Pesquisa FAPESP 202

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Pesquisa FAPESP dezembro de 2012

dezembro de 2012  www.revistapesquisa.fapesp.br

Perfumes

Novas técnicas ampliam produção do pau-rosa eletricidade

Redes inteligentes permitem ao consumidor gerar sua própria energia José Bonifácio

O político encobriu o cientista entrevista ronaldo pilli

Ousadia e inovação marcam trajetória da Unicamp

n.202

O pulo do gato Físicos brasileiros encontram rastros quânticos deixados por partículas de luz no ambiente


Uma parceria pela geração de trabalho e renda no país.

A Fundação Banco do Brasil e o BNDES se uniram para promover o desenvolvimento sustentável de comunidades rurais e urbanas que vivem em situação de vulnerabilidade econômica, por meio de programas e tecnologias sociais voltados à geração de trabalho e renda. Em três anos, foram investidos R$ 130 milhões, envolvendo mais de 120 mil famílias no processo de transformação social. www.fbb.org.br/bndes-fbb


fotolab

Caminhos da prata Não, não são ramos de uma planta. A imagem acima retrata agregados de átomos de prata que se formam quando uma solução de nitrato de prata entra em contato com o cobre metálico sobre uma superfície de vidro. A altura do ramo de prata é de 250 micrômetros (um micrômeto é um milionésimo do metro) e a foto foi obtida por meio de uma câmera digital acoplada a um estereomicroscópio. O objetivo do trabalho é entender como ocorrem os fenômenos de agregação de átomos, Se você tiver uma imagem relacionada a pesquisa, envie para imagempesquisa@fapesp.br, com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.

moléculas e células.

Foto enviada por Aguinaldo Robinson de Souza, do Departamento de Química da Unesp de Bauru. PESQUISA FAPESP 202 | 3


dezembro 2012

n. 202

tecnologia 50 Ecologia 18 CAPA Para entender a transição do mundo quântico para o clássico, físicos brasileiros medem troca de informação entre partículas de luz e o ambiente

entrevista 26 Ronaldo Pilli Pró-reitor de Pesquisa da Unicamp fala sobre como a ousadia e a inovação marcaram a trajetória da universidade

seçÕes 3 Fotolab 6 Cartas 7 Carta da editora 8 Dados e projetos 9 Boas práticas 10 On-line 11 Wiki 12 Estratégias 14 Tecnociência 86 Memória 90 Arte 92 Conto 94 Resenhas

4 | dezembro DE 2012

Política científica e tecnológica 32 Revistas científicas

Editores recorrem a um conjunto de estratégias para elevar a repercussão e a visibilidade de suas publicações

36 Inovação

Relatório propõe ações para reforçar a qualidade das universidades de pesquisa dos EUA

37 Cooperação

Europeus buscam parcerias para novo programa de apoio à ciência e inovação

ciÊncia 38 Paleontologia

Dinossauro africano ouvia mal e movia a cabeça com agilidade para se defender

42 Química

Estudo da dinâmica de moléculas comprova que corante natural protege folhas do excesso de luz

46 Bioquímica

Aproveitamento de folhas e galhos amplia em 25% a produção de óleo de pau-rosa

56 Energia

Redes inteligentes trazem integração de fontes energéticas e de dados e abrem novas possibilidades para o consumidor

62 Pesquisa empresarial

BP fecha acordos para melhorar produção de etanol e se prepara para a segunda geração

66 Construção civil

Novos blocos feitos com resíduos da produção de fertilizantes são opção barata para construir casas

humanidades 68 História

Ideias de José Bonifácio foram marcadas pela união estreita do homem público com o naturalista

74 Economia

Experiência siderúrgica pioneira da Fábrica Real de Ferro de Ipanema deixou lições de ousadia

80 Música

Uso de crack mata mais neurônios do que cocaína

Nos anos 1970 a MPB encontrou diferentes formas de recriar o experimentalismo tropicalista

48 Evolução humana

84 Divulgação científica

Vírus humano reflete as migrações ocorridas entre distintas etnias no Pará

Primavera silenciosa, de Rachel Carson, faz 50 anos e permanece um clássico da literatura ambiental

18


42

32

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50

74

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56 PESQUISA FAPESP 202 | 5


cartas

cartas@fapesp.br

fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo

Celso Lafer Presidente

Empresa que apoia a ciência brasileira

Eduardo Moacyr Krieger vice-Presidente Conselho Superior alejandro szanto de toledo, Celso Lafer, Eduardo Moacyr Krieger, fernando ferreira costa, Horácio Lafer Piva, Herman Jacobus Cornelis Voorwald, joão grandino rodas, Maria José Soares Mendes Giannini, José de Souza Martins, Luiz Gonzaga Belluzzo, Suely Vilela Sampaio, Yoshiaki Nakano Conselho Técnico-Administrativo José Arana Varela Diretor presidente Carlos Henrique de Brito Cruz Diretor Científico Joaquim J. de Camargo Engler Diretor Administrativo

issn 1519-8774

Conselho editorial Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Marcelo Leite, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira comitê científico Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Adolpho José Melfi, Carlos Eduardo Negrão, Douglas Eduardo Zampieri, Eduardo Cesar Leão Marques, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, João Furtado, Joaquim J. de Camargo Engler, José Arana Varela, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Luis Augusto Barbosa Cortez, Marcelo Knobel, Marie-Anne Van Sluys, Mário José Abdalla Saad, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Luiz Monteiro Salles Filho, Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner do Amaral, Walter Colli Coordenador científico Luiz Henrique Lopes dos Santos Diretora de redação Mariluce Moura editor chefe Neldson Marcolin Editores Carlos Haag (Humanidades), Fabrício Marques (Política), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência), Carlos Fioravanti (Editor especial), Marcos Pivetta (Editor especial), Dinorah Ereno (Editora assistente) revisão Márcio Guimarães de Araújo, Margô Negro arte Laura Daviña (Editora), Ana Paula Campos, Maria Cecilia Felli fotógrafos Eduardo Cesar, Léo Ramos Mídias eletrônicas Fabrício Marques (Coordenador)

Mapa da ciência

Na seção Estratégias da edição 201 há uma nota sobre o novo mapa da ciência publicado pela revista Nature, destacando a inclusão do Brasil e de outros países no cenário mundial de pesquisas de excelência. Neste contexto, o diretor científico da FAPESP, professor Carlos Henrique de Brito Cruz, mostra os avanços da ciência brasileira e revela que apesar do incremento de artigos científicos em periódicos internacionais, que chegaram a 35 mil artigos em 2011, as citações de autoria de pesquisadores brasileiros continuaram, em média, sendo as mesmas de 1994. Ademais, indica a maior colaboração com pesquisadores estrangeiros de centro de excelência e apresenta proposta para o governo desenvolver um plano de apoio às universidades, cerca de uma dezena, para atingir padrão de excelência nos próximos 10 anos. Contudo, seria oportuno acrescentar que o saber atual, valorado pelo número de publicações e citações, necessita de um choque de qualidade que leve em conta outros parâmetros de desenvolvimento científico do Brasil, de países vizinhos e exteriores. Roberto DeLucia Instituto de Ciências Biomédicas/USP São Paulo, SP

Internet Pesquisa FAPESP online Maria Guimarães (Editora executiva) Isis Nóbile Diniz (Editora assistente) Rádio Pesquisa Brasil Biancamaria Binazzi (Produtora) Colaboradores Alexandre Affonso, Ana Lima, Andrés Sandoval, Carlos Eduardo Lins da Silva, Catarina Bessel, Cláudia Izique, Cristina Caldas, Daniel Bueno, Daniel das Neves, Gabriel Bitar, Igor Zolnerkevic, Marcos Buckeridge, Ricardo Lísias, Sandro Castelli, Tomás Rebollo, Valter Rodrigues (Banco de Imagens) e Yuri Vasconcelos É proibida a reprodução total ou parcial de textos e fotos sem prévia autorização Para falar com a redação (11) 3087-4210 cartas@fapesp.br Para anunciar (11) 3087-4212 mpiliadis@fapesp.br Para assinar (11) 3038-1434 fapesp@veganet.com.br Tiragem 45.000 exemplares IMPRESSão Plural Indústria Gráfica distribuição Dinap GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia Governo do Estado de São Paulo

6 | dezembro DE 2012

Dez vídeos selecionados

Recebi a edição 200 e o DVD com 10 vídeos selecionados de Pesquisa FAPESP. Assisti somente ao primeiro (“Expansão telegráfica...”). O material é muito interessante, mas tive dificuldade para assisti-lo. Sou deficiente auditivo e uso aparelhos nos dois ouvidos. A música está muito alta com relação à voz, que está baixa. Além disso, não seria possível adicionar legendas a todos os vídeos? Aumentaria a acessibilidade... Continuem com esse grande trabalho!

bilidade. O volume da música e da voz do vídeo referido pelo leitor está equalizado dentro dos padrões normais.

Urnas eletrônicas

A edição 200 de Pesquisa FAPESP, como sempre, traz ótimos artigos que comprovam a competência e criatividade de nossos pesquisadores. Fui, porém, desagradavelmente surpreendido pelo artigo “O voto que realmente vale”. Nele são transcritas afirmações temerárias sobre nossas urnas eletrônicas, baseadas apenas na fé e, decididamente, não científicas. Como os três pesquisadores citados sabem que “não há risco de fraude”, se nossa urna não permite conferência, identifica o eleitor no próprio equipamento em que vota (propiciando a identificação do voto), não nos dão tempo suficiente para verificar o enorme programa, não permitem testes independentes etc.? Como sabem que as 400 mil urnas têm o mesmo programa, livre de software malicioso? Desafio-os a provar que “o risco de fraude desapareceu” e que não há dúvidas sobre meu voto ir sempre para o candidato escolhido. Pois saibam que, no sistema brasileiro, tal prova é impossível de ser efetuada. A fé não exige prova, mas, em ciência, afirmações não provadas são apenas conjecturas. Walter Del Picchia Escola Politécnica/USP São Paulo, SP

Ari Roizenblit São Paulo, SP

Nota da Redação: Estamos estudando a possibilidade de colocar legendas nos próximos vídeos para melhorar a acessi-

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar – CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.


carta da editora

O mundo alterado pela física quântica Mariluce Moura Diretora de Redação

N

um livro lançado em Brasília e no Rio na primeira quinzena de outubro, Homens que nos ensinaram a concepção do mundo, o eminente físico brasileiro Roberto Salmeron explica a certa altura, no capítulo em que trata de Einstein, que “em mecânica quântica não podemos fazer a afirmação categórica que fazemos em mecânica clássica, somente podemos saber a probabilidade para que um efeito se produza. É, portanto, uma forma de abstração” (página 182). Isso, ele nos conta, foi logo compreendido por Bohr, que com tal compreensão deu grande impulso à mecânica quântica – e terminou por entrar em divergência com Einstein. O famoso cientista, “paradoxalmente, apesar de sua inteligência e sua cultura científica, não deu o passo para assimilar essa abstração da mecânica quântica”. Digamos, amparados por esse comentário do professor Salmeron, que se mesmo Einstein manteve-se fechado a essa abstração, muitas décadas depois a física quântica se apresenta como praticamente impenetrável para os não especialistas – ou seja, a esmagadora maioria dos que estudaram física só no curso médio e com âncoras bem fincadas no território que Newton estabeleceu. Justamente isso transforma a necessidade e a vontade de reportar avanços do conhecimento em física quântica, de forma clara e consistente, num desafio formidável para o jornalista de ciência. De um lado, há as insuficiências da formação do próprio jornalista para entrar e transitar nesse universo quântico. De outro, admitindo-se que tal insuficiência foi, se não vencida, pelo menos temporariamente contornada ou atravessada, há as gigantescas dificuldades para se construir uma narrativa acessível a não especialistas a partir de experiências em que a ideia de concretude dos dados ou de relação direta entre causa e efeito parece tão rarefeita, senão francamente inexistente. Como falar, reportando e explicando experiências científicas, e não transcendentais ou religiosas, de um campo em que um ente pode ser imaginado simultaneamente morto e vivo, sobreposição que é um completo contrassenso, ou estar em mais de um lugar do espaço ao mesmo tempo? Não é tarefa simples e isso só amplia o mérito de nosso editor de ciência, Ricardo Zorzetto, na elaboração

da reportagem de capa desta edição de Pesquisa FAPESP (página 18), que aborda estudos que têm feito avançar a física quântica e detalha especialmente um experimento com partículas de luz, realizado meses atrás por um grupo de físicos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), apresentado em 12 de outubro passado na Physical Review Letters, e que conseguiu demonstrar que nem sempre a informação quântica que chega ao ambiente é perdida para sempre. Os físicos entendem que no dia a dia não se notam propriedades estranhas das partículas atômicas (como estar em mais de um lugar ao mesmo tempo) porque o ambiente em que elas estão imersas, muito complexo, absorve essas características (quânticas) e as dissipa – e aí os componentes mais elementares da matéria passam a se comportar de forma convencional. Mas o grupo do Rio, conforme o relato de Zorzetto, está dizendo que a tal perda não é total. E isso pode ser interessante tanto para os computadores quânticos quanto para se compreender mais as fronteiras entre a mecânica quântica e a mecânica clássica, newtoniana. Tanto para o mundo prático quanto para a ciência básica, em suma. Vale muito a pena ler – e mesmo se deliciar com as estranhezas do mundo quântico. Quero destacar também aqui a reportagem que abre a seção de humanidades, do editor Carlos Haag (página 68). Percorrendo alguns trabalhos recém-lançados, como o livro José Bonifácio, de Miriam Dolhnikoff, e outros mais antigos, ele traz à cena um vigoroso homem de ciências e ecologista avant la lettre que a historiografia tradicional ocultou atrás do festejado Patriarca da Independência. Bonifácio via as ciências como fundamentais para o desenvolvimento do Brasil, Haag relata, e foi por essa visão que “projetou a criação de universidades, de escolas de minas, expedições científicas e sociedades econômicas e científicas”. Na citação de Dolhnikoff, Bonifácio “acima de tudo foi um cientista, formado pela Ilustração” Acreditava “numa ciência com sentido propositivo e prático”. A rigor, a maneira como pensou a nação brasileira teria sido “determinada pela formação de cientista”. A proposição pode, é claro, provocar alguma polêmica, o que é bom para o processo do conhecimento. Boa leitura! PESQUISA FAPESP 202 | 7


Dados e projetos Temáticos e Jovem Pesquisador recentes Projetos contratados entre outubro e novembro de 2012

temáticos  Inibidores e proteases de ectoparasitas: relação de estrutura-função e identificação do papel dessas moléculas na interação de vetores de doenças e seus agentes etiológicos Pesquisadora responsável: Aparecida Sadae Tanaka Instituição: Escola Paulista de Medicina/ Unifesp Processo: 2012/03657-8 Vigência: 01/10/2012 a 30/09/2017

 Comportamento e saúde bucal: perspectivas interdisciplinares e aspectos emocionais no processo saúde-doença Pesquisador responsável: Antonio Bento Alves de Moraes Instituição: Faculdade de Odontologia de Piracicaba/Unicamp Processo: 2011/50419-2 Vigência: 01/10/2012 a 30/09/2016  A província magmática Paraná-Etendeka no Brasil: relações temporais e petrológicas entre o magmatismo toleítico e alcalino e suas implicações geodinâmicas Pesquisador responsável: Excelso Ruberti Instituição: Instituto de Geociências/USP Processo: 2012/06082-6 Vigência: 01/11/2012 a 31/10/2016

Jovem Pesquisador  Elo entre balanço energético e inflamação sistêmica: papel da leptina Pesquisador responsável: Alexandre Alarcon Steiner Instituição: Instituto de Ciências Biomédicas/ USP Processo: 2012/03831-8 Vigência: 01/10/2012 a 30/09/2016

 Biomarcadores na doença de Alzheimer e comprometimento cognitivo leve: estudo de métodos de ressonância magnética funcional e marcadores liquóricos e plasmáticos

Pesquisador responsável: Marcio Luiz Figueredo Balthazar Instituição: Faculdade de Ciências Médicas/ Unicamp Processo: 2011/17092-0 Vigência: 01/04/2013 a 31/03/2015

 Avaliação da compartimentalização da PTEN na neurogênese e plasticidade sináptica influenciadas por fatores ambientais Pesquisadora responsável: Elisa Mitiko Kawamoto Instituição: Instituto de Ciências Biomédicas/USP Processo: 2011/21308-8 Vigência: 01/10/2012 a 30/09/2016  Redes de regulação pós-transcricional por proteínas de ligação a RNA em células-tronco embrionárias humanas Pesquisadora responsável: Katlin Brauer Massirer Instituição: Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética/Unicamp Processo: 2012/00195-3 Vigência: 01/10/2012 e 30/09/2016  Taxonomia, filogenia, biogeografia e evolução de abelhas Neopasiphaeinae (Hymenoptera: Colletidae) utilizando dados moleculares e morfológicos Pesquisador responsável: Eduardo Andrade Botelho de Almeida Instituição: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto/USP Processo: 2011/09477-9 Vigência: 01/11/2012 a 31/10/2016  Respostas do genoma vegetal às variações ambientais: o que as Orchidaceae têm a contar? Pesquisadora responsável: Ana Paula de Moraes Instituição: Centro de Ciências Naturais e Humanas/UFABC Processo: 2011/22215-3 Vigência: 01/12/2012 a 30/11/2015

Posição brasileira Alguns temas de pesquisa (palavras-chave) e a produção científica respectiva (2007-2012) Sugar cane/Cana-de-açúcar – 1.830 País

Número de trabalhos

(1) Brasil

675

(2) Estados Unidos

230

(3) Índia

122

(4) Austrália

94

(5) China

69 Ethanol/Etanol

(biotechnology & applied microbiology) – 4.999 País

Número de trabalhos

(1) Estados Unidos

1.243

(2) China

807

(3) Japão

452

(4) Coreia do Sul

302

(5) Brasil

275

Ethanol/Etanol (chemical engineering) – 4.979 País

Número de trabalhos

(1) China

1.168

(2) Estados Unidos

615

(3) Espanha

367

(4) Brasil

321

(5) Japão

254

Ethanol/Etanol (energy fuels) – 3.759 País

Número de trabalhos

(1) Estados Unidos

863

(2) China

763

(3) Brasil

283

(4) Índia

179

(5) Espanha

179 Cellulose/Celulose

(biotechnology & applied microbiology) – 2.763 País

Número de trabalhos

(1) Estados Unidos

715

(2) China

518

(3) Japão

216

(4) Índia

189

(8) Brasil

96

Obs.: Resultados obtidos com uma única palavra-chave (sugar cane) ou refinados (ethanol, cellulose) usando os termos que se indicam entre parênteses. Os números ao lado das palavras-chave representam o total de trabalhos produzidos no período. Os números ao lado dos países indicam a posição relativa. Fonte: Thompson Reuters Web of Science

8 | dezembro DE 2012


Boas práticas

ilustrações  daniel bueno

A fraude e suas ondas de choque Quando um artigo científico é retratado, ou seja, desqualificado pela revista que o publicou devido à descoberta de erros ou fraudes, o impacto pode espalhar-se por toda a comunidade de pesquisadores que estuda temas correlatos ao do paper proscrito. A constatação foi feita com base na análise de 1.104 retratações de artigos que haviam sido divulgados na base de dados PubMed. Segundo o blog de notícias da revista Nature, um estudo publicado pelo National Bureau of Economic Research selecionou artigos sobre temas similares aos papers retratados, mas escritos por outros autores. Constatou-se que, após a retratação, caíram em 5,7% as citações dos artigos correlatos, em comparação com o que aconteceu com uma seleção de artigos não relacionados, usada como grupo de controle. Mais impressionante ainda foi o efeito no financiamento de pesquisas relacionadas aos artigos suspensos. Como o PubMed monitora os investimentos dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) nas pesquisas que originaram os artigos, foi possível constatar que o financiamento a estudos correlatos caiu entre 50% e 73% após as retratações. “O impacto no financiamento foi bastante significativo”, diz o economista Pierre Azoulay, da Sloan School of Management do Massachusetts Institute of Technology (MIT), autor principal do estudo. Azoulay e seus colegas acreditam que há duas explicações para o efeito-cascata. Ou os cientistas perceberam que o campo de conhecimento é mais limitado do que parecia, ou então eles decidiram tomar distância da área com receio de serem associados à polêmica. A segunda hipótese

parece mais provável, uma vez que o efeito é mais destacado quando o motivo da retratação foi vinculado a má conduta, e menos significativo quando se tratou de um erro não proposital. Um exemplo citado pelo estudo é o do sul-coreano Woo Suk-Hwang, que em 2005 anunciou num artigo publicado na revista Science o sucesso na clonagem de embriões humanos para obtenção de células-tronco (ver Pesquisa FAPESP nº 120). Como é natural, muitos pesquisadores tentaram reproduzir o experimento que, na verdade, era fraudulento. Mas, depois que o artigo foi retratado, o governo sul-coreano cortou à metade os investimentos na pesquisa de células-tronco embrionárias e muitos pesquisadores abandonaram esse campo. Uma solução para evitar prejuízos, diz Azoulay, é desenvolver um sistema

de codificação para retratações, de modo a tornar transparente o motivo da desqualificação do artigo. Ele reconhece que os editores não devem gostar da sugestão, pois seriam forçados a contar claramente o que aconteceu com o artigo removido.

Transparência nos ensaios clínicos A revista científica BMJ (sigla para British Medical Journal), uma das mais influentes da pesquisa médica, anunciou que a partir de janeiro só publicará artigos envolvendo resultados de testes clínicos de medicamentos se as indústrias farmacêuticas patrocinadoras tornarem disponíveis os dados sobre os pacientes participantes dos estudos. Num editorial publicado no final de outubro, a editora da BMJ, Fiona Godlee, convocou as demais revistas a fazer a mesma coisa e exortou as indústrias a divulgar os dados dos testes de todas as suas drogas aprovadas. “A indústria farmacêutica faz muitas coisas boas. Ela produz medicamentos que podem

melhorar a saúde e salvar vidas. Infelizmente ela faz coisas ruins também. De forma persistente e sistemática ao longo de décadas, tem retido e deturpado dados de ensaios clínicos”, diz o editorial. A BMJ elogiou o anúncio recente feito pela GlaxoSmithKline de disponibilizar os dados sobre os testes clínicos requeridos por revistas científicas e criticou a Roche, que há três anos se recusa a fazer o mesmo sobre os ensaios do antiviral Tamiflu (oseltamivir), solicitados por um grupo de pesquisa comissionado pelo governo do Reino Unido para avaliar a eficácia dos inibidores de neuraminidase, família de medicamentos a que o Tamiflu pertence. PESQUISA FAPESP 202 | 9


on-line

Adriano Sumar Cardoso_ Reportagens como esta podem ajudar o aluno na escolha de

Rádio O fôlego de cinco séculos do Império lusitano, segundo Laura de Mello e Souza Nanotubos capazes de suportar 400 vezes seu próprio peso

uma profissão e até servir como

universidade do texas

Nas redes

www . re v istapes q uisa . fapesp . br

uma injeção de ânimo no estudo da matemática. Humildemente agradeço-lhes! Obrigado! (Voos de futuro) Abraão De Barros Leite_ Engraçado, ainda tem pessoas ignorantes que perguntam,”Para que serve a biologia?”. E eu agora respondo, por exemplo, para simplesmente encontrar a cura do câncer. (Proteína antitumoral)

Exclusivo no site

Camila de Moraes_ Este é

x Uma combinação de anticorpos pode ajudar a combater o HIV-1, vírus causador da Aids, segundo publicação na Nature liderada pelo brasileiro Michel Nussenzweig. O segredo pode estar no uso de conjuntos de anticorpos que ataquem diferentes partes do vírus, dificultando sua evolução no organismo. Eles são anticorpos mais potentes do que os habituais, produzidos naturalmente por alguns pacientes humanos e em seguida reproduzidos em laboratório como anticorpos monoclonais. No tratamento mais promissor, camundongos mantiveram níveis virais abaixo do detectável por 60 dias depois de encerrado o tratamento.

o resultado da política da quantidade. Vamos dar mais valor à qualidade dos trabalhos. (O novo mapa da ciência) Salvador César Costa_ Essas pessoas é que fazem valer a pena a vida e a busca pela cura de doenças. (Aliança de alto nível)

Tatiana H. Kawamoto_ O maior prêmio foi conseguir tudo isso sendo mulher em uma época em que as mulheres não podiam nem pisar na academia. [Ciência, palavra (pouco) feminina]

Vídeo do mês Rodovias no lugar das ferrovias aprofundaram a industrialização do interior paulista http://www.youtube.com/user/PesquisaFAPESP

10 | dezembro DE 2012

Assista ao vídeo:

Para ler o código ao lado faça o download do leitor de QR CODE no seu smartphonE

x Uma equipe internacional de pesquisadores produziu fios retorcidos feitos de nanotubos de carbono e recheados de parafina de vela que podem ser a base para o desenvolvimento de músculos artificiais potentes e velozes. De acordo com Márcio Lima, pesquisador associado do NanoTech Institute da Universidade do Texas em Dallas, o músculo artificial pode exercer 400 vezes mais força do que um músculo humano com a mesma espessura. Apesar do resultado animador, será necessário tornar os nanotubos com parafinas compatíveis com o organismo humano para chegar a possíveis aplicações.


WiKi o que é, o que é? Células da glia

Pergunte aos pesquisadores Se as baleias se comunicam, elas têm uma linguagem? Linguagem significa pensamento?

foto wikicommons Ilustracão  daniel bueno

Gerda Maisa Jensen, via Facebook A comunicação acústica

(como nos chamados

das baleias parece

de alarme dos macacos-

sofisticada, complexa e

-vervet, específicos para

plástica. Mas comunicação

leopardos, gaviões ou

é algo bem mais amplo e

cobras). Mas, embora

mais distribuído na

produzam a resposta de

natureza que linguagem.

fuga adequada, é

Comunicação inclui

possível explicar o

qualquer comportamento

processo comunicativo

que altere o

sem supor que cada

comportamento de

chamado decorra de –

outro indivíduo.

ou produza no ouvinte –

Linguagens simbólicas

uma "representação"

são apenas um caso

do predador indicado.

extremo, possivelmente

Discutir a relação entre

restrito aos humanos,

pensamento e linguagem

mas todos os animais se

é mais complexo,

comunicam de alguma

porque depende de

forma (química, acústica,

uma definição mais

visual...), sejam sinais de

rigorosa de “pensamento”.

alarme ou de localização

Se for um “pensamento

de alimento, sejam sinais

simbólico”, existe relação

para indicar receptividade

com a linguagem. Mas

sexual, para enganar

também é preciso definir

predadores ou para

linguagem. Onde há um

coordenar deslocamentos

elemento "simbólico" na

grupais. Alguns casos

comunicação, tendemos

particulares podem

a invocar esse termo num

sugerir “referencialidade”

sentido mais "frouxo".

Mande sua pergunta para o e-mail wikirevistapesquisa@fapesp.br, pelo facebook ou pelo twitter @PesquisaFapesp

As células da glia ou simplesmente glia são células do sistema nervoso central que interagem com os neurônios de modo cada vez mais surpreendente. Há décadas, quando foram identificadas, pensava-se que servissem apenas como suporte para os neurônios. Agora se sabe que as células da glia podem liberar neurotransmissores – moléculas que regulam a atividade dos neurônios, como o glutamato e a serotonina –, desfazendo a ideia de que apenas os neurônios poderiam liberar neurotransmissores. Estudos mais recentes indicaram que as células da glia têm importante papel na transmissão da dor, principalmente na dor neuropática. Geralmente arredondadas, as células da glia não possuem axônios e são 10 vezes mais frequentes que os neurônios. Seu formato lembra estrelas. Quando estão ativadas, essas células parecem mais brilhantes e mais reativas. Em alguns processos fisiológicos, as células da glia podem ser tão ou mais importantes que os neurônios. Estudos mais conclusivos poderão elucidar melhor o envolvimento da glia na manutenção de processos dolorosos. Especialista consultado Marucia Chacur, pesquisadora do Laboratório de Neuroanatomia Funcional da Dor do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo

Especialista consultado Eduardo Ottoni, Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo PESQUISA FAPESP 202 | 11


Estratégias Novo instituto de pesquisa

O sexismo da Nature

Foi inaugurado no

em laboratórios

dia 26 de novembro o

distribuídos pelos

Dois pesquisadores

Instituto de Pesquisa

diversos departamentos

enviaram em agosto

da Santa Casa de

do Hospital Central e da

à Nature um estudo

Misericórdia de

Faculdade de Ciências

criticando a baixa

São Paulo. O prédio,

Médicas da Santa Casa.

proporção de mulheres

localizado no centro

“A Santa Casa conta com

entre os autores de

de São Paulo, tem seis

diversos pesquisadores

artigos da revista. Na

forma consciente –

andares, dos quais

que atuam de forma

seção News and Views,

até porque 54%

três são laboratórios

pulverizada na

observaram, a proporção

deles são mulheres.

de cultura de células,

instituição. A abertura

de mulheres entre os

Mas admitiram que

virologia, histologia e

da sede do instituto

autores de ciências da

há algo de errado em

bioinformática,

de pesquisa irá

vida, físicas e da Terra

seus processos, a ponto

construídos e compostos

possibilitar condensá-los

foi, respectivamente, de

de 86% dos revisores

por equipamentos

em um único local,

17%, 8% e 4%, entre

de artigos serem homens.

adquiridos em grande

onde poderão se

2010 e 2011. Três meses

“Acreditamos que há

parte com apoio da

encontrar e discutir

depois, a revista tomou

um trabalho a fazer”, diz

FAPESP. Um dos

de forma mais intensiva

posição a respeito do

o editorial. Os jornalistas

objetivos do novo

sobre colaborações em

texto – e fez um mea

da revista devem agora

instituto é centralizar

projetos de pesquisa”,

culpa. Num editorial

seguir uma regra.

as pesquisas realizadas

disse Carlos Alberto

intitulado “O sexismo da

Sempre que precisarem

em quase todas as

Longui, coordenador

Nature”, os responsáveis

consultar um pesquisador

áreas clínicas e

científico do Instituto

pela revista garantiram

ou procurar ajuda,

cirúrgicas por médicos,

de Pesquisa da Santa

que seus 70 editores

devem fazer a pergunta:

professores e estudantes

Casa de São Paulo,

e repórteres não

“Quais são as cinco

de pós-graduação

à Agência FAPESP.

discriminam ninguém,

mulheres que eu deveria

pelo menos de

procurar nessa hora?”.

o avanço do apoio à pesquisa Desembolso da FAPESP com fomento - em R$ 938.737.449

Investimento recorde

780.033.468 679.525.814 637.856.798

A FAPESP destinou R$ 938,73 milhões

volume dos recursos – R$ 640,26 milhões

ao fomento à pesquisa científica e tec-

(68%). Essa linha permanente atende à

nológica produzida no estado de São

demanda espontânea dos pesquisadores

Paulo em 2011. O valor é 20% maior que

e engloba bolsas e auxílios regulares. A

o desembolsado em 2010. No acumulado

modalidade de bolsa com maior número

dos últimos 10 anos, o crescimento do

de contratações (2.725) foi iniciação

fomento supera 90%. Esse quase R$ 1

científica. Também cresceu 27,6% o nú-

bilhão foi direcionado a 11.188 bolsas e

mero de bolsas no exterior, totalizando

9.386 auxílios à pesquisa vigentes no

208. Dentre os novos auxílios e as novas

ano. O número de novos projetos con-

bolsas, 1.211 projetos se caracterizam

sociedade sem um crescente intercâmbio

tratados no ano (12.451) foi quase 8% a

como intercâmbio científico de pesqui-

internacional de estudos e pesquisadores.

mais que no ano anterior. Os dados estão

sadores, especialmente em instituições

Por isso, desde meados da década pas-

no Relatório de atividades 2011 da FAPESP,

norte-americanas. “Está cada vez mais

sada, uma das prioridades da FAPESP

lançado no dia 31 de outubro. Dentre as

claro para a comunidade científica mun-

tem sido aumentar esse diálogo”, disse

três linhas de fomento da FAPESP, os

dial que no século XXI é impossível fazer

à Agência FAPESP Celso Lafer, presiden-

programas regulares receberam o maior

avançar o conhecimento em qualquer

te da Fundação.

12 | dezembro DE 2012

549.571.361 521.838.938

2006

2007

2008

2009

2010

2011


Programa de combate a doenças em xeque

1

fotos 1 esa  2 pierre virot / oms  ilustraçãO daniel bueno

No espaço, longe da crise

Representação gráfica de Ariane 6: foguete será mais barato e flexível e deve operar a partir de 2021

A escolha do imunologista

outubro de 2010, o Fundo

norte-americano Mark

tinha a esperança de

Dybul para a direção

expandir seu orçamento

executiva do Fundo

e arrecadar US$ 20

Global de Combate

bilhões para o período

à Aids, Tuberculose

de 2011-13, mas só obteve

e Malária deve dar novo

US$ 11,7 bilhões, o

fôlego à instituição,

suficiente para manter

que é uma das maiores

programas existentes.

financiadoras de

Agora fala-se em reduzir

programas internacionais

o alcance de programas

de saúde. Professor da

como o Affordable

Universidade Georgetown,

Medicines Facility –

Dybul ajudou a criar o

Malaria, que busca

programa de emergência

oferecer em farmácias um

para combate à Aids da

conjunto de drogas para

Presidência dos Estados

tratar a malária a preço

Unidos. Desde sua criação

subsidiado. Em certas

em 2002, o Fundo Global,

localidades da África,

sediado em Genebra,

o programa é a única

Suíça, destinou US$ 24,7

alternativa de tratamento

bilhões para distribuir

contra a malária para

drogas e testes de

uma extensa parcela

Apesar da crise,

complexas, como a

20 ministros da Ciência

exploração de planetas,

de países da Europa

graças a um sistema

diagnóstico. Mas a crise

da população. Segundo

e Canadá aprovaram

inovador de reignição.

financeira global reduziu

o jornal The Guardian,

um orçamento de

“O Ariane 6 nasceu hoje”,

o volume de doações e os

o objetivo do Affordable

€ 10 bilhões para

disse o porta-voz da

problemas se agravaram

Medicines Facility —

programas da Agência

ESA Franco Bonacina,

quando denúncias de

Malaria é garantir o

Espacial Europeia (ESA)

segundo a agência

corrupção envolvendo

fornecimento de um

entre 2013 e 2017.

Associated Press. Os

grupos beneficiados

coquetel de remédios

Os investimentos

ministros também deram

levaram à renúncia do

para evitar que as vítimas

garantem os estudos

sinal verde para que a

diretor Michel Kazatchkine,

da malária se tratem

para construir o

Europa forneça o módulo

no início deste ano.

apenas com uma droga,

novo foguete Ariane 6,

de serviço da nova nave

As ambições do Fundo

a artemisina. O temor

substituto a partir de

da Nasa, o Orion

podem ser reduzidas. Na

é que a doença crie

2021 do Ariane 5, mas

Multipurpose Crew

sua mais recente reunião

resistência ao remédio,

com configuração

Vehicle (MPCV), como

com doadores, em

que perderia eficiência.

mais barata e flexível,

uma contribuição para

e prosseguir com o

as operações da

desenvolvimento do

Estação Espacial

lançador Ariane 5 ME

Internacional entre 2017

adaptado, que deve

e 2020. A decisão é

operar a partir de 2016.

estrategicamente

O objetivo é manter a

importante para a

Europa competitiva no

Europa, pois permitirá a

mercado de foguetes,

cooperação entre as duas

com uma tecnologia

agências em sistemas

capaz de levar cargas

de transporte espacial

mais pesadas (dois

tripulado no futuro.

satélites com um peso

“É a primeira vez que

total de 11 toneladas,

ESA e Nasa trabalham

20% a mais do que a

juntas construindo

capacidade atual) e ser

um veículo desse tipo”,

usada em missões mais

disse Bonacina.

