Uma década de avanços desenha o futuro

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Ciência e Tecnologia

Junho 2004 • N°

FAPESP

FICÇÃO &CIÊNCIA

MILLÔR FERNANDES MOACYR SCLIAR NELSON DE OLIVEIRA RUY CASTRO JOSÉ CASTELLO HELOISA SEIXAS MARCELO GLEISER

PRODUÇÃO CIENTíFICA


AIMAGEM DO MÊS

Cratera de 55 quilômetros de diâmetro em Marte, fotografada pela sonda européia Mars Express. As estrias indicam intensa movimentação tectônica no passado. PESQUISA FAPESP 100 • JUNHO DE 2004 • 3


I

28

www.revistapesqu is a. fapesp. br

CAPA

Pesquisa nacional se profissionaliza, incorpora o trabalho em grupo e melhora sua posição no mundo

12

ENTREVISTA

REPORTAGENS POLÍTICA CIENTÍFICA ETECNOLÓGICA

34

FINANCIAMENTO

Construção do Soar nos Andes cria um modelo de avaliação de projetas de grande porte

38

CIÊNCIA

82

EPIDEMIOLOGIA

Desde os tempos de Adolpho Lutz país mantém pioneirismo na pesquisa de doenças tropicais

ENTREVISTA

Fernando Reinach explica mudanças no modo de fazer ciência no Brasil

48

DIVULGAÇÃO

Mídia amplia espaço dedicado a ciência, tecnologia e inovação

54 Roberto Salmeron quer projetas nacionais para ciência brasileira 4 • JUNHO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 100

POPULARIZAÇÃO

Pesquisadores usam novas linguagens para levar a ciência ao público

87 Testes comprovam ação de plantas contra malária


REPORTAGENS

90

VIROLOGIA

Um subtipo do vírus da Aids se espalha e altera o perfil da epidemia no Brasil

92

128

TELECOMUNICAÇÕES

EDUCAÇÃO

Ensino das filhas de D. Pedro II foi pioneiro no século 19

IMAGENS EM DESTAQUE

GENÉTICA

66

Trechos de RNA antes vistos como inúteis são essenciais na produção de proteínas

94

164

MEDICINA

Por que o placebo, às vezes, funciona

102 ZOOLOGIA

Algumas das melhores fotos de Pesquisa FAPESP Nova fase para a pesquisa em Internet e na telefonia

134

BIOQUÍMICA

Parceria cria analgésico 600 vezes mais potente que morfina

138

AGRONOMIA

Pesquisadores estudam propriedades protetoras do cogumelo-do-sol

142

PATENTES

Projetas financiados pela Fapemig chegam à indústria

146 Medusas fixas formam nova classe de animais marinhos

ENGENHARIA NAVAL

Novo projeto de plataforma marítima está disponível para a Petrobras

HUMANIDADES

106

ASTROFÍSICA

Brasileiros descobrem berçários de estrelas fora das galáxias

108

USP 70 ANOS

As soluções tecnológicas criadas pela Escola Politécnica

TECNOLOGIA

122

MICROELETRÔNICA

Os caminhos trilhados no Brasil na área de semicondutores

150

HISTÓRIA

Pintor Frans Post ganha seu espaço junto aos mestres flamengos

15 6

ARTES PLÁSTICAS

Cooperação entre institutos revelará aos Estados Unidos textos sobre as vanguardas do século 20

160

CINEMA

Tese relembra o trabalho de jovens que faziam filmes no Recife

ARTIGOS CARLOS VOGT ................. 60 JOSÉ FERNANDO PEREZ ......... 61 MARCELO LEITE ............... 62

FICÇÃO MILLÔR FERNANDES ........... 20 MOACYR SCLIAR ............... 46 NELSON DE OLIVEIRA .......... 64 RUY CASTRO .................. 76 JOSÉ CASTELLO .............. 100 HELOISA SEIXAS .............. 116 MARCELO GLEISER ............ 132

SEÇÕES IMAGEM DO MÊS ................ 3 CARTAS ....................... 6 CARTA DO EDITOR ............... 9 MEMÓRIA .................... 10

O P A TJRtJf.OT A" JOR. ALLlTTE AR!O, POLiTICO, ME.RCA . TIL, il< ,. )) o

RIO DE

JA~íF.IRO .

ESTRATÉGIAS ................. 22 LABORATÓRIO ................. 78 SCIELO EM NOTÍCIAS .......... 114 LINHA DE PRODUÇÃO .......... 118 CLASSIFICADOS .............. 168 LIVROS ...................... 169 Capa: Hélio de Almeida Foto: Eduardo Cesar Tratamento de imagem: José Roberto Medda

PESQUISA FAPESP 100 ·JUNHO DE 2004 • 5


Ciência e Tecnologia

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no Brasil

CARTAS cartas@fapesp.br

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Oque a ciência

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brasileira produz você encontra aqui.

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As reportagens de Pesquisa FAPESP retratam a construção do conhecimento que será fundamental para o desenvolvimento do país. Acompanhe essa evolução sem perder nenhum movimento.

Francisco Landi Compartilho com toda a equipe FAPESP a grande dor pela morte de Francisco Romeu Landi, que abre uma enorme lacuna no gerenciamento das atividades científicas e tecnológicas do nosso país. A Bahia será sempre grata à enorme contribuição e apoio de Landi, quando da criação da nossa Fundação de Amparo à Pesquisa da Bahia (Fapesb). C LEILZA ANDRAD E

Salvador, BA

Câncer Números atrasados Preço atual de capa da revista acrescido do valor de pastagem. Tel. (11) 3038-1438

Assinaturas, renovação e mudança de endereço Ligue: (11) 3038-1434 Mande um fax: (11) 3038-1418 Ou envie um e-mail: fapesp@teletarget.com.br

Opiniões ou sugestões Envie cartas para a redação de Pesquisa FAPESP Rua Pio XI, 1.500 São Paulo, S P 05468-901 pelo fax (11) 3838-4181 ou pelo e-mail: canas@fapesp.b• ~. · · •.• , ..

Site da revista

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No endereço eletrônico www.revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP na integra e um arquivo com todas as edições da revista, incluindo os suplementos especiais. No site também estão disponíveis as reportagens em inglês e espanhol.

Para anunciar Ligue para: Nominal Propaganda e Representação: tel. 5573-3095

6 • JUNHO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 100

A reportagem "Câncer, esperanças divididas" (edição no 99) traz informações interessantes. No entanto houve tanta ênfase na questão do tratamento que o leitor mais afastado dessa área de conhecimento pode não perceber que medidas preventivas, mais do que terapêuticas, é que vão nos levar a maiores vitórias contra o câncer, a médio e longo prazos. Claro que, para os pacientes que lutam contra a doença, o que importa no momento é o seu tratamento eficaz. Mas houvesse agigantesca verba destinada à pesquisa do câncer nas últimas décadas sido aplicada, mesmo que parcialmente, às medidas de intervenção (ambiental, antitabagismo, antiinfecciosa, dietética etc. ) e às campanhas de esclarecimento, seria menor o atual número de famílias assoladas por este sofrimento. Conseqüentemente, teríamos com certeza evitado a sensação, apontada pela reportagem, de "esperanças divididas" quanto ao sucesso na luta contra o câncer. No mais, quando o texto se refere a "ratos", deve estar aludindo a animais de experimentação em geral; na oncologia experimental são também muito utilizados os camundongos e, menos freqüentemente, outras espécies de animais. Por exemplo, ratos e camundongos são as espécies de escolha em ensaios de identificação de cancerígenos quími-

cos ambientais, que podem significar risco para a espécie humana. Embora existam limites para a extrapolação dos fenômenos biológicos desses roedores para nossa espécie, é muito forte a afirmação de que "o rato é um péssimo modelo animal para se estudar o câncer". Finalmente, deve ser comentado que há muito tempo que a metaplasia intestinal é universalmente considerada uma condição com risco aumentado para o câncer gástrico. Assim, não cabe afirmar, como a reportagem faz na página 50, que uma equipe do Hospital A. C. Camargo "viu que ... a metaplasia intestinal pode ser um fator que predispõe à ocorrência de câncer de estômago". O indisputável mérito daquela equipe é a proposta de identificar molecularmente os pacientes cujas metaplasias intestinais têm maiores riscos de malignização. ) OÃO LAU RO V. DE C AMARGO Faculdade de Medicina/Unesp Botucatu, SP

Alzheimer Lendo a reportagem "Lembranças preservadas" (edição no 98), pude observar que há vários outros tipos de remédio para Alzheimer e também já havia visto uma reportagem na TV sobre a pesquisa, mas pensei que era na Europa, agora fico muito contente em saber que a pesquisa é feita aqui no Brasil. Por favor, me indiquem um meio para entrar em conta to com esses doutores pesquisadores. MARCOS ANTON IO PI NTO

São Paulo, SP

Cem anos da Esalq Gostaria antes de tudo de parabenizá-los pelo excelente trabalho de divulgação do conhecimento científico. Li o artigo "Terra prometida" (edição no 98), com emoção e orgulho, tanto pelas realizações e impacto na nossa cultura das pesquisas reali-


~ Trop1Net.org Aconexão entre as doenças tropicais e seus pesquisadores. Se você faz parte da comunidade médica e científica e tem interesse em compartilhar experiências e informações sobre as doenças tropicais, já existe um espaço virtual que pode transformar esta conexão em mais um passo para solucionar o problema. TropiNet™é uma rede que pode conectar pesquisadores de todo Brasil envolvidos com o tema. Uma proposta de responsabilidade social da Novartis que valoriza o trabalho de profissionais como você. Acesse o site www.tropinet.org

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• Pesqu1sa FAPESP CA RLOS VOGT PRESIDENTE

PAU LO EDUARDO OE ABREU MACHADO VICE-PRESIDENTE CONSELHO SUPERIOR AO ILSON AVANSI OE ABR EU, CARLOS HENRIQU E OE BRITO CRUZ, CA RLOS VOGT, CEL SO LAF ER, HER MANN WEVER, HORÁCIO LAFER PIVA, MARCOS MACARI, NI LSON OIAS VI EIRA JUNIOR, PAULO EDUAR DO DE ABR EU MACHADO, RICARDO RENZO BR ENTANI, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO JOAQU IM J. OE CAMARGO ENG LER DIRETORAOMINISTRATIVO EO!RETORPRES!DENTEIINTERINOl

JOS É FER NAN DO PER EZ OIRETORCIENTIFICO

PESQUISA FAPESP CONSELHO EDITORIAL LU IZ HE NRIQUE LOPES DOS SAN TOS ICOOROEOAOORCIEO!IFICOI, EDGAR OUTRA ZANOTTO, FRANCISCO ANTONIO BEZE RRA COU TI NHO, FRANC ISCO ROM EU LANOI, JOAQU I M J. DE CAMARGO ENG LER, JOS É FERNANDO PE REZ, LUI Z EUGÉNIO ARAUJO OE MORA ES MEL LO, PAULA MONTERO, WALTER COLLI DlRETORA DE REDAÇÀO MARILUC E MOURA EDITOR-CHEFE

NELOSON MA RCOLIN EDITORA S~NIOR MARIA OA GRAÇA MASCARENHAS OlRETOR OE ARTE HÉLIO OE ALMEIDA EDITORES

CARLOS FIORAVANTI (CJtNCIAl, CARLOS HAAG (HUMANIDADES), CLAUDIA IZ IQU E (P<ILITICAC&T), HE ITOR SHIMI ZU(VERSÃOON-liND, MA RCOS DE OLI VEI RA (TECNOLOGIA) EDITOR ESPECIAL MARCOS PIVETTA EOJTORES·ASSISTENTES

DJNORA H ER ENO, RICARDO ZORZ ETTO CHEFE DE ARTE TÂN IA MARIA DOS SANTOS OIAGRAMAÇÀO JOS É ROBERTO MEOOA, MAYUMI OKUYAMA FOTÓGRAFOS

EDUARDO CESAR, MIGUEL BOYAYAN COLABORADORES

ANA MARIA FERRAZ, CA RLOS VOGT, CARO L LE FR ÉVE, EDUARDO GERAQU E ION-LINEI, FABR ICIO MARQU ES, FRANC I SCO BICUDO, GERMANA BARATA, GRAÇA CALDAS, HELOISA SEIXAS, JOANA MONTE LEON E, JOS É CASTE LLO, JOSÉ FE RNANDO PEREZ, LAURABEATRIZ, LUCR ECIA ZAPPI,

MAL~~w~2~2~~~g~~~::-~m ~m~~~~'-JÀ~~~ ~t~~~LO MILL0R FE RNAN DES, MOACYR SCLIAR, NELSON OE OLIVE IRA, SAMU EL ANT ENOR, SI RIO J. B. CANÇAOO, R ~ NATA SARA IVA, RUY CASTRO, THIAGO ROM ERO WN·LINE}, TANIA MARQU ES,

TH EREZA OE ALM EI DA, YURI VASCONC ELOS E WAN OA JORGE ASSINATURAS TELETARGET TEL.llll3038-1434 - FAX: llll3038-141B e-mail: fapesp@teletarget.com.br APOIO DE MARKETING SINGULAR ARQUI TET URA DE MI OlA singular@sing.com.br PUBLICIDADE TEL: 111) 3838-4008 e-mail : publicidade@fapesp.br (PAULA JLIADJS) PRE·IMPRESSÃO GRA PHBOX-CARAN IMPRESSÃO PLURAL EDI TORA E GRÀFICA TIRAGEM: 4S.OOO EXEMPLAR ES DISTRIBUIÇÃO OINAP CIRCULAÇÃO EATENOIMENTOAOJORNALEIRO LMX (ALESSANORA MACHADO) TEL: 111) 3BóS-4949 atendimento@lmx.corn.br GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP FAPESP RUA PIO XI, N'1.500, CEP OS4b8-901 ALTO DA LAPA - SÃO PAU LO- SP TEL. 111) 3B3B-4000 - FAX: llll 3838-4181

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Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAPESP E PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL DU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PREVIA AUTORIZAÇÃO

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FUNDAÇÃO OE AMPARO À PESQUISA 00 ESTADO OE SÃO PAULO SECRETARIA DA CitNCIA, TECNOLOGIA, DESENVOLV IMENTO ECONOM ICO E TURISMO GOVERNO 00 ESTADO DE SÃO PAULO

1r' 8 • JUNHO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 100

zadas pela Escola Superior de Agrio de piados de pássaros que não são cultura Luiz de Queiras (Esalq) como vistos em quadro. Fazem parte doampelo motivo pessoal de meu filho ter biente, do campo, mas estão no espaconcluído recentemente seu curso de ço off, fora dos limites de quadro. A agronomia nessa centenária escola. voz onipresente está over, pois nada Notei a ênfase do artigo na tecnoloindica que o narrador esteja no campo. gia (hard) de ponta e de suas contriÉ importante dizer que se trata de erro buições para a muito comum, agroind ústria inclusive entre em nosso país. profissionais da EMPRESA QUE APóiA Senti falta, enárea. A PESQUISA BRASILEIRA tretanto, de inM ARCONE B AH IA São Paulo, SP formações sobre as pesquisas relacionadas Dinossauros com o desenvolvimento de ouInicialmentro tipo de tecte parabenizonologia, aquela os pelo excelenvoltada para a te trabalho de divulgação cienpreservação do ambiente hutífica desempemano e físico, nhado pela repara projetas vista Pesquisa relacionados FAPESP. Com com o desenrelação à nota Trop1Net:org volvimento co"Dinos sauro munitário, para nas dunas", publicada na edia agricultura ção no 99, na auto -sustentável etc. numa seção Laboratório, quero acrescentar que a descoperspectiva de distribuição mais berta das pegadas fósseis em arenitos igualitária de renda. Sei de belíssimos do antigo Deserto Caiuá, no extremo projetas desenvolvidos nessa área e oeste de São Paulo, só foi possível agradeço aos pesquisadores que formaram meu filho. Novamente agragraças ao trabalho de cooperação endeço pela oportunidade de obter intre instituições. Gostaria de destacar a formações sobre o desenvolvimento participação dos geólogos Adalberto Azevedo e Alessandra Siqueira, da da pesquisa em nosso país. Divisão de Geologia do IPT, assim H ELOISA SZYMANSKI PEPG em Psicologia como do eng. Luiz R. da Silva (Cesp), da Educação/PUC-SP na nota mencionados como pesquiSão Paulo, SP sadores de São Paulo. Não poderia deixar de registrar o pronto apoio reDocumentários cebido do eng. Isaac Alves (Cesp, U.H.E. Sérgio Motta/Primavera), por ocasião dos trabalhos de campo. Excelente a matéria de Carlos L UIZ A LBERTO F ERNANDES Haag sobre a interessantíssima pesDepartamento de Geologia/UFPR quisa que traz um pouco de luz aos Curitiba, PR aparentemente inofensivos documentários da natureza ("Eu vi um Brasil na TV'; edição no 99). No entanto o jornalista cometeu um pequeno desCartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br, pelo fax (11) 3838-4 181 lize ao escrever "narração em ojf", ou para a Rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP, quando o correto seria over. O som off CEP 05468-901. As cartas poderão ser desses documentários é, por exemplo, resumidas por motivo de espaço e clareza.

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CARTA DO EDITOR

Uma obra coletiva, feita com prazer Sempre lembro: entrei na sala do diretor presidente com aquela feia peça na mão, nível um pouco abaixo do escolar, e disse-lhe que se ela circulasse iria causar mais danos que benefícios à imagem da FAPESP. Àquilo, melhor seria continuar sem nada. Ele perguntou o que eu sugeria. Respondi que precisávamos urgentemente jogar fora os exemplares daquele perfeito exemplo de como não fazer um house organ, enquanto tentávamos preparar uma outra versão do informativo, muito simples, modesta mesmo, mas que não fizesse vergonha à instituição. Ele respondeu que assim faríamos. A peça que me deixara espantada por seu primarismo não fora elaborada por jornalista, publicitário ou por pesquisador com bom conhecimento da FAPESP. Fora feita por alguém que simplesmente não era do ramo e se comprometera a fazê-la. Havia zero de estrutura de comunicação na instituição. Tanto que eu fora contratada para assessorar a área com uma carga de trabalho de apenas dez horas semanais, porque julgava-se então que isso bastaria para responder às necessidades de comunicação social da FAPESP. Alguns dias depois da conversa com o então diretor presidente, Nelson de Jesus Parada, estava pronto o Notícias FAPESP número 1. Estávamos em agosto de 1995. Não podíamos então sequer sonhar que aquele modesto boletim de quatro páginas, impresso em duas cores, em papel off-set, com tiragem de mil exemplares, era a verdadeira origem da revista Pesquisa FAPESP. A partir daí foram necessários muito sonho, determinação e o trabalho de muita gente, para que dele nascesse esta revista que chega à edição número 100, numa série que inclui as 46 edições de Notícias FAPESP. Em 1997 a FAPESP admitiu a contratação de uma segunda jornalista. Preparava-se o lançamento do Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas, o PIPE, gestava-se o primeiro projeto genoma - a Diretoria Científica da FAPESP era uma usina de projetos e programas. Veio Graça Mascarenhas, com a tarefa de dar o máximo de sua competência para o aperfeiçoamento do Notícias FAPESP. No ano seguinte, vieram, primeiro, Marina Madeira, para melhorar a organização dos eventos, e em seguida outro jornalista, Fernando Cunha, que logo deixou patente seu talento para dinamizar a assessoria de imprensa. Em fins de 1998, depois de enormes problemas para aperfeiçoar o Notícias FAPESP, procurei Hélio de Almeida em seu movimentado escritório de design. E ali nasceu quase imediatamente, além da amizade, uma parceria de trabalho sem a qual Pesquisa FAPESP não seria esta a revista que é. Foi dele a capa do boletim número 39, de janeiro/fevereiro de,A/, 1999, com 24 páginas e tiragem de 16 mil exemplares -ea^ partir dali conspiraríamos sem parar para transformar Notí- )f^ cias FAPESP numa revista de divulgação científica à altura da \ > FAPESP e do porte da produção científica paulista. íw>Em outubro de 1999, a revista foi enfim lançada, com 44 páginas e um encarte especial de oito páginas sobre jornalismo científico, com tiragem de 22 mil exemplares. Tínhamos conseguido a adesão entusiasmada do diretor científico José

Fernando Perez para essa idéia, além de convencer o então diretor presidente, Francisco Romeu Landi, a quem o setor de comunicação estava subordinado, de que estava mais do que na hora de darmos esse passo. O diretor administrativo Joaquim J. de Camargo Engler concordou inteiramente com a mudança, e os três passavam a formar o conselho editorial da revista. Tudo foi feito sob as bênçãos do Conselho Superior, presidido por Carlos Henrique de Brito Cruz. Hoje presidido por Carlos Vogt, o Conselho continua a apoiar firmemente o trabalho da revista. Com Hélio, hoje nosso diretor de Arte, veio Tânia Maria dos Santos, atual chefe de Arte, com sua extraordinária competência. Aos poucos montamos um time de profissionais talentosos. Carlos Fioravanti e Marcos de Oliveira, colaboradores habituais, tornaram-se respectivamente editor de Ciência e de Tecnologia. Carlos Haag veio como editor de Humanidades. Eduardo César e Miguel Boyayan, também antigos colaboradores, passaram a fotógrafos fixos. Em 2000, Cláudia Izique começou a editar Política. E, como às vezes a crise de uns é mesmo a boa oportunidade de outros, graças aos imensos problemas no campo das novas mídias, que em 2000 desempregou brilhantes jornalistas, ainda nesse ano conseguimos ampliar a equipe com Neldson Marcolin, atual editor-chefe da revista e Marcos Pivetta, editor especial. Em 2001, Dinorah Ereno tornou-se editora assistente de Tecnologia e, em 2002, foi a vez de Ricardo Zorzetto vir como editor assistente de Ciência. José Roberto Medda e Luciana Facchini, substituída por Mayumi Okuyama, completaram a equipe de Arte. No suporte administrativo, de secretaria e acervo fotográfico, há o trabalho importante de Paula Iliadis, Andressa Matias e André Serradas. Para além dessa bela redação, enquanto a revista crescia, demandava o trabalho de muito mais gente, impossível de nomear. E demandava também um novo modelo de organização. Foi assim que ao ser preparada para ganhar o mercado, a partir de março de 2002, a revista transformou-se em projeto especial, vinculado à Diretoria Científica da FAPESP, coordenado pelo filósofo Luiz Henrique Lopes dos Santos e viabilizado administrativamente por um convênio com o Instituto Uniemp. A gerência de comunicação, agora sob a responsabilidade de Graça Mascarenhas e com uma equipe de 11 pessoas, permaneceu vinculada ao diretor presidente. Feito o percurso que nos levou a esta edição número 100, está claro que pode parecer mais difícil produzir uma revista de cunho jornalístico, e voltada para o mercado, dentro de uma instituição pública do que em uma empresa de comunicação. Mas é muito improvável que em qualquer empresa uma publicação tenha, sem altos custos adicionais, um concurso tão intenso e valioso de trabalho especializado e de alto nível, entusiasmado, como aquele com que Pesquisa FAPESP conta. Esta revista é, de fato, fruto de um amplo trabalho coletivo, desempenhado com muito prazer. E é com essa carga que ela é levada a cada leitor. MARILUCE MOURA

- DIRETORA DE REDAçãO

PESQUISA FAPESP 100 -JUNHO DE 2004 ■ 9


MEMóRIA

da

Primórdios

divulgação científica

O FA.T1IOTÍ JORNAL LITTERÁRTO, POLíTÍCü» MERC A N TIL, %e. RIO DE JANEIRO. Ai desta ,{.-, Eu gloria siJica contente, Que a «("«'..; terra amei , e ei minha gente. Feire

JANEIRO. ?ÍS!Cí5£K25Ki~ ;.«■*,*«#. ,»■MMMNHMm*

Um dos primeiros periódicos do país, de 1813, já trazia notícias e comentários sobre estudos e invenções

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Com LjetKçq, ' na Loja a'; Paulo Mir/in , j na rua da Quitanda , ti." ;\4., pzr Üçx ./.. mesn.,- Laja f* fa:; u jubseripçáe a -l^qç» por semestre*

NELDSON MARCOLIN

Editado por Araújo Guimarães, revista durou dois anos

Reportagens e comentários sobre ciência são tão antigos, no Brasil, quanto a própria imprensa. O modo de se divulgar e discutir o saber científico era, obviamente, diferente de hoje. Um belo exemplo dessa forma primeva de divulgação científica ganhará as livrarias este ano. A Biblioteca Nacional digitalizou, a pedido da Casa de Oswaldo Cruz, do Rio de Janeiro, todas as 18 edições da revista O Patriota, publicação que circulou na então capital federal por dois anos, em 1813e 1814. Uma de suas principais características era o grande espaço dedicado às ciências com artigos estrangeiros, principalmente franceses, embora houvesse a preocupação de incentivar a publicação de textos de autores nacionais. Os artigos tinham um caráter enciclopédico, divididos por tema: matemática, navegação e hidrografia, hidráulica, botânica e agricultura, química, medicina e mineralogia (que incluía as observações meteorológicas). Mensal no primeiro ano e bimensal no segundo, a publicação trazia também assuntos como 10 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESHUISA FAPESP 100

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Idéia era dar espaço para textos de "conhecimento útil"

viagens, política, poesia e a descrição dos diferentes povos do Império português. "Essa miscelânea temática é significativa da cultura da época e demonstra o peso que adquiriam os temas científicos no ambiente do Iluminismo tardio luso-brasileiro", observa Lorelai Kury, pesquisadora de história da ciência da Casa de Oswaldo Cruz

e organizadora do livro de ensaios e do CD-ROM, com toda a edição fac-similar, que serão lançados este ano numa parceria da Editora Fiocruz com a Biblioteca Nacional. O Patriota foi o primeiro periódico a conter textos de difusão científica publicado no Rio. Seu editor era o baiano Manoel Ferreira de Araújo Guimarães, também responsável pela Gazeta do


í *•) íNDICE GERAL DO PATRIOTA. .-O friwiro »." tmrti a Saitcri/fSt, o urtmáa a Numtra, s Urttxrp a Pagina.

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SCUNCJ A S. Mniksma!: Indagação do polia DO volume cn;re todo: (U igual superfície, por Jo*c Saturnina da ■ . tá Pereiro. -----.-.---

Reflexfies sobre asjltrrol t di i i i Coníínuaçüo - - Noticia sobre Cak; Negro , por Joaquim José da Silva ... KsHexõcs sobre ss. viagens 1 raii celebres navegadores , &C Joaquim Benta da Fonceca - - ■ Continuação -.-,-.--->■-dito .__.-.-------. dito - - . — k ... ...... dito ..... ... Methodo, que se seguio no trabalho Hydregraphico da planta do Rio de janeiro, por Diogo Jorge de Brito ......----

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índice de 0 Patriota: material tinha caráter enciclopédico

Rio de Janeiro. Conforme afirma Nelson Werneck Sodré em sua consagrada obra História da imprensa no Brasil (editora Martins Fontes), a Gazeta foi o primeiro jornal brasileiro, embora outros pesquisadores considerem o Correio Braziliense como o pioneiro. Criado em setembro de 1808, sob os auspícios da Corte já instalada no Rio, a Gazeta tinha quatro páginas e era semanal no início e trissemanal depois. As únicas preocupações presentes no periódico eram noticiar o que se passava na Europa e agradar a família real nada havia, portanto, sobre ciência. O Correio foi fundado poucos meses antes, em junho de 1808,

em Londres, por Hipólito da Costa. "Mas é discutível a sua inserção na imprensa brasileira, menos pelo fato de ser feito no exterior, o que aconteceu muitas vezes, do que pelo fato de não ter surgido e se mantido por força de condições internas, mas de condições externas", argumenta em seu livro Sodré. O Correio era mensal e tinha uma seção chamada Literatura e Ciências, dedicada em boa parte das vezes às discussões sobre a universidade francesa. Já os textos de O Patriota, alguns deles ilustrados, tinham a preocupação de trazer o que era chamado de "conhecimento útil" para os leitores nos moldes do enciclopedismo europeu.

Estas duas ilustrações acompanham artigo sobre inovações em alambiques fabricados na Escócia

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PESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 11


ENTREVISTA: ROBERTO SALMERON

Um físico

dealta energia NELDSON MARCOLIN

tempo parece não ter muita importância para o físico Roberto Salmeron, a julgar pela maneira como ele o ignora. Sua rotina é de estourar qualquer agenda, esteja ele no Brasil ou na França. As atividades mais comuns incluem conferências, palestras e cursos, participação em comissões oficiais, apoio a físicos brasileiros em colaborações internacionais, aconselhamento de estudantes brasileiros no exterior, interpretações de experiências alheias, análises da política científica brasileira, artigos e, mais recentemente, planos para escrever livros. Quando sobra tempo, ele também gosta de pintar. Talvez toda essa energia causasse menos espanto se a pessoa em questão não estivesse com 82 anos e não morasse do outro lado do Atlântico, em Paris. Paulistano, Salmeron é filho de operários com origem na Espanha. Realizou o desejo dos pais ao se formar em engenharia na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), nos fins dos anos 1940, mas logo migrou para física, vencido por um fascínio que o acompanhava havia anos. Foi o último assistente brasileiro do mitológico professor italiano Gleb Wataghin, que formou e encantou uma espetacular geração de físicos brasileiros. Depois da volta de Wataghin para a Itália, Salmeron completou sua formação em física na Universidade do Brasil (atual UFRJ), no Rio, e foi trabalhar no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), em 1950. Depois passou pela 12 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100

Universidade de Manchester, na Inglaterra, pelo Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (CERN), pela Universidade de Brasília (UnB) e pela Escola Politécnica de Paris, na qual se aposentou. Durante sua estadia na UnB, Salmeron viveu um período tão fértil de idéias e inovações quanto frustrante. O golpe militar de 1964 interrompeu uma experiência importante para o ensino superior do país e forçou a saída do físico para o exterior, por não conseguir trabalho no país. "Foi o período mais difícil da minha vida", lembrou ele. Nessa itinerância, Salmeron transformou-se num raro caso em que a referência profissio nal, de físico respeitado internacionalmente, uniu-se à referência ética e política de um profissional interessado em contribuir para uma pesquisa e um ensino melhores - que, fatalmente, tornarão seu país melhor. Radicado em Paris há mais de 30 anos, hoje Salmeron faz um trabalho de aproximação entre a Politécnica de Paris, a USP e a UFRJ com o objetivo de colaborar com amigos e colegas que trabalham para melhorar a formação dos engenheiros brasileiros.


Salmeron em São Paulo: plena atividade no Brasil e na França


Durante a longa entrevista que concedeu, demonstrou preocupação com a constante falta de estrutura de financiamento e planejamento dos projetos científicos feitos em colaborações internacionais. Revelou, por exemplo, que o Brasil perdeu projetos dentro do CERN para países como Paquistão. E criticou a falta de grandes programas científicos que gerem impacto no exterior. Tudo sempre com grande entusiasmo. ■ O senhor está aposentado, tem 82 anos, mas nesta vinda ao Brasil tem a agenda cheia em várias cidades do país. O que senhor tanto faz por aqui? — Venho mais freqüentemente a São Paulo, São Carlos, Rio e Brasília, mas sempre há outras coisas para fazer em outros estados. Estive há poucos meses em Fortaleza, num congresso, e devo ir a Belém, fazer umas palestras. ■ Isso significa que o senhor continua em plena atividade no Brasil e na França? — Continuo. Na França, evidentemente, não faço mais experiências. Parei depois que me aposentei, aos 70 anos. Na parte de física, continuo interessado na interpretação dos resultados das experiências feitas sobre um assunto no qual trabalhei durante 15 anos, à procura do plasma de quark-glúon. Embora não faça experiências, conheço os resultados dos trabalhos feitos na Europa e nos Estados Unidos, e me interesso pelas interpretações. O grupo que eu coordenava antes de me aposentar continua a experiência que eu tinha começado lá no CERN, pensa que descobriu o plasma de quark-glúon. Mas eu não acredito. ■ Por quê? — O problema do plasma é complexo. É preciso fazer a colisão de dois núcleos de átomos, de preferência pesados. Por exemplo: chumbo contra chumbo, urânio contra urânio. Fazemos isso para deixar as partículas num estado de energia muito elevado. Dessa colisão de núcleos, se o fenômeno existir, os prótons e os nêutrons devem se dissociar era quarks e glúons. Como é que podemos saber que existe esse fenômeno? Analisando as partículas que saem da colisão. Há certas partículas que, se o plasma existir, têm de ser produzidas com certa probabilidade e têm de sair com certas propriedades de energia. Agora, esse é um processo nuclear extrema14 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100

mente complexo. Então, suponhamos que a gente estude uma certa partícula de nome A. Há outros processos nucleares que também produzem essa partícula A. Não é só o plasma. Quer dizer que para sabermos se essa partícula foi produzida pelo plasma temos de excluir todos os outros processos possíveis. Fiz um modelo teórico simples pelo qual demonstro que certas partículas que são características do plasma também são produzidas com as mesmas propriedades em processos nucleares clássicos que não têm nada a ver com o plasma. Então não precisamos do plasma para explicar a sua produção. ■ E por que exatamente o senhor não acredita que o seu antigo grupo tenha descoberto a partícula quark-glúon? — Porque há mais de uma interpretação para o fenômeno. Um fenômeno só pode ser considerado novo se não houver nenhuma outra interpretação possível. Mas se for explicado por um processo clássico, conhecido, não precisamos dele. ■ Essa atividade de análise de experiências o senhor faz em Paris. Quando o senhor vem para cá, faz o quê? — Coisas bem diferentes. Por exemplo, nesta viagem. O Ministério da Ciência e Tecnologia criou uma comissão para escolher o novo diretor do CBPF. Fazem parte dessa comissão Carlos Henrique de Brito Cruz, reitor da Unicamp, José Roberto Leite, diretor de Desenvolvimento Científico e Tecnológico do CNPq, Fernando Zawislak, da UFRGS, Marco Antônio Raupp, diretor do Laboratório Nacional de Computação Científica, e eu. Vim aqui agora porque temos quatro candidatos e vamos entrevistá-los. ■ Em quais projetos mais o senhor está envolvido no Brasil? — Eu faço uma coisa que me interessa muito, que é trabalhar pelo ensino. Sou físico aposentado na Escola Politécnica de Paris, a École Polytechnique, uma das mais importantes do mundo e certamente a mais importante da França, junto com a École Normal Supérieure. Consegui um convênio da École Polytechnique com a USP dos campi de São Paulo e de São Carlos, e com a UFRJ. Por esse convênio, as duas universidades brasileiras

têm o direito de mandar para a Polytechnique estudantes de graduação. Eles estudam dois anos e meio na Polytechnique e recebem o título de engenheiro lá. Ficam com dois diplomas, o brasileiro e o francês. É ótimo, é o nível mais alto que existe no mundo em cursos de graduação. ■ Como o senhor trabalhou por esses convênios? — A Politécnica de Paris se abriu para muitos países. Na América Latina colabora agora com o Brasil, o Chile e o México. Na Europa com a Alemanha, a Polônia, a Suécia, a Rússia, a Romênia. Na Ásia com a China, a Coréia do Sul, o Vietnã... Como sou brasileiro, conversaram para ver se eu estava interessado em ajudar no contato com universidades brasileiras. Como fui da USP e tenho contato constante também com a UFRJ, tratei de fazer essa aproximação. ■ Como funciona o convênio? — Os professores brasileiros selecionam alunos de engenharia, física, matemática, química, que se apresentam. Digamos uns 30, entre 70 ou 80.0 primeiro critério é ser bom em matemática. Depois da seleção brasileira, vem uma comissão de professores da Polytechnique entrevistar esses alunos. E mais uma vez selecionam um certo número. No dia 2 de abril deste ano tive um prazer imenso porque a primeira turma da USP, que foi para lá em 2002, se formou. Foram 11 alunos, da Escola Politécnica de São Paulo, da Escola de Engenharia de São Carlos e dos Institutos de Física e de Matemática dos dois campi. Já há duas outras turmas lá, com 14 estudantes cada uma. Este ano selecionaram 11 da USP e três da UFRJ porque no Rio ainda se apresentaram poucos candidatos. O meu objetivo com isso é contribuir para elevar o nível do ensino das escolas de engenharia aqui. ■ Quem paga para eles ficarem em Paris? — É a Polytechnique. E a coisa bonita na França é que todo mundo tem o mesmo direito, não há discriminação. Os estudantes franceses têm uma bolsa de cerca de 1.300 euros por mês (é mais ou menos R$ 5 mil). Os estrangeiros também. Com esse dinheiro eles pagam o alojamento, a cantina, os estudos, e sobra quase 400 euros por mês para cinema, metrô, roupa etc.


■ Como era seu trabalho na École Polytechnique de Paris? — De vez em quando dava cursos em assuntos relacionados com o meu tema de trabalho, mas a minha atividade principal era pesquisar e dirigir grupos de pesquisa. Além de físico, sou engenheiro. Eu me formei antes na Politécnica da USP e foi durante o curso de engenharia que comecei a gostar da física, que eu ensinava em cursinhos e colégios, como muitos jovens fazem hoje. Minha família era pobre e eu tinha de ganhar para mim, mas também para ajudar a família. ■ Isso não era tão comum há 60, 70 anos, não é? Alguém que sai de uma família humilde, consegue freqüentar bons colégios públicos, chega à universidade e tem uma progressão como o senhor teve, tão forte dentro da universidade. — Tive uma sorte imensa na minha vida. A minha família era de operários, mas, parece incrível, todos com interesse cultural. Todos liam muito, eram tremendamente politizados. Eu era garoto quando houve a guerra na Espanha. Liam jornais todos os dias, e eu ouvia diariamente discussões sobre o que estava acontecendo. Eu tenho a memória desse tempo com meu pai e meus tios; eram contra o general Franco, contra o fascismo, e solidários com a República espanhola. Como estudei engenharia? Desde pequeno eu ouvia meu pai, meu avô - pai da minha mãe - dizendo "o Roberto vai ser engenheiro, não vai ser operário". Estudar engenharia tornouse coisa óbvia, nunca pensei em fazer outra coisa. Mas durante o curso de engenharia eu tive um excelente professor de física na Escola Politécnica, que se chamava Luiz Cintra do Prado. Foi um dos melhores professores de física que eu vi em minha carreira, em todos os países em que vivi. Eu gostava desse curso, gostava daquela lógica da física. Depois, quando me formei, o professor Cintra do Prado convidou-me para ser seu assistente. Foi isso que abriu minha carreira universitária. Trabalhei como assistente dele e, ao mesmo tempo, durante um ano, uma vez na vida, trabalhei como engenheiro, logo depois de formado, no Instituto de Eletrotécnica da USP. Mas, como eu gostava de física, quando era aluno da Politécnica de vez em quando ia assistir aos cursos do professor Gleb Wataghin na Faculdade de

é

Em 2 de abril deste ano formou-se a primeira turma da USP que estudou na Escola Politécnica de Paris

Filosofia. Um dia fui conversar com ele, e daí então passei a trabalhar em raios cósmicos. ■ Gleb Wataghin aceitou o senhor assim, imediatamente? — Imediatamente. Pedi minha demissão no Instituto de Eletrotécnica e aceitei uma bolsa na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, que era muito menor do que o meu salário anterior. O professor Wataghin era um homem delicioso, de um humanismo extraordinário, sabe? Ele tratava todas as pessoas de senhor ou senhora. O mais jovem estudante que fosse conversar com ele, ele tratava de senhor. Na nossa primeira conversa ele me perguntou: "O senhor tem consciência de que, como engenheiro, pode se tornar um homem muito rico no seu país?". Eu respondi: "Tenho, professor". Ele: "E o senhor quer ser físico?". Respondi: "Quero tentar". Ele ficou pensando uns minutos e disse: "O senhor é casado?". Eu: "Sou noivo". Ele: "E ela sabe, está de acordo?" Eu: "Sabe, professor, e concorda". Ele conversou comigo como se estivesse me preparando para uma catástrofe. Foi muito engraçado. No fim, disse entusiasmado: "Então vamos falar de física". ■ Foi aí que o senhor entrou para o mundo da física de partículas? — Foi. As experiências do laboratório do professor Wataghin eram todas feitas com contadores Geiger, importados, que chegavam, em boa parte, quebrados. Ele sugeriu que eu construísse esses contadores em grande número aqui. Ele era muito entusiasmado com raios cósmicos. E me dizia que dali a alguns anos eu iria para a Europa trabalhar em raios cósmicos nos laboratórios nos Alpes, numa paisagem maravilhosa de

neve que não existe aqui no Brasil. Dizia que o pôr-do-sol nos Alpes era um espetáculo e de noite eu veria a Via Láctea com milhares de estrelas. Não só isso: lá na Europa, ele falava, havia muitas conferências, e eu iria conhecer o (Albert) Einstein, o (Adrien) Dirac, o (Enrico) Fermi, o (Niels) Bohr, o (Wolfgang) Pauli... "O senhor vai ver como é que esses homens pensam, como é que eles se exprimem, é uma coisa maravilhosa", me dizia o professor Wataghin. Aí ele parou e disse: "Como físico, a gente não fica rico, mas se diverte muito". ■ E o senhor confirmou isso? — Confirmei. Eu acho que a minha vida toda eu fui pago para me divertir. PESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 15


Desde aquela época até hoje eu faço a física com o mesmo prazer, com a mesma determinação. ■ O senhor conheceu esse pessoal citado pelo Wataghin? — Não todos. O Einstein e o Fermi morreram mais ou menos naquele período, entre 1954 e 1955. Os outros todos eu conheci. ■ Por que o senhor decidiu sair da USP e ir para o Rio de Janeiro? — Fui o último jovem brasileiro orientado pelo professor Wataghin. Ele ficou na USP por 16 anos e decidiu voltar para a Itália. Quando partiu, ficou um vácuo na Faculdade de Filosofia. Quer dizer, havia físicos que já eram eminentes naquela época, como o Mario Schenberg, o Marcello Damy, o Oscar Sala, o Paulus Pompéia, o Abrão de Moraes, todos excelentes. Mas a personalidade do Wataghin, ali, fazia falta. Decidi ir para o recém-fundado CBPF, a convite do César Lattes, onde fiquei três anos. ■ E saiu do CBPF por quê? — Eu era um jovem de esquerda e todo mundo sabia disso, não ocultava nada. Mas nunca fui ligado a nenhum partido político e não tinha atividade política. Nem tinha tempo para isso. Aí houve um incidente. Nós, os físicos do CBPF, visitamos o Arsenal da Marinha, no Rio, onde havia laboratórios de física muito bem montados. Passamos lá muitas horas e almoçamos com os oficiais. O almirante Álvaro Alberto, então presidente do CNPq, participou da visita e durante o almoço, por acaso, eu me sentei ao lado dele. Fomos fotografados, e as fotos apareceram na revista da Marinha. Eu soube depois que o chefe da Polícia do Rio telefonou para o almirante dizendo que eu era de esquerda. O almirante ficou furioso... comigo. Tanto que eu nunca tive uma bolsa do CNPq. ■ O senhor chegou a pleitear bolsa? — Eu encontrei, por acaso, o professor Costa Ribeiro, do Rio de Janeiro, que era do conselho do CNPq. Eu contei que estava querendo ir para a Inglaterra com uma bolsa e ele me aconselhou a não pedir nada naquele momento. Era um sinal, não é? Até que ele foi muito amigo. Teria sido pior ter uma bolsa recusada. 16 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100

■ O almirante ficou bravo com o senhor apenas por causa do episódio da fotografia? — Não é incrível? Logo depois tive a prova da raiva que ele ficou de mim. O César Lattes queria obter um síncrotron para o Rio de Janeiro, idêntico àquele com o qual ele tinha feito um trabalho importantíssimo em Berkeley, quando produziu o méson-pi artificialmente. Então foram para o CBPF engenheiros e físicos da Universidade de Chicago, que passaram uns tempos no Rio para projetar o síncrotron. Num certo momento eles ficaram num prédio do CBPF. O almirante Álvaro Alberto deu ordem para me impedirem de entrar no edifício onde os americanos trabalhavam. Eu achei aquilo ridículo e inaceitável, e decidi cair fora. Seria uma imoralidade que eu faria comigo mesmo se aceitasse aquela condição. Decidi então me demitir do CBPF. Na mesma época eu soube que a Unesco estava oferecendo bolsas de estudo para o exterior. Solicitei uma delas para mim e a obtive. Fui fazer meu doutorado na Universidade de Manchester. Isso foi em 1953. ■ Em raios cósmicos? — Sim, em raios cósmicos. Escolhi Manchester porque sabia que lá ficava o laboratório de raios cósmicos mais importante do mundo. E sabia que Patrick Blackett, o professor diretor do laboratório, prêmio Nobel de Física, era o papa do assunto. Aprendi depois que ele era também um grande líder científico, o melhor administrador de ciência que conheci na minha vida. Vou lhe dar um exemplo da tremenda visão que ele tinha. Durante a Segunda Grande Guerra, os ingleses se alistaram nas forças armadas para combater. Isso incluía os universitários e, naturalmente, as universidades ficaram quase vazias. Blackett disse: "Não é possível continuar assim, porque a guerra vai acabar um dia, então nós temos de pensar em preparar jovens para depois da guerra". E recomendou que um grande número de docentes voltasse para a universidade. ■ Isso foi feito? — Sim. Muitos universitários foram chamados de volta, mas trabalhavam no que se chamava defesa civil. Quer dizer: quando havia bombardeio eles trabalhavam como bombeiro, como as-

sistente de enfermeiro, essas coisas. Mas os cursos não pararam. ■ Foi o Blackett quem o indicou para o CERN? — Foi. Quando estava escrevendo a minha tese e ia voltar para o Brasil, Blackett me chamou e perguntou se eu gostaria de ficar mais tempo na Europa e trabalhar no CERN. Eu nem sabia o que era o CERN, que tinha acabado de ser criado. Ele disse que me faria bem passar mais um ano ou dois na Europa. Fui para Genebra, conversei com o diretor do CERN e terminei contratado por um ano. Agora o CERN estava no começo. Nem existia, na verdade. Nós trabalhávamos em barracões de madeira emprestados pelo aeroporto de Genebra. Quando fui para lá éramos menos de dez físicos experimentais - eu fui um dos dez primeiros físicos experimentais contratados pelo CERN. Não havia nada. ■ Quanto tempo o senhor ficou lá? — Era para ficar um ano. Acabei ficando o segundo ano, o terceiro, aí me deram um contrato permanente. Eu poderia ter me aposentado lá se quisesse. Na primeira fase fiquei oito anos em Genebra. ■ O primeiro acelerador ficou pronto depois de quanto tempo? — O menor em três anos e meio - um recorde. O outro, maior, com o qual eu trabalhei, demorou cinco anos. Era na época o maior acelerador do mundo. Hoje está em construção um grande acelerador de prótons - o Large Hadron Collider (LHC). Acontece que os prótons passam por uma associação de aceleradores, vários deles antes de chegarem ao LHC. ■ O LHC vai ficar exatamente no lugar do Large Electron Position (LEP), o acelerador de elétrons que foi desativado? — Exatamente. É o mesmo túnel, de 27 quilômetros de circunferência. Mas é uma outra máquina, porque as condições para o acelerador de elétrons são muito diferentes das condições para o acelerador de prótons. ■ Voltou para o Brasil direto do CERN para a UnB. Quem o convidou? — No fundo, não houve convite formal. Eu participava de grupos de dis-


cussões sobre a criação da universidade com amigos interessados em melhorar 1 A estrutura hoje o ensino superior. Agora, o homem que idealizou a esadotada trutura da UnB foi Anísio nas universidades Teixeira, o maior educador ^fl começou que o Brasil já teve. Ele já ^ tinha pensado nessa nova 0 na UnB, em 1962 B estrutura para a antiga Universidade do Brasil no K* Rio, hoje UFRJ, muito an■~t? \ *' —-—■•-.%._ M tes de se pensar na UnB. Ele queria introduzir essa estrutura de institutos e faculdades, como há hoje em todas as universidades brasileiras, quando a Universidade do Brasil se mudasse ■ Quanto tempo o senhor agüentou? ■ Por que ficou a imagem de que o Darcy para a cidade universitária lá na Ilha — Dois anos, até o fim de 1965. Agora, Ribeiro foi grande idealizador da UnB? do Fundão. Mas em Brasília começafoi um período extraordinário porque — Ele teve uma influência enorme mos antes. para que a universidade existisse, mas em Brasília havia grande entusiasmo. O Darcy Ribeiro foi reitor da Universinão a idealizou. O Darcy trabalhava ■ Antes da UnB não era assim? dade de Brasília por poucos meses. A com o Anísio Teixeira, que dirigia o — Não, não era. A originalidade da universidade foi criada pelo Tuscelino, Instituto Nacional de Estudos PedaUnB foi essa. A estrutura que é adotada gógicos (Inep) do Ministério da Educamas a lei foi promulgada pelo João hoje na USP, na UFRJ, em todas as uniGoulart. Como o Anísio organizou o ção. Foi com o Anísio que o Darcy versidades, começou em Brasília, em sistema escolar de Brasília e conhecia aprendeu o que era universidade. O 1962. Mas foi apenas uma das inovatudo sobre o ensino na cidade, o JusceAnísio idealizou e lançou o projeto no ções, a de fazer institutos centrais e falino queria que ele fosse o reitor. Mas tempo da construção de Brasília. O culdades. De haver, por exemplo, um Darcy se entusiasmou e então trabaele não quis porque a família morava Instituto de Física, onde são dadas as lhou muito. O Anísio percebeu que seno Rio e não queria se mudar. Foi aí aulas para os estudantes de engenharia, que ele sugeriu que o Darcy fosse o reitodos os ramos da engenharia, física, riam precisos especialistas para dizer tor. O Anísio ficaria como vice para como é que a universidade deve ser denquímica, matemática, medicina, biologia, poder prestigiar o Darcy. E o Darcy, tro da área deles, em medicina, engeassim por diante. Isso não havia antes com aquela energia extraordinária, nharia, biologia, química etc. E quande Brasília. Em 1970 houve a reforma trabalhava doidamente. O João Goudo ele lançou essa idéia o Darcy se universitária, onde isso foi utilizado. Até juntou a ele e começaram a criar grulart acabou gostando tanto do Darcy 1970, a Escola Politécnica da USP tinha pos de conselheiros. Um dia me esque o convidou para ser ministro da um departamento de matemática e a Educação e, logo depois, chefe da Casa creveram fazendo o convite para parFaculdade de Filosofia tinha outro. OuCivil. O Anísio, como era vice-reitor, ticipar de um dos grupos como tra novidade importantíssima de Brasípassou a ser o reitor. Isso foi em 1963. conselheiro. Vim várias vezes de Genelia é que nós mudamos a estrutura da Foi nessa época que cheguei à UnB. bra para essas discussões. No fim, decarreira universitária. Até aquela época pois de muito trabalhar como consehavia em cada disciplina o catedrático e mEpor que esse entusiasmo todo não foi lheiro, acabei decidindo ir para Brasília os assistentes. Fomos nós que introducomo se fosse uma coisa natural do suficiente para impedir que os 223 prozimos uma carreira universitária em que fessores se demitissem em 1965? o jovem começava com o título de asmeu trabalho, sem ter recebido um — Porque era impossível ficar. A idéia sistente depois de ter a tese obrigatória convite formal. Tudo ia muito bem quando veio o golpe militar. Foi drade demissão foi amadurecendo em capara começar a carreira. O docente tida um de nós individualmente. Qualmático. Eu estava em Brasília havia nha de passar pelos postos de profesquer coisa que acontecesse na universipoucos meses e não tinha pedido licensor-assistente, professor-associado e ça no CERN. Simplesmente me demiti dade o serviço secreto do Exército sabia professor titular; e em cada uma delas porque pensei que nunca mais iria sair um quarto de hora depois. Se houvesse vários graus: professor assistente de níuma discussão de estudantes no correvel 1,2,3, titular 1,2,3 e assim por diando Brasil. Comecei a trabalhar em Brador a polícia sabia 15 minutos depois. sília no dia 2 de janeiro de 1964. E o te. Fomos nós que terminamos com a Chegava a esse ponto. Nossas aulas golpe foi dia 31 de março, ou melhor, carreira de catedrático e assistente. Foi no dia Io de abril. Aí começou um peeram gravadas e levadas para a polícia. uma grande inovação. E na reforma ríodo muito duro, a universidade foi Trabalhávamos intensamente, era um universitária, em 1970, isso foi introduentusiasmo como nunca vi em nenhum muito perseguida. zido para todo o Brasil.

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outro lugar. Os professores e estudantes trabalhavam em condições tão difíceis e deficientes que, às vezes, me dava pena. Mas os estudantes não reclamavam, compreendiam. Era uma atmosfera muito construtiva. ■ Mesmo com o golpe. — Mesmo depois do golpe. Todos, professores e estudantes, tinham consciência de que estavam fazendo algo de novo. Então, em Brasília, a parte de perseguição militar era constante. Se houvesse um seminário no anfiteatro, havia gente da polícia lá. Havia policiais inscritos como estudantes. Não é possível você trabalhar sabendo que o seu colega do departamento do lado foi demitido ou preso, você não pode ficar tranqüilo. Eu tinha muito contato com os militares, procurando explicar a eles o que se fazia. Às vezes me convidavam para tomar um cafezinho à noite para se queixarem da universidade. Assim era o ambiente. Como vê, a demissão era inevitável. ■ A solução foi voltar para Genebra. — Quando eu me demiti fiquei cinco ou seis meses desempregado e era minha mulher, Sônia, quem sustentava a família, como psicanalista. O diretorgeral do CERN, Victor Weisskopf, soube o que acontecia na UnB. Certo dia apareceu lá em casa um secretário da embaixada francesa dizendo que tinha uma carta do professor Weisskopf para ser entregue para mim, pessoalmente, em mãos. Era um contrato, já assinado pelo Weisskopf, para eu voltar para o CERN. Ainda fiquei com essa carta três meses, antes de me decidir a ir. ■ Por quê? — Porque eu não queria sair do Brasil. Eu ainda tentei conseguir trabalho em universidades do Rio, de Minas e da Bahia, mas não houve interesse das reitorias, certamente por conta do clima político. Então acabei voltando para Genebra. Psicologicamente foi o período mais difícil da minha vida. Foi muito duro. No CERN, o Weisskopf me deu o mesmo posto vitalício que eu tinha antes, que era bastante alto. Então fiquei mais um ano e meio no CERN. Nessa época eu também recebi convites para ir para as universidades de Oxford, na Inglaterra, de Columbia, em Nova York, de Trieste, na Itália, e para a Esco18 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100

la Politécnica de Paris. Poderíamos ficar em Genebra até eu me aposentar. A vida lá era muito boa, a educação dos filhos de alto nível, a universidade excelente. Mas, depois de muitas discussões com minha mulher, concluímos: "Se nós tivermos de educar os filhos fora do Brasil vamos para Paris, porque lá as crianças vão se desenvolver num ambiente intelectual único no mundo". Embora a física em Paris seja do mais alto nível internacional, fomos para Paris por causa dos filhos, não por causa da física. Física de alto nível eu também tinha no CERN. ■ Como o senhor vê a física no Brasil nos dias de hoje? — A física, como todas as ciências, progrediu muito no Brasil, especialmente nos últimos 30 anos. Temos muitos físicos bem formados, muito competentes. Mas são poucos os grupos com impacto internacional. Isso ocorre devido à falta de uma infra-estrutura que permita três condições fundamentais na pesquisa científica: uma autoridade que defina prioridades e que seja respeitada, agilidade para que a decisão a respeito de um projeto possa ser tomada em pouco tempo, e continuidade no financiamento de projetos. Está também faltando mais anos de experiência da comunidade, com espírito crítico agudo, num processo de amadurecimento, para que as pessoas envolvidas num trabalho adquiram o hábito de ir o mais profundamente possível no problema específico que estão estudando, de ir até as últimas conseqüências e poder se impor. É também pequena a participação do Brasil em projetos internacionais importantes, embora tenhamos pessoas capacitadas a participar de tais projetos. Há certos ramos da física que só podem ser feitos com colaboração internacional. Até em países ricos como Estados Unidos, França, Inglaterra, Alemanha, Itália e Suécia, há certos ramos que nenhum deles pode fazer sozinho. Por duas razões: a questão financeira e por causa do tempo de trabalho. Há certos equipamentos que, em colaboração internacional, demoram oito, dez anos para ser construídos, com a participação de 10,15,20 países. Se um país quiser fazer sozinho, quando ele terminar, o assunto já estará obsoleto, ou talvez nem possa fazer. Colaboração internacional é indispensável. Veja dois

exemplos, o Observatório Pierre Auger, na Argentina, e o Southern Observatory for Astrophysical Research (Soar), no Chile. Esses dois projetos importantes foram aprovados porque houve a participação decisiva da FAPESP. Infelizmente, isso acontece raras vezes no Brasil, porque as decisões são tomadas por comitês que tendem a distribuir pequenas verbas para vários grupos e não têm a autoridade que teve a FAPESP de tomar uma decisão, assumir a responsabilidade, auxiliando fortemente no financiamento de um projeto grande. Está faltando infra-estrutura para colaborações internacionais no Brasil, começando com uma reestruturação das fontes de financiamento. Quando há colaboração internacional, o país assume a responsabilidade de construir equipamentos. Essa construção demora anos, e é preciso viajar sempre para ter contatos com todos os laboratórios que participam. E no Brasil não há uma estrutura para isso. ■ Dê um exemplo concreto dessa falta de estrutura. — Vou falar no caso específico de física de partículas: se um grupo brasileiro quiser trabalhar no CERN não há uma estrutura no Brasil que possa financiar equipamentos e viagens. Para cada coisa é uma luta para conseguir verba. Veja um caso dramático: há quase uma centena de físicos brasileiros que apresentaram projetos para trabalharem nas quatro experiências que devem ser feitas no acelerador de partículas LHC, do CERN. Esses projetos brasileiros foram apresentados há anos, foram aprovados no CERN, mas ainda não foram aprovados no Brasil. O que está acontecendo é que, como para cada parte do projeto há um tempo limitado e o Brasil não se mexe, as responsabilidades estão sendo passadas para outros países. Por exemplo: uma das experiências pedia uma grande peça de um eletroímã, que é uma trivialidade para o Brasil fazer, com a qualidade da nossa indústria, que poderia ter sido feito até num dos laboratórios da Comissão Nacional de Energia Nuclear. O grupo brasileiro propôs, o CERN aceitou e durante dois ou três anos não aconteceu nada. Como cada peça tem que ser terminada num período determinado, o projeto foi dado para o Paquistão. O Brasil já perdeu isso. E outros projetos que os


brasileiros queriam fazer estão sendo passados para outros países. ■ Quando o Brasil faz esses projetos de colaboração no CERN, tem de entrar também com dinheiro? — Tem que entrar com equipamento, o que para nós é excelente, é tudo coisa de vanguarda. O CERN é grande, custa caro, e é financiado por 20 países (os donos do CERN). Mas os países que tomam parte das experiências, como o Brasil, não financiam o CERN, participam do financiamento das experiências nas quais partilham. É uma verba à parte, que não tem nada a ver com o financiamento do CERN. Para se avaliar o custo de participação nessas experiências, deve-se avaliar o gasto por físico e por ano. Quando se faz esse cálculo, nota-se que o gasto de uma experiência feita pelos brasileiros em Genebra custa o mesmo que fazer física dos sólidos aqui em São Paulo ou no Rio. Há uma falta de informação muito séria: essa física de partículas não é mais cara do que as outras físicas. Se temos de fazer um equipamento com um grupo brasileiro com dez físicos, isso pode custar, digamos, US$ 1 milhão para ser gasto em vários anos. O Brasil paga por isso, mas quase tudo é feito nas indústrias do próprio país. Tem de se pagar uma parte no primeiro ano, uma parte no segundo, outra no terceiro etc. Esse equipamento vai ser usado durante oito, dez anos. Quando se pesam quantos anos ele será usado e quantas pessoas trabalharão, por pessoa por ano custa a mesma coisa que os outros projetos. A dificuldade é: como é que um comitê do CNPq, com uma verba limitada, vai aprovar um projeto de US$ 1 milhão se não tem esse dinheiro? Então é preciso uma estrutura especial de onde venha essa verba. E isso tem de ser um projeto nacional. Também faltam aqui grandes projetos nacionais mobilizadores prioritários. Não há uma determinação clara que estabeleça a linha que será prioritária no país e terá prioridade no orçamento para ter impacto internacional. Não existem aqui linhas de pesquisa criadas para ter impacto internacional. ■ E isso não depende só de dinheiro. — Não. Depende de dinheiro e de estrutura. Também há uma parte cultu-

ral: os cientistas têm de aceitar que isso deve ser feito. ■ O senhor acha que não há essa mentalidade? — Muito pouco. Nem de longe é como o que se faz na Europa e nos Estados Unidos. Na França, quando o governo define uma prioridade evidentemente isso não cai do céu e nem é feito apenas por autoridade. A questão é estudada por gente competente durante muito tempo, com consultores estrangeiros, é amadurecida e aí se torna prioridade. Logo, quando é lançada, essa prioridade é aceita por todos, ninguém protesta. Não existe a preocupação "você tem xis cientistas e tem uma certa quantidade de dinheiro, vamos dividir o dinheiro por xis". ■ E quem deve ser responsável pelo financiamento? — Acredito que o governo federal junto com as várias fundações de amparo à pesquisa do país. Nós temos pessoas como, por exemplo, Sérgio Rezende, presidente da Finep, e José Roberto Leite, do CNPq, que sabem que tem de haver uma infra-estrutura e estão trabalhando para encontrar uma solução. Uma idéia que se desenvolveu é de que

através dos fundos setoriais se crie uma infra-estrutura para colaborações internacionais, não só em física, claro. ■ O que o senhor acha que vai ser mais importante no futuro, na física? — Um relatório foi divulgado há uns dois anos por um comitê norte-americano sobre isso. A conclusão é de que na física vai haver cinco campos importantes: física de partículas, cosmologia e astrofísica, física atômica, física em medicina e biologia e física de materiais. ■ O senhor tem fé na ciência, na educação, no Brasil... Tem fé em Deus? — Não tenho, não. Nem quando era garoto. Minha mãe era muito católica. Tanto que eu me chamo Roberto Aureliano Salmeron porque nasci no dia de Santo Aureliano, e a minha mãe e a minha avó puseram o nome para saudar o santo. Meu pai não tinha religião e assimilei isso sem doutrinação. Minha mãe queria que eu fizesse catecismo. Lembro-me que eu ia ao colégio Coração de Jesus, nos Campos Elísios, em São Paulo, aos domingos, para assistir ao catecismo. Mas o que me interessava mesmo era jogar futebol porque tinha um pátio maravilhoso... Então íamos jogar futebol no colégio dos padres. • PESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 19


Todos que escrevem - os chamados escritores - alguma vezes prevêem... Neste conto, de 1958, Millôr Fernandes antecipa um desastre astronáutico metafísico com que, naquela época remota, ninguém podia sonhar. Júlio Verne, dizem, deu várias voltas em sua tumba.

