal. Fazem parte de seu portfólio controladores e pilotos automáticos para agricultura de precisão e computadores de bordo de máquinas e veículos agrícolas. Essas tecnologias promovem mudanças nos processos de plantio, cultura, corte, colheita e transporte de diversas culturas. Para o agrônomo José Carlos Hausknecht, diretor da consultoria MBAgro, de São Paulo, as inovações da Enalta podem ajudar a reduzir custos e perdas no campo. “A automação é importante principalmente na cultura da cana, onde, historicamente, o grau de mecanização é baixo”, diz. Segundo Manzoni, os produtos comercializados por sua empresa podem resultar em ganhos de produtividade de até 15%.

Confiante no aumento da demanda do setor sucroalcooleiro por seus produtos, a Enalta estima faturar R$ 15,8 milhões neste ano, um aumento de 30% sobre os R$ 12,2 milhões de 2012. Cerca de 10% do faturamento vem da venda de produtos para clientes no exterior, notadamente a Colômbia. Um indício de que a inovação está na base do crescimento da companhia é o fato de 60% da evolução da receita em 2012 ter vindo de produtos lançados no final de 2011. A empresa calcula investir R$ 2,5 milhões na atividade de pesquisa e desenvolvimento neste ano, o equivalente a 16% do faturamento previsto para o período. Grandes empreendimentos de cana-de-açúcar do país, como Odebrecht Agroindustrial, Grupo São Martinho e Grupo Nova América, fazem parte do portfólio de clientes da companhia, composto por quase 60 empresas. O carro-chefe da Enalta é o computador de bordo EES (Enalta Embedded System), que permite a gestão de máquinas agrícolas. Quando acoplado ao sistema E-manneger, também fabricado por


Enalta em números Empresa quer crescer 20% neste ano e investir 16% do faturamento em P&D

18

30%

10% Produtos integram seu portfólio

É a previsão de crescimento neste ano

Da receita vem da venda a clientes em outros países

2,5

R$

15%

eduardo cesar

Milhões é o investimento previsto em P&D em 2013

ela, o equipamento melhora a performance produtiva do corte, do carregamento e do transporte de matéria-prima para a agroindústria. A leitura de dados de mais de 20 sensores instalados em tratores e colheitadeiras permite que o agricultor trace um mapa da produtividade do canavial. Um de seus mais recentes produtos é um software de comando de voz que alerta o motorista do caminhão sobre pontos críticos das vias de transporte, evitando acidentes e elevando os indicadores de segurança da atividade agrícola. Esse aparelho é usado em veículos de transporte de mudas de cana, de vinhoto (líquido que sobra do processamento da cana usado na irrigação dos canaviais) e da cana colhida no campo. avaços estratégicos

O sucesso da Enalta se deve, em larga medida, às parcerias estabelecidas com universidades, como a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), da qual ela licenciou uma patente de uma balança de pesagem idealizada na Faculdade de Engenharia Agrícola para uso no sistema de produtividade de cana da empresa. Em outra parceria, com a Embrapa Instrumentação Agropecuária, de São Carlos, foi

12,2

R$

56 Milhões foi o faturamento em 2012

desenvolvido um sistema de irrigação de precisão. Os financiamentos das agências de fomento à pesquisa também tiveram importância decisiva. “Em 2001, apenas dois anos após a criação da Enalta, conseguimos mudar nossa sede de Catanduva para a incubadora Fundação Parque de Alta Tecnologia de São Carlos (ParqTec) porque tivemos a aprovação de um projeto Pipe [Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas da FAPESP]. O objetivo era a criação de um sistema de gestão de pulverização para lavouras. Esse apoio foi fundamental para que a empresa se consolidasse no mercado”, diz Manzoni. Depois a Enalta teve mais quatro projetos Pipe. No total, a FAPESP investiu mais de R$ 1,2 milhão na empresa. A Enalta também recebeu recursos do Programa de Subvenção Econômica da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) do governo federal para um projeto de fertilização do solo de canaviais por meio da aplicação controlada de vinhoto. Em 2010, a empresa recebeu um aporte financeiro do Fundo Criatec, especializado em capital semente e destinado a empresas emergentes e inovadoras. “A Enalta é a segunda empresa investida do nosso fundo a entrar na lista de empre-

Clientes ativos

É o ganho de produtividade das lavouras proporcionado por seus softwares e sistemas

sas inovadoras da Fast Company, ambas no segmento de tecnologia agrícola. É um reconhecimento claro de que o Brasil não é uma potência agrícola apenas pelos nossos recursos naturais, mas também pela capacidade de nossos empreendedores levarem inovações de alto impacto ao campo”, destaca Francisco Jardim, representante do Fundo Criatec no conselho de administração da Enalta. n

Projetos 1. Sistema para gerenciamento da atividade "pulverização" na agricultura com tecnologia de aquisição automática de dados no campo (nº 1999/11662-5); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas; Coord. Cléber Manzoni/Enalta; Investimento 203.105,57 (FAPESP). 2. Desenvolvimento de plataforma tecnológica para irrigação de precisão em culturas perenes (nº 2003/079985); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas; Coord. André Torre Neto/Embrapa; Investimento R$ 399.054,49 (FAPESP). 3. Desenvolvimento de um monitor de produtividade de cana-de-açúcar para obtenção de mapas de produtividade para colhedoras autopropelidas (nº 2004/08777-5); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas; Coord. Domingos Guilherme Cerri/Unicamp; Investimento R$ 290.230,40 (FAPESP). 4. Desenvolvimento de um sistema de monitoramento de corte, carregamento e transporte de cana-de-açúcar para gerenciamento de frota (nº 2006/56606-0); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas; Coord. Domingos Guilherme Cerri/Unicamp; Investimento R$ 328.866,32 (FAPESP).

pESQUISA FAPESP 206  z  71


Parede remanescente de sede de fazenda do século XVIII em sítio localizado durante a construção de um prédio no Itaim Bibi, em São Paulo

72  z  abril DE 2013


empreendedorismo y

Negócios do passado Cresce a participação da arqueologia empresarial em canteiros de obras de infraestrutura Bruno de Pierro

zanettini arqueologia

D

urante muitos anos, a arqueóloga Solange Caldarelli foi capaz de dedicar horas discutindo o significado de lascas encontradas em um sítio pré-histórico, algo que raramente faz agora. O tempo que dispunha como pesquisadora no extinto Instituto de Pré-História da Universidade de São Paulo (USP) e no Museu Paraense Emílio Goeldi, ao longo de 10 anos, foi tomado por outras tarefas, mais gerenciais, quando desistiu da vida acadêmica em 1988 e voltou-se para o então incipiente mercado da arqueologia aplicada ao licenciamento e avaliação ambiental. Há mais de duas décadas, Solange dirige a Scientia Consultoria, que conta com 200 funcionários espalhados pelo país e grandes clientes dos setores de energia elétrica, logística e mineração. “Eu tinha uma visão muito acadêmica e a arqueologia aplicada se revelou um mundo novo, pelo qual me apaixonei”, declara. Se não fosse pela via empresarial, talvez ela jamais tivesse a oportunidade de explorar mais de 100 sítios arqueológicos que foram identificados no local em que é construída a usina hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, e onde a empresa atua há três anos. O exemplo de Solange serve para ilustrar o atual momento da arqueologia brasileira. Movimentada pelo desenvolvimento econômico do país nas últimas duas décadas, a arqueologia empresarial vive um período sem precedentes, marcado pela demanda crescente de mão de obra especializada e sedutores contratos firmados com gigantes do setor de infraestrutura. Sob o apelido de arqueologia de contrato, ou preventiva, a atividade é praticada por mais de 50 empresas e é responsável por 95% dos projetos arqueológicos registrados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), órgão encarregado de fiscalizar o setor. Somente 5% dizem respeito a pesquisas em universidades. “Hoje, boa parte dos arqueólogos entram na profissão de uma maneira diferente de quando comecei”, analisa Solange.

É o caso de Charles da Silva de Miranda, que, após se formar em história em 2006, teve dificuldades para encontrar emprego em seu ramo e partiu para a arqueologia. Seguindo a direção dos ventos, Charles buscou no promissor mercado da arqueologia de contrato um novo caminho para a profissão. Em 2008, fundou a Archeos Consultoria, especializada em consultoria arqueológica para a licença ambiental. Os clientes vão de estaleiros e empresas de celulose a prefeituras, como a do município de Bagé (RS), onde será construída uma barragem. “Hoje o arqueólogo tem que estar preparado para lidar com o mercado, saber elaborar um orçamento, gerir uma empresa, o que o desassocia daquele estereótipo do aventureiro”, conta Charles. A expansão da arqueologia no país remonta a 1986, quando uma resolução do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) determinou que a atividade fizesse parte dos estudos de impacto ambiental. Até então, ela era restrita à pesquisa acadêmica e somente o setor de energia elétrica era obrigado, por lei,

sítios arqueológicos no estado de são paulo*

Barretos São José do Rio Preto

n  Mais de 10 n  De 6 a 10

Ribeirão Preto

Piracicaba Campinas Jundiaí São José dos Itu Campos Sorocaba São Paulo Ubatuba Santos

Ilhabela

n  De 1 a 5 n Nenhum fonte  zanettini arqueologia  * Dados de 2010

pESQUISA FAPESP 206  z  73


Etapas do trabalho arqueológico 1

2

Licença prévia

Licença de instalação

1

2

3

diagnóstico

prospecção

monitoramento

Avaliação do potencial arqueológico da

Levantamentos em busca de vestígios

Acompanhamento durante o andamento

área do empreendimento e levantamento de

arqueológicos que estejam na subsuperfície

da obra, com risco de se identificar novos

dados de pesquisas feitas sobre a região

do solo

sítios no local

a contratar arqueólogos de universidades ou museus para resgatar materiais de sítios que pudessem sofrer danos em obras, principalmente de hidrelétricas. A nova medida possibilitou o início da profissionalização da atividade, que ainda aguarda pela regulamentação. Em 2003, por exemplo, foram registradas 265 portarias no Iphan, que são pedidos de permissão para exploração de sítios arqueológicos. Em 2011 eram mais de mil. Outro indicador do crescimento da arqueologia de contrato é a retomada da graduação em arqueologia, a partir de 2005. Atualmente são 12 cursos espalhados pelo país. Solange explica que, diferentemente da pesquisa básica, a “arqueologia de salvamento” precisa conciliar etapas típicas do trabalho arqueológico, que também envolvem monitoramento e atividades de educação patrimonial, como palestras para a comunidade (ver infográfico).