Vítima da malária na Etiópia: coquetel de medicamentos

2

PESQUISA FAPESP 202 | 13


Tecnociência O canto da especiação

Jogar futebol altera o cérebro? Cabecear uma bola com

cérebro de 12 jogadores

frequência, como fazem

profissionais de times

Há tempos a ciência

os jogadores de futebol,

da Alemanha e as

colhe evidências de que

pode produzir pequenas

compararam com

o Lutzomyia longipalpis,

modificações estruturais

registros da cabeça

principal transmissor do

no cérebro, em especial

de oito nadadores de

protozoário causador

na arquitetura da

elite, esporte em que

da leishmaniose visceral

chamada massa branca,

quase não há traumas

nas Américas, não é

popular do vetor da

composta de células da

nessa região do

apenas uma espécie

doença, ter se dividido

glia e axônios mielínicos

corpo. Nenhum dos

de inseto, mas um

em dois grandes

que fazem a

participantes do estudo

complexo de espécies

grupos no Brasil em

comunicação entre as

tinha histórico médico

irmãs, praticamente

função do tipo de canto

diversas áreas desse

de lesões no cérebro.

indistintas do ponto de

de acasalamento dos

órgão vital. Polêmica, a

“Nosso trabalho

vista morfológico, com

machos (PLoS One,

hipótese foi levantada

encontrou diferenças

diferenças perceptíveis

7 de setembro). Uma

por um trabalho feito

na integridade da massa

apenas sob a ótica da

linhagem seria formada

por cientistas da Escola

branca dos jogadores

genética. Um estudo

por uma única espécie

Médica da Universidade

que são similares a

recente confirma essa

de mosquitos que

Harvard, nos Estados

lesões apresentadas por

ideia e aponta um

emitem sons similares

Unidos, e da

pacientes que sofreram

possível mecanismo que

a zumbidos no momento

Universidade Ludwig-

traumas leves no

pode estar por trás desse

da cópula. Outra seria

Maximilians, de Munique

cérebro”, diz Inga

fenômeno. Segundo

composta de várias

(Journal of the American

Katharina Koerte,

trabalho coordenado

espécies muito próximas

Medical Association

principal autora do

por pesquisadores

que produzem cantos

14 de novembro).

estudo. Os cientistas são,

da Fiocruz do Rio de

de corte ritmados. Na

Com o auxílio de um

no entanto, cautelosos

Janeiro, alterações

mosca-da-fruta o gene

aparelho de ressonância

em relacionar as

no gene paralytic podem

paralytic está envolvido

magnética especial,

modificações no cérebro

ter contribuído para o

no controle do som

mais sensível que seus

dos jogadores à prática

mosquito-palha, nome

produzido no ato sexual.

congêneres tradicionais,

de futebol, pois outros

os cientistas produziram

fatores podem estar

imagens detalhadas do

relacionados a elas.

Avanços na arquitetura de partículas

1

Micropartículas, em representação artística, se auto-organizam em novos padrões

14 | dezembro DE 2012

Micropartículas capazes de se auto-or-

de computadores (Nature, 31 de outubro).

ganizar como os átomos em moléculas e

O método consiste em melhorar a arqui-

formar estruturas em novos padrões, até

tetura de partículas coloidais – sistemas

então desconhecidos, foram desenvolvidas

em que um ou mais componentes pos-

por um grupo composto por químicos,

suem diâmetro entre um nanômetro e um

engenheiros e físicos das universidades

micrômetro. Os pesqui­sadores criaram

de Harvard e de Nova York e da empresa

ligações químicas di­re­cio­­­­nadas com o uso

Dow Chemical, nos Estados Unidos. As

de cadeias simples de DNA. Dependendo

micropartículas são uma promessa para a

das interações entre as ligações, os co-

fabricação de avançados materiais ópticos

loides adquirem diferentes propriedades,

e cerâmicos, que poderão ser utilizados,

como dimensão, funcionalidade química

por exemplo, para aumentar a velocidade

e condutividade.


Água potável na tribo

2

fotos 1 Yufeng Wang e Yu Wang/Universidade de Nova York  2 Danielle Dixson  3 NPA  ilustraçãO  daniel bueno

Guarda-costas de coral

Coral nas ilhas Fiji emite odor que leva peixe a espantar alga tóxica

Um equipamento portátil

de até 10 mil horas – cabe

movido a energia solar,

em uma pequena maleta

com capacidade para

de alumínio. A água

desinfetar até 400 litros

retirada de rios, lagos e

de água, foi desenvolvido

igarapés passa primeiro

pelo pesquisador Roland

por uma caixa-d’água com

Ernest Vetter, do Instituto

um filtro grosso que retira

Nacional de Pesquisas

os materiais particulados.

da Amazônia (Inpa), para

Ao ser enviada ao

atender a populações

Água Box, ela é filtrada

ribeirinhas e indígenas

e torna-se potável.

que não têm acesso a

O aparelho de apenas

água potável nem energia

15 quilos, ideal para ser

elétrica. No final de

transportado para locais

outubro, a tecnologia

remotos, foi testado

do equipamento chamado

em cinco comunidades

Água Box, que retira

indígenas próximas ao

da água bactérias e

rio Juruá, no Amazonas,

germes por meio

e mostrou-se eficaz,

de radiação ultravioleta,

prático e de baixo custo.

foi transferida para a

O projeto começou em

O mar nos arredores das

coral emite um sinal ou

empresa Hightech

razão de um pedido feito

ilhas Fiji, na Oceania,

uma pista que faz o

Componentes, que em

ao Inpa pela aldeia

revelou uma sofisticada

peixe remover a alga que

dois anos deve colocar o

indígena Morada Nova,

relação de simbiose

se aproxima”, diz o

produto no mercado.

no final de 2007, que

escondida sob a

biólogo Mark Hay, um

O sistema – composto

precisava de uma solução

profundeza das águas.

dos autores do estudo.

por uma entrada para a

para o tratamento da

Diante da proximidade

“O peixe não responde à

energia solar, uma bateria

água consumida na

da alga tóxica

presença da alga, mas a

de 12 volts, um reator e

comunidade, bastante

Chlorodesmis fastigiata,

essa dica.” A espécie de

um tubo que envolve a

contaminada e causa

os corais da região

coral estudada foi a

lâmpada UV, com vida útil

de várias doenças.

enviam um sinal químico,

Acropora nasuta, que

um tipo de odor, a peixes

cresce rapidamente e

que habitam suas

proporciona boa parte

reentrâncias e, assim,

da estrutura dos recifes.

esses vizinhos de

Os peixes que saíram em

quarteirão entram em

socorro do coral amigo

ação em questão de

eram das espécies

minutos e espantam a

Gobiodon histrio e

ameaça. Cientistas do

Paragobiodon

Instituto de Tecnologia

echinocephalus. Os

da Geórgia, dos Estados

cientistas também

Unidos, acompanharam

estudaram o conteúdo

por três dias esse

do estômago dos peixes

mecanismo de defesa e

e constataram que o

constataram que o

G. histrio chega a comer

expediente reduz em

a alga tóxica enquanto

30% a presença da

o P. echinocephalus

planta marinha

apenas a morde. No

agressora nos corais e

entanto, o principal

diminui em até 80% os

alimento dos peixes

danos normalmente

são o muco e outras

causados por esse tipo

algas que se encontram

de situação (Science,

nos corais e o

9 de novembro).

zooplâncton presente

“Demonstramos que o

na coluna de água.

Equipamento testado em comunidade indígena no estado do Amazonas

3

PESQUISA FAPESP 202 | 15


Sexo com os neandertais O convívio entre os Homo sapiens e os

mil anos atrás no Oriente Médio para que

siderando um período de 130 mil anos de

neandertais, hominídio extinto bastante

os humanos atuais de origem não africana

coexistência, cerca de 10 mil indivíduos

próximo do homem moderno, é um dos

tenham entre 1% e 4% de DNA nuclear

das duas espécies mantiveram contato,

temas mais polêmicos da evolução huma-

proveniente dos neandertais, conforme

embora um número muito menor tenha

na. Um estudo de dois matemáticos, o

revelado por um estudo recente. Segundo

participado efetivamente do processo de

brasileiro Armando G.M. Neves, da Uni-

o trabalho, na melhor das hipóteses a cada

troca genética. O estudo propõe ainda que

versidade Federal de Minas Gerais (UFMG),

12 gerações um humano e um neandertal

os neandertais poderiam ser tão aptos

e o italiano Maurizio Serva, da Universida-

geraram descendentes. Na pior, essa taxa

quanto os humanos e que sua extinção,

de de Aquila, calculou com que frequência

sobe para uma troca de genes a cada 77

cerca de 30 mil anos atrás, pode ter sido

as duas espécies trocaram genes até 45

gerações (PLoS One, 12 de outubro). Con-

um evento puramente casual.

Ilustração de família de neandertais: trocas de genes com humanos foram raras

1

1

Novo tipo de matéria no LHC

Bactéria produz combustível Alterações genéticas

universidade. Essa

na bactéria Ralstonia

bactéria é conhecida

eutropha conduzidas

entre os cientistas por

por pesquisadores do

produzir bioplástico

Instituto de Tecnologia

polihidroxibutirato

Massachusetts (MIT),

(PHB) em condições

nos Estados Unidos,

de estresse nutricional

tornaram esse

e na presença de

microrganismo produtor

carbono em excesso.

de isobutanol, um tipo

Para produzir isobutanol

de álcool semelhante

com a R. eutropha foi

à gasolina que pode

necessário remover do

ser usado como

genoma os genes

combustível. Para

responsáveis pela

fazer isso, a R. eutropha

produção do bioplástico.

consome dióxido de

Depois disso, uma das

Dois milhões de

Review B, no prelo).

carbono (CO2), entre

linhagens mutantes

choques entre prótons

Os cientistas

outros materiais

produziu 150 miligramas

e íons de ferro a

perceberam que alguns

como açúcares, ácidos

de isobutanol por litro

velocidades altíssimas

pares de partículas

orgânicos e gorduras.

de cultura. Com outras

podem ter produzido

resultantes das colisões

“A bactéria alterada faz

modificações na

no interior do Grande

se distanciavam umas

o trabalho duplo de

produção de enzimas

Colisor de Hádrons

das outras de uma forma

limpar o ambiente e

da bactéria, os

(LHC), nos arredores

particular, como se

produzir combustível”,

pesquisadores do MIT

de Genebra, um novo

apresentassem algum

diz Christopher Brigham,

conseguiram, por um

tipo de matéria, cuja

tipo de correlação.

do MIT, um dos

período de 50 dias

existência até agora

“De alguma maneira,

pesquisadores da

de cultivo da bactéria,

se restringia ao campo

elas voavam na mesma

teórico. Pesquisadores

direção apesar de não

por litro. “Nosso

ligados ao experimento

sabermos como elas

trabalho foi uma

CMS acreditam ter

trocavam informação

prova de conceito,

observado a assinatura

sobre esse parâmetro”,

conseguimos alterar

típica da presença do

diz o físico Gunther

a bactéria para

chamado condensado

Roland, do Instituto

produzir isobutanol”,

de vidros de cor,

de Tecnologia de

diz a brasileira Claudia

um tipo especial de

Massachusetts (MIT),

Santos Gai, agrônoma

plasma de glúons e

um dos autores do

formada e doutorada

quarks de importância

estudo. “Isso

pela Universidade

para a física de

surpreendeu muita

altas energias (Physical

gente, inclusive nós.”

16 | dezembro DE 2012

Grupo de bactérias Ralstonia eutropha em meio de cultura: produção de isobutanol

14 gramas de isobutanol

de São Paulo (USP) 2

e pós-doutoranda no MIT.


Símios e crise da meia-idade

Dosímetro de radiação utiliza emissão de luz

A chamada crise da

Um equipamento para

corrente elétrica ou luz

meia-idade não é um

medir doses de radiação

de LEDs e pode servir ao

fenômeno exclusivo

em pessoas ou em

monitoramento de

da psiquê humana.

ambientes foi

pacientes em exames de

Um estudo feito por

desenvolvido pela física

raios X, medicina

primatologistas e

Sonia Tatumi, da

nuclear, ou radioterapia

psicólogos da Europa

Universidade Federal de

para tratamento de

e do Japão sugere que

São Paulo (Unifesp), no

câncer. Segundo Sonia,

os grandes macacos

campus Baixada Santista,

há um dosímetro

também experimentam

com os professores

comercial de alfa-

um certo estado de

Marcio Yee e Juan Carlos

-alumina dopada com

depressão quando

Mittani, da Faculdade de

carbono, mas ele é

atingem essa fase

Tecnologia (Fatec) de

fabricado por um

da vida (PNAS, 19 de

São Paulo. Trata-se de

processo de crescimento

novembro). O

um dosímetro

de cristal muito caro, que

trabalho analisou

luminescente que pode

exige altas pressões e

o comportamento de

ser usado na área da

temperaturas. “Nós

508 chimpanzés e

saúde ou em usinas

optamos por processos

orangotangos de várias

nucleares, constituído de

mais modernos,

cristais produzidos a

eficientes e baratos”, diz.

partir do óxido de

“Nesses, a dopagem

alumínio dopado com

pode ser feita de uma

terras-raras (itérbio,

forma simples e bem

érbio, neodímio e

controlada, em relação

idades que vivem em

3

imagens 1 nasa  2 Christopher Brigham / MIT 3 wikicommons  ilustraçãO  daniel bueno

zoológicos, santuários

Chimpanzé: menos feliz ao atingir o meio da vida, como os humanos

naturais e centros de

de felicidade na idade

pesquisa e concluiu que

avançada. “Mostramos

o grau de bem-estar

que a crise da meia-idade

dos animais se encaixa

do ser humano não é

praseodímio) e

tanto à quantidade

na mesma “curva de

causada por hipotecas,

semimetais. “Notamos

quanto à pureza dos

felicidade” em formato

separações conjugais,

que esses dopantes

dopantes.” O projeto

de U usada para

telefones celulares ou

formam nanocristais, que

rendeu um depósito de

caracterizar o

outras coisas da vida

são essenciais ao

patente no Instituto

comportamento humano:

moderna”, diz Alexander

aumento da emissão da

Nacional de Propriedade

há um pico de alegria

Weiss, da Universidade

luminescência”, conta

Industrial (INPI). “O

na juventude, seguido

de Edimburgo, autor do

Sonia. O novo tipo de

dosímetro já está pronto

de uma queda na

trabalho. “Os macacos

dosímetro utiliza a

e poderá se tornar um

satisfação pessoal, e uma

não têm nada disso e

luminescência emitida

produto comercial”,

retomada do sentimento

também têm essa crise.”

após estímulo de

diz a pesquisadora.

Faro canino inspira nariz artificial A alta sensibilidade

emanado de explosivos.

analisado quando ele

olfativa dos cachorros

A pesquisa coordenada

recebe um feixe de laser.

inspirou pesquisadores da

pelos professores Carl

O projeto do aparelho

Universidade da

Meinhart e Martin

imita em tamanho

Califórnia, em Santa

Moskovits utiliza

reduzido o mecanismo

Bárbara (UCSB), nos

microcanais que

biológico da camada do

Estados Unidos, a criar

absorvem e concentram

muco que existe no

um aparelho capaz de

moléculas do ar. Essas

sistema olfativo dos cães.

identificar no ar, em

moléculas interagem

O uso do aparelho

tempo real, porções

com nanopartículas

pode se estender para

da ordem de uma parte

existentes nos

outras áreas como

por bilhão de

microcanais que

diagnóstico de doenças

2,4-dinitrotoluene

amplificam o sinal do

e apreensão de drogas

(2,4-DNT), substância

espectro eletromagnético

(Analytical Chemistry,

presente no vapor

refletido do material a ser

20 de novembro). PESQUISA FAPESP 202 | 17


Sobre

gatos, fótons e

mundos estranhos Para entender transição do mundo quântico para o clássico, físicos brasileiros medem troca de informação entre partículas de luz e o ambiente |

Ricardo Zorzetto


capa

foto lauradaviña

P

ergunte a um físico de que é feito o Universo e provavelmente ouvirá que tudo, das estrelas aos seres vivos, é formado por partículas atômicas que apresentam um comportamento bastante exótico, descrito à perfeição pelas leis da mecânica quântica. No dia a dia não se notam propriedades estranhas das partículas, como a capacidade de se estar em mais de um lugar do espaço ao mesmo tempo, porque elas interagem com o ambiente ao redor. O meio no qual as partículas se encontram imersas, exatamente por ser muito complexo, absorve essas características quânticas e as dissipa de modo que não podem mais ser recuperadas. Perdidas essas propriedades, os componentes mais elementares da matéria passam a se comportar como qualquer objeto visível a olho nu. Mas em um experimento com partículas de luz realizado meses atrás na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) um grupo de físicos brasileiros demonstrou que nem sempre a informação quântica que chega ao ambiente é perdida para sempre. Ou, ao menos, não imediatamente. Sob condições especiais, parte da informação é retida e talvez possa até ser recuperada. “É como se a interação da partícula com o entorno deixasse uma impressão digital no ambiente”, explica o físico Luiz Davidovich, que, ao lado de Paulo Henrique Souto Ribeiro e Stephen Walborn, coordenou a equipe que conduziu os testes. Apresentada na edição de 12 de outubro da revista Physical Review Letters, a constatação de que a perda de informação não é completa pode despertar o interesse de físicos e especialistas em teoria da informação por dois motivos. O primeiro é de ordem prática. Como a informação não se esvai completamente, nem de uma só vez, pode se tornar um pouco mais simples construir sistemas mais estáveis, que permitam usá-la para realizar cálculos, caso dos computadores quânticos, ou


Max Born, as ondas indicavam a probabilidade de uma partícula ser encontrada em uma região do espaço-tempo. Incomodado com certas interpretações muitas vezes associadas a essa distribuição de possibilidades – que atribuíam, por exemplo, a incerteza sobre a posição de uma partícula à ignorância do observador, mas não a uma propriedade objetiva da partícula –, Schroedinger tentou demonstrar as consequências absurdas que poderiam decorrer. Para exemplificar a estranheza dos resultados, Schroedinger sugeriu em 1935 que se imaginasse o que aconteceria com um gato colocado em uma caixa hermeticamente fechada contendo um punhado de material radioativo, um detector de radiação, um martelo e um recipiente de vidro com um gás letal. Quando decai, a partícula libera radiação e aciona o detector, que, por sua vez, ativa o mecanismo que faz o martelo quebrar o frasco de veneno. Como consequência, o gato morre.

A

complicação viria a seguir. Supondo que houvesse uma probabilidade de 50% de uma partícula decair a cada hora, haveria uma probabilidade igual (também de 50%) de o gato estar vivo ou estar morto passados 60 minutos do início do experimento. Segundo Schroedinger, o caráter probabilístico da física quântica daria margem a uma interpretação de que, ao fim do teste, o gato não estaria nem vivo nem morto, mas em uma combinação das duas condições (morto e vivo) ao mesmo tempo – os físicos chamam essa situação contraintuitiva de superposição de estados, possível apenas no mundo quântico. Com essa situação absurda, Schroedinger pretendia mostrar que era necessário interpretar com cuidado a mecânica quântica que ele havia ajudado a formular.

ilustrações  catarina bessell

para transmiti-la com segurança, por meio da criptografia quântica. É que o funcionamento desses sistemas depende diretamente das propriedades quânticas das partículas, razão por que os protótipos já produzidos – até mesmo o que parece ser o primeiro computador quântico comercial, construído pela empresa canadense D-Wave Systems (ver Pesquisa FAPESP nº 193) – precisam ser mantidos a temperaturas baixíssimas e isolados o máximo possível da influência do ambiente que os cerca. Já o segundo motivo é de ordem teórica – e até filosófica. Conhecer melhor como as partículas atômicas interagem com o meio pode contribuir para estabelecer os limites (de tamanho, massa ou energia) que separam o mundo clássico do quântico. Em outras palavras, saber até que ponto valem as leis da mecânica quântica. Essa, a propósito, é uma questão tão perturbadora quanto antiga. Segundo os físicos, nada nessa teoria que começou a ser formulada há pouco mais de Schroedinger um século indica haver esse limiimaginou em 1935 te. Desse modo, se as partículas individualmente apresentam caum experimento racterísticas quânticas, provadas e comprovadas pelos experimentos em que um gato já realizados, tudo o que é feito de partículas (plantas, animais, planeestaria morto e tas e estrelas) também deveria ter vivo ao mesmo um comportamento quântico, como o do gato simultaneamente vivo e tempo para morto do experimento mental de Erwin Schroedinger. ressaltar o caráter Em 1926 esse físico austríaco formulou uma equação em que probabilístico da as partículas eram tratadas como física quântica ondas. Segundo seu colega alemão

20 | dezembro DE 2012


A interferência quântica De forma similar a ondas na superfície de um lago, a luz atravessa uma fenda dupla e se recombina como se em cada buraco houvesse uma fonte luminosa. Essa interação gera os chamados padrões de interferência

Tela com a fenda dupla

Onda

Interferência destrutiva

Padrão de interferência na tela

Curva da intensidade de distribuição

escuro

infográfico  daniel das neves  fonte  Encyclopaedia Britannica, Inc.

claro escuro claro escuro Fonte de Luz

claro escuro claro escuro claro escuro

Interferência destrutiva Interferência construtiva

Nesses quase 80 anos não se encontraram furos na teoria que permitissem desfazer esse aparente paradoxo. A mecânica quântica é considerada uma das teorias mais testadas e bem-sucedidas da física, capaz de predizer os fenômenos com uma precisão jamais vista antes. Juntas, ela e a teoria da relatividade geral, formulada por Einstein, são os pilares da física moderna. “Há consenso entre os físicos de que o mundo é quântico”, comenta George Matsas, físico teórico da Universidade Estadual Paulista (Unesp). “Mas não se sabe como recuperar o mundo clássico a partir de uma descrição puramente quântica.” Ao menos, não de modo que a solução não pareça mágica aos olhos de um leigo. À medida que a sofisticação da mecânica quântica fazia esvanecer a conexão entre o mundo das partículas e a realidade acessível às pessoas, diversas tentativas de reconciliação foram propostas. Logo que surgiu o paradoxo, o próprio Born teria afirmado que o impasse desapareceria ao abrir a caixa: o mero ato de observar eliminaria a superposição de estados e o gato se revelaria simplesmente morto ou vivo. Outras ideias se seguiriam. A explicação mais aceita de por que não se observam propriedades quânticas em objetos macroscópicos foi apresentada pelo físico alemão Heiz-Dieter Zeh no início dos anos 1970. Ele teria observado que os sistemas macroscópi-

Interferência construtiva

cos que compõem o mundo clássico, regido pelas leis da física de Newton, jamais estão isolados do ambiente, com o qual interagem continuamente. Assim, esses sistemas não poderiam ser descritos pelas equações de Schroedinger, aplicáveis somente a sistemas fechados. A consequência dessa conclusão foi verificada tempos mais tarde por Wojciech Zurek, físico polonês do Los Alamos National Laboratory (LANL), nos Estados Unidos. Nessa interação, a informação do sistema quântico escapa para o ambiente por meio de um fenômeno que Zurek chamou de decoerência.

P

ara entender o que é a perda de coerência, primeiro é preciso saber o que é coerência, uma propriedade das ondas, como as que se propagam quando uma pedra é atirada na água ou uma corda é agitada. Um teste clássico da física, o experimento da fenda dupla, que o inglês Thomas Young usou há mais de 200 anos para investigar se a luz é composta de ondas ou partículas – a mecânica quântica mostraria que é simultaneamente ambas –, pode ajudar na compreensão. Uma forma de fazer o experimento é acender uma luz monocromática diante de duas placas. Na primeira, mais próxima da lâmpada, são feitas duas fendas paralelas que permitem parte da luz passar e iluminar a segunda placa, um pouco mais distante. Por ter natureza onPESQUISA FAPESP 202 | 21


dulatória, assim como as ondas da superfície de um lago, a luz ao atravessar o primeiro anteparo se recombina como se em cada fenda houvesse uma fonte de luz. Quando a crista de uma onda encontra a de outra, elas se somam gerando uma crista mais alta – o mesmo acontece quando dois vales se encontram. Já quando uma crista coincide com um vale, há um efeito destrutivo e eles se anulam. A combinação de cristas e vales produz faixas iluminadas e escuras que se intercalam no segundo anteparo – é o que os físicos chamam de padrão ou franja de interferência. “Coerência é a propriedade que os sistemas têm de produzir esse padrão de interferência”, explica Davidovich.

N

o século passado, porém, os físicos descobriram que o que acontece com as ondas também ocorre com átomos ou partículas atômicas, como os elétrons. Lançados um a um aleatoriamente contra o primeiro anteparo, os átomos produzem um padrão de interferência semelhante ao da luz. Para a mecânica quântica, isso só se explica se cada átomo passar simultaneamente pelas duas fendas. Quando o que se deseja observar é o padrão de interferência que se forma na segunda placa, o experimento funciona como a caixa lacrada com o gato de Schroedinger. Diversos experimentos já demonstraram que, quando se usa qualquer tipo de detector para tentar saber por qual das duas fendas a partícula de fato passou, a resposta é sempre única: a partícula passa pela fenda da direita ou da esquerda. Quando esse tipo de medição é feita, porém, a franja de interferência

desaparece do segundo anteparo e, portanto, perde-se a coerência. Na analogia com o experimento do gato, o uso do detector nas fendas corresponde a abrir a caixa. Os físicos entendem essa segunda medição – ou a abertura da caixa para espiar o gato – como sendo a interação do sistema com o ambiente. Antes isolado, o sistema mantinha um comportamento quântico. Nesse estado, o fóton ou o elétron, por exemplo, podia passar pelas duas fendas ao mesmo tempo. Quando a coerência se desfaz, essa capacidade some e as partículas passam a exibir comportamento clássico (atravessam uma das duas). Nessa transição para o mundo clássico, perde-se informação quântica, como a que permitia a partícula estar em dois lugares ao mesmo tempo – ou o gato de Schroedinger morto e vivo. “Não há como reproduzir o mundo clássico sem perder informação do mundo quântico”, comenta Matsas. Para Zurek, a decoerência ocorre porque o ambiente faz medições sobre os sistemas quânticos o tempo todo. Assim como a tentativa de descobrir por qual fenda passou o elétron, essas medições eliminam informações ou estados quânticos mais frágeis e deixam apenas os mais estáveis, que são os que se percebem no mundo clássico. Zurek deu o nome de darwinismo quântico a essa destruição seletiva de informação. Em um artigo publicado em 2002 na Los Alamos Science, revista de divulgação do LANL dedicada a abordar temas da fronteira da ciência, Zurek escreveu: “Uma forma de compreender a existência objetiva induzida pelo ambiente é reconhecer que os observadores – em espe-

Na fronteira dos dois domínios Efeitos quânticos foram observados em objetos tão grandes como uma buckyball, mas não em vírus. Tamanho pode não ser um limite para entrar no mundo quântico – desde que um objeto se mantenha isolado do ambiente

clássico

Quântico

Núcleo atômico

Vírus

Chip de computador partícula de Pó

Átomo

Próton

fio de cabelo (espessura)

10-15 22 | dezembro DE 2012

10-12

10-9

10-6

10-3

1

Metros

infográfico  daniel das neves  fonte  newscientist

C60 (Buckyball)


cial, os humanos – não medem nada diretamente. Em vez disso, a maior parte dos dados que obtemos sobre o Universo é adquirida quando as informações sobre os sistemas que nos interessam são interceptadas pelo ambiente”.

C

omplicado? Muitos físicos também acham. O próprio Einstein não se sentia confortável com muitas das interpretações que a mecânica quântica oferecia sobre o mundo. Certa vez caminhando pelos jardins da Universidade Princeton com seu biógrafo, o físico e historiador da ciência Abraham Pais, Einstein teria comentado algo como: “Você acredita mesmo que a Lua só está lá quando olhamos para ela?”. No livro Introducing quantum theory – A graphic guide, o escritor Joseph P. McEvoy relata que em dezembro de 2000 o físico norte-americano John Wheeler, estudioso da mecânica quântica que trabalhou com um dos expoentes na área, o dinamarquês Niels Bohr, e ajudou a desenvolver as bombas atômica e de hidrogênio, lhe escreveu por ocasião do 100o aniversário da descoberta do quantum. Em 1900, o físico alemão Max Planck chegou a uma conclusão que levaria ao desenvolvimento de toda a mecânica quântica. Planck verificou que na natureza a energia era trocada entre átomos e a radiação em quantidades discretas (pacotes) que ele chamou de quanta, plural de quantum. No texto a McEvoy, Wheeler dizia: “Para celebrar, eu proporia o título: ‘O Quantum: a Glória e a Vergonha’. Por que glória? Porque não há área da física que o quantum não tenha iluminado. A vergonha porque ainda não sabemos ‘por que razão o quantum?’”. No mundo macroscópico, fótons como os vin-

Não há limite de tamanho, massa ou energia que estabeleça uma divisão entre o mundo quântico e o clássico. Mas hoje se tem uma ideia mais precisa dos fatores que influem nessa transição

dos das estrelas – e são muitos os fótons que, por exemplo, chegam à Terra – estão colidindo o tempo todo com os objetos. “É como se fizessem medições que destroem a informação quântica e nos permitem ver o mundo como clássico”, diz Davidovich, que há quase três décadas investiga os fenômenos complexos da mecânica quântica. Entre eles, a perda de coerência, que determina a passagem do mundo quântico para o clássico. Até hoje não se observou um limite de tamanho, massa ou energia que estabeleça uma espécie de fronteira entre um mundo e outro. Em um encontro que reuniu os grandes físicos do mundo em 1927, Niels Bohr propôs que essa fronteira variaria de um sistema para outro. Na Áustria anos atrás a equipe do físico Anton Zeillinger demonstrou que moléculas de fulereno, formadas por 60 átomos de carbono e com estrutura semelhante à de uma bola de futebol, mantêm um comportamento quântico (como onda e partícula) no teste da fenda dupla. O grupo já anunciou que planeja repetir o teste com vírus, bem maiores. Embora não se conheçam esses limites, os físicos hoje têm uma ideia mais precisa dos fatores que influenciam essa transição. Quando foi para o laboratório do físico francês Serge Haroche na École Normale Supériere, em Paris, em 1986, Luiz Davidovich começou a investigar essa questão. Com a equipe da França, ele e o colega brasileiro Nicim Zagury, também da UFRJ, começaram a planejar um sistema que permitisse

PESQUISA FAPESP 202 | 23


simular a medição que o ambiente faz sobre os sistemas quânticos. Dez anos mais tarde, Davidovich publicou com seus colegas franceses um artigo na Physical Review A detalhando como o sistema poderia ser construído de modo a medir a informação do sistema quântico e acompanhar sua transformação em clássico devido ao efeito do ambiente. A ideia era aprisionar fótons de uma luz muito pouco energética (na frequência das micro-ondas) que se encontram em superposição de estados no interior de uma cavidade feita com espelhos especiais – essa superposição é análoga a ter uma cavidade “acesa”, com fótons, e “apagada”, sem fótons, ao mesmo tempo – e em seguida fazer um átomo atravessá-la. Quando passa pela cavidade, o átomo altera a energia dos fótons, que, por sua vez, alteram o nível de energia do átomo. Ao avaliar o átomo que saiu da cavidade, os pesquisadores conseguiriam conhecer as características dos fótons aprisionados – se estavam ou não em uma superposição de estados. Segundo Davidovich, nesse experimento, realizado no mesmo ano em que foi publicado o artigo na Physical Review A, o átomo, que é transparente à luz aprisionada, funciona como uma espécie de “ratinho quântico” que os pesquisadores enviam para a caixa do gato de Schroedinger. “É uma forma de espiar o gato

“Gostaria de estudar as impressões digitais que objetos macroscópicos deixam no ambiente”, diz Davidovich

24 | dezembro DE 2012

sem abrir a caixa”, diz Davidovich. “Dependendo de como sai o rato quântico, podemos saber se o gato estava ou não em uma superposição de dois estados – morto e vivo”, explica. Esse experimento demonstrou que o tempo em que ocorre a perda de informação quântica – ou tempo de decoerência – é inversamente proporcional ao número de fótons aprisionados na cavidade e integrou uma série de trabalhos que conferiu a Haroche o Prêmio Nobel de Física de 2012 (honraria dividida com o americano David Wineland, da Universidade do Colorado, também pesquisador dessa área). Essa relação que encontraram explica por que não se observam objetos macroscópicos em mais de um lugar ao mesmo tempo. Como são feitos por um número muito elevado de partículas, esses objetos perdem suas características quânticas num tempo absurdamente curto.

A

nos atrás Wojciech Zurek demonstrou que à medida que o sistema quântico interage com o meio que o envolve e perde informação – ou seja, sofre decoerência –, registros dessa informação ficam no ambiente. Agora, no estudo da Physical Review Letters, Davidovich e os físicos Souto Ribeiro, Walborn, Osvaldo Jimenez Farias, Gabriel Aguillar e Andrea Valdéz-Hernández mostraram em um experimento com fótons que o mesmo ocorre com uma propriedade fundamental para a computação e a criptografia quânticos chamada emaranhamento. O emaranhamento ou entrelaçamento é um elo quântico que partículas (ou conjunto de partículas) mantêm entre si, mesmo quando distantes umas das outras. Essa conexão, tão intensa quanto frágil, é tal que as modificações sofridas por algumas das partículas refletem nas outras (ver Pesquisa FAPESP nos 102, 123 e 136). Usando um feixe de laser que incide sobre uma série de cristais e filtros, o grupo da UFRJ conseguiu observar o que ocorre com o entrelaçamento num ambiente bem simples – extremamente mais simples do que o ambiente em que vivemos – sobre o qual tinham completo controle e podiam realizar medições e saber quanto de informação foi perdida por decoerência. “Talvez esse seja o único sistema físico em que se consegue medir completamente o estado do ambiente”, conta Souto Ribeiro. Ao atravessar o primeiro cristal, o feixe de laser contendo trilhões e trilhões de fótons gera apenas um par de fótons entrelaçados – no caso, os pesquisadores entrelaçaram o plano de vibração da luz, a polarização, que podia ser vertical ou horizontal. Após essa primeira etapa, cada um dos fótons segue um caminho distinto rumo ao detector. Antes que a medição da polarização seja conferida no final do percurso, um dos fótons passa por outra série de cristais e filtros e ganha mais um tipo de informação, codificada no caminho que percorreria em seguida (direita ou esquerda). É como


Impressões quânticas no mundo clássico Experimento mostra que fótons emaranhados podem manter parte de suas propriedades quânticas mesmo depois de terem interagido com o ambiente externo A 6. DETECTORES

FEIXE LASER

interferômetro

B

fonte  Paulo Henrique Souto Ribeiro

2. INTERFERÔMETRO

3. AMBIENTE SIMPLES

Enquanto os fótons A vão direto para um filtro e um detector, as partículas B se dirigem antes para um interferômetro. Se sua polarização for horizontal, seguem o caminho 1. Se vertical, passam pelo 2. Caso exiba uma superposição quântica coerente de ambos os estados (seja horizontal e vertical simultaneamente), os fótons B tomam os dois caminhos ao mesmo tempo

A interação com um ambiente externo simples é modelada por placas colocadas nos caminhos do interferômetro. Elas alteram a polarização de maneira controlada e podem pôr fim à superposição quântica dos fótons B, um fenômeno denominado decoerência. Se o contato com o ambiente leva à perda de coerência quântica, as partículas de luz passam apenas por um dos caminhos

se os fótons tivessem interagido com o ambiente externo ao sistema e transmitido para ele parte da informação. Na analogia com o gato de Schroedinger, essa transferência de informação seria o equivalente a moléculas de odor escaparem da caixa indicando se o gato está morto ou ainda vive.