O Navegador MILLôR FERNANDES

Era encarregado da navegação de bordo da aeronave estratosférica. Olhava as estrelas pelo mirante de vidro no fundo da nave e mantinha o aparelho em sua rota estrita, que não podia se afastar nem um grau, na verdade nem um 0,012, da rota que a técnica da navegação espacial determinara. Pois uma vez, vez aparentemente como outra qualquer, estava o nosso navegador examinando as estrelas, numa noite estrelada como todas, pois naquela altura não há noite não estrelada, quando estourou o tampão do mirante e ele foi sugado pra fora da nave. No momento em que o resto da tripulação percebeu o acidente, houve pânico (logo controlado, eram todos profissionais experimentados a evitar pânico) a bordo. Não comunicaram nada aos passageiros-teste, trataram de descer no primeiro ponto possível. Mas nosso herói, dos muitos mártires da técnica da aeronáutica de todos os tempos, o primeiro dos tempos da astronáutica, jamais foi esquecido. Não digo que "não foi esquecido" no sentido habitual em que se fala isso, não. Não há nada de "patriótico", "grandioso", "eterna gratidão dos homens", no inolvidável em que se tornou nosso homem. Aconteceu apenas o seguinte: ao ser sugado do aparelho nosso navegador não caiu. O avião estava fora da órbita gravitacional de qualquer planeta. Ou melhor, subiu um pouco, algumas dezenas de quilômetros. Mas parou aí. E veio-lhe uma calma inexplicável, enquanto espiava a nave que sumia. Devido a indeterminada lei de atração-inerte ele ainda foi arrastado, em órbita, um certo tempo. Logo, porém, caiu num espaço vazio, sem qualquer movimento. Tentou se mover, não teve como. O mundo, ao seu redor, imenso. A visão, em torno, ampla como jamais supusera ser possível. Ficou olhando, agora aterrorizado. Verificou o relógio, os ponteiros tinham parado. Tentou mover o mecanismo: a força magnética o tinha detido. Estava perdido, eternamente (?), no tempo e no espaço. O desespero, estranhamente, não durou muito. Horas depois sentiu total tranqüilidade. Parecia que não era com ele. Ficou só constatando, verificando, se assombrando. E, na impossibilidade de qualquer outra coisa, esperando. Que podia fazer? Nem subir, nem descer. Vagamente, pensou na possibilidade de, não se mexendo do local em que estava, e nem podia, vir a ser apanhado por um outro aparelho, noutra ocasião, noutra viagem. E lá está. Quando os estratosféricos passam por ele, ainda o saúdam. Sabem, pelo brilho de seus olhos, que ele percebe tudo. Porém os braços ele não pode mover nem prum adeus. E mesmo o brilho dos olhos vai diminuindo aos poucos, à proporção que a inanição domina o nosso herói. Que, todos já sabem, vai morrer é de fome. Não há técnica que possa salvá-lo. Já tentaram a sucção ao contrário, mas ele caiu numa área em que o vácuo e o magnetismo se anulam. A primeira sucção tentada afastou-o mais dez quilômetros da rota normal das naves. Escadas não são praticáveis naquela altura, porque lhes falta apoio. "Dêem-me um ponto de apoio e eu moverei o mundo" aqui não tem sentido. Não há onde apoiar e não há mundo, no sentido arquimédico. Certo dia, bem claro, quando uma pequena nave de observação passava por ali, nosso herói moveu um braço e conseguiu perguntar as horas, por gestos. Viram-no lá longe, diminuto, acertando o relógio minúsculo. Mas foi seu único gesto relatado. Os técnicos cá de baixo tentaram, diante do fenômeno de movimentação acontecido normalmente, estabelecer uma equação capaz de reproduzir o fenômeno e assim salvar nosso homem. Mas não chegaram a uma conclusão, muito embora as reuniões, discussões, experiências, continuem sem parar. E nosso herói definha. 20 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESUUISA FAPESP 100


Mas não está morto. As naves, neste ano e meio que já transcorreu desde o fatídico acidente, trazem relatos: nosso amigo seca, se mumifica, mas muito lentamente. Não parece especialmente triste, nem desesperado. Definha apenas, na proporção de um milésimo do que definharia na terra sem se alimentar. O frio parece não afetá-lo. Uma vez foi surpreendido com um sorriso nos lábios. As cores das roupas que usava ficaram mais brilhantes e mais belas com o passar do tempo. E durante o solstício de verão a posição do herói foi mudando, até ficar na posição de um nascituro. Parecia que ele ia renascer do cosmo. Enquanto isso, ele, nosso homem, é mais útil do que nunca. Os dados apurados pelo que acontece com ele têm sido analisados pela ciência aeronáutica e, acredita-se, resultarão na impossibilidade de acidentes semelhantes no futuro. Fazem-se cálculos, e naturalmente apostas, sobre a duração da vida do homem. A indústria de tecidos lançou nova moda, baseada nas fabulosas cores da roupa do navegador. O tecido tem o nome óbvio - Navegador. Em Paris já não se usa outra coisa. Numa viagem especial, patrocinada pelas Emissoras Conjugadas, a família do navegador (mãe, sogra, mulher e dois filhos) foi levada a visitá-lo, a avistá-lo. O resultado foi lamentável, pois o estado de histeria que se produziu no mundo todo, que acompanhava a narração, trouxe críticas violentas de toda parte. A família tem sobrevivido com donativos particulares, porque não conseguiu receber o seguro de vida que lhe deve a companhia de aviação, pois, em verdade, o navegador não morreu, nem há mesmo certeza se está mal de saúde. O advogado da família tentou dá-lo como desaparecido, pra que a esposa pudesse receber o seguro dentro de cinco anos, mas nem isso a companhia de seguros aceitou - na verdade não há homem menos desaparecido do que o navegador: o mundo inteiro sabe onde ele se encontra, com absoluta precisão, até em números e graus, latitude e longitude. Afinal os comandantes das aeronaves que deviam passar por aquela rota estratosférica começaram, de vontade própria, e mesmo contra o regulamento, a se desviarem ligeiramente, para não se aproximar do navegador perdido. É que este, agora já bem mais magro e mais brilhante, deu para fitar os aparelhos com olhar de amargurada censura. E, pouco a pouco, foi sendo inteiramente abandonado em meio às estrelas. Mas as últimas notícias repentinamente entusiasmaram o mundo. Todas as rádios de alta freqüência começaram a receber um novo bib-bip, bib-bip astral. Houve imediatamente a suspeita do lançamento de um novo Sputnik. A Rússia e os Estados Unidos se mantiveram em silêncio, sem nenhuma declaração oficial. Mas, dias depois, o governo suíço, numa entrevista mundial de Imprensa, declarou que a Associação de Relojoeiros Suíços, depois de longas e sigilosas tentativas, tinha, afinal, estabelecido ligação com o navegador. Dos dados auferidos tinham conseguido o feito notável que agora anunciavam ao mundo: "A Suíça era o primeiro país que conseguia colocar em órbita um homem vivo!" Lenta, mas seguramente, o nosso navegador gira, agora, no sentido contrário da rotação da Terra.

O

CRUZEIRO,

19.07.58 (O Sputnik tinha sido lançado em 1957) PESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 21


■ POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

ESTRATéGIAS

MUNDO

A era que não terminou Em artigo publicado na revista Science (21 de maio), o economista italiano Leonardo Maugeri lançou combustível numa polêmica planetária. Ele diz que a era do petróleo está longe de terminar, porque as previsões sobre o potencial das reservas mundiais pecaram invariavelmente pelo pessimismo. E cita exemplos. Em 1942, estimou-se que os poços de petróleo na região do rio Kern, na Califórnia, produziriam no máximo 54 milhões de barris. Pois até hoje já geraram 736 milhões de barris e as reservas não chegaram nem à metade. Outro exemplo é o do campo de Kashagan, no Cazaquistão. Nos anos 1990, seu potencial foi reavaliado na casa dos 4 bilhões de

■ Produção árabe vai sair da penumbra As universidades árabes estão sendo conclamadas a divulgar de forma mais eficiente sua produção acadêmica, criando bancos de dados eletrônicos com resumos de seus projetos de pesquisa. A exortação foi feita em abril, num encontro de cientistas na cidade de Riad, na Arábia Saudita. Reima Ijarf, professora da Universidade Rei Saud, em Riad, propôs no encontro que cada uma das universidades árabes crie uma plataforma própria e de fácil acesso, com os resumos de

barris. A última previsão diz que são pelo menos 13 bilhões de barris. "Embora os recursos sejam finitos, ninguém sabe qual é o limite", diz Maugeri, vicepresidente da companhia petrolífera italiana Eni. "O óleo está contido em rochas porosas, o que torna difícil estimar quanto do produto existe." Ele insinua que as empresas petrolíferas conhecem o fenômeno, mas se fazem de desentendidas. Assim, controlam os investimentos em prospecção e evitam que o aumento da produção reduza demais o preço do barril. "O pior efeito do pânico sobre o fim das reservas é que ele tem gerado políticas imperialistas e levado ao controle das regiões pro• Previsões sobre reservas petrolíferas pecam pelo pessimismo dutoras", diz Maugeri.

suas pesquisas, com o objetivo de oxigenar o ambiente acadêmico na região. "A produtividade de nossos cientistas aumentaria se eles conhecessem o que seus pares estão fazendo", disse Reima. Hoje, apenas uma em cada quatro instituições árabes tem bancos de dados acessíveis - e, ainda assim, a maioria só oferece informações em inglês. Outro projeto é a criação de um banco de dados unificado, aproveitando o sucesso de uma iniciativa da Arábia Saudita. Criado em agosto de 2003, esse banco de dados em medicina, tecnologia, agricultura e humani-

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dades reúne 1.500 resumos, além dos currículos de 12.500 pesquisadores sauditas. Nações como Bahrein, Kuwait, Omã, Emirados Árabes Unidos e Qatar foram convidadas a incluir projetos e currículos na plataforma (SciDev. Net, 21 de maio). •

■ Caixa reforçado na pesquisa australiana O governo australiano quer dar uma injeção de ânimo na pesquisa científica nacional e anunciou um pacote de investimentos de US$ 3,7 bilhões nos próximos sete anos. Mas nem tudo é moti-

vo de comemoração. Uma boa fatia do dinheiro está vinculada a pesquisas de inovação industrial, o que gerou críticas de cientistas e de políticos da oposição. A Organização de Pesquisa Científica e Industrial, principal agência científica do país, receberá 305 milhões de dólares australianos extras ao longo dos sete anos. O presidente da Federação das Sociedades Científicas e Tecnológicas Australianas, Snow Barlow, reclama que o aumento nem sequer acompanhará a taxa de crescimento esperada no período {Nature, 13 de maio). •


■ Lei do silêncio na costa do México

■ Autonomia nos testes com animais

É a segunda vez que acontece em 2004: foram proibidas pesquisas sísmicas realizadas por pesquisadores norte-americanos em águas mexicanas, devido ao impacto que poderiam causar em mamíferos marinhos. No dia 15 de abril foi cassada a permissão para que o navio de pesquisas Roger Revelle examinasse fendas ao longo da costa ocidental do México. A determinação partiu da Secretaria de Recursos Naturais e Ambientais do México. A alegação é que as experiências usariam ferramentas impróprias: armas de ar comprimido que promovem explosões na água. Tais estrondos produzem ondas de som captadas pelo navio depois de refletir o fundo do mar e as rochas nas profundezas. Em fevereiro, o governo mexicano vetou projeto similar com o navio Maurice Ewing. As armas utilizadas pelo Roger Revelle são menores que as do Ewing, argumenta o cientista chefe da expedição, Peter Lonsdale. Segundo ele, o navio completou uma viagem pelo golfo da Califórnia e não houve registro de animais machucados (Nature, 6 de maio). •

Companhias farmacêuticas e biotecnológicas da índia não vão mais depender de outros países para submeter drogas experimentais a testes toxicológicos. O governo indiano anunciou a construção de um grande complexo destinado à criação de animais para pesquisas. Até o fim de 2004, a unidade será concluída na cidade de Hyderabad, ao custo de US$ 50 milhões, revelou o diretor-geral do Conselho Indiano de Pesquisa Médica, Nirmal Kumar Ganguly. A iniciativa decorre da proibição de copiar e pro-

duzir no país drogas patenteadas no exterior, que começa a vigorar em janeiro de 2005. Agora os indianos vão enfrentar o desafio de desenvolver novos medicamentos. O complexo abrigará animais de todos os tamanhos e permitirá que os testes das drogas sejam feitos no país. O Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos treinou cientistas indianos e fornecerá apoio. A obra será financiada por empréstimos bancários, verbas do governo e de empresas. De acordo com Ganguly, apesar de atrelado ao governo, o complexo será administrado com autonomia (Nature Medicine). •

■ Estímulo às patentes portenhas A Argentina decidiu estimular o patenteamento de inovações criadas por seus pesquisadores, arcando com parte dos custos dos registros. Serão selecionadas 26 pesquisas, que não necessariamente precisam estar vinculadas a laboratórios oficiais. Cada proposta escolhida receberá US$ 26 mil, suficientes para cobrir os cerca de US$ 1.500 necessários para um registro de patente na Argentina, embora aquém dos US$ 100 mil exigidos na Europa ou nos Estados Unidos. Nos últimos tempos, o ritmo criativo da Argentina anda em baixa. Somente 145 cidadãos residentes no país obtiveram patentes em 2000, comparados a 1.400 patentes conseguidas por não-residentes, na maioria companhias internacionais. O presidente da Agência Nacional de Promoção Científica e Tecnológica, Lino Baranao, explica que, embora a maioria dos pesquisadores possa arcar com os custos de patentes na Argentina, suas invenções normalmente ficam desprotegidas em outros países em razão do alto custo. Os US$ 26 mil poderão ajudá-los nessa tarefa (SciDev.Net). •

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ESTRATéGIAS

MUNDO

■ De onde vieram os óvulos coreanos? Uma proeza da ciência sulcoreana mergulhou repentinamente no pântano da desconfiança. Em fevereiro, uma equipe de pesquisadores da Coréia do Sul anunciou ter obtido células-tronco a partir de um embrião humano clonado. Tudo ia muito bem, até surgir a suspeita de que o grupo liderado por Woo Suk Hwang e Shin Yong Moon, da Universidade Nacional de Seul, recorreu a integrantes da própria equipe médica para a doação dos óvulos usados na experiência. O número de óvulos foi de 242, retirados de 16 voluntárias. Cada uma delas recebeu injeções de hormônio para produzir de 12 a 20 óvulos a cada ciclo menstrual (o normal é produzir somente um). Causou espanto o fato de tantas voluntárias terem se submetido ao tratamento, que é doloroso e pode trazer prejuízos à saúde, como coágu-

los nas veias e derrame. "Isso nunca seria feito nos Estados Unidos", comentou o pesquisador José Cibelli, que estuda clonagem na Universidade do Estado do Michigan. Embora as doadoras tenham de se manter no anonimato, Ja Min Koo, estudante da equipe responsável pelo trabalho, declarou à revista Nature que doou óvulos, juntamente com outras mulheres do grupo numa evidência de que os óvulos podem não ter sido obtidos de forma tão voluntária. Posteriormente, quando a revelação começou a re-

percutir, Koo voltou atrás. Disse que havia se expressado mal porque não fala bem o inglês. Hwang refutou a participação de Koo, mas recusou o pedido da revista Nature de apresentar documentos sobre a forma de obtenção dos óvulos. O acesso a informações no Hospital da Universidade de Hanyang em Seul, responsável pela aprovação ética dos procedimentos, também foi negado. Em editorial, a Nature lamentou que um dos maiores eventos científicos do ano fique manchado por uma suspeita ética. •

■ Lei do passado na batalha ecológica O Greenpeace venceu uma batalha judicial que travava com o governo dos Estados Unidos. Em 2002, ativistas do grupo ambientalista fizeram a clássica abordagem a um navio que carregava mogno da Amazônia para Miami. O governo tentou enquadrar os ecologistas numa lei de 132 anos, criada para coibir a abordagem de prostitutas a navios. O juiz de Miami, Adalberto Jordan, mandou arquivar o processo. •

Envie sua sugestão de site científico para cienweb@trieste.fapesp.br

www.talkorigins.org/faqs/homs/ Textos sobre a evolução humana, com links em que é possível se conhecer s argumentos dos criacionistas.

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www.dartmouth.edu/-floods/ Site com ferramenta disponível para análise de imagens de satélite sobre chuvas excessivas em todo o mundo.

www.bl.uk/collections/treasures/digitisationl.html Um jeito novo de consultar, on-line, obras raras da Biblioteca Britânica, como o livro de notas de Da Vinci.


ESTRATéGIAS

BRASIL

A homenagem a Alberto Carvalho da Silva A FAPESP homenageou, no dia 13 de maio, o ex-diretorpresidente de seu Conselho Técnico-Administrativo, Alberto Carvalho da Silva, morto em junho de 2002. Na cerimônia, em que foi descerrada uma placa em sua memória, também ocorreu o lançamento de dois livros que contaram com a participação do homenageado. O crescimento da agricultura paulista e as instituições de ensino e pesquisa e extensão numa perspectiva de longo prazo, coordenado por Paulo Fernando Cidade de Araújo, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Univer-

■ Enfim, o teste do feijão transgênico Depois de mais de três anos de espera por uma licença ambiental, começaram em maio os testes de campo com o feijão transgênico desenvolvido pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Os grãos geneticamente modificados são resistentes ao vírus do mosaico dourado, que amarelece as folhas do feijoeiro, causa nanismo nas plantas e deforma as vagens. Os resultados da primeira fase de testes devem ser conhecidos em seis meses. Será avaliado o impacto nas condições físicas do solo, nos microrganismos ao redor e na fauna de minhocas, besouros, aranhas e formigas. Mas só dentro de três anos é que se saberá se o feijão é se-

m

mentos e investimentos realizados pelas universidades e institutos dessa área." O livro foi supervisionado por Carvalho da Silva. A segunda obra, Atividades de Fomento à Pesquisa e Formação de Recursos Humanos Desenvolvidas pela FAPESP entre 1962 e 2001, registra a preocupação de Carvalho da Silva em relação às políticas de ciência e tecnologia adotadas pela Fundação. "O lançamento das duas publicações consegue substanciar essa homenagem ao doutor Alberto, à sua memória e ao seu trabalho", disse Carlos Vogt, presidente da FAPESP. •

l^s^lÈllliim.

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* 0 presidente Carlos Vogt discursa na homenagem

sidade de São Paulo (USP), apresenta dados sobre as transformações da agricultura paulista nos últimos 40 anos e as contribuições da FAPESP para o avanço das

guro para a saúde humana e o meio ambiente. Além de repetir os testes de impacto ambiental, será necessário plantar o feijão transgênico numa área maior, a fim de obter a quantidade de grãos necessária para os testes de segurança alimentar. Esses testes seguirão as normas da FAO, órgão das Nações Unidas para

pesquisas agrícolas no mesmo período. "A obra reúne informações históricas esquecidas pela comunidade científica", disse Araújo. "Há estatísticas de gastos, orça-

agricultura e alimentação. A coleta do feijão transgênico está sendo feita num campo experimental da Embrapa em Santo Antônio de Goiás e vai ser analisada nos Laboratórios de Ecologia Microbiana e Fauna do Solo da Embrapa Agrobiologia, em Seropédica, Rio de Janeiro. A pesquisadora da Embrapa Agrobiologia,

Norma Gouvêa Rumjanek, não acha que os três anos de espera pela licença foram totalmente desperdiçados. "A situação era muito confusa. Havia dúvidas sobre os tipos de testes de impacto ambiental que deveriam ser feitos e, sempre que se discutia o assunto, aparecia alguma idéia nova. Com o tempo, foi possível amadurecer as idéias", afirma. "Ficou mais simples de planejar quando o país definiu que seguiria o princípio da precaução", afirma Norma, referindo-se ao conceito segundo o qual é preciso avaliar exaustivamente os perigos antes de liberar o consumo. Nos próximos meses, a Embrapa iniciará testes semelhantes com mudas de seus mamoeiros geneticamente modificados e resistentes a vírus e fungos. •

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ESTRATéGIAS

MUNDO

O terena que chegou longe Num momento em que o país discute políticas de cotas para minorias, vale a pena prestar atenção na trajetória do índio terena Rogério Ferreira da Silva. Aos 34 anos de idade, ele é um raríssimo exemplo de indígena que fez carreira acadêmica até o doutoramento. Formado em agronomia e mestre em Ciências do Solo pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, deve concluir em 2006 seu doutorado na Universidade Estadual de Londrina. Ele pesquisa organismos com mais de 2 milímetros de diâmetro da fauna invertebrada em solos submetidos a plantio direto. A carreira de Rogério é marcada por lances de obstinação - mas também de muita sorte. Na adolescência, deixou sua aldeia em Miranda, Mato Grosso do Sul,

■ Como estocar as sobras do gás Uma equipe de pesquisadores do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) descobriu três estruturas geológicas subterrâneas, próximas à Região Metropolitana de São Paulo, que poderão ganhar destinação inédita no Brasil: a estocagem de gás natural trazido da Bolívia ou das reservas recém-descobertas na bacia de Santos. Cada uma delas tem potencial para armazenar cerca de 1,6 bilhão de metros cúbicos do gás. A pesquisa foi patrocinada pela Petrobras e

Rogério investiga organismos do solo

para fazer um curso técnico agrícola numa escola de Cuiabá. Conseguiu a vaga graças à Funai, que convenceu a escola a reservar uma cota para indígenas. Quando concluiu o ensino médio, decidiu acompanhar um grupo de colegas de formatura (nenhum deles de sua etnia) ao Rio de Janeiro, para tentar o vestibular da Universidade Federal Rural

pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), que investiu R$ 661 mil no projeto, utilizando recursos do Fundo Setorial do Petróleo e Gás Natural, o CT-Petro. A Petrobras encomendou a pesquisa há três anos, preocupada em formar estoques reguladores de gás natural no Estado de São Paulo, para o caso de haver problemas de fornecimento da Bolívia. O interesse pelos reservatórios aumentou quando foram descobertas reservas de 400 bilhões de metros cúbicos de gás natural na bacia de Santos, a 140 quilômetros do litoral paulista. Com a

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no município fluminense de Seropédica. Foram todos de ônibus. Rogério fez as provas e, em vez de voltar com os amigos, arrumou um lugar na própria universidade para dormir, enquanto esperava o resultado final. Acabou reprovado. Sem dinheiro para voltar, foi pedir ajuda à Funai. Teve seu grande momento de sorte. Uma professora da Universidade

Federal foi acionada pela Funai para ajudá-lo a voltar. Impressionada com a obstinação do rapaz, ela lhe propôs trabalho. Durante um ano, Rogério cuidou de um sítio da professora, enquanto se preparava para o próximo vestibular. Passou e deu início a sua carreira universitária. Depois de viver dez anos no Estado do Rio, Rogério voltou ao Mato Grosso do Sul em 2001. Ele faz sua pesquisa numa unidade da Embrapa em Dourados, que tem ligação com a Universidade de Londrina. Solteiro, volta todos os meses à aldeia onde os pais vivem e tornou-se uma espécie de ídolo dos adolescentes locais. "Noutro dia, um garoto da aldeia ligou me convidando para ir à formatura dele. Disse que queria chegar aonde eu cheguei", ele diz. •

abundância de gás, haverá incentivos para a ampliação do consumo no país - justificando a existência de reservatórios próximos a centros urbanos capazes de prevenir oscilações de fornecimento. A prospecção foi feita com técnicas semelhantes às que procuram reservatórios de petróleo - embora o que se deseje sejam estruturas vazias. O grupo do IPT visitou países europeus como França e Alemanha, pioneiros nesse tipo de estocagem, que garante o fornecimento de gás para o aquecimento das residências. "Os franceses


são bastante ousados nessa tecnologia e já buscam estruturas a menos de 500 metros abaixo do solo", diz Wilson Iyomasa, responsável pela pesquisa no IPT. "As nossas ficam entre 500 metros e 2 quilômetros de profundidade." O próximo passo é fazer um levantamento geofísico tridimensional sobre as estruturas descobertas. Por razões estratégicas, o IPT e a Petrobras mantêm sigilo sobre a localização dos futuros pólos de estocagem. •

■ Instrumentos de inovação na Internet Chegou à Internet um inédito instrumento de apoio à inovação tecnológica. O portal Mobilizar para Inovar (www.inovar.org.br) é voltado para micros e pequenos empresários e futuros empreendedores interessados em conhecer os mecanismos de fomento à inovação e à tecnologia. Traz informações, agenda de eventos e biblioteca on-line. Na seção "Incentivos", as empresas poderão obter informações sobre todas as possibilidades de conseguir incentivos para apoio a iniciativas de inovação. "Muitas vezes, os processos são incompreensíveis para estes empreendedores", disse o empresário Jorge Gerdau Johanpetter, presidente do grupo Gerdau e do conselho superior do Movimento Brasil Competitivo (MBC), entidade que criou o portal. O MBC é uma organização de interesse público, apoiada pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, por meio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) com R$ 750 mil do Fundo Setorial Verde e Amarelo - e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) - com R$ 350 mil em bolsas. •

Prêmio Fundação Conrado Wessel A Fundação Conrado Wessel (FCW) anunciou, no dia 20 de maio, os seis vencedores do Prêmio FCW nas áreas de Ciência Geral, Ciência Aplicada ao Mar, Ciência Aplicada ao Campo, Ciência Aplicada ao Meio Ambiente, Medicina e Literatura. Os nomes foram escolhidos a partir de 118 indicações feitas por 24 universidades federais, cinco ministérios, três universidades estaduais paulistas - Universidade de São Paulo (USP), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Universidade Estadual Paulista (Unesp) -, além do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) e do Hospital do Câncer. O prêmio foi criado em 2002 com o Brito Cruz: prêmio por pesquisa em física experimental objetivo de incentivar as artes, ciência e cultura. Os ganhou o prêmio Ciência lista na análise dos impactos da agricultura, pecuária, seis vencedores dividirão Aplicada ao Mar. Geólosilvicultura e manejo flogo, Muehe foi um dos priR$ 600 mil. • O prêmio Ciência Geral meiros a pesquisar a costa restal na região. • A descoberta de que a infoi conferido ao reitor da brasileira. Unicamp, Carlos Henrique • O agrônomo Jairo Vidal flamação crônica tem papel relevante no aparecimento de Brito Cruz. Engenheiro Vieira, pesquisador da Emdo diabetes tipo 2 rendeu eletrônico pelo ITA, Brito presa Brasileira de Pesà endocrinologista Maria Cruz foi presidente da FA- quisa Agropecuária (EmPESP por três mandatos brapa), recebeu o prêmio Inês Schimidt, da Universidade Federal do Rio consecutivos. Foi premiado Ciência Aplicada ao CamGrande do Sul (UFRGS), o por sua pesquisa na área de po. Formado pela Univerfísica experimental, sobre sidade Federal de Viçosa e prêmio FCW de Medicina. fenômenos ultra-rápidos, pós-doutorado pela Texas • A escritora Lya Luft, aueventos que ocorrem em A&M University, Vieira tora de Perdas e ganhos e menos de um picossegun- tem se destacado por seu Pensar é transgredir, além de outros 15 título ganhou do (intervalo de tempo de trabalho no melhorameno prêmio de Literatura. 1 trilionésimo de segun- to genético de hortaliças. Formada em pedagogia e do), além de lasers e semi- • O prêmio Ciência Aplicada ao Meio Ambiente foi letras anglo-germânicas condutores. • Dieter Carl Ernst Heino conferido ao biólogo Philip pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande Muehe, professor de pós- Martin Fearnside, profesgraduação em Geografia sor do Instituto Nacional do Sul, Lya é mestra em da Universidade Federal de Pesquisas da Amazônia Literatura Brasileira e Portuguesa pela UFRGS. • (Inpa). Fearnside é especiado Rio de Janeiro (UFRJ),

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O salto quântico

"ciência brasileira A pesquisa nacional se profissionaliza, incorpora o trabalho em grupo e melhora sua posição no mundo MARCOS PIVETTA

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A pequena reunião, bem informal, era em i^L casa mesmo, em meio a fraldas e maÈ ^k madeiras. De licença maternidade (tiA"""^k nha acabado de ser mãe pela terceira È ^k vez), a bióloga molecular Marie-^L. Ji^ Anne Van Sluys, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), então com 34 anos, queria entrar numa nova empreitada da FAPESP e gostaria de contar com o apoio de dois colegas de unidade: o experiente Carlos Menck, seu marido, e a ainda mais jovem Mariana de Oliveira, 29. Empreitada que, naquele ano de 1997, ninguém poderia imaginar que fosse dar tão certo e se tornaria um marco na ciência nacional. Marie-Anne iria se candidatar a ser coordenadora de um dos 30 laboratórios que tentariam fazer — e fizeram — o seqüenciamento do genoma da bactéria Xylella fastidiosa que provoca a Clorose Variegada dos Citros (CVC), doença conhecida nos laranjais como amarelinho. Uma responsabilidade e tanto para essa filha de belgas nascida no Rio de Janeiro e com doutorado na França. Afinal, ninguém no Brasil era especialista em genomas. "Havia hierarquia entre os grupos, mas todo mundo estava lá para aprender", relembra Marie-Anne. E aprenderam. Em 13 de julho de 2000, MarieAnne era uma das 116 assinaturas que constavam do hoje histórico artigo científico sobre o genoma


da Xylella. Os brasileiros foram os primeiros do mundo a seqüenciar o genoma de um patógeno que atacava plantas. Pelo feito, não só emplacaram seu trabalho na revista inglesa Nature, talvez a mais conceituada das publicações científicas, como foram agraciados com a capa do periódico, distinção inédita para a ciência nacional. O genoma da Xylella gerou uma repercussão enorme aqui e no exterior, tanto no meio científico como na sociedade que não vive o dia-a-dia dos laboratórios de pesquisa. A ficha caiu e, talvez a contragosto, os países desenvolvidos perceberam que aquele gigante da América do Sul era mais hábil e versátil do que pensavam. "Samba, futebol e... genômica", escreveu The Economist, revista inglesa especializada em economia, mostrando que a ginga e os dribles nacionais haviam se espraiado para um novo campo do saber. Pelo modo como foi feito, pela repercussão obtida e pelo perfil e quantidade de pessoas envolvidas no projeto, o genoma da Xylella é, efetivamente, um divisor de águas na pesquisa nacio-

nal, a despeito de seus muitos críticos. O projeto serviu de modelo para outras iniciativas de porte, como a rede nacional do programa Genoma Brasileiro, criado no ano 2000 pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O Genoma Brasileiro montou uma rede de 25 laboratórios, localizados em 15 estados, que decifraram o código genético da Chromobacterium violaceum, bactéria de importância para a biotecnologia. Mas, olhando para trás, a notícia mais importante não tem a ver com seqüenciadores e genes. A boa nova, boa mesmo, é que, nos últimos 15 ou dez anos, a ciência nacional como um todo - e não apenas a genômica - cresceu, ganhou visibilidade e atingiu patamares de excelência internacional nunca antes vistos. De 1990 para cá, triplicou o número de cientistas nas instituições de pesquisa, dobrou o percentual de artigos assinados por brasileiros em revistas internacionais indexadas e quintuplicou o total de novos doutores formados anualmente no país. "Nesse período, a pesquisa brasileira mudou de

escala, ganhou massa crítica e se profissionalizou", afirma Carlos Henrique de Brito Cruz, reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e expresidente da FAPESP O sucesso do genoma nacional era apenas a ponta de um iceberg que então começava a despontar e hoje se revela por inteiro. Inovação e riqueza - Por ora, salto equivalente ao da ciência não aconteceu com o chamado setor de inovação, encarregado de transformar as boas idéias que surgem na pesquisa (básica) - feita em geral nas universidades públicas - em produtos, empregos e riqueza para o Brasil. Um dos indicadores usados para medir a saúde da pesquisa tecnológica de um país é olhar para a evolução do número de patentes registradas nos Estados Unidos, a maior economia do mundo. Em 1990, o Brasil obteve 41 patentes desse tipo (a Coréia, 225). Em 2001, a situação - a nossa, infelizmente - não havia se alterado radicalmente: 110 novos registros para o Brasil e 3.538 para o tigre asiático. É verdade que a quantidade de patentes e PESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 29


A pesquisa nacional avança, mas a inovação ainda patina A ciência brasileira globalizada

A inovação cresce lentamente

Um em cada 65 artigos científicos que saem em revistas internacionais indexadas é de brasileiros, proporcionalmente o dobro de 1990

Em 1990 o país registrou 5,5 vezes menos patentes nos EUA do que a Coréia. Em 2001 os orientais obtiveram 32 vezes mais registros do que os brasileiros

Ano

1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002

de artigos brasileiros em relação ao mundo

0,64 0,69 0,77 0,75 0,76 0,83 0,90 1,00 1,13 1,25 1,33 1,44 1,55

de artigos brasileiros em relação à A. Latina

36,95 38,39 39,82 37,90 37,59 38,01 37,96 38,19 40,95 41,59 42,11 43,06 43,84

Fonte: Institute for Scientiffc Information (ISI)

registros concedidos a residentes no Brasil pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi), no Rio Janeiro, dobrou entre 1995 e 2002, passando de 1.445 para 3.724 concessões. É um quadro animador, sem ser revolucionário. "As empresas nacionais ainda não sabem como inovar. É uma questão cultural. Esse tipo de atividade envolve riscos e demanda tempo", explica Sérgio Rezende, presidente da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), agência federal de apoio à inovação. A pesar das dificuldades, houve I^L progressos no setor, como a LJ^ criação em 1995 do prograi ^L ma Parceria para Inova-X■ ção Tecnológica (PITE), da FAPESP, que hoje serve como modelo para iniciativas semelhantes em outros estados e no âmbito federal. O PITE promove associações entre instituições de pesquisa do Estado de São Paulo e empresas de qualquer porte interessadas em desenvolver produtos ou processos produtivos com alto conteúdo tecnológico. Espera-se que a recente 30 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100

Registros concedidos pelo escritório de patentes dos EUA

1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001

Brasil

Coréia

41 62 40 57 60 63 63 62 74 91 98 110

225 405 538 779 943 1.161 1.493 1.891 3.259 3.562 3.314 3.538

^mtmmmmmlÊl^lm^a^mimmimlllmllmm Fonte: Escritório de Patentes e Marcas dos EUA (USPTO)

Lei de Inovação, enviada pelo governo federal para apreciação do Congresso Nacional, seja aprovada e abra caminho para a transferência efetiva de conhecimento dos centros de pesquisa para as empresas nacionais. Outra aposta é que o dinheiro dos fundos setoriais, criados em 1999 para fomentar a inovação, passe a chegar a seu destino. "Colocar o tema inovação na agenda nacional é fundamental para o país manter sua economia competitiva", diz Carlos Américo Pacheco, do Instituto de Economia da Unicamp e ex-secretário-executivo do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). O tema pode até ter entrado no discurso oficial, mas a política industrial ainda não reflete isso. A força da Petrobras, da Embraer e do agronegócio nacional, graças em parte à Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), é ainda exceção no panorama da inovação. Três vezes mais artigos - Um dos indicadores mais expressivos do fortalecimento da pesquisa nacional é o aumento no número de trabalhos assinados

por brasileiros em revistas internacionais. Em 13 anos, a quantidade de artigos científicos escritos aqui e publicados em periódicos indexados pela base de dados do Institute for Scientific Information (ISI) triplicou e o peso da produção nacional dobrou em relação à do mundo. Em 1990, os pesquisadores brasileiros publicaram 3.552 artigos na base de dados do ISI, que monitora a produção científica de 8,5 mil revistas de 21 áreas de estudo. O número eqüivalia a 0,64% da produção mundial acompanhada pelo ISI. Em 2002, os cientistas nacionais publicaram 11.285 trabalhos e responderam por 1,55% da produção mundial - mais do que, por exemplo, a participação brasileira no comércio global (0,9%). O país firmou sua posição de líder inconteste da ciência na América Latina. Quase 44% dos artigos oriundos dessa parte do planeta carregam hoje o nome de um brasileiro. Em 1990, esse índice era de 37% (veja tabela acima). Os números do ISI retratam com fidelidade o salto quantitativo e qualitativo que ocorreu com a ciência nacional? Pode até não ser o


melhor parâmetro desse fenômeno, mas, com certeza, não pode ser ignorado. "Apenas 10% da produção científica brasileira está em periódicos do ISI", diz Evando Mirra, presidente do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), do MCT. "Porém esse indicador é importante, pois é aceito internacionalmente e permite comparações."

mais (1,87%), a farmacologia (1,57%) e a matemática (1,51%). Quem publica mais tem mais chance de ser citado em trabalhos de colegas, daqui ou do exterior. De forma mais discreta do que ocorreu com o crescimento no número de artigos científicos publicados, a quantidade de menções aos trabalhos nacionais também aumentou. Entre 1992 e 1996, cada paper brasileiro foi citado em média 1,8 vez. Entre 1998 e 2002, esse índice estava na casa de duas citações por artigo científico. No entanto, em todas as áreas de estudos os escritos dos brasileiros ainda são menos citados do que a média da produção mundial. Com 2,64 citações por trabalho publicado, índice apenas 16% menor que a média mundial, a área de psicologia e psiquiatria teve o melhor desempenho nesse quesito. Outro parâmetro que mostra a preocupação dos brasileiros em publicar seus trabalhos é a consolidação da Scientiftc Electronic Library Online (SciELO). Financiada pela FAPESP desde 1997, com apoio do Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (Bireme), essa biblioteca eletrônica conta hoje com 123 periódicos brasileiros, todos de acesso livre e gratuito. A partir de 2002, o CNPq passou a investir também no SciELO.

Por que a ciência brasileira evoluiu tanto nos últimos anos? Resposta: cresceu porque há mais gente - e sobretudo mais gente qualificada - fazendo pesquisa no país. Houve o tal aumento de massa crítica e profissionalização das atividades de pesquisa nas universidades e centros de estudos. Hoje a quantidade de jovens que ingressam na vida acadêmica com um olho na carreira de cientista não pára de crescer.

Possibilita, por exemplo, descobrir que o Brasil é hoje o Mais mulheres - Em apenas nove anos, 17° produtor de artigos ciende 1993 a 2002, triplicou o número de tíficos indexados. Um em cacientistas trabalhando em universidada 65 trabalhos publicados des e centros de pesquisa, segundo danos periódicos da base do ISI carrega o dos do CNPq. Pulou de pouco mais de nome de um cientista nacional. Vinte 20 mil para quase 60 mil pessoas, das países emplacam mais de 10 mil artigos quais 60% são hoje doutores (veja quapor ano em revistas indexadas - e o dro abaixo). Nessas instituições, 46% Brasil é um deles. Dos países que publidos pesquisadores são hoje do sexo fecavam menos do que o Brasil em 1981, minino. "Mas a presença de mulheres apenas a China e a Coréia estão agora na liderança de grupos de pesquisa é em situação melhor do que a nossa. Em um pouco menor, cerca de 41%", afirma 2.002, a China era o sexto produtor de Jacqueline Leta, do Instituto de Ciências artigos indexados (33 mil trabalhos) e a Biomédicas da Universidade Federal do Coréia ocupava a 14a posição (15 mil arRio de Janeiro (UFRJ), que realizou um tigos). A despeito do processo crescenestudo sobre a participação feminina te de globalização da ciência, a ativina ciência nacional. O conjunto de pesdade de pesquisa permanece bastante quisadores registrados na base de dacentralizada nos países mais ricos. Apedos do CNPq não inclui os cientistas sar de o interesse pela carreira científica que atuam em empresas privadas, posestar em declínio entre seus habitantes, sivelmente mais 30 mil indivíduos. os Estados Unidos ainda lideram, com O aumento no númefolga, a lista dos países com ro de gente fazendo pesmaior produção científica. quisa permitiu à ciência Os norte-americanos resMaise melhores cérebros nacional tocar projetos pondem por 33,6 % dos mais ambiciosos e, em alartigos do mundo indegumas áreas, concorrer de xados pelo ISI. O segundo Em uma década, a quantidade de cientistas em fato com os grandes cencolocado, o Japão, fica com universidades e centros de pesquisa do país triplicou tros internacionais. "Até a 9,5%. Em seguida, aparee a porcentagem de doutores cresceu 9 pontos década de 1980, a comunicem Reino Unido (9%), dade científica no Brasil Alemanha (8,7%) e Fran% de cientistas com doutorado Número de pesquisadores era muito pequena. Havia ça (6,2%). um esquema familiar de Os dados do ISI tamprodução na pesquisa", cobém jogam luz sobre as menta Brito. "Todo munáreas da ciência nacional do conhecia seus colegas que mais publicam lá fode área pelo nome. Isso já ra. Considerando toda a não acontece hoje." As paprodução indexada entre lavras do reitor da Uni1998 e 2002, as ciências camp, um estudioso das agrárias lideram esse rantendências que permeiam king. Seus artigos reprea produção científica nasentaram 2,96% da producional, não devem ser enção mundial nessa área de tendidas como uma crítica pesquisa. Em seguida, vie1993 1995 1997 2000 2002 1993 1995 1997 2000 2002 às gerações passadas. Não ram a física (2,12%), a ciênFonte: CNPq é nada disso. Sempre houcia espacial (1,92%), a miObs.: Não estão incluídos os pesquisadores de empresas privadas ve gente qualificada fazencrobiologia (1,91%), as do ciência de ótima qualiciências de plantas e aniPESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 31


dade no país. Só que o número de pesquisadores era Sangue novo na pesquisa pequeno no passado. Eles formavam um clubinho 0| jaís forma hoje cinco vezes mais doutores do que no início da década passada acanhado e fechado. Não dava para encher um estáNúmero de novos doutores titulados dio de futebol com eles. Havia interação entre esses poucos cientistas, mas as 7.300 colaborações eram fruto 6.843. essencialmente do círculo 6.042^ de relações de amizade e conhecimento do pesqui4.853 sador - e não de projetos 3.949 ^H 3.497 ^iH ou programas pensados pela comunidade científica 2.497 ' ^^ e agências de fomento. 1.410 1.750 1.759 1.875JS^^ "Havia colaborações fortuim tas entre os pesquisadores. Agora essas colaborações são institucionais", afirma 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003* José Fernando Perez, diretor científico da FAPESP. *Dado preliminar Houve também um amaFonte: Capes/Coordenação de Estatísticas e Indicadores do MCT durecimento dos grupos de pesquisa no país. "Eles superaram a antiga visão de Física da UFRJ e coordenador do Instifirme - seu competidor está no espaço, competição e passaram a cooperar tuto do Milênio sobre informação quâno telescópio Hubble - e deve dar um immais", comenta Perez. tica. "Mas apresentam problemas em pulso sem precedentes à astrofísica sua implementação." nacional. Do custo total do projeto, Responsável por cerca de US$ 28 milhões, o país entrou com US$ 50% da pesquisa produziDescontinuidade de verbas - Proble12 milhões e adquiriu o direito de usar da no país, o Estado de São mas de implantação é a forma polida de 34% do tempo de observação do telesPaulo foi pioneiro nesse aludir à crônica descontinuidade das cópio montado nos Andes {veja adiannovo jeito de fazer ciência, verbas federais para a ciência e tecnolote reportagem sobre o Soar). dando ênfase a projetos maiores e mulgia. O país dedica ao setor cerca de 1% No plano federal, também houve tidisciplinares que estimulassem o trado Produto Interno Bruto (PIB), dos iniciativas recentes que estimularam o balho em equipe em busca de resultaquais 60% vêm do poder público (gotrabalho multidisciplinar e multicêndos de maior impacto. Criados em verno federal e, em menor escala, os trico, juntando competências comple1990, os projetos temáticos da FAPESP estados) e 40% da iniciativa privada. mentares para investigar grandes temas são um exemplo da ciência nacional Nações desenvolvidas canalizam, proda ciência, básica ou aplicada. A criação que entrou na maioridade e deixou a porcionalmente, o dobro ou o triplo do programa Institutos do Milênio, em adolescência para trás. Até 2001, a Funpara o setor. No Brasil ainda é pequeno 2001, pelo MCT/CNPq, se insere nesse dação havia investido R$ 230 milhões o investimento privado em pesquisa, contexto. Esses projetos promovem o em 624 projetos de todas as áreas examas a situação já foi pior. Há alguns trabalho em rede de um conjunto de tas, biológicas e humanas. Mais organianos, as verbas das empresas represencientistas dispersos, às vezes em difezada e com mais gente, a pesquisa pôde tavam 10% do total despendido aqui rentes instituições e estados. Hoje há 17 abraçar empreitadas ambiciosas, como em ciência. "A meta é investirmos pelo Institutos do Milênio, dedicados a teo programa Biota, um instituto virtual, menos 2% de nosso PIB em pesquisa, mas tão diversos como polímeros, nasem sede física, que congrega 500 ciencom maior participação do setor prinociências, matemática, terapia celular, tistas com o objetivo de levantar toda a vado", diz o médico Eduardo Moacyr recursos costeiros e genoma dos citros. biodiversidade paulista. Também proKrieger, do Instituto do Coração (InOutra iniciativa vinda de Brasília que tagonizou lances ousados como a coscor), de São Paulo, e presidente de Acaanimou os pesquisadores brasileiros foi tura político-financeira que permitiu a demia Brasileira de Ciências (ABC). o lançamento em 1996 do Programa de entrada do Brasil num empreendimenDevido ao respaldo da FAPESP e a Apoio a Núcleos de Excelência (Proto internacional e, literalmente, astrouma trinca de universidades estaduais nex). "Esses dois programas represennômico: a construção do Observatório de primeira linha (USP, Unicamp e tam novas formas de financiamento de do Sul para Pesquisa Astrofísica, o Soar, Unesp), São Paulo é um estado privilelongo prazo e são idéias muito boas", recém-inaugurado no Chile. O obsergiado no cenário nacional. Sente meavalia Luiz Davidovich, do Instituto de vatório não tem concorrente em terra 32 ■ JUNHO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 100


nos as oscilações no tamanho do orçamento destinado pelo Planalto para a pesquisa (veja abaixo tabela com a evolução da verba federal para a ciência nos últimos anos).

avião com destino aos Estados Unidos ou Europa. Hoje não é mais assim. "Na minha época, era preciso ir ao exterior para se especializar em biologia molecular de plantas", relembra Marie-Anne Van Sluys. "Agora é possível fazer o doutorado aqui, aprendendo as técnicas de ponta."A pós-graduação se disseminou pelo país. Em 1990, os programas nacionais de pós-graduação formaram 1.410 doutores. Ano passa-

cientistas. Ainda assim, uma parte deles será absorvida nas universidades e, se devidamente financiada e estimulada, poderá elevar a excelência e o peso da pesquisa (básica) nacional. Alguns doutores, inevitavelmente, emigrarão Nos outros estados, cujo para os grandes centros internacionais. sistema público de ciênE os outros? O rumo de um bom núcia depende em maior mero desses jovens pesquisadores demedida do dinheiro de verá ser a iniciativa privada, onde poBrasília e da infra-estrudem resolver dois problemas: um de tura existentes nas univerordem pessoal (arrumar sidades federais, a vulneemprego) e outro de orrabilidade é maior e gera dem estrutural para a A incerteza das verbas de Brasília situações quase surreais. economia do país (impul"Há ilhas de excelência sionar o setor de pesquisa num mar de miséria", afire inovação no meio emTotal de recursos federais aplicados ma Davidovich. "Temos presarial). em Pesquisa & Desenvolvimento aqui na UFRJ laboratórios No final do mês passa(em bilhões de reais de 2002) modernos em prédios sem do, José Fernando Perez, lâmpadas, com goteiras e da FAPESP, e Fernando paredes com risco de deReinach, do Instituto de sabar." Para minorar esse Química da USP e presiquadro, grupos de ponta dente da Alellyx, empresa de vários estados brasileinacional de biotecnoloros procuram estabelecer gia, fizeram uma proposta parcerias com centros em para patrocinar o casamelhor situação financeimento dos novos doutora. "Nos momentos de crires com a inovação: emse, a saída é intensificar a presas que contratarem cooperação com colegas doutores para a realização de São Paulo e do exterior", de atividades de Pesquisa diz o neurocientista Ivan e Desenvolvimento ficaIzquierdo, da Universidariam desoneradas de todos de Federal do Rio Grande os encargos sociais refedo Sul (UFRGS). rentes ao recrutamento Se não houve um audesses indivíduos. O in1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 mento expressivo - e percentivo valeria somente manente - no volume de durante os dez primeiros Fonte: Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi). verbas destinadas para a anos subseqüentes à obGráfico elaborado pelo MCT ciência nacional, o que exObs: Valores monetários expressos em reais de 2002, Atualizados pelo Índice Geral tenção do título de doude Preços - Disponibilidade Interna (IGP-DI) da Fundação Getúlio Vargas (FGV) plica a ascensão da pesquitor. Os autores da idéia sa brasileira, reconhecida calculam que 50 mil noaté no exterior, a partir dos vos doutores poderiam ser anos 90? A resposta é um beneficiados pela propossegredo de Polichinelo. O Brasil deu sedo, cerca de 7.300 pessoas receberam ta nos próximos dez anos. "O impacto qüência a uma política de Estado, iniesse título em território nacional (veja dessa medida seria imediato", dizem ciada na década de 1960, e construiu gráfico na página ao lado). Perez e Reinach. "Os custos para conum sistema de pós-graduação, em esO futuro da ciência brasileira, e em tratação de doutores teriam uma redupecial nas universidades públicas. É da especial do setor de tecnologia e inoção de 50%." Para as empresas, um dos pós que sai o fermento que faz o bolo vação, depende das oportunidades que insumos mais caros de um departada pesquisa nacional crescer: os novos serão criadas para essa crescente leva mento de pesquisa é o recrutamento de doutores. Até a década 1980 não havia de doutores, um capital humano precérebros. O subsídio proposto pode gealternativa para muitos aspirantes a ciencioso. No século 21, poucos países titurar o círculo virtuoso de que o Brasil tistas que queriam se especializar em lam a quantidade de doutores que o tanto precisa: mais emprego, mais emáreas de ponta: o caminho mais curto Brasil forma anualmente. Mas qual será presas de base tecnológica, mais invespara o doutorado era o aeroporto. o destino dessa mão-de-obra altamentimento privado na pós e maior proxiConseguia-se uma bolsa de alguma te especializada? Nos centros nacionais midade da universidade e da indústria. agência de fomento nacional (ou até de pesquisa não há - e não pode haver A ciência nacional já deu um salto. mesmo do exterior) e tomava-se um - vagas para todos esses candidatos a Agora é a vez da inovação. • PESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 33


CAPA

Construção do Soar cria um modelo de avaliação de empreendimentos de grande porte

CARLOS FIOR,

J oi durante uma partida de tênis, em uma tarde ensolarada de sábado em janeiro de 2000, que Luis Herrera Árias aceitou a coordenação da construção da cúpula do telescópio Soar - uma semi-esfera de 14 metros de altura que desliza com delicadeza sobre um anel metálico de 20 metros de diâmetro. Dois anos depois, Herrera estava no alto de uma montanha dos Andes chilenos, o Cerro Pachón, a 2.700 metros de altitude, à frente de 15 homens que montavam as peças feitas no Brasil, todos com roupas vermelhas e encapuzados, na esperança de escapar do frio de 8 graus negativos. "Era horrível", comenta o engenheiro de 66 anos, ainda hoje um parceiro de tênis de César Ghizoni, o diretor da empresa que o contratou, a Equatorial, de São José dos Campos. "Não conseguíamos ficar mais de meia hora seguida nas escadas, a 12 metros do chão." E havia neve, muita neve: mesmo nascido no Chile, Herrera nunca tinha visto tanta neve. Por duas vezes, na iminência de uma tempestade, teve de abandonar o observatório com sua equipe, sob o risco de ficarem isolados no alto da montanha sabe-se lá por quanto tempo. "Lá fora", lembrase, "ninguém enxergava mais nada." O vento branco se intensificava e, horas depois, deixaria o solo coberto por 1 metro e meio de neve. Como uma casa, que depois de pronta silencia as vozes que a construíram, as obras cientificas tendem a deixar para trás quem atuou nos bastidores e criou os caminhos a serem seguidos pelos que vêm depois. Foi assim com o Soar - o Southern Observatory for Astrophysical Research ou Observatório do Sul para Pesquisa Astrofísica -, inaugurado sob um céu azul e um tempo amigável no dia 17 de abril. O processo de avaliação pelo qual passou esse projeto criou um modelo de financiamento de empreendimentos de grande porte, adotado a seguir em dois projetos semelhantes: o Observatório Pierre Auger de Raios Cósmicos, em construção na Argentina, no qual o Brasil participa ao lado de 16 países, e o Detector de Ondas Gravitacionais Mario Schenberg, inteiramente nacional, com início de operação previsto para o próximo ano. 34 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 1C


M

"Com o Soar, a FAPESP ganhou um novo olhar para projetos de construção de grandes equipamentos, especialmente os internacionais", diz José Fernando Perez, diretor científico da FAPESP, uma das instituições que financiaram o observatório no Chile, com cerca de US$ 3,2 milhões, junto com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que liberou US$ 10 milhões. Duas estratégias adotadas to - além, evidentemente, da relevância científica - passaram a nortear a avaliavimento dos pesquisadores em todas as etapas de trabalho, do projeto à operação dos aparelhos, e a construção dos próprios instrumentos, na medida do possível, pela indústria nacional. "Projetos dessa envergadura devem servir para desenvolver a competência do país em instrumentação de precisão", destaca Pebilidades com a instrumentação do que em outras atividades em que poderíamos aprender menos." Foi essa a razão pela qual a FAPESP liberou cerca de US$ 1 milhão para um projeto independente, ainda que complementar ao Soar: a construção de um instrumento bastante refinado - um espectrógrafo -, que dedo surgiram e de que são feitas. Oportunidade - A maior lição dessa história talvez seja esta: aprenda a virar o jogo quando necessário. No início, o Soar era uma idéia acalentada apenas por instituições norte-americanas - o National Óptica] Astronomy Observatories (Noao) e quatro universidades. João Steiner, astrofísico da Universidade de São Paulo (USP), descobriu uma brecha para o Brasil em 1993, quando participava de uma reunião nos Estados Unidos como representante do país no Gemini, conjunto de dois telescópios com espelhos de 8 metros de diâmetro, um no Havaí e outro no Chile. Soube então que a equipe do Noao, em paralelo ao Gemini, havia iniciado o projeto de um telescópio menor, mais

Forno da Italbronze: trabalho com pesquisadores cria desafios às empresas

metros de diâmetro. Só que teve de congelar os planos com a desistência de dois parceiros, a Universidade de Columbia e a Universidade do Colorado. Era a oportunidade que o Brasil esperava havia muito tempo.