“Algumas empresas promovem um retrocesso quando somente catam caquinhos”, diz Rosana Najjar

Como o calendário do cliente é sempre apertado, a qualidade do trabalho realizado por algumas empresas ainda é questionada por muitos especialistas, embora, nos últimos anos, o Iphan venha exigindo dos projetos ligados a empreendimentos o mesmo rigor da pesquisa científica. A arqueologia praticada na academia geralmente parte de um problema, que pode ser resolvido a longo prazo. Algumas linhas de pesquisa chegam a durar

projetos arqueológicos autorizados pelo iphan 1.000 800 600 400 200 0

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fonte iphan

74  z  abril DE 2013

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décadas, preocupadas apenas com questões de fundo científico. Já a arqueologia empresarial, além dos prazos mais curtos, está atrelada a um contexto maior, que envolve os meios biótico, cultural, social e econômico. “O problema é que o arqueólogo ainda é confundido com o caçador de dinossauros”, afirma outro pioneiro da arqueologia empresarial, Paulo Zanettini, diretor da Zanettini Arqueologia. Essa distorção, diz ele, dificulta a compreensão da realidade do trabalho arqueológico, que deixou de ser “uma arqueologia pela arqueologia”. Paulo argumenta que a diferença entre a arqueologia acadêmica e a de contrato está basicamente na remuneração do processo. Enquanto a primeira é fomentada por alguma instituição, a outra sobrevive dos contratos que firma com empreendedores. “Dividir a arqueologia em duas é uma visão anacrônica”, critica. O mais adequado, portanto, é buscar a interação entre arqueologia empresarial e acadêmica. “O mercado foi e está sendo importante para o crescimento da arqueologia no país”, observa Gilson Rambelli,


3

Licença de operação

fotos 1, 2, 3 e 5 archeos consultoria  4 zanettini arqueologia  6 scientia consultoria

4

5

resgate

educação patrimonial

Início das escavações e análise dos materiais

Atividades educativas junto à comunidade

e das informações obtidas, para identificar

local, com divulgação em escolas,

em qual contexto se deu a sua produção

universidades e museus

presidente da Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB). Para ele, a atividade também possibilita que um pesquisador desenvolva, a partir do material coletado de um empreendimento, a investigação mais profunda no mestrado e no doutorado. Mas para Pedro Paulo Funari, professor do Laboratório de Arqueologia Pública da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ainda que o material seja usado para educação patrimonial e por estudantes, existem problemas com relação à continuidade dos estudos a longo prazo. “Para que os alunos façam uma pesquisa concreta, é preciso ter o contexto histórico suficiente”, afirma. Isso implica o retorno ao campo diversas vezes, algo impossível depois de iniciada a obra. “Nossa função é recuperar o conhecimento sobre sociedades do passado, com base na interpretação dos materiais, e não recuperar o maior número possível de elementos que estão num sítio”, rebate Solange. “Mas estamos de braços abertos para receber estudantes e nossos próprios pesquisadores são incentivados a aprofundar as análises na universidade”, diz ela.

visto apenas como um entrave para o empreendimento, e não como fonte para responder questões de uma pesquisa”, afirma. Em 2002, uma portaria do Iphan definiu como devem ser elaborados os projetos apresentados pelas empresas. O principal critério é que o documento esteja nos moldes de um projeto científico, ou seja, precisa expor claramente um problema e a metodologia que será usada para resolvê-lo . “Se abordarmos um sítio sem um norte, um objetivo, estaremos fazendo colecionismo, não arqueologia”, explica Rosana, que, depois da exigência, observou uma melhora significativa nos projetos, que devem ser enviados antes do início das obras. Paulo Zanettini reconhece os avanços da legislação brasileira. “Para que o trabalho do arqueólogo seja válido, os

resultados devem ser devolvidos para a sociedade, e isto inclui ida a congressos, publicação em periódicos, criação de programas educativos e divulgação na imprensa.” Como exemplo de maturidade da arqueologia em interação com o mercado, ele cita um programa desenvolvido no município de Caetité, no alto sertão baiano, com apoio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Contratada por um empreendimento, a empresa de Paulo encontrou 150 sítios na região, envolvendo sítios contendo utensílios lascados e manifestações de arte rupestre de mais de 6 mil anos. Também foram encontrados vestígios relacionados a comunidades tradicionais. Diante do material coletado a empresa dele passou um ano discutindo com a população local a construção de um museu, que será erguido este ano. “Não será um museu imposto e restrito à arqueologia, mas um espaço que guardará e discutirá o patrimônio da região”, completa. Em outro caso, a construção de um edifício numa região nobre da cidade de São Paulo foi iniciada sem passar pela devida avaliação, provocando danos a um sítio arqueológico. O fato chegou ao Ministério Público e a empresa de Zanettini foi contratada para fazer o laudo. Para compensar, o empreendimento foi obrigado a indenizar o Estado e o valor foi direcionado para a construção do novo museu de arqueologia da USP. “A arqueologia dentro de empreendimentos é um caminho sem volta, por isso é importante que ela possa reverter seus resultados para a comunidade e a pesquisa acadêmica”, avalia Rosana, do Iphan. n

qualidade dos projetos

Para Rosana Najjar, diretora do Centro Nacional de Arqueologia, ligado ao Iphan, é preciso incentivar as boas práticas entre as empresas que fazem o resgate de materiais arqueológicos, considerados bens da União. De acordo com ela, algumas empresas promovem um retrocesso quando somente “catam caquinhos”. “Em alguns casos, o sítio é

Escavação em um dos sítios arqueológicos onde é construída a usina de Belo Monte, no Pará

6

pESQUISA FAPESP 206  z  75


humanidades   artes y

O modernismo que veio do frio Exposição, acervo virtual e livro celebram centenário da primeira mostra de Lasar Segall no Brasil Maria Hirszman

E Lasar Segall, autorretratos tirados na máquina automática Photomaton, em Paris, c. 1928

m março de 1913, em um salão alugado na rua São Bento, nº 85, em São Paulo, acontecia a mostra de Lasar Segall, considerada por muitos como a primeira exposição de arte moderna do país. O artista russo tinha então apenas 22 anos de idade, veio ao Brasil para visitar irmãos que já viviam por aqui e aproveitou a ocasião para mostrar, em São Paulo e posteriormente Campinas, um amplo conjunto de trabalhos de cunho marcadamente influenciado pelo impressionismo alemão e pela pintura holandesa, que havia estudado no ano anterior, em visita aos Países Baixos. Apesar do distanciamento em relação à arte acadêmica, modelo com que o público paulista estava acostumado e que Segall já rejeitava, a mostra teve boa aceitação e 21 obras – ou cerca da metade dos trabalhos expostos – foram vendidas. Para celebrar o centenário dessa recepção tranquila, que ajudou a pavimentar o caminho trilhado pelo artista que pouco tempo depois viria a desempenhar um papel central na história da arte brasileira, o Museu Lasar Segall programou

uma série de ações celebrativas, trazendo à luz tanto a obra consagrada do artista, com a exposição 50 obras do acervo, como seu perfil de colecionista, com a mostra e a divulgação virtual do Arquivo fotográfico Lasar Segall, bem como tornando acessível ao público seu vasto arquivo de documentos e correspondências. “Para nossa sorte, ele guardava tudo, deixando importantes documentos sobre a história da cultura e da arte, não apenas do Brasil, mas dos diversos lugares por onde passou”, afirma a pesquisadora Vera d’Horta, do Museu Lasar Segall, que desde 1986 trabalha com o arquivo de Segall e foi a responsável pela coordenação do processo de digitalização realizado recentemente e que pode ser consultado através da página do museu na internet (www.mls.gov.br). Até o momento já foram digitalizados quase 6 mil dos cerca de 10 mil documentos pertencentes ao banco de dados do museu. “É um trabalho sem fim”, reconhece a historiadora. Esse material está organizado em cinco diferentes grupos: correspondências, textos, impressos, documentos pessoais e


fotos divulgação

documentos de negócio. Uma primeira lista de autores presentes em todo esse material já está disponível e a intenção é permitir, em um futuro breve, a consulta também por meio de um índice de assuntos. Outros dois aspectos inovadores que estão sendo desenvolvidos nesse banco de dados e, espera-se, estejam disponíveis em breve são a possibilidade de visualização de imagens das obras mencionadas e o acesso à tradução dos materiais iconográficos. Isso é importante porque pode ajudar a localizar novas obras e os arquivos de Segall contêm um manancial de informações em diversos idiomas: russo, português, alemão e até hebraico e ídiche. O interesse por esse rico acervo já tem aumentado graças às novas ferramentas virtuais de pesquisa. Segundo Vera d’Horta, o número de pesquisadores já quadruplicou desde a entrada, sem lançamento oficial, do material na internet, e a tendência é que a repercussão, tanto nacional como internacionalmente, só se amplie. Trata-se de um arquivo vasto, diversificado, que supera em larga escala a mera função biográfica

ou de subsídio ao campo da história da arte. Há por exemplo entre os documentos coletados por Segall registros sobre a Rússia czarista; cartas de colegas que expressavam seu espanto diante do projeto do artista de visitar o Brasil; catálogos das exposições realizadas na Alemanha; correspondências com artistas como Kandinsky, Paul Klee, Otto Dix; ou o caderninho elaborado por sua viúva, Jenny Klabin, nas andanças e entrevistas que realizou em busca de material para a formação do acervo que viria a constituir o Museu Lasar Segall, instituição criada em 1967, 10 anos após a morte do pintor e da qual depende em boa medida o permanente interesse por sua obra. Um riquíssimo conjunto, que ganha ainda maior relevância se somado às 3 mil obras do acervo, que já foi quase integralmente restaurado e fotografado, e às 5 mil fotografias que ele coletou ao longo da vida – 500 das quais já podem ser consultadas por internet – e que foram pouco trabalhadas (www.museusegall.org.br/afls). As fotos, que também renderam uma nova publicação, são de cunho bastante variado.