O

analisador de caminho

Detector

Caminho 2

1. FÓTONS GÊMEOS A passagem de um laser por dois cristais cria pares de fótons, A e B. Uma propriedade dos fótons, a polarização, apresenta emaranhamento quântico. Isso significa que, antes de ser medida, a polarização (vertical e/ou horizontal) não tem valor definido. No entanto, quando se registra a polarização de A, descobre-se imediatamente que a de B tem o mesmo valor – e vice-versa

Caminho 1

filtro de polarização

s físicos observaram que o entrelaçamento inicial entre a polarização dos dois fótons começou a desaparecer depois da interação com o ambiente. Mas, em alguns casos, surgiu no final uma forma distinta de emaranhamento, em que os dois fótons se apresentavam emaranhados com o ambiente. Segundo os pesquisadores, ao conhecer a parte da informação que é perdida para o ambiente, talvez seja possível recuperá-la. “Ainda não fizemos isso, mas vimos que é possível”, afirma Davidovich. “Nossa ideia é tentar entender o emaranhamento como sendo uma grandeza física qualquer, como a energia ou a velocidade, para tentarmos estabelecer leis de evolução dessa quantidade”, diz Souto Ribeiro, que coordenou, com o colega Walborn e Amir Caldeira e Marcos Oliveira, da Unicamp, outro estudo publicado em novembro na Physical Review Letters mostrando que aqueles estados mais estáveis previstos por Zurek

Por fim, os fótons são registrados pelos detectores. São contadas apenas as partículas A e B que chegam simultaneamente. Isso garante que se trata de pares emaranhados, com informação quântica

4. FILTROS DE POLARIZAÇÃO

5. ANALISADOR DE CAMINHo

Para obter toda a informação sobre como o par de fótons está emaranhado, os físicos repetem o experimento várias vezes, ajustando de maneiras diferentes filtros que analisam os valores possíveis de polarização dos fótons, um valor de cada vez

A polarização dos fótons B passa por uma análise adicional, que determina quantos deles percorreram os caminhos 1 ou 2 e quantos atravessaram ambos. Combinando essas medidas com as dos fótons A, os físicos descobriram uma situação especial em que o emaranhamento entre as polarizações de A e B passa a ser compartilhado com o ambiente

podem se tornar evidentes antes mesmo que o sistema se torne clássico. Para Souto Ribeiro, o fato de ter funcionado em um ambiente simples indica que também deve dar certo com ambientes mais complexos, uma vez que as equações que descrevem a interação com ambientes simples são exatamente as mesmas que descrevem com os complexos, nos quais é difícil realizar medições. Davidovich considera que ele e seus colaboradores apenas começaram a trilhar um caminho novo. “O experimento que fizemos nos dá apenas informação parcial sobre o que acontece porque o objeto está longe de ser considerado macroscópico”, explica. “Gostaria de estudar as impressões digitais que objetos macroscópicos deixam no ambiente.” O próximo passo deve ser explorar, do ponto de vista teórico, o que ocorreria nesse caso. “Planejar um experimento para observar isso”, diz, “seria extremamente difícil”. n

Artigos científicos FARIAS, O.J. et al. Observation of the emergence of multipartite entanglement between a bipartite system and its environment. Physical Review Letters. 12 out. 2012. CORNELIO, M.F. et al. Emergence of the pointer basis through the dynamics of correlations. Physical Review Letters. 9 nov. 2012. PESQUISA FAPESP 202 | 25


Ronaldo Pilli 26 | dezembro DE 2012


entrevista

Da ousadia à inovação Fabrício Marques

A carreira acadêmica de Ronaldo Aloise Pilli, pró-reitor de Pesquisa da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), tangencia a história dessa instituição de ensino e pesquisa que se tornou uma das mais importante do país. Segundo o ranking internacional de universidades da Times Higher Education, situa-se entre o 251º e o 275º lugar,

idade 57 anos especialidade Química orgânica formação Universidade Estadual de Campinas (graduação e doutorado) Universidade da Califórnia, Berkeley (pós-doutorado) instituição Universidade Estadual de Campinas

só perdendo, no Brasil, para a Universidade de São Paulo, na 158ª posição. Pilli ingressou na Unicamp em 1973 na sétima turma de graduação do Instituto de Química (IQ), doutorou-se logo a seguir, orientado por um dos muitos professores estrangeiros que ajudaram a fundar a universidade, o norte-americano Albert Kascheres, e se tornou professor titular do IQ em 2000, depois de fazer um pós-doutorado na Universidade da Califórnia em Berkeley. Especialista em química orgânica, com ênfase na síntese de fármacos e de produtos naturais, é responsável por mais de uma dezena de patentes – o que não chega a ser surpreendente numa universidade que só perde para a Petrobras em número de pedidos de patentes entre 2004 e 2008 no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi). O trabalho em inovação não rivalizou com a carreira de professor: Pilli formou 40 mestres e doutores na área de química orgânica. Desde 2009 à frente da Pró-Reitoria, Pilli liderou um conjunto de estratégias voltado para internacionalizar ainda mais a pesquisa da instituição. Uma delas foi um programa para atrair professores visitantes estrangeiros interessados em passar dois anos na Unicamp com o aceno de participação em um concurso para ingresso na carreira docente ao final da temporada. Anúncios em revistas científicas internacionais atraíram dezenas de interessados – onze deles foram selecionados e estão em Campinas. Também ajudou a reorganizar a infraestrutura de pesquisa da instituição, ampliando o apoio PESQUISA FAPESP 202 | 27


a docentes em início de carreira e coordenando a criação de laboratórios para pesquisa multidisciplinar. Casado, pai de dois filhos, às vésperas de se tornar avô, Pilli resumiu a evolução da pesquisa na Unicamp na entrevista que concedeu a Pesquisa FAPESP: O senhor ingressou na Unicamp como aluno de graduação em 1973. O que mudou na pesquisa da instituição nessas quase quatro décadas? A Unicamp nasceu de uma ideia arrojada: foi implantada sob a égide do ensino e da pesquisa como atividades indissociáveis. Aos poucos a extensão também se estabeleceu como uma atividade-fim. Naquela época isso não era o padrão, ao menos para as universidades brasileiras. A Unicamp estabeleceu seu quadro de professores olhando fortemente para a capacidade de desenvolver pesquisa e ensino de graduação e pós-graduação – isso é outra característica bastante atual. Com isso destacou-se rapidamente em certas áreas, porque conseguiu reunir pesquisadores estrangeiros e brasileiros num espaço de tempo relativamente curto. Em 1966 a universidade iniciou sua implantação. Eu cheguei aqui em 1973 e em 1976, quando terminei a graduação, a Unicamp já era muito forte na área de engenharias, física e humanidades. A química começava a se desenvolver.

total liberdade de desenvolver sua área de pesquisa. Isso foi importante para deixar as competências e os talentos afluírem. A Unicamp implantou a pós-graduação quase concomitantemente com a graduação, aliando pesquisa, ensino e inovação. Outra característica é que o falso dilema ciência básica contra ciência aplicada nunca dividiu o nosso ambiente universitário. Havia reservas a parcerias com empresas, mas isso foi neutralizado quando muitos de nossos melhores acadêmicos demonstraram ser possível conciliar reputação sólida com um olhar para a inovação. Isso que hoje está em pauta no Brasil, que precisamos transferir nossa competência acadêmica para a inovação, fez parte da vida da Unicamp desde sempre.

A Unicamp tem uma forte e longa presença nas ciências naturais. As áreas de física, química, matemática e biologia são reconhecidamente fortes. Isso aparece claramente na avaliação de seus programas de pós-graduação feita pela Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior], muitos com nota 7. Temos excelência na área das engenharias, na área médica. A Faculdade de Ciências Médicas destaca-se graças a uma política de selecionar muito bem seus novos professores. É uma faculdade grande, mas com um forte engajamento dos docentes em pesquisa. Nas humanidades destacam-se o Instituto de Estudos da Linguagem e também o Instituto de Filosofia e Ciên­cias Humanas. Temos ainda o curso do Instituto de Arte, que está conquistando um espaço importante na produção de artes e na parte acadêmica. A Unicamp vem ampliando sua liderança em algumas áreas. Isso está refletido nos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia. Nós temos nove institutos, não por coincidência na medicina, na física, na química, nas engenharias.

Sempre fez parte da vida da Unicamp transferir competência acadêmica para a inovação

Havia muitos professores estrangeiros. Mais da metade dos professores veio de fora quando a universidade foi criada. Também tinha muito brasileiro com experiência no exterior. No Instituto de Química, ao qual eu pertenço, havia professores egressos da USP, recém-doutores, que para cá vieram aceitando o desafio de construir uma universidade no interior do estado, na qual poucos acreditavam. Lembro que houve professores que recusaram o convite para atuar na Unicamp com tempo parcial e sem a exigência de se desvincular da sua universidade de origem. Foi uma experiência ousada. Aquele catedrático que ditava todas as regras nunca existiu na Unicamp. Cada jovem professor tinha 28 | dezembro DE 2012

Qual é o tamanho da contribuição da Unicamp para a pesquisa brasileira? Se formos contabilizar toda a produção oriunda da universidade, esse número é 15% do total do Brasil. Se você fala de artigos indexados em bases de dados, como o Web of Science, o número é um pouco menor. A Unicamp responde por cerca de 12% da produção científica no país. Tivemos em 2011 4 mil publicações em periódicos indexados para um contingente de professores de aproximadamente 1.800. Dá mais de duas publicações por pesquisador, relação que é a mais alta entre universidades brasileiras. Em que áreas a Unicamp mais se destaca?

Um destaque da Unicamp é sua vocação para a inovação. Em número de patentes, só fica atrás da Petrobras. Qual é a receita para ter um corpo de pesquisadores aberto à inovação? Quando o corpo docente foi recrutado no final da década de 1960, alguns vieram de laboratórios de pesquisa em empresas. Vários docentes do Instituto de Física passaram pelo Bell Labs, uma referência mundial naquele momento, e já tinham uma visão aberta sobre a relação entre a pesquisa acadêmica de conhecimento básico e a de conhecimento aplicado. Nunca tivemos um sistema de cátedras e isso deixou fluir as iniciativas pessoais. Se você tem total liberdade para direcionar sua pesquisa para uma aplicação ou aprofundamento do conhecimento básico, é bem mais provável que apareçam mais inovações do que num sistema em que você está submetido a uma decisão superior. Também tem importância o fato de os professores terem sucesso stricto sensu, pois publicam em boas revistas,


são reconhecidos no exterior, têm várias citações, prêmios etc. Isso mostrou que não havia incompatibilidade entre desenvolver conhecimento e aplicá-lo para uma inovação, obter uma patente. A universidade mantém um volume anual de 50 depósitos de patentes no INPI. Temos também licenciamentos, o que é mais importante em termos de reconhecimento da utilidade daquela invenção. Tudo isso explica a segunda colocação no INPI, vindo logo atrás da Petrobras. Inusitado, porque não é o que ocorre na maioria dos países. Mas é uma particularidade do sistema de inovação no Brasil que uma universidade seja um dos atores mais importantes do cenário de inovação tecnológica. Temos agora que ter capacidade para depositar mais patentes e tecnologias no exterior, para sermos players internacionais. Como é a relação da Unicamp com empresas? A Inova, nossa agência de inovação, existe desde 2003, mas bem antes disso já havia um escritório de inovação atuando. Nos últimos anos temos recebido visitas e mantido tratativas com um número grande de empresas. A ideia é estreitar essa relação dentro daquilo que é a missão da universidade: formar recursos humanos da mais alta qualificação e avançar no conhecimento. Sem abrir mão dessa missão, dialogamos com qualquer agente, público ou privado. Os recursos para pesquisa vêm de contratos, de convênios que fazemos e estabelecemos com empresas públicas e privadas. A FAPESP responde por cerca de 40% do nosso orçamento de pesquisa. Capes e CNPq também têm uma parcela importante. Mas cerca de um quarto dos recursos para pesquisa vem de convênios e contratos com empresas públicas e privadas. As empresas nos procuram porque sabem que há um interesse da universidade em analisar as propostas.

boração com empresas da área médica interessadas em estabelecer parcerias, tanto para ensaios clínicos como para pesquisa básica. Por que estimular o empreendedorismo até na área de dança e música, com a oferta de cursos que orientam os alunos a captar recursos da Lei Rouanet? Nossa agência de inovação tem ações transversais, essa é uma delas, para que a universidade não só proporcione uma boa formação técnica ao nosso estudante mas também dê a ele ferramentas para que possa constituir a sua própria empresa, busque financiamentos previstos na legislação, possa ser um empreendedor no futuro. É uma forma de prepará-lo para o mercado de trabalho que hoje tem

pilares da universidade, mas é preciso estar atento. No que se refere ao apoio, detectamos a necessidade de manter apoio institucional para cobrir certas demandas que as agências de financiamento não cobrem. Por exemplo... São obras, construções de novos laboratórios. Nessa administração, temos responsabilidade sobre três grandes projetos. Um é um laboratório central de tecnologia de alto desenvolvimento de prestação de serviço para as áreas de genômica e proteô­mica, bioinformática e biologia celular. Tivemos o apoio da FAPESP através do edital do Programa Equipamentos Multiusuários e a universidade está investindo R$ 6 milhões na construção do prédio. Outra iniciativa é o Centro Paulista de Pesquisa em Bioenergia, que envolve as três universidades esta­ duais paulistas. A FAPESP participa deste programa financiando projetos de pesquisa. Recebemos R$ 15 milhões do governo do estado e estamos renovando uma área de 4 mil metros quadrados para abrigar laboratórios nessa área. Estamos construindo um edifício-sede, são mais mil metros quadrados, e finalizando a contratação de cinco docentes para atuar na área de bioenergia. No orçamento de 2013 estão propostos recursos para contratar mais cinco docentes. Somados aos atuais pesquisadores, formarão um grupo de 50 docentes atuando na área de bioenergia. Através de um edital interno que contou com a participação de assessoria externa no julgamento das propostas, oferecemos a possibilidade de contratação de técnicos de nível superior para apoiar as atividades de grupos de pesquisa com sólida reputação em suas especialidades e reconhecida capacidade de captação de recursos. Foram 45 contratações autorizadas para grupos apoiados por projetos temáticos, INCTs, multiusuários e colaborações internacionais. Finalmente, lançamos os Laboratórios Integrados de Pesquisa (LIP) para abrigar pesquisas de natureza interdisciplinar. Essa estrutura abrigará pesquisadores por tempo

Mais de 200 empresas foram criadas por ex-alunos ou incubadas dentro da universidade

Quais são os principais exemplos? Petrobras, Braskem, Shell, CPFL, Repsol e Microsoft exemplificam algumas das parcerias recentes. Há muita cola-

diferentes configurações. Temos um histórico de mais de 200 empresas criadas com algum vínculo com a universidade. Ou são de ex-alunos ou foram incubadas aqui dentro. Muitas estão se saindo bem no mercado brasileiro e outras têm até representação em outros países. Na sua gestão, a Pró-Reitoria de Pesquisa tem buscado internacionalizar mais a pesquisa feita na Unicamp. Qual é o saldo desse período? Em primeiro lugar, temos procurado transmitir através de iniciativas concretas que os docentes devem equilibrar as atividades de ensino, pesquisa e extensão. É claro que nem todo mundo consegue fazer com excelência os três

PESQUISA FAPESP 202 | 29


determinado para desenvolver projetos financiados por agências de fomento externas. Também tivemos dois editais de infraestrutura para recuperar laboratórios de pesquisa. A Unicamp foi pioneira numa unidade de apoio ao pesquisador, que visa, principalmente, auxiliar o pesquisador nas prestações de contas dos projetos e desonerá-lo da obrigação mais administrativa. Hoje são cinco funcionários trabalhando localmente e outros dois em unidades com demanda alta por esse serviço e que, por terem captado recursos por projetos temáticos da FAPESP, se credenciaram a contar com um funcionário para a gestão desses projetos. O apoio está atrelado à capacidade de captar recursos? A partir de três projetos temáticos, cada unidade pode solicitar à Pró-Reitoria de Pesquisa a contratação de um funcionário para prestar serviços administrativos na gestão dos projetos. Está vinculado à captação de recursos. Temos de ter uma contrapartida ao investimento que a universidade fará através do pagamento de salários e outros benefícios. Esperamos que isso cresça, que as unidades cada vez mais justifiquem a contratação desse tipo de profissional para apoio da gestão das atividades.

dade de conseguir orientandos, porque ainda está construindo sua reputação acadêmica. Isso o ajuda a ter certeza de que contará com um aluno de mestrado. Também temos hoje cerca de 1.500 bolsistas de iniciação científica. Se esse jovem docente acoplar a esse auxílio inicial alguns bolsistas de iniciação científica, em um ou dois anos ele já constitui um pequeno grupo de pesquisadores que poderá se consolidar e atrair outros pesquisadores no futuro. Como anda o esforço para trazer professores estrangeiros? Embora a Unicamp tenha nascido com forte aporte de experiência internacional, ao longo dos anos, por vários motivos, isso deixou de ser forte como era,

nosso sistema universitário e permite que o conheçamos bem – e ao final do período pode participar do concurso. Temos atualmente 11 professores nesse programa. Sete são estrangeiros e quatro são brasileiros que estavam fora e retornaram. Também disponibilizamos recursos do orçamento para apoiar a visita de curta duração, entre 15 e 60 dias, de pesquisadores estrangeiros de destaque em suas áreas a fim de acelerar o processo de inserção de nossos jovens docentes em colaborações internacionais. Os docentes com propostas aprovadas receberam recursos para visitar o laboratório parceiro no exterior pelo mesmo período de tempo. Em ambas as visitas, havia previsão para que um estudante de doutorado ou pós-doutorado pudesse visitar o laboratório parceiro. Por que rankings de desempenho acadêmico são importantes para as universidades? O que a Unicamp vem fazendo para melhorar o desempenho? A Unicamp é uma universidade de porte médio, cuja vocação é buscar a qualidade. Temos cerca de 30 mil estudantes. Não está no horizonte sermos uma universidade com mais de 40, 50 mil estudantes. A produção científica aumenta de uma maneira natural, mas não há sinalização de que a universidade será numericamente maior que é. Ao olhar o ranking, a gente se pergunta se ele está medindo a qualidade ou a quantidade de produção da universidade. Por qualquer parâmetro que se meça, a Unicamp é uma das melhores do Brasil, como quando você compara números de cursos de pós-graduação notas 6 e 7 na Capes, produção acadêmica por professor, demanda por ingresso na pós-graduação ou na procura por cursos de graduação. No nível das unidades, estamos estimulando o diálogo com instituições do exterior de renome. Vários workshops foram e serão realizados com universidades de renome internacional. A expectativa é de que isso crie laços mais duradouros. Não nos interessa enviar um estudante por seis meses e tê-lo de volta. Isso não modifica a percepção de que a comuni-

A vocação da Unicamp é buscar a qualidade. Não teremos mais de 40 mil, 50 mil alunos

Como a universidade tem renovado seu corpo de pesquisadores? Passamos por um forte aumento no número de contratações docentes. Para o ano que vem há uma previsão de contratação de 75 novos docentes. É preciso oferecer a eles condições para iniciar suas atividades, para que possam montar seus grupos, captar recursos, atrair estudantes. Temos um pequeno auxílio inicial que chega a quase R$ 50 mil por docente. Desse total, R$ 15 mil ele pode solicitar assim que submeter o pedido de auxílio à pesquisa a alguma agência de fomento nacional ou internacional. Serve para adaptar o local de trabalho, comprar equipamentos, reagentes, enfim. E se esse auxílio for aprovado, ele tem direito a uma bolsa de mestrado. O jovem docente muitas vezes tem dificul30 | dezembro DE 2012

o que é um retrato do sistema nacional de pós-graduação. Uma das iniciativas que instituímos busca atrair docentes de fora. Um brasileiro radicado no exterior ou um estrangeiro que queira vir para a Unicamp pode ser indicado por uma unidade de ensino e pesquisa para o programa professor visitante. A única obrigação que essa unidade tem é que, até o final do segundo ano, seja aberto um concurso na área de especialização daquele docente, já que o convite para que ele venha significa que aquela é uma área estratégica. Se a unidade precisa de um especialista em sistemas numéricos, pode convidar um bom pesquisador dessa área para que ele fique aqui por até dois anos. Assim, ele conhece


dade científica mundial tem da Unicamp. É preciso que a gente se engaje em grandes projetos e colaborações e que nossos trabalhos ganhem visibilidade. Queria que o senhor falasse sobre sua trajetória, os três períodos no exterior... Tenho um pós-doc de dois anos, na Universidade da Califórnia, em Berkeley, depois tenho duas estadias como professor visitante, na Alemanha e Inglaterra, de curta duração. Sou de uma geração em que o pós-doc no exterior era compulsório. Toda a comunidade acadêmica esperava que, depois do doutorado, você fosse para uma universidade de renome no exterior, voltasse e estabelecesse uma linha de pesquisa própria. Tive ajuda do meu orientador de doutorado, Albert Kascheres, norte-americano, na escolha de bons grupos no exterior. Tive a sorte de ir para o grupo que estava em destaque na minha área, que é síntese orgânica. Pude aprender, voltar ao Brasil e estabelecer um laboratório de síntese assimétrica e de produtos naturais. Até aquele momento não havia uma concentração de esforços nessa área, que projetava sua importância na síntese de fármacos, na área agrícola e de alimentos. Minha trajetória começa em 1973. Depois de quatro anos de graduação e quatro anos de doutorado, fui para a Universidade da Califórnia, Berkeley. Voltei no final de 1984 e 1985 foi meu primeiro ano como pesquisador independente aqui. São 27 anos de trabalho em química orgânica, mais de 40 estudantes de pós-graduação formados, mais de duas dezenas de alunos em iniciação científica. Agora tive experiências administrativas, como diretor do Instituto de Química e como pró-reitor de Pesquisa.

gumas reações de cicloadição que é uma família importante de reações orgânicas, estudando-a do ponto de vista metodológico, ou seja, estudando em quais situa­ ções a reação poderia ocorrer e como ela ocorreria. No pós-doutorado, passei a estudar a síntese, a preparação em laboratório de produtos naturais, substâncias químicas encontradas na natureza e que têm alguma utilidade prática, mas que não podem ser extraídas da natureza na quantidade que se precisa. Um exemplo disso são os fármacos. Muitos fármacos são inspirados em produtos naturais, mas a natureza não pode oferecer a quantidade necessária para tratar uma grande massa de pessoas. A síntese orgânica entra aí, porque ela produz em laboratório aquilo que a natureza levou

cimento num domínio menos complexo, mas nem por isso menos importante, porque essas substâncias são utilizadas no controle de pragas. À medida que as condições de pesquisa melhoraram, comecei a me envolver com a síntese de fármacos e de produtos naturais mais complexos, além de métodos catalíticos para a síntese de produtos naturais. Hoje meu foco é na conjugação da minha competência em síntese orgânica com a parte de química medicinal. Colaboro com diversos grupos para que o que produzo em laboratório possa ser testado com relação a diferentes atividades biológicas, como a atividade anticâncer. Tem dois projetos sobre câncer, não é? Tenho um temático em andamento que busca agregar diferentes áreas­ do conhecimento na busca por novas estruturas que possam interferir no metabolismo de células de câncer. Temos vários colegas que participam na parte de síntese de novas moléculas, temos grupos que fazem a parte de biologia estrutural, atividade enzimática, estudos farmacológicos etc. Enfim, são diferentes competências que trabalham juntas para que a gente possa não parar nosso trabalho apenas na produção de uma molécula nova, mas sim avaliar o potencial que ela tem e, a partir dele, redesenhar novas substâncias que possam ter atividades ainda melhores do que aquelas que a gente observou. É uma interface entre química orgânica, química medicinal e uma área chamada biologia química, que é o uso de ferramentas químicas para entender processos biológicos. É uma evolução natural de alguém que começou estudando processos bastante básicos, aos poucos transitou pela síntese de produtos naturais mais complexos e desembocou na aplicação dessa expertise para colaborar com grupos que podem avaliar a atividade biológica desse composto. Hoje já não dá para imaginar que a gente desenvolva novas moléculas e não avalie suas implicações, seja como novos materiais, como potenciais fármacos, como agentes de controles de pragas, o que for. n

A síntese orgânica produz em grande quantidade o que a natureza levou bilhões de anos para criar

Queria falar sobre sua contribuição como pesquisador. Sua área é a química orgânica. De onde vem seu interesse por ela? Minha formação é de químico e minha especialização é em química orgânica, que trata da transformação de matéria orgânica simples em produtos mais complexos. Iniciei o doutorado estudando al-

bilhões de anos para desenvolver, numa quantidade que permite o acesso de um grande número de pessoas. Fui fazer esse pós-doutorado numa área de síntese do antibiótico eritromicina, que, na época, era o santo graal da síntese orgânica, uma estrutura das mais complexas que se podia sintetizar e produzir em laboratório. Quando voltei ao Brasil, apliquei a metodologia para uma área distinta, que são os feromônios, substâncias que os insetos usam para se comunicar. Muitos feromônios têm importância direta na agricultura. Naquele momento, as substâncias não eram tão complexas quanto as que eu havia estudado no pós-doutorado. As condições de estrutura que tínhamos permitiam que eu aplicasse aquele conhe-

PESQUISA FAPESP 202 | 31


política c&T  revistas científicas y

32  z  DEZembro DE 2012


Para contar uma

boa história Editores recorrem a um conjunto de estratégias para aumentar a repercussão e a visibilidade de suas publicações Fabrício Marques

ilustração andrés sandoval

Q

uais são as estratégias ao alcance de um editor de revista científica para ampliar a relevância de sua publicação? Num ambiente em que os periódicos competem cada vez mais para publicar artigos de peso e elevar seus fatores de impacto, o exemplo da Physical Review B (PRB), a maior e mais tradicional revista da física da matéria condensada, indica que um caminho seguro passa por investir em papers de alta qualidade e/ou que envolvam temas na fronteira do conhecimento, aqueles capazes de mobilizar o interesse de sua comunidade científica. “Não basta um artigo ser correto para ser publicado. Ele precisa contar uma boa história, de forma legível e interessante, e conter resultados e discussões inovadoras”, afirma o físico holandês Laurens W. Molenkamp, editor da PRB, que esteve no Brasil em outubro para participar da terceira edição do workshop Meet the Editors – Scientific Writing, no Instituto de Física de São Carlos (IFSC) da Universidade de São Paulo (USP). “Recebemos uma grande quantidade de artigos e esperamos que eles tenham impacto e um certo senso de novidade. Queremos qualidade”, disse a Pesquisa FAPESP. Professor da Universidade Wuerzburg, na Alemanha, Molenkamp ganhou neste ano o Buckley Prize, importante honraria científica da física da matéria condensada criada há 60 anos. Ele foi agraciado pela realização experimental de um fenômeno físico conhecido como efeito hall quântico de spin em isolantes topológicos, materiais cujas superfícies têm propriedades que podem resultar em novos dispositivos spintrônicos. Alguns dados apresentados por Molenkamp no workshop são preocupantes para os físicos da matéria condensada brasileiros. De modo geral, caiu na década passada o número de artigos aceitos para publicação na PRB de autores da América Latina. Eram 2% do total publicado em 2011, ante 4% em 2000. Isso embora o número de artigos propostos tenha se mantido estável: eram 4% do total de submissões em 2000 e 3% em 2011. pESQUISA FAPESP 202  z  33


E

a tendência, disse o físico, é que a PRB se torne ainda mais criteriosa na avaliação de artigos. Ele mostrou que, se a revista não tivesse publicado em 2011 um conjunto de artigos que não recebeu uma citação sequer, seu fator de impacto, que hoje é de 3,6, seria superior a 5. O fator de impacto é definido como o número médio de citações que os artigos de uma revista recebem num período, um sinal de sua repercussão. “Não somos obcecados pelos fatores de impacto, mas queremos que os artigos da PRB sejam lidos, úteis e citados por nossa comunidade”, afirmou Molenkamp. “Não vamos mais publicar artigos que não busquem ir além do estado da arte.” Evitar a publicação de papers de relevância limitada é uma meta da publicação sob o comando de Molenkamp. As mudanças já coHouve uma meçaram. Foi abolida, por exemplo, queda no número uma seção da revista que publicava comunicações de resultados de pesde artigos de quisa (a seção dos Brief Reports), pois brasileiros aceitos tradicionalmente continham manuscritos considerados sem estofo para render um artigo completo. Outra espara publicação tratégia bem-sucedida foi a criação na Physical de uma lista de sugestões dos artigos mais relevantes publicados pela revisReview B ta. Trata-se de uma amostra de 400 artigos, o equivalente a 7% dos 6 mil publicados a cada ano, selecionada por editores e revisores por seu interesse, importância e clareza. Esses artigos, relacionados no site da revista, são citados em média 2,5 vezes mais do que a média dos papers da PRB, segundo Molenkamp. “Claramente houve uma queda nos aceites de artigos brasileiros, que pode ter sido causada por vários fatores”, diz José Carlos Egues, professor do IFSC-USP e membro do corpo editorial da PRB. Uma das explicações, segundo Egues, é uma certa desatualização da maioria dos físicos da comunidade de matéria condensada do Brasil. “Vejo poucos grupos brasileiros trabalhando em temas que vêm ganhando relevância em anos recentes”, diz Egues, referindo-se, por exemplo, aos isolantes topológicos estudados por Molenkamp e, mais recentemente, aos chamados Majorana férmions, um tipo de partícula que é sua própria antipartícula, propostos em 1937 pelo italiano Ettore Majorana – só recentemente indícios de sua existência foram encontrados em matéria condensada. “Artigos sobre esses temas são especialmente valorizados, pois, além de conter uma gama imensa de fenômenos físicos interessantes, são potencialmente relevantes para aplicações tecnológicas e também novas arquiteturas de computadores e eletrônica”, diz. “Esse, de certa forma, é um problema desta área no Brasil. Parece não haver aqui a competitivida34  z  DEZembro DE 2012

de que se vê em outros países e a busca constante por novos problemas desafiadores e relevantes para a comunidade internacional”, afirma Egues. Outro fator, segundo ele, é a dificuldade de muitos pesquisadores brasileiros em produzir artigos de alta qualidade, seja por falta de experiência na escrita científica em inglês, seja pela necessidade de publicar artigos em grande quantidade, o que acaba pulverizando um achado importante em vários artigos com resultados parciais. “É comum que falte em artigos de brasileiros em matéria condensada uma escrita científica interessante, com estilo sofisticado e sem aquelas tradicionais frases prontas, quase jargões, que o pesquisador acaba sempre utilizando”, diz Egues. “Mas este quadro vem mudando, pois algumas agências de fomento já começam a olhar para a qualidade de impacto dos trabalhos, e não apenas para a quantidade”, diz. Esse problema serviu de mote para a edição do workshop Meet the Editors no IFSC com foco em escrita científica, que contou com a presença, além de Molenkamp, de Jessica Thomas, editora da Physics, e Karie Friedman, que trabalhou por 20 anos como editora do Reviews of Modern Physics. O número de citações consagrou-se como um parâmetro universal, embora não suficiente, para avaliar a qualidade da produção científica. “Por um lado, funciona como um círculo virtuoso: quanto maior o número de citações de uma revista, maior também será o número de artigos submetidos a ela e mais seletiva ela poderá ser”, diz Abel Packer, coordenador da biblioteca eletrônica SciELO Brasil. “Por outro lado, funciona como um círculo vicioso para revistas de fator de Os países e a física da matéria condensada Porcentagem de papers publicados por ano na Physical Review B oriundos de alguns países 12 11 10

n Japão n  França n  Itália n  China n  Brasil n  Argentina

9 8 7 6 5 4 3 2 1 0

1995

1997

1999

fonte prb/laurens molenkamp

2001

2003

2005

2007

2009

2011


Lentes de aumento

ilustração andrés sandoval

Recursos para aumentar a visibilidade e o impacto de periódicos Rigor

Internacionalização

Eventos

Seleção criteriosa de papers, com ênfase para temas quentes e atuais no campo do conhecimento da publicação, ajuda a ampliar a repercussão e o número de citações dos artigos em outras revistas

Artigos resultantes de colaborações internacionais, além de indicarem a presença de autores competitivos, produzem mais citações do que os escritos por pesquisadores de um só país

Participação das revistas e de seus editores em congressos científicos ligados à especialidade da publicação gera empatia com pesquisadores e aumentar o número de artigos submetidos

Revisores

Indicações

Revisão

Engajamento de um corpo editorial com pesquisadores de renome de vários países e de um time de revisores de primeira linha fez a PLoS One alcançar fator de impacto 4 em poucos anos de vida.

A criação de uma lista de artigos recomendados por editores e revisores, por sua originalidade e qualidade, elevou em 2,5 vezes o número de citações desses papers na Physical Review B

Artigos de revisão, que trazem uma compilação crítica da literatura existente e são escritos por cientistas de renome, costumam garantir um volume grande de citações

impacto baixo, cuja tendência é receber menos manuscritos de qualidade.” A adoção deste parâmetro também produz, segundo Packer, efeitos colaterais indesejados. “É possível que a busca por mais citações faça os editores apostarem em artigos com maior potencial de citação, como a presença de vários autores, colaboração internacional, temas inovadores ou polêmicos, em detrimento de artigos muito benfeitos, mas que não se encaixam nos figurinos típicos de alta citação”, afirma. No caso de artigos submetidos por autores brasileiros a publicações internacionais, o coordenador da SciELO vê um problema adicional. “Em geral, artigos assinados apenas por brasileiros recebem sistematicamente de 24% a 40% menos de citações que os publicados em colaboração internacional. Pode acontecer de artigos de brasileiros serem rejeitados não por falta de qualidade, mas porque projetam um número menor de citações”, afirma.

A

receita para ampliar o impacto, de acordo com Packer, demanda recursos, profissionalismo e internacionalização, e contempla várias estratégias. Uma delas consiste em atrair cientistas de alto nível de vários países para participar tanto no corpo editorial quanto no conjunto de revisores. Outra é tornar a publicação atuante em eventos de sua especialidade ou como fonte de atualização e serviços aos pesquisadores. Estes exemplos ajudam a revista a se tornar reconhecida pelos pesquisadores e estimulá-los a submeterem artigos. “É preciso investir em qualidade e esperar para colher os frutos. Não existe fórmula mágica para assegurar um bom patamar de citações, ao contrário do que alguns imaginam”, diz Packer, referindo-se a truques utilizados para

inflar fatores de impacto, como o abuso de autocitações e de citações cruzadas. Ampliar o impacto de uma publica“Precisamos ter ção não é simples, mas há revistas que várias revistas conseguiram. Um exemplo é a PLoS One, que dispõe de uma consistente rede de brasileiras revisores, publica mais de mil artigos por mês e tem um fator de impacto que com fator de chegou a 4 em 2011. Outro exemplo é a Frontiers in Ecology and the Environimpacto alto”, ment, lançada em 2002, que em 2011 diz Abel Packer, alcançou fator de impacto 9,11. “É uma revista publicada pela Ecological Society coordenador of America, que conseguiu aumentar seu fator de impacto por meio de uma poda SciELO lítica editorial bem definida, com marketing científico e apoio da comunidade de pesquisadores”, diz. Apenas duas publicações científicas brasileiras alcançam fator de impacto acima de 2: a revista Clinics, ligada à Faculdade de Medicina da USP, e a centenária Memórias do Instituto Oswaldo Cruz. Enquanto Clinics passou por um forte processo de profissionalização, Memórias é uma tradicional revista sobre doenças tropicais, área na qual a pesquisa brasileira se destaca. “O Brasil não tem nenhuma publicação com fator de impacto no primeiro quartil das respectivas áreas temáticas no Journal Citation Reports, e precisaria ter várias para se afirmar também em comunicação científica”, diz Abel Packer, cujo trabalho na coleção SciELO busca ampliar o profissionalismo das revistas e torná-las mais relevantes. “A maioria das nossas revistas já atingiu o limite no potencial de citações aqui no Brasil. Precisam se internacionalizar para atrair mais citações do exterior”, afirma. n pESQUISA FAPESP 202  z  35


inovação y

Liderança vigilante Relatório propõe ações para reforçar a qualidade das universidades de pesquisa dos EUA

O

s Estados Unidos têm 8 das 10 melhores universidades do planeta, segundo o ranking da Shangai Jiao Tong University – em outro ranking consagrado, o da Times Higher Education, são 7 as norte-americanas entre as 10 primeiras. A capacidade de manter essa liderança, um dos fatores cruciais que garantem a inigualável capacidade inovadora dos Estados Unidos, preocupa o Congresso do país, que encomendou a um grupo de especialistas do Conselho Nacional de Pesquisa (NRC) um conjunto de recomendações para manter a vitalidade daquele tipo de instituição de ensino superior que faz pesquisa intensiva e transfere conhecimento para a sociedade. O resultado foi o relatório Universidades de pesquisa e o futuro da América: dez ações inovadoras vitais para a prosperidade e a segurança da nossa nação, divulgado em agosto passado, que enumera ações para preservar a liderança (ver quadro). “Podemos dizer sem reservas que nossas universidades de pesquisa são, hoje, as melhores do mundo e um patrimônio importante para nossa nação,

ao mesmo tempo que correm grave perigo de não apenas perder seu lugar na liderança global, mas de sofrer uma séria erosão em sua qualidade”, diz o relatório, que critica a perda de financiamento das universidades públicas do país e cita como ameaça a emergência da China como protagonista na ciência e na inovação. Algumas recomendações buscam garantir que o sistema universitário não perca as características que manteve nas últimas décadas, como a capacidade de atrair estudantes e bolsistas talentosos de outros países ou fortalecer as parcerias com o setor privado, propiciando a transferência de conhecimento e acelerando o processo de inovação. Mas também há desafios atuais, como o de produzir mais com orçamentos que tendem a não crescer na velocidade de antigamente. Outro tópico importante é a ênfase em reduzir a regulamentação imposta às universidades de pesquisa e garantir que elas gastem menos energia com burocracia, tornando-se mais produtivas. “O ambiente regulatório atual pode ser limitante para a pesquisa básica”,

disse o deputado Mo Brooks, presidente do Subcomitê de Pesquisa e Educação Científica da Câmara dos Representantes, que encaminhou, a propósito do relatório do NRC, um pedido ao governo para rever uma série de circulares e exigências burocráticas impostas às universidades. A ideia de que é essencial reforçar a qualidade das melhores universidades não é primazia dos Estados Unidos. Numa edição especial da revista Nature publicada em outubro, líderes de instituições, programas e agências de fomento à pesquisa de oito países sugeriram medidas que devem ser tomadas para impulsionar a pesquisa em seus países na próxima década. Um dos que opinaram foi o diretor científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz. Ele propôs que o governo brasileiro desenvolva um plano para apoiar cerca de uma dezena de universidades na execução de programas de excelência, que possibilite situá-las entre as 100 melhores do mundo em uma década. “O país já tem universidades altamente seletivas, que poderiam se tornar de classe mundial”, destacou Brito Cruz. n

As 10 recomendações 1 O governo federal deve adotar políticas estáveis e efetivas para o ensino de graduação e para pesquisa e desenvolvimento nas universidades de forma que o país produza conhecimento e forme pessoas capazes de garantir a prosperidade no futuro.