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aquele momento, haviam se passado dez anos desde que os astrofísicos brasileiros chamaram a atenção a respeito da im-

telescópio com espelho de 4 metros de diâmetro: seria uma forma de suprir as futuras lacunas do telescópio de 1,6 metro do Laboratório Nacional de Astrofísica (LNA), inaugurado em 1981 no município mineiro de Brasópolis. Sem aparelhos mais potentes, a astrofísica, uma das áreas mais produtivas da ciência nacional, correria o risco de ficar para trás no cenário internacional. Nesse tempo, o Brasil tinha se tornado um dos sete países do Gemini, mas com direito a apenas 2,5% do tempo de uso, o equivalente a 14 noites por ano. Faltava algo de porte intermediário, se possível com um tempo mais generoso, que ajudasse os cerca de 200 grupos de pesquisa do país a selecionar os objetos celestes a serem estudados mais detidamente no Gemini. Steiner foi, portanto, bem recebido ao apresentar a perspectiva de parceria com as instituições norte-americanas que se mantinham no projeto - o Noao, a Universidade da Carolina do Norte (UCN) e a Universidade Estadual de Michigan (MSU). Mobilizada como uma possível fonte de recursos, a FAPESP, como de hábito, consultou especialistas brasileiros - os assessores externos ou ad hoc, que permanecem anônimos para que possam avaliar as propostas com isenção. pequena participação brasileira na definição do projeto do telescópio, que -americanos. Mas, em vista da complexidade do projeto, que impôs a necessidade de um diálogo mais intenso com os pesquisadores, a fórmula tradicional de avaliação dos pedidos de financiamento não era a mais adequada - e a Fundação adotou então a assessoria aberta,

pesquisa de genomas. Além de especialistas brasileiros, a exemplo de Herch Moysés Nussenzveig, físico da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), de reconhecida competência, e de Cylon Gonçalves da Silva, que havia coordenado a construção do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), a Fundação conviPESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 35


dou dois experientes astrofísicos europeus: o inglês Roger Davies, da Universidade de Durham e representante do Reino Unido no Gemini, e o italiano Massimo Tharenghi, gerente do projeto Very Large Telescope (VLT), um dos quatro telescópios com espelho de 8 metros do Observatório Europeu do Sul (ESO), erguidos também nos Andes chilenos com um orçamento de U$ 700 milhões - o do Soar era de US$ 28 milhões. Em uma quarta-feira, 13 de dezembro de 1995, começou um encontro de dois dias promovido pela FAPESP que mudaria os rumos do projeto Soar. Os debates deixaram evidente a importância de um telescópio desse porte para a astrofísica brasileira continuar enxergando longe e manter o ritmo das pesquisas sobre a origem e a composição das estrelas, a evolução de galáxias e a distribuição de massa do Universo. Na sexta, Davies e Tarenghi reuniram-se a sós e elaboraram um documento de sete páginas, com uma análise das linhas gerais do projeto e algumas recomendações. A mais estratégica delas: a comunidade científica brasileira deveria ter voz ativa e mais crítica, em vez de se limitar ao papel de financiador e usuário do equipamento, como havia acontecido no Gemini. "Os assessores sugeriam que o Brasil visse o projeto apenas como rascunho, embora tivesse sido apresentado como mais ou menos concluído, e explorasse outras alternativas que atendessem plenamente aos interesses dos grupos de pesquisa brasileiros", recorda Luiz Nunes, atual pró-reitor de pesquisa da USP que foi um dos articuladores dessa reunião, então como assessor da Diretoria Científica da FAPESP. "Era como escolher entre comprar um carro ou construir um." Na avaliação dos assessores, o Brasil deveria também definir claramente os objetivos científicos a serem perseguidos com o Soar. Os grupos de pesquisa foram consultados e, um ano e meio depois, estava claro como deveria ser o telescópio de que o país realmente precisava. Como não era exatamente o que os norte-americanos imaginavam, começaram as propostas de ajustes do projeto original, que acabou mudando em alguns pontos essenciais. Os brasileiros preferiam um detalhamento de ima36 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100

gem - ou resolução - maior, ainda que com uma área observada menor. Os parceiros cederam: a mudança também atendia aos interesses deles. "Por termos optado por uma área menor e maior resolução, ganhamos uma vantagem competitiva", comenta Steiner. "Hoje só temos um rival, o Hubble." Por fim, os brasileiros acabaram assinando os projetos óptico obra de Gilberto Moretto, hoje consultor da Nasa - e elétrico - de Oliver Wiecha, que hoje cuida de um telescópio semelhante, em construção nos Estados Unidos. "A FAPESP só aprovou o financiamento depois que o projeto foi redesenhado de forma a responder claramente aos interesses científicos da comunidade astronômica brasileira, que tiveram de ser previamente enunciados", comenta Perez. Finanças - O Soar viveu uma engenharia financeira peculiar. Em uma articulação inédita, o governo federal e as fundações de apoio à pesquisa em São Paulo, Rio, Minas e Rio Grande do Sul se uniram para cobrir os US$ 14 milhões que o Brasil teria de liberar ao longo da construção do telescópio - depois, essa participação passou para US$ 12 milhões em capital e US$ 2 milhões em 20 anos, cobrindo parte dos custos da operação, com a vantagem de o país ganhar experiência no gerenciamento de projetos desse tipo. Um convênio de cooperação assinado em novembro de 1998 estabelecia que o CNPq entraria com US$ 2 milhões, a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) com US$ 1,7 milhão, a FAPESP com US$ 3,1 milhões e as Fundações de Minas (Fapemig), do Rio (Faperj) e do Rio Grande do Sul (Fapergs) com US$ 860 mil cada uma. Mas essa equação mudaria bastante: a crise financeira que o país atravessou em 1999, com a alta repentina do dólar, somada às instabilidades políticas geradas pelas eleições estaduais do ano anterior, inviabilizou a participação das fundações do Rio, Minas e Rio Grande do Sul.


Em outro lance inédito, a FAPESP havia assumido uma dívida do CNPq com os pesquisadores paulistas no valor de US$ 3,2 milhões, correspondente à participação do Estado de São Paulo no Soar. Mais tarde, o CNPq enviou diretamente ao projeto a parcela da Fundação e completou a cota brasileira, cobrindo a participação das outras fundações. O Brasil, que entrou de mansinho, tem direito a 34% do tempo de uso, o equivalente a 127 noites por ano, de um aparelho de primeira linha. Segundo Steiner, entre os outros oito telescópios com espelhos de 4 metros em operação no mundo, não há outro tão moderno - com um espelho primário tão fino, de apenas 10 centímetros de espessura, mantido fixo por meio de 120 pontos de apoio, e um mecanismo de correção de imagem, o tip-tilt, que desfaz deformações da luz com comprimento de onda de até 50 hertz - cinco vezes acima do máximo do tip-tilt do Gemini.

I

Desafios - Esse projeto ampliou a competência nacional em construir instrumentos de precisão. De fato, o protótipo do espectrógrafo, já em uso junto ao telescópio de Minas, exibe uma inovação: as fibras ópticas que se ligam às 553 microlentes têm um diâmetro de 50 micrômetros (1 micrômetro corresponde a 1 milésimo do milímetro), a metade do habitual. A versão definitiva está em fase de montagem, em conjunto com a Leg Tecnologia, de São José dos Campos, e deverá seguir para o Chile no próximo ano. Jacques Lépine, diretor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP e coordenador do projeto, segura com extremo cuidado uma de suas peças principais: um bloco de vidro mais largo que um tablete de chocolate, com 1.300 lentes, às quais serão coladas as fibras ópticas que vão conduzir a luz para ser analisada no espectrógrafo. Com uma perda de luz cabe na palma da mão custa cerca de

US$ 50 mil. "Queremos estar no patamar mais competitivo que existe", comenta Lépine. Para os pesquisadores que trabalham no Soar e nos projetos semelhantes, lidar com as empresas é uma forma de refinar a arte do diálogo. Odylio Aguiar, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), percorreu quatro fundições antes de chegar à Italbronze, de Guarulhos, na Grande São Paulo, a única que se dispôs a construir a peça básica do Detector Mario Schenberg, cujo propósito é registrar as ondas gravitacionais, previstas na Teoria da Relatividade, mas ainda imperceptíveis aos outros 10 equipamentos similares já em operação no mundo. À frente do projeto, que conta com cerca de US$ 1 milhão da FAPESP, Aguiar pensava em uma esfera maciça de bronze de 3 metros de diâmetro. Após ver os custos e as dificuldades de produção, contentou-se com uma de 65 centímetros de diâmetro, mesmo assim pesando 1,15 tonelada. "Foi um trabalho inédito", recorda Jaime Jimenez, gerente-geral da Italbronze. A empresa, que nunca tinha feito nada maciço nessas dimensões nem com esse tipo de bronze, sem estanho, fundiu depois outras duas esferas semelhantes para a equipe da Holanda que trabalha com os brasileiros. Carlos Escobar, físico da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), está em contato com empresas mais intensamente desde 2000, quando assumiu a coordenação da equipe brasileira de um projeto que enfatiza o desenvolvimento da instrumentação: o Observatório Pierre Auger de Raios Cósmicos, do qual a FAPESP participa com R$ 1,6 milhão e o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) com R$ 600 mil. Sua experiência indica que as empresas apuram o controle de qualidade em projetos dessa envergadura. Não é o único ganho. "Depois de conviver com os pesquisadores, a equipe de engenharia amadurece, perde o medo de errar e começa a buscar soluções mais criativas", conta César Ghizoni, diretor da Equatorial, que atendeu também o Pierre Auger e, a propósito, foi quem ganhou aquela partida de tênis contra Luis Herrera. • PESQUISA FAPESP 100 -JUNHO DE 2004 ■ 37


ENTREVISTA: FERNANDO REINACH

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revolução anunciada CLAUDIA IZIQUE E MARILUCE MOURA

Fernando Reinach, 47 anos, é uma personagem rara - pelo menos ainda - tanto no ambiente científico quanto na cena empresarial brasileira. Pesquisador respeitado em biologia molecular, um dos mentores, em 1997, e, logo a seguir, um dos coordenadores do primeiro projeto genoma brasileiro, o da Xylella fastidiosa, que contribuiu decisivamente para mudar os padrões da pesquisa nacional, Reinach é hoje também um executivo bem-sucedido no mundo dos negócios. É diretor-executivo da Votorantim Ventures, fundo de capital de risco do maior grupo privado nacional, destinado a fomentar empresas de base tecnológica, e vice-presidente-executivo da Alellyx Apllied Genomics, a primeira dessas empresas que o fundo ajudou a nascer. Voltado para a bioquímica de músculos no doutoramento em Cornell, nos Estados Unidos, e depois no pós-doutoramento em Cambridge, Inglaterra, Reinach retornou ao Brasil, em 1986, com um sentimento de autonomia forte o suficiente para prestar concurso de professor no Departamento de Bioquímica da Universidade de São Paulo (USP) sem, digamos, pedir licença ou as bênçãos de qualquer dos grandes mestres da área. Entrou, avançou e rapidamente alcançou o topo da carreira, ou seja, tornou-se professor titular aos 35 anos posto do qual está licenciado no momento. Ao mesmo tempo, ele retornara contaminado pelo espírito empreendedor que impulsionava o desenvolvimento da biotecnologia nos Estados Unidos e por essa razão criou a Genomics, a primeira empresa brasileira a fazer testes de paternidade, que passou adiante em 2003. No início de 2004, Reinach foi escolhido pela revista Scientific American (edição norteamericana) como um dos 50 Líderes de Negócios de 2003, ao lado de, por exemplo, Ste38 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100

ve Jobs, fundador da Apple, entre outros empreendedores de destaque em todo o mundo - sem dúvida, um reconhecimento e tanto. Vê-se, portanto, que Fernando Reinach é uma exemplar figura de síntese, espécie de metáfora concreta de um processo fundamental da economia contemporânea, lato sensu, que vai da descoberta científica, facilitada por uma profissionalização intensiva do métier de pesquisador, à produção de riqueza via apropriação e transformação do conhecimento, ou seja, inovação tecnológica, em produtos e serviços pelas empresas. Com esse cabedal, ele tem uma visão privilegiada do processo de mudança por que vem passando a pesquisa no país, suas facilidades e seus grandes obstáculos, de que dá clara mostra na entrevista a seguir: ■ Pode-se considerar o projeto de seqüenciamento do genoma da Xylella fastidiosa, de 1998 a 2000, o marco de uma nova forma de produzir ciência no país? — Penso que sim. Mas antes da Xylella aconteceram algumas coisas nesse sentido. A pesquisa no Brasil teve várias fases. A primeira, até a década de 1970, era a dos "coronéis", digamos, a dos catedráticos. A comunidade científica era pequena, mas existiam grandes pesquisadores. Esse quadro evolui para uma outra situação, mais profissional, que coincide com uma profissionalização da própria FAPESP, não só das pessoas, mas do próprio processo de financiamento. Qualquer pessoa com as credenciais corretas podia ir à Fundação pedir apoio. Foi nesse período que comecei a trabalhar na Fundação, em 1994, com Perez (José Fernando Perez, diretor científico). E foi nessa fase que ocorreu um movimento interessante puxado por Rogério Meneghini e Hugo Armelim, cuja máxima era a


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seguinte: quem faz pesquisa tem que publicar. Tornou-se inaceitável não publicar. O passo seguinte foi publicar em revistas qualificadas, para produzir impacto. Foi uma mudança cultural que aconteceu primeiro em São Paulo e só depois no resto do país. E isso, acredito, está acontecendo agora no CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). ■ Ou seja, formou-se uma noção clara para os pesquisadores de que, além de pesquisar, os resultados da investigação deveriam ter projeção no mundo. — Acho que essa noção já existia. Entre os professores tradicionais, a publicação de artigos era valorizada, mas, se não se publicasse, tudo bem. Esse processo de mudança - profissionalização e formalização do apoio, estímulo à publicação — começou a dar espaço para os jovens pesquisadores fazerem o que queriam, independentemente do professor titular. Não era mais necessária a sua bênção para se apresentar um projeto à FAPESP. Começou a se desmontar um aparato hierárquico muito rígido. Os institutos de pesquisa começaram a contratar pesquisadores porque eram competentes e o resultado foi uma maior diversidade de temas e mais liberdade de pesquisa. Surgiu assim um grupo de pessoas relativamente jovens, independente dos mais velhos, uma espécie de classe média na ciência. Eu sou dessa geração. Fui contratado na Bioquímica e não era filhote de ninguém. Não tinha feito doutoramento lá, ninguém me conhecia ali. Houve, portanto, uma espécie de modernização da ciência e a criação de uma geração independente. Já trabalhando na FAPESP como coordenador de bioquímica, reparei que existia uma massa crítica de pessoas começando a mexer com biologia molecular e não necessariamente alinhadas a um grande professor. E isso foi central para o sucesso metodológico da Xylella, que não precisou da bênção dos grandes titulares. uA essa altura, os grandes titulares já estavam distantes das novas questões que a biologia molecular colocava. — Tínhamos a genética clássica e aí surgiu a biologia molecular. A mudança foi tão rápida que uma parte dos velhos pesquisadores não a acompanhou. Eles não entendiam a nova tecnologia que os mais jovens compreendiam mui40 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100

to bem. Mas há ainda outro fenômeno que ocorreu na biologia, de maneira global, e que já tinha ocorrido na física, alguns anos antes, que contribuiu para a concepção do projeto da Xylella. Até a Segunda Guerra Mundial, a física avançava por meio de grandes contribuições individuais. Até que começaram a despontar os grandes projetos, como o da bomba atômica ou o dos grandes aceleradores, por exemplo, e os problemas ganharam tal magnitude que uma pessoa sozinha já não dava conta. Começou então a nascer esse conceito de que certos problemas eram grandes demais para uma só pessoa. Apesar de existir ótima ciência feita por uma só pessoa, começou a surgir a ciência feita por grandes times. Na biologia isso levou muito mais tempo. Talvez tenha se iniciado justamente com os projetos genoma. ■ Mas, em São Paulo, já existiam desde 1990 os grandes projetos temáticos que congregavam grupos de pesquisadores. — Era diferente. A colaboração científica sempre existiu. Os temáticos eram isso: cada um fazia um pedaço e assim era possível ir mais longe. Mas, se não tivesse a colaboração, era possível fazer sozinho. Não havia a necessidade absoluta de se fazer junto, como foi o caso da Xylella. Em paralelo à necessidade de atacar os problemas com o trabalho conjunto de muita gente, sem o que nada funcionaria, também vivi na FAPESP o processo de as máquinas tornarem-se mais sofisticadas, muito caras. Não dava mais para cada um ter a sua, era preciso ter equipamentos coletivos, como acontecera bem antes na física, com os aceleradores. Foi nesse momento que começaram a surgir os primeiros projetos genomas e constatamos que a nossa biologia molecular estava ficando para trás. O Perez então sugeriu: precisamos de um grande programa para botar a biologia molecular para a frente. Eu tinha a sensação muito concreta de que tínhamos massa crítica, os projetos genoma lá fora haviam ocorrido de uma maneira colaborativa. Ora, para dar um salto quântico na qualidade da nossa biologia molecular, por que não montar um desses?, indagamos. Portanto, havia uma série de fatores favoráveis ao projeto da Xylella que estavam acontecendo bem embaixo de nosso nariz e conseguimos vê-los. Assim, quando propusemos o projeto

genoma, ele foi revolucionário. Encontrou uma resistência muito grande do pessoal mais velho, mas eles não tinham mais poder sobre os jovens. ■ Qual era o argumento para a resistência? — Dizia-se que aquilo era um trabalho de macaco, que não era ciência. Afirmava-se que era mais importante cada laboratório ganhar mais dinheiro do que trabalhar colaborativamente. Era, enfim, a resistência à mudança. E só conseguimos fazer o projeto porque os jovens que tinham conseguido entrar no sistema já não estavam sob o domínio do pessoal mais velho. Quando lançamos o edital para a seleção dos laboratórios, foi esse pessoal novo que disse "eu faço". Quando os mais velhos disseram "nós não vamos entrar", isso foi muito sintomático do que estava ocorrendo. ■ Vocês tinham a expectativa de que os pesquisadores mais velhos aderissem? — Eu fiz uma aposta com Perez, cujos termos não lembro bem, mas previa o número de propostas que seriam apresentadas. Nosso medo era ninguém se inscrever para o projeto. Eu disse que seriam até 50 laboratórios e ele, que seriam mais de 50 - Perez ganhou. É gratificante constatar que, de repente, houve uma geração que fez um dos mais importantes projetos de pesquisa do Brasil sem autorização. E deu um pulo à frente. Em geral, em ciência, os mais velhos vão morrendo, os novos vão assumindo, daí vem a geração de baixo etc. Ali, não: uma nova geração assumiu e deu o pulo. Esse aspecto foi revolucionário. Veja, eu tinha 41 anos e provavelmente era o mais velho. Andrew Simpson, coordenador de DNA do projeto, Paulo Arruda e eu éramos os mais velhos. A maioria tinha entre 25 e 30 anos. No esquema antigo da ciência brasileira eles não teriam nenhum espaço. ■ Como é que vocês estabeleceram o projeto e, posteriormente, o organismo que ia ser seqüenciado? — Depois de observarmos as taxas de penetração da ciência nacional, verificamos que a porcentagem de papers brasileiros estava aumentando em todas as áreas, menos na biologia molecular, que evoluía mais lentamente. Não tanto porque crescesse devagar no Brasil, mas porque ela estava crescendo muito rá-


pido fora do país. Daí, o Perez falou que precisávamos fazer alguma coisa. Primeiro surgiu a idéia de fazer um projeto de infra-estrutura, comprar equipamentos etc. Já tinha saído aí o primeiro paper do Craig Venter sobre o genoma. Num final de semana, em Io de maio de 1997, eu estava no sítio em Piracaia, e pensei: pô, em vez de fazer um projeto de infra-estrutura, vamos fazer um projeto de genoma, juntar todo mundo num objetivo único. Em vez de dar equipamento para todo mundo, vamos fazer um projeto em cima de um tema. Era uma idéia, para mim, muito estranha. Eu liguei para o Perez, que estava em Santos, e ele veio até o sítio. Conversamos e a idéia se cristalizou. ■ Por que a idéia lhe parecia estranha? — Sempre existiu uma polêmica no Brasil - e ainda existe hoje - entre a ciência espontânea e a ciência induzida. Quando um governo fala em financiar determinado tema, em geral a ciência a partir daí produzida não é tão boa. Isso ocorre quando alguém que não é cientista resolve decidir o que o cientista tem que pesquisar. O oposto disso é quando se diz: você faz o que quer e a gente dá o dinheiro. Um exemplo importante de ciência induzida: depois que o presidente Kennedy pôs o homem na Lua, Nixon decidiu curar o câncer. É uma coisa meio prepotente dos administradores. No Brasil, o governo federal sempre tendeu a fazer ciência induzida. Eu sempre fui contra. A experiência mostrava que isso não dava certo. E a idéia que eu tive era justamente desse tipo. Tive uma resistência pessoal contra a minha própria idéia. Perez, no entanto, considerou que era diferente: "Não estamos dizendo que genoma vai ser", ele argumentou. "Isso vai sair das próprias pessoas." Mas tínhamos que enfrentar vários problemas: como escolher o genoma, organizar o projeto etc.

■ Nesse momento em que o professor Perez foi a seu sítio em Piracaia, vocês não tinham claro qual seria o organismo a ser seqüenciado? — Não. Sabíamos que ia ser uma bactéria. O genoma tinha que ser grande o suficiente para envolver um número grande de pessoas e pequeno o bastante para conseguirmos fazer com a tecnologia que teríamos. Deveria representar um grande desafio, mas que não fosse inviável. Nessa época eu trabalhava três meses por ano nos Estados Unidos, e foi lá que escrevi o primeiro documento do projeto, a pedido de Perez. Eu tinha trabalhado na Inglaterra com o Bob Watterston e com o John Sulston, que fizeram o genoma humano. Conversei com os dois antes de elaborar o documento e eles acharam que dava para fazer. ■ Nesse momento continuava-se sem idéia da bactéria que seria seqüenciada? — É, não tínhamos noção da bactéria. No primeiro documento já havia a idéia de que o projeto seria descentralizado, desenvolvido em vários laboratórios, cada um seqüenciando um pedaço, meio no sistema da Saccharomyces cerevisiae. Também já estava decidido que a estratégia seria trabalhar com cosmídeos e que o microrganismo seria da área agrícola. Alguns anos antes tinha havido uma discussão na Sociedade Brasileira de Bioquímica sobre o futuro da bioquímica e ali se dizia que o caminho era a agricultura, já que não tínhamos como competir na área do câncer. Enquanto isso, em São Paulo, o pessoal do Fundecitrus (Fundo de Defesa da Citricultura) ia até a FAPESP preocupado com a Xylella. Ninguém sabia ainda se a X. fastidiosa era mesmo a causa da CVC (Clorose Variegada dos Citros) ou não. Em setembro, o Joseph Bové, da Universidade Bordeaux II, confirmou que o patógeno da CVC era ela mesmo.

A mudança começou a dar espaço para jovens pesquisadores fazerem o que queriam, independentemente do professor titular

■ E ainda havia dúvida sobre se a bioinformática do projeto seria feita aqui. — Isso era para mim muito claro. Quando voltei em 1986 para o Brasil, logo depois João Meidanis e João Setúbal também voltaram dos Estados Unidos. Eles foram ao meu laboratório, ainda no Instituto de Química, e disseram que precisávamos fazer alguma coisa juntos. Na época, eu, a Sueli Gomes, do Instituto de Química da USP, e o Francisco Gorgônio Nóbrega, da Univap (Universidade do Vale do Paraíba), éramos os únicos que seqüenciavam DNA no Brasil. Eu falei que precisava de um leitor de DNA e eles fizeram um leitor de filme de raio X, onde era feita a seqüência de DNA. A máquina chamava-se "o treco". Era um teclado de telefone com um negócio de plástico que permitia ver o filme. E aí apertavam-se as teclas e o negócio registrava A, C, T ou G (letras relativas a adenina, citosina, timina e guanina, bases do código genético). O aparelho tinha um fio que ligava no computador. Veja, antes desse aparelho, líamos o filme e íamos falando, A, C etc. e o aluno ia marcando. Isso foi há apenas dez anos. Quando surgiu a necessidade da bioinformática para o projeto genoma, eu sabia que existia competência aqui. Depois trouxemos o Paulo Arruda, que trouxe o André Gouf-


feau (cientista francês que coordenou o seqüenciamento da Saccharomyces), quando pensamos que era preciso ter um steering comittee de fora. Afinal, tratavase de um bando de jovens, e precisava ter alguém, gente com muita experiência, que ficasse entre os pesquisadores e a FAPESP. No steering comitee estavam um pesquisador experiente em bioinformática, que era Gouffeau, e dois ingleses, Steve Oliver, também coordenador da Saccharomyces e John Sgouros. Oliver veio para o Brasil, tivemos uma reunião na FAPESP e acertamos os detalhes: precisava ter dois laboratórios centrais, a bioinformática e um coordenador-geral. Nessa época, o Simpson já estava começando a se envolver no projeto. Perez também observou que o projeto envolvia um monte de dinheiro, e defendeu a mesma idéia do Oliver, com o acréscimo de que os dois laboratórios precisavam seqüenciar muito. Então, pensamos: vamos definir os cargos e as pessoas se candidatam, ninguém vai ser escolhido. E no edital saiu assim: uma vaga para coordenador, duas vagas de seqüenciador, um grupo para bioinformática e 30 laboratórios. Achamos que o coordenador não deveria ser ninguém ligado à FAPESP, por causa desse problema do projeto ser induzido. Por outro lado, eu queria ser seqüenciador, porque provavelmente o meu laboratório era um dos que mais sabiam seqüenciar e era essa área que poderia dar o maior problema. O Simpson decidiu ficar com a coordenação. Na verdade, ele era o coordenador de DNA, tinha que garantir clones. Como havia dois laboratórios centrais para seqüenciar - o meu e o do Paulo Arruda - e a bioinformática, na verdade, eram quatro coordenadores-gerais do projeto. Fizemos o processo de seleção e daí chamamos o steering comittee para fazer a seleção. Ainda houve uma certa resistência: "Pô, mas não tem projeto de pesquisa. Vão se candidatar para seqüenciar um pedaço de DNA". Já começavam as críticas. Ficou decidido assim: dos 30 laboratórios, dez tinham de ser de gente que sabia um pouco de seqüenciamento. Outros dez de pesquisadores que vinham da agricultura, que não sabiam nada de seqüenciamento, mas tinham idéia do que era essa bactéria, a Xylella. E dez tinham de ser de gente que não era da agricultura e nem sabia seqüenciar, mas eram pessoas cien42 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100

tificamente competentes e que queriam aprender. Perfil, por exemplo, de José Eduardo Krieger. ■ Nesse momento, começo de 1998, vocês estavam prontos para iniciar o trabalho. — Sim. Houve várias coisas divertidas. Nesta época ainda não se tinha fechado o postulado de Koch da Xylella (que demonstra a causalidade de um doença). Ou melhor, não tinha fechado com os isolados brasileiros. Joseph Bové tinha levado isolados para a França e fechado o postulado de Koch lá. Aí fiquei em dúvida: a gente vai seqüenciar uma coisa coletada recentemente no Brasil, mas que ninguém provou que aquela bactéria fechou o postulado, ou vamos pegar uma bactéria importada da França - uma vergonha nacional! - mas em que foi fechado o postulado? Resolvemos fazer com a francesa. O meu medo era os caras terem misturado as bactérias e a gente estar com uma bactéria errada. Ao mesmo tempo que começamos a seqüenciar, começamos a refazer o postulado para ter certeza de que estava ok. Goffeau arranjou gente para ensinar a fazer cosmídeo e nosso pessoal foi para o exterior para aprender. ■ Essa tecnologia continua a ser usada? Na Alellyx utilizam-se esses procedimentos? — A Xylella foi feita por cosmídeo. E hoje geralmente a gente faz por shotgun. A primeira que foi feita por shotgun foi a Xanthomonas, a partir de 1999. Bem, os dois laboratórios, o meu e o de Paulo Arruda, seqüenciavam bastante e aconteceram coisas interessantes. Paulo Arruda assumiu o papel do educador: organizou os cursos, trouxe o pessoal dos laboratórios todos para ensinar como seqüenciar. Com o meu laboratório era diferente: decidimos que íamos formar gente no exterior e trazer para o Brasil a tecnologia mais avançada. E Meidanis foi o único que falou "vou visitar todos os laboratórios". Isso é muito interessante, as coisas acontecerem por causa das vocações das pessoas. Outra coisa engraçada foi o embarque dos seqüenciadores no dia de Natal ou Ano-Novo, não me lembro bem. O pessoal no exterior queria esperar para embarcar depois, e eu disse "pode embarcar que a gente se vira aqui". Corríamos contra o tempo. Era um bando de jovens que já tinham mostra-

do uma certa irreverência ao passar por cima do establishment, precisando mostrar que eram competentes. Tinha assim uma alta pressão para conseguir fazer, e o pessoal mais velho só sentado, olhando para ver os caras tropeçarem. ■ Esse jeito novo de fazer ciência influenciou outras áreas ou ficou restrito à genômica? — Quando conseguimos publicar na Nature, teve muita influência na autoestima das pessoas de qualquer área científica. ■ O grau de ambição da pesquisa brasileira mudou de patamar a partir do resultado da Xylella. — Mudou. A gente não estava mais comendo mingau pela periferia. Pulamos dentro do prato. Fizemos a Xylella e logo depois fizemos as duas Xanthomonas. Eram duas bactérias, cada uma o dobro da Xylella, foram feitas com um quarto das pessoas, um quarto do orçamento e metade do tempo. ■ E foi lançado logo depois o projeto da cana. — Mas o projeto Xanthomonas foi o último genoma especificamente. Sempre critiquei que chamássemos de projeto genoma, o que não é precisamente projeto genoma, ou seja, os projetos da cana, do boi etc. ■ Explique, por favor, essa distinção do ponto de vista científico. — Você faz um genoma quando seqüência o DNA total de um organismo, todos os seus genes. Os outros são projetos de seqüenciamento de RNA mensageiro, só da parte expressa do genoma. Então não é um projeto genoma. ■ Mas não está tudo sob o guarda-chuva da genômica? — Da genômica, sim. Mas não são projetos genomas. No exterior nunca é usado este nome. São projetos de EST (Expressed Sequence Tags ou Etiquetas de Seqüências Expressas). Não quer dizer que são melhores ou piores, mas são diferentes. O primeiro que carregou o nome e não era genoma foi o projeto do câncer, uma espécie de loucura, porque o câncer não tem genoma, quem tem genoma é o ser humano. A cana, o eucalipto são projetos de EST. Tudo bem, eram coisas muito grandes, não ia dar


para fazer o genoma mesmo. Mas eu acho que aí, quando se decidiu fazê-los, perdeu-se um pouco o ímpeto do começo, os desafios se tornaram menores. Apesar de serem projetos difíceis, eram no máximo tão difíceis quanto a Xylella-provavelmente mais fáceis porque já se sabia como fazer. Ficamos repetindo um pouco, o que tornou as críticas mais fáceis. Mas aí vieram outros projetos grandes e importantes, como o Biota. ■ Qual foi o legado do projeto genoma para a ciência? — Os padrões subiram. A idéia de que a ciência é um campo de colaboração tornou-se mais aceita. E logo depois havia outro desafio: uma semana antes de publicarmos o projeto, escrevi um artigo na Folha de S.Paulo que se chamava Despreparados para o sucesso, em que indagava qual seria o próximo passo. Era preciso fechar o ciclo: da mesma maneira que o genoma humano está transformando a indústria farmacêutica norteamericana, nós, que seqüenciamos a Xylella, temos que resolver o problema da Xylella, transformando a ciência em riqueza. Para mim, esse era o desafio: o próximo passo era fora da academia, enquanto na academia era preciso continuar ousando. Foi aí que a gente perdeu o ritmo, o ímpeto, e os críticos chegaram na gente. ■ A pesquisa emproteoma não representou o próximo passo da academia? — Projetos genoma são absolutamente mensuráveis. O produto final é finito, mensurável e conhecido. Projetos de EST já não tem isso: chega uma hora em que têm que parar. A grande coisa da Xylella era: ou você acaba, ou você não acaba. E é completamente óbvio. Outros projetos - proteomas, cristalografia -, se você perguntar qual é o marco absoluto, inquestionável, de que acabou o projeto, não tem resposta. Isso é mais ou me-

nos a pesquisa clássica, não tem resposta, é compreender como funciona o mundo. E isso é natural, é o processo da ciência. Nós tínhamos de fazer o genoma da cana e do eucalipto e a única maneira de fazer era com EST. Poderíamos ter optado por fazer um genoma um pouco maior. Enfim, os grandes projetos colaborativos funcionam bem quando o objetivo é muito claro. Todo mundo que entra sabe: ou chega naquele ponto, ou não chega. A analogia que faço é a seguinte: há um abismo entre duas rochas, eu venho correndo e vou pular. E aí, ou chego do outro lado, ou caio no buraco. Não tem meiotermo. A ciência normal não é assim, ela vai progredindo, publica um paper, outro paper, nunca acaba. São raras as vezes em que se tem projetos científicos no mundo em que o objetivo final é muito claro. ■ Qual a sua visão da pesquisa brasileira em biologia molecular, e no geral, hoje? E quanto ao futuro? — Não estou tão próximo do que as pessoas estão fazendo hoje, mas acho que ela voltou a ser clássica. Acho que falta no Brasil um projeto desses, com objetivos absolutamente claros. Mas nem sei se dá para a biologia molecular ter um projeto desses no momento, essa não é a maneira normal de a ciência operar, nem sempre se consegue achar projetos assim., E isso não é demérito, o conhecimento tem fases distintas. ■ Mas existem no país alguns grandes projetos colaborativos em curso, na área de saúde. Hipertensão, por exemplo. — Existe cooperação, sim, mas no sentido anterior, dos temáticos, por exemplo. E não dá, nesses casos, para acertar um objetivo e dizer vamos todos para lá. ■ Esses objetivos podem aparecer espontaneamente ou são sempre induzidos? — Veja, no caso da Xylella acho difícil dizer que se trata de um projeto total-

A Xylella, como teve projeção internacional, sinalizou que a ciência brasileira tinha competência

mente induzido, porque ele foi proposto pela comunidade científica. Ocorre que na FAPESP a comunidade científica está lá dentro, diferente do que ocorre no CNPq. Assim, a FAPESP captou as vozes da comunidade e catalisou o processo. A pesquisa foi dirigida no sentido de que teve um órgão que disse "vamos fazer", mas igualmente não o foi porque não nasceu fora da comunidade científica. ■ Vamos passar um pouco ao campo privado. Parece-nos que uma das mudanças no padrão brasileiro de produção científica foi que aumentou, depois da segunda metade dos anos 1990, a possibilidade da pesquisa no ambiente empresarial. — Há várias razões para isso. Durante a ditadura, a universidade foi um centro de resistência e queria distância do setor privado. Na medida em que a democratização veio, isso começou a mudar. Outra coisa é que está mudando a percepção que se tem da ciência. Todo mundo fala que ela gera riqueza e nos Estados Unidos, por exemplo, isso é verdade. O desenvolvimento científico que gera novas tecnologias, gera novas empresas, gera imposto, gera emprego e riqueza para o país e essa riqueza volta para a universidade. Um ciclo virtuoso do investimento em C&T. No Brasil, esse círculo está começando a fechar.


Não fechava antes por uma conjunção de coisas. No início não tinha cientista. Até os anos 1970 não tinha massa crítica. Depois começou a ter massa crítica, mas os cientistas não queriam saber do setor privado. Quando voltou a democracia, tinha massa crítica, mas havia reserva de mercado e não tinha a demanda das empresas. O Brasil era fechado. Daí abriu-se o país. Agora tem massa crítica e as coisas começaram a fluir. Para fechar o ciclo, precisava de capital, que começou a surgir há uns cinco ou seis anos. ■ O projeto da Xylella, além do seu significado na biologia molecular, sinaliza um momento de mudança também para outros setores da sociedade? — O setor privado não sabe o que acontece na universidade. A Xylella, como teve projeção internacional, sinalizou que a ciência brasileira tinha competência. Tinha muita coisa acontecendo, mas não eram óbvias. Na hora que sai na Nature, no The Economist, o primeiro genoma de planta, aí se constata que o negócio funciona. Tem de ter visibilidade e chamar a atenção. Não foi a primeira evidência de que a ciência era competente. Exatamente porque a ciência era competente que surgiu a Xylella. Para o setor privado isso significou que era possível investir na universidade e que esta poderia ser utilizada para desenvolver tecnologia para as empresas. uMas, quando saiu o resultado da Xylella, aqui em São Paulo já existiam programas de inovação tecnológica, como o PITE ou PIPE, formulados desde 1995... — É claro que na academia havia o reconhecimento da necessidade de integração com o setor privado. Mas quantas vezes a Fiesp ou a CNI foram à FAPESP para afirmar: precisamos da ciência de vocês? Isso não existia e ainda não existe direito. A demanda têm que vir do setor privado. E só vai ocorrer quando o setor privado nacional olhar a universidade do mesmo jeito que o setor privado norte-americano olha a universidade americana. ■ E isso está começando, ou não? — Está começando. Não é um movimento suficientemente forte para resultar numa virada. E o problema é o seguinte: quanto de risco o setor privado está disposto a tomar. Se eu moro na 44 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100

Suíça, um país tranqüilo, e pulo de pára-quedas, faço uma coisa superarriscada. Tenho uma vida com risco baixo e meu risco é o esporte radical. Mas, se eu moro no Brasil, sair de casa de manhã e não ser assaltado ou atropelado já é um risco. Por que eu ainda vou correr o risco a pular de pára-quedas? O problema na indústria nacional é a mesma coisa. O Brasil não tem estabilidade política, não tem marco regulatório e tem instabilidade de tantas naturezas que a empresa, que já está tomando um monte de riscos, teme assumir o risco de desenvolver novas tecnologias. É risco demais. Os empresários — a não ser que muito pressionados - preferem não investir. Quando se fala que empresário brasileiro não quer correr risco, não é justo. Talvez ele não corra o risco que a gente, cientista, gostaria que ele corresse, que é investir em nova tecnologia. ■ O fato de você estar ligado ao maior grupo privado brasileiro e ser presidente de uma empresa de base tecnológica não sinaliza o oposto do que você está dizendo? — Esse processo se iniciando e é natural que comece no grupo que pode se dar ao luxo desses riscos. Nos Estados Unidos, grupos menos sólidos correm esse risco tecnológico. Mas você não vê grupos nacionais desenvolvendo novas drogas. Por causa dos riscos. Num país em que ambiente de risco é baixo, para progredir é preciso correr o risco, por exemplo, de desenvolver um novo remédio. Aqui no Brasil o mesmo negócio tem outros riscos - o governo pode tabelar o preço do remédio etc. Então o empreendedor pensa: vou é fazer lobby para não congelarem o preço. A preocupação com inovação é secundária. ■ Dentro desses riscos que no ambiente brasileiro parecem ser maiores, como fica a questão das patentes? — A biologia molecular de plantas, por exemplo, leva automaticamente aos transgênicos. Considere três empresas que querem fazer transgênicos: uma na Europa, uma nos Estados Unidos e outra no Brasil. A Europa não aceita transgênicos, as regras são conhecidas e todo mundo sabe que não pode. Nos Estados Unidos, as regras são conhecidas e a produção e comercialização de transgênicos é permitida. No Brasil, não se sabe se pode ou não. A regra não está definida, está tudo parado na Justiça, o pro-

jeto de lei de biossegurança está no governo e ninguém sabe se será aprovado. ■ Mas isso não tem a ver com o desenvolvimento tecnológico, mas com o ambiente econômico? — Mas são essas coisas que determinam o desenvolvimento científico. O sistema jurídico do país é difícil, o sistema de patentes não funciona. Não se sabe se o Judiciário vai fazer valer minha patente. No Brasil, tudo leva muito tempo. O Inpi já não funciona direito e o Judiciário não funciona direito... ■ Mas não existe uma lei de patentes no Brasil? Isso não está regulado? Uma coisa é você ter a regulamentação legal e a outra é cumprir na prática. Veja o caso da Monsanto com a soja transgênica, na Argentina, que tem uma lei de patentes. O agricultor planta a soja e não paga os royalties. A empresa vai à Justiça para multar o infrator. A Justiça não multa, e o outro não paga. Uma coisa é ter a lei, a outra é cumprir. É o mesmo que comprar uma fazenda no Pontal do Paranapanema. A terra está barata, mas é arriscado: os sem-terra podem invadir. Você não só tem que ter a lei como ter um aparato que garante que ela seja cumprida. ■ Quais são suas apostas no desenvolvimento da biotecnologia no campo empresarial? — O ideal é apostar em coisas que, se não der para vender no Brasil, você vende fora, como é o caso da biotecnologia humana e agrícola. Quando se tem uma coisa de fronteira, muito na frente, o mercado é global. ■ Mas o que vocês estão fazendo hoje ainda é mais factível para o mercado nacional... É factível para qualquer mercado. Um bom exemplo é a tecnologia da Embraer que é global. Se fechar a fábrica brasileira, poderá se produzir avião na Venezuela. As pessoas tentam investir em coisas que minimizem o risco do país onde elas estão. Se a Embraer fizer um avião que só dá para fazer aqui no Brasil é muito arriscado. uMas quando se pesquisa quem é o agente causador da morte súbita, você está pensando num problema brasileiro... —Está aí um dos problemas da Alellyx. •


A vida ao microscópio MOACYR SCLIAR

No começo de minha carreira médica dediquei-me,por certo tempo,à anatomia patológica. Naquela época não havia residência ou qualquer tipo de curso de aperfeiçoamento nesta área; aprendia-se trabalhando com colegas mais experientes. Foi o que fiz. Consegui um emprego num pequeno laboratório que funcionava numa velha casa na Cidade Baixa. A equipe constava de três especialistas (três irmãos, a propósito), de auxiliares e do pessoal administrativo. Na verdade era como se fosse uma família; os três médicos, pessoas gentis, faziam questão de criar um ambiente acolhedor para pacientes e para a própria equipe. Na sexta-feira tínhamos uma happy hour, um momento de confraternização. E aí o Quinzinho cantava para nós, desafinado mas alegre. O nome dele era Joaquim. Viera de uma cidade do interior. Ainda jovem, tinha uns poucos anos de estudo, mas compensava a falta de conhecimento com uma enorme inteligência e uma não menor dedicação. Quinzinho era, como se costuma dizer, pau para toda a obra. Fazia qualquer coisa: preparava o material para as lâminas, providenciava os produtos químicos necessários e, depois do expediente, limpava e arrumava o laboratório. Levar cartas no correio? Quinzinho ia. Entregar resultados de exames no hospital? Ia também. Sempre alegre, sempre disposto. E bom papo. Eu gostava de ouvir suas histórias. De família muito pobre, provavelmente teria seguido o caminho do pai, tornando-se operário em uma fábrica de calçados. Mas Quinzinho queria ir além. Quinzinho queria ser médico patologista. De onde vinha esta, até certo ponto, curiosa aspiração? Nem ele sabia dizer direito. Aparentemente, havia sido motivado por duas coisas. Em primeiro lugar, por um filme que, em criança, vira na tevê; uma trama de mistério em que um patologista resolvia um caso complicado. Depois, pelo microscópio. O instrumento lhe chegara às mãos por acaso. Para reforçar o orçamento familiar, Quinzinho fazia bicos nos fins de semana; lavava carros, pintava casas, cortava grama. Um de seus clientes era um professor de biologia, e foi na casa desse homem, já idoso, que Quinzinho viu um microscópio, antigo, mas de marca afamada. Perguntou ao professor se podia dar uma espiadinha. O homem disse que sim, e mostrou ao maravilhado rapaz a estrutura de um fio de cabelo. Quinzinho ficou deslumbrado: estava descobrindo um mundo novo, desconhecido. Daí em diante, cada vez que vinha à casa do professor, pedia para usar o microscópio. E fez um trato com o homem: cortaria a grama de graça em troca de algumas lições sobre o uso do aparelho. Não foram muitas: o professor, doente, faleceu. No velório, Quinzinho criou coragem e foi falar com a filha dele. Disse quem era, contou sobre a experiência com o microscópio. A mulher ouvia-o com crescente impaciência e mal disfarçada irritação. Lá pelas tantas, interrompeu-o: - Mas, afinal de contas, o que é que você quer? - Eu queria o microscópio de seu falecido pai... Ela mirou-o, ultrajada: - Você? Você quer o microscópio do meu pai? Mas você não se enxerga, rapaz? Você, um ignorante, um grosso - usar o instrumento que foi de um grande professor? Desapareça daqui! Orelhas ardendo, Quinzinho bateu em retirada. Confuso, humilhado - mas decidido: não desistiria do microscópio. Um dia haveria de usá-lo, na qualidade de profissional, de cientista. A primeira providência para isso era mudar-se para a capital e foi o que Quinzinho fez, apesar da oposição da família. Seu plano era trabalhar e estudar - e entrar na universidade. Poderia estudar biologia, como o professor. Ou mesmo medicina. Qualquer área, enfim, que lhe desse a oportunidade de usar o microscópio. Teve vários empregos: foi servente de pedreiro, trabalhou numa oficina mecânica. Um dia, passando pelo laboratório, viu o anúncio, pedindo um auxiliar. Entrou, falou com um dos donos. Que ficou impressionado com a vivacidade e a determinação do rapaz. Deu-lhe o emprego. 46 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100


Quinzinho não poderia ter desejado coisa melhor. Ali estava no meio de microscópios, vários deles. Depois do trabalho, e com licença dos donos, olhava as lâminas com tecidos de biópsia ou de órgãos retirados em cirurgia. Aos poucos, foi aprendendo a identificar o que via ali. Sabia diferenciar fígado de baço, sabia quando um tumor era benigno e quando era maligno. Os médicos ficavam surpresos com aquela habilidade; um deles até lembrou o caso de um famoso hematologista argentino que nunca tinha cursado a universidade. Não era o caso de Quinzinho. Ele queria, sim, estudar. Começou a cursar o supletivo, à noite. Mas, paradoxalmente, isto lhe era difícil; muitas vezes até adormecia durante uma aula. - Assim nunca passarei no vestibular - suspirava. Àquela altura eu já tinha me tornado seu amigo e confidente. Procurava animá-lo: o que é isto, Quinzinho, você é inteligente, o vestibular não será problema para você. No fundo, porém, eu tinha dúvida em relação a isso. Não deu outra: terminando o curso, fez o vestibular para medicina e foi reprovado. Uma decepção neutralizada, no entando, por uma surpresa. Naquele ano realizava-se na cidade um congresso nacional de anatomia patológica. Um dos diretores do laboratório resolveu apresentar Quinzinho aos participantes. Que ficaram verdadeiramente assombrados com o rapaz. Entregaram-lhe 20 lâminas para que fizesse o diagnóstico; ele acertou em 19 (o vigésimo caso era tão complicado que suscitou dúvidas entre os próprios patologistas). O assunto acabou chegando a uma revista de circulação nacional, que publicou uma matéria a respeito intitulada "Cientista sem diploma". Ali estava uma foto do Quinzinho, sorridente, junto ao microscópio. Estas coisas animaram-no e ele resolveu tentar de novo o vestibular; desta vez tinha certeza de que seria aprovado. Não chegou a fazer a prova, porém. Um dos vários sinais que tinha na pele começou a crescer rapidamente. Ele procurou o dermatologista. A lesão foi excisada e examinada em nosso laboratório. Era um tumor maligno, um melanoma. Que evoluiu rapidamente, mesmo porque àquela época não havia tratamento adequado para esse tipo de tumor. Dois meses depois foi hospitalizado e veio a falecer, com metástases generalizadas. Nós nunca lhe revelamos o diagnóstico. Dizíamos que era uma coisa benigna, que tinham surgido algumas complicações, mas que ele ficaria bem. Aparentemente ele acreditava em nós, o que era, para todos, um alívio. Ao menos tem esperança, pensávamos. Ao menos morrerá iludido. Iludidos estávamos nós. Depois do enterro, a família foi recolher as coisas dele, no pequeno apartamento que dividia com dois amigos. E ali estava, entre os seus livros e cadernos, uma lâmina. O pai trouxe-a para o laboratório. Ninguém precisou olhá-la: sabíamos que ela tinha saído dali mesmo, e que o diagnóstico seria de melanoma, um tumor maligno que às vezes atalha vidas, extingue sonhos - mas não termina com a grandeza que caracteriza os verdadeiros cientistas.

é médico e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras e autor, entre vários livros, de A orelha de Van Gogh e Saturno nos trópicos.

MOACYR SCLIAR

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I POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

DIVULGAÇÃO

Deu no

Jornal Nacional Mídia amplia espaço de ciência e tecnologia e lança uma série de novos produtos nos próximos meses

Ciência, tecnologia e inovação são hoje termos e temas que freqüentam a mídia brasileira em tal volume e com tamanha naturalidade que chega a parecer espantosa a indigência da cobertura que mereciam até há cerca de uma década - com as exceções de praxe, é claro. Considerados insumos estratégicos para o desenvolvimento socioeconômico, e por vezes elementos valiosos para determinadas criações da cultura popular, os avanços na área de ciência e tecnologia - relacionem-se eles a organismos transgênicos, clonagem, terapias com células-tronco, energia nuclear, investigação e exploração espacial ou tantos outros campos - tiveram seu espaço sensivelmente ampliado, nos últimos anos, nos vários meios de comunicação nacionais. E mais: nesse processo, a ciência e a tecnologia produzidas no país deixaram de ser discriminadas, quando não passaram mesmo a ser francamente valorizadas. A mudança pôde ser percebida de forma clara, por exemplo, no Jornal Nacional, da Rede Globo, o noticiá48 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100



rio de maior audiência da televisão brasileira, que chega diariamente a algumas dezenas de milhões de pessoas. Mostrou-se significativa também nos domínios do jornalismo impresso, onde, a par do aumento de espaço para a ciência em veículos tradicionais, registrou-se, nos últimos anos, o lançamento de alguns títulos importantes voltados exclusivamente para ciência e tecnologia. Não bastasse isso, novas publicações estão sendo nesse momento preparadas para esquentar o mercado editorial. O poderoso grupo Abril, por exemplo, responsável pela revista de maior tiragem ligada à divulgação da ciência, a mensal Superinteressante (400 mil exemplares), que acaba de chegar à edição número 200, agendou para o final de julho o lançamento da revista Sapiens, com tiragem inicial de 40 mil exemplares. E, finalmente, as publicações on Une compõem um capítulo especial da recente escalada nacional de divulgação científica. Certamente, dez entre dez dos cerca de 70 mil pesquisadores brasileiros e boa parte de outros profissionais que acompanham mais de perto os assuntos científicos gostariam de saber o que é capaz de transformar dados e resultados de pesquisa científica em notícia no Jornal Nacional. Segundo seu editorchefe, o jornalista William Bonner, basicamente se noticia o que é novo - alguma conquista científica, novidades em pesquisa -, aquilo que é passível de aplicação imediata ou que é sem dúvida importante como um passo para a conquista de algo como um medicamento ou determinado bem econômico em futuro próximo. "Se fizéssemos uma análise de tudo que foi ao ar nos últimos anos, certamente temas ligados à saúde seriam a maioria; ou temas de interesse circunstancial, como na crise de energia, as matérias sobre pesquisas em como poupá-la ou fontes alternativas." Bonner reconhece que saúde é mesmo o tema mais fácil de emplacar na televisão, em particular notícias sobre novos caminhos para a cura de doenças. De qualquer sorte, segundo ele, o cardápio de assuntos de ciência é dinâmico no Jornal Nacional. "Não temos editores de ciência, mas dispomos de uma lista de consultores, o que é um cuidado básico para abordar te50 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESdUISA FAPESP 100

mas científicos com qualidade e rigor." Aliás, alguns critérios sugeridos quando da produção de uma reportagem, em 2000, por um desses consultores, o médico Caio Rosenthal, de São Paulo, transformou-se numa espécie de bíblia para a redação, relata ele. Eles incluem a checagem obrigatória de quatro itens antes de uma reportagem ou notícia ir ao ar: verificar se o pesquisador utilizou metodologia científica em seu experimento; se a pesquisa com seres humanos observou o código da comissão de ética; se os voluntários da experiência assinaram termos de consciência dos riscos e se a pesquisa foi ou vai ser publicada e em qual revista científica de importância. Bonner admite que o fato de o JN estar voltado para um grande público, integrado por grupos de diferentes níveis sociais e econômicos, cria dificuldades quanto à forma mais adequada de abordar assuntos de ciência. "Temos que ser claros o suficiente para o público de baixa escolaridade, sem ofender a inteligência daqueles que têm maior nível de conhecimento. Ambos são nossos telespectadores." Uma estratégia de linguagem adotada é trabalhar sempre com analogias e com exemplos do repertório de conhecimento do público menos letrado. Mas uma informação preciosa sobre a percepção do público relativamente às questões científicas surgiu, segundo Bonner, de uma grande pesquisa qualitativa feita no início deste ano para consumo interno da Globo, em que a emissora, entre outras coisas queria saber até que ponto alguns temas complexos abordados pelo jornal haviam sido compreendidos pelo grande público. "O resultado foi frustrante mas, ao mesmo tempo, produtivo: na série sobre transgênicos, embora tenhamos usado formas didáticas para tratar do tema, a percepção foi muito baixa. O espectador tende a buscar respostas objetivas para os assuntos e, nesse caso, o que ficou foi a polêmica existente sobre a questão de organismos modificados. A constatação do insucesso em atingir o objetivo nos serviu para buscar entender por que o didatismo usado não foi suficiente", diz o jornalista.

