Pesquisa FAPESP 207

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maio de 2013  www.revistapesquisa.fapesp.br

terremotos

Dimensões da crosta terrestre influenciam tremores no Brasil tecnologia da informação

Etiquetas “inteligentes” usam sinais de rádio para rastrear objetos direitos humanos

Arquivos digitalizados ampliam acesso a memórias da repressão jornalismo

Imprensa sensacionalista ajudou a divulgar ciência nos anos 1950

entrevista michel rabinovitch

Talento para formar cientistas

As novas aves da Amazônia Quinze espécies da floresta são descritas no maior achado da ornitologia brasileira desde o século XIX



fotolab

Superlotação in vitro A imagem ampliada cerca de 11.200 vezes mostra o momento exato da saída do Trypanosoma cruzi de uma célula de mamífero. Causador da doença de Chagas, o parasita ao invadir células hospedeiras se multiplica para depois rompê-las e alcançar as células vizinhas. As células em cultura (fundo cinza) foram fixadas e processadas para visualização em microscópio eletrônico de varredura, que permite observar com alta resolução detalhes da evasão dos muitos parasitas (em azul) de uma única célula. A imagem faz parte de um conjunto de dados obtidos para o estudo do T. cruzi pela doutoranda Pilar Florentino em conjunto com os professores Cristina Orikaza, Patrícia Milanez e André Aguillera, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), supervisionados por Renato Mortara.

Imagem enviada pelo parasitologista Renato A. Mortara, diretor do Centro de Microscopia da Unifesp Se você tiver uma imagem relacionada à sua pesquisa, envie para imagempesquisa@fapesp.br, com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.

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maio 2013 n. 207

18 CAPA Quinze espécies de aves serão descritas simultaneamente, na maior descoberta da ornitologia brasileira em 140 anos foto  léo ramos

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA 30 História

Digitalização de arquivos da repressão política em São Paulo terá impacto na pesquisa e na investigação de violações de direitos humanos

63 Bioquímica

DNA com tripla hélice pode regular expressão de certos genes

18

66 Fisiologia

Equipe de Minas Gerais identifica no sangue molécula que dilata os vasos sanguíneos e reduz a pressão arterial

35 Cienciometria

entrevista 24 Michel Rabinovitch Parasitologista fala sobre a carreira e do talento para formar cientistas

seçÕes 3 Fotolab 5 Editorial 6 Cartas 7 On-line 8 Dados e projetos 11 Boas práticas 13 Estratégias 14 Tecnociência 86 Memória 88 Arte 90 Ficção 92 Resenhas 94 Carreiras

Supervalorização do indicador que combina quantidade e qualidade na produção científica gera controvérsia

40 Educação

Programas de iniciação científica revelam disposição de universidades para estreitar relações com o ensino médio

CIÊNCIA 44 Geologia

Pesquisadores propõem novas explicações para os terremotos no país

50 Obituário

O zoólogo Paulo Vanzolini foi um dos idealizadores da FAPESP e autor de uma teoria sobre a origem das espécies na América do Sul

52 Ecologia

Construção de rodoanel motiva expedições científicas à serra da Cantareira, na Grande São Paulo

58 Especial Biota Educação III

Ocupação e uso desordenado do solo, ao lado da instalação de usinas hidrelétricas, dificultam o fluxo migratório de espécies no pantanal 4 | maio DE 2013

TECNOLOGIA 68 Informática

Etiquetas “inteligentes” baseadas em sinais de rádio para contar e rastrear objetos conquistam novos mercados

72 Eletrônica

Nova geração de células flexíveis tenta superar dificuldades para aumentar o uso de energia fotovoltaica no mundo

76 Cosméticos

Carbocisteína usada em substituição ao formol é analisada com técnicas desenvolvidas pela KosmoScience

58

HUMANIDADES 78 Mídia

Jornal vespertino de Assis Chateaubriand divulgava ciência como parte do projeto de extinguir “atraso” brasileiro

82 Música

Pesquisadores do projeto Móbile fazem turnê para mostrar resultados da união entre arte e tecnologia

30

68


carta da editora

O peso do talento individual na ciência Mariluce Moura Diretora de Redação

H

á duas belas personagens, entre tantas que aparecem nesta edição de Pesquisa FAPESP, que nos propõem refletir com vagar sobre a influência e o peso da personalidade ou, se preferirmos, da singularidade do indivíduo, sobre o desenvolvimento de determinadas práticas sociais – neste caso, a produção do conhecimento científico e a formação do ambiente propício para tanto. Refiro-me, primeiro, a Paulo Vanzolini, morto aos 89 anos em 28 de abril, cujo obituário publicamos na página 50. Polêmico, tantas vezes apontado como ranzinza e mal-humorado e, simultaneamente, como senhor de fino e corrosivo humor, Vanzolini, o cientista, teve papel fundamental, teórico e prático, na constituição de uma zoologia efetivamente contemporânea no país. Os especialistas, observou o filósofo Luiz Henrique Lopes dos Santos, coordenador científico do projeto desta revista, não exageram quando o definem como o introdutor da zoologia evolutiva no Brasil. Já Vanzolini, o compositor, autor de belíssimos clássicos da música popular brasileira, como Ronda e Volta por cima, embora tenha seu talento amplamente reconhecido, ainda deve provocar novas e acuradas análises sobre a dimensão de sua influência neste âmbito de nossa cultura. Entretanto, talvez o traço menos festejado de Vanzolini seja sua inteligência brilhante, decisiva, no trabalho de forjar o caráter de instituições centrais para o desenvolvimento científico do país. E aqui me refiro, valendo-me de novo das palavras de Luiz Henrique na conversa que tivemos sobre a personagem de múltiplos talentos, não apenas ao Museu de Zoologia, mas também e principalmente à FAPESP, em cujo eficiente e respeitado modus operandi brilham a distância o espírito visionário e a sagacidade política de Vanzolini. A segunda personagem fascinante em que me detenho é Michel Rabinovitch, um cientista em plena atividade aos 87 anos, que nos revela um pouco da riqueza profissional e pessoal de sua trajetória na entrevista que concedeu a Neldson Marcolin e Ricardo Zorzetto, respectivamente, o editor-chefe e o editor de ciência da revista. Os primeiros 15 anos de sua carreira na USP, quando já se destacou co-

mo um grande formador de novos cientistas, e os 33 anos seguintes de trabalho em respeitadas instituições de ensino e pesquisa nos Estados Unidos e na França – Rabinovitch deixou o Brasil em 1964 para escapar à violência da ditadura – emergem de um depoimento sensível e generoso que se descola da primeira pessoa e conduz suavemente o olhar do leitor para o ambiente mais amplo da construção do saber científico no país. Vale a pena se deter na entrevista a partir da página 24. É tempo de passar à reportagem de capa desta edição, elaborada pelo editor especial Marcos Pivetta, que trata, a partir da página 18, da descrição simultânea de 15 novas espécies de aves da Amazônia, em artigos científicos previstos para serem publicados em julho num volume especial do Handbook of the birds of the world, obra de referência fundamental para ornitólogos profissionais e amadores. A descrição representa uma contribuição brasileira da maior importância para o conhecimento da biodiversidade e, ao mesmo tempo, configura a maior descoberta de nossa ornitologia em nada menos que 140 anos. Gostaria de destacar também, ainda na seção de ciência, a reportagem elaborada por Igor Zolnerkevic e Ricardo Zorzetto a respeito das novas explicações geológicas propostas para os terremotos no país (página 44). Sim, o Brasil tem terremotos, embora com intensidade sempre de fraca a moderada, mas que ainda assim provocam alguns transtornos porque não há nenhuma política pública ou medidas preventivas para seu enfrentamento. Para finalizar, destaco a reportagem do editor de política científica e tecnológica, Fabrício Marques, sobre a digitalização de documentos ligados à repressão da ditadura pelo Arquivo Público do Estado de São Paulo (página 30), que deverá ter grande impacto na pesquisa histórica e na investigação das violações dos direitos humanos no país; e o relato de nosso editor de humanidades, Carlos Haag, sobre o interessante tratamento dispensado à ciência pelo Diário da Noite, jornal sensacionalista do grupo empresarial de Assis Chateubriand (página 78), que amplia nossa percepção sobre a divulgação científica no país. Desejo a todos uma boa leitura! PESQUISA FAPESP 207 | 5


cartas

cartas@fapesp.br

fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo Celso Lafer Presidente Eduardo Moacyr Krieger vice-Presidente Conselho Superior alejandro szanto de toledo, Celso Lafer, Eduardo Moacyr Krieger, fernando ferreira costa, Horácio Lafer Piva, Herman Jacobus Cornelis Voorwald, joão grandino rodas, Maria José Soares Mendes Giannini, José de Souza Martins, Luiz Gonzaga Belluzzo, Suely Vilela Sampaio, Yoshiaki Nakano Conselho Técnico-Administrativo José Arana Varela Diretor presidente Carlos Henrique de Brito Cruz Diretor Científico Joaquim J. de Camargo Engler Diretor Administrativo

issn 1519-8774

Conselho editorial Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Marcelo Leite, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira comitê científico Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Adolpho José Melfi, Carlos Eduardo Negrão, Douglas Eduardo Zampieri, Eduardo Cesar Leão Marques, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, João Furtado, Joaquim J. de Camargo Engler, José Arana Varela, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Luis Augusto Barbosa Cortez, Marcelo Knobel, Marie-Anne Van Sluys, Mário José Abdalla Saad, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Luiz Monteiro Salles Filho, Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner do Amaral, Walter Colli Coordenador científico Luiz Henrique Lopes dos Santos Diretora de redação Mariluce Moura editor chefe Neldson Marcolin Editores Carlos Haag (Humanidades), Fabrício Marques (Política), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência); Carlos Fioravanti e Marcos Pivetta (Editores espe­ciais); Bruno de Pierro e Dinorah Ereno (Editores assistentes) revisão Márcio Guimarães de Araújo, Margô Negro arte Mayumi Okuyama (Editora), Ana Paula Campos (Editora de infografia), Maria Cecilia Felli e Camila Suzuki (Assistente) fotógrafos Eduardo Cesar, Léo Ramos Mídias eletrônicas Fabrício Marques (Coordenador) Internet Pesquisa FAPESP online Maria Guimarães (Editora executiva - licenciada) Júlio Cesar Barros (Editor em exercício) Rodrigo de Oliveira Andrade Rádio Pesquisa Brasil Biancamaria Binazzi (Produtora) Colaboradores Abiuro, Adélia Bezerra de Menezes, Ana Lima, Angelo Alves Carrara, Carla Ceres, Daniel Bueno, Daniel das Neves, Evanildo da Silveira, Fabio Hamdan, Gabriel Bitar, Igor Zolnerkevic, Maria do Rosário Caetano, Martha San Juan França, Raul Aguiar, Sandra Javera, Valter Rodrigues (Banco de Imagens), Yuri Vasconcelos, Zé Vicente

É proibida a reprodução total ou parcial de textos e fotos sem prévia autorização Para falar com a redação (11) 3087-4210 cartas@fapesp.br Para anunciar (11) 3087-4212 mpiliadis@fapesp.br Para assinar (11) 3038-1434 e 3556-5204 fapesp@veganet.com.br Tiragem 46.000 exemplares IMPRESSão Plural Indústria Gráfica distribuição Dinap GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia Governo do Estado de São Paulo

6 | maio DE 2013

Fotos do passado

Encantaram-me duas reportagens da Pesquisa FAPESP (edição 205): “O passado que não deixa o presente”, de Carlos Haag, e “Retratos das culturas alheias”, de Neldson Marcolin. A primeira objetiva a inércia e as dificuldades de mudanças sociais no Brasil, a partir de sua formação histórica imperial em contraposição à formação sempre republicana das nações vizinhas latino-americanas. Ressaltando a fotografia como um recurso etnográfico altamente eficiente em pesquisa, a segunda enfoca o trabalho de Harald Schultz, na linha que me pareceu seguir os passos de Pierre Verger e dos irmãos Villas-Boas. Com estas reportagens Pesquisa FAPESP delineia um quadro do que temos de melhor em etnografia, fornecendo uma importante orientação para projetos e estudos futuros em antropologia.

um dos resultados e é a favor do resultado oposto. Ora, frente a um resultado de uma pesquisa, cabe analisar a metodologia e os dados; não cabe “gostar ou não gostar” do resultado. A reportagem não analisa os materiais e métodos. Não importa qual o assunto da pesquisa, esta lógica é geral. Também é lamentável a opinião de uma professora da UFRGS, de que “não consigo ver o que pode sair de bom desse tipo de estudo”. Então há a pesquisa boa e a pesquisa ruim? Jorge Ducati Departamento de Astronomia, UFRGS Porto Alegre, RS

Nota da redação: Pesquisa FAPESP se pautou por normas jornalísticas: entrevistamos os autores das pesquisas com resultados opostos e apresentamos versões sobre a questão abordada.

Francisco J.B. Sá Salvador, BA

Accademia del Cimento

Na edição nº 205 de Pesquisa FAPESP, na reportagem “Uma ciência mais aberta”, a Royal Society é citada como “a mais antiga sociedade científica do mundo”. A primeira sociedade científica da era moderna foi a Accademia del Cimento, criada em Florença em 1657. Em 1660, veio a Royal Society, na Inglaterra, e em 1666 surgiu a Academie Royale des Sciences, em Paris. André Laino Universidade do Estado do Rio de Janeiro Nova Friburgo, RJ

Nota da redação: A Accademia del Cimento encerrou suas atividades em 1667. A Royal Society é a mais antiga sociedade científica ainda existente.

Comportamento

Sobre a reportagem de capa da edição 203, “O crânio subvertido”, fica muito claro que há uma opinião (do autor do texto?) sobre o resultado de três pesquisas. Duas destas têm certo resultado e outra tem um resultado oposto. A opinião da revista (do autor?) é contra

QR-Code

Fui bolsista da FAPESP (modalidade Pipe) entre 2002 e 2006, hoje moro no Rio de Janeiro e sou leitor assíduo de Pesquisa FAPESP. Sempre que a trago ao trabalho (Petrobras) e a deixo na minha mesa diversos colegas aproveitam para dar uma folheada em busca de assuntos interessantes. Sugiro adicionar a cada reportagem na revista impressa um pequeno QR-Code que remetesse ao link da reportagem na web. Às vezes queremos compartilhar algum tema enquanto estamos lendo, e a maneria mais fácil seria tirar uma foto (a partir do celular) deste QR-Code e enviar o link para um colega. Isto ampliaria ainda mais a abrangência da revista. Rafael Faraone Rando Rio de Janeiro, RJ

Nota da redação: Pesquisa FAPESP agradece a sugestão. Estamos estudando a possível adesão do QR-Code nas reportagens.

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar - CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.


on-line

Nas redes

w w w . r e v i s ta p e s q u i s a . f a p e s p. b r

MATHAE / WIKIMEDIA

Samuel Mendes de Souza_ Sabia que prata era boa contra micróbios, mas essa associação com fungos

Rádio

P. annectens: peixe é o parente mais próximo dos tetrápodes

Historiadora fala dos 100 anos da primeira exposição de Lasar Segall no país

x Um dos principais capítulos de dos vertebrados da água para a terra, ganhou novos contornos com o sequenciamento do genoma do celacanto – espécie de peixe africano. Ao compararem o material genético do celacanto com o do Protopterus annectens, espécie primitiva de peixe pulmonado africano de nadadeiras com ossos, os pesquisadores descobriram que o P. annectens é, do ponto de vista evolutivo, o parente mais próximo dos tetrápodes, classe de vertebrados terrestres com quatro membros, na qual se incluem os seres humanos.

bactéria. (Prata biológica) Júnior Ventura_ Muito interessante, principalmente por disponibilizar livros pela internet. A curiosidade sobre o livro de Graciliano Ramos foi inédita para mim. (Aquarela do Brasil) Sergio Correa_ Uau! Que ampliação da nossa percepção do Universo. (Sentinela das trevas cósmicas) Renato Anjo_ Isso é culpa da humanidade ou ocorreria mesmo se

Exclusivo no site nossa história evolutiva, a transição

é muito interessante por entrar na

ela não existisse? (Degelo nos Andes)

x Está sendo avaliada a terceira versão do Pirajuba, protótipo de veículo subaquático não tripulado desenvolvido na Escola Politécnica da USP. O projeto foi iniciado em 2008 com o objetivo de servir de plataforma de testes para pesquisas nas áreas de dinâmica, controle e navegação de veículos submarinos. Em 2011 passou a ser adaptado para missões oceanográficas e de monitoramento ambiental. A ideia é que, no futuro, o veículo ajude a mapear o solo marinho e seja usado para inspecionar instalações submersas, como oleodutos, gasodutos e emissários submarinos.

Alexandre Spatuzza Felmanas_ Dica cultural para o final de semana: o museu [Lasar Segall] fica na Vila Mariana, lindo, tem cinema, café e fica perto de lá a Casa Modernista. (O modernismo que veio do frio) Isabel Tessmer Lilge Rosa_ Mais do que hora de alguém se preocupar! (Intervenções sustentáveis) Bruna Pastrello_ Seria muito bom, porque o diagnóstico é realmente complicado. (Diagnóstico rápido para dengue)

Vídeo do mês Nova tecnologia pode ajudar a marcar o tempo com alta precisão

Assista ao vídeo:

youtube.com/user/PesquisaFAPESP

PESQUISA FAPESP 207 | 7


Dados e projetos Temáticos e Jovem Pesquisador recentes Projetos contratados entre março e abril de 2013

temáticos

 Estudo da variabilidade dia a dia da mesosfera, termosfera e ionosfera em baixas latitudes e região equatorial, durante o ciclo solar 24 Pesquisador responsável: Paulo Roberto Fagundes Instituição: Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento/Univap Processo: 2012/08445-9 Vigência: 01/03/2013 a 28/02/2018  O Universo em 3-D: astrofísica com grandes levantamentos de galáxias Pesquisador responsável: Laerte Sodré Junior Instituição: IAG/USP Processo: 2012/00800-4 Vigência: 01/01/2013 a 31/12/2017  Modulação da diferenciação de linfócitos T em infecções por protozoários, fungos e bactérias Pesquisador responsável: João Santana da Silva Instituição: Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto/USP Processo: 2012/14524-9 Vigência: 01/04/2013 a 31/03/2016  Acidente de trabalho: da análise sociotécnica à construção social de mudanças Pesquisador responsável: Rodolfo Andrade de Gouveia Vilela Instituição: Faculdade de Saúde Pública/USP Processo: 2012/04721-1 Vigência: 01/04/2013 a 31/03/2018  Afecções ortopédicas relacionadas à prática esportiva: aspectos clínicos, genéticos e moleculares Pesquisador responsável: Moisés Cohen Instituição: EPM/Unifesp Processo: 2012/07721-2 Vigência: 01/04/2013 a 31/03/2017  Geometria de sistemas de controle, sistemas dinâmicos e estocásticos Pesquisador responsável: Marco Antonio Teixeira Instituição: Instituto de Matemática Estatística e Computação Científica/ Unicamp Processo: 2012/18780-0 Vigência: 01/04/2013 a 31/03/2018  Modelos de regressão e aplicações Pesquisador responsável: Heleno Bolfarine Instituição: Instituto de Matemática e Estatística/USP Processo: 2012/21788-2 Vigência: 01/04/2013 a 31/03/2018

8 | maio DE 2013

 Papel de receptores de reconhecimento padrão (PRRs) na ativação de macrófagos nas infecções fúngicas cutâneas causadas por Fonsecaea pedrosoi, Sporothrix schenckii e Trichophyton rubrum Pesquisador responsável: Sandro Rogério de Almeida Instituição: Faculdade de Ciências Farmacêuticas/USP Processo: 2012/18598-7 Vigência: 01/04/2013 a 31/03/2016  Contribuição de produção de bioenergia pela América Latina, Caribe e África ao projeto GSB-LACAf-Cana-I Pesquisador responsável: Luís Augusto Barbosa Cortez Instituição: Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético/Unicamp Processo: 2012/00282-3 Vigência: 01/03/2013 a 28/02/2015  Fenomenologia de física de partículas Pesquisador responsável: Gustavo Alberto Burdman Instituição: Instituto de Física/USP Processo: 2012/10995-7 Vigência: 01/03/2013 a 28/02/2018  Prevenção e tratamento da depressão em idosos: um estudo de base populacional Pesquisador responsável: Cássio Machado de Campos Bottino Instituição: Instituto de Psiquiatria/SSSP Processo: 2012/50010-0 Vigência: 01/03/2013 a 28/02/2017  Aperfeiçoamento a inocuidade de alimentos pela eliminação de patógenos de biofilmes mistos. (FAPESP-DCSR) Pesquisadora responsável: Elaine Cristina Pereira de Martinis Instituição: Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto/USP Processo: 2012/50507-1 Vigência: 01/02/2013 a 31/01/2017

paleoambientais globais Pesquisador responsável: Elson Paiva de Oliveira Instituição: Instituto de Geociências/ Unicamp Processo: 2012/15824-6 Vigência: 01/04/2013 a 31/03/2017

ANR-BLANC-ECOPA) Pesquisadora responsável: Suani Teixeira Coelho Instituição: IEE/USP Processo: 2012/51466-7 Vigência: 01/03/2013 a 31/08/2016

 Dinâmica de satélites artificiais Pesquisador responsável: Rodolpho Vilhena de Moraes Instituição: Instituto de Ciência e Tecnologia/Unifesp Processo: 2012/21023-6 Vigência: 01/04/2013 a 30/09/2015

São Paulo Excellence Chairs (Spec)

 Contradições do trabalho no Brasil atual. Formalização, precariedade, terceirização e regulação Pesquisadora responsável: Marcia de Paula Leite Instituição: Faculdade de Educação/ Unicamp Processo: 2012/20408-1 Vigência: 01/04/2013 a 31/03/2017  Espectroscopia vibracional em fases condensadas Pesquisador responsável: Mauro Carlos Costa Ribeiro Instituição: Instituto de Química/USP Processo: 2012/13119-3 Vigência: 01/04/2013 a 31/03/2017  A função de genes que codificam fosfatases na virulência e na patogenicidade de Aspergillus fumigatus Pesquisador responsável: Gustavo Henrique Goldman Instituição: Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto/USP Processo: 2012/23942-9 Vigência: 01/07/2013 a 30/06/2017  Fotossensibilização nas ciências da vida Pesquisador responsável: Mauricio da Silva Baptista Instituição: Instituto de Química/USP Processo: 2012/50680-5 Vigência: 01/04/2013 a 31/03/2017

 Modelling the dynamics of equatorial forest soil deep carbon in changing environments - C-PROFOR (FAPESP/ANR-BLANC) Pesquisador responsável: Adolpho José Melfi Instituição: Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz/USP Processo: 2012/51469-6 Vigência: 01/02/2013 a 31/01/2016

 História da energia elétrica no estado de São Paulo (1890-1960): patrimônio industrial, paisagem e meio ambiente Pesquisador responsável: Gildo Magalhães dos Santos Filho Instituição: FFLCH/USP Processo: 2012/51424-2 Vigência: 01/04/2013 a 31/03/2017

 Evolução de terrenos arqueanos do cráton São Francisco e província Borborema: implicações para processos geodinâmicos e

 Evolution of consumption patterns, economic convergence and carbon footprint of development. A comparison Brazil-France (FAPESP/

 Grafeno: fotônica e optoeletrônica. Colaboração UPM-NUS Pesquisador responsável: Antonio Hélio de Castro Neto Instituição: Centro de Pesquisas Avançadas em Grafeno e Nanomateriais/UPM Processo: 2012/50259-8 Vigência: 01/04/2013 a 31/03/2018

Jovem Pesquisador

 Análise das ondas gravitacionais Pesquisador responsável: Riccardo Sturani Instituição: Instituto de Física Teórica/ Unesp Processo: 2012/14132-3 Vigência: 01/02/2013 a 31/01/2017  Utilização de complexos de rutênio como estratégia farmacológica para reverter e/ou prevenir a disfunção endotelial Pesquisador responsável: Gerson Jhonatan Rodrigues Instituição: Centro de Ciências Biológicas e da Saúde/UFSCar Processo: 2012/24477-8 Vigência: 01/04/2013 a 31/03/2017  Fatores de transcrição de Chromobacterium violaceum: integrando vias de sinalização, regulons e patogenicidade Pesquisador responsável: José Freire da Silva Neto Instituição: Instituto de Biociências/USP Processo: 2012/20435-9 Vigência: 01/04/2013 a 31/03/2017  Avaliação da produtividade primária marinha através do estudo das bactérias magnetotáticas em sedimentos Pesquisador responsável: Luigi Jovane Instituição: Instituto Oceanográfico/USP Processo: 2011/22018-3 Vigência: 01/04/2013 a 31/03/2017  Evolução da lesão renal aguda e crônica em ratos submetidos ao pré-condicionamento físico: participação do endotélio Pesquisadora responsável: Heloisa


Della Coletta Francescato Instituição: Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto/USP Processo: 2012/50180-2 Vigência: 01/04/2013 a 31/03/2016

 Elastografia, ultrassonografia com contraste por microbolhas e Doppler como métodos de diagnóstico das neoplasias mamárias, afecções prostáticas e testiculares em cães Pesquisador responsável: Marcus Antonio Rossi Feliciano Instituição: Faculdade de Ciências Agrárias Veterinárias de Jaboticabal/ Unesp Processo: 2012/16635-2 Vigência: 01/05/2013 a 30/04/2017  Retrocópias: origens, polimorfismos e variações somáticas Pesquisador responsável: Pedro Alexandre Favoretto Galante Instituição: Hospital Sírio-Libanês/ SBSHSL Processo: 2012/24731-1 Vigência: 01/05/2013 a 30/04/2017  Interação entre hipometabolismo, dinâmica do cálcio e excitabilidade neuronal – implicações no processo degenerativo da doença de Alzheimer Pesquisador responsável: Fernando Augusto de Oliveira Ribeiro Instituição: Instituto de Ciências Ambientais, Químicas e Farmacêuticas/Unifesp Processo: 2012/50336-2 Vigência: 01/03/2013 a 28/02/2017  Efeito dos ácidos graxos de cadeia curta produzidos por bactérias probióticas na profilaxia e tratamento da inflamação alérgica das vias aéreas Pesquisadora responsável: Caroline Marcantonio Ferreira Instituição: Instituto de Ciências Biomédicas/USP Processo: 2012/50410-8 Vigência: 01/04/2013 a 31/03/2017  Como o cérebro de Apis mellifera (Lineu, 1758) (Hymenoptera, Apidae) responde à dose subletal de tiametoxam? Pesquisadora responsável: Thaisa Cristina Roat Instituição: Centro de Estudos de Insetos Sociais/Unesp Processo: 2012/13370-8 Vigência: 01/05/2013 a 30/04/2015  Estudo da migração de células T específicas geradas pela vacinação ou infecção pelo Trypanosoma cruzi Pesquisador responsável: José Ronnie Carvalho de Vasconcelos Instituição: EPM/Unifesp Processo: 2012/22514-3 Vigência: 01/05/2013 a 30/04/2017  Dinâmica espaço-temporal do carbono do solo e emissões de óxido nitroso na cultura da cana-de-açúcar no Brasil – convergência entre modelos específicos de espaço e tempo Pesquisador responsável: Marcelo Valadares Galdos Instituição: Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais/MCTI Processo: 2012/06933-6 Vigência: 01/03/2013 a 28/02/2017

O peso da visibilidade dos papers Índices comparativos entre universidades da América Latina, baseados apenas em publicações num conjunto de revistas indexadas no Web of Science Todas as ciências Ranking / Universidades 1  Pontifícia Universidade Católica do Chile

P

MCS

MNCS

PP

4.175

4.56

0.94

9.2% 7.5%

2  Universidade de Buenos Aires

7.169

4.79

0.95

3  Universidade do Chile

5.173

3.66

0.80

7.3%

4  Universidade Nacional de La Plata

3.384

3.44

0.76

6.3%

29.240

3.63

0.75

6.1%

8.691

3.64

0.74

6.1% 6.0%

5  Universidade de São Paulo 6  Universidade Federal do Rio de Janeiro 7  Universidade Estadual de Campinas

9.744

3.31

0.73

8  Universidade Federal de São Paulo

5.574

4.09

0.71

5.4%

9  Universidade Federal de Santa Catarina

3.812

3.09

0.68

5.4%

10 Universidade Federal de Minas Gerais

6.567

3.44

0.73

5.4%

Ciências Biomédicas e da Saúde Ranking / Universidades

P

MCS

MNCS

PP

1.404

5.45

0.86

8.7%

2  Universidade do Chile

1.875

4.85

0.74

6.9%

3  Universidade de Buenos Aires

2.592

5.71

0.80

6.2%

4  Universidade Federal do Rio Grande do Sul

3.267

4.49

0.74

6.0%

5  Universidade de São Paulo

14.294

4.13

0.71

5.3%

6  Universidade Federal de São Paulo

4.753

4.16

0.70

5.1%

7  Universidade Federal do Rio de Janeiro

3.355

4.50

0.70

5.1%

8  Universidade Federal de Santa Catarina

1.360

3.88

0.66

4.7%

9  Universidade Federal de Minas Gerais

2.889

3.95

0.66

4.3%

1.147

3.83

0.62

4.1%

1  Pontifícia Universidade Católica do Chile

10 Universidade Federal do Paraná

Matemática e Computação Ranking / Universidades

P

MCS

MNCS

PP

1  Universidade Federal de Minas Gerais

351

2.24

1.06

10.7%

2  Pontifícia Universidade Católica do Chile

292

1.92

0.88

9.4%

3  Universidade do Chile

513

1.58

0.94

9.2%

4  Universidade de Buenos Aires

405

1.45

0.87

8.8%

5  Universidade Nacional de La Plata

128

2.12

0.90

8.4%

6  Universidade Estadual de Campinas

795

1.69

0.86

8.3%

7  Universidade Federal do Paraná

120

1.60

0.77

7.8%

8  Universidade Estadual Paulista

272

1.77

0.78

7.6%

9  Universidade Federal do Rio Grande do Sul

288

1.60

0.78

7.0%

1.384

1.56

0.79

7.0%

10 Universidade de São Paulo

Ciências Sociais e Humanidades Ranking / Universidades

P

MCS

MNCS

PP

1  Universidade Federal de São Paulo

100

2.60

0.80

6.9%

2  Pontifícia Universidade Católica do Chile

685

1.12

0.68

6.6%

3  Universidade do Chile

520

0.72

0.83

5.8%

4  Universidade Federal de Minas Gerais

334

1.24

0.53

5.4%

5  Universidade Federal do Rio Grande do Sul

314

1.45

0.46

4.5%

6  Universidade de São Paulo

884

1.28

0.46

3.8%

7  Universidade de Buenos Aires

467

0.72

0.33

3.1%

8  Universidade Federal de Santa Catarina

229

0.49

0.44

3.0%

9  Universidade Federal do Rio de Janeiro

402

1.16

0.38

3.0%

10 Universidade Estadual de Campinas

316

0.69

0.34

2.7%

Fonte: CWTS Leiden Ranking 2013; www.leidenranking.com/ranking. Obs.: P = número de trabalhos no período analisado; MCS = citação média por trabalho; MNCS = citação média por trabalho corrigida por impacto da área; PP = porcentagem dos trabalhos publicados que estão entre os 10% mais citados. Os índices MCS, MNCS e PP estão corrigidos para compensar as diferenças entre a quantidade de publicações de cada universidade.

PESQUISA FAPESP 207 | 9


Pesquisa Brasil Toda sexta-feira, das 13h às 14h, na Rádio USP, você tem um encontro marcado com a ciência falada

Apresentado por Mariluce Moura, diretora de redação da revista Pesquisa Fapesp, e por Celso Filho, diretor da Rádio Usp, o Pesquisa Brasil traz informações eduardo cesar, EDUARDO SANCINETTI, ricardo zorzetto, léo ramos, nasa / jpl, Latinstock/MEHAU KULYK/SCIENCE PHOTO LIBRARY/SPL DC

de ciência, tecnologia, meio ambiente, humanidades. Há sempre um pesquisador convidado conversando sobre o desenvolvimento de sua pesquisa, além de uma seleção musical com muito swing. E você pode participar do “Ouvinte Pesquisa” fazendo perguntas aos pesquisadores e concorrendo a uma assinatura anual da revista Pesquisa Fapesp.

Aguce seus sentidos e sintonize já! 93,7 mHz www.revistapesquisa.fapesp.br


Boas práticas O Committee on Publication Ethics (Cope), fórum com sede no Reino Unido que reúne editores de periódicos científicos em torno de temas ligados à ética na pesquisa, lançou no dia 25 de março um guia para auxiliar o trabalho de revisores. O documento traz princípios básicos e normas que devem ser seguidas durante o processo de revisão por pares. As recomendações vão das mais consensuais, como a necessidade de o revisor avaliar somente artigos que sejam de sua área, até as mais específicas, tal como a que não permite que a revisão seja influenciada pelas origens do manuscrito, em relação à nacionalidade, religião, posições políticas e sexo do autor do paper. Entre as diretrizes apresentadas pelo Cope – que atualmente conta com mais de 7.600 membros de 80 países, incluindo representantes de grandes editoras, como Elsevier, Springer e Wiley-Blackwell – está a de que as publicações devem assegurar que seus revisores trabalhem de forma construtiva, respeitando a confidencialidade e evitando conflitos de interesses. O comitê também destaca a proibição de usar informações obtidas durante a revisão para benefício próprio ou de terceiros, ou como forma de desacreditar o autor do paper. Em nota, a coordenadora do projeto, a bióloga e editora-chefe do boletim trimestral do comitê, Irene Hames, disse que embora hoje sejam publicados cerca de 1,8 milhão de artigos por ano, em aproximadamente 28 mil publicações acadêmicas, “os revisores muitas vezes não contam com um guia de boas práticas para a revisão, distanciando-os de suas obrigações éticas”.

Para cada etapa do processo o guia fixa diretrizes específicas. Por exemplo, antes de começar a revisão o pesquisador deve declarar quaisquer interesses potencialmente conflitantes ou concorrentes (pessoais, financeiros, profissionais, políticos ou religiosos) que possam interferir em seu trabalho. Caso isso ocorra, o revisor precisa avisar o editor. Uma das recomendações diz que o revisor não pode envolver subalternos durante o trabalho, incluindo pesquisadores em início de carreira, sem antes obter uma permissão do periódico. Os nomes daqueles que ajudarem no processo devem ser incluídos na resposta ao autor, para que recebam o devido crédito. Já na etapa de

daniel bueno

Novo guia para revisores

preparação do relatório, a revisão deve privilegiar sugestões para que o manuscrito seja melhorado, evitando sempre comentários pessoais e acusações.

Combate frágil à má conduta O combate a casos de má conduta de cientistas é frágil na maioria dos países em desenvolvimento, conforme concluiu um estudo publicado em março na revista científica PLOS Medicine. Embora os casos de fraude e de plágio sejam um problema global, atingindo de 2% a 14% de cientistas em países desenvolvidos, as nações mais pobres ainda estão despreparadas para tratar de temas ligados à integridade e à ética na pesquisa. Os autores do estudo levantaram dados sobre fabricação de resultados, falsificação de experimentos e plágio em 11 países: Argentina, Bangladesh, China, Costa Rica, Guatemala, Índia,

Quênia, México, Peru, África do Sul e Tunísia. Concluíram que, com exceção da China, que criou um escritório para a integridade da pesquisa científica, os países mais pobres quase não dispõem de mecanismos para agir contra a má conduta. O autor principal do estudo, o nigeriano Joseph Ana, disse ao portal SciDev.net que a má conduta tem raízes na cultura do “publicar ou perecer”, ou seja, na pressão que os pesquisadores sofrem para publicar muitos artigos como forma de crescer na carreira. Outro fator apontado por ele é a dificuldade para escrever em inglês, o que leva muitas pessoas a plagiar trechos de outros artigos. PESQUISA FAPESP 207 | 11


Estratégias Três universidades, um curso

1

Os nômades e a pólio

Vacinação antipólio na África: crianças nômades são reservatórios do vírus

As três universidades

conjunto é um

estaduais paulistas

desdobramento de outra

preparam em conjunto

iniciativa, o Centro

um inédito curso de

Paulista de Pesquisa em

doutorado em bioenergia.

Bioenergia (CPPB),

Com a proposta de ser

instituído em 2010, por

um curso internacional,

meio de um convênio

o programa contará

entre o governo do

com professores da

estado de São Paulo,

Universidade de

FAPESP, USP, Unicamp

São Paulo (USP), da

e Unesp. Ligado ao

Universidade Estadual

programa FAPESP de

de Campinas (Unicamp)

Pesquisa em Bioenergia

e da Universidade

(Bioen), o CPPB aumenta

Estadual Paulista (Unesp),

a base científica de

além de especialistas

pesquisa em bioenergia.

estrangeiros. Terá boa

“O curso é um dos

parte de suas aulas em

importantes resultados

inglês e usará um sistema

do Centro Paulista de

Um programa de

Entre as principais

combate à poliomielite

barreiras para a

de videoconferência para

Pesquisa em Bioenergia,

lançado na Nigéria já

erradicação da doença,

a integração de alunos

organizado pela FAPESP

localizou mais de 32 mil

que atinge principalmente

e professores situados

e pelas três universidades

assentamentos de

crianças pequenas, estão

em diferentes cidades.

estaduais paulistas, com

populações nômades

os nômades, considerados

Segundo Carlos Alberto

expressivo investimento

e identificou mais de

“reservatórios” do vírus,

Labate, professor da

do governo do estado de

700 mil crianças, das

espalhando-o durante

USP e coordenador-geral

São Paulo. O caráter

quais aproximadamente

as migrações. O

do Programa Integrado

multi-institucional é

40 mil nunca haviam

programa National Stop

de Doutorado em

uma excelente ideia das

sido vacinadas. Embora

Transmission of Polio

Bioenergia, as aulas

universidades e fará o

apenas 3% dos 122 casos

(N-Stop) foi organizado

deverão ter início em

curso muito competitivo

de poliomielite registrados

pelo Global Polio

março de 2014. Os alunos

mundialmente”, disse

em 2012 no país tenham

Eradication Initiative,

farão pelo menos quatro

Carlos Henrique de Brito

ocorrido em crianças

uma parceria público-

meses de estágio no

Cruz, diretor científico

nômades, as equipes do

-privada coordenada pela

exterior. O doutorado

da FAPESP.

programa descobriram

Organização Mundial da

mais de 100 prováveis

Saúde (OMS) e o Centro

casos que não foram

de Controle de Doenças

relatados, reforçando a

(CDC), dos Estados

tese de que os nômades

Unidos, com apoio

formam um importante

do governo nigeriano.

elo na cadeia de

A primeira etapa

transmissão da doença,

consolidará um censo

informa reportagem

do grupo nômade Fulani

da revista Nature. Junto

e outras populações

com o Paquistão e o

de localização difícil,

Afeganistão, a Nigéria é

para que depois os

um dos últimos redutos

programas de saúde

onde a transmissão

entrem com a vacinação.

do poliovírus, o causador

A meta do governo

da poliomielite, ainda

da Nigéria é erradicar

não foi interrompida.

a doença até 2015.