2

Aumentar a autonomia das universidades públicas de pesquisa para que possam reforçar as estratégias de desenvolvimento locais e regionais. Garantir mais investimento em educação e pesquisa permitirá que essas instituições operem como universidades de classe mundial.

36  z  DEZembro DE 2012

3

Fortalecer as parcerias de pesquisa com o setor privado, facilitando a transferência de conhecimento, de ideias e de tecnologias para a sociedade e acelerando o processo de inovação.

4

Aumentar o custo-benefício e a eficácia das universidades para elevar o retorno do investimento feito pelos contribuintes e financiadores.

5

Criar um programa de investimento estratégico que financie nas universidades iniciativas fundamentais para avançar a educação e a pesquisa em áreas prioritárias.

6

O governo federal e outros financiadores de pesquisa devem ser consistentes e transparentes no esforço para cobrir os custos dos projetos de pesquisa e de outras atividades que apoiam nas universidades de pesquisa.

questões como duração dos cursos, financiamento e alinhamento das oportunidades de carreira com os interesses do país.

9

7

Assegurar a todos os cidadãos, inclusive mulheres e minorias, todos os benefícios da educação nos campos das ciências, matemática, engenharias e tecnologia.

8

Garantir que os EUA continuarão a se beneficiar fortemente da participação de estudantes e bolsistas internacionais em seus laboratórios de pesquisa.

Reduzir ou eliminar regulamentações que aumentam custos administrativos, dificultam a produtividade científica e dissipam a energia criativa sem melhorar o ambiente de pesquisa. Aumentar a capacidade dos programas de graduação de atrair estudantes talentosos, abordando

10


cooperação y

Brasil no horizonte Europeus buscam parcerias para novo programa de apoio à ciência e inovação

R

epresentantes da União Europeia visitaram instituições de apoio à ciência em Brasília e São Paulo, em novembro, com o propósito de identificar possíveis áreas de colaboração científica e para apresentar o novo programa de apoio à ciência e inovação, o Horizon 2020, que deve ser lançado no início de 2014. “Precisamos promover a Europa e o Brasil também”, disse Sieglinde Gruber, chefe da unidade da Comissão Europeia para Ciência, Tecnologia e Inovação nas Américas. Concebido com o propósito de estimular o crescimento econômico e gerar empregos nos 27 países da União Europeia, valorizar o conhecimento produzido na Europa e facilitar o acesso a mercados globais, o Horizon 2020 deve enfatizar a inovação em universidades e empresas e enfrentar desafios de amplo alcance social, como saúde, energia limpa e transportes. O acesso dos centros de pesquisa e empresas aos programas de ciência e tecnologia da Comissão Europeia, antes considerado muito burocrático, agora deve ser mais simples. “Queremos simplificar os procedimentos, que tomavam muito tempo dos pesquisadores”, informou Sieglinde ao apresentar o novo programa na FAPESP em 12 de novembro. Por meio do Horizon 2020, a União Europeia pretende ampliar a cooperação com países estratégicos como Brasil, Índia, China e Rússia. “Consideramos o Brasil um parceiro de mesmo nível agora”, disse Piero Venturi, conselheiro de Ciência e Tecnologia da Delegação da União Europeia no Brasil, à Agência FAPESP. “Em vez de financiar a vinda de pesquisadores brasileiros para projetos europeus, queremos discutir com instituições parceiras no Brasil quais são os interesses comuns dentro de um programa de cooperação. Isso é mais complexo, pois envolve investidores de

Alianças pelo mundo Países com maior participacão nos projetos da União Europeia

n Participantes n Projetos

400 350 300 250 200 150 100 50 0

Rússia

Estados Unidos

China

Índia

África do Sul

Brasil

Canadá

Ucrânia Argentina

África do Sul

Brasil

Canadá

Ucrânia Argentina

Contribuição dos países em milhões de euros 100 80 60 40 20 0

Rússia

Estados Unidos

China

Índia

fonte  comissão europeia

ambos os países, mas acreditamos que seja a melhor estratégia.” O Horizon 2020 deve contar com € 80 bilhões (o valor final está sendo debatido no Parlamento Europeu e no Conselho da União Europeia) e substituirá o programa atual, o Sétimo Programa Quadro (FP7), que termina em 2013 e contou com € 50 bilhões. No FP7, o Brasil foi o sexto país que mais contribuiu com os países europeus (ver gráfico). Os projetos brasileiros apresentaram uma taxa de aprovação de 22,2%, acima da taxa de aprovação dos europeus, de 19,3%. “A cada dois anos vamos redefinir nossas metas de cooperação com Brasil”, disse Sieglinde. Grupos

de pesquisa, empresas e organizações não governamentais do Brasil podem participar do Horizon 2020 ao lado de pelo menos dois parceiros europeus. Em julho de 2012, a Comissão Europeia anunciou que poderia investir € 8,1 bilhões – o valor mais alto já destinado a uma chamada de projetos – para financiar propostas de pesquisa científica e tecnológica que pudessem contribuir para o crescimento econômico da Europa. “Atravessamos uma crise financeira”, disse Sieglinde, “mas alguns países da Europa, como Dinamarca e os do Reino Unido, mantiveram os investimentos em ciência e tecnologia”. n pESQUISA FAPESP 202  z  37


Ruim do ouvido, bom da cabeça Dinossauro africano escutava mal, mas movia o crânio com agilidade para se defender Igor Zolnerkevic

Quando parava para prestar atenção ao ambiente, o disalotossauro levantava a cabeça 17° acima da linha do horizonte

Disalotossauro Período  Jurássico Superior localização

Tendaguru

Tanzânia

medidas Altura: 0,75 m Largura: 2,45 m

Peso: 70 kg

velocidade  20-50 km/h características  fósseis encontrados em grupos indicam que vivia em bandos


paleontologia y

ciência

E Alossauro

ilustração sandro castelli  fonte  gabriela sobral

Buscava suas presas mantendo a cabeça em posição horizontal para amplicar seu campo de visão

xaminando por meio de tomografia computadorizada a anatomia do ouvido interno do fóssil de um dinossauro de 150 milhões de anos atrás, um grupo de paleontólogos do Museu de História Natural de Berlim, Alemanha, incluindo uma brasileira, conseguiu inferir o alcance auditivo do espécime e algumas características de seus movimentos. De acordo com o estudo, o pequeno herbívoro bípede, chamado de disalotossauro, ouvia uma faixa limitada de sons de baixa frequência, semelhante à que jacarés e aves primitivas conseguem escutar. Essa audição não permitiria, por exemplo, captar a maioria dos sons de uma conversa entre pessoas. No entanto, seus sentidos deviam ser apurados o suficiente para perceber a aproximação de predadores terópodes, como o ágil elafrossauro, que era pouco maior que o disalotossauro, e o gigante alossauro, um carnívoro semelhante ao tiranossauro rex. Pastando em rebanhos, os disalotossauros prestavam atenção ao seu ambiente com o focinho ligeiramente apontado para cima. O trabalho também sugere que os movimentos de virar a cabeça para esquerda e para direita deviam ser importantes para a sobrevivência do animal. “Não falamos apenas de ossos no nosso trabalho; fomos capazes de contar algo sobre a vida do animal”, diz o paleontólogo Johannes Müller, que supervisionou a minuciosa descrição do crânio fóssil, publicada em setembro na revista Journal of Vertebrate Paleontology. “É como se o disalotossauro estivesse passeando em nosso quintal.” Desde 2010, Müller orienta a brasileira Gabriela Sobral em sua tese de doutorado, financiada por um convênio entre a Capes e o Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (Daad).

Virar a cabeça de um lado para o outro era um movimento especialmente importante para o dinossauro


Eles pesquisam a evolução do ouvido dos arcossauros, grupo de animais que engloba boa parte dos extintos dinossauros e os pterossauros e as atuais aves e crocodilos. O ouvido dos crocodilianos é semelhante ao das aves, que são, na verdade, os descendentes do único grupo de dinossauros que sobreviveu, os terópodes. Os pesquisadores ainda debatem muito sobre quais dessas características do ouvido de aves e crocodilos foram herdadas de um ancestral comum e quais delas são produto de histórias evolutivas independentes, que chegaram a resultados parecidos. Desvendar a evolução do ouvido interno dos dinossauros pode ajudar a esclarecer essas questões. As conclusões preliminares de Müller e Gabriela, no entanto, apontam para uma história mais complexa do que se imaginava. Até começar suas pesquisas na Alemanha, Gabriela havia realizado no Brasil apenas estudos teóricos sobre evolução. “Queria aprender mais sobre anatomia e precisava de experiência prática”, ela lembra. Sua necessidade coincidiu com a compra pelo Museu de História Natural de Berlim do Nanotom, um equipamento cujo princípio de funcionamento é o mesmo dos tomógrafos usados em medicina. A máquina emite raios X que atravessam um objeto em várias direções e

objetos pequenos, do tamanho de um punho, até coisas minúsculas, como a genitália de um inseto”, diz Gabriela.

O dinossauro devia manter a cabeça um pouco levantada e o focinho apontava para 17º acima do horizonte

Crânio redescoberto

são, em seguida, detectados por sensores. Os dados obtidos são processados por um computador para criar um modelo tridimensional da estrutura interna do objeto. “É uma técnica avançada, para estudar partes anatômicas indisponíveis para observação a olho nu”, explica o paleontólogo Max Langer, da Universidade de São Paulo, campus de Ribeirão Preto. Enquanto a resolução de um tomógrafo médico é da ordem de centenas de micrômetros (milésimos de milímetro), a do Nanotom chega a cinco micrômetros. “Nossa máquina serve para examinar

Exame do ouvido

Teto da caixa craniana do disalotossauro

Anatomia do órgão pode revelar quais movimentos eram importantes para um animal B Po

ster

ior

B C

Parede lateral do crânio

CL

ral

ate

O ouvido interno dos dinossauros já era semelhante ao humano (ao lado) com três canais semicirculares (A, B e C), cada um sensível ao movimento de um plano do corpo

A postura de alerta do disalotossauro foi comparada com a de outros dinossauros estudados pelo paleontólogo Paul Sereno e colaboradores em 2007. Ao prestar atenção Eixo X ao ambiente, os animais tendiam a deixar a cabeça para cima ou para baixo, dependendo da inclinação de seu canal semicircular lateral em relação à linha do horizonte

40  z  DEzembro DE 2012

-67º

Nigersaurus

-37º

Diplodocus

-15º

Camarasaurus

+15º

Massopondylus

+17º

Dysalotosaurus

ilustrações  sandro castelli  fonte  gabriela sobral

rior

Tomografias

Exames revelaram as cavidades onde ficava o ouvido interno (em azul e lilás)

A A Ante

Buscando algum material interessante para examinar com o Nanotom, Gabriela achou, meio que esquecido na coleção do museu, o crânio de um dinossauro do grupo dos ornitísquios (apesar do nome, o grupo não deu origem às aves). Os ossos do exemplar da espécie Dysalotosaurus lettowvorbecki estavam desarticulados, mas bem preservados. O crânio faz parte do pouco que restou da pilha de fósseis de disalotossauro que o museu de Berlim perdera durante a Segunda Guerra Mundial. Esses fósseis haviam sido desenterrados junto com mais de 200 mil quilos de ossos entre 1909 e 1913, durante as expedições de paleontólogos do museu ao leito da montanha de Tendaguru, na Tanzânia. É lá que foram descobertos dinossauros famosos, como o pescoçudo saurópode braquiossauro e o espinhoso ornitísquio kentrossauro, que conviveram com o disalotossauro no período Jurássico Superior, entre 140 e 160 milhões de anos atrás. Outros pesquisadores, um em 1955 e outro em 1989, já haviam descrito o crânio de D. lettowvorbecki a partir dos fósseis restantes e de desenhos e fotografias do


Alcances auditivos Faixa de frequências sonoras percebidas pelo dinossauro comparada com a de outros animais jacaretinga 2.000

300

avestruz 80

3.500

Disalotossauro 350

3.850

humano 20.000

20

10

100

1.000

material perdido. Eles, porém, não tinham como examinar as cavidades internas das paredes do crânio, preenchidas com sedimento petrificado, sem danificá-las. Quando escaneou as peças do crânio com os raios X na potência certa para distinguir o sedimento do osso, Gabriela confirmou que as cavidades milimétricas do ouvido interno estavam intactas, tanto dentro da parede lateral do crânio quanto no interior do teto da caixa craniana. Junto com Müller e outra pesquisadora do museu, a norte-americana Christy Hipsley, Gabriela comparou o ouvido interno do disalotossauro com o de espécies extintas e atuais. Eles deram atenção especial à cavidade que abriga a parte do ouvido onde ficavam as células que discriminavam os sons, a chamada cóclea. A cóclea humana, como a de todos os mamíferos, é enrolada em forma de caracol. Mas nos demais vertebrados seu tecido se estende em linha reta pelo canal ósseo. Em 2009, um estudo conduzido pelo paleontólogo Stig Walsh, do Museu de História Natural de Londres, comparou diversas espécies de répteis e aves vivas, mostrando que é possível deduzir as frequências sonoras que os animais conseguem escutar a partir do tamanho da base do crânio e do comprimento do canal da cóclea. “Quanto mais longa é a cóclea, melhor o animal consegue discriminar entre sons de alta e baixa frequência”, explica Gabriela. Considerada curta, a cóclea de quase 10 milímetros do disalotossauro permitia distinguir uma faixa relativamente estreita de sons, com frequências entre 350 e 3.850 Hertz (Hz), ou seja, sons nem

10.000

100.000 Hz

muito graves, nem muito agudos. Essa capacidade auditiva é semelhante à das espécies de crocodilos que melhor escutam, como a jacaretinga, e das espécies de aves atuais mais próximas dos dinossauros, como a garça e o avestruz. A conclusão está de acordo com a de outros estudos que sugerem que os dinossauros em geral não escutavam sons muito agudos. Em 2007, pesquisadores inferiram pelo peso dos animais que o braquiossauro e o alossauro escutavam melhor na faixa entre 100 e 1.000 Hz. “Mas a estimativa do peso dos animais é bastante controversa em paleobiologia”, Gabriela ressalta. Canais de equilíbrio

Outra região do ouvido que chamou a atenção dos paleontólogos foi a das cavidades dos chamados canais semicirculares. Presentes de uma forma ou de outra em todos os vertebrados, esses três canais são a parte do ouvido responsável por garantir que os animais mantenham seu equilíbrio quando se mexem. Os três canais são aproximadamente perpendiculares entre si (ver a figura na página 40). O deslocamento de fluidos dentro de cada um deles informa ao cérebro sobre o movimento do corpo nas três dimensões do espaço. O tamanho dos canais indica a sensibilidade do animal aos movimentos em um plano específico. O disalotossauro tinha seu canal semicircular lateral ligeiramente maior que os outros dois. A descoberta foi uma surpresa, porque nos dinossauros estudados até agora – alguns terópodes e um ornitísquio – o maior dos canais semicirculares é o mesmo das aves, o anterior.

Os paleontólogos também sabem que a inclinação do canal semicircular lateral está ligada à chamada postura de alerta do animal, isto é, a maneira como seu corpo fica quando presta atenção ao seu redor. Os animais em alerta tendem a posicionar sua cabeça de modo que o canal semicircular lateral fique paralelo à linha do horizonte. Em postura de alerta, o disalotossauro devia manter a cabeça ligeiramente levantada, com o focinho apontando para 17° acima do horizonte. Estudos semelhantes ainda são escassos, mas dos dinossauros que se conhece apenas o disalotossauro e o saurópode Massospondylus tinham postura de alerta com a cabeça inclinada para cima. A maioria mantinha a cabeça na horizontal, como o alossauro, ou a inclinava um pouco para baixo, como o tiranossauro, supostamente para ampliar seu campo de visão, combinando a vista de ambos os olhos, que ficam em geral muito afastados um do outro na cabeça dos arcossauros. Daí os pesquisadores concluem que o disalotossauro não tinha uma visão binocular bem desenvolvida. Os paleontólogos também se surpreenderam ao encontrar no ouvido do disalotossauro uma cavidade conhecida como fenestra pseudorrotunda. Presente nas aves, nos crocodilos e em alguns outros répteis, a cavidade é coberta pela membrana timpânica secundária, uma estrutura que também evoluiu de maneira independente no ouvido dos mamíferos. Considerada a marca de uma audição refinada, o papel dessa membrana é facilitar o deslocamento das ondas sonoras na cóclea, aumentando sua sensibilidade. A presença em uma mesma espécie de características consideradas primitivas, como a cóclea curta, junto a características modernas, como a membrana timpânica secundária, complica a história da evolução do ouvido. “O ouvido do disalotossauro mostra que as estruturas da audição não evoluíram todas juntas, mas cada parte de maneira independente”, explica Gabriela. n

Artigo científico Sobral, G. et al. Braincase redescription of Dysalotosaurus lettowvorbecki (dinosauria, ornithopoda) based on computed tomography. Journal of Vertebrate Paleontology. 32(5). set. 2012. pESQUISA FAPESP 202  z  41


química y

Bico-de-papagaio: pigmento que tinge de vermelho as folhas também as protege dos danos da radiação solar


coloridos Estudo da dinâmica de moléculas comprova que corante natural protege folhas do excesso de luz

léo ramos

Igor Zolnerkevic

O

vermelho das folhas ao redor das pequenas flores do bico-de-papagaio chama a atenção de aves e insetos polinizadores. Mas muitos pesquisadores estão cada vez mais convencidos de que, além de transmitirem mensagens aos animais, os corantes responsáveis pela maioria dos azuis e vermelhos do reino vegetal, substâncias conhecidas como antocianinas, cumprem funções vitais para o organismo das plantas. Uma colaboração entre os laboratórios liderados pelos químicos Frank Herbert Quina, da Universidade de São Paulo (USP), e António Maçanita, do Instituto Superior Técnico de Lisboa, em Portugal, vem acumulando evidências que corroboram uma velha teoria sobre as antocianinas: a de que esses corantes protegem as folhas, especialmente as mais novas e as mais velhas, contra o efeito danoso do excesso da luz solar e sua radiação ultravioleta. “As antocianinas têm todas as propriedades de um filtro solar”, afirma Quina. Em uma série de artigos, o último publicado em março deste ano no Chemistry European Journal, Quina e seus colaboradores mostram como as moléculas de antocianinas fazem para absorver a luz e os raios ultravioleta, transformando rapidamente a sua energia em calor inofensivo à planta. A ideia de que as antocianinas protegeriam as folhas do sol vem sendo discutida desde o século XIX. Havia certa dúvida sobre esse efeito protetor, por elas se encontrarem nas células vegetais dentro de bolsas chamadas vacúolos, que na época eram consideradas como mero depósito de lixo celular. A situação mudou no início dos anos 1990, quando experimentos com plantas demonstraram que a fotossíntese de folhas avermelhadas resistia melhor ao excesso de radiação solar. A luz é essencial para a fotossíntese, que é justamente o processo em que a energia da radiação solar é absorvida por um corante verde chamado clorofila e convertida por uma complicada maquinaria bioquímica em açúcares armazenados para alimentar a planta posteriormente. O excesso de luz, no entanto, assim pESQUISA FAPESP 202  z  43


Protetor solar natural Antocianinas transformam radiação danosa em calor

Raios UltraVioleta Antocianina Copigmento Raios Infravermelhos

Destruição das células da fotossíntese

Células da fotossíntese

Ácido

Camada de células com mais antocianina

1

Camada de células que fazem fotossíntese fonte  FRANK QUINA/usp

como a energética radiação ultravioleta, pode sobrecarregar e danificar a clorofila, um efeito chamado de fotoinibição. As folhas recém-brotadas, cujo aparelho fotossintético ainda não se formou por completo, são especialmente vulneráveis à fotoinibição. “Nas folhas do cacau, vermelhas quando novas, a antocianina começa a desaparecer quando a síntese de clorofila se inicia”, explica Quina, que é norte-americano, mas vive no Brasil desde 1975. O risco de fotoinibição também é maior para as folhas no fim de sua vida. No outono dos países temperados, em algumas espécies de árvores como o bordo-vermelho, as células da camada superior das folhas aumentam a síntese de antocianinas quando a clorofila das células da camada inferior começa a ser desmontada para reaproveitar o nitrogênio dessas moléculas, armazenado para enfrentar o inverno. Em picossegundos

Isoladas em laboratório, as antocianinas são vermelhas quando colocadas em uma solução ácida e azuis em uma solução básica. Para estudar suas reações com a luz, os pesquisadores disparam pulsos de laser de vários comprimentos de onda em soluções de antocianinas com diferentes níveis de acidez, observando em seguida como elas absorvem a radiação. A antocianina vermelha normalmente se comporta como um ácido fraco, como 44  z  dezembro DE 2012

Básico

Antocianinas e copigmentos

Como seria sem os

Combinadas, essas duas

copigmentos

Isoladas em laboratório,

moléculas protegem as células

As antocianinas não

a cor das antocianinas

que fazem a fotossíntese

conseguiriam bloquear

depende da acidez

ao absorverem os raios

os raios ultravioleta.

do meio em que estão

ultravioleta, convertendo

Essa radiação danificaria as

dissolvidas: a forma

sua energia em raios

moléculas de clorofila e o

ácida é vermelha,

infravermelhos inofensivos

material genético das células

a básica é azul

o ácido acético do vinagre. Mas, atingida pelo pulso de laser, a molécula energizada pela luz se transforma em um ácido tão forte quanto o clorídrico, perdendo um íon de hidrogênio para a água. Tudo acontece em muito menos que um piscar de olhos. Em menos do que 200 trilionésimos de segundo (picossegundos), esse movimento do próton converte a energia da luz visível e da radiação ultravioleta em calor e a molécula retorna à sua forma de ácido fraco. “É um caminho muito eficiente para transformar a energia da luz em calor”, diz Quina. A movimentação do próton, no entanto, não explica sozinha a ação de filtro solar. É que o processo não absorve radiação ultravioleta o suficiente para proteger a planta. O que ajuda é o fato de os vacúolos se encontrarem cheios de compostos incolores conhecidos como copigmentos, que absorvem fortemente a radiação ultravioleta. Diferentemente das antocianinas, os copigmentos não possuem mecanismos para dissipar a energia da luz sem causar reações químicas danosas à célula. A concentração das antocianinas e dos copigmentos nos vacúolos é tal que as duas classes de moléculas se combinam e formam um complexo – uma espécie de supermolécula – com as melhores propriedades protetoras de ambas. Em experimentos recentes as equipes brasileiras e portuguesas demonstraram

2

que o complexo formado por uma das antocianinas mais comuns, a cianidina, e um copigmento, o ácido coumárico, não decorre apenas da propriedade do copigmento de repelir a água em volta da antocianina e, assim, se aproximar dela. Há também uma atração elétrica entre a antocianina, de carga positiva, e o copigmento, de carga negativa, que faz as duas moléculas aderirem fortemente. Assim, quando os raios ultravioleta são absorvidos pelo copigmento, podem acontecer dois processos distintos. Se a


imagens 1 Niky Hughes 2 frank quina 3 Latinstock/ANDREW LAMBERT PHOTOGRAPHY/SPL

3

antocianina estiver ao seu lado, o copigmento transfere a energia da luz para ela, que a converte em calor pela movimentação dos átomos de hidrogênio. Mas se as moléculas estiverem uma sobre as outras, a energia da luz é transferida ao movimento dos elétrons entre elas. Este processo ocorre mais rapidamente que o primeiro – em menos de um picossegundo – e converte a luz ultravioleta em calor de modo ainda mais eficiente. Antioxidantes

A ação de filtro solar não é a única proteção que as antocianinas oferecem às plantas. Assim como acontece com os animais, o metabolismo vegetal produz radicais livres – compostos ricos em oxigênio altamente reativos que danificam as células. Os experimentos de Quina e de outros pesquisadores vêm confirmando que essas moléculas são potentes antioxidantes que rapidamente neutralizam os radicais. Esse é um dos motivos, aliás, pelos quais os nutricionistas recomendam uma dieta rica em verduras como o repolho-roxo e frutas como a uva e o açaí, todos ricos em antocianinas. As plantas possuem ainda outros corantes antioxidantes. Os mais comuns são os carotenoides, que colaboram com a clorofila na fotossíntese, sendo os responsáveis pelo amarelo das folhas no outono e pela cor da cenoura, do tomate e do urucum. Uma única ordem de plan-

As antocianinas do repolho-roxo mudam de cor segundo a acidez da solução, que vai do muito ácido (vermelho) ao muito básico (amarelo). Na página ao lado, flores de gengibre-azul-brasileiro, ricas em antocianinas

Nas plantas, além de dissipar a energia da luz ultravioleta, as antocianinas neutralizam os radicais livres tas, as das Caryophyllales, que inclui as beterrabas, os cactos e as buganvílias, produz no lugar das antocianinas outros corantes antioxidantes, as betalaínas. Nenhum outro corante vegetal, porém, dá origem a uma variedade de tons de azul e vermelho tão grande quanto as antocianinas. Suas cores dependem da acidez e da presença nos vacúolos de certos copigmentos e metais. Por essa razão, uma mesma antocianina, a cianina, em condições diferentes, colore tanto as centáureas-azuis quanto as rosas-vermelhas.

Misturadas com uma concentração baixa de copigmentos, as antocianinas mudam de cor facilmente com pequenas alterações de acidez, o que impede na maioria das vezes seu uso pela indústria de alimentos. Uma exceção é a cor do vinho tinto, que se mantém devido a uma reação entre as antocianinas. “Gostaríamos de achar um modo de estabilizar a cor de uma antocianina pura”, diz Quina. “Por ora só sabemos fazer isso com coisas não comestíveis, como alguns detergentes.” Outra dificuldade de trabalhar com as antocianinas é obtê-las em grande quantidade. “Para extrair 20 miligramas de antocianinas da flor de um parente da batata-doce, são necessários 20 quilos de flores”, conta Amauri Marcato, químico com doutorado em botânica, colaborador de Quina na USP. Além disso, obter a partir da mistura natural de antocianinas um extrato purificado, contendo um único tipo de molécula, é caro e trabalhoso. Por causa dessa limitação, o estudo das antocianinas geralmente é feito usando outras moléculas como modelo, os chamados sais de flavílio, mais fáceis de obter. Menos complexos que as antocianinas, os sais de flavílio possuem a mesma estrutura atômica que absorve a luz nas antocianinas. Quina e Marcato esperam contornar esses problemas em breve, tentando produzir antocianinas in vitro. A ideia é cultivar em laboratório um líquido com células vegetais indiferenciadas, originárias de uma planta jovem. Controlando as condições de cultura, tal como a luminosidade, eles esperam induzir suas células a produzir algumas antocianinas em grande quantidade. “Ficaria muito mais fácil separá-las”, explica Marcato. Também está nos planos de Quina colaborar com biólogos moleculares para manipular a síntese das antocianinas. Ele acredita que não esteja longe o dia em que será produzida uma variedade de cacau cujas folhas crescem vermelhas a vida toda. Assim a árvore poderia crescer ao sol, que a ajudaria e se livrar do fungo vassoura-de-bruxa, principal praga da cultura de cacau. n

Artigo científico FERREIRA DA SILVA, P. et al. Photoprotection and the photophysics of acylated anthocyanins. Chemistry European Journal. v. 18. 2012. pESQUISA FAPESP 202  z  45


bioquímica y

Toxicidade reforçada Uso de crack mata mais neurônios do que cocaína

F

umar crack – mistura de pasta de cocaína, bicarbonato de sódio e água – é mais danoso aos neurônios do que cheirar cocaína pura. A conclusão é de um trabalho feito por um grupo de pesquisadores paulistas, liderados por Tania Marcourakis, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP), que estuda desde 2007 a ação dessas drogas nas células cerebrais. Os efeitos negativos do crack se potencializam porque, ao consumi-lo, o indivíduo inala não apenas cocaína, um alcaloide, mas também um éster conhecido como metilecgonidina ou simplesmente Aeme. Há poucas informações a respeito dos efeitos do éster, que é produzido quando a cocaína é queimada em alta temperatura e pode causar, como sugere o estudo, a morte de neurônios. A pesquisa foi realizada em cultura de células do hipocampo de ratos expostas a diferentes concentrações do éster e do alcaloide, isolados e em combinação. O hipocampo está envolvido no processo 46  z  dezembro DE 2012

de aprendizagem e é rico em receptores colinérgicos muscarínicos que se ligam ao neurotransmissor acetilcolina, importante para a fixação da memória. “Constatamos que, quando os neurônios permanecem em contato com a cocaína e o Aeme por um período de 48 horas, ocorre um efeito neurotóxico muito maior do que quando expostos a cada uma dessas substâncias isoladamente”, afirma Tania. A neurotoxicidade se dá por mecanismos diferentes. A cocaína induz a morte neuronal por duas vias: por necrose – a célula sofre uma espécie de inflamação, incha e arrebenta, extravasando seu conteúdo – e por apoptose, uma morte celular programada, em que o núcleo da célula se fragmenta, formando pequenos corpos que são fagocitados pelas células de defesa do organismo. O Aeme provoca a morte celular apenas por apoptose. Os primeiros resultados do estudo, com apoio da FAPESP, foram publicados em abril na revista científica Toxicological Sciences.

A devastação nas células cerebrais provocada pelo uso do crack está relacionada à sua quantidade e frequência de consumo, já que o éster permanece no organismo por um tempo prolongado. “O efeito cumulativo do Aeme ainda não foi avaliado. Constatamos, no entanto, que a exposição de uma cultura de neurônios ao éster por 24 a 48 horas mata essas células. Se essa neurotoxicidade pode levar a uma neurodegeneração é uma pergunta que não podemos responder no momento”, afirma Tania. Os efeitos do crack atingem rapidamente o cérebro e causam uma sensação de prazer de curta duração. Isso leva os usuários a aumentar a frequência do consumo da droga e desenvolver rapidamente dependência. A produção do Aeme durante o ato de fumar a droga parece reforçar a dependência do usuário. A cocaína inibe a recaptura de dopamina, neurotransmissor responsável pela sensação de prazer, e aumenta sua concentração na fenda sináptica, pontos de comunicação entre dois neurônios. Esse mecanismo é o responsável por seus

ilustração  gabriel bitar

Claudia Izique


efeitos estimulantes. “Nossa teoria é que o Aeme se liga a receptores muscarínicos do tipo M5 na área tegumental ventral [grupo de neurônios localizados no mesencéfalo, parte do cérebro ligada à visão, audição, controle motor, sono e vigília e controle de temperatura]”, diz Tania. “Isso estimularia a liberação de dopamina no núcleo accunbens [estrutura cerebral ligada à sensação de prazer], potencializando o processo de dependência da cocaína.” Essa teoria será testada na Universidade Vanderbilt, nos Estados Unidos, pelo aluno de doutorado Raphael Caio Tamborelli Garcia. Os efeitos da cocaína no núcleo já eram conhecidos. “No entanto, a pesquisa mostra que, no caso do crack, há algo mais”, diz Cleopatra da Silva Planeta, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade Estadual Paulista (Unesp), de Araraquara. Segundo maior mercado

O uso da cocaína, em sua forma intranasal ou na mistura de crack para ser fumada, assumiu proporções dramáticas

no Brasil: o país já é o segundo maior consumidor global da droga, com 2,6 milhões de usuários, um terço deles dependentes do crack. Os números foram coletados pelo II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad), realizado pelo Instituto Nacional de Políticas Públicas do Álcool e Outras Drogas (Inpad), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), com o apoio da FAPESP. “Temos um mercado consumidor maior que o de toda a Europa e América Latina. Perdemos apenas para os Estados Unidos”, diz Ronaldo Laranjeira, coordenador do Inpad. A posição de destaque do Brasil se sustenta em função do baixo preço da droga. Aqui ela custa um décimo do valor de mercado praticado nos Estados Unidos e um vigésimo do preço cobrado na Europa, segundo o pesquisador da Unifesp. A proximidade dos grandes produtores de cocaína – Colômbia, Peru e Bolívia – e a alta capilaridade do sistema de distribuição da droga no Brasil

são outros fatores que favorecem seu alto consumo. A rede de distribuição, formada por pequenos traficantes, é altamente eficiente: o maior consumo está no Sudeste, com 45% dos usuários, mas a cocaína/crack está presente no Nordeste (27%), Norte e Centro-Oeste (10%) e no Sul (7%). “Isso torna o controle muito mais difícil”, diz ele. A cocaína consumida por via nasal é de uso mais comum. Foi experimentada por 4% dos adultos, segundo a pesquisa. Dois milhões de brasileiros já utilizaram o crack pelo menos uma vez na vida e um em cada 100 adultos fumou essa substância no último ano, expondo-se aos riscos duplos da cocaína e do éster Aeme, ainda de acordo com levantamento da Unifesp. Quase a metade dos usuários experimentou a cocaína pela primeira vez antes dos 18 anos. O Ministério da Saúde e o governo paulista têm investido no tratamento de indivíduos viciados. “O estado de São Paulo se comprometeu a ampliar para 3.700 o número de leitos de internação em clínicas especializadas”, afirma Laranjeira. Os números, no entanto, não deixam dúvidas de que o Brasil deixou de ser um país de passagem para ser um consumidor da droga, o que exige uma atuação forte junto às áreas produtoras. “É preciso adotar uma política de negociação com esses países, já que se trata de uma atividade de produção que envolve uma parcela representativa do PIB. Esse entendimento envolve relações bilaterais e multilaterais, considerando que não temos recursos para fechar fronteiras.” n

Artigo científico GARCIA, R. C. et al. The neurotoxicity of anhydroecgonine methyl ester, a crack cocaine pyrolysis product. Toxicological Sciences. v. 128, p. 223-34. jul 2012. pESQUISA FAPESP 202  z  47


Evolução humanay

Rastros da miscigenação Vírus humano reflete as migrações ocorridas entre distintas etnias no Pará Marcos Pivetta

U

m vírus que frequentemente permanece latente e inofensivo e é encontrado em cerca de 80% da população mundial está sendo usado como um marcador molecular de antigos movimentos migratórios na região Norte. Um trabalho feito por cientistas da Universidade Federal do Pará (UFPA) mostra que uma versão asiática do vírus de John Cunningham, mais conhecido pela sigla JCV, pode ser encontrada entre afrodescendentes de quilombos próximos ao rio Trombetas, no norte do estado. O estudo também revela que um subtipo do vírus associado aos índios do norte das Américas e aos primeiros colonizadores do continente está presente no território da tribo indígena Suruí. Esses dados sugerem que os negros quilombolas, uma comunidade historicamente homogênea e com origens no final do século XVIII, travaram contato com índios, que costumam carregar o tipo asiático do vírus. Sinalizam igualmente que uma antiga cepa do microrganismo vinda da parte mais setentrional do continente penetrou, trazida por algum indivíduo, nas terras habitadas pelos Suruí, que vivem hoje em estado de semi-isolamento. Entre os habitantes de Belém, onde houve mistura de distintas etnias desde a fundação da futura cidade, há quase 400 anos, foram identificadas formas europeias, africanas e asiáticas do JCV, sendo as da segunda variante as mais co-

48  z  dezembro DE 2012

muns. “Os resultados do trabalho batem com informações levantadas por estudos sobre a genética de populações do Pará e dados históricos”, diz Ricardo Ishak, do Laboratório de Virologia do Instituto de Ciências Biológicas da UFPA, coordenador do estudo, que foi publicado na revista científica Plos One em 12 de outubro. A pesquisa também identificou a presença de um microrganismo geneticamente muito semelhante ao JCV num indivíduo da população negra, o vírus BKV, normalmente achado em pacientes que se submeteram a transplantes de medula óssea ou renal e em chineses sadios. O estudo procurou a presença do vírus na urina de 341 residentes sadios da cidade de Belém, 42 índios de 10 tribos e 63 afrodescendentes do quilombo. O JCV foi encontrado em um terço dos moradores analisados da capital paraense, índice comparável ao da Austrália e de áreas urbanas dos Estados Unidos e Europa, e em 40% dos descendentes de escravos da região do rio Trombetas. “Apenas uma índia dos Suruí tinha o vírus”, afirma Ishak. “Mas, a partir desse registro, podemos dizer que o JCV circula nessa comunidade.” Essa foi a única etnia indígena em que o vírus foi identificado. Por meio do sequenciamento de trechos do DNA do patógeno, os pesquisadores determinaram o tipo e o subtipo do vírus presente em uma parte dos indivíduos da amostra, mais precisamente 46 pessoas,

representantes das populações de Belém, dos quilombos e dos índios. “Alguns microrganismos podem ser considerados marcadores bioantropológicos de migrações e da dinâmica de mestiçagem desde que seus tipos ou subtipos sejam específicos de um continente ou de uma população”, diz Maria Cátira Bortolini, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), autora de um trabalho nessa linha sobre a bactéria Helicobacter pylori presente no estômago humano. “O artigo [da Plos] é um bom exemplo dessa premissa.” Out of Africa

O JCV não causa doenças em 95% das pessoas infectadas. No entanto, pode provocar em indivíduos com comprometimento do sistema imunológico, como pacientes com Aids, uma desordem neurológica que afeta o sistema nervoso central, a leucoencefalopatia multifocal progressiva (LMP). No caso do trabalho feito no Pará, os pesquisadores não estavam interessados em estudar a patogenicidade do vírus, mas em checar sua utilidade como um registro vivo de contatos e migrações entre povos de diferentes etnias ou origem geográfica distinta. Essa abordagem vem sendo usada no exterior para estudos similares em várias populações, como os índios da América do Norte ou os japoneses, e até para reconstituir a saída do Homo sapiens da África.


