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VENDA PROIBIDA
ASSINANTE
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EXEMPLAR DE
CAPA pesquisaassin 140
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Ciência eTecnologia
no Brasil
Outubro 2007 Nº 140
PESQUISA FAPESP
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AS RAZOES DA
DUAS CIDADES NA MAIOR ´ CRATERA DO PAIS
ENZIMA DE MOSCA PARA PRODUZIR ´ ALCOOL
´ TROPICALIA DA BAHIA PARA O MUNDO
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IMAGENS DO MÊS
Beleza submarina
FOTOS ALVARO E. MIGOTTO
A exposição Oceano: vida escondida exibe até 19 de outubro em São Sebastião, no litoral paulista, uma coleção de fotografias inéditas de organismos submarinos. O objetivo da mostra é desvendar a beleza dos ambientes marinhos em imagens como as das águas-vivas Phyllorhysa punctata (abaixo) e Aequorea sp. (alto, à dir.); das poliquetas (alto à esq.), vermes comuns no ambiente marinho, mas que passam despercebidos porque são pequenos e vivem escondidos; ou ainda de detalhes como a superfície do corpo do ouriço-do-mar Lytechinus variegatus (esq.). Boa parte das fotos foi registrada na costa de São Sebastião por pesquisadores vinculados ao Centro de Biologia Marinha da Universidade de São Paulo (CEBIMar-USP), que funciona na cidade. A mostra foi idealizada por Alvaro Migotto, diretor do CEBIMar-USP, com curadoria do biólogo Alberto Lindner. Uma seleção das imagens e informações complementares sobre a mostra está disponível no endereço www.usp.br/cbm/oceano.
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> ENTREVISTA 12 Ex-presidente do IBGE
analisa o impacto social das “concepções provincianas da universidade brasileira”
30 DIFUSÃO
Em quatro décadas, a Bireme cumpriu a trajetória de simples biblioteca a referência em gestão da informação científica
ABRAHÃO SANOVICZ
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LÉO RAMOS
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CAPA
> AMBIENTE 34 HÁ 50 ANOS
Oceanógrafo revê estudos e discussões sobre aquecimento global de meio século atrás
46 IMUNOLOGIA
Grupos europeus trabalham em conjunto para integrar pesquisas e ganhar tempo na busca de novos tratamentos contra câncer e Aids
32 FAPESP
> POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA 26 ARRANJOS PRODUTIVOS
Ação articulada entre governo, setores de produção e de pesquisa projeta Piracicaba no mercado mundial do etanol
> SEÇÕES
O ex-chanceler Celso Lafer assume a presidência da Fundação
50 NEUROCIÊNCIA
> CIÊNCIA 40 CAPA
Responsável pelo ganho de peso, bloqueio à insulina começa no cérebro e aumenta predisposição a doenças
Estudo mostra as fases do sono em que o cérebro armazena experiências e lembranças
3 IMAGENS DO MÊS 6 CARTAS 7 CARTA DA EDITORA 8 MEMÓRIA 20 ESTRATÉGIAS 36 LABORATÓRIO 60 SCIELO NOTÍCIAS .........................
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> EDITORIAS
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> POLÍTICA C&T
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> AMBIENTE
> CIÊNCIA
> TECNOLOGIA
> HUMANIDADES
WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR
ARTHUR GROSSET
DIVULGAÇÃO COSAC NAIFY
GABRIELA RIBEIRO DOS SANTOS
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52 EVOLUÇÃO
Soerguimento dos Andes explica a diversidade de papagaios na América do Sul 56 GEOFÍSICA
Há 245 milhões de anos meteorito abriu cratera de 40 quilômetros de diâmetro na atual divisa entre Mato Grosso e Goiás
> TECNOLOGIA
75 ENGENHARIA ELÉTRICA
Empresa mineira desenvolve sistema que recupera calor da água do banho e reduz gasto com eletricidade
66 BIOTECNOLOGIA
Enzima de mosca produzida em levedura combate bactérias danosas à fabricação de álcool combustível
78 GENÉTICA 70 QUÍMICA ANALÍTICA
Aparelho de ressonância magnética analisa sementes para produção de biodiesel
Software criado por empresa de engenharia molecular torna mais precisos os exames de paternidade
80 HISTÓRIA
Partido nazista no Brasil foi “se amolecendo, se tropicalizando”, diz pesquisadora 86 HISTÓRIA ORAL
Nos 70 anos da UNE, estudo revela papel do movimento estudantil 90 CULTURA
O Tropicalismo, movimento liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil, chega aos 40 anos ainda polêmico
72 AGRONOMIA
Silício é usado no solo para controlar pragas, além de aumentar produtividade e qualidade dos produtos
.............................. 62 LINHA DE PRODUÇÃO 94 FICÇÃO 96 CLASSIFICADOS 98 RESENHA
> HUMANIDADES
CAPA MAYUMI OKUYAMA
FOTO DC| © CREASOURCE/LATINSTOCK
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CARTAS cartas@fapesp.br
As reportagens de Pesquisa FAPESP retratam a construção do conhecimento que será fundamental para o desenvolvimento do país. Acompanhe essa evolução.
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Números atrasados Preço atual de capa da revista acrescido do valor de postagem. Tel. (11) 3038-1438
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Assinaturas, renovação e mudança de endereço Ligue: (11) 3038-1434 Mande um fax: (11) 3038-1418 Ou envie um e-mail: fapesp@teletarget.com.br
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Opiniões ou sugestões Envie cartas para a redação de Pesquisa FAPESP Rua Pio XI, 1.500 São Paulo, SP 05468-901 pelo fax (11) 3838-4181 ou pelo e-mail: cartas@fapesp.br
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Site da revista No endereço eletrônico www.revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP na íntegra e um arquivo com todas as edições da revista, incluindo os suplementos especiais. No site também estão disponíveis as reportagens em inglês e espanhol.
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Para anunciar
MIGUEL BOYAYAN
Ligue para: (11) 3838-4008
Biota
Colaboração
Os resultados apresentados pelo programa Biota-FAPESP são de grande importância para o meio científico e tecnológico,pois os dados produzidos por meio de pesquisas em diferentes campos garantem uma base de informações seguras para futuras avaliações relacionadas às questões que envolvem a biodiversidade brasileira (“A idade da razão”,edição 139).É de extrema importância também que o governo brasileiro participe do debate sobre a formulação de propostas e parcerias com relação às questões da biodiversidade e do programa Biota-FAPESP.Procurando conhecer de perto os mecanismos que envolvem as propostas,o governo brasileiro poderá ganhar um pouco mais de experiência e amadurecimento sobre a responsabilidade da manutenção e proteção contra os riscos de redução de espécies nas diversas regiões do país.Inclusive integralizando os dados à formalização de propostas mais adequadas para as chamadas bionegociações.
O interessante artigo “O carteiro das células”,publicado na revista Pesquisa FAPESP (edição 139), esqueceu de referir que as publicações científicas mencionadas tiveram importante contribuição do programa Centro de Pesquisa,Inovação e Difusão (Cepid).Teria sido importante mencionar que os principais co-autores foram ou continuam sendo pesquisadores integrantes ou associados do Centro de Toxinologia Aplicada (CAT/Cepid) para que os leitores da revista percebam o impacto resultante de programas como os Cepids,criados pela FAPESPno final do ano 2000.
MARTE FERREIRA DA SILVA Atibaia, SP
Entomologia forense Recebi o exemplar da reportagem sobre entomologia forense (“Memórias póstumas”,edição 139) e gostaria de dar os parabéns a Maria Guimarães e Francisco Bicudo pelo excelente trabalho,competência e seriedade com que trataram o assunto.Obrigado a Mariluce Moura pelas palavras no editorial. LEONARDO GOMES UNESP Rio Claro,SP
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ANTONIO CARLOS MARTINS DE CAMARGO COORDENADOR DO CAT/Cepid São Paulo,SP
Correções Na repor tagem “Experimentos na rede” (edição 139) faltou constar,no final da página 74,a seguinte frase:“O terceiro segmento é o aprendizado eletrônico, que está iniciando suas atividades com o objetivo de desenvolver softwares e soluções para o ensino a distância”. Existem quatro reatores nucleares para pesquisa,e não apenas dois,como publicado na reportagem “O submarino que dá luz”(edição 139).No mesmo texto,o nome correto do “IR1,norte-americano”é IEA-R1. Quem teria cortado o cabelo de Sansão foi um homem,e não Dalila,como saiu publicado na reportagem “Fio por fio”(edição nº 137).
Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br, pelo fax (11) 3838-4181 ou para a rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP, CEP 05468-901. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.
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CARTA DA EDITORA
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O imperativo da clareza
ANOS
FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO
MARILUCE MOURA – DIRETORA DE REDAÇÃO
CELSO LAFER
PRESIDENTE MARCOS MACARI
VICE-PRESIDENTE CONSELHO SUPERIOR CELSO LAFER, EDUARDO MOACYR KRIEGER, HORÁCIO LAFER PIVA, JOSÉ ARANA VARELA, JOSÉ DE SOUZA MARTINS, JOSÉ TADEU JORGE, LUIZ GONZAGA BELLUZZO, MARCOS MACARI, SEDI HIRANO, SUELY VILELA SAMPAIO, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO RICARDO RENZO BRENTANI
DIRETOR PRESIDENTE CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ
DIRETOR CIENTÍFICO JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER
DIRETOR ADMINISTRATIVO
ISSN 1519-8774
CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADOR CIENTÍFICO), CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTONIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, MÁRIO JOSÉ ABDALLA SAAD, PAULA MONTERO, RICARDO RENZO BRENTANI, WAGNER DO AMARAL, WALTER COLLI
DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA
EDITOR CHEFE NELDSON MARCOLIN
EDITORA SÊNIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS
EDITORES EXECUTIVOS CARLOS HAAG (HUMANIDADES),CLAUDIA IZIQUE (POLÍTICA), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA), RICARDO ZORZETTO (CIÊNCIA) EDITORES ESPECIAIS CARLOS FIORAVANTI, FABRÍCIO MARQUES, MARCOS PIVETTA (EDIÇÃO ON-LINE)
EDITORAS ASSISTENTES DINORAH ERENO, MARIA GUIMARÃES
REVISÃO MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO
EDITORA DE ARTE MAYUMI OKUYAMA
ARTE ARTUR VOLTOLINI, MARIA CECILIA FELLI
FOTÓGRAFOS EDUARDO CESAR, MIGUEL BOYAYAN
SECRETARIA DA REDAÇÃO ANDRESSA MATIAS TEL: (11) 3838-4201
COLABORADORES ANA LIMA, ANDRÉ RESENDE, ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS), BRAZ, FERNANDO ALMEIDA, GEISON MUNHOZ, GONÇALO JÚNIOR, JAIME PRADES, JULIA CHEREM, LAURABEATRIZ, NEGREIROS, OTTO FILGUEIRAS E YURI VASCONCELOS.
OS ARTIGOS ASSINADOS NÃO REFLETEM NECESSARIAMENTE A OPINIÃO DA FAPESP É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO
GERÊNCIA DE OPERAÇÕES PAULA ILIADIS TEL: (11) 3838-4008 e-mail: publicidade@fapesp.br
GERÊNCIA DE CIRCULAÇÃO RUTE ROLLO ARAUJO TEL. (11) 3038-1434 FAX: (11) 3038-1418 e-mail: fapesp@teletarget.com.br
IMPRESSÃO PLURAL EDITORA E GRÁFICA TIRAGEM: 35.800 EXEMPLARES
DISTRIBUIÇÃO DINAP
CIRCULAÇÃO E ATENDIMENTO AO JORNALEIRO LM&X (11) 3865-4949
GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP FAPESP RUA PIO XI, Nº 1.500, CEP 05468-901 ALTO DA LAPA – SÃO PAULO – SP
SECRETARIA DO ENSINO SUPERIOR GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO
A
escolha final da reportagem de capa de qualquer revista envolve sempre,devemos admitir,um certo grau de arbitrariedade.Claro que em algumas edições há temas que parecem se impor vigorosamente sobre todos os demais,uma vez considerados os cânones clássicos do jornalismo.No caso de Pesquisa FAPESP, uma revista cujo olhar se dirige para a produção do conhecimento, isso pode se dar tanto quando um texto jornalístico dá notícia de um belo projeto capaz de produzir especial impacto social ou econômico,como ante um outro que enfoca pesquisa de relevância indiscutível para o avanço do conhecimento em seu campo ou,ainda,em caso de uma reportagem que trata de um estudo cujas conclusões são inusitadas a ponto de provocar reviravoltas nas reflexões e conceitos correntes.Ora,mas assim como não está dentro da normalidade da produção científica trazer resultados tão extraordinários cotidianamente,não é usual que uma revista como Pesquisa tenha de cara um assunto assim pronto para sua capa.Antes de bater o martelo sobre qual afinal será ela,a prática é ziguezaguear,às vezes mais,às vezes menos,para desespero crescente de nossa editora de arte,Mayumi Okuyama,entre dois ou três assuntos que disputam a nobre posição.E é aí que entra em cena a tal da dose de arbitrariedade necessária,com uma íntima torcida para que ela não invista contra os princípios saudáveis do jornalismo. Conto tudo isso porque a escolha da capa desta edição em particular foi um processo difícil como parto a fórceps.Queríamos de início a reportagem sobre a obesidade,mas ela parecia excessivamente técnica,com o texto a se embrenhar por um fechado cipoal de siglas e nomes complicados de substâncias desconhecidas de leitores não íntimos da bioquímica do corpo humano.Tentamos migrar para a reportagem sobre a maior cratera já produzida por um meteorito no Brasil,dentro da qual se abrigam duas cidades inteiras.Avaliamos também a possibilidade de levar para a capa um texto sobre os estudos que tentam compreender o significado do Tropicalismo para a cultura brasileira contemporânea,de Gonçalo Junior,e um outro,também no âmbito das ciências humanas,que fala sobre novos estudos a respeito do movimento estudantil no país,em especial nos anos 1960 e 1970,do editor de hu-
manidades,Carlos Haag.Entrementes,o editor especial Carlos Fioravanti e o editor de ciência,Ricardo Zorzetto,tratavam silenciosamente de limpar mais e mais o texto sobre obesidade,livrá-lo do excesso de escolhos técnicos e produzir uma narrativa clara,elegante, onde a informação mais importante se oferece ao leitor sem entraves e,ao mesmo tempo,sem traição aos reais achados científicos dos pesquisadores que gastaram anos procurando entender por que a resistência à insulina leva à obesidade e,a partir dela,a vários outros problemas de saúde.Quando os jornalistas por fim apresentaram o texto definitivo, obesidade retomou seu posto na capa (página 40).É justo? Acreditamos que sim,mas,dado o que falamos lá no início sobre arbitrariedade,a questão fica aberta para os leitores, que podem chegar a seu próprio julgamento. E é sempre assim em publicações jornalísticas, o que não é mau, muito ao contrário. Por falar em leitores,toda a equipe que produz esta revista sentiu-se honrada há poucos dias ante a declaração pública de apreciação a ela feita por um ilustre personagem,depois de se declarar seu leitor:o governador de São Paulo,José Serra.Foi na cerimônia da posse do professor Celso Lafer na presidência da FAPESP,em 26 de setembro passado. Professor titular da Faculdade de Direito da USP,por duas vezes ministro das Relações Exteriores e também ministro do Desenvolvimento,Celso Lafer substitui na presidência da FAPESP o lingüista e poeta Carlos Vogt,professor e ex-reitor da Unicamp e agora secretário de Ensino Superior do Estado (página 32).Vale ressaltar que ali,ante um auditório lotado por autoridades e lideranças acadêmicas de São Paulo,o novo presidente observou que acredita que a solução dos desafios e problemas atuais da sociedade humana exige a comunicação entre a cultura literária e humanística e a cultura científica, para depois detalhar melhor sua visão de ciência.Em contrapartida,o governador reiterou essa visão e destacou que “um importante desafio que a Fundação deve enfrentar com base em sua autonomia e experiência é de,simultaneamente,enfatizar a pesquisa básica,que constrói o futuro explorando e desenvolvendo possibilidades,e a pesquisa aplicada,que deve ter,cada vez mais,impacto social e econômico”. PESQUISA FAPESP 140
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() MEMÓRIA
Céu de histórias
Observatório Nacional completa 180 anos de serviços e pesquisas | N ELDSON M ARCOLIN
FOTOS OBSERVATÓRIO NACIONAL
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Cúpula da Grande Equatorial, em 1880, instalada no ON do morro do Castelo, que não existe mais
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bserve as seguintes datas redondas: há 30 anos começaram as observações para estabelecer o diâmetro do Sol; faz 40 anos da adoção dos relógios atômicos de césio-133 para medir a hora brasileira com mais precisão; 50 anos atrás foi instalado um observatório magnético na ilha de Tatuoca, na foz do rio Amazonas, para ampliar o estudo de geomagnetismo e monitorar o campo magnético terrestre. Para além das efemérides, só uma instituição como o Observatório Nacional (ON), responsável pelas obras relacionadas acima, poderia ter uma história tão rica e extensa. A qualidade dos trabalhos desenvolvidos e sua longevidade garantem um bom número de datas repletas de feitos para comemorar. Em outubro ocorre mais uma delas – o observatório completa 180 anos. O ON é uma das mais antigas instituições científicas brasileiras, criado por dom Pedro I em 1827, o mais antigo observatório em funcionamento no hemisfério Sul e foi pensado por razões estratégicas. A família real já estava no país desde 1808 e era preciso saber mais sobre a geografia do território brasileiro, demarcar fronteiras, além de reunir e tornar disponíveis informações seguras relativas à navegação. A origem do ON está, porém, um século para trás. “Segundo o padre Serafim Leite, em 1730 os jesuítas instalaram um observatório no morro do Castelo, no Rio de Janeiro”, conta Marcomede Rangel, físico da instituição e estudioso de sua história. Nesse mesmo local foi montado pelos astrônomos portugueses Sanches d’Orta e Oliveira Barbosa um observatório em 1780, para observações regulares de astronomia. O acervo acumulado por eles foi transferido para a Academia Real Militar em 1808. No livro O observatório astronômico: um século de história 1827-1927
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(Mast/Salamandra, 1987), Henrique Charles Morize, astrônomo e ex-diretor do ON, conta como era urgente ter informações científicas sobre o país, como referência para a geografia em terra e no mar: “Os capitães dos navios tinham necessidade de conhecer a declinação magnética, assim como a hora média e a longitude para regular seus cronômetros a fim de poder empreender com segurança a viagem de retorno ou de continuála”. Os comandantes dos navios ou o encarregado da navegação faziam isso por meio de cálculos aproximados. “Mas isso poderia ser obtido com mais exatidão e facilidade por profissionais providos de instrumentos em um observatório”, escreveu Morize. O primeiro observatório foi instalado no torreão da Escola Militar, coordenado pelo professor de matemática Pedro de Alcântara Bellegarde, com o nome de Observatório Astronômico, ligado ao Ministério do Império. A instituição, aliás, teve outros nomes até ganhar o atual, em 1920. Depois de quase duas décadas, o ministro da Guerra, Jerônimo Francisco Coelho, o reorganizou em 1845 e nomeou como diretor o professor
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Eclipse do Sol fotografado em Sobral (1919)
Soulier de Sauve, da Escola Militar, que fez o primeiro regulamento. “No período de 1827 a 1871 o observatório ocupou-se quase exclusivamente da instrução de alunos das escolas militares de terra e mar”, conta Marcomede Rangel. Em 1871 saiu da administração militar e o cientista francês Emmanuel Liais, amigo de dom Pedro II, foi nomeado diretor pela primeira vez. Ele tratou
de dirigir os trabalhos para a pesquisa científica e prestação de serviços em meteorologia, astronomia, geofísica, na medição do tempo e na determinação da hora. O engenheiro militar e astrônomo belga Luis Cruls sucedeu Liais após a segunda passagem deste pela direção do ON, entre 1874 e 1881. No período em que o ON foi dirigido por Cruls, ele deu prosseguimento ao Anuário do Observatório,
publicado desde 1853, durante a gestão de Antonio Manuel de Mello, uma das mais antigas publicações técnicas brasileiras, editada ainda hoje. Houve também nessa época algumas expedições importantes. Uma delas ocorreu em 1882, quando uma missão foi a Punta Arenas, região subantártica, observar a passagem de Vênus pelo disco solar com o objetivo de determinar a distância entre a Terra e o Sol,
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Albert Einstein (no centro) visita o ON, em 1925. Abaixo, campus do observatório em 1930
como parte de um projeto científico mundial. Outra esteve no Brasil Central, entre 1892 e 1893, chefiada pelo próprio Cruls, para escolha do quadrilátero – o Distrito Federal – onde poderia ser construída uma nova capital para o país. “Numa época em que o Brasil vivia os primeiros anos independente de Portugal, o observatório media a hora e contribuiu para definir as fronteiras brasileiras, ou seja, construiu as noções de espaço e tempo brasileiros que são essenciais para se pensar numa nação”, avalia Henrique Lins de Barros, biofísico do Centro Brasileiro de 10
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Pesquisas Físicas e ex-diretor do Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast), instituição criada em 1985 e derivada do próprio ON. “A vinda de Liais para o Brasil, os trabalhos de Cruls e de muitos outros fizeram do observatório uma instituição que, além de prestar serviços fundamentais, iniciou atividades científicas de cunho acadêmico.” Henrique Morize assumiu a direção depois de Cruls, em 1908, e lutou por um novo prédio para o ON, mais bem equipado e com profissionais qualificados. Em 1922 o observatório saiu do morro do Castelo (atual esplanada do Castelo) para o morro de São Januário, em São Cristóvão. Morize coordenou os trabalhos da expedição inglesa que
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documentou o eclipse total do Sol em Sobral (CE), em 1919. Também observado na Ilha Príncipe, o fenômeno se tornou famoso por corroborar a Teoria Geral da Relatividade de Albert Einstein ao constatar o desvio da luz das estrelas provocado pela força
FOTOS OBSERVATÓRIO NACIONAL
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da gravidade do Sol. Foi Morize quem sugeriu Sobral para a observação do fenômeno dentro da faixa de visibilidade. “A equipe do ON não foi a responsável pelas medidas, realizadas pelos ingleses, mas estava lá, construindo a infra-estrutura”, diz Barros. Seis anos depois,
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o próprio Einstein visitou o ON e foi recebido pelos astrônomos brasileiros que estiveram em Sobral. As pesquisas astronômicas sempre chamaram mais a atenção, mas os levantamentos geofísicos em todo o território nacional resultaram na implantação de redes de referência do campo de gravidade, a partir de 1955, e de geomagnetismo, desde 1915, com a instalação do Observatório Magnético de Vassouras (RJ). Em 1981 foi aberto o Observatório Astrofísico Brasileiro, em Brasópolis (MG), desmembrado do ON quatro anos depois, dando origem ao atual Laboratório Nacional de Astrofísica (LNA). “A astronomia brasileira pode ter seu grande telescópio a partir dessa época e das mãos de seu diretor Luiz Muniz Barreto”, diz Marcomede Rangel. O telescópio de 1,6 metro do LNA foi um dos principais responsáveis pelo avanço da astronomia feita no Brasil nos últimos 20 anos. Radicado no Brasil há quase 30 anos, com grande experiência em centros de pesquisa dos Estados Unidos e de Israel, o físico norte-americano Reuven Opher, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG/USP), confirma essa mudança. “Antes os brasileiros publicavam muito menos nos bons periódicos da área”, diz. “Agora há bons grupos do ON que publicam muito e são de nível internacional, como o que trabalha com energia escura.” Sueli Viegas, pesquisadora do mesmo IAG/USP,
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cita outro grupo do ON conhecido internacionalmente, coordenado por Daniela Lazzaro, nas áreas de sistema solar, astronomia dinâmica e sistemas planetários. Como já foi dito, o ON não produz apenas ciência básica. Neste século tem se dedicado em especial a pesquisas que possam resultar em tecnologias inovadoras para o país. Em conjunto com o CBPF e o Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC) formou um Núcleo de Inovação Tecnológica. Em 2004, a área de Metrologia em Tempo e Freqüência – responsável pela Hora Oficial do Brasil – certificou o Carimbo do Tempo, um produto que agrega valor jurídico aos documentos eletrônicos. Ele funciona ainda como um “protocolizador” de transações eletrônicas, impedindo que o conteúdo do documento possa ser adulterado.
Ao olhar para o futuro, os astrônomos olham cada vez menos para o céu. “Quase todo o trabalho é feito hoje com computadores”, diz Reuven Opher. “Os astrônomos têm a função de interpretar as informações recebidas.” A imagem romântica do astrônomo solitário mirando as estrelas com um telescópio na madrugada ficou, definitivamente, para trás.
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Expedição Cruls, realizada ao Brasil Central, entre 1892 e 1893, para a escolha do local para uma nova capital. Abaixo, a antiga sede do ON, em 1921, que hoje abriga o Mast
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ENTREVISTA
Simon Schwartzman O crítico da ciência
O
sociólogo Simon Schwartzman está terminando mais um estudo sobre o estado, os impasses e as perspectivas da ciência brasileira. O primeiro – Um espaço para a ciência – resultou em um livro indispensável para entender como se constituíram os primeiros grupos de pesquisa do Brasil: A formação da comunidade científica no brasil, publicado inicialmente em 1979, revisto e editado em inglês em 1991, e reeditado em português em 2001. No início da década de 1990 ele participou de um grupo que produziu um trabalho de repercussão internacional sobre as novas formas de produção do conhecimento – The new production of knowledge – The dynamics of science and research in contemporary societies, coordenado por Michael Gibbons – que mostrou que a ciência contemporânea nos países mais avançados tendia para o rompimento das barreiras entre a pesquisa acadêmica e a pesquisa aplicada, o mundo universitário, as indústrias e as agências governamentais, e também entre as disciplinas científicas tradicionais. Essa abordagem, que im-
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plica uma reconfiguração profunda da maneira pela qual as agências governamentais, indústrias, centros de pesquisa e universidades se organizam, pode ser a saída para muitos impasses do Brasil, como Schwartzman propôs em seguida em amplo estudo sobre as alternativas de política de ciência e tecnologia para o país. Seu trabalho mais recente é uma comparação entre 16 grupos e centros de pesquisa universitários na Argentina, Brasil, Chile e México que, de diferentes modos, combinaram trabalho científico de alta qualidade com aplicações efetivas de relevância econômica e social. Aos 68 anos, pesquisador do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (IETS), Schwartzman revê nesta entrevista a função da universidade, que poderia ser mais ativa à frente das inovações; redimensiona o papel das empresas; e valoriza as atribuições do governo, agente primordial no desenvolvimento científico e tecnológico desde que deixasse de ser simplesmente um financiador da oferta da pesquisa e assumisse o papel de usuário e solicitador de conhecimentos científicos e tecnológicos.
Quais as grandes lições desse trabalho que compara as estratégias de repasse de tecnologia adotadas em quatro países? — Ainda estamos na etapa de digerir todo esse material. Nos quatro países, em maior ou menor grau, houve importantes iniciativas de fortalecer a ciência acadêmica, através de sistemas de avaliação e premiação ao desempenho. O Brasil foi o país que avançou mais, com o trabalho da Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior], que historicamente tem esse papel de estabelecer padrões, usar publicações científicas como critério de qualidade, avaliar os cursos etc. Isso permitiu que o país desenvolvesse um importante sistema de ensino de pós-graduação e pesquisa universitária, o mais avançado da América Latina, mas que agora, no entanto, começa a sentir os limites causados pela sua ênfase excessiva no modo 1, mais acadêmico, de trabalho científico. O México criou um sistema semelhante, através do Padrón Nacional de Posgrado, que se soma ao já estabelecido Padrón de Excelência para la Ciencia y Tecnologia do Conacyt, o Conselho Nacional de Ciência
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FOTOS LÉO RAMOS
Ex-presidente do IBGE analisa os impactos sociais das “concepções provincianas da universidade brasileira” | C A R LO S F I O R AVA N T I , D O R I O D E J A N E I RO
e Tecnologia de lá. O Chile e a Argentina têm sistemas menos desenvolvidos. O Chile criou um sistema universitário em que as universidades são mais impelidas a buscar recursos próprios. Elas têm de cobrar anuidades, não recebem o dinheiro todo do Estado, não importa se são públicas ou privadas. A Argentina é um pouco diferente porque não adotou, como o Chile, uma estratégia deliberada de buscar recursos externos de mercado, mas também não desenvolveu um sistema de apoio público tão forte quanto o Brasil e o México. Em cada país, que exemplos o senhor destacaria? — No Brasil, o Departamento de Informática da PUC-Rio [Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro]. É um grupo pioneiro, que participou dos projetos de criação dos primeiros computadores aqui. A PUC recebia dinheiro público, mas há vários anos não recebe e agora tem de buscar recursos no mercado. E faz isso a partir da competência científica que acumulou ao longo dos anos. Das instituições privadas no Bra-
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sil, talvez seja a mais avançada do ponto de vista de pesquisa científica e tecnológica, e dentro dela a área de informática talvez seja uma das mais notáveis. A PUC é bastante agressiva (no sentido americano e não brasileiro da expressão) nas iniciativas de buscar recursos, fazer convênios e funcionar como incubadora de empresas. Outro exemplo interessante é a Fundação Getúlio Vargas (FGV). O programa de pós-graduação em economia, um dos mais importantes do Brasil, tem um sistema de incentivos acadêmicos muito forte, e todos os seus professores são fortemente recompensados pela publicação de trabalhos em revistas internacionais de alto nível. Por outro lado, a FGV também capta recursos, através de outros setores, como o Instituto Brasileiro de Economia, e sobretudo através dos cursos de extensão, cujo reconhecimento vem em grande parte do prestígio da Escola de Pós-Graduação. Mas a FGV separa as duas coisas: quem está no programa de pós-graduação não precisa buscar recursos lá fora; quem busca recursos normalmente não está nesse programa. Podemos contrastar es-
sa situação com a do Centro de Modelamento Matemático da Universidade do Chile. É um grupo de alto nível da área de matemática, que tem status de laboratório do CNRS [Centro Nacional de Pesquisa Científica] francês em Santiago. Eles fazem um trabalho aplicado de modelamento matemático em áreas que têm a ver com o lixiviamento do cobre, um processo de separação em que se usa um tipo de bactéria, e tem toda uma questão de modelos matemáticos sobre a variabilidade genética dessas bactérias. Conforme o desenvolvimento das bactérias, a produtividade pode ser maior ou menor. Do ponto de vista matemático, exige um trabalho de pesquisa nova, situada na fronteira entre a biologia molecular e a matemática. As aplicações são de muita importância, já que o Chile é um dos maiores produtores de cobre do mundo. A Codelco, Companhia Chilena de Cobre, é que financia o projeto. Eles estão, ao mesmo tempo, produzindo conhecimento científico de ponta e trabalho aplicado. Esse é o exemplo que estamos buscando, o casamento da pesquisa com a aplicação – uma coisa não é PESQUISA FAPESP 140
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oposta à outra. Freqüentemente as pessoas da área acadêmica temem a situação de ter que buscar financiamento através de projetos com parceiros externos, como se isso levasse à perda de qualidade do trabalho acadêmico. Em alguns casos isso de fato ocorre, mas o caso do Chile é um bom exemplo onde não só não ocorre, como as duas coisas se alimentam. ■ Como eles conseguiram? — Primeiro, eles têm necessidade. Os recursos disponíveis lá não permitem que avancem muito sem buscar recursos externos. Ao mesmo tempo, eles mantêm um controle acadêmico sobre o trabalho. Não aceitam qualquer coisa, têm critérios próprios e o trabalho tem de ter um conteúdo intelectual de inovação. Perguntamos a um jovem pesquisador como conseguia combinar as duas coisas, o trabalho acadêmico e o trabalho aplicado, e ele respondeu: “A gente trabalha em dobro”. Um dos pontos em comum entre todos os casos é que eles têm de estabelecer regras próprias de relacionamento com o mundo não-acadêmico. E isso tem a ver com fluxo de dinheiro, com a forma como recebem e administram os recursos, com a autonomia na seleção das pessoas que vão trabalhar... Os pesquisadores desses grupos, e sobretudo seus líderes, são muito empresariais, estão sempre olhando para algo mais amplo, para um mundo que não é só o da pesquisa científica. Outra característica comum é a necessidade de uma liderança acadêmica forte. É o caso de um grupo de química da Universidade Estadual de Campinas [Unicamp], dirigido pelo Fernando Galembeck, uma pessoa com uma formação científica muito boa e uma longa experiência de trabalho aplicado e uma série de patentes. ■ Os outros países também se preocupam
com patentes? — Em poucas ocasiões esse tema apareceu como algo importante. É um paradoxo, porque se imagina que as patentes seriam a culminância da pesquisa aplicada de interesse industrial. Um dos problemas centrais é o processo de registro e sobretudo os custos de manutenção e defesa das patentes. Se alguém usar sem pagar ou registrar patente semelhante, é preciso entrar na Justiça para garantir esse direito, na Europa, Estados Unidos ou Ásia, conforme for o caso. O custo de 14
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uma patente efetiva pode chegar a centenas de milhares de dólares. Então, quem é que vai fazer a patente? Uma grande empresa, que tem um interesse comercial claramente definido. Sem um parceiro comercial forte, a patente não tem sentido. Como essas pontes para fora são débeis, as patentes não se transformam em produtos efetivamente rentáveis, ou muito raramente. Comparativamente, como está o Brasil? — Academicamente, nas publicações, o Brasil avançou muito, mas não tanto do ponto de vista das aplicações, de uso da ciência. Em geral, nosso sistema de incentivos ainda é muito acadêmico. Veja o caso da Capes, uma instituição que todo mundo considera muito bem-sucedida, mas que está chegando ao limite do seu modelo: está montada para a valorização do trabalho acadêmico, tem muita dificuldade para apoiar áreas interdisciplinares e desestimula qualquer tipo de atividade em que exista um benefício que tenha a ver com resultados, com aplicações. A Capes tenta colocar todos os programas de pós-graduação no país dentro de um sistema unificado e coordenado de avaliação, mas este sistema já começa a se extravasar. O Brasil até hoje não conseguiu avançar com os mestrados profissionais, que são os que predominam em todo o mundo, porque eles não se sairiam bem nas avaliações da Capes. Por outro lado, existem muitos cursos de pós-graduação que, para fugir da sistemática da Capes, se denominam de extensão, ou MBA. A Capes é uma agência federal, mas as universidades estaduais são autônomas, não precisam ser avaliadas por ela, e podem entrar em convênios com instituições estrangeiras para cursos avançados e pesquisas sem passar pela avaliação da Capes. Além disso, temos instituições internacionais oferecendo cursos e titulações a distância, ou se instalando no Brasil... Temos de avançar, não no sentido de abandonar a pesquisa de qualidade, mas de criar incentivos mais fortes para que as instituições façam pontes, acordos de cooperação e busquem recursos adicionais. Inclusive porque a escala de recursos que uma instituição pode ter vai depender muito da própria capacidade de se valorizar ao mundo externo. Presidi o IBGE durante cinco anos e descobri que o IBGE, da mesma forma que o Ipea [Ins-
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tituto de Pesquisa Econômica Aplicada], não aparecia como instituição nos levantamentos do Ministério da Ciência e Tecnologia. Tinha um orçamento anual de cerca de US$ 500 milhões para as atividades correntes, fora recursos muito maiores nos períodos de recenseamento. Isto é ou não é gasto de pesquisa nas ciências sociais? A qualidade da pesquisa do IBGE poderia ser muito melhor, porque, na verdade, ele não está pensado como instituto de pesquisa, mas como uma burocracia de produzir dados, numa concepção antiga. Ele tem um quadro técnico de alto nível pequeno, ao lado de uma grande burocracia de milhares de funcionários espalhados pelo país. Com os mesmos ou menos recursos e uma reforma institucional adequada, ele poderia dar um salto e avançar muito na qualidade e relevância dos trabalhos que realiza em temas cruciais como pobreza, desigualdade, mercado de trabalho, migrações, saúde, contas nacionais, e tantos outros. Na terceira Pintec [Pesquisa Industrial de Inovação Tecnológica], divulgada em julho, o número de empresas inovadoras não avançou muito entre 2003 e 2005; só uma em cada três das 91 mil empresas brasileiras tem alguma atividade de pesquisa e desenvolvimento. Ao mesmo tempo, um levantamento da Fiesp [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo] mostra que 80% das empresas paulistas desconhecem as linhas de apoio à inovação e 70% trabalham com recursos próprios. Como entender esses resultados? — Uma queixa comum na área empresarial é que é muito complicado usar os fundos públicos de inovação. Como os procedimentos são lentos e não se sabe quando o dinheiro vai sair, muitas empresas acham que não vale a pena o esforço. Se o financiamento à inovação é muito subsidiado, existe o risco de as empresas buscarem o dinheiro e usarem para outros fins. Outra questão é o estímulo, a necessidade que as empresas têm de inovar. É uma questão que já não é mais da ciência, mas de economia. Algumas empresas competem no mundo em termos de inovação e eficiência, enquanto outras trabalham mais em quantidade, baixando os preços, porque conseguem mão-de-obra mais barata, e não têm como competir no nível da tecnologia mais alta. Também é importante dizer que no
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Brasil as principais empresas de alta tecnologia são multinacionais que têm seus laboratórios de pesquisa e desenvolvimento fora do Brasil. Muitas multinacionais estão espalhando centros de pesquisas pelo mundo, mas o Brasil não tem sido uma escolha porque falta pessoal, um ambiente adequado e, inclusive, segurança pessoal para os pesquisadores. ■ O senhor vê alguma perspectiva de mu-
dar esse quadro? — Não espero muito e não acredito que o dinamismo virá do setor empresarial. O maior dinamismo deve vir do setor público, que tem uma capacidade de compra muito grande em áreas que requerem um trabalho intenso e permanente de pesquisa e inovação, como energia, clima, recursos naturais, meio ambiente, saúde, e toda a área social. Nos Estados Unidos, por exemplo, a pesquisa social se desenvolveu muito fortemente associada às tentativas de implantação de políticas públicas dessas áreas. Isso já ocorre em parte no Brasil, e alguns setores do governo federal mantêm seus próprios centros de pesquisa, como a Embrapa, o Instituto Oswaldo Cruz, o Ipea, O Inep [Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais], o IBGE, o CTA [Centro Técnico Aeroespacial] – e outros contratam regularmente pesquisas para apoiar seus trabalhos. ■ O setor público está pedindo tanto quan-
to poderia? — Ainda não, e um dos problemas é que nem sempre o pesquisador vai dizer o que o contratante quer. O contratante que quiser alguém para avaliar e legitimar seus projetos vai escolher quem ele sabe que não vai dizer nada desagradável. Isso pode levar ao afastamento dos pesquisadores e centros de pesquisa mais independentes e o desenvolvimento de centros e grupos de pesquisa fazendo trabalhos muito financiados e de má qualidade e credibilidade. É necessário que os centros de pesquisa sejam realmente independentes e não totalmente controlados, direta ou indiretamente, pelos seus clientes, e que os processos de contratação sejam públicos e transparentes. ■ O que fazer para melhorar essa situação? — Em relação aos centros acadêmicos de pesquisa, é importante desenvolver sistemas de incentivos que favoreçam mais a
aplicação e a busca de resultados, e não somente os critérios acadêmicos de qualidade. As fundações universitárias, que existem na USP e em muitas universidades públicas, são uma maneira interessante de criar pontes mais efetivas com o mundo externo. Há um movimento, que eu diria muito reacionário, que busca derrubar essas pontes, argumentando que a universidade pública não pode receber dinheiro fora do orçamento e o professor não pode ter complementação salarial. Deveria ser o contrário. Um professor competente na área de computação que possa fazer contribuições importantes não tem de ganhar o mesmo que um professor de história, geografia, sociologia, que é a minha área, ou de ciência política. O mercado é diferente. Ou a universidade dá a essas pessoas o mesmo tipo de vantagens que o mercado daria, ou vai perdê-las. Essas mudanças passam pela autonomia efetiva das universidades na área de pessoal e na de remuneração, que elas nem sempre têm como deveriam. ■ Como o senhor próprio escreveu em um artigo recente, a reforma universitária terminou antes de começar. Por que às vezes as perspectivas de mudanças parecem tão difíceis e remotas? — Você deve estar se referindo ao projeto de reforma de Tarso Genro, muito mal concebido, que provocou muitas reações e que parece na prática ter sido abandonado pelo ministro Fernando Haddad. Na época do governo Fernando Henrique Cardoso, o Paulo Renato de Souza, como ministro da Educação, tentou mexer com as universidades públicas, dando-lhes mais autonomia e responsabilidade pela qualidade de seus resultados e uso adequado de recursos. Houve uma reação contrária muito forte e nada se fez. Na época do Itamar Franco, todos na universidade gostavam de Murilo Hingel, o ministro da Educação; ele sempre elogiava as universidades e não tinha nenhuma política para o setor. O atual governo faz também um pouco isso. O governo Lula tem uma política explícita de aumentar os recursos para as universidades públicas e ao mesmo tempo enfraqueceu o principal instrumento de avaliação que existia no setor, que era o antigo provão. As principais políticas do governo federal para o ensino superior têm sido na área da inclusão social, pelas cotas raciais e pelo ProUni, o Progra-
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ma Universidade para Todos. Em ambos os casos a ampliação do acesso tem sido feita sem nenhuma política para garantir que os cursos são de qualidade e que os alunos terão condições efetivas de compensar suas deficiências de formação e completar seus cursos. Agora começa a haver alguma preocupação com isso, e algumas experiências interessantes, como a tentativa, em algumas universidades federais como a da Bahia e a nova universidade federal do ABC, de introduzir um formato semelhante ao do processo de Bologna europeu, que adia o momento de escolha profissional para os estudantes que entram no ensino superior. A universidade pública brasileira é pequena para as necessidades do país, custa muito caro em termos de gastos por estudante, não tem um sistema bem definido de controle de qualidade e subsidia muitos estudantes de classe média e alta que poderiam estar pagando pelos seus estudos. Mas quase 80% do ensino superior brasileiro é privado, com coisas boas e ruins, e não existem políticas positivas para o setor, somente a suspeita permanente de que ele é ilegítimo e não deveria existir. É preciso começar a discutir mais a fundo para que estamos financiando esse sistema todo, o que devemos esperar das universidades públicas, dentre as quais estão as que concentram a pesquisa, e qual o papel da educação superior privada. Os governos têm sido complacentes e preferem atender às demandas de curto prazo, sem criar problemas, a pensar num projeto a longo prazo. Qual sua perspectiva? — Não vejo atualmente nenhum esforço sério em mexer nem na questão da pesquisa, nem do ensino superior. Para muitos pesquisadores, a idéia que têm sobre política científica se limita a pressionar para que o governo dê mais dinheiro para seus projetos. Mas dinheiro não é suficiente. Na Europa e em muitos países da Ásia está havendo um grande movimento para concentrar recursos de pesquisa em algumas universidades que possam atingir padrões internacionais de qualidade de pesquisa, inovação e formação, e funcionem como referência para as demais e ponte efetiva para a produção cientifica e intelectual do resto do mundo. No Brasil, a USP poderia ter esse papel, pelo seu orçamento e a massa de recursos humanos de qualidade que pos-
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sui. Mas, se olharmos por exemplo o famoso ranking das universidades publicado pela Universidade de Jiao Tong na China, a USP, que é a melhor da América Latina, aparece no grupo na posição 102-120, ou seja, não tem presença internacional. Não existe hoje, no Brasil, nenhuma política deliberada de excelência, nem do governo de São Paulo, nem do governo federal, e há muitos que pensam que falar em excelência e competição por qualidade não são coisas politicamente corretas. As universidades de excelência atraem talentos, recursos e conhecimentos de toda parte, e criam circuitos internacionais de contatos e prestígio para seus países. Por que instituições como a USP ou a Unicamp não abrem mais seus programas de pós-graduação para alunos de outros países da América Latina? Uma das razões é que, como são públicas, não poderiam cobrar dos alunos. Nem sempre também se sabe como selecionar esses estudantes, porque a seleção é toda em português e formal. O sistema todo é muito rígido. A dimensão internacional fica capenga porque temos uma concepção muito provinciana e fechada do que é uma universidade. ■ Por favor, conte agora de sua própria formação e de como construiu essa visão de ciência brasileira e de ensino superior no Brasil. — Me formei em Belo Horizonte, em 1961, e passei dois anos no Chile na Faculdade Latino-America de Ciências Sociais, a Flacso. A maioria dos professores eram europeus, e os estudantes vinham de toda a América Latina. Foi o meu primeiro contato com a sociologia moderna.Voltei ao Brasil no início de 1964, mas fui preso, acusado do crime de subverter a mente dos jovens. Quando fui para o Chile eu tinha um vínculo como pesquisador com a UFMG e na volta me deram a responsabilidade de ensinar ciência política. Dei duas aulas e fui preso. Antes de viajar tinha participado do movimento estudantil em 1959 e 1960.