Inauguração da Escola de Arte Lasar Segall, em São Paulo, em 1933. Da esquerda para a direita: Paulo Rossi Osir, Guilherme de Almeida, Hugo Adami, Vittorio Gobbis, não identificado, John Graz e Lasar Segall. Sentadas: Esther Bessel, Jenny Klabin Segall, Mussia Pinto Alves e Anita Malfatti

pESQUISA FAPESP 206  z  77


Lasar Segall e seus colegas da Academia de Dresden em uma das excursões de pintura ao ar livre, em 1911

Há desde registros anônimos, de obras do artista, até exemplos de trabalhos importantes de fotógrafos brasileiros, argentinos e europeus, como Hildegard Rosenthal, Annemarie Heinrich, Sasha Harnish, Benedito Junqueira e Hugo Erfurth. Sabe-se que Segall é autor de algumas dessas imagens, pois ele usava o registro fotográfico como fonte de soluções compositivas. Merece destaque algumas fotos marcantes, como o belo retrato do pintor quando jovem, vestido com típicas roupas russas, ou o registro de uma sessão de pintura ao ar livre com colegas da Academia de Dresden, em 1911, carregando nos ombros a modelo nua, numa espécie de manifesto visual dos princípios de liberdade e vanguarda em gestação no momento.

Jorge Schwartz, professor titular em literatura hispano-americana da Universidade de São Paulo (USP), que dirige o Museu Lasar Segall, considera-o como uma espécie de fênix do modernismo brasileiro, um artista que está permanentemente sendo reinventado, que volta sempre com força e prestígio em vários momentos da história da arte brasileira.

A

pontado como o principal mestre expressionista no Brasil, admirado como o autor de algumas das mais pungentes obras sobre o horror da guerra e do antissemitismo, investigado com afinco por ter desenvolvido um estilo absolutamente próprio e ao mesmo tempo em diálogo com a tradição da pintura, revisitando gêneros como o retrato, a natureza-morta e a paisagem – com um certo fascínio pelas possibilidades novas trazidas pela cena tropical brasileira – e dedicando-se a uma ampla gama de linguagens (pintura, escultura, gravura e desenho), Lasar Segall está entre os artistas mais vistos e estudados na cena brasileira. Os eventos em torno de sua obra se sucedem, sem grandes intervalos de tempo. Esse permanente intercâmbio com o público leigo e especializado acaba trazendo resultados interessantes para o trabalho de pesquisa do próprio museu, já que o contato com pesquisadores

Bananal Figura de homem com violino

Aldeia russa

Eternos caminhantes

Primeira guerra mundial

crise de 1929

1909

1913

1919

1925

Segall rompe com a

O artista realiza,

Funda a Secessão

Ano de seu

1928

academia, expõe

em março de 1913,

de Dresden.

casamento com

Volta à Europa,

em mostra da

sua primeira

Pertencem também

Jenny Klabin.

residindo em Paris

Secessão de Berlim.

exposição no Brasil,

ao grupo artistas

O artista já havia se

por quatro anos

Aproxima-se do

com itinerância

como Otto Dix e

mudado para o Brasil

impressionismo,

por São Paulo

Conrad Felixmüller

no final de 1923 e

que vê como

e Campinas

começa a investigar

uma “esperança

a paisagem brasileira,

de salvação”.

no que chama

Também se inspira

de “o milagre da

em Rembrandt

cor e da luz”

78  z  abril DE 2013


fotos divulgação

de todo o mundo permite preencher lacunas, que serão de grande utilidade para o projeto de realizar o catálogo raisonné do artista. Até o momento apenas Tarsila do Amaral e Cândido Portinari conseguiram ter toda sua obra repertoriada. O trabalho em relação à produção de Segall avança, apesar da carência de patrocínio para esse projeto. Dentre as descobertas recentes feitas pelo museu estão dois desenhos inéditos achados recentemente na Alemanha, além de pinturas em coleções particulares no Brasil. “Há muitas obras perdidas, que migraram de proprietário”, explica Schwartz. O museu também acaba de obter, graças a um empréstimo de longo prazo feito por uma coleção privada do Rio de Janeiro, a única gravura de Segall que ainda não possuía, datada de 1917. “É preciso renovar a iconografia mais conhecida”, acrescenta. Foi exatamente graças a esse trabalho de Sísifo, de busca em coleções privadas fora do Brasil, que foi possível recuperar uma das obras mais importantes do artista russo, tanto no que se refere à qualidade ímpar da tela como em seu enorme valor histórico. Trata-se da tela Eternos caminhantes, pintada pelo artista em 1919 – ano em que funda a Secessão de Dresden com nove artistas, entre os quais Otto Dix e Conrad Felixmüller –, e logo adquirida pelo Museu da Cidade de Dresden. A tela foi retirada desse acervo pelo governo nazista

e mostrada na célebre Exposição de arte degenerada realizada em Munique em 1937 para denunciar a suposta decadência da arte moderna e que exibia um total de 10 trabalhos de Dentre as Segall. Após a Segunda Guerra Mundescobertas dial a pintura foi localizada em uma coleção particular e trazida ao Brasil feitas pelo após a morte do artista, por iniciativa da viúva, Jenny Klabin Segall. museu estão A tela é uma representação extremamente sintética e geometrizada dois desenhos de um grupo em peregrinação, tem inéditos vínculos com outros trabalhos do período, como a gravura Mulheres erencontrados rantes, e evoca o tema do êxodo, da perseguição aos judeus, ao qual ele na Alemanha dará novos desdobramentos no futuro, seja por meio de representações de caráter mais afetivo e intimista, como Família ou Meus avós, seja por meio de protestos viscerais contra a guerra, como nas obras antológicas Pogrom e Navio de emigrantes, considerada pela crítica como uma espécie de Guernica brasileira. Em março de 2014 deverá participar de mostra que tentará reconstituir a Exposição de arte degenerada, na Neue Galery de Nova York. A mesma instituição deve apresentar em setembro um autorretrato de Egon Schiele, de

Maternidade Pogrom

Figurino de O mandarim maravilhoso

Paisagem crepuscular

segunda guerra mundial

1957

1931

1937

1954

Participa da

Tem 10 obras

Comemoração do

38ª exposição-geral

incluídas na

IV Centenário

de belas-artes,

Exposição de arte

de São Paulo.

no Rio, conhecida

degenerada,

Realiza cenários

como Salão

organizada

e figurinos para o

sem deixar

revolucionário

pelos nazistas

balé comemorativo

totalmente

em Munique

O mandarim

a figuração. Morre

maravilhoso

em 2 de agosto, de

Ao longo da década de 1950 realiza experimentações próximas ao abstracionismo,

problemas cardíacos

pESQUISA FAPESP 206  z  79


Acima, Lasar Segall em Dresden, em 1919, uma foto de Hugo Erfurth. Ao lado, o artista com sua escultura, da mulher Jenny, em mármore branco (Retrato de Jenny), em São Paulo, 1952

1912, recebido em comodato pela Associação de Amigos de Segall. Trata-se da única obra autenticada do artista no Brasil. Um dos mais importantes trabalhos do expressionismo construtivo de Segall, Eternos caminhantes é um dos destaques da exposição em cartaz na Vila Mariana, ao lado de outros trabalhos do artista, como Paisagem brasileira, Rua e Encontro.

E

ssa última tela, de 1924, tem uma importância dupla, já que testemunha de forma incontornável o interesse de Segall pela fotografia e o uso que ele fazia desse material também como instrumento de trabalho. Pertence ao acervo um retrato dele no dia de seu casamento com Margarete, sua primeira esposa, exatamente na mesma posição do rapaz da tela. O quadro, já pintado no Brasil, tem uma pequena mas simbólica diferença. Na pintura, o artista escurece sua pele, como numa espécie de climatização aos trópicos, cuja paisagem começou a seduzi-lo como motivo de trabalho logo após chegar pela segunda vez ao Brasil, em dezembro de 1923, desta vez de forma definitiva. Em 1927 naturaliza-se brasileiro e não mais deixa o país, a não ser por um período de estudos, entre os anos 1928 e 1932, em Paris. Se na estadia de 1913 Segall ainda era um jovem que tentava inventar seu próprio caminho mas ainda não havia descoberto a radicalidade expressiva das formas distorcidas e recortadas, dos traços sintéticos e familiares à arte primitiva, e das cores contrastantes e intensamente sombrias que vão marcar sua fase expressionista mais pura, quando desembarca por aqui já pos-

80  z  abril DE 2013

Projeto Sistematização e digitalização de documentos do Arquivo Lasar Segall (nº 2009/54777-0); Coord. Vera d’Horta/Museu Lasar Segall; Modalidade Programa Infraestrutura 6; Investimento R$ 105.459,89 (FAPESP).

fotos divulgação

suía um estilo próprio. E também já encontra o país em melhores condições de recepção de uma arte moderna mais radical. Afinal Anita Malfatti já havia pago o preço antes, com a mostra de 1917, pela ousadia de romper com o padrão de representação realista, sofrendo toda a virulência crítica de uma autoridade como Monteiro Lobato. Schwartz pondera, com certa ironia, que “se Segall tivesse trazido suas obras angulosas, dramáticas e de cromatismo intenso em sua primeira visita, teria salvo Anita. Mas na verdade foi ela que pavimentou o caminho para o Segall expressionista de 1923. Outros fatores, como o apoio de figuras da elite como o senador Freitas Valle, Olívia Guedes Penteado, seu casamento com Jenny Klabin e o fato de também já ter se dado o nascimento oficial da arte moderna no país, com o rito de celebração da Semana de 1922 (da qual nem Segall nem Tarsila do Amaral, dois de nossos artistas mais radicalmente envolvidos com as experiências modernistas, participam), tornam o caminho menos turbulento ao imigrante de origem judia. Ele conta também com o apoio decisivo – mesmo que um tanto solitário – de Mário de Andrade, único crítico à época a prestar atenção na produção vinda da Alemanha (ao contrário da maioria dos que escreviam e faziam arte no período, que tinham todas as atenções voltadas para a escola de Paris). A relação entre os dois, bem como a importância do diálogo entre Andrade e Portinari, é vital para compreender a vanguarda artística no Brasil dos anos 1920 e 30 e será tema de exposição a ser inaugurada em março do ano que vem no Museu Lasar Segall, com escala prevista para os Museus Castro Maya, no Rio de Janeiro. Além do talento e traquejo social, o artista contou com o empenho de sua família para montar uma instituição capaz de fomentar o interesse, a pesquisa e a divulgação de seu trabalho. n


ARQUIVO / AGênCIA ESTADO / AE

história y

O cineasta Nelson Pereira dos Santos durante a filmagem de Como era gostoso o meu francês (1971)