Ligação visceral - Parece haver uma ligação estreita e essencial, até óbvia em certa medida, entre o crescimento notável da pesquisa científica no Brasil nos últimos dez anos (ver reportagem na página 28) e a expansão sistemática da divulgação científica no país ao longo desse período. E ressalte-se que essa expansão se dá, digamos assim, em toda a cadeia de produção de informações sobre feitos e resultados da pesquisa científica: dos veículos mais especializadas e próximos aos produtores de ciência, como as agências de notícias, sites e revistas de universidades, agências de fomento e associações científicas, até os grandes meios de comunicação de massa, como a televisão. É claro que se pode contar uma longa história da divulgação da ciência no Brasil, cujas raízes lançam-se até o século 19. É fora de dúvida que José Reis, com seu trabalho iniciado ainda na década de 40 do século 20, no jornal Folha de S.Paulo, é o pioneiro incontestável do jornalismo científico brasileiro. Mas uma observação mais sistemática do panorama de divulgação científica mostra que é na década de 80 que se estabelecem suas bases mais consistentes para, em fins da década de 90, essa divulgação se ampliar de forma extraordinária - quase como se fosse uma contraface da evolução que se verifica na produção científica nacional. Assim, a revista mensal Ciência Hoje, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), foi lançada em 1982, chegou a ter tiragens em torno de 70 mil exemplares na segunda metade da década e vendas perto dos 50 mil exemplares. É também da segunda metade dos anos 80 a Revista Brasileira de Tecnologia, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em sua forma jornalística, com tiragens de 25 mil exemplares, grande parte da qual vendida a assinantes - a revista desapareceu em 1990, no governo Collor. No âmbito da grande imprensa, a Superinteressante foi lançada em 1987, a Folha de S.Paulo lançou em 1989 um caderno semanal de ciência que perduraria até 1992 (quando deu origem à editoria de ciência) e, em 1990, foi lançada outra revista mensal, a Globo Ciência, posteriormente batizada de Galileu. Ressalte-se que Globo Ciência fora lançado originalmente


como programa de televisão em 1984, marcando, aliás, o pioneirismo da Rede Globo em divulgação científica na poderosa mídia televisiva. A acumulação de competência científica no Brasil ao longo dos anos 80 e 90 terá influência fundamental no tamanho, nas ambições e nos feitos da pesquisa científica nacional perto da virada do século 20 para o século 21. E é possível entender hoje como esse fenômeno produzirá um poderoso efeito sobre a divulgação científica no Brasil a partir desse momento, compondo passo a passo uma espécie de nova cultura científica no país que hoje continua a se espraiar. No rastro desse espraiamento, além da nova revista do grupo Abril, deve-se esperar uma série de lançamentos relativos a divulgação científica nos próximos meses. Entre eles está o programa TV Superinteressante, com duração de 30 minutos, produzido na MTV para ser veiculado aos domingos em horário nobre na TV Cultura. A Discovery, conhecida no país por seus documentários científicos veiculados na TV por assinatura e na Rede Educativa, prepara sua versão brasileira no papel, segundo divulgou recentemente o jornal Meio e Mensagem, informação confirmada pelo subeditor Marcelo Affiny, mas ainda guardada em segredo pela editora responsável. Em agosto, a Dueto Editoral, que desde julho de 2002 publica a versão brasileira da Scientific American- a mais antiga revista de divulgação científica do mundo, lançada em abril de 1845 -, deve colocar um novo título no mercado, a revista Viver, Mente e Cérebro. A TV Cultura, que, aliás também tem tradição em produções de cunho científico - mantém em sua grade o Re pórter Eco, no ar há onze anos, além do jovem Ver Ciência, produziu em 1999 uma série de documentários sobre a pesquisa em genô mica, com apoio da FAPESP, recentemente foi premiada com a sé-

rie de documentários Minuto Científico e Viver Ciência -, estréia no final de junho Cientistas Brasileiros, série de 15 filmes curtos, enfocando personagens, grandes projetos e institutos de pesquisa, que devem distribuir-se entre os programas normais da grade da emissora, informa Mário Borgneth, gerente de documentários da Cultura. E há uma série de outras iniciativas em planejamento, ligadas a rádio e a televisão, cujos responsáveis preferem por ora manter sob reserva. Uma nova compreensão - A FAPESP tem, sem dúvida, um papel que ainda está para ser corretamente avaliado e reconhecido nas transformações que vêm ocorrendo no âmbito da divulgação científica no Brasil, nos anos recentes. Primeiro, há que se destacar a crescente profissionalização de seu trabalho de assessoria de imprensa, desde 1995, quando a Fundação começara a diversificar e a ampliar extraordinariamente o alcance de seus programas de apoio à pesquisa. Esse trabalho obrigou pouco a pouco os jornalistas da grande imprensa a se darem conta da qualidade e da

importância da pesquisa científica e tecnológica desenvolvida sistematicamente no Estado de São Paulo. Dessa forma, quando por exemplo em 2000 a imprensa internacional literalmente festejou o feito do seqüenciamento da Xylella fastidiosa no Brasil, resultado da proposta pioneira e ousada da FAPESP na área da genômica, toda a mídia brasileira, bem calçada de informações, já se dedicara exaustivamente ao assunto e precisou apenas conceder-lhe uma nova repercussão. Era uma diferença flagrante em relação à indiferença com que recebera o lançamento do projeto em outubro de 1997. Em segundo lugar, é necessário destacar a importância de Pesquisa FAPESP, que hoje tem tiragem de 45 mil exemplares, gestada a partir do boletim Notícias FAPESP, lançado em agosto de 1995, como uma fonte de referência de peso para a mídia nacional, primeiro sobre a pesquisa produzida no Estado de São Paulo e, mais adiante, no país como um todo. Um levantamento sistemático das notícias veiculadas pela imprensa a partir do material publicado pela revista mostra que, em 2000, por exemplo,


11 edições de Pesquisa FAPESP geraram 208 matérias em jornais e revistas brasileiros. Aliás, vale registrar um comentário de Muniz Sodré, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e um dos mais respeitados teóricos da comunicação no país, em artigo publicado no site Observatório da Imprensa em 20 de janeiro de 2004, sob o título "Um exemplo de jornalismo utilitário". Em suas palavras, Pesquisa FAPESP "vem se revelando como uma das melhores, senão a melhor publicação do gênero em nosso país". E mais: "Com ela, a função jornalística ganha de fato sentido pleno", diz ele. Finalmente, sobre as contribuições da Fundação para a divulgação científica, é imperioso destacar o novo passo dado nesse sentido em junho de 2003, com a criação da Agência FAPESP, que diariamente envia notícias nacionais e internacionais de política científica, divulgação científica, ciência e tecnologia para 25 mil assinantes em todo o país. Todo esse complexo de divulgação em que a FAPESP vem investindo resultou, por exemplo, no período de lfl de março a 20 de maio deste ano, em 424 citações do material produzido pela Fundação na mídia impressa nacional. A agência, especificamente, foi responsável no período por 183 notícias publicadas por jornais de todo o país, fora do eixo Rio-São Paulo. A inserção especial da FAPESP e, no caso, especificamente de Pesquisa FAPESP, no panorama da divulgação científica, na verdade, já tinha sido percebido em 2001 por executivos estrangeiros interessados no mercado brasileiro de divulgação científica. A Fundação recebeu naquele ano a visita de um dos diretores da Scientific American dos Estados Unidos, que propunha uma parceria na produção de uma revista brasileira de divulgação científica. As negociações avançaram até certo ponto, mas a FAPESP não abria mão de manter 70% do material editorial da revista vinculado à produção científica brasileira, enquanto o candidato a parceiro queria ter no mínimo 50% do material originário da produção internacional da Scientific American. Assim, o acordo não foi 52 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100

assinado e a publicação norte-americana foi em busca de outras alternativas de entrada no mercado brasileiro, o que terminou ocorrendo através da Duetto Editorial. Segundo Alfredo Nastari, diretor da editora, "apesar de o Brasil ter piores índices de escolaridade e miséria endêmica, um potencial de mercado avaliado entre 3 milhões e 5 milhões de leitores para publicações especializadas tornou o Brasil mais atraente que o Leste Europeu, que era outra opção do grupo da Scientific American na mesma época para lançamento de uma nova edição internacional". Com dois anos de existência, a edição brasileira já se posiciona em quinto lugar num ranking de 20 que a Scientific publica no mundo todo. Na opinião de Nastari, existe espaço para a revista informativa de ciência, apesar de o público interessado pelas diversas áreas do conhecimento dispor de tantas opções eletrônicas gratuitas. "O papel de uma revista é ordenar o universo de informações abundantes e livres por meio de uma edição e uma linguagem adequadas à capacidade de entendimento do leitor", diz ele. Uma busca no Google, por exemplo, acrescenta, traz um excesso de fontes e nível de inteligibilidade difícil de absorver. "O tratamento da notícia, a clareza, a originalidade e a credibilidade do conteúdo são a chave para conquistar o leitor", considera. Ele ressalta, contudo, que "a tragédia em nossa área é a publicidade, que não está preparada para esse perfil de publicação, não entende seu potencial de venda e dificulta a vida econômica desses projetos". Que existe demanda de público para informação de ciência em revista está demonstrado pelo sucesso de títulos como a Superinteressante, direcionado ao público jovem-adulto, que ocupa o segundo lugar na circulação das revistas mensais, atrás apenas da feminina Claudia. O segredo do bom desempenho da revista, desde seu lançamento, há 17 anos, está no foco, segundo seu editor, Dennis Russo. "Não é uma publicação dirigida para escolares, mas para pessoas interessadas em conhecimento em geral, jovens e adultos." Russo diz considerar a Super, como ela costuma ser chamada, uma revista de conhecimento, e não de jornalismo científico. "Somos pautados pela von-

tade grande de surpreender, de falar de coisas que as pessoas querem saber, mas ainda não sabem. A pauta não tem compromisso com o noticiário diário, embora não deixe de estar atento à atualidade." Semanais e Internet - Entre as revistas informativas semanais, a Época, da Editora Globo, entrou no mercado em 1998 abrindo um espaço inédito para ciência e tecnologia. José Roberto Nassar, diretor de redação no primeiro ano e meio da publicação, observa que a revista buscava um diferencial editorial que viabilizasse expandir o público das revistas, e não dividir o público já existente das semanais. As edições tinham sempre um mínimo de 100 páginas editoriais, distribuídas de forma mais ou menos equânime entre as diversas editorias - o que incluía a área de ciência, tecnologia e informática. "Em nossa avaliação, este era um caminho para conquistar novos leitores. A experiência do modelo já vinha sendo testado no exterior, onde se podia observar o interessante mercado explorado em publicações da Alemanha e dos Estados Unidos, principalmente, ao longo dos anos 1990", lembra Nassar. A revista Focus, inspiração para a Época, quando foi criada na Alemanha, em 1995, tinha uma tiragem de 800 mil, enquanto a Der Spiegel manteve-se com 1 milhão de exemplares. Não houve perdas de leitores. Acreditava-se que o mesmo fenômeno poderia ser repetido no Brasil, com um mix de leitores que incorporasse o público jovem, já consumidor de tecnologia. Mas com a crise econômica muita coisa mudou no mercado editorial. Mais recentemente começaram a proliferar os sites de divulgação. A FAPESP, por exemplo, tem três: o institucional da Fundação, o da revista Pesquisa FAPESP e o da Agência FAPESP. A SBPC mantém o JCEmail, versão eletrônica diária do Jornal da Ciência, semanal. Surgiram revistas eletrônicas, como a ComCiência, do Laboratório de Jornalismo da Universidade Estadual de Campinas (Labjor) em convênio com a SBPC. Criaram-se portais como o Canal Ciência do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict), órgão do Ministério da Ciência e Tecnologia, e o SciDev.Net. Além disso, expandem-se os sites específicos da


área de comunicação, com destaque especial para o jornalismo científico, como a Comtexto ou ainda o Observatório da Imprensa. A oferta de divulgação científi/% ca se amplia também na TV Z^A por assinatura: na Futura, i ^ os programas Globo Ciên^L .A. cia, Mundo da Ciência e Ponto de Ebulição. Na Globo News, o programa Espaço Aberto: Ciência e Tecnologia é distribuído ao longo da grade. Difícil prever, em meio à efervescência da área de divulgação científica, seus desdobramentos para além de alguns meses, em meio às discutidas crises do jornalismo e da mídia. Se tomarmos como exemplo a pioneira das revistas de divulgação, a Ciência Hoje, vamos ouvir de Alicia Ivanissevich, sua editora-executiva - que, aliás, se incorporou à equipe em 1985, depois cuidou da ciência no Jornal do Brasil de 1992 a 1997, e então voltou à revista da SBPC -, uma afirmação sobre a manutenção dos objetivos originais da publicação, após mais de 200 edições ininterruptas, e o propósito de aumentar sua tiragem, que caiu para 15 mil exemplares, dos quais cerca de 70% são dirigidos a assinantes. "A intenção é viabilizar uma distribuição nacional mais efetiva, mas os custos são elevados", ressalta Alicia. Da original Ciência Hoje nasceram vários filhotes, alguns extraordinariamente bem-sucedidos em termos de público, caso da revista dedicada ao público infantil, Ciência Hoje das Crianças, para a faixa etária de 7 a 12 anos, que começou como um encarte mas, a partir do número 16 ganhou vida própria e chegou em 1986 com uma tiragem de 200 mil exemplares. Hoje 180 mil revistas são ad quiridas pelo Ministério da Educação, que as distribui a todas as bibliotecas escolares. A jornalista e pesquisadora Luisa Massarani, da Fundação Oswaldo Cruz, e responsável pelo site SciDev.Net América Latina, observa que, para o futuro, "um dos principais desafios é fazer uma divulgação científica mais crítica, na qual, em vez de focar exclusivamente as maravilhas da ciência, é importante considerar aspectos como riscos legais e éticos; incertezas dentro da comunidade científica; impacto da

ciência e da tecnologia na sociedade". Já o editor de ciência da Folha de S.Paulo, Marcelo Leite, alerta para o risco de reduzir-se o espaço de um jornalismo científico sério, que não recua diante das dificuldades do tema quando ele é socialmente relevante, dada uma tendência de se divulgar mais e mais temas de saúde, na forma facilitaria de um aconselhamento descartável, em particular nas revistas semanais (ver artigo na página 62). Já o diretor de jornalismo da TV Cultura, Marco Antônio Coelho, considera que "a tradução do conhecimento científico para uma linguagem de TV é de interesse público e está no mandato da Cultura". Essa é uma linha de trabalho que a atual gestão persegue, continuará a perseguir e tem inflexão na pauta do jornalismo diário, diz Coelho, para quem "a principal mercadoria do futuro é a idéia. Desenvolver o conhecimento é fundamental para o crescimento social". Nesta concepção, acrescenta, o jornalismo tem papel fundamental e a divulgação científica é

dele parte integrante. Coelho avalia que o espaço ocupado por essa divulgação ainda é pequeno - "talvez 5% da programação" -, mas garante que é uma área em expansão. A divulgação de ciência tem um belo futuro garantido também no jornalismo impresso diário, a depender dos vaticínios do diretor de redação da Folha de S.Paulo, feito em entrevista publicada na Pesquisa FAPESP número 95, de janeiro de 2004. Ali, Octavio Frias Filho dizia que o interesse jornalístico pela ciência só tende a aumentar. "Primeiro, porque a ciência exerce uma influência, ainda que indireta, muito grande na vida das pessoas", o que só deve aumentar numa civilização técnico-científica como a nossa. E, em segundo lugar, "porque a ciência passou a ser vista como uma das portas de ingresso do público mais jovem ao hábito de ler jornais". Público, acrescenta ele, que é o enfant gâté dos jornais hoje, quando é imensa a preocupação com a formação de novos leitores. •

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I POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

POPULARIZAÇÃO

Em ritmo * de

samba

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Pesquisadores usam novas linguagens para levar a ciência ao público CLAUDIA IZIQUE

Enquanto os sambistas da Unidos da Tijuca evoluíam na Marquês de Sapucaí, com o enredo "A arte da ciência no tempo do impossível", no último Carnaval, os pesquisadores da Casa da Ciência da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) comemoravam os resultados de um projeto ousado. Junto com o carnavalesco Paulo Barros, reconstituíram a história das mais notáveis descobertas científicas, traduzindo-as em alegorias, fantasias, sons e ritmo. Alguns chegaram a temer que o enredo reeditasse o Samba do crioulo doido, obra-prima de Stanislaw Ponte Preta, pseudônimo de Sérgio Porto. No entanto, dollys, santos dumonts, alquimistas, passistas enroladas nas espirais do DNA e até Roald Hoffmann, prêmio Nobel de Química em 1981, fundiram-se em sincretismo e samba para empolgar o público e garantir à escola o título de vice-campeã do Carnaval carioca de 2004. "Foi o momento certo de ver o que significa a popularização da ciência", lembra Fátima Brito, diretora-executiva da Casa da Ciência. Iniciativas como a da equipe da UFRJ são cada vez mais freqüentes em todo o país. Também neste Carnaval, em Manaus, a 4 mil quilômetros do Sambódromo, a escola de samba A Grande Família homenageou os 50 anos do Instituto de Pesquisa da Amazônia (Inpa). O carro abre-alas, que aludia a um laboratório de pesquisa, era seguido pela ala dos pesquisadores, dos meliponicultores (criadores de abelha sem ferrão) e das plantas medicinais, entre outros. O último carro, que representava o programa de pós-graduação em Biologia Tropical e Recursos Naturais, puxava a ala da aquacultura, dos pesquisadores do futuro e das baianas. E ainda dava carona ao bloco Eles e Elas, formado por gays e simpatizantes que, ainda que não integrassem o enredo, fazem parte da tradição da escola. O impacto da presença de temas de ciência no Carnaval carioca e manauense e a receptividade do público empolgaram o físico Ildeu Camargo Moreira, diretor do recém-criado Departamento de Popularização e Divulgação da Ciência, da 54 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100

Tributo à clonagem: passistas da ala Dolly

Molécula de DNA em ritmo de samba


Carro abre-alas da Unidos da Tijuca: os homens maravilhosos e suas máquinas voadoras

Homenagem a Franklin: pára-raios

A física avança: energia mecânica

Energia elétrica na Sapucaí

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Ádamo Siena; 14 anos, conta em quadrinhos a Agonia de uma célula invadida por vírus.

Secretaria de Ciência e Tecnologia para a Inclusão Social do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). Para ele, estes são dois exemplos inequívocos de que é possível aproximar ciência e cultura no país. "A ciência é técnica e não tem a ver com cultura e arte. É preciso adotar um conjunto de ações para aproximá-las." Ciência pela TV - Desde o início de abril, Moreira está empenhado na tarefa de identificar, articular e apoiar ações que consolidem uma cultura de educação para a ciência em todo o país. Ele rodou o Brasil para fazer um amplo levantamento do estado da arte de popularização e difusão da ciência. Constatou que a divulgação científica melhorou muito nas últimas duas décadas, com um aumento substantivo no número de revistas, livros, sites e uma maior abertura da mídia para o tema (ver reportagem na página 48). "Mas a situação da educação científica e da popularização da ciência está muito distante do razoável", observa. Os problemas vão desde a formação de "comunicadores" até a ausência de políticas para o tema. Concluído o diagnóstico, Camargo Moreira deu início à elaboração de um grande projeto de popularização e divulgação da ciência e tecnologia, que prevê desde o apoio à criação de novos museus de ciência até o estímulo a exposições itinerantes, incluindo esforços para a ampliação da presença da ciência na mídia, principalmente na TV. "Junto com a revista Ciência Hoje, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), estamos negociando com a Rede Globo a realização de inserções rápidas sobre o tema e, com o mesmo objetivo, articulamos 56 ■ JUNHO DE 2004 ■ PES0UISA FAPESP 100

contatos com os canais de TV ligados à Radiobrás", conta Moreira. Essa idéia também será estendida para a mídia impressa. E mais: em parceria com o Laboratório de Jornalismo (Labjor) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o MCT - por meio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) - vai apoiar a construção de um portal de popularização da ciência e tecnologia, que reunirá as iniciativas disponíveis sobre comunicação em ciência e jornalismo científico, entre outros. Também se articula a realização de um fórum nacional de popularização da ciência, envolvendo o Ministério da Educação e outros órgãos do governo, com setores representantes da comunidade científica de todo o país. "O fórum tem que ter caráter nacional, já que nossa meta é implantar uma política nacional de ciência", justifica. Esse conjunto de iniciativas atingirá o ápice na Semana Nacional de Ciência e Tecnologia, que o MCT está empenhado em organizar no segundo semestre, que reunirá escolas, universidades, agências de fomento, entre outros, numa promoção simultânea de eventos ligados à pesquisa e ao conhecimento. A proposta do MCT pretende se articular com as políticas de estímulo à inovação no país. "Para estimular a inovação é preciso criar uma mentalidade favorável com o público mais amplo", argumenta Moreira. Algumas medidas práticas já foram tomadas, dando mostras da disposição do governo federal de fazer avançar o projeto. A Finep, por exemplo, destinou R$ 1,3 milhão do Fundo Setorial de

Energia para a difusão de informações sobre o tema. O Centro Museus de Ciências recebeu R$ 4 milhões para a ampliação de projetos - que inclui a incubação de museus - e, em breve, serão anunciados recursos para apoiar projetos de "ciência móvel", como o do Projeto Museu Itinerante (Promusit), da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Um caminhão de reboque - O Promusit, na verdade, é um reboque com 21 metros de comprimento, puxado por um caminhão, que transporta 60 experimentos e dezenas de kits pedagógicos utilizados em oficinas e cursos dirigidos para alunos e professores. Descarregado com o auxílio de um elevador capaz de suportar 1 tonelada e meia, o reboque se transforma num moderno auditório com ar condicionado, equipamento de áudio, home theater, sistema de comunicação via Internet e satélite, entre outros. A equipe do Promusit é formada por 12 professores, 10 técnicos especializados e 10 estagiários capacidados para ensinar ciência "de forma lúdica e interativa", como diz Jetter Bertoletti, diretor do Museu de Ciência e Tecnologia da PUC-RS, idealizador do projeto. Este, inaugurado em 2001, conta com o apoio da Fundação Vitae, Banco Santander, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), além da própria universidade. No ano passado, o museu móvel foi visitado por mais de 200 mil pessoas em mais de 20 cidades gaúchas. "O museu combina o processo de popularização da ciência com a educação inicial e continuada de professores da área científica", conta Bertoletti.


e descreve a batalha bem-sucedida dos anticorpos contra os vírus

g| A popularização e a educação /^ para a ciência se confun/^^^ dem", afirma Leopoldo de È ^ Méis, professor titular de -A~ JL. Bioquímica do Instituto de Ciência Biomédica da UFRJ, autor de uma série de livros em quadrinhos sobre ciência, uma peça de teatro e um filme de divulgação científica. "O conhecimento novo tem crescido exponencialmente. As informações, muitas vezes, ficam atrapalhadas e é difícil tomar decisões", observa. Há anos, ele busca obsessivamente desenvolver uma linguagem adequada para tornar as informações científicas mais palatáveis para jovens e crianças. Nota que, fora do ambiente acadêmico, jornais, revista, TVs, entre outras mídias, apresentam a ciência ao cidadão enfatizando sua aplicação, utilidade e impacto para o desenvolvimento do país. "Raramente se fala sobre o lado lúdico da ciência, ligada ao desejo do homem de entender o Universo", diz. Essa omissão contribui para que os cientistas sejam

representados como "loucos, desvairados e solitários" e a ciência como uma atividade "lógica", desprovida de criatividade, conforme ele constatou em pesquisa realizada com crianças e jovens recém-aprovados no vestibular, na década de 1980. A arte, ao contrário, era entendida por esse mesmo público como sinônimo de emoção, criatividade, novidades. Foi aí que ele decidiu aprender a linguagem das artes para ensinar ciência. Em 1996, com o apoio da Fundação Vitae e da FAPESP, lançou o seu primeiro almanaque: O método científico-, distribuído nas escolas. Em 1998 fez o segundo: A respiração e a Ia lei da termodinâmica ou... a alma da matéria. E prepara o lançamento do terceiro, sobre a história das vacinas. Várias outras experiências de interface entre ciência e arte estão em desenvolvimento no país. O Ciência em Cena, um dos projetos do Museu da Vida da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), é um deles. A primeira peça,

O mensageiro das estrelas, de Ronaldo Nogueira da Gama, que contava a vida de Galileu Galilei, atingiu um público estimado em 28 mil pessoas, e a segunda, O mistério do barbeiro, relata a epopéia da descoberta da doença por Carlos Chagas e está em cartaz desde 2000. Monocórdio de Pitágoras - A integração entre ciência e arte também é o carro-chefe da programação da Estação Ciência, em São Paulo, atualmente sob administração da Universidade de São Paulo (USP). Até meados de junho, crianças e jovens poderão assistir à peça O monocórdio de Pitágoras, uma aula-espetáculo que mistura música e matemática por meio da utilização de escalas musicais descobertas pelo filósofo grego Pitágoras. No texto, o autor e ator Pedro Paulo Salles interpreta um artista popular nordestino que relata em cordel histórias que lhe foram contadas por antepassados sobre a criação do monocórdio - um instrumento mu-

Museu de ciência percorre o Rio Grande do Sul num caminhão de 21 metros

PESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 57


sical de uma corda só -, os experimentos e deduções de Pitágoras para chegar às escalas musicais. "O teatro, por seu potencial comunicativo, configura-se como uma ferramenta fundamental para o aprendizado e difusão científica", comenta Cauê Matos, coordenador do Núcleo de Artes Cênicas da Estação Ciência, responsável pela elaboração dos textos. As montagens dos espetáculos são realizadas pelo Grupo de Teatro Estação Ciência da Cooperativa Paulista de Teatro. A expectativa é de que Pitágoras siga a mesma carreira de sucesso de A estrela da manhã, encenada 130 vezes para um público de 25 mil pessoas. A Estação Ciência foi inaugu/% rada em 1987, por iniciatiL^L va do CNPq, num antigo i ^k galpão reformado, ao lado ^L. JL- da Estação Ferroviária da Lapa, cuja arquitetura remonta o início do século 20. O termo Estação, com o qual foi batizada, remete às viagens ao mundo do conhecimento científico e à sua proximidade com as estações de trem e metrô. Cerca de 1.700 crianças e jovens visitam a Estação Ciência diariamente. "No final de semana eles geralmente voltam acompanhados pelos pais", conta Wilson Teixeira, diretor. Além das peças de teatro, eles podem conhecer o Laboratório Virtual, que apresenta animações e jogos interativos com o objetivo de divulgar a ciência de maneira lúdica e divertida com o apoio da Internet. Educação para a cidadania - Se as experiências da UFRJ, Inpa, PUC-RS, Fiocruz e Estação Ciência podem ser consideradas bons modelos de projetos de popularização do conhecimento, as atividades desenvolvidas pelos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids), mantidos pela FAPESP, são exemplos de sucesso de difusão científica. O Centro de Terapia Celular (CTC), em Ribeirão Preto, além de investigar a utilização de células-tronco no tratamento de doenças, desenvolve projetos educacionais com alunos de ensino fundamental e médio da rede pública. E aposta no desenvolvimento de jovens talentos. Por meio de atividades promovidas pela Casa da Ciên58 • JUNHO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 100

0 Monocórdio de Pitágoras, encenado na Estação Ciência: experimentos e deduções até chegar à escala musical

cia - mantida pelo Hemocentro e que, em breve, se transformará no Museu e Laboratório de Ensino de Ciências - e programas como o Caça-Talentos, o centro desenvolve metodologias de aprendizagem que incentivem a curiosidade e a prática científica. Os alunos são selecionados por seus professores em escolas de toda a região para, juntos, desenvolver atividades de iniciação científica fora da sala de aula. "Tratamos de assuntos essenciais para a nossa vida, não só para a educação em ciência como também para o exercício da cidadania", explica Marco Antônio Zago, coordenador do CTC. Nos cursos utiliza-se com freqüência técnicas de dramatização para fixar conceitos relacionados a questões de difícil compreensão, como clonagem, transgênicos ou o desenvolvimento de

doenças. Joyce da Silva e Daine Dias, por exemplo, ambas com 14 anos, escreveram uma peça de teatro para prevenir as colegas contra o câncer de mama, popularizando conceitos específicos. Na peça, a paciente, cujo nome é Maria, pergunta à médica Débora como foi o resultado do exame. A médica responde: "Você não possui metástases. Metástase é quando células do tumor caem na corrente sangüínea e espalham-se para outras partes do corpo. Você é uma mulher de sorte, pois o nódulo estava em sua fase inicial, dando a você total capacidade de se tratar a tempo". Maria, revelam as duas meninas, tratou-se com a doutora Débora até curar-se da doença. Os projetos desenvolvidos pelo centro têm como eixo aulas ministradas pela equipe de pesquisadores, in-


fessores, a área de genética molecular é praticamente desconhecida. E não existe material didático disponível para que possa se informar sobre temas como teste de paternidade e organismos geneticamente modificados, entre outros, que já fazem parte do universo de dúvidas de grande parte das crianças e jovens . "O nosso objetivo é melhorar a qualidade do ensino, trabalhar com conteúdos básicos da genética e prática pedagógica", diz Amabis.

vestigação em grupo e atividades nas escolas. Inclui, ainda, a edição de um jornal, a divulgação de informações num site e outras formas de expressão que, como diz Zago, permitem contabilizar, na medida exata, a sua compreensão da matéria. Ádamo Siena, de 14 anos, que integra a equipe de alunos do CTC desde 2002, fez uma história em quadrinhos com 75 lâminas baseado na peça Agonia de uma célula, escrita e produzida por ele e seus colegas, com o intuito de popularizar alguns conceitos sobre o vírus {veja ilustração na página 50). "Se o aluno consegue fazer, significa que entendeu, que pensou no assunto e que tem capacidade de decidir sobre o assunto", observa Zago. Fã da biologia celular e molecular, Ádamo e outros três colegas de grupo foram selecionados e vão receber uma

bolsa no âmbito do Programa de Iniciação Científica Júnior, que conta com o patrocínio da FAPESP e do CNPq. O reforço para as atividades de professores em sala de aula também é a tônica das atividades de difusão do Centro de Estudos do Genoma Humano, outro dos dez Cepids apoiados pela Fundação. Já foram publicados três volumes sob o título Conceitos de biologia, dois livros paradidáticos sobre clonagem humana e seqüenciamento de DNA e um guia de apoio didático para professores. "O centro também promove cursos para professores de ensino médio e para jornalistas interessados em genética moderna", conta José Mariano Amabis, coordenador de Difusão. Entre os pro-

Hologramas e Newton - Em outro Cepid, o de Pesquisa em Óptica e Fotônica (Cepof) - que reúne pesquisadores do Instituto de Física da Unicamp, do Instituto de Física da USP em São Carlos e do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) -, a televisão, o rádio e os jornais da região são utilizados como veículos para a divulgação de conceitos e popularização da ciência. Em São Carlos, por exemplo, o centro montou um pequeno estúdio onde são produzidos os programas da série Vídeo e ciência, com 5 a 15 minutos de duração, e que tratam de 50 temas como hologramas, laser, leis de Newton, leis de Kepler, entre outros, todos eles à disposição das escolas. Outra série, batizada de Na Trilha dos Cientistas, já com 18 volumes, conta a história dos autores das grandes descobertas desde Arquimedes até Pascal, incluindo os brasileiros Vital Brazil e Carlos Chagas. "Todos os títulos, além ser distribuídos nas escolas, estão disponíveis nas videolocadoras de São Carlos e os interessados podem retirálos sem custo", conta Wanderly Bagnato, coordenador do Cepof. "Há procura e interesse, já que as locadoras estão pedindo mais cópias." O mesmo estúdio produz, também em formato para TV, uma série de aulas dirigidas para estudantes universitários do primeiro e segundo anos dos cursos de ciências exatas. Os cursos são veiculados na TV Universitária, distribuída pela Net e TV Comunitária. "As aulas são utilizadas em faculdades particulares", orgulha-se Bagnato. O centro mantém ainda um programa diário na Rádio USP - batizado com o nome Minuto da ciência, com informações sobre plantas medicinais, agrotóxicos, radioterapia, entre outros - e uma coluna dominical publicada em vários jornais da região. . PESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 59


ARTIGO CARLOS VOGT

Ciência, divulgação e leitura ternacionais, 159 anos de história, e começou a ser publicada O movimento editorial no Brasil em torno da divulgação científica tem crescido consideravelmente nos no Brasil em junho de 2002, o que confirma o movimento de últimos anos se observarmos, não fossem outros inampliação do interesse editorial do público sobre o tema. dicadores, o número de livros e revistas e as editorias e págiEm 2003 foi criada a Agência FAPESP (www.agencia. fapesp.br), cujo slogan "Divulgando a cultura científica" exnas especiais da grande imprensa dedicados ao tema. pressa bem sua fidelidade à dinâmica das relações entre ciênTalvez a referência mais importante seja a criação, em 1949, da revista Ciência e Cultura, idealizada por José Reis e cia e sociedade por meio de notícias e informações nacionais pelo grupo de pesquisadores que fundaram a SBPC no ano e internacionais sobre a produção e políticas no setor. Em pouco mais de um ano, a Agência acumulou mais de 25 mil anterior. A permanência da revista e sua continuidade por 56 anos, durante pelo menos três fases de evolução editorial assinantes e seu site recebe mais de 8 mil visitas diárias. conseqüente, é um testemunho desse movimento. E o seu Quando se consideram ainda as editorias e páginas de ciência em jornais e revistas, as páginas eletrônicas como ideário, apresentado na primeira edição, mantém atualidade e presença nos objetivos daqueles que militam no jornalismo as de Ciência em Dia, as publicações mais populares como e na divulgação científica. A revista deSuperinteressante e Galileu, além de finia-se como veículo de difusão não programas no rádio e na televisão, terapenas do conhecimento científico, se-á uma medida mais justa e otimista da presença crescente do tema na vida mas de dados relativos à projeção desse conhecimento na sociedade. Ciência e da sociedade. Hoje talvez fosse possível A FAPESP enfatiza Cultura tem hoje uma tiragem de 25 estimar em 5 milhões o número de sua missão mil exemplares e circula por venda, aspessoas - perto de 2,5% da população de apoiar a pesquisa brasileira - que de alguma forma lêem sinatura e distribuição institucional. e divulgar Em 1982 nasce a revista Ciência assuntos relativos a C&T. o conhecimento Hoje, também da SBPC, hoje com tiraNesse sentido, o projeto A Ciência gem de 15 mil exemplares - cujo sucesNossa de Cada Dia, que a Pesquisa FAso leva à criação da argentina Ciência PESP se propõe a desenvolver com a SeHoy. Ao lado da Ciência Hoje para Criancretaria de Estado da Educação, além de ças, com 200 mil exemplares, a revista constituir-se em um meio para mobiliconstitui um marco da consolidação da divulgação científica zação do jovem secundarista da rede pública de ensino para no país. Ambas também são vendidas, assinadas e distribuío amor à ciência - o jovem amador da ciência -, é também das institucionalmente. Ainda na SBPC, o Jornal da Ciência e uma forma de ação eficaz para a criação de uma cultura cieno JC e-mail tratam de política de ciência e tecnologia, com tífica na juventude, que a disponha positivamente para a forte papel na mobilização da comunidade acadêmica. amizade do conhecimento e para o conhecimento amigo da A partir da experiência inicial com um boletim informarazão e do entendimento, tanto do ponto de vista técnico tivo, criado em 1995, surge, em outubro de 1999, a revista quanto do social. Pesquisa FAPESP, hoje com uma tiragem de 44 mil exemplaTomando as matérias publicadas pela Pesquisa FAPESP res, dos quais 20 mil circulam por vendas e assinaturas e 24 como referência para guias mais didáticos, mas não menos mil por distribuição institucional. Reconhecida por sua quaagradáveis, para professores e alunos, o projeto deverá trabalidade gráfica e editorial, a revista é leitura indispensável lhar com mais de 11 mil professores e envolver 6 milhões de para o acompanhamento da produção científica e tecnológiestudantes. Como conseqüência, será alongado o diâmetro ca em São Paulo e no país, pautando a mídia e o cotidiano da espiral da cultura científica e ampliada a base de leitores do leitor interessado na área. jovens de interesse mobilizado para questões atinentes ao Em 1999 foi lançada pelo Laboratório de Estudos Avanconhecimento e suas relações com a sociedade. Assim, a çados em Jornalismo (Labjor), da Unicamp, a revista eletrôFAPESP enfatiza sua missão institucional de apoiar a pesquinica ComCiência (www.comciencia.com.br), que logo no sa e divulgar o conhecimento produzido pela ação de seus ano seguinte passaria a ser mais uma publicação da SBPC programas de fomento. com número expressivo de leitores. Em 2001 foram 392 mil acessos ao site; em 2002, mais de 1,1 milhão; e, em 2003, CARLOS VOGT é poeta e lingüista, presidente da FAPESP, quase 2,2 milhões. coordenador do Laboratório de Estudos Avançados em Especializada em divulgação de ciência, tecnologia e aplicação, como se define, a Scientific American tem 15 edições inJornalismo da Unicamp (Labjor) e vice-presidente da SBPC 60 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100


ARTIGO JOSé FERNANDO PEREZ

Celebração de uma feliz parceria A mídia aprendeu a ver a FAPESP com outros olhos a Em maio de 1997 fui convidado para um almoço na partir do crescimento da revista. Como é distribuída para redação do jornal Folha de S.Paulo. Durante pouco mais de uma hora e meia, fui submetido a uma amios jornalistas, aos poucos as reportagens que apareceram pela primeira vez em Pesquisa FAPESP passaram a ser ingável, mas intensa sabatina sobre a ação da FAPESP no financiamento à pesquisa. Devemos lembrar que, naquele corporadas à pauta dos principais veículos de comunicação momento, estávamos prestes a lançar o programa de apoio do país - não sem alguma resistência. Um episódio embleà inovação tecnológica em pequenas empresas, o PIPE. O mático ilustra as dificuldades daqueles tempos. Quando do lançamento do projeto de seqüenciamento da bactéria Xyprojeto Genoma seria lançado em outubro do mesmo ano. O diretor-geral do jornal, Octavio Frias de Oliveira, comanlella fastidiosa, em 1997, não houve praticamente cobertura da imprensa. Apenas os dois principais jornais de São dava uma inteligente argüição e, no meio da conversa, após alguns segundos de silêncio, fuzilou com um veredicto inPaulo deram a notícia, um deles com dias de atraso. Hoje contestável: "Se vocês são tão bons assim, então são muito esse quadro mudou. Os programas e projetos financiados ruins de marketing!" Absorvido o impacto de uma declarapela FAPESP são divulgados em todos os veículos porque a mídia reconhece o valor que eles têm ção tão franca e espontânea, só me restou refletir e concordar: de fato, uma para a sociedade. Pesquisa FAPESP é parceira imporinstituição que recebe 1% da receita tributária do estado não apenas tem tante da Fundação e, conseqüentemenobrigação perante o contribuinte de te, da comunidade científica - hoje não A revista garantiu só a paulista, mas a nacional. A publimostrar claramente o que faz, mas a qualidade da mostrar também que faz bom uso descação transformou os projetos de pesinformação científica quisa em fonte inesgotável de insses recursos. pela interação Como mostrar de forma, ao mespiração para a prática do jornalismo com os pesquisadores mo tempo, precisa e acessível ao não científico. Garantiu a qualidade da coespecialista o que faz, como faz e quais municação também por ser feita por os resultados do que faz uma agência jornalistas, com perfeito domínio do instrumento, a revista. Garantiu a quade fomento à pesquisa científica e tecnológica? Desde agosto de 1995 já lidade da informação científica, pela incirculava entre a comunidade científica do Estado de São teração e colaboração com os pesquisadores. A parceria entre Paulo o boletim Notícias FAPESP. A iniciativa começara tirevista, Fundação e cientistas já rendeu outros frutos, como midamente, com apenas quatro páginas em branco e preto. a Agência FAPESP, que faz a divulgação eletrônica diária, via Internet, da ciência e da política científica e tecnológica Os parcos mil exemplares impressos chegavam apenas aos diretores das faculdades e dos departamentos das universibrasileira. dades, sem alcançar a maioria dos pesquisadores. TampouA criação da revista e da agência nasceu também porco o contribuinte paulista sabia da existência do boletim e que a missão institucional da FAPESP, como prevista pela do fim dado ao seu dinheiro. Apoiado pela FAPESP e pelos lei, inclui a divulgação das atividades de pesquisa que fipesquisadores paulistas, Notícias FAPESP cresceu, se transfornancia. Por essa razão, a publicação da revista se dá por mou na revista Pesquisa FAPESP, em outubro de 1999, e comeio de um projeto especial, coordenado por um filósofo, o professor Luiz Henrique Lopes dos Santos, e com um meçou a ser distribuído para os pesquisadores da Fundação. Desde então a revista virou um instrumento importanConselho Editorial formado por cientistas que acompanham de perto a ação da instituição. Essa condição de prote para o sistema científico do estado. Criou-se uma sinerjeto, ainda que especial, garante que a revista consiga cumgia entre o que acontecia nas universidades, institutos - e até em empresas que apostavam na inovação - e a difusão prir a dupla finalidade de ser ao mesmo tempo um veículo sistemática dessas ações. A comunidade de pesquisadores institucional e um divulgador da ciência. O marketing sucomeçou a ter uma melhor compreensão da importância gerido por Octavio Frias de Oliveira tinha toda a razão de de divulgar os projetos, de mostrar como é gasto o dinheiser. Hoje ele é muito eficiente, não para vender ilusões, mas ro do seu imposto. Em março de 2002, outro salto: a publicomo instrumento de informação para o contribuinte e o pesquisador. cação abriu-se em termos editoriais para a produção científica nacional, ganhou as bancas das principais cidades brasileiras e passou a receber anúncios e assinantes, uma forma de compensar, em parte, o investimento na revista. JOSé FERNANDO PEREZ é diretor científico da FAPESP PESOUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 61


ARTIGO MARCELO LEITE

Promessas e problemas A divulgação científica atravessa um período desais dedicadas ao tema. O canto da sereia sugere L\ ficado no Brasil, prenhe de promessas e de como regra tornar importante o que não é mais ./. \. problemas. Nunca a ciência natural necesque interessante, exatamente o oposto do que mansitou tanto de uma cobertura jornalística em sentida a boa prática. Notícia auspiciosa, a esse respeito, do pleno, informativa e crítica, capaz de aparelhar é que permanecem na praça ao menos duas publiminimamente cidadãos interessados para tomar cações, Scientific American Brasil e Pesquisa FAparte em debates nacionais da importância das insPESP, que insistem no desafio de tornar compreenpeções da Agência Internacional de Energia Atôsível e atraente o mundo das ciências naturais sem mica, para ficar num exemplo recente. E também recorrer ao expediente fácil de borrar suas fronteinunca foram tão pesados os efeitos dos constrangiras com as do que se poderia chamar de paraciênmentos econômicos sobre a prática jornalística, cia. Entre as duas publicações, é imperativo ainda com reflexos imediatos sobre aqueles setores ainda destacar a marcha consistente de Pesquisa FAPESP percebidos como menos prioritários, como as edino sentido de libertar-se dos horizontes paulistas e torias de ciência. ganhar representatividade em A situação financeira preotermos de pesquisa nacional, cupante e os cortes seguidos nicho que em tempos menos de recursos trazem consigo o bicudos foi pioneiramente risco de um retrocesso no que ocupado pela revista Ciência É preciso criar toca ao prestígio e ao reconheHoje, da Sociedade Brasileira uma rede de apoio cimento do jornalismo cienpara o Progresso da Ciência social para a tífico dentro das próprias (SBPC). pesquisa como redações, que haviam sido Não serão veículos impresum valor cultural conquistados a duras penas e sos como esses, porém, aquecom muito investimento na les capazes de sanar a princiformação de um grupo pepal deficiência da divulgação queno, porém consistente, de científica no Brasil: falta de caprofissionais. Parte desse capilaridade. Como é da naturebedal se encontra agora sob ameaça, com o fantasza dos jornais diários, suas reportagens de ciência ma do desemprego e o aviltamento geral das connão conseguem mais do que gerar lampejos modições de trabalho. mentâneos na tela do radar da opinião pública, enEmbora a crise da indústria de comunicação sequanto as revistas, especializadas ou não, são atraíja sistêmica, nas revistas semanais seus efeitos taldas pelo brilho fugidio do mercado ou então vêem vez não tenham sido sentidos tão fortemente na seus esforços consistentes esvaírem-se em tiragens área de divulgação científica. Mesmo que postos de irrisórias. O que faz falta no Brasil é um grande trabalho tenham sido cortados aí, o fato é que nos portal de ciência para o público, como o EurekAúltimos anos se acentuou a tendência de dedicar lert dos Estados Unidos (www.eurekalert.org), que mais e mais espaço a temas de saúde. Além de ser sirva tanto para leigos em busca de informação um provável sintoma de deterioração da qualidade quanto para professores secundários carentes de de vida, sob as novas exigências do desinvestimenatualização e jornalistas sedentos de pautas para to social e da hiperperformance individual no trareportagem. Enquanto não se criar uma rede de balho, essa tendência acaba por traduzir-se no que apoio social para a pesquisa científica como um muitos consideram o avesso do jornalismo científivalor cultural, e não apenas como fator de inovaco: um tipo de aconselhamento descartável, ainda ção e de competitividade econômica, o jornalismo que envernizado por pinceladas de ciência - notícientífico - e talvez o próprio empreendimento de cias que se podem usar (e deitar fora) como lenços pesquisa - continuará abandonado aos fluxos e rede papel. fluxos da conjuntura. Algo de similar parece laborar contra o jornalismo científico de estirpe - aquele que não recua diante da aparência de impenetrabilidade quando MARCELO LEITE é jornalista, editor de Ciência da Folha a relevância científica se impõe - nas revistas mende S.Paulo e autor de O DNA (Publifolha). 62 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100


Marche aux puces NELSON DE OLIVEIRA

G

CC^ 1 ogito, ergo sum", Alberto leu pela enésima vez. Esculpido no cabo de vários martelos de osso: "Cogito, ergo sum". No cabo de centenas de martelos fabricados pelo Homo habi' lis há 2 milhões de anos. O Mercado das Pulgas é pródigo em prodígios desse tipo. Quantas cabaças e cabeças esses martelos teriam fraturado, as pulgas e os percevejos encharcados de cerveja não quiseram revelar. Alberto, o pensamento metido nas nuvens, meditava sobre esses ossos assassinos quando, opa. Puxão meio amarrotado de pigmeu marroquino na manga amarelo-manga do brasileiro: - Meciê... Qué compra um balão, qué? - quis saber o pai de família, refém das treze bexiguinhas coloridas que por bem ou por mal teriam que ser transformadas no peixe e no pão desse dia odioso. Não. Alberto não queria. Já estava farto dos balões. Paris. Apesar do outono, Paris. Apesar dos pesares do princípio do século e do vento meio tupiniquim meio francês, Paris Paris Paris sempre Paris. Foi aí que Alberto e André se conheceram. Ódio à primeira vista. Antipatia no Mercado das Pulgas. Disputa pela miniatura de Paris, maravilha encontrada por acaso entre mancebos de madrepérola e comadres de alumínio. Por puro acaso descoberta entre camarões de Bengala e bengalas de Camarões, pequineses de Havana e havanas de Pequim. "É minha." "Não, é minha." Briga braba pela misteriosa miniatura da Cidade Luz, perdida no movimento de minúsculas engrenagens, roldanas e alavancas. Alberto, olhos baços - "Eu pago xis!" -, abriu a carteira de couro, que recebeu o pontapé certeiro de André. - Quem o senhor pensa que é? Sabe quem eu sou?! - O senhor é quem pensa que é? Quem sabe eu sou! Alberto, a magreza exata da certeza geométrica, do cálculo renal multiplicado pelo vetorial. O bigodinho, integral tripla forjada na bigorna. O quadril, raiz quadrada sob o quadriculado do casaco. As sobrancelhas, seno e cosseno coçando-se mutuamente. Não restava dúvida, Alberto estava furioso. Alberto, coberto de razão, espumava algarismos, dardejava perdigotos racionais e irracionais na testa do adversário. Cegado pelo dialético dilema da ação que exigia a devida reação, não reagia. Pois é, a devida reação... Que reação? Sei lá, qualquer reação, reaja, homem! De que jeito? Revida, dá o troco, ora! Tempo, preciso ganhar tempo, minha carteira, cadê? Ali. Onde? Caída entre as tralhas. Abaixou para pegá-la, espanou a poeira - eureca, capoeira! - e aplicou na cabeça de André o seu famoso rabo-de-arraia. - Puta que o pariu! - Tomou, papudo? André, a consistência esférica e tranqüila dos pesadelos a céu aberto, dos campos magnéticos do amor louco. O cabelo, máscara moçambicana repartida em quatro. A barriga, balão atmosférico tirado das comédias de Mack Sennett. As orelhas, pratos em branco-e-preto perfeitos para o acorde final da Nona sinfonia. O doutor André abanava-se, bufando bananas e rabanadas. Abanava-se, pronto para operar ao deus-dará. Os punhos fechados, prontos para as futuras fraturas no queixo do engenhoso engenheiro, Alberto. - Trouxe-mouxe! - Txucarramãe! No famigerado Mercado das Pulgas, trecos e cacarecos por todos os lados. E daí? Alberto e André só tinham olhos ouvidos nariz boca e mãos para a pequena Paris. Nela tudo era réplica. Cada passo dado na grande Paris repetia-se pé ante pé na pequena. Ah, pequenina Paris! Apesar das suas minúsculas mulheres de seda, dos seus reduzidos anarquistas de marfim, dos balõezinhos do sisudo Albertinho e dos poeminhas do jovial Andrezinho, Paris Paris Paris sempre Paris. Porque nessa Paris de dimensões mínimas outras dimensões se espalhavam. Para além da largura, da altura e da profundidade, o tempo. Não, meus amigos. Não o tempo presente. O tempo futuro. 64 • JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100


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- Physique du role! - Châteauneuf-du-Pape! Alberto apoiou as mãos na borda do tabuleiro, aproximou da colina de Montmartre os olhos leves de futuro aeromodelista, quase tocou o queixo na basílica do Sacré-Coeur. Do outro lado a sombra de André provocou terror e êxtase nos vasos sangüíneos da Torre Eiffel, nas articulações cartilaginosas do Teatro dos Champs-Élysées. Nesse minuto, no porvir miúdo da miniatura, o brasileiro e o francês viram a libélula alçando vôo no Campo de Bagatelle. "Zeus do céu, o homem voa?!", murmurou Alberto sacando a lupa do bolso do casaco. "Voa Zeus, o homem do céu?!", boquiabriu-se André enfiando o seu olho esquerdo no olho direito alheio, que já olhava através da lupa. A libélula mecânica, mesmo voando baixo, transferia para a História esse pequeno outono em Bagatelle. Alberto e André, a atenção estatelada nessa tela-adrenalina, nessa bagatela impressionista. Aqui ali acolá o povão uivava, chapéus ao vento: "Voilà, o homem voa!" Uivava, pedia bis. Apesar do outono, bis. Apesar do biplano tridimensional movido pelo motor Levavasseur-Antoinette de 50 HP, bis bis bis sempre bis. 14-Bis em Paris. - Causa mortis! - Sine qua non! Cavalgando os 50 cavalos alados, outro Alberto, o menor Alberto possível nesse princípio aerodinâmico de século. O Alberto da pequena Paris voava 20, 40, 60 trêmulos e minúsculos metros de distância. Voava rente ao chão, rente ao mesmo chão em que o nervoso outono naufragava. Voava para as décadas que ainda iriam chegar. Voava com a vida, voava para as batalhas aéreas das catalépticas grandes guerras, desaparecia sob a sombra meteorológica do Boeing 747 que eclipsava o sol de norte a sul, voava para o lado oculto da lua. Para o lado oculto da lua que era a íris do olho de André, do olho ampliado pela lente da lupa. No maiúsculo Mercado das Pulgas a miniatura de Paris ampliava o horizonte perdido, esticava a visada vertical de Alberto e André. Desprendendo-se do jardim lateral, o aroma das flores no cio - delirium tremens, longplays, sashimis - provocava overdose no ar viciado. Em consideração aos pífaros da epifania, a dupla fingiu fazer as pazes. - Vamos? - Você primeiro. A dona da miniatura de Paris, mulher do pigmeu que vendia bexigas, estivera esse tempo todo de olho nos dois possíveis compradores. Estivera de olho, ora se estivera! Literalmente de olho - afinal, tendo perdido o esquerdo no campeonato anual de dardos, sobrara só o outro, o único. Estivera de olho, a dona da miniatura de Paris, nos dois falsos ases da paz, que, a cabeça cheia de bagagem e os respectivos passaportes prontos para voar, embarcaram no perfume das alucinadas flores, rumo ao resto do mundo. Embarcaram, Alberto e André, inimigos íntimos: piloto reumático e co-piloto automático em tudo diferentes. É claro que por precaução Alberto levou escondido o seu pré-histórico "Cogito, ergo sum". Contra possíveis surtos histéricos do companheiro, o precioso martelo de osso.

NELSON DE OLIVEIRA

é autor de A maldição do macho e Verdades provisórias, entre outros. PESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 65


Coçar-se RUY CASTRO

Ainda está para ser escrita a história definitiva dessa importante atividade humana

Um ditado do tempo do Onça dizia que, quando não tem nada para fazer, a pessoa procura sarna para se cocar. Isso podia ser fácil no tempo do capitão-geral Luiz Vahia Monteiro, o Onça, que governou o Rio de 1725 a 1732, quando a sarna grassava na cidade e ninguém precisava estar desocupado para se cocar. Ao contrário, havia casos em que a vontade de se cocar atingia o cidadão nas situações mais melindrosas ou justamente quando ele estava ocupado. Como na vez em que o próprio Onça, ao convocar os jesuítas ao palácio para pô-los na linha por algum motivo (vivia fazendo isto), começou a sentir pruridos estranhos por debaixo do gibão. Era uma vontade infernal de se cocar. A comichão aumentou à medida que ele tentava enquadrar os padres da poderosa Ordem e, para não ferir o decoro, não podia meter a mão por dentro da farda para se aliviar. Nem adiantaria porque, sob as calças, ainda havia as ceroulas, formando uma barreira intransponível entre suas unhas e sua pele. Onça acabou dispensando os jesuítas antes da hora e, assim que a última batina desapareceu no corredor, livrou-se do gibão, arriou as calças, desabotoou as ceroulas e só então pôde dedicar-se à sarna com a ênfase que ela merecia. E não teve dúvida de que os ácaros lhe foram passados de propósito por um dos jesuítas, sabendo-se que abundavam nos conventos e que os padres prometiam aprontar-lhe alguma para ele parar de persegui-los. Outro ditado, este do tempo do rei - D. João VI -, dizia que comer e cocar era só começar. A data é importante porque, injustamente, a posteridade reduziu D. João a um monarca que, sem a menor compostura, tirava frangos assados dos bolsos da casaca de abas largas e os devorava na rua ou onde quer que estivesse. Primeiro, não é verdade que ele fosse esse lambão. Segundo, isto só contribuiu para minimizar suas magníficas realizações no Rio, como construir teatros, bibliotecas, museus, arquivos e escolas, patrocinar músicos brasileiros, trazer artistas franceses e cientistas austríacos e fundar toda espécie de serviço público, para não falar da maior de todas, que foi abrir o Brasil ao mercado internacional. Mas é verdade - não dá para negar - que D. João gostava de se cocar. Ou, pelo menos, era levado a isso pelos fungos que insistiam em se imiscuir sob as calçolas reais. O problema não era só dele, mas de toda a aristocracia de 1808, e não apenas em terras tropicais. Em pleno navio que as trazia ao Rio, por exemplo, as mulheres da Corte portuguesa foram atacadas por um tremendo surto de piolhos, sem dúvida transmitidos pelos marinheiros. O fato é que, antes de arrancar o couro cabeludo de tanto cocar, as madames tiveram de raspar a cabeça em massa no convés, e foi assim que desembarcaram aqui, carequinhas sob as perucas. (É bom notar que o desaire aconteceu em alto-mar, fora das águas brasileiras - para evitar mais um mal-entendido histórico que manche o bom nome do Brasil.) D. João foi poupado pelos piolhos do navio, mas, pouco depois de chegar, foi mordido por um carrapato carioca, o que lhe provocou coceiras a ponto de atrasar por alguns dias a fundação da Casa da Moeda. Em compensação, foi esse providencial carrapato o responsável por outra das grandes contribuições de D. João à cultura brasileira: o banho de mar. Para se livrar da coceira, ele adentrou o mar na praia do Caju, a bordo de uma banheira de madeira, cheia de furos, e, de roupa e tudo, deixou-se banhar generosamente pelas ondas, soltando gemidos de prazer. O iodo e o sal fizeram a mágica, e D. João, mitigado de seu desconforto, pôde concentrar-se na tarefa de governar o novo centro do Império. 76 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100


Ainda está para se escrever uma história definitiva do hábito (ou necessidade) de o ser humano se cocar. E, no entanto, esta é uma atividade que o homem já sofisticou o quanto pôde. Uma prova disso é a invenção do coça-costas - a melhor forma de se chegar a certas partes do corpo que o braço não alcança. Pois o inventor desse instrumento tão humilde e indispensável permanece anônimo: quem terá sido? Já em seu filme Ombro, armas, de 1918, Charles Chaplin mostra Carlitos chegando à sua casamata no front francês da Primeira Guerra e, à falta de coça-costas, instala um ralador de queijo na parede para cumprir aquela importante função. E há quem não se contente em cocar a si próprio, mas ainda exige o concurso alheio, mesmo que em forma de cafuné. A querida estrela Leila Diniz era uma. É dela a imortal frase "Cafuné, eu aceito até de macaco". Não que faltasse gente a fim de coçála - porque, a pedidos, eu mesmo iria para o sacrifício. Um dos problemas de se deixar cocar por outra pessoa, inclusive macacos, é que nunca sabemos o que nos espera. Cócegas fora do lugar e hora, à traição ou em certos pontos do corpo (cada um tem o seu) podem provocar ataques descontrolados de riso, nem sempre bem aceitos em sociedade. Ao mesmo tempo, ninguém consegue rir ao fazer cócegas em si mesmo - já reparou? Há cerca de três anos, os cientistas do Instituto de Neurologia de Londres, comandados pelo professor Chris Frith, também chegaram a essa surpreendente constatação. Daí resolveram investigar por quê. Uma turma de 16 voluntários monitorados por eles dedicou-se a se cocar no laboratório durante cinco horas - cada qual cocando a si próprio - e a única coisa que isso provocou em alguns foi uma irritação nas axilas. Nem uma risota, nem um achaque, muito menos uma gargalhada. Numa segunda etapa, os voluntários foram ligados a um robô programado para fazer-lhes cócegas diferentes das anunciadas. Exemplo: o voluntário era informado de que o robô iria coçar-lhe as costelas. Mas o robô, sem aviso prévio, ia-lhe traiçoeiramente ao umbigo. Isso provocava um riso histérico no voluntário, mesmo que, até então, ele fosse insensível ao próprio umbigo. A experiência fazia rir também os outros voluntários que assistiam à cena, o que contagiava os cientistas, os pesquisadores de outras especialidades, os que passavam à toa pelo corredor e, de repente, o laboratório inteiro era uma pândega. Recompostos e de volta à seriedade, os neurocientistas ingleses concluíram que ninguém consegue rir ao fazer cócegas em si mesmo porque algo dentro do cérebro prediz o que vai acontecer. Já uma sensação tátil de origem inesperada faz com que a pele emita um sinal de perigo para o cérebro. Quando se dá sem querer uma topada com a canela na quina da mesinha, esse sinal faz o cérebro reconhecer a dor e o sujeito geme. No caso das cócegas, que são inofensivas, o sinal faz o cérebro achar graça - daí o riso. Será? Respeito a opinião dos cientistas, mas acredito que deva haver exceções. Uma pessoa que dá uma topada com a canela na quina da mesinha e sai pulando num pé só, fazendo "Cain! Cain!", também é capaz de provocar o riso. Pelo menos na outra pessoa.