Quanto tempo ficou preso? — Um mês, mais ou menos. Naquela situação de não saber o que ia acontecer, se ia ter processo... Quando me soltaram, um mês depois saí do país e fui para a Noruega. No Chile tive como professor o Johan Galtung, um pesquisador norueguês que me convidou para trabalhar
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com ele em um instituto que ele dirigia em Oslo. Passei um ano lá e outro ano na Argentina. Depois fui para os Estados Unidos fazer o doutorado em ciência política. Até aí os meus temas eram mais de política, partidos políticos e sistemas políticos, sistemas internacionais. Fiz doutorado em Berkeley, e a minha tese foi publicada com o título São Paulo e o Estado nacional, revista mais tarde e publicada como Bases do autoritarismo brasileiro. Nos anos 1970 eu estava trabalhando na FGV, no Iuperj [Instituto de Pesquisas em Ciências Sociais no Rio de Janeiro], e fui para a Finep [Financiadora de Estudos e Projetos]. Foi aí que comecei a me envolver com ciência e tecnologia. Foi lá que surgiu a idéia de fazer a pesquisa histórica sobre a ciência brasileira, que depois saiu em livro, Formação da comunidade científica no Brasil. Com os recursos da Finep, consegui uma equipe boa e entrevistamos cerca de 70 pesquisadores e líderes das principais instituições de pesquisa do Brasil, por várias horas. Na época trouxemos um dos principais especialistas internacionais na área de estudos sobre ciência, o sociólogo Joseph Ben-David, com quem discutimos longamente nosso projeto e que nos deixou um texto muito interessante sobre a ciência brasileira, disponível no meu site (http://www.schwartzman.org. br/simon/). Foi uma oportunidade olhar a literatura internacional sobre história e sociologia da ciência, e fazer um amplo levantamento sobre o que já existia sobre isso no Brasil. Na época havia muito ressentimento, desconfiança e hostilidade entre os cientistas e o regime militar. Mas José Pelúcio Ferreira, então presidente da Finep, tinha uma visão completamente distinta e muito interesse em trazer os cientistas exilados de volta para o Brasil e fortalecer suas instituições. Por outro lado, havia já uma discussão sobre o tema da ciência aplicada ou não-aplicada e a autonomia do trabalho científico. A visão do Pelúcio, como economista, era muito aplicada. O próprio desenho que se fez naquela época do setor de C&T, com forte influência dele, era assim. O CNPq, que era um órgão ligado à Presidência da República, se transforma em Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, e, junto com a Finep, passa para o Ministério do Planejamento. Havia uma idéia de que a ciência faz parte do planejamento,
e que, assim como se deve planejar a economia, se deveria também a ciência. O senhor gostava desse enfoque? — Não. Eu nunca acreditei no planejamento da economia e muito menos no planejamento da ciência. Para se ter ciência é preciso uma comunidade científica livre. Deve ser livre, acadêmica, tem de ter instituições com independência. BenDavid mostra bem, em seus estudos, como foi assim que a ciência ocidental se desenvolveu. Além dele, Robert Merton, um dos principais nomes da sociologia norte-americana, havia desenvolvido a idéia da ciência como uma comunidade livre de scholars, que se contrapunha às tentativas de atrelar a ciência aos regimes políticos que, nas décadas de 1930 e 40, tentaram amarrar a ciência aos regimes autoritários da Alemanha nazista, antes, e à União Soviética stalinista, depois. Esses autores se opunham à tradição que se pode chamar bernalista, de John Desmond Bernal. Bernal era um inglês que desenvolveu pesquisas originais na área de cristalografia e contribuiu ativamente para o esforço de guerra de seu país contra a Alemanha. Era fascinado pela União Soviética, que citava como um grande exemplo de como se coloca a ciência a serviço da sociedade. Nisso ele seguia a tradição de Jean Perrin, físico e Prêmio Nobel francês, responsável, junto com Irène Joliot-Curie, pela organização do sistema científico francês no período do Froint Populaire na década de 1930. Para eles, a ciência tem de estar dentro do Estado, a serviço do planejamento, e ajudar a organizar a sociedade de acordo com critérios científicos. ■
São duas visões radicais... — E também totalitárias. Bernal tem um trabalho famoso, Science in history (Ciência na história), em quatro volumes. Em três ele faz uma história da ciência muito interessante e o quarto volume é dedicado a mostrar como a União Soviética era a culminação da ciência social aplicada. Muitos cientistas brasileiros famosos, principalmente da geração formada nos anos 1940 e 50, adotaram as idéias de Bernal e Perrin e militaram ativamente no movimento comunista, o mais conhecido sendo Mário Schenberg. Nunca vi textos em que esses cientistas discutissem essas coisas expressamente, eram coisas que consideravam naturais.
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A visão deles da ciência é essa visão socrática, “o cientista é que vai governar”. O conflito que eles tiveram com os militares era menos um conflito sobre o papel e o lugar da ciência na sociedade e mais sobre o reconhecimento do papel que deveriam ter nos sistemas de planejamento. O objetivo da pesquisa sobre a comunidade científica brasileira, refletida no próprio título do livro, era recuperar a importância da noção de uma “república da ciência”autônoma, mas nem por isso isolada e indiferente ao que ocorre na sociedade. A ciência pode ser útil, deve ser importante e aplicada, mas temos de partir de uma ciência com liberdade, com autonomia, com capacidade de ter universidades independentes. Os economistas sempre olharam a ciência do ponto de vista produtivo. A visão mais sociológica, de como é que se organiza a ciência, como é que se criam as instituições, os economistas não tinham. Nos anos 1970 havia uma intenção genuína de trazer os cientistas de volta, de fortalecer a pós-graduação e a pesquisa. Em 1979, com o fim do governo Geisel, Pelúcio deixou a Finep e eu saí também. Em 1985, com a abertura política, participei de uma comissão presidencial que deveria propor uma reformulação do ensino superior brasileiro, e que lançou as primeiras idéias sobre avaliação e autonomia efetiva das universidades, propostas controversas e rapidamente arquivadas pelo governo Sarney. Ao final dos anos 1980 fui convidado para participar, junto com Eunice Durham, da criação do Núcleo de Pesquisas de Ensino Superior na USP, quando José Goldenberg era reitor. Nessa época comecei a estudar mais o que estava acontecendo no ensino superior e na pesquisa fora do Brasil. É dessa época minha participação no grupo que elaborou o livro sobre A nova produção do conhecimento e a coordenação da equipe responsável pela proposta de uma nova política científica e tecnológica para o Brasil, cujas propostas, como muitas vezes acontece, jamais chegaram a ser adotadas pelo próprio Ministério da Ciência e Tecnologia que havia financiado o estudo. Em 1994 assumi a presidência do IBGE, onde fiquei cinco anos. Foi aí que comecei a me inteirar e envolver mais com as questões da desigualdade social, pobreza e políticas sociais, assim como com os problemas da educação básica, que são hoje os temas que mais me interessam. ■ PESQUISA FAPESP 140
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> POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA
> Licença para errar Numa iniciativa para encorajar os cientistas a inovar mais, a China prepara uma legislação voltada para regular o fracasso em pesquisas. Um projeto de lei proposto pelo Ministério da Ciência e Tecnologia do país vai permitir que seus pesquisadores reportem malogros sem que isso atrapalhe suas chances de obter recursos futuros. “O desempenho no laboratório tem um efeito dominó em outros quadrantes da vida dos cientistas, como promoções, salários e benefícios sociais. A fogueira é quente quando eles falham”, disse à revista Nature o geocientista Cheng Guodong, que trabalha num instituto de pesquisas da província de Gansu. Segundo o rascunho da lei, o insucesso de um projeto de pesquisa não pesará no currículo dos cientistas, desde que eles demonstrem que trabalharam de forma apropriada. O pano de fundo é a mobilização da China para multiplicar sua capacidade inovadora, 20
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considerada insuficiente para manter as altas taxas de crescimento do país. O governo acredita que o medo de falhar esteja levando os cientistas a acovardar-se diante de desafios, sem falar nas recorrentes fraudes que eles cometem para esconder resultados ruins. Para muitos pesquisadores, a ineficiência do sistema de avaliação é uma causa importante para o baixo desempenho. “Não há um mecanismo capaz de garantir que fraudes sejam punidas”, diz Bai Lu, neurocientista chinês radicado nos Estados Unidos.
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> Apoio aos exilados da guerra A Fundação Bill & Melinda Gates está ajudando 150 pesquisadores iraquianos a retomar suas carreiras no exterior, principalmente na
vizinha Jordânia. Uma dotação de US$ 5 milhões será destinada à vertente iraquiana de um fundo criado em 2002 por grandes investidores de Wall Street para ajudar acadêmicos de países conflagrados,
administrado pela organização Instituto para a Educação Internacional (IIE, na sigla em inglês). A fundação do casal Gates é conhecida por destinar US$ 33 bilhões para a pesquisa de doenças como a malária e a Aids. Centenas de professores iraquianos deixaram o país, tangidos pela violência – um carro-bomba na Universidade de Bagdá matou 70 pessoas neste ano. “A ciência iraquiana vive um holocausto”, disse ao jornal Financial Times o presidente do IIE, Allan Goodman.
> Disney versus universidade Pesquisadores da Universidade de Washington, em Seattle, compraram uma briga ruidosa com os estúdios Disney. Um estudo feito por especialistas em pediatria da instituição mostrou que a exposição de bebês a DVDs e vídeos supostamente voltados para estimular suas habilidades verbais, como a série Baby Einstein, da Disney, produz efeito contrário: os espectadores com idades de 8 a 16 meses
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Criança com malária na Etiópia: laboratório avançado
tiveram um desenvolvimento de linguagem mais lento que o de outras crianças. Robert Iger, Ceo da Disney, foi duro no contra-ataque e exigiu retratação. “A metodologia do estudo é duvidosa e suas conclusões, não confiáveis”, disse. A universidade, porém, defendeu a fidedignidade dos resultados da pesquisa. A polêmica deve render combustível para o julgamento de uma queixa apresentada em 2006 a uma comissão federal contra a Disney por uma entidade que combate a exposição das crianças ao marketing. A queixa tem o aval das academias norte-americanas de pediatria e de psiquiatria para crianças e adolescentes.
> Legião estrangeira Os estrangeiros tornaram-se um pilar fundamental da pesquisa realizada no Reino Unido em ciências e engenharias. Segundo um relatório do governo britânico, mais de um quinto dos alunos de pós-graduação dessas áreas vem de outros continentes e só 29% são britânicos. Preocupa o governo não a invasão estrangeira, considerada saudável, mas a proporção cada vez menor de talentos nascidos do país. “O grande desafio é construir um ambiente capaz de atrair mais jovens britânicos”, disse à agência BBC Geoffrey Crossick, um dos responsáveis pela pesquisa.
> Ciência de ponta para a África A Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul, abriga desde o mês passado um laboratório criado para pesquisar problemas de saúde e de segurança alimentar que atingem o continente africano. As instalações são o terceiro braço do Centro Internacional de Engenharia Genética e Biotecnologia (ICGEB, na sigla em inglês), entidade ligada às Nações Unidas voltada para pesquisa, treinamento e transferência de tecnologia. A sede do instituto fica em Trieste, na Itália, e há um segundo laboratório em Nova Délhi, na Índia. “Vamos usar ciência de ponta para encontrar soluções africanas para problemas africanos”, disse à agência de notícias SciDev.Net o diretor do laboratório Iqbal Parker. Três linhas de investigação já foram definidas e vão envolver cerca de 25 pesquisadores. A primeira destina-se ao estudo de doenças infecciosas como a Aids, a malária, a tuberculose e a leischmaniose. A segunda vai ater-se a outras doenças, como diabetes, cardiopatias e câncer. A terceira terá como foco a biotecnologia agrícola. ILUSTRAÇÕES LAURABEATRIZ
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MUNDO
Em defesa dos beduínos TINOQAHOUSH
PESQUISA FAPESP ONLINE Acesse nosso conteúdo exclusivo em www.revistapesquisa.fapesp.br
Pesquisa Brasil Toda segunda-feira a mais recente edição do programa semanal de rádio de Pesquisa FAPESP pode ser ouvida on-line ou baixada no computador.
De origem nômade, há 160 mil beduínos divididos entre o deserto e subúrbios em Israel
O ministro da Ciência e Tecnologia de Israel, Ghaleb Majadle – o primeiro ministro muçulmano do país –, reabriu um centro de pesquisa voltado para os árabes beduínos que habitam o sul do país. O laboratório, localizado em Hura, no deserto Negev, havia funcionado por três anos, mas fechou no início de 2007 por falta de verbas. Os beduínos são um grupo indígena muito pobre que representa cerca de 12% dos árabes palestinos que vivem em Israel. De origem nômade, foram forçados a se sedentarizar e hoje vivem em tendas nos subúrbios. “A comunidade dos beduínos forma um enclave de uma série de problemas sociais, econômicos, médicos e ambientais, que carece de um esforço de pesquisa concentrado e integrado”, disse à agência Sci.Dev.Net Avinoam Meir, 22
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professor da Universidade Ben-Gurion. Segundo o jornal Jerusalem Post, o ministério já vai garantir fundos para o centro pelo próximo ano para a condução de estudos em áreas como agricultura no deserto, tecnologia, saúde e educação.
> Chamada para ir à Lua O site de buscas Google vai oferecer US$ 30 milhões ao grupo privado que conseguir enviar uma sonda à Lua. O Google Lunar Prize terá várias faixas de premiação. São US$ 20 milhões ao primeiro grupo que mandar ao satélite um veículo de exploração não tripulado, que terá de realizar um percurso de pelo menos 500 metros de extensão na superfície
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do satélite e transmitir imagens em vídeo à Terra, antes de 31 de julho de 2012. O prêmio cai para US$ 15 milhões caso o pouso seja realizado até 31 de dezembro de 2014. O segundo colocado da corrida receberá US$ 5 milhões. A iniciativa é organizada pela X Prize Foundation, responsável pelo Ansari X Prize, de US$ 10 milhões, que estimulou uma corrida entre empresas privadas para criar espaçonaves tripuladas. Foi conquistado em 2004 pelo projetista aeronáutico Burt Rutan e pelo investidor Paul Allen, por dois vôos do SpaceShipOne. “Nossa esperança é educar o público e mudar suas percepções quanto à Lua”, disse Peter Diamandis, um dos responsáveis pela fundação, em entrevista à agência Reuters.
Nossas Colunas
Neotrópicas Marcos Buckeridge
> Comenta os prós e os contras de plantar árvores nas cidades para combater o aquecimento global.
Fiat lux Vanderlei Salvador Bagnato
> Fala sobre o uso da terapia fotodinâmica para tratar infecções causadas por fungos, parasitas e bactérias.
Direto de Harvard Antonio Bianco
> Explica como será o novo sistema de promoções na Harvard Medical School, que entra em vigor em 2008.
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> Um exemplo a ser mirado A FAPESP, em parceria com a Inova – Agência de Inovação da Unicamp –, promoveu o seminário sobre propriedade intelectual e transferência de tecnologia, em que foi apresentada a experiência da Universidade da Califórnia (UC). Com dez campi, a UC contabiliza mais de 7 mil patentes depositadas. Em 2005 os royalties recebidos pelas patentes somaram US$ 55 milhões, o equivalente a 2% do seu orçamento de pesquisa e a menos de 0,5% do orçamento da instituição. “Nosso objetivo não é gerar recursos financeiros. Somos uma universidade pública e a meta é beneficiar a sociedade com o desenvolvimento de terapias, diagnósticos e alimentos, por exemplo, além de apoiar parcerias de pesquisa com a indústria privada”, explicou Gonzalo Barrera-Hernández, diretor do escritório de
Prioridade para os grandes desafios O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) lançou dois editais que destinarão R$ 15 milhões para a pesquisa em informática, com destaque para as áreas de tecnologia da informação e engenharia de software. Um dos editais vai selecionar projetos em temas contemplados no documento “Grandes desafios da computação no Brasil: 2006-2016”, resultado de um debate entre pesquisadores de informática e especialistas de outras áreas promovido pela Sociedade Brasileira de Computação (SBC) para levantar questões prioritárias que o Brasil terá de enfrentar no campo da tecnologia da informação. Os recursos, que chegam a R$ 9
transferência de tecnologia da UC. Tampouco o preocupa o fato de o número de patentes depositadas pela universidade ser superior ao de boa parte das empresas norte-americanas. “O que importa é que se patenteiem inventos considerados valiosos do ponto de vista da geração de conhecimentos e de recursos.”
milhões, serão direcionados a propostas vinculadas a assuntos como gestão da informação em grandes volumes de dados multimídia; modelagem computacional de sistemas complexos; impactos da transição do silício para novas tecnologias; e acesso participativo e universal do cidadão brasileiro ao conhecimento. O segundo edital é uma ação do Programa para Promoção da Excelência do Software Brasileiro e irá conceder bolsas de doutorado em engenharia de software. O objetivo é apoiar a consolidação dos programas de pós-graduação. As propostas aprovadas serão financiadas com recursos no valor total de R$ 6 milhões, distribuídos entre 2007 e 2011.
> Softwares para escolas técnicas A Microsoft vai investir R$ 2 milhões na doação de softwares e no fornecimento de material didático para a capacitação dos professores de informática e de web design das escolas técnicas estaduais vinculadas ao Centro Paula Souza. Cerca
de 20 mil alunos serão beneficiados. O vicepresidente mundial para o setor público da Microsoft, Michel Van der Belt, participou da assinatura do convênio. “A parceria vai permitir o desenvolvimento de novos conteúdos e pesquisas”, disse a diretorasuperintendente do Centro Paula Souza, Laura Laganá.
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Virologia em debate
> Árvores, bichos e plantações A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) irá coordenar uma rede de cooperação para o desenvolvimento de sistemas sustentáveis que integrem lavoura, pecuária e floresta. Devem participar da rede países como Bolívia, Colômbia, Equador, Peru, Suriname e Venezuela. As ações da rede serão voltadas para os ecossistemas da Amazônia, do Cerrado e da parte oriental da cordilheira dos Andes. Há tempos a Embrapa promove pesquisas voltadas para recuperar áreas degradadas ou melhorar os retornos
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Porto Velho, em Rondônia, vai sediar o curso Emerging Viruses: Global Approaches and Specificities of the Amazon Region (Vírus emergente: abordagens globais e especificidades da região amazônica), de 17 de novembro a 7 de dezembro. A iniciativa é promovida pelo Instituto Pasteur, da França, e a Amsud – entidade que reúne associações científicas da América do Sul –, e está sendo organizado por uma comissão formada por Noel Todor, especialista em raiva, e Jean Louis Virelizier, especialista em retrovírus, ambos do Instituto Pasteur; Luiz Hildebrando Pereira da Silva e Rodrigo Stabeli, do Instituto de Pesquisa em Patologias Tropicais de Rondônia (Ipepatro) e Roberto Sena Rocha, da Fiocruz. Reunirá virologistas do Instituto Pasteur de Paris e Cayenne; do Instituto Nacional de Saúde e da Pesquisa Médica (Inserm) – Pasteur de Lyon, também da França; do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) de Atlanta, nos Estados Unidos, e das universidades de Montreal, Madri, Buenos Aires e Montevidéu, além de instituições brasileiras. “A expectativa é promover o treinamento de jovens pesquisadores e estabelecer network entre especialistas para futura colaboração”, explica Luiz Hildebrando. Participarão do curso 14 estudantes brasileiros de graduação ou pós-graduação selecionados por critério de qualidade – em caso de equivalência, serão priorizados os alunos da Amazônia. Pelo mesmo critério, serão escolhidos dez estudantes sulamericanos. Mais informações pelo e-mail stabeli@ipepatro.org.br ou pelo telefone (69)3219-6010.
econômicos dos produtores conciliando numa mesma propriedade árvores, culturas agrícolas e animais. Esses projetos servirão de base para um plano
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de desenvolvimento para a América Latina. A criação da rede foi decidida num seminário internacional realizado em setembro na Venezuela.
> Morre Newton Sucupira Newton Sucupira, professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro
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(UFRJ) e considerado o patrono da pós-graduação no país, morreu aos 86 anos no Rio. Em 1966, um parecer do Conselho Federal de Educação organizou o sistema de pós-graduação dividindo-o em duas categorias – stricto sensu, que visa prioritariamente à formação do pesquisador, e lato sensu, dirigido à especialização profissional – e estabelecendo as categorias de mestrado e de doutorado, sem que a primeira seja obrigatoriamente um requisito para a segunda. O marco legal, que propiciou o crescimento ordenado da pós-graduação brasileira, ficou conhecido como Parecer Sucupira, alusão a seu relator. Nascido em Alagoas, formado em direito e em filosofia, Newton Sucupira atuou até 1990 como professor da Fundação Getúlio Vargas e da UFRJ.
> Pós-graduação em Timor-Leste Com a ajuda de professores brasileiros, o Timor-Leste vai ganhar seus primeiros programas de pós-graduação. A criação dos cursos, todos eles na área de educação, foi celebrada no dia 13 de setembro, numa solenidade na Universidade Nacional Timor Lorosa (Untl).
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> Bolsa para mulheres cientistas
“É um marco histórico para o ensino superior de Timor-Leste e motivo de grande orgulho para a universidade”, disse o reitor da Untl, Benjamim de Araújo e Corte-Real. O Timor-Leste é uma ex-colônia portuguesa no Sudeste da Ásia que foi invadida pela Indonésia nos anos 1970 e só se tornou realmente independente em 1999. O projeto Implantação da Pós-graduação em Timor-Leste é executado pelos 50 professores
brasileiros que atuam no país com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Os cursos de pós-graduação Educação e Ensino, Gestão da Educação e Ensino da Língua Portuguesa terão a duração de 420 horas-aulas. Embora tenham nível de especialização, serão preliminares ao curso de mestrado em educação que começará a funcionar no ano que vem.
Pelo segundo ano consecutivo, a L’Oréal Brasil, em parceria com a Academia Brasileira de Ciências e a Unesco, distribui bolsas para jovens pesquisadoras brasileiras. As contempladas pelo Programa para Mulheres na Ciência foram Wang Qiaoling, da Universidade de Brasília (UnB), em matemática; Andréa de Camargo, do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP), e Tatiana Rappoport, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em física; Lucia Codognoto, da Universidade do Vale do Paraíba (Univap), em química; Ida Schwartz, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Glaucia Martinez, da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Mônica Andersen, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em biologia. Elas foram escolhidas depois da análise dos 447 projetos vindos de todo o Brasil e receberão uma bolsa-auxílio de US$ 20 mil cada uma. O programa é inspirado no L’Oréal/Unesco for Women in Science, que contempla todo ano cinco cientistas notáveis, uma de cada continente.
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ÚNICA
POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA
Etanol: certificação do combustível para proteger exportações
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ARRANJOS PRODUTIVOS
Ação articulada entre governo, setores de produção e de pesquisa projeta Piracicaba no mercado mundial do etanol C LAUDIA I ZIQUE
Ponto de ebulição
P
iracicaba, cidade com 315 mil habitantes incrustada numa tradicional região canavieira no interior do estado de São Paulo, quer ser referência no promissor mercado mundial de etanol. Para isso articula pesquisa e desenvolvimento (P&D) com iniciativas de governo e do setor produtivo. “A cidade é a única do Brasil a reunir toda a cadeia produtiva do etanol”, afirma Luciano Tavares de Almeida, secretário municipal da Indústria e Comércio. O município abriga dez usinas de açúcar e álcool, mas perde para a região de Ribeirão Preto a condição de maior produtor de cana-de-açúcar do estado. E conta com cerca de 80 metalúrgicas, porém disputa com a cidade de Sertãozinho o primeiro lugar entre os maiores fornecedores de bens de capital e serviços para a indústria do açúcar e do álcool. Mas a verdade é que Piracicaba tem vantagens estratégicas: é sede da centenária Escola de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq), responsável por pesquisas pioneiras sobre a utilização do solo para a cana e a destinação da vinhaça, e também abriga há 38 anos o Centro de Tecnologia Canavieira (CTC) – antigo Centro de Tecnologia Copersucar –, onde foi desenvolvida boa parte das variedades de cana plantadas no centrosul do país. E mais recentemente tornou-se endereço do Pólo Nacional de Biocombustíveis, inaugurado em 2004 com o objetivo de coordenar esforços e definir estratégias para uso de diferentes fontes de biomassa, bem como contribuir para o desenvolvimento de uma política de promoção e produção dos biocombustíveis no país. Faltava-lhe apenas articular as atividades de pesquisa com a indústria, sindicatos, prefeitura e entidades, como o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), numa ação política coordenada que resultasse num projeto comum e garantisse interlocução desses atores com órgãos de fomento e de governo. O modelo de organização escolhido foi o do Arranjo Produtivo Local (APL), internacionalmente conhecido como cluster, definido como uma aglomeração de empresas localizadas no mesmo território com especialização produtiva e vínculos de articulação, interação, cooperação e aprendizagem. Os APLs operam em torno de algumas “variáveis-chave”, explica Antonio Carlos de Aguiar Ribeiro, gerente regional do Sebrae-SP em Piracicaba. “Promovem a integração das agendas e projetos, capacitam lideranças, estimulam a elaboração de planejamento estratégico e o uso comum da infraestrutura, além de incentivarem a criação de estruturas compartilhadas de pesquisa, desenvolvimento, engenharia e logística.” Atuam sob a batuta de um gestor, responsável pelo desenvolvimento dos projetos, e organizam-se em torno de um Conselho Superior, formado por representantes dos governos federal, estadual e municipal e por entidades do setor sucroalcooleiro. Os empresários integram o Conselho Estratégico, e as instituições de pesquisa o Conselho Técnico. Esses órgãos coordenam grupos de trabalho para assuntos específicos. A idéia de organizar os atores locais no APL do Álcool, batizado com a sigla Apla, surgiu em 2005, quando o governo federal pediu que produtores, usineiros e pesquisadores recebessem delegações PESQUISA FAPESP 140
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MAQUETE: PIRATININGA ARQUITETOS
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Maquete do Parque Tecnológico de Bionergia: 13 prédios e um edifício-ponte
de outros países interessados no biocombustível, lembra Almeida. Piracicaba cumpriu a tarefa, organizando uma espécie de “tour do etanol”: o roteiro começa com uma visita à Esalq ou ao CTC; passa por uma indústria metalúrgica fabricante de equipamentos e termina numa usina produtora de etanol. Só no ano passado 6 mil visitantes de 58 países fizeram esse percurso. “No final do roteiro o visitante terá conhecido toda a cadeia produtiva do biocombustível”, garante Almeida. Certificação do etanol - Uma das primeiras iniciativas do Apla de Piracicaba – que só “ganhou um CNPJ” em 31 de agosto último, observa o secretário da Indústria e Comércio, que também é gestor do Apla – foi realizar, com o apoio do Sebrae local, um diagnóstico das indústrias que integram a cadeia produtiva, identificando “gargalos” nas áreas agrícola, industrial, de comércio e logística, antes de definir um planejamento estratégico de ação.