12 | maio DE 2013

Produção de etanol no interior paulista: aumento da base científica da pesquisa em bioenergia

2


Contribuição reconhecida

Elsevier adquire Mendeley A holandesa Elsevier,

amplia seus negócios

uma das maiores editoras

na internet, concorrendo

O vencedor da

de livros e periódicos

diretamente com o

edição 2012 do Prêmio

científicos, comprou

EndNote, serviço

Almirante Álvaro

por US$ 100 milhões a

gerenciador de

Alberto para Ciência

rede social Mendeley,

bibliografias da Thomson

e Tecnologia é o

sediada em Londres.

Reuters. Reações

engenheiro Edgar

Criada em 2008, a

desfavoráveis foram

Dutra Zanotto, professor

Mendeley surgiu como

publicadas em blogs e

titular do departamento

um software acadêmico

mídias sociais após o

de Engenharia de

gratuito usado para

anúncio da aquisição.

Materiais da

organizar referências

Usuários alertam que

Universidade Federal

bibliográficas. Ao migrar

a vocação da Mendeley

de São Carlos (UFSCar).

para a internet,

de ser uma plataforma

tornou-se uma rede social,

aberta pode ficar

permitindo ao usuário

comprometida na nova

saber quais artigos

fase da empresa.

são mais acessados

Em entrevista ao jornal

por pesquisadores

The Guardian, o cocriador

de determinada área,

da Mendeley, Victor

O prêmio é concedido

3

fotos 1 Stephen Schester / U.S. Air Force 2 Marcello Casal Jr / ABr  3 cnpq  ilustraçãO daniel bueno

pelo Conselho Nacional

Edgar Zanotto: pesquisas no campo da nucleação e cristalização de vidros

de Desenvolvimento

em pesquisa básica e

Científico e Tecnológico

aplicada relacionadas,

(CNPq), em parceria com

por exemplo, à

a Fundação Conrado

nucleação e cristalização

Wessel e a Marinha

de vidros (Ver Pesquisa

participar de grupos

Henning, disse que

do Brasil, e busca

FAPESP nº 178). Entre

sobre determinados

a missão da empresa

reconhecer o trabalho

1995 e 2005 Zanotto

temas de interesse

continua sendo a

de pesquisadores

foi coordenador adjunto

e interagir com outros

de tornar a ciência

brasileiros pelo avanço

em ciências exatas e

pesquisadores. Com

uma atividade mais

da ciência, tecnologia

engenharias da Diretoria

a operação, a Elsevier

colaborativa.

e inovação no país.

Científica da FAPESP.

“Foi com surpresa e

“Participei da

satisfação que recebi a

concepção, implantação

notícia do prêmio”, disse

e administração, com

Zanotto, em entrevista

sucesso, de novos

ao Portal do CNPq. O

e paradigmáticos

professor coordena há

programas de fomento

mais de três décadas o

à pesquisa, como

Laboratório de Materiais

Genoma, Cepid, Pipe,

Vítreos (LaMaV) da

Consitec, Nuplitec, Scielo

UFSCar, responsável por

e a revista Pesquisa

diversas contribuições

FAPESP”, relembra.

Unesp adota inglês em 50 disciplinas A Universidade Estadual Paulista (Unesp)

va faz parte do esforço de internaciona-

trangeiro transfira com facilidade os

vai oferecer a partir de agosto 50 disci-

lização da Unesp. Segundo o pró-reitor

créditos para qualquer instituição que

plinas de pós-graduação ministradas em

de pós-graduação da universidade, Eduar-

adote o sistema. O estudante será

inglês em 14 unidades espalhadas pelo

do Kokubun, o objetivo é ampliar a diver-

matricula­do na Unesp como aluno espe-

estado de São Paulo. As aulas são volta-

sidade cultural em sala de aula e a par-

cial. A interação entre os estudantes da

das tanto para alunos estrangeiros quan-

ticipação de estudantes internacionais

Unesp e os colegas estrangeiros deverá

to brasileiros matriculados nos cursos da

nos programas de pós-graduação da

contribuir para a construção de um am-

Unesp. As 50 disciplinas envolverão

universidade. Cada programa terá um

biente multicultural e mais internaciona-

quatro áreas do conhecimento: ciências

grupo de disciplinas organizado de acor-

lizado, disse José Celso Freire Junior,

agrárias, energias alternativas, odonto-

do com um sistema de créditos vigente

responsável pela assessoria de relações

logia e literatura e linguística. A iniciati-

na Europa, permitindo que o aluno es-

exteriores da Unesp.

PESQUISA FAPESP 207 | 13


Tecnociência Mais matéria que antimatéria

1

Extremos do clima no Brasil

Pasto seco em Minas Gerais: chuvas e secas intensas devem se manter nos próximos anos

Em seus primórdios,

Review Letters, artigo

o Universo deve ter sido

submetido). Essa é a

composto pela mesma

quarta partícula a exibir

quantidade de matéria

tal comportamento, mas

e antimatéria, mas as

o grau de confiabilidade

observações atuais

das medições é sem

indicam que há muito

precedentes, segundo os

mais partículas do que

pesquisadores europeus.

antipartículas no Cosmos.

Embora esse tipo de

Um experimento com

violação possa ser

o objetivo de tentar

explicado pelo Modelo

entender essa assimetria

Padrão da física, teoria

fundamental foi

que dá conta do que é

conduzido no Grande

feita a matéria e de como

Colisor de Hádrons (LHC,

ela se comporta no nível

na sigla em inglês), maior

subatômico, alguns

acelerador de partículas

desvios talvez precisem

do mundo, situado nos

ser analisados por

arredores de Genebra.

meio de estudos mais

Batizado de LHCb, o

detalhados. “Sabemos

O clima no Brasil nos

mãos vazias a 2014,

próximos anos deve se

quando o IPCC vai soltar

experimento analisou

que os efeitos totais

manter estável, com

o próximo relatório”,

dados produzidos no

induzidos pela violação

temperaturas médias mais

disse Ambrizzi, um

ano de 2011 e encontrou

CP são pequenos

elevadas em todo o país,

dos coordenadores

evidências de que o

demais para explicar um

chuvas mais frequentes e

do relatório. “Agora

decaimento radioativo

Universo dominado pela

intensas no Sul e Sudeste

podemos detalhar por

das partículas

matéria”, disse Pierluigi

e secas mais frequentes

bioma ou por setores

subatômicas conhecidas

Campana, porta-voz

e intensas no Norte e

o que o IPCC falava

como mésons B0s gera

do LHCb. “No entanto,

Nordeste. “Todos os

para a América do Sul”,

mais matéria do que

ao estudar os efeitos

modelos [de simulação

comentou Eduardo Assad,

antimatéria – ou, como

desse tipo de violação,

climática] indicam que

da Embrapa, que também

dizem os físicos em

estamos procurando

a tendência de eventos

coordenou o relatório.

seu jargão, produz uma

pelos pedaços que faltam

climáticos extremos

Segundo Assad,

violação CP (Physical

desse quebra-cabeça.”

deve permanecer”,

a persistência de

comentou Tércio

temperaturas mais

Ambrizzi, da Universidade

elevadas e chuvas ou

de São Paulo (USP),

secas mais intensas deve

em abril, durante uma

causar uma redução na

apresentação dos

produtividade agrícola

resultados preliminares do

e de áreas para o plantio:

primeiro relatório nacional

“Temos de aumentar a

das mudanças climáticas.

produtividade agrícola”.

O relatório deve ser

As previsões indicam

lançado em setembro

que a Amazônia e a

pelo Painel Brasileiro de

mata atlântica deverão

Mudanças Climáticas

encolher, reduzindo

(PBMC), similar ao Painel

o volume dos rios e

Intergovernamental de

a quantidade de água

Mudanças Climáticas

disponível para

(IPCC). “Não queríamos

os moradores dos

que o país chegasse de

centros urbanos.

14 | MAIO DE 2013

Experimento LHCb: decaimento de mésons gera mais partículas que antipartículas

2


Nanotubos e chumbo, combinação fatal Nanomateriais podem ser prejudiciais à

rimento feito com tilápias expostas a

damente, os nanotubos não mostraram

qualidade de águas e saúde ambiental,

diferentes concentrações de nanotubos

nenhum sinal de toxicidade aguda até o

alertou Diego Stéfani Martinez, pesqui-

de carbono e chumbo por períodos de

limite de 3 miligramas/litro, mas aparen-

sador do Laboratório de Química do Es-

até 96 horas, ele e outros pesquisadores

temente causaram uma redução no con-

tado Sólido (LQES) do Instituto de Quí-

do LQES e do Instituto de Pesca de São

sumo de oxigênio e na eliminação de

mica (IQ) da Universidade Estadual de

Paulo, em Cananeia, concluíram que os

amônia pelos peixes. Os autores desse

Campinas (Unicamp), em um congresso

nanotubos podem aumentar em até cin-

trabalho chamam a atenção para as im-

internacional sobre segurança de nano-

co vezes a toxicidade aguda do chumbo

plicações de nanomateriais em ambien-

materiais realizado em novembro de 2012

para essa espécie de peixe (Journal of

tes aquáticos e suas interações com

na França. Como resultado de um expe-

Physics: Conference Series, março). Isola-

poluentes comuns como o chumbo.

Nanotubos: provável causa de redução do consumo de oxigênio em peixes

3

fotos 1 Valter Campanato / ABR  2 Anna Pantelia / Cern  3 Michael Strück / WikiCommons  4 Ikiwaner / WikiCommons

Bactérias em tumores

Por que dividir a comida Os chimpanzés, nossos

que eles têm em mãos, a

parentes mais próximos,

natureza de suas relações

compartilham comida

com quem está pedindo,

por várias razões: para

o grau de amizade com

manter ou fortalecer

o solicitante e o custo de

os laços sociais com

resistir aos pedidos,

parentes ou amigos

concluíram pesquisadores

próximos, para retribuir

dos Estados Unidos e do

alimentos que ganharam

Canadá (Animal Behavior,

antes ou para evitar

março). Para estudar os

o custo de solicitações

padrões de transferência

persistentes nesse

de alimentos, que

sentido. A decisão sobre

ajudariam a entender

As bactérias podem

prevalentes em câncer

iniciar, tolerar ou resistir

as motivações para a

ser encontradas em

de pâncreas e outras

à transferência de

cooperação entre

tumores não só porque

quatro são prováveis

comida envolve um

primatas, os cientistas

os causaram, como se

agentes causadores de

cálculo complexo e

fizeram um experimento

afirma há décadas,

tumores na bexiga e

inconsciente no qual os

com seis grupos de

mas também porque

na vesícula biliar. Como

animais consideram o

chimpanzés em cativeiro.

os colonizaram, como

conclusão geral, as

típicos agentes

bactérias se mostraram

sete a nove animais,

oportunistas, concluíram

mais como agentes

deram dois discos com

Joanne Cummins e Mark

oportunistas, capazes

30 centímetros de

Tangney, ambos da

de sobreviver em

diâmetro feitos de suco de

Universidade Cork, da

ambientes de pouco

fruta, água e amendoins.

Irlanda (Infectious Agent

oxigênio como os

Dos 51 chimpanzés,

and Cancer, março).

dos tumores, do que

45 que tinham comida

Revendo as pesquisas

causadores de tumores.

a compartilharam,

que associam câncer

Para os pesquisadores

deixando os animais se

com bactérias, os

irlandeses, estudos

alimentarem de discos

dois autores desse

mais aprofundados

que estavam em suas

estudo verificaram

sobre as estratégias

mãos ou caídos no chão.

que três espécies

de sobrevivência no

Pedidos pouco enfáticos

são mais comuns

microambiente tumoral

eram frequentemente

(prevalentes) em

poderiam indicar novos

ignorados e as demandas

tumores de pulmão,

vetores bacterianos

mais persistentes eram

enquanto duas outras

que facilitassem o

associadas a respostas

aparentemente os

transporte de drogas

que pareciam refletir

causam; quatro espécies

antitumorais, talvez assim

de bactérias são

reduzindo a toxicidade.

Hora do lanche: dividir expressa amizade ou gratidão

Para cada grupo, com

o desejo de resistir 4

às solicitações. PESQUISA FAPESP 207 | 15


Como viver quatro anos mais

1

Robô-mosca paira no ar

Inseto artificial é do tamanho da mosca-doméstica e bate as asas 120 vezes por segundo

Com mais atenção

de Saúde de São Paulo

à saúde, os idosos

é a redução das taxas

poderiam viver quatro

de internação e

anos mais se as mortes

mortalidade por

evitáveis fossem

doenças do aparelho

realmente evitadas,

circulatório. O

concluíram

problema, porém, é que

pesquisadores do

“esses programas estão

Instituto de Pesquisa

voltados apenas para a

Econômica Aplicada

população com idades

(Ipea) e da Fundação

entre 30 e 59 anos,

Oswaldo Cruz (Cadernos

excluindo assim a

de Saúde Pública, abril).

população idosa”,

Solange Kanso, do Ipea,

observam os autores.

e seus colegas

Cuidados extras com

verificaram que as

a saúde trariam mais

doenças crônicas –

anos de vida, por meio

principalmente as do

da eliminação das

coração (56,6%), gripe

principais causas

e pneumonia (9,3%) e

consideradas evitáveis,

tumores associados

principalmente entre

ao tabagismo (7,8%) –

a população masculina,

As moscas são acrobatas

transforma eletricidade

do ar, capazes de desviar

em movimento), cerca de

de um mata-moscas ou

120 vezes por segundo.

representam a maioria

que talvez esteja

de uma palmada em

Os pesquisadores

do total (82%) das

exposta a mais fatores

frações de segundo.

acoplaram seu robô-

causas de mortes

de risco e use menos o

Esses incômodos insetos

-voador a uma pequena

evitáveis de idosos com

sistema de saúde. “Caso

conseguem ainda

fonte de energia externa

até 74 anos no estado

não tivessem ocorrido

executar manobras

e descobriram que o

de São Paulo. No Brasil

esses óbitos”, relatam

difíceis, como pousar em

inseto artificial consome

existem políticas

os pesquisadores,

flores em movimento em

cerca de 19 miliwatts de

direcionadas para a

“a expectativa de vida

razão da presença de

eletricidade durante o

prevenção dessas

aos 60 anos, no

vento nas redondezas.

voo, aproximadamente o

doenças, a exemplo do

estado de São Paulo,

Assim, dotado de todos

mesmo que uma mosca

Plano Nacional de

aumentaria em 20,5%,

esses predicados de

de tamanho similar

Reorganização da

passando de 22,2 anos

difícil reprodução no

gastaria para realizar

Atenção à Hipertensão

para 26,8 anos, valor

laboratório, seria

essa tarefa. O projeto

e ao Diabetes Mellitus,

próximo ao observado

também o robô

tem como objetivo

dirigido para a

para o Japão”. Em 2007,

miniaturizado criado por

fornecer uma nova

população com 40 anos

66.190 idosos com até

Kevin Ma e seus colegas

maneira de estudar a

ou mais. Uma das metas

74 anos morreram no

da Universidade

mecânica de controle

da Secretaria Estadual

estado de São Paulo.

Harvard, nos Estados

de voo, agora numa

Unidos. Eles

escala equivalente à dos

desenvolveram um robô

menores seres da

com o tamanho

natureza capazes de

aproximado de uma

alçar voo e de passear

mosca que executa

pelo ar com extrema

proezas aéreas

desenvoltura. Outra

semelhantes às das

meta do trabalho, de

moscas-domésticas

acordo com os

(Science, 3 de maio).

pesquisadores, é

Feito de microestruturas

propiciar subsídios

de tecido compósito, o

para futuros estudos

robô-mosca bate suas

sobre fontes de energia

asas, confeccionadas

miniaturizadas, sensores

de um material

e tecnologias de

piezoelétrico (que

computação.

16 | MAIO DE 2013


Os cheiros e os micróbios

Onde está a lignina no bagaço da cana

Pesquisadores do Com o auxílio de um microscópio óptico

Instituto Max Planck de

confocal, um grupo de pesquisadores do

Imunobiologia e

Instituto de Física de São Carlos (IFSC)

Epigenética em Freiburg,

da Universidade de São Paulo (USP) con-

Alemanha, isolaram

seguiu identificar concentrações mínimas

fragmentos de proteínas

de lignina no bagaço da cana-de-açúcar,

conhecidos como

informação importante para a transfor-

peptídeos que formam

mação da biomassa em etanol celulósico.

o odor corporal de cada

Nos processos químicos de pré-trata-

pessoa e podem ativar

mento do bagaço para a produção do

as defesas contra

etanol de segunda geração, uma das

microrganismos

etapas é a retirada da lignina, que aumenta a rigidez da parede vegetal e dificulta o acesso à celulose e, portanto, a

2

causadores de doenças (Research in Germany,

Cana-de-açúcar: medições mais apuradas para localizar a lignina

março). Esses peptídeos

quebra dos açúcares. “Usamos um mi-

podem ser detectados

croscópio confocal de fluorescência para

“A maioria dos métodos usados atual-

pelas células sensoriais

mapear o local exato onde ela se encon-

mente só consegue medir concentrações

da mucosa do nariz e, ao

tra ao longo da parede da fibra da cana”,

de lignina de até 9% e nós já chegamos

mesmo tempo, espelham

explica Francisco Eduardo Gontijo Gui-

a 1%”, ressalta Guimarães. Por meio da

os genes de cada pessoa

marães, pesquisador que participa do

microscopia confocal, a equipe de Poli-

ligados aos mecanismos

projeto coordenado por Igor Polikarpov,

karpov mediu também as fibras de celu-

de reconhecimento

do IFSC-USP. Dessa forma, eles acreditam,

lose individualmente, o que representa

de microrganismos

é possível avaliar se os pré-tratamentos

um avanço em relação aos métodos hoje

causadores de doenças.

químicos usados no processo são efetivos.

em uso, que medem o conjunto de fibras.

Os estudos indicaram que pessoas, peixes, camundongos, aves e provavelmente outros

fotos 1 Kevin Ma e Pakpong Chirarattana  2 léo ramos 3 Randall Thompson Et Al / The Lancet  ilustraçãO daniel bueno

Múmias de 4 mil anos com aterosclerose

vertebrados recebem informações importantes

Até agora a

(The Lancet, 10 de

vegetarianas e tinham

sobre o sistema imune

aterosclerose, a

março). Segundo

levado uma vida

de um parceiro por meio

formação de placas

o médico Randall

fisicamente muito ativa.

de seu odor corporal.

de gordura nos vasos

Thompson, pesquisador

A idade média das

Desse modo, concluíram

sanguíneos, era vista

da Universidade de

mortes relacionadas

os cientistas, um

como uma condição

Missouri-Kansas,

diretamente à

parceiro é escolhido à

ligada à alimentação

Estados Unidos, e

aterosclerose era de

rica em gordura e ao

principal autor desse

43 anos. Nos últimos

sedentarismo: era uma

estudo, a identificação

séculos, os óbitos por

doença da modernidade.

de placas de gordura nas

infecções se tornaram

No entanto, a

paredes das artérias

bastante comuns.

aterosclerose foi

sugere que a doença era

detectada em 37% de

comum mesmo entre

137 múmias de quatro

populações distantes

continentes – 76 eram

entre si. Também levanta

do Egito, 51 do Peru,

a hipótese de que existe

5 dos Estados Unidos

uma predisposição

e 5 da região do Alasca

humana natural à

– que viveram ao longo

doença, que poderia ser

dos últimos 4 mil anos e

mais uma consequência

agora foram examinadas

do envelhecimento do

por meio de tomografia

que do tipo de dieta.

computadorizada

Todas as pessoas que

corporal total

foram mumificadas eram

medida que ofereça um Nas artérias aderidas aos ossos, sinais de uma doença comum

complemento aos genes e proteínas que ativam o sistema imune de cada pessoa.

3

PESQUISA FAPESP 207 | 17


1

18 | maio DE 2013 fotos  1 Luciano Moreira-Lima 2 Mario Cohn-Haft


capa

Novas aves da Amazônia Quinze espécies são descritas simultaneamente, na maior descoberta da ornitologia brasileira em 140 anos Marcos Pivetta

D

esde a segunda metade do século XIX a ornitologia brasileira não dava uma contribuição tão significativa para ampliar o conhecimento sobre a biodiversidade: 15 novas espécies de aves da Amazônia nacional serão formalmente descritas pela primeira vez numa série de artigos científicos previstos para serem publicados em julho num volume especial do Handbook of the birds of the world, da espanhola Lynx Edicions. Esse tomo fecha uma coleção de 17 livros que, por seu caráter enciclopédico e didático, é adotada como fonte de consulta por ornitólogos profissionais e amadores. Os autores das descrições pertencem a três instituições nacionais de pesquisa – Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (MZ-USP), Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), de Manaus, e Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), de Belém – e ao Museu de Ciência Natural da Universidade Estadual da Louisiania (LSUMNS), Estados Unidos. Os ornitólogos não apresentavam ao mundo, de uma

Nova espécie de gralha do gênero Cyanocorax, já ameaçada de extinção: encontrada apenas na borda de campinas naturais do sul do Amazonas

2

PESQUISA FAPESP 207 | 19


fotos  1 Fabio Schunck 2 Zig Koch  mapa daniel das neves

Poiaeiro-de-chicomendes, nome popular de espécie a ser descrita da família Tyrannidae (ao lado). Abaixo, nova espécie de arapaçu-de-bico-torto

1

só vez, numa única obra, um conjunto tão numeroso de novas aves brasileiras desde 1871, quando saiu o livro Zur Ornithologie Brasiliens. Nessa obra, escrita pelo austríaco August von Pelzeln (1825-1891), foram divulgadas 40 espécies de aves coletadas pelo naturalista Johann Natterer (1787-1843), também austríaco, em suas viagens pela Amazônia brasileira. Onze das novas espécies são endêmicas do Brasil e quatro podem ser encontradas também no Peru e na Bolívia. Oito ocorrem somente a oeste do rio Madeira, na parte ocidental da Amazônia; cinco habitam exclusivamente terras situadas entre esse curso d’água e o rio Tapajós, no centro da região Norte; e duas vivem apenas a leste do Tapajós, no Pará, na porção mais oriental da floresta tropical. No volume especial do Handbook, os autores descrevem a morfologia (formas e estruturas), a genética e a vocalização (canto e sons) das novas espécies. Por meio de mapas específicos para cada espécie, mostram ainda seus locais de ocorrência. No entanto, até que o livro seja oficialmente publicado, o nome científico e alguns detalhes sobre a anatomia e o modo de vida das novas espécies não podem ser divulgados.

D

essas aves até agora desconhecidas e sem registro na literatura científica, a maior e mais espetacular é uma espécie de gralha, do gênero Cyanocorax, com cerca de 35 centímetros de comprimento, que vive apenas na beira de campinas naturais situadas em meio à floresta existente entre os rios Madeira e Purus, no Amazonas. “Essa gralha está ameaçada de extinção”, diz Mario Cohn-Haft, curador da seção de ornito-

20 | maio DE 2013

logia do Inpa, principal descobridor do cancão-da-campina, nome popular cunhado para a ave. “Seu hábitat está em perigo e podemos perder a espécie antes de ter tido tempo de estudá-la a fundo.” Sua principal região de ocorrência é um complexo de campinas, distante 150 quilômetros ao sul de Manaus, numa área próxima à rodovia BR-319, que liga a capital amazonense a Porto Velho. A estrada está sendo reformada e os pesquisadores temem que o acesso facilitado ao local coloque em risco o hábitat da espécie. “A nova gralha também ocorre numa zona de campos naturais no sul do Amazonas, próximo a Porto Velho, onde há muitos colonos do Sul do país, que a confundem com a gralha-azul [um dos símbolos do Paraná]”, diz Cohn-Haft. Com exceção de uma ave da ordem dos Piciformes, que inclui tucanos e pica-paus, as demais espécies amazônicas agora apresentadas à comunidade científica pertencem à ordem dos Passeriformes. Popularmente chamados de passarinhos, os membros desse grupo representam aproximadamente 55% das espécies de aves conhecidas, como os pardais, canários, bem-te-vis e tantas outras. Além da gralha e do parente distante dos tucanos, serão descritos no livro cinco espécies da família Thamnophilidae (na qual se incluem os papa-formigas), quatro da família Dendrocolaptidae (todas novas formas de arapaçus), três da vasta família Tyrannidae (que compreende 400 espécies presentes do Alasca à Terra do Fogo) e uma da pequena família Polioptilidae (composta por menos de 10 espécies, em geral aves vulgarmente denominadas balança-rabo).

2


ficientemente bem conhecida e, assim, permitir o planejamento e a sustentabilidade das reservas As 15 espécies recém-descobertas ocorrem em três grandes regiões da Amazônia de biodiversidade já existentes e também das futuras.” Em paralelo venezuela à vida acadêmica, Whitney é sócio guiana francesa de uma empresa de ecoturismo, a guiana suriname Field Guides, que leva pessoas paRR Boa ra observar aves em vários pontos Vista AP do globo, inclusive da Amazônia. Colômbia Algumas das dezenas de expedi5 espécies ções feitas pela Amazônia nos úlentre os nas Belém azo rios Madeira Am timos 10 anos que levaram à dese Tapajós 8 coberta de novas espécies foram Manaus espécies custeadas, parcial ou totalmente, a oeste do rio Madeira por um projeto de Silveira financiaa r i PA de do pela FAPESP. Outras contaram Ma AM MA com apoio do CNPq, do Ministério rus Pu do Meio Ambiente, do Programa de AC Pesquisa em Biodiversidade do MiPorto nistério da Ciência e Tecnologia, de Velho 2 Palmas secretarias estaduais e até da ameespécies Ri oM ro a leste do ac ricana National Geographic Society. ha do rio Tapajós Numa dessas incursões pela floresta TO PERU tropical, no ano passado, duas deMT Bolívia zenas de pesquisadores e alunos de pós-graduação das instituições envolvidas no projeto alugaram duDesde o século Em termos numéricos, as novas rante um mês, por R$ 75 mil, um barco para perespécies amazônicas representam correr o rio Sucunduri, um afluente do Madeira, XIX não era um acréscimo de quase 1% na biodi- em busca de novas espécies de aves. versidade nacional de aves. “Somos descrito de uma o segundo país com maior númem outros momentos, os cientistas precisaro de espécies de aves conhecidas, ram até do apoio de proteção armada paúnica vez um cerca de 1.840”, afirma Luís Fábio ra entrar em regiões que poderiam abrigar Silveira, curador do setor de ornito- novas formas de aves. A localidade tipo de uma número tão logia do Museu de Zoologia da USP, das novas espécies, um arapaçu-de-bico-torto, é grande de novas um dos coordenadores da iniciativa. a Floresta Nacional de Altamira, próxima à rodo“Apenas a Colômbia tem mais espé- via BR-163, no sul do Pará. A área é uma unidade espécies de aves cies do que nós, aproximadamente de conservação do Ibama. “Mas, para podermos 1.900. Mas, daqui a uma década, de- trabalhar com segurança na reserva, tivemos de brasileiras vemos chegar às 2 mil espécies de ser escoltados por soldados do Exército brasileiro. aves conhecidas no Brasil. Há vários Havia um garimpo ilegal em funcionamento na exemplares de aves desconhecidas unidade”, conta Aleixo, da seção de ornitologia nos museus brasileiros, oriundos de do MPEG. “A tensão de trabalhar num lugar asdiversos biomas, que serão descritos sim é grande e, não fosse a presença do Exército, nos próximos anos.” não teríamos conseguido.” As aves são o grupo de vertebraModernamente, o processo de descrição de esdos mais estudado da biologia. No entanto, pa- pécies recém-descobertas ocorre nas páginas de rece haver muito a ser conhecido, especialmente revistas científicas, não mais em livros. Mas a imna Amazônia, ainda que esse bioma tenha sido portância e a singularidade do conjunto de novas alvo de muitas pesquisas nas últimas décadas. espécies de aves amazônicas fizeram os editores “A biodiversidade em geral, e mesmo a de aves da enciclopédia e os autores dos trabalhos optadeste bioma, está longe de ter sido completa- rem por um caminho alternativo. Cada nova espémente amostrada”, diz o ornitólogo Bret Whit- cie foi alvo de um paper independente, um artigo ney, pesquisador do Museu de Ciência Natural científico, nos moldes do que seria preparado para da Universidade Estadual da Louisiania e prin- um periódico acadêmico, e a equipe do Handbook cipal coordenador da empreitada. “Ainda fal- contratou os serviços de um grupo de especialista muito para a Amazônia ser considerada su- tas para atuar no processo de revisão por pares e

Onde vivem as novas aves

Toca ntin s

Ta pa jó s

Ar ag ua ia

elt Rio Roosev

Aripuanã

u Xing

E

PESQUISA FAPESP 207 | 21


O canto dos passarinhos Gráficos mostram as diferenças sonoras entre as vocalizações de espécies semelhantes do gênero Herpsilochmus (ao lado) 4 3 2

Frequência (kHz)

1 0 4 3 2 1 0 4 3 2 1 0 0.5

1

1.5

2

aprovação dos textos com as descrições formais de cada espécie. Para a ciência, o texto que descreve e batiza com um nome em latim, composto de dois termos (gênero e espécie), uma nova forma de vida equivale ao atestado de nascimento da espécie. Serve também como uma documentação fundamental da biodiversidade de uma região, no caso das aves da Amazônia, e para a formulação de políticas públicas de caráter ambiental. A iniciativa de publicar todas as novas espécies de uma vez ganhou corpo no ano passado e foi coordenada por Whitney, Silveira, Cohn-Haft e Aleixo, sempre com a participação de alunos de pós-graduação de suas respectivas instituições. O grupo estava produzindo textos para o 17º volume do Handbook, que traria informações de espécies de aves descobertas recentemente em todo o mundo, entre 1992 e 2011. As espécies formalmente descritas pela ciência nesse período haviam ficado de fora dos demais 16 livros da série, que resumiam e organizavam dados de cada membro das famílias conhecidas de aves. Inicialmente, o volume especial da obra trataria de 68 espécies, todas já descritas formalmente em papers publicados em revistas científicas nas últimas duas décadas, o que dá uma média de menos de 4 novas espécies descobertas por ano. No final, o livro extra trará 83 espécies, incluindo as 15 da Amazônia cuja descrição científica ocorre excepcionalmente no próprio livro. Ao optar por revelar simultaneamente as novas espécies numa única obra, a ideia do grupo era chamar a atenção para a importância de preservar a biodiversidade da Amazônia, onde podem ser encontrados dois terços das espécies de aves presentes no Brasil. “Se publicássemos cada paper em separado, em revistas distintas, o impacto não seria o mesmo”, diz Silveira. O ato de procurar por aves no meio natural remete à imagem de um sujeito de bermudas, ca22 | maio DE 2013

2.5

3

Tempo (s)

O Brasil é o segundo país do mundo com mais espécies de aves conhecidas, cerca de 1.840

miseta, chapéu e binóculos na mão. Talvez uma máquina fotográfica também componha o cenário. No entanto, um item não mencionado é mais do que obrigatório para os ornitólogos: um gravador. A maioria das 15 novas espécies foi, inicialmente, identificada por seu cantar, que, aos ouvidos dos especialistas, apresentava caráter diferente ou pouco familiar. “Não é preciso ser superdotado para reconhecer um cantar diferente. É questão de treino”, diz Whitney. “É como reconhecer pelo primeiro acorde uma música nova de sua banda favorita.”

H

á apenas duas décadas, a descrição de uma nova espécie de ave, como ocorria com a maioria dos seres vivos, se baseava apenas na singularidade de sua anatomia e aparência externa. Se a plumagem e as estruturas ósseas de um exemplar eram diferentes significativamente dos traços encontrados nas espécies conhecidas, esse animal podia ser rotulado como sendo de uma nova espécie. Hoje, além da morfologia, outros dois critérios fundamentais são usados para propor a existência de novas espécie de aves: a análise de suas vocalizações e de seu material genético. “Atualmente há pesquisadores que propõem a existência de uma nova espécie de ave mesmo quando apenas um desses três parâmetros se


fotos Fabio Schunck

O

Bico-chato-do-sucunduri (acima). Nova espécie da família dos Bucconidae (ao lado)

mostra distinto das demais espécies conhecidas”, afirma Silveira. “Fomos conservadores em nosso trabalho e propusemos uma nova espécie apenas quando encontramos divergências em pelo menos dois desses três critérios.” Com a ajuda de softwares especializados, o canto gravado de cada candidata a nova espécie de ave foi comparado com vocalizações homólogas de espécies semelhantes. Às vezes, bastaram uns poucos segundos de comparação para confirmar a primeira impressão captada pelo ouvido treinado dos ornitólogos: as frequências sonoras emitidas pelas novas espécies eram distintas dos cantos produzidos por aves aparentadas, mesmo de algumas espécies que lhes eram fisicamente extremamente semelhantes. De cada ave descoberta, os pesquisadores também sequenciaram alguns milhares de pares de bases de genes presentes no DNA nuclear e nas mitocôndrias, organelas celulares responsáveis pela produção de energia que têm genoma próprio, independente, frequentemente usado para estudos de filogenia. O material genético foi comparado com o DNA de espécies já conhecidas a fim de averiguar sua singularidade e montar, quando possível, relações de parentesco ou uma árvore filogenética da nova espécie. “Para boa parte das novas aves que estamos descrevendo, a confirmação de que se tratava de espécies diferentes foi realmente obtida com a inclusão do aspecto genético nas análises”, comenta Aleixo. “Isso reforça a importância de que a coleta científica de espécimes tem que ser acompanhada pela obtenção de material genético, algo que, infelizmente, ainda não é praticado em vários museus e coleções de todo o Brasil.”

s estudos genéticos são capazes de revelar informações preciosas sobre as origens das espécies. A história evolutiva de duas novas aves agora descritas, dois chorozinhos do gênero Herpsilochmus, é bem ilustrativa do tipo de contribuição que pode ser obtida com essa abordagem. Ambas as espécies são quase iguais do ponto de vista morfológico, mas suas vocalizações são nitidamente distintas. Uma das aves habita um trecho da margem direita do rio Madeira e outra vive apenas na margem esquerda. Nesse caso, o Madeira, cuja distância entre as margens pode atingir quase 10 quilômetros em alguns pontos, funciona como uma barreira natural entre as duas populações de aves, que não mantêm contato uma com a outra. A separação prolongada dos dois grupos de chorozinhos levou ao processo evolutivo que os biólogos denominam especiação: o surgimento de uma nova espécie, no caso de duas, originadas da fragmentação de uma população ancestral comum e que hoje ocorrem em ambientes sem comunicação (efeito vicariante). Apesar das enormes semelhanças morfológicas entre as duas populações de chorozinhos, os estudos genéticos relevaram – e esse é o dado realmente surpreendente – que elas foram isoladas pelo Madeira 2 milhões de anos atrás. O papel dos grandes rios da Amazônia, barreiras geográficas intransponíveis para muitas espécies, no surgimento de novas formas de vida é bem conhecido pela ciência. Segundo os ornitólogos, a novidade é que mesmo cursos d’água não tão monumentais podem desempenhar a mesma função em certos casos. Pelo menos três novas espécies foram descobertas, por exemplo, na região que fica entre os rios Aripuanã e Machado, no sul do Amazonas e norte de Rondônia: um dos chorozinhos acima mencionados, a choquinha-do-rio-roosevelt e o cantador-de-rondon (esses são os nomes populares das aves). Essa área, por onde passa também o rio Roosevelt, funcionou como um refúgio para espécies menores de aves, que ficaram “presas” e acabaram, com o passar dos anos, desenvolvendo características próprias no interior do território entre as margens dos cursos d’água. “Alguns rios da Amazônia foram mudando seu percurso ao longo da história evolutiva”, afirma Silveira. “Às vezes, esse processo de acomodação dos leitos de rios promove a separação de populações de aves que antes habitavam o mesmo ambiente.” Os numerosos rios que serpenteiam pela maior floresta tropical são uma caudalosa fonte de biodiversidade, dentro e fora de suas águas. n Projeto Sistemática, taxonomia e biogeografia de aves neotropicais: os Cracidae como modelo (2007/56378-0); Modalidade Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa. Coord. Luís Fábio Silveira – MZ-USP; Investimento R$ 86.928,28 (FAPESP).