é escritor, autor de, entre outros, Amestrando orgasmos • Bípedes, quadrúpedes e outras fixações animais (Objetiva, 2004). RUY CASTRO

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1 CIÊNCIA

LABORATóRIO

BRASIL

O Cerrado, seco e belo

Erva-galega: crescimento só em áreas abertas, próximo a rios e córregos

A engenheira florestal Giselda Durigan começou há 20 anos a fotografar as plantas do Cerrado paulista com o propósito de facilitar o reconhecimento das espécies. Com o tempo, seu trabalho se somou ao de outros dois pesquisadores do Instituto Florestal, João Batista Baitello e Geraldo Franco, e ao de Marinez Siqueira, do Centro de Referência em Informação Ambiental (Cria), e resultou em livro que abre o olhar para as formas e sutilezas de uma vegetação vista normalmente com desdém, o Plantas do Cerrado paulista - Imagens de uma paisagem ameaçada (Páginas & Letras Editora, 476 páginas, R$ 150,00). Publicada com apoio da Agência de Cooperação Internacional do Japão (Jipa), a obra é provavelmente o

maior levantamento já realizado do Cerrado paulista, com descrições de 420 espécies, acompanhadas pelas imagens de folhas, frutos e flores. "Só quando se sentem próximas das plantas as pessoas começam a pensar em preservação", observa Giselda. Sem deixar a ciência ficar atrás da estética, os autores apresentam como espécies distintas o pau-santo (Kielmeyera coriacea), uma árvore de tronco tortuoso e flores grandes com pétalas brancas, antes confundida com a malva-do-campo (Kielmeyera variabilis), subarbusto de até 1 metro de altura e flores levemente diferentes. Além disso, reconhecem o cedro-do-brejo {Cedrela odorata variedade xerogeitorí), outra árvore de casca espessa, encontrada exclu-

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sivamente em terrenos úmidos, como um grupo distinto do cedro {Cedrela odorata), típico de solos secos. Uma das raridades do livro é o feijão-de-campo (Clitoria densiflora), com até 50 centímetros e flores lilases ou azuladas, nunca antes coletado em São Paulo. "Sua identificação", conta Giselda, "foi quase impossível porque a amostra que batizou a espécie está guardada na Europa". Os pesquisadores alertam para a necessidade de preservação desse ecossistema, o segundo maior do Brasil, do qual, em São Paulo, restam apenas 7% da área original: a maioria das espécies de Cerrado só sobrevive em seu próprio hábitat, já que ainda não se sabe como cultivar em viveiros grande parte delas. •

■ Cuidado com as ostras frescas Saborear uma ostra à beira das praias de areia branca e o mar verde-esmeralda do Ceará pode não ser assim tão bom: as ostras (Crassostrea rhizophorae) que crescem no estuário do rio Cocô, um dos principais criadouros naturais do estado, estão contaminadas. Os moluscos coletados nessa região e vendidos ainda frescos para serem consumidos em geral crus apresentam quantidades elevadas de duas bactérias encontradas em fezes, a Escherichia coli e a Enterococcus faecalis. A equipe da bióloga Regine Vieira, da Universidade Federal do Ceará, analisou 300 ostras e constatou que a taxa de E. coli variou de 2 a 920 unidades formadoras de colônias por grama de ostra, enquanto a de E. faecalis ficou entre 3 e 100, segundo artigo a ser publicado no Brazilian Journal of Microbiology. Embora a legislação sanitária brasileira não estabeleça limites de contaminação por E. coli para moluscos a serem consumidos crus, a comparação com os critérios europeus indica que 40% dessas ostras não deveriam ser degustadas frescas. Antes do consumo, teriam de passar por um banho prolongado em água limpa para eliminar as bactérias. "A presença de E. coli nas ostras é um indício de que as águas da região podem conter bactérias associadas a doenças", diz Regine. Ela sugere que a Vigilância Sanitária adote a quantificação dessas bactérias para definir o padrão da qualidade dos moluscos. •


■ Estratégias para deter a raiva Das 150 espécies de morcegos encontradas no Brasil, três se alimentam de sangue e só uma, a Desmoáus rotundus, ataca mamíferos como os seres humanos. O desmatamento faz o D. rotundus ou morcego-vampiro buscar sangue nos povoados e nas fazendas de criações de gado, porcos e ovelhas próximos a florestas. Para evitar a transmissão da raiva, doença causada por um vírus que afeta o sistema nervoso, o Ministério da Agricultura recomenda o uso de uma pasta à base de warfarina, substância que impede a coagulação do sangue. Aplicada no dorso de alguns poucos morcegos, a warfarina pode eliminar uma colônia inteira de até 300 indivíduos, por causar hemorragia, já que os animais espalham o veneno ao se lamberem uns aos outros. Mas essa estratégia é ineficaz por duas razões, segundo Friederike Mayen, do Centro de Cooperação Internacional em Pesquisas Agronômicas para o Desenvolvimento (Cirad, na sigla em francês). Em um estudo publicado no Journal of Veterinary Medicine Series B, Mayen argumenta que, além de não reduzir de modo contínuo os casos de raiva entre as criações, o uso da pasta gera um problema ambiental grave: não são apenas os morcegos-vampiros que morrem, algo por si só desnecessário para evitar a transmissão da raiva. Como as colônias podem reunir também espécies que comem frutos e insetos, a warfarina pode atingir essas outras, essenciais à disseminação de plantas e ao controle de insetos noturnos. Uma solução mais eficaz? Estimular a construção de casas sem

ficados como vespertinos, que dormem e acordam tarde, correspondentes a quase um terço do total analisado, apresentam uma propensão maior a cochilar ou adormecer durante o dia em comparação com os matutinos, que deitam e acordam cedo. O resultado preocupa, uma vez que a sonolência diurna está associada à ocorrência de acidentes de trabalho e queda na produtividade. • Inocentes em perigo: nem todo morcego transmite o vírus

frestas, o uso de repelentes de morcegos e a vacinação das criações contra a raiva. No país há 191 milhões de cabeças de gado, mas apenas um quarto recebe vacina anti-rábica a cada ano. Segundo Guilherme Marques, do Programa Nacional de Controle da Raiva dos Herbívoros do Ministério da Agricultura, o uso da pasta deve, em princípio, atingir apenas o Desmodus rotundus, que vive em colônias coesas, formadas por uma única espécie. •

■ As conseqüências do sono atrasado Antes de passar por uma cirurgia, pergunte ao seu médico qual o horário em que ele costuma dormir. Isso mesmo. Se ele responder que

em geral se deita tarde, não insista em fazer a operação pela manhã, um dos horários preferidos pelos cirurgiões - a menos que não se importe com o risco de ele cochilar durante a operação. Há razão para se precaver. Interessada na relação entre o ritmo biológico e a sonolência durante o dia, a psiquiatra Maria Paz Hidalgo, do Hospital Presidente Vargas, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, investigou o padrão de sono e vigília de 310 estudantes de medicina, que normalmente dormem menos que o necessário, assim como os médicos já formados. Em um artigo publicado no Psychological Reports, Maria Paz relata que - independentemente do total de horas dormidas - os alunos classi-

Risco extra: sonolência, apesar das horas dormidas

■ Doses além da média nacional Pode ser uma conseqüência do clima frio. Em Pelotas, no Rio Grande do Sul, as pessoas estão tomando mais vinho e cerveja do que os organismos internacionais de saúde consideram saudável, revela um estudo feito com 1.968 pessoas com idade entre 20 e 69 anos. Por uma razão ainda desconhecida, o número de adultos que consomem bebidas alcoólicas em excesso (14,3%) é bem superior à média nacional, estimada em 9,2%. A proporção de homens que ingerem álcool em excesso - mais de 30 gramas por dia, o equivalente a meia garrafa de vinho ou pouco mais que uma garrafa grande de cerveja - é sete vezes maior que a de mulheres. Um em cada três homens bebe mais do que deveria, enquanto o mesmo ocorre com uma em cada 30 mulheres. O consumo é maior entre os negros, os indivíduos que freqüentaram a escola por menos de quatro anos e os homens mais velhos, em especial, aqueles com mais de 60 anos, de acordo com o levantamento coordenado por Juvenal Dias da Costa, da Universidade Federal de Pelotas, e atual secretário da Saúde do município. •

PESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 79


LABORATóRIO

MUNDO

No berço da aurora boreal Pela primeira vez, imagens de satélite mostram detalhes das finas camadas da parte externa do campo magnético terrestre, a magnetopausa, capazes de influenciar o comportamento das partículas que circulam nessa região do espaço. Pesquisadores do Instituto Sueco de Física Rspacial de Uppsala examinarám as propriedades de uma

■ Botox, desta vez para homens O Botox, a vedete dos consultórios dermatológicos, ganhou uma aplicação insuspeita, ao menos aos olhos das mulheres preocupadas em disfarçar as rugas. Pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de Pittsburgh (EUA) e do Hospital Memorial Chang Gung, em Taiwan, descobriram que a toxina botulínica é uma promissora alternativa de tratamento para milhões de homens que sofrem com o aumento da próstata, a chamada hiperplasia benigna. O aumento da próstata atinge mais da metade dos homens com mais de 60 anos e 80% dos acima de 80,

tênue camada descoberta nos limites do campo magnético de nosso planeta, em um estudo publicado na revista Geophysical Research Letters. Essa camada tem aproximadamente 20 quilômetros de largura e possui correntes e fortes campos elétricos que influenciam a passagem de partículas de vento solar - o fluxo de pró-

levando à necessidade de urinar com freqüência, a infecções do aparelho urinário e mesmo danos à bexiga e aos rins. A maioria dos tratamentos traz o fantasma da impotência como um dos possíveis efeitos colaterais. Com o botox, esses problemas não apareceram, ao menos por enquanto. Em testes com 11 pacientes, com idades entre 50 e 82 anos e portadores de hiperplasia benigna da próstata, injeções de toxina botulínica aplicadas na própria glândula se mostraram eficazes entre três e sete dias após a aplicação. Nenhum dos homens submetidos ao estudo havia respondido bem ao tratamento convencional (medicamentos ou cirurgia). Após

80 • JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100

tons e elétrons emitidos pelo Sol - e energia. É quando o vento solar entra em contato com os campos magnéticos terrestres, localizados nos pólos, que se forma o espetáculo multicolorido das auroras boreal e austral, como o mostrado na foto acima. Anteriormente, naves

mada, mas não conseguiram determinar quaisquer propriedades devido à escassez de informações. A magnetopausa passou pela formação dos quatro satélites Cluster em 2002, fornecendo aos pesquisadores dados para inferir mudanças na corrente do campo elétrico e nos processos microfísicos que coman-

conta da existência dessa ca-

receberem o botox, os pacientes apresentaram uma redução de 62,3% dos sintomas e melhora de 56,5% na qualidade de vida. Houve ainda aumento do fluxo urinário e redução do tamanho da próstata, sem aparecem efeitos colaterais como incontinência urinaria ou impotência. •

■ Um trem de poluição Uma parte da poluição do Brasil vem de longe, da Ásia. Em certas épocas do ano, nuvens carregadas de poluentes se movem rapidamente sobre a África, como impulsionadas por um trem expresso, atravessam o Atlântico e aportam na atmosfera brasileira. Bob

Chatfield e Anne Thompson, da Nasa, a agência espacial norte-americana, chegaram a essa conclusão usando dados de dois satélites e sensores colocados em balões que detectam quando a poluição próxima da superfície pega esse trem expresso rumo ao Ocidente, de janeiro a abril. No inverno, período de alta concentração de ozônio no Atlântico Sul, a poluição no oceano Indico segue uma rota similar para o oeste, impulsionada por ventos das camadas superiores. Os pesquisadores viram que essa poluição algumas vezes se acumula sobre o Atlântico Sul. "Sempre tivemos dificuldade em explicar todo aquele ozônio", admitiu Thompson. •


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V Além do acaso: as espirais formadas a partir do ponto central seguem um padrão matemático

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■ A matemática das flores Olhe para uma pinha, um cacto ou um girassol e repare nas intrincadas espirais que eles apresentam. Os desenhos que parecem um prodigioso acaso da natureza são, para os matemáticos, o resultado de forças mecânicas que agem no crescimento das plantas. Já se sabia que as espirais expressam uma progressão numérica conhecida como seqüência de Fibonacci, em que cada número é a soma dos dois precedentes: 1, 1, 2, 3, 5, 8,13... Agora, os matemáticos Patrick Shipman e Alan Newell, da Universidade do Arizona, nos Estados Unidos, criaram um modelo matemático para explicar esse fenômeno {Physical Review Letters, 23 de abril). A cabeça arredondada dos cactos, por exemplo, é coberta de pequenas protuberâncias, cada uma com um espinho. Começando pelo centro e conectando os pontos de cada espinho até seu vizinho, chega-se a uma espiral com 2, 5 ou 8 galhos - a seqüência de Fibonacci. Cada nova folha emerge de um ponto que consiste de uma capa que co-

bre um núcleo. À medida que a planta cresce, a capa se desenvolve mais rápido que o núcleo, e assim as espirais se formam para acomodar a superfície extra. Os espinhos ficam na intersecção das espirais. Formam-se três tipos de espirais, que dividem a superfície da planta em triângulos de lados curvos, com propriedades especiais. Alguns biólogos comentaram que esse modelo pode ser útil nas pesquisas sobre a formação de padrões nos organismos vivos, mais do que apenas produzir desenhos elegantes. •

começam a desaparecer, duas forças entram em jogo na comunidade, tornando-a vulnerável às condições ambientais. Uma dessas forças se dá quando as espécies se extinguem em reação a determinado fator, como o aquecimento global ou a chuva ácida. As mais suscetíveis desaparecem primeiro, as mais bem adaptadas sobrevivem e toda a comunidade se forta-

■ 0 impacto da perda de espécies Preservar o máximo de espécies possível é a melhor forma de garantir o equilíbrio e a sobrevivência de toda uma comunidade, já que uma espécie hoje aparentemente insignificante pode se tornar importante mais tarde, numa situação em que esteja livre de predadores, de acordo com uma pesquisa da Universidade de Wisconsin-Madison, dos Estados Unidos (Nature, 13 de maio). Anthony Ives, co-autor do estudo, descobriu que, quando espécies

Mais extinção, mais erosão

lece. O problema é que a resistência da comunidade se altera ao longo do tempo em função de mudanças nas interações da cadeia alimentar resultantes da extinção de espécies individuais. Uma vez que todos pertencem a uma só cadeia alimentar, como predadores ou presas, a morte de um indivíduo compromete a sobrevivência dos demais. Assim, a extinção contínua de organismos de uma comunidade debilita a capacidade de aumentar sua população e de enfrentar a degradação ambiental. •

■ Coração assassino As doenças cardiovasculares já são as mais sérias ameaças à saúde global nos países em desenvolvimento, incluindo o Brasil. Um estudo da Universidade de Columbia (EUA) mostrou que a taxa de mortalidade na população de 35 a 65 anos na índia, África do Sul, Brasil, China e república do Tatarstão é duas vezes e meia maior que a registrada nos Estados Unidos. Os motivos, segundo Stephen Leeder, co-autor desse trabalho, são a falta de tratamento e de programas que incentivem mudanças no estilo devida, como campanhas em favor de dieta e de exercícios. Estima-se que se percam pelo menos 21 milhões de vidas anualmente no mundo devido a problemas cardiovasculares. Na África do Sul, que tem o flagelo da Aids como principal causa de mortalidade, as doenças cardiovasculares ocupam o terceiro lugar entre as causas de morte nas mulheres e o sexto entre os homens. Os fatores de risco são conhecidos: pressão alta, tabagismo, dieta rica em gorduras e vida sedentária. •

PESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 81


CIÊNCIA

EPIDEMIOLOGIA

À frente , dos fm

desafios tropicais

O Brasil mantém pioneirismo na pesquisa e na prevenção de doenças típicas de países pobres

FABRíCIO MARQUES

Se uma máquina do tempo trouxesse Oswaldo Cruz ao Brasil de 2004, o grande sanitarista brasileiro, nessa viagem hipotética, poderia concluir que foram tímidos os avanços na pesquisa das doenças tropicais nos últimos cem anos. O país ainda padece de endemias como a malária, não conseguiu livrar-se da hanseníase e da leishmaniose, assistiu impotente à expansão da tuberculose e do cólera e é freqüentemente acossado por surtos de dengue que, por compartilhar o mosquito transmissor com a febre amarela, impõe o risco de trazer de volta o flagelo que Oswaldo Cruz tanto se empenhou para erradicar no começo do século 20. A verdade, porém, é que, nas últimas décadas, os pesquisadores brasileiros não pararam de trazer contribuições originais na compreensão e na busca de tratamento de doenças tropicais, que se tornou uma das áreas mais relevantes da pesquisa científica em saúde no país. E, em vários momentos, os pesquisadores trabalharam praticamente sozinhos, pois a maioria das indústrias farmacêuticas jamais se dispôs a investigar drogas de interesse exclusivo de países pobres. 82 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100

0 médico Rui Durlacher atende morador de Candeias, em Rondônia: visita a pelo menos seis casas em um dia para acompanhar os mais diversos problemas de saúde


PESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 83


As ferramentas para combater a febre amarela são um exemplo dessa contribuição original. Para evitar a eclosão da moléstia em áreas de grande incidência de dengue - as duas doenças compartilham o mesmo mosquito transmissor, o Aedes aegypti -, o epidemiologista Eduardo Massad, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), trabalha com modelos matemáticos para estabelecer zonas de bloqueio à entrada da doença silvestre, na fronteira de São Paulo com Mato Grosso do Sul. A saída habitual, na iminência de um surto de febre amarela, seria vacinar toda a população. Mas isso implica riscos. "Não se trata de uma vacina inocente", diz Massad. A cada milhão de doses, ocorre uma morte. O modelo matemático ajuda a definir as áreas em que a vacinação é realmente indispensável - pois a incidência de dengue e a infestação de mosquitos são muito elevadas — e onde isso não é necessário. E possível também fazer projeções sobre o contingente de pessoas que devem ser vacinadas para criar uma margem segura no bloqueio à doença - que não necessariamente é de 100% dos indivíduos da área. Esse tipo de pesquisa, que se baseia em boa medida no uso da matemática e dos computadores, ainda é visto com reservas pelos especialistas em medicina tropical da velha guarda, aqueles que acompanham pessoas doentes e conhecem de cor seus sintomas. "Fui a um congresso recentemente e vi que o entusiasmo com a pesquisa que fazemos parte mais dos jovens médicos", diz Massad. Mas ninguém duvida de que essa área tem uma enorme contribuição a dar à prevenção das doenças tropicais. O grupo de Eduardo Massad prepara-se para realizar, nos próximos quatro anos, o maior esforço já feito no país para diagnosticar o espectro das arboviroses, doenças virais transmitidas por mosquitos e carrapatos. Em quatro regiões do Estado de São Paulo - a capital, o litoral norte, o litoral sul e em São José do Rio Preto - pesquisadores vão procurar os arbovírus em pessoas, animais domésticos, animais silvestres e mosquitos. Um dos objetivos do trabalho é analisar a probabilidade de chegada 84 ■ JUNHO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 100

ao Brasil do vírus da Febre do Oeste do Nilo, que causa encefalite. Aves que transportam o vírus e os mosquitos transmissores do gênero Culex existem de sobra até mesmo na capital paulista. O trabalho, que envolverá pesquisadores de várias áreas, vai propor estratégias de prevenção que seriam inimagináveis nos tempos heróicos de Oswaldo Cruz. As ferramentas dos pesquisadores estão mudando. A genômica tem grande vocação para ampliar o conhecimento a respeito de micróbios e seus vetores. No ano passado, pesquisadores do projeto Genoma Schistosoma mansoni, financiado pela FAPESP no âmbito da rede ONSA (consórcio virtual de laboratórios genômicos do Estado de São Paulo, na sigla em inglês), concluíram o seqüenciamento de 92% dos estimados 14 mil genes do parasita causador da esquistossomose. A moléstia, contraída por meio do contato com água contaminada com larvas do verme, também é chamada de barriga-d'água, devido ao inchaço que provoca no abdômen. Se não for tratada, resulta num quadro crônico, com aumento do tamanho do fígado, anemia, varizes no esôfago e vômitos de sangue. Graças à melhoria do saneamento básico e ao advento de dois medicamentos, a esquistossomose já vi-

nha se tornando uma doença tratável e menos perigosa. O seqüenciamento abre um novo front de pesquisas no combate a uma moléstia que encarnava a própria imagem do subdesenvolvimento - as crianças com a barriga inchada em meio à completa ausência de saneamento. E se soma a outras contribuições importantes, como a vacina contra a doença desenvolvida recentemente pela equipe da pesquisadora Miriam Tendler, da Fundação Instituto Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro. A vacina foi produzida a partir do isolamento e clonagem de proteínas do Schistosoma. Vigor - As gerações que sucederam a de Oswaldo Cruz, Adolfo Lutz, Carlos Chagas e Emílio Ribas não são muito lembradas nos livros de história, mas desempenharam um papel igualmente importante. Não promoveram vacinações forçadas nem participaram da criação dos institutos encarregados de combater doenças que aniquilavam multidões. Mas mantiveram de modo consistente o fluxo e a qualidade das investigações. São nomes como Leônidas de Melo Deane (1914-1993), da Faculdade de Medicina da USP, do Instituto Evandro Chagas e da Fundação Oswaldo Cruz, que estudou a epidemiologia da malária. Ou Oswaldo Paulo


0 início: Adolpho Lutz com a filha, Bertha, em Manguinhos (.esq.) e a bordo do Espana, descendo o rio Paraná, em 1918

Forattini, da Faculdade de Saúde Pública da USP, um estudioso de mosquitos transmissores de doenças, com contribuições na pesquisa de febre amarela silvestre e da epidemia de encefalite no Vale do Ribeira, há três décadas.

"M

uitos pesquisadores brasileiros conseguiram manter uma atividade vigorosa", observa Erney Plessmann de Camargo, professor do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, ele próprio um desses pesquisadores. "E, ao contrário dos tempos de Oswaldo Cruz, as iniciativas não dependeram do governo ou de institutos criados com finalidades específicas, mas partiram de demandas dos próprios pesquisadores", diz Camargo, que atualmente preside o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Seus primeiros trabalhos foram sobre a bioquímica de protozoários causadores da malária em colaboração com outro nome de destaque, Luiz Hildebrando Pereira da Silva, que, afastado do Brasil depois de 1964, fez carreira no Instituto Pasteur de Paris. Tanto Erney Camargo como Luiz Hildebrando coordenam grupos distintos, responsáveis por pesquisas em

doenças tropicais no Estado de Rondônia. Os dois grupos comprovaram a existência na Amazônia de portadores assintomáticos do Plasmodium vivax, protozoário que causa cerca de 80% dos casos da moléstia no Brasil. Os demais 20% são provocados pelo Plasmodium falciparum, a espécie mais agressiva do parasita da malária. A confirmação de que existem vítimas assintomáticas do Plasmodium vivax ganhou repercussão internacional, rendendo um artigo científico na renomada revista inglesa Lancet. Mas as pesquisas dos dois grupos não se limitam à malária. A equipe do ICB levantou evidências da existência de uma ainda desconhecida espécie de protozoário Leishmania que seria um novo agente causador da leishmaniose tegumentar americana, doença que ataca pele e mucosas e vitima 28 mil brasileiros a cada ano. A malária mata anualmente 2 milhões de pessoas, sobretudo crianças africanas. É o principal problema de saúde pública da Região Norte, onde ocorrem 99% dos casos brasileiros. Mata, em média, 20 brasileiros a cada ano, mas os casos se contam às centenas de milhares. O tratamento à base de quinino é conhecido desde o século 19. Há décadas, cientistas de vários países tentam encontrar, em vão, uma

vacina. O Exército norte-americano, por meio do Instituto de Pesquisa Walter Reed, foi um dos principais patrocinadores da vacina que alcançou até agora os melhores resultados, criada por Manuel Patarroyo, do Instituto Colombiano de Imunologia. Mas testes recentes mostraram que a imunização promovida pela vacina não chega a 30% das pessoas. O interesse do Exército dos Estados Unidos pela malária vem de muito tempo atrás. A doença matou milhares de soldados desde a Guerra da Secessão, até em campanhas da África e na Guerra do Vietnã. Tratamento - "Há dificuldades em conseguir vacinas eficientes para doenças causadas por protozoários", diz o infectologista Marcos Boulos, professor de doenças infecciosas e parasitárias da Faculdade de Medicina da USP. Pesquisadores brasileiros como Luiz Hildebrando Pereira da Silva, trabalhando à época no Instituto Pasteur de Paris, e o casal Ruth e Victor Nussenzweig, na Universidade de Nova York, participaram desse esforço. Enquanto o mundo procurava a vacina, pesquisadores brasileiros dedicavam-se a pesquisas que só podiam mesmo ser feitas aqui, como os mecanismos de proliferação da moléstia. Desenvolveu-se uma estratégia que conseguiu reduzir os casos de malária à metade em 2002. Consiste em diagnosticar e tratar rapidamente os pacientes, para reduzir o contingente de mosquitos contaminados. É o jeito, porque os anofelinos, vetores da malária, andam cada vez mais resistentes a inseticidas. "Nossa pesquisa em malária é de nível internacional", diz Boulos. "O Brasil e a Tailândia destacam-se nesse campo." Graças ao empenho dos pesquisadores, e também ao aumento no investimento em estudos sobre doenças tropicais, o Brasil exibe hoje diversos sinais de vitalidade nesse campo. O Instituto Manguinhos, da Fundação Instituto Oswaldo Cruz, de centro irradiador de soluções contra a febre amarela e o mal de Chagas transformou-se em complexo produtor de vacinas antivirais. O Instituto Butantan, fundado em 1901 por Vital Brazil para fabricar soros contra a peste bubônica, acabou se tornando referência em animais peçonhentos e, mais recentemente, na fabricação de vacinas de PESaUISA FAPESP 100 -JUNHO DE 2004 ■ 85


todo tipo. No Pará, o Instituto Evandro Chagas, ligado ao Ministério da Saúde, é reconhecido no mundo inteiro como o principal centro de pesquisas em leishmaniose e em vírus transmitidos por mosquitos e carrapatos. "Nos últimos vinte anos, cresceu significativamente o financiamento para pesquisas em doenças tropicais, assim como a possibilidade de parcerias com grupos de pesquisa de outros países", diz Boulos. Segundo ele, o interesse dos países desenvolvidos pelas moléstias tropicais ganhou fôlego graças à globalização. "Como 1 bilhão de pessoas fazem viagens aéreas todos os anos, as doenças deixaram de respeitar fronteiras."

Ceará, 1939: guarda-medicador do Serviço de Malária do Nordeste

A trajetória da doen/^ Ça de Chagas L^^ reúne um dos i M momentos ^L JL. mais felizes da pesquisa brasileira em medicina tropical. Carlos Chagas (1879-1934), numa Rondônia, 2002: motoqueiro distribui tacada só, descreveu em medicamentos e colhe sangue para exame 1907 o parasita (Trypanosoma cruzi, em homenagem a Oswaldo Cruz), o vetor (o barbeiro), o freqüentes nos trópicos do que nas cireservatório doméstico (o gato) e a vilizações temperadas. O Brasil impordoença, batizada com seu nome. O feitou essa visão. O Instituto de Medicina to, inédito na história médica, possibiTropical da Faculdade de Medicina da litou a criação de estratégias para acaUSP foi criado, na década de 1950, pelo bar com o inseto transmissor da professor Carlos da Silva Lacaz, depois doença, que aumenta o volume do coque ele passou uma temporada em ração e leva à insuficiência cardíaca. Hamburgo, na Alemanha, num instituEntre os anos 1980 e 90, o barbeiro pôde to semelhante. ser erradicado, graças a uma campanha Depois da mobilização nacional no governamental capitaneada pelo médiinício do século 20, a pesquisa das doenco José Carlos Pinto Dias e à mudança ças tropicais ganhou um certo estigma. no padrão de habitação nas regiões ruQuando a medicina explodiu em dezerais brasileiras. Acabaram as casas de nas de especialidades, o trabalho com pau-a-pique em cujas paredes os bardoenças tropicais passou a ser visto beiros proliferavam. como uma área antiquada e pouco charO conceito de doença tropical surmosa. Os novos campos de conhecigiu na Europa, englobando uma colemento seduziam os estudantes, proção de doenças exóticas freqüentes nas metendo empurrar as fronteiras da regiões coloniais de clima quente. Na ciência. Enquanto isso, a medicina tropiprática, muitas dessas moléstias são cal, com patrocínio da Fundação Rockeapenas males da pobreza, da falta de feller, propunha a erradicação de doensaneamento e da desnutrição - mais ças, como se ela própria fosse acabar um 86 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100

dia. "Esse descompasso ainda ocorre hoje", afirma o veterano infectologista Vicente Amato Neto, professor da Faculdade de Medicina da USP. "Tem uma corrente que se intitula os novos infectologistas', que se diz mais preocupada com infecções hospitalares, infecções póscirúrgicas ou pacientes imunodeprimidos", ele diz. "Esquecem-se de que há inúmeras doenças infecciosas a combater e que o Brasil tem tradição nisso." Preocupações - Novos desafios estão sempre surgindo. O avanço das hepatites virais B e C, por exemplo, ganha contornos cada vez mais preocupantes, com o crescimento de casos de cirrose e câncer de fígado que inflam as filas de transplantes. Na visão dos especialistas, essas lesões poderiam ser evitadas se houvesse diagnóstico precoce e o tratamento adequado. A tuberculose, que reapareceu como doença oportunista associada à Aids e disseminou-se, encarna outro desafio. Sem falar no medo de que doenças emergentes cheguem ao Brasil. As epidemias da Síndrome Aguda Respiratória Severa (Sars) e a gripe do frango trouxeram esse temor à tona recentemente. O Brasil também se prepara para essas adversidades. O recém-inaugurado Laboratório Klaus Eberhard Stewien, no Instituto de Ciências Biomédicas da USP, é o primeiro no país com nível máximo de biossegurança 3+. É quase o máximo possível para a pesquisa civil - há instalações mais sofisticadas somente nos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), de Atlanta, Estados Unidos, referência mundial em doenças emergentes. O laboratório é o primeiro de uma série de 12 que começam a ser construídos no país. Essas unidades darão segurança e condições adequadas para investigações de agentes de doenças tropicais de todo tipo. •


Amazônia contra a malária Testes em laboratório comprovam ação biológica de plantas da floresta usadas pelas populações nativas

Foram mais de 350 dias de expedições por sete municípios do Amazonas em busca do conhecimento popular acerca dos tratamentos da malária. Lin Chau Ming, da Faculdade de Ciências Agronômicas da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Botucatu, e Ari de Freitas Hidalgo, da Faculdade de Ciências Agrárias da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), propuseram-se a levantar o repertório de folhas, raízes, cipós e cascas de plantas usadas para prevenir ou amenizar sintomas da malária entre habitantes da região de Manaus e da calha do rio Solimões. Das 71 pessoas entrevistadas, com idade entre 34 e 83 anos, somente oito nunca haviam contraído malária, enquanto 32 já a haviam tido pelo menos três vezes -

dois homens afirmaram que haviam tido malária mais de 20 vezes. Quase todos, enfim, eram vítimas recorrentes da moléstia, habituados a procurar na floresta substâncias para combater seus sintomas. Ming e Hidalgo colheram informações sobre o uso de 126 espécies de plantas descritas como eficazes não só contra malária, mas também contra suas conseqüências, como problemas hepáticos e renais ou anemia. Das espécies indicadas, 82 se referiam especificamente à malária ou à febre, o principal sintoma, e outras 91 ao fígado, o órgão mais afetado. Em um teste preliminar, os pesquisadores avaliaram a ação dos extratos das plantas em larvas de Artemia franciscana, microcrustáceo usado para detectar o potencial bioativo de substân-

cias, devido à capacidade de sobreviver à paralisação metabólica. Somente 22 das 126 plantas não apresentaram nenhum efeito sobre as larvas de Artemia. Em alguns casos, como no dos extratos da sacaca (Croton cajucara), do camapu (Physalis angulata) e da caapeba {Potomorphe peltata), 100% das larvas morreram. Outras vezes, o resultado foi menos expressivo, o que não chega a desqualificar a sabedoria popular. Um exemplo é um cipó saracuramirá (Ampelozizyphus amazonicus), matéria-prima de uma bebida medicinal espumante conhecida como cerveja-de-índio. Nos testes, a letalidade do crustáceo ficou entre 61% e 70%. Mas há indícios de que essa planta pode mesmo ter um papel na prevenção da malária, como dizem os ribeirinhos. Pesquisadores da Universidade Federal PESQUISA FAPESP 100 -JUNHO DE 2004 ■ 87


Medicamentos da terra Hádé â décadas os técnicos da Funasa percorrem a Amazônia, fazem palestras e campanhas de prevenção e de erradicação do mosquito transmissor, chamado de carapanã, coletam sangue para exames e distribuem medicamentos. Apesar do trabalho intensivo, o uso de plantas é uma prática freqüente, principalmente como forma de evitar os efeitos colaterais dos comprimidos, como tonturas ou enjôo, às vezes

confundidos com os sintomas da própria doença. Com folhas, raízes ou cascas de plantas como o açaizeiro-do-amazonas (Euterpe precatória), copaíba (Copaifera sp) e caapeba (Pothomorphe peltata) trata-se a malária e os problemas que ela causa, como hepatite e anemia. Mas árvores de uso medicinal como a carapanaúba (Aspidosperma sp) às vezes são derrubadas para dar lugar a pequenas plantações.

Açaizeiro: raízes novas contra hepatite e anemia

padronizadas do Plasmodium falciparum, cultivadas no Instituto de Medicina Tropical do Amazonas. A intenção é usar o conhecimento popular como um atalho para novos medicamentos. Tais ferramentas pertencem à esfera da etnobotânica, que é o estudo do uso de plantas por agrupamentos humanos. "A malária foi introduzida na Amazônia há mais de 200 anos e tanto os índios como os caboclos tiveram de desenvolver meios próprios de se tratar", diz Ming. "Esse aprendizado é um ponto de partida para a pesquisa de novas drogas." As estratégias disponíveis para combater a doença atingiram um limite. Os mosquitos que transmitem a doença, do gênero Anopheles, vêm criando resistência a inseticidas, e a cloroquina, o mais tradicional remédio contra a malária, já não é eficaz contra algu-

de Minas Gerais (UFMG) e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) mostraram que o extrato de saracura-mirá bloqueia o ciclo da malária no organismo, impedindo que o protozoário causador da doença ganhe a corrente sangüínea e deflagre os ataques febris. Outros pesquisadores haviam descrito vegetais usados contra a malária, mas se limitaram a fazer listas de plantas. Maria das Graças Brandão, da UFMG, foi um pouco além: fez levantamentos em dois estados, Rondônia e Pará, e testes com o Plasmodium falciparum, o protozoário causador da malária. Mas esta é a primeira vez que se avalia a eficiência de extratos de plantas usadas no Amazonas - e 22 das 127 espécies não haviam sido citadas antes em nenhuma outra pesquisa. Na próxima fase, os extratos serão submetidos a testes mais acurados, com cepas

mas cepas do Plasmodium falciparum. Existe outra opção, a erva asiática Artemisia annua, da qual se produz a artemisinina, mas seu custo de produção é ainda elevado. Os índios e as populações ribeirinhas sofrem com a malária desde o século 18, quando a doença foi trazida da África com os colonizadores. Levar em conta essa experiência pode conduzir a novas estratégias de combate. Riscos - A malária é uma doença debilitante, que provoca febres e anemia, e torna o organismo suscetível a outras moléstias. Diminui o rendimento no trabalho, exige deslocamento das vítimas para locais que tenham condição de fazer diagnóstico e em alguns casos pode ser letal, sobretudo em indivíduos malnutridos. "Em caso de malária na gravidez", comenta Ming, "pode ocor-

A febre que vem da água Além de pesquisar as plantas e suas formas de uso, Lin Chau Ming e Ari de Freitas Hidalgo colheram depoimentos sobre como a malária é vista na Amazônia, o que a causa e como lidar com ela. "Em alguns municípios, a malária é considerada quase tão comum quanto uma gripe", diz Ming. "Convive-se com ela como com um resinado." É também chamada de paludismo, tremedeira ou simplesmente febre; os moradores mais antigos ainda se lembram de quando a tratavam de sezão ou maleita.

88 • JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100

"Sentia muita dor de cabeça, muito calafrio, dor nos ossos. Me deu uma tremedeira tão grande que eu pensei que ia morrer. Jogava lençol, lençol. Aí depois eu fiquei com tontura, muita fraqueza. A primeira vez nem tanto, mas na segunda vez eu pensei que ia morrer." Maria José Rodrigues, 50 anos, Tefé. "Frio, febre, dor nos ossos, no corpo. Enrola no pano e não passa o frio. Dá muita dor de cabeça, ela é que mata, a gente só falta ficar doidinha." Nazaré Reis, 46 anos, Careiro.

Os pesquisadores concluíram que a estratégia de combate à malária pode não estar surtindo os efeitos desejados, entre outros motivos, pela convicção da população de que a doença pode ter mais de uma causa: pelo menos a metade dos entrevistados não considera como totalmente verdadeira a informação apresentada pelos técnicos sobre as formas de transmissão do protozoário causador da doença. "É o seguinte: ela é introduzida, dizem, mais pelo mosquito, mas eu não


Caapeba: raízes contra malária

Copaíba: cascas para malária e fígado

rer má-formação do feto, atraso no desenvolvimento intra-uterino ou mesmo abortos, além de seqüelas permanentes na criança." No Brasil, 99% dos casos de malária ocorrem na Região Norte, onde a moléstia mantém um fôlego desafiador: de 11 mil casos no Amazonas em 1985, chegou a 180 mil em 2000, caindo para 40 mil no ano seguinte. "Em 1999 houve o maior surto no Amazonas, com 167.722 casos registrados e certamente muitos milhares não incluídos nas estatísticas", conta Hidalgo. "Foi nesse momento que decidi trabalhar com mais afinco na procura por alternativas para minimizar o sofrimento causado pela malária."

acredito. Mais é pela água, água de encontro." Isaías Gomes, 54 anos, Tefé. "O povo diz que é carapanã, mas eu digo que é da água. Dá muita fava e a água fica podre, envenenada. A fava é veneno, se beber água com fava pega malária." Nelsina Vitor, 81 anos, Careiro. "Teve umas enfermeiras que passaram por aqui dizendo que pega de carapanã, mas não sei se aqui na comunidade alguém já pegou assim desse jeito." Aldair Ramirez, 39 anos, Benjamin Constant. Para a maioria dos entrevistados (84,5%), quem está com malária ou

Entre 2001 e 2003, Ming e Hidalgo, em cinco viagens que duraram em média dois meses e meio cada uma, visitaram três municípios da região de Manaus (Careiro, Presidente Figueiredo e Pdo Preto da Eva) e quatro na área de influência do rio Solimões (Atalaia do

0 PROJETO Etnobotânica de Plantas Antimaláricas da Calha do Rio Solimões e Região de Manaus MODALIDADE

Linha Regular de Auxílio a Pesquisa COORDENADOR LIN CHAU MING

- Unesp

INVESTIMENTO

R$ 31.025,11

acabou de sair de uma deve seguir uma dieta específica e evitar alguns tipos de carne, principalmente as gorduras conhecidas na Amazônia como reimosas -, para evitar que a doença reapareça de imediato. "Quem tá de malária tá com o fígado prejudicado, tudo sensível, não dá para comer tudo que gosta. Tem coisa que afeta muito o fígado, principalmente comida com muita gordura. O doente tem que comer coisa leve." Irondina Machado, 65 anos, Careiro. "Olhe a carne de anta, o sr. veja, o sr. pode passar 15 ou 20 dias que já não sente mais nada, mas coma carne de

Norte, Benjamin Constant, Tefé e Coari). Em cada lugar, selecionaram os entrevistados com o apoio de agentes da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e voluntários da Pastoral da Criança. Embora a Funasa promova campanhas periódicas sobre a importância de combater os mosquitos, boa parte dos entrevistados ainda acha que a malária se propaga mesmo é pela água (veja quadro abaixo). "Muitos associam a malária às favas (vagens) que caem de uma árvore, o baú-baú, contaminando a água", diz Hidalgo. "Na verdade, há uma coincidência entre o ciclo reprodutivo da árvore e as cheias, que alagam terrenos e favorecem a proliferação dos mosquitos e, conseqüentemente, da malária." Hidalgo e Ming pretendem até 2006 repetir a pesquisa na calha do rio Negro, onde é mais forte a presença de índios do que de caboclos. •

anta pra o sr. ver como ela volta. É reimosa, muito, muito. Ave Maria, eu tinha mais medo de carne de anta de que de qualquer outra coisa." Manoel Pinto, 79 anos, Careiro. "Pirarucu? Nem pensar! É bater dentro e a bicha volta. Inflama tudo, fígado, estômago. O sangue fica ruim, se tiver coceira estoura tudo." Sandra Amaral, 66 anos, Rio Preto da Eva. "Se comer pirarucu, piranha, fica prejudicado. Ela sobe mais, dá mais força pra ela maltratar o órgão da pessoa. Evita esses negócios aí que ela vai deixando". Artur Fortes, 74 anos, Benjamin Constant.

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CIÊNCIA VIROLOGIA

Lentamente/ um subtipo do vírus da Aids pouco comum no país se espalha e altera o perfil da epidemia

Não há mais dúvida. A epidemia provocada pelo vírus da Aids se encontra mesmo em transformação no Brasil, onde 140 mil pessoas são portadoras do HIV. Seu antigo perfil - chamado de ocidental por causa da predominância de uma variedade do vírus comum nas Américas e na Europa Ocidental, o HIV-1 do subtipo B - vem assumindo nos últimos anos características cada vez mais semelhantes às observadas na China, na índia e nas nações africanas situadas ao sul do deserto do Saara. Nesses países, 83% dos 30 milhões de portadores do vírus carregam no sangue o subtipo C, uma das nove variedades já identificadas. Por alguma razão desconhecida, o subtipo C passou a dominar a epidemia também em regiões nas quais, antes, outras variações do HIV respondiam pela maioria dos casos da infecção. A diferença entre uma variedade e outra pode estar na habilidade do vírus de sobreviver aos medicamentos usados contra a infecção. Quase tudo o que se conhece sobre a resistência do HIV resulta de pesquisas feitas com a variedade B e ainda não está comprovada a eficácia dos medicamentos contra as outras cepas do vírus. Por essa razão, a mudança do perfil da epidemia brasileira pode exigir ajustes no tratamento e na composição de vacinas anti-HIV em desenvolvimento. As primeiras evidências dessa mudança despontaram na Região Sul, onde se registrou em 1990 o primeiro caso provocado pelo subtipo C. Estudos isolados apontavam uma presença crescente dessa variante do HIV na região, nos últimos cinco anos. Mas os dados mais contundentes surgiram no ano passado, com a conclusão do primeiro levantamento nacional de resistência do vírus aos medicamentos, elaborado pelos sete 90 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100

laboratórios da Rede de Vigilância da Resistência do HIV (Revire), do Ministério da Saúde. De acordo com os resultados - divulgados na Pesquisa FAPESP em agosto de 2002 e publicados em junho de 2003 na revista Aids -, o subtipo C ultrapassou a presença do B no Rio Grande do Sul e aparece em 45% das infecções. No restante do país, o subtipo B ainda é a cepa predominante, mas vem se colocando numa posição mais discreta. Um terço dos paranaenses portadores do HIV carrega no sangue o vírus da variedade C. Também há indícios de que a presença dessa cepa esteja aumentando no Sudeste. Hoje 6% dos portadores do vírus têm o HIV do subtipo C no Rio de Janeiro, enquanto essa cepa contamina 3% das pessoas com o vírus em São Paulo. Essas conclusões resultam de pesquisas coordenadas por Marcelo Soares e Amilcar Tanuri, ambos do Laboratório de Virologia Molecular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), um dos centros integrantes da Revire. Em parceria com outras equipes do Rio, de São Paulo e do Ministério da Saúde, os pesquisadores da UFRJ avaliaram o material genético do HIV que contaminava 112 pessoas de cinco estados - Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo, Rio e Mato Grosso do Sul. O resultado, divulgado em janeiro de 2003 na revista Aids, mostrou que, em média, um em cada três portadores do vírus nas regiões Sul e Sudeste já apresentava no sangue o subtipo C. Soares e Tanuri viram ainda que, embora o perfil da epidemia nacional se aproxime daquele observado na África e na índia, o HIV do subtipo C encontrado no Brasil apresenta características distintas do subtipo C africano e indiano. Mais recentemente os pesquisadores da UFRJ voltaram a atenção para a capital gaúcha para ver como a infecção pelo HIV evoluiu ao longo de 18


anos, na busca de uma provável indicação do que pode ocorrer no restante do país. Soares e Tanuri coletaram amostras de sangue de 77 portadores do HIV atendidos no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, o maior centro de tratamento de Aids no estado. A partir da análise do material genético do vírus, constataram: a proporção de casos provocados pelo subtipo C passou de 20%, entre 1986 e 1990, para 43%, entre 2001 e 2002, conforme relataram os pesquisadores no Journal ofAcquired Immune Deficiency Syndromes de dezembro passado. Segundo Soares, essa é uma tendência que pode ser extrapolada para todo o estado. Em um outro estudo, feito com 72 mulheres grávidas portadoras do HIV da cidade gaúcha de Rio Grande, o virologista do Rio verificou que a variedade C era responsável por 70% das infecções. "Ainda não há evidências formais de que o subtipo C se dissemine mais rápido que os outros", afirma Soares, "mas, sempre que essa variedade aparece em uma região, ela acaba predominando sobre as demais." As conseqüências mais imediatas dessa alteração devem aparecer no tratamento dos portadores do vírus. Em outro estudo, publicado em setembro do ano passado na Antimicrobial Agents Chemotherapy, a equipe de Soares analisou o material genético das variedades B e C em busca de alterações que indicassem resistência às três classes de medicamentos usados na terapia anti-retroviral altamente ativa (Haart, na sigla

em inglês), mais conhecida como coquetel anti-HIV. Os pesquisadores observaram que a variedade C é mais sensível que a B ao lopinavir - um tipo específico de inibidor de protease, medicamento que impede as novas cópias do vírus de amadurecerem e infectarem outras células de defesa. Com esses dados, torna-se possível traçar novas estratégias de combate ao HIV. "Talvez seja mais eficaz incluir o lopinavir no tratamento dos portadores do subtipo C", cogita Soares. É uma alternativa a ser considerada, uma vez que os estudos sobre a capacidade de contaminação, agressividade ou resistência do HIV aos remédios, em geral, são realizados em países desenvolvidos e levam em conta apenas o subtipo B. Como a distribuição de medicamentos contra o vírus é gratuita - o que torna os remédios disponíveis para todos os portadores do HIV -, o Rio Grande do Sul torna-se o estado mais indicado para se avaliar as modificações observadas no subtipo C durante o tratamento e também para o teste de vacinas de interesse dos países pobres ou em desenvolvimento. Na próxima etapa do trabalho, Soares pretende verificar a eficácia do lopinavir em pessoas com o vírus. Em um estudo planejado em parceria com a Prefeitura de Porto Alegre, Soares busca avaliar como portadores do subtipo B e do C reagem ao tratamento com o lopinavir associado a dois inibidores de transcriptase reversa. O estudo deve começar neste semestre e durar dois anos. • PESOUISA FAPESP 100 • JUNHO DE 2004 ■ 91


CIÊNCIA

GENÉTICA

O papel dos esquecidos Trechos de RN A antes vistos como inúteis regulam a produção de proteínas ligadas ao câncer

Como os catadores de lixo, que garimpam objetos valiosos em meio aos despojos da sociedade, alguns biólogos moleculares extraem informações preciosas de trechos aparentemente menos nobres do material genético humano. Num artigo a ser publicado em breve na revista britânica Oncogene, um grupo de pesquisadores brasileiros mostra que fragmentos normalmente desprezados de uma classe específica de RNA - a molécula do ácido ribonucléico, derivada do famoso DNA e de fundamental importância para a produção de proteínas - não são inú-

teis. Ao contrário do que ainda postulam os manuais de genética, pedaços do chamado RNA intrônico anti-senso são importantes para a biologia das células. Mais do que isso: sua maior ou menor presença num organismo pode estar relacionada ao estágio de desenvolvimento de doenças complexas e talvez funcionar como um marcador do grau de malignidade de certas formas de câncer. Tal hipótese ganhou força depois que os cientistas compararam as quantidades existentes de cerca de 4 mil segmentos de três distintas classes de RNA em tecidos sadios e com tumor de próstata extraídos de 27 pacientes. Essa ta-

refa foi feita com o auxílio de um dispositivo chamado microarray de DNA, construído no Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP). No final do trabalho, 12 pedaços de RNA se revelaram muito relevantes para determinar o nível de agressividade do tumor - seis deles eram trechos do até então desprezado RNA intrônico antisenso. "Mostramos que as mensagens emitidas por esse tipo de RNA participam do processo de regulação de produção de proteínas ligadas ao desenvolvimento do câncer de próstata", afirma Sérgio Verjovski-Almeida, do IQ-USP, líder da equipe que redigiu o artigo

0 lixo que não é lixo Fragmentos de moléculas antes consideradas sem função interferem na produção de proteínas nas células

(D Um gene (fragmento de DNA) contém éxons e íntrons

(D

GENE

Forma-se outro

RNA mensageiro a partir do íntron da fita anti-s^nso

Uma molécula de RNA mensageiro forma-se a partir dos éxons e íntrons de uma das fitas do DNA

Fita anti-senso

Fita senso

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com a descoberta para a Oncogene. "Elas não podem mais ser ignoradas nos estudos sobre expressão de genes em doenças e devem ser incoporadas ao arsenal de ferramentas para a pesquisa em câncer." Também participaram do trabalho pesquisadores do Instituto Nacional do Câncer (Inca), no Rio de Janeiro, e dos hospitais Sírio-Libanês e Albert Einstein, de São Paulo. Uma pincelada de genômica ajuda a entender o que são esses fragmentos de RNA intrônico anti-senso. Um gene é uma seqüência ordenada de bases químicas - adenina (A) citosina (C), guanina (G) e timina (T) - localizada numa das fitas da molécula do DNA. A fita em que está o gene é chamada de senso e a outra, que lhe é complementar, de anti-senso. As bases formam dois tipos de regiões no interior de um gene: os éxons e os íntrons. As regiões com éxons fornecem a receita que comanda a produção de uma proteína nas células. Entre um e outro éxon, surgem os íntrons, segmentos mais longos, que não têm função aparente. Até recentemente, uma região com íntron era vista como uma "sujeira" no meio de um gene, sem função biológica. Há dois tipos de regiões intrônicas: as situadas na fita senso do

DNA, dentro do gene, e as localizadas na fita anti-senso (veja ilustração). O que o RNA e o câncer têm a ver com isso? Agora vem a explicação. Quando é expresso (ativado) num tecido humano, sadio ou com uma doença qualquer, como o câncer, um gene gera pedaços de várias classes de RNA mensageiro. Esses fragmentos de RNA são denominados transcritos pelos biólogos moleculares. Os trechos de RNA originários dos éxons compõem a fórmula da proteína. Os transcritos oriundos dos íntrons (senso e anti-senso) não entram na receita e, até recentemente, eram encarados como lixo genômico. "A literatura científica já havia mostrado que o RNA intrônico senso participava da regulação da síntese de proteínas", diz o biólogo Eduardo M. Reis, outro autor do estudo brasileiro. "Nossa contribuição foi revelar que existem RNAs intrônicos, derivados exclusivamente da fita anti-senso, que também atuam nesse processo." No caso do câncer de próstata, um desses RNAs intrônicos (tanto o senso como o anti-senso), o RASSF1, funcionou como um marcador da agressividade dos tumores. Os pacientes com câncer em estágio avançado exibiam níveis baixos desse tipo de RNA. •

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I CIÊNCIA MEDICINA

Remédios

imaginários Expectativa e condicionamento explicam por que placebo, às vezes, funciona

RICARDO ZORZETTO

Talvez os mais rigorosos tenham de rever algumas certezas. Está um pouco mais fácil explicar os resultados estranhos de um estudo norte-americano realizado no Texas e publicado há dois anos em uma das mais respeitadas revistas médicas do mundo, o New England Journal of Medicine. Num experimento destinado a avaliar a eficácia de uma cirurgia bastante comum de joelho, feita em 650 mil indivíduos por ano nos Estados Unidos a um custo de US$ 5 mil cada, as pessoas que passaram por uma falsa operação, com três cortes superficiais no joelho, melhoraram tanto quanto as que se submeteram à cirurgia real, com a retirada de partes gastas de cartilagem. A explicação? A improvável recuperação de quem experimentou a operação simulada se deve à convicção de que a cirurgia realmente eliminaria a dor do joelho, uma evidência de que o pensamento consegue modificar o funcionamento do corpo. É o


Répteis, de Maurits Escher, 1943

chamado efeito placebo: algo que em princípio não deveria funcionar do ponto de vista físico e químico - como os cortes superficiais no lugar de uma cirurgia ou comprimidos de farinha em vez de pílulas com princípio ativo na prática pode funcionar e, espantosamente, eliminar dores, baixar a pressão arterial, abrandar a ansiedade e diminuir a depressão. Só agora esse fenômeno, do qual já se tinha consciência há quase 2 mil anos, desde pelo menos a Roma do imperador Marco Aurélio, começa a ser desvendado do ponto de vista bioquímico e fisiológico. É a expectativa de que a cirurgia será eficaz que altera o desempenho do sistema nervoso central, mesmo que na prática seja apenas uma simulação. Acionadas pela imagi-

nação do doente, algumas áreas do sistema nervoso associadas à percepção da dor se tornam menos ativas, enquanto outras, relacionadas à inibição da dor, são acionadas, segundo estudos recentes. O não-tratamento, assim, é uma espécie de indução ao engano aceito pelo próprio cérebro: o que nunca foi se torna o próprio ser. As nuances do real - As descobertas recentes reacendem um debate ético sobre se, quando e como usar placebo em testes de novos remédios e tratamentos ou mesmo como uma terapia paliativa em algumas doenças crônicas, como enxaqueca ou gastrite, desde que não envolvam risco de morte. Até hoje, os pesquisadores têm por certo que a forma mais eficiente de descobrir

a verdadeira capacidade de cura de um novo medicamento ou de uma nova operação é comparar o tratamento real com um placebo - em tese, o mesmo que nada. Antes de liberar um remédio para ser consumido pela população, as agências de controle de medicamentos - a exemplo da Food and Drug Administration (FDA), nos Estados Unidos, que serve de referência para o Brasil, ou o European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction, na Europa - exigem testes com seres humanos com o uso de placebo, o chamado ensaio clínico duplo-cego, no qual nem médico nem paciente sabem quem recebe remédio ou placebo. Essa é, aliás, uma das poucas situações em que se consente o uso de placebo. A Declaração de Helsinque, conjunto de normas PES0.UISA FAPESP 100 -JUNHO DE 2004 ■ 95


éticas que regulam o uso de placebo em estudos com seres humanos, determina que em qualquer estudo médico deve-se assegurar o melhor tratamento diagnóstico ou terapêutico existente a todos os pacientes - incluindo aqueles do grupo controle, se houver - e, apenas em casos excepcionais, os pesquisadores podem adotar placebo.