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Constatou-se, por exemplo, a necessidade urgente de padronização do etanol para proteger as exportações brasileiras de eventuais barreiras técnicas impostas por países importadores do biocombustível. Para tanto, o Apla firmou convênio com o Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Inmetro) para a produção de materiais de referência certificados (MRCs) para o mercado nacional. “O convênio foi resultado de interesses de ambos os lados: dos produtores, que precisavam de MRCs para a qualidade dos ensaios, e do Inmetro, que desde 2003 está envolvido com MRCs de etanol”, afirma Romeu Daroda, assessor da Diretoria de Metrologia Científica e Industrial do Inmetro. Os principais parâmetros físico-químicos já estão “consensados”, no jargão da metrologia, e podem ser utilizados para o mercado nacional, adianta Daroda. O instituto agora negocia “consenso” também com o Organismo Metrológico norte-americano (Nist), que servirá
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de padrão para a comercialização do etanol brasileiro nos Estados Unidos. “O Inmetro também já está participando do Biorema, coordenado pelo Netherlands Meetinistituut (NMI), da Holanda, para “consensar” os MRCs entre Brasil, Estados Unidos e União Européia”, afirma Daroda. Outro “gargalo” na cadeia produtiva do etanol identificado pelo diagnóstico realizado pelo Apla foi a necessidade de qualificação de profissionais envolvidos em toda a cadeia produtiva. O Apla negociou com o governo estadual a instalação de uma Faculdade de Tecnologia (Fatec) com cursos voltados para a indústria do álcool e de biomassa, ao mesmo tempo que firmou convênio com o Ministério do Trabalho para o treinamento de cortadores de cana. Para reforçar competências nas áreas de pesquisa e de gestão de negócios, o Pólo Nacional de Biocombustíveis, em parceria com a Esalq, a Fundação Getúlio Vargas e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), criou o primeiro mestrado intra-institucional em agroenergia, já aprovado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e que começará a funcionar no próximo ano. O CTC também desempenha papel estratégico. “Temos contribuído para a identificação dos gaps tecnológicos”, explica Tadeu Andrade, diretor de pesquisa e desenvolvimento. Transformou-se numa espécie de “braço técnico” do Apla: além da P&D desenvolvida com recursos aportados por 160 usinas produtoras de açúcar e álcool, o CTC articula parcerias com institutos de pesquisas internacionais (ver boxe) e busca recursos para o desenvolvimento de novos projetos. Recentemente, o CTC convidou a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) para uma visita a Piracicaba para apresentar o seu portfólio de financiamento às empresas locais.“Conseguimos recursos para três projetos de desenvolvimento de tecnologias para semi-acabados”, ele conta. Prospectando mercados - Ao mes-
mo tempo que fortalece a cadeia produtiva local, o Apla prospecta o mercado externo. Firmou convênio com a Agência de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex), no valor de R$ 4,5 milhões em 2007 e 2008, para a realização de missões internacionais a países
com potencial de importação de etanol, de bens de capital, serviços de engenharia e de tecnologias geradas nos institutos de pesquisa e empresas da região.“O convênio ganhou caráter nacional e passou a incluir empresas do setor sucroalcooleiro de outras regiões do país”, conta o secretário da Indústria e Comércio de Piracicaba. Em agosto, 41 representantes de 27 empresas brasileiras – 18 delas com sede em Piracicaba – estiveram na conferência da International Society of Sugar Cane Technologists (ISSCT), na África do Sul.“Foram gerados US$ 93 mil em vendas e as expectativas de negócios futuros chegam a US$ 164,3 milhões nos próximos 12 meses”, conta o secretário. O “grande empreendimento” do Apla, na avaliação do secretário da Indústria e Comércio, estará concluído no dia 15 de novembro. Trata-se do Parque Tecnológico de Bioenergia, um projeto de R$ 500 milhões que será instalado a 3 quilômetros da cidade, numa área de 300 mil metros quadrados cedida pela Aguassanta, holding do grupo Cosan, um dos maiores produtores de açúcar e etanol do mundo. A prefeitura e a Esalq também são parceiras no empreendimento. “Estamos concluindo a
Um parceiro na Dinamarca O Centro de Tecnologia Canavieira (CTC) e a empresa dinamarquesa Novozymes – responsável por 45% do mercado global de enzimas industriais – firmaram um acordo de cooperação com o objetivo de desenvolver pesquisa sobre o etanol celulósico, obtido por meio da hidrólise enzimática, o que permitirá a produção de álcool combustível a partir do bagaço da cana-de-açúcar. Pelo acordo, o CTC deverá prover o parque produtivo brasileiro de etanol com enzimas produzidas em parceria com a Novozymes e a empresa dinamarquesa, em troca, terá acesso às pesquisas sobre novas tecnologias de produção do etanol desenvolvidas pelo CTC. De acordo com a direção do centro, a parceria traz “perspectivas extraordinárias para a produção de etanol”.
identificação de competências e demandas para alinhavar o plano de negócios, definir governança e gestão, entre outras ações”, afirma Weber Amaral, coordenador do Pólo Nacional de Biocombustível e responsável pelo projeto. O Parque Tecnológico de Piracicaba, segundo ele, já conta com o aval da Secretaria do Desenvolvimento do Estado de São Paulo. Será o quinto projeto a ser implementado pelo Sistema Paulista de Parques Tecnológicos, ao lado dos de São Paulo, São Carlos, Campinas e São José dos Campos. O projeto arquitetônico, assinado por Paulo Mendes da Rocha, é ousado: serão, ao todo, 13 edifícios – centros de eventos da Esalq, conjunto empresarial, hotel, entre outros – construídos nas duas margens do rio Piracicaba, ligados entre si por um edifício-ponte onde estarão instalados os laboratórios de pesquisa. Ao redor do empreendimento serão construídas 2.500 unidades habitacionais para pesquisadores, além de um parque ecológico. “Temos manifestação de empreendedores interessados e a expectativa de iniciar a sua implantação em 2008”, garante João Bosco Alves Silveira, diretor imobiliário da Aguassanta. Ainda existem problemas a serem solucionados. Uma pesquisa realizada por Oswaldo Elias Farah, da Universidade Metodista de Piracicaba, entre março de 2006 e março de 2007 – que contou com o apoio do Programa Políticas Públicas da FAPESP –, constatou que as empresas de pequeno e médio porte mantêm dependência tecnológica estreita com as grandes indústrias metalúrgicas. “Apesar de o seu crescimento ter acelerado nos últimos três anos, essas empresas têm baixo nível de inovação e muitas têm deficiência de gestão”, explica Farah.Apesar de boa parte das empresas trabalharem 24 horas por dia, carecem de uma visão estratégica do negócio. Algumas ainda não participam do Apla, por desconhecimento ou falta de interesse, ele observa. “As pequenas e médias empresas são carentes não só de conhecimento vinculado ao aprimoramento tecnológico de seus produtos, como também de estratégias e ferramentas de gestão que visem à ampliação de sua participação no mercado. Uma gestão inovadora é talvez o único caminho para o seu crescimento e, principalmente, para a sua sobrevivência”, ele conclui. ■ PESQUISA FAPESP 140
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> DIFUSÃO
Plataforma
do conhecimento
Em 40 anos, a Bireme cumpriu a trajetória de biblioteca médica à referência em gestão da informação científica
F ABRÍCIO M ARQUES
O
Centro Latino-americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (Bireme) vem sendo convocado a emprestar a sua experiência na gestão e na oferta de conhecimento científico a uma série de novas iniciativas.Em 2006 a Organização Mundial da Saúde (OMS) delegou ao centro a tarefa de desenvolver a plataforma tecnológica da Global Health Library (GHL),uma biblioteca mundial com fontes de informação em saúde.A Bireme também envolveu-se na administração e na operação do TropIKA – Tropical Disease Research to Foster Innovation & Knowledge Application,portal interativo na área de doenças infecciosas e parasitárias,em parceria com o programa Tropical Diseases Research da OMS, que tem apoio de instituições como o Unicefe o Banco Mundial.E foi convidada a fornecer cooperação técnica para a criação da Rede ePORTUGUÊSe – Rede de Fontes de Informação e Conhecimento em Saúde para os Países de Língua Portuguesa –,liderada pela OMS, que tem como uma das suas principais linhas de ação adotar e implantar a Biblioteca Virtual em Saúde nos países de língua portuguesa. Hoje estão ligadas à Bireme grandes redes cooperativas de informação que
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ILUSTRAÇÃO
B RAZ
apóiam a pesquisa e a inovação no continente,como a Scientific Electronic Library Online (SciELO),a Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) ou a Rede Internacional de Fontes de Informação e Conhecimento para a Gestão de Ciência, Tecnologia e Inovação (ScienTI). A SciELO,construída há dez anos em parceria com a FAPESP e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq),oferece em regime de acesso aberto na internet mais de 130 mil artigos de 452 títulos de periódicos certificados e deve alcançar a marca de 10 milhões de acessos mensais até o fim do ano.Atualmente a SciELO abriga dez coleções em oito países – Argentina,Brasil, Chile, Colômbia, Cuba, Portugal, Espanha e Venezuela –,além de duas coleções temáticas nas áreas de saúde pública e ciências sociais.Bases de dados para coleções de Costa Rica,México,Paraguai,Peru e Uruguai estão em fase de desenvolvimento. Já a Rede ScienTI,originada a partir da Plataforma Lattes do CNPq,é formada pelos conselhos nacionais de Ciência e Tecnologia da América Latina que disponibilizam em diretórios nacionais os currículos dos pesquisadores e dados sobre os grupos de pesquisa.Com interfaces nas línguas espanhola,inglesa e portuguesa,a BVS é desenvolvida con-
juntamente com os países da América Latina,Caribe,Portugal e Espanha e opera on-line mais de 15 milhões de registros de metadados (dados sobre origem,fluxo ou formatos de bibliografias),vinculados a bases de literatura internacional de ciências da saúde como a latino-americana Lilacs,as norte-americanas Medline e Biblioteca Cochrane, além da SciELO. “A Bireme é essencial para o progresso da gestão da informação e do conhecimento científico no Brasil,na América Latina e no Caribe e também na cooperação internacional,particularmente na cooperação sul-sul”,diz Diego Victoria, representante da Organização Panamericana de Saúde (Opas) no Brasil. Além de organizar e gerenciar esse volume de informação,a Bireme há tempos assumiu a tarefa de estabelecer normas na América Latina e no Caribe sobre a estrutura de registros e de textos,para garantir que suas bases de dados consigam operar em nível global.“Como exemplo recente disso,a Bireme comunicou neste ano a todos os editores científicos que a aprovação de manuscritos de ensaios clínicos pelas revistas indexadas nas bases Lilacs e SciELO deverá exigir o número de registro do ensaio,de acordo com as normas da OMS”,explica o diretor da Bireme, Abel Packer.
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Não deixa de ser curioso que o centro, hoje um instrumento de afirmação da ciência latino-americana, tenha nascido sob forte influência norte-americana. Em meados do século XX, a OMS lançou a idéia de espalhar bibliotecas médicas em cada região do planeta. Mas apenas a Opas levou o conceito adiante, inspirando-se no modelo em vigor nos Estados Unidos, calcado em bibliotecas regionais vinculadas a uma biblioteca nacional. “A Bireme conseguiu ir muito além do conceito inicial para se tornar um modelo de inovação e colaboração”, disse a diretora-geral da OMS, Margaret Chan, em pronunciamento sobre os 40 anos da Bireme. Sem paredes - O artigo “Uma biblioteca sem paredes: história da criação da Bireme”, publicado em 2006 na revista História, Ciências, Saúde-Manguinhos, cujo autor principal é a historiadora Márcia Regina Barros da Silva, recupera essa trajetória. Em abril de 1965 dois bibliotecários norte-americanos foram contratados como consultores pela Opas, sediada em Washington, para selecionar o país onde seria instalada a biblioteca regional. A opção pelo Brasil deveu-se, de um lado, à ativa participação de pesquisadores do país na Opas e nos debates sobre a implantação da biblioteca. Definido o país, a escolha recairia sobre a Escola Paulista de Medicina (EPM), hoje Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), na capital paulista. Pesaram a favor da escola o intenso lobby feito junto à Opas pelos professores da EPM Magid Iunes e Antônio de Mattos Paiva. Outro fator importante foi a nova configuração da escola, que passara à alçada do governo federal – condição essencial para garantir o engajamento do poder público no projeto. A criação da Bireme, diga-se, estava mais do que justificada. Quase a metade dos pedidos de artigos científicos à Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos (NLM, na sigla em inglês) no final dos anos 1960 provinha de países latino-americanos. Em 1972 a Bireme entraria no mundo da informação eletrônica, com a instalação de um terminal Olivetti operando através do satélite In-
tersalt com a NLM pelo sistema Medline. Em 1985 a Bireme tornou-se a primeira biblioteca a criar bases de dados em CD-ROM, antecipando uma tendência de armazenamento de informação que se consagraria. O final dos anos 1980 foi marcado pela operação on-line das bases de dados, com a adoção da internet nos anos 1990 com interfaces de pesquisa em espanhol, inglês e português. O lançamento do projeto SciELO, em 1997, da Rede ScienTI, em 2000, e da Biblioteca Cochrane com acesso aberto a toda a América Latina, em 2004, completa os grandes marcos.“Entre os novos desafios da Bireme destaco a necessidade de contribuir para a tradução do conhecimento científico em políticas e a criação de incentivos para que os tomadores
de decisão acessem de forma mais sistemática o acervo de conhecimentos”, disse Reinaldo Guimarães, secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde. Financiada com recursos da Opas, dos ministérios da Saúde e da Educação, da Secretaria da Saúde de São Paulo e da Unifesp e de projetos como do SciELO, a Bireme manteve nestes 40 anos o seu caráter de centro internacional vinculada formalmente à Opas/OMS, mantendose distante de ingerências políticas e intempéries orçamentárias. “Por outro lado, ao operar em estreita colaboração com instituições brasileiras, o Brasil propiciou à Bireme e suas redes internacionais a massa crítica que favorece a sua sustentabilidade”, diz Abel Packer. ■ PESQUISA FAPESP 140
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> FAPESP
EDUARDO CESAR
Um chanceler na presidência
Celso Lafer: “Buscarei a convergência em prol da pesquisa e do desenvolvimento”
C
elso Lafer,ministro das Relações Exteriores em duas ocasiões e ex-ministro do Desenvolvimento,é o novo presidente da FAPESP, em substituição ao poeta e lingüista Carlos Vogt,que deixou a Fundação e assumiu a Secretaria Estadual do Ensino Superior.Lafer foi empossado no dia 26 de setembro,numa cerimônia na sede da Fundação que contou com a presença do governador José Serra e vários secretários de estado. Lafer,que integra o Conselho Superior da Fundação desde 2003,acredita q ue a solução dos desafios e problemas atuais exige a comunicação entre a cultura literária e humanística e a cultura científica.“Se é certo que no mundo contemporâneo não dá para criar,numa visão integrada,uma cultura comum,não é menos certo ser um imperativo do nosso tempo a capacidade de traduzir com competência e assim ensejar uma comunicação entre as duas culturas”,disse em seu discurso de posse.Assim,ele concebe a FAPESP como o lócus,por excelência,do encontro entre as duas culturas.“Com efeito,o seu objeto de tra-
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balho é o avanço,com rigor,do conhecimento em todas as áreas:ciência,tecnologia,artes,literatura,filosofia,ciências humanas.” Citou Pasteur para afirmar que não enxerga limites entre a ciência básica e a ciência aplicada – “não há ciência aplicada,e sim aplicações da ciência”.Assim, cabe à FAPESP criar as oportunidades para apoiar a investigação científica.“Também entendo que boas parcerias da FAPESP com as empresas na área de inovação e da pesquisa trazem benefícios para a sociedade e são um fator relevante para o desenvolvimento do país”,sublinhou.“Buscarei a convergência em prol da pesquisa e do desenvolvimento.” O governador José Serra – em sua primeira visita à Fundação – lembrou que em quatro momentos da vida teve contato com a FAPESP.O primeiro foi em 1960.Ele era presidente da União Estadual dos Estudantes (UEE)e apoiou a iniciativa do governador Carvalho Pinto de criar uma agência de fomento.Anos depois,no exílio,obteve uma bolsa de doutorado na Universidade de Cornell da qual acabou abrindo mão quando mudou o tema da pesquisa.O terceiro con-
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O ex-ministro Celso Lafer foi empossado no dia 26 de setembro
tato com a FAPESP foi em 1983.Serra era secretário de Economia e Planejamento do governo do estado e foi responsável pela mudança de critérios da distribuição dos recursos à Fundação proposta na emenda Leça,de autoria do então deputado Fernando Leça,que estabeleceu que o fluxo de recursos à FAPESP fosse calculado com base no ano anterior e repassado em duodécimos mensais.“O dinheiro estava amarrado ao orçamento aprovado,e não ao executado,e era corroído por uma inflação anual de até três dígitos”, lembrou o governador.O quarto encontro se deu em 1986,na Assembléia Nacional Constituinte,quando Serra defendeu a vinculação de recursos orçamentários para a pesquisa científica. Na avaliação do governador,a FAPESP contraria uma lei de funcionamento que lamentavelmente rege o desempenho do setor público brasileiro:“Quando se cria uma instituição nova,ela funciona bem nos primeiros cinco a dez anos e depois decai.A FAPESP,com 45 anos, só melhorou”.Reiterou a visão de Lafer sobre a ciência.“Um importante desafio que a Fundação deve enfrentar com base em sua autonomia e experiência é de,simultaneamente,enfatizar a pesquisa básica,que constrói o futuro explorando e desenvolvendo possibilidades,e a pesquisa aplicada,que deve ter,cada vez mais,impacto social e econômico.” Um estudioso de Hanna Arendt - Professor titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP),Lafer encabeçou a lista tríplice eleita pelos membros do Conselho Superior da Fundação e encaminhada ao governador José Serra,que o nomeou no dia 31 de agosto.“Agradeço a confiança do conselho e a do governador.Trago para o exercício da função aquilo que é o conjunto de minhas experiências e pretendo dar continuidade a um trabalho de grande qualidade que tem feito da FAPESP uma instituição exemplar”,disse o novo presidente.
A solução dos problemas e desafios contemporâneos exige a comunicação entre a cultura literária e humanística e a cultura científica
A relação de Lafer com a FAPESP teve início nos anos 1970,depois de concluir o doutorado,quando foi convidado pela Fundação a emitir pareceres sobre projetos de pesquisa financiados pela instituição.“Na época também colaborei com os professores Oscar Sala e Paulo Vanzolini em discussões sobre áreas prioritárias de pesquisas.Trata-se de uma relação que se tornou ainda mais próxima desde 2003,quando passei a integrar o Conselho Superior”,disse.“Em um mundo como o de hoje,que opera através de redes, uma das importantes dimensões da atividade da FAPESP tem sido a construção de redes.Também é preciso destacar o papel da Fundação no desenvolvimento científico e tecnológico do estado e do país,pois o controle de uma sociedade sobre o seu próprio destino passa pela capacitação científica e tecnológica”,disse. Nascido em São Paulo há 66 anos,Lafer graduou-se pela Faculdade de Direito da USP,onde leciona desde 1971.Obteve seu Ph.D.em ciência política na Uni-
versidade de Cornell,nos Estados Unidos,em 1970,a livre-docência em direito internacional público na USP,em 1977,e a titularidade em filosofia do direito,em 1988.Foi chefe do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP,presidente do Conselho de Administração da Metal Leve,presidente do Órgão de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio (OMC) e presidente do Conselho Geral da OMC.Ministro do Desenvolvimento,Indústria e Comércio (1999) e ministro das Relações Exteriores em 1992 e de 2001 a 2002, Lafer também desempenhou as funções de embaixador do Brasil junto à OMC e à Organização das Nações Unidas.Atualmente coordena a Área de Concentração de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da USP,preside o Conselho Deliberativo do Museu Lasar Segall e é coeditor da revista Política Externa. Integra o Conselho de Administração da Klabin. É membro da Academia Brasileira de Letras,da Academia Brasileira de Ciências e da Corte Permanente de Arbitragem Internacional de Haia. Estudioso do legado da teórica política Hannah Arendt (1906-1975),Lafer escreveu vários livros sobre sua obra,como A reconstrução dos direitos humanos, um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt (1988) e Hannah Arendt – Pensamento,persuasão e poder (2ª ed.revista e ampliada,2003).Também é autor,entre outros livros,de Desafios: ética e política (1995), A OMC e a regulamentação do comércio internacional: uma visão brasileira (1998), Comércio, desarmamento, direitos humanos – Reflexões sobre uma experiência diplomática (1999), Mudamse os tempos – Diplomacia brasileira 20012002,vol.1 e vol.2 (2002), JK e o programa de metas (1956-1961) – Processo de planejamento e sistema político no Brasil (2002), A identidade internacional do Brasil e a política externa brasileira (2ª ed. revista e ampliada,2004) e A presença de Bobbio – América espanhola,Brasil,península Ibérica (2004). ■ PESQUISA FAPESP 140
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HÁ 50 ANOS
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Instantâneos climáticos Oceanógrafo revê estudos e discussões sobre aquecimento global de meio século atrás
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ARQUIVO PESSOAL
O islandês Ingvar Emilsson era diticas. Em 1953 foi convidado a trabaretor do Instituto Oceanográfico da Unilhar no Instituto Oceanográfico da USP versidade de São Paulo (USP) em 1957, e se encarregou de criar a Seção de quando foi entrevistado por um repórOceanografia Física. Em 1960, ao morter do jornal Diário da Noite sobre norer o professor Wladimir Besnard, entícia referente a mudanças climáticas. tão diretor do instituto, o islandês asAos 30 anos, na qualidade de pesquisumiu o cargo. Sobre o período no Brasador em oceanografia física, falou sosil, disse Emilsson: “É um lugar onde bre as conclusões de um artigo do físieu e a minha família passamos alguns co húngaro Joseph Kaplan publicado dos melhores anos de nossas vidas”. nos Estados Unidos, Em 1964 começou que previa o derretia trabalhar na Organimento das calotas pozação das Nações Unilares e o aumento do das para a Educação, nível do mar como cona Ciência e a Cultura seqüência do aqueci(Unesco) como espemento da atmosfera cialista em oceanoprovocado pelas ativigrafia física dentro do dades humanas. Programa das Nações Este ano Pesquisa Unidas para o DesenFAPESP encontrou o volvimento (PNUD). professor Emilsson na Em 1969 foi nomeado Emilsson hoje... coordenação das Plaresponsável pela edutaformas Oceanográcação em ciências do ficas, que opera os navios de pesquimar na sede da Unesco em Paris. Em sa da Universidade Nacional Autôno1970 a Unesco o enviou para o México, ma do México (Unam). Ao receber alonde o encarregou de gerenciar progumas perguntas, via e-mail, com um jetos de vários programas de assistênpedido para se manifestar sobre aquecia técnica em ciências marinhas. le momento, o pesquisador enviou o Ao completar 60 anos em 1986 texto ao lado – um retrato de como se saiu da Unesco, mas continuou trapensavam algumas questões climátibalhando no Instituto de Ciências do cas há 50 anos. Mar e Limnologia da Unam, fazendo Ingvar Emilsson tem agora 80 anos pesquisa e ensinando na pós-graduae é natural de um povoado de pescação. Desde 1994 está na coordenação dores na Islândia oriental. Estudou fídas Plataformas Oceanográficas, que sica, matemática e geografia física e opera os navios de pesquisa da unise doutorou em oceanografia física nas versidade, um no oceano Pacífico e ■ universidades de Oslo e Bergen, na Nooutro no golfo do México. ruega. Na época participou de missões de pesquisa marinha nas regiões árN ELDSON M ARCOLIN 34
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m 1957 se celebrou no Rio uma conferência preparatória para um evento mundial chamado Ano Geofísico Internacional (The International Geophysical Year).Nessa conferência participaram cientistas norte-americanos e latino-americanos – argentinos, brasileiros,chilenos,peruanos e talvez de outros países da região.Um assunto de grande atualidade era o lançamento de um satélite geofísico por parte dos Estados Unidos a cargo do Laboratório de Propulsão a Jato (JPL),na Califórnia. Entre os planos cooperativos figurava o estabelecimento de uma rede de observatórios para monitorar,com binóculos e telescópios,o satélite geofísico que os americanos pretendiam lançar. Como nos dizia o dr.Pickering,diretor do JPL:“Nós gostaríamos de ter relatórios visuais do satélite funcionando para monitorar sua órbita”.Hoje, com o imenso avanço nesses 50 anos, parecem um tanto inacreditáveis essas palavras do diretor Pickering.Obviamente,tudo foi em vão,já que o satélite norte-americano não subiu,para derrota moral dos Estados Unidos.O primeiro a subir foi o famoso Sputnik,dos soviéticos. Entre os múltiplos assuntos discutidos na conferência foi o aumento de CO2 na atmosfera causado pela queima crescente de hidrocarbonetos fósseis.Nesse campo,o Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo, Seção de Oceanografia Física,sob minha chefia,assumiu a tarefa de quantificar o CO2 no ambiente não contaminado na costa do Brasil.Para essa ta-
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Notas e lembranças*
REPRODUÇÕES EDUARDO CESAR
I NGVAR E MILSSON ,
DA
C IDADE
DO
refa, compilamos amostras de ar na Estação de Cananéia, colhidas mensalmente e analisadas em nosso laboratório em São Paulo. Uma nota humorística daquela época: a quantidade de trítio havia aumentado na atmosfera como conseqüência da explosão de bombas de hidrogênio. Para monitorar esse aumento, se coletava água de chuva em Cananéia e se enviava regularmente uma amostra de 10 litros à Suécia, para análise. Para exportar esse material, a alfândega exigia uma permissão oficial. Um dos jornais de São Paulo publicou a nota: “Brasil já exporta água de chuva”. Como mencionei, na conferência realizada no Rio se discutiu o aumento do CO2 na atmosfera e seu efeito sobre o clima. A atmosfera é parcialmente transparente à radiação solar. Portanto grande parte da energia solar que chega ao topo da atmosfera acaba chegando à superfície. A porcentagem da energia solar recebida no topo da atmosfera que é refletida de volta para o espaço é chamada de albedo atmosférico (cerca de 30% da energia solar incidente é devolvida ao espaço neste processo). A radiação solar que chega à superfície é absorvida e a aquece. Uma das leis básicas da física diz que a energia radiante de um corpo é proporcional à temperatura absoluta à quarta potência. Portanto, a superfície terrestre, aquecida pelo Sol, emite radiação na forma de onda longa (calor) para cima. Essa energia emitida
M ÉXICO
pela superfície é absorvida pelos gases de efeito estufa da atmosfera (principalmente CO2 e ... e em 1957 vapor-d’água). Com a elevação da concentração de CO2, aumenta também a quantidade de energia que é absorvida pela atmosfera e, portanto, a temperatura do ar. Com o ar mais aquecido, mais energia na forma de onda longa é emitida pela atmosfera para o espaço (proporcional à temperatura absoluta da atmosfera à quarta potência). Dessa forma equilibra-se o sistema climático terrestre num patamar mais quente ao aumentar a concentração do CO2. A produção dos gases do efeito estufa pela queima de combustíveis e outros efeitos antropogênicos é facilmente es-
Entre os efeitos climáticos que se previa naquele tempo figuravam o derretimento das geleiras e o conseqüente aumento do nível do mar. Na discussão de 1957, alguém mencionou que o cais do porto de Nova York iria submergir debaixo de 12 metros de água. Um repórter nos perguntou se conhecíamos portos que sofreriam algo similar. Respondemos com outra pergunta: existe algum porto que tenha 12 metros de altura sobre o nível do mar? Como é bem conhecido, através da história nosso planeta tem sofrido grandes mudanças climáticas às quais, sem dúvida, a humanidade deve sua existência. Apesar de toda a pesquisa, a origem dessas mudanças não são ainda
timada. Por outro lado, a distribuição desse gás no ambiente terrestre é muito complexa e sua absorção e transformação ainda são pouco conhecidas. O fato é que o aumento na atmosfera não corresponde aos cálculos baseados nas atividades humanas, o que significa que boa parte dessa produção é absorvida no ambiente terrestre, entre outros lugares, no oceano, constituindo o chamado ciclo do carbono no mar e no qual entram fatores físicos, químicos e biológicos assim como a circulação de correntes oceânicas, tanto horizontais quanto verticais.
bem entendidas. Nem sequer a última glaciação, que terminou por volta de 10 mil anos atrás, da qual, porém, persistem vestígios que no momento estão desaparecendo, por razões naturais ou artificiais. Hoje, tal como previram os cientistas há mais de meio século, não há dúvida de que o aquecimento global, que atualmente estamos observando, se deve, até certo grau, a efeitos antrópicos. Contudo, a grande meta agora é distinguir entre esse efeito e a oscilação natural que sempre existiu na história do nosso planeta. ■ PESQUISA FAPESP 140
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MUNDO
> CIÊNCIA
> Um suspeito na colméia Surgiu um novo suspeito no mistério do sumiço das abelhas norte-americanas: o vírus israelense de paralisia aguda (IAPV),que chegou aos Estados Unidos de carona com abelhas importadas da Austrália.Em setembro a Science publicou as conclusões de um levantamento que detectou o vírus em 25 das 30 colônias doentes estudadas – e em apenas uma das 21 saudáveis.Os resultados são ainda preliminares, mas apontam o IAPV como candidato mais provável a causador da síndrome conhecida como distúrbio do colapso das colônias. Especialistas no Brasil,onde apicultores têm observado mortalidade de abelhas além do normal – embora menos grave que nos Estados Unidos –,estão à cata do vírus,que ainda não foi encontrado. David de Jong, da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto, está preocupado com a geléia real trazida da China, que pode ser uma fonte de vírus para as abelhas. “Acho prudente impedir importações de geléia real e fiscalizar a importação de rainhas”,alerta. 36
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A equipe multidisciplinar liderada pelo alemão Markus Reindel uniu tecnologia a técnicas tradicionais de arqueologia e acredita ter desvendado o mistério das místicas linhas de Nazca, no Peru. Essas linhas, cuja origem alguns atribuem a alienígenas, formam desenhos com quilômetros de extensão gravados nas areias do deserto peruano do Atacama, também conhecidos como geóglifos. Reindel descobriu que essas figuras não são simples desenhos, mas lugares sagrados onde aconteciam cerimônias para pedir água e fertilidade. Em 1997 o pesquisador e sua equipe começaram a fotografar os geóglifos com câmeras digitais de altíssima definição a bordo de um avião e em 2002 incorporaram mais tecnologia à pesquisa, como scanners a laser, aparelhos de datação por carbono e um helicóptero robótico. Os dados permitiram ao grupo criar mode-
los tridimensionais da topografia do deserto e analisar a visibilidade dos geóglifos de diferentes pontos. Eles concluíram que se houvesse atividade sobre as linhas, como muitas pessoas andando numa procissão, as formas seriam visíveis a quilômetros de distância, inclusive de outros geóglifos, sugerindo uma cerimônia gigantesca por todo o deserto. Ao mesmo tempo, a arqueologia tradicional encontrou orifícios que sugerem a instalação de elevados postos de observação e de estruturas para a armação de tendas. Além disso, as escavações revelaram sinais claros de oferendas e sacrifícios, como conchas trazidas do oceano, ossos de porquinhos-da-índia e restos de camarões-d’água-doce. O Atacama tem apenas 0,5 mm de chuvas por ano e os nazcas eram uma sociedade agrária. É bem possível que tivessem rituais para pedir água aos deuses.
Condor, em Nazca: linhas vistas do céu revelam locais sagrados
VITOR SOARES
LABORATÓRIO
Esqueçam os alienígenas
> Obesidade contagiosa Coma demais sem fazer exercício e acumulará uns quilos a mais.Entre as causas da obesidade,surgiu mais uma:o adenovírus-36. Magdalena Pasarica,da Universidade Estadual de Louisiana,Estados Unidos, cultivou células-tronco obtidas em lipoaspirações
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com potencial de virar osso e cartilagem.Mas na presença do vírus geraram sobretudo células de gordura. Apresentados no congresso da Sociedade Americana de Química,os resultados sugerem um lado contagioso para a obesidade.Mas não é o caso de evitar contato com obesos:o período em que o vírus é transmissível é curto (Science News).
> Genoma, agora completo Está publicado o mais completo retrato do genoma humano (PLoS Biology): o material genético de Craig Venter,biólogo que fundou uma empresa para concluir o Projeto Genoma Humano. É o primeiro genoma diplóide seqüenciado,com duas versões de cada gene – a que
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veio da mãe e a do pai. A equipe de Venter estima pelo menos 0,5% de diferença entre as duas metades do genoma, sugerindo uma semelhança genética entre duas pessoas menor do que os 99,9% previstos. Mas o maior benefício de publicar o genoma de uma pessoa conhecida será associar os dados genéticos às suas manifestações, sobretudo na saúde. Para eles, saber mais sobre a relação entre genes e doenças é o próximo passo da medicina preventiva.
> Mundo em metamorfose Mais terra, menos água: imagens de 1977, 1989 e 2006 mostram a redução do mar de Aral
sobre ilhas prestes a serem engolidas pelo mar e outros efeitos da ação humana, que vêm causando alterações cada vez mais rápidas.
> Hormônio contra a timidez Há tempos se sabe que o hormônio oxitocina facilita o trabalho de parto e a produção de leite, quando administrado em doses mais elevadas do que a produzida
pelo organismo. Agora descobriu-se outra função desse hormônio, secretado por uma glândula na base do cérebro. A oxitocina parece auxiliar o tratamento de pessoas excessivamente ansiosas quando têm de interagir com outras pessoas – problema conhecido como fobia social. Meia hora antes de sessões de psicoterapia, a equipe de Markus Heinrichs, da Universidade de Zurique, na Suíça, trata 70 pacientes com uma dose de oxitocina
aplicada por spray nasal. Os resultados preliminares indicam que as pessoas tratadas com o hormônio se sentem mais confiantes e preparadas para interagir com pessoas fora das sessões de terapia (NewScientist). Em um estudo recente publicado na Biological Psychiatry a equipe de Heinrichs mostrou que a oxitocina reduz a atividade de uma região cerebral chamada amígdala, associada ao medo.
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Durante a era soviética, a água dos rios que alimentam o mar de Aral, na Ásia Central, era desviada para irrigar lavouras. Uma represa concluída em 2005 agora impede que a água escoe de sua parte norte que, por isso, está crescendo. A redução do mar de Aral em 75% desde 1967 é um exemplo das mudanças retratadas no The times comprehensive atlas of the world (HarperCollins). O atlas faz mais do que compilar o passado: ele também acompanha tendências e faz previsões
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> Cascatas de extinção
Intestino aderente Uma arma secreta para o combate à malária, doença que a cada ano atinge mais de 500 milhões de pessoas no mundo, sobretudo nas regiões mais pobres, pode estar no intestino de um mosquito. Entre os parasitas causadores da doença, Plasmodium falciparum é o mais comum e responsável pela forma mais grave. Mas só completa seu ciclo de vida depois de passar pelo sistema digestivo do pernilongo Anopheles, que consome sangue infectado de mamíferos doentes e depois inocula os parasitas nas vítimas seguintes. O grupo do bioquímico brasileiro Marcelo Jacobs-Lorena, radicado no Instituto de Pesquisa sobre Malária da Universidade Johns Hopkins de Saúde Pública, Estados Unidos, acaba de descrever em artigo publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS) detalhes de como P. falciparum se fixa ao intestino
Muitos animais se alimentam de plantas. Diversas plantas,por sua vez, necessitam de animais para a polinização e a dispersão de sementes,em intrincadas relações ecológicas. O biólogo Paulo Roberto Guimarães Júnior,do Instituto de Física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), se associou a ecólogos da Estação Ecológica de Doñana,na Espanha,para entender como funcionam essas redes de dependência. Descobriram que espécies aparentadas tanto de plantas como de animais tendem a interagir com as mesmas espécies em redes ecológicas. Ao criar simulações de computador que levam em conta o parentesco entre as espécies,os pesquisadores viram um efeito dominó de extinções entre espécies aparentadas (Nature). Classificação pode ser tão importante quanto ecologia para fins de conservação.
do mosquito. O segredo está no carboidrato glicosaminoglicana com sulfato de condroitina, que o parasita reconhece e ao qual se liga. Os pesquisadores inibiram a produção desse carboidrato em mosquitos vivos e com isso reduziram em até 95% a infestação por P. falciparum nos intestinos dos insetos. A identificação do sulfato de condroitina pode ser o passo inicial para uma potencial vacina contra a malária, objetivo ainda distante de ser alcançado. Primeiro é preciso descobrir qual proteína do plasmódio reconhece essa glicosaminoglicana para, em seguida, usá-la como alvo para bloquear a transmissão do parasita. É mais munição para o arsenal de Jacobs-Lorena na luta contra a malária: a edição de agosto da PNAS traz outra proteína identificada por seu grupo, a aminopeptidase, que também pode ser alvo de vacina bloqueadora de transmissão.