PESQUISA FAPESP 207 | 23


Léo ramos

entrevista Michel Rabinovitch

Um método para inocular ciência Neldson Marcolin e Ricardo Zorzetto

A

o procurar um texto de referência, o professor Michel Pinkus Rabinovitch abre uma pasta no computador com uma infinidade de outras pastas, cada uma delas relativa a um tema de estudo ou interesse. Os assuntos são variadíssimos e todos remetem a alguma área da ciência. Quando concedeu a entrevista a seguir, no começo deste ano, ele estava empenhado em estudar uma pequena molécula supostamente tóxica para tumores ao mesmo tempo em que pesquisava a vida de alguns cientistas para compor textos sobre história da ciência. A curiosidade intelectual, inata em todo pesquisador que se preze, continua intacta em um professor que era procurado por alunos com interesse em pesquisa na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) dos anos 1950. Inicialmente interessado em hematologia, Rabinovitch formou-se em 1949, doutorou-se dois anos depois e se tornou professor adjunto de histologia e embriologia em 1959. Ao final de uma carreira de 15 anos na USP, onde orientou e formou uma geração brilhante de jovens, o cientista deixou o Brasil em 1964,

24 | maio DE 2013

ameaçado pelo regime militar, e iniciou uma peregrinação de 33 anos em instituições dos Estados Unidos e da França. Foi pesquisador e professor na Universidade Rockefeller e na Escola de Medicina da Universidade de Nova York, onde acolheu os pesquisadores brasileiros Bernardo Mantovani, Momtchilo Russo e Clara Barbieri Mestriner; e no Instituto Pasteur, em Paris, onde orientou Silvia Celina Alfieri, Liège Galvão Quintão e Patricia Veras. Estudou biologia celular, pesquisou protozoários e bactérias e conheceu pesquisadores como Hewson Swift, Daniel Mazia, Zanvil Cohn, Rollin Hotchkiss e Ralph Steiman, entre outros. Em 1997 Rabinovitch voltou definitivamente ao Brasil para a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), na capital paulista, onde novamente formou pesquisadores e ainda hoje ajuda na orientação de alunos e participa de reuniões científicas da área de parasitologia e microbiologia. Aos 87 anos, Rabinovitch mora em um apartamento abarrotado de livros perto da universidade, aonde vai a pé. Nesta entrevista, ele contou sobre sua extensa e rica trajetória científica no Brasil e no exterior.

idade 87 anos especialidade Parasitologia e biologia celular formação Universidade de São Paulo (graduação e doutorado) Universidade de Chicago (pós-doutorado) instituições Universidade de São Paulo Universidade Rockefeller Universidade de Nova York CNRS/Instituto Pasteur instituição atual Universidade Federal de São Paulo



O senhor tem fama de ser o formador de pesquisadores como Ricardo Brentani, Nelson Fausto, Thomas Maack e Sérgio Henrique Ferreira, entre outros. O que propiciou a formação de gente tão qualificada? Vários fatores. Na década de 1950 existiam alguns grupos excelentes de pesquisa básica no Instituto Biológico, no Instituto Butantan e na Faculdade de Filosofia da USP. Eu mesmo frequentei as conferências das sextas à tarde no Biológico, presididas por Henrique da Rocha Lima. Na mesma época o ambiente científico nas cadeiras básicas da FMUSP era limitado a alguns excelentes investigadores isolados, entre os quais Floriano Paulo de Almeida, Carlos da Silva Lacaz e Wilson Teixeira Beraldo. Em iniciativa pioneira, hoje pouco lembrada, do fim da década de 1940, por alguns anos, desenvolveu-se no quarto andar da FMUSP o Laboratório de Câncer Andrea e Virginia Matarazzo, dirigido por Piero Manginelli, que trouxe a cultura de tecido e a cancerologia para a Faculdade de Medicina, como tinha feito Robert Archibald Lambert na década de 1920. As grandes mudanças do meio do século nas cadeiras básicas da faculdade se iniciaram com Luiz Carlos Junqueira, seguido por Isaias Raw e Alberto Carvalho da Silva. Antes disso as oportunidades para o treinamento de estudantes em ciência experimental eram poucas. Os estudantes interessados em pesquisa clínica se dirigiam para o HC, já povoado por clínicos-pesquisadores de alto nível como Michel Abujamra, meu guru e amigo vitalício, Helio Lourenço de Oliveira, José Barros Magaldi e Dirceu Pfuhl Neves. Nesse contexto eu era um franco-atirador informal, pouco autoritário, recém-chegado de excelente experiência nos Estados Unidos, de 10 a 12 anos mais velho do que os estudantes, interessado em música, leitura e no papel da ciência na sociedade. Além disso, minha vida pessoal permitia conviver com os estudantes dentro e fora do laboratório. Acredito que esses fatores contribuíram para aquele evento histórico, difícil de ser reproduzido hoje.

O professor Brentani disse em uma entrevista que os jovens com talento para pesquisa na FMUSP eram orientados pelos professores a “procurar o Rabino”. O Ricardo era atraído pela pesquisa, me procurou e a gente trabalhou muito junto – e nos divertimos muito também. O Departamento de Histologia era mesmo o melhor da faculdade? Em 1946 ou 1947 a ciência no Departamento de Histologia e Embriologia continuava voltada para a anatomia microscópica, embriologia e teratologia: ela era descritiva, tradicional, pré-moderna. Microscópios, micrótomos, estufas e corantes eram os instrumentos utilizados. Aprendi as técnicas assessorado por

amplo laboratório arejado, ricamente mobiliado pela Fundação Rockefeller com câmara fria, centrífugas, eletroforese, balanças, espectrofotômetros, coletor de frações, microscopia, microcinematografia, um armazém de corantes e produtos para histoquímica. A pesquisa para Junqueira envolvia não só a microestrutura como a histofisiologia, histoquímica, radioautografia, estudo de células vivas e a abordagem química e bioquímica, inicialmente desenvolvida por Hannah Rothschild e, mais tarde, por José Ferreira Fernandes e outros. Generosamente apoiado pela Capes e pelo CNPq, o departamento treinou numerosos estudantes e pós-doutorandos de São Paulo e outros estados; alguns se tornaram membros do departamento, como José Ferreira Fernandes, Ivan Mota; outros, como Chapadeiro, Tafuri (ambos de Minas) e José Carneiro S. Filho tiveram carreiras brilhantes. Junqueira também trouxe para a FMUSP, por períodos curtos, professores estrangeiros de alto nível que davam minicursos preciosos. Entre eles, Eleazar Sebastián Guzman-Barron, Johanes Holtfreter e George Gömöri. Foi a primeira revolução das ciências básicas da FMUSP, pouco depois seguida pelas metamorfoses da bioquímica, da fisiologia e da parasitologia lideradas por Isaias Raw, Alberto Carvalho da Silva e pelos companheiros de Samuel Pessoa, como o casal Deane, Luiz Hildebrando Pereira da Silva e o casal Nussenzweig.

Perdi minha mãe com leucemia aguda e meu pai com tumor no rim. Por isso fui estudar medicina

26 | maio DE 2013

José dos Santos, um técnico esplêndido. Aos alunos de medicina ensinava-se o necessário para a compreensão da fisiologia e da patologia. O mesmo ocorria em outros departamentos. O professor José Oria percebia que a mudança era necessária. Ele mesmo me deu um volume de um simpósio de Cold Spring Harbour de 1947 sobre ácidos nucleicos. Em 1948, a tomada de poder pelo Junqueira, que aos 28 anos possuía doutoramento, docência e assumia a cátedra por concurso, revolucionou o departamento, agora rebatizado de Departamento de Biologia Celular. Em um incidente pitoresco, a ocupação relâmpago de um largo espaço livre no segundo andar permitiu a construção de um

Por que optou por estudar medicina? Perdi meus pais cedo. A mãe com leucemia aguda e o pai com tumor de rim. Tinham 46 e 47 anos. Foi por isso que estudei medicina. Antes disso estava me preparando para fazer engenharia, a profissão do meu pai. Me interessei pela hematologia por causa da leucemia e escolhi o Oria e depois o Michel Abujamra como mentores. Um dos meus primeiros artigos se chama “Aspectos citoquímicos da célula leucêmica”. Em 1944 entrei na faculdade e me formei em 1949. Meu pai se formou em Lausanne, na Suíça, onde conheceu o artista plástico brasileiro An-


tonio Gomide, que insistiu para que ele se mudasse para o Brasil. Ele veio. Começou pelo Rio Grande do Sul e terminou em São Paulo. Ainda existem prédios por aqui construídos por uma firma da qual meu pai era sócio. Conheceu minha mãe em São Paulo, que chegou de Odessa, Ucrânia, em 1910. A família de sua mãe imigrou antes? O primeiro a chegar ao Brasil, aos 18 anos, em 1888, foi meu tio-avô do lado da minha mãe, Jacob Zlatopolsky, que veio sozinho para cá. Trabalhou numa tipografia no Brás, virou dono do negócio e montou uma papelaria na rua São Bento, 21A. Ainda me lembro do perfume do lápis alemão da Faber, daquele cheiro de cedro que dominava o ambiente. Em 1910, ele mandou vir a família, que morava em Genebra. Acabou se casando com uma sobrinha, Genia, que não teve filhos e com quem eu e meus irmãos moramos depois que meus pais morreram. O senhor começou a pesquisar já durante a graduação? Meu primeiro artigo é de 1947, quando eu cursava o quarto ano de graduação. Eu matava aula para trabalhar no laboratório sabendo que ia ser pesquisador. Nunca fiz um parto na vida. Meu primeiro artigo foi publicado em francês na Revista Brasileira de Biologia. O trabalho tratava do dimorfismo sexual da glândula submaxilar do camundongo, modelo que foi depois intensamente explorado por Junqueira e seus colaboradores. O tema tinha sido sugerido a Junqueira pelo radiobiólogo francês A. Lacassagne, que durante a Segunda Guerra Mundial descobriu o dimorfismo sexual das submaxilares de rato; ele nos visitou na FMUSP provavelmente em 1946.

para microscopia eletrônica de cortes ultrafinos de tecidos congelados e dissecados. Percebi que não era coisa para mim e, com anuência da Fundação Rockeffeler, fui trabalhar no Departamento de Medicina da mesma universidade com Eleazar Sebastián Gusman-Barron, que então orientava Hannah Rothschild, colaboradora de Junqueira. Os pesquisadores também iam para fora do país? Sim. Foi o caso de Hannah, o meu e, mais tarde, o de Ferreira Fernandes, Ivan Mota e outros. Gusman-Barron me propôs verificar se a molécula da ribouclease pancreática tinha um grupo sulfidrila livre como acreditavam pesquisadores belgas. Barron pediu para eu utilizar ini-

quisadores. Depois do curso de biologia celular, quem quisesse podia ficar o resto do verão. Eu fiquei, em um espaço que me cederam. Montei uma experiência que tentava estudar a síntese de rodopsina no olho de sapo. Não deu em nada, mas o Mazia gostou de mim e me convidou para trabalhar no laboratório dele em Berkeley. A Rockefeller autorizou. Foram somente quatro meses, mas valeu a pena. Por que esse período foi importante? Porque me associou a um projeto extremamente interessante. O Mazia juntou três cientistas de alto nível: Walter Plaut, que dominava técnicas de radioautografia de alta resolução; David Prescott, um excelente biólogo celular; e Lester Goldstein, especializado em micromanipulação e microcirurgia de células em microscópio. Eles conseguiram a primeira demonstração sólida de que o RNA sai do núcleo e vai para o citoplasma. Para isso marcavam o núcleo de amebas com fosfato radioativo. O núcleo marcado era transferido para outra ameba da qual se tinha removido o núcleo. A passagem do isótopo para o citoplasma era demonstrada por radioautografia. Pensaram inicialmente que o isótopo estivesse associado ao DNA. Como eu trabalhava no laboratório do Hewson, conhecia um método muito simples de mostrar se o isótopo estava no DNA ou no RNA. Demonstrei para eles que o fosfato estava no RNA e que era o RNA que migrava para o citoplasma.

Na faculdade eu matava aula para trabalhar no laboratório já sabendo que ia ser pesquisador

Quando o senhor foi para Chicago? De setembro de 1953 a setembro de 1954 fui bolsista da Fundação Rockefeller na Universidade de Chicago, nos Estados Unidos. Comecei trabalhando no laboratório de Microscopia Eletrônica de Isidore Gerch, um excelente cientista. Ele estava desenvolvendo um método

bidores e medir a atividade enzimática. Fiz isso e publiquei um paper com ele mostrando os resultados. Em Chicago tive também a oportunidade de conhecer o notável biólogo e ser humano Hewson Swift, do Departamento de Zoologia. De lá o senhor foi para a Califórnia? Fui para a Universidade da Califórnia em Berkeley a convite de Daniel Mazia. Eu estava chateado em Chicago e resolvi fazer o curso de fisiologia celular no Marine Biological Laboratory, em Woods Hole, perto de Boston, no verão de 1954. Entre os professores estavam James Watson e George Wald. Por coincidência, estavam lá o Hewson Swift e o Daniel Mazia, outro biólogo que formou gerações de pes-

O senhor publicou com eles? Com o Plaut publiquei um artigo em 1956 sobre o que acontecia quando o núcleo marcado era transplantado para uma célula nucleada. Ficamos amigos. Depois que Plaut migrou para a Universidade de Wisconsin, em Madison. Ele veio para o Brasil duas vezes e deu aula na USP. Em Wisconsin Plaut pensou ter encontrado síntese de DNA no citoplasma das amebas e assumiu que poderia se tratar de DNA mitocondrial. Visitando o laboratório, demonstrei que a incorporação de isótopo era devido à presença de PESQUISA FAPESP 207 | 27


bactérias simbiontes nas amebas que ele utilizava. Plaut se convenceu e publicamos dois artigos sobre isso no Journal of Cell Biology. Em outro estudo demonstramos que os sibiontes se multiplicam sem controle nas amebas enucleadas. Esse trabalho foi feito nos Estados Unidos. O senhor conseguiu fazer algo parecido no Brasil? Muitos anos depois, de volta a São Paulo, na Unifesp, comecei a infectar células enucleadas com vários patógenos. Como foi quando voltou ao Brasil depois dessa sua primeira saída? Voltei em 1955. Foi aí que vieram todos aqueles estudantes talentosos estudar comigo. Contei que tinha trabalhado em ribonuclease [tipo de enzima que catalisa a degradação do RNA] no laboratório do Gusman-Barron. Aí nos perguntávamos: tem ribonuclease no sangue? Tinha. Tem no soro? Por que não procuramos saber de onde vem a do soro? Foram nessas pesquisas que entraram o Sergio Dohi, o Thomas Maack, o Brentani, o Nelson Fausto. Experiências envolvendo a retirada dos rins em diferentes espécies de animais sugeriram que o rim filtra a ribonuclease. Em cooperação com colegas da nefrologia, demonstramos que a atividade da ribonuclease sérica era também elevada em pacientes com insuficiência renal. O rim filtra e degrada a enzima. Em experimento clássico sugerido pelo nefrologista Israel Nussenzweig, da USP, a urina dos ureteres no cão era desviada para o sistema venoso. Nesse caso o animal desenvolvia uremia, mas a ribonuclease do soro não subia.

O senhor foi nomeado e não assumiu. Se eu assumisse não sairia do Brasil e iria preso. Eu tinha muito pouca atuação política, mas muitos dos meus estudantes eram trotskistas, outros comunistas, e eu era acusado de ser o mentor deles. Mas nunca fui do Partido Comunista. Eu não gosto do poder de poucos nem de partido político, sou anarquista. De repente o senhor se viu desempregado, sem USP nem UnB. É, fiquei. Não fui atingido pelo AI-5 porque saí do país. No dia 1º de abril foi instalada uma Comissão de Inquérito na USP que começou a me investigar. O representante da repressão na Faculdade era o professor Geraldo de Campos Freire, que procurei para perguntar

Ficou quanto tempo escondido? Uns 10 dias. Walter Plaut, que sabia da história, escreveu dizendo que tinha emprego para mim em Madison. Era uma opção, mas eu preferia ir para a Universidade Rockefeller, porque me interessava pelos trabalhos de Cohn e Hirsch sobre lisossomas [organelas celulares]. Por que não voltou com a anistia? Porque aí já tinha esposa e filhas. Além disso, quando mataram o Vladimir Herzog, fiquei tão enraivecido que entreguei meu passaporte ao consulado brasileiro em Nova York e me vi sem nacionalidade. Achei que aquelas barbaridades nunca iam acabar. Tive de pedir a nacionalidade americana. Vocês se lembram do Frei Tito [Alencar de Lima], preso e torturado pelos militares? Quem traduziu o artigo dele para o inglês fui eu, para publicar na revista Look, em 1970. A gente fazia o que podia para ajudar. Quando eu voltei para cá, o Fernando Henrique Cardoso era presidente e me devolveu a cidadania brasileira; e José Goldemberg, então reitor da USP, me aposentou. E hoje sou professor emérito. Bonito, não é?

Quando mataram o Vladimir Herzog, fiquei tão enraivecido que entreguei meu passaporte

Quem o convidou para ir para a Universidade de Brasília, a UnB, em 1964? Interessado no projeto fantástico da UnB, eu me ofereci e escrevi para o professor Maurício Oscar da Rocha e Silva, então encarregado da Biologia. Estive em Brasília duas vezes em reunião com Antonio Cordeiro e outros. No dia 1º de abril de 1964 fui nomeado professor em Brasília. Não tomei posse. 28 | maio DE 2013

por que ele estava me investigando. Ele respondeu que minha consciência deveria saber. Prenderam o Thomas Maack. Durante a reunião da SBPC em Ribeirão Preto, apareceram tiras para prender o Luiz Hildebrando [Pereira da Silva] e a mim. O Hildebrando, como bom comunista, saiu pela frente, se entregou e foi para a cadeia. O Mauricinho [Rocha e Silva, filho de Maurício Oscar da Rocha e Silva] me avisou que estavam me procurando e me levou para São Paulo no seu Fusca. Nunca mais vi minha perua Willis, da Ford, que se destinava a transportar homens e bagagens de São Paulo a Brasília. Me refugiei na casa de meu primo José Mindlin, onde fui visitado por amigos, mas não pelos tiras.

O senhor foi investigado? Fui, mas estava fora. A promotoria recorreu três vezes e fui inocentado em todas. Isso no Inquérito Policial Militar, que correu a minha revelia. Meu advogado era o Mário Simas, que ajudou muita gente de esquerda. A ironia é que devo minha carreira no exterior aos militares. Passei 16 anos nos Estados Unidos, 15 na França e voltei há 17. Por que foi para a França? Entre 1980 e 1981 fiz um ano sabático na Unidade de Parasitologia Experimental do Instituto Pasteur, para estudar Leishmania com Jean Pierre Dedet no laboratório dirigido por Luiz Hildebrando. Voltei para Nova York e comecei os projetos sobre os vacúolos parasitóforos de macrófagos infectados. Em 1984 surgiu a oferta para trabalhar no Centre National de la Recherche Scientifique, lotado no Instituto Pasteur. Eu não podia recusar.


Sua segunda mulher era americana? Era suíça, Odile Levra, mas morava em Nova York. Tive duas filhas americanas. A mais velha, Miriam, mora em Paris e, com Serge, teve minha única neta, Eleanor, de 4 anos, o pequeno, grande amor de minha vida. Minha filha mais nova, Caroline, mora em Nova York. Formada em cinema, é uma escritora potencial. Por que voltou para Nova York depois de Paris? Meu primeiro período na Rockefeller gerou amigos de longa data. Um era o Jim Hirsch, interessado em tuberculose e depois em neutrófilos, macrófagos, quimiotaxia e fagocitose. Jim faleceu em 1987. Zanvil Cohn foi um amante de macrófagos e de suas múltiplas funções. Quando Cohn soube que eu iria me aposentar do Pasteur em 1994, escreveu me convidando para passar um ano na Rockefeller. Infelizmente Cohn nos deixou subitamente. Seu sucessor, Ralph Steinman, fez questão de manter o convite. Foi assim que eu passei mais um ano na Rockfeller antes de voltar para o Brasil. Durante aquele ano trabalhei no laboratório de Gilla Kaplan coinfectando células com Coxiella burnetii de fase II e Mycobacterium avium e Mycobacterium tuberculosis. Infelizmente Ralph também faleceu. O lugar dele foi ocupado pelo brasileiro Michel Nussenzweig [filho de Ruth e Victor], que foi meu aluno no curso de medicina da Universidade de Nova York.

Comparei as capacidades de fusão dos vacúolos de Leishmania e de Coxiella com pequenos fagossomas contendo partículas inertes. Produzi um artigo com a Denise Mattei e a Patrícia Veras, que era minha pós-doutoranda da Bahia, sobre este assunto. Um dia estava tomando banho e me ocorreu uma ideia. Tenho no laboratório dois patógenos que vivem em lisossomas. O que aconteceria se uma mesma célula fosse infectada pelos dois? Eles ficariam em compartimentos separados ou iriam partilhar os mesmos vacúolos. Pensado e feito. No mesmo dia, células infectadas por Coxiella foram também infectadas com Leishmania amazonensis. No dia seguinte, muitas Leishmania se encontravam nos vacúolos das Coxiella.

vídeos magníficos que comoveram alguns biólogos. Mais tarde demonstrei que micobactérias em vacúolos apertados também podem penetrar dessa forma nos vacúolos ocupados por Coxiella. Esse modelo, porém, ainda não foi estudado como deveria. Como o senhor voltou para o Brasil e escolheu a Unifesp? Tinha colegas e amigos na Escola Paulista de Medicina da Unifesp que me conheciam bem e me convidaram a me juntar a eles. Não me arrependi. Tem cargo lá? Sou aposentado da USP e professor colaborador na Unifesp. Não ganho salário da Unifesp, mas recebi um laboratório e mantenho um pequeno escritório que ainda uso. Frequento seminários, participo de reuniões em duas disciplinas e aconselho estudantes e outros, quando solicitado. De vez em quando sou chamado para dar alguns seminários sobre história, sociologia e política da ciência, por exemplo.

Não é preciso ser um grande cientista para induzir os estudantes a fazerem ciência

Além dessas bactérias, o senhor estudava também a Leishmania? Sim. No caso da Leishmania, há espécies que habitam grandes vacúolos [vesículas] semelhantes a fagolisossomas. Outras ocupam vacúolos com pouco espaço livre. Quando trabalhava no Instituto Pasteur, soube que a bactéria Coxiella burnetii, agente da febre Q humana ou animal, também ocupa vacúolos grandes com características de lisossomas [outro tipo de vacúolo] semelhantes aos da Leishmania.

Mais ainda, as Leishmania se dividiam nos vacúolos emprestados e se transformavam reversivelmente em promastigotas flageladas. Mas o experimento inverso não funciona. Se você infecta as células primeiro com Leishmania, espera um dia e reinfecta com Coxiella, os dois organismos ficam cada um em seu vacúolo. Isso foi em 1995 e representou a criação do que denominei a construção de vacúolos quiméricos, que não existem só na nossa imaginação. O experimento foi depois repetido por Patricia com o Trypanosoma cruzi. Neste caso, os Trypanosoma nadavam circulando pela periferia dos vacúolos de Coxiella como se estivessem procurando uma saída. Fizemos uns

Vamos fechar esta entrevista com o mesmo tema do começo: qual o melhor jeito de formar cientistas? Minha experiência e as de outros me mostraram que não é preciso ser um grande cientista para induzir os estudantes a fazerem ciência. Os melhores educadores e formadores de cientistas transmitem seu entusiasmo pela ciência e enfatizam a importância da curiosidade e da necessidade de brincar com as ideias. Há uma diferença entre a iniciação científica e o desenvolvimento do cientista como profissional. Não acho que tenha feito grande ciência. O que de realmente importante aconteceu foi pertencer a uma comunidade que queria aprender junto. Por sua trajetória, nos parece que o senhor também fez boa ciência. Até fiz alguma, mas não no começo. A melhor recompensa, porém, é contribuir para formar alguém que é melhor cientista do que você mesmo. n PESQUISA FAPESP 207 | 29


política c&T  história y

O passado emerge

30  z  maio DE 2013


Digitalização de arquivos da repressão política em São Paulo terá impacto na pesquisa e na investigação de violações de direitos humanos Fabrício Marques

O

léo ramos

Acervo do Deops de São Paulo: referência para as comissões da Verdade

Arquivo Público do Estado de São Paulo lançou no começo de abril o portal Memória Política e Resistência (www.arquivoestado.sp. gov.br/memoriapolitica), que permite a consulta pela internet de mais de 314 mil fichas e 12,8 mil prontuários – num total de 1 milhão de imagens – produzidos por órgãos de vigilância política do estado de São Paulo entre 1924 e 1999, período que abrange duas ditaduras (1937-1945 e 1964-1985). O trabalho de digitalização já alcançou 10% do total de páginas desses acervos preservados pelo arquivo e vai continuar nos próximos anos. O material disponível na web faz parte de três conjuntos de documentos. Um deles é o acervo do Departamento de Ordem Política e Social de Santos, composto por 80 metros lineares de documentos mantidos de maneira ilegal no Palácio da Polícia de Santos até 2010, quando foram recolhidos. Também há fichas e prontuários do Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops), principal órgão da polícia política paulista, extinto em 1983, cujo acervo, formado por 1.173 metros lineares de documentação, foi transferido para o Arquivo Público do Estado há 23 anos. Por fim, há documentos do Departamento de Comunicação Social (DCS), que assumiu atribuições que pertenciam ao Deops e funcionou entre 1983 e 1999. A digitalização teve apoio da FAPESP, que destinou R$ 1,69 milhão à modernização dos laboratórios do arquivo por meio do programa Apoio à Infraestrutura de Pesquisa do Estado de São Paulo. O Ministério da Justiça e a Casa Civil da Presidência da República também destinaram recursos à iniciativa. “As pessoas podem ter acesso de casa, não tem nenhuma senha, é tudo público. É muito importante no sentido de transparência e de informação para as famílias das vítimas do período da ditadura”, destacou o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, na solenidade de lançamento. Trata-se de um marco no resgate da memória da repressão e da resistência política, e tem importância tanto para o trabalho de historiadores quanto para o da Comissão Nacional da Verdade e de comissões estaduais e municipais criadas para investigar violações dos direitos humanos. “A nossa Comissão da Verdade é a única no século XXI. Nós vamos ter acesso a tecnologias que nenhuma das 40 comissões anteriores no mundo tiveram”, afirmou o cientista político Paulo Sérgio Pinheiro, coordenador da Comissão Nacional da Verdade. pESQUISA FAPESP 207  z  31


A

digitalização também propiciará um inédito cruzamento de informações. “Com documentos reunidos em banco de dados, é possível cruzar informações diversas e localizar agilmente referências sobre qualquer pessoa perseguida pelo Deops”, diz o historiador Lauro Ávila Pereira, diretor do Departamento de Preservação e Difusão do Arquivo Público do Estado de São Paulo. Será possível, utilizando recursos avançados de programação, fazer buscas inteligentes dentro do conjunto de documentos. “Se encontramos, por exemplo, um determinado padrão de documento que contenha informações relevantes sobre um desaparecido político, podemos fazer uma busca por outros documentos com aquele mesmo padrão, na esperança de elucidar outros casos”, diz Glenda Mezarobba. Ela participa de um subgrupo incumbido de utilizar técnicas computacionais de e-Science, usadas para obter resultados através de computação intensiva, e explorar grandes conjuntos de dados digitais com o objetivo de encontrar informações que contribuam para a elucidação de violações de direitos 32  z  maio DE 2013

Tecnologia promete ajudar a Comissão da Verdade a rastrear documentos importantes

humanos. Glenda licenciou-se no ano passado do cargo de diretora da área de Ciências Humanas da FAPESP para atuar na comissão. Nesse subgrupo, ela trabalha com Roberto Marcondes Cesar Júnior, professor do Departamento de Ciência da Computação da USP e coordenador adjunto da Diretoria Científica da FAPESP. Cerca de 16 milhões de páginas do arquivo do Serviço Nacional de Informações (SNI) também estão sendo digitalizados. “O ideal seria termos todos os arquivos do país digitalizados. É comum encontrar cópias de um documento desaparecido de um arquivo no acervo de outro”, diz Lauro Ávila. A disposição do Arquivo do Estado de tornar público o acervo na internet ampara-se na Lei de Acesso à Informação, de maio de 2012, que removeu obstáculos para a divulgação de documentos. A lei determina que “documentos que versem sobre condutas que impliquem violação dos direitos humanos praticada por agentes públicos ou a mando de autoridades públicas não poderão ser objeto de restrição de acesso”. A partir dos anos 1990, acervos de órgãos de repressão começaram a ser transferidos para arquivos estaduais. Mas, com exceção de São Paulo, o acesso na maioria dos estados só ocorreu nos anos 2000 – e, ainda assim, a consulta é frequentemente restrita a pesquisadores e familiares que comprovem vínculo com os documentos. “No caso do Arquivo do Estado de São Paulo, nós apenas pedimos a quem consulta o

fotos  léo ramos

Como as comissões da Verdade no país foram criadas mais de 25 anos após o final do regime militar, a identificação de documentos é vital para a reconstrução dos fatos, uma vez que muitas testemunhas morreram ou não se lembram de detalhes capazes de elucidar crimes. “Os documentos devem ajudar sobretudo nos casos de mortos e desaparecidos, para encontrar peças que faltam no quebra-cabeça da investigação. Essa é a principal expectativa em relação a esses arquivos”, diz a cientista política Glenda Mezarobba, consultora e pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade. Segundo Ivan Seixas, coordenador da Comissão da Verdade da Assembleia Legislativa de São Paulo, documentos do acervo do Deops têm auxiliado o trabalho de investigação da entidade. Ele cita um exemplo: a análise de seis livros datados dos anos 1970 que registram entradas e saídas da sede do Deops sugere ligações entre um diplomata norte-americano e um representante da indústria com os serviços de repressão política. Os livros apontam visitas frequentes do cônsul dos Estados Unidos em São Paulo na época, Claris Rowney Halliwell, e de Geraldo Resende de Matos, cujo cargo é identificado como “Fiesp” – a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo nega, porém, que Matos tenha feito parte de seu quadro de funcionários. “São documentos que mostram o dia a dia do Deops”, diz Seixas. Ele aponta o benefício que a digitalização do acervo está trazendo para comissões criadas em municípios. “Já existem comissões em Santos, Bauru e Campinas. A possibilidade de obter documentos pela internet vai facilitar o trabalho dessas comissões municipais”, afirma.

1.173

metros lineares de documentos compõem o acervo do extinto Deops


Scanner planetário, que copia documentos sem deteriorá-los, foi usado na digitalização de documentos do acervo do Deops de Santos (nos detalhes)

acervo pela internet que tome cuidado com o uso que poderá vir a fazer com informações sobre a vida privada de terceiros”, diz Carlos Bacellar, o coordenador do arquivo, que é professor do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. “A privacidade só pode ser aberta caso ajude a esclarecer fatos. Se a informação não esclarece nada e escancara detalhes da vida pessoal, perde o interesse social.” A digitalização do conteúdo completo dos prontuários começou pelo acervo do Deops de Santos, encontrado em 2010, por se tratar de um conjunto de documentos desconhecido de pesquisadores e familiares de presos e desaparecidos políticos. “Começar pelo material de Santos fazia sentido pela novidade, uma vez que o grande acervo do Deops paulista já vinha sendo explorado desde meados dos anos 1990”, diz Lauro Ávila. O resgate do arquivo de Santos é um capítulo curioso da recuperação da memória. A descoberta do acervo, guardado numa delegacia de polícia na cidade, foi noticiada pelo jornal Folha de S. Paulo na edição de 26 de fevereiro de 2010, uma sexta-feira, e desencadeou uma operação relâmpago. O então secretário da Casa Civil do governo paulista, o hoje senador Aloysio Nunes Ferreira, e o secretário de Justiça, Luiz Antonio Marrey, determinaram que técnicos do Arquivo do Estado fossem imediatamente a Santos e tirassem os documentos de lá. O receio era de que a publicidade em torno da des-

coberta levasse pessoas envolvidas na repressão a remover documentos comprometedores, um tipo de mazela que desfalcou boa parte dos acervos. “Conseguimos um caminhão emprestado da própria Polícia Civil e, às 3 horas da madrugada de sábado, as caixas com todos os documentos estavam em São Paulo”, lembra Lauro Ávila. O estado das fichas e prontuários era bastante precário. Foi necessário mais de um ano para que os documentos fossem tratados e digitalizados. Há indícios de que contém documentos não disponíveis em outros arquivos. Foi encontrado, por exemplo, um inédito conjunto de fichas de zeladores e porteiros de prédios de Santos, que eram obrigados a informar a polícia sempre que alguém alugava um apartamento na cidade. “Os zeladores eram obrigados a atuar como informantes e pediam aos inquilinos que preenchessem uma ficha com a relação de moradores do imóvel”, diz Ávila.

E

quipamentos foram comprados no exterior para acelerar a digitalização. “A FAPESP foi fundamental, não só pelos recursos, mas também pelo apoio que deu na importação de equipamentos. Eles foram adquiridos muito mais rapidamente do que se fôssemos comprar de outra forma”, diz Carlos Bacellar, o coordenador do arquivo. Atualmente, uma equipe de 10 técnicos, utilizando os equipamentos, consegue digitalizar quase 2 mil imagens por dia. Entre os equipamenpESQUISA FAPESP 207  z  33


fotos reprodução

“Montamos uma sala de aula dentro do Arquivo”, diz a historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro tos adquiridos destacam-se um scanner planetário, que permite copiar documentos sem deteriorá-los, e um outro tipo de scanner que permite a gravação da imagem original em microfilme. A digitalização terá um papel importante na ampliação do acesso de pesquisadores aos arquivos da repressão política. Alguns historiadores já se debruçaram sobre os arquivos do Deops paulista. Maria Aparecida de Aquino, professora do Departamento de História da FFLCH/USP, lançou cinco livros, dentro da série Radiografias do Autoritarismo Republicano Brasileiro, editado pela Imprensa Oficial de São Paulo, que resultaram de seu trabalho de mapeamento e sistematização do acervo do Deops, apoiado pela FAPESP entre 1998 e 2002. “Havia um complexo código alfanumérico em cada uma das 9.626 pastas que consultamos. Deciframos esse código, com o trabalho de uma equipe de 20 bolsistas, coordenada e acompanhada por mim e por dois de meus doutorandos”, relembra a professora. “Conservamos o material trocando as pastas nas quais eles se encontravam, limpamos, colocamos papel neutro para proteger e entregamos um banco de dados completamente informatizado”, diz.