Patógeno surgiu na África e se espalhou pelo globo a bordo de seu hospedeiro

pontas do sítio Clóvis

As Américas foram a última área povoada pelo homem há cerca de 13 mil anos – e infectada pelo JCV. Os índios tendem a ter formas asiáticas do vírus Primórdios dO vírus JCV

eduardo cesar

Mescla de etnias em Belém

Pedro Saura

Wikimedia Commons

cavernas do velho mundo

Há pelo menos 100 mil anos, o microrganismo se originou e deixou o continente africano

A variante inicial, africana, do

Segundo estudo da UFPA, o tipo

levado pelos primeiros homens

vírus era o tipo C. Duas novas

africano do vírus predomina na

modernos que emigraram

formas surgiram 50 mil anos

capital paraense, onde também

atrás: o tipo A, europeu, e o B,

podem ser encontradas as

presente na África e na Ásia

formas asiática e europeia

possível que uma das formas de contágio seja pelo contato com água contaminada. Afinal, o microrganismo fica alojado permanentemente no rim humano. Os trabalhos científicos sugerem que o JCV surgiu mais ou menos na mesma época do aparecimento do Homo sapiens, entre 100 mil e 200 mil anos atrás. Sua origem é igualmente situada no continente africano, berço do homem moderno. A forma mais ancestral do vírus, que emergiu nesse ponto do globo, é a hoje denominada tipo C. Da África, o microrganismo teria se espalhado pelos continentes do globo, seguindo os passos dos seres humanos, seu hospedeiro. Há cerca de 50 mil anos, teriam surgido outros dois tipos do vírus, o B, originalmente encontrado no noroeste da África e na Ásia, e o A, que emergiu possivelmente quando o homem fincou pé na Europa. Cada grande tipo do vírus é dividido em subtipos ainda mais específicos e ligados a uma área mais restrita. Por exemplo, dentro do tipo C há o subtipo Af1, predominante na maior parte

da África. O tipo B tem dois importantes subtipos, o Af2, também de origem africana, e o MY, asiático. O tipo A apresenta o subtipo EU, associado à Europa. De acordo com o artigo escrito pelos pesquisadores paraenses, o vírus exibe grande diversidade genética entre a população de Belém, com predomínio do tipo B, enquanto os quilombolas têm variantes africanas (Af2) e também asiáticas (MY). A índia Suruí também carregava o subtipo MY. “Vimos ainda que há mutações no vírus encontrado no Pará que parecem ter ocorrido após o JCV ter entrado nessa parte do Brasil”, comenta Ishak. Pode estar surgindo um subtipo tipicamente amazônico do agente infeccioso. n

Fonte do mapa: Adaptado de Pavesi, A. (2005). "Utility of JC polyomavirus in tracing the pattern of human migrations dating to prehistoric times". J. Gen. Virol. 86

Descoberto no início dos anos 1970, o JCV é classificado em tipos e subtipos geneticamente distintos e originários de regiões específicas do planeta. Por isso, segundo alguns cientistas, se presta a ser a base de estudos filogenéticos de caráter semelhante aos produzidos a partir da análise do DNA mitocondrial e do cromossomo Y humanos, que refletem, respectivamente, as linhagens maternas e paternas de um indivíduo ou de uma população. Se, por exemplo, é identificada uma linhagem africana do patógeno num lugar habitado por pessoas com biotipo caucasiano, esse dado é interpretado como um indício de que ali houve um convívio prolongado com um indivíduo da etnia negra. “Esse vírus é persistente e passa de geração em geração”, comenta Antonio Vallinoto, especialista em epidemiologia e imunologia molecular da UFPA, outro autor do estudo. “Sua transmissão ocorre geralmente entre membros de uma mesma família ou comunidade.” Não se sabe ao certo como o vírus é transmitido, mas é

Artigo científico CAYRES-VALLINOTO, I. M. V. et al. Human JCV infections as a bio-anthropological marker of the formation of brazilian amazonian populations. Plos One. Publicado on-line em 12 de out. 2012. pESQUISA FAPESP 202  z  49

Bill Whittaker / Wikimedia Commons

De carona no Homo sapiens


tecnologia  ecologia y

O perfume da

Amazônia Aproveitamento de folhas e galhos amplia em 25% a produção de óleo de pau-rosa texto

Carlos Fioravanti

fotos

Eduardo Cesar

de Maués, Amazonas

50  z  dezembro DE 2012

E

m Maués, cidade do interior do Amazonas agora com um padre recém-eleito como prefeito, recomeçou a extração de óleo de árvores de pau-rosa, usado em perfumes. Há uma novidade: são aproveitados não apenas o tronco da Aniba rosaeodora, como antes, mas também os galhos e as folhas, como resultado do trabalho de especialistas de centros de pesquisa e universidades de São Paulo, Pará e Amazonas em conjunto com os produtores. O aproveitamento de folhas e galhos fez a produção aumentar em 25% sem nenhum gasto adicional em matéria-prima, em equipamento ou em ajustes nas técnicas de produção, exatamente as mesmas adotadas para extrair óleo a partir dos troncos das árvores de pau-rosa. Portanto, não foi preciso desenvolver novos materiais ou técnicas de produção. A tarefa difícil, que consumiu 10 anos, foi construir os argumentos capazes de convencer os produtores a fazer o que, embora simples, nunca havia sido feito: aproveitar um material antes descartado. A possibilidade de uso ampliado do pau-rosa está estimulando o cultivo e reduzindo o corte de árvores da floresta, até há poucos anos a única fonte de matéria-prima. Durante quase um século o corte de árvores nativas foi intenso a ponto de causar o desaparecimento dessa espécie das áreas mais acessíveis e motivar a criação de uma rigorosa legislação regulando o corte e a exploração do pau-rosa, usado predominantemente para a produção de óleo aromático, por causa da madeira macia, desconsiderada para outros usos. A retomada da produção de óleo de pau-rosa pode reacender o interesse dos grandes produtores de perfumes, que deixaram de incluir esse componente em seus produtos por causa do fornecimento irregular ou de pressões de consumidores, preocupados com a possibilidade de desaparecimento dessa espécie de árvore da Amazônia. “O Chanel n° 5 tinha pau-rosa, mas não tem mais já há alguns anos”, diz o


perfumista Olivier Paget, da Mane, empresa produtora de fragrâncias. Desde 1990 ele próprio não incluía esse óleo em suas formulações – e nem o tinha à mão. Os colegas mais velhos diziam que a qualidade dos lotes era irregular, tanto quanto o fornecimento. Agora Paget está considerando o óleo de pau-rosa novamente. A pedido da Chamma da Amazônia, empresa de Belém que produz perfumes e banhos a partir de plantas da região, ele desenvolveu uma colônia masculina com 5% de óleo de folhas de pau-rosa em meio a outros 37 componentes, entre eles tomilho, noz-moscada e gerânio. Se avançar, a Eau de l’Amazonie será um dos primeiros produtos nacionais com óleo de folhas de pau-rosa. “Estamos há três anos tentando lançar”, relata Fátima Chamma, diretora da empresa. Um dos maiores obstáculos é a legislação, em especial a Medida Provisória 2.186, que impõe regras rigorosas sobre o acesso à biodiversidade e o compartilhamento de benefícios. Apresentada em junho na Rio+20, a colônia pode entrar em produção experimental em 2013, à medida que o fornecimento de matérias-primas se regularizar e a legislação permitir. “Vamos respeitar os limites liberados pelos órgãos do governo”, diz ela. Para complicar, em 2010 o pau-rosa entrou na lista de produtos controlados pela Convenção sobre Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas de Fauna e Flora (Cites) e, a partir daí, a exportação de óleo começou a ser monitorada e certificada de acordo com os padrões internacionais que assegurem a continuidade da espécie. A todo vapor

Agora as coisas parecem estar nos eixos. No final de outubro, tão logo recebeu a autorização do Ibama para iniciar o corte de pau-rosa cultivado desde 1989, os Magaldi, uma das famílias mais tradicionais de Maués, ligaram os equipamentos da usina de produção, situada no final da avenida que acompa-

Máquinas antigas e uma ideia nova: motor a vapor (detalhe ao lado) move os equipamentos que extraem óleo da folha de pau-rosa (acima) pESQUISA FAPESP 202  z  51


Como extrair óleo de pau-rosa Vapor de água captura o óleo das folhas e da madeira 1 Uma caldeira

2 Dentro do

produz vapor

destilador,

que vai para

o calor rompe

3 O vapor de água entra

o destilador

as bolsas da

por baixo do destilador,

em que são

superfície da

passa pelo material

colocados

folha e da casca

triturado, arrasta o óleo

troncos, galhos e

que contêm

e sai por uma serpentina

folhas triturados

o óleo essencial 4 Os compostos voláteis e o óleo levados pelo vapor água fria

se liquefazem ao encontrar a superfície fria da serpentina resfriada a água

5 Óleo e água caem no separador e água

formam duas

serpentina

camadas: a superior é o óleo, que é

destilador separador caldeira

53

é o total de componentes já identificados do óleo de pau-rosa

52  z  dezembro DE 2012

filtrado e coletado FONTE LAuro Barata/Unicamp-ufopa

nha a orla, ao lado das praias de areia branca, só visíveis nesta época do ano, quando o rio está baixo, com apenas cinco quilômetros de largura. Os equipamentos são simples, antigos e potentes. Usando a água do rio, uma caldeira resgatada de um rebocador que afundou há décadas produz o vapor que alimenta um motor, também retirado do rebocador. A saída do vapor excedente produz um som intenso e ritmado, como o de uma locomotiva a vapor. Por meio de correias, o motor move uma serra circular, que corta os troncos, um moinho que tritura as toras e galhos em segundos, e as esteiras que levam o material triturado até os seis destiladores acoplados a condensadores e separadores. Depois de um dia de destilação a vapor, o mesmo método usado para produzir óleo de eucalipto, menta e outras plantas aromáticas (ver infográfico), já se pode coletar o líquido espesso verde-claro. A manipulação da madeira e das folhas e a coleta do óleo deixam no ar um cheiro cítrico e adocicado que, para um portador de olfato rudimentar, lembra o de erva-cidreira. “Agora aproveitamos até o pó do corte dos troncos”, comemora Carlos Magaldi, um dos responsáveis pela produção. “Não perdemos mais nada.” Seu pai, Zanoni Magaldi, 77 anos, que herdou a usina do pai, Francisco Magaldi, e a reformou a partir da década de 1960, instalando os equipamentos atuais, reitera: “Esse é o caminho”. Hoje

eles são os únicos produtores em Maués (e um dos poucos no estado do Amazonas), já que as outras empresas locais de extração de óleo de pau-rosa fecharam por falta de madeira ou do crescente rigor da legislação. Como passaram quase um ano sem produzir, à espera da autorização do Ibama, agora os Magaldi têm pressa. De um estoque de 11 mil árvores, que começaram a plantar em 1989 prevendo que a madeira poderia faltar nos anos seguintes, querem aproveitar 200 árvores inteiras e os galhos e folhas de outras mil. Eles sabem que poderiam extrair apenas de galhos e folhas, contribuindo ainda mais intensamente para a recuperação dessa espécie, mas estão produzindo uma mistura de óleo de madeira do tronco e o de galhos e folhas por duas razões. A primeira é que há uma demanda contida, já que a produção esteve parada até agora, enquanto não recebiam o sinal verde do Ibama, essencial para assegurarem a certificação da origem do óleo e poderem vender o óleo. A segunda é que eles acreditam que o blend é mais aceito pelos clientes. “O cheiro do óleo só de folhas não é tão bom”, assegura Zanoni. Até fevereiro de 2013, eles pretendem produzir 10 tambores (cada tambor contém 180 quilogramas (kg)); a primeira produção aproveitando folhas e galhos, realizada no final de 2011, rendeu 14 tambores. O óleo deve ser vendido de US$ 160 a US$ 200 o quilograma para empresas dos Estados Unidos, da Europa e do Japão, que por sua vez revendem para os produtores de perfumes. “Não precisamos mais da madeira da floresta”, assegura Carlos Magaldi, com base na área cultivada, de 14 hectares, dividida em quadras com árvores de idades diferentes, e no plano de plantar 10 mil mudas, que por enquanto descansam à sombra em um viveiro ao lado do galpão. A Retórica da ciência

Hoje os argumentos a favor do aproveitamento parecem óbvios, mas não eram até poucos anos atrás. “As folhas e galhos contêm 1,8% de óleo, enquanto a madeira do tronco, no máximo 1%”, informa o químico Lauro Barata, pesquisador associado do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor visitante da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), em Santarém, no Pará. Ele levantou a possibilidade de aproveitar as folhas, em 2000, em um mapeamento do mercado produtor e consumidor para a Chanel. Aproveitar as folhas foi um dos cenários possíveis que ele apresentou como forma de manter a produção de óleo e silenciar as acusações de organizações ambientalistas de que a empresa francesa de perfumes estaria contribuindo para a extinção dessa espécie de árvore da Amazônia. No início, seu único argu-


1

2

3

Produção azeitada: uma caldeira (1) produz o vapor que alimenta um motor (2) que move o triturador e os outros equipamentos (3). Centenas de mudas de pau-rosa aguardam o momento de ir a campo (4)

mento para tirar óleo de folhas era um artigo de 1957 do químico tcheco naturalizado brasileiro Otto Gottlieb indicando essa possibilidade. Nos anos seguintes, Barata foi a campo, colheu folhas de plantações experimentais em Belém, Santarém e Manaus e aos poucos viu que sua hipótese tinha sentido. “Não é fácil, mas temos de nos expor”, diz ele. “Vendi a ideia em congressos onde empresários e perfumistas, não os cientistas, eram o público predominante.” Nas apresentações que fazia e nos intervalos dos congressos, ele abria um vidrinho com óleo de folhas diante dos empresários e perfumistas, que, depois de sentirem o novo aroma, lhe diziam que acreditavam na viabilidade comercial do óleo de folhas de pau-rosa. Em 2005 ele já havia caracterizado quimicamente o óleo de folhas e o da madeira (ver Pesquisa FAPESP nº 111), mas o trabalho de convencimento ainda não havia terminado. Em 2009 Barata passou por outra prova, ao se encontrar com Zanoni Magaldi, que conhecera anos antes, quando fazia o levantamento para a Chanel. Zanoni ouviu desconfiado, já que essa possibilidade nunca havia sido cogitada antes, mesmo que parecesse tão simples, e resolveu conferir. Como primeiro passo, ele pediu para seus fornecedores, que traziam as toras da floresta,

4

recolherem e trazer também os galhos com as folhas. Sim, saía óleo de boa qualidade e, melhor ainda, os clientes gostaram. Eles avaliaram também a rebrota da árvore. “O que nos animou a continuar foi ver a rebrota rápida, após a poda”, conta Carlos Magaldi. “Já pelamos uma árvore e ela rebrotou totalmente.” Estudos feitos na Unicamp, na Ufopa e no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus, indicaram que a partir de três anos o pau-rosa já pode ser podado, tendo em vista a extração de óleo. Além disso, o óleo de árvores com 4, 10 e 15 anos se mostraram quimicamente equivalentes. As análises realizadas na Unicamp indicaram que o óleo é uma combinação de 53 substâncias. A predominante, que lhe confere o aroma peculiar, é o linalol, cuja concentração pode chegar a 87% na madeira e a 90% nas folhas. Encontrado também em outras plantas, como Croton cajucara, um arbusto conhecido na Amazônia como sacaca, o linalol tem sido usado experimentalmente para combater fungos e larvas de mosquitos como o da dengue. Por enquanto, o óleo de pau-rosa provém apenas da Amazônia brasileira – na década de 1960 foi o terceiro item regional mais exportado, depois da borracha e da castanha –, mas já se comenta que países vizinhos estejam cultivando essa árvore para disputar um mercado mundial estimado em 40 toneladas anuais. Barata acredita que o cultivo de pau-rosa pode ser uma alternativa econômica para a soja e o milho, que se expandem em grandes propriedapESQUISA FAPESP 202  z  53


Um pau-rosa crescendo em Maués: primeira poda pode ser feita três anos após o plantio

des da Amazônia. “Se meus cálculos estiverem certos, uma área pequena, de 20 hectares, pode produzir uma tonelada de óleo por ano e render US$ 100 mil ou US$ 5 mil por hectare, o dobro do milho e da soja”, ele diz. “Portanto, 2 mil hectares plantados seriam suficientes para abastecer todo o mercado consumidor.” Seu argumento é que o pau-rosa sairá da lista de plantas ameaçadas de extinção à medida que for mais cultivado e valorizado economicamente. Isso já ocorreu, lembra ele, com o açaí, antes derrubado para a extração do palmito e depois preservado e cultivado para a produção dos frutos largamente consumidos em Belém. “Se eu tivesse dinheiro, investiria em pau-rosa”, afirma o engenheiro florestal Paulo de Tarso Sampaio, pesquisador do Inpa e professor da Universidade Estadual do Amazonas que trabalha com essa árvore há 20 anos. “Acredito no cultivo, não no extrativismo.” Há oito anos ele distribui as mudas que cultiva em um viveiro no Inpa para agricultores e representantes de organizações não governamentais, que as plantam em áreas degradadas. O plantio mais recente, ele conta, foi feito em Presidente Figueiredo, a 125 quilômetros de Manaus, em conjunto com agricultores, que ocuparam cinco hectares com

pau-rosa e outras três espécies de árvores, copaíba, andiroba e cumaru, que também produzem óleos essenciais de valor comercial. Enquanto conta o que tem feito, Sampaio coloca sobre a mesa de um dos laboratórios em que trabalha uma garrafa de vinho quase cheia com óleo verde-claro, colhido de folhas e galhos de pau-rosa com cinco anos de idade cultivado em Maués, que Patrícia Sayuri Takeda, de sua equipe, extraiu e analisou. Por meio de estudos de campo, feitos em cultivos comerciais como o dos Magaldi e em uma reserva florestal de 10 mil hectares (ou 100 quilômetros quadrados) próxima a Manaus, Sampaio observou que o pau-rosa é uma árvore muito sensível à luz e à competição com outras plantas durante o primeiro ano de vida, mas depois se mostra generosa e aos 3 anos de idade fornece 16 kg de galhos e folhas. Segundo ele, uma das maiores limitações do cultivo de pau-rosa é a produção de sementes, muito predadas por tucanos enquanto estão na árvore e, depois de colhidas, muito atacadas por insetos. O grupo do Inpa está examinando a distribuição geográfica da diversidade genética das populações nativas, métodos para identificar a origem das sementes e mudas, as melhores formas de controle de pragas, adubação e cultivo de pau-rosa. Em Maués, os Magaldi testaram várias possibilidades e concluíram que o melhor espaçamento entre as árvores é de 2,5 metros entre cada árvore e 3 metros entre as fileiras de árvores. O conhecimento adquirido está sendo disseminado não só em artigos científicos, mas também em publicações de amplo alcance como o Manual de sementes da Amazônia – Pau-rosa (Editora Inpa, 2011), do qual Sampaio é um dos autores, e o Guia de propágulos e plantas da Amazônia (Editora Inpa, 2008, Prêmio Jabuti 2009), coordenado pelo ecólogo e pesquisador do Inpa José Luís Camargo. As erveiras de Belém

A articulação entre pesquisadores, empresários, consumidores e representantes do governo talvez ajude a ampliar o uso tradicional de plantas para a produção de perfumes, banhos, chás, pomadas ou remédios, evidente no mercado Ver-o-Peso, no centro histórico de Belém. Ali, em dezenas de bancas, as erveiras – geralmente são mulheres – vendem cascas de árvores, folhas, raízes e vidros de perfumes de nomes curiosos – Chama Freguês, Pega Mulher, Chora aos Meus Pés, Dinheiro em Penca –, o clássico Cheiro do Pará, o Banho de Amor e pomadas como a de andiroba, indicada para artrite, artrose e dores musculares. Um dos destaques, que as vendedoras anunciam quase sempre, é o Viagra Natural, uma mistura de marapuanã, arranca-toco, embiriba, ginseng, guaraná, moleque-seco e jucá; o rótulo, além da composição, 54  z  dezembro DE 2012


Clotilde Souza em sua banca de ervas, vigiada por São Jorge, no Ver-o-Peso, de Belém: “Aqui é minha casa, é meu trabalho”

As folhas de outras duas espécies de árvores, macacaporanga e preciosa, também produzem óleos aromáticos

traz a recomendação: “Tomar três vezes ao dia”. A sobreposição de cheiros agradáveis e desagradáveis e de vozes cria uma atmosfera inebriante. “Vocês conhecem alguma mulher mais bonita do que eu?”, uma mulher baixa, morena e alegre pergunta a quem entra em um dos corredores de bancas de ervas e perfumes. É Clotilde Melo de Souza, a dona Coló, com galhos de arruda presos nos brincos em formato de pimenta-vermelha. Ela tem 58 anos e há 33 anos está ali, com uma banca que exibe um São Jorge à frente dos vidros de perfumes, pomadas e banhos. Dois filhos e uma filha têm bancas no mesmo corredor, quase em frente à dela. “Aqui é minha casa, é meu trabalho”, ela se orgulha. “Daqui só saio quando morrer.” Outra vendedora é igualmente atenciosa, mas desconfiada: “Vocês não vão prejudicar a gente, não é?”. Em 2005 as erveiras se sentiram lesadas e acusaram judicialmente uma empresa nacional de cosméticos que produziu perfumes a partir das informações que elas forneceram, sem lhes oferecer nenhuma retribuição. A implantação e disseminação das novas técnicas para extração do óleo de pau-rosa talvez indiquem como aproveitar uma planta nativa sem levá-la ao extermínio e com benefícios compartilhados.

Barata tem 70 anos e sabe que ainda há muito por fazer. Como se deu com o pau-rosa, os avanços exigirão muita pesquisa e retórica. Ele conta que convenceu um plantador de soja de Santarém a ceder uma área de dois hectares para fazer um plantio experimental de um capim nativo da Amazônia, a priprioca (Cyperus articulatus), cujo rizoma, vendido no Ver-o-Peso por R$ 5 por unidade, é usado na produção de perfumes e pode propiciar um retorno financeiro em apenas um ano, bem menos que os cinco da soja. Outro plano para 2013 é iniciar os testes do óleo de macacaporanga (Aniba parviflora), uma árvore cujas folhas também produzem óleo aromático. No Inpa, Adriana Manhães, pesquisadora da equipe de Sampaio, conduziu um estudo que indicou a diferença da composição do óleo das folhas e ramos da preciosa (Aniba canelilla), que também era cortada para extração do óleo. Estima-se em 350 o total de espécies de plantas aromáticas da Amazônia, mas apenas 10 são aproveitadas comercialmente em perfumes, medicamentos, cosméticos ou produtos capazes de deixar um cheiro agradável no corpo, na roupa ou nas casas. n

Artigos científicos MANHÃES, A. P. et al. Biomass production and essential oil yield from leaves, fine stemes and resprouts using pruning the crown of Aniva canelilla (H.B.K) (Lauraceae) in the Central Amazon. Acta Amazonica. v. 42, p. 355-62, 2012. FIDELIS, C. H. V. et al. Correlation between maturity of tree and GC GC qMS chemical profiles of essential oil from leaves of Aniba rosaeodora Ducke. Microchemical Journal. v. 1, p. 1-5. 2012. FIDELIS, C. H. V. et al. Chemical characterization of rosewood (Aniba rosaeodora Ducke) leaf essential oil by comprehensive two-dimensional gas chromatography coupled with quadrupole mass spectrometry. The Journal of Essential Oil Research. v. 24, p. 245-51, 2012. pESQUISA FAPESP 202  z  55


energia y

Cidades do futuro Redes inteligentes trazem integração de fontes energéticas e de dados e abrem novas possibilidades para o consumidor

foto cemig

Marcos de Oliveira

56  z  dezembro DE 2012


A

Sete Lagoas, Minas Gerais, é uma das três cidades-piloto no Brasil para experimentos em redes inteligentes de energia elétrica

aprazível cidade de Búzios, no litoral fluminense, se tornou em novembro a mais nova cidade do planeta a servir de projeto-piloto para a implantação de uma concepção revolucionária em relação à distribuição e ao controle da energia elétrica. Búzios vai se alinhar com outras cidades, como Sete Lagoas, em Minas Gerais, Parintins, no Pará, ou Aparecida, em São Paulo, ou ainda Boulder e Columbus, nos Estados Unidos, Estocolmo, na Suécia, e Málaga, na Espanha. Elas podem ser chamadas de cidades do futuro porque começam a experimentar um tipo de gestão energética que vai trazer um melhor aproveitamento e novas formas de geração, interação e uso da eletricidade tanto para as empresas produtoras e distribuidoras da energia como para o consumidor. Chamadas de redes inteligentes ou, como são conhecidas mundialmente, smart grids, esses sistemas tornam digitais todos os dados e ampliam a participação do consumidor, que receberá mais informações sobre o consumo, gastos e economia de energia. Em Búzios começam a ser instalados pela concessionária Ampla a primeira leva de um equipamento primordial para os sistemas de redes inteligentes, os medidores eletrônicos, capazes de trazer novas informações aos consumidores, como a tarifa que está sendo cobrada naquele momento, gastos mensais, interrupções de energia, e os horários em que se gasta mais eletricidade na casa. Serão instalados, até 2014, 10 mil novos

medidores na cidade que possui 28 mil habitantes. No total, junto com o centro de monitoramento recém-inaugurado, serão investidos pela empresa R$ 40 milhões em todo o projeto de smart grid em Búzios. A empresa controladora da Ampla é a espanhola Endesa, que está implantando uma smartcity em Málaga com investimento de € 30 milhões. Lá, de forma semelhante a outras experiências de cidades do futuro na Europa e nos Estados Unidos, busca-se uma gestão do setor elétrico que leve a uma economia de energia de 20% e a uma redução de 6 milhões de toneladas por ano de emissões de gás carbônico (CO2), resultado da queima de carvão para gerar eletricidade. Assim, será dada mais atenção à produção de energias renováveis. Na Espanha, como no Brasil, tudo começa com a troca do medidor. No futuro, além de todas as informações que possa fornecer, ele também vai dispensar a leitura feita uma vez por mês por um funcionário da concessionária. Ela será computada pela própria fiação ou por outros sistemas de comunicação, que vão usar frequências de rádio, fibra óptica e até satélites. Por enquanto, os novos medidores medem o gasto de energia a cada 15 minutos e poderão indicar qual o horário, por exemplo, é mais barato usar a máquina de lavar ou o chuveiro. A partir de janeiro de 2014 as concessionárias serão obrigadas a instalar gratuitamente um desses medidores eletrônicos com tela de verificação de informações, para os pESQUISA FAPESP 202  z  57


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iniciar o atendimento dos consumidores que desejarem instalar uma micro ou minigeração em sua propriedade. A energia injetada na rede será revertida em créditos que reduzirão a fatura de energia da unidade consumidora”, diz André Pepitone, diretor da Aneel. Experimentos isolados

Smart grid não é um sistema, e sim um conceito de rede dotada de tecnologias digitais que oferece mais eficiência e confiabilidade

“Smart grid é um conceito de agregar funcionalidade e inteligência às redes de energia para ter ganhos de eficiência, custo e qualidades para os consumidores”, diz Denys Cláudio Souza, superintendente de Desenvolvimento e Engenharia da Distribuição da Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig), empresa que designou a cidade de Sete Lagoas (MG), com 214 mil habitantes, situada a 70 quilômetros de Belo Horizonte, como projeto-piloto. A Eletrobrás, por sua vez, escolheu Parintins, no estado do Amazonas, a 420 quilômetros da capital Manaus, uma ilha no rio Amazonas para ser o seu projeto-piloto. A cidade, com 102 mil habitantes, foi escolhida porque é um sistema isolado onde toda a eletricidade é extraída de geradores a diesel e existe a necessidade de um melhor acompanhamento das variações de gasto de energia ao longo do dia. A empresa pretende gastar R$ 22 milhões no projeto. Lá estão sendo trocados 14 mil medidores. Outro parceiro da Eletrobrás é o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD), que está levando para Parintins soluções de software para medições avançadas e relacionamento entre o cliente e a concessionária. “Em outro projeto estamos colaborando com a Celpe [Companhia Energética de Pernambuco] na implantação de equipamentos de medição avançada e automação da rede no arquipélago de Fernando de Noronha com o objetivo de tornar mais eficiente e sustentável o consumo de energia local, produzida com geradores a diesel”, diz Luiz Hernandes, coordenador do grupo de smart grid no CPqD. “As distribuidoras estão investigando agora o potencial das redes inteligentes, as estruturas tecnológicas e os custos, além do comportamento de uso do consumidor”, resume Hernandes. “Sabendo do comportamento do consumidor, e conhecendo melhor a rede

Em Búzios, no litoral do Rio de Janeiro, gerador eólico acoplado ao centro de monitoramento da concessionária

foto  ampla

consumidores que aderirem à chamada tarifa branca. Ao contrário da tarifa atual, a nova terá valores maiores no horário de pico, entre 17 e 22 horas, dependendo da região, ou na hora do almoço, e menores, principalmente de madrugada, quando o consumo cai e sobra energia. A oportunidade mais radical proporcionada pelo sistema smart grid é a possibilidade de o consumidor produzir a própria energia, em painéis fotovoltaicos, geradores eólicos ou mesmo em carros elétricos estacionados na garagem, e com isso obter descontos na energia que vem das concessionárias, como Eletropaulo, Eletrobras, Cemig, Light ou CPFL, entre outras. Quem está acostumado com a via de duas mãos da internet em que tanto se atua como receptor, obtendo vários tipos de informações, quanto emissor, com a postagem de textos e vídeos, não vai estranhar as redes inteligentes. Além de usufruir da energia tradicional, o consumidor residencial poderá exportar a energia gerada para a rede quando não a estiver usando, por exemplo, no período de férias. Uma tela nos novos medidores vai indicar o fluxo de energia nos dois sentidos. Para o smart grid se tornar realidade uma série de equipamentos e softwares começam a ser instalados nas cidades do futuro ou em experimentos pontuais nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. A perspectiva é que as concessionárias de energia elétrica possam ter um controle maior da eletricidade fornecida, evitando perdas que podem chegar até a 13%, o que equivale a R$ 7 bilhões por ano, segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). São as chamadas perdas não técnicas que ocorrem nas redes de distribuicão no país, em grande parte devidas a desvios clandestinos, o chamado “gato”, fora as perdas com equipamentos com má manutenção ou já desgastados pelo tempo. Também poderão minimizar apagões com o maior controle e redirecionamento de energia quando acontecem defeitos e acidentes nas redes. Controlar perdas e tornar o sistema elétrico mais eficiente será muito importante em vista do crescimento médio do consumo esperado entre 2012 e 2021, que é de 4,3% ao ano, segundo a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), do Ministério de Minas e Energia (MME). No sistema de pesquisa e desenvolvimento (P&D) exigido pela Aneel, nos contratos de concessão da energia elétrica no país, o smart grid está presente em 178 projetos. As empresas são obrigadas a aplicar 1% da receita líquida em projetos de P&D e eficiência energética. Muitas das iniciativas já possuem regulamentação, inclusive a geração da própria eletricidade pelo consumidor. “A Aneel, por meio de uma resolução, estabelece que a partir de 13 de dezembro de 2012 as concessionárias devem estar preparadas para


Gestão inteligente Smart grid vai facilitar a conexão de energias renováveis ainda pouco utilizadas, como a eólica e a solar, inclusive com a geração do próprio consumidor Geração de energia distribuição Dados para a concessionária

fontes No Brasil, 81,7% da energia elétrica é gerada em

concessionária

hidrelétricas. Essa energia é

Terão centrais de

comprada pelas concessionárias

monitoramento que vão

que fazem a distribuição

captar dados dos medidores

residencial

e demais equipamentos da

Com o barateamento dos

rede. O controle será mais

equipamentos, será possível gerar

preciso e eficiente

energia em casa e em prédios

energia eólica painel solar

comercial industrial Geradores poderão ser recarregados de madrugada, quando a tarifa é menor, e dispor a energia

infográfico alexandre affonso

nos horários de pico

Com os novos medidores, além de gerar a própria energia, lojas e escritórios poderão controlar melhor o consumo de eletricidade

fonte  epe, cgee-mct

pESQUISA FAPESP 202  z  59


elétrica, a concessionária vai estabelecer manutenções e tornar a operação do sistema mais eficiente, além de comprar energia das geradoras, que operam as hidrelétricas, de forma mais precisa.” empresas inovadoras

Muitas dessas novas soluções foram desenvolvidas especialmente por empresas com base tecnológica no país ou por multinacionais instaladas aqui. Entre as nacionais, a maior concentração é na área de softwares, como a Concert Technologies, empresa com sede em São Paulo e centro de pesquisa e desenvolvimento (P&D) em Belo Horizonte, Minas Gerais. Um dos produtos da empresa é um software já instalado na sala de controle da Cemig, na capital mineira, para tratamento de dados em tempo real com informações que vêm dos sensores espalhados ao longo da rede elétrica. “Outra participação na área de smart grid é um projeto de P&D da Concert, que desenvolveu um equipamento para monitoramento da rede e de um novo transformador de energia, dotado de sensores capazes de detectar a localização de falhas na rede”, diz Ângelo Fares Menhem, diretor de tecnologia da empresa. Os transformadores fazem a transferência da média tensão dos cabos da rua para a baixa ten-

são (110-220 volts) usados pelos consumidores residenciais, por exemplo. O projeto foi desenvolvido em parceria com a Eletropaulo, que atende a Região Metropolitana de São Paulo. O protótipo do transformador foi aprovado e agora está na fase de desenvolvimento de engenharia. “Como somos uma empresa de desenvolvimento, principalmente de softwares para uso em situações de tempo real, não pretendemos fabricar os equipamentos em larga escala. Estamos em entendimento com a Eletropaulo para licenciar o aparelho para um ou mais fabricantes”, diz Menhem. Outro equipamento recém-desenvolvido foi feito sob encomenda da Light, concessionária de 31 municípios do estado do Rio de Janeiro. É um medidor eletrônico elaborado pelo Instituto de Tecnologia para o Desenvolvimento (Lactec), de Curitiba, no Paraná. “Desde 2010 estamos desenvolvendo um medidor que pode ser instalado em cada casa ou num poste para atender até 12 residências. A característica importante dele é que cada casa terá um aparelho que é basicamente um display [tela] do tamanho de um smartphone, embora mais grosso, que pode ser ligado a uma tomada e ficar preso em um parafuso na parede ou ficar em cima de um móvel. Com cinco linhas de texto na tela em preto e branco, o consumidor