> Um superátomo de rubídio
JAMES GATHANY/CDC
Âncora: açúcar permite fixação de parasita no sistema digestivo do mosquito
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No Instituto de Física da Universidade de São Paulo em São Carlos,a equipe de Vanderlei Bagnato conseguiu reproduzir em laboratório o chamado quinto estado da matéria.Usando feixes de laser e campos magnéticos, eles aprisionaram cerca de 100 mil átomos do elemento químico rubídio antes dispersos no estado gasoso. Depois os resfriaram a uma temperatura baixíssima (273,15 graus Celsius
negativos),em que os átomos se tornam praticamente imóveis e se comportam como se fossem um só – uma espécie de superátomo de rubídio. Nesse estado,previsto no início do século passado pelos físicos Satyendra Bose e Albert Einstein e por isso conhecido como condensado Bose-Einstein, todos os átomos apresentam o mesmo nível de energia e se movem à mesma velocidade,a mais baixa possível.É a primeira vez que um laboratório sul-americano comprova IFSC/USP
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Condensado de rubídio: átomos agem como um só
produzir o condensado. “Era um espaço que precisava ser conquistado pela física brasileira”,comenta Bagnato. Com o sucesso desse trabalho,o grupo começa agora a investigar a matéria a temperaturas próximas ao zero absoluto.
> O corpo e a geografia Analisando o material genético de 30 populações dispersas pelo planeta, pesquisadores norteamericanos e o biólogo brasileiro Diogo Meyer,da Universidade de São Paulo, conseguiram evidências robustas de que dois grupos
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> Seca verdejante Durante a seca de 2005, uma das mais intensas que se abateram sobre a Amazônia, os trechos intocados da floresta apresentaram um comportamento inesperado: tornaram-se mais verdes, em vez de secar. Humberto Rocha, do Instituto de Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo, em conjunto com colegas norte-americanos, analisou imagens de satélite e viu que esses trechos da floresta aumentaram a capacidade de
> Espelho,
fazer fotossíntese. Em nota publicada no site da Science, eles mostram que é preciso investigar como a floresta reage às secas e incluir esse conhecimento nos modelos que prevêem o aumento da temperatura do planeta e a transformação de boa parte da Amazônia em savana. Rocha vê o resultado com cautela, uma vez que a seca durou só alguns meses além do normal. “Esse fenômeno não invalida as previsões de uma possível savanização da Amazônia, caso o clima torne-se sistematicamente mais seco e quente”, diz.
espelho meu
MIGUEL BOYAYAN
de genes responsáveis por características do sistema de defesa humano evoluíram de modo interconectado por milhares de anos (Nature Genetics). Os pesquisadores analisaram amostras de sangue de 1.642 pessoas e identificaram variações nos genes KIR e nos genes HLA. Os KIR são responsáveis por ativar ou inibir células de defesa chamadas linfócitos natural killer. Já os HLA ajudam a reconhecer quem são os invasores que devem ser combatidos. A equipe de que Meyer fez parte constatou que, como os HLA atuam junto às proteínas KIR para regular o funcionamento dessas células de defesa, a evolução desses dois grupos de genes não é independente: organismos que têm muito HLA do tipo que liga os KIR ativadores são propensos a doenças auto-imunes. O grupo mostrou que quanto mais distante da África, onde a espécie humana teria surgido há cerca de 200 mil anos, maior a variedade de genes KIR. Já a diversidade de genes HLA diminuiu com a distância do continente africano. “Populações com altas freqüências da forma de HLA que ativa o KIR têm menos genes KIR e vice-versa”, explica Meyer.
Efeito inesperado: Amazônia se manteve verde em estiagem
Como você gostaria de ser? A pergunta foi feita a 1.183 crianças e adolescentes com idade entre 6 e 18 anos, que deviam escolher entre ilustrações representando uma gradação entre uma criança magra e outra rechonchuda. Nesse estudo a médica Ana Elisa Ribeiro Fernandes, da Universidade Federal de Minas Gerais, concluiu que boa parte das crianças não está satisfeita com sua aparência. Em sua amostra, duas de cada três crianças declararam não gostar do próprio corpo: por volta de 34% gostariam de ser mais magras e 29% preferiam ganhar peso, percepção que foi tão freqüente entre meninos quanto entre meninas, em todas as idades. Eles se mostraram insatisfeitos com o corpo independentemente de serem ou não saudáveis do ponto de vista nutricional. Segundo Ana Elisa, é importante que as famílias estimulem hábitos alimentares mais saudáveis sem estigmatizar a aparência. A insatisfação com o próprio corpo tem papel central no desenvolvimento de doenças como anorexia e bulimia e por isso deve ser combatida desde a infância.
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Dieta de alto risco Responsável pelo ganho de peso, bloqueio à insulina começa no cérebro e aumenta predisposição às doenças cardiovasculares e ao câncer
D’APRÈS BRANCUSI, 1993
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CAPA
C ARLOS F IORAVANTI
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R ICARD O Z ORZET TO DESENHOS DE
A BRAHÃO S ANOVICZ
Em pé à entrada de um contêiner metálico que lembra um vagão de trem sem janela, Andressa Coope prepara uma pasta amarelada rica em gordura de porco. Os ratos-brancos a serem alimentados com essa dieta, mantidos ali dentro em gaiolas empilhadas, chamam a atenção não só porque já são gordos, mas também porque carregam um pequeno cano semelhante a uma antena implantado no alto da cabeça. É por esse tubo que a bióloga injetará substâncias que devem mostrar os efeitos de uma alimentação gordurosa sobre o organismo e reforçar a conclusão recente das equipes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) de que ela faz parte: consumir por muito tempo uma dieta rica em gorduras como a de países ocidentais, a exemplo do Brasil e dos Estados Unidos, além de engordar, pode ser trágico para o organismo. O excesso de doces repletos de cremes, pães, frituras e carnes gordurosas impede o funcionamento adequado do hormônio insulina, que carrega a glicose para o interior das células de diferentes órgãos e tecidos onde esse açúcar é transformado na energia essencial à vida. Foram necessários 15 anos de trabalho para as equipes de Mário José Abdalla Saad, José Barreto Carvalheira e Lício Velloso na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp comprovarem que esse desajuste bioquímico conhecido como resistência à insulina começa no cérebro e nos músculos. Depois repercute em todo o corpo, reduzindo o aproveitamento da energia dos alimentos e aumentando a fome. Em conseqüência, obesidade, diabetes, hipertensão, doenças cardiovasculares e até mesmo câncer – em resumo, os problemas que mais matam no mundo hoje – desenvolvem-se mais facilmente.
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xemplo raro da integração de fenômenos observados no interior das células a outros fenômenos mais globais, que regulam o funcionamento de órgãos e tecidos, os quase 200 trabalhos publicados pelas equipes da Unicamp mostram agora com precisão onde, como e por que surge a resistência à insulina, o primeiro passo para o desenvolvimento de 90% dos casos de diabetes, que afeta 180 milhões de pessoas no mundo. Desses estudos emergem também alternativas promissoras para tratar esses problemas. Foi mantendo os potes de comida dos animais sempre cheios que a equipe de Saad verificou que as células do hipotálamo e as dos músculos são as primeiras a se tornarem resistentes à ação da insulina, dez dias após o início de uma dieta rica em gorduras. Num segundo estágio esse hormônio deixa de agir adequadamente nas células do fígado e dos vasos sangüíneos. Só depois de cinco meses é que o problema se instala no tecido adiposo, formado por células especializadas em acumular gordura. Essa seqüência em que o problema se instala permite agora entender melhor por que as pessoas que desenvolvem resistência à insulina geralmente se tornam obesas – embora não explique todos os casos de obesidade, problema que também pode ter origem genética ou em outros tipos de distúrbio hormonal. A principal razão é o fato de tudo começar no hipotálamo, região localizada no centro do cérebro e responsável tanto pelo controle da fome como do gasto de energia. Poucos minutos após as primeiras mordidas em um sanduíche, os níveis de glicose no sangue aumentam e estimulam o pâncreas a liberar insulina. O hipotálamo detecta as taxas mais altas desse hormônio e, por sua PESQUISA FAPESP 140
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vez, reduz a produção de outros dois: a orexina, responsável pela sensação de fome, e o hormônio concentrador de melanina (MCH), que além da fome também controla o metabolismo. equipe de Velloso demonstrou recentemente parte desse mecanismo e a conexão entre obesidade e diabetes regulando a produção, no hipotálamo, do MCH. Ratos obesos apresentaram quantidades elevadas desse hormônio no sangue e gastaram menos energia, enquanto os magros tinham menos MCH e queimaram calorias mais rapidamente. Os animais que receberam doses extras desse hormônio tornaram-se resistentes à insulina, obesos e diabéticos. Velloso conta que, por fazer o organismo economizar energia reduzindo a temperatura corporal de modo imperceptível, o MCH tornou-se um bom alvo da indústria farmacêutica para tratar obesidade: deter a ação desse hormônio poderia reduzir a fome e aumentar o gasto energético fazendo a temperatura corporal subir levemente. Quando a insulina não consegue mais transportar a glicose do sangue para o interior das células, porém, todo esse complexo mecanismo bioquímico desanda. Os níveis elevados de açúcar no sangue continuam induzindo o pâncreas a fabricar insulina, mas mesmo essas doses maiores não são identificadas pelo hipotálamo, que eleva a liberação dos dois hormônios que aumentam a fome e diminuem o gasto de energia, como se o organismo se encontrasse em um jejum prolongado. Como resultado, entra-se num círculo vicioso em que a quantidade de insulina e glicose no sangue mantém-se continuamente elevada, causando danos em células do fígado, dos vasos sangüíneos e dos nervos. Não fosse o bastante, nos primeiros cinco meses da resistência à insulina as células do tecido adiposo continuam a absorver glicose e a transformá-la em gordura, aumentando os pneuzinhos da cintura.“Essa seqüência sugere que um mecanismo muito antigo de sobrevivência pode ter se mantido até hoje”, comenta Saad. É que, ao se tornar resistente à insulina, o cérebro deixa comer à vontade e acumular energia, como se o alimento fosse escassear em seguida.
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A contribuição das equipes de Saad, Carvalheira e Velloso para a compreensão de como surge a resistência à insulina não se restringe à interação entre os órgãos e os tecidos do corpo. Os estudos dos grupos de Campinas, somados aos de outros centros de pesquisa no exterior, também ajudaram a identificar o que se passa nos níveis celular e molecular. Quando o corpo está funcionando bem, a insulina se aproxima das células carregando uma molécula de glicose e se encaixa em proteínas da superfície celular chamadas receptores de insulina. A célula se abre e deixa entrar a glicose, que participa de reações químicas sucessivas até se transformar em energia ou ser estocada como reserva energética na forma de gordura nos tecidos adiposos ou glicogênio no fígado e nos músculos. Sucessivas refeições pantagruélicas quebram essa rotina, alterando o funcionamento de enzimas que normalmente deixariam a glicose entrar na célula e seguir seu caminho. A equipe de Saad descreveu dois novos mecanismos pelos quais se instauram a confusão celular e a fome insaciável. Em uma dessas vias, que Marco Carvalho-Filho descreveu em 2005 na Diabetes, uma enzima chamada óxido nítrico sintase induzível (iNOS) bloqueia a ação de moléculas da superfície das células a que a insulina se liga. Ao descobrir essas conexões, Saad imaginou uma estratégia de ação: reduzir a resistência à insulina bloqueando a ação da iNOS, caminho que se mostrou promissor segundo estudos preliminares feitos em laboratórios.
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outro mecanismo de resistência à insulina põe em cena outras duas enzimas, conhecidas pelas siglas JNK e IKK-beta. Ativadas pelo consumo de dietas fartas em gordura, essas enzimas também impedem a insulina de se conectar às células e de transportar a glicose para o seu interior, como demonstrou Patrícia Oliveira Prada, da equipe de Saad, em artigo publicado em 2005 na revista Endocrinology. Dessa vez o estrago é grande porque essas moléculas da superfície celular não atendem apenas a insulina. São essenciais também para o funcionamento de outros hormônios, como os que regulam a fome e a pressão arterial. O bloqueio dessas moléculas da superfície celular, ressalta Saad,
é uma das origens comuns da obesidade, do diabetes e da hipertensão. É nas profundezas das células que despontam os mecanismos bioquímicos pelos quais as doenças podem se relacionar. Em 1995, quando fazia pósdoutorado sob a supervisão de Saad, Velloso começou a trabalhar na conexão entre a insulina, que controla a quantidade de glicose em circulação no organismo, e a angiotensina II, que regula a pressão arterial. Seria uma forma de explicar um fenômeno conhecido havia muito tempo: pessoas com diabetes freqüentemente têm hipertensão arterial. Publicados em 1995 e 1996, os primeiros resultados mostraram como a angiotensina se opõe à ação da insulina e também inspiraram novas estra-
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tégias de tratamento. Foi Carla Carvalho, no pós-doutoramento com Saad, quem constatou que medicamentos contra a hipertensão capazes de bloquear a ação da angiotensina servem para tratar diabetes e obesidade, já que reduzem a resistência à insulina nas células de veias e artérias. Atualmente pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP), Carla também mostrou que a ação integrada do excesso de insulina e do hormônio luteinizante, que ajuda a regular o ciclo menstrual, poderia contribuir para o surgimento de ovários policísticos, comuns em mulheres jovens obesas. Ela explicava assim por que emagrecer era uma forma de normalizar o funcionamento dos ovários.
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m busca de explicações ainda mais profundas para essas conexões, Saad desconfiou que as três enzimas – a iNOS, a JNK e IKK-beta – que impediam o funcionamento da insulina poderiam ter uma origem comum. Como ele demonstrou depois de muito trabalho, as três podem ser acionadas por proteínas da membrana celular chamadas TLR-4, um dos tipos de toll like receptors. Camundongos com uma mutação genética que desliga essa proteína aproveitaram melhor a glicose, engordaram menos e não desenvolveram resistência à insulina, mesmo quando submetidos a uma dieta hiperlipídica. Para Saad, esses resultados sugerem que a TLR-4 seja justamente a conexão que faltava entre o consumo de dietas
ricas em gordura e o desenvolvimento de resistência à insulina. Ao se ligarem a esse receptor na superfície das células, as gorduras acionariam uma das três enzimas que bloqueiam a ação da insulina, impedindo o aproveitamento da glicose. Ao desativar o receptor TLR-4 das células dos camundongos, Saad também observou a redução de um tipo de células de defesa do sangue. Essa é uma possível conexão entre a obesidade e uma inflamação muito branda em todo o organismo, nem sempre notada pelos médicos, geralmente observada em quem está bem acima do peso considerado saudável – são consideradas obesas as pessoas com índice de massa corporal (medida obtida pela divisão do peso pelo quadrado da altura) superior a 30: PESQUISA FAPESP 140
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uma pessoa com 1,70 metro de altura é obesa se tiver mais de 87 quilos. Mas o que aciona a TLR-4? Possivelmente, um tipo de gordura encontrada principalmente em carnes vermelhas, de acordo com um estudo da equipe de Velloso em fase de publicação.“Tudo começa porque comemos muita gordura animal”, diz Velloso.“A fome e as epidemias causadas por doenças infecciosas, que foram as grandes causas de morte de nossos ancestrais, podem ter selecionado os genes que favoreçam o armazenamento de energia e respostas rápidas às infecções”, comenta Saad. O próprio acúmulo de gordura pode ser visto como um mecanismo de defesa caso falte alimento, como nos tempos em que a espécie humana vivia em cavernas. Hoje, porém, o organismo mantém a ordem de comer muito, mesmo que nem sempre a comida seja escassa.
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m todos esses anos de trabalho as equipes da Unicamp constataram ainda que quem se encontra muito acima do peso corre também mais risco de contrair câncer.“O excesso de insulina promove o crescimento dos tumores”, diz Carvalheira, médico que coordena uma das três equipes de Campinas que está mostrando as conexões entre essas doenças. Carvalheira verificou essa associação entre resistência à insulina e a maior propensão a desenvolver câncer em experimento com dois grupos de camundongos. Os dois grupos receberam injeções com células cancerígenas; um deles consumiu uma alimentação rica em gordura enquanto o outro recebeu uma dieta mais balanceada. No final, os que se fartaram com gordura se mostraram 50% mais suscetíveis a desenvolver tumores, e seus tumores eram 1,5 vez maior. Um estudo publicado em agosto na New England Journal of Medicine comprova essa relação, mas de modo inverso, ao comparar como morreram quase 8 mil obesos que passaram por uma cirurgia de redução de estômago – e começaram a comer com moderação – e outros 8 mil que não passaram pela cirurgia. No primeiro grupo, a mortalidade por diabetes caiu 92% e por câncer 60%, embora a mortalidade por acidentes e suicídio tenha sido 58% maior. “A associação entre obesidade e câncer parece clara”, diz Carvalheira. Ele se valeu desse conhecimento para criar
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Trace uma linha vertical a partir de seu peso e outra, horizontal, de sua altura. O ponto de encontro das duas mostra o Índice de Massa Corporal e a adequação de seu peso à altura
uma forma de combater a falta de apetite que normalmente acompanha o câncer. Em outro experimento, ele verificou que a metformina, medicamento usado no tratamento de diabetes, poderia aumentar a ingestão de alimento em duas vezes e a sobrevida em 30%. Tratase de uma nova aplicação para um medicamento já conhecido, embora seu uso nesses casos tenha de passar por mais testes até se mostrar realmente seguro. Não é a única alternativa para tentar combater a resistência à insulina que encontraram nos últimos tempos.“Trazemos para o laboratório perguntas que surgem durante nosso trabalho no hospital”, comenta Saad. Atentos às possi-
O PROJETO Mecanismos moleculares de resistência à insulina no hipotálamo e tecidos periféricos MODALIDADE
Projeto Temático COORDENADOR
MÁRIO JOSÉ ABDALLA SAAD – Unicamp Investimento INVESTIMENTO
R$ 1.146.794,71 (FAPESP)
bilidades de aplicação do conhecimento que emerge dos estudos com os roedores, ele, Velloso e Carvalheira encontraram algumas formas de reduzir o bloqueio à insulina. Uma delas consiste de fragmentos de DNA chamados oligonucleotídeos, que barraram a ação de uma proteína chamada PGC-1 e deixaram a insulina mais livre para entregar o açúcar às células. Os resultados dos experimentos em camundongos animaram uma empresa farmacêutica nacional a apostar no desenvolvimento de um medicamento a partir desses fragmentos de DNA, que pode chegar às mãos de quem precisa em dez ou quinze anos – se tudo der certo e se forem seguidos os critérios internacionais de desenvolvimento de fármacos. Paty Karol, da equipe de Saad, descreveu em sua tese de doutorado um oligonucleotídeo (fragmento de DNA) que desfez o bloqueio à insulina no hipotálamo de ratos e a reduziu nos músculos e no fígado; em conseqüência, os animais comeram menos. Mas esse composto também está longe de chegar às prateleiras das farmácias. Até lá, talvez uma forma mais simples de evitar o excesso de insulina seja mesmo fazer exercícios físicos. Marcelo Flores, sob a orientação de Carvalheira, demonstrou que exercícios prolongados de média a alta intensidade reduziram o apetite de ratos por aumentarem a sensibilidade do hipotálamo a dois hormônios que controlam a fome, a insulina e a leptina. Mas os exercícios devem ser regulares e contínuos. Em um experimento realizado na Unicamp, um grupo de ratos teve de nadar durante uma hora por dia por oito semanas, enquanto outro grupo permanecia sedentário. Depois todos os animais se fartaram com alimentos com muita gordura, doces à vontade e bebidas muito calóricas nas oito semanas seguintes. Surpreendentemente, os que haviam feito exercício desenvolveram uma resistência à insulina mais pronunciada que os sedentários. Os ratos que haviam nadado engordaram mais, reproduzindo uma das mudanças mais visíveis que o jogador argentino Maradona viveu depois de ter deixado o campo. Conclusão: embora o sedentarismo seja criticável, fazer exercício regularmente para perder peso e depois parar abruptamente pode ser decepcionante. ■
TODO BRASILEIRO TEM DIREITO A DECOLAR NA VIDA.
Quando o assunto é cidadania, a Embraer voa alto. Cada investimento na área social é feito com a mesma responsabilidade empregada na fabricação dos seus aviões. Em 2001, a Embraer criou o Instituto Embraer de Educação e Pesquisa. Com foco na educação e voltado para as comunidades onde está presente, o Instituto oferece oportunidade a jovens provenientes da rede pública, para que desenvolvam seus talentos e adquiram condições mais favoráveis ao exercício pleno da cidadania. Em fevereiro de 2002, foi inaugurado o Colégio Eng. Juarez Wanderley, que hoje possui 600 alunos do ensino médio, garantindo a eles, gratuitamente, ensino do mais alto nível com jornadas diárias de nove horas. No ENEM de 2005, o colégio igualou-se aos melhores do país, e isto se reflete nos resultados obtidos pelos 95% de estudantes aprovados nos vestibulares de grandes instituições. A Embraer acredita que a educação é a melhor forma de contribuir para um futuro melhor.
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A arte do encontro Grupos europeus trabalham em conjunto para integrar pesquisas e ganhar tempo na busca de novos tratamentos contra câncer e Aids Cinco equipes de hospitais da Alemanha, Bélgica, Hungria e França devem começar ainda este ano uma estratégia diferente para avaliar a eficácia de um tipo de células de defesa em pessoas com tumores de pele ou com Aids. Dessa vez adotarão métodos padronizados de trabalho para depois compararem os resultados a que chegarem – algo antes quase impossível, já que cada pesquisador empregava seus próprios procedimentos. Ao mesmo tempo, uma equipe em Paris estuda como essas células reagem ao encontrar tumores ou agentes infecciosos como vírus e bactérias. Em Milão, na Itália, outro grupo 46
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identifica os genes que controlam o funcionamento das chamadas células dendríticas, vistas atualmente como uma promissora possibilidade terapêutica contra uma série de doenças por controlarem a produção de anticorpos e de outras células de defesa. Os líderes de cada grupo sabem que podem pedir ajuda às outras equipes para complementar os resultados. Podem também ampliar o debate a mais participantes, já que compõem a rede européia DC-Thera, um dos raros esforços mundiais a integrar pesquisa básica e aplicada, constituída por 26 grupos de pesquisadores, 39 laboratórios associados e seis pequenas e médias empresas. Implantada há quase três anos, a DC-Thera, abreviação de Dendritic Cells for Novel Immunotherapies, reúne destacados especialistas europeus em células dendríticas da área de genômica, proteômica, biologia molecular e celular e experimentação em modelos animais e em seres humanos com o propósito de encontrar uma alternativa aos tratamentos, em especial contra câncer. “O
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conhecimento de genômica pode ser usado para desenhar testes em seres humanos, que freqüentemente são muito empíricos”, diz Jonathan Austyn, professor de imunobiologia da Universidade de Oxford que criou a rede. “Queremos completar o percurso do micro ao macrocosmo.” A pesquisa nessa área se intensificou nos últimos anos também nos Estados Unidos e no Brasil por causa dos resultados animadores dos testes clínicos preliminares e da baixa toxicidade. Os efeitos colaterais tendem a ser mínimos porque cada pessoa recebe células de seu próprio organismo, selecionadas, cultivadas e fortalecidas em laboratório. “Daqui a dez anos possivelmente conseguiremos estimular as células den-
dríticas dentro do próprio organismo dos pacientes”, diz Roger Chammas, que estuda os mecanismos de diferenciação de células dendríticas na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) em conjunto com a equipe de Lewis Joel Greene, do Centro de Terapia Celular de Ribeirão Preto. Trabalhar em rede pode ser uma forma de chegar logo a resultados mais consistentes, mas não é fácil. Em um mesmo país já seria difícil motivar médicos e biólogos a adotarem uma linguagem e formas de pensar convergentes. Austyn provocou a sorte e reuniu 61 grupos de 18 países da Europa, cada um com suas barreiras culturais, particularmente sérias em um continente historicamente dividido por guerras. Sob sua
coordenação biólogos, médicos e empresários ingleses, italianos, alemães, portugueses, suíços, franceses, croatas e espanhóis se sentam à mesma mesa a cada três meses para discutir resultados científicos ou estratégias de trabalho. Negociar com cientistas nem sempre é fácil, especialmente para quem, como Austyn, prefere respeitar as prioridades e os estilos de trabalho de cada grupo em vez de impor um comportamento padrão. Para articular o conhecimento e vencer a especialização que limita a capacidade de reflexão, ele tem também de prever e administrar conflitos gerados por diferentes visões de mundo. Muitas vezes a consciência dos limites do próprio conhecimento faz com que uns ganhem e outros percam autoridade. PESQUISA FAPESP 140
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Mas o diálogo muitas vezes vence e fortalece os laços de confiança. Em junho, por exemplo, em uma reunião organizada por Gerold Schuler, da Universidade de Erlangen, em Bamberg, uma cidade medieval alemã, os integrantes da rede concordaram em testar as células dendríticas com métodos comuns de preparação, controle de qualidade e aplicação. A falta de padronização é um dos principais problemas que dificultam a análise e a comparação dos cerca de cem testes clínicos com células dendríticas já realizados no mundo. Carl Figdor, pesquisador da Universidade de Nijmegen, Holanda, e integrante da DC-Thera, ao lado de outros especialistas, alertara em 2004 na Nature Medicine sobre a necessidade de planejar, preparar e avaliar os testes clínicos com mais rigor. Austyn e a gerente de projetos, a bióloga brasileira Miriam Mendes, descobriram aos poucos como fazer com que equipes que antes mal se viam começassem a compartilhar equipamentos, dúvidas, esperanças e descobertas. Uma das estratégias é valorizar o conhecimento tácito – detalhes das técnicas de trabalho que não entram nos estudos publicados em revistas científicas, mas que economizam tempo e evitam erros. Os pesquisadores viram que era melhor aprender em uma semana em outro laboratório uma técnica a que chegariam sozinhos em meses. Austyn e Miriam investem em muita conversa, já que o dinheiro é curto. Financiada pela Comunidade Européia, a rede conta com um orçamento de € 7,6 milhões por cinco anos – ou € 1,5 milhão (cerca de R$ 4,5 milhões) por ano. Cada grupo recebe o suficiente apenas para cobrir despesas de viagens e parte dos reagentes usados nos experimentos. “Não damos dinheiro para pesquisa, mas tentamos reduzir os custos da pesquisa aproximando os grupos e fazendo a informação fluir mais facilmente”, diz Miriam. Formada pela USP, ela trabalhara no Projeto Genoma Humano na Inglaterra e à frente de um levantamento sobre as razões de sucesso ou fracasso na transferência de tecnologia entre universidades e empresas farmacêuticas norte-americanas e britânicas. Chegou então à conclusão de que 48
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muitas vezes é a falta de comunicação – e não de dinheiro – o maior gargalo da produção científica. Tim Evans, diretor-geral assistente para informação, evidência e pesquisa da Organização Mundial da Saúde, concorda. Segundo ele, já existe informação suficiente para enfrentar as doenças infecciosas em países em desenvolvimen-
anual da Escola de Pós-Graduandos (Graduate School), uma espécie de curso de inverno criado por Mark Suter, pesquisador da Universidade de Zurique e parceiro da DC-Thera.“É muito útil”, avalia Lyris, que saiu de St. Moritz com o plano de um experimento a ser realizado com colegas da Inglaterra.“Os vínculos pessoais que fortalecem a rede são
Em ação: células dendríticas (com ramificações semelhantes a véus) ativando linfócitos (células redondas menores)
to:“As pessoas estão se afogando em dados”. A seu ver, as doenças se propagam, entre outras razões, porque a informação sobe para os níveis mais altos da hierarquia, mas raramente desce para os formuladores de políticas públicas e os cidadãos comuns. “Se as perguntas de cada grupo fossem mais complementares talvez a eficiência das redes fosse maior, pois os resultados se somariam mais facilmente”, diz Lyris Godoy, bióloga brasileira que fez o doutorado no Centro de Terapia Celular em Ribeirão Preto e desde julho de 2005 estuda proteínas no Instituto Max Planck de Bioquímica, em Martinsried, na Alemanha. Em julho de 2006 Lyris foi a St. Moritz, uma estação de esqui na Suíça, para esquiar e para contar sobre seu trabalho a pesquisadores mais experientes, que ofereceram a ela e a outros pós-graduandos sugestões sobre como avançar mais rapidamente. Era o segundo encontro
mais consistentes quando nascem de problemas reais, de baixo para cima”, observa Miriam. Outra forma de aproximar os grupos são as quatro plataformas tecnológicas – equipes ou instalações que podem atender outros grupos com serviços, palpites ou cursos em genômica, imagens de células, informática e produção de células para os testes em seres humanos. Em uma dessas plataformas, no Instituto Curie, em Paris, o biólogo argentino Sebastian Amigorena registrou os movimentos das células dendríticas em tecidos de camundongos ao vivo e em tempo real, por meio de microscopia e de ressonância magnética nuclear. Ver como as células se deslocam pelo organismo ajuda a interpretar os resultados dos experimentos em animais, principalmente quando os resultados se somam: um dos grupos da Itália, por exemplo, deve listar os milhares de ge-
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nes associados à diferenciação e regulação das células dendríticas até o final do ano.“Podemos agora trabalhar para associar os genes com as respostas das células”, diz Austyn. Dessas pesquisas emergem também estratégias de ação, para, por exemplo, bloquear um gene cuja ação atrapalhe o funcionamento das células dendríticas. Encontradas em quase todos os tecidos, as células dendríticas atuam como apresentadoras de antígenos. Encontram e digerem partes de tumores, de microorganismos pequenos, como vírus e bactérias, ou maiores, como vermes. Depois algumas proteínas que permanecem aderidas na superfície das células dendríticas servem para ativar outras células de defesa, como os linfócitos T e B. Os tumores bloqueiam essa comunicação inibindo o amadurecimento das células dendríticas. Não só os tumores. O protozoário causador da malária também bloqueia o desenvolvimento dessas células, de acordo com um estudo de Austyn e de outros pesquisadores da Universidade de Oxford publicado em 1999 na Nature. O trabalho nos hospitais procura justamente evitar essas perdas de células essenciais para a defesa do organismo. Um aparelho semelhante ao que filtra o sangue de quem tem rins deficientes retira as células do sangue conhecidas como monócitos das pessoas com câncer ou doenças infecciosas como Aids. Em uma solução com proteínas e estimuladores de crescimento, os monócitos originam as células dendríticas. Cinco ou seis dias depois, essa solução recebe partes de tumores, também extraídos das próprias pessoas a serem tratadas, e outros agentes que fazem as células dendríticas amadurecerem e se tonarem eficazes para estimular o sistema imune. Por fim, já maduras e capazes de reconhecer os tumores, as células dendríticas voltam ao organismo dos pacientes para coordenar a luta contra o câncer ou doenças infecciosas. Essa estratégia é trabalhosa, mas promissora. Frank Nestlé, pesquisador da Universidade de Zurique e parceiro associado da DC-Thera, relatou em 1998 na Nature Medicine os resultados de um estudo piloto com 16 portadores de câncer de pele em estágio avançado; cinco apresentaram regressão de metástases após receberem injeções de células dendríticas
retiradas do próprio sangue. Outros estudos não terminaram com resultados tão positivos, mas essa técnica, chamada de vacina autóloga por ser feita a partir do sangue da própria pessoa tratada, firmou-se com um enfoque promissor e seguro em 1999. Foi quando o grupo de Schuler, que atualmente coordena os testes clínicos, publicou resultados mais animadores, também em câncer de pele. Incertezas - Pode estar aí uma alterna-
tiva para tratar outros tipos de câncer, doenças auto-imunes, alergias ou rejeição de transplante, mas ainda há muitos desafios. “Como faltam procedimentos de trabalho padronizados”, afirma Chammas,“ainda não temos como avaliar a eficácia do uso de modo independente”. Austyn encoraja os grupos a usar os mesmos critérios nos testes em seres humanos não só para poderem comparar os resultados obtidos em diferentes países. Essa é também uma forma de a entidade que aprova novos tratamentos na Europa, a Emea, liberar mais rapidamente uma licença válida para todos os países europeus. Outro problema é que, por ser individualizado, esse tratamento ainda é caro. Mesmo assim, ainda é mais barato que a quimioterapia e a internação em unidades de tratamento intensivo, assegura o médico José Alexandre Barbuto, pesquisador do Instituto de Ciências Biomédicas da USP.