Q

uem aproveitou de forma contínua o arquivo foi Maria Luiza Tucci Carneiro, professora do Departamento de História da FFLCH/USP. Interessada em temas como racismo e antissemitismo, obteve do arquivo nos anos 1990 autorização para analisar as fichas e prontuários com bolsistas de iniciação científica, mestrado e doutorado. “Montamos no arquivo as Oficinas de História, com até 60 estudantes trabalhando com o material por mais de uma década. Era uma aula de história ao vivo”, diz ela. “Mais de 40 pesquisadores foram formados nesse esforço, que resultou em uma dezena de dissertações, oito teses de doutorado e várias publicações, como 14 inventários de documentos.” 34  z  maio DE 2013

Um dos desafios, diz a professora, foi decifrar a lógica do discurso do repressor e delimitar até que ponto ele expressa a verdade e onde começa a ficção, construída para justificar a intolerância e etiquetar o crime político. “O primeiro passo foi compreender o conceito de crime político, que favorecia a vigilância, a perseguição e o encarceramento de um cidadão indesejável por suas ideias. O crime de ideias se configura a partir do momento em que o pensamento assume uma forma física, ou seja, pode ser identificado através da produção de conhecimentos, da propaganda política impressa em livros ou panfletos, confiscados como prova do crime”, afirma. Entre 1995 e 1996, Maria Luiza começou a usar o arquivo do Deops num projeto financiado pelo Instituto Goethe sobre mulheres judias expulsas do Brasil no governo Vargas. Em seguida, obteve apoio da FAPESP para dois projetos temáticos que resultaram numa série de inventários e na criação de um arquivo virtual com documentos selecionados por temáticas específicas. Sob sua orientação, uma equipe de 30 pesquisadores digitou a partir de 1999 o conteúdo de mais de 185 mil fichas do Deops. “Na época não tínhamos equipamentos nem uma base de dados capazes de efetuar uma busca avançada junto às fichas policiais e a opção foi digitar”, diz. Desde o ano 2000, as fichas nominais podem ser consultadas no site do Proin (www.usp.br/proin), sigla para Projeto Integrado Arquivo do Estado/ USP. Também foram colocadas no site as primeiras páginas digitalizadas dos jornais, panfletos e livros confiscados durante os autos de busca nas residências dos suspeitos ou das associações comunitárias ou políticas. Sob a coordenação do professor Boris Kossoy, da Escola de Comunicação e Artes da USP, o Proin desenvolveu um inventário de fotografias confiscadas dos álbuns de família ou produzidas pelo Laboratório de Fotografia do Gabinete de Investigação/Deops, que eram anexadas aos prontuários e dossiês. n

Livros e inventários sobre o acervo do Deops: formação de pesquisadores


h cienciometria y

Os limites do índice-h

Supervalorização do indicador que combina quantidade e qualidade da produção científica gera controvérsia

N

o final do ano passado, a revista Chemistry World, editada pela Royal Society of Chemistry, do Reino Unido, decidiu parar de publicar um ranking on-line que era sucesso entre os leitores. Tratava-se da lista, atualizada algumas vezes por ano, com mais de 500 pesquisadores altamente produtivos na área de química, aqueles que ostentam no currículo um índice-h maior que 55. A decisão de suspender o ranking foi uma capitulação às críticas de que ele dava ênfase demasiada a um simples indicador de desempenho, sem levar em conta outros aspectos da produção científica, e poderia induzir universidades e agências de fomento a tomar decisões simplistas ou equivocadas. O índice-h de um pesquisador é definido como o maior número “h” de artigos científicos desse pesquisador que têm pelo menos o mesmo número “h” de citações cada um. O primeiro do ranking da Chemistry World era George Whitesides, da Universidade Harvard, com índice-h 169. Equivale a dizer que ele publicou pelo menos 169 artigos que obtiveram, cada um, ao menos 169 citações em outros trabalhos. Para ter um índice-h elevado, é preciso publicar artigos que repercutam na comunidade

científica. Se um pesquisador publica muito, mas é pouco citado, ou se recebe muitas citações, mas num número restrito de artigos que publicou, terá um índice-h baixo. O índice-h foi proposto em 2005 pelo físico argentino Jorge Hirsch, professor da Universidade da Califórnia, San Diego, como uma ferramenta capaz de combinar quantidade e qualidade de produção acadêmica. Logo tornou-se parâmetro em avaliações e cartão de visitas de pesquisadores com desempenho destacado, e extrapolou sua utilização para além do desempenho individual: hoje há rankings do índice-h de universidades, países e revistas científicas. Segundo Henry Schaefer, professor da Universidade da Geórgia, Atenas, nos Estados Unidos, e responsável pela compilação da lista da Chemistry World, as críticas surgiram desde a primeira edição do ranking em 2007 e nunca cessaram. “O problema não era com o índice-h em si, mas com o ranking que supervalorizava esse indicador”, explicou. O episódio da Chemistry World é revelador das vantagens e mazelas do índice-h, uma medida que ganhou aplicação generalizada por seus méritos – é fácil de calcular, baseia-se em critérios ob-

jetivos e resume num único número a produtividade e a relevância do trabalho de um pesquisador. Simultaneamente, seu uso tornou-se alvo de críticas por não levar em conta suas limitações. O próprio Jorge Hirsch admite um problema importante. “Deve-se sempre ter em mente que pesquisas fora do mainstream podem ser pouco citadas e subavaliadas por indicadores bibliométricos e merecem ser apoiadas financeiramente apesar disso”, afirmou à revista on-line Research Trends. “Um indicador bibliométrico deve ser sempre usado ao lado de outros indicadores, e com bom senso.” Não se pode usar o índice-h para comparar pesquisadores em estágios diferentes da carreira – um pesquisador sênior com índice-h 100 na área de química pode orgulhar-se de ser extremamente produtivo, assim como um pesquisador jovem da mesma área que tenha um índice-h 30. Também é equivocado comparar o desempenho de pesquisadores de áreas diferentes. “Cada área tem um tamanho peculiar e tendências diferentes de citação”, explica Rogério Meneghini, coordenador científico da biblioteca SciELO Brasil. “Em bioquímica, por exemplo, há um número enorme de pesquisadores. Logo há mais artigos e mais gente pESQUISA FAPESP 207  z  35


citando. A regra é você trabalhar com as subáreas quando faz comparações”, afirma Meneghini, para quem, contudo, o índice-h é uma ferramenta valiosa, sobretudo nas ciências naturais. “Um índice-h elevado nessas áreas é um sinal de que o pesquisador fez coisas de impacto”, afirma. Já em muitas disciplinas das humanidades a divulgação de resultados de pesquisa por meio de livros é tão importante quanto sua divulgação por meio de artigos em revistas indexadas, de modo que nelas o índice-h frequentemente diz pouco sobre o impacto real do trabalho de um pesquisador. “Nas humanidades, um índice numérico de avaliação de impacto é certamente algo a ser levado em conta, mas como um dos elementos de avaliação, entre outros. Desacompanhado de elementos de avaliação de natureza qualitativa, será só um número”, afirma Luiz Henrique Lopes dos Santos, coordenador adjunto de Ciências Humanas e Sociais da FAPESP. “Além disso, o impacto de uma publicação não se mede apenas por citações, mas também por muitas outras coisas, como sua contribuição para inovações tecnológicas ou para a formulação de políticas públicas, por exemplo.” virtude

O italiano Mauro Degli Esposti, professor da Universidade de Manchester, no Reino Unido, compilou recentemente uma lista de pesquisadores de todas as áreas com índice-h acima de 100, baseado nos dados do Google Acadêmico. Em seu ranking, com quase 200 nomes, aparecem pouquíssimos pesquisadores de ciências humanas ou sociais aplicadas, caso, por exemplo, do Nobel de Economia Joseph Stiglitz (índice-h 130) e do linguista Noam Chomsky (123), e predominância nos estratos mais altos de cientistas dos campos da medicina e da bioquímica (ver quadro). Não há correlação direta entre vencedores do Nobel e o topo na lista. Entre os 30 primeiros, há apenas quatro vencedores do Nobel e um ganhador da Medalha Fields, principal honraria dos jovens matemáticos. “A única virtude que vejo no índice-h é o fato de ser fácil de calcular”, critica George Matsas, professor do Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista (Unesp). “Não há nenhum critério claro para se dizer o que é um índice-h alto ou baixo. Eu conjecturo 36  z  maio DE 2013

Entenda o índice-h O que é Indicador proposto pelo físico Jorge Hirsch, em 2005, para mensurar ao mesmo tempo a produtividade e o impacto do trabalho de um pesquisador, com base nos seus artigos mais citados. Sua aplicação se disseminou e o conceito também é aplicado para medir a produtividade e o impacto de grupos de pesquisa, de universidades, de países e de periódicos científicos.

Como é calculado O índice-h de um pesquisador é definido como o maior número "h" de artigos científicos desse pesquisador que têm pelo menos o mesmo número "h" de citações cada um. Um pesquisador com índice-h 30 é aquele que publicou pelo menos 30 artigos científicos que

"Um indicador bibliométrico deve ser usado sempre ao lado de outros indicadores, e com bom senso", disse Jorge Hirsch

foram citados em pelo menos 30 outros trabalhos. A ponderação exclui trabalhos pouco citados. Também desconsidera artigos altamente citados se forem exemplos isolados.

que o h do Peter Higgs, do bóson de Higgs, ou de Kenneth Wilson, prêmio Nobel de Física de 1982, seria menor que o de vários outros dos quais nunca ouvimos falar”, diz. Rogério Meneghini alerta para uma distorção importante no índice-h: a participação em redes que chegam a reunir 700 pesquisadores em estudos em física de partículas, astronomia ou novos medicamentos. “Seria uma decisão drástica, mas talvez fosse o caso de não considerar esse tipo de artigo no cálculo do índice-h. Seus resultados são importantes, mas não é possível medir a real participação de cada autor”, afirma. Nada contra a participação em redes de colaboração internacional, observa Meneghini. “Temos muitos pesquisadores brasileiros que participam continuamente de redes de 20 ou 30 cientistas de vários países e mantêm colaborações sólidas com gen-


Principais limitações

contexto em que as publicações se inserem. “Existem citações que se referem a um ganho de tecnologia, outras que são de um ganho de conhecimento, outras de observação de um fenômeno. Dependendo do tipo de projeto apresentado, esse tipo de informação tem relevância específica na avaliação. E também é preciso ver como evoluiu o índice-h no contexto da carreira de um pesquisador. Se o impacto é resultante de um único artigo ou se trata de uma obra, é um dado importante”, afirma Marie-Anne.

Principais vantagens › Consegue combinar quantidade e impacto da pesquisa num único indicador. › Pode ser facilmente obtido por qualquer pessoa com acesso a bases de dados, como a Web of Science, e é fácil de compreender. › Não serve para comparar

confiança

› Permite caracterizar a produtividade

pesquisadores de disciplinas diferentes,

científica de um pesquisador com

pois o volume de citações varia de

objetividade, principalmente em áreas

acordo com o tamanho de cada

em que há cultura consolidada de

comunidade de pesquisadores.

Para Carlos Eduardo Negrão, coordenador adjunto de Ciências da Vida, o índice-h é uma ferramenta para avaliar pesquisadores no campo da fisiologia e medicina, mas não pode ser visto de maneira isolada. “É um índice que ajuda qualificar o impacto dos estudos publicados por pesquisador e se ele se concentra em poucos ou vários trabalhos”, diz Negrão, que é professor da Escola de Educação Física e Esporte da USP e diretor da Unidade de Reabilitação Cardiovascular e Fisiologia do Exercício do Instituto do Coração (InCor). “É importante analisar também o impacto das revistas em que os artigos são publicados e consultar o Web of Knowledge, da Thomson Reuters, para verificar o número total de citações do pesquisador. É de interesse verificar também como o pesquisador é categorizado em nossa comunidade científica, isto é, o seu nível no CNPq. Esse conjunto me dá mais confiança de realizar uma avaliação justa.” No caso dos projetos na área de ciências da computação, uma preocupação do coordenador adjunto em Ciências Exatas e Engenharias Roberto Marcondes Cesar Júnior, professor do Instituto de Matemática e Estatística da USP, é avaliar também a produção científica apresentada em certas conferências internacionais, caso, por exemplo, da International Conference on Computer Vision. “O uso do índice-h em ciências da computação é semelhante ao das hard sciences, mas os melhores periódicos têm impacto similar aos dos artigos dessa conferência, que é indexada em bases internacionais”, afirma. Segundo ele, o índice-h é útil para medir o sucesso dos pesquisadores, as ligações que ele conseguiu fazer com outros grupos e o impacto de sua pesquisa. “Mas o que importa

publicação em revistas indexadas, e pode ter utilidade na tomada de

› Pode ser manipulado por meio

decisões sobre promoções, alocação

de autocitações.

de verbas e atribuição de prêmios. › Dá a livros o mesmo peso que dá aos › Tem um desempenho melhor do que

artigos, tornando complicado comparar

o de outros indicadores isolados, tais

pesquisadores de áreas em que há a

como fator de impacto, número de

cultura de publicar os resultados de

artigos, número de citações, citações

pesquisa em livros, como as

por paper e número de artigos

humanidades.

altamente citados, para avaliar a produtividade científica de um

› Não considera o contexto das citações.

pesquisador.

Não faz distinção entre um paper feito por um pesquisador ou um pequeno grupo de colaboradores e um artigo com centenas de autores, cuja participação individual é difícil de avaliar.

te do MIT, da Inglaterra ou da França. Isso é um sinal de qualidade”, observa. Assessores e membros das Coordenações de Área da FAPESP utilizam o índice-h de pesquisadores como parâmetro auxiliar na avaliação da qualidade do conjunto de artigos, mas a FAPESP não abre mão dos pareceres extensivos de assessores e da análise qualitativa para selecionar as melhores propostas. “O fundamental, na nossa avaliação, é a qualidade do projeto de pesquisa”, diz Wagner Caradori do Amaral, professor da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação (FEEC) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e coordenador adjunto da Diretoria Científica da FAPESP na área de Ciências Exatas e Engenharias. “Se o projeto tiver qualida-

de e o proponente demonstrar potencial para realizá-lo, não é o índice-h que irá impedi-lo de receber financiamento”, afirma o coordenador adjunto José Roberto Postali Parra, professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da USP. “O índice-h é um dos parâmetros de observação, mas nunca é suficiente”, complementa Marie-Anne Van Sluys, professora do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora adjunta de Ciências da Vida. Segundo ela, a popularidade do índice-h ajudou a consolidar no Brasil a importância da divulgação de resultados em periódicos indexados. “Mas é preciso tomar cuidado para não criar um vício de números”, afirma. Mais importante do que o índice-h, diz Marie-Anne, é o

pESQUISA FAPESP 207  z  37


Destaques do indicador Mauro Degli Esposti, professor da Universidade de Manchester, no Reino Unido, compilou uma lista de pesquisadores de todas as áreas com índice-h acima de 100, baseado no Google Acadêmico. Alguns exemplos:

2

4

3

Shizuo Akira

David Baltimore

Edward Witten

índice-h 246

índice-h 186

índice-h 180

índice-h 167

O professor de nutrição de

Imunologista da Universidade

Professor do Instituto de

O professor da Universidade

Harvard é autor de mais

de Osaka publicou 11 artigos

Tecnologia da Califórnia,

Princeton foi o primeiro físico

de mil artigos, na maioria

altamente citados apenas

o microbiologista ganhou o

a ganhar a Medalha Fields,

sobre dieta e doenças

entre 2006 e 2007

Nobel de Medicina de 1975

honraria dos matemáticos

5

6

7

8

Salvador Moncada

Joseph Stiglitz

Noam Chomsky

Elaine Fuchs

índice-h 158

índice-h 130

índice-h 123

índice-h 113

O farmacologista

Professor da Universidade

Professor de linguística do

A bióloga da Universidade

anglo-hondurenho tem

Columbia, o influente

MIT e intelectual renomado,

Rockefeller produziu

extensa contribuição no

economista neokeynesiano

é desde os anos 1980

contribuição original sobre

campo das inflamações

conquistou o Nobel

um dos mais citados em

mecanismos moleculares

e da biologia vascular

de Economia de 2001

ciências e humanidades

da pele de mamíferos

é sempre o projeto. As ideias são mais importantes do que os números”, diz. Um efeito colateral importante da adoção disseminada do índice-h – assim como de outros indicadores baseados em citações de artigos científicos – é que ele começa a exercer influência sobre a cultura de publicação de várias áreas do conhecimento no Brasil. Num estudo divulgado em 2011, Rogério Mugnaini, professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP, e sua aluna de mestrado Denise Peres Sales mapearam o uso de índices de citação e indicadores bibliométricos na avaliação científica brasileira. Observaram que o índice-h é usado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) como um dos critérios para definir o estrato mais alto de revistas científicas em diversas áreas, no sistema Qualis. Essas publicações têm 38  z  maio DE 2013

um peso maior na avaliação de grupos de pesquisa feita pela Capes e, por isso, acabam se tornando um alvo preferencial de seus pesquisadores. No caso da odontologia, só são admitidos no estrato 1-A periódicos com índi­ ce-h igual ou superior a 52. Em enfermagem, estão no estrato 1-A periódicos com índice-h de pelo menos 15. Em administração, o limite é um índice-h de 5. O índice-h dos periódicos é fornecido pelas bases Web of Science e Scopus, que adotaram a metodologia de Hirsch para avaliar a produção e o impacto de revistas – uma publicação com índice-h 50 é aquela que teve pelo menos 50 artigos com pelo menos 50 citações num determinado período. Um achado importante do estudo de Mugnaini é a larga utilização de índices de citação (JCR), notadamente o fator de impacto (FI), na avaliação da maioria das áreas. O FI é uma medida que reflete

o número médio de citações de artigos científicos publicados em determinado periódico. Os valores do FI vão de 0,5 para áreas como geografia, administração, ciências contábeis e turismo até 6, caso da astronomia. Ciências biológicas exigem fator de impacto superior a 4; medicina, 3,8; ciências agrárias, 2; engenharias, entre 0,8 e 1; matemática, 0,95. amadurecimento

“A utilização generalizada de índices de citação inclui áreas de menor tradição de publicação em periódicos internacionais, como ciências humanas e ciências sociais aplicadas, que apesar de não se basearem num indicador exigem a indexação dos periódicos nos índices internacionais”, diz Mugnaini. “A Capes desempenha um papel fenomenal com o sistema Qualis, por envolver pesquisadores do país todo e zelar pela qualidade da pós-graduação.

fotos 1 Amani Willett  2 Universidade de Osaka  3 Bob Paz/Caltech  4 Markus Marcetic  5 DiCYT  6 Governo da Tailândia  7 Duncan Rawlinson  8 Universidade Rockefeller

1

Walter Willett


Mas acaba dizendo para as áreas: o objetivo é todo mundo publicar em revistas de fator de impacto internacional”, afirma. Segundo ele, o que ocorre em algumas áreas é a aceleração de um processo de amadurecimento, com pesquisadores tentando publicar cada vez mais em revistas de alto impacto. Em outros casos, contudo, não se trata de uma evolução natural. “Não dá para esperar que a sociologia venha a apresentar um processo de internacionalização igual ao da física. Paralelamente, é necessário haver mecanismos que permitam olhar uma revista nacional, publicada em português, e dizer: essa revista é boa. Não serão a citação e o índice-h que darão esse parâmetro”, diz. Um artigo publicado em julho de 2012 na revista Perspectivas em Ciências da Informação fez uma análise comparada entre a produção científica de bolsistas de produtividade do CNPq nos níveis 1-A e 1-B, que estão no topo da escala, em quatro diferentes campos do conhecimento – e observou o que pode ser uma mudança de comportamento nas ciências humanas. O estudo, assinado por Ricardo Arcanjo de Lima, Lea Velho e Leandro Innocentini Lopes de Faria, mostrou que em física e em genética, áreas nas quais há comunidades consolidadas e habituadas a publicar em revistas internacionais,

"Não dá para esperar que a sociologia apresente um processo de internacionalização igual ao da física", diz Rogério Mugnaini

havia uma correlação entre o índice-h dos pesquisadores e seu status acadêmico. No caso da física, a média do índice-h para os bolsistas nível 1-A foi de 13 e nos de 1-B de 11. Já em genética, a média do índice-h para os bolsistas nível 1-A foi de 15 e nos de 1-B de 11. Em ciências agrárias, a média para os bolsistas nível 1-A foi de 7 e nos de 1-B de 6. Um dado que suscitou surpresa foi o resultado na área

de sociologia. “Esperávamos um índice-h zero, pois a prática de publicação passa longe do modelo das revistas internacionais, com clara preferência de publicação em livros”, diz Arcanjo, que é analista da Embrapa e concluiu no ano passado doutorado em política científica e tecnológica na Unicamp. O índice-h foi igual a zero entre os pesquisadores 1-A, mas chegou a 1 na categoria 1-B, que reúne pesquisadores mais jovens. “A pressão sobre os pesquisadores pode estar mudando práticas da disciplina no Brasil”, afirma. Para Rogério Meneghini, o caso das humanidades evidencia a pressão crescente para disponibilizar o conhecimento. “O dinamismo da produção científica hoje é outro”, afirma. Ele observa, contudo, que a dificuldade de publicar em revistas internacionais está gerando um crescimento exagerado de periódicos no campo das humanidades no país. “Como o número de cursos de pós-graduação em humanidades cresce numa velocidade mais rápida que em outras áreas, está havendo esse fenômeno do aumento descontrolado de periódicos no Brasil. O país tem hoje cerca de 5 mil periódicos. Entre as revistas que solicitam inclusão na biblioteca SciELO, a proporção das humanidades chega a 80%”, diz Meneghini. n Fabrício Marques

O índice-h das nações O mapa-múndi do índice-h, construído com base nos artigos indexados na base Scopus publicados pelo conjunto de pesquisadores de cada país e as citações recebidas, entre os anos de 1996 e 2010 Índice-h dos países

n  Menos que 32 n  32 - 76 n  76 - 145 n  145 - 248 n  248 - 336 n  336 - 450 n  450 - 604 n  604 - 750 n  750 - 1.229 n  Sem informação

Fonte SCImago Journal & Country Rank

pESQUISA FAPESP 207  z  39


educação y

A emoção da estreia Programas de iniciação científica revelam disposição de universidades para estreitar relações com o ensino médio Bruno de Pierro

H

á três anos o cotidiano da Escola Estadual Professora Olívia Bianco, em Piracicaba, interior de São Paulo, não é mais o mesmo. O carro-chefe da reviravolta, que ainda está em andamento, é uma parceria firmada em 2010 com a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com o objetivo de aproximar alunos dos 2º e 3º anos do ensino médio com a universidade. A cada ano, a escola seleciona seis alunos com bom desempenho em sala de aula para que, ao longo de 12 meses, desenvolvam trabalhos de iniciação científica sob orientação de docentes da Unicamp. “Os alunos que participam dizem entrar em outro mundo”, conta a diretora Vera Alice Castro Schiavinato. Segundo ela, os adolescentes que não participam do programa acabam sendo motivados pelos colegas que já frequentam laboratórios como gente grande. “É como uma corrente: o aluno que faz iniciação científica influencia os demais, e o interesse pelo estudo cresce visivelmente na escola”, acrescentou. O ex-aluno do Olívia Bianco, Lucas Lordello dos Santos, é hoje estudante do

40  z  maio DE 2013

curso de ciências do esporte da Unicamp. Até o começo de 2011, quando entrou no programa de iniciação científica, nunca havia pisado em um laboratório de pesquisa. “Eu acreditava no estereótipo de que aluno de escola pública não consegue entrar em boas universidades públicas. O projeto não só me ajudou a entrar na Unicamp como também me fez querer ir mais longe”, afirma o rapaz, que realizou seu projeto na área de anatomia na Faculdade de Odontologia. Os alunos que se submetem à iniciação científica no ensino médio ficam oito horas semanais em laboratórios da universidade, durante um ano, podendo estender o prazo se necessário. Uma série de iniciativas, semelhantes à relatada acima, tem conseguido impulsionar o intercâmbio entre colégios da rede pública e universidades por meio da criação de novas bolsas de iniciação científica para o ensino médio. Nas principais universidades do estado de São Paulo, por exemplo, o número de alunos selecionados e de projetos aumentou significativamente. No início de abril, a Unicamp abriu suas portas para 300

adolescentes de escolas de Campinas e região, um aumento de 66% em relação a 2010. Seguindo a mesma tendência, a Universidade de São Paulo (USP) disponibilizou 512 vagas no seu Programa de Pré-iniciação Científica (Pré-IC), 97 a mais em comparação a 2012. Nos últimos anos, a Universidade Estadual Paulista (Unesp) também ampliou seu programa voltado para alunos do ensino médio, ao estendê-lo para escolas de todo o estado de São Paulo e não apenas para os colégios técnicos ligados à universidade. Na Unicamp, o Programa de Iniciação Científica Júnior (PICJr) foi criado em 2007 com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que, desde 2003, concede cotas de bolsas para alunos de ensino médio. Na primeira edição do programa foram selecionados 119 alunos de um grupo de 488 estudantes de 43 escolas públicas de ensino médio das cidades de Campinas, Limeira e Piracicaba. No ano seguinte, o número de escolas participantes aumentou 84% e a indicação de alunos chegou a 750, dos quais 144 foram selecionados. Com o aumento da


R$6,7 milhões

é o repasse do CNPq a programas de iniciação científica júnior

eduardo cesar

Desbravando um novo mundo: alunos do ensino médio de Diadema unem-se para resolver desafios do programa de pré-iniciação científica da Poli-USP

demanda, a Pró-Reitoria de Pesquisa passou, com o apoio da FAPESP, a incentivar o docente orientador com um aporte de R$ 3 mil anuais para custeio de atividades dos laboratórios envolvidos. Em 2010, com a criação de outro braço no CNPq, o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica no Ensino Médio (Pibic-EM), a Unicamp foi contemplada com mais 150 bolsas de estudo completando as atuais 300 vagas. Neste ano, a universidade recebeu 1.026 indicações de alunos interessados em participar dos 78 projetos oferecidos por docentes e pesquisadores. A área que oferece mais linhas de pesquisa é a de biomédicas. “No começo, o aluno chega tímido, mas ao longo do ano isso muda, e, quando apresenta o pôster com os resultados do projeto, há uma transformação da

qualidade de vida”, explica o docente e assessor da Pró-Reitoria de Pesquisa da Unicamp, Mário Fernando de Góes. Os alunos recebem uma bolsa de R$ 100 e tanto a alimentação quanto o transporte são pagos pela instituição. Segundo Góes, o grande trunfo do programa é aproximar os estudantes do cotidiano da vida acadêmica e oferecer a oportunidade de desenvolverem o senso crítico diante dos desafios atuais da ciência, através da construção e transmissão do conhecimento. mão na massa

O professor José Joaquin Lunazzi, do Instituto de Física Gleb Wataghin, da Unicamp, já orientou 10 estudantes do ensino médio, desde o início do programa, em projetos que envolvem imagens tridimensionais e cinema digital. Seus alunos são inicialmente apresentados aos processos da óptica e depois aplicam o que aprenderam na construção de equipamentos, utilizando materiais simples, espelhos, ferramentas e câmeras fotográficas. “Faço questão que coloquem a mão na massa, falta muito disso no ensino médio”, avalia. Para Lunazzi,

o programa traz benefícios também para o orientador, que diante dos inúmeros questionamentos trazidos pelos estudantes precisa criar novas formas de repassar o conhecimento. “Eu poderia ter me aposentado em 2002, mas quis continuar passando um pouco da minha experiência para os mais jovens, aprendendo novas maneiras de ensinar física de um modo mais fácil.” Para Belmira Bueno, coordenadora dos programas de pré-iniciação científica da USP, a ideia não é formar cientistas, mas sim ampliar a formação do aluno como um todo, para que ele tenha mais elementos e faça a melhor escolha de um curso de graduação. Segundo ela, a universidade deu início à organização de uma pesquisa que irá localizar, na rede pública, os alunos que passaram pelo programa desde 2009. “Muito em breve teremos um quadro mais completo sobre o destino desses jovens, para saber quantos ingressaram na universidade e quantos, por ventura, acabaram inseridos no mercado de trabalho”, explica. Neste caso, o objetivo é saber se houve tentativas e quais os limites que se impuseram pESQUISA FAPESP 207  z  41


instituição está trabalhando no sentido de aperfeiçoar os instrumentos para avaliar e mapear os bolsistas até a graduação. Um dos problemas para a consolidação dos indicadores é a falta de atualização do Currículo Lattes, porque muitos alunos não continuam atualizando o sistema depois que terminam a iniciação científica. Outro entrave é o conjunto de deficiências que os estudantes trazem do início da vida escolar. “A situação da educação básica reflete nos resultados dos projetos de iniciação científica. É preciso fortalecer o ensino em ciência e matemática desde cedo, porque a bagagem de boa parte dos alunos é fraca”, diz. superação

1

aos egressos do Pré-IC para não terem ainda ingressado no ensino superior. O programa da USP foi implementado em 2008 e adotou um modelo diferente de outras universidades. É inteiramente institucionalizado por meio de parcerias estabelecidas em dois acordos: um com a Secretaria Estadual de Educação (SEE) e outro com o Centro Paula Souza (CPS). O Pré-IC da USP conta com o apoio do CNPq desde 2010 e do banco Santander, que também responde pelas bolsas concedidas aos estudantes. Há ainda um aporte da Monsanto no valor de R$ 220 mil, destinado ao pagamento de bolsas para professores do ensino médio, que participam como supervisores, e para a realização do Seminário Anual de Pré-iniciação Científica. O recurso é operacionalizado pela Fundação da USP (Fusp). Disso resulta que a USP lança três editais todos os anos com a finalidade de selecionar os alunos das duas redes de ensino público que participam do programa e os alunos de suas duas escolas que oferecem ensino médio – a Escola de Aplicação, na capital, e o Colégio Técnico de Lorena. “Oferecemos aos estudantes de ensino médio a oportunidade de se dedicarem a um tema específico. Trata-se de algo diferente da aula expositiva da escola”, declara o pró-reitor de Pesquisa da USP, Marco Antonio Zago, que também foi presidente do CNPq entre 2007 e 2010. Segundo ele, a esperança é que programas como 42  z  maio DE 2013

“A educação básica reflete nos resultados de projetos de iniciação científica no ensino médio”, diz Lucimar

o da USP inspirem a criação de outros, para que as experiências existentes ganhem escala. O CNPq destina hoje R$ 6,7 milhões para programas de iniciação científica no ensino médio, contemplando 109 universidades no total. Em 2012 foram concedidas 4.359 bolsas, entre convênios e acordos de cooperação. Segundo a coordenadora de Programas Acadêmicos do CNPq, Lucimar Almeida, a

Mas em muitos casos as dificuldades servem para fazer o jovem despertar de um falso mito que é criado em torno do ensino público: o de que os estudantes de escola pública não são capazes de se tornar alunos de uma boa universidade pública. “Uma vez ouvi de um professor que eu não tinha condições de correr atrás do tempo perdido e tentar passar numa universidade de boa qualidade. Tempo depois, lá estava eu, na minha escola, ensinando meus colegas e servindo de inspiração para que outros também seguissem o caminho da pesquisa”, conta Willian Apolinario de Paula, que em 2011 ingressou em um projeto de pré-iniciação científica da Escola Politécnica da USP, sobre automação e sustentabilidade, quando ainda cursava o colegial na Escola Estadual Anecondes Alves Ferreira, na periferia de Diadema. Hoje aluno do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFSP), Willian diz ter certeza de que, não fosse a bolsa de pré-iniciação científica, não teria perspectiva de um futuro que nunca imaginou que poderia traçar. Assim que terminar a graduação, pretende engatar o mestrado na USP e seguir carreira acadêmica. O professor que orientou Willian na Poli, Diolino Santos Filho, afirmou que o principal atributo do programa é a possibilidade de multiplicação do conhecimento na escola. “O que mais me incentiva a fazer parte dessa experiência é observar o desdobramento dos conhecimentos que são aprimorados na universidade”, esclarece. Desde 2012, o Projeto de Experiências de Turismo de Base Comunitária


fotos  1 e 3 eduardo cesar  2 programa futuros cientistas

3

1 Lunazzi e alunos em experimento na Unicamp 2 Atividades em grupo no Programa Futuro Cientista da UFSCar 3 Willian de Paula: projeto da iniciação terá continuidade no mestrado

no Vale do Ribeira, realizado pelo Instituto de Psicologia da USP (IPUSP) em parceria com escolas técnicas dos municípios de Iguape, Registro e Peruíbe, no Vale do Ribeira, região sul do estado de São Paulo, reúne pesquisas sobre manifestações artísticas e religiosas, lazer e sociabilidade e interação com o turismo de comunidades tradicionais da região, como os quilombolas. A grande contribuição do projeto para os 50 alunos de

Segundo Fábio de Lima Leite, criador e coordenador do programa e professor do Departamento de Física, Química e Matemática da UFSCar de Sorocaba, dos 300 estudantes que passaram pelo programa, cerca de 10% desistiram de estudar por diversas razões, inclusive envolvimento com drogas. “As escolas estaduais estão em situação precária, vemos crianças indo para a escola só para poder comer. Nossa missão é mostrar a esses jovens que o ingresso na universidade é um projeto de vida.” As bolsas para ensino médio são fornecidas pelo CNPq, mas para os outros módulos, que envolvem estudantes do ensino fundamental (6º a 9º ano), os recursos são provenientes dos patrocinadores. 2 Os alunos do ensino fundamental trabalham na forma de redes de pesquisadores e, ao ingressarem no ensino médio, “Nossa missão é mostrar que o são “adotados” pelo programa e iniciam o ingresso na universidade é um processo de formação científica na univerprojeto de vida”, afirma Fábio sidade, explica Ismail Barra Nova de Melo, outro coordenador do projeto. Os programas de iniciação científica ensino médio que estão envolvidos nele é a possibilidade de interação com para alunos de ensino médio podem ter bolsistas de mestrado, pós-doutorado potencial para mudar certos padrões de e iniciação científica de graduação que ensino arraigados. “O modelo que domitambém desenvolvem trabalhos na re- na as escolas é baseado no currículo, que gião. “Trata-se de uma política de fo- é relativamente rígido e muito preocupacalização que aproxima ensino público do com notas. Essa crença de que o cursuperior e ensino médio, e por meio da rículo define as coisas é sem fundamenqual são articulados processos educati- to”, observa o pró-reitor Marco Antonio vos e científicos”, explica Alessandro de Zago. Na avaliação dele, o sistema mais Oliveira dos Santos, um dos professores eficiente é aquele em que a sala de aula torna-se uma equipe, integrando alunos do IPUSP envolvidos no projeto. e professores, com o objetivo de resolver questões fundamentais, como acontece mudança de padrões Fora do âmbito estadual, uma experiên- em pesquisas científicas. “O foco passa a ser a resolução de múlcia que tem despontado é o Programa Futuro Cientista (PFC), iniciativa do tiplos problemas, que estão relacionados campus de Sorocaba da Universidade com a vida na sociedade, com os seres viFederal de São Carlos. Embora esteja vos”, afirma Zago. Nesse modelo, portanvinculado à UFSCar, o projeto é inde- to, o trabalho em grupo, a reunião livre pendente e sobrevive graças a parcerias entre alunos e professores e a liberdade com empresas, como a Gerdau e o Gru- para arriscar são fatores que ajudam a po Objetivo. Fazem parte da esteira de definir não apenas o resultado em si de colaboradores também outras universi- uma pesquisa, mas o nível de interesse dades, como a Universidade de Soroca- pelo ato de estudar de uma sala de aula. ba (Uniso), a Unesp de Botucatu, o Ins- “Os jovens gostam de fazer tudo em grutituto de Física de São Carlos e a PUC de po, como ir para a balada. Por que não Sorocaba, que também recebem alunos. aprender da mesma forma?”, conclui. n pESQUISA FAPESP 207  z  43


ciência  geologia y

Andes

Bacia do Paraná

Um perfill continental: ilustração apresenta variações no relevo (linha branca) e na crosta da América do Sul

44  z  maio DE 2013


Por que a terra treme no Brasil

Sismólogos propõem uma nova explicação para os terremotos no país Igor Zolnerkevic e Ricardo Zorzetto

ilustrações  pedro hamdan

E

m 8 de outubro de 2010 a terra tremeu como jamais se havia visto em Mara Rosa, cidade com 10 mil moradores no norte de Goiás. Passava um pouco das 5 da tarde daquela sexta-feira e as pessoas se preparavam para o fim de semana quando o chão balançou tão intensamente a ponto de se tornar difícil ficar em pé. Árvores chacoalharam, paredes trincaram e telhas despencaram das casas. Menos de um minuto mais tarde, os reflexos desse terremoto de magnitude 5, um dos mais fortes registrados no país nos últimos 30 anos, haviam percorrido 250 quilômetros e alcançado Brasília, onde alguns prédios chegaram a ser desocupados. “Muita gente em Mara Rosa pensou que a terra fosse se abrir e o mundo acabar”, conta Lucas Barros, chefe do Observatório Sismológico da Universidade de Brasília (UnB). Nas semanas seguintes Barros e sua equipe instalaram sismógrafos em Mara Rosa e nos municípios vizinhos para acompanhar a reverberação daquele tremor. Em seis meses, outros 800 sismos, menos intensos, ocorreram ali e ajudaram a determinar a causa direta do desassossego da terra naquela região. Bem abaixo de Mara Rosa, a uns três quilômetros de profundidade, há uma extensa rachadura na crosta terrestre, a camada mais rígida e externa

do planeta. E, ao longo dessa fratura que se estende por cinco quilômetros, as rochas haviam se deslocado, fazendo a terra tremer. “Tivemos de fazer audiência pública em Mara Rosa e em Mutunópolis para explicar às pessoas o que estava ocorrendo e o que elas deviam fazer para se proteger”, diz Barros. A identificação dessa fratura não chegou a surpreender o grupo da UnB. Mara Rosa e outros municípios do norte de Goiás e do sul de Tocantins se encontram em uma região geologicamente instável: a zona sísmica Goiás-Tocantins, que concentra 10% dos terremotos do Brasil. Parte dos geólogos atribui a elevada frequência de tremores nessa área – uma das nove zonas sísmicas delimitadas no país, com 700 quilômetros de comprimento por 200 de largura – à proximidade com o Lineamento Transbrasiliano, uma extensa cicatriz na crosta terrestre que cruza o Brasil e, do outro lado do Atlântico, continua na África. Acredita-se que ao longo do lineamento a crosta seja mais frágil por concentrar blocos rochosos trincados que, sob compressão, se movimentariam mais facilmente produzindo terremotos. Mas nem todos concordam. Muitas vezes a localização dos tremores não coincide com a desse conjunto de falhas e, em certos trechos dele, nunca pESQUISA FAPESP 207  z  45


E

m um trabalho publicado em fevereiro deste ano na Geophysical Research Letters, o sismólogo Marcelo Assumpção e o geofísico Victor Sacek apresentam uma explicação mais completa – e, para muitos, mais convincente – para a concentração de tremores em Goiás e Tocantins. Em algumas áreas dessa zona sísmica a crosta terrestre é mais fina do que em boa parte do país e encontra-se tensionada pelo peso do manto, a camada geológica inferior à crosta e mais densa do que ela. Medições da intensidade do campo gravitacional nessas áreas de crosta fina indicam que, ali, há um espessamento do manto. Essa combinação faz essas duas camadas de rocha – a crosta e a região superior do manto, que do ponto de vista físico se comportam como uma estrutura única e rígida chamada pelos geólogos de litosfera – vergarem como um galho prestes a se romper. Nessa situação, a litosfera pode trincar como uma régua de plástico que é curvada quando se tenta unir suas extremidades (ver infográfico ao lado). “A litosfera tende a afundar onde ela é mais densa e a subir onde a densidade é menor”, explica Assumpção. “Essas tendências causam tensões que produzem falhas e, eventualmente, provocam sismos”, completa o sismólogo do IAG, coordenador da Rede Sismográfica do Brasil, que monitora os terremotos no país. Durante uma conversa em sua sala no início de abril, Sacek, coautor do estudo, pegou um livro de capa flexível para ilustrar o que ocorre no trecho da zona sísmica Goiás-Tocantins onde se encontra Mara Rosa. “Supondo que esse livro represente a litosfera da região, um acréscimo de carga no interior da litosfera, por haver uma proporção maior de rochas do manto [mais densas], vai fazê-la sofrer uma flexura”, explicou, colocando o livro na posição horizontal e pressionando suas laterais, o que o fez se dobrar como se um bloco de pedra estivesse colado à capa inferior. Como resultado, a parte superior é submetida a forças de compressão e a inferior a forças de distensão. “Embora seja rígida, a litosfera tem alguma flexibilidade e resiste até certo ponto à deformação”, diz Sacek. “Mas a partir de determinado limite ela pode vergar e se romper.” Anos atrás, analisando o mapa da distribuição de sismos no Brasil, Assumpção percebeu que a maioria deles ocorria no trecho de Goiás e Tocan46  z  maio DE 2013

Sob a terra Levantamento mostra a diferença de espessura da crosta terrestre no Brasil e na cordilheira dos Andes -70° Espessura da crosta (em km), medida a partir do nível do mar

65

-70°

-65°

-60°

-55°

-50°

-45°

-40°

Região dos Andes com crosta fina Lineamento transbrasiliano

55

Província de Borborema

-10°

50

Flexura Tocantins

45 40

-15°

35 30 -20°

25

Bacia do Paraná

Região dos Andes com delaminação

20 15

-35°

Crosta com mais de 2,5 bilhões de anos

-5°

60

-75°

70

-25°

Zona sísmica da plataforma continental

10 -30°

Andes

Profundidade (em km)

se detectaram tremores. Quem duvida da influência direta do lineamento sobre os sismos dessa região aposta em causas mais profundas, como as que acabam de ser identificadas por um grupo de pesquisadores do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da Universidade de São Paulo (USP) a partir do levantamento da espessura da crosta terrestre no país, recém-concluído.