Revolução cultural à brasileira Nos anos 1950, cultura e política tiveram ligação de mão dupla que interessava a artistas e ao Partido Comunista Carlos Haag

N

a década de 1950, o Brasil se modernizava e partidos e movimentos de esquerda, bem como movimentos artísticos, acreditavam na possibilidade de uma revolução brasileira, nacional-democrática ou socialista. “Artistas e intelectuais tiveram um papel expressivo na construção da utopia de uma ‘brasilidade revolucionária’, que permitiria realizar as potencialidades de um povo e de uma nação”, diz Marcelo Ridenti, professor de sociologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Mas até hoje a compreensão dessa relação, entre política e cultura, é complexa e inclui nomes de peso do panteão cultural que foram comunistas, como: Jorge Amado, Nelson Pereira dos Santos, Caio Prado Jr., Nora Ney, Dias Gomes, Jorge Goulart e Di Cavalcanti, entre outros. “É um problema que não cabe numa equação simples que supõe a militância comunista de artistas e intelectuais como parte de um desejo de transformar seu saber em poder. Tampouco se pode supor que houvesse mera manipulação dos intelectuais pelos dirigentes do Partido Comunista Brasileiro [PCB]”, explica o professor, que analisou a questão no projeto pESQUISA FAPESP 206  z  81


Legitimidade

1

Artistas e intelectuais comunistas na consolidação do campo intelectual e da indústria cultural no Brasil. “Num momento como o atual, em que as pesquisas evitam a politização dos temas, é importante recuperar como cultura e política se aproximaram num período turbulento como aquele, entre os anos 1950 e 1970”, observa o pesquisador. Segundo Ridenti, vários campos artísticos e intelectuais consolidados a partir da década de 1950 só são pensáveis a partir das lutas em seu interior, em que os comunistas desempenharam um papel importante, por vezes levando os integrantes do PCB ou ex-militantes às posições de maior reconhecimento ou prestígio. Muitos mudaram de convicção política ao longo do tempo. A maioria fez uma autocrítica sobre a sua atuação naquele período, mesmo os que continuaram se identificando como de esquerda ou sendo comunistas. Houve também muita reclamação posterior de que o partido mantinha com eles uma relação “ornamental” ou “instrumental”, ou seja, apenas para angariar prestígio ou divulgar uma linha política, sem falar nas críticas sobre o despotismo da direção, pronta a vigiar o imaginário dos militantes. “Só em parte isso é verdade. Esses artistas só puderam conquistar posições a partir do histórico de militân82  z  abril DE 2013

1 Cena de O pagador de promessas, de Dias Gomes, em 1960 2 A cantora Nora Ney no aeroporto do Galeão em 1969 3 Jorge Amado recepciona Simone de Beauvoir e Sartre em 1960

cia organizada, que, assim, esteve longe de significar mera manipulação de seus artistas e intelectuais. Era uma relação de mão dupla”, observa o autor. “De fato, o partido tinha uma linha política estreita e dogmática, dava pouco espaço a seus intelectuais, quase não contribuía para pensar a especificidade da sociedade brasileira, era marcado pelo centralismo e por relações autoritárias. Mas havia contrapartidas que mantiveram os artistas e intelectuais no partido apesar de tudo isso”, fala Ridenti. Para ele, não se deve caricaturar a ação cultural do PCB nos anos 1950, um elemento expressivo constituinte da cultura brasileira. “A indústria cultural ainda não estava de todo estabelecida no país. Com a modernização, muitos artistas e intelectuais estavam em busca de um espaço

A organização no partido dava legitimidade a certos grupos e indivíduos que buscavam marcar posição (ou evitar perder prestígio) em suas atividades. “O grande exemplo foi Jorge Amado, que teve seu talento potencializado pela ligação com o PCB, cuja rede de contatos internacionais facilitou a publicação de seus romances em vários países. Por sua vez, ele emprestava o seu prestígio de escritor ao partido e acabou sendo eleito deputado pelo PCB na Constituinte de 1946”, conta Ridenti. No exílio na França, a partir de 1948, aderiu ao movimento internacional pela paz e ganhou notoriedade mundial. “Sem desmerecer o talento de Amado, isso não teria acontecido se ele não fosse ligado ao partido. Foi por meio dessa relação que ele teve acesso a uma rede de contatos em diversos países da Europa e viu seus romances traduzidos em vários idiomas em razão disso. O mesmo aconteceu com Nelson Pereira dos Santos, que foi para a França e outros países com apoio do PCB e pôde conhecer vários cineastas”, diz o pesquisador. Amado se transformou em divulgador do realismo socialista no Brasil e mesmo quando se afastou do PCB nunca rompeu oficialmente com os comunistas. “Ele saiu à francesa. Só ganhou autonomia como autor depois de Gabriela, cravo e canela (1958)”, fala Ridenti. As recompensas, porém, colocavam dilemas para os artistas, que testemunhavam as perseguições aos militantes dissidentes em escala internacional. “Eles também se inseriam nas redes comunistas como reprodutores do pensamento e da política produzida no centro, não como formuladores originais”, nota o autor. “Realmente, entre os anos 1940 e 1950, durante o realismo socialista, houve um grande controle do partido sobre os artistas e intelectuais brasileiros ligados ao

fotos  ARQUIVO / AGênCIA ESTADO / AE

que não fosse a Igreja ou o Estado, então as principais instituições organizadas nos tempos em que a universidade ainda estava em crescimento”, lembra. Na maioria vindos da classe média que se expandia com a modernização do país, esses intelectuais não cabiam em nenhum dos dois espaços. “O PCB foi uma chance de organização, um fórum de debate cultural e político, que permitia ter acesso a uma rede de revistas pelo Brasil e de contatos no exterior.”


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PCB. Mas, no geral, essa relação foi flexível, porque o partido não se interessava muito pela cultura, o que explica por que, nos anos 1970, os artistas tentaram construir uma política cultural para o PCB, que não tinha uma”, lembra o historiador Marcos Napolitano, da Universidade de São Paulo (USP), autor do estudo Políticas culturais e resistência democrática no Brasil nos anos 1970. “Houve um entusiasmado movimento em que os intelectuais e o partido convergiram para pensar um projeto revolucionário de nação. O partido e os intelectuais de esquerda foram as grandes referências, por exemplo, para os cineastas dispostos a fazer uma arte política e, em tese, politizadora. Infelizmente, o partido poderia ter usado mais e melhor os diagnósticos feitos pelos artistas”, observa a socióloga Célia Tolentino, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), de Marília, que estuda o tema em O pensamento social na literatura e no cinema, com apoio da FAPESP. “Os artistas não eram inocentes úteis para o PCB, também ganhavam com essa relação”, nota Ridenti. autonomia

A maior ou menor autonomia do partido dependia da carreira paralela à política. Figuras como Dias Gomes ou Oscar Niemeyer, para citar dois exemplos, lembra o pesquisador, não sofreram nenhuma ingerência do PCB em sua vida e obra. Essa influência atingia mais (embora de forma desorganizada) os menos conhecidos. “Assim, se há casos em que o par-

“Os artistas não eram inocentes úteis para o PCB, também ganhavam com essa relação”, nota Ridenti

tido foi autoritário com os artistas, fica a pergunta: por que muitos deles seguiram na militância ainda assim? Havia o sentimento de pertencer a uma comunidade que se imaginava na vanguarda mundial e podia dar apoio e organização a artistas e intelectuais em luta por prestígio e poder, distinção e consagração em seus campos de atuação, para si e para o partido”, diz o autor. Com esse movimento, os artistas comunistas prepararam o terreno para a renovação futura. “O Cinema Novo, dos anos 1960, não seria possível sem a história anterior de disputas no campo do cinema fomentada pelos cineastas comunistas”, nota Ridenti. “O mesmo vale para o desenvolvimento das novelas e da TV brasileira como um todo. Após o golpe de 64, a hegemonia do PCB entre intelectuais e artistas

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foi cortada e a partir de 1968 eles acabam abrigados na Rede Globo, apesar de a emissora ser partidária da ditadura. Figuras como Dias Gomes, Ferreira Gullar, Gianfrancesco Guarnieri, entre outros, além de encontrarem proteção, viram a TV como uma continuidade programática, acreditavam que era uma forma de falar com o povo. Por isso chegaram a ser rotulados de ‘vendidos’, quando estavam continuando a sua política cultural”, diz o historiador Francisco Alambert, da USP, autor, entre outros, do artigo “Mario Pedrosa: art and revolution”. “Aos poucos, com o desenvolvimento da sociedade civil e da indústria cultural, as classes populares vão assumindo sua voz, não precisando mais de intelectuais falando em nome delas. A produção cultural vai se ligar ao mercado e ao espaço universitário, esvaziando os partidos e a ideia de revolução, rompendo a aproximação entre cultura e política”, diz Ridenti. “Não se pode, porém, esquecer o que houve no passado. É preciso compreender os dilemas e contradições das figuras humanas daquele tempo que não raro aparecem mitificadas nos escritos sobre elas”, finaliza o pesquisador. n pESQUISA FAPESP 206  z  83


Economiay

O lixo

e a utopia Pesquisadores identificam e analisam como acontece o fenômeno da inserção produtiva em tempos de crise

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m janeiro de 2008, o Brasil registrou uma taxa de desocupação de 8%. O quadro não era tão dramático quanto o de janeiro de 2003, quando o desemprego ultrapassara os 11%, mas um imenso contingente de trabalhadores ainda buscava alternativas de renda no mercado informal de trabalho. Foi exatamente nessa época que um grupo de pesquisadores, liderados por Márcia de Paula Leite, do Programa de Pós-Graduação em Educação e em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), iniciou estudo com o objetivo de identificar e compreender as diferentes modalidades de inserção produtiva constituídas em tempos de crise, principalmente o cooperativismo, já estimulado, na época, por política oficial. Ao longo dos cinco anos seguintes, o cenário mudou e o índice de desemprego descendeu para um patamar próximo dos 5%, o que possibilitou aos pesquisadores praticamente presenciar o rearranjo desse mercado. “O trabalho precário ainda existe, mas o cooperativismo e o associativismo ganharam contornos diferentes, que desafiam o ideário de algumas correntes de pensamento ligadas à economia solidária”, afirma Márcia, coordenadora do projeto temático A crise do trabalho e as experiências de geração de emprego e renda: as distintas faces do trabalho associado e a questão de gênero, com o apoio da FAPESP. O conceito de economia solidária tem origem na crise econômica e de emprego dos anos 1960 e identifica formas de organização do trabalho distintas dos padrões do mercado, entre

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walmir monteiro / sambaphoto

Catador de papelão nas ruas de Belo Horizonte

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fotos  1 EPITÁCIO PESSOA /AGêNCIA ESTADO /AE  2 eduardo cesar

elas o associativismo. Ganhou status de política oficial do governo federal desde 2003 e é considerada uma iniciativa a favor da inclusão social. “Economia solidária é um jeito diferente de produzir, vender, comprar e trocar o que é preciso para viver. Sem explorar os outros, sem querer levar vantagem, sem destruir o ambiente”, explica a página do programa no site do Ministério do Trabalho e Emprego. Envolve “práticas econômicas e sociais organizadas sob a forma de cooperativas, associações, clubes de troca, empresas autogestionárias, redes de cooperação, entre outras, que realizam atividades de produção de bens, prestação de serviços, finanças solidárias, trocas, comércio justo e consumo solidário”.