À frente de um dos poucos núcleos de pesquisa básica e clínica em células dendríticas no Brasil (há outros em São Paulo, no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul), Barbuto foi um dos coordenadores de um dos únicos estudos clínicos com células dendríticas no país. De acordo com os resultados, publicados em 2004 na Cancer Immunology and Immunotherapy, os tumores pararam de crescer em 71% das 35 pessoas tratadas (com tumores de pele ou de rim em estágio avançado).“Estamos no mesmo pé que outros países”, diz ele. Também por aqui faltam métodos de trabalho padronizados e sobram incertezas sobre os mecanismos de aprovação pelas autoridades do governo. Não falta, porém, ousadia. Nos testes que resultaram no artigo de 2004, Barbuto deixou de lado alguns preceitos da imunologia e fundiu células dendríticas retiradas de doadores saudáveis com células de tumores das pessoas a serem tratadas – normalmente células e tumores são extraídos da mesma pessoa. A eventual rejeição, ele imaginou, poderia servir para estimular ainda mais as outras células de defesa. Os resultados o animaram a trabalhar para iniciar o mais breve possível testes em mais pessoas e mais doenças. Por enquanto, reina o otimismo. ■ DE
C ARLOS F IORAVANTI , O XFORD E DE S ÃO PAULO
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> Estudo mostra as fases do sono em que o cérebro armazena experiências e lembranças
F ABRÍCIO M ARQUES
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s memórias peregrinam por regiões do cérebro até se converterem em lembranças ou aprendizados genuínos.Primeiro,as informações alojam-se provisoriamente no hipocampo,região cujo nome se deve à semelhança com a forma de um cavalo-marinho,migrando depois para a camada mais externa,o córtex,num processo de consolidação que acontece durante o sono.O fenômeno da propagação das memórias é conhecido desde a década de 1950,mas,pela primeira vez,conseguiu-se esquadrinhar as atividades do cérebro envolvidas nesse processo.Um artigo cujo autor principal é o neurocientista brasiliense Sidarta Ribeiro,36 anos,diretor científico do Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra (IINN-ELS),indica que a construção da memória acontece numa seqüência específica do ciclo do sono:a fase de ondas lentas,em que se dorme profundamente, e a subseqüente fase REM (movimento rápido dos olhos,na sigla em inglês),aquela em que a atividade onírica é intensa. Sidarta analisou 28 ciclos de sono de 15 ratos de laboratório submetidos durante 20 minutos ao contato com objetos que nunca haviam visto antes.Durante o experimento,o pesquisador monitorou a atividade de centenas de neurônios do hipocampo e de duas áreasdo córtex.Na fase de ondas lentas,observouse de forma mais intensa uma espécie de eco dos padrõesde impulsos elétricos observados nos primeiros contatos com os objetos.O fenômeno de reverberação das memórias corresponde à ativação da rede de neu-
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rônios que guarda a representação daquela experiência.Essa reverberação,mostra o estudo,dura horas no córtex, mas é bem mais rápida no hipocampo,numa evidência eletrofisiológicada peregrinação da memória dentro do cérebro.Já durante a fase REM foi registrado um aumento no córtex mas não no hipocampo na expressão dos genes Arc e Zif-268,relacionados à consolidação de memórias.O estudo liderado por Sidarta está sendo publicado na edição de novembro da revista Frontiers in Neuroscience. “A ativação dos genes durante o sono REM equivale a uma ordem para que o córtex armazene aquela informação que acabou de reverberar,consolidando a memória.A cada ciclo de sono, a memória vai ficando mais ancorada no córtex”,diz Sidarta.“Estamos mostrando,pela primeira vez,evidências moleculares e eletrofisiológicas de como fases específicas do sono participam do processo de migração de memórias.” O interesse de Sidarta Ribeiro pelo papel do sono na consolidação das memórias
JAIME PRADES
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surgiu num lance acidental. Em 1995, o biólogo graduado na Universidade de Brasília e mestre em biofísica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro chegou a Nova York para fazer doutorado em neurobiologia cognitiva molecular na Universidade Rockefeller. Enfrentou um choque cultural que não esperava.“Eu estava seis meses atrasado em relação à minha turma e constatei que me faltava uma base teórica para acompanhá-la. Resolvi usar todo o tempo que podia para ficar no laboratório e me atualizar, mas sentia muito sono e acabava indo dormir em casa. Cheguei a dormir 16 horas por dia. Isso durou uns dois meses e aí eu consegui me adaptar, acompanhar a turma e seguir em frente”, ele lembra. Intuitivamente, concluiu que o sono teve um papel na difícil adaptação, mas, quando foi pesquisar o assunto, descobriu que era pouco estudado.“Há um livro de referência, chamado Princípios da neurociência, segundo o qual pouco se sabia sobre a
função cognitiva do sono e dos sonhos. Isso despertou minha curiosidade.” No período em que permaneceu em Nova York, de 1995 a 2000, Sidarta publicou uma série de artigos sobre a comunicação vocal de aves, linha de pesquisa de seu grupo, mas também investiu em paralelo em seus estudos sobre a consolidação de memórias. Num artigo de capa publicado em 1999 pela revista Learning and Memory, Sidarta e seus colegas da Universidade Rockefeller relataram a descoberta da expressão de um gene durante o sono REM vinculado à consolidação da memória. Em 2000, Sidarta resolveu direcionar sua carreira para o estudo do sono ao transferir-se para a Universidade Duke, onde faria pósdoutoramento, sob a orientação do brasileiro Miguel Nicolelis, e aperfeiçoaria seus conhecimentos no uso de eletrodos para monitorar de forma precisa e simultânea o funcionamento de centenas de neurônios (graças a essa tecnologia, Miguel Nicole-
lis conseguiu fazer com que macacos mexessem um braço mecânico apenas com os impulsos transmitidos por seu cérebro). Teoria – Em 2004, em ou-
tro artigo de capa da Learning and Memory, Sidarta formulou uma teoria que explica por que o hipocampo é o abrigo provisório das memórias, enquanto ao córtex cabe o papel de armazém definitivo. O fenômeno molecular e eletrofisiológico que o sono deflagra produz uma reverberação de curto espaço de tempo no hipocampo, enquanto o córtex continua passando por ondas de plasticidade neural. O artigo que está sendo publicado na Frontiers in Neuroscience pôs à prova, pela primeira vez, essa teoria. Hoje um dos mais reconhecidos pesquisadores do mundo em sua área, Sidarta Ribeiro também propõe uma revisão da visão excludente que os cientistas têm da psicanálise (embora conceitos como a simbologia dos sonhos ainda aguardem corroboração científica) ao mos-
trar que fazem sentido pelo menos duas idéias defendidas pelas teorias freudiana e junguiana. Uma delas é a evidência de que os sonhos quase sempre se relacionam a experiências do dia anterior. Outro ponto é a recuperação durante os sonhos apenas dos episódios mais marcantes do dia. A reverberação do aprendizado para a construção das memórias ajuda a explicar as duas coisas. Há dois anos, Sidarta trocou Durham, na Carolina do Norte, que abriga a Universidade Duke, por Natal, no Rio Grande do Norte, onde, sob a liderança de Miguel Nicolelis, foi criado o IINNELS. A idéia do instituto é fazer ciência de ponta aliada a projetos educacionais e sociais com estudantes carentes. Sidarta, que ajudou a conceber o projeto, tornouse diretor científico do instituto. “Conseguimos reunir condições para fazer pesquisa avançada em Natal. Em todos os aspectos, o trabalho dá mais prazer do que nos Estados Unidos, pois a liberdade é maior”, afirma. ■
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> EVOLUÇÃO
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montanha Soerguimento dos Andes explica a diversidade de papagaios na América do Sul M ARIA G UIMARÃES
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e fosse possível apontar uma câmera de vídeo para o norte da cordilheira dos Andes e mostrar em poucos minutos o que se passou em 6 milhões de anos, o filme mostraria as montanhas subindo às alturas e levando consigo alguns dos diversos papagaios que se espalhavam por todo o norte do continente. Nas cenas correspondentes aos últimos 2 milhões de anos, as coloridas aves, já isoladas de seus parentes que ficaram nas terras baixas, começariam a acumular diferenças entre si até originarem espécies distintas. Essa versão da história, que contraria a hipótese mais aceita, é resultado do trabalho da bióloga Camila Ribas, do Laboratório de Genética e Evolução Molecular de Aves da Universidade de São Paulo (USP). Ela reconstruiu a história evolutiva dos papagaios do gênero Pionus com ajuda da biogeografia, especialidade que analisa a distribuição geográfica da diversidade biológica. Esse tipo de enfoque tem raízes profundas: foram padrões biogeográficos os principais responsáveis por levar os britânicos Charles Darwin e Alfred Russel Wallace a elaborar a teoria da evolução. Passado um século e meio das observações de Darwin e Wallace, a biogeografia hoje conta com novas técnicas, como análise de material genético, que ajudaram a contar a história dos Pionus, ou maitacas, publicada este mês na revista britânica Proceedings of the Royal Society, B. Camila considerava o trabalho modesto, até que chegou ao Museu Americano de História Nacional, em Nova York, para um pós-doutorado e mostrou os dados a seu supervisor Joel Cracraft. O experiente especialista em evolução de aves logo viu o valor daquele material para ajudar a elucidar a relação entre as histórias geológica e evolutiva da América do Sul e instou a pesquisadora brasileira a ampliar a amostragem e aprofundar as análises. Mais fácil falar do que fazer. Os papagaios andinos são raros e pouco estudados, e difíceis de capturar. Para conseguir amostras de sangue ou outro tecido, de onde se obtém material genético, é preciso encontrar filhotes no ninho ou aba-
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ter adultos a tiros. Camila foi então atrás de espécimes de museu e percebeu que estava no lugar certo: a coleção do museu nova-iorquino está entre as mais completas do mundo. Ela abriga o único exemplar preservado de Pionus ponsi, uma maitaca de penas verde-escuras, um pouco azuladas na garganta e amareladas nas costas, coletada em 1949 no noroeste da Venezuela. Lá estão também duas das raras peles de Pionus saturatus, com seu pescoço azul-turquesa, obtidas na Colômbia em 1899. E o laboratório onde os pesquisadores do museu realizam análises genéticas reúne condições e conhecimento que o põem entre os melhores do mundo para extrair material genético de espécimes antigos. O material genético retirado das amostras de museus de zoologia norteamericanos e brasileiros serviu para construir a árvore genealógica – ou filogenia –, que revela o parentesco entre as espécies de Pionus. Camila aplicou a essa genealogia um método para estimar quando surgiram as diferentes espécies. É como se a quantidade de diferenças entre as seqüências de DNA das duas espécies, representada pelo comprimento de cada ramo da árvore, permitisse calcular quando nasceram o avô, o bisavô e o tataravô de uma pessoa viva hoje.A idéia de estimar datas de divergência a partir do comprimento dos ramos de uma árvore filogenética é conhecida como relógio
molecular, mas o alto grau de imprecisão faz com que o método nem sempre seja bem aceito pelos pesquisadores. Por isso Camila e seus colaboradores usaram uma sucessão de análises. O primeiro passo foi estimar outra vez os tamanhos dos ramos das árvores filogenéticas, de modo que refletissem o tempo evolutivo – a representação gráfica da filogenia inclui um eixo graduado, como uma escala em um mapa, que dá uma idéia de quando ocorreu cada evento evolutivo. A equipe comparou dois métodos distintos que geraram resultados bem parecidos, o que tornou as estimativas mais confiáveis. No passo seguinte era preciso calibrar a árvore: dar a algum ponto dela uma data conhecida, a partir da qual seria possível inferir as outras.“Para determinar essa data são necessários fósseis com idades conhecidas ou eventos geológicos que possam ser associados a alguma ramificação da árvore”, explica Camila. “Mas existem muito poucos fósseis de psitacídeos, a família que inclui papagaios, araras e periquitos.” O único evento geológico que ela tinha segurança em associar à história dos papagaios aconteceu há cerca de 85 milhões de anos, muito antes do surgimento do gênero Pionus: a separação entre a Nova Zelândia e a Antártida deixou de um lado a linhagem que levou ao gênero Nestor, exclusivo da Nova Zelândia, e de outro a fonte de todos
os outros psitacídeos. A partir dessa data os pesquisadores estimaram a origem dos Pionus em cerca de 6,9 milhões de anos, data que serviu como escala para medir o tempo na genealogia do gênero. A inovadora ginástica metodológica deu certo.“Os revisores que avaliaram o artigo aprovaram a publicação sem questionar o método”, comemora a pesquisadora.“As estimativas de tempo têm uma margem de erro grande”, explica, “mas temos confiança nos tempos relativos”. Ou seja, os Pionus podem não ter surgido há exatamente 6,9 milhões de anos, mas ela sabe a ordem dos eventos ao longo da genealogia. Altas diferenças - O relógio molecu-
lar mostra que, ao erguer-se, a cordilheira dos Andes fragmentou a distribuição de espécies de maitacas, que ao longo de alguns milhões de anos acumularam diferenças e deram origem a novas variedades. Se a estimativa estiver correta, as três espécies que existiam por volta de 6 milhões de anos atrás, quando a porção norte dos Andes tinha 30% da estatura que atinge hoje, em 4 milhões de anos passaram a ser dez linhagens diferentes: seis no alto das montanhas e quatro nas terras baixas, que abarcam praticamente todo o resto da América do Sul. Não aconteceu de um dia para o outro, mas movimentos da crosta terrestre erigiram uma imensa cadeia montanhoPESQUISA FAPESP 140
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Parentes distantes: Pionus corallinus (esq.), dos Andes, e o amazônico P. menstruus
sa onde antes havia uma planície de floresta. Surgiram assim grupos isolados de plantas e animais, como as maitacas, e entraram em jogo mecanismos locais que aumentaram a diversidade biológica. Nas montanhas os ciclos de alterações climáticas eram extremos: geleiras aos poucos engoliram a floresta e reduziram as áreas habitáveis pelas maitacas a trechos esparsos; depois derreteram permitindo às aves se espalharem outra vez. Esses processos se repetiram várias vezes e, no último milhão de anos, deram origem à maior parte das maitacas andinas. Hoje são dez espécies, de acordo com o trabalho de Camila. O relevo acidentado e os ciclos glaciais dão a muitos a impressão de que os processos evolutivos são mais complexos nos Andes do que nas terras baixas. Camila dá o exemplo do canadense Jason Weir, que no ano passado publicou um artigo na prestigiosa revista Evolution no qual conclui que as espécies mais recentes de aves sul-americanas estão no alto das montanhas.“O problema é que ele usou uma classificação que não representa a diversidade real”, retruca a brasileira. As nove espécies de maita54
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cas que vivem nas terras baixas são, de acordo com a datação de Camila, igualmente recentes: a maior parte também surgiu no último milhão de anos. Porém uma dificuldade para esse tipo de estudo é o pouco que se sabe sobre a biodiversidade brasileira: quantas espécies existem, qual o parentesco entre elas e onde ocorrem. No trabalho com os Pionus ela tratou como espécies separadas várias unidades que são consideradas subespécies pela taxonomia vigente. “São animais bem diferentes e vivem em áreas geograficamente bem separadas”, justifica. Agora especialistas têm que decidir quantas são as espécies de maitacas: as nove reconhecidas hoje, as 19 que Camila e seus co-autores consideram distintas ou um número intermediário. “O Comitê Brasileiro de Registros Ornitológicos já pediu para analisar o artigo”, conta a bióloga. No Brasil ainda é impossível responder a perguntas biológicas mais elaboradas sem antes ordenar a classificação das espécies, segundo Camila, que teve de se tornar também sistemata: especialista no ramo da biologia que se ocupa em classificar os seres vivos de acordo com o parentesco entre eles. E tomou gosto pela coisa. Ao longo de seu doutorado, que terminou em 2004 sob orientação de Cristina Miyaki, na USP, Camila pôs ordem na classificação de vários gêneros de psitacídeos. Examinou as nove espécies normalmente acomodadas no gênero Pionopsitta, que se distribuem pelo norte da América do Sul, e descobriu que a classificação não correspondia à realidade. É como se a árvore genealógica de uma família incluísse primos de segundo grau, mas desconsiderasse os de primeiro grau. Uma reforma era necessária. No artigo publicado em 2005 no Journal of Biogeography, Camila ressuscitou o gênero Gypopsitta, que caíra em desuso, e nele
alojou oito espécies desses papagaios de cor verde-viva e cabeças ora amarelas, ora vermelhas, ora verdes com manchas coloridas, em geral conhecidos como curicas. Em Pionopsitta sobrou uma única espécie – pileata, o cuiú-cuiú ou caturra, com sua máscara vermelha. A bióloga recuperou também a história de Gypopsitta que, como as maitacas, tem o levantamento dos Andes como ponto crucial de sua história evolutiva. O grupo que ficou a oeste da cadeia montanhosa gerou três espécies, que hoje vivem na América Central, na Colômbia e no Equador. Em seguida eventos geológicos, provavelmente ligados aos movimentos da crosta terrestre que produziram a cordilheira dos Andes, separaram as curicas amazônicas que deram origem a duas espécies a oeste – G. barrabandi, ao longo da bacia amazônica até o Peru, e G. pyrilia, nas Guianas. Os representantes de Gypopsitta que ficaram na metade leste da Amazônia se dividiram em três espécies, que podem ter se diferenciado como resultado de flutuações no nível do mar e glaciações. Florestas do passado – O mesmo en-
foque pode ser valioso para revelar as relações passadas e atuais entre os ecossistemas brasileiros. Parte da história biogeográfica do Brasil está gravada nos periquitos Pyrrhura, ou tiribas, outro psitacídeo que Camila estudou durante seu doutorado. Assim como as maitacas, diferentes espécies de tiribas estão nos Andes, na Amazônia, no Cerrado, na Caatinga e na Mata Atlântica. Ao estudar o parentesco entre as espécies, Camila concluiu que o ancestral desses periqui-
O PROJETO Reconstrução da história evolutiva e estudos filogeográficos da avifauna neotropical utilizando marcadores moleculares MODALIDADE
Projeto Temático COORDENADORA
CRISTINA YUMI MIYAKI – USP INVESTIMENTO
R$ 507.359,46 (FAPESP)
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tos deu origem a um ramo que levou a Pyrrhura cruentata, que hoje vive na Mata Atlântica, e outro que se diversificou em todas as outras espécies. Esta segunda linhagem, por sua vez, se ramificou e deu origem a espécies que hoje ocupam os diversos hábitats sul-americanos. Ao contrário do que é mais comum observar, as espécies de Pyrrhura que hoje compartilham um mesmo ambiente não são parentes próximas; elas são representantes de linhagens que divergiram no passado distante da história dos tiribas. Isso mostra, por exemplo, que nem todas as espécies que hoje estão na Mata Atlântica têm ali suas origens evolutivas. O trabalho de Camila, publicado em 2006 na revista especializada The Auk, sugere que a fauna da Mata Atlântica é composta por espécies cujos ancestrais já estavam ali e outras de origens amazônicas. Estudos sobre outros animais dizem o mesmo: a Mata Atlântica e a Amazônia nem sempre foram isoladas como são hoje. “Em al-
gum momento recente, por volta de 1 milhão de anos atrás, parece ter havido comunicação entre a Amazônia e a Mata Atlântica por corredores de floresta que existiam onde estão o Cerrado e a Caatinga”, resume Camila. Além disso, a pesquisadora mostrou que na Mata Atlântica alguns grupos são muito recentes e outros muito antigos. Os grupos antigos aparecem nas filogenias como ramos longos sem ramificações – ou seja, não têm espécies-irmãs de origem relativamente recente. “Isso sugere que podem ter havido muitas extinções por ali, ou menos oportunidades para diversificação”, explica. Mas a presença de ramos longos – linhagens que existem na Mata Atlântica há milhões de anos – mostra que essa floresta tem permanecido um ambiente estável há mais tempo do que a Amazônia, onde variações ambientais bastante recentes fizeram com que a maioria dos psitacídeos que ali vivem se diversificassem nos últimos 1 ou 2 milhões de
ILUSTRAÇÕES WILLIAM COOPER, PARROTS OF THE WORLD, 1973
Em sentido horário: P. seniloides, das terras baixas, e chalcopterus, senilis e tumultuosus, dos Andes
anos. Esse processo deu origem a espécies consideradas jovens. O próximo passo para Camila é ir além dos psitacídeos e estudar aves que contêm histórias diferentes e ajudem a compreender melhor como se formaram as florestas brasileiras e a biodiversidade que elas contêm. Ela começou pela Amazônia e escolheu aves que mostram a importância de considerar as particularidades ecológicas de cada espécie. O jacamim, ou Psophia, é uma ave terrestre, de rabo curto e penas escuras, restrita às terras firmes amazônicas – não existe em áreas alagadas. Essa especialização parece limitar os movimentos dos jacamins, o que não aconteceria com um papagaio capaz de voar por longas distâncias. O resultado é que regiões amazônicas diferentes abrigam espécies distintas de jacamins, cuja diversificação é recente. Resta ainda explicar o que isolou linhagens e deu origem às espécies diferentes. Já os arapaçus, aves de penas castanhas que com seus bicos longos alcançam insetos que vivem debaixo da casca das árvores, têm hábitos ecológicos diferentes conforme a espécie. O arapaçu Dendrocincla merula, como os jacamins, está mais restrito a zonas de terra firme. Camila agora participa de um estudo coordenado por Alexandre Aleixo, do Museu Paraense Emílio Goeldi, em colaboração com pesquisadores da Universidade Federal do Pará, que já mostrou que existem linhagens separadas pelos grandes rios amazônicos. O mesmo parece não acontecer com Dendrocincla fuliginosa, mais flexível em termos de hábitat: uma análise preliminar mostra que a distribuição das linhagens é mais ampla e abarca grandes áreas da floresta. Falta muito para entender como as características passadas e atuais – rios, montanhas, movimentos geológicos e alterações climáticas, entre outras – da Amazônia moldaram as espécies animais e vegetais que lá vivem. A diversidade biológica brasileira guarda marcas que podem revelar mistérios da formação da América do Sul, mas biólogos e geólogos ainda têm muito trabalho pela frente para conseguir ler essa história, importante não só para entender como se formou esta parte do mundo mas também para delinear estratégias de conservação da riquíssima e única fauna sul-americana. ■ PESQUISA FAPESP 140
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esde que trocou a vida corrida das grandes cidades pela tranqüilidade do campo seis anos atrás, o publicitário paranaense Ruy Ojeda não se cansa de falar dos encantos da terra que adotou como sua: a pequena Ponte Branca, no sudeste do estado do Mato Grosso, já na divisa com Goiás. O que o seduziu não foi o sossego desse município de menos de 2 mil habitantes nem a beleza natural da região, onde as pastagens gradualmente substituíram as árvores de tronco retorcido e casca espessa do Cerrado. A razão do encanto é um fenômeno que ocorreu muito tempo atrás e ainda hoje Ojeda não compreende bem: o surgimento de uma imensa cratera formada pelo impacto de um meteorito que caiu há 245 milhões de anos perto de onde hoje fica Ponte Branca e o município vizinho de Araguainha. Ojeda soube da cratera, cuja formação começa agora a ser mais bem conhecida a partir de estudos recentes de geólogos e geofísicos de São Paulo e Campinas, em julho de 2002, quando acompanhava o trabalho de campo da
equipe de Claudinei Gouveia de Oliveira, da Universidade de Brasília. Maravilhado com a possibilidade de ver de perto essa cicatriz de um passado distante, Ojeda não perdeu tempo. Subiu a serra da Arnica – o ponto mais alto da região, a 16 quilômetros de Ponte Branca – e olhou em todas as direções, na esperança de encontrar um imenso buraco. Não viu nada que lembrasse uma cratera. Mas não desistiu de procurar e saiu pelas fazendas da região pedindo informações sobre o tal buraco. Só conseguiu encontrar a cratera, a maior da América do Sul provocada pela queda de um corpo celeste, quando aprendeu a decifrar as informações dos documentos científicos. “Não imaginava que vivíamos todos dentro dela”, conta. Assim como ele, a maior parte dos 2 mil moradores de Ponte Branca e do 1,3 mil de Araguainha não sabe que as duas cidades nasceram no ventre de uma cratera aberta por um meteorito. Muitos nem acreditam que ela de fato exista. Dá para entender por quê. A cratera é tão extensa – tem 40 quilômetros de diâmetro – que da serra da Arnica, seu ponto central, não é possível enxergar os mor-
ros que formam sua borda. Só para ter uma idéia de sua dimensão, uma cratera como a de Araguainha abarcaria completamente a Região Metropolitana de São Paulo, a maior metrópole sulamericana, formada pela capital paulista e 39 municípios vizinhos. Não é só quem mora por lá que tem dificuldade em perceber que as cidades estão no fundo de uma cratera: a primeira perto do centro, a região diretamente atingida pelo meteorito; e a segunda mais próxima à borda, onde extensas cadeias de morros semicirculares se ergueram em conseqüência do choque. Também os cientistas demoraram a notar a cratera. Sua estrutura em forma de um anel com 40 quilômetros de diâmetro foi inicialmente identificada na década de 1960 em estudos geológicos feitos pela Petrobras. Mas os indícios mais fortes de que se tratava mesmo de uma cratera só apareceram mais tarde. Em 1973, ao analisar as primeiras imagens do Brasil feitas pelo satélite norte-americano Landsat, o geofísico Robert Dietz e o geólogo Bevan French sugeriram em um artigo na Nature que a região de Araguainha estava no inte-
Após o choque: núcleo rochoso que estava a 2 quilômetros de profundidade aflorou e originou a serra da Arnica
ELDER YOKOYAMA/IAG-USP
Há 245 milhões de anos meteorito abriu cratera de 40 quilômetros de diâmetro na atual divisa entre Mato Grosso e Goiás | R ICARD O Z ORZET TO
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Ecos de uma colisão O meteorito que caiu no ponto verde, dentro do círculo central rosa, modificou o relevo em uma região com 40 quilômetros de diâmetro (círculo branco) Ponte Branca Margem da cratera Rio Araguaia
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rior de uma depressão que poderia ser uma cratera de impacto aberta por uma rocha vinda do espaço, estrutura a que os geólogos dão o nome de astroblema. Mas o formato circular observado do espaço poderia representar também os restos de um vulcão extinto, coberto por sedimentos, dúvida que intrigou os pesquisadores por anos até que as imagens estudadas por Dietz e French chamaram a atenção de um geólogo brasileiro recém-formado, Alvaro Crósta, que começava seu mestrado em sensoriamento remoto no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Após dias de viagem por estradas de terra esburacadas, em 1978 Crósta foi a Araguainha e Ponte Branca e percorreu a região, analisando os diferentes tipos de rocha que afloravam na paisagem. Nessa expedição encontrou os sinais característicos de uma cratera formada por impacto de um meteorito, entre eles fragmentos de rochas sedimentares que lembram a ponta de uma árvore de Natal. São os chamados cones de estilhaçamento ou shatter cones, que Crósta descreveu em um artigo publicado em 1981 na Revis58
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ta Brasileira de Geociências, simultaneamente à publicação do trabalho da geóloga alemã Barbara Theilen Willige, que havia chegado ao mesmo resultado de modo independente e estimado a idade da cratera em 285 milhões de anos. Crósta analisou rochas que se formaram com a pressão e o calor do impacto e calculou a idade do choque em aproximadamente 300 milhões de anos.“Mas na época não havia técnicas de datação adequadas e eu já supunha que pudesse ser mais recente”, comenta o geólogo, atualmente professor do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Datações posteriores feitas com técnicas mais precisas definiram em 245 milhões de anos a queda do meteorito na região.
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aquela época a Terra era bem diferente da que conhecemos hoje. O clima era mais quente e seco e as placas tectônicas, imensos blocos rochosos que formam os continentes atuais, ainda se encontravam coladas umas às outras, fundidos em um continente único: a Pangéia. Esse supercontinente que se
estendia no sentido norte-sul dividia o globo ao meio e era banhado a leste por um mar chamado Tétis e a oeste pelo Pantalassa, um imenso oceano que cobria quase toda a Terra. O que mais chama a atenção é que justamente nesse período ocorreu a maior das cinco extinções em massa a devastar a vida no planeta. Fósseis encontrados em diferentes regiões do mundo permitem estimar que 96% das espécies que povoavam os oceanos e 70% das que habitavam terra firme tenham sido eliminadas há 250 milhões de anos, data que marca a transição do período geológico Permiano para o Triássico. Há até mesmo quem acredite que essa extinção tenha favorecido a soberania dos dinossauros, que surgiriam tempos mais tarde. É pouco provável que o meteorito de Araguainha tenha sido o único responsável pela maior extinção da vida do planeta. Mas alguma contribuição ele pode ter dado, uma vez que o choque liberou uma quantidade de energia tão grande que causou em toda a região mais estragos do que se imaginava, revela um extenso trabalho realizado pela
CARLOS ROBERTO DE SOUZA FILHO/UNICAMP
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equipe de Yára Marangoni, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP). Em 2005 Yára reuniu especialistas de diferentes áreas da USP e da Unicamp e, em viagens de carro que duram dois dias a partir de São Paulo, os pesquisadores decidiram visitar a região, com o objetivo de investigar como o meteorito havia afetado as camadas mais profundas da crosta terrestre, que hoje se encontram expostas no centro da cratera. Associando técnicas distintas, esse trabalho vem permitindo redimensionar a intensidade do choque e a deformação provocada abaixo da superfície. Após quase dois anos de estudos e três expedições a Araguainha, a equipe de Yára já tem uma idéia mais precisa de como era a região antes da queda do meteorito e da profundidade dessa ferida aberta na pele do planeta. Também consegue estimar melhor o quanto já cicatrizou e foi apagado pelo vento e pela chuva. Quando um bloco rochoso com 4 a 6 quilômetros de diâmetro despencou dos céus a milhares de quilômetros por segundo perto de onde hoje é Araguainha, a região era uma vasta restinga, submersa alguns metros em água salgada. A violência do impacto afetou imediatamente a região compreendida por um círculo de uns 30 quilômetros de diâmetro: a energia do choque transformou em vapor a água que havia ali e cavou um buraco com quase 2 quilômetros de profundidade, afirma o grupo de Yára em um artigo publicado em outubro no Geological Society of America Bulletin. O ponto diretamente atingido pelo meteorito foi submetido a altíssimas pressões. Mas não por muito tempo. Assim como uma pessoa que cai em uma cama elástica é lançada de volta ao ar, o alívio da pressão no centro do impacto fez brotar à superfície um gigantesco bloco de granito, rocha muito dura e antiga, que estava a dois quilômetros de profundidade – muito distante do centro da Terra, visitado pelos exploradores do livro de Júlio Verne. Esse núcleo com quase 5 quilômetros de diâmetro é parte da zona elevada no centro da cratera e inclui a atual serra da Arnica, a mesma que Ojeda visitou anos atrás à procura da cratera, também conhecida como domo de Araguainha.
Como se descobriu isso? É simples. Os geólogos Cristiano Lana, Ricardo Trindade e Elder Yokoyama analisaram as rochas que formam o relevo da região e constataram que camadas que deveriam estar a centenas de metros de profundidade apareciam ao nível do solo, como se as entranhas da Terra tivessem sido expostas. “A pressão do impacto fundiu parte dos sedimentos e após resfriar fez surgir no centro da cratera uma camada de 100 metros de espessura de uma rocha que contém fragmentos microscópicos de vidro”, conta Trindade.
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om um equipamento que mede variações na aceleração da gravidade – e permite estimar a densidade das rochas de uma região –, Yára e Marcos Alberto Vasconcelos avaliaram 300 pontos no interior da cratera. Notaram que a energia liberada no choque gerou danos muito abaixo da atual superfície. “A quase 2 quilômetros de profundidade é possível detectar os efeitos desse impacto no granito, que trincou e se tornou muito menos denso do que geralmente é”, conta a geofísica. Os efeitos do choque se propagaram para muito além do núcleo e amarrotaram a crosta terrestre. Mapas tridimensionais produzidos a partir de imagens de satélite por Lana e Carlos Roberto Souza Filho, da Unicamp, mostram que círculos concêntricos se formaram em torno do local de impacto, como quando se lança uma pedra em uma bacia com água. Uma primeira cadeia circular de morros de até 500 metros de altura e quilômetros de extensão erigiuse a 12 quilômetros do local de impacto, e uma segunda um pouco mais adiante, de 14 a 18 quilômetros do núcleo.
O PROJETO Caracterização geofísica e petrofísica da estrutura de impacto de Araguainha MODALIDADE
Linha Regular de Auxílio a Pesquisa COORDENADORA
YÁRA REGINA MARANGONI – IAG/USP INVESTIMENTO
R$ 257.847,75 (FAPESP)
Nem tudo, claro, continua igual. “Nesses milhões de anos esses morros perderam de 250 a 350 metros de altitude devido à ação do vento e da chuva”, explica Yára. Apesar desse desgaste natural, os pesquisadores afirmam que a cratera permanece muito parecida com a que se formou logo após o impacto.“É difícil ter acesso a uma cratera com estruturas bem conservadas como a de Araguainha”, diz Trindade. Muitos geólogos acreditam que crateras escavadas por meteoritos tenham sido muito mais comuns do que se pode imaginar. No início da formação do Sistema Solar os planetas mais próximos ao Sol, incluindo a Terra, foram fortemente bombardeados por meteoritos. A diferença por aqui é que as condições climáticas e a movimentação das placas tectônicas apagaram parte dessa história, que permanece gravada nas crateras de Marte ou mesmo da Lua. Como primeiro passo para proteger Araguainha, anos atrás Crósta registrou a cratera na lista da Comissão Brasileira de Sítios Geológicos e Paleobiológicos com os principais sítios geológicos nacionais, candidatos a serem classificados como patrimônio da humanidade pela Unesco. No início deste ano as prefeituras de Ponte Branca e Araguainha e o Ibama assinaram um documento propondo a criação de uma área de proteção ambiental na área da cratera. “Essa é uma forma de a região obter recursos para preservar as estruturas da cratera e adotar iniciativas como painéis explicando o que aconteceu por ali e programas de educação e divulgação nas escolas locais”, afirma Crósta. “Se não transmitirmos esse tipo de informação, há risco de os afloramentos rochosos serem destruídos.” Ruy Ojeda, que até março era secretário de Meio Ambiente e Turismo de Ponte Branca, vê na conservação da cratera uma oportunidade de renascimento econômico para a região, que empobreceu desde o fim dos garimpos de pedras preciosas em meados do século passado. Desde que descobriu a cratera cinco anos atrás, se apaixonou e leu tudo o que pôde a respeito. E decidiu compartilhar com os moradores da região e de outras cidades o conhecimento sobre esse passado distante.“Não meço o tempo para falar sobre esse assunto”, diz Ojeda, que é conhecido como o embaixador do domo de Araguainha. ■ PESQUISA FAPESP 140
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Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org
Notícias ■
Ensino médico
Dificuldades para mudar Apesar do reconhecimento da necessidade de mudanças no ensino médico,a prática docente tem-se mostrado resistente a modificações,de acordo com o trabalho de revisão “Docência no ensino médico:por que é tão difícil mudar?”, de Nilce Maria da Silva Campos Costa,da Universidade Federal de Goiás.O artigo identifica os fatores que limitam mudanças na prática docente em medicina.Entre eles,ressaltam-se a desvalorização das atividades de ensino e a supremacia da pesquisa, a falta de identidade profissional docente,a deficiência na formação pedagógica do professor de medicina,a resistência docente a mudanças e o individualismo dos professores universitários.É necessário estimular o desenvolvimento profissional permanente dos professores de medicina,como instrumento de reelaboração e de transformação desta prática. REVISTA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MÉDICA – V. 31 – Nº 1 – RIO DE JANEIRO – JAN./ABR. 2007 www.revistapesquisa.fapesp.br/scielo140/ensinomedico.htm
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Ambiente
Perda de hábitat As restingas, que são hábitats de dunas e planícies arenosas cobertas por vegetação herbáceoarbustiva e que ocorrem na costa do Brasil,no passado cobriam uma grande extensão da costa do estado do Rio de Janeiro.Mas têm sofrido uma extensiva degradação ao longo dos últimos cinco séculos,de acordo com o artigo “Os remanescentes dos hábitats de restinga na Floresta Atlântica do estado do Rio de Janeiro,Brasil:perda de hábitat e risco de desaparecimento”, de C.F.D.Rocha,H.G.Bergallo,M.Van Sluys, M.A.S.Alves e C.E.Jamel,da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.Utilizando imagens de satélite e mensurações no campo,foram identificados os remanescentes de restinga no estado,registrando os fatores que causam sua de-
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gradação. Dois mosaicos de cenas Landsat 7 (resolução espacial de 15 metros e 30 metros) foram usados para localização e avaliação preliminar do estado de conservação dos remanescentes.Os autores do trabalho identificaram 21 áreas remanescentes de restinga.O maior e menor remanescente de restinga foram Jurubatiba e Itaipu,respectivamente.Também foram achadas 14 fontes de degradação,as mais importantes delas a remoção da vegetação para desenvolvimento imobiliário,o estabelecimento de espécies vegetais exóticas,a alteração do substrato original e a coleta seletiva de espécies vegetais de interesse paisagístico.Em razão da intensa perda de hábitat e ocorrência de espécies endêmicas e ameaçadas de extinção de vertebrados nas restingas, os pesquisadores sugeriram a implementação de novas unidades de conservação para proteger os atuais remanescentes.Este tipo de hábitat está continuamente decrescendo e a maior parte dos remanescentes carece de proteção legal. BRAZILIAN JOURNAL OF BIOLOGY – V. 67 – Nº 2 – SÃO CARLOS – MAIO 2007 www.revistapesquisa.fapesp.br/scielo140/ambiente.htm
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Educação
Conceito de qualidade O estudo examinou o conceito de qualidade de ensino no contexto das principais políticas globais e regionais propostas por agências financiadoras internacionais (como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento), por acordos internacionais e também pela sociedade civil global (como o Fórum Social Mun-
FOTOS EDUARDO CESAR
Foram selecionados mais oito periódicos científicos brasileiros para inclusão na coleção SciELO Brasil que passará a disponibilizar 213 títulos em acesso aberto. Os títulos aprovados, que em breve estarão disponíveis no site, são: Revista Brasileira de Ortopedia, Revista Paulista de Pediatria, Revista Brasileira de Meteorologia, Economia e Sociedade, Educação em Revista, Revista Brasileira de Política Internacional, Revista Contabilidade & Finanças e Religião & Sociedade.