Bacia do Paraná

6.000 4.000 2.000 0 -10 -20 -30 -40 -50 -60 -70

0 fonte  marcelo asssumpção – iag/usp

500

1.000

1.500

2.000

2.500

3.000

Distância (em km)

tins no qual em 2004 o geofísico Jesús Berrocal, ex-professor da USP, havia identificado uma anomalia gravimétrica. Lá o campo gravitacional é anormalmente elevado para uma região de planalto com altitude média entre 300 e 400 metros. Naquelas terras planas e relativamente baixas – por exemplo, não existem cadeias de montanhas ali – não há excesso de massa sobre a superfície que justifique a flexura da litosfera. Logo, concluiu Assumpção, essa massa só poderia estar embaixo da terra. Provavelmente em regiões profundas como as camadas mais superficiais do manto, uma vez que a crosta só tem 35 quilômetros de espessura. Mas era preciso verificar se essa ideia fazia sentido e se o espessamento do manto podia, de fato, fazer a litosfera se curvar. Assumpção pediu então a Sacek, especialista em simulações com-

6,2

é a magnitude do tremor mais intenso registrado no Brasil, em 1955


Zona sísmica GOIáS-Tocantins

1 Região de estabilidade

Região com terremoto

Crosta

Rocha menos densa

Manto litosférico

Rocha mais densa

Espessura média: 40 km

35 km Excesso de massa Peso para baixo

ESTRESSE CONSTANTE

A crosta é estável onde não há falhas geológicas e sua espessura não varia

A litosfera do planeta, formada pela crosta e a parte

muito. O espessamento do manto nas regiões em que a crosta é mais fina

superior do manto, é dividida em placas que se movem

pode causar tensões adicionais que favorecem a ocorrência de tremores

e colidem. O choque nas bordas das placas gera tensão que se espalha pelo interior dos continentes

2

A diferença de peso entre rochas da crosta

Crosta verga

e do manto à mesma Compressão da crosta superior

profundidade faz a região afinada vergar por conta do peso extra abaixo dela. Essa flexura comprime as rochas

Peso para baixo

3

próximo à superfície

Somada às tensões

Fraturas e tremores

exercidas nas bordas das

infográfico ana paula campos

placas da litosfera, essa 5 km

compressão é demais Tremores na crosta

para as rochas a profundidades inferiores a 5 km, que tendem a

Região mais fraturada

sofrer fraturas, causando os abalos sísmicos

putacionais, que criasse um modelo matemático para representar as camadas geológicas daquela área de Goiás e Tocantins que levasse em conta todas as forças que atuam sobre elas. Sacek desenvolveu um programa incluindo tanto o efeito de forças locais, originadas a poucas dezenas de quilômetros da região dos sismos por diferenças de relevo (vales, rios e morros) e por variações na espessura da crosta, como o de forças regionais, de escala planetária, que ocorrem a milhares de quilômetros de distância, nas bordas dos blocos em que está dividida a litosfera. Ao unir esses elementos, Sacek identificou uma zona de fragilidade da crosta que coincide com a área de mais sismos em Goiás e Tocantins. Nesse grande bloco, com 200 quilômetros de largura e 5 de profundidade, as forças são intensas a ponto

de superar o limite de elasticidade das rochas e fragmentá-las. “Esse modelo explica até a profundidade dos sismos, que em geral ocorrem a menos de cinco quilômetros da superfície”, afirma Sacek. Ele e Assumpção acreditam que esse mecanismo – a flexura em região de crosta mais fina – pode também ser a causa da elevada frequência de tremores em outras regiões do país, como a bacia do pantanal e a zona sísmica de Porto de Gaúchos, em Mato Grosso, onde em 1955 ocorreu o maior abalo sísmico já registrado no Brasil, com magnitude de 6,2 graus na escala criada por Charles Richter. Os terremotos com magnitude superior a 5 são raros no país – ocorre, em média, um a cada cinco anos. Mas, mesmo fracos, costumam assustar a população, pouco habituada a conviver com os sismos e pouco preparada para lidar com eles. Além de falta de informação sobre como enfrentar os tremores, as residências mais pobres não resistem a abalos pequenos, que causariam poucos danos em uma metrópole. Em 9 de dezembro de 2007, um tremor de magnitude 4,9 danificou várias casas no povoado de Caraíbas, nos arredores de Itacarambi, norte de Minas Gerais, onde a queda de uma parede matou uma criança. “Essa é a única morte direta causada por um terremoto de que se tem notícia no país”, conta o geólogo Cristiano Chimpliganond, da UnB.

A

flexura da crosta também explica os terremotos em outra zona sísmica do Brasil: a margem da plataforma continental entre os estados do Rio Grande do Sul e o Espírito Santo. A uma distância que varia de 100 a 200 quilômetros da costa, o fundo do mar sofre um declive abrupto. Nesse degrau, a profundidade do oceano passa de 50 metros para 2 mil metros. Os sedimentos que os rios transportam para o mar se acumulam na extremidade desse degrau, exercendo um peso extra sobre a crosta. Assumpção acredita que essa sobrecarga provoque os sismos pESQUISA FAPESP 207  z  47


detectados nessa região, por mecanismos semelhantes ao que estaria ocorrendo em Goiás e Tocantins. A diferença nesse caso é que o excesso de massa não se encontra sob a crosta, mas sobre ela. Em um trabalho de 2011, Assumpção e colaboradores da Universidade Estadual Paulista (Unesp), do Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo (IPT) e da Petrobras analisaram um terremoto que ocorreu em abril de 2008 a 125 quilômetros ao sul da cidade de São Vicente, no litoral paulista – e que foi sentido até na cidade de São Paulo. O ponto de origem do tremor foi justamente a extremidade do degrau da plataforma continental e as características de suas ondas sísmicas parecem confirmar a ideia de que foi desencadeado pela sobrecarga de sedimentos. A elaboração desses modelos sobre a causa dos tremores brasileiros só foi possível graças à descoberta de variações na espessura da crosta terrestre no país. Assumpção e colaboradores da UnB, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e do Observatório Nacional (ON) reuniram informações sobre a espessura da crosta em quase mil pontos na América do Sul, tanto no continente como no oceano – desse total, cerca de 200 medições foram feitas nos últimos 20 anos com financiamento da FAPESP e do governo federal. No mapa que sintetiza esses dados, publicado no Journal of South American Earth Sciences, os pesquisadores chamam a atenção para as regiões onde a crosta é mais espessa ou mais delgada. “A espessura da crosta é um dos parâmetros mais importantes para compreender a tectônica [as forças e os movimentos das camadas geológicas] de uma região”, afirma o sismólogo Jordi Julià, da UFRN. Essa é a compilação mais completa e detalhada já feita sobre a crosta brasileira. A espessura em todos esses pontos foi obtida a partir da combinação de dados obtidos por três métodos que usam as ondas sísmicas para deduzir a estrutura das camadas geológicas por onde elas passam. O mais preciso deles – e também o mais caro – é a refração sísmica, no qual os pesquisadores registram ao longo de centenas de quilômetros os tremores causados por explosões controladas (ver Pesquisa FAPESP nº 184). Os dois outros métodos se baseiam no monitoramento ao longo de anos dos terremotos que acontecem ao redor do globo.

região. Já no Nordeste, onde foi feita a maioria dos experimentos de refração sísmica pela equipe de Reinhardt “A sismologia não Fuck, da UnB, a incerteza é menor. Ali se localiza a área mais vasta do consegue prever território nacional com crosta menos terremotos e, espessa: a província de Borborema, bloco rochoso sobre o qual se assenmesmo que tam quase todos os estados do Nordeste, a região com maior frequência de conseguisse, não tremores no país. Em alguns pontos dessa região, a crosta tem menos de 30 poderia evitá-los”, quilômetros. Esse afinamento parece diz Lucas Barros, ter ocorrido entre 136 milhões e 65 milhões de anos atrás, período em que a da UnB América do Sul se separou da África. Um dos recordes de espessura está sob a floresta amazônica, na fronteira entre os estados de Roraima, Amazonas e Pará. Com até 45 quilômetros de espessura, esse é um dos pedaços da crosta mais antigos do Brasil, com mais de 2,5 bilhões de anos. “Essas regiões mais antigas tendem a ter crosta mais espessa”, diz Assumpção. Mas o trecho de crosta mais espessa do país se encontra em uma região relativamente jovem, a bacia do Paraná, que começou a se formar há 460 milhões de anos. No interior de São Paulo, próxi-

Onde ocorrem os sismos Terremotos se concentram em regiões de crosta fina, como o Nordeste, o Centro-Oeste e a plataforma oceânica

D

e modo geral, a crosta no Brasil tem espessura semelhante à dos outros continentes – em média de 40 quilômetros, medidos a partir do nível do mar. Há algumas regiões no país, porém, em que a crosta chega a ser mais fina do que 35 quilômetros. A existência de uma delas – uma faixa de quase mil quilômetros que vai do pantanal, em Mato Grosso do Sul, a Goiás e Tocantins – ainda não está bem delineada, porque há poucas informações sísmicas disponíveis sobre a 48  z  maio DE 2013

Tremores com magnitude igual ou superior a 3,5 ocorridos entre 1955 e 2012 fonte  marcelo asssumpção – iag/usp


eduardo cesar

duas explicações. Ou a crosta já era anormalmente fina desde antes da formação dos Andes ou, há 4 milhões de anos, ela se tornou tão espessa e quente que perdeu parte de suas camadas mais profundas, fenômeno chamado delaminação. Já na fronteira do Peru com o Equador, onde a altitude supera os 3 mil metros, sua espessura é de apenas 35 quilômetros. Nesse caso, a crosta parece ser sustentada pelo movimento das correntes das camadas mais profundas do manto, que, embora sejam rochas, se comportam como um líquido extremamente viscoso no tempo geológico – ele flui alguns centímetros por ano. A força dessas correntezas ascendendo são capazes de suspender a crosta, acrescentando de um a dois quilômetros na altura das montanhas. O inverso também pode acontecer. O fluxo descendente pode puxar para baixo a crosta em algumas regiões, como Sacek e Naomi Ussami, geofísica da USP, observaram na bacia de Marañon, entre o Equador, o Peru e a Colômbia. Cordilheira dos Andes: região em que a crosta é mais espessa na América do Sul e atinge até 75 quilômetros

mo ao rio Paraná, a crosta alcança 46 quilômetros de espessura. Assumpção propõe duas possíveis razões para esse espessamento. A primeira, sugerida por diversos estudos, é que sob a bacia do Paraná haveria um bloco de crosta mais antiga, com bilhões de anos de idade, batizado de cráton do Paranapanema. A segunda tem a ver com a intensa atividade vulcânica ali há 130 milhões de anos. Por algum motivo que não se conhece, o manto abaixo da bacia do Paraná se tornou anormalmente quente, fenômeno que os geólogos chamam de pluma térmica. Essa pluma teria fundido parcialmente as camadas profundas da Terra, gerando magmas de composição basáltica que se derramaram sobre a superfície e originaram uma das maiores províncias vulcânicas do planeta. Essas rochas geraram as faixas de terra roxa, um solo bastante fértil. Parte do material originado no processo permaneceu lá embaixo e, quando o manto esfriou, se soldou à porção inferior da crosta, aumentando sua espessura. Com pesquisadores do Chile e da China, Assumpção expandiu o mapeamento da crosta para a cordilheira dos Andes. Sob essa cadeia de montanhas, a espessura da crosta varia de 35 quilômetros, na fronteira do Peru com o Equador, a 75 quilômetros, no altiplano boliviano. Essa espessura máxima é semelhante à observada em outras regiões montanhosas relativamente jovens, como o Himalaia. Em geral, há uma correlação direta entre a altitude de um terreno e a espessura da crosta. “Quanto mais alta a topografia, mais espessa é a crosta”, explica Assumpção. “Para altitudes superiores a 3 mil metros, o normal é a crosta chegar a 70 quilômetros.” Mas há exceções. No norte da Argentina, onde os Andes se erguem a mais de 4 mil metros de altura, a crosta tem menos de 55 quilômetros de espessura. Novamente, os pesquisadores imaginam

A

pesar das duas décadas de trabalho, as pesquisas nessa área ainda estão atrasadas na América do Sul. Os Estados Unidos e a Europa já dispunham de mapas detalhados da espessura da crosta no final dos anos 1990. “O avanço do mapeamento da crosta no mundo varia segundo a renda per capita dos países”, diz Assumpção. “Só estamos melhores do que a África.” No Brasil, as principais instituições de pesquisa da área se uniram há dois anos e criaram a Rede Sismográfica do Brasil, que dispõe de 50 estações sismológicas e pretende chegar a 80. Assim, os pesquisadores esperam monitorar melhor o país e aumentar a resolução do mapa. Quanto mais terremotos se observarem, mais detalhes da espessura da crosta poderão ser identificados. E, com mais detalhes, é possível criar modelos que permitam predizer com mais precisão as áreas sob risco de tremores de maior magnitude. “A sismologia não consegue prever terremotos e, mesmo que conseguisse, não poderia evitá-los”, diz Barros. “Por isso, temos de aprender a conviver com eles e nos proteger deles.” n

Projeto Evolução tectônica, climática e erosional em margens convergentes: uma abordagem numérica (nº 2011/10400-0); Modalidade: Bolsa de pós-doutorado; Coord.: Victor Sacek – IAG/USP; Investimento: R$ 153.896,91 (FAPESP).

Artigos científicos ASSUMPÇÃO, M. e SACEK, V. Intra-plate seismicity and flexural stresses in central Brazil. Geophysical Research Letters. v. 40 (3), p. 487-91. 16 fev. 2013. ASSUMPÇÃO, M. et al. Crustal thickness map of Brazil: Data compilation and main features. Journal of South American Earth Sciences. v. 43, p. 74-85. abr. 2013. ASSUMPÇÃO, M. et al. Models of crustal thickness for South America from seismic refraction, receiver functions and surface wave dispersion. Tectonophysics. 2013 (on-line).

pESQUISA FAPESP 207  z  49


obituário y

Pensador da biodiversidade O zoólogo Paulo Vanzolini foi um dos idealizadores da FAPESP, o autor de uma teoria sobre a origem das espécies na América do Sul e um ícone do samba paulista

“R

everencio a natureza. E tive uma carreira gratificante. Posso dizer que sou um pesquisador completamente realizado”, comentou o biólogo paulista Paulo Emílio Vanzolini em 2010 à Pesquisa FAPESP ao apresentar seu livro Evolução ao nível de espécie – Répteis da América do Sul. Com 704 páginas, o livro reúne os 47 principais artigos científicos de Vanzolini, publicados de 1945 a 2004, que ajudaram a ampliar o escopo da zoologia brasileira – até meados do século XX focada na descrição isolada de espécies e, a partir dos trabalhos de Vanzolini, reorientada para a busca dos mecanismos de formação de novas espécies, examinadas do ponto de vista biológico, evolutivo e ambiental. Vanzolini, que morreu de pneumonia no dia 28 de abril, cinco depois de ter completado 89 anos, também escrevia sambas, sua segunda paixão, depois da zoologia. Além de compor – seu maior sucesso é Ronda, de 1951 –, às vezes ele próprio subia ao palco. Uma de suas últimas apresentações foi na choperia do Sesc Pompeia, em São Paulo, em janeiro de 2012: a mulher, a cantora Ana Bernardo, interpretava suas músicas enquanto ele aguardava sentado em uma mesa, para depois contar histórias de sua vida. Em outra canção, Quando eu for, eu vou sem pena, gravada por Chico Buarque, ele diz: 50  z  maio DE 2013

1

O que eu fiz é muito pouco Mas é meu e vai comigo Deixo muito inimigo Porque sempre andei direito Agasalhei neste peito Muita cabeça chorando Morena minha até quando Você de mim vai lembrar Apesar da modéstia, o que ele fez não foi pouco – e ficará, porque ele abriu caminhos não só na biologia, mas também na estruturação da ciência brasileira. “Vanzolini participou do movimento de professores e pesquisadores que propuseram a criação da FAPESP e, no governo Carvalho Pinto, teve uma contribuição fundamental para a estruturação da instituição e pela concepção do modelo de organização que rege a Fundação até hoje”, afirmou Celso Lafer, presidente da FAPESP. “Lamento profundamente a sua morte. Vanzolini era alguém por quem eu tinha grande admiração.” Vanzolini participou das primeiras reuniões sobre a criação da FAPESP logo depois da Constituição de 1947, que autorizou instituir-se uma fundação de amparo à pesquisa em São Paulo. Foi ele quem, em 1960, redigiu a lei de criação e os estatutos da FAPESP. Com Antonio Barros de Ulhôa Cintra, reitor da USP

e presidente do Conselho Superior da Fundação que se instalava, Vanzolini participou da escolha dos primeiros diretores, dos assessores. Ele foi “uma das forças de coesão da FAPESP”, escreveu a historiadora da ciência Amélia Império Hamburger, no livro FAPESP 40 anos: abrindo fronteiras. Vanzolini foi membro do Conselho Superior em três períodos (1961 a 1967, 1977 a 1979 e 1986 a 1993). Quando Oscar Sala, diretor científico de 1969 a 1975 e presidente do Conselho Superior de 1985 a 1993, viajava, era ele quem centralizava o julgamento e o acompanhamento dos pedidos de financiamento a pesquisas ou a bolsas. “... é muito difícil ser número dois e eu era, confortavelmente”, ele contou no depoimento a Amélia Hamburger. “Quando o Oscar viajava e eu assumia, eu não resolvia da minha cabeça, resolvia com a cabeça dele, sabia os pontos em que nós pensávamos diferente e decidia como eu achava que ele iria decidir.” Como diretor do Museu de Zoologia da USP de 1962 a 1993, ele ampliou a coleção de pouco mais de mil exemplares catalogados para os mais de 300 mil de hoje. Ele próprio datilografava rótulos e fichas de identificação dos animais guardados, lembra-se Miguel Trefaut Rodrigues, biólogo que fez o doutorado sob a orien-


tação de Vanzolini, depois foi contratado como professor da USP, tornou-se um dos maiores herpetologistas (especialista em répteis) do país, ao lado do próprio Vanzolini. Rodrigues depois o sucedeu na direção do museu, que hoje conta com uma das maiores e mais importantes coleções zoológicas neotropicais.

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entre a guerra e a boemia

fotos  1 léo ramos  2 desenho extraído do artigo "vanzolini e williams," 1970  3 arquivo familiar

Vanzolini ouvia falar da USP e ouvia música desde pequeno: seu pai era um engenheiro civil eletricista e professor da Escola Politécnica da USP e a mãe e a irmã, musicistas. Ele se interessou pelo estudo de répteis aos 10 anos, ao visitar o Instituto Butantan, e aos 14 era estagiário do Instituto Biológico. Durante a Segunda Guerra Mundial, quando cursava medicina na USP, ele se alistou como voluntário na Força Expedicionária Brasileira para lutar na Itália, mas a guerra acabou antes que ele embarcasse. Como preferia estudar bicho a tratar de gente, quando terminou o curso de medicina, em 1947, Vanzolini embarcou para fazer o doutorado na Universidade Harvard, em Boston, nos Estados Unidos, e continuar ouvindo boa música, desta vez nos bares americanos. Um dos primeiros biólogos paulistas a fazer um levantamento amplo da biodiversidade na Amazônia – projeto pioneiro apoiado pela FAPESP em 1966, em colabo-

Vanzolini em 2012 (ao lado) e em uma das viagens à região Norte. Acima, o Anolis chrysolepis, no qual ele se baseou para formular a teoria dos refúgios

ração com pesquisadores de Manaus, de Belém e dos Estados Unidos –, Vanzolini aos poucos percorreu todo o país e o continente americano, dos Estados Unidos à Argentina. “Sempre trabalhei com a mesma linha de pesquisa, procurando explicar como teria surgido a grande diversidade da fauna sul-americana”, ele contou em 2010. Seu trabalho de campo lhe permitiu propor novas formas de explicar a biodiversidade nas florestas tropicais como a Amazônia e a mata atlântica.

3

Por muito tempo se acreditava que, nesses ambientes, o número elevado de espécies de plantas e de animais seria o resultado de longos períodos de estabilidade climática e geológica, que teriam favorecido o cruzamento e a reprodução. No final da década de 1960, Vanzolini resgatou conceitos empregados inicialmente para explicar a diferenciação de aves na Europa para apresentar a teoria dos refúgios, proposta simultânea e independentemente pelo geólogo alemão Jurgen Haffer. De acordo com essa interpretação, elaborada em conjunto com o geógrafo brasileiro Aziz Ab’Saber, a América do Sul teria passado por ciclos de variações climáticas intensas no último 1,6 milhão de anos – quando esfriava muito, como entre 18 mil e 14 mil anos, as florestas tropicais perdiam espaço e encolhiam, formando nichos geográficos, os refúgios, que teriam garantido a sobrevivência de espécies menos acostumadas ao frio. Vanzolini acreditava que as espécies se formavam e se diversificavam em consequência da formação dessas ilhas e do isolamento geográfico dos seres que a habitavam, não em consequência de evolução lenta e estável, como se pensava antes. É provável que três processos tenham ocorrido nestas regiões: a formação de novas espécies, a extinção de certas espécies e a adaptação de outras, que teriam passado sem mudanças genéticas importantes pelas alterações do ecossistema. Vanzolini afirmou em 2012 que não fez teoria nenhuma: “Era apenas um trabalho com uma espécie de bicho. O que fiz acabou sendo trazer um exemplo prático, daquilo que o Haffer havia proposto do ponto de vista teórico. Nada mais é do que um modelo [conceitual], que pode ser replicado, inclusive, para outras regiões”. Em 1970, um ano depois de a revista Science ter publicado o artigo de Haffer propondo a teoria, Vanzolini e o pesquisador norte-americano Ernest Williams publicaram um estudo de cerca de 300 páginas sobre o surgimento de uma espécie de lagarto do gênero Anolis – e em momento algum usaram a expressão teoria dos refúgios, hoje adotada pelos biólogos para explicar a riqueza biológica das florestas tropicais do Brasil. n pESQUISA FAPESP 207  z  51


ECOLOGIA y

A redescoberta de uma floresta Construção de rodoanel motiva expedições científicas à serra da Cantareira, na Grande São Paulo

texto Carlos Fioravanti  fotos Eduardo Cesar

N

o início de fevereiro, em uma das expedições semanais dos pesquisadores do Instituto de Botânica às áreas a serem cortadas pelo trecho norte do rodoanel – a estrada de 180 quilômetros (km) de extensão em fase final de construção em torno da Grande São Paulo –, a botânica Cíntia Kameyama reconhece e colhe espécies de plantas provavelmente raras do cerrado que crescem em um campo ao lado de um sítio a seis quilômetros do aeroporto de Guarulhos. “A estrada vai passar aqui e esta área de mata vai desaparecer”, ela comenta, enquanto separa as plantas colhidas. “O último túnel do rodoanel começa ali”, diz o botânico Paulo Ortiz, apontando para um morro coberto de árvores, entre as quais se destacam as flores coloridas das quaresmeiras. Logo depois Regina Shirasuna volta de uma caminhada a um aglomerado de árvores carregando uma pá e vários sacos que escondem apenas a raiz das plantas que ela colheu: “Vou replantar ainda hoje”. Em seis meses de trabalho, as equipes de resgate tinham recolhido cerca de 200 plantas e as levado para serem cultivadas no instituto. Das 20 áreas visitadas, algumas eram usadas para desova de cadáveres ou encontros de grupos religiosos, que se reuniam em clareiras da mata para cantar alto e, quando os pesquisadores passavam, cumprimentavam com um “paz, irmão!”. O trabalho de campo se intensificou em abril, quando outros grupos de botânicos começaram a resgatar bromélias e outras plantas raras penduradas nas árvores das matas a serem suprimidas nas bordas da serra da Cantareira, a maior floresta urbana do país, com 30 km de extensão, em boa parte já ocupada por bairros populares e condomínios luxuosos, na zona norte de São Paulo e em municípios vizinhos. Ao mesmo tem-

52  z  maio DE 2013

O início de uma estrada: a vegetação nativa a ser removida em um dos canteiros de obra do trecho norte do rodoanel


pESQUISA FAPESP 207  z  53

ilustrações nononononon onononon  fotos  1 nononon nonononon 2 nonononon


O traçado do trecho norte resulta de 10 anos de debates com comunidades, ONGs e órgãos ambientais

lo, Mairiporã, Caieiras e Guarulhos – e abriga 25% da área original e pelo menos 60% da cobertura vegetal da serra, além de proteger as nascentes que fornecem água para os moradores da metrópole desde o final do século XIX. Desde que começou a ser planejado, há 10 anos, o traçado do trecho norte passou por transformações radicais para reduzir os impactos ambientais – uma das propostas era passar ao norte da serra da Cantareira, não ao sul, como no trajeto aprovado. “Examinamos dezenas de

A floresta oculta

Repor o que cortar

Áreas prioritárias para pesquisa no Parque da Cantareira Limite do Parque Estadual da Cantareira

Prioridade para conservação de vegetação: n Extrema  n Alta  n Média

Túnel Trecho norte do Rodoanel

Entroncamento Sistema viário principal

Mairiporã Caieiras

Guarulhos São Paulo

fontes  PLANO DE MANEJO DO PEC E DERSA

54  z  maio DE 2013

possibilidades de traçado, em interação com as prefeituras e as secretarias de meio ambiente dos municípios a serem atingidos”, diz Carlos Henrique Aranha, diretor da Prime Engenharia, empresa de gerenciamento ambiental contratada pela Desenvolvimento Rodoviário S.A. (Dersa), empresa pública responsável pela construção do trecho norte. O traçado final é o resultado de muitas negociações, não só entre órgãos do governo. Os protestos e as pressões dos moradores da região norte da capital e dos municípios a serem atingidos pelas obras resultaram em vários ajustes: a estrada desvia de um campo de tênis, de uma caixa-d’água que havia sido recém-construída quando foi anunciada, de um condomínio de luxo e de uma paineira com 15 metros de altura repleta de bromélias. Mas vai ocupar o terreno da escola em uma avenida de terra na periferia de Guarulhos, que deverá ser refeita em outro lugar. Ninguém diz que o traçado da estrada – construída a um custo estimado em R$ 6,5 bilhões – é perfeito, mas “o de 10 anos atrás era mais impactante”, diz Geraldo Franco, pesquisador do Instituto Florestal. “A obra já foi bloqueada por causa da oposição de ONGs e órgãos ambientais do governo que analisaram os relatórios de impacto principalmente sobre a serra da Cantareira”, ele relata. A estrada que começou a ser construída vai cortar o parque por meio de túneis. Para reduzir o impacto da obra, a regra é simples: repor o que tiver de ser removido. A Dersa anunciou que garantirá uma indenização ou uma casa nova às 3.490 famílias atingidas pela obra. Há uma grande preocupação também com a fauna – incluindo cerca de mil cães e 800 gatos mantidos pelos moradores – e com a flora. “Possivelmente teremos menos resgates que no trecho sul, porque os animais terão para onde fugir”, disse o veterinário Plínio Aiub, coordenador do grupo de empresas responsáveis pelo afugentamento e resgate de fauna, em uma reunião de planejamento realizada no início de fevereiro na Dersa. Na região por onde a estrada vai passar, de acordo com inventários anteriores, vivem 234 espécies de aves, 49 de répteis e 65 de mamíferos – incluindo bugios, preguiças, veados, gambás e ouriços. Cogita-se a construção de túneis e cor-

mapa Daniel das neves

po, biólogos e veterinários entraram na mata para cortar a vegetação mais baixa e fazer muito barulho para resgatar filhotes e espantar para o alto da serra os que pudessem fugir. Eles trabalhavam com pressa: logo chegariam os tratores para remover a vegetação nativa das áreas que serão tomadas pelas pistas do trecho norte do rodoanel, que terá 44 km de extensão, boa parte em Guarulhos. Em três anos, quando estiver pronto, esse trecho completará o anel viário que deve desviar os caminhões que chegam de outras regiões do país e hoje têm de passar pelas avenidas marginais, dificultando o trânsito dos moradores da Grande São Paulo. Em consequência das exigências ambientais, impensáveis até há poucas décadas, quando as rodovias se impunham sem questionamentos sobre as florestas do país, provavelmente nunca antes uma estrada foi construída com tantos cuidados – até os engenheiros tiveram de abdicar da autonomia e trabalhar com pesquisadores dos institutos de Botânica e Florestal. Para complicar, a estrada teria de passar por bairros densamente povoados de São Paulo e Guarulhos e próxima ao Parque Estadual da Cantareira, uma área de preservação de remanescentes de mata atlântica. Com 80 km2, o parque abrange quatro municípios – São Pau-


foto 1 Francisco Vilela / IF

1

A cidade e a serra: o Núcleo Cabuçu e o contínuo de florestas protegidas pelo parque (acima) e plantas coletadas em Guarulhos em fase de identificação botânica

redores com cordas entre árvores nas estradas que cortam a serra para evitar atropelamentos e facilitar a passagem de animais. “Se vai funcionar? Só testando para saber”, diz o ecólogo Márcio Port-Carvalho, do Instituto Florestal. A vegetação nativa que tiver de ser cortada terá de ser reposta: é o reflorestamento compensatório, como já foi feito no trecho sul, inaugurado em 2010, e deve ser adotado também no trecho leste, já em construção. Em 2007, como condição para a aprovação do projeto de construção do trecho sul, órgãos ambientais estaduais e federais determinaram que a Dersa replantasse 1.016 hectares de florestas (cada hectare equivale a 10 mil metros quadrados), em áreas próximas à futura rodovia, para compensar a perda de 200 hectares de mata atlântica que cerca a Grande São Paulo. Até janeiro de 2012, em um terço das 147 áreas plantadas, a maioria das ár-

vores tinha morrido ou não tinha crescido como se esperava, por causa de alagamentos, incêndios provocados, geadas, invasão de gado e oposição de moradores vizinhos (ver Pesquisa Fapesp nº 191). Agora se prevê a reposição de cerca de mil hectares, em áreas próximas que ainda estão sendo identificadas. Um problema para o qual os especialistas ainda não encontraram solução é como repor as áreas de cerrado inesperadamente identificadas nos municípios de Guarulhos e Arujá, agora consideradas preciosas por representarem um tipo de vegetação eliminada com o crescimento das cidades e com obras como o aeroporto de Guarulhos. Planeja-se reaproveitar o solo que tiver de ser retirado nas novas áreas, mas não há garantia de que essa estratégia funcione, porque até hoje biólogos, agrônomos e engenheiros florestais não conseguiram manter de modo satisfatório as plantas do cerrado fora das áreas em que crescem naturalmente. “Os estudos sobre a produção de mudas de espécies do cerrado ainda são incipientes”, lembra Franco. A movimentação de homens e máquinas envolvidos com a construção do trecho norte está aumentando a visibilidade da serra coberta de mata atlântica, que pESQUISA FAPESP 207  z  55


fotos 3 Plínio Aiub  4 Acervo J.B. Baitello/IF

1

3

À frente dos tratores: corte da mata baixa e resgate de plantas e animais; bromélias e orquídeas coletadas e mantidas em viveiros; e perereca de uma das áreas da futura estrada

ajuda os moradores de São Paulo a se orientarem geograficamente, mas ainda é pouco conhecida. A cada ano, 90 mil moradores da cidade visitam o Parque da Cantareira (aberto apenas nos finais de semana), a 20 km do centro da cidade, de onde se pode ter uma magnífica vista da metrópole, a mil metros de altitude. Não é muito se comparado com o Parque do Ibirapuera, que recebe 70 mil pessoas apenas em um sábado de sol. Como os visitantes, os levantamentos sobre os animais e as plantas do Parque da Cantareira não são abundantes. “Ainda temos muitas espécies de árvores, entre elas duas de cinamomos, para serem descritas”, diz João Batista Baitello, 56  z  maio DE 2013

A conservação ambiental em São Paulo começou na Cantareira, antes do conceito de parques

biólogo do Instituto Florestal. Em 2010, seu colega Frederico Arzolla apresentou 101 espécies de arbustos e árvores que crescem em clareiras que haviam sido formadas para a instalação de torres de transmissão de energia elétrica e em 2011 outras 179 espécies de árvores encontradas em 11 km de trilhas no interior do parque. Desde o início do século passado os estudos se concentram nas áreas mais preservadas do parque, como o Pinheirinho, que Baitello visitou pela primeira vez logo depois de ter sido contratado pelo instituto, em 1976. Seis anos depois, ele e Osny Tadeu de Aguiar apresentaram o primeiro levantamento amplo dessa região, com 189 espécies de

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árvores, entre elas algumas majestosas como o carvalho-nacional, o guatambu, a canela-preta, o jequitibá-branco, o pau-terra e o pau-furado, a maior de todas, com até 40 metros de altura e 3 de diâmetro. O parque abriga 678 espécies de árvores e 866 de animais já descritas, de acordo com o plano de manejo, o mais completo inventário feito até agora. Esse trabalho, que pode ser encontrado no site do Instituto Florestal, apresenta também áreas prioritárias que deveriam ser mais estudadas (ver mapa). A diversidade biológica se deve à combinação de dois tipos distintos de mata atlântica, a ombrófila densa montana, encontrada em serras, e a semidecidual, com árvores que perdem parte das folhas nas épocas mais secas do ano, e à diferença de altitude, que varia de 775 a 1.200 metros. Segundo Alexsander Antunes, especialista em aves do Instituto Florestal, a época de frutificação de uma mesma espécie pode variar de acordo com a atitude: a palmeira-juçara, por exemplo, frutifica entre abril e junho nas regiões mais baixas e no final do ano nas mais altas, desse modo fornecendo frutos para arapongas e sabiás ao longo do ano todo.

Uma floresta de histórias

A Cantareira está muito ligada à história da capital paulista. “Muito provavelmente as árvores utilizadas para fazer as vigas sobre as paredes de taipa do Pátio do Colégio, construído no século XVI, vieram


da serra da Cantareira”, diz Baitello, que em seguida mostra uma placa de canela-preta com pelo menos 460 anos de idade com que um morador da cidade, José Nunes de Vilhena, presenteou dom Bento José Pickel, padre beneditino e curador do herbário do então chamado Serviço Florestal, mais tarde Instituto Florestal. Como os fazendeiros buscavam mais terras para plantar café, chá ou cana-de-açúcar, o desmatamento na serra cresceu bastante até o final do século XIX, quando o governo estadual resolveu agir, desapropriando fazendas para proteger as nascentes ou riachos que abasteciam a cidade – o nome Cantareira, por sinal, vem da palavra cântaro, onde os moradores e viajantes guardavam água. “A conservação ambiental no estado de São Paulo começou aqui, antes mesmo do conceito de parque ou reserva”, diz Arzolla. O parque nacional mais antigo do Brasil, o de Itatiaia, foi criado em 1937. A criação do Serviço Florestal em 1911 e da Guarda Florestal um ano depois assegurou a preservação da mata e de boa parte dos animais que a habitavam. Onças-pintadas e catetos não foram mais vistos, em consequência da fragmentação da mata e da caça intensiva, mas o parque e as áreas próximas abrigam uma das maiores populações de bugios (Alouatta clamitans) do país. “Por aqui vivem centenas de bugios”, diz Port-Carvalho, que está terminando uma estimativa da população desses animais. Das quatro espécies de primatas nativas encontradas atualmente na serra da Cantareira, a única ameaçada de extinção é o sagui-da-serra-escuro ou Calli-

thrix aurita. Uma das maiores ameaças é o cruzamento com outras espécies de saguis que não viviam na serra, como Callithrix penicillata. “Na semana passada, pela primeira vez, vi um C. aurita andando com um grupo de C. penicillata em uma área contínua à Cantareira”, relata Port-Carvalho. “Dos parques de mata atlântica, este é o mais fácil para ver bichos, tanto macacos quanto aves”, diz Antunes, que mora em um condomínio a dois quilômetros do parque em cujo jardim vivem bugios, tucanos e 80 espécies de aves. Desde 2005 ele identificou no parque 250 espécies de aves, incluindo algumas que ainda não tinham sido vistas na cidade de São Paulo, como o gavião-de-sobre-branco, o pica-pau-rei e o corocoró. Macucos, já raros no estado de São Paulo, podem ser vistos pelo parque “com relativa facilidade”, ele diz. “Quando a gente chega ao alto da serra em um dia úmido, com a neblina subindo, pode-se ver pingos amarelos se movendo no solo”, relata Gláucia Cortez, bióloga do Instituto Florestal. Os pontos amarelos são os sapinhos-pingos-de-ouro ou Brachycephalus nodoterga. Não se sabe como as plantas e os animais vão reagir à redução da floresta, às obras e depois à estrada. “Os impactos negativos para alguns grupos de animais podem aparecer só depois de muitos anos, por isso é importante fazer monitoramentos de longo prazo”, alerta Port-Carvalho. Quem está planejando, abrindo ou acompanhando a nova estrada já está em alerta. “Seremos vigiados o tempo todo”, disse um engenheiro na

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Ontem e hoje: uma foto da década de 1940 de um pau-furado, árvore de até 40 metros de altura (de avental, o anatomista Calvino Mainieri) e uma das estradas que cortam a serra

Dersa. Eles temem que os moradores dos condomínios próximos à obra fotografem e divulguem pela internet qualquer irregularidade, assim que a virem. Em meados de abril, Plínio Aiub, com sua equipe, já tinha encontrado – e removido para regiões mais seguras da mata – cobras e aranhas, além de terem visto bandos de macacos-prego que apareciam para espiar. “Fomos chamados para resgatar uma cascavel e encontramos uma Phyllomedusa, um gênero de perereca que normalmente vive em áreas baixas e úmidas, mas estava em uma região alta e seca”, diz ele. “No trecho sul, pegamos animais até o último dia da obra. Eles tendem a voltar para onde estavam antes.” n

Artigos científicos ARZOLLA, F.A.R.D.P. et al. Composição florística e a conservação de florestas secundárias na serra da Cantareira, São Paulo, Brasil. Revista do Instituto Florestal. v. 23, n. 1, p. 149-71, 2011. Baitello, J.B.; Aguiar, O.T.; Rocha, F.T.; Pastore, J.A.; Esteves, R.. Estrutura fitossociológica da vegetação arbórea da serra da Cantareira – Núcleo Pinheirinho. Revista do Instituto Florestal. v. 5, n. 2, p. 133-61, 1993.