H

avia tempos se suspeitava de que o placebo fosse mais do que simplesmente algo que não existe, mas consegue fazer bem - um remédio imaginário, enfim. Derivada do verbo latino placere, que significa proporcionar prazer ou agradar, a palavra placebo aparece nos livros de medicina em fins do século 18. Mas o conceito de efeito placebo ganhou peso mesmo após a Segunda Guerra Mundial, quando pesquisas médicas começam a revelar alterações no funcionamento do organismo produzidas por substâncias farmacologicamente inócuas. Em 1955, o anestesiologista norte-americano Henry Knowles Beecher publicou no Journal of the American Medicai Association um artigo provocativo que se tornou uma referência: The powerful placebo. Beecher analisou 15 estudos clínicos nos quais uma parte dos voluntários recebeu placebo para tratar dor, distúrbios cardíacos e problemas gástricos. De 21% a 58% dos doentes, número que variou segundo o problema apresentado, melhoraram tomando apenas os compostos sem ação farmacológica. E um terço tornou-se um número mágico. Ainda hoje, médicos e farmacólogos acreditam que uma proporção de pessoas semelhante à verificada no estudo de meio século atrás melhore por causa do efeito placebo, não pela ação específica do princípio ativo dos medicamentos, apesar do avanço da indústria química e farmacêutica nesse tempo. A mais recente revelação sobre esse efeito mostra o placebo em ação sobre o sistema nervoso em tempo real. Por meio de um aparelho de ressonância nuclear magnética, a equipe de Jona-

96 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100

than Cohen, da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, produziu imagens do cérebro em atividade de pessoas que participaram de dois experimentos distintos, supostamente voltados para testar a eficácia de um novo analgésico - na realidade, um creme inócuo. Deitados no interior do aparelho, os participantes tinham de quantificar a dor ao receber um choque no punho no primeiro teste e, no outro, classificavam a dor causada pelo contato de um objeto quente no antebra-

Vaso de Edgar Rubin, 1915: imagens flutuantes

ço. A tela do computador mostrava por meio de cores a intensidade do funcionamento de cada área do cérebro. Em ambos os experimentos, apresentados em um artigo na Science de 20 de fevereiro deste ano, as pessoas afirmaram sentir menos dor nos testes feitos depois da aplicação do creme. Efeito esperança - A simples informação de que haviam recebido uma dose de pomada analgésica - na verdade, o tal creme sem ação farmacológica - foi suficiente para diminuir a atividade de quatro regiões ligadas à percepção da dor: o córtex cingulado anterior e o somatossensório, a insula e o tálamo. Quanto menor a atividade dessas áreas, maior o alívio da dor. Em contraste, essas mesmas áreas permaneceram mais ativas em quem acreditava ter recebido um outro creme sem ação contra a dor - nos dois grupos, foram

aplicadas a mesma pomada inativa. A equipe de Cohen planejou o segundo experimento, no qual o objeto quente ficava em contato com a pele por 20 segundos, de modo que pudesse acompanhar a evolução da atividade do sistema nervoso e da ação do placebo desde antes do estímulo doloroso fase chamada antecipação, quando um sinal luminoso com a expressão "Prepare-se!" informava ao voluntário que em breve entraria em contato com a peça quente - até a dor cessar por completo. Tão logo as pessoas recebiam esse aviso, constataram os pesquisadores, aumentava bastante a atividade do córtex préfrontal - parte do cérebro situada acima dos olhos, que regula outras áreas do sistema nervoso. Em seguida, no monitor do computador que mostrava o cérebro inteiro, brilhava outra região do sistema nervoso situada no mesencéfalo, associada à produção de analgésicos naturais tão potentes quanto a morfina. Na visão de Jonathan Cohen, o coordenador dessa pesquisa, a maior atividade do córtex pré-frontal nessa fase resulta da expectativa de alívio e diminui o funcionamento das áreas responsáveis pela percepção dolorosa. Foi por essa razão que os voluntários relataram uma redução de 22% na intensidade da dor no segundo experimento. Mas apenas a expectativa de que o tratamento dê certo não explica por completo os resultados. Em dois outros experimentos realizados na Itália, Martina Amanzio e Fabrizio Benedetti, neurocientistas da Universidade de Turim, descobriram outro componente do efeito placebo, o condicionamento algo parecido com o que viu Ivan Pavlov, o fisiologista russo que treinou cães famintos para salivar ao ouvir o toque de uma sineta. De modo semelhante ao reflexo condicionado dos cães, o consumo de um determinado analgésico repetidas vezes habitua o corpo a reagir da mesma forma quando uma injeção de analgésico é trocada por uma dose de água com sal - sem o conhecimento do paciente, claro. Conseqüência: o sistema nervoso central faz o próprio cor-


po produzir compostos contra a dor, em uma reação quase automática a um estímulo conhecido, como, por exemplo, sentir a boca cheia d'água ao ouvir que o bolo de chocolate está pronto. Uma das dificuldades do experimento da equipe italiana era elaborar um teste que comprovasse o poder do condicionamento. Os pesquisadores de Turim montaram uma complexa bateria de exames com 229 pessoas separadas em 12 grupos, para avaliar melhor os resultados - em cada grupo, se adotava uma estratégia diferente. Cada participante passou por cinco sessões de avaliação na qual repetiam os mesmos exercícios: pressionavam com a mão as hastes de um aparelho com molas - um dinamômetro -, enquanto uma bolsa de ar de um aparelho de medir pressão presa ao braço bloqueava a passagem de sangue para o antebraço do voluntário. A cada apertão, a dor no antebraço aumentava rapidamente e, em questão de minutos, atingia um nível insuportável. Martina e Benedetti viram que as pessoas toleravam a dor por um período maior se, dez minutos antes do teste, fossem tratadas com uma injeção de morfina. O mais chocante: a resistência à dor foi semelhante à obtida com a morfina quando a pessoa tomava uma injeção de água salgada na terceira sessão de exercícios, após haver recebido o analgésico em dois testes seguidos. Se, no lugar de água e sal, a injeção contivesse uma droga que corta o efeito da morfina - a naxolona -, a tolerância à dor diminuía. Era um sinal claro de que o uso seguido de morfina condicionava o sistema nervoso a acionar as áreas produtoras de analgésicos do grupo dos opióides, ao qual pertence a morfina. De modo semelhante, o placebo também induziu o corpo a acionar sua própria fonte de analgésico - mas por um mecanismo distinto - após a aplicação de uma dose de cetorolac, um potente analgésico não-opióide, em vez de morfina. Surgiu, porém, uma

surpresa: a resistência à dor aumentou ainda mais quando, durante a injeção de placebo, os pesquisadores induziram os participantes a acreditar que o composto inócuo era morfina ou cetorolac. Estava claro: o placebo atuava sobre a dor por mecanismos neurológicos distintos (opióide e não-opióide), acionados em parte pela expectativa, em parte pelo condicionamento. Em um experimento ainda mais curioso, Martina, Benedetti e outra neurocientista de Turim, Claudia Ar-

Espaço ambíguo: número de cubos depende do olhar

duino, revelaram um aspecto até então não imaginado do placebo: sua ação benéfica pode se manifestar em partes específicas do corpo, para as quais se dirigem a atenção e a expectativa. Num teste que lembra uma cena de tortura, os pesquisadores injetaram simultaneamente no dorso das mãos e dos pés de cada voluntário uma dose de capsaicina, substância que faz a pimenta arder na boca. Nos segundos seguintes, o participante recebia um leve choque no pé ou na mão para avaliar a intensidade da dor. Após a aplicação na mão direita de uma pomada inócua, que se acreditava ser um novo analgésico, os voluntários afirmavam sentir menos dor apenas naquele membro. Em artigo publicado no Journal of Neuroscience, o grupo italiano concluiu que mecanismos de atenção possivelmente também estejam envolvidos no efeito gerado pelo placebo, uma vez que a ex-

pectativa direcionada a uma determinada parte do corpo concentrou os benefícios apenas ali. Além de ajudarem a compreender como nosso organismo reage diante da expectativa de cura, as evidências acumuladas nos últimos anos de que o placebo é mais que uma substância inócua também abrem uma polêmica: é nossa capacidade de autocura que é grande ou o problema está nos medicamentos disponíveis para a população, que são menos eficazes do que seria de esperar? Diversos estudos mostram que substâncias inócuas são capazes de, em algumas doenças, fazer a pessoa melhorar tanto quanto os remédios considerados eficazes, distinção que parece bastante complicada principalmente no caso dos medicamentos usados para tratar da depressão. Antidepressivos - Em um artigo polêmico intitulado Listening Prozac but hearing placebo (Ouvindo Prozac, mas entendendo placebo), publicado na Prevention and Treatment de junho de 1998, Irving Kirsch, da Universidade de Connecticut, e Guy Sapirstein, do Hospital Westwood Lodge, ambos nos Estados Unidos, afirmaram que substâncias inócuas foram tão eficazes quanto os antidepressivos no tratamento da depressão. Foi um golpe nos medicamentos de eficácia comprovada, que movimentam um mercado de bilhões de dólares no mundo. Talvez por precaução, o editor da revista adicionou uma observação ao estudo, informando que o trabalho usou uma metodologia polêmica para comparar estudos feitos com métodos e critérios de tratamento distintos. No ano seguinte, o médico Thomas Weihrauch, diretor do Centro de Pesquisas Farmacêuticas do laboratório farmacêutico Bayer, na Alemanha, buscou sinais do efeito placebo em diversos estudos que avaliavam a ação de cinco medicamentos produzidos pela Bayer - contra dor no peito, ansiedade, acidente vascular cerebral, gastrite e diabetes. Com exceção do tratamento do diabetes, os compostos supostamente inócuos mostraram um nível de eficácia que variou caso a caso. PESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 97


Fragmento de Metamorfose II, de Maurits Escher, 1940

Outra constatação ainda mais inesperada: de modo semelhante aos remédios, as substâncias-placebo provocaram na maior parte dos casos efeitos colaterais, como secura na boca, cansaço e confusão mental. Na conclusão do trabalho, publicado na Drug Research de 1999, o pesquisador adverte: os médicos devem fazer uma seleção muito rigorosa das pessoas a serem tratadas, antes de receitar um medicamento sem eficácia cientificamente comprovada. Surge então uma dúvida. Se um composto inerte funciona em parte dos casos, ainda pode ser considerado placebo? Depende de quem responde. Para os mais céticos, o placebo não tem ação farmacológica e ponto. Em 2001, os pesquisadores dinamarqueses Peter Gotzsche e Asbjorn Hrobjartsson, da Universidade de Copenhague e do Centro Cochrane em Copenhague, organização internacional que analisa conjuntos de estudos clínicos em busca de evidências da eficácia dos tratamentos, apresentaram no New England Journal of Medicine um artigo desbancando o efeito placebo. Após analisar 130 estudos clínicos, os pesquisadores constataram que, de modo geral, dar placebo era equivalente a não fornecer nenhum tratamento para o doente. "Encontramos pouca evidência de que, em geral, os placebos apresentem poderosa ação clínica", concluíram Gotzsche e Hrobjartsson. Segundo eles, os benefícios proporcionados por placebos parecem muito pequenos e foram observados apenas nos testes em que a avaliação da melhora 98 ■ JUNHO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 100

era feita pelo próprio paciente - ou seja, a análise era subjetiva - ou na terapia da dor. Nem todos pensam assim. Há quem defenda a reavaliação da própria definição de placebo. "Não há uma substância ou um tratamento em particular que possa, de uma vez por todas, ser definido como placebo", afirma o filósofo Zbigniew Szawarski, da Universidade de Varsóvia, Polônia, em um dos artigos sobre o papel do placebo na pesquisa médica publicado na edição de janeiro da revista Science and Engineering Ethics. Segundo o filósofo, a razão é que a eficácia de um composto químico qualquer - inócuo ou farmacologicamente ativo - depende também das características do medicamento (como cor, forma, aroma), da pessoa que o toma, da relação com o médico e mesmo das circunstâncias em que é usado. Sobrevivência - Nikola Biller-Andorno, da Universidade de Goettingen, Alemanha, e consultor em ética da Organização Mundial da Saúde, apresenta uma alternativa. "A dicotomia entre substância 'ativa' e 'placebo' não é adequada, uma vez que os placebos podem produzir efeito e que parte da ação das substâncias 'ativas' pode ser decorrente do 'efeito placebo'. Portanto, a terapia com placebo não deve ser considerada ausência de tratamento", escreve Andorno em um dos artigos da Science and Engineering Ethics. "Em vez de pensar no emprego de um ou de outro, pode ser mais apropriado imaginar como o efeito placebo pode ser usado para melhorar

a eficiência de uma determinada terapia", propõe. O neurocientista Raul de La Fuente-Fernández, da Universidade de Colúmbia Britânica, no Canadá, e do Hospital Arquiteto Marcide, em La Coruna, Espanha, concorda com a necessidade de se alterar a forma de ver o placebo. Na sua opinião, é hora de repensar a estrutura dos estudos científicos. "Observações recentes indicam que chegou o momento de planejar investigações apropriadas que utilizem o placebo", afirma o pesquisador. Para ele, o efeito placebo pode ser um mecanismo que os seres humanos desenvolveram a partir da seleção natural. "Num período em que não existiam tratamentos ativos disponíveis, a capacidade de responder a remédios com supostas propriedades curativas poderia elevar a sobrevivência", comenta La Fuente, que dois anos atrás desvendou como substâncias inócuas agem no sistema nervoso de pessoas com mal de Parkinson, que provoca a perda do controle dos movimentos e mata progressivamente as células produtoras de dopamina. No artigo da Science and Engineering Ethics de janeiro, em que comenta as evidências bioquímicas do efeito placebo, La Fuente lança a idéia de que esse efeito de sugestão já deve ter sido maior, antes de surgirem os medicamentos atuais: "O poder de cura da fé pode ter diminuído nos tempos modernos como conseqüência da crescente influência que o método científico, uma vez estabelecido na literatura médica como a única ferramenta válida para se chegar à verdade, pode ter tido na mente da população geral." •


A inexistência de Plutão JOSé CASTELLO

Clyde Tombaugh, o astrônomo que descobriu Plutão, o mais remoto dos planetas, foi contemporâneo de meu pai, José Ribamar. Ambos nasceram no longínquo verão de 1906, Tombaugh numa noite em que o céu do Hemisfério Norte era riscado por um cometa, o Schlumberger, enquanto meu pai, um piauiense, veio ao mundo respirando a aspereza do firmamento nordestino. Um ano antes, em 1905, morreu Júlio Verne, o criador da ficção científica, e minha mãe, que é espírita, assegura que Tombaugh foi a reencarnação de Verne. Não sei se um ano basta para um processo tão complexo, mas ela argumenta que, no campo espiritual, a lógica é sempre outra, ou como prefere dizer, é "invertida". Mas não é isso o que interessa aos senhores, eu presumo, e nem a mim, coitado de mim, que estou aqui para ser julgado por um crime inexistente. Matar um cachorro, isso basta para levar um sujeito para as grades? Batizei meu primeiro cachorro, um vira-lata, de Plutão. Como todos sabem, Plutão, o planeta e não meu cachorro, tem uma órbita excêntrica, isto é, que se desvia ou afasta de seu centro; e meu cachorro, que se comportava como um tamanduá, tinha atração por cupins. Ele não latia, talvez pela ausência de dentes, ou então por temperamento - e meu avô afirmava que era mudo. Era um bom cachorro, ainda que excêntrico. De que mesmo eu falava? Ah, sim, de Plutão, o planeta, e não de Plutão, o cachorro. E de Clyde Tombaugh, o astrônomo que descobriu o astro, não o cachorro, e de meu pai, José Ribamar, que nada descobriu além da rudeza do mundo. Quando Tombaugh fez seu achado científico, tinha só 24 anos, e meu pai, em conseqüência, também. Mas meu pai, aos 24 anos, não tinha tempo a perder com a observação do céu, já que, como advogado, passava suas horas, ao contrário, com os olhos derramados sobre processos judiciais. Aliás, na mesma pose contrita dos tamanduás que fuçam os formigueiros. Plutão, o planeta, tem uma lua, Caronte, que é só um pouco menor que ele. E, não fossem os movimentos giratórios que faz em torno de seu mestre, se poderia afimar que ela sim, Caronte, é o planeta, e não Plutão. Ambos, Plutão e Caronte, viajam no espaço sempre face a face, quer dizer, numa espécie de namoro silencioso, e sem brigas, já que nunca se dão as costas. Pois Plutão, meu cachorro, era também um animal extravagante. Quando saíamos, costumava andar sempre às minhas costas, e nunca à frente, como fazem os cachorros nos filmes americanos, nas expedições de caça e nas batidas policiais. Se latia, vacilava, era gago. Se rosnava, afogava-se no próprio resmungo. Plutão, como Vênus e Urano, tem uma rotação retrógrada, quer dizer, viaja na direção oposta à dos outros planetas. Enquanto os outros avançam, ele regride. Foge, mas de quê? A verdade é que Plutão, meu cachorro e não o planeta, é um vira-lata medroso, tanto que às vezes se põe a correr só por causa de um sapato largado na rua. Tinha suas fobias, então se parecia com Plutão, o planeta, que talvez gire ao contrário pelo mesmo motivo, algum horror, alguma aversão monstruosa, sabe-se lá a que, já que ainda não existe a psicologia dos planetas. Como o planeta, meu cachorro também teve um apelido, Bafo, que vinha de seu mau hálito - e, quando o chamava de Bafo, minha mãe dizia que se tratava de outro cachorro, não do que ela costumava alimentar. Também a descoberta de Plutão é atribuída, muitas vezes, a Percival Lowel, e não a Tombaugh. E Plutão, o planeta, possui ainda um segundo nome, Hades, o deus do inferno, porque é mesmo um inferno ter dois nomes e não saber ao certo quem é. Como vocês dizem, cometi meu crime - se é que matar um cachorro é um crime - porque não suportava mais essa tendência à duplicidade, ao retorno e à regressão. Transformeime em seu Caronte, fui escravo de suas manias, eu, um homem respeitável, e mais forte, como Caronte, que trabalho no Tribunal de Contas, na seção de registros e catalogações. Tornei-me só um apêndice, um satélite de meu cão, e quando percebi que aquilo chegara a 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100


um ponto insuportável, não tive alternativa. Porque um crime é isso, não é uma decisão, não é um impulso maléfico, não é uma tara, é só uma maneira de fugir. Só que, ao fugir, esbarramos numa imensa muralha. Se Plutão (Hades) é o deus do inferno, não é à toa. Desde rapaz, quando já não conseguia controlar meus impulsos sexuais, passei a especular se o demônio, de alguma forma, se instalara em meu corpo. Levado por sei lá qual senso de martírio, cultivei costeletas diabólicas. Aquilo me fez mal, mas fazia sentido, era um incômodo que, mesmo incomodando, emprestava uma direção às minhas excentricidades. Outra coincidência infernal é que Plutão, o planeta, foi descoberto por acaso, na verdade como conseqüência de um erro científico, que apontava, desastradamente, a existência de um planeta num lugar onde, a rigor, não deveria haver planeta algum. Tomando o erro a sério, Tombaugh empenhou-se na pesquisa do céu e descobriu Plutão, um erro científico, mas um planeta verdadeiro. Eu, que também nasci por causa de um cálculo malfeito nas tabelas que minha mãe usava para não engravidar, surgi, como um homem real, num lugar em que não devia haver homem algum. Há quem pense que Plutão deve ser considerado, na verdade, só um asteróide, ou um cometa, e não um planeta, do mesmo modo que meus colegas do Tribunal de Contas costumam acreditar que eu deveria ser apenas um auxiliar de escritório, ou no máximo um subalterno, e jamais um técnico graduado em contabilidade. Meu diploma, de fato, é falso: eu o comprei de um árabe que vive em Botucatu. Não era um especialista em falsificações, mas porque gostava muito de Plutão, não o planeta, mas meu cachorro, um dia, com pena de minha vida miserável (eu sobrevivia como empregado temporário de uma pastelaria), me arrumou o diploma e me salvou. Por que matei Plutão, meu pobre cachorro, que agora inexiste? Eu o amava. Quando o comprei, acreditava que as características do planeta que desde cedo identifiquei em mim se transfeririam para ele, e que, assim, ele me salvaria. Elas se transferiram, mas continuaram também em mim, e, ao contrário, se exacerbaram, de modo que não me restou alternativa, tive que matá-lo, para me livrar daquilo que nos aproximava. É difícil suportar a semelhança. A desgraça foi que D. Romüda, minha vizinha, assistiu a tudo entre os lençóis de seu varal de roupas, e me denunciou ao Tribunal Verde. E agora, que aqui estou, diante de iminentes veterinários, ecologistas, protetores de animais, não sei se conseguirei me defender, não creio que serei capaz, porque para todos vocês um cachorro vale muito mais que um homem. Matei Plutão, mas não matei o planeta que me habita - e aviso, desde logo, que desprezo a astrologia, ciência de dondocas e de mentirosos. Plutão, meu cachorro, não matou Plutão, o planeta que me inferniza, que me empurra para trás e que, agora mesmo, enquanto tento me defender diante desse tribunal, dá cambalhotas no Armamento, desperdiçando energia e rindo do universo. Não matou porque um cão não pode exterminar um planeta, mas eu, eliminando Plutão, o cachorro e não o planeta, cheguei a acreditar que tinha obtido a salvação. Pura tolice.

é jornalista e escritor, autor, entre outros, de Vinícius, o poeta da paixão e Pele: os dez corações do rei.

JOSé CASTELLO

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Chiropsalmus quadrumanus (à esquerda) e Tamoya haplonema: medusas brasileiras da classe Cubozoa, grupo-irmão dos Staurozoa 102 ■ JUNHO DE 2004 • PES0.UISA FAPESP K


CIÊNCIA OOLOGI

Testemunhas

a

terra

primitiva Medusas fixas formam nova classe de animais marinhos

FRANCISCO BICUDO

arecem cogumelos gelatinosos - vermelhos, azuis, verdes, alaranjados, amarelos, até mesmo luminescentes - que se movem pelo mar como se dançassem. Aprecie, mas não se aproxime esbarrão pode provocar envenenamentos fatais. Eis os cnidários, grupo de animais invertebrados antigamente chamados de celenterados, representado pelos pólipos, águas-vivas, hidras e medusas. "Não são fascinantes?" observa o biólogo Antônio Carlos Marques, diante da imagem de uma medusa transparente na tela do computador de sua sala, no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP). "De uma certa forma, tudo começou com eles." Surgidos há cerca de 600 milhões de anos,


os cnidários - um grupo hoje formado por cerca de 11 mil espécies - foram um dos primeiros animais pluricelulares da Terra, já com tecidos organizados e um esboço de aparelho digestivo. Marques identificou uma nova classe de cnidários, batizada de Staurozoa - uma classe reúne animais com características semelhantes, ainda que sejam bastante diferentes entre si, já que devem ter se originado de um mesmo ancestral (elefantes e ratos pertencem à mesma classe, os mamíferos, embora sejam espécies distintas). São cerca de 50 espécies com representantes vivos, sem contar os fósseis, agrupadas em duas ordens, em um estágio abaixo da classificação dos seres vivos. As medusas de uma dessas ordens apresentam uma diferença básica em relação às espécies dançantes: as da nova classe vivem agarradas a rochas ou algas, por meio de uma estrutura semelhante a uma ventosa, o pedúnculo. Seu trabalho - feito em colaboração com Marcello Simões, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Botucatu, e com o norte-americano Allen Gilbert Collins, da Escola Veterinária (ITZ, na sigla em alemão), de Hannover, na Alemanha foi o principal estudo publicado na edição do início do ano da revista Invertebrate Biology. A identificação dos Staurozoa, que inclui representantes fósseis, é o primeiro passo na direção do plano mais ousado de Marques: montar a árvore genealógica do grupo considerado a base de evolução dos animais - ou metazoários - e definir como era um dos primeiros seres a habitar a Terra. "Agora acreditamos que o ancestral comum desse grupo deve ter sido uma linhagem que vivia fixa, sem se deslocar", comemora o biólogo de 34 anos, contratado há quatro pela USP. "É um avanço e tanto." Seus estudos se baseiam na teoria cladística, corrente de pensamento criada há cerca de 50 anos pelo alemão Willi Hennig, que adota a evolução como referência para a classificação dos seres vivos, baseada nas características externas comuns. "Para a cladística", comenta Marques, "somente se considera válido o grupo com um ancestral comum exclu104 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100

sivo, não compartilhado com nenhum outro grupo." Antes de Hennig predominava a escola chamada gradista, segundo a qual os seres vivos deveriam ser agrupados sem necessariamente se respeitar a origem dos grupos. Esse raciocínio, hoje visto como simplista, fez com que, por exemplo, todos os peixes fossem agrupados na classe Pisces por terem escamas e cara de peixe. Porém, se adotados outros elementos de classificação, há peixes, chamados ósseos, que ficam mais próximos de todos os outros vertebrados do que dos outros peixes, os cartilaginosos. Na verdade, a preocupação em encontrar formas de reunir os animais é bem mais antiga e interessou filósofos como Aristóteles, na Grécia Antiga. O sueco Carolus Linnaeus, no Systema naturae, de 1735, propôs uma padronização dos nomes dos seres vivos que persiste ainda hoje: os nomes escritos em latim, sempre usando duas palavras, a primeira para apenas o gênero; as duas juntas, a espécie. A atual escala de classificação dos seres vivos, que nasceu com Linnaeus, funciona como um funil com sete estágios, que sai do mais geral, os reinos, que representam os conjuntos maiores, até chegar ao particular, a espécie. As classes estão entre os compartimentos mais abrangentes, abaixo dos dois primeiros estágios, os reinos e os filos, e acima das ordens, das famílias, dos gêneros e das espécies. No filo dos artrópodes, por exemplo, há as classes das aranhas, dos crustáceos e dos insetos. Marques percebeu que havia algo errado nas classes dos cnidários durante o doutorado, concluído em 1997: animais muito diferentes, provavelmente com ancestrais distintos, estavam em um mesmo grupo. Foi pu-

Relações Filogenéticas nos Cnidaria, com Ênfase nos Medusozoa MODALIDADE Jovem Pesquisador COORDENADOR ANTôNIO CARLOS MARQUES

INVESTIMENTO R$ 120.799,43

- IB/USP

xando a ponta do novelo que ele conseguiu identificar e caracterizar os Staurozoa, que ganharam esse nome em razão de uma de suas principais características: o pedúnculo em forma de cruz (em grego, stauros), que fixa o animal às rochas. A Halyclistus octoradiatus, a espécie estampada na capa da revista Invertebrate Biology, exibe um pedúnculo vermelho vivo, que lembra uma língua colocada para fora da boca. Seus oito tentáculos amarelos, com as pontas cor-de-rosa, deixam esse invertebrado dos mares com forma semelhante à de uma flor. "Os Staurozoa trazem informações básicas sobre os primeiros passos de evolução da vida na Terra", comenta Allen Collins, colaborador de Marques na Alemanha. Até os dois começarem a trabalhar juntos, em 1999, a maioria dos estudos sobre os cnidários enfatizava apenas a descrição de espécies, numa abordagem de varejo, sem uma visão abrangente. "Ainda hoje são raros os trabalhos sobre os maiores conjuntos de seres vivos, que são fundamentais porque, quanto maior a abrangência, mais significativo o impacto", diz o pesquisador da USP. Raridades no Brasil - A nova classe é formada por duas ordens. A primeira, Conulatae, abriga apenas representantes fósseis, que teriam existido de 550 a 200 milhões de anos atrás, entre os períodos geológicos Cambriano e Triássico. As espécies dessa ordem tinham a forma de um cone de sorvete e viviam aderidas a superfícies marinhas, hoje de depósitos fossilíferos, localizados principalmente nas atuais bacias dos rios Amazonas e Paraná, ocupadas por água salgada há milhões de anos. Os cerca de 50 representantes vivos formam a outra ordem, Stauromedusae. Estão nesse grupo as medusas fixas, com até 5 centímetros de comprimento, e um corpo formado por uma base cilíndrica com uma ventosa em uma das extremidades e os tentáculos na outra. Suas cores variam de um vermelho ou laranja vivos a um marrom pálido. Solitários e carnívoros, alimentando-se de larvas de crustáceos e de outros animais, são comuns em águas frias do litoral do Japão, do Canadá e dos Estados Unidos. O Brasil possui apenas uma espécie, a Kishinouyea corbini, com no máximo 1 centímetro de comprimen-


Lychorhiza lucerna: medusa da classe Scyphozoa de 50 centímetros de diâmetro

to. "Até hoje só foram encontrados dois exemplares dessa ordem, um no litoral do Espírito Santo e outro em Cabo Frio, no Rio de Janeiro", conta Marques. "São raríssimos por aqui." Até o reconhecimento dos Staurozoa havia quatro classes conhecidas de cnidários, assim chamados por possuírem células urticantes conhecidas como cnidócitos em seus tentáculos. A primeira é a Anthozoa representada pelos corais e pelas anêmonas-do-mar, abundantes em águas rasas. Os Scyphozoa são o grupo das águas-vivas, capazes de se deslocar e nadar livremente, como a Aurélio, aurita, uma das espécies mais conhecidas, com cerca de 15 centímetros de diâmetro, cujo formato lembra um guarda-chuva azulado e quase transparente. As hidras, incluindo a mais famosa delas, a caravela-domar (Physalia physalis), fazem parte da Hydrozoa, a terceira classe. Em sua fase de larva - ou pólipo, antes de se tornar um adulto ou medusa -, os animais

aessa ciasse se parecem com uma miniárvore de galhos muito finos, como a Corydendrium parasiticum. e essas três classes foram propostas ainda durante o século 19, a quarta, a Cubozoa, foi descrita apenas em 1975 pelo alemão Bernhard Werner. É formada por cerca de 25 espécies, conhecidas genericamente como águas-vivas - algumas delas venenosas, como a vespa-do-pacífico (Chironex fleckeri), que habita os mares próximos à Austrália. No litoral brasileiro, é possível encontrar a Chiropsalmus quadramanus, que chega a 15 centímetros de diâmetro, e a Tamoya haplonema, ambas com um formato semelhante a sinos - e venenosas. Antes de ganhar vida própria, os representantes da classe Staurozoa faziam parte dos Scyphozoa, mas as análises moleculares de Marques e Collins, combinadas com análises de evolução

morfológica, mostraram que havia mais diferenças do que semelhanças entre os dois conjuntos de animais. Era como se uma ave como uma galinha estivesse no mesmo conjunto do morcego, um mamífero. A reclassificação dos cnidários resultou da análise comparativa de 87 características das quatro classes então já descritas, como as estruturas das células e do próprio corpo, os tipos de ciclo de vida (alguns não apresentam a fase de pólipo, outros não chegam a medusas) e as formas de reprodução (nem sempre a fertilização é direta). Foram quase cinco anos de trabalho intensivo até se chegar à demonstração de que as quatro classes deveriam ser cinco. Agora, com o trabalho pronto, abriram-se perspectivas de entender um pouco melhor como começou a história dos animais no planeta. "Estamos tentando documentar uma pequena parte de um mundo que está muito próximo de nós", anima-se Collins. • PESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 105


I CIÊNCIA

Perdidas

espaço

Brasileiros descobrem quatro berçários de estrelas fora das galáxias

um recanto do Universo onde não se julgava haver nada, uma equipe de astrofísicos do Brasil e fi da França identificou quatro novos berçários de estrelas quentes e jovens, com idades entre 3,2 milhões e 5,6 milhões de anos (veja pontos azuis luminosos em destaque na página ao lado). Ricas em metais e compostas de hidrogênio carregado de partículas elétricas, essas regiões se localizam em pontos aparentemente vazios do espaço intergaláctico existente nas redondezas de um compacto grupo de cinco galáxias, conhecido como Quinteto de Stephan, distante 280 milhões de anos-luz da Terra. Um ano-luz eqüivale ao espaço percorrido pela luz em um ano, algo como 10 trilhões de quilômetros. Os berçários se encontram na cauda de gás de uma das galáxias do Quinteto de Stephan, a NGC 7319, mas se situam a cerca de 70 mil anos-luz de seus braços espirais, onde normalmente ocorre a formação estelar. Isso quer dizer que as novas regiões estão literalmente fora das galáxias. Suas dezenas ou talvez centenas de estrelas estão, portanto, "soltas" no Cosmos, fora do seu lugar cativo, como se fossem órfãs ou eremitas do espaço. São estrelas sem galáxias. Perto do tamanho de uma galáxia, que pode conter bilhões de estrelas, como a Via Láctea, os novos berçários são um ponto imperceptível no Universo. A descoberta de regiões H II, nome técnico dado aos locais em que se origi106 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100

nam estrelas novas, em zonas externas às galáxias, é extremamente rara e recente. "Até dois anos atrás, os astrônomos acreditavam que a formação de estrelas, em especial das mais jovens, só ocorria dentro das galáxias", diz a pesquisadora brasileira Claudia Mendes de Oliveira, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), uma das autoras da descoberta dos berçários, relatada num artigo científico publicado na edição de 10 de abril do The Astrophysical Journal. "Somente no interior delas haveria densidade de gás alta o bastante para isso acontecer." No meio intergaláctico, a densidade de gás seria baixa demais para levar à formação de estrelas. Seria, mas não é - a julgar pelo trabalho redigido pela equipe franco-brasileira e por outros artigos científicos recentes.

Evolução de Galáxias em Grupos e Aglomerados MODALIDADE Projeto Temático COORDENADORES LAERTE SODRé JúNIOR E CLAUDIA MENDES DE OLIVEIRA

INVESTIMENTO R$ 207.588,40

A identificação de quatro berçários de estrelas jovens e quentes nos arredores do Quinteto de Stephan - obtida com a utilização de instrumentos instalados no Observatório Gemini Norte, no Havaí - representa a segunda evidência de peso a favor da idéia de que existem, sim, regiões H II fora das galáxias. A primeira surgiu em 2002, quando um grupo de pesquisadores da Europa, Austrália e Japão descobriu uma solitária região H II nas proximidades da constelação de Virgem. Depois da publicação desses trabalhos pioneiros, dois outros grupos internacionais encontraram mais seis berçários de estrelas fora de galáxias. Pelo jeito, há mais grupos de jovens estrelas órfãs vagando pelo espaço intergaláctico do que qualquer astrofísico um dia imaginou. "A presença de regiões H II fora de galáxias não é tão rara como pensávamos até agora", afirma Laerte Sodré Júnior, também do IAG-USP, outro autor da descoberta dos berçários junto ao Quinteto de Stephan. "Na verdade, estamos diante de um novo mecanismo de formação de estrelas." Ainda assinam o artigo no The Astrophysical Journal o brasileiro Eduardo Cypriano, que hoje mora no Chile, e a francesa Chantal Balkowski, do Observatório de Paris. As pesquisas da equipe contam com financiamento da FAPESP e apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e do Programa de Apoio a Núcleos de Excelência (Pronex).


As galáxias do Quinteto de Stephan e os diminutos berçários de estrelas jovens (pontos ampliados em azul): formação estelar no vazio intergaláctico

Encontrar regiões H II no meio do nada ainda não é prova cabal de que há formação de estrelas jovens nesse trecho do espaço, fora das galáxias. •• As estrelas podem hoje estar ali, mas isso não significa que sempre estiveram. Seu local de nascimento pode ter sido o interior de uma galáxia ! próxima e, mais tarde, por algum motivo, provavelmente colisões entre galáxias, essas estrelas podem ter sido expelidas para o meio intergaláctico. Seria uma situação análoga à de um brasileiro que, por algum motivo, deixa seu país e se muda para os Estados Unidos. Isso não o torna norte-americano. No máximo, ele está norte-americano. No caso dos quatro berçários de estrelas identificados nos arredores do Quinteto de Stephan, os astrofísicos contam com uma evidência para defender a hipótese de que essas regiões H II devem ter se originado exatamente no lugar onde atualmente se encontram: sua extrema juventude em termos astronômicos. Os quatro berçários de estrelas são considerados excessivamente jovens para terem surgido num ponto do Universo (o interior de uma ou mais galáxias vizinhas) e depois migrado para outro (o meio intergaláctico). Esse tipo de deslocamento demanda mais tempo para ocorrer do que a idade mé-

dia atribuída às novas regiões H II, 4,6 milhões de anos. Logo, os berçários devem ter nascido onde estão hoje. O cenário parecia perfeito a não ser por um detalhe. Como os pesquisadores explicariam a alta metalicidade medida nessas estrelas jovens que se formaram fora das galáxias, paradoxalmente num ambiente quase desprovido desse tipo de elementos químicos? Afinal, a quantidade de metais presentes nas novas regiões H II é da mesma ordem da encontrada no interior de galáxias e estrelas, como o Sol. "A verdade é que ainda não temos uma boa resposta para essa pergunta", admite Claudia. "Mas propomos um cenário para dar conta dessa situação." Para os astrofísicos, as regiões H II se originaram no quase vazio do meio intergaláctico a partir de material já reciclado e enriquecido com metais que, cerca de 100 milhões de anos atrás, havia sido ejetado do interior

do Quinteto de Stephan devido a colisões entre as suas galáxias. Seu elemento constituinte, portanto, não foi apenas o gás primordial do meio intergaláctico, pouco denso e pobre de metais. Foi sobretudo o material mais pesado e metálico • que se soltou das galá' * • I xias vizinhas. Os cientistas suspeitam de que os berçários de estrelas estejam associados a nuvens de gás frio (hidrogênio neutro) que se desprenderam do Quinteto de Stephan e hoje se encontram na cauda da galáxia NGC 7319. Devido a alguma instabilidade mais recente, ocorrida há poucos milhões de anos, essas nuvens de gás deram origem às regiões H II no meio intergaláctico. "A existência dessas regiões representa um mecanismo de enriquecimento e transferência de metais das galáxias para o meio intergaláctico", afirma Sodré Júnior. Agora que descobriram a existência de berçários estelares no vazio do Universo, os pesquisadores vão ter de acompanhar a evolução dessas inusitadas formações. Eles acham que essas estrelas soltas no espaço podem, um dia, originar um dos eventos mais energéticos do Cosmos: explosões que geram supernovas, estrelas capazes de, temporariamente, brilhar mais do que uma galáxia inteira. • PESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 107


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USP

Na série de reportagens sobre os 70 anos da Universidade de São Paulo, Pesquisa FAP ESP mostra as soluções tecnológicas criadas pela Escola Politécnica da USP, celeiro de profissionais que ajudaram a modernizar o país

Usina de engenhos FABRíCIO MARQUES

s 111 anos de história da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP) resumem a trajetória de um país que soube se modernizar a passos velozes. São Paulo ganhou ares cosmopolitas graças, em boa medida, à contribuição de pioneiros como o engenheiro Antônio Francisco de Paula Souza (1843-1917) ou o construtor de edifícios e palacetes Francisco de Paula Ramos de Azevedo (18511928), ambos fundadores da Escola Politécnica de São Paulo, em 1893. No final dos anos 1920, quando governar virou sinônimo de construir estradas, a instituição forneceu quadros para riscar um primeiro rascunho da malha rodoviária que, décadas mais tarde, substituiria de vez as ferrovias. Engenheiros politécnicos aventuraram-se até a produzir blindados e grana108 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100

das quando São Paulo insurgiu-se contra Getúlio Vargas em 1932. A Escola, que se incorporou à Universidade de São Paulo em 1934, logo ganharia fama de celeiro de homens públicos - um punhado de governadores paulistas passaram por ela. Entre as décadas de 1950 e 1970, aquela fase em que a economia brasileira cresceu a taxas de tigre asiático e carecia de soluções tecnológicas para lastrear o desenvolvimento, o engenheiro politécnico viveu talvez a sua fase de ouro. "A gente ia de ônibus para a faculdade carregando aquela enorme régua T e chamava atenção. Muito futuro engenheiro arrumou namorada assim", lembra o professor Moacyr Martucci Júnior, presidente da Comissão de Pesquisa da Poli-USP. O advento da informática provocou um terremoto na engenharia, que explodiu em novas especialidades. Da engenharia elétrica, brotou a engenharia de computação. Das engenharias elétrica e mecânica surgiu a mecatrônica. Os computadores levaram a régua T a uma merecida aposenta-


A Caverna Digital simula ambientes interativos para pesquisas em diversas áreas da engenharia

doria e estabeleceram novas bases para o ensino e a pesquisa da instituição, onde trabalham hoje 495 docentes e estudam 4,3 mil alunos de graduação e 4 mil de pós-graduação. A Poli-USP metamorfoseou-se para manter seu papel modernizador e continuou criando engenhos capazes de melhorar o bem-estar da sociedade. É possível citar contribuições marcantes de pesquisadores e profissionais formados da instituição em inúmeras áreas. Nos anos 1960, o planejamento na área de transportes no país, que transformou a engenharia de tráfego em ciência e foi aplicado na construção das linhas de metrô, também despontou graças ao trabalho de professores da Poli, como íon de Freitas e Antônio Galvão Novaes. Entre 1990 e 1994, a Escola Politécnica da USP foi dirigida pelo professor Francisco Romeu Landi, diretor-presidente do Conselho Técnico-Administrativo da FAPESP, que morreu em abril aos 71 anos. Se o Brasil hoje dispõe de uma indústria de microeletrônica e expertise na área de telecomunicações, deve isso à capacidade da Escola Politécnica em fazer pesquisa e formar mão-de-obra nessas áreas nos últimos 30 anos. A Escola reivindica a criação do primeiro computador brasileiro. Batizado de "Patinho Feio", foi obra de pesquisadores da área de engenharia elétrica, em 1972. Passados 30 anos, essa semente produziu uma árvore de frutos carregados. Embora o Brasil, como vários outros países, não tenha conseguido desenvolver uma indústria de computadores competitiva como planejado inicialmente, os pesquisadores da área de informática da Poli-

USP destacaram-se na criação de softwares e na segurança de redes. O Laboratório de Arquitetura e Redes de Computadores da Escola é referência mundial em códigos de criptografia. Paulo Barreto, pesquisador da Poli e criptologista-chefe da empresa brasileira Scopus, participou da criação dos algoritmos adotados para assinatura digital da Comunidade Européia e do governo norte-americano, depois de vencer concursos internacionais que definiram os padrões de segurança. O Laboratório também criou ambientes seguros para páginas de diversos bancos na Internet e desenvolveu um sistema de segurança na arrecadação do Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), que acabou com as fraudes praticadas nos computadores do Detran de São Paulo. Tanque numérico - No campo das telecomunicações, professores da Poli-USP foram contratados no início dos anos 1970 pela Telebrás para ajudar a modernizar as centrais telefônicas brasileiras, que eram analógicas. A digitalização das centrais ampliou o acesso dos brasileiros ao telefone e integrou o território nacional. Esse grupo também desenvolveu, em 1976, o protótipo que propiciou as ligações de discagem direta internacional. Parte desses pesquisadores acabou desgarrando-se da Escola para fundar o Centro de Pesquisas e Desenvolvimento da Telebrás (CPqD), um dos principais dínamos da pesquisa brasileira em telecomunicações. A indústria naval brasileira ganhou consistência a partir de 1956, depois de um estratégico convênio celePESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 109


Nos primórdios da Escola Politécnica, um dos laboratórios reunia modelos arquitetônicos de escadas e pórticos

brado entre a Marinha e a Poli, que deu origem ao Departamento de Engenharia Naval e Oceânica. O departamento continua ativo, mas encontrou novas vocações. Nos últimos quinze anos, fortaleceu os laços com a Petrobras numa linha de pesquisa que culminou com a criação, em 2001, de um tanque de provas numérico. Trata-se de um simulador, dotado de um cluster de 120 microcomputadores pessoais, capaz de projetar modelos tridimensionais de qualquer coisa: aviões, carros, navios. "Num tanque numérico, o processamento de informações é muito mais rápido e é possível realizar simulações de sistemas bastante complexos", diz o professor Hélio Mitio Morishita, chefe do departamento. No caso da Petrobras, o principal interesse é o desenvolvimento de sistemas oceânicos, como plataformas de petróleo, complexos demais para serem testados num tanque de provas de verdade. Marinha usou os serviços do tanque numérico da Poli-USP antes de fazer as adaptações no porta-aviões São Paulo, que pertencia à França. Havia dúvidas se a enorme embarcação caberia no dique seco do arsenal da Marinha, no Rio, onde seria reformada. Com base em imagens e medidas tiradas do porta-aviões e do dique, o tanque mostrou que era possível, sim, estacionar o porta-aviões lá dentro - tirando uma fina, é verdade. Só depois da simulação é que a reforma começou. Ferramentas de realidade virtual são cada vez mais usadas em escolas de engenharia. O Laboratório de Siste110 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100

mas Integráveis de Politécnica abriga, desde 2000, a Caverna Digital, um complexo para realidade virtual, que cria um ambiente interativo por meio de projeções de imagens múltiplas. Até seis pessoas podem entrar na caverna ao mesmo tempo e interagir com o mundo simulado por computador. Além das aplicações nos ramos da engenharia, a caverna também pode ser usada na medicina, na astronomia, na produção de jogos interativos. O elo entre as vocações do passado e as do presente torna-se mais palpável em alguns departamentos da Poli-USP, como o de Engenharia de Energia e Automação Elétricas. Sob o comando do professor José Roberto Cardoso, o Laboratório de Eletromagnetismo Aplicado segue trabalhando com a pesquisa em tração elétrica de ferrovias e de metrôs. "Como participamos da implantação da primeira linha do metrô de São Paulo, o conhecimento ficou acumulado", diz Cardoso. Não há muito trabalho a fazer em relação a ferrovias, que cada vez mais perdem importância como meio de transporte. Mas como várias capitais brasileiras estão construindo seus metrôs, o laboratório tem sido convocado a ajudar, fazendo simulações das composições caminhando na linha em várias velocidades, além da quantidade de energia necessária para fazer todo o sistema funcionar. O laboratório também se dedica à pesquisa sobre interferências eletromagnéticas. Ajudou, por exemplo, fabricantes de eletrodomésticos a controlar as emissões eletromagnéticas de seus produtos nos níveis exigidos internacionalmente. Também auxiliou a Marinha a fazer um estudo de compatibilidade eletromagnética do projeto de submarino de propulsão nuclear que está


Ramos de Azevedo ajudou a moldar a arquitetura paulista

sendo desenvolvido no complexo de Aramar, no interior paulista. Trata-se de um estudo sofisticadíssimo, dada a profusão de fios e circuitos previstos para o gigantesco protótipo. Mas a vida do laboratório não se resume a dar suporte para quem precisa. A pedido da Petrobras, foi desenvolvido um motor tubular linear para extração de petróleo que vai substituir os equipamentos mecânicos conhecidos como cavalos-de-pau instalados em 9 mil poços terrestres no país. O motor elétrico tem o dom de aumentar a vazão dos poços e sofre um desgaste menor, pois, ao contrário do cavalo-de-pau, não produz atrito com as paredes do poço. A Escola envolve-se em pesquisas de caráter teórico com a mesma disposição com que busca soluções para problemas prosaicos. No Departamento de Engenharia de Transportes, testa-se o emprego de um pavimento composto em que placas de concreto de cimento trabalham de forma aderida ao concreto asfáltico. A técnica, trazida nos Estados Unidos, cria uma superfície mais resistente e ajuda na manutenção de pavimentos com deficiências estruturais. O Departamento de Engenharia Metalúrgica e de Materiais, o de maior produção

Na Revolução de 32, os engenheiros fizeram blindados

acadêmica da Escola, desenvolveu um método capaz de reciclar a poeira de minério de ferro que era descartada e poluía o ambiente. Essa poeira, obtida em grande quantidade no processo de degradação do minério, entupia os fornos e era considerada imprestável. Num trabalho sobre o comportamento térmico de materiais, os pesquisadores da Poli constataram que, ao misturar a poeira de minério de ferro com carvão, produziam-se pelotas ou pequenos tijolos que, após um processo de cura, ficavam duríssimos e podiam ser armazenados. O desperdício e a poluição acabaram. Hoje as pelotas são usadas nos fornos como matéria-prima de aço. "A pesquisa teve grande importância na busca de processos limpos e não poluentes na metalurgia", diz o professor José Deodoro Trani Capocchi, chefe do Departamento de Engenharia Metalúrgica e de Materiais. São 400 trabalhos científicos publicados em revistas indexadas a cada ano. Seus pesquisadores às vezes ajudam a resolver crimes. A pedido da Polícia Científica de São Paulo, fazem pareceres sobre a deformação de projéteis ou o desgaste de outros materiais, capazes de elucidar as circunstâncias de homicídios ou acidentes. PESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 111


O motor tubular elétrico, desenvolvido a pedido da Petrobras, vai substituir bombas mecânicas de 9 mil poços de petróleo

Dentro da Politécnica, também funciona o Centro Internacional de Referência em Reuso da Água (Cirra), vinculado ao Departamento de Engenharia Hidráulica e Sanitária. O grupo de pesquisadores da instituição trabalha em várias frentes, do desenvolvimento de sistemas hidráulicos que economizem água (como uma caixa de descarga para vaso sanitário com apenas 3 litros de água) ao teste de estratégias de reaproveitamento de recursos hídricos, como o uso de água não tratada na agricultura, em sistemas de refrigeração de indústrias ou na irrigação de áreas verdes urbanas. Também ajuda a Agência Nacional de Águas a formular novas políticas contra o desperdício. No rol das aplicações práticas, um pesquisador do Cirra desenhou um sistema de reaproveitamento de água que servirá ao terceiro terminal no Aeroporto de Cumbica, em Guarulhos, a ser construído nos próximos anos. Hoje toda a água usada nos dois terminais do aeroporto, que recebe 14 milhões de passageiros por ano, é retirada de seu subsolo. A construção de um terceiro terminal vai requerer uma nova solução, pois o manancial está à beira do esgotamento e não terá água suficiente. A proposta é submeter a água servida a um tratamento parcial, utilizando-a de novo para lavar a pista e resfriar o sistema de ar condicionado do aeroporto, para citar dois exemplos. "É possível estabelecer um uso mais parcimonioso da água a partir de múltiplas estratégias", diz o professor Ivanildo Hespanhol, diretor do Cirra. 112 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESGIUISA FAPESP 100

Como na maioria das carreiras, o campo de conhecimento da engenharia expandiu-se muito nas últimas décadas e a Escola Politécnica esforçou-se em abarcar todos os desdobramentos, criando novos departamentos e especializações. Mas as mudanças e oscilações do mercado de trabalho andam tão abruptas que um ramo da engenharia muito disputado num vestibular pode ter seu interesse reduzido poucos anos mais tarde, quando o estudante estiver se formando. Isso já aconteceu várias vezes. A tradicional engenharia civil, por exemplo, perdeu força nos anos 1980, a década perdida em que o Brasil parou de fazer hidrelétricas e estradas, frustrando uma geração de jovens profissionais. Hoje a procura pela engenharia civil melhorou. Apesar do jejum de grandes obras, abriu-se espaço para os engenheiros, por exemplo, na expansão da construção civil e da infra-estrutura de saneamento. A engenharia de telecomunicações viveu o apogeu e a queda num curtíssimo espaço de tempo. Com as privatizações, em meados dos anos 1990, a concorrência no vestibular explodiu, mas houve uma severa retração em 2000 e 2001, que espantou o interesse dos candidatos. "Nem a euforia nem a ressaca se justificavam", diz Paul Jean Etienne Jeszensky, professor do Departamento de Engenharia de Telecomunicações e Controle. "Hoje caminha-se para um equilíbrio no mercado de trabalho, um cenário que não é tão bom nem tão ruim como já se imaginou", afirma. Tais oscilações são naturais e, exceto pela decepção que geram nos recém-formados, não trazem conseqüências profundas. Acontece que o engenheiro politéc-


0 Centro de Referência em Reuso de Água busca soluções para combater o desperdício

conta o impacto ecológico que a obra causaria. Construída no início dos anos 1980, a usina de Balbina, que abastece Manaus, capital do Amazonas, é um exemplo de belíssima obra de engenharia que perpetrou um crime ecológico, criando um gigantesco lago raso em que espécies de árvores apodrecem até hoje. "A formação excessivamente técnica às vezes faz com que o engenheiro raciocine sem levar em conta que há gente no processo", diz o professor Hélio Morishita, cujo departamento, o de Engenharia Naval e Oceânica, alterou seu currículo e hoje exige que seus estudantes façam 24 disciplinas optativas em outras unidades da Universidade de São Paulo.

nico é formado, antes de tudo, para se adaptar a novas situações, para estar pronto a solucionar problemas que sequer podem ser imaginados hoje. "A Escola fornece uma excelente base. A bagagem é do aluno", diz Jeszensky. "Preparamos profissionais para a tomada de decisões, profissionais que estão sempre prontos a aprender coisas novas", diz Moacyr Martucci, presidente da Comissão de Pesquisa. Assim como os engenheiros civis frustrados dos anos 1980 fizeram carreiras reluzentes dentro e fora da engenharia - o mercado financeiro, por exemplo, abasteceu-se fartamente desses profissionais -, a turma das telecomunicações será absorvida. Mas também existem cursos que não conhecem crise. O de engenharia de computação oferece duas turmas de 40 alunos a cada vestibular. Uma dessas turmas faz um curso nos moldes tradicionais. A outra tem uma grade curricular diferente, em que teoria e prática têm o mesmo peso. Os módulos se alternam a cada quadrimestre - ora o estudante dedica-se a disciplinas teóricas, ora faz um estágio numa empresa, que a própria Escola se encarrega de arrumar para os alunos. "O engenheiro sai formado com uma base teórica forte e também com uma notável experiência profissional", diz o professor Wilson Vicente Ruggiero, do Departamento de Engenharia de Computação e Sistemas Digitais. A Escola ensaia uma mudança conceituai na formação de seus alunos. Existe uma demanda do mercado de trabalho por profissionais com uma bagagem mais humanística. O engenheiro de hoje precisa levar em conta variáveis que eram relegadas antigamente. Já vai longe o tempo em que se projetava uma hidrelétrica sem levar em

escolha dessas disciplinas cabe ao estudante. O melhor é que eles tenham contato com a sociologia, a comunicação, a filosofia. Alguns resistem e vão fazer as disciplinas na Faculdade de Economia e Administração, que tem mais afinidades com a engenharia", diz Morishita. O Departamento de Engenharia Elétrica promoveu uma alteração semelhante no currículo. A humanização na formação dos alunos é um dos objetivos do Poli 2015, um programa para ajustar a Escola, até o ano de 2015, aos desafios desse início de século. Entre as metas declaradas do Poli 2015, destacam-se "a competência no relacionamento humano e na comunicação, a postura ética e o comprometimento cultural e social com o Brasil". Sem abrir mão, é claro, da excelência do ensino. O futuro da Poli-USP também é virtual. A educação a distância já é uma realidade. As aulas de 105 disciplinas são gravadas em vídeo e disponibilizadas na Internet, assim como o material didático utilizado pelo professor. Quem faltou à aula pode assisti-la em casa, na tela do computador. Caso o estudante virtual não entenda a explanação, pode interagir entrando num chat e fazendo perguntas. Se for uma dúvida que outro aluno já teve antes (80% delas são recorrentes), a resposta está armazenada e vem na hora. Senão, o professor responde mais tarde, por e-mail. Os cursos e seu material didático agora começam a ser franqueados a qualquer pessoa que tenha computador em casa. "A idéia é disseminar o conhecimento depositado na Poli para outras faculdades e estudantes de engenharia, é devolver à sociedade, da forma mais ampla possível, o investimento que ela fez nessa escola", diz o professor Wilson Vicente Ruggiero. Se der certo, a escola que nasceu vinculada à elite - os fundadores Ramos de Azevedo e Paula Souza tiveram de ir à Europa para se formar terá feito um belo acerto de contas com o passado. • PESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 113


Biblioteca de Revistas Científicas disponível na Internet www.scielo.org

Sociologia

Balanço religioso O artigo Desafios estratégicos da Igreja Católica, de Dermi Azevedo, jornalista e mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), procurou traçar uma perspectiva a longo prazo da Igreja Católica, à luz do Concilio do Vaticano II (1962-1965), evento histórico que procurou adequar a instituição aos desafios da modernidade. A investigação indica que o cristianismo, nas suas vertentes católica e evangélica, possui atualmente cerca de 2 bilhões de seguidores no mundo. Desse universo, 553 milhões estão na Europa, 802 milhões nas Américas, 351 milhões na África, 290 milhões na Ásia e 24 milhões na Oceania. O estudo faz um levantamento dos principais desafios estratégicos enfrentados pela Igreja Católica Apostólica Romana neste início de século, citando fatos como o avanço dos fenômenos da deseclesialização, o fim do eurocentrismo eclesiástico, a persistência do déficit democrático interno e a concorrência simultânea dos novos agrupamentos religiosos. O autor defende que, nos últimos 40 anos, houve um aprofundamento do descompasso entre a missão externa da Igreja, "que tem reconhecido os valores modernos", e o déficit democrático de suas estruturas e práticas internas. "A Igreja continua a enfrentar temas polêmicos, tais como o controle da natalidade, o celibato obrigatório para o clero, o reaproveitamento dos padres casados nas atividades eclesiais, o acesso das mulheres ao sacerdócio, a ordenação de homens casados e as questões de gênero e da homossexualidade", aponta Azevedo. Além disso, há a questão do casamento de católicos divorciados e sua participação nos sacramentos e na comunidade católica, as mudanças na liturgia e as inovações científicas, incidindo especialmente no campo da bioética. Para Azevedo, o processo de modernização da Igreja Católica, quando chegar o momento da sucessão de João Paulo II, será inevitável. LUA NOVA

- N° 60 - SãO PAULO 2003

www.scielo.br/scielo.php?script=scLarttext&pid=S010264452003000300004&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

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■ Inovação

Parcerias de sucesso Um caso de interação universidade-empresa considerado positivo. Este é o mote do artigo A relação universidade-empresa: comentários sobre um caso atípico, de Renato Dagnino e Erasmo Gomes, do Departamento de Política Científica e Tecnológica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O texto aborda a realização de um projeto de pesquisa e desenvolvimento (P&D) envolvendo docentes e pesquisadores da Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp e de uma empresa multinacional do setor de autopeças. "O caso de interação estudado foi considerado bem-sucedido no que diz respeito às atividades de pesquisa universitária e à formação de recursos humanos. Na gênese dessa interação está o relacionamento pessoal, visto que a empresa contratava muitos engenheiros formados pela universidade", aponta o estudo. A pesquisa possibilitou uma melhor compreensão sobre o comportamento dos professores da universidade, dos técnicos da empresa privada e das diferentes percepções que eles têm sobre os processos de interação. De acordo com o artigo, os impactos positivos mencionados pelos professores são, por exemplo, a possibilidade de obter novos conhecimentos e de repassá-los aos alunos, além da possibilidade de renovar as linhas de pesquisa existentes. Os técnicos da empresa julgaram o desenvolvimento de know-how próprio como uma das grandes vantagens da parceria, o que levou ambos os lados a recomendar um aumento no número de projetos realizados em cooperação. GESTãO E PRODUçãO DEZEMBRO 2003

- VOL. 10 - N° 3 - SãO CARLOS -

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104530X2003000300005&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt ■ Nutrição

Mascarando o gosto salgado A suplementação de alimentos com zinco pode melhorar a aceitação das crianças pelas refeições com sal. O artigo Suplementação com zinco pode recuperar apetite para refeições de sal, de autoria de seis pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília, procurou avaliar o efeito do metal em crianças de 8 meses a 5 anos de idade com falta de apetite para re-


feições que continham sal. "A falta de apetite é um dos motivos mais freqüentes de consulta em clínica pediátrica. Sabe-se que sua prevalência pode alcançar 15% de todas as consultas na faixa etária de 6 meses a 4 anos de idade em um ambulatório de pediatria", justificam os pesquisadores. O estudo, desenvolvido no ambulatório pediátrico do Hospital Universitário de Brasília, envolveu um total de 40 crianças de ambos os sexos. Todas foram selecionadas da população de crianças atendidas no ambulatório pediátrico a partir da queixa de falta de apetite para comida com sal. Dois grupos de 20 crianças foram acompanhados durante seis meses. As crianças do primeiro grupo receberam 1 mg/kg/dia de zinco sob forma de quelato, durante três meses, enquanto as do segundo grupo receberam uma solução de placebo durante o mesmo período. Em cada consulta era feita uma avaliação da história alimentar e se obtinha da mãe a informação referente ao apetite da criança. Os resultados mostram que a proporção de crianças suplementadas com zinco que respondeu com recuperação do apetite para refeições com sal foi maior do que a daquelas que receberam placebo. JORNAL DE PEDIATRIA (RIO DE JANEIRO) - PORTO ALEGRE - IAN/FEV 2004

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em um grupo de 37 mulheres, que recebeu duas aulas semanais de hidroginástica durante três meses. Um outro grupo de mulheres do mesmo tamanho foi usado como parâmetro na pesquisa. A aptidão física foi avaliada por meio de uma bateria de testes com avaliações de força e resistência de membros inferiores e superiores, mobilidade física, resistência aeróbica, velocidade, agilidade e equilíbrio. Os testes foram aplicados antes do início das aulas e no fim do programa, após três meses. O grupo da hidroginástica apresentou um melhor desempenho em todos os pós-testes, quando comparados com os resultados do próprio grupo no pré-teste. "Observamos em nosso estudo uma melhora significativa em todos os testes de aptidão física aplicados, após o treinamento com aulas de hidroginástica", disseram os pesquisadores no artigo. Eles concluíram que a prática de hidroginástica para mulheres idosas contribuiu significativamente para a melhoria da aptidão física relacionada à saúde. REVISTA BRASILEIRA DE MEDICINA DO ESPORTE - VOL.

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- N° 1 - NITERóI - IAN/FEV 2004 www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S151786922004000100003&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S002175572004000100011&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Educação

■ Idosos

Descrever o desenvolvimento de um material didático-instrucional, dirigido ao treinamento materno para preparar a alta hospitalar do bebê prematuro. Este é o objetivo do artigo Cartilha educativa para orientação materna sobre os cuidados com o bebê prematuro, desenvolvido por pesquisadoras da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto. A investigação reflete sobre a criação de um material educativo para o treinamento de mães, elaborado com a participação das enfermeiras, auxiliares de enfermagem e das próprias mães. Utilizando como modelo pedagógico a educação conscientizadora, fundamentada na teoria de que todos os seres vivos aprendem por meio da interação com o ambiente, as autoras escolheram a metodologia participativa. Mães e enfermeiras do hospital universitário de Ribeirão Preto, interior de São Paulo, atuaram efetivamente no processo de desenvolvimento da cartilha educativa sobre os cuidados com o bebê prematuro. "Mais do que oferecer uma coletânea de perguntas e respostas, apresentamos referenciais que auxiliam o desenvolvimento das potencialidades das mães e instigam a equipe de enfermagem a trabalhar de forma dinâmica com um aliado, o material educativo", dizem as pesquisadoras no estudo.