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dial e o Fórum Mundial de Educação). De acordo com o artigo “Qualidade de ensino e gênero nas políticas educacionais contemporâneas na América Latina”, de autoria de Nelly P. Stromquist, da University of Southern Califórnia, a análise do conteúdo dos discursos desses grupos distintos e influentes revela que a qualidade é definida e avaliada exclusivamente em termos cognitivos e reduzida a duas habilidades básicas: matemática e leitura. A qualidade, portanto, está dissociada de processos de transformação social, aos quais a educação deveria prestar uma contribuição essencial. Políticas globais de grande vulto, como o Educação para Todos e os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, não consideram a importância da introdução da conscientização de gênero na concepção de uma educação de qualidade. Seus objetivos contemplam o gênero somente no que se refere ao acesso igualitário de meninas e meninos à escola. A autora argumenta que a não-inclusão do gênero no currículo e a não-formação de professores para reconhecer as questões de gênero nas práticas cotidianas da escola contribuem para a persistência de valores e práticas que reafirmam distinções arbitrárias e assimétricas entre homens e mulheres. Numa perspectiva feminista, a autora enfatiza que é necessário a qualidade ultrapassar a questão do acesso e incluir o tratamento igualitário de meninas e meninos na sala de aula, bem como um conteúdo curricular que despolarize o conhecimento das identidades de gênero que afetam o cotidiano das pessoas, tais como educação sexual, violência doméstica e cidadania. EDUCAÇÃO E PESQUISA – V. 33 – Nº 1 – SÃO PAULO – JAN./ABR. 2007 www.revistapesquisa.fapesp.br/scielo140/educacao.htm
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Antropologia
Economia da religião Diz-se freqüentemente que a religião contribui para o capital social, embora sob circunstâncias específicas. Os movimentos religiosos de renovação são comuns entre populações marginalizadas e de baixa renda e parecem ser, freqüentemente, os únicos a construírem instituições em circunstâncias de extrema pobreza e decadência ou vazio institucional; os movimentos religiosos apresentam numerosas características não-democráticas, tais como hierarquias autoritárias e uma forte pressão sobre seus fiéis para que façam sacrifícios e contribuam com dinheiro. O estudo “A milagrosa economia da religião: um
ensaio sobre capital social”, de David Lehmann, da Universidade de Cambridge, explora as implicações teóricas dessas observações aparentemente paradoxais, mediante a adoção da abordagem da teoria da escolha racional, junto com o conceito de poder e com um conceito de capital social que põe a ênfase na transparência e na construção de instituições democráticas na sociedade em geral. O argumento é ilustrado pelos exemplos das igrejas evangélicas da América Latina e do judaísmo ultra-ortodoxo e conclui apresentando a visão de que, embora a contribuição dos movimentos religiosos à democratização geral seja limitada, isso não é suficiente para menosprezar o que eles fazem por seus próprios seguidores. HORIZONTES ANTROPOLÓGICOS – V. 13 – Nº 27 – PORTO ALEGRE – JAN./JUN. 2007 www.revistapesquisa.fapesp.br/scielo140/antropologia.htm
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Oftalmologia
Cirurgia de catarata Identificar fatores emocionais relacionados às dificuldades cotidianas e ao tratamento cirúrgico entre portadores de catarata de hospital universitário foi o objetivo do artigo “Fatores emocionais antecedentes à cirurgia de catarata”, de Roberta Marback, Edméa Temporini e Newton Kara Júnior, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Realizou-se estudo observacional transversal descritivo, por meio de questionário estruturado, aplicado por entrevista, elaborado a partir de estudo exploratório. A amostra foi formada por pacientes atendidos pelo setor de catarata da clínica oftalmológica de um hospital universitário. A amostra foi constituída por 110 pessoas de ambos os sexos (34,5% homens; 65,5% mulheres), com idade entre 43 e 89 anos. Quanto à escolaridade, 26,4% nunca freqüentaram escola, 59,1% se distribuíram entre 1ª e 8ª série; 87,3% não exerciam atividade remunerada. Quanto ao medo em relação à cirurgia de catarata, 54,0% mencionaram temer perder a visão. Foram registrados sentimentos/significações em relação ao procedimento cirúrgico: dúvida quanto ao resultado (32,7%), angústia (26,4%), tristeza (25,5%). A maioria dos entrevistados referiu-se a dificuldades nas atividades cotidianas como conseqüência da catarata. Medo foi sentimento predominante entre os respondentes. Esses fatos sugerem necessidade de ações visando preparar os pacientes emocionalmente para enfrentar as atividades cotidianas e a cirurgia de catarata. CLINICS – V. 62 – Nº 4 – SÃO PAULO – 2007 www.revistapesquisa.fapesp.br/scielo140/oftalmologia.htm
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LINHA DE PRODUÇÃOMUNDO
> TECNOLOGIA Segunda vida para celulares Agricultores africanos estão recebendo telefones celulares descartados, recolhidos principalmente nos Estados Unidos. Os aparelhos servem para os camponeses da Nigéria e do Quênia se comunicarem e terem acesso a informações agrícolas. O trabalho está sendo realizado pela empresa norte-americana ReCellular, especializada em receber os aparelhos como doação, além de comprar, recuperar e vender celulares usados. Na África eles são vendidos por um terço ou metade do preço de um novo (revista Esporo, abril de 2007, do Centro Técnico de Cooperação Agrícola e Rural da União Européia). Muitos são recolhidos por en-
> Linguagem no
tidades de caridade e depois revendidos para a empresa que os prepara para distribuição. A ReCellular também recicla por inteiro celulares que não servem mais para uso, somente para colecionadores, e participa de uma campanha nos Estados Unidos de distribuição de aparelhos pré-pagos para soldados norte-americanos que trabalham fora do país. Segundo a empresa, que tem filiais em São Paulo e em Hong Kong, na China, 130 milhões de celulares serão substituídos neste ano nos Estados Unidos. Um exemplo desse alto consumismo é o surgimento do IPhone, da Apple, que deve vender, em 18 meses, 10 milhões de aparelhos.
interior da casa
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Aparelhos antigos são úteis em países pobres
EDUARDO CESAR
A falta de uma linguagem única de comunicação entre a geladeira e a máquina de lavar com a televisão e o computador pode ser um empecilho para o gerenciamento desses aparelhos num ambiente residencial.É uma questão de especificação de protocolosque agora foi definida pela Comissão Internacional de Eletrotécnica (IEC,na sigla em inglês),com sede em Genebra,na Suíça. Com a nova linguagem será possível uma conversa mais amigável entre a rede de eletrodomésticos, os computadores e equipamentos audiovisuais. Assim,a tela de tevê poderá exibir um sinal mostrando que a máquina de lavar finalizou
suas atividades ou,por meio do computador,será possível ligar o aparelho de ar-condicionado. A especificação permite usar, de forma automática,a rede IP,de protocolo internet,
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padrão da rede mundial de computadores.A nova especificação recebeu o nome de Protocolo IP de Comunicação de Rede Residencial para Eletrodomésticos Multimídia.
> Ameaça às telas de LCD As telas planas de cristal líquido (LCD,de liquid crystal display) possuem uma tecnologia
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ILUSTRAÇÕES LAURABEATRIZ
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acreditam que a nova tecnologia estará no mercado dentro de cinco a dez anos.
> Leitura eletrônica Os livros de papel continuam imbatíveis, mas dois novos lançamentos apontam que os livros eletrônicos estão aos poucos conquistando o seu espaço no mercado, quase dez anos após o lançamento dos primeiros aparelhos por empresas do Vale do Silício, nos Estados Unidos.
> Central solar em Portugal Cercados por pastagens e plantações de oliveiras, nas cercanias da cidade de Serpa, na região do Alentejo, a 200 quilômetros de Lisboa, em Portugal, 52 mil painéis fotovoltaicos já estão captando energia solar para transformá-la em eletricidade. A Central de Energia Solar de Serpa começou a ser construída em 2006 e sua capacidade é de 11 megawatts de potência, suficiente para abastecer 8 mil casas de energia elétrica. A nova usina vai evitar o despejo na atmosfera de mais de 30 mil toneladas por ano de emissões de gases nocivos como o dióxido de carbono (CO2). Portugal é altamente dependente de combustíveis derivados do petróleo e as emissões aumentaram 34% desde 1990. A central foi produzida pelas empresas norte-americanas GE Energy e PowerLight e pela portuguesa Catavento pelo valor de US$ 75 milhões.
POWERLIGHT
relativamente recente. Estão nos monitores de computador e de televisores mais avançados, mas já correm o risco de se tornar obsoletas se depender de uma equipe de pesquisadores da Faculdade de Engenharia Cullen, da Universidade de Houston, nos Estados Unidos, que desenvolveu com sucesso uma nova técnica que permite a produção em larga escala de dispositivos nanotecnológicos. Com isso, está aberta a possibilidade de serem fabricadas telas de qualidade bem superior a partir de dispositivos chamados monitores de emissão por campo (ou FED, de field emission display). Essa nova tecnologia emprega grande quantidade de nanotubos de carbono, cilindros formados com folhas de átomos de carbono, para criar imagens com resolução bem superior às de LCD. O método criado, batizado de nanopantografia, permitirá a fabricação de nanoestruturas de apenas 1 nanômetro (igual a 1 milímetro dividido por 1 milhão de vezes) de espessura. Os pesquisadores
A Amazon, líder em venda de produtos de entretenimento na internet, deve lançar em outubro o Kindle, um leitor eletrônico portátil com tela em preto e branco, que custará cerca de US$ 400 a US$ 500, segundo divulgou o jornal The New York Times, em sua edição de 6 de setembro, que ouviu fontes próximas à empresa. O usuário poderá se conectar sem fio à internet e baixar livros e jornais do site da Amazon. O dispositivo tem ainda um teclado, que permite aos usuários fazer apontamentos enquanto lêem ou navegar na internet para fazer pesquisas. O Kindle vai concorrer com o Sony Reader, um leitor portátil lançado pela japonesa Sony em 2004, também em preto e branco, que custa US$ 300 e deve ser conectado com um cabo a um computador para baixar livros de um site da empresa. O segundo lançamento previsto será um serviço pago de download de livros do Google. Os usuários terão acesso pleno a cópias digitais de livros que estão no banco de dados da empresa.
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LINHA DE PRODUÇÃOBRASIL
> Biodiesel em ferrovias As locomotivas da Companhia Vale do Rio Doce que rodam nas estradas de ferro Carajás (EFC) de Vitória a Minas (EFVM) estão sendo abastecidas com uma mistura de 20% de biodiesel e 80% de diesel chamada B20, produzida pela Petrobras. Com a medida, aliada ao uso do B2, mistura de 2% de biodiesel ao diesel, utilizada desde janeiro em locomotivas e na geração elétrica, mais de 224 mil toneladas de gás carbônico (CO2) deixarão de ser lançadas na atmosfera até dezembro deste ano. Esse volume é igual à emissão anual de CO2 de uma cidade com 27 mil habitantes. A utilização do B20 foi respaldada por estudos do professor Mar-
> Mercúrio
cos Freitas, coordenador do Instituto Virtual Internacional de Mudanças Globais da Coordenação dos Programas de Pós-graduação em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Durante um ano os pesquisadores acompanharam o desempenho de duas locomotivas que percorreram 119 mil quilômetros. Uma delas usou diesel comum e a outra o B20. A conclusão é que a substituição de um quinto do diesel pelo biodiesel, associada à plantação de cerca de 30 mil hectares de espécies oleaginosas como o dendê, possibilitará a redução total de emissão em torno de 800 mil a 1,1 milhão de toneladas de CO2 na atmosfera.
removido
COPPE/UFRJ
Locomotiva da Vale substitui 20% de diesel
topo da cadeia alimentar,ele absorve o metal acumulado por outras espécies marinhas.A retirada do mercúrio da carne é feita com boroidreto de sódio,
> Transgênica
agente redutor empregado em química fina.Agora o foco da pesquisa são os testes para avaliar se o produto obtido nessas condições é inócuo.
brasileira
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Técnica desenvolvida na Universidade de São Paulo (USP) remove até 91,3% do mercúrio existente na carne do cação e permite que o produto possa ser consumido como alimento processado.“Estudos feitos no litoral brasileiro indicam que cerca de 50% de todas as espécies de cação concentram quantidade de mercúrio acima do aceitável pela legislação nacional, que é de 1 miligrama por quilo, tornando-o impróprio para consumo”, diz o professor Alfredo Tenuta Filho,da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP,coordenador da pesquisa.Como o cação é um carnívoro que está no
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A primeira planta de soja geneticamente modificada desenvolvida inteiramente no Brasil deverá estar no mercado até 2011.A nova variedade,resistente a herbicidas,é fruto de um trabalho conjunto,iniciado em 1997,entre a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e a multinacional alemã Basf.A inovação está na modificação do genoma da planta da soja com a
inserção de um único gene, o Ahas, extraído da Arabidopsis thaliana, planta usada na produção de herbicidas da classe imidazolinonas. Dessa forma, a soja transgênica não é afetada pela aplicação dessas substâncias usadas para controle de ervas invasoras da cultura. A nova planta vai concorrer com as sementes de soja tolerantes aos herbicidas à base de glifosato, utilizadas nas lavouras brasileiras. Os experimentos com a soja geneticamente modificada foram realizados na Embrapa Recursos Genéticos, em Brasília. Agora a nova semente vai ser submetida à Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio).
> Látex mais rentável Uma nova tecnologia poderá contribuir para que o processo de extração do látex seja ainda mais rentável no estado de São Paulo, maior produtor nacional, com cerca de 45 mil hectares ocupados por seringueiras. O trabalho, desenvolvido no Instituto Agronômico (IAC), identificou nove sistemas de sangria que, aplicados em dez variedades de
Turbina eólica no Maranhão: pás em forma de concha
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seringueira, resultaram em aumento da produtividade e redução nos custos de mãode-obra. O sistema mais produtivo, que envolve sangria a cada sete dias com a aplicação de estimulante químico oito vezes no ano, obteve rendimento líquido por hectare de R$ 3.920,25 diante de R$ 2.437,43 pelo sistema tradicional com o mesmo tipo de corte feito a cada dois dias e sem estimulação química.
> Movimento alternativo Um protótipo que traz um novo conceito em turbinas eólicas para geração de energia elétrica a partir do vento está instalado em uma torre no campus da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), em São Luís. O experimento possui, em vez das tradicionais pás semelhantes a hélices de aviões, conchas de alumínio com geometria apropriada e espaçadas regularmente no plano horizontal que fazem mexer as hastes transmissoras da rotação para um gerador elétrico. A equipe de pesquisadores é coordenada pelo professor Cândido Justino de Melo Neto, do Núcleo de Inovação Tecnológica e
Energia e do Departamento de Física da universidade. “Essa turbina foi pensada para ser instalada em regiões remotas e comunidades isoladas, além de incorporar uma preocupação ambiental porque produz menos barulho, não afasta insetos e aves”, diz Melo Neto. O protótipo na UFMA já atingiu 400 watts de rendimento, suficiente para dez lâmpadas de 40 watts. O projeto conta com o financiamento da Centrais Elétricas do Norte do Brasil (Eletronorte) que também já registrou a patente.
Foguete Longa Marcha levou o Cbers-2B ao espaço
> Satélite de visão Depois do lançamento do satélite Sino-brasileiro de Recursos Terrestres (Cbers, na sigla em inglês), no dia 19 de setembro, da base chinesa de Taiyuan, a bordo de um foguete Longa Marcha 4B, as atenções dos técnicos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) se voltaram para os testes e ajustes das três câmeras embarcadas, principalmente uma inédita, a pancromática, que não estava nas outras duas versões do satélite, o Cbers-1 e o 2. Essa nova câmera instalada no Cbers-2B
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CÂNDIDO DE MELO NETO/UFMA
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produzirá imagens com excelente nitidez em faixas de 27 quilômetros de largura com resolução de até 2,7 metros, características que vão resultar em imagens com grandes detalhes da superfície terrestre. Enquanto isso, os governos brasileiro e chinês negociam para instalar uma antena receptora de imagens do Cbers-2B em algum país africano. As imagens do satélite servem para monitoramento ambiental, planejamento da agricultura e do crescimento urbano.
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TECNOLOGIA
BIOTECNOLOGIA
Dueto
poderoso
Enzima de mosca produzida em levedura combate bactérias danosas à fabricação de álcool combustível D INORAH E RENO
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ma pequena proteína encontrada na saliva e na lágrima, chamada lisozima, mostrou em laboratório ser capaz de aumentar a eficiência do processo de produção de etanol com considerável economia para as usinas, que já manifestaram interesse pela novidade biotecnológica. Para obter esses resultados, pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) produziram uma linhagem da levedura Saccharomyces cerevisiae, microorganismo responsável pela transformação do açúcar em álcool combustível, capaz de fabricar essa proteína. Com isso, a levedura ganha a capacidade de combater as bactérias que contaminam as dornas onde é realizada a fermentação do caldo de cana-de-açúcar, também chamado de mosto.“O mosto constitui um ótimo substrato para o crescimento não só da levedura, mas de vários outros microorganismos porque possui altos teores de nutrientes, além de apresentar pH e temperatura favoráveis”, diz a professora Ana Clara Guerrini Schenberg, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP), coordenadora da pesquisa. Além de compe-
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tir pela sacarose e outros nutrientes do mosto, as bactérias introduzem no processo produtos de metabolismo indesejáveis, principalmente ácidos orgânicos. As usinas normalmente adicionam antibióticos ao mosto para combater a contaminação bacteriana. Com o passar do tempo, no entanto, novos antibióticos ou combinações de medicamentos são necessários para dar conta de cepas de bactérias resistentes. Estimase que, para cada metro cúbico de etanol produzido, são gastos de US$ 3,00 a US$ 5,00, em média, com antibióticos nas usinas. “Além do problema econômico, há o aspecto de poluição ambiental, porque tudo acaba indo para a natureza, na forma de efluentes que vão para os rios”, diz Ana Clara, especialista em genética molecular de microorganismos, que coordena em seu laboratório, no Departamento de Microbiologia, vários trabalhos com leveduras e bactérias. Substância antibacteriana - A busca
de um método alternativo ao antibiótico para controle dos microorganismos presentes na fermentação do etanol foi objeto dos trabalhos de pós-graduação
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LUCIANO JOSE SILVEIRA
Linhagem recombinante de levedura produtora de lisozima
de Elza Grael Marasca e Luciano José Silveira sob orientação de Ana Clara.“Pensamos que, se a própria levedura contivesse um gene codificando uma substância antibacteriana, ela mesma resolveria o problema sem precisar adicionar antibiótico ao mosto”, relata a coordenadora da pesquisa, filha do renomado físico teórico brasileiro Mário Schenberg (1916-1990). Foi escolhida para essa função a lisozima, uma enzima que não é exatamente um antibiótico, mas é altamente poderosa contra bactérias, porque degrada suas paredes celulares. “É uma proteína muito interessante, que é produzida por praticamente todos os seres vivos, mas não pela levedura”, conta. Em alguns processos industriais, como conservação de alimentos, produção de vinho e medicamentos, é utilizada uma lisozima comercial, importada, extraída da clara do ovo, num processo criado há cerca de 40 anos. Antes de modificar a informação genética da levedura, os pesquisadores começaram a procurar na literatura se havia sido descrita alguma lisozima que suportasse a acidificação do final da fermentação alcoólica. Nessa mesma épo-
ca, em 1996, a professora Sirlei Daffre, pesquisadora do Departamento de Parasitologia, que fica no mesmo prédio do Departamento de Microbiologia, tinha acabado de chegar da Suécia, onde havia desenvolvido um trabalho sobre lisozimas da mosca Drosophila melanogaster. “Por atuar no trato digestivo da mosca, essa lisozima apresenta ótimo funcionamento em pH ácido, semelhante ao encontrado no processo de fermentação alcoólica”, relata Ana Clara. O objeto de estudo de Sirlei eram os insetos e como eles se defendem das infecções, pesquisa que acabou contribuindo para a elaboração de um processo tecnológico.“Ela havia clonado o cDNA da lisozima, a parte do gene que interessa e é transformada em mensageiro dentro das células”, conta Ana Clara. A cessão do gene clonado ajudou a encurtar o caminho, mas ainda havia muito trabalho pela frente. O passo seguinte era encontrar um promotor que fizesse o gene se expressar na levedura, num processo chamado de técnica de DNA recombinante, e garantir que a lisozima fosse secretada para o meio de cultivo. Coube a Elza Marasca colocar
o cDNA da drosófila sob o controle do promotor da álcool-desidrogenase 1, uma enzima da própria levedura utilizada durante o processo de fermentação. Tudo se encaixou perfeitamente.“Tanto o promotor como a levedura funcionam em perfeita sincronia durante o processo de fermentação, enquanto ocorre a produção de lisozima”, diz Ana Clara. Fermentação alcoólica – Feito isso, era necessário verificar se o uso da linhagem de levedura recombinante produtora de lisozima em processos de fermentação alcoólica contribuiria para reduzir o uso de antibióticos. Sabe-se que a maioria dos microorganismos presentes nas dornas são sensíveis à ação da lisozima, que age preferencialmente na parede de bactérias Gram-positivas, como, por exemplo, Bacillus coagulans e Lactobacillus fermentum.“Como nas usinas de álcool do estado de São Paulo 98,5% dos contaminantes são bactérias Gram-positivas, em tese é uma ótima escolha”, diz Gabriela Ribeiro dos Santos, pós-doutoranda que participa do projeto. “Agora temos que fazer um estudo mimetizando as condições encontradas na usina
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Enzima alfa-amilase secretada pela levedura degrada amido (em azul) e forma um halo claro
para avaliar, na prática, o efeito da levedura modificada.” Para isso será necessário ajustar a quantidade de enzima secretada com a quantidade de contaminantes existentes no processo industrial. Ação confirmada - O primeiro passo
nesse sentido foi dado. Um dos estudos feitos recentemente pelo grupo de pesquisa consistiu em inocular a linhagem original da levedura e a linhagem que produz lisozima, para efeito de comparação, em mosto não-estéril, como é utilizado na usina, mas realizado no próprio laboratório da USP. Um aspecto interessante nesse trabalho, que representa um avanço para chegar ao processo industrial e resultou em uma patente, sob a gerência da Agência USP de Inovação, é que a informação genética da lisozima foi estabilizada por meio da sua integração num dos cromossomos de uma linhagem de levedura industrial utilizada pelas usinas. “Vimos uma diferença muito significativa entre a quantidade de contaminantes nas condições originais com e sem lisozima”, relata Gabriela. Isso significa que a ação da levedura recombinante sobre as bactérias foi confirmada nos testes, mas mesmo assim os pesquisadores querem aumen68
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tar a produção da enzima para que ela responda satisfatoriamente às condições enfrentadas em escala industrial. A levedura modificada tem apenas uma cópia do gene da lisozima integrada ao seu cromossomo. “Agora está sendo desenhada uma estratégia para amplificar o número de cópias do gene inserido na levedura”, diz Ana Clara. “Como são conhecidos alguns sítios cromossômicos da levedura Saccharomyces cerevisiae que se prestam a inserções de genes estrangeiros sem atrapalhar a vida da linhagem, podemos aumentar a capacidade de produção de lisozima sem interferir na eficiência da produção de etanol.” Todas essas modificações estão sendo pensadas em função do interesse de empresários do setor sucroalcooleiro na levedura modificada geneticamente. Para que esse interesse seja concretizado, a primeira etapa já foi cumprida. Os pesquisadores submeteram a levedura modificada à prova de conceito, ou seja, vários testes foram realizados para comprovar que ela funciona não só nas condições de laboratório, mas também tem potencial para ser empregada no processo industrial. “Concluímos essa prova de conceito e passamos em todos os pré-requisitos”, relata Gabriela. Os
empresários agora querem saber se futuramente haverá problemas com a liberação do uso de organismos geneticamente modificados (OGMs) para a produção de etanol. “Vamos encaminhar uma consulta sobre o assunto para a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) para poder dar uma resposta”, diz Ana Clara. Os estudos para produção de etanol coordenados pela pesquisadora tiveram início durante os anos de implementação do Proálcool, o programa brasileiro criado no final de 1975. A idéia era produzir álcool combustível a partir do amido presente na mandioca, e não de açúcares simples, como a sacarose e a glicose encontradas no caldo de cana. Ocorre que a levedura Saccharomyces cerevisiae, cujo nome deriva de Sacaro, açúcar, e myces, fungo, consegue metabolizar a glicose e a sacarose, mas não o amido, que é uma molécula complexa com várias unidades de glicose dispostas em cadeias lineares e ramificadas. Isso significa que em todos os processos envolvendo substratos amiláceos, como cevada, arroz, mandioca ou milho, para produzir etanol, há necessidade de fazer um tratamento enzimático prévio.
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Para abreviar a etapa de tratamento prévio do substrato e diminuir os custos do processo de fermentação de amiláceos, o grupo de pesquisa deu início a um programa de melhoramento genético da levedura S. cerevisiae há quase 25 anos. “Foram feitos vários trabalhos para dotar a linhagem da levedura com a capacidade de degradar o amido e processar o açúcar da mandioca na fase de fermentação para transformá-lo em álcool”, relata Gabriela, que se dedicou ao assunto em sua dissertação de mestrado. Como o amido é uma molécula ramificada, ele precisa de um complexo de enzimas amilolíticas para ser totalmente degradado.
GABRIELA RIBEIRO DOS SANTOS
Molécula complexa – A primeira con-
quista feita pelo grupo, publicada na revista Nature Biotechnology em 1986, foi conseguir que a levedura produzisse e secretasse para o meio de cultivo um gene que codifica a alfa-amilase fabricada no pâncreas de camundongo. A alfa-amilase age sobre as cadeias lineares do amido, quebrando essa complexa molécula em moléculas menores, formadas de duas ou mais unidades de glicose, de forma que a levedura ainda desperdiça boa parte do açúcar contido no amido. Num próximo passo do melhoramento, Gabriela colocou o gene de mais uma enzima na levedura, o da glicoamilase de uma outra espécie de levedura. A glicoamilase ajuda a alfa-amilase a degradar o amido e leválo até a molécula de glicose. “Uma ajuda a outra nesse processo, mas o aproveitamento ainda não foi de 100%”, diz Gabriela. “Na verdade, experimentos em escala piloto, realizados no Departamento de Engenharia Química da USP, mostraram que o fator limitante da eficiência de fermentação era justamente a atividade de glicoamilase”, completa. Novas construções então se sucederam para que a levedura pudesse expressar glicoamilases mais potentes e, acima de tudo, de forma estável e numa levedura industrial. Hoje o laboratório possui algumas linhagens industriais recombinantes, das quais se destaca uma que apresenta o gene da glicoamilase em cinco cópias. As novas linhagens deverão ainda ser avaliadas em escala piloto, empregando o amido da mandioca, uma matéria-prima barata e abundante no Brasil, como fonte alternativa ao açúcar proveniente da cana. ■
Microorganismos programados para remover metais Bactérias e leveduras capazes de remover metais pesados dos efluentes resultantes da mineração estão sendo produzidas, com ferramentas da engenharia genética, pelo grupo de pesquisa coordenado pela professora Ana Clara Guerrini Schenberg. O projeto foi encomendado há dois anos e meio pela Companhia Vale do Rio Doce, líder mundial no mercado de minério de ferro e segunda maior produtora global de manganês e ferroligas. “O importante é encontrar um microorganismo adequado para executar determinada função”, diz Ana Clara. “Quando eles não funcionam exatamente como queremos, podemos melhorar as características desses microorganismos.” Como a biorremediação de metais é uma
área nova, o projeto está dividido em vários subprojetos. Um dos participantes, Ronaldo Biondo, está construindo uma bactéria que consegue se ligar aos metais pesados para facilitar a tarefa de removê-los dos efluentes de mineração. Ao mesmo tempo, a pesquisadora Gabriela Ribeiro dos Santos está construindo um sistema suicida para essas bactérias para, quando a tarefa for cumprida, elas não causarem riscos a outros organismos presentes na natureza. “Estou trabalhando no desenvolvimento de um sistema genético que provoque a morte da bactéria, mas que, como uma bomba-relógio, só entre em ação depois de cumprida a etapa de biorremediação pelo microorganismo”, diz Gabriela.
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Girassol, castanhasde-caju, do-pará e pinhão-manso
> QUÍMICA ANALÍTICA
Sementes mais produtivas
Ressonância magnética mede teor e qualidade de oleaginosas para produção de biodiesel Y URI VASCONCELOS
EDUARDO CESAR
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ma nova tecnologia desenvolvida nos laboratórios da Embrapa Instrumentação Agropecuária, em São Carlos, no interior paulista, deverá fortalecer a posição do Brasil na produção mundial de biocombustíveis. Pesquisadores da entidade criaram um aparelho de ressonância magnética nuclear para medidas ultrarápidas da quantidade e da qualidade de óleos vegetais presentes em sementes de soja, mamona, dendê, girassol, amendoim e algodão, entre outras oleaginosas, plantas que têm sido usadas ou são candidatas para a fabricação de biodiesel. O equipamento tem potencial para analisar o teor de óleo em mais de 10 mil sementes por hora, enquanto os métodos químicos convencionais mais rápidos existentes no mercado realizam apenas 60 análises no mesmo período de tempo. A medida da qualidade do óleo é de 300 amostras por hora, mas, mesmo assim, ainda é dezenas de vezes mais rápida do que as técnicas disponíveis atualmente. A velocidade na realização das análises é importante porque permite selecionar com mais agilidade variedades de plantas comerciais e silvestres, como o pinhão-manso, a macaúba, o pequi e o tucumã, outras candidatas ao biodiesel, com alta produtividade e, assim, acelerar os programas de melhoramento genético das cultivares envolvidas na produção de biocombustíveis. “Para que os programas de seleção de novas plantas sejam rápidos, são necessárias dezenas de milhares de análises de teor de óleo de sementes por ano. E os métodos de análise de óleo hoje não atendem a esse requisito”, explica o bioquímico Luiz Alberto Colnago, que coordenou as pesquisas. Segundo o pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), embora o Brasil, por seu pioneirismo, esteja numa posição relativamente confortável no mercado mundial de biocombustíveis, é preciso aumentar a produtividade das lavouras destinadas à produção de biodiesel para que a demanda futura seja suprida sem risco de provocar escassez do produto. “Hoje, somente o
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dendê tem alta produtividade, de cerca de 5 toneladas por hectare por ano. A soja e a maioria das outras culturas comerciais estão em torno de 1 tonelada por hectare por ano. Isso significa que a energia produzida é apenas pouco maior que a energia gasta para sua produção”, diz ele. Além da rapidez, a nova técnica de ressonância magnética apresenta outra importante vantagem. Ao contrário dos métodos tradicionais, em que é necessário secar e moer as sementes a serem analisadas, provocando sua destruição, a tecnologia de ressonância magnética mantém a amostra intacta.“Com a nossa técnica, a mesma semente analisada pode ser em seguida plantada”, diz o pesquisador da Embrapa. Nas técnicas convencionais, a extração do óleo emprega um solvente derivado de petróleo, que agride o ambiente. Por esse método, é preciso extrair o óleo por 24 horas, fazer a evaporação do solvente e, em seguida, pesar quanto líquido foi extraído.“Esse método gera resíduos químicos que precisam ser tratados.” O equipamento criado na Embrapa Instrumentação Agropecuária funciona de forma semelhante a um aparelho de ressonância magnética nuclear usado para fins médicos em clínicas e hospitais do país. As sementes são colocadas de forma seqüencial, uma atrás da outra, em uma esteira que passa por dentro de um imã, cuja função é magnetizar a amostra. Junto do imã existe um pequeno sensor. Quando a semente chega ao sensor, ela é excitada com ondas de rádio numa freqüência fixa de 85 megahertz durante apenas 10 microssegundos. “Ao final da irradiação, a semente passa a emitir de volta um sinal na mesma freqüência. A intensidade desse sinal é proporcional ao teor de óleo presente nela. Quanto mais forte, mais óleo possui a semente”, explica Colnago. Já a medida da qualidade é dada pelo tempo que o sinal refletido pela semente leva para desaparecer. Quanto mais rápido o sinal sumir, maior será a viscosidade do óleo. A viscosidade é um dos parâmetros de qualidade de óleos vegetais e está diretamente associada à com-
posição química e ao seu número de cetano. Esse número, por sua vez, é um indicador de qualidade de ignição do diesel, similar ao octano para motores a gasolina. Para Colnago, melhorar a qualidade dos óleos vegetais produzidos no país é fundamental porque alguns ainda não atendem às especificações das normas internacionais.“Os óleos de soja, girassol e algodão, dentre outros, têm alta concentração de ácidos graxos poliinsaturados, que são indesejáveis para uso como combustível, pois têm baixa estabilidade química e baixo número de cetano”, diz o pesquisador. Módulos comerciais - O aparelho de ressonância recebeu financiamento da FAPESP e da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e contou também com a participação de pesquisadores do Departamento de Física da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), do Instituto de Química de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP) e da Embrapa Solos, do Rio de Janeiro. Colnago explica que o aparelho não foi totalmente desenvolvido por sua equi-
1. Desenvolvimento de instrumentação e aplicações de RMN na análise de alimentos 2. Desenvolvimento de tecnologias ultra-rápidas de RMN para determinação da quantidade e qualidade de óleos vegetais em sementes intactas 3. Avaliação on-line da qualidade de produtos agroindustriais por RMN MODALIDADE
1 e 2. Linha Regular de Auxílio a Pesquisa 3. Rede Brasil de Tecnologia COORDENADOR
LUIZ ALBERTO COLNAGO – Embrapa INVESTIMENTO
1. R$ 36.750,00 e US$ 33.000,00 (FAPESP) 2. R$ 115.500,00 (FAPESP) 3. R$ 270.000,00 (Finep)
pe. “Fizemos a montagem com módulos comerciais e construímos apenas as partes que não estão disponíveis no mercado mundial. Usamos um imã de um tomógrafo de ressonância magnética e a parte eletrônica de transmissor e receptor de um aparelho convencional. Já os sistemas de movimentação das amostras – as esteiras – e as bobinas onde são colocadas as amostras dentro do imã foram construídos por nós”, diz Colnago. “O mais importante nesse trabalho foi o desenvolvimento das novas metodologias de análise por ressonância magnética nuclear tanto para medida da quantidade quanto da qualidade do óleo diretamente nas sementes. Esses procedimentos rápidos é que são inéditos.” Essas metodologias começaram a ser desenvolvidas em 1998 e foram tema de duas dissertações de mestrado e duas teses de doutorado orientadas pelo próprio pesquisador no Instituto de Química de São Carlos da USP. A pesquisa também rendeu a publicação de artigos científicos nas revistas Analytical Chemistry e Analytica Chimica Acta, respectivamente, em fevereiro e julho deste ano. Dentro de seis meses a um ano, Colnago espera ter um protótipo do aparelho em uma versão mais amigável e de menor custo. O aparelho atual poderia custar US$ 500 mil porque utiliza um imã de tomógrafo que é muito grande e caro. O bioquímico da Embrapa acredita que se ele for substituído por um imã pequeno esse valor cairá cerca de 20 vezes e o custo do aparelho deverá ficar na faixa dos US$ 70 mil – excluindo-se os valores de impostos e margem de lucro do fabricante. A empresa Gil Equipamentos Industriais, da cidade de Ribeirão Preto, que adquiriu outra tecnologia de ressonância magnética desenvolvida pelo grupo da Embrapa há dez anos, já demonstrou interesse na produção comercial do equipamento.“Embora deva entrar no mercado custando o dobro dos métodos tradicionais, ele vai oferecer uma produtividade – número de análises por tempo – muito maior. E esse será seu grande diferencial”, conta Colnago. ■ PESQUISA FAPESP 140
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Silício na agricultura Mineral é usado para controlar pragas, aumentar produtividade e qualidade de produtos agrícolas O T TO F ILGUEIRAS
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ais conhecido por ser o material básico da indústria eletroeletrônica, na composição de circuitos integrados ou chips, presentes em todos os equipamentos eletrônicos como computadores e celulares, o silício agora está presente também na agricultura brasileira para controlar pragas, aumentar a produtividade e melhorar a qualidade de produtos agrícolas. Um dos estudos mais recentes no Brasil foi realizado por uma equipe de pesquisadores coordenada pelo engenheiro agrônomo Carlos Alexandre Costa Crusciol, professor do Departamento de Produção Vegetal da Faculdade de Ciências Agronômicas da Universidade Estadual Paulista (Unesp), na cidade de Botucatu.Eles finalizaram em maio deste ano um experimento que mostrou os benefícios da aplicação de silício na cultura de batata, na forma de adubação, incorporando o elemento ao solo. Os resultados mostraram um aumento da produção total de tubérculos de 14,3% e da produção de tubérculos comercializáveis – a batata boa para o consumo – em 15,8%. Muito desses resultados positivos foi proporcionado por uma redução de 63% no aca-
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mamento das plantas. Esse comportamento do vegetal acontece quando os ramos e as folhas crescem e não ficam eretos, e sim deitados no solo causando uma série de problemas. A planta fica privada da fotossíntese em todo o seu potencial e torna-se mais facilmente suscetível a microorganismos patogênicos. O silício promove o fortalecimento da parede celular das folhas e dos caules ao deixar as plantas mais eretas e aumentar a área de exposição ao sol. “A redução no acamamento das hastes, proporcionada pela aplicação de silício, pode estar relacionada com a melhor condição hídrica nas células promovida pelo ajustamento osmótico (que confere melhor permeabilidade), o que resultou em células mais túrgidas (dilatadas) e com maior resistência mecânica”, explica Crusciol. Elemento químico de símbolo Si, o silício ganhou grande status industrial no século XX por suas propriedades semicondutoras e preço baixo. É o segundo elemento mais abundante da crosta terrestre, logo após o oxigênio. Mas ele nunca é encontrado de forma isolada na natureza, e sim faz parte de minerais como argila, feldspato, granito, quartzo e areia.“Aparece geralmente na forma de dióxido de silício (SiO2) – também
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conhecido como sílica – e silicatos, que são compostos contendo silício, oxigênio e metais”, diz Crusciol. O silício tem um papel importante nas relações planta-ambiente, porque pode dar à cultura melhores condições para suportar adversidades climáticas, do solo e biológicas, tendo como resultado final um aumento na produção com melhor qualidade do produto. A batata é uma das espécies vegetais mais sensíveis ao déficit hídrico, fenômeno que ocorre em grandes extensões de áreas cultivadas e pode provocar reduções na produção, dependendo do momento de ocorrência e do período de duração. Água e seca - A disponibilidade da água no solo é um dos fatores ambientais que mais afetam o desenvolvimento da cultura. “A presença de maior quantidade de silício disponível no solo parece trazer benefícios à cultura em relação ao défi-
cit hídrico”, diz Crusciol. O acúmulo de sílica na parede celular reduz a perda de água por transpiração, podendo ser um fator de adaptação ao estresse hídrico. A fertilização com silício pode também aumentar a resistência a várias doenças fúngicas e outras pragas. A maior absorção desse mineral proporciona uma proteção mecânica da epiderme da planta capaz de reduzir a infecção de fitopatógenos e aumentar a resistência à seca. “No caso das doenças, inúmeros trabalhos mostram que o aumento da resistência da planta ao patógeno pode ser devido a uma alteração das respostas do vegetal ao ataque do parasita, aumentando a síntese de toxinas (fitoalexinas), que podem agir como substâncias inibidoras ou repelentes, além de formarem uma barreira mecânica.”A pesquisa avaliou também os atributos químicos e o teor de silício no solo. Entre os resultados obtidos consta-
Plantação de batatas: silício mantém caules eretos, resultando em mais fotossíntese e menos doenças
tou-se que os corretivos aplicados elevaram os teores de cálcio e magnésio, em relação à análise inicial do solo. O experimento com a batata foi realizado na casa de vegetação da Faculdade de Ciências Agronômicas no campus da Unesp, em Botucatu, e implicou tratamentos com a presença e ausência de silício, por meio da correção do solo com calcário dolomítico e agrossilício (silicato de cálcio e magnésio), além da mesma metodologia em relação ao déficit hídrico. O agrossilício é produzido pela empresa Recmix, da cidade de Timóteo,em Minas Gerais.A fonte desse tipo de silício para a agricultura tem origem nas escórias de alto-forno de siderúrgicas, principalmente da PESQUISA FAPESP 140
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OLIVIA KVEDARAS /SASRI
na África do Sul no combate à broca-da-cana (Eldana saccharina), um inseto cujas larvas se desenvolvem no interior dos colmos. Em experimentos recentes conduzidos pelos pesquisadores Malcolm Keeping e Olivia Kvedaras e outros do Instituto de Pesquisa para o Açúcar da África do Sul (Sasri na sigla em inglês), foi demonstrado que o silício torna os colmos da cana mais resistentes à penetração dos insetos. O uso do silicato de cálcio impediu de 20 a 30% a perda de biomassa e do produto final, o açúcar. “No Brasil existe a broca-da-cana-de-açúcar (Diatraea saccharalis), que é uma das principais pragas da cultura e se parece com a E. saccharina”, diz Crusciol. O uso do silício na Cana e soja - A absorção agricultura também é estudo silício no solo ocorre dado e aplicado principalquando ele se encontra na mente no Japão, no cultivo forma de ácido monossilído arroz. Nos Estados Unicico, proveniente da decomdos, ele já mostrou tamposição de resíduos vegebém que pode tornar os tais, da liberação de silício canaviais (usados para a dos óxidos e hidróxidos de produção de açúcar) mais ferro e alumínio, da dissoBroca-da-cana da África: acima, a boca normal, dentada. Embaixo, a boca do inseto gasta resistentes à geada, no eslução de minerais cristalie reta porque o silício deixou a planta dura tado da Flórida. nos e não-cristalinos, da A importância do silíadição de fertilizantes silicacio está bem definida para tados e da água de irrigação. algumas culturas, mas muitas de suas A maior parte desse mineral é incorde-açúcar. Duas usinas de açúcar e álfunções ainda não estão bem esclareciporada na parede celular, principalmencool paulistas já aplicam silicatos em suas das pela ciência, segundo o professor te nas células da epiderme. plantações. Uma é a Usina Colombo, no Crusciol. “O silício acumula-se nos teOs benefícios do silício na batata tammunicípio de Ariranha, que aplica silicacidos de todas as plantas, representanbém podem ser propagados para outras to em 35 mil hectares de um total de área do entre 0,1% e 10% da matéria seca, culturas. Para isso a Faculdade de Ciênplantada de 60 mil hectares. A outra é a mas ele não é considerado parte do grucias Agronômicas da Unesp, em BotuUsina Guaíra, no município de mesmo po de nutrientes essenciais ou funciocatu, realiza estudos com outras cultunome, que o emprega em 10% dos seus nais do ponto de vista fisiológico para ras, como soja, arroz e cana-de-açúcar. 33 mil hectares de área plantada. As duas o crescimento e desenvolvimento dos No caso das gramíneas, como a cana, ficam na região de Ribeirão Preto. A vanvegetais.” Mas existe a certeza de que cao silício diminui a transpiração e autagem para a cana está principalmente da vez mais vai ser usado na agricultumenta a resistência a veranicos. Na soja, no fortalecimento de toda a planta, que ra depois de ser utilizado como o prina aplicação de silício aumenta a formafica mais resistente aos insetos e outras cipal componente na fabricação de vição de nódulos e a fixação do nitrogêpragas. Ao se alimentarem das folhas, coldros e cristais, nas células solares, além nio nas raízes da planta. mos e raízes, eles enfrentam um desconde ser a base da indústria eletroeletrôforto bucal, ao mastigar ou picar essas “Os resultados obtidos são animadonica atual e, ainda, compor o silicone partes, provocado por um efeito mecâres e evidenciam que a aplicação desse usado na medicina para implantes em nico originário do silício, que torna a elemento, em muitos casos, gera grandes próteses, fabricação de lentes de contaplanta mais dura”, explica Crusciol. benefícios para outras culturas”, diz Carto e servir na produção do concreto arlos Crusciol. Uma das primeiras culturas Os benefícios do silício na cana-demado e de cerâmicas. a usar comercialmente o silício foi a canaaçúcar já foram muito bem estudados ■
Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e da Usiminas. O material é coletado pela Recmix, empresa de origem norte-americana, reciclado e transformado em vários subprodutos como o agrossilício. A utilização do produto aumentou o desempenho da batateira, o que não foi constatado nas plantas tratadas apenas com calcário. “O aumento da produção também pode estar relacionado com a elevação do teor de fósforo no solo e a redução do acamamento devido à aplicação de silicato, que pode ter favorecido a eficiência de interceptação da luz solar e, conseqüentemente, favorecendo o enchimento das batatas.”