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LEONEL, C. (Org.). Parque Estadual da Cantareira: Plano de manejo. 1ª ed. São Paulo: Fundação Florestal, 2009 (livro eletrônico).

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especial biota educação III

A ameaça vem do planalto Ocupação e uso desordenado do solo, ao lado da instalação de usinas hidrelétricas, dificultam o fluxo migratório de espécies no pantanal Rodrigo de Oliveira Andrade

“I

maginem um enorme anfiteatro no coração da América do Sul”, disse o biólogo José Sabino ao se referir ao mosaico geográfico que dá forma às planícies pantaneiras, na região Centro-Oeste do Brasil. Com 140 mil quilômetros quadrados (km2) e uma dinâmica que alterna ciclos anuais de seca e alagamento que influenciam as interações ecológicas e os padrões de biodiversidade, o pantanal é a maior planície inundável do mundo. Está rodeado por serras que podem atingir 1.400 metros de altitude, “as quais dão vida à paisagem, mas também estão ligadas às principais ameaças à diversidade biológica da região”, afirmou o biólogo. Sabino é pesquisador da Universidade Anhanguera-Uniderp e foi um dos convidados do Ciclo de Conferências Biota-FAPESP Educação, realizado em São Paulo em 18 de abril. Além dele, participaram o veterinário Walfrido Tomas, do Laboratório de Vida Selvagem da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa-Pantanal), e o agrônomo Arnildo Pott, da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS).

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A ocupação e o uso desordenado da terra por meio da agricultura e da pecuária nas regiões adjacentes às planícies, muitas vezes estimuladas por políticas públicas, são hoje uma das principais ameaças à conservação da biodiversidade local, destacaram os pesquisadores. “A utilização não sustentável da terra nos planaltos tem provocado a erosão do solo e, como consequência direta, o assoreamento dos rios”, disse Sabino. Segundo ele, o caso mais emblemático ocorreu na bacia do rio Taquari. “A partir da década de 1970, a intensificação da agropecuária sem a devida conservação dos solos culminou no assoreamento quase completo do baixo curso do rio.” O resultado foi o rompimento de suas margens e a inundação permanente de mais de 5 mil km2 de uma área onde a inundação era sazonal (ver Pesquisa FAPESP nº 116). “Isso inviabilizou atividades econômicas próprias da região, reduziu a produção pesqueira e mudou substancialmente a composição local da fauna e da flora”, ressaltou. De acordo com o biólogo, apesar de tradicional-


ilustrações  sandra jávera  foto José sabino / natureza em foco

Anfiteatro natural: planícies alagáveis, cercadas por uma região de planalto

mente se basear no uso de pastagens nativas, a pecuária desenvolvida nas planícies sempre foi considerada de baixo impacto à biodiversidade pantaneira. Mas a tendência à intensificação da produção nos últimos anos tem levado pecuaristas a cultivarem pastagens exóticas, o que implica o desmatamento de matas nativas. Outras atividades também ameaçam o bioma. É o caso da indústria, da mineração e da produção de energia por usinas hidrelétricas, as quais têm potencial para alterar a dinâmica natural dos ecossistemas que compõem o pantanal. “As hidrelétricas podem comprometer o fluxo de nutrientes transportados pela água e o funcionamento hidrológico que alimenta as planícies pantaneiras, bem como promover alterações no hábitat de espécies aquáticas e semiaquáticas e, consequentemente, nos serviços ecossistêmicos que essas espécies desempenham na região”, ressaltou Tomas. Mesmo assim, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) tem realizado licitações para a construção de pequenas centrais hidrelétricas

na bacia hidrológica do Alto Paraguai, alertou Sabino. “A construção dessas usinas pode comprometer o fluxo migratório de certas espécies de peixes da região”, disse. Já a mineração impõe risco de contaminação ao ambiente. “A mineração de manganês e ferro, por exemplo, pode levar à perda da vegetação característica do pantanal, afetando diversas espécies e comprometendo a disponibilidade de recursos hídricos fundamentais para a manutenção da diversidade biológica local”, destacou o biólogo. O garimpo de ouro no norte do pantanal já poluiu áreas significativas com mercúrio, disse. Assim, por se tratar de uma área natural moldada pela disponibilidade de água, sobretudo do rio Paraguai e de uma extensa rede de afluentes com nascente nos planaltos vizinhos, a implementação bem-sucedida das estratégias de conservação deve passar pela mudança da unidade de gestão pantaneira para a bacia hidrográfica do Alto Paraguai, concluiu Tomas. “As políticas públicas de preservação precisam integrar o biopESQUISA FAPESP 207  z  59


A partir da esquerda: Walfrido Tomas, Arnildo Pott e José Sabino 1

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lógica. Geograficamente, as planícies pantaneiras estão localizadas numa encruzilhada territorial. Englobam parte da região sul de Mato Grosso e noroeste de Mato Grosso do Sul, se estendendo também pelo leste da Bolívia e pelo norte do Paraguai. “É o fim do mundo! Ou o começo dele, depende do ponto de vista”, brincou o agrônomo Arnildo Pott. Segundo ele, essa localização privilegiada permitiu ao pantanal interagir com diferentes ecossistemas, como a Amazônia e o

Interação com os vizinhos Fauna e flora pantaneira sofrem influência da Amazônia, do cerrado e da mata atlântica

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60  z  maio DE 2013

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encruzilhada territorial

O pantanal ocupa hoje 1,8% do território nacional. É o menor dos seis biomas brasileiros – o maior é a Amazônia, que se estende por 50% da área total do país. Mas seu tamanho singelo não necessariamente reflete sua complexidade bio-

rio

rio

ma às nascentes dos rios que o alimentam.” Para ele, estratégias de remuneração, desoneração e certificação de práticas adequadas de gestão para proprietários que conservam a diversidade das paisagens pantaneiras também devem ser incentivadas. “O cultivo de pastagens para aumentar a produção tornou-se algo constante no pantanal. É preciso investir na premiação de pecuaristas que não intensificaram sua produção por meio desse tipo de plantação. Afinal, o fazendeiro que cria seu boi sem alterar a paisagem está contribuindo para a conservação do bioma”, disse. Cerca de 5% do pantanal está protegido por áreas de conservação. Embora essa abordagem seja bem aceita pelo poder público, na prática ela tem se mostrado ineficaz no que diz respeito à preservação da fauna. “A conservação de espécies mais críticas depende mais do manejo sustentável das fazendas do que das unidades de conservação existentes”, destacou Tomas. Ele se referia a espécies como a onça-pintada, a ariranha e a arara-azul, encontradas com mais frequência além das fronteiras das unidades de conservação. “As espécies não se distribuem de forma homogênea na planície. Por isso, a preservação desses animais requer estratégias mais amplas do que a simples gestão dessas unidades de conservação.”

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Bacia do Alto Paraguai Pantanal Cerrado Amazônia Mata atlântica fonte ibge

Bonito

MS

Mata Atlântica


cerrado, além de enclaves de mata atlântica. “A flora pantaneira sofre forte influência fitogeográfica desses biomas. Em algumas regiões podemos verificar a presença de vegetações aquáticas a menos de um metro de vegetações próprias da caatinga”, afirmou. Algumas espécies vegetais amplamente distribuídas nos campos do pampa, como a Macrosiphonia velame, e na caatinga, como a Brasiliopuntia brasiliensis, podem facilmente ser identificadas no pantanal. O mesmo ocorre com a fauna pantaneira. De acordo com Tomas, grande parte dos mamíferos do pantanal é típica do cerrado, enquanto a maioria das espécies de aves é oriunda da Amazônia e da mata atlântica. “Também é possível verificar a presença de populações de peixes amazônicos por lá”, disse. Constituído, sobretudo, por uma savana estépica, o pantanal é a área úmida com maior riqueza de espécies de aves no mundo. “Ajuda o fato de o bioma estar localizado em uma rota migratória”, destacou. Mas existem lacunas a serem preenchidas em relação ao conhecimento taxonômico e geográfico acerca da diversidade biológica da região. É o caso de grupos menos conhecidos, como crustáceos, moluscos e lepidópteros. “O programa Biota Mato Grosso do Sul, o qual está sendo implantado, nos ajudará a entender melhor a complexidade da diversidade biológica pantaneira”, comentou. São poucos os registros de espécies endêmicas no bioma. Segundo Tomas, o que marca o pantanal não é o endemismo de espécies, mas a abundância de populações. “Estimamos a existência de 45 mil cervos-do-pantanal (Blastocerus

dichotomus), mais de 3 milhões de jacarés (Caiman yacare), 5 mil araras-azuis (Anodorhynchus hyacinthinus) e de 3 a 5 mil onças-pintadas (Panthera onca). No entanto, esses números podem variar conforme a gangorra sazonal que gerencia os períodos de secas e inundações na planície”, disse. De todo modo, a falta de endemismos no pantanal é compensada pelas interações entre as espécies que por lá vivem e geram processos biológicos próprios da região. “Esses processos são endêmicos e precisam ser conservados, já que têm funções ecossistêmicas importantes para a manutenção da diversidade biológica pantaneira”, destacou Tomas. GESTÃO SUSTENTÁVEL

De acordo com Sabino, a mitigação das ameaças à biodiversidade do pantanal também depende da governança. “Precisamos fazer a interface entre o que produzimos de conhecimento sobre a diversidade biológica pantaneira e como essa produção pode ser útil à sociedade”, ressaltou o biólogo. Para ele, é preciso deixar clara a importância da biodiversidade desse bioma para o país, mostrando como criar condições para a construção de uma relação mais harmoniosa com a natureza. Há algumas iniciativas nesse sentido, destacou Sabino. “O próprio programa Biota-FAPESP é exemplo disso”, disse. E é nesse cenário de gestão e governança que se inserem

Onça-pintada, arara-azul e jacaré-do-pantanal: encontrados com mais frequência fora das unidades de conservação

fotos  1 a 3 eduardo cesar  4, 5 e 6 José Sabino/natureza em foco mapa daniel das neves

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pESQUISA FAPESP 207  z  61


as políticas públicas voltadas à organi­zação do ecoturismo na região, destacaram os pesquisadores. “O pantanal tem um potencial enorme para o ecoturismo, mas essa é uma atividade que, infelizmente, ainda é feita de forma amadora”, afirmou Tomas. Somente a Costa Rica, disse Sabino, recebe três vezes mais turistas do que o Brasil. “Nosso país ainda subexplora essa atividade. Precisamos reconhecer nossos potenciais para estimularmos seu aproveitamento de forma adequada.” No pantanal esse potencial é vasto. Um dos atrativos é a transparência das águas, como as do rio Olho d’Água, “tão ou mais límpidas que as de Fernando de Noronha e do Caribe”, afirmou Sabino. Em boa parte isso se deve à conservação das matas situada às margens dos rios. Essa preservação não só garante a pureza das águas como a integridade de processos ecológicos, como a relação de cumplicidade entre os macacos-prego e as piraputangas (Brycon hilarii), espécie de peixes prateados da família Characidae. De acordo com Sabino, as piraputangas têm uma capacidade de orientação acústica e visual muito grande, de modo que qualquer barulho vindo da superfície da água atrai sua atenção. Já os macacos-prego, exímios dispersores de sementes, ao se alimentarem, fazem o que os pesquisadores chamam de forrageamento destrutivo. “A cada um ou dois frutos que põem na boca, eles derrubam outros tantos”, explicou o biólogo. Ao cair na água, esses frutos acabam atraindo a atenção das piraputangas, redirecionando-as para onde essas sementes são lançadas. Esses peixes, então, passam a seguir esses macacos, já que eles, indiretamente, alimentam as piraputangas. “Esse é apenas um dos potenciais turísticos do pantanal”, concluiu. O Ciclo de Conferências Biota-FAPESP Educação é uma iniciativa da coordenação do programa Biota-FAPESP e da revista Pesquisa FAPESP. Seu objetivo é contribuir para a melhoria da qualidade da educação científica e ambiental no Brasil. Até novembro haverá mais seis palestras (ver programação ao lado), que irão tratar dos desafios e das principais ameaças relacionadas aos seis biomas brasileiros: cerrado, caatinga, mata atlântica, Amazônia, além dos ambientes marinhos e costeiros e da biodiversidade em ambientes antrópicos, urbanos e rurais. n 62  z  maio DE 2013

Programação

Ciclo de Conferências Biota-FAPESP Educação 2013 Para mais informações: www.biota.org.br  . www.biotaneotropica.org.br . www.agencia.fapesp.br

16 de maio (14h00-16h00)

24 de outubro (14h00-16h00)

Bioma Cerrado

Ambientes marinhos e costeiros

Conferencistas

Conferencistas

Vânia Regina Pivello (IB-USP, São Paulo)

Mariana Cabral de Oliveira

Jader Marinho Filho

(IB-USP, São Paulo)

(ICB-UnB, Brasília)

Maria de los Angeles Gasalla

Vanderlan S. Bolzani

(IO-USP, São Paulo)

(Unesp, Araraquara, São Paulo)

Roberto S .G. Berlinck (IQSC-USP, São Paulo)

20 de junho (14h00-16h00) 21 de novembro

Bioma Caatinga

(14h00-16h00)

Conferencistas

Biodiversidades em

Luciano Paganucci

ambientes antrópicos –

(UE, Feira de Santana)

urbanos e rurais

Fernanda Werneck

Conferencistas

(ICB-UnB, Brasília) Bráulio Almeida Santos

Luciano M. Verdade

(UFPB, Paraíba)

(Cena-USP, São Paulo) Elisabeth Höfhling

22 de agosto (14h00-16h00) Bioma Mata Atlântica Conferencistas Carlos Alfredo Joly (IB-Unicamp, Campinas, São Paulo) Helena Bergallo (Ibrag/Uerj) Márcia Hirota (SOS Mata Atlântica)

19 de setembro (14h00-16h00) Bioma Amazônia Conferencistas Maria Lucia Absy (Inpa) Carlos Peres (Universidade East Anglia, Reino Unido) Helder Queiroz (IDSM)

+10

(IB-USP, São Paulo) Roseli Buzanelli Torres (IAC)


Bioquímica y

O efeito da tripla hélice DNA com três fitas pode regular expressão de certos genes

foto eduardo gorab

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á quatro anos, o pesquisador Eduardo Gorab, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), desenvolveu um método que usava um antigo anticorpo para reconhecer um tipo raro de estrutura presente no material genético de moscas das espécies Rhynchosciara americana e Drosophila melanogaster: moléculas de DNA compostas de três fitas entrelaçadas de bases nitrogenadas, em vez da tradicional dupla hélice, a conformação padrão do ácido desoxirribonucleico. A inusitada tripla hélice se encontrava na heterocromatina, região cromossômica em que o DNA permanece compactado ao lado de proteínas e de RNA, o ácido ribonucleico. Por isso, quando identificou a tripla hélice no interior dessa região, Gorab suspeitou que ela pudesse estar associada ao processo de desativação de genes, de comum ocorrência na heterocromatina. No entanto, um estudo publicado em 27 de janeiro deste ano na revista científica Nature Structural & Molecular Biology pelo brasileiro e colegas da Europa e do Japão sugere novas possibilidades para o papel das triplas hélices no núcleo celular. Com a ferramenta molecular criada por Gorab, o grupo internacional de pesquisadores encontrou na cromatina de embriões de camundongos triplas hélices

formadas por cadeias de bases de conformação ligeiramente diferente da identificada no material genético das moscas. Em vez de três fitas espiraladas de DNA, as células dos animais apresentavam duas cadeias de DNA ligadas a uma de RNA. Tais triplas hélices foram identificadas num estágio bastante específico e inicial do processo de desenvolvimento do embrião, quando este tinha somente de duas a oito células. Nessa etapa da embriogênese, a presença das triplas hélices parecia aumentar a expressão de certos genes importantes para essa fase do processo. Em estágios mais avançados do embrião, quando esse conjunto de genes não era mais ativado, a fita de RNA acoplada às duas de DNA também não era mais detectada. “In vivo, também vimos que, quando estimulávamos a produção da tripla hélice, a expressão desses genes aumentava”, afirma Gorab. “Os resultados do trabalho não são uma prova direta, cabal, de que isso ocorra, mas reforçam essa correlação."

Tripla hélice (em rosa) identificada em cromossomo de mosca: modulação de genes

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Como se forma a tripla hélice

Dobra

Intramolecular

Intermolecular

Ocorre o despareamento das duas fitas (A e B) da molécula padrão de DNA em certo ponto da sequência. Um pedaço do DNA permanece com as duas cadeias de bases nitrogenadas pareadas enquanto outro apresenta as fitas soltas. Uma das fitas soltas se dobra e se enrola ao trecho de DNA que havia mantido as duas cadeias pareadas

A tripla hélice também pode se formar em casos em que uma das fitas é cedida por uma segunda molécula de DNA. Nessa situação, duas cadeias oriundas de um DNA convencional (C e D) se unem a uma fita (E) que se desprendeu de outro DNA. No trabalho recente de Gorab, essa terceira fita é cedida por uma molécula de RNA

C

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Infográfico ana paula campos ilustração gabriel bitar  foto jean paul rodriguez e giulia biffi

A estrutura pode se originar de um único trecho de DNA (intramolecular) ou da interação de dois ácidos nucleicos (intermolecular)


Estrutura de DNA quádruplo: possível ligação com o câncer

Segundo uma das autoras do estudo, a pesquisadora Maria-Elena Torres-Padilla, do Instituto de Genética e de Biologia Molecular e Celular (IGBMC), de Estrasburgo, França, o possível efeito regulatório da tripla hélice se manifesta nesse estágio do desenvolvimento embrionário sobre uma arquitetura atípica da cromatina. Por definição, a cromatina apresenta duas formas distintas: uma ativa, a eucromatina, em que o DNA está acessível e pode ser expresso por proteínas regulatórias; e uma inativa, a mencionada heterocromatina, na qual o material genético está compactado e não pode ser utilizado. No trabalho com as células embrionárias dos roedores, a cromatina se encontrava em um estágio atípico, intermediário entre suas duas formas, mas que podia ser acessado e regulado pela tripla hélice. “Estávamos procurando por um mecanismo regulatório ligado ao RNA que teria impacto sobre a ‘estrutura’ ou a ‘conformação’ da cromatina”, explica Maria-Elena. “Como o RNA forma uma tripla hélice com o DNA, ele era um bom candidato a desempenhar esse papel.” Embora o fenômeno da formação de moléculas de DNA com mais de duas fitas de ácidos nucleicos seja estudado desde a década de 1950, os bioquímicos passaram a ter uma melhor compreensão dos mecanismos que podem levar ao surgimento desse tipo de material genético menos convencional apenas nos últimos 10 ou 15 anos. “As triplas hélices tendem a se formar em regiões do genoma em que ocorrem seguidas repetições de uma

Desde os anos 1950, as inusitadas triplas hélices são alvo de estudos, mas sua função ainda não é bem conhecida base, embora haja também outras possibilidades”, diz Gorab. Ou seja, trechos do DNA ricos em sequências com um único nucleotídeo, como TTTTT (para a base timina) ou AAAAA (adenina), são candidatos a abrigarem hélices com mais de duas fitas. Como cerca de metade do genoma de mamíferos é composto por sequências repetitivas, formadas por elementos móveis (transposons e retrotransposons) que podem mudar de lugar ou se autocopiar ao longo do genoma, a presença desse tipo de estrutura não deve ser tão rara assim. DNA quádruplo

Um DNA com três fitas pode se formar de mais de uma maneira. No estudo de Gorab com as moscas, a tripla hélice se originou do despareamento das duas fitas que compõem a molécula padrão de DNA a partir de um certo ponto da sequência. Um pedaço do DNA permanece com as duas cadeias de bases nitrogenadas pareadas enquanto outro apresenta as fitas soltas. Uma dessas fitas soltas, no entanto, se dobra e se liga ao trecho de DNA que havia mantido as duas cadeias pareadas. Dessa forma, surge uma molécula de ácido desoxirribonucleico com três fitas, todas originárias de uma única molécula. Esse é o DNA triplo intramolecular.

Há também o DNA triplo intermolecular, quando uma das fitas é cedida por uma segunda molécula de DNA. Nesse caso, a tripla hélice tem duas cadeias vindas de um DNA convencional mais uma fita que se desprendeu de outro DNA. No trabalho com os camundongos em que Maria-Elena usou o anticorpo criado por Gorab, a terceira fita do DNA foi cedida por uma molécula de RNA, que normalmente apresenta apenas uma cadeia de bases. “Nossa metodologia pode identificar várias formas de ácidos nucleicos triplos”, diz o pesquisador da USP. Não há evidências de que a formação de estruturas genéticas ainda pouco conhecidas, como a tripla hélice, esteja relacionada necessariamente com o aparecimento de doenças. Em tese, elementos que atuam como moduladores da atividade de genes podem trazer efeitos tanto positivos como negativos. Um estudo publicado em janeiro deste ano na revista Nature Chemistry identificou hélices quádruplas de DNA, outra conformação pouco usual dessa molécula, em células humanas com câncer. A descoberta pode ser útil para a compreensão do processo de aparecimento dos tumores e talvez até para o desenvolvimento de novas abordagens terapêuticas. Com quatro fitas entrelaçadas, esse tipo de DNA se forma em trechos do genoma ricos na base nitrogenada guanina, representada pela letra G. Por isso, recebe o nome de quadruplexos-G ou quartetos-G. “A pesquisa indica que os quaduplexos ocorrem com maior frequência em genes de células que estão se dividindo rapidamente, como as de câncer”, disse, na ocasião, Shankar Balasubramanian, da Universidade de Cambridge, principal autor do estudo. “Para nós, isso reforça fortemente um novo paradigma, o de usar essas estruturas com quatro fitas como alvos para tratamentos personalizados no futuro.” n Marcos Pivetta

Projeto Aspectos moleculares da heterocromatina em espécies da família Sciaridae (Diptera: Nematocera) (2008/50653-2); Modalidade Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa; Coord. Eduardo Gorab – IB/USP; Investimento R$ 165.485,11(FAPESP).

Artigo científico FADLOUN, A. et al. Chromatin signatures and retrotransposon profiling in mouse embryos reveal regulation of LINE-1 by RNA. Nature Structural & Molecular Biology. 27 jan. 2013.

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Fisiologia y

Nova estratégia contra a hipertensão Equipe de Minas Gerais identifica no sangue molécula que dilata os vasos e reduz a pressão arterial

66  z  maio DE 2013

ção sanguínea de moléculas como a alamandina, que fazem a pressão diminuir. Os pesquisadores acreditam que a alamandina possa atuar em conjunto com outro peptídeo que faz baixar a pressão arterial: a angiotensina 1-7, que Santos ajudou a identificar no final dos anos 1980. Desde meados do século passado se sabe que, de modo geral, a pressão arterial é controlada pela ação de peptídeos chamados angiotensinas, que funcionam como hormônios e atuam sobre as células da parede dos vasos sanguíneos. Sob situações de estresse psicológico ou condições que alteram a concentração de sais ou o volume de líquido no sangue (como diarreia e hemorragia), os rins iniciam a produção de uma enzima chamada renina, que aciona a produção em cascata de algumas formas de angiotensina capazes de fazer a pressão subir. Quando é ativado ocasionalmente, esse mecanismo é essencial para manter a saúde do organismo. Mas se torna danoso se a ativação for contínua. Até os anos 1980 se acreditava que esse mecanismo bioquímico, conhecido como sistema renina-angiotensina, tivesse ação exclusivamente vasoconstritora e só funcionasse para aumentar a pressão arterial. Isso começou a mudar durante um estágio de pós-doutoramento que Santos fez na Cleveland Clinic Foundation, em Ohio, Estados Unidos. Ele e outros pesquisadores de lá identificaram no sangue uma forma de angiontensina

Peptídeos atuam sobre a parte interna dos vasos sanguíneos (ao lado), fazendo-os contrair ou relaxar

nononon onononon

U

ma promissora estratégia para tratar a hipertensão começa a ser delineada pela equipe do médico Robson dos Santos, do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Em um artigo publicado em abril na revista Circulation Research, uma das mais bem conceituadas na área cardiovascular, os pesquisadores descreveram uma pequena molécula naturalmente produzida pelo organismo que faz os vasos sanguíneos relaxarem e a pressão sanguínea diminuir. Essa molécula – trata-se de um peptídeo (fragmento de proteína) chamado alamandina – se soma ao já complexo mecanismo bioquímico de regulação da pressão arterial e abre a possibilidade de explorar uma forma de controle diferente da proporcionada pelas medicações disponíveis. A maior parte dos anti-hipertensivos em uso tenta reduzir a pressão do sangue sobre as paredes internas dos vasos sanguíneos de duas maneiras: bloqueando a ação de compostos que fazem os vasos se contraírem e a pressão arterial subir ou estimulando a redução do volume de sangue ao eliminar parte de sua água na urina. Santos e seu grupo imaginam que seja possível controlar a hipertensão, problema que atinge 20% dos adultos e metade das pessoas com mais de 60 anos no Brasil, usando uma estratégia distinta. Em vez de frear a ação dos compostos que elevam a pressão, eles pretendem aumentar a concentra-

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Martha San Juan França


– a angiotensina 1-7, um dos integrantes do sistema renina-angiotensina – que fazia a musculatura dos vasos relaxar e a pressão diminuir. “Desde aquela época ficamos atentos para a presença de outros peptídeos que produzissem vasodilatação”, recorda Santos.

ilustrações nononononon onononon  fotos  1 nononon nonononon 2 nonononon

possibilidades

Ele começou a suspeitar da existência da alamandina em 2008, quando um de seus colaboradores, o pesquisador alemão Joachim Jankowski, descobriu outro componente desse complicado sistema, a angiotensina A, a partir do qual é produzida a alamandina. Mas preferiu esperar cinco anos antes de publicar a descoberta, até identificar o receptor específico a que ela se conecta e entender melhor o seu funcionamento. Hoje se sabe que tanto a alamandina quanto a angiontensina 1-7 estimulam as células que revestem internamente os vasos sanguíneos a produzir óxido nítrico, gás que relaxa a musculatura da parede das artérias. Por essa razão, Santos trabalha no desenvolvimento de compostos que possam aumentar a concentração de ambas no sangue e aprimorar o controle da pressão arterial. “Acreditamos que a angiotesina 1-7 e a alamandina podem atuar juntas e, melhor ainda, esperamos que uma possa potencializar o efeito da outra”, diz o pesquisador, que imagina ser possível desenvolver compostos com aplicações que vão além da hipertensão, uma vez que a angiotensina 1-7 também ajuda a reduzir o nível de algumas formas de colesterol e aumentar o aproveitamento da glicose pelas células, que é deficiente em boa parte dos hipertensos. “A descoberta dessa molécula pode dar origem a uma nova classe de medicamentos com indicação para os casos em que os remédios tradicionais não funcionem tão bem”, afirma a médica Maria Claudia Irigoyen, chefe do Laboratório de Hipertensão Experimental do Instituto do Coração da Universidade de São Paulo (USP). Para ela, o fato de a alamandina se ligar a receptores diferentes nas células dos vasos sanguíneos aumenta o seu espectro de atuação terapêutica. O pesquisador de Minas concentra agora seu trabalho em duas frentes. Uma

básica, voltada para identificar a via de sinalização da alamandina no interior das células, e outra clínica, com o objetivo de testar a ação dessa molécula em pessoas com hipertensão. Atualmente um composto à base de angiontensina 1-7, desenvolvido pelo grupo de Santos, avança nos testes com seres humanos – ele já foi dado a grávidas com pré-eclâmpsia para regularizar o nível do peptídeo no sangue e controlar a pressão arterial (ver Pesquisa FAPESP nº 203), e os testes com a alamandina devem ser iniciados já no segundo semestre deste ano. “Como esse peptídeo é produzido pelo próprio organismo, acreditamos que não haverá efeitos tóxicos. Por isso, podemos pular os testes toxicológicos, feitos com animais, e ir direto aos testes clínicos”, diz Santos, que coordena o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Nanobiofarmacêutica (INCT-Nanobiofar). Ex-aluno de Eduardo Moacyr Krieger, um dos maiores especialistas brasileiros em hipertensão, Santos integra um seleto grupo de pesquisadores que se dedica a levar as descobertas da bancada aos pacientes e se preocupa com o ritmo das pesquisas nessa área no país. “Temo que aconteça conosco o que ocorreu com o captopril, mesmo considerando que nosso composto já esteja protegido por patentes”, afirma Santos, inquieto com a demora resultante do suporte financeiro insuficiente e dos entraves burocráticos à inovação no setor acadêmico e no empresarial. Nos anos 1960, o farmacologista Sérgio Ferreira, da USP em Ribeirão Preto, identificou no veneno da jararaca uma molécula (o fator de potenciação da bradicinina) que bloqueia a formação de angiotensina II e leva ao desenvolvimento do anti-hipertensivo captopril. Na época não havia preocupação em requerer patentes e o lucro da produção do medicamento foi para um laboratório estrangeiro. “Se não avançarmos logo”, diz Santos, “perderemos novamente a dianteira”.n

Artigo científico LAUTNER, R. et al. Discovery and characterization of alamandine, a novel component of the renin-angiotensin system. Circulation Research. v. 112. p. 1.104-11. 2013.

pESQUISA FAPESP 207  z  67


tecnologia  informática y

Identificação a distância Etiquetas “inteligentes” baseadas em sinais de rádio para contar e rastrear objetos conquistam novos mercados Evanildo da Silveira

Q

uase todas as coisas possíveis de serem contadas em empresas, indústrias, mercados, hotéis e hospitais podem ser identificadas com o uso de etiquetas RFID (do inglês radio frequency identification) ou identificação por radiofrequência, que representam um passo além, com muitas vantagens, no sistema de código de barras. O mercado mundial de hardware, software e serviços baseados em RFID – as chamadas etiquetas “inteligentes” – tem crescido a uma taxa de 20% ao ano. Segundo a consultoria americana ABI Research, ele deverá movimentar mais de US$ 70 bilhões entre 2012 e 2017. No Brasil, essa área ainda é incipiente, mas muitas empresas, pequenas em grande parte, trabalham nesse momento no desenvolvimento de projetos e produtos com essa tecnologia. Um exemplo é a RFIDEAS, uma start-up fundada em novembro de 2010 no Centro de Inovação, Empreendedorismo e Tecnologia (Cietec) na Cidade Universitária, em São Paulo. Hoje a empresa possui dois núcleos de desenvolvimento de etiquetas inteligentes: um de software e outro de hardware. No primeiro, ela criou o Automatic Real Time Information System (Artis), um sistema de rastreamento e gestão de equipamentos de TI – servidores, storages (dispositivos de armaze-

68  z  maio DE 2013

namento) e notebooks – em tempo real baseados em RFID. Ele destina-se a empresas que possuam um grande volume desses equipamentos, como datacentros e escritórios. “No momento, essa solução está instalada na Alog Datacenters do Brasil, rastreando aproximadamente 20 mil equipamentos ininterruptamente”, conta Antonio Rossini, cofundador e diretor de estratégia da RFIDEAS. “Outras empresas já estão em via de adotar o Artis como ferramenta de controle de seu parque de equipamentos.” No núcleo de hardware, a empresa vem desenvolvendo o projeto de um leitor RFID leve, portátil, de dimensões reduzidas, de fácil instalação e preço mais competitivo que os disponíveis no mercado. O projeto começou em setembro de 2011, quando a empresa foi aprovada na fase 1 do Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) da FAPESP. Nessa etapa foi criado um protótipo para provar o conceito do equipamento concebido pela companhia. “Atualmente estamos na segunda fase do Pipe”, diz Rossini. “Criamos a segunda versão do protótipo, mais avançada e com mais recursos. O projeto tem previsão de conclusão em setembro de 2014, quando será lançado o primeiro modelo do produto para o mercado.”


ilustrações  raul aguiar

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Todos os sistemas de RFID funcionam de maneira semelhante. O básico é composto por um transponder ou tag (etiqueta eletrônica), um leitor e um software de gestão. O primeiro é feito com um chip, programado com as informações que se deseja, e uma antena, que, juntos, podem ser encapsulados em vários formatos como etiquetas, lacres ou fichas, por exemplo. Ele pode ser fixado em crachás ou cartões de acesso de pessoas em empresas, por exemplo, ou mesmo em uniformes de trabalho, em coleiras ou brincos para animais, além de equipamentos, embalagens, roupas ou qualquer produto que se queira identificar ou rastrear. Os transponders podem ser pequenos como um grão de arroz ou grandes como um livro, dependendo de sua aplicação. Os leitores, por sua vez, são equipamentos que podem ter várias formas e tamanhos e ser móveis, portáteis ou fixos. Neste caso, eles podem ser instalados em locais como portas, para captar os dados de pessoas ou objetos identificados com as etiquetas que passam por elas. Os leitores são capazes de “ler” ou “capturar” as informações armazenadas em uma tag, sem necessidade de contato físico. Eles recebem os dados das etiquetas transmitidos pelas antenas por ondas de rádio e os convertem em informações digitais, que são processadas pelos softwares de gestão. Rossini, da RFIDEAS, acrescenta mais detalhes sobre essa tecnologia. Ele explica que há três tipos dela: de baixa frequência (LF), alta (HF) e ultra-alta (UHF). “A primeira opera na faixa de 125 KHz e é geralmente utilizada para rastreamento de animais de estimação, controle de acesso, dentre outros.” A de alta frequência é mais sofisticada e opera na faixa de 13,5 MHz. Sua principal aplicação é em controle de acesso e autenticação. São crachás ou cartões de entrada que precisam ser aproximados de um leitor. O cartão do bilhete único do ônibus e metrô também opera com essa frequência. O UHF é a tecnologia RFID mais sofisticada e que, no Brasil, opera na faixa de 902 a 928 MHz. “A sua principal característica é a leitura a distância e de múltiplas etiquetas em um curto intervalo de tempo”, explica Rossini.

leituras a até 10 metros de distância, de centenas de tags por segundo. A sua principal aplicação está no controle de armazenagem de produtos, rastreamento de equipamentos e pedágios eletrônicos. O RFID semipassivo, por sua vez, consiste de uma etiqueta com uma bateria acoplada. O funcionamento é semelhante ao do passivo, mas a bateria própria permite que mais energia seja utilizada e a leitura seja realizada a distâncias de até 50 metros. O conjunto tag-bateria fica inativo até que haja acionamento por um leitor. Quando isso ocorre, a bateria entra em ação e ativa a etiqueta, que então envia o código para distâncias maiores. Essa tecnologia era utilizada no sistema de pedágios eletrônicos no Brasil até o ano passado, quando se decidiu migrar para a forma passiva. Por fim, o ativo é também baseado no conjunto tag-bateria, mas o funcionamento é um pouco diferente do semipassivo. Nesse caso, a etiqueta emite de tempos em tempos o seu código para que os leitores possam capturá-lo. “A sua principal vantagem é a leitura a distâncias que ultrapassam 100 metros”, explica Rossini. “A sua aplicação mais comum está no rastreamento de contêineres marítimos em portos.”