Vantagens da ginástica na água O sedentarismo, que tende a acompanhar o envelhecimento, é um importante fator de risco para as doenças crònico-degenerativas, especialmente as afecções cardiovasculares, principal causa de morte nos idosos. "A prática de exercício físico contribui de maneira significativa para a manutenção da aptidão física dos mais velhos, seja na sua vertente da saúde como nas capacidades funcionais", segundo o artigo Aptidão física relacionada à saúde de idosos: influência da hidroginástica, de autoria de Roseane Victor Alves, Manoel da Cunha Costa e João Guilherme Bezerra Alves, da Escola Superior de Educação Física da Universidade de Pernambuco (UPE), no Recife, e Jorge Mota, da Faculdade de Ciências do Desporto e Educação Física, de Portugal. Entre as várias possibilidades de se exercer uma atividade física existe uma em especial que foi considerada positiva pelos pesquisadores. "A hidroginástica apresenta algumas vantagens para esse grupo populacional, com o aproveitamento das propriedades físicas da água possibilitando um melhor rendimento aos idosos, além de oferecer menores riscos", escreveram os autores. Pouco estudada, a prática da ginástica na água foi analisada

Manual de instrução para as mães

REVISTA LATINO-AMERICANA DE ENFERMAGEM

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- N° 1 - RIBEIRãO PRETO - IAN/FEV 2004 www.scielo.br/scielo.php?script=scLarttext&pid=S010411692004000100010&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

PESQUISA FAPESP 100 • JUNHO DE 2004 ■ 115


Mãos soberanas HELOíSA SEIXAS

Começou de manhã. Ou talvez começasse antes, com o sonho - mas ela preferia acreditar que não, os sonhos não importam, os sonhos nunca importam. Começou de manhã. Ela estava lendo jornal, era uma quarta-feira, o dia estava nublado e tudo parecia petrificado em seu lugar, o mundo envolto por uma camada de tédio paralisante, da cor das cinzas, a única diferença tendo sido - o sonho. Recomeçando. Foi de manhã. Ela estava lendo jornal, era uma quarta-feira, o dia nublado. Acabara de se sentar para tomar café depois de arrumar a mesa da mesma forma - exatamente da mesma forma - que fazia sempre. Embora morasse sozinha havia muitos anos, tinha o hábito de pôr a mesa e se sentar para as refeições com todo o método, dispondo sobre a toalha quadriculada os ingredientes de seu café da manhã: a bandeja com frutas e o pote de cereal à direita; à esquerda, a caixa de biscoitos, o queijo e o mel; bem no centro, a garrafa térmica com o café e o açucareiro. Tudo sempre no mesmo lugar e na mesma ordem. E então, quando estava assim sentada em seu mundo ordenado, cercada por uma manhã cinzenta e banal, a história começou. Não foi nada, a princípio, apenas uma matéria, uma bobagem, coisa curiosa daquelas que encontramos nas páginas de ciência dos jornais. Ela achou graça, até. Falava de uma síndrome de nome estranho, que acabara de ser assunto de debate durante um congresso médico na Inglaterra: Síndrome do Dr. Strangelove. O nome era uma referência ao personagem de Peter Sellers no filme Dr. fantástico, aquele cientista cujo nazismo disfarçado teimava em aparecer num movimento involuntário da mão, que se erguia fazendo a saudação a Hitler. Segundo os médicos, os portadores da doença exibiam sintomas parecidos, suas mãos apresentando movimentos súbitos, involuntários. Os cientistas achavam que aquilo era provocado por uma espécie de curto-circuito num dos lobos frontais do cérebro, mas admitiam que essas explicações físicas ainda eram pouco consistentes, ainda mais porque havia uma história de doenças psiquiátricas em quase todos os pacientes. Lendo aquilo, a mulher baixou sobre a mesa a página do jornal (o espaço à direita, entre a bandeja de frutas e o pote de cereal, que sempre reservava para apoiar o jornal) e observou as próprias mãos, espalmadas. Enquanto tinha os olhos fixos nas mãos imóveis, por um momento sentiu-as como estranhas, duas folhas abertas, duas plantas aquáticas secando ao sol. Foi assim que começou. Sentiu uma inquietação, mexeu-se na cadeira. Fechou o jornal e terminou de tomar café olhando para a manhã cinzenta recortada na janela, aquele mundo de pedra que a reconfortava. Pouco depois, ergueu-se e foi tomar banho. Hora de trabalhar. No banho, nada aconteceu, mas não pôde deixar de registrar um arrepio ao contato da esponja que suas mãos conduziam, como se a espuma ameaçasse amenizarlhe a pele, sobrepujá-la. A sensação não chegou a se cristalizar, a ganhar superfície. Ficou só lá no fundo, como a recordação imprecisa de um sonho. Vestiu-se depressa. Saiu. Durante o dia, sentada em sua mesa de trabalho, lutou com um relatório que vinha tentando terminar havia dias. Precisava enviá-lo para a matriz da empresa o quanto antes, já devia tê-lo feito, mas por alguma razão não conseguia. Estava relendo-o mais uma vez, depois de tirar uma cópia na impressora, quando sua mão direita pegou a primeira das três folhas e amassou-a, jogando-a fora. Aconteceu muito depressa. Ela nada pôde fazer. Seus olhos saltaram da folha amassada no fundo da lixeira para 116 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100


a própria mão, suspensa no ar, semi-aberta. Sentia ainda na palma a comichão do contato com o papel sendo enrugado. E teve a nítida sensação de que a mão agira por conta própria. A noite, ao chegar em casa, outro sobressalto. Encontrou, sobre a mesinha de centro, a poucos metros da mesa onde tomara seu café da manhã, o jornal dobrado, ainda aberto na página de ciência onde constava o artigo sobre a Síndrome do Dr. Strangelove. Aproximou-se devagar e se sentou no sofá. Como podia ser? Metódica como era, nunca seria capaz de sair sem deixar o jornal dentro do porta-revistas. Jamais o largaria ali, fora do lugar, ainda por cima aberto numa página interna. Estranho. Talvez suas mãos, pensou - e cortou o pensamento como se a faca, caminhando depressa em direção à cozinha -, a mente ainda teimando em pensar o que ela não queria, não devia. Estranho, Strangelove, amor estranho. O jantar transcorreu sem sustos. Depois de comer, a mulher ainda se sentou no sofá para ver o noticiário, mas logo pensou em deitar-se, pois queria ler um pouco e só gostava de ler na cama. E, recostando-se nos travesseiros, de olhos fechados, permitiu-se - pela primeira vez naquele dia, naquela quarta-feira de cinzas, de pedra - pensar no sonho que tivera. Já mais calma e confiante, deixou fluir a lembrança. Mãos. Mãos muito brancas, quase femininas, de unhas abauladas e ínfimos tufos de pêlos no dorso dos dedos. Mãos de muitos anéis, ricos anéis de prata e ébano, mãos repousando sobre uma superfície de pedra negra, muito polida. Mãos que pareciam respirar de tão vivas. A mulher sabia a quem pertenciam, eram de um príncipe. Podia adivinhar-lhe o porte, o peito largo, os longos cabelos sob a malha de metal, na coroa a cruz que era a razão de sua luta. Mas estava condenada a ver dele apenas as mãos. E estas - de repente - se moviam. E a mulher já nada via. Agora o sonho era tátil, feito apenas de sensações, do calor daquelas mãos que lhe acariciavam a pele devagar, que buscavam um ponto secreto, intocado. Um ponto que ela julgava morto, frio, mas que agora se incendiava à sua revelia. Parece tão real, pensou a mulher. Tão real. Estranho. Estranho amor. E abriu os olhos. Abriu-os apenas para ver que eram suas as mãos que ali estavam, tão reais quanto a lembrança do sonho, mãos soberanas, rainhas, que a acariciavam e enlouqueciam, em desafio. E foi assim que entendeu - com horror, com humilhação, com desvario o quanto precisava, ainda, ser amada.

nasceu no Rio de Janeiro, onde mora. Formada em Jornalismo, é autora do livro de contos Pente de Vênus (1995) e dos romances A porta (1996), Diário de Perséfone (1998), Através do vidro (2001) e Pérolas absolutas (2003), todos pela editora Record. Heloísa é ainda autora dos Contos mínimos, publicados pela revista Domingo, do Jornal do Brasil, que por duas vezes já foram reunidos em livro (Contos mínimos, Record, 2001) e Sete vidas (Cosac&Naify, 2002). HELOíSA SEIXAS

PESOUISA FAPESP 100 -JUNHO DE 2004 ■ 117


I TECNOLOGIA

LINHA DE PRODUçãO

MUNDO

Acelerador de partículas em rede A segunda fase do projeto Computing Grid, sistema de computação em rede desenvolvido para o maior acelerador de partículas do mundo, o Large Hadron Collider (LHC), instalado em Genebra, na Suíça, terá a participação da empresa HP. Serão interligados ao LHC os computadores da HP Labs de Paio Alto (Estados Unidos) e Bristol (Reino Unido), do Brasil e de Porto Rico. A primeira etapa do desenvolvimento do projeto recrutou poucos parceiros ao redor do mundo. Mas na segunda fase o número de participanes deverá aumentar rapida-

■ Energia limpa nas casas japonesas A energia elétrica do Japão é uma das mais caras do mundo. Por isso, iniciativas como a da empresa Ebara Ballard fusão da japonesa Ebara Corporation com a canadense Ballard Power Systems -, responsável pelo desenvolvimento de uma célula a combustível de uso doméstico de 1 quilowatt (kW) que substitui com vantagem os aquecedores dependentes de derivados do petróleo, são sempre uma boa alternativa para o consumidor e para a economia do país. A célula do tipo PEM (Proton Membrane Exchange), ou troca de membrana de próton, usa a infra-estrutura já existente nas casas japonesas servidas por gás natural. Do gás, após ser processado num reformador, é extraído o hidro-

cunferência, estará operando a plena capacidade. Para comportar e analisar essa quantidade de dados, seriam necessários 20 milhões de CDs e em torno de 70 mil dos mais rápidos computadores de última geração. O acelerador de partículas foi construído pelo Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (CERN, na sigla em francês), maior centro mundial de pesquisa de física de partículas, financiado por 20 países. Trabalham no centro cerca de 6.500 pesquisadores de mais de 80 nacionalidades, inclusive do Brasil. •

Processamento de dados da ordem de 14 petabytes

mente, até que a estrutura atinja as dimensões necessárias para o processamento de 12 a 14 petabytes de dados por ano. Esse é o volu-

gênio que faz a célula gerar energia elétrica. Esse sistema tem como subproduto o vapor produzido pelo aquecimento. Em fase final de testes, o produto, que gera a chamada energia limpa, deve estar no mercado até o fim deste ano. A eficácia da célula a combustível é de 35%, cerca de três vezes mais eficiente em termos energéticos que as termelétricas, usuárias do carvão ou do gás natural para obter energia elétrica (Business Wire). •

me de informações que as experiências no LHC deverão gerar a partir de 2007, quando o acelerador, que tem 27 quilômetros de cir-

ra. Dispostos a solucionar esse problema, professores do Centro de Educação e Pesquisa Purdue para Sistemas de Informação e Engenharia, nos Estados Unidos, desenvolveram um programa que permite localizar facilmente uma forma tridimensional específica, poupando à indústria milhões de dólares ao ter de recriar o que já foi criado. O sistema desenvolvido utiliza al-

goritmos (processos de cálculo) complexos que convertem grupos de cubos denominados voxels em um gráfico. "Como nosso esqueleto, ele representa os ossos de determinada parte e formato, indica quantos buracos contém e onde estão", explica Karthik Ramani, professor de Engenharia Mecânica e diretor do Centro Purdue. O sistema cria versões de formas em três ca-

■ 0 caçador de formas perdidas Como achar um modelo tridimensional no computador em meio a milhares de designs já criados e arquivados, prontos para serem reutilizados, mas que ninguém sabe onde estão? A tarefa normalmente exige horas de exaustiva procu-

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Programa encontra modelos tridimensionais específicos


Aparelho enfraquece vírus

tegorias: sólido, oco ou uma combinação de ambos. Ele exemplifica: uma xícara é vazia, mas sua alça pode ser sólida. Dessa forma, esse objeto reúne as duas categorias que devem ser representadas para que se torne encontrável. De acordo com Ramani, a memória corporativa costuma ser curta, gerentes são trocados, funcionários saem e arquivos importantes são esquecidos. Normalmente, argumenta, engenheiros de design perdem seis semanas por ano procurando informações sobre partes de objetos. Com o novo programa, esse tempo deve ser reduzido em 80%. •

■ Luz infravermelha contra o herpes O herpes não exige mais tratamentos longos. A Verulite, companhia de pesquisa médica do Reino Unido, desenvolveu um pequeno aparelho capaz de emitir luz numa freqüência que enfraquece o vírus causador da doença e impede novos ataques {London Press Service). O tratamento dispensa o uso de pomadas e não tem efeitos colaterais. O aparelho utiliza diodos de emissão de luz infravermelha que tratam a área onde existe a lesão. O equipamento, que

não usa baterias e tem vida útil de até três anos, foi desenvolvido pelo médico e engenheiro eletrônico Gordon Dougal e pelo oftalmologista Jim Haslam, diretores da empresa. Os especialistas contaram ainda com a colaboração de pesquisadores da Universidade de Sunderland, na Inglaterra. Ao longo das pesquisas, que levaram 12 anos, 250 pacientes com herpes foram tratados com as emissões de luz de baixa energia por um período de três anos. Segundo Dougal, o novo aparelho ajuda o organismo a criar resistência contra o vírus e na maioria dos casos alivia a dor em apenas 90 segundos. A Verulite foi criada originalmente para explorar a possibilidade de existência dentro do espectro de luz infravermelha de uma ampla banda responsável por efeitos terapêuticos. Hoje a empresa exporta para 12 países europeus. Até agora 10 mil aparelhos de tratamento de herpes foram produzidos, e entre outras aplicações está a cura de úlceras na boca. •

■ Silicone é base de fármaco para retina Um novo medicamento para casos graves de deslocamento de retina, desenvolvido na Universidade Paul Sabatier, em Toulouse, na França, já conquistou a Europa e os Estados Unidos (boletim França Flash n° 38). O Oxane-HD, constituído de óleo silicone e fluorocarboneto, é injetado no globo ocular após a retirada do humor vítreo, a substância transparente que o preenche. Por ser mais denso, pressiona a retina contra a parede do órgão, facilitando a colagem com laser. A vantagem do novo medicamento é que ele pode permanecer no olho por alguns meses após a cirurgia. •

BRASIL Criança mais segura com novo assento

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Equipamento de segurança para crianças foi aprovado em testes de impacto

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í Um novo assento para carros, destinado a transportar com segurança crianças acima de 3 anos, está previsto para chegar ao mercado em três meses. Trata-se do Kael — uma placa de retenção feita de náilon que é afixada no banco traseiro do automóvel com o próprio cinto de segurança. Desenvolvido na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) por uma equipe formada por engenheiros, pediatra, ortopedista e psicólogo, o equipamento representa um avanço do ponto de vista pediátrico, segundo o professor Antônio Celso Arruda, da Faculdade de Engenharia Mecânica, coordenador do projeto. Além disso, preencherá uma

lacuna do mercado. Seu preço, em torno de R$ 100,00, será bastante acessível em relação às cadeirinhas usadas para transporte de bebês. A fabricação do Kael está sendo negociada com uma empresa incubada na Unicamp. O protótipo já foi aprovado em dois testes: em colisão de automóvel com um caminhão a 50 quilômetros por hora e contra barreira rígida em condições de impacto superiores às exigidas pela norma brasileira de trânsito. O presidente da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet), Fábio Racy, afirma que a entidade ainda não avaliou o Kael, mas considera o equipamento bem-vindo. "A opção atual para crianças maiores é bastante inadequada", diz ele, referindo-se a uma espécie de banco que aumenta a altura para permitir o uso correto do cinto de segurança, fora da área do pescoço, e cujo principal inconveniente é o risco de deslocamento da criança em caso de impacto. •

PESQUISA FAPESP 100 -JUNHO DE 2004 ■ 119


LINHA DE PRODUçãO

MUNDO

Avaliação do telescópio Masco

Telescópio é transportado para o lançamento

Balão carregou o Masco em viagem pela estratosfera

Dentro de dois meses será possível analisar todos os dados captados pelo telescópio brasileiro Masco (sigla para máscara codificada) durante as quase dez horas que permaneceu viajando pela estratosfera - a 40 quilômetros de altitude - no dia Ia de abril deste ano. "Estamos agora na fase de analisar todos os sistemas do instrumento durante o vôo", afirma o coordenador do projeto e

esses dados. Estamos analisando alguns circuitos eletrônicos para ver se houve falha", explicou. O Masco, avaliado em R$ 3 milhões e financiado pelo Inpe, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e FAPESP {veja Pesquisa FAPESP n° 79, de setembro 2002), foi criado para registrar a radiação de raios X e gama do Universo. Com 7 metros de com-

■ Sisal para reforçar estrutura de madeira O patrimônio histórico nacional constitui-se no maior mercado de um novo compósito, formado por fibras de sisal impregnadas com resina epóxi. O material, que terá como principal aplicação o reforço de estruturas antigas de madeira, está na fase final de desenvolvimento nos la-

pesquisador da Divisão de Astrofísica do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Thyrso Villela Neto. Satisfeito com a performance do telescópio, Villela garante que "daria nota quase dez para ele". O "quase" ficou por conta de uma falha ainda não identificada na transmissão via rádio das informações captadas pelo Masco. "A partir de quatro horas de vôo, deixamos de receber

boratórios da Escola de Engenharia de São Carlos (EESC) da Universidade de São Paulo (USP). Em comparação com a fibra de vidro ou carbono, o compósito propicia vantagens econômicas, sociais e ambientais, segundo o engenheiro civil Ricardo Fernandes Carvalho, autor da tese de mestrado sobre o novo material, publicada na Revista Baiana de Tecnologia. Gra-

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duado pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), ele teve a idéia de desenvolver o compósito porque a Bahia é responsável por 90% da produção brasileira de sisal, cerca de 110 mil toneladas anuais, e concentra boa parte dos prédios históricos do país. Além disso, o sisal custa nove vezes menos que a fibra de vidro e 1.399 vezes menos que a de carbono. •

primento e 2 toneladas, o telescópio cumpriu a meta em meio a condições adversas: preso a um balão que viajava a cerca de 100 quilômetros por hora e oscilando como um pêndulo. Villela diz que o desafio foi vencido graças ao Sistema de Apontamento e Referência de Atitude (Sara), desenvolvido pelo Inpe, que mantinha o telescópio direcionado para as imagens a serem registradas. •

■ Sensor detecta se frutas estão maduras Um "nariz eletrônico" barato, descartável e de aplicação rápida, feito para detectar o ritmo de amadurecimento de frutas pelos gases que emitem, está em testes de campo sob supervisão dos pesquisadores da Embrapa Instrumentação Agropecuária, de São Carlos (SP). O sensor po-


dera ajudar os produtores de frutas a prever a colheita. "É um método rápido e que não estraga a fruta", afirmou o pesquisador Paulo Sérgio de Paula Herrmann Júnior. Os primeiros resultados podem surgir em 18 meses. Os estudos preliminares do sensor, que utiliza a técnica Une patterning (formação de trilha), foram feitos na Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, sob coordenação do Nobel de Química Alan MacDiarmid. "Vamos agora utilizar a técnica de formação de trilhas de grafite para desenvolver eletrodos sobre plástico e papel e, em cima dos eletrodos, depositar polímeros condutores que respondem a vapor de água e compostos orgânicos voláteis emitidos pela fruta", explicou Herrmann. •

■ Diferencial para exportação A Ci&T, empresa que desenvolve softwares corporativos formada por ex-alunos do curso de engenharia da computação, conquistou o Capability Maturity Model (CMM), nível 3. Foi a primeira empresa nacional a conseguir a certificação, concedida pela Software Engeneering Institute (SEI), da Universidade Carnegie Mellon, nos Estados Unidos. A Ci&T pleiteou e obteve o CMM2 e o CMM3 simultaneamente e em apenas 15 meses - em média, as companhias levam 45 meses para conseguir o nível 3 da certificação, considerada hoje o principal diferencial competitivo entre exportadores de programas de computador. A companhia, que investiu R$ 600 mil para adequar-se aos padrões da norma, espera retorno do investimento em dois anos. •

Patentes Inovações financiadas pelo Núcleo de Patenteamento e Licenciamento de Tecnologia (Nuplitec) da FAPESP. Contato: nuplitec@fapesp.br

■ Duas moléculas para a produção do Eliprodil

Dois processos de obtenção de dois compostos precursores do princípio ativo Eliprodil, usado em medicamentos para redução das isquemias (derrames) cerebrais e em tratamentos da retina e do nervo ótico, foram desenvolvidos no Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Os processos desenvolvidos permitem produzir separadamente os dois enantiômeros (com- Sem interferências postos) de um álcool a partir da redução de uma ce- CCT1205 ou de Qualquer tona, empregando cepas de Mutante dela Derivado, uma espécie de levedura, a precursores quirais para a Rhodotorula glutinis, e de obtenção dos enatiômeros um fungo, Geotricum candidadum, resultando produtos do Fármaco Eliprodil com elevados rendimentos. e de seus Sais Derivados Inventores: Paulo José Título: Processos de

Samenho Moran, Lucfdio

Obtenção de 2-Cloro-l-

Cristóvão Fardelone e José

(4-Clorofenil)-l -Etanona,

Augusto Rosário Rodrigues

Através de Reação

Titularidade: Unicamp/

de 4-Cloroacetofenona

FAPESP

com o Ácido MetaCloroperbenzóico (MCPBA), de (R) - (-) 2-Halo-l-(4-Clorofenil)-letanóis por Biorredução com Rhodotorula Glutinis CCT 2182 ou qualquer mutante dela derivado e (S)-(+)-2-halo-l(4-clorofenil)-l -etanóis por Biorredução com Geotrichum Candidum

■ Camas e plataformas não-magnéticas Sistema pneumático nãometálico e não-magnético para movimentar verticalmente, com precisão de décimo de milímetro, camas e plataformas de uso médico que não podem sofrer interferências magnéticas. Um isolamento necessário, por exemplo,

em equipamentos de ressonância magnética. Uma das vantagens do novo sistema é o baixo custo. Possui pistões formados por tubos de polipropileno e câmaras-de-ar de borracha. Quando cheias, essas câmaras levantam, de modo suave e lento, uma cama hospitalar, bastando o prédio possuir uma central de arcomprimido. Esse sistema foi desenvolvido por pesquisadores do Departamento de Física da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP) para o desenvolvimento e construção de um aparelho, chamado de biossusceptômetro, capaz de medir a quantidade de ferro no organismo sem a necessidade de biópsia. A análise é feita por meio da intensidade do campo magnético emitida por esse elemento químico que se concentra principalmente no fígado, um problema enfrentado sobretudo por pessoas que recebem constantes transfusões de sangue. Título: Sistema Pneumático em Grandes Dimensões para Levantamento de Plataforma Inventores: Antônio Adflton Oliveira Carneiro e Oswaldo Baffa Filho Titularidade: USP/ FAPESP

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TECNOLOGIA MICROELETRÔNICA

1 País experimenta novos caminhos para diminuir a dependência externa na área de semicondutores

resentes em todo tipo de aparelho eletrônico, do televisor ao forno de microondas, do celular ao sistema de injeção de combustíveis dos automóveis, além, é claro, nos computadores, os semicondutores possuem uma característica que está sempre implícita na sua descrição: evolução. Não que outros produtos do mundo da eletrônica ou da biotecnologia, por exemplo, estejam fora do estágio evolutivo, mas com os semicondutores a evolução acontece como o passar dos minutos. As exigências da miniaturização, da velocidade de processamento de informações, do avanço dos softwares e da capacidade de memória fazem dessas pequenas pastilhas de silício um dos suportes da civilização atual. Tamanha importância é medida também pelo volume de pesquisas nessa área. Semicondutores são alvos constantes de pesquisadores de universidades e de toda a indústria eletroeletrônica e de informática do mundo que sempre está atenta às exigências do mercado do futuro próximo e distante. No Brasil, embora não tenhamos uma indústria de semicondutores de grande porte com produtos de ponta, o que levou o país a gastar US$ 2 bilhões em 2003, segundo dados da Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee), a pesquisa, muitas vezes, surpreende. Aqui, ela ocorre fundamentalmente nas universidades e já colhe bons frutos. Entre os resultados práticos mais recentes encontram-se memórias para computador 250 vezes mais potentes que estão em análise por duas multinacionais, um microssensor de pressão sangüínea para cirurgias, além de várias alternativas para os compostos de silício (Si), principal material usado na fabricação de componentes semicondutores (materiais com nível de condutividade elétrica intermediária entre os condutores, como o cobre e os metais, e os isolantes, como a borracha e a cerâmica, que aproveitam melhor os elétrons no processamento de informações).


âmina de silício em forno do Instituto de Física da USP

Dentro da pesquisa acadêmica nacional, além de São Paulo, frentes importantes de estudo de semicondutores também se formaram, na década de 1990, no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina e em Pernambuco. A Universidade de São Paulo (USP), por exemplo, concentra a maioria dos estudos dessa área na Escola Politécnica (Poli) e no Instituto de Física (IF). Na Poli, as pesquisas da Divisão de Microssistemas Integrados (DMI), coordenada pelo professor Nilton Itiro Morimoto, já deram vários resultados. "Desenvolvemos um sensor de pressão sangüínea descartável para monitorar pacientes em cirurgias que resultou em uma microempresa", conta Morimoto. O sistema, que utiliza a tecnologia MEMs (Micro-Electro-Mechanical Systems na sigla em inglês), dispositivos semicondutores conhecidos como micromáquinas, é montado num substrato cerâmico e ligado ao paciente e aos aparelhos eletrônicos de monitoramento. A empresa é a Torr Microssistemas, localizada em São Paulo, que recebe financiamento do Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE) da FAPESP e deve, em três meses, começar a distribuir o produto num mercado que só possui sensores semelhantes importados. A produção do grupo do professor Morimoto pode ser medida pelo número de trabalhos publicados anualmente. "Somos responsáveis por cerca de 60% dos papers apresentados na área de processos de microeletrônica no Symposium on Microelectronics Technology and Devices (Simpósio em Tecnologia de Microeletrônica e Dispositivos), uma reunião internacional promovida anualmente pela Sociedade Brasileira de Microeletrônica (SBMicro) e pela Sociedade Brasileira de Computação (SBC). Para Morimoto, o incentivo da nova política industrial do governo federal para a criação de uma indústria de semicondutores é uma iniciativa louvável. "Uma fábrica de semicondutores no Brasil significa que o país terá


capacidade de agregar um alto valor a seus produtos apenas colocando uma mínima inteligência eletrônica neles. Significa que o país poderá exportar mais e importar menos produtos eletrônicos e componentes e significa, ao mesmo tempo, criar milhares de empregos de altíssimo nível, tanto salarial como intelectualmente", diz. Opinião semelhante tem a sua colega Inés Pereyra, chefe do Departamento de Engenharia de Sistemas Eletrônicos da Escola Politécnica. Para Inés, o domínio dessa tecnologia é uma questão estratégica porque é em razão dela que se assenta grande parte do desenvolvimento tecnológico das últimas décadas. "Poderíamos dizer, sem exagero, que a independência econômica de qualquer país passa pelo domínio da tecnologia de semicondutores e isso, evidentemente, exige investimentos em pesquisa e a existência de indústrias no país", diz. A pesquisadora coordena um projeto temático que tem como foco a pesquisa de novos materiais semicondutores e isolantes e o desenvolvimento de dispositivos micro e optoeletrônicos baseados nesses materiais. As pesquisas de Inés envolvem a produção e o estudo de filmes finos (películas) de materiais como carbeto de silício (SiC) e oxinitreto de silício (SiOxNy), produzidos com processos envolvendo baixas temperaturas. O carbeto de silício é um semicondutor alternativo ao silício na fabricação de dispositivos que operam em ambientes com altas temperaturas, quimicamente agressivos ou com alta radiação, como sensores para a indústria aeroespacial e siderúrgica. Já o oxinitreto de silício é um isolante que pode substituir o oxido de silício em muitas aplicações. "Procuramos melhorar as propriedades desses dois materiais para desenvolver dispositivos mi124 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100

cro e optoeletrônicos, como transistores, diodos detetores e emissores de luz e guias ópticos (usados nas telecomunicações via fibra óptica)", diz Inés. A lém da pesquisa aplicada, os i^L professores da Poli também LjL fazem pesquisa teórica. É o ã ^ caso do físico João Fran^L. .A. cisco Justo Filho, que, por meio de simulações computacionais, investiga as propriedades eletrônicas, estruturais e ópticas de ligas semicondutoras. Segundo o pesquisador, essas simulações são ferramentas de baixo custo, que podem auxiliar no desenvolvimento e manipulação de materiais e, por sua vez, na criação de novos dispositivos e processos de produção. "Nossos sistemas de estudo são compostos de conjuntos de átomos, elementos fundamentais no contexto da ciência dos materiais. É importante entender suas propriedades microscópicas, como o tipo de interações deles com os seus vizinhos, porque elas determinam grande parte das propriedades macroscópicas dos materiais." Uma das linhas de pesquisa de Justo Filho, que conta com um projeto dentro do Programa Jovem Pesquisador da FAPESP, está voltada para o desenvolvimento de um software de simulações de materiais nanoestruturados, principalmente nanoestruturas de silício. Para criá-lo, o primeiro passo do pes-

quisador foi desenvolver um código computacional que permitisse investigar propriedades térmicas dos materiais. A etapa seguinte foi a criação de um software de visualização das simulações, onde películas pudessem ser construídas, mostrando a evolução temporal dos átomos. "Uma das simulações que realizamos com sucesso foi observar o comportamento de um nanofio de silício sendo submetido a tensão constante em certas condições de temperatura. Com esse estudo verificamos que é possível construir esses nanofios por meio de processos controlados", afirma o pesquisador. "Na minha visão, os nanofios de silício são o próximo passo da nanotecnologia. Eles poderão ser usados em aplicações optoeletrônicas (lasers, principalmente)." Crescimento de nanofilmes - Igualmente focado nas nanoestruturas semicondutoras está o físico José Roberto Leite, coordenador do Laboratório de Novos Materiais Semicondutores (LNMS), do Instituto de Física da USP de São Paulo. "Estamos trabalhando no crescimento de nanofilmes e sua caracterização e aplicação em dispositivos nanoeletrônicos, como LEDs (diodos emissores de luz), LDs (diodos laser), sensores e detectores. Esses dispositivos são de grande importância em gravação óptica (CDs e DVDs) e nas telecomunicações, entre outras áreas. "Desen-


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volvemos novos LDs e LEDs de grande interesse porque poderão substituir, no futuro, as lâmpadas incandescentes das residências com mais luminosidade e com menor gasto de energia." Outra novidade, garantida por uma patente e destinada a melhorar as memórias dos computadores, transformou-se em uma negociação industrial como mostrou Pesquisa FAPESP na edição n° 97. Até agora, duas grandes empresas multinacionais, que preferem não revelar seus nomes, contataram e pediram maiores informações ao professor Elson Longo, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e coordenador do Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos (CMDMC), sobre o processo de produção e a nova formulação de um chip potencialmente capaz de aumentar a memória dos computadores em 250 vezes, baseado no composto titanato de bário e chumbo. "Eles nos contataram e levaram relatórios para suas matrizes e agora estão analisando", conta Longo. No Instituto de Física da Unicamp, a busca por novos materiais semicondutores também está no foco dos pesquisadores. O Laboratório de Pesquisa em Dispositivos (LPD) trabalha na síntese de novos materiais, no processamento e na caracterização de dispositivos e sistemas ópticos. "Pesquisamos semicondutores feitos a partir de elementos como gálio, fósforo, nitrogênio

e antimônio, entre outros, que são os mais apropriados para a fabricação de dispositivos optoeletrônicos", afirma o físico Mauro Monteiro Garcia de Carvalho. Esses dispositivos são usados principalmente na fabricação de lasers, amplificadores de luz, células solares e emissores e detectores de luz, muito utilizados no setor de telecomunicações, no armazenamento de ciados, como aparelhos de CD e DVD, em displays eletrônicos e equipamentos de laser para aplicação médico-odontológica. "Estamos na ponta da pesquisa, tanto na síntese como no desenvolvimento de novos lasers de semicondutores." Criado em 1974 como Laboratório de Eletrônica e Dispositivos (LED) e reestruturado em 1993, quando ganhou seu atual nome, o Centro de Componentes Semicondutores da Unicamp é um dos poucos laboratórios nacionais de microeletrônica que desenvolvem processos completos de fabricação de circuitos integrados. "Fazemos pesquisa e desenvolvimentos de dispositivos com a tecnologia CMOS (Complementary-Metal-Oxide-Semiconductor), ou Metal-Óxido-Semicondutor Complementar, que responde por mais de 85% dos chips fabricados em nível mundial", conta Jacobus Swart, coordenador do centro e professor da Faculdade de Engenharia Elétrica da

Componentes semicondutores produzidos no Brasil pela empresa Aegis: 30% para o exterior

Unicamp. Vários projetos já foram executados (Veja Pesquisa Fapesp n°77). "Também pesquisamos tecnologia de sensores microfabricados, os MEMs, chamados de micromáquinas, usados como sensores de pressão, de gases e de radiação." Os MEMs são dispositivos semicondutores que tipicamente medem menos de 100 micrômetros ou micra (1 micrômetro é igual a milésimo de milímetro) e podem ser usados em diversos setores da economia. "Eles são sensores fabricados a partir de processos microeletrônicos. Ao reduzir seu tamanho, reduzimos também seu custo, melhoramos seu desempenho e aumentamos sua confiabilidade", explica. Para Swart, recuperar o atraso tecnológico brasileiro nessa área não será uma tarefa fácil. Ele acredita que o governo só conseguirá criar no país uma indústria competitiva de semicondutores se gerar condições econômicas capazes de atrair investimentos externos e conceder incentivos a empresas menores que possam crescer a partir de nichos específicos de mercado. Outro aspecto, segundo ele, são os recursos humanos. "Sem pessoal especializado, essa indústria não pode funcionar. No Brasil existem apenas cerca de 500 pesquisadores com experiência direta em semicondutores de silício. É um número baixo para o nosso país. O ideal é que tivéssemos pelo menos o dobro." O objetivo do governo é estimular os empreendedores nativos a investir nessa área e atrair investimentos diretos para o país, com a instalação de multinacionais do setor, como grandes fabricantes de circuitos integrados, também chamados de chips, fundamentais para o funcionamento de todo equipamento eletrônico. "A indústria de semicondutores é crucial para a inovação em todos os segmentos que mais PESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 125


OS PROJETOS Produção, Caracterização e Aplicações de Ligas Semicondutoras e Isolantes MODALIDADE

Projeto Temático COORDENADOR INéS PEREYRA-

USP

INVESTIMENTO

R$ 287.049,00 e US$ 399.205,00 Estudo Experimental e Teórico de Nanoestruturas Epitaxiais Semicondutoras Derivadas de Compostos III-V MODALIDADE

Projeto Temático COORDENADOR JOSé ROBERTO LEITE

- USP

INVESTIMENTO

R$ 416.700,00 e US$ 502.219,00 Modelamento Teórico de Propriedades Eletrônicas e Estruturais de Ligas Semicondutoras MODALIDADE

Jovem Pesquisador COORDENADOR JOãO FRANCISCO JUSTO FILHO

- USP

INVESTIMENTO

R$ 71.547,00 e US$ 45.449,00 Encapsulamento Completo de Transdutores Descartáveis de Pressão Sangüínea MODALIDADE

Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE) COORDENADOR EDGAR CHARRY RODRIGUEZ

- Torr

INVESTIMENTO

R$ 155.100,00 Plataforma de Integração Optoeletrônica Embasada em Crescimento Epitaxial Seletivo e Não-Seletivo por Epitaxia de Feixes Químicos MODALIDADE

Projeto Temático COORDENADOR MAURO MONTEIRO GARCIA DE CARVALHO

- Unicamp

INVESTIMENTO

R$ 539.193,00

126 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100

crescem no mundo: tecnologia da informação, telecomunicações e entretenimento", sintetiza Sérgio Bampi, presidente da Sociedade Brasileira de Microeletrônica e coordenador do programa multidisciplinar em Microeletrônica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Entrar nesse disputado setor, dominado por países como Estados Unidos, Alemanha, Japão, Irlanda, Coréia e Taiwan, é facilmente explicado. A indústria mundial de semicondutores reúne cifras gigantescas e é a que mais cresce no mundo. Segundo a Associação da Indústria de Semicondutores (SIA) dos Estados Unidos, as vendas globais do setor alcançaram US$ 166,4 bilhões no ano passado - em 2000, no auge da bolha das empresas de tecnologia da informação e de Internet, elas atingiram US$ 204 bilhões. Nos últimos 20 anos, o segmento teve um crescimento médio anual de 16% ante 3 a 4% da economia mundial em geral. No Brasil, segundo Bampi, o mercado de semicondutores gira em torno de US$ 3,5 Bilhões anuais, reunindo os componentes importados isolados e os agregados a produtos prontos importados mais o mercado de contrabando. Independentemente do interesse ou não de as indústrias multinacionais produzirem chips no Brasil, está surgindo em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, o Centro de Excelência em Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec), financiado pela Financiadora de Estudos e Projetos do Ministério de Ciência e Tecnologia, governos do estado e do município, além de empresas. A instituição, ainda em fase de projeto, será um núcleo especializado em desenvolvimento de projetos e de fabricação de protótipos de circuitos integrados, principalmente os dotados de tecnologia CMOS. Para isso, o centro gaúcho de prototipagem contará com sala limpa classe 1.000 (concentração de partículas em suspensão no ar menor que 1.000 partículas por pé cúbico) de 800 metros quadrados com ambientes internos classe 100 (menos que 100 partículas por metro cúbico) e classe 10. Também será construído um prédio de apoio que incluirá o setor administrativo do centro, e a maior parte é reservada ao desenvolvimento de projetos de circuitos integrados e for-

mação de recursos humanos. Enquanto o Ceitec não começa a operar, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul possui vários projetos de pesquisa para o desenvolvimento de semicondutores e da engenharia de chips. O programa de pós-graduação em microeletrônica da instituição, por exemplo, atua no projeto de circuitos integrados, no desenvolvimento de dispositivos com estrutura MOS (Metal-Óxido-Semicondutor), de softwares para integração de chips e dos chamados sistemas embarcados (hardware e software) on chip, considerados um dos caminhos futuros do chip, com memória, processadores e acionadores de entrada e saída de dados no mesmo dispositivo. Um dos estudos mais relevantes é coordenado pelo professor Israel Baumvol, que tem testado alternativas ao oxido de silício (Si02) na produção de chips, principalmente com oxido, silicatos e aluminatos de háfnio, um elemento químico metálico (veja Pesquisa FAPESP n° 82). "Minha atividade de pesquisa é estreitamente relacionada com a produção de componentes semicondutores para os próximos dez a 20 anos", diz Baumvol. "Se o Brasil possuir indústria de semicondutores, nosso trabalho será de importância vital. Se não tivermos, os grandes fabricantes internacionais serão os únicos beneficiários de nossas pesquisas", diz ele. Componentes discretos - Atualmente, só existem quatro fábricas que atuam na cadeia produtiva de semicondutores instaladas no Brasil: Aegis, Semikron, Heliodinâmica e Itaucom. As duas primeiras produzem os chamados componentes discretos de potência - como diodos e tiristores -, que são mais simples do que os circuitos integrados. "Diodos e tiristores são dispositivos que funcionam como uma chave, deixando a corrente elétrica passar ou a bloqueando", explica o engenheiro Wanderley Marzano, diretor presidente da Aegis, cuja sede fica em São Paulo. "Nossos dispositivos são feitos de silício e direcionados para a indústria de bens de capital. Eles são utilizados em fontes de corrente contínua que integram equipamentos de automação e retificação (transformação de corrente alternada para contínua), entre outros." A produção mensal da Aegis é de cerca de 6 mil lâminas,


década de 1980 existiam 23 empresas instaladas, a maioria pertencente a grandes grupos internacionais.

Microprocessadores e memória: produtos importados

mas ela poderia ser bem maior. "Não uso nem 25% da minha capacidade instalada", diz o empresário, que reclama da instabilidade do mercado brasileiro e das dificuldades para vender para clientes no exterior. Mesmo assim, 30% de sua produção é destinada a uma dúzia de países, entre eles Estados Unidos, China, Taiwan, Alemanha, Itália e França. A Heliodinâmica, por sua vez, produz principalmente células solares (que são feitas de silício) e a Itaucom atua na montagem de circuitos inte-

grados. Os componentes chegam do exterior na forma de uma lâmina de silício processada, também chamada de wafer (ou bolacha), e a empresa faz sua montagem e testes para colocação no mercado. Embora hoje muito limitado, o parque industrial brasileiro de semicondutores já foi bem maior. No início dos anos 1970, o país possuía um laboratório de classe mundial, o Laboratório de Microeletrônica da Universidade de São Paulo (USP), que estava próximo do estado-da-arte em pesquisa de circuitos integrados. E na

Mudanças no caminho - "A abertura de mercado promovida pelo governo Collor fez com que as empresas nacionais fechassem suas portas e as estrangeiras deixassem o país", afirma José Elis Ripper Filho, diretor-presidente da Asga, instalada na cidade de Paulínia, em São Paulo, que naquela época fabricava semicondutores e hoje produz avançados equipamentos de telecomunicações via fibra óptica. Com o fim da reserva de mercado, os fabricantes de bens finais passaram a importar conjuntos prontos (kits) para serem montados no Brasil. "Dessa forma, a compra de componentes passou a ser feita lá fora", diz Ripper. "A importação de um kit completo tornouse mais vantajosa para o montador final, já que permite a redução do custo de engenharia própria e simplifica a gestão da cadeia de suprimentos", aponta o documento Programa Nacional de Microeletrônica — Contribuições para a Formulação de um Plano Estruturado de Ações, produzido pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, em dezembro de 2002. Um caminho que terá de ser negociado se os semicondutores de ponta voltarem a ser produzidos no Brasil. •

Por dentro da cadeia produtiva As indústrias que compõem a cadeia produtiva dos circuitos integrados podem ser divididas, de modo simples, em três categorias: as design houses (empresas de projeto), responsáveis pelos projetos dos circuitos, as foundries (fundições de silício), que fazem a fabricação propriamente dita, o que compreende o processamento físico-químico dos circuitos integrantes da etapa chamada de front end, e as companhias encarregadas da montagem, encapsulamento e teste do produto, que integram a etapa chamada de back end. De todas elas, as foundries, exatamente as que não existem no país, são as que agregam maior valor ao produto. O valor do investimento para instalação dessas

indústrias é muito variado. Segundo estudo feito pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, no final de 2002, o custo de instalação de uma design house variava de US$ 1 milhão a US$ 5 milhões, com a concentração de recursos, basicamente, em software, treinamento e estações de trabalho. As foundries, por sua vez, têm custo bem mais diversificado e que depende da área de atuação. Indústrias especializadas na prototipagem de pequenas séries, como a produção de dispositivos CMOS simples em baixa escala, demandam investimentos relativamente pequenos, de US$ 10 milhões a US$ 100 milhões. Já as fábricas que fornecem para segmentos especializados, como com-

ponentes automotivos, sensores, transceptores (recebem e emitem sinais de rádio) e sistemas microeletromecânicos (MEMs), custam de US$ 300 milhões a US$ 600 milhões. "Essas foundries constituem a maioria das fábricas de wafers do mundo e permitem bastante inovação nos produtos eletrônicos", diz Sérgio Bampi, presidente da Sociedade Brasileira de Microeletrônica. A terceira categoria dessas empresas é constituída de megafábricas, como as norte-americanas Intel e a AMD, que produzem principalmente microprocessadores e memórias com tecnologia de ponta. O custo de implantação delas, altíssimo, varia de US$ 1 bilhão a US$ 3 bilhões.

PESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 127


■ TECNOLOGIA

TELECOMUNICAÇÕES

Esforço concentrado Amplificadores, fibras ópticas e redes ultra-rápidas promovem nova fase para a pesquisa em Internet e na telefonia TâNIA MARQUES

De meados da década de 1970 à privatização das telecomunicações, em 1998, o Brasil criou sistemas telefônicos que nada ficavam a dever aos então utilizados nos países desenvolvidos. O mérito coube, principalmente, ao Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD), braço tecnológico da holding Telebras, a estatal que gerenciava a telefonia no país. Depois da privatização, o investimento em pesquisa e desenvolvimento caiu e foi iniciada uma onda de importações. De lá para cá, a situação melhorou, mas pode melhorar ainda mais com os recentes desenvolvimentos realizados por vários centros de pesquisa ligados a universidades ou a empresas. Amplificadores avançados para operar com transmissões telefônicas e de dados, fibras ópticas especiais e redes para Internet super-rápidas, além de softwares especiais para gerenciar equipamentos e redes de telefonia celular e fixa, são alguns dos novos produtos que podem servir ao país num futuro próximo, evitando importações, além de proporcionar participação mais ativa no mercado internacional de comunicação de voz e dados. "Ainda é preciso agregar valor tecnológico aos produtos brasileiros", comenta o professor Hugo Fragnito, do Instituto de Física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), um dos integrantes do Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica (Cepof), financiado pela FAPESP. 128 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESOWISA FAPESP 100

"Um avanço relevante são os projetos de redes de alta velocidade nas quais é possível testar novas tecnologias em escala muito superior à do laboratório", diz Fragnito. Um deles é a rede do projeto Giga, uma iniciativa do CPqD em parceria com o Ministério da Ciência e Tecnologia, que teve apoio da Embratel, Telefônica, Telemar, Intelig e recebeu financiamento de R$ 54 milhões do Fundo para o Desenvolvimento Tecnológico das Telecomunicações (Funttel). Ela começa a operar em abril, conectando 20 instituições de ensino, pesquisa e desenvolvimento com tecnologia de rede de Internet à tecnologia WDM (sistema de multiplexação por divisão de comprimento de onda), que expande a capacidade de transmissão das redes de fibra óptica. Com velocidade de até 10 Gigabits por segundo, o projeto Giga é 400 vezes mais rápido que as conexões domésticas em banda larga. Outra rede com essas características é a KyaTera, que faz parte do Programa Tecnologia da Informação no Desenvolvimento da Internet Avançada (Tidia), da FAPESP. "Os pesquisadores das duas redes trabalham em cooperação", conta Fragnito. O Tidia possui a própria Internet como objeto de estudos e está reunindo vários grupos de pesquisa especializados em tecnologia da informação, comunicações, controle e automação de laboratório. A eles se somarão grupos de excelência em todas as ciências experimentais para, juntos, desenvolverem projetos de comunicações ópticas, redes ópticas, redes de acesso a super-ro-


Novo tipo de fibra 贸ptica, desenvolvido na Unicamp/elimina ru铆dos existentes nas fibras convencionais


dovias de informações, software e hardware de controle de instrumentos. Será um compartilhamento de redes com objetivos de pesquisa e formação de especialistas em desenvolvimento de tecnologia para a Internet. Colaborar é, aliás, uma das especialidades do Cepof, que mantém parcerias com outros centros de pesquisa e empresas de todos os portes. Pouco mais de um ano atrás, por exemplo, atraiu a Universidade de Bath, na Inglaterra, para o desenvolvimento de um amplificador paramétrico a fibra óptica (Fopa, na sigla em inglês) que promete aumentar em centenas de vezes a velocidade da transmissão de dados e voz em redes de longa distância. Apenas outros três centros de pesquisa em todo o mundo estão trabalhando no desenvolvimento desse tipo de amplificador: o Bell Labs e a Universidade Stanford, nos Estados Unidos, e a Universidade Tecnológica de Chalmers, na Suécia. Hoje o mercado mundial de amplificadores movimenta aproximadamente US$ 8 bilhões por ano. A função dos amplificadores é garantir que os sinais de luz que levam informações e se propagam pelos cabos de fibra óptica na forma de laser não percam sua potência inicial. Na década de 1980, isso era feito por equipamentos eletrônicos, que tinham de converter os sinais luminosos em elétricos para, depois, reconvertê-los, em um processo que aumentava o risco de falhas. Em 1989, amplificadores ópticos com fibras dopadas de érbio em seu interior produziram uma verdadeira revolução: aumentaram a banda de transmissão de 1

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gigabit (1 bilhão de bits) para 4 terabits (4 trilhões de bits), passaram a operar com múltiplos protocolos de comunicação e, de quebra, reduziram tremendamente o custo das redes. O amplificador paramétrico também deverá custar bem menos que os equipamentos atualmen te em uso, além de proteger os investimentos das operadoras em razão de sua capacidade virtualmente inesgotável. O equipamento precisa de uma fibra óptica especial, chamada de cristais fotônicos, e a pesquisa para escolher a mais adequada acabou levando a uma descoberta inesperada - um material que reduz muito o efeito Brillouin, indesejável resultado da interação do campo elétrico da luz com as ondas acústicas presentes nas fibras, deixando parte da luz retornar à fonte geradora. A descoberta é de Paulo Dainese, doutorando do Instituto de Física da Unicamp sob a orientação de Fragnito. Apresentado em maio na Conferência sobre Lasers e Eletroóptica (Cleo, na abreviatura em inglês), da Sociedade Americana de Óptica, o trabalho recebeu o prêmio de ser um dos sete melhores estudos, entre 5 mil concorrentes. Detalhe: a fibra, já patenteada, provavelmente poderá ser amplamente aplicada nos campos da óptica e da acústica. Enquanto isso, um processo de produção de fibras ópticas dopadas com érbio, ainda não dominado no Brasil, é desenvolvido na Unicamp pelo professor Carlos Kenichi Suzuki, pesquisador li-

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OS PROJETOS Fibras Ópticas Amplific adoras de Sílica Dopadas com Érbio MODALIDADE

MODALIDADE

Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE) COORDENADOR CARLOS KENICHI SUZUKI

Centro de P esquisa em Óptica e Fotônica ( Cepof), na Unicamp

Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) COORDENADOR

- Sun Quartz

HUGO FRAGNITO

- Instituto de Física

da Unicamp R$ 307.627,00 e US$ 12.700,00

130 • JUNHO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 100

INVESTIMENTO

R$ 1 milhão por ano

gado ao Laboratório Ciclo Integrado do Quartzo, da Faculdade de Engenharia Mecânica. Com a inovação, Suzuki fundou a empresa Sun Quartz, em 2003, atualmente instalada na Incubadora da Unicamp. O projeto, apoiado pelo Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE), da FAPESP, deve resultar em um incremento substancial do nível de érbio nas fibras, o que expandirá sua capacidade de comunicação. Hoje esse aumento, depois de certo limite, chega a atrapalhar a amplificação dos sinais de luz. "Nosso trabalho é voltado para o controle e a manipulação de nanoestruturas das partículas de sílica e germânia, matérias-primas das fibras", conta Suzuki. "Os resultados têm indicado que as características dessas nanoestruturas são elementos decisivos para a concentração do érbio." A produção das fibras baseia-se em uma tecnologia chamada de deposição axial na fase de vapor (VAD, em inglês),


nheiros dedicados exclusivamente à pesquisa e desenvolvimento. "O desafio do Brasil agora é conquistar também maior inserção no mercado mundial", diz Bruno Vianna (ex-superintendente do Instituto Genius), ^^ H^fe. pe™ da Orion Consultores Associados, especializada em inovação, telecomunicações e energia. Algumas condições para que os conhecimentos acumulados e a qualidade dos recursos humanos comecem a gerar um bom volume de no/ vos projetos e produtos, além de divisas, parecem estar se configurando. Em sua renovação, em 2001, a Lei de Informática estimulou esforços de pesquisa e desenvolvimento entre os fabricantes de equipamentos, com incentivos fiscais que provavelmente serão estendidos até 2019. A criação, em 2002, do Funttel assegurou recursos para a inovação. Mais recentemente, o governo federal elegeu, como uma de suas prioridades, a área de software, a alma dos aparelhos telefônicos. Além disso, grandes companhias internacionais vêm aumentando os investiCorpos-de-prova para mentos em pesquisa e desenvolvimento preparo de fibras com no país e empresas nacionais começam nanoestruturas de a obter sucesso em estratégias de exsílica e germânia portação. muito empregada no Japão, que, em cinco etapas, possibilita a produção de sílica com alto nível de pureza e aplicação potencial em áreas tão diversas como a administração de medicamentos e a produção de células solares. O mercado externo também está na mira da empresa Padtec, de Campinas, única fabricante de equipamentos com tecnologia WDM no Hemisfério Sul. Desmembrada do CPqD no final de 2001, a Padtec oferece produtos para redes corporativas de armazenamento de dados, redes de comunicação metropolitanas e de longa distância. No Brasil, fornece para as principais operadoras e exporta para América Latina, Estados Unidos, índia e Portugal. Em 2003 faturou cerca de R$ 7,5 milhões, dos quais R$ 4,5 milhões foram destinados para pesquisa e desenvolvimento. Segundo o diretor técnico da empresa, Jorge Salomão Pereira, dos 75 empregados da Padtec, 15 são enge-

Pacote de voz - A importância da Lei de Informática também é destacada por Hélio Graciosa, presidente do CPqD, que em julho de 1998 tornou-se uma fundação privada. Segundo ele, o CPqD registrou quatro grandes conquistas de lá para cá - a competência no licenciamento de produtos, a habilidade para desenvolver software para telefonia fixa e celular e a capacidade de prestar serviços tecnológicos, com a oferta de estudos, ensaios e consultoria. O CPqD, que se mantém muito ligado às universidades e aos institutos de pesquisa - tem 30 parceiros nessas áreas -, também trabalha no desenvolvimento de produtos em conjunto com pequenas companhias. Com 1.500 empregados, agora está voltado para as redes de nova geração (NGN), que transmitem voz em pacotes, com sensível melhoria nos índices de aproveitamento de banda. "As operadoras estão começando a fazer encomendas", revela Graciosa.

Com um escritório no Vale do Silício, Califórnia, desde 2000, o CPqD está consolidando sua atuação nos Estados Unidos, onde fornece software de suporte para operações e negócios. A partir de 2001 estabeleceu uma série de parcerias de distribuição que levaram seus produtos e serviços a países latinoamericanos, Portugal, Espanha, Alemanha e, mais recentemente, Angola. Atualmente, mantém 18 grandes projetos de pesquisa. Sua receita, de R$ 185 milhões em 2002, chegou a R$ 205 milhões em 2003 e deve crescer 10% este ano. Para atender melhor a clientes globais, os grandes fornecedores de equipamentos de telecomunicações também começaram a investir em pesquisa e desenvolvimento no país. A alemã Siemens criou, em dezembro de 2003, o Portal de Tecnologias, no qual universidades, institutos de pesquisa, empresas de base tecnológica e até inventores independentes podem apresentar propostas. "Uma equipe de 45 analistas avalia detalhadamente cada projeto", conta Ronald Martin Dauscha, diretor de gestão tecnológica corporativa. E já existem quatro propostas que parecem bem viáveis. Entre seus seis centros de pesquisa e desenvolvimento no país, a Siemens emprega 315 pessoas. "Os investimentos, que em 2003 foram de R$ 80 milhões, devem atingir R$ 100 milhões", conta Dauscha. Em maio, a fábrica da empresa em Curitiba tornouse a plataforma mundial de exportação de centrais de PABX. Na Motorola Brasil, a equipe de pesquisa e desenvolvimento, formada por 60 pessoas no fim de 1999, hoje tem 150 profissionais somente na área de software, afirma Rosana Jamal Fernandes, diretora de pesquisa e desenvolvimento da companhia. A empresa de origem norte-americana mantém acordos com 17 universidades e diversos institutos de pesquisa, como o Eldorado, que, fundado por iniciativa sua em 1997, hoje presta serviços para diversas empresas. E incentiva os parceiros a certificar seus processos e produtos uma condição essencial para a conquista do mercado internacional. De 1997 para cá, seus investimentos em pesquisa e desenvolvimento no país somaram US$ 135 milhões. "Todos os celulares Motorola, independentemente de onde forem fabricados, carregam algo brasileiro", garante ela. • PESQUISA FAPESP 100 -JUNHO DE 2004 ■ 131


Viagem ao fim do tempo: uma fantasia MARCELO GLEISER

Quando eu era jovem, costumava construir espaçonaves com partes de naves antigas. Viajava de planeta em planeta, à procura de objetos para a minha coleção. Em uma dessas viagens, cheguei ao enorme hangar do sr. Strõm. Ele era conhecido em toda a galáxia, não só pela sua loja de peças usadas, mas por sua fama de ter sido o primeiro a se aproximar de um buraco negro e escapar com vida, uma história que muitos acreditavam fosse apenas isso, uma história. Pedi ao sr. Strõm que me contasse a sua aventura. Seus olhos eram dois poços escuros onde nadava a mais profunda tristeza, abismos gêmeos e sem fundo, como dois buracos negros em miniatura. "Eu era o comandante de uma frota construída para explorar a misteriosa fonte de raios X conhecida como Cisne X-1", ele começou. "Desde 1970, há mais de três milênios, os astrônomos acreditavam que essa fonte de radiação, a 6 mil anos-luz da Terra, era um sistema binário: uma estrela do tipo gigante azul com 20 a 30 massas solares orbitando um buraco negro." "Eu comandava a nave CXI e meu irmão caçula, a nave CX3. Deixando de lado os preparativos da missão, finalmente chegamos a um mês-luz de nosso destino. A vista era magnífica; podíamos ver a gigantesca estrela azul sendo drenada de sua própria essência por um buraco no espaço! "Devíamos voar em direção ao buraco negro, meu irmão na frente e eu por último. Sabíamos que um buraco negro é circundado por uma esfera imaginária denominada horizonte de eventos, que marca a distância de onde nem mesmo a luz pode escapar. A nave de meu irmão deveria se aproximar do buraco negro, enviando sinais luminosos periodicamente; minha missão era captar esses pulsos, analisar sua freqüência e o intervalo entre eles, e depois comparar meus resultados com as previsões da relatividade geral. As naves voaram até uma distância de 10 mil quilômetros do buraco negro; enquanto minha nave deveria permanecer a essa distância, meu irmão viajaria até cem quilômetros do turbilhão. De lá, ele deveria enviar sinais em radiação infravermelha. Mas recebi apenas ondas na longa freqüência de rádio; a previsão de Einstein, que a radiação perde energia ao escapar de campos gravitacionais intensos, estava correta. Mais ainda, o intervalo entre os pulsos aumentou bastante: quando visto de minha nave, o tempo estava passando mais devagar para meu irmão. Ele mergulhou até a perigosa distância de alguns quilômetros do horizonte de eventos. Dessa órbita meu irmão deveria enviar sinais de luz visível. Mas tudo o que detectei foram as invisíveis ondas de rádio; a espaçonave de meu irmão também havia se tornado completamente invisível. O outro efeito era a variação na passagem do tempo. A medida que meu irmão se aproximava do buraco negro, o intervalo entre os pulsos de radiação que ele emitia se tornava cada vez maior. Se ele passasse do horizonte de eventos, não receberíamos mais nada. "As instruções de meu irmão eram que ele retornasse após duas órbitas em torno do buraco negro. Mais do que isso, e a espaçonave acabaria por cair, destruída, dentro do abismo. Recebi outra mensagem, que, após decodificada, dizia: 'Fim'. Meu irmão havia sido tragado pelo buraco negro." Os olhos do sr. Strõm foram inundados por lágrimas saudosas, desesperadas. "Eu decidi procurá-lo. Talvez a teoria estivesse errada e fosse possível mergulhar além do horizonte de eventos. Conforme a teoria, uma vez que se cruza o horizonte de eventos, o único movimento possível é na direção do centro do buraco negro, conhecido como singularidade central, onde a gravidade é infinitamente forte. É como se, dentro do buraco negro, o espaço se tornasse unidirecional, com todas as estradas terminando no mesmo ponto. A não ser, claro, que o buraco negro esteja em rotação. E aquele estava." Um facho de luz, como uma estrela cadente, passou rapidamente pelos olhos do sr. Strõm. "Segundo a teoria, a rotação do buraco negro distende a singularidade na forma de 132 • JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100


um anel; já no século 20, os astrofísicos obtiveram soluções descrevendo buracos negros em rotação que não terminavam em uma singularidade pontual, mas em uma garganta, conhecida como 'buraco de verme', que conectava o buraco negro a um buraco branco, o seu oposto! O que os buracos negros sugam, os buracos brancos expelem. "Assim que mergulhei no buraco negro, o movimento giratório do espaço arrastou-me para o abismo central como um redemoinho que tragasse um navio. Mesmo que eu não pudesse ver nada, meu cérebro produzia uma profusão de imagens e sons, como se todos os meus neurônios tivessem decidido disparar juntos. Eu vi a minha vida passada e a minha vida futura, entrelaçadas. Essa imagem dividiu-se em inúmeras outras, cada uma determinada pelas escolhas que fiz e as que não fiz durante a vida, todos os destinos possíveis confinados em uma única visão. O tempo, dissociado em fibras, enrolou-se em uma bola que segurei na palma da mão, enquanto o espaço se metamorfoseava em infinitas formas, todas coexistindo em um único ponto. Vislumbrei tudo o que era imaginável, tudo o que era possível e impossível. Compreendi que o que chamamos de impossível depende de como definimos as fronteiras da realidade. E, naquele momento, a realidade não tinha fronteiras. Eu vi meus parentes já mortos e aqueles que ainda não nasceram; me vi, já adulto, conversando com minha mãe, embora ela tivesse morrido quando eu era criança. Enquanto me pedia desculpas pela sua ausência, por não ter me visto crescer, por não ter me dado seu amor, era ela que se transformava em criança. Presenciei o meu próprio nascimento e minha mãe me viu morrer. Nossas imagens fundiram-se em um nó, que se transformou em uma lágrima no olho de minha mãe. Quando avancei para abraçá-la, desesperado para tocar sua pele após tantos anos, minha espaçonave foi invadida pela luz mais intensa que jamais vi. Era tarde demais. Minhas mãos atravessaram seu corpo translúcido, e ela desapareceu em meio à minha cegueira branca. "Eu senti um puxão violentíssimo. Devo ter permanecido inconsciente por um longo tempo. Quando dei por mim e olhei no espelho, meus cabelos estavam completamente brancos e meu rosto estava coberto de rugas que eu não tinha momentos (momentos?) antes. O computador de bordo indicava que eu havia reaparecido a 2 mil anos-luz de distância de Cisne X-l! A única explicação plausível é que eu tenha atravessado um buraco de verme e sido expelido por um buraco branco em um ponto distante do espaço. Segurei o infinito em minhas mãos como se fosse um brinquedo, mas não consegui encontrar meu irmão. Até hoje continuo convicto de que ele tomou um outro caminho no buraco de verme, ressurgindo em algum ponto remoto do Universo e, talvez, no tempo. Às vezes me sinto ligado a ele por teias que retornam ao turbilhão, onde todos os nossos eus são possíveis." A narrativa do sr. Strôm me comoveu profundamente. Talvez esse lugar exista e a narrativa do sr. Strõm seja verdade. Ou, se ele não existe, talvez um dia será criado. Porque é precisamente na fronteira do conhecimento que a imaginação tem o seu papel mais importante; o que ontem foi apenas um sonho amanhã poderá se tornar realidade.