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Chuveiro
esperto
Empresa mineira desenvolve sistema que recupera calor da água do banho M ARCOS
DE
O LIVEIRA
Plataforma com tapete e a espiral de alumínio que aquece a água
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oi em pleno banho ao lavar os pés sujos de terra avermelhada que o tecnólogo José Geraldo de Magalhães teve uma idéia ao perceber a água quente se esvaindo pelo ralo. Pensou em desperdício e começou a imaginar um sistema que aproveitasse esse calor para ajudar a esquentar a própria água do chuveiro. Sete anos depois daquele dia na sua cidade natal, em Rio Vermelho, no Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, Magalhães acompanha, desde setembro, a distribuição gratuita de um lote de 7 mil peças de seu invento para pessoas carentes da Região Metropolitana de Belo Horizonte num programa elaborado e financiado pela Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig). Chamado de recuperador de calor para chuveiros elétricos, o sistema possibilita uma redução de 44% no gasto de energia elétrica de uma residência. O recuperador é produzido pela empresa Rewatt Ecológica, da qual Magalhães é um dos sócios. O funcionamento é simples. Em vez da água da caixa ou da rede de distribuição ir direto para o chuveiro, ela segue por uma mangueira e chega a uma plataforma de plástico reforçado instalada no chão do banheiro, com 58 centímetros (cm) de diâmetro e 4 cm de altura com tapete e estrutura antiderrapante. Dentro dela existe um trocador de calor feito de alumínio, na forma de um encanamento em espiral, que recupera o calor da água quente do banho e aquece, em cerca de 20 segundos, a água limpa no interior do cano. A água aquecida é levada, por pressão natural ou por um pressurizador, para o chuveiro. A diferença do novo sistema é que quando a água chega ao aparelho ela já está pré-aquecida em comparação à existente na caixa. Normalmente a água natural parte dos 20º Celsius (C) e é esquentada no chuveiro até 38ºC, que é a temperatura do banho quente no inverno. “Se ela já estiver com 27ºC, a diferença cai de 18º para 11ºC”, diz a professora Júlia Maria Garcia Rocha, do Grupo de Estudos e Energia (Green) do Instituto Politécnico da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Foi ela quem coordenou os dois testes que comprovaram tecni-
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camente a viabilidade do sistema, primeiro a pedido de Magalhães e depois da Cemig.“No início, nós não acreditávamos que o recuperador funcionasse. Depois fizemos os testes, o modelamento teórico e, no final, sugestões para melhorar o equipamento”, diz Júlia.“Fiquei tão impressionada que coloquei o recuperador na minha casa.”
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economia é mais visível com a troca do chuveiro. “Esse aparelho é o vilão do gasto energético em uma residência e, com o recuperador de calor, é possível usar um chuveiro menos potente”, diz Magalhães. Assim, em vez de um aparelho de 5.400 watts de potência, por exemplo, é possível usar um com 3.200 watts que funcione bem, mesmo no inverno, ou até menos potente ainda dependendo da região.“Um dos primeiros protótipos eu vendi para um teste de campo na cidade de Carlos Barbosa, no Rio Grande do Sul, próximo à cidade de Caxias do Sul. Lá eles trocaram um chuveiro de 7.400 watts por um de 4.400 watts”, diz Magalhães. Outro caso de sucesso contabilizado por Magalhães, ainda na fase experimental, foi a instalação de nove recuperadores de calor em uma academia de ginástica na cidade de Pedro Leopoldo, em Minas Gerais, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Na instalação, os chuveiros de 5.400 watts passaram para 2 mil watts e os com potência de 4.400 watts foram substituídos por aparelhos de 1.800 watts. Depois de 30 dias a redução do gasto energético foi de 1.020 quilowatts-hora (kWh) na conta de luz, resultando em menos R$ 612,00 nas despesas da academia. Nas residências o consumo de energia elétrica representa 24% do total gasto no Brasil, ou 83 mil megawatts-hora (MWh) por ano, segundo a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) do Ministério de Minas e Energia. Desse número, de 26 a 32% representam o aquecimento de água para banho, grande parte concentrado no horário de pico, entre 18 e 21 horas. Dessa forma, o gasto energético nacional apenas com chuveiro atinge cerca de 22 mil MWh. Segundo números da Rewatt, se todos os chuveiros brasileiros adotassem o recuperador de calor, a economia de energia elétrica seria equivalente a 2,56% do total consumido no país, igual a uma porção 76
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O chuveiro é o vilão do gasto energético em uma residência e, com o recuperador de calor, é possível usar um aparelho menos potente. Troca-se um chuveiro de 5.400 watts por outro de 3.200 watts que funcione bem, mesmo no inverno
de 8 mil MWh, semelhante às necessidades energéticas anuais do estado de Goiás, por exemplo. Em grande escala, por enquanto, o sistema da Rewatt estará apenas nas residências escolhidas pelo Projeto Conviver da Cemig, que tem o objetivo de implementar ações de eficiência energética e aproximar a empresa das populações mais carentes.“Quem vai receber a doação do sistema são residências com mais de quatro pessoas, que são pontuais nos pagamentos e têm a média anual de, no mínimo, 90 kWh por mês”, diz o coordenador do Projeto Conviver, Henrique Fernando França Costa. Além do recuperador, o projeto vai distribuir gratuitamente cerca de 300 mil lâmpadas compactas para substituir as incandescentes que gastam mais. Neste ano a Cemig vai aplicar R$ 21,5 milhões no programa. Os recuperadores representam um investimento de R$ 2,4 milhões. A iniciativa faz parte de uma resolução da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) que indica a todas as concessionárias de energia elétrica a obrigatoriedade de investir 1% da receita operacional líquida em pesquisa e desenvolvimento (P&D) e em projetos de eficiência energética (PEE). No caso do projeto Conviver, outro fator importante é a geração de receita adicional para a família que gastará menos com a conta de luz. Também ganham as comunidades que terão os instaladores do recuperador de calor recrutados no próprio local. O treinamento está sendo realizado pela Rewatt e pela Cemig. A trajetória de sucesso do invento de Magalhães começou logo depois da idéia original em Rio Vermelho. “Eu tinha uma empresa de instalação e reparo de ar-condicionado automotivo e, após o registro da patente de invenção no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), cheguei a fazer cerca de cem protótipos do recuperador. No final buscava a melhor forma, a beleza e a funcionalidade”, lembra Magalhães, formado em tecnologia de edificações no Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG), em Belo Horizonte.“Fiz buscas de patentes internacionais e encontrei algo parecido na Alemanha e na Inglaterra, mas os equipamentos não funcionaram lá. Por teimosia insisti no recuperador, mas acabei quebrando a minha empresa.” A partir
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daí ele passou a procurar parceiros para a produção do equipamento. Estava numa feira de inventores no Pavilhão do Expominas, em março de 2005, em Belo Horizonte, quando o consultor e administrador de empresas Valério José Monteiro conheceu o invento e se interessou em viabilizar aquele produto. “Em abril de 2005, após inúmeras conversas, estruturamos um bom plano de negócios e buscamos capital no mercado. Estivemos com alguns investidores que gostaram da idéia, mas não acreditaram no potencial da empresa. Insistimos mais até encontrarmos o Marco Antônio Almeida Resende, que entrou como sócio investidor, injetando R$ 200 mil e mais dois anos de muita dedicação e trabalho. Com isso conseguimos terminar o desenvolvimento do recuperador”, diz Monteiro. Ele diz que empresas fornecedoras de peças também entraram no projeto, como parceiras de risco. Em 2006 a Rewatt ofereceu o produto para a Cemig, que logo contratou a empresa como parceira no projeto de eficiência energética.
Caminhos da água quente Antes de ir para o chuveiro, a água da caixa ou da rede de abastecimento segue por uma mangueira até uma plataforma de plástico, com um encanamento de alumínio em espiral no interior, onde ocorre a troca de calor. Depois desse pré-aquecimento, a água vai para o chuveiro
Chuveiro elétrico Caixa-d'água
SIRIO J. B. CANÇADO
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O
segundo passo da Rewatt será colocar o produto no mercado. “Estamos nos estruturando para vender o recuperador para um público mais amplo a partir de janeiro de 2008. Com o custo aproximado de R$ 360,00, o produto se paga em dez meses quando utilizado em residências com até quatro pessoas. Há casos em que a redução pode atingir 50% do valor da conta, reduzindo assim o prazo de amortização”, diz Monteiro.“Vamos focar o mercado distribuidor das regiões Sul e Sudeste, inicialmente.” Enquanto isso, o inventor Geraldo Magalhães, aos 56 anos, continua pensando em inovações e novos inventos. Ele acredita que pode transpor esse sistema para outras formas de aquecer o banho, como aqueles em que existem câmaras de aquecimento, chamadas de boilers, como acontece em outros países latino-americanos e na Europa, por exemplo, locais onde inexiste o chuveiro elétrico. “Chuveiro como no Brasil, pelo que sei, só existe no Peru. O recuperador de calor pode ser adaptado para processos de aquecimento de qualquer país. É preciso um projeto específico”, informa Magalhães. Sobre outros inventos, ele prefere não falar. “Ainda estou estudando.” ■
água da rede
água fria
plataforma
água pré-aquecida
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GENÉTICA
Origem desvendada Empresa cria software que torna mais precisos os exames de paternidade
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esponda rápido:o que Pelé, Mick Jagger e o senador alagoano Renan Calheiros têm em comum? Simples:os três tiveram que se submeter a um teste de identificação de paternidade para reconhecer um filho (ou filha) nascido fora do casamento.O rei do futebol precisou admitir que era pai da santista Sandra Regina Machado,falecida no ano passado,aos 42 anos.O roqueiro britânico reconheceu Lucas, hoje com 8 anos,nascido de uma relação com a apresentadora de tevê Luciana Gimenezquando esteve no Brasil com a turnê Bridges to Babylon, em 1998.O presidente do Senado Federal assumiu,em dezembro de 2005,uma filha,hoje com 3 anos,com a jornalista Mônica Veloso.Os testes de paternidade por DNA surgiram no final dos anos 1990 e já ajudaram a desvendar a origem de muita gente e,agora,por meio dos esforços de uma empresa de biotecnologia brasileira,eles se tornaram bem mais confiáveis.Com sede em São Paulo,a Genomic Engenharia Molecular
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criou uma ferramenta computacional, disponível na internet para seus clientes,que permitirá desvendar casos complexos de paternidade,quando o suposto pai já morreu. Para compreender o avanço proporcionado pela Genomic,criada em 1991, é preciso antes saber como são realizados os exames de investigação de paternidade por DNA com pais vivos.O primeiro passo é colher amostras do sangue da mãe, do filho e do provável pai. Em seguida,o DNA é extraído dos leucócitos,as únicas células sangüíneas dotadas de material genético,e é feita uma comparação entre o material genético dos três.Apenas para relembrar,o DNA, o ácido desoxirribonucléico,é a sede das informações genéticas herdadas dos pais e transmitidas aos filhos.As informações estão dispostas ao longo do cromossomo,em posições denominadas locos. Cada loco possui dois ou mais alelos (uma das várias formas de um gene), um deles herdado da mãe e outro do pai. O exame de paternidade é realizado por meio da análise de certo número de lo-
cos e seus respectivos alelos,que são semelhantes em pessoas com vínculo sangüíneo e tendem a ser diferentes em indivíduos não aparentados. Quando o suposto pai está vivo,o exame de paternidade é mais simples, porque o laboratório responsável pela identificação tem em mãos o material genético dos envolvidos e faz a comparação dos locos e alelos.Por uma questão de confiabilidade,os laboratórios procedem a análise de diversos locos e geram um índice de paternidade para cada um deles,levando em conta a freqüência dos alelos na população brasileira.Depois calculam o índice de paternidade acumulado,que é o resultado da multiplicação desses índices de cada loco. Com isso,conseguem precisar quantas vezes o homem investigado tem chance de ser o pai biológico daquela criança em comparação com outro homem escolhido aleatoriamente na população.O passo final é transformar esse índice em uma probabilidade que indica a chance de um suposto indivíduo ser o pai biológico de outro.
MIGUEL BOYAYAN
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Esses cálculos, no entanto, são bem mais complexos de ser executados quando o provável pai já morreu. “É preciso reconstruir o genótipo do morto, mas nem sempre é fácil extrair DNA de cadáveres e o custo de análise de ossadas é muito caro. Sem falar que a pessoa pode ter sido cremada”, explica o médico e bioquímico Martin Whittle, sóciodiretor da Genomic. Essas situações de exame de paternidade com pai morto ou ausente, explica o especialista, são muito comuns quando um homem rico morre e deixa uma filha ou um filho ilegítimo, que tem interesse em pleitear parte da herança. Nesses casos, a saída é recolher amostras do DNA de parentes do pai ausente, como seus pais, irmãos ou filhos biológicos, que compartilham com ele o mesmo material genético, e, a partir dessas informações, tentar reconstituir o DNA do falecido. “Os laboratórios até conseguem fazer a genotipagem dos envolvidos, mas não sabem como executar o cálculo de probabilidade de paternidade porque não há fórmulas matemáticas padrão para definir esse índice quando o suposto pai já morreu”, conta Whittle. Segundo ele, o único software que permite tais cálculos, criado por uma instituição da Noruega, é pouco amigável e difícil de usar. Para desenvolver essas fórmulas, a Genomic teve financiamento do Programa de Inovação Tecnológica em Peque-
nas Empresas (Pipe) da FAPESP, principalmente para o desenvolvimento do software e compra de servidores, e fez parcerias com a consultoria paulista Supremum, especializada em modelagem matemática e estatística, e com um grupo de pesquisadores do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo, que usaram o conceito de redes bayesianas. Essas redes, baseadas em um teorema proposto pelo matemático britânico Thomas Bayes, em 1763, são um modelo de representação da realidade que trabalha com o conhecimento incerto e incompleto. O primeiro é aquele que apresenta deficiências de dados, podem ser inexatos, imparciais ou apenas uma aproximação da realida-
O PROJETO Análise computacional de exame genético de paternidade MODALIDADE
Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe) COORDENADOR
MARTIN RITTER WHITTLE – Genomic INVESTIMENTO
R$ 382.883,00 e US$ 37.700,00 (FAPESP)
de – exatamente o caso da análise de DNA de uma pessoa que já morreu. Concluídos esses cálculos, o passo seguinte da Genomic foi criar uma ferramenta computacional e disponibilizá-la em seu site para os interessados. Munidos de uma senha, os técnicos do laboratório do cliente entram na página da GenomicCalc (http://genomicalc.com.br) e criam uma espécie de perfil para o exame, definindo quantas pessoas serão analisadas e seu parentesco com o investigado. Em seguida, acrescentam os dados do material genético de cada um, preenchendo o número de alelos de cada loco a ser analisado. A partir daí, o próprio site faz todos os cálculos e fornece o índice de paternidade e a probabilidade. “Uma vantagem do nosso software, o primeiro do gênero disponível na internet, é que ele é capaz de fazer o cálculo com qualquer configuração de indivíduos aparentados ao suposto pai”, destaca Whittle. “Nossos potenciais clientes são laboratórios nacionais e estrangeiros que trabalham com teste de paternidade, além de órgãos públicos.” Para ter acesso ao software, os interessados pagam cada exame ou fazem uma assinatura por determinado período. A de um ano custa R$ 8 mil e permite a realização de cem cálculos por mês. ■
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HUMANIDADES
Os alemães de Ijuí e Nova Württemberg (RS) comemoram a ascensão da Alemanha ao nazismo em 1933 HISTÓRIA
Entre a feijoada e o chucrute
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uando se fala em nazistas no Brasil, a imagem que nos vem à cabeça é de um bando ridículo de gaúchos louros levantando o braço direito em meio à fumaceira de um churrasco. Em verdade, a presença nazista foi menos folclórica e de uma importância política notável, em especial para a consolidação do Estado Novo varguista, que completa, neste ano, 70 anos. Nazismo tropical? “O partido nazista no Brasil”, tese de doutorado de Ana Maria Dietrich, recém-defendida na Universidade de São Paulo, traz novas luzes sobre um velho chavão. Pesquisando em arquivos alemães, entrevistando antigos militantes do partido no país e até as filhas do Führer tupiniquim, Hans Henning von Cossel, o chefe da célula nazista brasileira, Ana descobriu que mesmo o nazismo é passível de tropicalização quando abaixo do Equador. “Essa tro-
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picalização ocorreu de acordo com as nuances que a realidade brasileira impôs ao nazismo. Assim foi possível aos alemães e descendentes ao mesmo tempo comemorar o aniversário de Hitler e uma Festa de São João, tomar cerveja alemã e comer canjica”, explica a pesquisadora. Esse é o lado anedótico do nazismo à brasileira, mas há fatores mais importantes e igualmente desconhecidos: o partido nazista brasileiro funcionou por dez anos no país, atuando em 17 estados brasileiros (incluindo-se improváveis Bahia, Pará e Pernambuco), com 2.900 integrantes, um contingente só superado pelo partido na Alemanha. Dos 83 países que tiveram uma “filial” do NSDAP hitleriano, o Brasil ocupa o primeiro lugar, na frente da Áustria, país natal do Führer. Aliás, antes mesmo de Adolf chegar ao poder, em 1933, o partido nazista já existia por aqui. Em 1928, antecedendo em cin-
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Criado conforme o modelo original, partido nazista no Brasil foi “se amolecendo, se abrasileirando, se tropicalizando”, diz pesquisadora | C ARLOS H AAG leiros. A suástica, porém, não abrigava todos. Um dos fatores da tropicalização, observa Dietrich, era que os “alemães puros” eram considerados superiores aos teuto-brasileiros, a geração nascida nos trópicos. Essa divisão seria a perdição nazista: “A criação de um movimento fascista à brasileira, o integralismo, se expandiu e despertou fascínio na comunidade teuto-brasileira, com inúmeras adesões, pois, na década de 1930, o integralismo atraiu, pelo seu conteúdo ideológico, muitos alemães e descendentes, em especial os ‘desprezados’ pelo nazismo internacional por suas origens mistas”, nota a autora.
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as, como tudo que é nazista, há situações folclóricas. Num espírito digno dos nazistas hollywoodianos de Indiana Jones, houve expedições do Reich ao Brasil, visto como um laboratório racial, com o objetivo de verificar as condições de colonização da raça branca em terras tropicais. Em 1936, lembra Dietrich, o Instituto Tropical de Hamburgo enviou um grupo de cientistas germânicos para estudar as populações alemãs que viviam no Espírito Santo. Receberam auxílio do governo
brasileiro e apoio de Henrique da Rocha Lima, segundo a pesquisadora, saudado pelos nazistas como “nosso velho amigo, o professor”. Rocha Lima (que recebeu uma comenda das mãos do Führer) participou ativamente dos estudos sobre a febre amarela com Oswaldo Cruz e esteve à frente de Manguinhos, quase levando um Nobel por seus estudos sobre uma variante de tifo transmitido por piolhos aos combatentes em trincheiras. O resultado da pesquisa capixaba mostrou que “a raça ariana poderia sobreviver bem nos trópicos, desde que evitada a mistura com a população local”. Dentro do espírito do Lebensraum (a busca do “espaço vital” via expansionismo militar), o Brasil tinha potencial, embora, nas palavras do próprio Führer,“não vamos desembarcar tropas e conquistar o Brasil com armas na mão. As armas que temos, para a ação no exterior, são as que não se vêem”. A Amazônia igualmente interessava ao Reich. Entre 1935 e 1937, outra expedição percorreu o rio Jari até a fronteira com a Guiana Francesa, resultando num documentário sobre o “enigma do inferno da mata”, feito pela UFA, o célebre estúdio cinematográfico alemão. Houve a
FOTOS STAATSBIBLIOTHEK BERLIN, ALEMANHA
co anos a ascensão de Hitler, foi criado um grupo em Benedito Timbó, Santa Catarina, não só a primeira célula estrangeira do país, como a primeira do movimento nazista no exterior. Assim como o comunismo preconizava sua internacionalização, nazistas, seus rivais, queriam o mesmo. “O partido nazista no Brasil era para a Alemanha muito mais importante do que para o Brasil. Enquanto o governo brasileiro não se incomodou por dez anos com sua existência, o governo hitlerista fez dele o representante do povo alemão em território brasileiro e as ações contra este partido tinham conseqüências diretas nas relações com o Brasil”, observa Dietrich. Sua articulação e controle eram feitos pela Auslandorganisation der NSDAP (Organização do partido nazista no exterior, ou A.O.), cujo chefe, Ernst von Bohle, estava diretamente subordinado a Rudolf Hess, o segundo da hierarquia nazista, e tinha o mesmo status de dirigentes como Joseph Goebbels. O mandamento central da A.O. era a manutenção do Deutschtum, a “germanidade”, dos alemães no exterior, que não deveriam se misturar com os estrangeiros ou usar a língua local. “Em contrapartida, como solidariedade a Gastland (terra de hospedagem), os países onde estavam as comunidades de alemães, não era permitida aos partidários a participação na política local. Os nazistas deveriam se manter neutros com relação à política interna e não poderiam divulgar suas idéias aos nativos”, nota a pesquisadora. A propaganda apelava à responsabilidade do alemão no exterior com sua pátria.“A Alemanha de Hitler resgatava e oficializava o sentimento de ‘pertencimento’ do povo alemão à nação alemã, cujas origens remontam ao pangermanismo e ao anti-semitismo eliminacionista germânicos manifestos desde a segunda metade do século XIX”, afirma a historiadora Maria Luíza Tucci Carneiro, diretora do Laboratório de Estudos sobre a Intolerância, da Universidade de São Paulo (USP). A eleição de Hitler, em 1933, contou com preciosos votos desses “hóspedes”, inclusive brasi-
Grupo do partido nazista de Hamburger Berg (RS) em marcha em 1933 PESQUISA FAPESP 140
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to de ser indicado à chefia do grupo, em 1934, no lugar de um colega corrupto, graças a sua capacidade de transitar com facilidade entre brasileiros e alemães, como por sua familiaridade com os estadistas Vargas e Hitler. Ana Dietrich, na Alemanha, conseguiu entrevistar as filhas de Cossel que revelaram ser ele “muito bem visto por Vargas, que lhe deu de presente uma pintura sua com uma bela moldura”. Elas também contaram à pesquisadora que, ao deixar o Brasil, em 1942, após o rompimento do Estado Novo com o Eixo, Cossel, convidado a trabalhar no Ministério das Relações Exteriores, declinou e foi servir na Marinha. “Meu pai disse que os olhou e afirmou: ‘Nisso não colaboro’. Ele também nos disse que não se impressionara com Hitler e só enviava relatórios a ele. O partido nazista no Brasil foi algo diferente. Como meu pai entrou, as pessoas acham que ele sabia de tudo, mas não foi assim. No exterior, as pessoas são mais alemãs porque existe um sentimento de pátria”, afirmou Gisela
von Cossel. Memórias familiares nem sempre são confiáveis.“A relação de Cossel com Hitler e Vargas (que, em carta ao Führer, o chamava de “grande e bom amigo”) tem um caráter especial que mostra a amplitude do movimento nazista no Brasil. Não era apenas um movimento de colonos ‘saudosistas’, e sim algo que interferiu nos grandes escalões de poder da sociedade”, prefere acreditar, com razão, a pesquisadora.
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quanto à questão judaica? Como agiram os nazistas brasileiros em relação a uma comunidade que, nos anos 1930, tinha 40 mil integrantes? “A convivência de alemães com judeus era rara, só há poucos registros. O anti-semitismo local era um discurso importado, ou seja, na prática ele quase inexistia (embora tenha existido) e, na teoria, ele existia na publicação de artigos contra judeus. Mas o tom era de luta entre os ‘judeus de lá’ contra os ‘alemães de lá’”, diz Dietrich. O “racismo tropical”era mais forte contra os negros e mestiços,
ARQUIVO DO ESTADO SÃO PAULO
“tentativa de fazer amizade entre alemães e índios”, sem falar nas caixas de peles de animais, esqueletos, fósseis e milhares de artefatos arqueológicos levados para a Vaterland, em sigilo, para análise posterior. Até hoje uma cruz de madeira amazônica, com a suástica, marca o lugar onde está enterrado Josef Greiner, intérprete do grupo nazista. Segundo Dietrich, o partido brasileiro tinha ligação direta com o Reich e designou Hans von Cossel para chefiar a célula nacional, a partir de São Paulo. Ele viajava com freqüência para a Alemanha, onde foi apresentado a Hitler e elogiado por Joachim von Ribbentropp, o ministro das Relações Exteriores do III Reich, como “um dos mais bem afortunados e confiáveis chefes nacionais do NSDAP que comanda o maior grupo nacional da A.O.”. Em 1938 teve o privilégio de ganhar uma festa de despedida organizada pelo vice de Hitler, Hess. Cossel chegou ao Rio em 1931, como adido cultural à embaixada alemã e impressionou seus chefes a pon-
Fotografia apreendida pela polícia da inauguração da sede nazista de Presidente Wenceslau, anos 1930. Marcas à caneta feita pela polícia política 82
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FOLHA DA NOITE, 15 DE ABRIL DE 1939
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Charge de Belmonte e jornal do clube alemão de Pernambuco
classificados como “brasileiros”de forma pejorativa. Há mesmo casos hilários sobre casamentos “étnicos”, como o de um colono catarinense que resolveu “importar” uma noiva ariana, apenas para descobrir que se casara com uma mulher “feia e com uma perna mais curta do que a outra”. Há outros, mais sintomáticos, como o de Roland Braun, da diretoria do partido nazista em São Paulo, que se casou com uma brasileira e batizou sua filha brasileira de Irene.“Igualmente, não houve, ao contrário do que se costuma afirmar, um isolamento dessas comunidades, rurais ou urbanas, que interagiam com a sociedade local e absorviam hábitos e costumes desta.” O Reich fazia “vista grossa” para esses pecadilhos tropicais, já que a comunidade brasileira, além dos serviços diplomáticos informais que fazia para a Vaterland, igualmente era fonte de recursos:“Morando no Brasil desde 1924, Otto Braun coordenava toda uma série de transações proibidas de câmbio e, ao ser preso, em 1942, forneceu detalhes de como se faziam espionagem e fraudes financeiras no Brasil por meio do Banco Alemão Transatlântico, que transferia dinheiro da comunidade para bancos suíços, que depois eram enviados à Alemanha”, revela Dietrich. A verdadeira
face tropical do nazismo, porém, foi política e acabou sendo um “presente”para o Estado Novo: a relação entre nazistas e a Ação Integralista Brasileira (AIB), de Plínio Salgado, com suas camisas verdes e seu “anauê”. “O integralismo pode ser visto como importante característica do nazismo tropical por ser algo extraordinário que não estava nos planos originais da organização do partido nazista no Brasil”, explica Dietrich. O canto de sereia integralista era doce: “Se tu fosses alemão serias Nacional Socialista. És brasileiro, inscreve-te, portanto, nas Legiões Integralistas e vem vestir a camisa verde dos que se batem pelo bem do Brasil”. Só que, enquanto a AIB, como movimento nacionalista, não concordava com o nacionalismo alemão (embora, com fins de propaganda, se apresentasse como a solução viável para a materialização do Deutschtum tropical), o nazismo não queria a assimilação da comunidade alemã no Brasil. “Caracterizando-o pejorativamente como nativista, o NSDAP era totalmente contrário a que os alemães e seus descendentes se filiassem à AIB, pois se achava que isso iria afetar a germanização do Brasil. Sob a visão do III Reich, o integralismo destacava principalmente a questão racial, visando melhorar a raça com a di-
minuição de negros e índios e o aumento de europeus. O governo nazista chamava isso de ‘lusitanização’, encarada como ameaça ao Deutschtum.”
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isto com desprezo pelos alemães de Berlim, conta a pesquisadora, o integralismo tornou-se um anátema após a patética tentativa de golpe contra Vargas, em 1938, com a suspeita de participação de nazistas brasileiros. Além de desobediência aos ditames da Alemanha, o putsch tupiniquim também deixava o Estado alemão numa saiajusta indesejável com o governo brasileiro, ao qual procurava, sem sucesso, agradar, mesmo ciente de que Oswaldo Aranha era o chanceler de Getúlio. Este preferia virar o jogo em favor dos Estados Unidos, que considerava parceiros mais valiosos do que a Alemanha, embora, nos anos 1930, o comércio entre tedescos e brasileiros fosse o dobro do feito com os ianques. Plínio Salgado, de pedra no sapato do ditador brasileiro, virou pedregulho nas botas de Hitler por um erro de cálculo de Berlim. “Por culpa da proibição de descendentes de alemães de entrar no partido, este perdeu uma de suas maiores forças no Sul, onde a comunidade alemã mais expressiva era de teuto-brasileiros. Assim, hou-
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Jornais nazistas do Rio de Janeiro e, ao lado, de São Paulo, com artigo anti-semita
ve uma reação ao nazismo segregacionista, líderes não foram aceitos e o integralismo se tornou a opção viável”, analisa a historiadora. Tomando do próprio remédio, o nazismo tradicional errou no passo de ganso para a sua versão tropical. O movimento conservador, direitista e nacionalista de Salgado atendia ao que os alemães nascidos no Brasil queriam, mas eram alijados pela Vaterland. No fim das contas, ao vencedor, muitas Kartoffel. Diante do imbróglio que envolvia nazistas e integralistas,Vargas pôde, sem problemas, colocar várias organizações na clandestinidade, inclusive a célula do NSDAP no país.“Afinal, entre 1938 e 1942, dentro do projeto de nacionalização do Brasil almejado por Vargas, o alemão passa de perigo ideológico, pela divulgação do ideário nazista, para perigo étnico, como alienígena ao ‘Homem Novo’ que se desejava construir. Com a entrada do Brasil, na Segunda Guerra Mundial, em 1942, ao lado dos Aliados, o perigo vira ‘militar e ideológico’”, observa a pesquisadora. Vargas estava com o melhor dos mun84
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dos políticos graças à inabilidade de nazistas e integralistas. Dessa forma, não precisava mais se preocupar com indivíduos que venerassem Hitler, e não a ele. Ao mesmo tempo, nota, pôde canalizar a seu favor toda a demanda autoritária, xenófoba e nacionalista desses grupos. Bastava fazer com que se sentissem vinculados ao Estado Novo, e não ao III Reich. Lá estava, para todos, um chefe “pai da nação”, anticomunista, adepto da ordem, do progresso e das massas.