Nas ondas do rádio Sistema de radiofrequência transporta informações de etiquetas para softwares de gestão

1 Etiqueta RFID

É composta por um chip e uma antena, que podem ser encapsulados em formatos como etiquetas, lacres ou fichas Campo eletromagnético Meio de transmissão entre a etiqueta e o leitor, onde sinais de radiofrequência se propagam Sinal de radiofrequência Transporta as informações armazenadas na etiqueta para os leitores Fonte de energia

2 lEitor

Pode ter várias formas e tamanhos e ser móvel, portátil ou fixo

leitura a distância

70  z  maio DE 2013

e instalado em locais como portas, para captar dados de etiquetas

Chip eletrônico Pode ser programado com as informações desejadas

que passam por elas

3 computador central

Recebe as informações digitais dos leitores que são processadas por softwares para

fonte Antonio rossini / rfideas

controle de estoque, por exemplo

infográfico  ana paula campos

Esse RFID de alta frequência é subdividido em três categorias: passiva, semipassiva e ativa. A primeira consiste em tags eletrônicas sem bateria que são afixadas nos objetos que se deseja monitorar. Elas são compostas de pequenas antenas associadas a um microchip e obtêm a energia necessária para seu funcionamento da indução eletromagnética da própria onda incidente, proveniente do leitor, que gera uma corrente elétrica. A energia serve para que ela possa ativar o seu microchip e este envie então de volta o número correspondente à etiqueta. A tecnologia permite


fotos 1 CEiTEC 2 EDUARDO CESAR

1 3

3

Circuito impresso de etiqueta eletrônica (acima) e máquina leitora

2

A exemplo da RFIDEAS, a Acura Global também desenvolve leitores RFID. A empresa é uma das pioneiras nesse mercado no Brasil e na América Latina. Um dos seus destaques é a linha AutoID Secure, composta de vários modelos para identificação de veículos. “Semelhante aos sistemas já consagrados em pedágios, o AutoID Secure pode ser usado para identificar carros, utilitários, caminhões e ônibus, em condomínios, prédios e grandes estacionamentos”, explica Paulo Jarbas, gerente de comunicação e marketing da Acura. “São equipamentos que foram desenvolvidos com a nossa engenharia e são fabricados na unidade industrial que temos em Itajubá (MG).” Também com financiamento do Pipe, a Saveway, de Campinas, no interior paulista, está desenvolvendo o Savetyre, um sistema de gestão de pneus baseado em tecnologia RFID. Ele é composto por etiquetas para pneus, base de dados off-line para o veículo, antena portátil, dispositivo de medição de sulco e pressão, softwares de banco e de gestão de dados. O projeto começou a ser desenvolvido em 2007. “Na época, era muito forte a necessidade dos transportadores urbanos encontrarem reduções de custo significativas na operação de transporte de passageiro”, conta José Caruso Gomes, fundador da empresa. “E os pneus representam grande parte deste custo.” Segundo Gomes, o primeiro desafio é desenvolver uma tag RFID resistente a toda a vida útil do pneu, suas reconstruções e manutenção. Ela deverá fazer parte da carcaça do pneu, sem pos-

sibilidade de remoção, clonagem ou substituição. O segundo desafio vem na automação da coleta de dados necessários para a gestão do pneu ao longo de sua vida. “São desafios enormes, pois o pneu de carga deve rodar até 400 ou 500 mil quilômetros”, diz Gomes. “Em sua vida útil sofre picos de temperatura que podem atingir 400ºC e devem permitir duas ou três reconstruções da banda de rodagem.” Se tudo der certo, a primeira versão completa do sistema está prevista para o primeiro semestre do próximo ano. Uma terceira empresa que recebeu financiamento do Pipe para desenvolver projeto com tecnologia RFID é a Coss Consulting. Em 2006, ela deu início a projeto para desenvolver uma plataforma genérica de rastreabilidade chamada de Welcoss-RFID que pode ser aplicada na indústria para controle inteligente do nível de estoque e reabastecimento de materiais, no rastreamento de caixas, engradados e carrinhos usados em transporte de materiais, no controle de materiais médicos e hospitalares, em datacentros para monitoramento de equipamentos e no agronegócio para rastrear café, soja e carne. “Atualmente estamos trabalhando em uma aplicação de gerenciamento de depósitos que permitirá a identificação de cada item, que será chamada de Welcoss-WMS (warehouse management system)”, conta o fundador da empresa e diretor de tecnologia e inovação, Fredy João Valente. “Também estamos desenvolvendo o produto Welcoss-Safeblood, que será uma variante do Welcoss-WMS com foco específico no gerenciamento de estoques de bolsas de sangue.” Além de empresas que produzem sistemas e leitores de RFID, há outras no Brasil, mas ainda em pequeno número, que fabricam os chamados inlays, que são os componentes básicos de uma etiqueta, ou seja, o chip de silício e a antena, que pode ser de alumínio, cobre ou prata. Um exemplo é a Ceitec, de Porto Alegre, que produziu o chamado chip do boi, usado para identificação e rastreamento de bovinos, comercializado desde o ano passado. Somando tudo, o mercado brasileiro de RFID chega a estimados 5% do mundial, mas vem crescendo a uma taxa de 15% ao ano. n

Projetos 1. Dispositivo de leitura RFID completamente integrado (nº 2011/50108-7); Modalidade Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Coord. José Kleber da Cunha Pinto/RFIDEAS; Investimento R$ 44.148,87 (FAPESP). 2. Rede safe-blood: rede segura de movimentação de bolsas de sangue com rastreabilidade baseada em etiquetas inteligentes de RFID EPC (n° 2008/53489-9); Modalidade Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Coord. Fredy João Valente/ Coss Consulting; Investimento R$ 73.470,04 (FAPESP). 3. SGP – Sistema de Gestão de Pneus (nº 2008/55278-5); Modalidade Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Coord. José Caruso Gomes-Saveway; Investimento R$ 63.629,30 (FAPESP).

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Eletrônica y

O desafio do Sol Nova geração de células flexíveis tenta superar dificuldades para aumentar o uso de energia fotovoltaica no mundo

E

m março deste ano foi inaugurada no deserto Madinat Zayed, nos Emirados Árabes Unidos, uma grande central de geração de energia solar com capacidade de 100 megawatts, quantidade suficiente para abastecer 20 mil residências. O empreendimento, instalado em uma das regiões mais ensolaradas e quentes do mundo, é o maior do gênero a empregar essa fonte de energia, considerada renovável, abundante e não poluente. A produção de energia solar ou fotovoltaica cresce no globo a um ritmo acelerado, em torno de 50% por ano, mas sua presença na matriz energética mundial ainda é muito pequena, de cerca de 1% – no Brasil, representa apenas 0,01% do total. Segundo a Agência Internacional de Energia, a geração fotovoltaica de todas as usinas do mundo atingiu 67 gigawatts (GW) em 2011, o equivalente a cinco hidrelétricas de Itaipu. Um dos principais obstáculos para a ampliação do uso dessa fonte energética é o alto custo dos painéis solares e demais equipamentos que compõem o sistema. Para superar essa dificuldade, universidades, institutos de pesquisa e empresas de vários países, inclusive do Brasil, trabalham no desenvolvimento de uma nova linha de células solares com custo 72  z  maio DE 2013

de produção inferior ao das lâminas de silício usadas atualmente nos módulos convencionais. Conhecidas como células solares de terceira geração – as de silício foram as de primeira geração e as de filmes finos inorgânicos, de segunda –, elas são principalmente de dois tipos: orgânicas (OPV, sigla em inglês para organic photovoltaic) ou sensibilizadas por corantes (DSSC, acrônimo em inglês de dye-sensitized solar cell). As células OPV levam esse nome porque usam materiais semicondutores à base de carbono para fazer a conversão de energia luminosa em elétrica. Já as DSSC funcionam através de uma reação química de oxidação-redução. Também chamadas de híbridas, pois são feitas de materiais orgânicos e inorgânicos, elas são construídas entre dois vidros e contêm um eletrólito líquido, normalmente uma solução composta por um sal de iodo. As células ativadas por corantes absorvem a radiação solar, permitindo o fenômeno da separação das cargas (positivas e negativas) para a produção de energia. Nem as células orgânicas nem as híbridas são comercializadas em larga escala no mundo. Estima-se que serão necessários pelo menos mais três anos para que isto ocorra. Várias novas tecnologias em células solares têm sido pesquisadas nos últimos

anos com o objetivo de encontrar uma alternativa mais eficiente às células baseadas em silício cristalino. “De modo geral, as células de terceira geração, nas quais também se incluem as feitas com pontos quânticos [minúsculos cristais semicondutores], multijunção e portadores quentes [de carga altamente energética], fazem um melhor aproveitamento dos fótons que incidem sobre elas”, diz o pesquisador Fernando Ely, do Grupo de Eletrônica Orgânica do Centro de Tecnologia da Informação (CTI) Renato Archer, de Campinas. O CTI Renato Archer tem pesquisas avançadas para o desenvolvimento de células solares de terceira geração. Seus pesquisadores já conseguiram fazer vários protótipos de células flexíveis, com 60 por 40 milímetros de área, usando pontos quânticos, e estão trabalhando em seu aperfeiçoamento. “Além de enfrentar as principais limitações que impedem a comercialização desses dispositivos, nosso grupo busca gerar propriedade intelectual para, posteriormente, transferir esse conhecimento para o setor produtivo. Nossas atividades incluem, ainda, estudos para aumentar a eficiência de conversão das novas células solares por meio do uso de aditivos funcionais, o desenvolvimento de novas técnicas de fabricação por processamento contínuo – a chamada técnica roll-to-roll

foto  léo ramos  ilustração pedro hamdan

Yuri Vasconcelos


Como funciona As células solares orgânicas usam materiais semicondutores à base de carbono para converter luz em corrente elétrica

1

INCIDÊNCIA DA LUZ

t

PET

A luz solar atravessa o substrato

3 SEPARAÇÃO DE CARGAS

transparente usado

As cargas positivas são recolhidas no eletrodo

célula – por exemplo,

transparente, feito de óxido

carga negativa

carga positiva

TRANSFERÊNCIA DE ELÉTRON Os fótons são absorvidos pelo material semicondutor. Ao interagir com ele, ocorre a transferência de um elétron, gerando uma

125 micrômetros

para construção da um plástico PET

2

do e ro n t e t are l e sp n ra

de índio e estanho (ITO)

l ria or t e du t a m on c mi se

4 do ro ínio et el lum a de

CORRENTE ELÉTRICA As cargas negativas são encaminhadas para o eletrodo metálico, de alumínio. A circulação de cargas é o que gera a corrente elétrica na célula

carga negativa e outra positiva no material

fonte  fernando ely / cti renato archer

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74  z  maio DE 2013

Vantagens e desafios

A empresa catarinense FlexSolar assinou contrato com o Instituto Fraunhofer, da Alemanha, para desenvolver células flexíveis

tivo do empresário é construir módulos solares flexíveis de baixa potência, com a espessura de uma folha de papel A4, para uso em equipamentos eletrônicos móveis como a bateria de telefones celulares, por exemplo. Para desenvolver a tecnologia, a Tezca conta com apoio da FAPESP, que financia um projeto Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe), e do CNPq.

A fabricação com baixo consumo de energia e o reduzido custo de manufatura são as principais vantagens das células de terceira geração. Um termo muito usado na área de energia é o chamado payback financeiro ou energético – ou seja, em quanto tempo o investimento se paga ou quanto tempo é necessário para produzir a mesma quantidade de energia que foi gasta na manufatura. “No caso dos painéis fotovoltaicos de silício cristalino, o payback energético é em torno de quatro anos, enquanto nos sistemas feitos de OPV o payback deve ser menor que um ano”, diz Ely. Outro diferencial dessas novas células é a possibilidade de fabricação de grandes painéis flexíveis, feitos de plástico ou tecido, através de métodos simples de impressão da indústria gráfica, permitindo a produção de módulos solares leves e dos mais variados tamanhos. Além disso, as células orgânicas e as sensibilizadas por corantes têm alta fotoconversão usando luz artificial, o que possibilita seu emprego em ambientes internos de escritórios, fábricas e casas. Por serem leves, flexíveis e semitransparentes, o leque de aplicações das células OPV e DSSC é mais amplo do que o das gerações anteriores. Elas podem

Compare as tecnologias Células feitas de silício têm maior eficiência, mas são mais caras

1a geração

2a geração

Célula solar convencional

Célula de filmes finos inorgânicos

1

2

Com elevado custo de produção, as células de

Embora menos eficientes do que as células

primeira geração são feitas de material rígido

tradicionais, são mais baratas de produzir

Material Silício cristalino

Material Silício amorfo, silício

fotoconversão máxima 24,7%

policristalino ou microcristalino e

Participação no mercado 90%

seleneto de cobre-índio-gálio (CIGS) fotoconversão máxima 18,8% Participação no mercado 10%

fotos  1 ismar ingberg / mpx 2 AGECOM/UFSC 3 e 4 léo ramos

– e a produção de eletrodos transparentes à base de nanotubos de carbono.” As atividades no CTI Renato Archer são apoiadas pela FAPESP, pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). As empresas Dye-Sol, da Austrália, e G24 Innovations, da Grã-Bretanha, são líderes em desenvolvimento de células sensibilizadas por corantes (DSSC). Já a companhia Heliatek e o Instituto Fraunhofer para a Pesquisa Aplicada de Polímeros (IAP), ambos da Alemanha, encabeçam as pesquisas na área de OPV. No Brasil, duas empresas trabalham no desenvolvimento das células de terceira geração. A FlexSolar, com sede em Joinville, no interior de Santa Catarina, assinou em 2012 um acordo com o IAP para desenvolver células solares orgânicas flexíveis. O projeto, no valor de € 4,8 milhões – cerca de R$ 12,5 milhões –, prevê que a produção, num primeiro momento, será concentrada no país europeu, mas depois de dois anos os dispositivos deverão ser fabricados também em Joinville. Segundo comunicado divulgado no site do Instituto Fraunhofer, a ideia do projeto conjunto surgiu durante a visita do presidente da FlexSolar, Bernard Schmidt, a uma feira internacional de eletrônica orgânica em Munique, em junho do ano passado. Quatro meses depois, o entendimento foi assinado entre as partes. A empresa é subsidiária da Cromotransfer, também de Joinville, que há 15 anos desenvolve tecnologias de impressão para os setores têxtil e de embalagem. A FlexSolar foi criada para transferir esse know-how para a área de fotovoltaicos, já que a fabricação das células solares orgânicas utiliza métodos de impressão similares aos da indústria gráfica. A outra companhia nacional, chamada Tezca Células Solares, está instalada no Polo de Alta Tecnologia de Campinas (Ciatec). Criada no final de 2008, a start-up já desenvolveu em laboratório vários protótipos de células DSSC, batizadas de TezcaFlex, e espera instalar ainda este ano uma planta-piloto. “No momento, estamos realizando testes de durabilidade em nossas células. Pretendemos trazer novos investidores para o negócio a fim de iniciar a fabricação em escala comercial até 2016”, afirma Agnaldo Gonçalves, um dos sócios fundadores da Tezca. O obje-


ser usadas para recarregar baterias de equipamentos eletrônicos de baixa potência, como telefones celulares, câmeras fotográficas e tablets. Também podem ser integradas em fachadas, janelas ou claraboias de edificações – aplicação conhecida como building integrated photovoltaics (BIPV) – ou ainda em roupas especiais, jaquetas e mochilas, permitindo que o usuário colete energia enquanto se desloca. “O Exército dos Estados Unidos tem um projeto de uso desses painéis nas roupas dos soldados e em tendas para dar carga em equipamentos eletrônicos ou prover iluminação”, afirma Ely. Outra ideia é usar as OPVs no mobiliário urbano, como pontos de ônibus, como fonte de energia para displays de propaganda e sinalização. Para que tudo isso se torne realidade, no entanto, dois grandes desafios ainda precisam ser superados: a baixa eficiência e o reduzido tempo de vida útil dos novos dispositivos. A taxa de conversão da energia luminosa em energia elétrica – relação entre a quantidade de fótons que incide sobre a célula e a quantidade de energia elétrica convertida – das células de terceira geração ainda é muito baixa. O índice de eficiência máximo, porém não certificado, já obtido para as células OPV foi de 12,1% e para as DSSC,

Flexíveis e transparentes, células orgânicas e híbridas têm amplo leque de aplicações

de 11,4%. Nas células feitas de silício cristalino a eficiência recorde é duas vezes maior, de 24,7%. Esses valores se referem a células pequenas, de aproximadamente 1 cm2 de área – em painéis de grande área, a eficiência de conversão cai fortemente. O baixo rendimento das células orgânicas se explica pela não absorção de luz na região do infravermelho, com comprimento de onda superior a 900 nanômetros, e por perdas de energia acarretadas por recombinação de cargas elétricas. “A melhor forma de enfrentar o problema é partir para o desenvolvimento de novos semicondutores orgânicos ou sistemas compósitos com nanomateriais”, diz Ely. Já a reduzida vida dessas células é resultado da presença de oxigênio ou umidade dentro delas. Com a incidência da luz, especialmente a parcela ultravioleta (UV), a presença de oxigênio e umidade

3a geração

Célula orgânica

Célula sensibilizada por corantes

3

4

Leves e flexíveis, essas células fazem o

Também chamadas de híbridas, as células

aproveitamento de fótons via nanotecnologia

DSSC usam materiais orgânicos e inorgânicos

Material Semicondutor à base de carbono

Material  Corantes e eletrólito

fotoconversão máxima 12%

fotoconversão máxima 11,4%

Participação no mercado  não é

Participação no mercado  não é

comercializada

comercializada

fonte  fernando ely / cti renato archer

dá origem a elementos indesejados que reagem com os semicondutores orgânicos alterando a sua estrutura química e funcionalidade. A solução, nesse caso, é fabricar as células OPV em atmosfera inerte e, posteriormente, encapsulá-las com filmes impermeáveis. Com relação às DSSC, os problemas são relacionados à confiabilidade, à durabilidade e ao processo de engenharia na construção. Para superá-los, o caminho é substituir o eletrólito líquido para evitar vazamentos e alguns materiais de alto custo usados em sua montagem, como o catalisador de platina e o rutênio, um dos elementos químicos presentes no corante. Para que os painéis OPV se tornem comercialmente viáveis, acredita Ely, é preciso atingir um nível de eficiência de conversão de 10% e 10 anos de vida útil. Com esses números, o custo do watt seria em torno de US$ 0,10. Não há dados confiáveis do custo de energia fotovoltaica no Brasil, mas na Alemanha, um dos países mais avançados no uso dessa energia, o valor do watt, considerando-se um painel de silício cristalino com eficiência entre 12% e 14%, é de US$ 1,50. “O Brasil tem grande potencial de uso da energia solar. Por isso é importante dominarmos essa tecnologia. Como ainda não há nada comercial na esfera das células solares de terceira geração, vejo que esta é uma grande oportunidade para o país consolidar propriedade intelectual, fabricar e comercializar esses dispositivos”, afirma Fernando Ely. n

Projetos 1. Arquiteturas orgânicas semicondutoras para dispositivos eletrônicos (nº 2006/57399-9); Modalidade Jovem Pesquisador; Coord. Fernando Ely/CTI Renato Archer; Investimento R$ 299.265,87 (FAPESP). 2. INCT Namitec - Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Sistemas Micro e Nanoeletrônicos (Proc. FAPESP nº 2008/57862-6 e Proc. CNPq nº 573738/2008-4). Modalidade Projeto Temático (FAPESP) e Chamada Institutos Nacionais de C&T (CNPq); Coord. Jacobus W. Swart/CTI Renato Archer; Investimento R$ 4.251.055,34 (FAPESP) e R$ 5.693.114,45 (CNPq).

pESQUISA FAPESP 207  z  75


COSMÉTICOS y

Avaliação da escova progressiva Carbocisteína usada em substituição ao formol é analisada com técnicas desenvolvidas pela KosmoScience

A

empresa KosmoScience, de Valinhos, no interior paulista, foi criada há 10 anos como uma spin-off da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara para desenvolver metodologias científicas que comprovassem a eficácia de produtos cosméticos antes de serem lançados no mercado. “Quando começamos, não existia nenhum laboratório desse tipo no Brasil. Só nos grandes centros da Europa ou dos Estados Unidos”, diz o químico Adriano Pinheiro, diretor-executivo e um dos três sócios da empresa. “Desenvolvemos ferramentas e metodologias próprias para mensurar as propriedades físico-químicas, biofísicas e biológicas de produtos para cabelo e pele.” A parceria com o Laboratório Interdisciplinar de Eletroquímica e Cerâmica da Unesp, vinculado ao Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos (CMDMC), coordenado pelo professor Elson Longo e financiado pela FAPESP, abriu caminho para que a empresa se tornasse um laboratório de referência e conquistasse clientes como Natura, L’Oréal, Hipermarcas, Unilever, O Boticário, Belcorp do Brasil, entre ou-

76  z  maio DE 2013

tras grandes do setor. “Trabalhamos com uma série de protocolos científicos e métodos físico-químicos para avaliação de eficácia de produtos que são hoje utilizados pela indústria nacional e internacional”, diz Longo. “Antes disso, muitos protocolos utilizados eram falsos, pelo que constatamos em testes realizados no nosso laboratório.” Entre os serviços prestados pela empresa está a análise da carbocisteína, um aminoácido utilizado tradicionalmente em aplicações farmacêuticas que entrou no mercado cosmético em substituição ao formol – banido devido ao seu potencial cancerígeno – para alisamento de cabelos, processo conhecido como escova progressiva. Antes de qualquer lançamento cosmético, as empresas precisam comprovar todos os benefícios listados nos rótulos dos produtos para que eles sejam aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Nos Estados Unidos, na Europa e no Japão, as empresas também precisam fazer estudos que comprovem os resultados propagados, mas para colocar seus produtos no mercado não precisam de aprovação de nenhum órgão regulatório. Os estudos comprova-

foto janis litavniekis / gettyimages  micrografias KosmoScience

Dinorah Ereno


Por dentro da cabeleira Técnicas avaliam efeitos da aplicação de carbocisteína em alisamentos

Alterações estruturais que ocorreram na fibra capilar são identificadas com o auxílio de um dinamômetro, equipamento que faz a leitura da tensão

tórios de eficácia funcionam como defesa da empresa no caso de ser interpelada judicialmente por algum consumidor. “Desenvolvemos três metodologias para estudar as interações físico-químicas que ocorrem no cabelo após a aplicação da carbocisteína”, diz Pinheiro. Uma delas avalia com o auxílio de um dinamômetro as propriedades mecânicas da fibra capilar após a aplicação do produto. O aparelho mede a deformação causada pela aplicação de uma força mecânica sobre um sistema elástico. A partir dessa leitura, é possível identificar quais alterações estruturais ocorreram na fibra em decorrência da aplicação do produto.

sofrida pelos fios versus a sua deformação

Informação química e estrutural de compostos orgânicos e inorgânicos é avaliada por uma técnica fotônica de alta resolução chamada espectroscopia Raman

Alterações morfológicas das cutículas do cabelo – camada superficial do fio que tem a função de proteger a estrutura interna – são checadas com um microscópio eletrônico de varredura, capaz de produzir imagens em alta resolução. Cutículas degradadas deixam o cabelo áspero e sem brilho

função protetora

A outra emprega a espetroscopia Raman, técnica fotônica de alta resolução que permite identificar a informação química e estrutural de compostos orgânicos e inorgânicos. “Pelo método conseguimos visualizar o que ocorre com as ligações dissulfídicas de enxofre, responsáveis pela integridade física estrutural da fibra de cabelo.” Quando há quebra dessa ligação, a estrutura fica frágil. A escolha das ligações de enxofre deve-se ao fato de que ele tem para o cabelo a mesma importância que o ferro na construção civil. A terceira técnica utilizada – a microscopia eletrônica de varredura de emissão de campo – avalia as alterações morfológicas das cutículas do cabelo. “As cutículas do cabelo são a camada superficial do fio, que têm como função proteger a estrutura interna”, diz Pinheiro. “Quando as cutículas se degradam, o cabelo fica mais difícil de pentear, mais áspero e sem brilho.” As metodologias criadas para avaliação da carbocisteína são fruto de um trabalho realizado por Pinheiro e pelas pesquisadoras Viviane Albarici e Francini Picon, que fizeram doutorado no Centro de Materiais Cerâmicos e que hoje trabalham na KosmoScience. Outra área de estudo da KosmoScience é a pele. Um dos protocolos desenvolvidos pela empresa analisa in vivo a geração de colágenos que produzem maior firmeza na pele e atuam como fator antienvelheci-

mento. “Várias moléculas podem estimular a formação da fibra de colágeno, como polissacarídeos, ácido ascórbico e ácido retinoico”, diz Pinheiro. Nesse caso, os pesquisadores utilizam um equipamento chamado espectroscopia de reflexão difusa, que possui uma fibra óptica dirigida às regiões do corpo avaliadas. “A partir do uso dessa técnica é possível determinar os comprimentos de emissão e excitação de colágeno presente na pele”, diz Pinheiro. É possível avaliar quanto de colágeno a pessoa possui na pele antes do tratamento e ao longo do tempo de ação do produto aplicado. As leituras podem ser feitas aos 30, 45 e 60 dias, por exemplo. A possível eficácia dos tratamentos contra a celulite é verificada por uma câmara de infravermelho, também conhecida como câmara térmica. Trata-se de um dispositivo optoeletrônico que realiza imagens térmicas da pele. Como a celulite caracteriza-se por acúmulo de gordura e água nas células, quando elas se expandem começam a pressionar os microvasos sanguíneos, reduzindo a microcirculação no local. “As imagens térmicas da câmara vão apontar se houve uma melhora da irrigação sanguínea no local após a aplicação do produto anticelulite”, diz Pinheiro. “Pela homogeneidade na distribuição da temperatura conseguimos caracterizar se o tratamento foi eficiente.” Se há 10 anos a KosmoScience era uma iniciante no ramo, hoje ela compete com laboratórios internacionais que se instalaram no Brasil. “Grande parte das indústrias de cosméticos americanas e europeias reverteu o processo e atualmente elas testam seus produtos no Brasil”, diz Pinheiro. Entre os fatores listados para essa mudança estão o menor custo dos testes, a qualidade científica dos estudos e o fato de o Brasil ser um dos maiores mercados mundiais de produtos cosméticos, atrás apenas dos Estados Unidos e Japão. “A miscigenação da nossa população também contribui para isso”, ressalta. As diversas etnias, tipos de pele e de cabelo com todas as suas nuances (lisos, ondulados, crespos) possibilitam distintas investigações científicas. n pESQUISA FAPESP 207  z  77


humanidades   mídia y

A imprensa sensacionalista e a ciência Jornal vespertino de Assis Chateaubriand divulgava tecnologia como parte do projeto de extinguir “atraso” brasileiro

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a década de 1950, os discos voadores, que ainda não se chamavam UFO, sobrevoavam a praça da Sé; a chegada da bomba de rádio, “com dez grs. do metal, pela primeira vez na América do Sul”, era saudada com uma manchete maior do que a greve dos funcionários contra o regime de oito horas; e os paulistas eram alertados de que “à altura de 63 mil pés o sangue ferve”, perspectiva terrível que atrasava a “batalha pela conquista de um novo mundo”. Num país em que ainda não havia revistas especializadas em divulgação científica e o rádio era o principal meio de comunicação de massas, a ciência corria solta pelas páginas do Diário da Noite, vespertino paulistano que pertencia a Assis Chateaubriand e era um dos mais importantes do poderoso império dos Associados. “Como muitos na época, Chateaubriand tinha uma agenda de união nacional pela modernização do país. Para ele, isso passava diretamente pelo fim da ‘ignorância’ das massas populares, seja atacando o espiritismo e as religiões de origem africana, a que chamava de ‘macumba’, seja pela ciência que acabaria com o ‘atraso’ nacional”, explica a historiadora Mariza Romero, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “O Diário da Noite passou a divulgar informações científicas para leitores leigos e nada familiarizados 78  z  maio DE 2013

com a tecnologia. O interessante é que o jornal não tinha uma página fixa ou um suplemento para isso, mas colocava a ciência no meio de seções de polícia, política, esportes e, muitas vezes, como manchete”, diz Mariza. A pesquisadora, que já havia estudado a atuação do vespertino sensacionalista em questões religiosas, sociais e policiais em Inúteis e perigosos (Educ/FAPESP), agora analisa a sua pauta científica em Divulgação científica e imprensa popular. “Entre 1950 e 1960, o Diário da Noite conseguiu uma divulgação científica mais ampliada em termos de educação para as massas do que muitos dos cadernos e páginas especializadas que estavam aparecendo pela imprensa brasileira, mais formais, e que só chegavam a um público muito restrito.” Financiado por empresários, industriais e fazendeiros paulistas, o vespertino de Chateaubriand, com feição sensacionalista desde sua fundação, em 1925, nos anos 50 contava com equipamentos de ponta, profissionais experientes, articulistas internacionais, reportagens de impacto e notícias de primeira mão, destacando-se as páginas policiais e os escândalos. Com uma tiragem de 70 mil exemplares e duas edições, tornou-se um dos jornais de maior circulação em São Paulo. “O Diário da Noite criou um vínculo forte com as classes populares, que, com a rede-

Anúncio da chegada de uma bomba de rádio para hospital paulistano e a discussão dos cientistas brasileiros sobre a bomba H


ilustrações  abiuro


mocratização e o aumento do consumo, passaram a ser vistas, por um lado, como protagonistas da prática política e, por outro, como as camadas que precisavam ser tuteladas”, fala Mariza. Assim, nota a pesquisadora, ao mesmo tempo que se dizia alinhado às reivindicações populares, “defensor do povo”, o vespertino se ligava aos setores da burguesia que se preocupavam com a emergência dessas massas. “Por causa do seu suposto vínculo com a população, o Diário da Noite não se voltava abertamente contra a luta das massas. Mas mostrava o tempo todo quem não tinha lugar no futuro que estava chegando e quem eram aqueles que apesar de sempre convidados a ‘entrar’ na modernidade estavam fora dela”, conta a historiadora. A orientação desenvolvimentista dos governos após o Estado Novo apresentava para a sociedade a ciência como instrumento fundamental para conduzir o país ao progresso econômico e à tão almejada modernidade. Além disso, no Brasil dos anos 1950, as novidades tecnológicas como eletrodomésticos, automóveis, medicamentos e máquinas agrícolas chegavam ao incipiente mercado consumidor nacional. Era a ciência a serviço do homem, como diziam as propagandas: “Mil e novecentos técnicos altamente especializados criaram especialmente para você a ‘super máquina’ Vigorelli, aerodinâmica”, diz um 80  z  maio DE 2013

Ciência era fundamental para levar o país ao progresso e à modernidade anúncio de máquina de costura do Diário da Noite. Em outro, uma lata de tinta era saudada como “sensacional descoberta da química” e o leitor era convidado a “cientificar-se das excepcionais características” do novo produto. “As ideias desenvolvimentistas empolgavam o Brasil na era JK e sobre este fundo ideológico mais amplo estava a ideia de que o desenvolvimento tecnológico possibilitaria abrir o único caminho para a real independência econômica do país”, observa Luisa Massarani, da Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz, em Um gesto ameno para acordar o país: a ciência no Jornal do Commercio (1958 – 1962), edi-

tado pela Fiocruz. Na primeira edição do suplemento, o seu coordenador, Walter Oswaldo Cruz, observou: “O Brasil não se desenvolverá sem técnicos, e técnicos são o produto humano da ciência”. “A divulgação científica brasileira tem peculiaridades. Nunca houve grandes investimentos estatais em ciência e tecnologia e tampouco na educação científica, o que deixou para os meios de comunicação a tarefa de apresentar a ciência para uma população com baixo índice de alfabetização tecnológica”, observa Ana Maria Ribeiro de Andrade, pesquisadora do Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast), do Rio de Janeiro, e autora de A dinâmica da ciência na sociedade (Hucitec/Mast). “Assim, apesar de alguns esforços individuais, o sensacionalismo é a principal característica dessa divulgação. A construção dos fatos científicos aparece sempre envolta em mistérios, a genialidade está sempre presente em todas as descobertas e a história está quase sempre ausente”, avalia Ana. No caso dos jornais de Chateaubriand, lembra Mariza, havia uma mistura estranha de sensacionalismo e divulgação real como na manchete de primeira página: “Enxerga o jovem com os olhos do padre morto”. Com o título em letras garrafais, semelhante ao das reportagens sobre milagres, comuns no jornal, tudo fazia crer que se tratava de uma matéria sem


O Diário da Noite discute como o homem poderia chegar à Lua e coloca a ciência até mesmo nos anúncios

nenhuma consistência. Mas o conteúdo da reportagem, que durou três dias, denota pesquisa, com informações precisas num texto bem escrito, aparentemente um verdadeiro paradoxo, que, no entanto, demonstrava ser uma boa estratégia para atrair o leitor. crianças

Em outra edição, o título avisa que cientistas brasileiros vão discutir os efeitos da bomba H. “Curiosamente, a chamada foi colocada bem acima da notícia de que ‘as crianças vão sofrer sem leite’ e, com certeza, na época chamou mais atenção do que a questão local das mães furiosas com a política”, observa a pesquisadora. O caso da bomba H também revela a dualidade do jornal sobre a ciência, vista ao mesmo tempo como panaceia para os problemas do país, mas não isenta de muitos perigos. “Repercute entre os pesquisadores o documento dos sábios americanos”: a possibilidade de que a energia nuclear tivesse efeitos adversos levou o vespertino a conversar com professores da USP. Constrangido, um especialista como o físico Marcelo Damy afirma que “o assunto foge ao campo de sua especialidade” e se pronunciou “de forma geral contra o uso de armas atômicas para fins belicosos”. “José Goldemberg, da ‘Facul-

dade de Filosofia de São Paulo’, falou ‘ligeiramente’ à reportagem sobre os efeitos danosos da radioatividade.” “Muitos cientistas não gostavam de se ver associados a jornais como o Diário da Noite para não macular sua reputação”, nota Mariza. Essa fraca articulação entre a comunidade científica e o jornal permitiu que assuntos candentes na mistura de desenvolvimentismo e Guerra Fria decolassem. Alguns literalmente, como os discos voadores, que frequentaram muitas capas do vespertino de Chateaubriand. “A imprensa brasileira foi incapaz de oferecer aos leitores informações suficientes para que eles pudessem reconhecer fenômenos celestes e objetos voadores corriqueiros. Sem um background científico, muitos ficaram à mercê das especulações de jornais sensacionalistas”, observa o historiador Rodolpho Gauthier Cardoso dos Santos, que pesquisou o tema em A invenção dos discos voadores. Guerra Fria, imprensa e ciência no Brasil (19471958). Por isso, nos matutinos, voltados para classe média e alta, como O Estado de S. Paulo ou a Folha da Manhã, não deram tanto espaço a esse tipo de questão, mais atentos à possibilidade de que se tratasse de uma questão bélica. Em geral se divulgou a ideia de uma ciência grandiosa e inacessível ao cidadão comum, com muitos mitos e cientistas isolados em sua complexidade. “Era uma

muralha entre ciência e leitor pela mitificação da atividade científica que, ao lado da idealização de figuras, não predispôs o brasileiro a estudar ciência”, avalia Ana. “Creio que o Diário da Noite, pelo contrário, aproxima a ciência do leitor, justamente pelo uso de recursos jornalísticos mais populares e, inclusive diferentemente dos outros meios de divulgação científica, expressa também os medos e angústias contemporâneos com relação ao desenvolvimento científico. Ele contribui assim para desmistificar a ciência, o que, creio, é um dos diferenciais da minha pesquisa”, nota Mariza. Assim, para a pesquisadora, o Diário da Noite ao se definir como porta-voz das massas populares pretende, através da divulgação científica, tirá-las da ignorância, promovendo os ideais de conforto, bem-estar e de felicidade, tão caros aos anos dourados, sendo a ciência uma das portas de entrada para a modernidade. “Por outro lado, ela é desmistificada quando o jornal denuncia seus riscos e perigos, e ainda entretém o imaginário coletivo quando trata de forma ambígua temas como o dos discos voadores”, nota a autora. n Carlos Haag

Projeto Divulgação científica e imprensa popular. São Paulo e Rio de Janeiro nos anos 50 (2011/13246-2); Modalidade Bolsa no Exterior; Coord. Mariza Romero (PUC-SP); Investimento R$ 22.266,26 (FAPESP).