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pesquisa coordenada por Márcia – e que teve Jacob Carlos Lima, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), e Ângela Maria Carneiro Araújo, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), como pesquisadores principais – começou com um amplo levantamento, em várias fontes, dessas formas “diferentes de produzir” no estado de São Paulo, que identificou um total de 107 cooperativas: de alimentação (3), artesanato (21), costura e confecção (11), fábricas recuperadas (13) e, principalmente, de reciclagem (59). “Visitamos todas as cooperativas e associações de São Paulo, com equipe de alunos bolsistas, para aplicação de questionário”, conta Márcia. A análise das informações mostrou que as cooperativas de alimentação, artesana-

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to, costura eram literalmente informais, não organizadas, e que o trabalho coletivo dizia respeito mais à comercialização do que à produção. Pouco contribuía para aumentar a renda ou a condição de vida dos associados. As fábricas recuperadas eram experimentos mais “estruturados”, com vínculos mais estreitos com o sindicato, já que agregavam trabalhadores migrados do mercado formal, sem perspectiva de retorno. As empresas autogestionadas, no entanto, revelaram-se um fenômeno cada vez mais raro numa economia em desenvolvimento, sublinha Márcia. A experiência mais representativa – e que ganhou mais atenção dos pesquisadores – foi, e segue sendo, a das cooperativas de reciclagem, que reúnem trabalhadores urbanos “extremamente excluídos”, desempregados e inativos, ex-catadores de lixo ou empregados domésticos, analfabetos e sem condições de ingresso no mercado formal de trabalho. “Essa forma de inserção pode, efetivamente, contribuir para tirá-los da miséria social e lhes garantir cidadania.” Essas cooperativas também se diferenciam pela organização: são ligadas ao Movimento Nacional de Catadores de Recicláveis (MNCR), que, segundo a pesquisadora, conseguiu a regulamentação da ocupação e aprovação da Política Nacional de Resíduos Sólidos, em agosto de 2010. “E, diferentemente das demais, têm grande potencial de crescimento, considerando que o país possui ainda uma porcentagem significativa da população, cerca de 16,2 milhões de pessoas,

Tempos passados: desempregados 1 mostram carteiras de trabalho há uma década; ao lado, camelô na capital paulistana

com renda per capita inferior a R$ 70”, argumenta ela, com base em dados do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea), coletados em junho de 2012. A cooperativa de reciclagem, por suas características, é o tipo de empreendimento que mais se aproxima dos preceitos da economia solidária, já que apresenta um elemento de “resistência” dos trabalhadores à situação de exclusão, de desemprego e de subordinação ao trabalho assalariado. Trata-se, no entanto, de empreendimento extremamente “frágil”, nota Márcia, e há enormes dificuldades a serem superadas para alcançar condições de sustentabilidade econômica e de reprodução. A primeira delas é a distância que ainda mantém dos princípios da solidariedade e da prática da autogestão propugnados pela economia solidária e, como ela diz, “dificilmente alcançáveis nas condições políticas atuais”. Além disso, o mercado já compreendeu que a reciclagem agrega valor ao produto, transformando lixo e sucata em matéria-prima a baixíssimo custo. “No barracão, o lixo é separado, ensacado ou empacotado e vendido por centavos de reais a intermediários que vendem para os recicladores. Poucas cooperativas têm prensas ou espaço para armazenamento”, descreve. “É preciso implementar


políticas públicas que de fato permitam às cooperativas de catadores agregar valor ao seu produto.” A Lei de Resíduos Sólidos, aprovada em 2011, por exemplo, estimula as prefeituras a negociar o tratamento de resíduos sólidos com cooperativas de catadores, mas, até o momento, poucas adotaram essa política. Márcia reconhece que o cooperativismo A economia propicia, de alguma solidária forma, a inclusão social e política de indise inscreveria víduos que, até então, viviam em situação no campo das de absoluta miséria. Conta que, em visita alternativas a associações de recipara a pobreza clagem, era frequente ouvir dos cooperados declarações de que o trabalho organizado os tirara do silêncio. 2 “Trata-se, sem nenhuma dúvida, de um processo de libertação e de empoderaNo Rio Grande do Sul, onde o coopemento, que vai ao encontro da economia rativismo é forte, a maior parte das exsolidária”, ela sublinha. periências formalizadas da economia solidária ocorre no meio rural ou, em “inclusão” e o “empoderamento” menor escala, por meio de empresas au– palavra traduzida literalmente togestionadas. “No meio urbano é mais do termo empowerment, em in- difícil essas iniciativas se consolidarem, glês, que significa a ação coletiva desen- em função das características da pobreza volvida por indivíduos e que propicia a urbana.” Adriane considera, no entanconsciência social dos direitos sociais to, que os ganhos sociais significativos – parecem ser o ponto forte das inicia- muito provavelmente serão registrados tivas da economia solidária. Adriane apenas em médio e longo prazo, já que Vieira Ferrarini, pesquisadora do Pro- se trata de processo de inclusão de pesgrama de Pós-Graduação em Ciências soas que vivem “um processo histórico Sociais da Unisinos, no Rio Grande do de degradação” e, no caso do Brasil, ser Sul, uma estudiosa do tema, pondera iniciativa recente. “Quem conceber os que, se consideradas apenas da pers- empreendimentos de economia solidária pectiva da renda, essas iniciativas po- como ilhas de prosperidade em contexdem parecer ineficientes. “Elas têm um to de precariedade corre sério risco de efeito de inclusão social significativo, já ter frustradas suas expectativas”, adverque pressupõem um modelo coletivo e te. “Uma conquista importante é que o democrático de gerenciamento do em- movimento conseguiu pautar na agenda preendimento e de autogestão, o que política um conjunto de iniciativas públimuitas vezes pode representar um ga- cas, em especial na última década. Hoje, nho maior que a renda.” Dentre muitos por exemplo, já existem recursos para casos pesquisados, ela cita o exemplo de pequenos empreendimentos e programas um grupo de mulheres empreendedoras vinculados à formação destes empreengaúchas cuja organização levou a que dedores.” A economia solidária, sublinha, elas se mobilizassem contra a violência não é panaceia para a pobreza – “seria doméstica, passassem a desempenhar até pretensioso pensar assim!” –, mas se uma liderança política na sua comuni- inscreve no campo das “alternativas para a pobreza” e vai além, quando propõe um dade e retornassem aos estudos.

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projeto de desenvolvimento pautado na sustentabilidade, na justiça social e econômica e na democracia participativa, ela acrescenta. Na avaliação da coordenadora do projeto temático apoiado pela FAPESP, a baixa repercussão do cooperativismo solidário na renda reforça a cultura do assalariamento, sobretudo quando os indicadores de emprego estão em ascensão. “No Brasil, a cidadania regulada, tendo como referência o trabalho formal, impacta a construção identitária do trabalhador e suas perspectivas futuras no mercado de trabalho.” Assim, a ideia de autogestão ou de propriedade coletiva dos meios de produção não aparece como possibilidade a ser conquistada. “A construção de uma nova cultura do trabalho associado supõe uma vontade política que se expresse em políticas públicas para mudanças efetivas nas prioridades e nos rumos do desenvolvimento econômico, dando primazia ao trabalho frente ao capital.” n

Projeto A crise do trabalho e as experiências de geração de emprego e renda: as distintas faces do trabalho associado e a questão de gênero (nº 2006/61142-3); Modalidade Projeto Temático; Coord. Márcia de Paula Leite (Unicamp); Investimento R$ 419.219,25 (FAPESP).

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memória

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Teoria e prática Criação do Gabinete de Resistência de Materiais há 114 anos permitiu o avanço do desenvolvimento tecnológico Neldson Marcolin

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ntonio Francisco de Paula Souza foi o primeiro diretor da Escola Politécnica de São Paulo (Poli), criada por lei estadual em 1893. Foi também professor de Resistência dos Materiais e Estabilidade das Construções e o responsável por tornar viável uma proposta singular para a época, a criação do Gabinete de Resistência de Materiais (GRM) dentro da Poli, em 1899. A ideia soava diferente naquele final de século XIX no Brasil porque unia o ensino teórico ao prático, em projeto elaborado por Ludwig Tetmayer, do Instituto Federal de Tecnologia de Zurique (ETH, na sigla em alemão), a pedido de Paula Souza. “É nesse período que começa a pesquisa realizada de forma sistemática e continuada sobre resistência dos materiais”, diz a historiadora Marilda Nagamini, doutora pela Universidade de São Paulo (USP) e autora, com Shozo Motoyama, de Escola Politécnica, 110 anos construindo o futuro (Epusp, 2004). Antes houve no Rio de Janeiro o estudo sobre madeiras dos irmãos André e José Rebouças, ambos engenheiros, em 1877, e um ensaio de Adolpho José del Vecchio sobre material de construção, em 1883. “A diferença entre os vários momentos é a continuidade da pesquisa”, esclarece Marilda. Prova maior dessa prática na Poli foi a publicação pelo Grêmio Politécnico do Manual de resistência de materiais em 1905, sob supervisão de