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mesmo ocorreu entre a Itália de Mussolini e a AIB. “A ação fascista, que de início apoiou Salgado, foi muito útil à direita nacional ao popularizar as idéias autoritárias e estimular muitas pessoas a uma maior simpatia em relação ao Estado Novo”, observa o historiador João Fábio Bertonha, que, em seu doutorado, trabalhou com a contrapartida italiana da tese de Ana Dietrich. Os fascistas, melhores políticos do que os germânicos, por um longo tempo fizeram um jogo duplo com Vargas e seus inimigos, os integralistas,
apostando em ganhar em quem vencesse no futuro. Como o que houve com os nazistas brasileiros, foram os filhos de imigrantes italianos que optaram pelo apoio total à AIB, ao contrário de seus pais ou avós, italianos natos, que eram fascistas à Mussolini. Também, como no caso alemão, havia uma preocupação étnica implicada no apoio ao movimento de Salgado e, após 1938, um total descrédito na capacidade revolucionária dos integralistas. A italianidade falava mais alto, como a germanidade. Aqui Salgado deu-se melhor, pois antes de ser esquecido recebeu grandes somas de dinheiro vindas de Roma. Curiosamente, a poderosa burguesia paulistana, fervorosa apoiadora do fascismo italiano, fechou seus cofres ao integralismo. “Sobraram os descendentes italianos que, influenciados por esse contexto político-nacional, por seus problemas de aceitação na sociedade brasileira como filhos de imigrantes e pelo clima geral de apoio às idéias de direita, suscitado pela propaganda italiana, poderiam ter sido cooptados pelos fascios, mas acabaram, dada a sua aculturação e o desejo de serem vistos como brasileiros e de participar da política brasileira ativamente, por aderir à AIB”, nota Bertonha. Quando essa se quebrou, dirigiram seu entusiasmo ao similar nacional que estava no poder: o varguismo. Nazismo que acabou em “feijoada”? Há quatro variáveis que demonstram a tropicalização do nazismo no Brasil: o racismo tropical, ou seja, além dos judeus, houve preconceito contra outros grupos, como os negros e mestiços, que estavam mais em contato com o partido; a possibilidade de casamentos interétnicos e certa resistência da população local ao germanismo, já que até o diretor da célula nazista paulista, Roland Braun, era casado com uma brasileira e muitos alemães diziam se ‘sentir em casa’na Gastland nacional; a presença do integralismo que distorceu a lógica do modelo; e a mistura de hábitos, já que, ao contrário do preconizado, não houve a formação de guetos teutônicos, mas uma interação com a sociedade local, em que os alemães absorviam hábitos e costumes”, enumera Dietrich. Ainda assim, as estratégias de propaganda desenvolvidas surtiram efeito sobre os colonos do Sul, que, observa Tucci Carneiro, “se tornaram apáticos à política brasileira com tendên-
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cias ao auto-enclausuramento”, conforme documentou um jornal da colônia nazista:“Somos 1 milhão de alemães no Brasil. Somos um exército sem soldados, uma igreja sem torre, aceitai o desafio agora. Vós fostes chamados para serem líderes deste povo, pois sois o povo mais inteligente desta terra”. Igualmente a colônia alemã estava fragmentada em relação aos judeus.“Getúlio Vargas cercouse de germanófilos convictos, políticos e intelectuais que não ocultavam seu fascínio pelas conquistas empreendidas pela nova Alemanha”, observa Tucci Carneiro. Parte da comunidade alemã no Sul do Brasil acreditava que reproduzia, em “microrregionalidades”, a sua “velha Alemanha” agora reavivada pelo Führer.
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tas coroados pelos louros do fascismo. “Essa leitura possibilita compreender o árduo processo de gestação dos direitos humanos no Brasil. A história do Brasil contemporâneo ainda está para ser escrita trazendo a público a postura omissa do governo brasileiro diante da questão judaica. O Brasil, a partir de 1937, editou uma série de circulares secretas proibindo a concessão de vistos aos judeus e facilitando a entrada de ‘arianos puros’.” Há várias cartas anônimas em arquivos do Deops com denúncias de desembarque de judeus nos portos do Rio e Santos. Assim como a historiadora descobriu uma carta do chanceler de Vargas, Oswaldo Aranha, que, como presidente das Nações Unidas, criou o Estado de Israel: “Nela, Aranha afirma a importância de se criar Israel justamente para evitar a migração de mais judeus e pôr fim à entrada ‘indesejada’ deles no Brasil”, conta Tucci Carneiro. A união de chucrute e feijoada certamente provocou indigestões históricas que merecem ser recuperadas. ■
RIBAS, ANTONIO DE LARA
ssa aproximação dos teutos com a cultura original provocou um isolamento lingüístico e cultural que, durante o Estado Novo, foi combatido pelas autoridades políticas que interpretavam essa postura como “erosão do espírito de brasilidade”. Segundo a pesqui-
sadora, esse discurso nacionalista não apenas serviu para combater os quistos raciais, mas também para encobrir valores racistas e anti-semitas sustentados pela elite política que falava em “promover o homem brasileiro, defender o desenvolvimento econômico e a paz social do país”. A professora lembra que o conjunto de decretos nacionalistas e xenófobos promulgados em 1938 pelo Estado Novo, assim como a Polícia Política, serviu para legitimar a ação repressiva e preventiva contra aqueles que, segundo o discurso oficial, eram considerados como elementos ameaçadores para a composição racial e para a ordem política brasileiras.“Quem eram os elementos corrosivos da nação brasileira? Os judeus tornados apátridas pelos nazi-fascistas. Somavam-se a essa ‘escória’ os comunistas, os ciganos, os negros, tratados como párias da humanidade.” Assim, segundo Tucci Carneiro, a postura de neutralidade de Vargas ante os países do Eixo era uma fachada, uma máscara adequada aos grandes estadis-
Primeiro Grupo Hitlerista fundado no estado de Santa Catarina, no distrito de Bella Aliança (Rio do Sul), no vale do Itajaí (SC), década de 1930 PESQUISA FAPESP 140
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A história ensinada pelos alunos Nos 70 anos da UNE, estudo revela papel do movimento estudantil
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Passeata de estudantes em julho de 1968
ão é de hoje que os jovens fazem a hora e não esperam acontecer, batem o pé que é proibido proibir e não confiam em ninguém com mais de 30 anos. Mesmo o professor, apesar de seus mais de 30 conselhos, infelizmente, tem mais de 30 e, logo, não é digno de confiança.“Não é possível pensar em nenhum tipo de insurreição, resistência ou confronto político sem os jovens estudantes. Do século XIX, passando pelas grandes revoluções do século XX, bem como do maio de 1968 e a luta armada na América Latina, os jovens demonstram essa disponibilidade especial, difícil de ser encontrada nos adultos. Historicamente, essa situação tem gerado ações radicais, corajosas, voluntariosas. Para o bem e para o mal”, analisa Maria Paula Araújo, historiadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde coordena o núcleo de história oral, autora do recém-lançado Memórias estudantis: da fundação da UNE aos nossos dias (Relume Dumará). No ano em que a União Nacional dos Estudantes “completa” 70 anos, o livro recupera, por meio de 300 horas de depoimentos com cem militantes de ontem e de hoje, a história do Brasil contada do ponto de vista daqueles com menos de 30. Em conjunto com o livro, o cineasta Sílvio Tendler lança dois média-metragens, Ou ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil e O afeto que se encerra em nosso peito juvenil, documentários que, ao lado do estudo de Maria Paula, fazem parte do projeto Memória do Movimento Estudantil (www.mme.org.br), fruto de uma curiosa parceria entre a UNE, a Fundação Roberto Marinho e a Petrobras. Afinal, se o tema é o movimento estudantil nem sempre é proibido proibir polêmicas. A própria data de criação da entidade, observa a autora, é contestada: “Para uns, ela nasceu em 1937; para outros, sua verdadeira fundação ocorreu em 1938”. Esse intervalo de um ano, porém, faz toda a diferença.“O projeto de criação de uma UNE, às vésperas do Estado Novo e sob a chancela do Ministério da Educação, de Gustavo Capanema, tinha o propósito político de submeter politicamente a força desse segmento social que começava a se expandir. A idéia era criar uma entidade despolitizada que permitisse o controle dos estudantes pelo Estado”, explica a pesquisadora. No ano seguinte, o clima era bem outro: “No II Congresso Nacional de Estudantes a disposição dos estudantes era claramente de participar do debate dos grandes temas nacionais, com um compromisso expressamente político”. Quem sabe faz a hora. O ministério Capanema valorizava o ensino universitário, visto como celeiro das elites que dirigiriam o país.“Foi o reconhecimento da importância dos estudantes pelo governo que gerou as tensões entre UNE e Estado Novo”, avalia Maria Paula.
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Vladimir Palmeira discursa em comício e, abaixo, manifestação pró-anistia no Rio de Janeiro, em 1979
Ao contrário do esperado, já em 1938 eles saíram nas ruas denunciando a simpatia estatal pelo nazifascismo e, mais tarde, exigindo que o governo declarasse guerra ao Eixo. Simbolicamente, em 1942, desrespeitando Capanema, a UNE fez do Clube Germânia (ponto de encontro de nazistas), no Rio de Janeiro, sua sede até 1980, quando foi demolida pelo governo militar. No mesmo ano, Vargas, esperto, legalizou a entidade. Apenas a partir de 1947 é que a UNE iniciaria a chamada “fase de hegemonia socialista”, que se estenderia até 1950, lembra a autora, quando a entidade passa a ser dirigida por estudantes udenistas. Nesse interregno “isolado e estranho à tradição da entidade”, destacou-se a figura de Paulo Egydio Martins, estudante de engenharia e, mais tarde, governador de São Paulo.“O grupo dele à frente da UNE discordava da ênfase dada às questões nacionais em detrimento dos problemas estudantis”, observa Maria Paula. A esquerda esteve alijada do comando da organização, voltando apenas em 1956, momento em que Juscelino Kubitschek pediu a colaboração da UNE para a preservação do regime. Em 1961 88
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a entidade participou da “campanha da legalidade”, que visava garantir a posse de Jango, após a renúncia de Jânio. JUC – Então a UNE estava sob a direção de Aldo Arantes, apoiado pela Juventude Universitária Católica (JUC), associação civil criada para difundir a doutrina da Igreja no movimento estudantil. Em pouco tempo, essa ligação inusitada, nota Maria Paula, se romperia com a ascensão da Ação Popular (AP), uma dissidência da JUC. Em 1963 a facção elegeu José Serra como presidente da UNE, agora imbuída do espírito de transformação radical da sociedade brasileira. Os militares, porém, não esperaram acontecer. “Apesar de a primeira palavra de ordem da UNE ter sido ‘resistência’ ao golpe de 1964, não houve resistência”, conta a autora. “Não houve, no movimento estudantil, nenhuma manifestação. Eu atribuo isso ao fato de que as grandes maiorias, embora penetradas pelo nacionalismo e pelo reformismo, não estavam dispostas a se arriscar para salvar o governo Jango”, afirma, em depoimento, o cientista político Daniel Aarão Reis. Segundo ele, “há uma tendên-
cia de romantizar o movimento estudantil como revolucionário. Não é fato, embora boa parte das lideranças migrou para a revolução”. Assim, as posições dos militantes de esquerda estudantis e de líderes da UNE não expressavam mais exatamente o espírito da massa dos universitários, muitos filhos das classes médias que apoiaram o golpe.“O estudante comum, a grande massa deles, se deixou levar pelo discurso anticomunista”, observa o historiador José Roberto Martins Filho em seu artigo “O movimento estudantil na conjuntura do golpe”. Com sua sede incendiada em abril de 1964, colocada na ilegalidade em novembro pela Lei Suplicy e pelo Decreto Aragão, que proibiu a organização estudantil em nível nacional, a UNE viuse diante de um grande dilema. “Entre os anos 1960 e 1970 havia um desejo de ação política imediata que se expressou na luta armada com muitas organizações formadas por jovens universitários que abandonaram as salas de aula para pegar em armas, inspirados pelo
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Vietnã, Cuba e a ‘guerra popular’ da Revolução Chinesa”, nota a autora. Até a morte do estudante Edson Luís, no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, estopim da revolta estudantil de 1968, a UNE ainda lutou contra o acordo MEC-Usaid, que, segundo a pesquisadora, queria a privatização do ensino, nos moldes americanos, em total contramão à principal bandeira da entidade.“Houve uma resposta ao trauma de 1964, quando não se agiu. Quando veio 1968, a reação foi: ‘Agora nós vamos reagir’. Luta armada até então era algo pequeno. A partir do AI-5, durante três anos há um movimento intenso de participação do movimento estudantil”, lembra Aarão Reis. Daí, a Passeata dos Cem Mil, após a morte do estudante, a invasão da Maria Antônia e o congresso da UNE em Ibiúna, em outubro de 1968, segundo Maria Paula, o “marco final de todo o processo político, de confronto e radicalização vividos pelo movimento estudantil. Depois da prisão dos estudantes a reação deles entrou em descenso”. Reconstrução – Inusitadamente, a reconstrução da UNE, no congresso da entidade em Salvador, em 1979, deveuse ao então governador da Bahia, Antonio Carlos Magalhães, que, desobedecendo ordens do ministro da Justiça, cedeu o Centro de Convenções da Bahia para os estudantes. Isso permitiu, no fu-
turo, a participação da UNE na movimentação pelas eleições diretas e pelas manifestações que pediam a retirada de Collor do governo. O legado, porém, foi pesado para as novas gerações. “Quando se faz referência à juventude dos anos 1960 e 1970, focaliza-se aquela envolvida nas lutas democráticas, ignorando os demais, a grande maioria que não participava delas. Os estudantes são vistos, no geral, como uma geração combativa e revolucionária”, explica a antropóloga Regina Novaes em seu artigo “Juventude e participação social”.“O efeito dessa comparação é o de desconsiderar a possibilidade de o jovem de hoje agir motivado por interesses coletivos de transformação social.” Daí as críticas a uma suposta “apatia social” dos estudantes atuais. “Os jovens de hoje têm outras formas organizativas que passam, em geral, longe das organizações tradicionais políticas. Eles assumiram pautas individuais e ficaram distantes de utopias revolucionárias, o que não significa que rejeitem engajar-se numa causa coletiva, desde que se respeite sua autonomia individual.” O que esperar do futuro? Talvez a resposta esteja numa pequena crônica de Drummond, em que uma garotinha exige, e consegue, do pai, lasanha:“Se, na conjuntura, o poder jovem cambaleia, vem aí, com força total, o poder ultrajovem”. ■
Lembrete amargo Governo reconhece atrocidades do regime militar EDUARDO CESAR
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Quem diria que, passadas mais de quatro décadas, a célebre frase do ministro da Educação Suplicy de Lacerda iria finalmente ganhar sentido (com certeza, não o esperado pelo implacável perseguidor da UNE): “Os estudantes são homens de amanhã, mas nós somos homens de hoje”. Foi o trabalho dos “homens de amanhã” que trouxe à luz, para os verdadeiros homens de hoje, o que fizeram os homens do passado. Com a presença do presidente Lula, foi lançado, no mês passado, o livro Direito à memória e à verdade, elaborado pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e editado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), que relata os casos de 479 mortos e desaparecidos entre 1961 e 1988, prazo definido pela Lei 9.140, de 1995. O estudo, fruto de 11 anos de trabalho, descreve em detalhes casos de tortura, estupro, esquartejamento e ocultação de cadáveres, com os nomes dos militares responsáveis pelos crimes. O levantamento inclui o nome e dados pessoais de cada vítima, com uma pequena biografia, descrição das ações políticas e de como aconteceu a prisão, perseguição e morte e que membros da comissão votaram pela aprovação ou indeferimento do direito à reparação. Este é o primeiro documento oficial do governo brasileiro reconhecendo que os órgãos de repressão do regime militar foram os responsáveis pelas mortes de centenas de militantes. PESQUISA FAPESP 140
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do Tropicalismo
A (in)digestão
M ovim ento liderado por C aetano e G il chega aos 40 anos ainda polêm ico G ONÇALO J UNIOR
A
música é tropicalista há 40 anos. Nesse período as mais expressivas tendências de mercado de discos seguiram uma receita de eficiência plantada pelo Tropicalismo ou Tropicália de Caetano Veloso, Gilberto Gil, TomZé, Torquato Neto, Mutantes e companhia: a de misturar elementos supostamente antagônicos ou opostos para gerar uma terceira coisa, híbrida e mestiça, como é o Brasil. Autor do livro Tropicalismo – Decadência bonita do samba (Boitempo, 2000), o jornalista Pedro Alexandre Sanches ressalta que a discussão que alimenta a Tropicália tem a ver com a mistura instalada entre o antigo e o novo, o tradicional e o moderno, o homem e a mulher, a direita e a esquerda e muitas outras dualidades com o propósito de gerar um terceiro elemento, uma nova tendência. “O gênero impuro move as coisas, é a democracia racial aplicada à música e isso é bacana porque não somos puros no aspecto racial”, observa. A conclusão é de que o Tropicalismo, tanto tempo depois, incorporado à cultura nacional – e reafirmado nos tempos de globalização em seu sentido mais amplo –, ainda não foi devidamente digerido. O conceito existe. Sua total aceitação, não. Na academia, o tema é estudado faz tempo, mas só agora começa a não se limitar à música – e um pouco às artes plásticas – para atingir outros segmentos diversos como a moda, a mídia e o comportamento. Uma dimensão alcançada com eficiência pela exposição Tropicália – Uma revolução na cultura brasileira (1967-1972), encerrada em 30 de setembro e exibida originalmente há dois anos pelo Museu de Artes Contemporâneas de Chicago. Acompanhado de um belo catálogo lançado em português pela editora Cosac Naify, com curadoria de Carlos Basualdo, o
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evento é o único grande acontecimento que marca a passagem do aniversário redondo da Tropicália. Mesmo assim, foi restrito no Brasil ao Rio de Janeiro – São Paulo, berço de tudo, ficou de fora. Uma falta de interesse desproporcional ao seu valor. Embora uma bibliografia razoável tenha sido publicada a respeito do tema, há vários aspectos a serem estudados. Feliciano José Bezerra Filho, que defendeu em 2005 o doutorado “Ressonâncias da Tropicália – Mídia e cultura na canção brasileira”, pela Unicamp, observa que a própria dificuldade de chamar a Tropicália de “movimento”e sua rapidez de intervenção histórica, às vezes, causam esta dificuldade. “Precisamos também aprofundar melhor o debate em torno do gênero musical.” O pesquisador questiona se a Tropicália criou um gênero musical e se é possível falar de uma canção do gênero fora do contexto histórico de 1967/68. “Sabemos ser possível algum artista fazer uma canção ‘bossa nova’, intencionalmente, hoje, pois a forma bossa nova está sedimentada. Mas e no caso da Tropicália? Então essa foi apenas uma atitude? São questões que, a meu ver, merecem maiores reflexões.” Eduardo Larson, autor do mestrado “Tropicalismo: Caetano Veloso, Gilberto Gil, o disco-manifesto Tropicália ou panis et circensis”, defendido em 2006 na Unicamp, afirma que esse é um tema que tem sido sempre bastante visitado, mas faltam trabalhos realmente consistentes sobre outras questões que não as históricas e/ou biográficas. “As possibilidades de
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pesquisa continuam muito abertas em relação à linguagem musical e cancional dos tropicalistas, principalmente daqueles que não são o Caetano Veloso e o Gilberto Gil.” Como exemplo, ele cita a participação de Rogério Duprat nos discos e shows tropicalistas. Dois pontos precisam ser aprofundados em relação ao Tropicalismo, na opinião de Maria Claudia Bonádio. Primeiro, o potencial midiático do movimento. Ou seja, sua presença na publicidade, o programa de TV Divino maravilhoso e as fotografias e as reportagens sobre o movimento na impressa “mundana” – seções de cultura de jornais e revistas. Depois, a visualidade adotada. “Muito se analisam as letras das músicas, mas não conheço estudos que reflitam com profundidade sobre as aparências dos seus principais expoentes, como Gil, Caetano, Gal e Mutantes; as capas dos discos etc.” Em seu estudo, Bezerra Filho procurou mostrar o desdobramento da Tropicália, a possibilidade de ressonâncias em trabalhos posteriores de outros artistas que utilizaram, consciente ou inconscientemente, as bases lançadas pela Tropicália. “Acredito que qualquer in92
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vestigação em torno de sua compreensão deve partir da grande síntese tropicalista, que é o interesse múltiplo e a fusão entre cultura popular, indústria cultural e vanguarda”, explica ele. “Foi um momento em que a música popular brasileira experimentou uma possibilidade de síntese entre esses três elementos, o que fez a grandeza da Tropicália.” Nesse aspecto, prossegue ele, provou-se que cultura não pode nunca ser vista unilateralmente, que as pulsões criativas devem manter-se sempre vivas em direção ao futuro e, ao mesmo tempo, reconhecer aspectos dessa mesma pulsão em momentos anteriores. “O trânsito livre por gêneros e formas musicais”, diz o pesquisador, “foi uma reivindicação tropicalista, cumprida de forma inteligente e transgressora, dentro do ambiente musical brasileiro, normalmente compartimentado e, cada vez mais, extremamente segmentado”. Professora de moda, Maria Cláudia defendeu em 2005 o doutorado “O fio sintético é um show!: moda, política e publicidade Rhodia S.A. – 1960-1970”, pela Unicamp, na qual o Tropicalismo é observado de um modo bastante original. Em 1955, conta ela, a Rhodia obteve as
patentes para a fabricação dos fios e fibras sintéticas no país. Para promover sua popularização, entre 1960 e 1970, a empresa francesa implementou uma política de publicidade. Essa tarefa foi coordenada por Lívio Rangan, gerente de publicidade, que optou por anunciar diretamente à consumidora final. Teve início, então, a produção regular de desfiles, editoriais e propagandas de moda no Brasil.Vários espaços (Pelourinho, praias do Nordeste, Brasília), artistas (Nara Leão, Sérgio Mendes, Mutantes) e temas (café, paisagem exótica, futebol) foram utilizados para agregar brasilidade, estilo de vida e qualidade internacional aos produtos e às marcas Rhodia. A utilização de artistas e elementos estéticos associados à Tropicália no editorial de moda (veiculado na revista Jóia, de abril de 1968) e no show-desfile Momento 68 também serve a essa finalidade. R hodia – Isso aconteceu porque uma
das características do Tropicalismo era misturar as referências do popular nacional ao pop internacional. “Destaco que, ao se valer da Tropicália como tema, a publicidade da Rhodia não pretendia ressaltar valores que parte da crítica e dos estudos acadêmicos associou ao movimento, como crítica ao regime militar e à industria cultural, mas, sim, apresentar uma publicidade calcada no resgate de aspectos populares e arcaicos da cultura brasileira e recheada de influências estéticas internacionais.” Além da mistura entre nacional e internacional, arcaico e moderno, explica a pesquisadora, a publicidade da Rhodia, ao se apropriar do Tropicalismo, fez uma releitura próxima ao “verde-amarelismo”, tal como o definiu Marilena Chaui, que incorpora os aspectos citados como uma nova mitologia nacional, para a qual ser absurdo é um novo signo da suprema originalidade do brasi-
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leiro. “É difícil mensurar o alcance que as campanhas e os shows obtiveram, mas me parece que quando a mídia absorve ou aposta num movimento é porque ele já deu certo, já pegou, é vendável.” De forma intuitiva, Maria Cláudia acredita que a associação da Tropicália com a moda ajudou a reforçar o seu caráter de vanguarda.“Até porque acredito que seja possível transpor para o trabalho de criação publicitária as colocações que Gilda de Mello e Souza faz sobre o criador de modas, de alguém que terá de alertar sua sensibilidade para o momento social e pressentir os esgotamentos estéticos em via de se processar. São impressões, mais do que afirmações.” Outro aspecto que ela considera importante destacar é que a publicidade da Rhodia, ao se utilizar da Tropicália, não se apropriou das roupas usadas pelos seus principais expositores, como as vestes amalucadas dos Mutantes ou o estilo hippie debochado adotado por Caetano e Gil. “O que aparece nesses editoriais e desfiles são roupas em consonância com a moda internacional e apresentando suas principais tendências de moda vigentes no período, como
terninhos de corte reto, na melhor linha Courrèges, e vestidos sensuais que revisitam os anos 1930, entre outros.” Popular – Sem a presença da mídia, teria o Tropicalismo vingado? Bezerra Filho afirma que, como a imprensa acompanhava melhor os fatos e as manifestações musicais, com ampla cobertura dos festivais de música popular da TV, o interesse pelo movimento foi quase natural, pela própria necessidade de novidades que move o sistema midiático como um todo. A relevância histórica, no entanto, acrescenta ele, foi alcançada muito mais pela própria força inovadora do que por alguma estratégia deliberada da mídia. “Os debates culturais à época eram mais acirrados e os tropicalistas entraram na discussão, sobre música popular e cultura brasileira, com níveis de reflexão diferenciados, despertando interesse nos setores envolvidos com a cultura musical brasileira.” Sanches observa que a mídia teve um papel importante na Tropicália em dois momentos distintos. Inicialmente, dividiu opiniões e chegou a ser combatido pelos puristas, enquanto uma ala
da imprensa viu na proposta um acontecimento de modernidade e vanguarda. A partir da década de 1980, no entanto, tornou-se hegemônica, quase uma unanimidade, graças a um discurso forte, mas com antecedentes que não podem ser negados, como a bossa nova, que inovou ao misturar samba e jazz. A tendência de Caetano em polemizar com a imprensa, de certo modo, fortifica esse preceito. “O Tropicalismo vive ainda da polêmica, do campo de batalha, mas que, no fundo, tem admiração mútua das duas partes.” A relevância histórica do Tropicalismo está associada principalmente à produção artística desse pessoal,“que era extremamente inteligente e criativo, e também à postura que tiveram diante das tendências políticas e comportamentais da época”. Não significa que os artistas eram ingênuos em relação à vanguarda. “Ao contrário, mas não havia um programa de vanguarda a ser seguido.” ■
O rei da vela, direção de José Celso Martinez Corrêa, 1967
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… FICÇÃO
Horas a fio
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eço desculpas pela monotonia do relato e pela ausência, talvez incomum,de detalhes que dêem aos acontecimentos interesse,algo que toque ou arraste qualquer pessoa que seja a detalhes,entrelinhas,a um mundo subterrâneo de perguntas e imagens agradáveis. A história toda é essa:um dia abriu a porta do pequeno apartamento e fingiu que até então nunca percebera o tamanho do vazio.Entrou sem acender a luz.Foi ao quarto,tirou a roupa,jogou-se debaixo do chuveiro.Água fria,gelada, forte.Ali,naquele cubículo escuro,sem saída de ar,mesmo que quisesse luz,não tinha lâmpada,nem sequer bocal. Estava só,não tinha que fazer,tentara algum trabalho, e nada. (Sem amigos,sem alguém,sem televisão,rádio,relógio, sem ventilador ou ar-condicionado para enfrentar os dias de calor.Sem dinheiro,sem conta no banco.) Não tinha cama,apenas um colchão grande no chão.Deitava-se para deixar a vida passar.Com todas as noções de tempo trocadas,funcionava como relógio quebrado.Tanto que, às vezes (muitas vezes),dormia cedo,logo depois do banho. Acordava no final da noite,talvez de madrugada (não sabia ao certo),e imaginava que não estava perto de amanhecer: havia carros na rua e a luz dos tubos de televisão saía pelas janelas dos apartamentos. Roía-se de solidão.Escrevia à mão,compulsivo,pequenas estórias de infâmia,traição,abandono.Empobrecido,ainda não se sentia pobre.Devia o aluguel,meses de condomínio. Certa vez cortaram a luz.
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(Só, sozinho, solidão.) Mas vivia num apartamento bom (pequeno,porém bom), no centro da cidade,perto dos cinemas,da agitação de consumo que não podia viver (nem queria). Por pouco tempo, dizia-se,é provável,dizia-se. Pequeno,ensinaram-no a fazer a cama e arrumar a roupa. Depois,ir à feira (economizar,escolher),cozinhar.Cuidava de si com autoconfiança.Estava fraco,sentia-se.Na busca por trabalho,confundia-se,pressionado por impressões soterradas que pareciam incomodar pelos detalhes expostos sob a terra. Mentia para si da pior maneira possível,conscientemente, como aberração sem domínio.Perdera a condução da vida e todos pareciam predispostos a deixar tudo como estava. Lembra-se do dia em que pensou sair vitorioso dessa situação e ainda ver aqueles que o olharam com desprezo engolir todos os maus pensamentos.Riscou as palavras,exceto a parte em que sairia vitorioso.Não era tarefa fácil olhá-lo, ali,tão desprovido de qualidade de vida (requinte,gosto,objetos,aparelhos eletrônicos – nem música em casa havia).Vou vencer,dizia-se,é certo,dizia-se,e olhava-se contra o vidro da janela do quarto (não havia espelho em casa). De fato,seja dito,várias vezes reinventou o começo de vida.Foi criança numa época em que a cidadezinha todo inverno inundava-se por enchentes.Naqueles dias,assim era,levantavam-se os móveis e,por cima deles,arrumavam-se roupas e quinquilharias (que,aliás,nos primeiros refluxos da água, caíam e só não iam parar no rio por causa das portas).Houve cheias de não perder nada.E aquelas em que se perdeu mui-
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to. Outras, cravadas na memória, levaram tudo, para começar do nada, em situações bem mais precárias – não seria, então, motivo para baixar a cabeça e aceitar alguma derrota? Do nada, decidiu mudar rotina, expectativas, acrescentou outras tantas esperanças e, em especial, apesar das dificuldades, sentia-se adulto para suportar tormentos, pesadelos, maus bocados (gostava dessa expressão, a qual imprimia sotaque português “adquirido” de algum poema antigo ou nada disso). Fechava os olhos (sala vazia. Sofá velho, pequeno, sujo. Estante enferrujada, cheia de livros, discos de vinil e traças. Livros e mais livros, aos montes, no chão, ao lado da estante. Mesa de madeira de quinta categoria e cadeiras sambadas – traziam para sua vida, e às raras visitas, indícios de civilização). Não ficava triste. Arrancava, sabe-se lá como, filosofia do coração sobressaltado para dizer: tudo é transitório e o que é, exatamente por ser como é, não vai ficar como está. Pensava: dialética, meu Deus, é isso, dialética, velho, dialética. Depois: ai, meu Deus, ai. Misturo ensinamentos orientais com velhas frases de efeito, para drama, para lirismo. Que mistura, Beneditus, mas que coisa essa, assim, lembrar Bertoldo – mexia a cabeça, censura. Então fechava os olhos e dizia que sua casa era um jardim budista (ou taoísta), zennnnnnnnnnn, zunnnnnnnnnn, zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz. Quando ia muito além de suas aflições materiais e espirituais, dormia no chão frio (sempre mal varrido). Para se perdoar dos equívocos, erros, grosserias. Tinha certeza de estar fora de si e não se reconhecia – ou queria que isso fosse verdade. Melhor: mentira.
Não foi um tempo simples, leve. Ou de grandes gostos, intenções, vastas palavras. Dedicou-se, como um pragmático cego e obsessivo, a sobreviver. Primeiro as coisas brutas e materiais, depois as finas e espirituais, dizia o filósofo alemão Hegel (ou assim disseram que ele disse, ou assim se disse que Hegel disse, ou Hegel disse porque alguém disse). Pedia a Deus para que a luta não levasse o bom gosto e a inclinação para o refinamento (os gestos largos e afetivos, a delicadeza, a vida). Depois, ria. Deus fez tudo que pôde. Olhando assim fica revelada a vida modesta, sem surpresas, risos ou fatos inusitados. É verdade que da vida se espera um tanto em aventuras e desequilíbrios suficiente para justificar, ao cabo de uma existência, o suspiro final com o valeu a pena melancólico e perdido na falsa promessa do futuro além da imaginação. Mas, saibamos: certos traços e peculiaridades hereditárias vêm de pai e de mãe. A ciência até aqui não mexe (nem entorna, nem muda). A combinação é segredo de um código ainda por decifrar. Não é mais difícil prever o que nascerá do morto-vivo com o vivo-morto – parece, é certo. Difícil – e aí está a questão – não é aceitar o destino. Duro é não poder imaginá-lo. ANDRÉ RESENDE é escritor, autor de Mundo enquadrado (ensaios), Amor vário (romance), Quem disse sim (poesia), Maçã caramelada (teatro) e Quem sou eu (infantil). PESQUISA FAPESP 140
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:: RESENHA
O primata bipolar Chimpanzé e bonobo são espelhos que refletem duas faces humanas M ARIA G UIMARÃES
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os anos 1970 o jovem estudante Frans de Waal,de cabelos compridos como prova de rebeldia,sentou-se para espiar a intimidade de chimpanzés no zoológico de Arnhem,na Holanda.Ele começava a carreira de especialista em comportamento de primatas com os preconceitos da época:acreditava que a natureza não tinha influência no comportamento humano,que seria sujeito somente à cultura e ao livrearbítrio.“Para nós,o poder era mau,e a ambição,ridícula.No entanto,minhas observações de primatas abriramme a mente à força para as relações de poder não como algo perverso,e sim naturalmente arraigado.” Surgiu aí não um capitalista conformista,mas um profundo conhecedor da natureza dos grandes primatas, sobretudo o homem – que observa mais por vício do que ofício – e seus parentes mais próximos,o chimpanzé e o bonobo,antes conhecido como chimpanzépigmeu.As três espécies têm em comum 98% de seu material genético e muito de suas índoles.São essas semelhanças que Frans de Waal,hoje um dos primatólogos mais respeitados do mundo,esmiúça nos capítulos sobre poder,sexo,violência e bondade de Eu, primata – Por que somos como somos.O text o leve e divertido ao mesmo tempo que é denso e informativo mostra que nem só de artigos vive esse pesquisador,que já escreveu seis livros para o público leigo. Eu, primata é o primeiro a ser publicado no Brasil. Nas sociedades de chimpanzés quem manda são machos parrudos que chegaram ao posto de chefia à custa de lutas muitas vezes sangrentas.Eles têm acesso privilegiado à comida e às fêmeas e chegam a afirmar sua dominância em guerras e massacres contra grupos vizinhos. Já os bonobos,com sua índole “paz e amor”,talvez agradassem mais ao jovem Frans de Waal.Esses primatas de porte mais delicado que os chimpanzés e que muitas vezes caminham eretos sem a ajuda das mãos resolvem qualquer assunto – raiva,carinho,ansiedade,tédio – com sexo ou,em momentos menos intensos,beijos tão tórridos que seriam censurados de um capítulo final de novela.Qualquer lugar e qualquer parceiro valem,ou
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quase:o único tabu é sexo entre mães e filhos. Quem dita as regras nos grupos de bonobos são as fêmeas,que,coFrans de Waal mo têm menos força física, Companhia das Letras precisam contar umas com as 344 páginas outras e formam associações R$ 49,00 coesas.Essa estrutura torna os bonobos machos gentis e pouco bélicos.Afinal,de nada adianta dar uma de machão se é a posição social de sua mãe que determina como será tratado pelos companheiros de grupo. O texto é recheado de histórias que mostram que comportamentos corriqueiros no dia-a-dia de qualquer pessoa têm uma semelhança perturbadora com o que acontece em zoológicos e centros de estudos de primatas.Não é à toa que multidões costumam aglomerar-se diante de chimpanzés expostos em zoológicos para observar longamente e rir dos gestos e atitudes. Não é que chimpanzés sejam engraçados – o riso é nervoso,nasce do reconhecimento desconcertante. Da comparação com os dois primatas,os homens surgem como seres bipolares,“mais sistematicamente brutais do que os chimpanzés e mais empáticos do que os bonobos”.Comparar seria um exercício vazio,não fosse um caminho para entender a própria natureza humana. A veia guerreira que distingue chimpanzés e humanos de outros animais é produto do parentesco evolutivo, não é coincidência.Porém Waal ressalta que isso não nos condena à guerra:além de guerrear,somos campeões em manter a paz.Porque puxamos muito de nossos parentes mais próximos,contemplar os espelhos que chimpanzés e bonobos nos estendem é a janela para enxergar o que há nos humanos que pode ajudar a construir uma sociedade mais justa e um mundo melhor. Mas o primatólogo teme que fiquemos restritos a zoológicos para descobrir nosso eu primata.Enquanto o mundo está povoado por cerca de 6 bilhões de pessoas,doenças e ações humanas só deixaram na natureza por volta de 200 mil chimpanzés e 20 mil bonobos. “Será um descrédito para nós,humanos,se não pudermos proteger ao menos os animais que nos são mais próximos,têm em comum conosco quase todos os genes e só diferem de nós em grau”,escreve. Eu, primata – Por que somos como somos
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