Usina de energia em casa energia eólica Menores e mais práticos, os novos aerogeradores verticais devem facilitar o uso em casas e prédios gerador Pode acumular eletricidade da energia solar e eólica ou até do carro elétrico energia solar Painéis fotovoltaicos no telhado podem contribuir Nas férias, a energia pode

Informações do gasto

ser exportada para a rede

de energia em horários distintos e do sentido

carro elétrico

(consumo ou produção)

Estacionado na garagem e com

do fluxo da eletricidade

bateria carregada, poderá ser útil em casos de apagão para suprir a energia da casa

60  z  dezembro DE 2012

infográfico alexandre affonso

para o gasto interno da casa. Medidor digital


A troca de um medidor no Rio de Janeiro e o aparelho criado em parceria por Lactec e Light para uso dentro de casa. Ele vai permitir um maior controle do consumo

uma linha de dispositivos que são os pontos para onde os dados dos consumidores convergem”, diz Welson Jacometti, presidente da empresa. Dentre os dados captados da rede, ele diz que será possível, por exemplo, controlar remotamente a luz das ruas das cidades, desde que as lâmpadas sejam trocadas por Leds, diminuindo a intensidade durante a madrugada. “Essa prática poderá economizar 30% de energia para as prefeituras”, diz Jacometti. Os semáforos também podem ser integrados ao smart grid e, na falta de energia, a concessionária aciona de forma automática a companhia de trânsito. Com dados que podem ser captados dentro do conceito de smart grid, é de esperar para breve que as concessionárias recebam montanhas de informações dos clientes e da rede. “Trabalhamos em sistemas para controle e organização desse processo. Controlamos os dados necessários e adequaAs redes inteligentes vão gerar dos para o planejamento bilhões de dados que precisarão da concessionária”, diz Carlos Fróes, diretor da de controle e segurança KNBS, pequena empresa de Campinas, que foi uma start-up da Universidade terá informações como o consumo instantâneo”, Estadual de Campinas (Unicamp). “A CPFL, por diz Carlos Purim, gerente do Departamento de exemplo, é uma concessionária presente em mais Eletrônica e Informática do Lactec. O consumidor de 500 municípios nos estados de São Paulo, Patambém terá informações mensais de gastos, além raná, Rio Grande do Sul e Minas Gerais com mais de poder estabelecer metas e acompanhar pela tela de 7 milhões de clientes. Imagine se a empresa se está cumprindo o gasto previsto. Quando as ta- receber uma informação por minuto de cada um rifas diferenciadas estiverem vigorando em 2014 o desses clientes”, diz Fróes. “Por isso trabalhamos medidor informará por meio de luzes, verde (mais na qualidade de informação selecionando o que barata), amarela (intermediária) e vermelha (mais é importante.” cara), o valor que o consumidor estará pagando. Entre os dados coletados, além de informações As informações entre o medidor e o display se­ técnicas da rede, também estão horários de gasto rão transmitidas à concessionária por um sistema de energia de cada residência, quantas pessoas wireless chamado rede Mesh. Serão instalados 300 devem ter ali ou se a casa está vazia, por exemplo. medidores em casas do Rio de Janeiro. “Depois Que valor teriam esses dados? Como controlá-los desse teste em campo vamos transferir a tecno- para não serem roubados da rede? Algumas das logia para uma empresa”, diz Purim. soluções já fazem parte da internet e da segurança bancária. É a criptografia e o tráfego de dados com certificação digital. “Desenvolvemos e depositamos informações com sigilo Em Sete Lagoas, a Cemig e o CPqD também cria- uma patente de um medidor de energia que permiram soluções para um sistema de automação te o tráfego de dados com criptografia e certificaavançada. “Desenvolvemos algoritmos mate- ção digital”, diz Purim, referindo-se ao projeto da máticos para automação das redes inteligentes Light, que, além do Lactec, contou com o CPqD e em casos de defeito quando há necessidade de a CAS. “O conceito de smart grid é uma verdadeira reconfigurações, com transferência de fontes de revolução que leva a uma mudança radical na reenergia, isolando áreas afetadas sem comprome- lação entre as empresas e os consumidores”, diz o ter áreas maiores que o local do problema, como professor Gilberto Jannuzzi, da Unicamp, também acontece hoje com os apagões”, diz Hernandes, conselheiro do Comitê Gestor de Indicadores de do CPqD. O controle avançado das redes também Eficiência Energética do MME. Para ele, o smart está no caminho da empresa CAS Tecnologia, de grid vai integrar novas tecnologias mais eficientes São Paulo. A empresa é especializada em platafor- para o consumidor final, unindo a rede elétrica e a mas de controle de redes elétricas e tem projetos de telecomunicações. “Mas é preciso garantir a pricom 16 concessionárias. “Nós desenvolvemos vacidade das informações e a segurança da rede.” n pESQUISA FAPESP 202  z  61


pesquisa empresarial y

Além do

petróleo BP fecha acordos para melhorar produção de etanol e se prepara para a segunda geração Dinorah Ereno

H

á mais de 50 anos no Brasil com atuação nos setores de petróleo e gás natural, lubrificantes e combustíveis de aviação, a BP tem investido desde 2008, por meio da BP Biocombustíveis, em combustíveis renováveis com foco na primeira geração de etanol, em que a sacarose da cana-de-açúcar é fermentada para a produção do álcool. Para isso ela firmou colaborações com entidades de pesquisa e fomento. “O caminho natural é financiar pesquisas em centros bem estabelecidos”, diz Wesley Ambrósio, de 43 anos, diretor de tecnologia da BP Biocombustíveis, com sede na capital paulista. Em abril deste ano, por exemplo, a BP e a FAPESP anunciaram um acordo para o financiamento de projetos de pesquisa em temas relacionados à bioenergia em associação com universidades e institutos de pesquisa no estado de São Paulo. O acordo prevê um investimento de até US$ 50 milhões, divididos igualmente entre as duas partes, por um período de até 10 anos. “O programa com a FAPESP é o primeiro de desen-

62  z  agosto DE 2012

volvimento nosso com entidades externas para tentar cobrir todo o leque de pesquisa, desenvolvimento e aplicação para o etanol”, ressalta Ambrósio, engenheiro químico com graduação e mestrado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pós-graduação em administração na Fundação Getúlio Vargas (FGV). Em outubro, um novo acordo foi firmado pela BP com o Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE), em Campinas, para desenvolvimento de um processo de fermentação do caldo de cana para elevar seu teor alcoólico antes de passar pela destilação. A média brasileira de teor alcoólico do caldo nessa etapa é de apenas 9% do volume total, o que resulta em um grande volume de vinhaça (efluente líquido resultante do processo de produção do etanol). Os participantes investirão US$ 2 milhões no projeto, divididos igualmente, durante dois anos. “Entendemos que existem grandes oportunidades na primeira geração, que englobam desde a produção agrícola, começando com a escolha


léo ramos

A partir da esquerda, Wesley Ambrósio, Caio Fortes, Daniel Atala e Marco Souza, na sede da BP Biocombustíveis, em São Paulo

de variedades de cana adequadas às novas fronteiras produtivas, o desenvolvimento de novas tecnologias para plantio e colheita e o uso de geotecnologia, até a parte industrial, com extração e tratamento do caldo e sua conversão final em produtos como etanol, açúcar e eletricidade”, diz Ambrósio. Ele lidera uma equipe de 12 pesquisadores, composta principalmente por engenheiros e biólogos, contratada para dar início aos projetos. “A nossa ideia é aproveitar as oportunidades na primeira geração para ficarmos mais bem posicionados para a segunda geração, a do etanol celulósico”, ressalta o diretor de tecnologia que trabalhou ao longo de sua carreira principalmente na indústria química, mas também nas áreas de petróleo e de construção naval. A BP tem cerca de 90 mil funcionários e presença em mais de 30 países. Em 2011, sua receita líquida global foi de US$ 375,5 bilhões. No Brasil, conta com cerca de 5 mil funcionários. Em 2011, a BP Biocombustíveis moeu 4,5 milhões de toneladas de cana. “Estamos com três usinas

em operação no Brasil, duas em Goiás e uma em Minas Gerais, e metas de crescimento até 2020 que passam pela duplicação das unidades hoje existentes e na construção de outras, com tecnologias que proporcionem maior eficiência e rentabilidade”, diz o pesquisador Daniel Atala, 38 anos, um dos integrantes da equipe de tecnologia da BP Biocombustíveis e especialista em processos industriais. Graduado em engenharia de alimentos pela Fundação Universidade Federal do Rio Grande (Furg), Atala fez mestrado e doutorado na mesma área e pós-doutorado em engenharia química, todos na Unicamp com bolsas da FAPESP. Na sua tese de doutorado defendeu uma nova técnica de fermentação extrativa para o etanol, que resultou em um pedido de patente e o Prêmio Jovem Cientista concedido pela Fundação Bunge em 2007 na área de agroenergia. O método proposto considera que, em condições normais, o processo de fermentação sofre forte inibição pelo etanol produzido, o que faz com que a pESQUISA FAPESP 202  z  63


levedura utilizada reduza a sua atividade metabólica e perca a sua força fermentativa. Pelo novo processo, que se dá em um ambiente de baixa pressão (vácuo), onde a evaporação ocorre à temperatura ambiente (em torno de 33ºC), o etanol é retirado do meio antes que exerça influência no desempenho da levedura. “A remoção do etanol do meio de cultura à medida que vai sendo produzido torna a levedura mais produtiva”, diz Atala. Durante seu pós-doutorado, o Centro de Tecnologia Canavieira (CTC), em Piracicaba, no interior paulista, se interessou em desenvolver a tecnologia em escala semi-industrial. Atala foi contratado em 2006 como pesquisador na área de produção de álcool, onde construiu uma planta-piloto de fermentação extrativa a vácuo e ficou até julho do ano passado, quando saiu para integrar o grupo de pesquisa da BP Biocombustíveis. “Os avanços tecnológicos aplicados ao processo de primeira geração podem estabelecer um novo padrão de produção no setor”, diz. Para o pesquisador, o diferencial da BP no cenário atual – “em que as tecnologias usadas hoje são basicamente as mesmas de 30 anos atrás, com pequenas modificações” – é que ela tem vários centros de desenvolvimento tecnológico espalhados pelo mundo. interação internacional

Em um desses centros, instalado em San Diego, nos Estados Unidos, por exemplo, pesquisadores se dedicam a produzir inovações para o setor de biocombustíveis, mas com foco no etanol de segunda geração, o lignocelulósico, feito a partir de biomassas residuais como o bagaço e a palha da cana. “Existe muita interação entre a equipe brasileira e a que está em San Diego”, relata Ambrósio, que se reporta diretamente ao vice-presidente de tecnologia da mundial BP Biofuels, Tom Campbell.

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1 Testes no laboratório de fermentação alcoólica no CTBE 2 Fermentador com vinhaça de cana-de-açúcar 3 Planta-piloto testa experimentos em escala pré-industrial

A empresa anunciou investimentos de US$ 500 milhões durante 10 anos em pesquisas feitas pelo Energy Biosciences Institute (EBI) para desenvolvimento de energias renováveis a partir da biotecnologia – iniciativa liderada pela Universidade de Berkeley, na Califórnia, em parceria com a Universidade de Illinois, ambas nos Estados Unidos. O EBI tem como objetivo investigar a aplicação da biotecnologia em áreas como a de combustíveis celulósicos, microbiologia do petróleo, biolubrificantes e biossequestro de carbono. “São três os principais critérios que a BP considera importantes para biocombustíveis: que sejam de baixo carbono, de baixo custo e de larga escala. A soma desses elementos resultará no quarto, um biocombustível sustentável”, diz Ambrósio. O etanol de

Instituições que formaram pesquisadores da empresa Wesley Ambrósio, diretor de tecnologia da BP Biocombustíveis

Unicamp – graduação e mestrado FGV – pós-graduação

Daniel Atala, pesquisador da área de processos industriais

Furg – graduação Unicamp – mestrado, doutorado e pós-doutorado

Marco Souza, pesquisador da área de fermentação industrial

PUC-Campinas – graduação Unesp – mestrado e doutorado

Caio Fortes, pesquisador da área agrícola

UFSCar – graduação USP – mestrado e doutorado

64  z  dezembro DE 2012

cana é um combustível que atende a esses quatro critérios. Em parceria com a DuPont, a BP constituiu uma joint venture chamada Butamax Advanced Biofuels, que inaugurou em 2010 seu primeiro laboratório na América Latina dedicado à pesquisa e desenvolvimento do biobutanol a partir da cana, um novo combustível renovável para ser adicionado à gasolina. O laboratório fica em Paulínia, a 18 quilômetros de Campinas, no interior paulista. A expectativa é atingir a produção de 7,6 bilhões de litros até 2020, que seriam destinados principalmente para os Estados Unidos e Europa, mercados com regulamentações que estabeleceram metas de consumo mínimo de biocombustíveis para reduzir níveis de emissão de gases de efeito estufa, além da Ásia. No mercado norte-americano, onde o biobutanol está previsto para começar a ser produzido em escala comercial a partir de 2013 em uma usina no estado de Minnesota, o produto será feito a partir do milho. Segundo a empresa, a vantagem do biobutanol em relação a outros tipos de combustíveis renováveis, incluindo o etanol, é o seu conteúdo energético. Enquanto o etanol tem dois carbonos na sua cadeia molecular, ele tem quatro, o que lhe confere maior energia por unidade de volume. A BP tem ainda uma linha de pesquisa em colaboração com o grupo holandês de alimentos e produtos químicos DSM, nos Estados Unidos, para produção de biodiesel a partir da cana-de-açúcar.


fotos  eduardo cesar

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Marco Souza, de 55 anos, também faz parte do grupo de pesquisa da BP como responsável pela otimização da fermentação industrial, área em que trabalha desde que terminou a graduação em biologia médica pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC), há 32 anos. Assim que se formou foi contratado por uma usina em Guariba, a 64 quilômetros de Ribeirão Preto, no interior paulista, onde, em colaboração com a Copersucar, montou um laboratório para estudar os processos de contaminação industrial em todas as etapas da produção – colheita da cana, moagem e fabricação de produtos. Tanto no mestrado como no doutorado em microbiologia na Unesp de Jaboticabal ele pesquisou os contaminantes nos processos de fermentação. efeito prejudicial

“Na presença de contaminantes, o fermento sofre um efeito danoso para a produção de etanol”, diz. Souza também trabalhou no CTC durante quatro anos e desde maio de 2011 está na BP: “O nosso principal projeto consiste em monitorar a fermentação em tempo real, por meio de tecnologias e instrumentos utilizados em outras indústrias, como a química”. Até pouco tempo atrás a fermentação

Tecnologias e instrumentos utilizados em outras indústrias são usados para monitorar fermentação em tempo real

era vista como uma caixa-preta, segundo Souza. Ou seja, o início do processo começava com determinada quantidade de açúcar e na saída não havia o equivalente em etanol, em decorrência de perdas do processo e da dificuldade de medição inerente às tecnologias normalmente utilizadas. A má eficiência no processo não está relacionada somente à instalação industrial, mas também à parte fisiológica e cinética (velocidade) da levedura que vai transformar o açúcar em etanol. A velocidade no processo de transformação depende de enzimas produzidas, da condição nutricional da levedura e da qualidade da matéria-prima. Quando a fermentação é bem controlada, há um ganho no processamento da matéria-prima e na própria destilação. Durante a fermentação, em função de impurezas

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provenientes do caldo da cana, além do etanol alguns outros alcoóis e produtos secundários são produzidos pela levedura por vias metabólicas alternativas. “Diminuindo os produtos secundários, há uma melhora na fabricação do etanol”, diz Souza. Além de ganhar em eficiência, o produto obtido tem melhor qualidade para disputar o mercado. Na ponta inicial da produção do etanol, que começa no campo, a equipe de tecnologia conta com o apoio do pesquisador Caio Fortes, de 33 anos, engenheiro agrônomo graduado pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) em Araras, com mestrado e doutorado na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da USP, em Piracicaba. “Cuido de variedades de cana, pesquisas em matérias-primas alternativas como o sorgo sacarino, da parte de manejo de solos, de melhores práticas agrícolas, maquinário e irrigação”, diz Fortes, que trabalhou nas usinas Cocal e Grupo São Martinho e no CTC como pesquisador durante quatro anos. Na sua passagem pelo Grupo São Martinho, onde atuou como coordenador de qualidade agrícola e planejamento industrial, iniciou seu doutorado no Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena) da USP, encerrado em 2010, onde estudou adubação nitrogenada e manejo de palhada de cana colhida sem queimar. Desde 2008 está na BP, onde começou no grupo de prospecção de negócios, com a análise de potenciais oportunidades de negócios para aquisições. n pESQUISA FAPESP 202  z  65


CONSTRUÇãO CIVIL y

Gesso resistente Novos blocos feitos com resíduos da produção de fertilizantes são opção barata para construir casas Yuri Vasconcelos

C

onsumidores, empresas e governos que têm a expectativa de construir casas ganharam uma nova opção com os blocos de gesso idealizados nos laboratórios do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC-USP). Com a previsão de baratear em cerca de um terço a construção de casas populares, o novo bloco é produzido com um subproduto da fabricação do ácido fosfórico, matéria-prima usada na produção de fertilizantes agrícolas. O produto, que leva o nome de fosfogesso ou sulfato de cálcio, é também encontrado na forma natural, em minas. Destinado à edificação de paredes estruturais, em substituição aos blocos convencionais de concreto e cerâmica, o material apresenta também elevada resistência mecânica. O novo bloco foi recentemente licenciado pela Agência USP de Inovação para três empresas – Inovamat e KAJ, de São Carlos, no interior paulista, e Mega Block, de Uberaba, em Minas Gerais –, que estão fazendo as adequações finais e o aperfeiçoamento necessário para colocá-lo no mercado. 66  z  dezembro DE 2012

A elevada resistência mecânica se dá em função de características próprias de sua microestrutura. No processo de hidratação do fosfogesso – etapa essencial na fabricação dos blocos –, os cristais que formam esses materiais crescem entrelaçados e compactados, elevando sua resistência à compressão e à flexão. “Os blocos convencionais não possuem resistência à flexão. Com os nossos blocos, é possível usar menos aço na edificação, o que contribui para a redução do custo da construção”, diz João Ailton Brondino, engenheiro civil e administrador da KAJ. O baixo preço da matéria-prima necessária para assentar os blocos explica também a redução do custo das construções. “Cada bloco é assentado com auxílio de pequenos encaixes e fixados com cola branca, dessas usadas em escola. Não precisamos usar cimento”, explica Milton Ferreira de Souza, professor emérito do Instituto de Física de São Carlos e inventor dos blocos de sulfato de cálcio. “Como a superfície lateral dos blocos é perfeitamente lisa, o processo construtivo dispensa o uso de argamassa

160

milhões de toneladas de fosfogesso estão disponíveis para a produção de blocos

Os blocos de fosfogesso são estruturais e dispensam vigas e pilares de concreto. O assentamento é feito em pequenos encaixes


ilustração  tomás rebollo  foto  eduardo cesar

de assentamento e de reboco, economizando com materiais e mão de obra de alvenaria.” Esses blocos são estruturais, ao contrário dos blocos atuais que precisam de vigas e pilares de concreto para que a parede fique em pé. O cimento só é utilizado no contrapiso e na laje. Uma vez montada a parede, o próximo passo é a pintura, que pode ser feita com tintas convencionais encontradas no mercado. O uso da madeira também é reduzido na construção porque não há necessidade de fazer formas para pilares e vigas, o que contribui para a redução do custo da obra. Além disso, a característica modular dos blocos diminui para quase zero o desperdício. Solução ambiental

Um importante diferencial do novo material é seu apelo ambiental. O fosfogesso sobra em grandes quantidades da produção de fertilizantes. Para cada tonelada de ácido fosfórico (componente do fertilizante) são geradas cinco toneladas desse tipo de gesso, também conhecido como gesso agrícola. Por ser um sal rico em cálcio, o material é usado como fonte

desse mineral para o solo na agricultura. Essa aplicação, entretanto, não consegue absorver o grande volume gerado. “Estima-se que existam mais de 160 milhões de toneladas de fosfogesso dispostas em aterros a céu aberto no Brasil. A fabricação em larga escala dos blocos de sulfato de cálcio dará uma destinação ambientalmente adequada e economicamente interessante para esse material”, diz Brondino, da KAJ, acrescentando que o produto é 100% reciclável. “Acreditamos que as empresas que utilizam essa nova tecnologia possam obter créditos de carbono por utilizar menos cimento e aço nas edificações”, afirma Brondino. “Temos percebido um grande interesse pelo produto tanto de empresas do setor da construção civil quanto de consumidores finais”, conta Eduardo Brito, analista administrativo da Agência USP de Inovação em São Carlos, no interior paulista. “Durante a Feira de Inovação e Empreendedorismo [USP­iTec] organizada pela universidade em agosto deste ano em São Paulo, que reuniu mais de 10 mil pessoas, os blocos chamaram a atenção do público.” Quatro patentes

relacionadas ao produto e seu processo de fabricação foram depositadas no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). As empresas licenciadas comprometem-se a pagar 3% do faturamento líquido pela exploração dessas patentes. “Do total de recursos recebidos de eventual exploração comercial, a USP ficará com 70% e a FAPESP com 30%”, diz Brito. Três edificações-protótipo – um anfiteatro e duas casas, de 60 e 56 metros quadrados, respectivamente – já foram construídas com os novos blocos pelas empresas licenciadas em São Carlos. Os resultados foram bons, mas para que as obras possam receber financiamento de bancos e da Caixa Econômica Federal será preciso uma aprovação técnica e a consequente certificação para os novos blocos no Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) ou no Centro Tecnológico Falcão Bauer. Brondino estima que poderá iniciar a venda dos blocos aos consumidores finais ainda no primeiro semestre de 2013. “Por se tratar de um produto inovador, não existiam no mercado máquinas para produção de peças em sulfato de cálcio com alta resistência mecânica. Nosso primeiro desafio foi criar esse equipamento. Adaptamos um aparelho existente no mercado e hoje a empresa domina o processo para dimensionar os equipamentos necessários para a produção de blocos e placas de sulfato de cálcio em escala comercial, reproduzindo as peças com as resistências obtidas em laboratório”, diz Brondino. “Nosso objetivo é usar os blocos para produzir edificações verticais, com vários pavimentos, e também casas térreas, principalmente as de interesse para reduzir o déficit habitacional no país. Estimamos que a economia média do metro quadrado construído será superior a 30%.” n

Projeto

Novogesso – nº 2004-02900-0. Modalidade: Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe). Coordenador: Milton Ferreira de Souza. Investimento: R$ 450.370,00 (FAPESP). pESQUISA FAPESP 202  z  67


humanidades


História y

O patriarca da

Ideias de José Bonifácio foram marcadas pela união estreita do homem público com o naturalista | Carlos Haag

Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin-USP

P

José Bonifácio, em litografia de 1861 pelo francês Jean Sisson: homem erudito e estudioso das mas diversas áreas do pensamento

esquisa feita em 2011 pelo Congresso Nacional revelou que apenas 8% dos 652 deputados e senadores têm mestrado ou doutorado. No Senado, 9,5% dos parlamentares nem sequer ingressaram num curso superior. As estatísticas, talvez, não afetem o desempenho dos congressistas, como querem alguns especialistas, mas a comparação com o currículo de um político do passado, José Bonifácio (1763-1838), dá o que pensar. Cientista reconhecido por seus pares, com uma carreira de nível mundial, raridade no século XVIII, era versado em mineração e metalurgia, na teoria e na prática, com vários artigos publicados nos principais jornais acadêmicos da Europa, em várias línguas. Afinal, ele falava e escrevia em seis idiomas e lia em 11, um homem erudito e ávido leitor de estudiosos das mais diferentes áreas do pensamento. Foi membro das principais academias de ciências do planeta, descobriu diversos minerais, foi professor na Universidade de Coimbra e dirigente de algumas das principais indústrias de Portugal e do Brasil. É também o único brasileiro ligado à descoberta de um novo elemento químico, o lítio, e, em sua homenagem, a granada de ferro e cálcio foi batizada de andradita. Pregava, muito antes da ecologia, a exploração “racional” dos re-

cursos naturais, esbravejando contra a destruição das florestas. José Bonifácio via as ciências como fundamentais para o desenvolvimento do Brasil: projetou a criação de universidades, de escolas de minas, de expedições científicas para mapear o território e de sociedades econômicas e científicas. “Mas foi reduzido ao papel político de Patriarca da Independência, um movimento que ele rejeitou até o último momento. Bonifácio, acima de tudo, foi um cientista, formado pela Ilustração, e que desdenhava o conhecimento de gabinete. Acreditava numa ciência com sentido propositivo e prático. Para ele, sua condição de cientista o capacitava a encontrar soluções racionais para os problemas enfrentados pelo Estado”, explica a historiadora Miriam Dolhnikoff, da Universidade de São Paulo (USP) e autora da biografia recém-lançada José Bonifácio (Companhia das Letras). “Como político, sua faceta mais conhecida, ele esteve à frente do processo de construção de uma nova nação, mas a maneira como pensou essa nação foi determinada pela formação de cientista”, diz. Segundo a pesquisadora, o “cientista político” quis fabricar a nacionalidade em seu laboratório social, bastando misturar nos tubos de ensaio do cotidiano as diversas matrizes culturais para produzir uma única, sintetizada na mestiçagem. pESQUISA FAPESP 202  z  69


“Há mérito no conhecimento concentrado nas identificação entre ciência e política. O Estado realizações de Bonifácio como político. Mas a poarregimentava naturalistas para postos importanlítica se restringiu, no Brasil, a apenas dois anos tes na administração para garantir que a política na vida de um senhor de 59 anos, já aposentado, reformista fosse aplicada”, afirma o historiador dono de uma longa carreira como mineralogista Alex Varela, autor de Juro-lhe pela honra de bom em Portugal”, lembra o jornalista vassalo e bom português: análise das e cientista político Jorge Caldeira, memórias científicas de José Bonifáresponsável pela digitalização da cio (Annablume). obra completa de José Bonifácio, Como resultado, em 1772, a Unidisponível no portal Obra Bonifácio versidade de Coimbra, centro do Para ele, ciência (www.obrabonifacio.com.br). “Foi o conhecimento lusitano, passou por não era apenas erudito brasileiro mais respeitado na uma grande reforma, importando comunidade científica internacioprofessores para suprir as carências conhecimento, mas nal na época. Por isso, não aceitava locais. Um dos mais influentes foi compromissos e sofreu preconceito Domingos Vandelli, célebre natuum instrumento capaz por ser um cientista de renome inralista amigo de Lineu, contratado ternacional que também tinha muito para lecionar história natural e quíde transformar a poder político.” mica. Em pouco tempo, o italiano sociedade e resgatar a criou um grupo de discípulos que defendiam o domínio da natureza onifácio fez parte de uma nograndeza do Império como alternativa para Portugal suva geração de brasileiros em perar a defasagem econômica com o Coimbra. “Se a maioria seguia Português resto da Europa ilustrada. “Para ele, a tradição de estudar leis para voltar era preciso inventariar a natureza ao Brasil e administrar os negócios das colônias em instituições cientída família, a nova mentalidade ilusficas, pois essas produções naturais trada atraiu muitos estudantes da recuperariam o reino”, observa Varela. Bonifácio, colônia que viam no conhecimento científico a aluno de Vandelli, passou a entender a ciência não chance de desenvolver suas capacidades e as pocomo mera forma de conhecimento, mas como tencialidades do império”, conta Miriam. Assim, instrumento capaz de transformar a sociedade. entre 1772 e 1822, dos 866 brasileiros formados “Era uma ciência aplicada, pragmática, que teria em Coimbra, 450 cursariam matemática; 250 a função social de resolver problemas. A natureza estudariam filosofia natural (ciências naturais); da colônia deveria ser cientificamente conhecida e 65 se dedicariam à medicina. O jovem de 20 e explorada, para contribuir para a industrializaanos chegou a Portugal em 1780 em meio ao moPátio da Universidade de Coimbra, em ção portuguesa”, analisa o pesquisador. vimento de modernização que deveria combater Portugal, onde “A opção de Bonifácio pela mineralogia se eno que os contemporâneos diagnosticavam como a Bonifácio tomou quadrava nessa perspectiva da ciência utilitária. “decadência do reino”. “Havia, então, uma forte contato com

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as ideias modernas

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70  z  dezembro DE 2012


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Frontispício do livro escrito por Domingos Vandelli sobre jardins botânicos, dedicado à dona Maria I. Acima, a andratita, pedra batizada em homenagem a José Bonifácio e seu trabalho pioneiro em mineralogia

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fotos 1 Marcos Scheliga / Latinstock Brasil  2, 3 e 4 Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin-USP

Ele levou a visão de cientista ilustrado para a política e vice-versa, desejoso de criar a têmpera da nação civilizada Ele levou a visão de cientista ilustrado para a política. Como um mineralogista, quis amalgamar os metais de que dispunha para criar a têmpera da nação civilizada. A natureza e a história davam todos os elementos necessários. Bastava apenas a razão e o saber, aliados ao poder do Estado, para transformá-los em metal nobre”, diz Miriam. “O homem de ciência deveria se ligar ao Estado e aceitar os valores hierarquizados dessa sociedade. Em troca, o estudioso ganhava honra e privilégios, no espírito hierárquico do Antigo Regime”, avalia a historiadora Berenice Cavalcante, professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e autora de José Bonifácio: razão e sensibilidade (FGV). Assim, o cientista Bonifácio era basicamente um funcionário do Estado. Esse, por sua vez, investia pesadamente na formação de quadros acadêmicos que deveriam trazer ao império o que ele mais carecia: conhecimento técnico. Para tanto, eram concedidas viagens de especialização e profissionalização, como a que Bonifácio fez entre 1790 e 1800 pela Europa central e setentrional, onde visitou as grandes escolas e regiões de mineração. Não se tratava de “viagens filosóficas”: o beneficiado deveria observar tudo para trazer os ares da modernidade ao império. “Só se visitavam locais de importância como centros de conhecimento

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mineralógico, de filosofia natural e química”, conta Berenice. Na França, fez o curso de química de Fourcroy; na Alemanha, conheceu Humboldt e teve aulas com Kant, trabalhando nas minas; visitou as minas da Boêmia e fez pesquisas na Suécia e Dinamarca. O artigo sobre os minerais encontrados, em especial a petalita e o espodumênio, teve grande repercussão, e sua leitura pelo químico inglês Humphry Davy possibilitou a descoberta de um novo elemento, batizado de lítio. “Foi também nessa viagem que retomou a visão crítica de Vandelli sobre a destruição irracional da natureza, reformulando-a, em seus moldes, numa preocupação intensa com a questão ambiental. Essa parte do pensamento de Bonifácio, infelizmente, é subestimada pelos historiadores”, afirma o historiador José Augusto Pádua, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e autor de Um sopro de destruição: pensamento político e crítica ambiental no Brasil escravista (Zahar). “Bonifácio conviveu diretamente com o processo de gestação do novo universo teórico sobre a dinâmica da natureza. Acima de tudo, em seus escritos não traz uma mera transposição da discussão europeia para o meio luso-brasileiro, mas uma interpretação pessoal derivada das suas vivências e reflexões”, observa Pádua. Segundo o autor, para Bonifácio, o desenvolvimento não poderia basear seu crescimento na destruição anticientífica das florestas, pois essas ações ameaçariam o futuro. “Nossas preciosas matas desaparecem, vítimas do fogo e do machado, da ignorância e do egoísmo. Sem vegetação, nosso belo Brasil ficará reduzido aos desertos áridos da Líbia. Virá então o dia em que a ultrajada natureza se ache vingada de tantos crimes”, escreveu em 1828. pESQUISA FAPESP 202  z  71


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“É preciso ter cuidado em ver Bonifácio como um ‘ecologista’, porque, na época, não se colocava a possibilidade do esgotamento das riquezas naturais e não se vislumbrava que a destruição da natureza colocaria em risco o meio ambiente. Era preocupação de um cientista no uso mais eficaz e racional da natureza para garantir melhores resultados econômicos”, adverte Miriam. Essa visão pragmática atraiu a atenção de dom Rodrigo de Souza Coutinho, ministro da Marinha e do Ultramar. Membro da Academia Real de Ciências, o nobre era um ilustrado que defendia a recuperação da mineração da colônia, considerada por muitos “esgotada”, como a chave para a regeneração do império. Desde que conduzido com “ciência”. Assim que retornou da peregrinação pela Europa, Bonifácio foi convidado por dom Rodrigo a criar uma cadeira de metalurgia em Coimbra e nomeou-o, em 1801, intendente das minas do reino de Portugal. Era o início da união orgânica do cientista e do homem público, mantida em perfeita sincronia até o retorno ao Brasil.