Interior do gabinete, na Poli, onde eram realizados ensaios com materiais (s/d)


fotos  Biblioteca Central da Escola Politécnica da USP

Paula Souza (1843-1917) e Francisco de Paula Ramos de Azevedo (1851-1928). Milton Vargas afirma em História da técnica e da tecnologia no Brasil (editora Unesp, 1997), organizado por ele, que o manual foi “o primeiro trabalho sobre tecnologia publicado no Brasil”. Vargas foi um dos pioneiros em mecânica de solos no país, professor da Poli – uma das escolas que deram origem à USP em 1934 – e engenheiro do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT). O manual trazia resultados de ensaios sobre as características físicas, químicas e mecânicas, bem como do comportamento estrutural quando submetido a diferentes esforços físicos, de cimento, cal, concreto, pedras, tijolos, telhas, madeiras e metais. Um aspecto de particular interesse foi a inclusão da análise do concreto, pouquíssimo usado na época. A publicação foi consequência das primeiras atividades do GRM. Em 1903 Wilhelm Fischer, então assistente de Tetmayer no ETH, assumiu a direção do GRM e deu novo impulso a ele, com a colaboração de engenheiros

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Wilhelm Fischer (de colete preto e avental) com colegas do GRM; ao lado, o Manual de resistência de materiais (s/d)

Paula Souza (segundo da esq. para a dir., sentado) entre os politécnicos do gabinete (s/d)

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Os estudos sistemáticos e o investimento em equipamentos possibilitaram avanços tecnológicos. Foram os trabalhos do GRM que deram subsídio para a fabricação em escala industrial de tubos de ferro fundido centrifugado, usados no sistema de água e esgoto, e para a difusão do concreto armado em edificações. 2 O primeiro grande prédio de São Paulo feito com essa técnica, o Guinle, como Hippolyto Gustavo teve estudo experimental Pujol Júnior. O gabinete do GRM, assim como um ganhou prestígio com a dos primeiros arranha-céus publicação do manual brasileiros (o Martinelli) e passou a ser convidado e o Viaduto do Chá. para dar pareceres não só Em 1926 as companhias na construção civil como em rodovias, nas instalações ferroviárias Paulista, Mogyana e Sorocabana, portuárias, ferroviárias e industriais. Com a demanda, contumazes usuárias dos serviços do GRM, fizeram muitos professores e engenheiros da Poli abriram doações financeiras para que ele fosse ampliado e escritórios e companhias construtoras, acompanhando transformado no Laboratório o desenvolvimento do estado. de Ensaios de Materiais (LEM), sob a direção de Fischer dirigiu o GRM Ary Frederico Torres. até 1906 e foi substituído Em 1934, liderado por por Pujol, que ampliou o Torres, o LEM virou o IPT, laboratório com as seções com autonomia de ensaios físicos e administrativa em relação mecânicos, de metalografia à Poli. A ideia era poder e de preparo de corpos de atuar de forma mais ampla, prova e pequenos reparos. como faz até hoje: abrir A de metalografia era uma novos campos de pesquisa, cópia do laboratório da servir como laboratório usina de Dion-Bouton, de estadual para aferição Paris. Paula Souza se de medidas e padrões orgulhava da seção e dizia e continuar prestando que era a mais moderna serviços a terceiros. n das Américas. PESQUISA FAPESP 206 | 89


Imagens Denise Garcia

Arte

As cores e desenhos da música Pesquisadora faz análise gráfica dos sons eletroacústicos de compositores brasileiros Lauro Lisboa Garcia

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ão rara quanto a difusão da música eletroacústica no Brasil é a documentação de sua história e seu repertório. Desde que fez doutorado na França, a compositora erudita, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisadora Denise Garcia tem se dedicado a recuperar e analisar essa complexa e restrita arte musical brasileira. Depois da pesquisa, amparada pela FAPESP, na qual recuperava os primórdios da música eletroacústica paulista estudando os pioneiros no estado – Grupo Música Nova, Gilberto Mendes, Rogério Duprat, Willy Corrêa de Oliveira –, ela se dedicou à geração carioca de Tim Rescala, Rodolfo Caesar, Vânia Dantas Leite e Rodrigo Cicchelli. “Colhi material com os próprios compositores e até hoje estou trabalhando nisso”, diz Denise, que tem bolsa de produtividade do CNPq. Caesar é para ela um dos mais profícuos compositores dessa área, e é sobre a premiada peça dele intitulada Introdução à pedra, de 1989, que concluiu recentemente uma análise gráfica iniciada em 2007. “Horas e horas de trabalho rendem 10 ou 20 segundos de música”, diz a professora. Por enquanto, o resultado das pesquisas permanece restrito a congressos e palestras da autora. A análise gráfica da peça de Caesar – cuja amostra pode ser vista nestas páginas – é inédita. Nela, cada som, em suas variações de volume, ritmo, timbres, andamento e intensidade, é representado por desenhos e cores diferentes. Concluída essa


Nestas páginas, três partes da análise de Denise da peça Introdução à pedra, de Rodolfo Caesar: a representação de cada som é feita por meio de desenhos e cores

parte, ela agora vai elaborar o texto, detalhando cada passo de sua atividade. Denise utiliza o software Acousmograph, desenvolvido pelo INA/GRM (Groupe de Recherches Musicales, criado em 1948 por Pierre Schaeffer), onde ela fez estágio após o doutorado. “O aplicativo faz dois tipos de visualização do sinal sonoro: uma de amplitude do sinal e outra é o sonograma”, explica. Este último, em forma de gráfico nos eixos tempo e frequência, aponta todas as frequências do sinal, mas não faz as distinções dos eventos musicais. “Com o programa é possível desenhar o que se ouve por cima desse sonograma. Separamos os sons no desenho analisando, dessa forma, a música.” A pesquisa de Denise consiste em analisar, interpretar e atualizar tecnologicamente as peças originais. “Nas peças mistas de Gilberto Mendes havia coisas criadas para toca-discos e discos da época, que desapareceram. Não dá pra remontar essas peças com a mesma tecnologia anterior.” A ideia foi colocá-las de novo em repertório, mas

utilizando novos equipamentos, como o computador. “No caso de Mendes, as partes de tape foram remontadas pelo orientando Clayton Mamedes.” Como frisa Fernando Iazzetta, da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, especializado em novas tecnologias musicais, “nossa musicologia, com a exceção de compositores como Villa-Lobos, Carlos Gomes e Henrique Oswald, nunca teve o devido cuidado com a produção nacional”. Para ele, além da recuperação da “história inicial de uma produção recente e relevante da música brasileira”, a pesquisa de Denise tem outros méritos. “Os compositores estão vivos, o que possibilita conhecer a dinâmica dessa história por dentro; além disso, a própria Denise fez parte da história como compositora.” Foi por volta dos 30 anos que ela foi parar na música eletroacústica “por um caminho singular”, autodidata. Fazia trabalhos de gravação com sonoridades ambientais, “levava tudo para o computador, montava e desmontava”, num processo quase artesanal de filtragem de sons. Seu mestrado foi um mapeamento de São Luís no Maranhão a partir do Poema sujo, de Ferreira Gullar. Com essas e outras experiências acabou se aprofundando no estudo de metodologia da pesquisa. “É um tipo de música que não tem partitura, há apenas o ouvido, que não é confiável, porque eu ouço uma coisa e você ouve outra. Existe muita discussão em torno disso. É um repertório sobre o qual a musicologia trabalha muito pouco por essa dificuldade.” A ideia da análise gráfica para música eletroacústica é antiga e antes da era digital era desenhada à mão. Denise está convencida de que o método é bom não só para a música eletroacústica, mas também para a instrumental. “Uso essa ferramenta também para analisar música clássica tradicional com os alunos. E eles saem do curso convencidos de que é legal, porque sem a partitura ouvimos a música de forma diferente.” n PESQUISA FAPESP 206 | 91


conto

A ficção não existe Julián Fuks

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inha tudo para ser escritor, era o que lhe dizia uma professorinha: um imperioso domínio da língua, um tino para as frases significativas, um profundo senso da pertinência de cada história, uma sensibilidade para as coisas ínfimas. Conhecia os conselhos dos mestres, absorvia as recomendações das revistas, sabia de cor os decálogos infalíveis com as prescrições de tantos escritores para o ofício. Passava horas habitando livros, sorvendo parágrafos com disciplina, e aos poucos constituía em sua mente um quadro abrangente do que era ou devia ser a literatura. Tinha tudo para ser escritor e, no entanto, não escrevia. Não sabia inventar, era o que explicava aos poucos íntimos, inutilmente. Carecia da faculdade de criar, de dar nomes a seres invisíveis, de dotá-los de uma existência precária e de uma falsa biografia, de enfrentá-los a conflitos sempre improváveis em alguma medida. Desprezava a ficção, era o que não dizia sequer para si. Preferia defender uma posição mais controversa, mais terrível, declarando com pompa toda vez que alguém lhe dava ouvidos: a ficção não existe. Foi em defesa desse princípio que decidiu entrar no curso de letras, ordenar sua erudição, converter-se em crítico. Era o primeiro a erguer a mão para questionar as explanações mais simples, de início com argumentos banais que apenas confrontavam o texto à vida. Mas Quixote não terá existido? Há registro de sexagenários em delírio cruzando a Espanha ao menos desde o século XV, e Cervantes sequer define com precisão o nome do protagonista de sua suposta ficção: Quijada, Quesada, Quijana. É bem sabido também que Shakespeare montava seus dramas com tramas medievais, valendo-se de intrigas reais entre famílias reais, bem descritas nas crônicas da época. Em sua iniciação científica, ainda inseguro quanto à abrangência de sua hipótese, optou pe-