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música y

Lílian Campesato na obra Conexões dispersas/dispersões conexas, 2011 82  z  maio DE 2013


Vendo sons e ouvindo movimentos Pesquisadores do projeto Móbile fazem turnê para mostrar resultados da união entre arte e tecnologia

fotos  divulgação

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uando iniciou o projeto Móbile, em 2009, Fernando Iazzetta, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), afirmou que pretendia “o cruzamento entre uma produção teórica e artística, possibilitando que trabalhos de criação sejam desenvolvidos dentro da nossa proposta”. Hoje, perto da sua conclusão, os pesquisadores de Móbile mostram que não se esqueceram da promessa e acabam de retornar de uma turnê internacional que exibiu os resultados do projeto. Foram cinco apresentações: Belfast, Irlanda, no Sonic Arts Research Centre da Queen’s University; Conservatório

de Música em Seia e na Universidade de Aveiro, ambos em Portugal; no La Haceria, Bilbao, e no Hangar, Barcelona, Espanha. “Pela primeira vez a FAPESP financiou uma turnê de músicos ao exterior. Vimos que além dos trabalhos publicados, a parte artística resultante das nossas pesquisas era tão relevante quanto os resultados escritos”, explica Iazzetta, autor de Música e mediação tecnológica, da Editora Perspectiva. No grupo, além do coordenador do projeto, foram Lílian Campesato, Michelle Agnes, Julian Jaramillo, Rogério Costa e Vitor Kisil, todos integrantes do Móbile. Os outros professores e orientandos que não foram estavam representapESQUISA FAPESP 207  z  83


1 Ensemble Móbile no espetáculo Por trás das coisas, outubro de 2010 2 Ensemble Móbile apresentando obra no evento ¿Música? 5, na Universidade de São Paulo, em 2012 3 Michelle Agnes tocando piano preparado no evento ¿Música? 3, no Centro Cultural São Paulo, em 2011 1

dos pela produção artística resultante da sua pesquisa no temático. O espetáculo apresentado tinha como título Transparência e era composto por seis cenas em que se misturavam obras “tradicionais”, com instrumentos e partituras, outras que usavam improvisação e três baseadas nas buscas pela interação entre música, tecnologia e outras artes. No caso das cenas de interação, o grupo usava uma mesa preta sobre a qual está instalada uma minicâmera manuseada por Lílian Campesato. “Ela manipula objetos e, com isso, há variações na projeção de som e de imagens, por exemplo. Em outra parte, temos uma filmagem de uma plataforma do metrô. Lílian vai jogando pedaços de papel e sobre eles é que partes da imagem vão aparecendo aos poucos, se desvelando”, diz o músico. “Buscávamos passar essa sensação de desvelar ao tornar as imagens transparentes”, conta Iazzetta. A ideia do Móbile é reunir pesquisadores das áreas de música, artes visuais, artes cênicas, ciência da computação e

engenharias para o desenvolvimento de novos processos musicais centrados na interação entre esses vários setores aparentemente desconectados. Em especial, o projeto questiona o fetiche da tecnologia, após os modelos iniciais de experimentalismo focados nos estúdios e nos equipamentos de ponta. “Houve um momento na música do século XX em que surgiu um entusiasmo exagerado pelas novas. Veneraram-se os avanços tecnológicos como se eles valessem por si mesmos. Para nós, o que interessa é o resultado”, afirma. “Muitas vezes, muita tecnologia pode até atrapalhar. Adotamos a ideia de low tech, a tecnologia mais eficiente que está no cotidiano. A articulação mais complexa tem que ser o pensamento artístico e não a engenharia”, avisa Iazzetta. O pesquisador avisa que isso pode não parecer novidade, mas que mesmo nos grandes centros de pesquisa musical o que se vê é justamente essa mitificação do high tech. O mais importante, acredita, é realocar o papel do virtuosismo que separou criador e espectador em dois polos

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4 Cesar Villavicencio tocando hyerflauta

distanciados e, com certo descompromisso em relação à tradição, aproximar a música de outros modelos artísticos, numa miscigenação com as outras artes. “Nesse contexto pode se desenvolver uma música interativa, pois o único modo de entrar nessa nova forma é pela vivência sensorial plena”, fala Iazzetta. reação

O projeto não trabalha com a ideia de ruptura, mas com uma reação contra a tecnologia como solução para todos os problemas. Mesmo na música isso aconteceu. O próprio termo “música eletroacústica” enfatiza a tecnologia utilizada por esse gênero. A partir dos anos 1980, isso passa a ser criticado. Agora se pretende tirar a arte do seu pedestal, como algo feito para poucos e por poucos, deixando-a mais acessível, mais lúdica e irônica, aproximando a música e a sua criação do dia a dia das pessoas. A mediação tecnológica, por sua vez, facilitou a conexão entre elementos sonoros e visuais. “A plateia num concerto, por exemplo, assiste passiva a algo que não consegue fazer ou entender por completo, em total admiração e distância. Mesmo diante de um piano as pessoas ficam sem compreender bem como funciona aquela mecânica mais complexa”, fala. A tecnologia compensaria justamente essa ausência de virtuosismo em cada um de nós. Surgiria um “novo amadorismo” no bom sentido do termo: a capacidade de qualquer um criar música, já que se dissolveria a assimetria entre quem faz e quem aprecia a obra de arte. Os aparelhos se colocam no lugar da técnica e a experimentação substitui a tradição. “Brincar com os aparelhos


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é uma experiência em que a arte tende a deixar de ser arte. São propostas artísticas descarregadas de técnica e voltadas para a experiência, para o jogo com os materiais. Por sua vez, a arte cada vez mais imersa no uso de traquitanas tecnológicas, o que se dilui, de maneira paradoxal, é a própria técnica”, nota Iazzetta. Tudo isso, porém, para que o paradoxo funcione, vem justamente da tecnologia. “Trabalhamos numa perspectiva complementar com os músicos. Temos muitas perguntas sobre o som e elas são objetivas sem nenhum viés estético. São sinais tratados de forma científica”, observa Marcelo Queiroz, professor de ciências da computação da USP, que participa do Móbile. Além do conhecimento tecnológico, Queiroz é formado em composição pela ECA-USP. “Mas quando estou do ‘outro lado’, só trabalho com as variáveis científicas em busca de uma parceria horizontal com as pesquisas musicais do grupo”, afirma. Assim, diz, essa interação acontece sempre que uma questão artística propõe um desafio técnico, como a análise de sinais de voz, por exemplo. “Prefiro ver música e arte como lugares onde surgem naturalmente problemas de interesse técnico que demandam soluções. Afinal, os computadores, por serem mais flexíveis, oferecem maiores chances de expansão e experimentação com timbres e sinais, do que a criação de novos instrumentos”, avalia Queiroz. Para ele, a música agora está seguindo o mesmo caminho antes trilhado pelas artes visuais. “Do ponto de vista dos dados sonoros podemos modular a escuta humana, transpor para a ferramenta computacional. Teremos

A tecnologia ajuda a tirar a mística do ato de criação musical

em breve a mesma síntese sonora que se conseguiu, no passado, com os programas gráficos”, fala. Queiroz lembra as simulações de espaços acústicos feitas em computador em que um grupo pode se ouvir até mesmo numa sala inexistente. “O trabalho no projeto Móbile tem sido uma oportunidade única para nós. Conseguimos, pela primeira vez, montar uma equipe interdisciplinar de cientistas, artistas e estudantes de tecnologia e artes trabalhando em conjunto na pesquisa em produção artística de vanguarda”, afirma Fabio Kon, também do Departamento de Ciências da Computação da USP e membro do projeto Móbile. “Desde o início do projeto temos buscado aproximar a criação artística da produção tecnológica de ponta e explorar as sinergias entre essas duas formas de conhecimento. Não é uma tarefa fácil, pois a tendência natural dos artistas e dos técnicos é trabalhar isoladamente; mas esse projeto tem sido um primeiro passo nessa direção. Estamos contentes com os resultados alcançados, mas ainda

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há muito a avançar e um longo caminho pela frente”, fala Kon. “Essa é uma forma única de produção e disseminação do conhecimento que foge dos padrões tradicionais de fomento à pesquisa”, observa o pesquisador. Segundo ele, tudo vai além dos estudos musicais. “Fala-se muito na tecnologia e nas máquinas como o avesso do humano, como se a alma da música fosse vendida por um vintém. Mas imaginar que uma máquina tira o que há de humano na música é esquecer que nada é mais representativo do humano do que as máquinas que fazemos”, lembra Iazzetta. Para o músico, tratamos a relação entre música e tecnologia como um aspecto de dependência, e não de simbiose. Segundo Iazzetta, o uso da tecnologia hoje deixa de ser essencial, como foi no início da música eletroacústica, e se torna incidental. Sai do foco e vira uma ferramenta para criar interesses e, com isso, ajuda a desmistificar o ato de criação musical. n Carlos Haag

Projeto Móbile: processos musicais interativos (nº 2008/08632-8); Modalidade Projeto Temático; Coord. Fernando Iazzetta (USP); Investimento R$ 515.936,56 (FAPESP).

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memória

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Conselhos de cirurgião Relançamento de manual prático de medicina do século XVIII revela detalhes da arte de curar Neldson Marcolin

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uem precisasse de cuidados médicos entre o descobrimento do Brasil, em 1500, e a chegada da família real, em 1808, estava em maus lençóis. Os médicos portugueses dispostos a se aventurar por aqui eram raríssimos. Em Portugal eles eram intelectuais formados em universidades, discutiam pensadores da Antiguidade como Aristóteles e Galeno e tinham status e salários significativamente mais altos do que aqueles cujas profissões eram consideradas manuais ou mecânicas. Este era o caso, por exemplo, dos cirurgiões, habilitados a fazer curativos, cirurgias, sangrias e amputações depois de dois anos de estudos práticos no Hospital de Todos os Santos de Lisboa, mas sem formação acadêmica. Eram eles que levavam algum alívio e conhecimento a uma população extremamente carente de qualquer assistência à saúde nas terras de além-mar. Trabalhar longe da Corte portuguesa trazia grandes vantagens para os cirurgiões, como a possibilidade de se tornarem proprietários de terra, de enriquecimento e valorização social. Os médicos só se tornaram mais frequentes no Brasil quando a família real se estabeleceu aqui, em 1808, e criou as faculdades de medicina de Salvador e do Rio de Janeiro. Na tentativa de tornar menos grave essa carência, pelo menos três cirurgiões escreveram manuais médicos no século XVIII no Brasil.

Cirurgião negro colocando ventosas, aquarela de Debret (1826), mostra a população negra dependente de cirurgiões ainda no século XIX, no Rio de Janeiro


fotos 1 Museus Castro Maya  2 arquivo público mineiro  3 Biblioteca Nacional

Luís Gomes Ferreira publicou Erário mineral, em 1735; João Cardoso de Miranda escreveu Relação cirúrgica e médica, em 1747; e em 1770 José Antonio Mendes compôs Governo de mineiros mui necessário para os que vivem distantes de professores seis, oito, dez e mais léguas, padecendo por esta causa os seus domésticos e escravos queixas, que pela dilação dos remédios se fazem incuráveis e as mais das vezes mortais. Este livro de 158 páginas e título quilométrico foi republicado no mês passado pelo Arquivo Público Mineiro com um estudo crítico de Carlos Alberto Filgueiras, químico e historiador das ciências da Universidade Federal de Minas Gerais. A palavra “governo” no título tem o sentido de condução de tratamento de doenças. Seu autor recebeu a “carta de cirurgia” em Lisboa em 1739 e teria vindo para o Brasil logo depois. Não há informações sobre seu nascimento, volta para Portugal e morte. No livro, ele diz que escreveu o manual depois de 35 anos empregados na “arte cirúrgica”. Sabe-se que trabalhou entre as capitanias da Bahia e de Minas Gerais. “Apesar de haver muita crendice no manual, alguns itens são bastante interessantes, sobretudo o dos efeitos da aplicação do suco de limão para a cura do escorbuto”, diz Filgueiras. O sumo da fruta era esfregado com sal nas mucosas da boca, até sangrarem, o que fazia a vitamina C entrar em contato direto com o sangue do paciente. “A aplicação era bastante bárbara, mas a sua essência está de acordo com a medicina moderna” (leia a prescrição original no quadro acima).

Receita contra escorbuto

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Frontispício original de Governo de mineiros e indicação de como curar escorbuto

Rugendas desenhou escravos – vítimas frequentes de doenças no período colonial – minerando ouro na gravura Mineração de ouro por lavagem perto do morro do Itacolomi (1835)

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“Quando o escorbuto estiver ainda no seu princípio (...) o fareis assim: se tiver a língua suja, e pouca vontade de comer, lhe mandeis com limão azedo e sal moído, esfregar muito bem as gengivas até lhe botarem bastante sangue; e a mesma língua lha mandareis também esfregar com o mesmo; (...) lhe dareis um vomitório, e no dia seguinte lhe mandareis dar uma onça de sumo de arroz de telhado (...) cuja porção continuará oito, ou dez dias a tomar, continuando sempre com a dita esfregação nas gengivas (...) “

O objetivo de Mendes e de outros cirurgiões era dar informações práticas para instruir os senhores a respeito dos tratamentos médicos disponíveis aos escravos, que trabalhavam de sol a sol na mineração, na lavoura e em todos os serviços pesados. “Na Europa, o alvo dos governantes era a saúde do homem pobre, que dependia da sua força física para trabalhar. Nas colônias dependentes do trabalho escravo era à população negra que se voltavam

as atenções”, explica a historiadora Márcia Moisés Ribeiro, pesquisadora do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) e da Faculdade de Filosofia, Ciências Humanas e Letras (FFCHL), ambas da Universidade de São Paulo (USP). Márcia também estudou a trajetória de Mendes. Além do escorbuto, o manual prático do cirurgião dá instruções de como tratar ferimentos em geral, erisipela, tumores, edemas, carbúnculo, doenças intestinais e chama a atenção para a assepsia dos instrumentos, dá receitas e conselhos sobre a arte de curar. “Alguns dos remédios prescritos por ele parecem claramente temerários hoje, sobretudo os inorgânicos sintéticos, como os sais de mercúrio, antimônio ou arsênio”, observa Filgueiras. Mendes não desprezava as experiências da terra e investigou a eficácia das plantas brasileiras na cura de doenças, em especial quando se tratava de males tropicais. Muitas dessas informações vinham das tradições indígenas e africanas. “Os médicos formados na Universidade de Coimbra não tinham esse conhecimento”, conclui Filgueiras. n PESQUISA FAPESP 207 | 87


Arte

A força de um filme reduzido, O som ao redor mobilizou a crítica e levou 100 mil espectadores aos cinemas Maria do Rosário Caetano

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som ao redor, filme de custo modesto, realizado fora do eixo Rio-São Paulo e sem atores que frequentam os horários nobres da TV, conseguiu duas façanhas: levar 100 mil espectadores aos cinemas e mobilizar de forma notável o pensamento crítico brasileiro, gerando significativa fortuna crítica. O cineasta pernambucano Kleber Mendonça, que assina a direção do filme e escreveu seu complexo (e lacunar) roteiro, é filho de uma historiadora e professora universitária. Enquanto a mãe desenvolvia pesquisas acadêmicas e aprofundava-se nos estudos de Casa grande & senzala, ele assistia a filmes e mais filmes. Graduou-se em comunicação, na Universidade Federal de Pernambuco, e tornou-se crítico de cinema. O som ao redor vem gerando uma notável fortuna crítica, comparável às verificadas quando do lançamento de Terra em transe (Glauber Rocha, 1967), Cronicamente inviável (Sérgio Bianchi, 2000), Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002) e Tropa de elite 1 e 2 (José Padilha, 2007 e 2010). O filme de Kleber saiu do gueto cinematográfico e enfrenta questões como a luta de classes, a fúria predatória da especulação imobiliária, o racismo à brasileira e a presença de milícias na prestação de serviços a cidadãos acuados pelo medo. A narrativa tem seu início num dia comum, numa rua de classe média da capital pernambucana. “Seria mais um dia como outros”, lembra Kleber, “se uma milícia não chegasse ao local para oferecer a paz de espírito apregoada por seguranças particulares”. Só que a presença dos milicianos, “se traz tranquilidade para uns, traz também tensão para outros, numa comunidade que parece temer muita coisa”.

fotos divulgação

Com orçamento


Cenas do fillme O som ao redor, de Kleber Mendonça

Ismail Xavier, professor de cinema da Universidade de São Paulo (USP), entusiasmou-se com o primeiro longa ficcional de Kleber Mendonça. Para ele, “o filme trabalha motivo reiterado no cinema pernambucano recente, que é a relação entre passado e presente, ou as camadas de tempo que se acumulam na experiência contemporânea em nossa modernização incompleta, conduzindo de forma extraordinária a encenação da vida de um bairro de classe média alta do Recife”. Xavier, autor de Alegorias do subdesenvolvimento: Cinema Novo, Tropicalismo e Cinema Marginal, ressalta que “falar em permanência do passado no presente, em O som ao redor, é também cotejar o rural e o urbano ou a presença das tradições patriarcais de mando e coronelismo na vida da cidade atual, com aquele painel de personagens e situações que, de início, parecem compor fragmentos, flagrantes de uma vida de bairro que se acumulam sem forte conexão

narrativa, mas a partir de um domínio da mise-en-scène e de notável trilha sonora”. Para o professor da USP, “o essencial é que a rarefação, o escoamento do tempo, em O som ao redor, permeia o percurso e otimiza a relação entre fragmentação, abertura e movimento rumo a um desfecho. Num momento em que finais abertos, com interrogações, já viraram uma convenção, o gesto de Kleber é contracorrente, atando o prólogo e a última cena como um retorno do reprimido”. O pesquisador se pergunta por que o filme gerou fortuna crítica tão significativa. “De um lado”, fala Ismail, “visto dentro da produção brasileira, O som ao redor desloca a tônica do debate sobre a violência e as mazelas urbanas, em geral associadas à crise da família e focalizando uma juventude “sem pai” cuja condição social induz à entrada no crime organizado (e aqui, com certeza, é preciso que nos lembremos de filmes como Cidade de Deus, entre outros)”. Ao contrário do filme de Fernando Meirelles, “o de Kleber devolve a questão da violência ao autoritarismo da tradição patriarcal, de modo que não se trata de ‘culpar’ a urbanização selvagem porque dissolve a família, mas dar ênfase a outro ângulo do problema: mostrar que ele está na tradição familiar dos de cima, que sobrevive”. Xavier lembra que o filme de Kleber traz síntese em que o passado no presente, o campo na cidade, o paradigma patriarcal e as questões de classe se articulam de modo a nos animar a uma recapitulação do percurso desse cinema nesses quase 20 anos. “Uma das forças de O som ao redor é, justamente, gerar este movimento retrospectivo, coisa que só obras notáveis são capazes de fazer”, afirma o pesquisador. n PESQUISA FAPESP 207 | 89


conto

Altos da Excelência Carla Ceres

Q

uerido Jorge, você estava certo em tantas coisas que só agora me atrevo a admitir. “Todo neurocientista se torna para-raios de malucos, magneto de psicopatas”, você dizia. E eu pensava que esse era seu modo enviesado de pôr em dúvida meu juízo. “Não há vício que leve à ruína mais rápido do que o de viver acima das próprias posses”, você repetiu inúmeras vezes, quando conquistei prêmios de prestígio e comecei a esbanjar um pouco. Jorge, você era um chato, mas me deu uma chance quando descobriram minhas fraudes acadêmicas e me afastaram da universidade. Outros colegas da equipe, meus ilustres “comparsas de pesquisa”, como você os chama, não receberam esse tipo de apoio. O Jardel se deixou abater pela demissão, a perda de prestígio e a enxurrada de retratações. Dezesseis artigos desqualificados e uma esposa consumista em crise de abstinência levaram-no do divã ao divórcio. Agora ele dá aulas de biologia num colégio estadual, porque nenhuma escola de alto nível quer manchar a própria imagem empregando um ex-pesquisador corrupto. A indústria também quer distância da gente a não ser para consultorias secretas e mal pagas. Seus abutres de terno ainda acham que deveríamos agradecer de joelhos pela honra de servi-los. O Hélio tentou suicídio, ou diz que tentou, pra chamar atenção da família. Ninguém ligou a mínima. As famílias modernas deixaram de lado aquele amor invasivo e sufocante. Mantêm contato por mensagens de texto. A irmã do Hélio, quando soube que ele havia sobrevivido, digitou “q bom q vc tah bem. se cuida”. Parece que o último parente à moda antiga no universo é você, Jorge. Ainda assim, eu não soube ser grato. Entenda que é difícil, para quem já foi um conferencista internacional, agradecer por um empreguinho como dublê de supervisor de obras, na construtora do irmão. Eu não sabia

90 | maio DE 2013

o que fazer naqueles prédios. O supervisor de verdade supervisionava meus passos e você não me deixava receber salário sem fingir trabalhar, porque pretendia corrigir meu caráter. Jorge, meu irmão, eu acho que te odeio. Todos nós vivíamos não somente acima de nossas posses, mas também acima de nossas possibilidades intelectuais. Esse tipo de vício está além de sua compreensão, Jorge. Sua inteligência mediana, tão útil para as miudezas do dia a dia, mal pode conceber o que um jovem cientista genial sente quando um de seus primeiros artigos recebe uma centena de citações. Nós nos viciamos em ser brilhantes a qualquer custo e conseguimos por quase uma década. A estrutura da universidade – sua trama de burocracia, secretárias e seguranças – funcionava como uma gaiola de Faraday ao redor de mim e da minha equipe. Mantinha longe os malucos que tentavam atingir-nos como raios. Precisei cair em desgraça para perceber quantos eram e avaliar seu grau de persistência obsessiva. Eles me cercavam na rua. Queriam saber o verdadeiro motivo do meu afastamento. “O senhor descobriu algum segredo do governo, não foi, professor?”, eles perguntavam. “Conta pra gente. É verdade que a indústria farmacêutica está incluindo o vírus do autismo nas vacinas contra a gripe?” Em suas teorias conspiratórias, eu era um herói, o cientista íntegro que precisava de uma forcinha para desmascarar governos e empresas malévolos. No mês passado, um deles, não sei como, invadiu meu apartamento. Era um sujeito baixinho, magrelo, hiperativo e cheio de tiques. Veio com uma conversa estapafúrdia. Ele seria um alienígena a fim de me contratar para um projeto de pesquisa em outro planeta. Tentei convencê-lo a sair. Ele continuou lá, falando e falando sobre transferir minha mente para outro mundo, atra-


zé vicente

vés do espaço, num tipo de upload intergaláctico. “O senhor percebe, professor, que nós já dispomos de tecnologia para baixar nossas mentes para corpos humanos como este que estou usando”, disse o invasor de apartamentos, agora se promovendo à categoria de invasor de cérebros. “Ocorre, porém, uma falha no que diz respeito às expressões faciais. Ou ficamos inexpressivos ou excessivamente dramáticos. Queremos nos misturar sem parecer ridículos ou frios. O senhor, como neurocientista, reúne as qualificações necessárias para ser nosso humano de confiança nesse projeto de compatibilização expressiva. Podemos contar com o senhor?” Perdi a cabeça. Explodi. Eu estava exausto de fingir trabalhar, exausto de fingir inocência, exausto de tolerar a loucura alheia. “Vocês do seu planeta precisam se informar melhor sobre os funcionários que contratam”, rosnei. “Eu não sou de confiança quando se trata de dinheiro”, admiti num surto depressivo. “Nós sabemos disso, professor, mas o senhor é brilhante em sua área. Peça quanto quiser. Nós pagamos”, respondeu o homenzinho. “Pois bem, senhor alienígena, saia daqui e só volte com cinco milhões de dólares. Entendeu?” Ele ficou em silêncio por alguns segundos, com os olhos erguidos como os de um ser humano normal quando faz contas mentalmente. Depois partiu sem dizer palavra. Venci. Admiti meus erros, mas venci. A quantia exorbitante que me veio à mente para fazê-lo desistir foi a mesma que obtive fabricando dados para pleitear verbas de pesquisa.

Há duas semanas, por incrível que pareça, Jorge, ele voltou com o dinheiro. Você já viu cinco milhões de dólares juntos na sua frente? É irresistível. Aceitei o emprego, pedi uma semana de prazo e fugi quando ele virou as costas. É claro que eu não acreditava naquela história de pesquisa em outro planeta. Ao contrário do que você sempre insinuou, eu não sou maluco. Mas aquele sujeito era doido de pedra e queria algo de mim, algo assustadoramente esquisito. Deixei o apartamento pros credores e sumi. Acontece que o homenzinho me encontrou. Não sei como. Ele disse que meu prazo para pôr os negócios em ordem, me despedir da família e encontrar uma clínica de confiança onde deixar meu corpo, que ficaria vazio após minha transferência mental, havia terminado. Ou eu ia com ele naquele momento ou ele ofereceria o emprego a outra pessoa, talvez ao Hélio ou ao Jardel. Assim sendo, precisei matá-lo. Foi legítima defesa de minhas posses e possibilidades. Você devia ter visto o brilho estranho que os olhos dele emitiram na hora da morte. O corpo, em pequenas parcelas, está concretado nas colunas do edifício Altos da Excelência. Não deixe o supervisor mexer nelas, Jorge. Continue erguendo o prédio. Esse é o conselho que te deixo antes de sumir de vez. Vá por mim, é melhor não mexer nos esqueletos que sustentam altos projetos. Carla Ceres é colunista do site Digestivo Cultural, cronista do site Diário do Engenho, mantém o blog Algo Além dos Livros (http://carlaceres. blogspot.com.br), mesmo título de seu CD de poemas premiados.

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resenhas

Meandros de uma guerra colonial Angelo Alves Carrara

Guerra e pacto colonial. A Bahia contra o Brasil holandês (1624-1654) Wolfgang Lenk Alameda/FAPESP 482 páginas, R$ 70,00 (preço estimado)

92 | maio DE 2013

levantada a história do exército e da fiscalidade na Bahia durante as invasões holandesas. O segundo capítulo explora a relação do exército com a sociedade baiana, buscando comparar a formação militar das ordenanças da Bahia à infantaria regular deixada em Salvador para a defesa contra as investidas do holandês. O autor destaca a associação entre militares e moradores. O capítulo terceiro estuda os meios pelos quais o financiamento foi levado a efeito pela Coroa. O socorro do Brasil é visto do ponto de vista da política de Lisboa, seja durante o governo filipino de Portugal, seja durante a guerra de Restauração. Aqui um dos pontos nevrálgicos do trabalho: está-se diante de um tesouro régio fortemente comprometido até o final da união ibérica em conflitos na Alemanha, na Saboia, em Flandres, bem como na Índia e na África; e a partir de 1640, com a disputa pela própria autonomia perante Castela. No quarto capítulo debate-se o financiamento do exército e da defesa na colônia, com ênfase sobre a tributação e demais políticas de direcionamento de recursos para a defesa: os donativos, as fintas, os empréstimos. Este talvez seja o capítulo em que as relações entre fiscalidade e guerra mostram-se mais claras: as reações da sociedade colonial ao incremento do fisco e seus reflexos nas relações com o governo e o Senado da Câmara de Salvador. Por fim, caracteriza-se esta obra pelo esforço de consulta e sistematização das informações em uma base documental variada. Merece destaque a documentação manuscrita, além das dezenas de fontes publicadas, como as atas e cartas da Câmara de Salvador e a coleção Documentos Históricos da Biblioteca Nacional: o Arquivo Histórico do Município de Salvador, o Arquivo Histórico Ultramarino, o Arquivo Nacional da Torre do Tombo, o Arquivo Público do Estado da Bahia, na Biblioteca Nacional de Lisboa e na Biblioteca do Palácio da Ajuda. A pertinência do tema, o rigor da análise e a inequívoca qualidade das fontes tornam esta obra leitura obrigatória a todos quantos se dediquem à história da colonização no Brasil. Angelo Alves Carrara é professor de história econômica na Universidade Federal de Juiz de Fora e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

eduardo cesar

G

uerra e pacto colonial. A Bahia contra o Brasil holandês (1624-1654) corresponde à tese de doutoramento de Wolfgang Lenk apresentada ao Instituto de Economia da Unicamp, sob orientação do professor José Jobson de Andrade Arruda. Seu objeto, as invasões holandesas da Bahia e de Pernambuco que ameaçaram por três décadas o domínio português na América. O primeiro aspecto inovador que merece atenção do leitor é o fato de se buscar compreender as relações entre a Fazenda Real e a açucarocracia baiana. O argumento do autor é o de que a vitória portuguesa sobre os invasores deveu-se a elementos internos a sua colônia, em particular o levante de senhores de engenho pernambucanos contra a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais. Em apoio a essa tese, Lenk assevera que a política adotada para o governo da Bahia permitiu que sua defesa fosse financiada pela própria economia colonial. A esse respeito o autor assinala duas áreas que requerem uma reflexão mais detida. Em primeiro lugar, em razão da importância da participação dos colonos na guerra em nome da Coroa de Portugal, analisar os limites possíveis de tal envolvimento. Já do ponto de vista militar, havia problemas específicos na disposição das forças armadas na colônia. Como muito acertadamente destaca Lenk, a colônia já vivia diariamente sua guerra particular: a de reprodução da ordem escravista, entre a senzala e o engenho, para além das novidades trazidas com o recrudescimento das disputas entre as potências coloniais europeias e com a invasão holandesa, que resultou na reformulação da defesa da colônia segundo os parâmetros da guerra seiscentista (confronto de posições fixas, de cercos e baluartes, de infantaria; alistamento e uniformização do combatente, por exemplo). O senhor de engenho era “sócio da empresa militar (em muitas ocasiões como comandante de ordenanças); os regimentos exigiam-lhe o armamento, o próprio edifício era tomado por uma fortificação”. Em síntese, “o policiamento do trabalho escravo foi uma extensão da organização militar da conquista do litoral”. Mas, para Lenk, ao lado dos itens associados à guerra há o da fiscalidade. No primeiro capítulo é


Um corpo a corpo com ideias de Candido Adélia Bezerra de Menezes

C Ficção e ensaio. Literatura e história no Brasil Maria Célia Leonel e José Antonio Segatto EdUFSCar 225 páginas, R$ 29,00

om o propósito explícito de travejar litera- Formação, embasada na noção de “sistema”: foi tura e história na mesma visada crítica, o no século XVIII, com o Arcadismo, que em solo livro de Maria Célia Leonel e José Antonio pátrio uma literatura se configura. Segatto abarca uma gama rica de assuntos, de Retomo as ideias de Antonio Candido: no Machado a Euclides, a Guimarães Rosa, Chico momento em que se constela um conjunto de Buarque, Silviano Santiago e Moacyr Scliar – produtores literários (Autor), um conjunto de para culminar com um ensaio reverentemente receptores (Público – que lê/ouve) e um veícupolêmico sobre a Formação de Antonio Candido. lo transmissor (Obra), numa continuidade de Com efeito, nas competentes resenhas sobre ca- tradição, as produções literárias adquirem cada obra e cumprindo o prometido, os autores mo- racterísticas orgânicas de sistema – e isso aconbilizam vasta erudição; mas é na teceu antes da Independência, “crítica da crítica” que radicam antes da organização do Estado os pontos nevrálgicos. É o caso nacional, constituindo um mode “Alegoria e política no sertão mento de formação da literatura rosiano”, abordando ensaios que brasileira, vista como processo. Autores mobilizam propõem uma leitura históricoNa sequência, a reflexão de vasta erudição, -política do Brasil. Questionando Leonel e Segatto avança por a posição de W. Bolle [grandeserum outro viés: admitindo numa mas é na crítica tao.br. São Paulo, Duas Cidades, “digressão” a ideia de sistema, da crítica que Editora 34, 2004], que, na linha contestam que a literatura forda historiografia alegórica de mada no século XVIII seja “do radicam os pontos Benjamin, afirma que o Grande Brasil” (que não existia), mas tão nevrálgicos do sertão: veredas pode ser lido cosomente “de Vila Rica”. Mas, semo um “Retrato do Brasil”, Leoguindo esse raciocínio, não se livro de ensaios nel e Segatto contestam a ideia de poderia falar em Descoberta do que o “sistema jagunço” repreBrasil, pois em 1500 o país ainda senta as estruturas atuais do país. Mas: será que não existia... Quanto a Vila Rica, o que nela se teos episódios do crime organizado em São Paulo e cia configura, nos termos de Bourdieu, um campo, no Rio, o massacre do Carandiru ou o filme Tro- necessariamente delimitado, dentro daquilo que pa de elite não mostrariam – e na mais estridente mais tarde viria a ser a nação; é só na evolução que atualidade – o “sistema jagunço” em ação? o campo vai se estender. Vamos ao capítulo “Formação da literatura e Várias objeções eles ainda elencam, desmeconstituição do Estado nacional”, focando o gran- recedoras de uma vida literária nas Minas. A de livro de Antonio Candido, Formação da lite- historiadora Laura de Mello e Souza, no livro ratura brasileira. Momentos decisivos [São Paulo, Cláudio Manuel da Costa [São Paulo, CompaMartins Ed., 2 v., 2ª. ed.]: o intento dos autores é nhia das Letras, 2011], provê dados instigantes discutir e redefinir o marco histórico da literatura sobre essas questões – também presentes, aliás, nacional: ela começaria a ser criada na década de ao longo da Formação. Enfim: tudo fica cristali1830, com a constituição de um Estado nacional. no se, em vez de nos atermos aos Prefácios e à “Se não havia país, Estado nacional, como poderia Introdução, mergulharmos nas páginas em que haver literatura brasileira”? – perguntam – para somos confrontados com a força das ideias de concluir: “Talvez fosse mais plausível afirmar que, Antonio Candido, no corpo a corpo com as obras, até o século XVIII, o que havia era uma incipien- analisadas em seu contexto. te produção literária colonial portuguesa e que, de meados desse século até as primeiras décadas Adélia Bezerra de Meneses é professora de teoria literária. continua vinculada à Pós-graduação da USP e Unicamp. do XIX, houve uma espécie de pré-história da Aposentada, Dentre outros livros, é autora de Cores de Rosa. Ensaios sobre literatura brasileira”. Contestam assim a tese da Guimarães Rosa (Ateliê, 2011). PESQUISA FAPESP 207 | 93


carreiras

Oportunidade | Mercado

Mais espaço para trabalhar Biólogo de Nova York complementa pesquisa em São Paulo No final do ano passado, o cientista brasileiro Victor Nussenzweig convidou o biólogo chinês Min Zhang para fazer parte de sua pesquisa sobre as enzimas que controlam o crescimento do Plasmodium, o protozoário causador da malária, em São Paulo. Zhang, há cinco anos como pós-doutor no laboratório de Nussenzweig na Universidade de Nova York, viu no convite uma ótima oportunidade e disse sim de imediato. Ao lado de Nussenzweig, veio para São Paulo em janeiro e durante dois meses trabalhou no laboratório de Sérgio Schenkman na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “Sou mais independente quando trabalho no Brasil”, diz Zhang. “Conheci muitos cientistas e estabeleci muitas colaborações.” 94 | maio DE 2013

Ele conta que gostou das pessoas, do clima, da comida e da cidade, mas também viu a dificuldade de obter reagentes químicos para os experimentos. “O progresso foi menor do que teria sido nos Estados Unidos”, comenta. “Min é muito simpático. Ele nos ensinou muito e seu trabalho teve um efeito fantástico no grupo”, diz Schenkman. Segundo ele, o convívio com Min mudou a atitude dos estudantes e dos outros pesquisadores: “Ele mostrou uma atitude profissional pragmática, com clareza de objetivo. Sabia exatamente o que queria fazer e por que fazer nos experimentos. A forma como planejava os experimentos e discutia os resultados não é muito comum em nossa cultura científica. O convívio com pessoas com

1

bagagens culturais diferentes pode trazer avanços significativos à ciência brasileira”. Nussenzweig e Zhang trouxeram técnicas de análises de enzimas – principalmente as fosfatases e as quinases, envolvidas na síntese de proteínas – que permitiram a identificação de rotas bioquímicas comuns entre o Plasmodium e

Nussenzweig e Zhang: parceria com brasileiros


fotos 1 arquivo pessoal 2 intel  ilustraçãO daniel bueno

o Trypanosoma cruzi, o protozoário causador da doença de Chagas, com que Schenkman já trabalhava. Zhang tem 33 anos, fez graduação em biologia química na Universidade de Hubei, em Wuhan, e doutorado na Universidade de Fudan, em Xangai, ambas na China. Depois “teve várias oportunidades de ir para diferentes laboratórios nos Estados Unidos, mas “seu sonho era trabalhar com Victor”, conta Schenkman. Por isso, insistiu até conseguir. “O laboratório de Victor é um dos melhores do mundo em malária”, ele diz. A seu ver, obter financiamento nessa área é mais difícil, principalmente na atual crise econômica global, mas a pesquisa sobre doenças tropicais está ganhando importância diante das mudanças do clima, que vem ampliando as áreas geográficas de ocorrências dos insetos responsáveis por sua disseminação. Sua vinda para São Paulo foi possível por meio de um projeto temático coordenado por Nussenzweig no âmbito do São Paulo Excellence Chairs (Spec), um programa-piloto da FAPESP que estabelece colaborações entre instituições do estado de São Paulo e pesquisadores brasileiros de alto nível radicados no exterior. Nussenzweig, aos 84 anos, está radicado nos Estados Unidos desde a década de 1960 – é professor titular da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo desde 1971. Ele e sua esposa, Ruth, se tornaram referência internacional na busca de vacinas e tratamentos contra a malária (ver Pesquisa FAPESP nº 106). Zhang deve voltar a São Paulo em julho e talvez em dezembro para uma temporada de quatro meses. “Falar português ainda é um problema”, diz, mas estou planejando fazer um curso de português quando voltar ao Brasil”.

Mercado

De olho no consumidor Para Fernando Martins, presidente da Intel, o jovem profissional deve se atirar no mercado sem largar os estudos Aos 48 anos, Fernando Martins é desde 2010 o presidente e diretor-geral, no Brasil, da Intel, a maior fabricante de chips do mundo. 2 O caminho até a presidência começou ainda nos anos 1980, no meio do curso de engenharia elétrica e de computação na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. “Fiz muitos estágios em empresas de setores diferentes, da têxtil à farmacêutica”, diz Martins. “Para quem pensava em trabalhar na indústria, como eu, é fundamental sair a campo cedo, ao mesmo tempo que se continua estudando.” Ele recomenda que já no terceiro ano do curso de graduação o aluno comece a procurar vaga como estagiário. Recém-formado e já empregado, Martins conseguiu conciliar o trabalho de engenheiro com o mestrado. Seu interesse como pesquisador da área de informática sempre foi por mídia digital (processamento de imagens, computação gráfica e codificação de vídeo), o que o levou ao doutorado na Universidade Carnegie Mellon, nos Estados Unidos. Lá trabalhou em projetos de codificação e transmissão de vídeos. “Eu estava em um dos maiores centros de inovação do mundo e comecei a ter ideias de como utilizar cada vez mais imagens digitais e vídeos na internet quando essa tecnologia mal estava engatinhando.”

Nesse período, meados dos anos 1990, teve o primeiro contato com a Intel. Em 1997 estava contratado. “Criamos tecnologias de compressão para conseguir reproduzir vídeos no computador via internet, o que possibilitou a criação de programas como Skype e YouTube.” Martins trabalhou por sete anos nos laboratórios até mudar de rumo na própria empresa. Ele se transferiu para o setor de planejamento estratégico da Intel – passou a ser responsável pela escolha de tecnologias dos laboratórios que seriam relacionadas aos novos produtos da empresa – e começou a ver o consumidor de modo diferente. Planejar, segundo ele, exige uma ampla avaliação dos cenários disponíveis e algum futurismo para tentar saber o que vem pela frente. Nos últimos anos, a Intel avaliou que o Brasil tem real possibilidade de se transformar em um importante centro de inovação – e Martins foi o escolhido para comandar a empresa no país. “Investiremos R$ 300 milhões em pesquisa e desenvolvimento em cinco anos com foco em software, educação, transporte e energia”, diz. “E trabalharemos com pesquisadores e técnicos do país.” Com 40 artigos publicados e 24 patentes, Martins gosta mesmo é de ver o retorno dos usuários. “Transformar a vida das pessoas com alguma tecnologia que criamos é incomparável.” Para ele, o pesquisador que mira a indústria deve manter um olho no laboratório e outro nos desejos do consumidor. PESQUISA FAPESP 207 | 95


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