A

lém das minas, Bonifácio ficou responsável pela Casa da Moeda, onde promoveu estudos e cursos de química, e pelos bosques reais, quando pôde empregar seus ideais de harmonia da natureza e o “progresso”. Incansável, inventariou os problemas da mineração em Portugal, fez funcionar a primeira máquina a vapor de Portugal, tornando a extração de carvão mais eficiente, e colocou em atividade a fábrica de ferro de Figueiró, usando um gerenciamento racional

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Jardim Botânico da Ajuda, em Lisboa, cuja construção obedecia a um projeto de Vandelli, preocupado em criar um laboratório para a natureza da colônia

e moderno, alcançando patamares consideráveis de produção do minério. Como se não bastasse, descobriu um novo veio de carvão no Porto que ele afirmou ser capaz de abastecer o reino por 1.500 anos. Mas a morosidade da burocracia imperial, que o impedia de implantar com eficiência a “tecnologia” em Portugal, cansou Bonifácio, que decidiu voltar ao Brasil em 1819. Num discurso de despedida, defendeu as potencialidades da colônia para o “novo” Império Português: “E que país, esse, senhores, para uma nova civilização e para o novo assento das ciências! Que terra para um grande e vasto império!”. Poucos anos mais tarde veio o choque da realidade: “No Brasil, as ciências e as boas letras estão por terra. Tudo o que interessa é vender açúcar, café, algodão e tabaco”. Ainda assim, no início, o país natal encantou o homem desgostoso dos “vícios” da modernidade europeia. Em 1820, ao lado do irmão Martim Francisco, realizou uma “viagem mineralógica” que partiu de Santos e percorreu 72 léguas de sertão paulista, irrequieto em avaliar os recursos naturais. “Diante do que encontrou, lamentou o imenso potencial perdido pelo atraso e ‘desleixo’ dos brasileiros no cultivo da terra. Irritou-se com a destruição despropositada da natureza e previu que, após esgotarem os recursos, as populações migrariam constantemente, dificultando ainda mais a chegada da civilização”, afirma Berenice. Bom iluminista, esses obstáculos não o desanimavam; antes, o estimulavam a agir, galvanizando o naturalista aposentado. “Ele via o Brasil como uma massa bruta, prenha de potencialidades a


portamento dos brasileiros. Nenhum iluminista do seu tempo foi tão longe na valoração da realidade dos brasileiros em detrimento do transplante direto de modelos importados.” Defendeu uma nação baseada na homogeneidade pela mistura das raças, o que liquidaria as profundas diferenças raciais. Não queria o “embranquecimento” do Brasil, mas via como dever ogo, para a pesquisadora, a pecha de condo Estado o estímulo a casamentos entre índios, servador, adquirida pela defesa ferrenha da brancos e mulatos. “Não se tratava de humanismonarquia, é injusta. “Foi um dos políticos mo, mas a crença de que a integração iria favoremais reformistas da sua época. A preocupação de cer as elites, às quais atribuía o papel criar uma nação homogênea, através de centro irradiador de civilização”, da mestiçagem, do fim da escraviafirma Miriam. “Sintomaticamente, dão, da assimilação dos índios, gausou um termo químico, ‘amalgamarantindo algum grau de educação e ção’, liga de metal homogênea, para meios de sobrevivência para todos, Bonifácio tinha pecha explicar a necessidade de unir a soera o cerne de seu projeto nacional, de conservador, mas foi ciedade, dividida em grupos inconproduto da formação de cientista”, ciliáveis. Se não se amalgamassem fala Miriam. Basta pensar no pioum dos políticos mais esses muitos ‘metais diversos’, a joneirismo da defesa da miscigenação vem nação corria o risco de se romcomo base da identidade nacional. reformistas de sua per ao leve toque de uma convulsão “Num momento em que os fundadopolítica qualquer”, observa Varela. res da primeira legislação iluminista época, apesar de do planeta, os americanos, acredi“A sua defesa da abolição seguia o defender com vigor tavam em diferenças entre as raças, mesmo princípio. A escravidão criaele as negava, uma posição que só va uma elite ociosa e violenta e, logo, a manutenção de ganhou importância em meados do inculta, obstáculo para o desenvolséculo XX”, diz Caldeira. Não tomavimento. Também era responsável uma monarquia va a produção europeia como molde pela destruição inútil das matas”, diz a ser copiado, mas como método a Miriam. Não era, porém, irrealista de constitucional ser reelaborado. “Bonifácio usava o propor a abolição imediata. Preferia Iluminismo como ferramenta para a mudança gradual, defendendo a reanalisar os brasileiros e fundar uma forma da prática agrícola, que devenação que levasse em conta o comria ser modernizada pela instrução científica do “agricultor ignorante”, e do sistema de sesmarias. Bateu de frente com os grandes proprietários ao propor que as terras sem cultivo fossem confiscadas pelo governo e vendidas, destinando o dinheiro para os pobres, para que pudessem se incluir socialmente. “Ele queria construir uma nação dirigida por uma monarquia constitucional e para isso precisaria do apoio da maioria da elite, e a nação que ele queria construir não era a nação que essa elite desejava”, nota Miriam. Não via que estava num país com ideias fora do lugar. “A identificação de uma cidadania brasileira com universalidade étnica e religiosa ainda é uma utopia válida para uma nação. José Bonifácio foi o primeiro pensador a dar forma acabada a essa ideia”, observa Caldeira. “Desde então vários projetos reformistas foram elaborados, tendo como miragem o mundo desenvolvido, sem melhores resultados que os de Bonifácio”, fala a historiadora. Para além dos projetos, deixou ainda como legado ao país Texto de Bonifácio sobre os bosques uma grande coleção de minerais e uma biblioteca de Portugal, visto de mais de 1.500 volumes, imensa para a época. por alguns como Ambas desapareceram quase por completo em prova de sua 2 meio ao temerário descaso nacional pelo saber. n visão ecológica

ser modelada segundo a sua vontade ilustrada. Bonifácio inaugurou uma linhagem de estadistas que se propuseram a elaborar para o país um projeto global de nação numa perspectiva mais ampla e generosa do que a ditada pelos seus pares e contemporâneos”, analisa Miriam.

fotos 1 1 joão carvalho / Creative Commons  2 Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin-USP

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léo ramos

economia y

Os famosos altos-fornos construídos por Varnhagen ainda podem ser vistos no sítio histórico

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A ferro e fogo Experiência siderúrgica pioneira da Fábrica Real de Ferro de Ipanema deixou lições de ousadia

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eparados por séculos, dois governantes acalentavam o mesmo projeto e sofriam com os mesmos obstáculos. “Sou obrigado a propor uma fábrica de ferro. A falta dele traz prejuízos irreparáveis, é a perdição total. Fabricando-se aqui pode custar um preço muito mais módico. Pagamos por ele avultadas somas aos estrangeiros”, escreveu Rodrigo de Meneses na Exposição sobre o estado de decadência da capitania de Minas Gerais, que ele governava, em 1780. “O problema máximo da nossa economia é o siderúrgico. Entrava-o a falta de aparelhamento para explorar a riqueza que está imobilizada”, falou Getúlio Vargas num discurso feito em 1931. Apenas em 1946, com a criação da Companhia Siderúrgica Nacional, ambos, enfim, seriam “atendidos”. No meio desse tempo, o país deu passos importantes na produção de ferro em grande escala, mas boa parte da historiografia preferiu desprezar esses esforços como “fiascos”. Eram três empreendimentos, todos iniciados em 1810. Dois em Minas Gerais: a Fábrica Morro do Pilar, dirigida por Manoel Ferreira da Câmara, onde funcionou o primeiro alto-forno para a produção de ferro na América do Sul; e a Fábrica Patriótica, em Congonhas do Campo, chefiada pelo barão Eschwege, um jovem mas experiente metalurgista alemão. A tentativa mais ambiciosa aconteceu, paradoxalmente, não na região das jazidas de Minas, mas em Ipanema, no “morro do Araçoiaba”, região vizinha à vila de Sorocaba, em São Paulo. “A Fábrica Real de Ferro Ipanema recebeu o maior investimento industrial feito por Portugal no Brasil. Era um complexo siderúrgico sofisticado e atraiu a atenção internacional em seu tempo, embora não tenha atingido as metas previstas. pESQUISA FAPESP 202  z  75


imagem  gravura de lemaître, 1821  fonte paulo araújo

Fábrica Real de Ferro de Ipanema Segundo desenho do francês Lemaître feito em 1821 para Varnhagen

forno de cementação

armazém

fábrica de hedberg

casa de refino

casa de pilar minério

casa do diretor

fornos altos casa de ustulação

Chamá-la de ‘fiasco’ por causa disso é um erro histórico”, diz Fernando Landgraf, professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP) e diretor-presidente do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT). A construção da siderúrgica, menina dos olhos do projeto modernizador de dom João VI para a colônia, foi feita por uma equipe de metalúrgicos suecos, dirigidos por Carl Hedberg. Suecos

“O contrato com os suecos previa que, além de levantar os prédios e fornos da fábrica, eles ensinassem aos luso-brasileiros a arte da metalurgia, na prática e na teoria. Para isso, tinham a obrigação de trazer uma biblioteca com os melhores livros de tecnologia siderúrgica para o Brasil e a Ipanema ganhou uma coleção de 24 títulos importantes”, conta o professor. Até o ano passado, não se sabia ao certo se os livros realmente tinham chegado ao país. A revelação veio numa inusitada mensagem em sueco. Um grupo de pesquisadores que estudavam objetos recolhidos no sítio histórico de Ipanema pela arqueóloga Margarida Andreatta, do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, em busca de mais informações sobre Hedberg na internet, se deparou com o nome do metalúrgico mencionado no site de um historiador da siderurgia da Suécia. “O texto, que não entendíamos, terminava com o nome de Hedberg e um ponto de interrogação. Fui até uma empresa sueca para que alguém me traduzisse o conteúdo. Era uma pergunta: ‘Alguém sabe do paradeiro de Carl Hedberg?’. Nós 76  z  dezembro DE 2012

sabíamos: ele viera ao Brasil para construir a fábrica de ferro e estava enterrado num cemitério protestanInventário da te no Rio”, lembra Landgraf. “Mas Ipanema trazia nem pensávamos na tal biblioteca”, fala. A ligação aconteceu quando o a lista de livros pesquisador se deparou com uma reedição do livro Subsídios para a da biblioteca história do Ypanema, de 1858, do senador Nicolau Vergueiro. “Nele havia de siderurgia uma cópia do inventário de bens da vinda da Suécia fábrica, feito em 1821, com a relação de 24 livros. A biblioteca existira e estava desaparecida.” Trata-se da primeira biblioteca especializada em siderurgia trazida ao Brasil O sueco misterioso da internet era o engenheiro aposentado Sven-Gunnar Sporback, que morava ao lado de um velho alto-forno, tamanha sua paixão pela siderurgia. Após ter a sua questão sobre Hedberg respondida, Sporback contou que tinha oito dos títulos da biblioteca de Ipanema, ainda que em edições diferentes das perdidas, e as deu a Landgraf, que acaba de doar os volumes para a Biblioteca de Livros Raros da Poli-USP. “Os livros contam um pouco da história da Fábrica de Ipanema, que foi muito importante na história da indústria no Brasil.” “Além disso, a Ipanema está ligada a um texto que inaugura, no país, a metodologia científica na análise da tecnologia: o Memória econômica e metalúrgica sobre a Fábrica de Ferro de Ypanema, de 1820, um relatório feito por José Bonifácio, logo que voltou ao Brasil, com críticas embasadas


fotos  léo ramos

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observa Landgraf. Ao mesmo tempo, as observações do Patriarca da Independência mostram que as técnicas consagradas foram aplicadas de forma peculiar, prova de que as condições estruturais do Brasil da época ainda não permitiam a ousadia da utilização de tecnologias mais avançadas, em face da falta de mão de obra qualificada e capaz de dar conta das exigências modernas. Havia pouco uso para uma biblioteca sobre siderurgia sofisticada como a de Ipanema no país, a não ser por alguns poucos.

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reformismo

1 Casa de detenção; 2 a 4 Fábrica de armas brancas; 5 Fachada da antiga administração e casa do diretor da Ipanema.

no saber científico à arquitetura dos altos-fornos de Ipanema, que ele inspecionou ao lado do irmão, Martim Francisco”, diz o pesquisador. “O rast (rampa), ou encosto superior ao cadinho, é muito baixo e muito pouco esguio, pois tem 45 graus, sobre o qual se acumula a carga ainda crua, que se resfria na circunferência, e depois se precipita em massa no cadinho e chega ao algaraviz, onde se desregra o vento, que não a pode penetrar e fundir devida e gradualmente. A estrutura interna dos fornos e forjas tem defeitos capitais, que sem primeiro se emendarem nunca a Fábrica poderá dar bons produtos”, escreveu Bonifácio. “As observações de Bonifácio revelam que, em meio ao ‘atraso’ da colônia, havia um luso-brasileiro capaz de observações negativas sobre a complexa construção de altos-fornos e à altura do conhecimento armazenado nos atualizados livros suecos sobre metalurgia que compunham a biblioteca”,

Esse descompasso se devia ao fato de que Ipanema, como Bonifácio, era fruto do reformismo ilustrado em voga na sede do império, que financiava pesquisas e estudos sobre mineração nas principais áreas de produção de ferro da Europa, para tentar colocar Portugal no compasso da Revolução Industrial. O que não significava que as soluções importadas trazidas por esses ilustrados pudessem ser aplicadas diretamente na realidade atrasada da metrópole e da colônia. A escolha da siderurgia, vista por Lisboa como a melhor solução para retirar o reino do atraso técnico em que se encontrava, não facilitava o processo. A tecnologia da produção de ferro era incipiente em países que já haviam aderido à industrialização e tinham operários mais qualificados. Além disso, a fabricação do minério, mesmo nesses países, era feita baseada em experimentos empíricos de muitos erros e poucos acertos. Era uma temeridade tentar recuperar o passo perdido com agilidade. Para tanto, José Bonifácio pESQUISA FAPESP 202  z  77


foi nomeado intendente de Minas do reino de Portugal, e seu irmão Martim Francisco assumiu cargo semelhante em São Paulo. Não sem razão, sua primeira tarefa foi justamente investigar o tal “morro do Araçoiaba”. Desde 1799, com alvará da metrópole, tentava-se implantar uma fundição de ferro num terreno supostamente rico do minério. Os olhos treinados do Andrada perceberam imediatamente o potencial do lugar. Além das jazidas, a região era cercada por matas, essenciais para a produção de carvão, o combustível dos fornos. Ou mais precisamente altos-fornos, então um símbolo de modernidade e alta produtividade. Mas eram mais difíceis de ser construídos, exigindo pessoal especializado e uma complicada operação ininterrupta, por meses. Era uma ação ousada numa colônia. Em Portugal ensaiaram o uso de altos-fornos na Ferraria de Foz d’Alge, mas contavam com a experiência de metalúrgicos prussianos, entre os quais os jovens Eschwege e Frederico Varnhagen, que foi enviado ao Brasil para ajudar o trabalho de Martim Francisco. O prussiano de 20 anos imediatamente começou a planejar a nova siderúrgica, que inicialmente teria três fornos pequenos, cuja produção de ferro serviria para a construção dos almejados altos-fornos. Mas, para tanto, precisava de uma equipe à altura da tarefa. Quando se decidiram pela modernização via metalurgia, os portugueses compreenderam que necessitavam importar mão de obra de regiões especializadas no manejo dos novos fornos. O alemão Varnhagen pediu ao reino outros alemães para ajudá-lo. Em 1806, a derrota da Prússia para Napoleão, em litígio velado contra os portugueses, inviabilizou qualquer negociação de técnicos alemães. Lisboa voltou-se, então, para a Suécia, país cuja tradição metalúrgica Bonifácio conhecera pessoalmente. Em 1809, a Coroa fechou um acordo com o empresário sueco Carl Hedberg, com uma sólida experiência na construção e manejo de altos-fornos. Mas se esqueceram de avisar Varnhagen, que se acreditava o diretor nomeado do novo empreendimento. A rivalidade entre o prussiano e o sueco se iniciava a distância. Curiosamente, a escolha de Hedberg desagradou seu patrício no Brasil, o cônsul da Suécia, Albert Kantzow. enérgicos

“Chegou há poucos dias um navio com 14 fundidores suecos. São jovens enérgicos, peritos em metalurgia sueca. O chefe deles, Hedberg, diz ter tido uma usina metalúrgica própria em que se arruinou. A natureza fornece tudo para que esta empresa seja benéfica ao país e extremamente nociva à metalurgia sueca. A chegada destes meus compatriotas magoou-me profundamente. Sou sueco honrado e as perdas que sofre a minha pá78  z  dezembro DE 2012

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tria afetam-me mais do que as minhas próprias”, escreveu, em 1810, o diplomata, inconformado de ver a técnica sueca em mãos luso-brasileiras. Hedberg, porém, não demonstrou eficiência escandinava, demorando 14 meses para começar as obras da fábrica, recebendo salários dos portugueses desde a assinatura do seu contrato. Em sua cola estava Varnhagen, representante técnico dos acionistas da Ipanema. Por três anos fustigou Hedberg cobrando o início da construção dos altos-fornos. “O projeto do sueco era semelhante ao de Varnhagen: iniciar a produção com fornos de redução direta para fabricar o ferro necessário à fabricação dos altos-fornos e forjas de refino”, diz o historiador Paulo Eduardo Araújo, da equipe de Landgraf. Isso não impediu as críticas do alemão, que descrevia o pouco aço produzido como “quebradiço e de má qualidade”. “Uma empresa mal iniciada não pode dar bons frutos. O que me admira é que se dê importância a tanta conversa fiada. À pouca habilidade do diretor Hedberg se junta a intriga, e disso nada de bom se pode esperar”, escreveu Varnhagen ao amigo Eschwege. Em 1814, Hedberg, incapaz de produzir as quantidades anuais de “ferro refinado” prometidas, entre 480 e 600 toneladas, foi finalmente demitido. “Apesar das críticas de Varnhagen, repetidas pelos historiadores, é inegável a competência metalúrgica do diretor sueco. Foi uma decisão que misturou intriga, política e dose de falhas na gestão de Hedberg”, afirma Landgraf. Varnhagen foi indicado para substituí-lo e assumir a operação. Entre 1815 e 1818 construiu, enfim, os altos-fornos, mas sua produção não superou as 30 toneladas anuais, bem abaixo das 600 toneladas previstas. Assim, em 1820, foi a vez do alemão se transformar em alvo. “Houve excessos. Bonifácio, em sua Memória, não fez somente críticas técnicas, mas insinuações que atingiram diretamente

Acima, aquarela de Ipanema, pintada em 1814 a pedido de Hedberg pelo sueco Dankwarts, mostrando a represa do Ipanema. Abaixo, a fábrica fotografada por J.W. Durski em 1884

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imagens  1 arquivo pessoal 2 coleção princesa isabel

Apesar dos resultados, Ipanema foi uma boa tentativa de introduzir a moderna siderurgia no Brasil

Varnhagen, acusado de intrigante, ignorante em metalurgia do ferro e mau gestor”, fala Araújo. produção

Em 1821, o alemão demite-se da Ipanema, alegando problemas de saúde. “Ele era um profissional especializado em propor soluções técnicas e de gestão de produção, mas não era um sábio como Eschwege ou mesmo Bonifácio”, diz o historiador. As modificações que implantou em Ipanema foram notáveis e tiveram reconhecimento internacional pela sua efetividade e modernidade tecnológica. Exemplo de sua criatividade técnica foi o uso da força hidráulica numa época em que a máquina a vapor inglesa ainda era uma curiosidade. Outro exemplo notável de sua “visão prática” foi a solução dada por ele para resolver o problema que assombrava os construtores de altos-fornos: encontrar um material refratário que revestisse os fornos e suportasse as altas temperaturas. A alternativa disponível, importar tijolos industriais da Inglaterra, era economicamente inviável. Era uma questão crucial: sem bons refratários é impossível fazer funcionar altos-fornos. O intendente Câmara, de Minas do Pilar, celebrado pela construção do primeiro alto-forno, viu seu forno trincar por não ter materiais adequados. Varnhagen encontrou, ao lado da fábrica, um tipo de arenito que pensou em usar como refratário. “Com grande sucesso: até o seu fechamento, em 1895, Ipanema nunca precisou importar materiais para revestir os fornos. A professora Eliane Dal Lima,

do Instituto de Geociências da USP (IG-USP), está analisando a descoberta de Varnhagen para revelar suas propriedades.” Assim, causa estranheza a pressão sobre o alemão para sua demissão. “Foi por questões políticas, pela desavença com Bonifácio, que, talvez, o invejasse, sentindo-se superior a ele. O Império Português soube investir na formação de um grupo de ilustrados, mas não se importou em criar mecanismos para que eles pudessem trabalhar livres de questões políticas, sempre temerosos de perder seus cargos com a mudança de um gabinete”, nota Araújo. Assim, quando o potencial das fábricas de ferro de Minas mostrou sua superioridade, a planta paulista foi deixada de lado, chegando à posteridade como uma experiência custosa e desastrada. Na contramão do que se dizia dela em seu tempo, citada em publicações técnicas estrangeiras com admiração e ponto “turístico” de viajantes como Debret, Saint-Hilaire e Spix e Martius. “Ipanema foi uma tentativa efetiva de introdução da moderna siderurgia na América portuguesa. Foi um grande e sofisticado complexo metalúrgico, altamente verticalizado. Por necessidade concentrou num mesmo local a diversidade de saberes e competências politécnicas que na metalurgia europeia estavam dispersos em múltiplas unidades de produção fabril”, observa Araújo. A fábrica produziu de maneira pioneira ferro em grande escala na América do Sul e foi, sem dúvida, nota o historiador, um protótipo que, apesar das dificuldades por que passou, funcionou bem em face do estado da técnica no Brasil colonial. Quando analisada em termos tecnológicos, não havia muita diferença entre o que se fez na fábrica paulista e na Europa. Mas o uso incorreto ou incompleto desse conhecimento ante a carência de pessoal qualificado impediu que um projeto sofisticado como Ipanema pudesse vingar. “Entre os operários não há um que tenha trabalhado com um alto-forno, o que faz as operações muito imperfeitas”, observou Varnhagen, que sempre avisou da necessidade de melhores operários. Os escravos que trabalhavam na fábrica são mais evidência das “ideias fora do lugar”, com a permanência de estruturas arcaicas para operar inovações tecnológicas de primeira linha, gerando um descompasso de qualificações e impedindo o progresso efetivo do país, apesar dos investimentos. A mesma crítica de 1780, já citada acima, era o mesmo fantasma que rondava Vargas séculos mais tarde: “falta de aparelhamento”. O desnível entre o saber científico e as possibilidades de aplicação continua, de certa forma, a ser um obstáculo para o desenvolvimento tecnológico do país. Só veria um empreendimento como Ipanema na criação futura da Companhia Siderúrgica Nacional. Haveria alguma semelhança entre os dois projetos? “Ousadia”, responde Araújo. n Carlos Haag pESQUISA FAPESP 202  z  79


música y

Explicando para confundir Nos anos 1970 a MPB encontrou diferentes formas de recriar o experimentalismo tropicalista Amauri Stamboroski Jr.

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u tô te explicando/ Pra te confundir/ Eu tô te confundindo/ Pra te esclarecer/ Tô iluminado/ Pra poder cegar/ Tô ficando cego/ Pra poder guiar”, cantarola Tom Zé em “Tô”, quarta faixa do álbum Estudando o samba, de 1976. Indiretamente, o refrão do cantor baiano poderia se referir ao impacto da produção musical dos artistas escolhidos pelo historiador Herom Vargas, professor titular do programa de mestrado em comunicação da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) e da Universidade Metodista de São Paulo (Umesp), como foco da pesquisa Experimentalismo e inovação na música popular brasileira nos anos 1970. Além de Tom Zé, Novos Baianos, Walter Franco e Secos & Molhados compõem entre si um apanhado díspar, mas que conta uma história da criatividade e da experimentação da música brasileira num período em que a indústria fonográfica no Brasil passava por um momento de expansão e centralização. Em seu trabalho de 1994 O berimbau e o som universal, Enor Paiano, autor de Tropicalismo: bananas ao vento no coração do Brasil (Scipione), colhe alguns dados que demonstram o crescimento do mercado fonográfico brasileiro na época: 444,6% entre 1966 e 1976, num período em que o crescimento acumulado do PIB foi de 152%. Entre as empresas que mais faturavam com esse crescimento estava a Continental, gravadora brasileira fundada em 1929 e sediada em São Paulo, que contava com um elenco de artistas populares e regionais. “A Continental foi a maior gravadora nacional de todos os tempos”, enfatiza Eduardo Vicente, professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e autor da pesquisa Música e disco no Brasil: a trajetória da indústria nas décadas de 80 e 90, de 2002. “Lá por 1970 a Continental decide ir além do seu elenco regional e começa a gravar músicos novos. Walter Franco, 80  z  dezembro DE 2012

Secos & Molhados, Novos Baianos e Tom Zé tinham pouca ou quase nenhuma abertura com as gravadoras maiores e multinacionais que estavam começando a entrar no mercado, como a Philips”, explica Vargas, justificando a escolha dos nomes analisados na pesquisa. Mas, além das realidades do mercado, outros dois fatores ainda pesam no surgimento dessa geração experimental. “Existe uma repressão muito forte da ditadura militar na primeira metade dos anos 1970. Esses artistas, como outros da música popular, vão tentar driblar a questão da censura. Mas, diferentemente de um Chico Buarque, não têm um viés político declarado, aberto, eles operam pelas frestas. Trabalhavam a linguagem da canção como um caminho de provocação”, reflete Vargas. Por fim, há também o contexto internacional da contracultura – nome que se deu ao conjunto de atitudes e novas relações sociais e também artísticas que começam a se delinear na segunda metade da década de 1960 na Europa e EUA e que reverberam de diferentes formas mundo afora, do maio de 1968 francês ao tropicalismo brasileiro. Para falar dessa nova geração, o pesquisador recorreu ao termo “pós-tropicalismo”: “O termo pós-tropicalismo tem sido empregado com razoável discernimento para nomear um segmento da produção musical do período que, de alguma maneira, seguiu parte de seus passos”, escreveu ele no artigo “Categorias de análise do experimentalismo pós-tropicalista na MPB”. “O tropicalismo criava suas novidades dentro do contexto dos festivais de música televisivos, muitas vezes numa crítica à própria esquerda. Os Novos Baianos, por exemplo, faziam isso já dentro da canção, num contexto mais musical”, diferencia Vargas. O grupo de Luiz Galvão e Morais Moreira é emblemático dessa transição. Formado em 1969 em Salvador, mudou-se em 1971


foto  Arquivo / Agência O Globo

Tom Zé em show no Rio de Janeiro em 1973

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para o Rio de Janeiro e, sob a influência de João Gilberto, começou a incorporar diferentes elementos do samba ao seu rock em álbuns como Acabou chorare e Novos Baianos FC. “Pegue a regravação deles para “O samba da minha terra”, de Dorival Caymmi. Quando o Pepeu Gomes entra com a guitarra você ouve riffs, solos, que são da linguagem associada ao rock. Mas a música ainda é um samba”, exemplifica Vargas. contracultura

Além da música, o comportamento do grupo – que por um período de tempo conviveu coletivamente em um sítio no Rio de Janeiro – também foi importante na continuidade do tropicalismo. “Os Novos Baianos traduziram o que poderíamos chamar de ‘versão brasileira da contracultura’”, afirma o professor e pesquisador da Unicamp José Roberto Zan. “A vida em comunidade, as drogas, o procedimento tropicalista de combinar elementos musicais do pop internacional com a música brasileira (samba e gêneros regionais como o frevo) compõem um estilo que expressa ressonâncias da contracultura na nossa música popular.” Outro grupo que expressou sua discordância através do corpo e da performance – e, inevitavelmente, do rock – foi Secos & Molhados. Mesclando rock progressivo, blues, incorporando referências folclóricas luso-brasileiras (em “O vira”) e com a utilização constante de poesia – de nomes como Vinicius de Moraes, Manuel Bandeira e Fernando Pessoa, entre outros –, o trio teve uma carreira meteórica, com dois álbuns lançados entre 1971 e 1974 e um enorme sucesso popular, impulsionado pelo apelo visual das maquiagens e da teatralidade sexualmente ambígua do vocalista Ney Matogrosso. As maquiagens em preto e branco que marcaram a visualidade do grupo aconteceram meio que ao acaso. Antes do sucesso de Secos & Molhados, Matogrosso era ator e, numa apresentação do grupo na Casa da Badalação e Tédio, clube anexo ao teatro Ruth Escobar, chegou atrasado, diretamente de uma peça infantil em que estava atuando anteriormente e, na pressa, subiu ao palco ainda maquiado. João Ricardo, fundador e principal compositor da banda, e o companheiro Gérson Conrad ficaram animados com a reação da plateia e resolveram adotar o estilo. 82  z  dezembro DE 2012

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1 Walter Franco em show de 1975 2 Secos & Molhados se apresentam no Maracanã em 1974 3 Novos Baianos em ensaio de 1972

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Esse artifício era amplificado pela própria performance de Matogrosso no palco e na televisão, que no início dos anos 1970 reclamava um novo papel hegemônico. No artigo “Corpo e performance no experimentalismo do grupo Secos & Molhados”, Vargas descreve com precisão a postura do cantor: “Sua figura é altiva (peito nu estufado e cabeça erguida), mesmo de pés descalços, os olhos são arregalados, a voz aguda é marcante, movimentos exagerados da boca marcam a pronúncia das palavras, movimentos de quadris insinuam outros códigos, penas, colares e lantejoulas bailam com o corpo, séries de movimentos de dança ou completamente livres sobre o palco transformaram-se em códigos de desprendimento. Não eram movimentos ensaiados e sempre iguais”. Ao invés de afastar o público em um país ainda conservador, o efeito foi contrário: shows lotados país afora, turnê no México, álbuns vendidos às centenas de milhares. “Os dois LPs do grupo Secos & Molhados foram, talvez, o maior fenô-

meno de vendas da indústria fonográfica brasileira naquele período”, observa Zan. “Acredito que a experiência do grupo definiu novos padrões de encenação da canção num momento em que a televisão se consolidava como o principal meio de comunicação de massa no país. Ao mesmo tempo, as performances antecipavam a invenção do clip, um novo componente da linguagem da música popular.” Diferentemente desses casos em que a experimentação se traduziu em sucesso popular, Walter Franco é um exemplo de como o radicalismo mais aguerrido não encontrava eco fora da vanguarda, que acabou sendo batizada, especialmente pela sua postura de enfrentamento, de “malditos”. O compositor paulistano começa a ganhar projeção a partir da sua apresentação em 1972 no VII Festival Internacional da Canção, da Rede Globo, apresentando a música “Cabeça”. Sem letra, a faixa era uma colagem de frases e fragmentos, sobre uma camada de sons sintetizados. Apesar de ter sido hostilizado e vaiado pelo público durante a


fotos  1 DOMICIO PINHEIRO/AGêNCIA ESTADO/AE 2 Ronald Fonseca/Agência O Globo 3 arquivo/AGêNCIA ESTADO/AE

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Além da música, o comportamento dos artistas era fundamental como continuidade do trabalho dos Novos Baianos

apresentação, a canção foi encarada com simpatia pelo júri presidido por Nara Leão, e para evitar que a obra polêmica fosse premiada, a emissora acabou destituindo o júri, amplificando a polêmica. Após o entrevero, Franco acabou contratado pela Continental, onde lançaria dois álbuns: Ou não, de 1973, e Revólver, de 1975. “É possível fazer um paralelo entre a poesia concreta e o trabalho de Franco, especialmente no sentido da concisão”, nota Vargas. “Ele utiliza poucas notas, uma melodia muito restrita, letras em sua maioria curtas. Mas ele demonstra os sentidos no canto, no arranjo, na performance. ‘Cabeça’, por exemplo, não tem letra, é só uma frase, mas a cada repetição, ao vivo, ele dá um novo sentido. A poesia concreta tem isso: a mensagem precisa ser concisa, mas ao mesmo tempo precisa ter muito sentido dentro dela para ser compreendida pelo público.” A preocupação com a palavra e os experimentos atonais e com colagens acabaram influenciando uma geração posterior de músicos, na chamada Van-

guarda Paulistana, do final dos anos 1970 e início dos 1980. “Parece haver ali um diálogo”, nota Zan. “Vale ouvir e comparar as composições ‘Cabeça’, de Franco, e ‘Minha cabeça’, de Luiz Tatit e Zé Carlos Ribeiro, presente no LP Rumo, de 1981.” Outro músico cuja obra setentista vai ter uma influência posterior na música brasileira é Tom Zé. Participante do núcleo central do tropicalismo, compondo com os Mutantes e gravando no álbum-manifesto Tropicália ou panis et circensis, de 1968, o músico baiano, discípulo de Hans Joachin Koellreutter, teve uma fase especialmente criativa – mas de pouco impacto imediato – nos anos 1970. experimentação

Em álbuns como Todos os olhos e Estudando o samba, Zé elege a canção como seu veículo de experimentação e crítica. Seu objetivo era remodelar o que ele mesmo mais tarde viria chamar de “acordo tácito” entre artista e público, em que existia uma ideia preconcebida do que seria uma canção “de fato”

e o que “não seria música” – acusação intermitente do público às vaias nos festivais contra toda música que saísse desse insondável “padrão”. Dessa forma, Tom Zé vai buscar diferentes recursos para desconstruir a canção a partir de dentro. “Um exemplo é o uso do ostinato, célula rítmica e melódica repetida durante toda a música. Ele utiliza isso em várias composições do período, e a cada repetição algo novo acontece na música. Esse uso não é muito comum na música popular, que costuma ter uma estrutura dividida em primeira e segunda parte, refrão, solo etc.”, observa Vargas. Além disso, Tom Zé fazia o uso amplo de objetos “não musicais” dentro de suas composições, adaptando propostas da vanguarda erudita. “O que me salvou foi que eu sou um péssimo compositor, um péssimo cantor e um péssimo instrumentista. Então, quem é péssimo, tanto faz tocar piano como tocar enceradeira!”, declarou o músico em 2006, explicando suas escolhas. Um terceiro ponto que Vargas gosta de observar na obra do compositor nesse período é certa mistura de sinais, com Tom Zé invertendo, misturando e se apropriando de estilemas relacionados a diferentes gêneros populares. Em Estudando o samba essa vocação aparece com vigor, e o músico analisa, decompõe e recompõe “estruturas rítmicas, estilemas melódicos e temáticos, timbres instrumentais e formas tradicionais de interpretação do samba”, como explica Vargas no artigo “As inovações de Tom Zé na linguagem da canção popular dos anos 1970”. “Há no disco uma versão para ‘Felicidade’, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Ele desconstrói a música, fica estranha, mistura o compasso binário do samba com um violão no compasso ternário e apresenta entradas de ruídos, sons gravados.” Essa fase da música ainda deve render novas discussões. “Quero estudar melhor essas condições em que se desenvolveram esses artistas nos anos 1970 e falar sobre a Continental e a ditadura, as gravadoras e o pano de fundo da época”, conta o pesquisador. n

Projeto Experimentalismo e inovação na música popular brasileira nos anos 1970 – nº 2009/18261. Modalidade: Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa. Coordenador: Herom Vargas - Universidade Metodista. Investimento: R$ 11.587,00 (FAPESP). pESQUISA FAPESP 202  z  83


divulgação científica y

Cinco décadas de consciência ecológica Primavera silenciosa, de Rachel Carson, faz 50 anos e permanece um clássico da literatura ambiental Carlos Eduardo Lins da Silva

E

ntre os cinquentenários de 2012, um dos mais importantes e menos celebrados foi o da publicação de Silent spring (Primavera silenciosa, reeditado no Brasil em 2010 pela Editora Gaia). Este livro de Rachel Carson causou tanta repercussão na década de 1960 que é até hoje considerado um dos marcos fundadores do movimento ambientalista internacional. Carson era uma cientista, mas seu nome foi incluído na lista dos autores das 100 melhores reportagens do século XX pelo júri de grandes jornalistas formado pela New York University em 2000 para escolhê-las. É que Silent spring foi originalmente publicada pela revista The New Yorker, em partes, entre junho e julho de 1962. A força dos argumentos e dos fatos que Carson relatava no texto sobre o uso de pesticidas e seu efeito sobre o ambiente e as pessoas foi tão grande que ele virou um sucesso instantâneo. Dezenas de jornais republicaram trechos do trabalho e o comentaram; senadores e deputados falaram sobre ele no Congresso; o presidente John Kennedy instituiu uma comissão para estudar o assunto a partir do que Carson concluíra a respeito dele; a primeira edição do volume com a íntegra do texto, publicado pela Houghton Mifflin, vendeu 600 mil cópias em um ano. 84  z  DEZembro DE 2012

As pessoas que conheceram bem Rachel Carson a descreviam como tímida e introvertida. Apesar disso, desde muito jovem ela se envolveu com a divulgação da ciência, a causa a que mais se dedicou na vida. Bacharel em biologia e mestre em zoologia pela Johns Hopkins, Carson enfrentou, em 1935, os preconceitos vigentes na época contra mulheres no ambiente da pesquisa científica, e o único emprego que conseguiu foi de roteirista em programas de rádio sobre o oceano, produzidos pelo departamento do governo federal dedicado ao estudo de florestas e mares. A partir daí, ela passou a publicar artigos em revistas como The Atlantic, Colliers e The New Yorker, que editou em série o que, depois como livro, seria seu primeiro best-seller, The edge of the sea (A margem do mar), em 1952. Quando Silent spring saiu, ela já era autora conhecida. Carson dedicou tempo quase integral a partir de 1958 à pesquisa e redação do que se tornaria o seu maior legado à sociedade. Mas ao mesmo tempo lutava contra o câncer de mama, cujos primeiros sintomas foram detectados em 1950 e que a levaria à morte aos 56 anos em 1964. Além disso, criava uma sobrinha-neta órfã que adotara em 1957, quando a criança tinha 5 anos de idade. Ela entrevistou centenas de colegas cientistas, funcionários de órgãos públicos ligados à agricultura, médicos que

A primeira edição do livro em inglês e a obra em português; na foto, Rachel trabalhando (s/d)


Yale Collection of American Literature

Título é alusão a uma primavera futura, caso não se proibisse o uso de pesticidas, em que pássaros e animais silvestres teriam desaparecido

estudavam a relação entre câncer e exposição de pessoas a defensivos agrícolas. Com isso, realizou um amplo levantamento do uso de pesticidas e suas possíveis consequências para a saúde humana e a qualidade do ambiente. O resultado foi um texto com grande embasamento científico, mas escrito de maneira apaixonada para incitar o público a exigir políticas públicas contra o uso de pesticidas sintéticos. “Como podem seres inteligentes procurar controlar umas poucas espécies indesejáveis por meio de um método que contaminou todo o ambiente e trouxe o risco de doenças e até mortes à sua própria espécie?”, perguntava. O título é uma alusão a uma primavera futura, em que, caso não se coibisse o uso de pesticidas, pássaros e animais silvestres teriam desaparecido do ambiente, devastados pelos venenos contra pragas agrícolas. O livro era dedicado ao humanista Albert Schweitzer, autor da frase que serve como seu frontispício: “O homem perdeu

a capacidade de prever e de prevenir. Ele terminará por destruir a Terra”. Embora tenha sido muito bem recebido pelo público, Silent spring provocou reação brutal das empresas produtoras de pesticidas, que atacaram a autora de diversas maneiras. Embora debilitada pelo câncer, Carson defendeu-se com vigor, inclusive em depoimentos ao Congresso e participações em importantes programas de jornalismo na televisão. O químico Roberto Berlinck, da USP, faz a seguinte avaliação da importância do livro de Carson: “Ele trouxe duas consequências importantes. A primeira foi a necessidade da regulação na produção de uso de substâncias químicas para os mais diversos fins. Seu livro serviu de ponto de partida para a implementação de políticas governamentais dos EUA, como a criação da Environmental Protection Agency em 1970, a publicação do Clean Water Act em 1972 e do Endangered Species Act em 1973”. Sobre as repercussões no Brasil, Berlinck lembra: “As regulações ambientais começaram a ser implementadas com Paulo Nogueira Neto, secretário especial do Meio Ambiente entre 1973 e 1985. A partir de então a produção, utilização e descarte de produtos químicos passaram a ser reguladas de forma cada vez mais severa, de maneira a se evitar contaminações ambientais e prevenir desastres, como os vários que aconteceram em Cubatão (SP)”. Para o biólogo Carlos Alfredo Joly, da Unicamp e coordenador do programa Biota/FAPESP, o livro é um marco do movimento ambientalista internacional. "Ele foi o embrião de campanhas contra o uso de defensivos químicos, que depois se ampliou progressivamente para, por exemplo, combater os CFCs que destroem a camada de ozônio até atingir a questão das emissões de CO2 e o aquecimento global", diz. Primavera silenciosa, que vem há 50 anos despertando a consciência ecológica de milhares de pessoas por todo o mundo, é, sem dúvida, um dos clássicos da literatura ambientalista universal, perfeito exemplo de divulgação científica de alta qualidade. n pESQUISA FAPESP 202  z  85


memória

O valor da língua Análise de nomes de

São João del Rei A vila de São João del-Rei, anteriormente Rio das Mortes, cabeça de comarca, é uma das maiores e a mais alegre e abastada da província; assentada em terreno plano, e meia légua distante da margem esquerda do rio, que lhe deu o nome primitivo até o ano de 1712, quando El-Rei D. João V lhe deu o título. Manuel Aires de Casal Corografia brazílica (1817)

localidades ajuda a contar a história da Estrada Real Neldson Marcolin

Barbacena

O

s naturalistas que visitavam o Brasil desde o século XVI vinham atraídos tanto pela natureza exótica quanto pela curiosidade científica. A partir da abertura dos portos, em 1808, o fluxo de viajantes se tornou mais frequente. De volta aos países de origem, eles escreviam e publicavam relatos que hoje são lidos e analisados por historiadores para tentar preencher lacunas de informação sobre o passado brasileiro. Descritivos e impressionistas, os textos auxiliam também pesquisadores de outras áreas. Ao estudar os nomes das cidades que compõem o roteiro da Estrada Real – os vários caminhos que levavam às minas de ouro e diamantes e foram basais na formação de Minas Gerais –, os linguistas viram nas observações dos viajantes naturalistas uma rica fonte de dados que ajuda a recuperar a memória daquelas localidades (ver exemplos nestas páginas). A Estrada Real é um conjunto de quatro vias: Caminho Velho, Caminho Novo, Caminho de Sabarabuçu e Caminho dos Diamantes. Todos foram abertos entre os séculos XVII e XVIII para penetrar sertão adentro numa época em que o Brasil era ocupado praticamente só no litoral. 86 | dezembro DE 2012

Barbacena não era, há cem anos, mais que uma aldeia miserável de seis ou oito casas chamada Arraial da Igreja Nova da Borda do Campo. Só em 1791, quando o marquês de Barbacena permitiu que lhe dessem seu nome, passou ela a ter o título de vila, anexando ao seu patrimônio grandes propriedades, cedidas por um rico morador. Francis de Castelnau Expedição às regiões centrais da América do Sul (1850-1857)


Sabará

Catas Altas

(...) Bem fornecida de mercadorias, e ruas em parte bem calçadas, atestam a riqueza dos habitantes. Monta a 800 o número de casas e a 5 mil o de habitantes. A fundição de ouro daqui produz atualmente maior quantidade de barras de ouro do que qualquer uma das outras três que existem na província.