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la obviedade de analisar alguns autobiografistas canônicos: Joyce no retrato do artista, Proust em busca do tempo perdido, Flaubert que confessara ser ele mesmo sua Madame Bovary. Limitou-se a minuciar o rígido paralelismo que havia entre os trechos selecionados e alguns episódios verídicos, tão idênticos uns e outros que sequer seria possível atribuir aos autores algum vigor criativo, um mérito artístico que fosse além da habilidade descritiva – como ele não se privou de afirmar no último capítulo. Se suas ideias não obtiveram prestígio, a iniciação lhe serviu ao menos para que amealhasse um arsenal de recursos críticos, sólidos mecanismos de pesquisa, um sistema de verificação das inúmeras interferências externas presentes em toda narrativa. A arbitrariedade dos nomes próprios lhe concedia valiosas pistas: nenhum nome resultava indiferente, referindo-se sempre a alguma figura próxima ou longínqua, que o autor evocava de modo consciente ou inconsciente. Valia o mesmo para lugares, datas e, surpreendentemente, para caracteres psicológicos e físicos. Nenhum personagem era loiro, barrigudo ou pérfido por razões imprecisas: a algum fator relevante essas peculiaridades sempre remetiam. Mas de nada adiantava mostrar que os livros que se alegavam reais tinham de fato a realidade como elemento constitutivo, sob o risco de incor­ rer em uma tautologia. Se queria provar que a ficção não existe, que toda e qualquer invenção é impossível, não podia fazê-lo sem confrontar os textos mais fantásticos, os mais extravagantes, os que melhor simulassem provir da imaginação e da fantasia. Sorteou quase ao léu uma das obras que povoavam sua estante de narrativas incríveis, um volume que um colega lhe dera como zombaria, e resolveu fazer dele o objeto de seu mestrado. Já em sua primeira viagem à Rússia decifrou a farsa, ou melhor, a verdade que representava aquela


joaquim de almeida

narrativa supostamente tão criativa de Dostoievski: O crocodilo. Na história do homem engolido vivo por um crocodilo em plena galeria moscovita, homem que ali permaneceu com voz e vida por dias e dias, sobravam indícios para retraçar o ocorrido prévio. Seria demais esmiuçar aqui as vicissitudes da pesquisa, a busca por Ivan Matvieitch em sua desdita, mas o fato é que anos antes, em 1857, um tal Markevitch se engalfinhara com um jacaré num zoológico de São Petersburgo, tendo seu tornozelo mordido e ali resistindo por horas até que os funcionários o renderam. A versão de Dostoievski não passava, portanto, da malversação de pormenores incensada por um exagero descabido. Defraudar Kafka foi tarefa bem mais difícil, sobretudo pela escassez de dados sobre a existência do escritor, tão fecundo quanto desconhecido em vida. Precisou dos cinco anos do doutorado para perceber que a realidade em Kafka só podia ser alcançada por intertexto, na relação entre relatos avulsos e os romances mais excêntricos. Revelou-se patente que a história impossível do agrimensor de O castelo era inspirada no caso verídico descrito pelo autor em “Diante da lei”. Já o absurdo de A metamorfose só pôde ser desvendado quando ele conseguiu retraçar o paradeiro do clínico de “Um médico rural”, que certa vez calhou de tratar um tal Georg Simonsen. Tido por louco entre seus conterrâneos, esse sujeito cultivava um circo de baratas como tantos cultivam um circo de pulgas, e as alimentava atirando contra elas pedaços de maçã apodrecida. Daí a epifania que lhe rendeu os elogios da banca: Gregor Samsa era mera corruptela de Georg Simonsen.

Mas o golpe fatal, o que lhe garantiria a comprovação irrefutável de sua teoria, só foi lhe ocorrer décadas mais tarde, já professor emérito da universidade, já envelhecido. Se a ficção não existia, se vinha do mundo real cada uma das ocorrências descritas por escritores de qualquer época, todas teriam de constar no “aleph” de Borges, o ponto do universo que continha todos os pontos, de todos os tempos. Se a ficção não existia, a abstração eventual de cada livro haveria de encontrar ali seu correspondente concreto – e assim estaria provada sua teoria. Foi custoso chegar ao porão que Borges descrevera em seu conto. Não foi na casa de sua infância, nem nos muitos apartamentos e bibliotecas que ele habitara com afinco. Foi na antiga casa de Leopoldo Marechal, autor de Adán Buenosayres, a quem parecia fazer referência o nome do protagonista do conto, Carlos Argentino. Desceu ao porão de pernas trêmulas, as pálpebras longe das pupilas. Saberia então se estivera certo ou errado, toda sua vida, em cada um de seus ímpetos. Deitou no chão em decúbito dorsal, como Borges indicava, e no 19º degrau fixou a vista. Podia ser o aleph o círculo vítreo que vislumbrou, podia ser o universo inteiro através de uma fina película, o mundo inteiro em sua verdade irrestrita, mas por um instante ele só conseguiu enxergar o rosto decrépito da professorinha. Julián Fuks é escritor e crítico literário. É autor de, entre outros, Procura do romance (Record) e Histórias de literatura e cegueira (Record), ambos finalistas dos prêmios Jabuti e Portugal Telecom. Em 2012 foi eleito pela revista Granta um dos 20 “melhores jovens escritores brasileiros”.

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resenhas

Ensino reforçado de botânica Marcelo Motokane

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A botânica no cotidiano Déborah Yara A. C. dos Santos, Fungyi Chow e Cláudia Maria Furlan Holos Editora/IB/FAPESP 139 páginas; R$ 35,00

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espertar nos jovens o gosto pela ciência é a tarefa de todos os dias de muitos professores de biologia. Nem sempre é fácil encontrar boas ideias para as aulas de ciências e biologia, dada a falta de material pedagógico disponível sobre o assunto. O livro A botânica no cotidiano traz nada mais, nada menos do que 19 atividades para incrementar as aulas. Escrito por professoras de botânica do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB/USP), cada capítulo tem um conjunto de informações científicas que servem para dar apoio às estratégias propostas. São informações atualizadas que trazem aos professores e alunos todo o dinamismo do conhecimento botânico e suas relações com as diferentes áreas da biologia (biologia molecular, sistemática, morfologia, ecologia, fitoquímica, anatomia, entre outras). Essa é uma característica muito interessante do livro, uma vez que muitos professores da educação básica necessitam da atualização em conhecimentos específicos da botânica. Destaque para as atividades que tratam da sistemática filogenética e biologia molecular, que são assuntos pouco frequentes em livros didáticos da educação básica. As estratégias propostas são variadas e apresentam experimentos, demonstrações, montagens de modelos tridimensionais, práticas histológicas e jogos que em sua maior parte requerem poucos materiais. Há uma preocupação em propor atividades com uso de materiais de baixo custo (salvo uma ou outra que requer um equipamento mais sofisticado). A ideia de propor essa variedade de estratégias de ensino tem por finalidade dar ao ensino da botânica um caráter mais dinâmico e motivador, apesar de sabermos que uma boa aula depende das concepções que o professor tem do que é ensinar e aprender, bem como sua visão da ciência. As estratégias também contribuem para que os alunos e professores se aproximem das práticas da ciência e desenvolvam habilidades importantes, como observação, representações por meio de desenhos, coletas de dados e suas interpretações. Outra preocupação das atividades propostas é relacionar o conhecimento botânico com

atividades cotidianas, e daí surgem atividades muito interessantes, como as de reconhecer o quanto as plantas estão presentes na vida das pessoas, a produção do papel, as substâncias de reserva presentes em alimentos que consumimos ou mesmo o uso de subprodutos das algas para a confecção de desenhos. As atividades de produção de modelos tridimensionais são simples de realizar e requerem materiais de acesso fácil. Além disso, os modelos podem ser utilizados em várias aulas e, devido a sua durabilidade, por muito tempo. Algumas das atividades propostas, com algumas adequações, podem ser utilizadas para diferentes níveis de ensino. É possível que o livro seja utilizado por “professores da educação básica e educadores atuantes em espaços não formais de ensino”, como indicado pelas organizadoras, para a preparação de aulas e visitas monitoradas. Porém é um material versátil o suficiente para ser usado em disciplinas pedagógicas de cursos de licenciatura em biologia. Para melhor aproveitamento das atividades é preferível que as atividades sejam aplicadas para alunos do ensino médio e superior em função da complexidade de algumas perguntas e análises que são propostas. Ao longo de todo o livro é possível perceber um eixo de discussão ecológico-evolutivo que permeia todas as atividades, o que é muito positivo para a sua adequação ao ensino médio. Por fim, A botânica no cotidiano cumpre uma importante função de desenvolver habilidades científicas nos alunos e fazer uma reflexão sobre os impactos que a ciência e a tecnologia promovem na vida das pessoas. Essas são características importantes, que poderiam ser mais exploradas, uma vez que a aprendizagem de tais conhecimentos pode garantir às pessoas o exercício pleno de sua cidadania. O livro é uma importante iniciativa que deve ser expandida para outras áreas da biologia e mostra que a botânica é uma ciência bela e instigante!

Marcelo Motokane é biólogo, professor do Departamento de Biologia da USP de Ribeirão Preto, pesquisador na área de metodologia de ensino de ciências, coordenador do Laboratório de Ensino de Biologia (LEB) e líder do grupo de pesquisa Linguagem no Ensino de Ciências (Lince).


A pluralidade da fé no Brasil José de Souza Martins

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fotos   eduardo cesar

Religiosidade no Brasil João Baptista Borges Pereira (org.), Edusp 400 páginas, R$ 68,00

impossível compreender sociologicamente o Brasil se não se leva em conta que, entre nós, há uma religiosidade mesmo dos brasileiros que não têm religião. Na própria universidade, não é raro vermos casos de ateus confessos serem espiritualmente amparados, após a morte, pela missa de sétimo dia a que comparecem colegas igualmente ateus. Na dúvida, é melhor seguir as regras do costume. Aliás, o grupo religioso que mais cresce no país é o dos que têm fé, mas não têm religião. Uma anomalia, sem dúvida, em relação aos numerosos países que se caracterizam por religiões estabelecidas e identitárias. Países como a Itália e o Portugal católicos têm como marco o templo e a identidade religiosa indiscutível. As igrejas ficam cheias nas várias missas de domingo e nas cerimônias de preceito. A Inglaterra anglicana só é diferente pela filiação doutrinária e a rainha no lugar do papa como soberana da religião oficial. Mesmo numa universidade como a de Cambridge, cada college tem sua capela e nas capelas, como a do King’s College, há celebrações diárias. Nos Estados Unidos protestantes, mas pluralistas, mais de 80% dos americanos vão a uma igreja no domingo. São países em que a religião formal e organizada é parte constitutiva da estrutura social. Aqui, somos pluralistas, embora intolerantes. A sociedade brasileira pode ser explicada sem o templo, mas não pode ser explicada sem a religiosidade, não raro expressão de variadas formas de sincretismo religioso, difuso e incoerente. Temos, além do mais, uma história de movimentos messiânicos e milenaristas, nascidos aqui mesmo, de certo modo, o povo reinventando suas devoções. Não é incomum certo turismo religioso, pessoas oficialmente de um credo, porque nele batizadas ou iniciadas, que, não obstante, vão, eventualmente, a um culto evangélico ou a uma sessão num terreiro de umbanda. Os censos têm apontado, nas últimas décadas, um acentuado declínio no número de católicos no Brasil, supostamente em favor das seitas e igrejas pentecostais. Análises mais detidas dos dados sugerem algo mais complicado: os católicos que abandonam a igreja são, sobretudo, católicos nominais, não são propriamente católicos praticantes. Tanto que há um movimento de “conversão” de católicos ao catolicismo. Pa-

ralelamente, evangélicos têm abandonado umas igrejas evangélicas para se passarem a outras, de denominação e credo diferente, mas de mesma linha ritual. A indefinição religiosa do brasileiro nesse cenário confuso de crenças e descrenças há tempos pedia uma espécie de vade-mecum dos credos que se difundem entre nós, um mapa interpretativo e denso da nossa religiosidade. Este livro, organizado pelo conhecido antropólogo João Baptista Borges Pereira, da Universidade de São Paulo e da Universidade Presbiteriana Mackenzie, atende em boa parte essa demanda. Reúne contribuições de 20 pesquisadores sobre as religiões que no Brasil têm adeptos e confessantes, organizadas e ativas. Do catolicismo, que por tantas transformações passou, tornando-se quase desconhecido dos próprios católicos, até a rica e complicada diversidade de confissões, tendo no entremeio as religiões não cristãs, o livro expõe com erudição e competência o quadro de nossas referências religiosas. Um cenário muito esclarecedor do que tem sido o advento da modernidade religiosa entre nós, nos últimos pouco mais que 100 anos. Não só das crenças professadas, mas também da complexa organização dos credos, sua diversidade ritual e os significados dos procedimentos que nas celebrações religiosas dão sentido à peculiaridade de cada crer. Diferente do que acontece na vida civil e nos outros modos de expressão de mentalidades e modos de ser, detalhes aparentemente irrelevantes podem, nas religiões, provocar cismas e rupturas. Como o que aconteceu há mil anos, quando a Igreja Ortodoxa se separou da Igreja Romana em decorrência de um desacordo quanto a se o Espírito Santo deriva do Pai ou deriva do Pai e do Filho. Ou, aqui no Brasil, o desacordo dos presbiterianos quanto à maçonaria, que levou ao cisma que separou a Igreja Presbiteriana Independente da Igreja Presbiteriana Unida. Nos últimos anos, a maior igreja pentecostal do país sofreu uma ruptura que levou ao surgimento de duas grandes igrejas, derivadas de uma só. José de Souza Martins é sociólogo. Professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Dentre outros livros, é autor de A sociabilidade do homem simples (Contexto).

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carreiras

Recursos Humanos | Empreendedorismo

Antes do novo emprego Informações que o pesquisador deve ter para decidir se migra para a indústria Mudar de emprego quase nunca é uma decisão simples, em especial se o fator financeiro não for o mais importante. Se o convite partir de uma empresa privada que faz pesquisa e desenvolvimento (P&D) e o profissional convidado for um pesquisador acadêmico, a dúvida pode ser ainda maior. Quais seriam as questões a que o cientista deve estar atento antes de aceitar (ou se candidatar) a fazer ciência na empresa? O neurocientista Luiz Eugenio Mello conhece bem essa história. Em 2009 ele trocou uma bem-sucedida carreira na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) para implantar o Instituto Tecnológico Vale (ITV), da mineradora Vale. 96 | Abril DE 2013

Para ele, mudar de emprego na área científica tem a ver, principalmente, com os desafios científicos que o novo trabalho oferece. Mas pode ser pelo acesso a equipamentos específicos ou, ainda, por estruturas físicas ou organizacionais melhores. Ele lembra que a transição da academia para a empresa continua muito pouco frequente no Brasil. A possibilidade de evoluir profissionalmente tem de ser levada em conta, embora isso dependa da idade e do estágio em que o pesquisador se encontra. “Para alguém sênior essa dimensão é menos relevante do que para alguém júnior”, diz. “Mesmo assim, para mim, o convite para trabalhar na Vale, com a abrangência do trabalho

a ser realizado, também endereçava positivamente as dimensões de evolução profissional.” O tamanho da empresa tem de ser considerado e o pesquisador não deve temer ser apenas mais uma peça na engrenagem. Conseguir um lugar de destaque como pesquisador na indústria depende em boa parte do empenho de cada um, lembra o diretor do ITV. Outro ponto importante é verificar se o trabalho é competitivo, o que não é tão diferente assim do trabalho acadêmico de ponta – na universidade os melhores sempre competem para publicar nas revistas mais importantes e conseguir recursos das agências de fomento. José Eduardo Pelino, diretor associado de relacionamento científico e profissional da Johnson & Johnson, chama a atenção para uma característica muito animadora do trabalho na indústria: a possibilidade de ver antecipadamente os produtos ou equipamentos que estarão disponíveis no mercado para

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Mello, da Vale, e Pelino, da Johnson: empresas também podem proporcionar boas perspectivas de evolução e aprendizagem

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fotos 1 léo ramos 2 johnson&johnson,s  3 nanox  ilustraçãO  daniel bueno

consumidores e mudar os aspectos e características necessárias de acordo com o público-alvo. Pelino é pós-doutorado em odontologia e trocou a Universidade de São Paulo pela Johnson em 2009. “O processo de P&D de produtos na indústria é bastante dinâmico, com foco específico”, diz ele. “Mas isso está longe de eliminar a colaboração acadêmica na pesquisa dentro da empresa.” O ambiente que será encontrado no futuro trabalho – algo que deixa meio ansiosos os iniciantes no emprego novo – dá para ser inferido por meio do processo seletivo da empresa. Na Johnson, por exemplo, o candidato conversa com pelo menos oito pessoas diferentes, durante o processo seletivo de entrevistas, antes de qualquer decisão. “Durante esse processo basta ficar bem atento e fazer todas as perguntas necessárias. Com isso dá para sentir se existe pressão, competitividade e liderança.” Pelino conta que quando decidiu migrar da universidade para a indústria o fator decisivo na escolha foi o tipo de desafio e o impacto que o seu trabalho poderia causar em três esferas: acadêmica, profissional e na do consumidor. “A parte financeira foi importante, porém não decisiva.” Luiz Mello também preferiu considerar os novos desafios intelectuais que surgiriam com o emprego, mas ele lembra que a vida acadêmica no Brasil ainda tem baixa remuneração, excetuadas as possibilidades de ganho extra em consultórios ou consultorias. “O pesquisador que sai da universidade quer a motivação do desafio profissional e também um bom salário. É preciso buscar o equilíbrio. Não há desafio que resista à inexistência de condições de trabalho”, diz o diretor do ITV.

empreendedorismo

Talentos ocultos Químico sugere mais apoio aos candidatos a empresário De 1999 a 2002, durante o curso de química na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Gustavo Simões, hoje com 32 anos, 3 comentava com os colegas que queria ser empresário. Como naquela época – e ainda hoje – a maioria dos cursos das universidades públicas não promovia o empreendedorismo, os colegas achavam que ele tinha perdido o juízo. “Quase todos queriam alternativas profissionais mais seguras do que ser empresário”, ele se lembra. “Como não existia apoio, ser empreendedor parecia muito difícil e longínquo.” Simões não desistiu de seu plano. Começou a pós-graduação sob a orientação de Elson Longo no Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara e em 2005, no meio do mestrado, resolveu finalmente abrir sua empresa. “O laboratório de Elson Longo era diferenciado, tinha muito contato com empresas e a oportunidade de desenvolver novos produtos surgiu naturalmente”, ele conta. Desde 2005, Simões e outros dois químicos, Daniel Minozzi e André Araújo, por meio da nova empresa, a Nanox, em São Carlos, interior paulista, produzem materiais com partículas de prata capazes de eliminar fungos e bactérias.

“O primeiro apoio que recebemos foi por meio de um Pipe da FAPESP”, ele diz. “Aos 24 anos, fui um dos coordenadores mais jovens de um projeto Pipe.” Depois ele recebeu apoio de uma venture capital, especializada em empresas de base tecnológica, e financiamentos do governo federal. Segundo ele, a Nanox está crescendo – tem atualmente 10 funcionários – e planeja para ainda este ano a abertura de uma filial nos Estados Unidos. Em 10 anos, porém, pouco mudou para os estudantes de graduação que querem abrir sua própria empresa. Aulas de empreendedorismo ainda são raras na universidade – uma delas é oferecida na graduação para estudantes de engenharia na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. “O ambiente melhorou, existe mais facilidade de acesso a capital de risco, mas as ações de apoio ao empreendedorismo ainda são suspiros no ambiente acadêmico”, observa Simões, que terminou o doutorado em 2009, também com Elson Longo. Ele acredita que a situação poderia ser diferente se os cursos não pensassem apenas em pesquisa científica e tecnológica, mas também no estímulo à inovação para empresas. “Para ser empreendedor”, ele diz, “é preciso ter apoio, oportunidade e condições para arriscar. Sem isso, ser empresário é loucura ou desespero”. PESQUISA FAPESP 206 | 97


classificados

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O Programa de Mestrado em Gestão Internacional da ESPM (PMGI), tendo em vista o futuro programa de doutorado, divulga edital para contratação de professor doutor. A carga horária de trabalho é de 40 horas semanais. Inscrições abertas de 1º a 30 de abril de 2013. Edital completo no site: www.espm.br/pmgi


CONFIANÇA ONTEM, HOJE E SEMPRE A Biolab, farmacêutica 100% brasileira, está de cara nova. Em 15 anos, consolidamos a liderança em medicamentos sob prescrição médica na área de Cardiologia e conquistamos relevância em Ginecologia e Dermatologia. Também nos destacamos em Ortopedia, Reumatologia, Pediatria, dentre outras especialidades. A Biolab tornou-se referência em medicamentos inovadores, frutos de significativos e contínuos investimentos em pesquisas e desenvolvimentos genuinamente nacionais e de sólidas parcerias com empresas internacionais, ao redor do mundo. Crescemos com o Brasil e estamos comprometidos com os avanços de nosso país. Hoje, somos uma empresa global. É hora de apresentar a nossa nova marca, que nos permitirá dar novos e audaciosos passos e nos acompanhará rumo ao futuro. Somos a Biolab de sempre, feita por brasileiros, oferecendo cada vez mais confiança, qualidade e inovação a médicos e pacientes.

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