O arraial de Catas Altas de Mato Dentro recebeu esse nome das profundas catas feitas na serra, as quais são o único vestígio da antiga extração de ouro. (...) Atualmente, o meio de vida dos moradores reside geralmente mais no comércio, na lavoura e na criação de gado do que na busca de ouro que há muitos anos se encontra bastante diminuída.

Diamantina Gouveia Sabinópolis

Conceição Mato Dentro Santana do Riacho

Spix e Martius

Ferros

Itambé do Mato Dentro Senhora do Carmo

Viagem pelo Brasil (1823, 1828, 1831)

Lagoa Santa

Morro Vermelho

Johann Emanuel Pohl

Bom Jesus do Amparo

Viagem no interior do Brasil (1832)

Sabará Cocais Catas Altas Cachoeira do Campo Ouro Preto

Brumadinho Congonhas Entre Rios de Minas Desterro de Entre Rios

Alvinópolis

Mariana Mariana

Ouro Branco

Piranga

Caranaíba Lagoa Dourada

Senhora dos Remédios Barbacena

São João del-Rei Pedro Teixeira

Carrancas

Matias Barbosa

Uma jornada de 3 léguas por uma região montanhosa e escassa de matas levou-me à cidade de Mariana, cujo aspecto e situação muito me agradaram (...). É de edificações mais compactas que eu havia geralmente visto no Brasil; e, como tem diversas formosas e finas igrejas e as casas são em maioria amplas e caiadas, é no todo de aparência muito nobre. George Gardner

ilustracão  daniel das neves   fonte instituto estrada real

Viagem ao interior do Brasil (1846)

Petrópolis Passa Quatro

Rio de Janeiro Guaratinguetá Aparecida Cunha Pindamonhangaba

Caminho Velho Caminho Novo Caminho de Sabarabuçu Caminho dos Diamantes

Paraty São Luis do Paraitinga PESQUISA FAPESP 202 | 87


Antes, ainda no século XVI, a busca pela riqueza que se acreditava existir no sertão foi um empreendimento iniciado a partir da então São Paulo de Piratininga por Fernão Dias Paes, Manuel Borba Gato e Antônio Rodrigues de Arzão, entre outros, os primeiros a desbravar as terras do interior. Até meados do século XVII não havia uma ligação terrestre do Rio de Janeiro com os territórios paulista e mineiro. Era preciso ir até Santos por mar e subir a serra até São Paulo. Na segunda metade do século XVII, passou-se a utilizar um caminho misto: ia-se até Parati com barcos para depois alcançar por terra a vila paulistana. Essa via ganhou o nome de Caminho Velho, descrita pela primeira vez pelo padre André João Antonil no livro Cultura e opulência do Brasil, de 1711, publicado e depois censurado em Lisboa.

Com os ataques de piratas na travessia marítima, dom João V determinou a abertura de um novo trecho em 1728, que saía da fazenda de Santa Cruz e margeava a baía de Angra até a vila de Nossa Senhora da Piedade e, depois, Guaratinguetá. O Caminho Novo tornou-se a primeira estrada oficial brasileira e encurtou de cerca de 60 para 25 dias a chegada à região das minas. Os outros dois caminhos são prolongamentos. O de Sabarabuçu é uma continuação do Caminho Velho e o dos Diamantes foi aberto depois da descoberta de pedras preciosas no que era chamado de arraial do Tijuco. Vai de Ouro Preto a Diamantina. Ao longo de cada um desses traçados foram surgindo vilas e cidades. As que não estavam nas margens dos riachos, onde o minério era bateado, cresceram nas encostas

Caminhos do ouro Naturalistas e artistas estrangeiros que visitaram localidades na Estrada Real Viajante

Período no Brasil

John Luccock

1808-1818

John Mawe

1808-1818

Wilhelm von Eschwege

1810-1821

Georg W. Freireyss

1813-1825

Auguste de Saint-Hilaire

1816-1822

Jean Baptiste Debret

1816-1831

Manuel Aires de Casal

1817

J.B. von Spix e K. von Martius

1817-1820

Johann E. Pohl

1817-1821

Robert Walsh

1818-1829

G. H. von Langsdorff

1822-1829

Johann Moritz Rugendas

1822-1829

Alcide D’Orbigny

1833-1834

Charles Buermeister

1833-1835

George Gardner

1836-1841

La Porte, conde de Castelnau

1843-1847

Hermann Bunbury

1850-1852

Augusto E. Zaluar

1860-1861

Jean Louis Agassiz

1865-1866

Richard Francis Burton

1865-1868

Fonte: Francisco de Assis Carvalho/FFLCH/USP

Ouro Preto

Vila Rica é, talvez, um dos lugares mais estranhamente situados no mundo todo e somente mesmo o poderoso amor do ouro poderia ter dado origem a uma cidade grande em tal posição. Todavia, a aparência de suas ruas é digna e mais ainda o de seu calçamento. John Luccock Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil (1820)

1

88 | dezembro DE 2012


Diamantina

Tijuco é construída sobre a encosta de uma colina cujo cume foi profundamente cavado pelos mineradores. Ao pé dessa colina corre, em um vale demasiadamente estreito, um regato que tem o nome de rio São Francisco. Do outro lado do vale outeiros extremamente áridos fazem face à aldeia (...). Saint-Hilarie Viagem pelo distrito dos Diamantes e litoral do Brasil (1833)

fotos  1 e 3 WikiCommons  2 Robert Serbinenko / Latinstock

2

das montanhas onde eram escavadas as minas. Com a intensa exploração de ouro e diamante durante todo o século XVIII, o eixo de circulação da Colônia mudou do litoral para o sertão brasileiro. O pesquisador de linguística Francisco de Assis Carvalho, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, concluiu um extenso trabalho de doutorado em outubro sobre a memória toponímica dos municípios, distritos e vilas que compõem os quatro caminhos da Estrada Real. A toponímia trata dos nomes dados pelo homem ao espaço habitado por ele. “A nomeação de um lugar não ocorre de forma aleatória. Basta investigar para descobrir informações referentes à língua em uso e aos costumes e valores, o que ajuda no melhor conhecimento da cultura da região.” Embora a toponímia esteja quase sempre ligada à geografia e à história, ela também é utilizada na linguística pelo

Profeta Ezequiel, escultura de Aleijadinho em Congonhas, cidade da Estrada Real

3

33

fato de o nome de lugar ser um signo linguístico. Carvalho estudou 242 topônimos (200 municípios, 37 distritos e 5 povoados) dos três estados onde se situa a Estrada Real (Minas, São Paulo e Rio) e contou 20 viajantes naturalistas ou artistas estrangeiros que deixaram relatos sobre as localidades. “Eles ressurgem, nesse estudo, como verdadeiros memorialistas. Os registros são fontes comprobatórias, que fornecem dados políticos, econômicos e preciosas informações linguísticas”, diz. Alguns dos lugares descritos por eles não foi possível descobrir a localização. Outros desapareceram. São João Marcos era uma vila citada por vários naturalistas, mas Carvalho não conseguia identificá-la. “Até encontrar em uma obra histórica que o vilarejo está sob as águas do Ribeirão das Lages.” De acordo com o estudo de Carvalho, a nacionalidade mais comum entre os 20 viajantes encontrados era a inglesa (7). Quem mais viajou pela Estrada Real

foi o francês Auguste de Saint-Hilaire, que registrou 58 topônimos nos quatro caminhos. Manuel Aires de Casal, Spix e Martius, Georg Langsdorff, John Mawe, La Porte (conde de Castelnau) e Hernann Burbury são outros naturalistas que também percorreram todas as quatro vias, com fartos registros do que observaram. “O que fiz foi integrar fatores linguísticos aos históricos”, diz Carvalho, que além de pesquisador é também padre, natural de Aiuruoca, cidade próxima ao eixo principal da Estrada Real. Sua orientadora na USP foi a linguista Maria Vicentina Dick, criadora e coordenadora do Atlas toponímico do estado de São Paulo, que analisou a nomenclatura geográfica paulista, e do Atlas Toponímico do Brasil. “O trabalho de pesquisa que o Francisco fez é o que chamo de historiografia toponímica”, observa ela. “Sem fazer exatamente história, acabamos por fazer história”, conclui. PESQUISA FAPESP 202 | 89


Arte

1

Intervenções na rua Eduardo Srur transforma o espaço público em plataforma de experimentação plástica Maria Hirszman

90 | dezembro DE 2012

“A

arte salva.” O lema, escrito em cada uma das 360 boias lançadas ano passado por Eduardo Srur nos espelhos d’água do Congresso Nacional, com a ajuda de estudantes da Universidade de Brasília, sintetiza o anseio de transformar a ação artística em uma espécie de alerta contra as mazelas da nossa sociedade, ambição que marca a trajetória do artista. Srur – que iniciou sua carreira há menos de uma década com a imponente e poética instalação Acampamento dos anjos, na qual uma série de barracas de acampamento coloridas e iluminadas internamente foram dispostas sobre a fachada do atual Instituto do Câncer Octávio Frias de Oliveira, então inacabado, na conhecida avenida Dr. Arnaldo, na zona oeste de São Paulo – se insere numa longa e profícua linhagem da arte de vanguarda: aquela que busca explorar as ferramentas da criação plástica de forma conectada com a vida cotidiana das pessoas, transformando o espaço público em plataforma de experimentação, e provoca a reação do público por meio de estratégias mistas de sedução visual, choque semântico e subversão de escalas e sentidos. Ao longo do século XX, essa via foi seguida por inúmeros grupos e artistas, a começar pelos dadaístas, cujo manifesto de 1918 dizia que “o novo artista protesta: já não pinta”, e assumiu os mais diferentes contornos ao longo do tempo. No Brasil, o pioneiro em ações deste tipo foi Flávio de Carvalho, que nos idos de 1931 chocou a ainda provinciana população de São Paulo ao andar em sentido contrário de uma procissão sem retirar o chapéu da cabeça e quase foi linchado.

Intervenção feita com a ajuda de estudantes universitários diante do Congresso Nacional: a arte como forma de resgate


fotos  1 fabio rodrigues pozzebom/ABr  2 eduardo nicolau/ae  3 eduardo srur

Por princípio, a intervenção urbana genuína é um campo aberto, multidisciplinar, que se alimenta das mais diferentes fontes, absorvendo elementos do teatro, do urbanismo, das artes conceitual e pop e com um predominante acento coletivo. No caso de Srur, no entanto, há uma forte preservação do caráter autoral do trabalho, em contraposição à força crescente dos coletivos na produção de arte urbana no Brasil dos últimos anos. Outro aspecto que se destaca em seu trabalho é a maior ênfase no acabamento elaborado das peças. Ele dá grande atenção à plasticidade em suas intervenções de caráter público, revelando uma clara estratégia de usar o belo, o bem-acabado, como arma de sedução e convencimento, aproximando-se assim das ações de Christo, artista búlgaro nacionalizado norte-americano, conhecido por empacotar monumentos e ilhas inteiras e indicado por Srur como uma de suas principais influências. Com formação em artes plásticas e publicidade, o artista recorre a ferramentas desses dois campos e estabelece um perigoso jogo de inversão, no qual utiliza as próprias armas de sedução da sociedade de consumo, explora elementos cotidianos e os ícones da cultura de massas para denunciar suas contradições. O artista paulistano parece fazer questão de manter-se praticamente afastado do circuito das artes. Seu espaço não é o das galerias e museus, mas a cena pública das grandes cidades. Ele costuma dizer que considera a cidade de São Paulo como um grande laboratório a céu aberto, onde as questões que pretende explorar estão pulsando permanentemente. Seu papel é apenas dar visibilidade a elas, recorrendo a diferentes estratégias. Ele continua pintando, como forma de expressão individual e fonte de renda, mas é evidente que privilegia as ações de impacto desenvolvidas tendo como base a produtora Attack. Como já indica o próprio título da produtora, a estratégia central é atacar, de forma cirúrgica e retumbante, uma determinada questão, de forma a gerar uma espécie de curto-circuito, que abra novas possibilidades de percepção e desejo de mudança.

2

Em defesa do meio ambiente: caiaques pilotados por manequins encalham no lixo do rio Tietê

Acampamento dos anjos, projeto inaugural realizado em 2004: poesia urbana

3

Seu alvo pode ser a política, o desastre ambiental – tema que vem se tornando uma frente predileta de combate, talvez por contar com maior apoio dos vários agentes, públicos e privados, necessários para levar a cabo ações de grande impacto como as que costuma produzir. Ou até mesmo um engodo mercadológico no mundo das artes, como a Cowparade. Para evidenciar o caráter artificial e estéril dessa iniciativa internacional que nada tem a ver com o veio transformador inerente ao conceito mais preciso de intervenção pública, Srur lançou mão de uma estratégia quase de guerrilha, submetendo duas dessas esculturas de fibra de vidro à fertilidade de touros moldados no mesmo material e montados sobre elas na calada da noite, na edição 2010 do evento, na cidade de São Paulo. Tal intervenção denuncia o caráter artificial das vaquinhas padronizadas, espalhadas pelas cidades como um discurso vazio de arte urbana, meramente decorativa e mercadológica, mas rendeu também a seu autor um processo por ato obsceno, difamação e danos materiais. Se em muitos casos concentrar a idealização e consecução da obra num único núcleo (de autoria artística ou viabilização por meio de produtora Attack) é mais limitador do que a fluidez e liberdade de ação dos grupos coletivos, isso permite, por outro lado, viabilizar ações de grande impacto e reverberação, como as instalações de réplicas em vinil de garrafas pet de tamanho gigantesco na marginal Tietê (2008) e posteriormente em outros lugares como a represa de Guarapiranga; ou a realização recente de uma corrida entre uma carruagem, trafegando pela ciclovia, e um carro no congestionamento da marginal do Pinheiros como forma de denúncia contra o trânsito caótico. O resultado foi um empate técnico, ambos atingindo uma velocidade de cerca de 18 quilômetros por hora. n PESQUISA FAPESP 202 | 91


conto

Pátio Ricardo Lísias

A

sétima reunião ordinária da congregação do ano de 2012 começou atrasada porque o professor mais alto demorou para consertar o laptop. Como se não bastasse ter que ler o projeto de pós-doutorado do artista, o arquivo ainda tinha vindo com vírus. Deve ter sido de propósito, resmungou no corredor. Ele sabe que estou cuidando da editora e provavelmente quer prejudicar nossos próximos lançamentos. Antigo na universidade, não foi brincando que o professor mais alto conquistou seu espaço. Em uma época cujos valores parecem todos muito desgastados, ele fez uma aposta na rigidez da formação: a academia para os acadêmicos, repetia sempre que encontrava os colegas. Quando o grupo chegou à reitoria, um pórtico com esse lema foi colocado em um dos portões do campus. Se os motivos da luta de toda a sua vida forem ameaçados, ele vira um leão. Ao entrar na sala, segurando com força o texto do projeto no braço esquerdo (enrolado como se fosse um pequeno porrete), o professor mais alto olhou de relance para o último banco da segunda fileira, onde costuma se sentar o professor mais ansioso. Que besteira, pensou, não sabe com quem está lidando. Os novatos muitas vezes só aprendem mesmo no susto. Mas nosso trabalho é como uma missão: é preciso fazer o que precisa ser feito... Como de costume, a questão dos pós-doutorandos demorou a entrar em discussão. Antes, era preciso tratar do problema dos mestrados, da diminuição do número de doutorandos e dos alunos de graduação, que não estão entendendo a filosofia do curso e, ao mesmo tempo, pedem apoio para reivindicar alguma coisa junto à reitoria. Uma hora eles vão amadurecer. São mais ou menos como os professores novatos. Vai ser agora. O presidente da mesa está introduzindo, com firmeza mas muito cuidado, o assunto. Ainda bem, pois o professor mais alto não está aguentando de ansiedade e o mais ansioso quer que tudo acabe logo.

92 | dezembro DE 2012

Quem pediu a palavra foi o professor mais gordo. Segundo ele, o pedido do artista não poderia ser aceito, pois ele não juntara ao processo de pós-doutorado o atestado de antecedentes. Fez de propósito, o professor mais alto balbuciou. A professora mais fechada ouviu e se policiou para não fazer nenhum gesto com o pescoço. Aproveitando a deixa (não do balbucio do professor mais alto, mas do lembrete do mais gordo), o professor mais cabeludo sugeriu que dali em diante não fossem incluídos na pauta processos de pós-doutorado cuja documentação ainda não estivesse conferida. Não podemos perder tempo com gente que não cumpre regras. Um sinal de amadurecimento é o respeito às determinações. Não é burocracia, mas sim ordem! Boa sugestão, cumprimentou-lhe a professora mais maquiada. Ordem! No caso do artista, aliás, além de ordem também falta a declaração de imposto de renda. Ao ouvir isso, o professor mais alto suspirou, mas ficou quieto. Se fosse dizer o que estava pensando, talvez ofendesse o professor mais narigudo. É que o colega também arrisca uns quadros e está mais do que claro que o artista quer o dinheiro da bolsa de pós-doutorado para pintar outras telas que o pessoal elogia não sei como, pensou o mais alto. As pessoas estão perdendo a compostura. Na verdade, a arte morreu. Tudo hoje está afogado em uma produção desinteressante, sem força e nenhum poder de impacto. Pintar não é mais preciso! Essas pessoas querem apenas tapinhas nas costas. Não se preocupam em planejar o futuro, por exemplo. Basta ver o caso dele próprio, ele próprio pensou: seus amigos são apenas aqueles que partilham seus ideais. Como por telepatia, o professor mais esotérico cobrou a importância da declaração de intenções. Com ela, sabemos que o pós-doutorando vai usar o dinheiro da bolsa para comprar os tijolinhos de sua carreira. Com isso eu concordo, concordou o professor mais calorento: precisamos zelar para que todos os membros do programa de pós-doutorado gastem o dinheiro da bolsa com algo que indique


The Academy of Sciences and Fine Arts.’ Engraving by Sebastien LeClerc, 1698. /Photoresearchers/Latinstock

que eles vão fazer uma sólida carreira acadêmica. Não podemos perder tempo com um aventureiro (aliás, pensou o professor mais alto: um bom sinônimo para a palavra “artista”...). Então, redarguiu o professor mais gordo, vamos instituir que o projeto deverá ser apresentado desde o início com a declaração de antecedentes, a de renda e a de compromisso. Há ainda um outro detalhe importante, lembrou o professor mais importante. Precisamos de um atestado de sanidade. O mais alto, então, acabou não se segurando e falou: no caso específico do artista, é fundamental porque ele é arrogante e não aceita a opinião de ninguém. Não se pode dizer que toda a congregação tenha ouvido a opinião do professor mais alto, mas o fato é que o professor mais importante estava bem ao seu lado e concordou. Precisamos de pessoas que aceitem os outros, o que não é o caso, reforçou a professora mais assanhada. Estamos em um lugar onde a discórdia é importante, concordou o professor mais narigudo. Vejamos o nosso próprio caso. O departamento ocupa hoje a posição que ocupa hoje porque sempre fomos muito maduros e serenos nas nossas divergências. Nesse momento ele foi aplaudido em pé. De um jeito ou de outro, temos que chegar a uma decisão, ponderou o professor mais ponderado e que até ali tinha ficado quieto, para ver se

a confusão amainava. O mais quieto, por sua vez, pensou em fazer uma fala, mas o mais gordo se adiantou. Em primeiro lugar, encaminho para votação a proposta de que o departamento recuse o projeto de pós-doutorado do artista por ausência de documentação. Mas e se ele reunir os documentos que faltam?, perguntou, agora sem se conter, o professor mais alto. Os outros fingiram que não tinham escutado. Mas o medo dele durou pouco: decidimos ainda, completou o professor mais gordo, que uma pessoa só pode apresentar uma única vez o seu projeto. Se não der certo, por qualquer motivo, perde a chance. Concordo, gritou o professor mais alto, erguendo-se. Com um enorme sorriso, ele virou para olhar a cara do professor mais ansioso. Que bobo, aceitar supervisionar o pós-doutorado do artista! Mas o colega não estava na sala. Onde esse homem foi parar?, perguntaram-se todos em voz baixa. A única pessoa que teve coragem de sair da sala para ver o que tinha acontecido foi o professor mais inteligente. Ele resolveu aproveitar o último restinho de sol, respondeu-lhe a enfermeira. Ricardo Lísias é escritor, autor de O livro dos mandarins e O céu dos suicidas. Foi eleito para integrar a antologia da revista inglesa Granta com Os melhores jovens escritores brasileiros.

PESQUISA FAPESP 202 | 93


resenhas

Ciência, paixão e criação de mundos Mariluce Moura

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Homens que nos ensinaram a concepção do mundo Roberto A. Salmeron Editora UnB 196 páginas R$ 28,00

94 | dezembro DE 2012

oberto Salmeron, 90 anos, é um brasileiro muito especial. Cientista com uma larga e brilhante folha de serviços prestados à física de partículas elementares desde que, em 1938, integrou em São Paulo o grupo de física de raios cósmicos liderado por Gleb Wataghin, ele gastou todo o ano de 2010 escrevendo Homens que nos ensinaram a concepção do mundo. Para facilitar a tarefa, tinha em mãos anotações de aulas e resumos das muitas conferências que fizera ao longo dos anos abordando o trabalho desses pais fundadores, digamos assim, da ciência tal qual a reconhecemos neste começo de século XXI. O resultado concreto desse esforço é um livro com 13 pequenos e inspiradores perfis biográficos escritos num texto envolvente, que costura com rigor e sensibilidade dados do trajeto intelectual, episódios pessoais e traços marcantes do caráter das personagens escolhidas. Assim, o autor consegue oferecer aos leitores belos e por vezes inesperados retratos dos biografados, amorosamente desenhados para provocar um novo olhar sobre o sentido dessas vidas e, quem sabe, estimular novas vocações científicas no Brasil. Sim, porque com esse trabalho de divulgação científica lançado em outubro último, no Rio de Janeiro e em Brasília, o professor Salmeron espera falar especialmente com os jovens, como parece ter tido sempre prazer em fazer, oferecendo-lhes uma visão combativa e apaixonante da entrega pessoal à pesquisa em ciência, ainda que se trate de caminho marcado também por sacrifícios e imensos obstáculos. A lista dos Homens que nos ensinaram a concepção do mundo é aberta por Copérnico, Aristóteles e Ptolomeu e encerrada com Einstein. Salmeron trata todos os seus eleitos com a seriedade e o respeito que as contribuições dadas por esses cientistas para a melhoria da vida do homem na Terra, para o avanço do conhecimento e as configurações contemporâneas da sociedade humana, motivam e justificam. Mas é a Newton e, mais ainda, a Faraday que ele reserva as porções mais generosas de sua admiração pelos homens de ciência. Em conversa descontraída durante sua recente estada no Brasil, explicou com simplicidade algumas razões dessa preferência. “Newton foi ao mesmo tempo um grande matemático, um grande físico e um

grande astrônomo – um gênio. Quanto a Faraday, espanta-me o quanto ele foi capaz de fazer pelo avanço do conhecimento, tendo a vida marcada na origem por extrema pobreza, com pais analfabetos e o pai dependendo de seu trabalho de ferrador de cavalos para sustentar a família”, disse. Na verdade, também Isaac Newton nasceu numa família que estava longe de poder oferecer um ambiente favorável ao cultivo de talentos especiais de suas crianças. “Não teve ancestrais notáveis; seu pai não sabia nem assinar o nome – como o pai de William Shakespeare – e o tio e o primo também eram analfabetos. Não havia nada na família que pudesse indicar que o menino teria um brilhante futuro intelectual. Poderia ter acontecido que, em circunstâncias diferentes de sua vida, Newton jamais tivesse aprendido a ler ou a escrever”, registra Salmeron na página 88 de seu livro. Mas as circunstâncias foram torcidas pelo imponderável e por isso o biógrafo pode fazer adiante registro inteiramente diverso: “Em 1665 e 1666 tinha, portanto, 22 e 23 anos. Foi nesse curto intervalo de tempo que seu gênio eclodiu com uma força única, elaborou os fundamentos da obra gigantesca que iria realizar em vários campos, matemática, óptica, mecânica, atração universal, cosmologia e astronomia” (página 94). O autor encerra seu olhar a Newton perguntando-se, “Qual a força da natureza que faz com que uma criança cujos pais e tios eram analfabetos se revelasse um gênio?” (página 102). Com Faraday, a questão da origem familiar e do primeiro ambiente em que viveu toma cores ainda mais dramáticas. “Michael Faraday”, diz Salmeron, “foi um dos personagens mais fascinantes e mais impressionantes das ciências, de todas as ciências. Oriundo de uma família miserável da maior pobreza da Inglaterra de fins do século XVIII e início do século XIX, tendo frequentado somente alguns anos de escola elementar para aprender a ler, a escrever e a contar, sem nenhuma instrução formal, tornou-se grande físico e grande químico, o maior físico experimental de todos os tempos. Talvez o maior cientista experimental de todas as ciências, de todos os tempos” (página 115). Com essa introdução entusiasmada escrita por um cientista com a autoridade de Salmeron,


Léo Ramos

O livro traz 13 pequenos e inspiradores perfis escritos num texto envolvente que costura dados biográficos com rigor e sensibilidade

ele mesmo personagem admirável da ainda jovem história da ciência brasileira, impossível é não seguir até o fim a trajetória da vida, das descobertas e da formidável influência de Faraday sobre o desenvolvimento posterior da ciência. Mas para além das declaradas preferências e afinidades do autor, merece referência especial, até por sua concepção singular dentro da estrutura geral do livro, o capítulo final, dedicado a Einstein. Nele, para destacar o papel fundamental da ciência na estrutura e nas relações de poder da sociedade contemporânea, além das agudas questões éticas que o fazer científico propunha na primeira metade do século XX, Salmeron optou por reproduzir alguns trechos da correspondência relevante trocada entre Einstein e Freud, em 1932, sobre o porquê da guerra, além de trechos do manifesto contra as armas nucleares que Bertrand Russell e Einstein lançaram em 23 de dezembro de 1954, assinado por respeitados cientistas de vários países. Em meio ao clima tenso da Guerra Fria, os cientistas alertavam que “Ninguém sabe até onde poderia se estender a nuvem mortal de partículas radioativas, mas as pessoas mais autorizadas são unânimes em dizer que uma guerra na qual se utilizassem bombas H poderia marcar o fim da humanidade” (página 193). O capítulo dedicado a Einstein, entretanto, não termina com esse tom sombrio, mas com a luminosidade e a graça que vêm de cartas de crianças endereçadas ao mais popular dos cientistas até hoje. Uma pequena e deliciosa amostra: “Caro senhor Einstein, sou uma pequena menina de 6 anos. Vi o seu retrato no jornal. Penso que o senhor deve cortar o cabelo, assim o senhor terá melhor aparência. Cordialmente, Ann” (página 195). Eram cartas que Einstein, aliás, carinhosamente respondia.

No prefácio de Homens que nos ensinaram a concepção do mundo, o físico Rogério Cezar Cerqueira Leite, professor emérito da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e um dos fundadores do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), instituição importante da qual Salmerom foi um consultor decisivo, observa que o autor do livro “elege, como não poderia deixar de ser, tendo em vista sua própria natureza ética, a ‘força de caráter’ de seus personagens como elo, que costura os episódios individuais entre as personalidades de sua épica descrição dos homens que arquitetaram a sociedade moderna” (página 12). De certa forma, é dessa natureza ética que nasce este novo livro de Salmeron, assim como dela nasceu A universidade interrompida: Brasília 1964-1965, cuja segunda edição, revista, foi lançada também pela editora da Universidade de Brasília (UnB) em 2007. A essa natureza também se vincula certamente todo o seu importante trabalho na ciência, que envolve dos chuveiros penetrantes de raios cósmicos a experimentos especiais com fótons. E é a ela que se liga especialmente sua incessante atividade no campo da educação, no Brasil ou na França, onde ele vive há muitos anos. Para ouvir e ver o depoimento do próprio Salmeron a esse respeito, sem prejuízo da leitura de seu mais novo livro, sugerimos que o leitor vá ao site de Pesquisa FAPESP. A revista já tinha publicado em 2004, na edição número 100, uma entrevista pingue-pongue desse cientista de quem o Brasil só deve se orgulhar, mas queríamos que ele falasse de novo com nossos leitores. Ele o fez, por quase três inesquecíveis horas, das quais editamos o vídeo de aproximadamente 20 minutos, um documento para ser preservado com todo o cuidado. PESQUISA FAPESP 202 95


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A Terra é viva? Marcos Buckeridge

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Gaia: de mito a ciência José Eli da Veiga (org.) Editora Senac São Paulo 176 páginas R$ 44,90

96 | dezembro DE 2012

eríamos apenas “células” dentro deste superorganismo, a Terra, que tem como propósito nos manter vivos para que ela, por sua vez, se mantenha viva? Com a proposição da teoria de Gaia por James Lovelock em meados do século XX, uma grande polêmica se formou e as interpretações pela sociedade vêm levando às discussões sobre o que é vida. Na ânsia de provar que o nosso planeta seria vivo, Lovelock acabou influenciando importantes áreas da ciência moderna, como a biogeoquímica, que estuda os ciclos de compostos químicos no planeta, levando a um aumento notável na compreensão do funcionamento do planeta Terra como um todo. Este é o tema discutido no livro Gaia: de mito a ciência. Usando como centro a teoria desenvolvida por James Lovelock, José Eli da Veiga, da Universidade de São Paulo (USP), compilou e editou três capítulos sobre o assunto escritos de pontos de vista distintos. Um deles, de Ricardo Carmo, Nei Nunes-Neto e Charbel El-Hani, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), discute questões epistemológicas sobre como a teoria de Gaia foi desenvolvida, por que houve (e há) tanta controvérsia em torno da ideia de o planeta Terra ser um planeta vivo. O uso do nome Gaia por Lovelock criou uma enorme polêmica, pois a teoria passou a ser usada para justificar ideias cientificamente não comprovadas e a levou ao descrédito pela comunidade científica mundial. Lovelock se associou à bióloga Lin Margulis, propositora da teoria endossimbionte, famosa na biologia por afirmar que as organelas celulares, como mitocôndrias e cloroplastos, teriam sido “engolidas” por células maiores durante a evolução. Segundo os autores, a reputação científica de Lin teria sido afetada por sua associação com Lovelock. O capítulo discute se, cientificamente, a Terra poderia ser considerada viva. Ainda que teorias similares tivessem sido propostas por cientistas como o escocês James Huton, no século XVIII, e pelo russo Vladimir Ivanovich Vernadsky, no início do século XX, fica claro que Lovelock foi quem popularizou a ideia da Terra como um sistema geofisiológico.

No segundo capítulo, Sonia M.B. de Oliveira, da USP, aborda o mesmo tema, mas de um ponto de vista geofísico. Oferece explicações interessantes e curiosas, como, por exemplo, a teoria da Terra-bola de neve, que propõe que nosso planeta já passou por glaciações tão intensas que ficou completamente coberto de gelo. As comparações entre os planetas do sistema solar são usadas como base para o argumento de que a Terra seria talvez o único planeta em todo o Universo com as condições necessárias para a existência de vida. Mauro Rebelo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), desenvolve um argumento biológico, com a ideia de que a vida é informação e que ela é formada por sistemas dissipativos-adaptativos, que caminham contra a entropia e mantêm os sistemas organizados à custa de um grande consumo de energia. O capítulo traz elementos relacionados aos sistemas vivos, como a discussão sobre como eles lidam bioquimicamente com o alto teor de oxigênio na atmosfera e como isto influenciou na evolução dos organismos. Todos os autores se mostram conscientes de que Lovelock cometeu alguns erros importantes ao propor a teoria de Gaia. Isto levou a uma polêmica histórica que poderia ter sido evitada. Temendo incorrer nos mesmos erros, nenhum dos capítulos responde se a Terra é viva ou não. Todos assumem que a conceituação de vida é muito complexa e não é possível defender apenas um lado da questão. O livro vale a pena ser lido e discutido. O texto oferece explicações claras para gerar uma discussão deliciosa sobre algumas questões famosas entre nós, como: por que estamos aqui? Isto mostra que, sendo ou não científica, a teoria de Gaia estimula o debate sobre como a vida e o nosso planeta interagem, uma questão importante num momento em que nos preocupamos em lidar com os impactos das mudanças climáticas globais. Para saber a resposta à pergunta inicial deste artigo, será necessário ler o livro e depois reunir um grupo de amigos para discutir. Meu palpite é que cada um sairá com uma resposta distinta. Marcos Buckeridge é professor do Departamento de Botânica do Instituto de Biociências da USP, diretor científico do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol e coautor do capítulo 27, Central & South America, para o próximo relatório do IPCC.


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