é professor de Física e Astronomia no Dartmouth College, nos EUA, colunista da Folha de S.Paulo e autor, entre outros, de A dança do Universo.

MARCELO GLEISER

PESQUISA FAPESP 100 -JUNHO DE 2004 ■ 133


TECNOLOGIA BIOQUÍMICA

Parceria entre o Centro deToxinologia Aplicada e indústria farmacêutica resulta em analgésico mais potente que morfina

ovos princípios ativos, descobertos por um grupo de pesquisa paulista, mostraram grande potencial farmacológico para amenizar a dor e controlar a pressão arterial, como apontam testes feitos com moléculas sintetizadas a partir do veneno da cascavel (Crotalus terrificus) e da jararaca (Bothrops jararaca). Outras moléculas puras extraídas de esponja-do-mar são capazes de reduzir tumores, mas não podem ainda ser reveladas porque estão numa fase da pesquisa que exige sigilo. Desde sua criação, o Centro de Toxinologia Aplicada (CAT), com sede no Instituto Butantan, já depositou seis pedidos de patente. O mais novo trata de uma substância obtida do veneno da cascavel, que revelou, em uma única dose, um poder de analgesia 600 vezes mais potente que o da morfina, efeito que se prolonga por até cinco dias sem efeitos colaterais. A primeira patente, depositada em março de 2001, derivou do estudo não só do veneno da jararaca como do cérebro dessa serpente, onde foram encontrados 17 peptídeos, resultantes de uma cadeia de aminoácidos, com propriedades anti-hipertensivas batizados de Evasins (endogenous vasopeptidase inhibitor). As pesquisas foram realizadas em parceria com a indústria farmacêutica nacional, representada pelo Consórcio Farmacêutico (Coinfar), constituído pelos Laboratórios Biolab-Sanus, União Química e Biosintética. Os estudos que resultaram no isolamento das moléculas responsáveis pela analgesia percorreram um longo caminho. Vital Brazil, fundador do Instituto Butantan, pioneiro no estudo das serpentes no Brasil e precursor brasileiro na aplicação médica das toxinas animais, mostrou o efeito analgésico do veneno da cascavel 134 ■ JUNHO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 1C

no começo do século 20. O professor Antônio Carlos Martins de Camargo, coordenador do CAT, que é um dos dez Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) criados pela FAPESP em 2000, lembra que o pesquisador utilizou em pacientes com dores crônicas o veneno da cascavel diluído, eficazmente. "O veneno utilizado era bastante diluído, quase homeopático, mas os pacientes se sentiam muito bem", relata. Foi a partir dessas observações que pesquisadores do Butantan conseguiram fazer uma caracterização farmacológica da substância analgésica contida no veneno da cascavel, mas não o princípio ativo, ou seja, a molécula ou as moléculas responsáveis por esse efeito. Isso só se tornou possível, segundo Camargo, com a criação do CAT, que possibilitou a montagem da infraestrutura necessária para o isolamento, a identificação química e a síntese da substância ativa. Efeitos reproduzidos - Como essas moléculas são componentes minoritários no veneno, isolá-las e caracterizá-las é uma tarefa bastante complexa, que requer especialistas no assunto e instrumentos específicos, como o aparelho de espectrometria de massa, fundamental para determinar a estrutura molecular. "Depois de vários fracassos, conseguimos chegar a um bom final graças à atuação de pesquisadores do Instituto Butantan, como Yara Cury e sua pós-graduanda Gizele Picolo, e de um pesquisador japonês, Katsuhiro Konno, especialista em purificação que trabalhou conosco durante três anos como bolsista da FAPESP", conta Camargo. "No final do ano passado, conseguimos chegar a uma das moléculas responsáveis pelo efeito analgésico." A molécula foi isolada, sua estrutura identificada e, em seguida, sintetizada. Testes com-

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provaram que a molécula sintética isolada reproduzia os efeitos analgésicos. "É um efeito semelhante ao da morfina, mas muito mais potente, duradouro e sem efeitos colaterais identificados até o momento. Além disso, o produto é administrado por via oral", ressalta. Já a morfina, que é o padrão de analgesia, atua por um período de tempo curto. Para se obter o mesmo efeito da primeira dose administrada é necessário aumentar a quantidade ingerida, o que resulta em um efeito cumulativo no organismo e, em alguns casos, dependência. Os testes com o novo analgésico foram conduzidos em animais e ainda têm que ser confirmados em seres humanos, os chamados ensaios clínicos da fase 3 e 4. Já nos ensaios pré-clínicos realizados com os anti-hipertensivos obtidos a partir do veneno da jararaca novas propriedades, que não constam da primeira patente, foram descobertas e patenteadas. Testes realizados mostraram diferenças importantes entre esses e os anti-hipertensivos dessa classe existentes no comércio. Essas diferenças poderão melhorar a qualidade do tratamento de indivíduos hipertensos. Muitas vezes descobre-se ainda outra atividade dessas moléculas não relacionada com aquela que foi primeiro identificada. É o caso de um dos Evasins que influencia a permeabilidade de um canal iônico e modifica a resposta aos estímulos, como ocorre, por exemplo, no estímulo que leva à contração muscular. Essa propriedade poderá ter outra aplicação terapêutica além da atividade anti-hipertensiva, como no tratamento de doenças que afetam o sistema nervoso central. As novas descobertas e também os caminhos percorridos pela molécula sintetizada dentro do organismo resultaram em duas outras patentes, depositadas no Brasil, nos Estados Unidos, na Comunidade Européia e no Japão. Na atual fase da pesquisa, os melhores Evasins, que têm maior eficácia e menores efeitos colaterais, estão sendo escolhidos para desenvolver os anti-hipertensivos. A Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) tem trabalhado em duas vertentes. Uma delas trata da busca de formulações capazes de tornar eficaz sua administração por via oral, já 136 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100

que os peptídeos são destruídos pelo aparelho digestivo. A outra avalia a ação anti-hipertensiva de quatro dos 17 novos peptídeos encontrados no veneno da jararaca. Ratos transgênicos com hipertensão criados em laboratório recebem dosagens de cada um deles e são monitorados em tempo integral. Resultados promissores - Os resultados obtidos até agora, tanto com o analgésico como com o anti-hipertensivo, têm sido muito promissores, conforme atestam os parceiros da indústria. "Fomos muito além do que imaginávamos no início", diz Cleiton de Castro Marques, vice-presidente do Grupo Castro Marques, que agrupa as empresas BiolabSanus e União Química, duas das participantes do consórcio. O começo dessa parceria teve início com uma conversa entre o professor Camargo e o médico Márcio Falei, diretor médico da Biosintética, a outra ponta do Coinfar. "Quando ele me falou sobre o tipo de projeto que estava desenvolvendo, vislumbrei a possibilidade de ter em um único local no Brasil a descoberta de novos produtos de modo intenso e rápido", relata

Falei. Esse foi o início da parceria entre a indústria farmacêutica e o CAT. "Percebemos a possibilidade de ter uma base para desenvolver uma linha de produtos farmacêuticos que eventualmente poderiam chegar ao mercado", relata José Fernando Leme Magalhães, diretor corporativo de Assuntos Estratégicos do Grupo Castro Marques. O consórcio foi formado porque seria mais difícil para cada uma das empresas individualmente ter fôlego para acompanhar os desdobramentos do projeto. Dentro desse cenário, os empresários começaram a olhar com mais atenção aos detalhes dos produtos em transformação. Até agora, cada uma das três empresas que compõem o consórcio já colocou US$ 1 milhão de recursos próprios na pesquisa, totalizando US$ 3 milhões. Mas daqui para a frente os gastos serão maiores, com a certificação dos testes e a montagem do dossiê que será encaminhado às agências regulatórias brasileiras e internacionais para aprovação do produto. Essa forma de trabalho e novos investimentos também devem servir a uma das novidades mais recentes saí-


inovadores até o desenvolvimento de novas formas farmacêuticas, novos conceitos e estudos clínicos. A parceria das empresas com centros de pesquisa teve início há nove anos, com o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), e resultou no Bandgel, um hidrogel para o tratamento de queimaduras. O produto age como barreira de proteção em relação ao meio ambiente, possibilitando a rápida recuperação tecidual do local da queimadura.

das das bancadas do CAT e apoiadas pelo Coinfar. O produto, cujos resultados preliminares são animadores, tem propriedades anticancerígenas e é obtido de uma esponja-do-mar. "Os testes com a molécula pura causaram redução extremamente significativa em alguns tipos de tumores", relata Camargo. A esponja é um animal inverteg^L brado muito simples que vive Lj^ grudado nas pedras e outros i M organismos marinhos. Pa^L. J^, ra se alimentar e crescer, ela produz toxinas que afugentam os predadores do lugar onde habita. Sabendo disso, os pesquisadores foram atrás dessas toxinas para buscar possíveis aplicações para elas. Essa molécula foi isolada e sua estrutura determinada pela espectrometria de massa. O próximo passo é obtê-la na forma sintética. Os estudos são parte de um programa do CAT de desenvolvimento de toxinas de animais marinhos, com aplicação em muitas áreas. "Só para citar um exemplo, o AZT, antiviral usado no tratamento da Aids, foi produzido a partir da toxina de uma esponja-do-mar", diz Camargo.

Com esse amplo leque de pesquisa, o Centro de Toxinologia do Butantan é descrito como uma fábrica de moléculas por Castro Marques. Com as boas notícias do CAT, a Biolab e a União Química estão empenhadas em investir em pesquisa e desenvolvimento para melhorar sua competitividade. Neste ano, o grupo destinou 5,3% do faturamento na área farmacêutica, que em 2003 foi de R$ 419 milhões, para pesquisa. Portanto, os aportes representarão cerca de R$ 22,2 milhões. O investimento contempla desde produtos 0 PROJETO Centro de Toxinologia Aplicada (CAT) MODALIDADE Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) COORDENADOR ANTôNIO CARLOS MARTINS DE CAMARGO

- INSTITUTO BUTANTAN

INVESTIMENTO US$ 1.300.000

Filosofia empresarial - "Nós chegamos hoje num ponto em que temos recebido mais propostas do que nossa capacidade de investir", relata Castro Marques. Para ele, a pesquisa é de suma importância para a indústria nacional. Desde a entrada em vigor da Lei de Patentes no Brasil em 1996, as indústrias nacionais passaram a se preocupar com a necessidade de desenvolver novos produtos, como fazem as grandes empresas internacionais. "Temos de investir e criar tecnologia, porque o mercado se constituirá de empresas inovadoras, de um lado, e de empresas fabricantes de genéricos, de similares e de produtos populares, de outro", diz. A mesma filosofia norteia a Biosintética, que desde 1993 trabalha em parceria com universidades para desenvolver produtos. Anualmente investe em pesquisa 2% do seu faturamento líquido de cerca de R$ 260 milhões, o que representa cerca de R$ 5,2 milhões. Segundo Falei, da Biosintética, um dos resultados da parceria com o CAT, além dos promissores fármacos, foi o lançamento das bases para a definição de uma política industrial farmacêutica. O primeiro pilar foi a criação da Agência de Gestão da Inovação Farmacêutica (Agif), que reúne especialistas capazes de fazer uma patente bem protegida e tem como tarefa ajudar a identificar gargalos na rota de transformação da descoberta até o produto. Para Magalhães, o objetivo da inovação é o mercado. E o sucesso é o maior estímulo. "Tenho certeza de que quando um desses produtos inovadores chegar ao mercado muitas outras empresas também vão querer investir." A capacidade de colocar no mercado um produto novo, de maior valor agregado e apelo comercial motiva a concorrência. • PESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 137


I TECNOLOGIA AGRONOMIA

Pequenose

poderosos Pesquisadores constatam efeitos protetores do cogumelo-do-sol e indicam forma correta de uso DlNORAH ERENO

Carnudo e macio ao toque, o fungo Agaricus blazei, conhecido popularmente como cogumelo-do-sol, estimula o sistema imunológico e funciona como poderoso coadjuvante no tratamento da hepatite C, na medida em que melhora o apetite dos pacientes, que costumam emagrecer muito. Ele também diminui os efeitos colaterais dos medicamentos antivirais, como fadiga e dores musculares. Além disso, é uma excelente fonte de proteínas e vitaminas. Cada 100 gramas do cogumelo desidratado contém 35 gramas de proteínas, além de ferro, fósforo, cálcio e vitaminas do complexo B. Essas foram algumas das conclusões a que chegou a equipe de pesquisadores coordenada pelo professor Augusto Ferreira da Eira, do Departamento de Produção Vegetal da Faculdade de Ciências Agronômicas da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Botucatu, após quatro anos e meio de estudos. Eles verificaram ainda que muitos dos resultados divulgados pela mídia para o cogumelo-do-sol, como a diminuição de tumores, só são obtidos com o extrato concentrado do fungo e não com comprimidos e chás. O estudo das propriedades medicinais do A. blazei e também do Lentinula edodes, cogumelo conhecido por shitake, foi um dos objetivos da pesquisa. A crescente procura dos produtores por técnicas que garantissem melhores resultados no cultivo desses cogumelos também serviu de incentivo. Financiado pela FAPESP, o projeto já possui resultados agrícolas, principalmente do cogumelodo-sol, que estão sendo repassados aos 138 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100

Cogumelos-do-sol prontos para consumo, com o chapéu ainda fechado e aberto, à direita

produtores, concentrados nas cidades paulistas de Sorocaba, Piedade e no eixo oeste do estado (Boituva, Conchas, Lençóis Paulista, Marília e outras). Consumo tradicional - O A. blazei, como outros cogumelos do mesmo gênero, possui um formato que lembra um guardachuva. É originário das regiões serranas da Mata Atlântica do sul do Estado de São Paulo. Na década de 1970 foi levado para o Japão, onde suas propriedades medicinais começaram a ser estudadas. Já o shitake fez o caminho inverso. Foi trazido da Ásia por japoneses e chineses e aclimatado às condições brasileiras. Embora seja o segundo cogumelo mais consumido no mundo, com cerca de 14% do mercado, ele ainda está muito atrás do imbatível líder, Agaricus bisporus, o famoso champignon originário da França, com mais de 50%. Existem no mundo cerca de 10 mil espécies conhecidas de cogumelos, se-

gundo alguns especialistas, das quais 700 são comestíveis, 50 tóxicas e de 50 a 200 usadas em práticas medicinais. Entre os asiáticos, a tradição de consumo medicinal de cogumelos vem de longa data, conforme atestam relatos datados de quase 2 mil anos. E são eles os maiores consumidores do produto brasileiro, segundo os dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Apenas no primeiro trimestre deste ano, de 6.243 quilos (kg) de cogumelo-do-sol seco exportados, no valor de US$ 557.901,00 (US$ 89,36, o quilo), a quase totalidade, ou 6.223 kg, foi destinada ao Japão. Em 2003, dos 20.072 kg vendidos, 19.368 seguiram para o mercado japonês. Nos últimos anos, o A. blazei tornou-se bastante conhecido em função de relatos populares sobre os benefícios proporcionados pelo chá desse cogumelo, que seria responsável pela recuperação e melhora do quadro clínico de


I


pacientes com tumores cancerígenos, quando administrado junto com os tratamentos convencionais, como a radioterapia e a quimioterapia. "Entramos na pesquisa para ver o que é verdade e o que é mentira nos relatos propalados pela mídia", diz Augusto. Participaram do projeto pesquisadores ligados a várias áreas, como biotecnologia, imunologia, patologia, bioquímica e agronomia, somando, pelas contas do coordenador, cerca de 80 profissionais distribuídos em sete equipes. A primeira tarefa dos pesquisadores envolvidos no projeto, iniciado em 1999, consistiu em verificar se o fungo que seria estudado era exatamente o A. blazei. Para isso, foram escolhidas linhagens dos estados de São Paulo, Paraná, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. A análise, feita por micologistas (estudiosos de fungos) brasileiros com a participação de israelenses, resultou na proposição de que as linhagens brasileiras sejam identificadas como Agaricus blazei (Murr.) ss. Heinem ou como uma nova espécie, denominada Agaricus brasiliensis, porque elas são realmente diferentes das linhagens encontradas na Flórida, Estados Unidos, e descritas pelo micologista norte-americano William Murrill em 1945.0 estudo que identifica a espécie brasileira, encabeçado por Solomon Wasser, da Universidade de Haifa, em Israel, foi publicado em 2003 no International Journal ofMedicinal Mushrooms, ou revista internacional de cogumelos medicinais, e aguarda o parecer de outros micologistas. Em paralelo a esse trabalho, os cogumelos obtidos em várias situações de cultivo eram enviados para as demais equipes. O grupo responsável pela caracterização bioquímica, coordenado pelo professor Edson Rodrigues Filho, do Departamento de Química da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), analisou várias substâncias em extratos apolares (ácidos graxos, ou gordurosos, que estão presentes no cogumelo) e também polares (solúveis em água, como proteínas e aminoácidos). "No caso dos extratos apolares do A. blazei, foram detectadas várias substâncias, entre elas o ácido linoleico, descrito na literatura científica como possuidor de propriedades anticancerígenas em animais", diz Augusto. 140 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQ.UTSA FAPESP 100

Para saber em que fase do cogumelo o ácido linoleico encontrava-se mais presente, foram analisadas várias linhagens colhidas na fase jovem, caracterizada pelo fechamento da parte superior do fungo, conhecida como chapéu, e na etapa em que ele já está plenamente aberto. Segundo Augusto, o mercado elege o cogumelo mais branquinho, fechado, para consumo. "Mas nem sempre o cogumelo jovem é o que contém mais princípios ativos", completa. Proteção celular - Os testes, realizados por Ana Paula Terezan, aluna de mestrado do Departamento de Química da UFSCar, apontaram que em algumas linhagens o ácido linoleico, por exemplo, está mais concentrado na fase aberta, enquanto em outras isso ocorre na jovem. As variações estavam relacionadas à linhagem e ao material usado como cobertura, onde é feito o cultivo, que pode ser turfa, xisto ou a mistura de terra e carvão. Outra equipe, coordenada por Lúcia Regina Ribeiro, do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da Unesp de Botucatu, avaliou a eficiência dos extratos aquosos do cogumelo-dosol e do shitake em ratos contra tumores e outros danos celulares induzidos quimicamente. Esse estudo tinha como objetivo avaliar se as tão propaladas propriedades medicinais do cogumelo ingerido sob a forma de sucos ou chás realmente tinham fundamento. Os experimentos demonstraram que os extratos aquosos protegem contra alterações genéticas das células. "Quando o cogumelo foi moído e incorporado à ração, o benefício foi o 0 PROJETO Cogumelos Comestíveis e Medicinais: Tecnologia de Cultivo, Caracterização Bioquímica e Efeitos Protetores dos Cogumelos Agaricus blazei Murrill (cogumelo-do-sol) e Lentinula edodes (Berk.) Pegler (shitake) MODALIDADE

Projeto Temático COORDENADOR AUGUSTO FERREIRA DA EIRA

• Unesp

de Botucatu INVESTIMENTO

R$ 542.578,00 e US$ 261.003

não aparecimento de tumores", conta Augusto. As pesquisas também trouxeram novas luzes sobre a forma de extração e a dosagem diária indicada de cogumelos. Alguns produtores recomendam consumir, diariamente, até 40 gramas de A. blazei desidratado, em infusão aquosa de 1 litro à temperatura de 100 °C e fervido durante uma a duas horas. Dados obtidos pela equipe coordenada por Ramon Kaneno, do Departamento de Microbiologia e Imunologia do Instituto de Biociências da Unesp, contrariam totalmente essas recomendações. "Os testes mostraram que extratos aquosos do cogumelo-do-sol obtidos por fervura diminuíram a sobrevida de camundongos portadores de tumores cancerígenos, em relação aos tratamentos com sucos, provavelmente pelos efeitos hepatotóxicos", relata Augusto. Em função desses resultados, os pesquisadores estudam doses bem menores do que 40 gramas em forma de pó ou na forma de suco. Segundo Augusto, quase tudo aquilo que se fala a respeito de diminuir a progressão de tumores, aumentar a sobrevida de doentes e até contribuir para a regressão tumoral não se comprovou com a ingestão de chás (infusão a quente). Esses efeitos podem ser observados apenas quando são utilizadas frações concentradas do cogumelo-do-sol, em que os princípios ativos encontram-se mais fortemente presentes. "Em frações solúveis em oxalato de amônia (extrato ATF), os pesquisadores da área de imunologia observaram que os tumores paravam de proliferar. Eles não regrediam, mas estagnavam em determinado ponto", relata. "Cerca de 80% dos extratos concentrados (ATF) são compostos por betaglucanas (polissacarídeos), que têm realmente efeito controlador do tumor. Ele ressalta que as propagandas dirigidas para o consumidor utilizam resultados científicos que foram obtidos com extratos concentrados, o que não corresponde aos produtos que estão à venda, em forma de comprimidos, por exemplo. "Apesar de o cogumelo-do-sol ser conhecido há bastante tempo com esse nome, um empresário entrou com o pedido de registro da marca", conta Augusto. O caso lembra o do cupuaçu, fruto típico da Amazônia que teve o registro cassado no Japão (veja Pesquisa Fapesp n° 98).


Shitake cultivado no campo sobre toras de eucalipto

A ugusto lembra que o cogume/% lo-do-sol tem efeito na neu^^^ tralização de radicais livres m M (moléculas ligadas a pro^L -A_ cesso celulares degenerativos) e funciona como auxiliar importante em alguns tipos de tratamento, como a quimioterapia, porque elimina, em parte, os efeitos colaterais. Quanto à radioterapia, testes da equipe coordenada pela professora Alzira Teruio Yida-Satake, do Departamento de Dermatologia e Radioterapia da Faculdade de Medicina da Unesp de Botucatu, mostraram que os chás de algumas linhagens são modificadores das radiorrespostas. Se ingeridos antes da radiação, não interferem no tratamento. Entretanto, o mesmo chá administrado após a radiação torna o indivíduo resistente à radioterapia. O efeito radioprotetor também foi observado com os sucos administrados tanto antes como após a radiação. Portanto, o tratamento poderá não surtir o efeito desejado se o chá for tomado após a radiação e o suco antes ou depois. Quando o projeto temático estava na etapa final, Milena Costa Menezes, aluna de mestrado orientada por Carlos Antônio Caramori, da Faculdade de Medicina da Unesp de Botucatu, começou a avaliar a influência da suplementação dietética com o cogumelo-do-sol

na evolução do estado nutricional e do tratamento da hepatite C em pacientes do ambulatório universitário. Durante seis meses, uma mistura de seis diferentes linhagens foi ministrada a cinco portadores da doença, em forma de pó. O estudo acompanhou os pacientes no início do tratamento antiviral, sem o uso do cogumelo, e depois da administração do novo preparado. O grupo controle recebeu o mesmo tratamento antiviral. Os resultados apontaram que o grupo experimental apresentou melhora em todos os efeitos colaterais relatados - em comparação com o grupo controle - após o primeiro mês de tratamento medicamentoso. Temperaturas alternadas - A outra parte da pesquisa, que trata da tecnologia de cultivo, também avançou bastante. Antes de o projeto ter início, os produtores que cultivavam o cogumelo-dosol empregavam a mesma tecnologia utilizada para produzir o champignon. No entanto, o cogumelo nativo do Brasil necessita da alternância de temperaturas para frutificar (dez a 14 dias de calor, seguidos de três a cinco dias de frio e, novamente, o mesmo período de calor). Para chegar a essa conclusão, foram reproduzidas, em estufas adaptadas dentro de contêineres, as condições de cultivo de campo. Todas as variáveis foram controladas por um programa

de computador desenvolvido pelos pesquisadores. Para o A. blazei, além da escolha de linhagens selecionadas, é necessário escolher o composto mais propício para o cultivo. Capim, bagaço de cana, farelo, estéreo e outros resíduos agroindustriais são alguns dos substratos utilizados para inocular a "semente" do fungo. Nessa fase, ele fica em um ambiente úmido, que lembra uma sala mofada, mas exala um cheiro peculiar de amêndoa doce. A reprodução se faz com pequenos filamentos finos (hifas) extraídos do chapéu do cogumelo. Inicialmente, o A. blazei era cultivado apenas em canteiros desprotegidos no campo, por isso ficou conhecido como cogumelo-do-sol. Mas, mesmo ao ar livre, ele é cultivado com uma cobertura de capim e não recebe luz. No caso do shitake, o cultivo é feito em toras de madeira, um método antigo e rústico, mas bastante utilizado por ser de baixo investimento. Os resultados do projeto temático sugerem que ainda há muito campo de pesquisa para o shitake e o cogumelodo-sol, embora várias respostas já tenham sido encontradas. A próxima etapa, pelos planos do professor Augusto, é direcionar o foco para os princípios ativos concentrados nos extratos e correlacionar a intensidade dos efeitos medicinais à época de colheita, substrato e clima. • PESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 141


ITECNOLOGIA

PATENTES

Repasse do

conhecimento Projetos financiados pela Fapemig chegam à indústria e possibilitam retorno financeiro à instituição SAMUEL ANTENOR

Duas vacinas para uso veterinário, uma contra carrapato e outra antiofídica, que protege o gado do veneno da cascavel, são os dois primeiros produtos com depósito de patente no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi) licenciados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig). Quando chegarem ao mercado vão render royalties para os pesquisadores, para a fundação e para os institutos de pesquisa detentores das patentes. Um terceiro produto com patente depositada, que está em negociação, pode seguir o mesmo caminho das vacinas. É um dispositivo instalado no interior do difusor de entrada dos catalisadores destinado a melhorar o desempenho no sistema de descarga dos gases dos motores automotivos e, como conseqüência, reduzir a poluição. As três patentes fazem parte de um grupo de 11 depositadas. Para organizar e difundir as patentes, a fundação criou o Escritório de Gestão Tecnológica (EGT), que patenteia as inovações com potencial de interesse comercial. A experiência segue o mesmo caminho da FAPESP, que criou o Núcleo de Patenteamento e Licenciamento de Tecnologia (Nuplitec), em maio de 2000, para proteger a propriedade intelectual e licenciar os inventos resultantes de pesquisas financiadas pela fundação. A FAPESP tem 75 patentes depositadas no INPI. 142 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESOWISA FAPESP 100

"Procuramos transferir a tecnologia quando constatamos suas possibilidades de benefício à sociedade e ao crescimento econômico. Por isso buscamos o interesse do mercado em cada tipo de tecnologia, em seu aprimoramento e na implementação da escala industrial", diz Naftale Katz, diretor científico da Fapemig até o mês de maio, quando se transferiu para a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), do Rio de Janeiro. A vacina para o controle de carrapatos em bovinos foi o primeiro produto negociado com uma empresa, no caso o laboratório mineiro Hertape. Desenvolvida na Universidade Federal de Viçosa (UFV), ela foi composta com 45 dos 650 aminoácidos que formam a proteína Bm86 do intestino do Boophilus microplus, espécie comum de carrapato que ataca os rebanhos bovinos no Brasil. A coordenação do estudo foi do pesquisador Joaquin Hernán Patarroyo, do Departamento de Veterinária do Instituto de Biotecnologia Aplicada à Agropecuária (Bioagro), da UFV, em cooperação com a Fundação de Imunologia da Colômbia. A vacina é a primeira do tipo sintético, feita inteiramente em laboratório e sem a necessidade de sangue de animais para o preparo, desenvolvida na América Latina que vai chegar ao mercado. Ela também foi patenteada na Austrália, no México, nos Estados Unidos e na Comunidade Européia. Em aplicações subcutâneas no gado, a vacina estimula a produção de anticorpos no sangue do


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animal contra a proteína produzida pelo intestino do carrapato. Ao ingerir o sangue, esses ácaros (os carrapatos são classificados na classe Arachnida, a mesma de aranhas e de escorpiões, na subclasse Acari) não conseguem processá-lo e ficam debilitados, deixando de colocar ovos e de se reproduzir. "A vacina não apresenta efeito tóxico para o gado nem se acumula nos tecidos do animal. Ela age apenas sobre os carrapatos. Testes efetuados com animais isolados em estábulos demonstraram eficiência de 85%", afirma Patarroyo. Testes em campo, feitos no Centro Nacional de Pesquisa em Gado de Leite da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), no município de Coronel Pacheco (MG), alcançaram 80% de eficácia. Financiada pela Fapemig, a pesquisa foi iniciada por Patarroyo há dez anos, com o estudo de parasitas que atacam os rebanhos no pasto, causando perda de peso, diminuição na produção de leite e de carne, além da transmissão de doenças que podem levar à morte dos animais. De acordo com o pesquisador, dados atualizados pelo professor Laerte Grissi, da Universi-

*• r Testes da vacina sintética que controla o carrapato do gado brasileiro e não apresenta efeito tóxico

dade Federal Rural do Rio de Janeiro, apontam prejuízos anuais na criação de gado da ordem de R$ 2 bilhões, provocados pela ação dos carrapatos. Inédita no mundo e barata, segundo os pesquisadores, a vacina foi repassada ao laboratório Hertape por meio de uma oferta pública divulgada em um edital, a fim de garantir igualdade de condições aos interessados que apresentaram propostas para o seu desenvolvimento. O ganhador firmou com a Fapemig e a UFV um contrato de 20 anos. Durante esse período, a previsão de retorno financeiro para a fundação é de 6% (divididos com os pesquisadores e a UFV) sobre o valor das vendas líquidas do produto. De acordo com Caubi Carvalho, diretor comercial e sócio do laboratório, o interesse na produção da vacina em escala industrial deve-se, em grande parte, ao fato de o Brasil exportar carne bovina para cerca de 120 países, figurando desde 2003 como o maior exportador mundial do produto. "O laboratório Hertape é um dos maiores fabricantes de produtos veterinários na América Latina. Vamos desenvolver e

comercializar a vacina em grande escala, com previsão de bons negócios, já que se trata de um salto tecnológico no controle desse tipo de praga, cuja infestação é muito grande, dentro e fora do país", afirma. A previsão de produção é de 30 milhões de doses já no primeiro ano. Iniciadas as vacinações em massa do rebanho bovino brasileiro, o diretor calcula ser possível diminuir acentuadamente a população de carrapato dos pastos em cinco a seis anos. O laboratório busca agora fornecedores internacionais de peptídeos (combinações sintéticas dos aminoácidos isolados em laboratório), ainda não produzidos no Brasil. Carvalho também tem feito palestras para criadores em Minas Gerais, São Paulo e Goiás, onde serão realizados novos testes em campo, em larga escala. Até agosto, serão selecionadas as fazendas para os testes, em um ciclo que compreenderá dois verões e dois invernos. Somente então a vacina será lançada no mercado. "Já fizemos seu registro no Ministério da Agricultura. Vamos atender primeiro os criadores brasileiros e, depois, colocar o produto na Colômbia, Venezuela e África do Sul." PESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 • 143


Equipamento instalado no catalisador melhora desempenho do sistema de descarga de gases dos automóveis

O

segundo produto patenteado pela Fapemig é a vacina antiofídica para uso veterinário que estimula a produção de anticorpos contra o veneno da cascavel (Crotalus durissus terrificus), um dos mais letais. Ela foi desenvolvida pela pesquisadora Thaís Viana de Freitas, da Fundação Ezequiel Dias (Funed), vinculada à Secretaria Estadual da Saúde de Minas Gerais. Após realizar pesquisas no Centro de Controle de Venenos e Antivenenos da Organização Mundial da Saúde, em Liverpool, Inglaterra, em 1986, a pesquisadora deu início a estudos para a fabricação de uma vacina antiofídica a partir do veneno dessa serpente comum no Brasil. O desenvolvimento partiu de lipossomas - membranas esféricas produzidas em laboratório - usados como veículos encapsuladores dos princípios ativos do veneno. Esses lipossomas estimulam a produção de anticorpos e possuem composição semelhante à membrana celular da serpente, servindo para levar substâncias terapêuticas no seu interior. A composição inédita da vacina revela um caráter biodegradável e não-tó144 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100

xico, capaz de induzir à imunidade celular. "Estudamos a encapsulação dos venenos de algumas serpentes brasileiras associados a imunoestimulantes, para a produção de anticorpos", explica a pesquisadora. Esses anticorpos protegem os animais de grandes doses de veneno, até oito vezes o considerado letal, de acordo com testes feitos em laboratório. "A vacina é uma ação preventiva porque, por ano, cerca de 1 milhão de cabeças de gado são perdidas no Brasil em decorrência da picada de serpentes e, nesses casos, a soroterapia não é utilizada devido ao alto custo do tratamento", conta Thaís. O processo de patenteamento é visto por ela como garantia da proteção do conhecimento para a inovação tecnológica, assim como retorno financeiro para ser aplicado em novas pesquisas. A patente da vacina antiofídica foi depositada pela Fapemig em 2002 e para produzi-la em nível industrial foi escolhida a empresa Labovet Produtos Veterinários, de Feira de Santana, Bahia, que ainda deverá realizar os testes de campo antes de torná-la disponível no mercado. A aplicação comercial da vacina antiofídica é vista com bons olhos por

Fernando Falcão, diretor do laboratório. Para ele, com um rebanho bovino em torno de 175 milhões de cabeças, o Brasil já é, por si só, um imenso mercado. "Pretendemos cobrir até 50% desse total nos primeiros anos da vacina no mercado, com uma produção anual entre 80 milhões e 100 milhões de doses", diz. Para tanto, testes serão realizados para avaliar a tecnologia, além de estudos técnicos e econômicos, nos próximos seis meses. Após esse período e confirmadas as potencialidades previstas, o laboratório fará o registro no Ministério da Agricultura, com vistas também à exportação do produto para Colômbia, Peru, Equador e Venezuela, países da região amazônica e que possuem grande incidência de cascavéis. Verificação rigorosa - A garantia dos resultados obtidos com a produção em nível industrial é um dos alvos da atuação do EGT da Fapemig. No contrato fechado com as empresas, há precondições que estabelecem como será gerenciado o processo, fixando, por exemplo, desde quanto cada parte envolvida receberá em royalties até como se dará o relacionamento entre


Vacina antiofídica protege o gado contra o veneno da cascavel. Tratamento mais barato que a soroterapia

elas. "Da avaliação à transferência de tecnologia, tudo é feito com recursos da Fapemig", conta Katz. Foi seguindo a linha de registrar patentes que Marcello Augusto Faraco de Medeiros e Eduardo Murilo Rosas Arantes, engenheiros mecânicos e pesquisadores da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Belo Horizonte, Minas Gerais, descobriram que os catalisadores automotivos, constituídos por peças de cerâmica em forma de colméia e metal e utilizados para reduzir as concentrações dos gases tóxicos que saem dos motores (monóxido de carbono, hidrocarbonetos e óxidos de nitrogênio), poderiam ter seu desempenho melhorado com a aplicação de telas no interior do difusor de entrada do equipamento, para otimizar esse escoamento. Após pesquisa de patentes internacionais, descobriram que não havia nenhuma notícia relacionada a telas usadas em catalisadores. Sob orientação de Medeiros, que hoje leciona Aerodinâmica no Departamento de Engenharia Aeronáutica da Universidade de São Paulo (USP) de São Carlos, Arantes desenvolveu o artefato a partir da tecnologia utilizada na

indústria aeronáutica, nos chamados túneis de vento, que, como os catalisadores, possuem expansão brusca da área de escoamento. "Os gases emitidos pelos motores de automóveis não passam pelo catalisador de maneira uniforme, concentrando-se no centro da peça", explica. Instalado na entrada do catalisador, o equipamento melhora sua eficiência ao fazer com que os gases passem uniformemente em todas as partes da colméia. "Além disso, o dispositivo pode reduzir o tamanho da peça em cerca de 30% e diminuir seus custos de fabricação. Ele pode ser adaptado a qualquer veículo automotor", diz o pesquisador. Cada tipo de catalisador necessita de uma ou mais telas específicas, mas o componente pode ser feito tanto com material metálico como não-metálico, desde que resistente ao calor. Outra vantagem é a melhora no rendimento do motor, com conseqüente economia de combustível. Ainda sem nome comercial, o dispositivo deve chamar a atenção das empresas de autopeças e montadoras do setor automobilístico.

Testado nos laboratórios de Mecânica de Fluidos da PUC mineira, o dispositivo mostrou-se bastante apropriado ao uso comercial, inclusive com estudos que apontam para um baixíssimo custo de fabricação. "Os dispositivos utilizados atualmente são pesados, caros e absorvem muito calor. Já patenteamos o distribuidor de fluxo por telas e iniciamos o processo de seleção das empresas para transferir a tecnologia para a indústria", afirma. A escolha deve ser anunciada em dois meses. A Fapemig também solicita o depósito de patentes que não tenham sido financiadas por ela durante as pesquisas. "Além dos pesquisadores vinculados a universidades e centros de pesquisa, os inventores independentes também podem contar com o apoio do EGT. Atualmente existem duas patentes oriundas de projetos particulares sendo requisitadas", diz Katz. Ele tem a expectativa de que esses números aumentem, sobretudo nas áreas de biotecnologia, agropecuária, engenharia mecânica, medicina tropical e parasitologia, em decorrência do próprio perfil do estado e das necessidades de sua economia. • PESOUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 145


I TECNOLOGIA ENGENHARIA NAVAL

Profunda

estabilidade Pesquisadores da USP desenvolvem projeto inédito de plataforma para extração de petróleo em alto-mar EDUARDO GERAQUE

Em alto-mar, os movimentos causados pela ação das ondas podem se tornar um dos grandes inimigos das plataformas que extraem petróleo a milhares de metros de profundidade, em águas profundas e ultraprofundas. É possível verificar esse fenômeno na bacia de Campos, o maior campo petrolífero brasileiro, onde as ondas do oceano Atlântico são suficientes para balançar em demasia as plataformas petrolíferas, por maiores que sejam. Esse balanço é desagradável tanto para a estabilidade do sistema como para a segurança dos trabalhadores que vivem em alto-mar. As peculiaridades oceanográficas das águas do litoral brasileiro, onde estão alguns dos maiores campos petrolíferos em grandes profundidades do mundo, levaram os pesquisadores do Departamento de Engenharia Oceânica e Naval da Escola Politécnica (Poli) da Universidade de São Paulo (USP) a um projeto de plataforma inovador. O novo e surpreendente desenho para sustentar uma planta de produção de petróleo é formado por uma única coluna, e não por várias, como nas plataformas semi-submersíveis. "Todas as simulações feitas no inédito sistema monocoluna mostraram que os ganhos com movimento, estabilidade e segurança são grandes", afirma o engenheiro naval Daniel Cueva, da equipe do professor Kazuo Nishimoto, da Poli, coordenador da pesquisa realizada em parceria com 146 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100

a Petrobras no âmbito do Centro de Excelência em Engenharia Naval e Oceânica, formado pela USP, Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Centro de Pesquisa e Desenvolvimento da Petrobras (Cenpes). Segundo o pesquisador, o projeto de construir a plataforma com uma coluna única já resultou em um pedido de patente, por parte da Petrobras, nos Estados Unidos. Em dois anos, a empresa investiu R$ 1,2 milhão no projeto. O desenvolvimento tecnológico consiste na criação de uma plataforma do tipo flutuante, sem compartimentos para o armazenamento de óleo. Ela é uma opção para as convencionais plataformas semisubmersíveis, bastante utilizadas no mundo todo. Dentro da categoria das unidades flutuantes, a Petrobras conta ainda com os navios FPSO (floating, production, storage and offloading ou flutuação, produção, armazenamento e descarregamento). Em outra família estão as plataformas chamadas de jaqueta, fixadas diretamente no fundo oceânico. "A MonoBR (como está sendo chamado o novo projeto de plataforma) vai na direção dos objetivos da Petrobras de investir em alternativas consistentes para cascos de unidades flutuantes de produção de grande porte, que tenham como premissa maior segurança e melhores características operacionais", explica Isaías Quaresma Masetti, engenheiro do Cenpes


PESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 147


responsável pelo projeto. Segundo a equipe técnica, a plataforma monocoluna já passou por todos os rigorosos vestibulares de viabilidade técnica e econômica aos quais um projeto como esse é submetido no âmbito interno da Petrobras. Um dos problemas fundamentais que a MonoBR conseguiu resolver foi diminuir as amplitudes dos movimentos da unidade devido à ação das ondas, o que propicia maior flexibilidade operacional ao sistema. Após todas as avaliações realizadas durante o período de desenvolvimento, o novo conceito foi validado e agora está na lista de alternativas disponíveis. Quando nova licitação for aberta, e as escolhas das unidades forem determinadas com base nas necessidades de segurança, de operação e de custos, a monocoluna já pode ser uma das escolhidas. O vencedor da licitação não tem o poder de vetar ou alterar a escolha tecnológica prévia feita pela empresa. "Explorar petróleo em 3 mil metros de profundidade de água é, em todos os aspectos, uma atividade inovadora e requer muita ousadia técnica, além de responsabilidade", afirma Masetti. A linha de raciocínio científico I^k do projeto da monocoluna ^^A partiu de discussões que enã M volveram conceitos básijL. Ak cos de engenharia naval, alinhados a algumas adaptações de estruturas utilizadas com freqüência pela indústria do petróleo mundial, mas em uma função diferente. Segundo os engenheiros envolvidos com o projeto, a localização desses campos no oceano Atlântico, a mais de 1,5 mil metros de profundidade, é uma das grandes dificuldades para a prospecção de petróleo. O impacto das oscilações não é sentido apenas na altura da superfície, mas também nos dutos que carregam o óleo da cabeça do poço para a unidade. "Hoje, para grandes profundidades, a utilização de dutos rígidos de aço, chamados de steel catenary risers (SCRs), passou a ser um dos grandes objetivos", explica 148 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100

Marcos Cueva, primo de Daniel e também aluno de doutorado de Nishimoto. Segundo o engenheiro, os tubos flexíveis, chamados de risers flexíveis, estão sendo preteridos devido a algumas limitações tecnológicas para profundidades superiores a 1,5 mil metros e por seu custo superior quando comparados com os rígidos. "O grande problema dos dutos rígidos é que eles ficam sujeitos não só aos efeitos da correnteza do fundo do mar,

Monocoluna mantém a plataforma estável

mas também às oscilações da unidade flutuante. Se a plataforma lá em cima também estiver oscilando muito, começamos a ter problemas relacionados à fadiga dos dutos, fato que não aparece nos flexíveis devido à natureza dos materiais usados", explica Daniel Cueva. Para permitir que o sistema se mantivesse dentro dos níveis aceitáveis de movimento, os projetistas resolveram adaptar um sistema conhecido dos projetistas do setor, mas que nunca havia sido usado para essa finalidade. "O 'moonpool', uma espécie de abertura instalada no casco da plataforma, é bastante utilizado em embarcações para permitir o acesso de equipamentos de perfuração ao fundo do mar", explica Marcos. "Resolvemos usá-lo como forma de diminuir a amplitude dos movimentos verticais." O trabalho de pesquisa e simulação de projetos como o dessa plataforma tornou-se mais próximo da realidade desde que o chamado tanque de pro-

vas numéricas (TPN) foi inaugurado na USP {veja Pesquisa FAPESP n° 73). Além dos tanques físicos, como é o caso do que existe no IPT e o da Coordenação dos Programas de Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia (Coppe), no Rio de Janeiro, um conjunto de 120 computadores e uma tela de projeção tridimensional operam em sintonia fina para oferecer aos cientistas condições bastante próximas da realidade. A simulação feita no TPN permite aos engenheiros fazer observações de todos os ângulos da plataforma. E, inclusive, descer a mais de 1,5 mil metros de profundidade para analisar se os SCRs estão, ou não, oscilando mais que o permitido. "A fadiga nesses materiais é sempre uma preocupação", informa Daniel. Com base nessa e em outras ferramentas computacionais exclusivas, desenvolvidas em função das necessidades do projeto de desenvolvimento da plataforma, os cientistas conseguem afirmar que a MonoBR, por exemplo, tem níveis elevados de segurança. "Fizemos testes em que até um quarto do volume da unidade foi alagado, e a plataforma não afundou", afirma Marcos. A MonoBR não nasceu apenas a partir de testes virtuais. O protótipo já entrou no tanque paulista do IPT e neste mês de junho vai estrear no Rio de Janeiro. Serão quatro semanas de testes em que a MonoBR será observada no tanque da Coppe, que é um dos maiores em operação no mundo e ideal para o estudo de plataformas. Ele tem 40 metros de comprimento por 30 metros de largura e 15 metros de profundidade. "Se usarmos um protótipo na escala de 1/100, por exemplo, vamos conseguir observá-lo em uma profundidade de 1,5 mil metros", explica Daniel. O processo de desenvolvimento, segundo os pesquisadores, tem grande importância acadêmica pela maneira como evoluiu dentro da universidade, integrado com as empresas de projetos de plataformas. "Nós fizemos algo que pode ser chamado de projeto concei-


Plataforma inovadora Heliponto

Alojamento -

Tanques

Tanques de lastro

Abertura de"Moonpool"

A abertura instalada no casco da plataforma, chamada de "moonpool", foi usada para reduzir movimentos produzidos pelas ondas

tual avançado", explica Daniel. Normalmente, projetos acadêmicos como esse ficam apenas na fase conceituai. "Eles não entram na fase do chamado projeto básico e muito menos nos detalhamentos, que só ocorrem próximo ao processo de licitação." No caso da plataforma projetada para a Petrobras, os números que constam dos estudos realizados na USP dão a dimensão exata dos desafios da extração de petróleo das profundezas do oceano. "O nosso projeto prevê a exploração de petróleo a 1,8 mil metros de profundidade. O peso da MonoBR previsto é de 135 mil toneladas e a lar-

gura do casco, por exemplo, é de 95 metros", diz Daniel. O preço estimado da plataforma monocoluna é de US$ 500 milhões a US$ 700 milhões, valor bem mais baixo que o das comerciais. Várias pequenas inovações tecnológicas estão previstas no desenho final. "Essa plataforma tem, por exemplo, o que podemos chamar de simetrias geométricas. Isso facilita muito a construção e as inspeções de pontos críticos da estrutura", relata Marcos. Os pesquisadores explicam que as dimensões de uma plataforma desse porte não estão relacionadas apenas com as grandes profundidades. Por causa das caracte-

rísticas do petróleo brasileiro, de alta viscosidade, a planta de produção precisa aumentar para dar espaço aos robustos equipamentos de extração e de produção. O convés, nesse caso, tem sempre que suportar altas cargas. Do ponto de vista conceituai, as condições hidrodinâmicas (movimento das ondas e das correntes marítimas) do mar brasileiro podem ser consideradas as grandes responsáveis pelo desenvolvimento da plataforma de coluna única capaz de suportar essas condições com mais flexibilidade. Os pesquisadores brasileiros, portanto, escolheram um caminho único devido às diferenças ambientais de cada região. No mar do Norte, na Europa, por exemplo, as condições de ondas, correnteza, vento e profundidade são diferentes. Segundo Daniel, a discussão sobre uma coluna única é recente. "Tudo começou no início dos anos 1990. Japoneses, noruegueses e norteamericanos também estão pensando nisso, mas o único projeto realmente adaptado para o Brasil é o nosso." • PESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 149


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HUMANIDADES HISTORIA

Pintor holandês ganha enfim seu espaço junto aos mestres flamengos LUCRECIA ZAPPI

Mesmo que Frans Post (cerca de 1612-1680) tenha de ter esperado centenas de anos para ser reconhecido como um grande mestre holandês, seu século de ouro parece ter chegado. Há exatos 400 anos do nascimento do conde Johan Maurits van Nassau-Siegen, o governador-geral que trouxe o pintor em sua comitiva para a colônia holandesa do Recife entre 1637-1644, Post volta a ser mundialmente discutido e reavaliado. Cada vez mais próximo dos pintores de primeira linha, escapa aos poucos do contexto neutro histórico de pintorviajante de quadros de qualidade irregular. Muito se deve a recentes pesquisas brasileiras. Para setembro de 2005, Pedro Corrêa do Lago, presidente da Biblioteca Nacional e ex-representante brasileiro da casa de leilões de arte SoPESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 151


Claustro franciscano de Igaraçu (1655), acima à esq.; Cidade do interior (1660), acima; Olinda (sem data), ao lado

theby's, cargo que ocupou por 18 anos, e sua mulher, Bia Fonseca, preparam uma mostra no Museu do Louvre com sete telas da primeira fase de Post, período em que morou no Brasil e produziu 18 telas, encomendadas por Nassau. No ano seguinte, em 2006, é a vez da Alemanha e da Holanda. O Haus der Kunst, em Munique, organiza uma grande exposição com cerca de 50 quadros do mestre. A curadoria é de León Krempel e, no museu Frans Hals, em Haarlem, na Holanda, é de Pieter Biesboer, para onde segue a mostra no mesmo ano. 152 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100

Na exposição do Louvre deve ser lançado um catalogue raisonné, com cerca de 160 quadros e 40 desenhos. A princípio, serão duas edições diferentes, uma em português e outra em inglês. "Há oito anos estamos pesquisando toda a obra de Post, fazendo um levantamento completo. As telas que podem ser falsas estão sendo analisadas por um comitê internacional que criamos", diz Corrêa do Lago. No comitê, estão Corrêa do Lago, Bia Fonseca, Frits Du Pare, diretor do museu Mauritshuis, em Haia, um dos grandes especialistas do século 17 holandês. Da casa de leilões Sothebys participam o diretor mundial George Watchner e o diretor na Inglaterra George Gordon. Am-

bos são especialistas nos "mestres antigos". Entre as proezas de Gordon, está a descoberta da tela do mestre flamengo Peter Paul Rubens (1577-1640), O massacre dos inocentes, vendida pela Sothebys, em 2002, por quase US$ 80 milhões. As telas de Post chegam a custar cerca de US$ 200 mil e têm se destacado de uns 15 anos para cá. "Isso porque o estudo da obra dele, até então, não tinha distinguido suas quatro diferentes fases", diz Corrêa do Lago. "Sua obra vista como um conjunto só o transforma num pintor irregular." Repórter - No período em que ficou no Brasil, entre 1637 e 1644, Post reproduziu fielmente tudo o que via, como


Detalhe deVista de Itamaracá (1637), ao lado; Cachoeira de Paulo Afonso (1647), acima

um pintor-repórter. Ao chegar ao Brasil, aos 25 anos, o primeiro grande contraste notado por ele deve ter sido a luz tropical. E os temas. O olhar de Post incorporou à nova informação a técnica, provavelmente influenciado por paisagistas holandeses de prestígio como Salomon van Ruysdael (c.16021670) e Pieter Molijn (1595-1661), entre outros. "Apesar de Post ter construído toda sua carreira pintando paisagens brasileiras, é importante situá-lo na tradição da paisagem idílica. Ele foi influenciado pela obra de Cornelis Vroom (15911661), que talvez tenha sido seu mestre. O seu tema 'Brasil' é único, mas a interpretação está baseada na tradição da

paisagem holandesa-arcádica de Vroom", diz o curador holandês Biesboer. Segundo ele, as primeiras pinturas brasileiras são bastante documentais e têm uma aproximação muito pura da realidade, mas, nas últimas telas pintadas no Recife, é notório como Post segue as convenções da paisagem idílica de Vroom, provavelmente porque isso era muito apreciado no círculo de seus clientes. "Para o Haus der Kunst, a obra de Post tem, sem dúvida, uma importância atual. Ela nos fala diretamente através de uma utopia preservada com exatidão documentária versus uma fantasia

criativa, que são os dois pólos através dos quais a arte se desenvolve até hoje", diz Krempel, que afirma que seus quadros revelam um verdadeiro cosmos. Mas Post não andava desacompanhado nesse novo universo. Na comitiva de Nassau figuravam, entre cientistas e artistas, outros dois pintores dispostos a estudar e a documentar a paisagem brasileira: Albert Eckhout (1610-1666) e Georg Marcgraf (16101644). Eckhout, pintor natural da província de Groningen, teve provavelmente o primeiro contato com a pintura através de seu tio, Gheert Roeleffs, e, no Brasil, pintou diversos quadros de plantas, frutas e raças humanas. PESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 153


"Com a exposição atual da obra de Albert Eckhout, o Mauritshuis o apresenta como um grande artista. Nas naturezas-mortas e em alguns bustos de um rei negro isso funciona porque ele pode se concentrar em aspectos artísticos e não é obrigado a pintar de uma maneira documental. Eckhout fez o melhor que pôde, nem sempre com sucesso, enquanto Post, com facilidade aparente, deixa fluir de seu pincel doces paisagens brasileiras", diz Biesboer. Filho do pintor de vitrais Jan Jaszoon Post (s.d.-1614), Frans Janszoon Post, nascido em Haarlem, foi provavelmente apresentado a Maurits van Nassau através de seu irmão, o arquiteto e pintor Pieter Jasz Post (1608-1669). Há poucas evidências, segundo Corrêa do Lago, de que Pieter tenha alguma vez vindo ao Brasil. Nomeado a partir de Pieter, Frans teria sido encarregado de documentar o Brasil, desde a topografia local, a arquitetura militar e civil até cenas de batalha navais e terrestres. Em telas como Ilha de Itamaracá (1637), Paisagem do Porto Calvo (1639) ou Forte Hendrik (1640) nota-se claramente algumas características que marcam a produção de Post: linhas rasas de horizonte com grandes céus que se abrem altos para uma vasta área, em contraposição ao primeiro plano, com vegetação ou motivos meticulosamente pintados. Há nessas pinturas um certo colorido homogêneo de tons rebaixados mais próximo à pintura holandesa do que à cor da paisagem local. Tais composições em perspectiva baixa eram comuns a um tipo de pintura panorâmica, espacial, desenvolvida na época pelos holandeses, em que a presença do céu expansivo é fundamental. A essas telas, Post acrescenta a paisagem do novo mundo. Dessa reunião surgem pinturas informativas da iconografia social presente. Ao mesmo tempo, as paisagens são serenas, reservadas diante da exuberância tropical. Característico da obra de Post era escurecer o primeiro plano e iluminar a região mais distante, da qual resgata uma luminosidade atmosférica difusa. Utilizou simultaneamente diversas técnicas de obtenção da luz na pintura. Entre eles, o claro-escuro, efeito obtido pelo contraste entre a lumino154 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100

Engenho (1661), acima; Carro de boi (1638), na página ao lado

sidade das roupas brancas e o escuro dos escravos negros, sempre a caminho, transportando carregamentos brancos sobre as cabeças. As 18 pinturas feitas no Brasil voltaram com Nassau para a Holanda e, posteriormente, em busca de aliança com o rei da França, Luís França, foram expostas para a corte em Versalhes em 1679. Acabaram ficando na França, distribuídas em algumas coleções reais. Hoje, no Louvre só há quatro telas. "Mais três foram encontradas, respectivamente, em 1880, em 1930 e em 1990. Quer dizer, se a cada 50,60 anos uma pintura dessas é encontrada, temos um bom prazo para reunir as 11 que faltam", ri Corrêa do Lago, que depois observa, com ar grave, que as que faltam "podem ter sido destruídas em catástrofes, em incêndios e nem todas devem estar assinadas". "Correio" - Um fator curioso que pode dificultar ainda mais a captura

desses 11 quadros restantes da primeira fase é que num dos quatro pertencentes ao Louvre, Post assina "Correio". "Ele se divertia traduzindo seu sobrenome para o português. Agora, imagine alguém, no interior da França, com um quadro empoeirado no porão e ler 'F. Correio'. Ele não vai achar esse nome nunca em nenhum guia ou dicionário de arte", diz Corrêa do Lago. De volta do Brasil para os Países Baixos, o artista holandês carrega consigo diversos cadernos de esboços feitos no Brasil. Mesmo após sua volta à Europa, Post não deixa de pintar vistas tropicais, especializando-se em temas brasileiros. Segundo Krempel, a "pintura especializada" foi uma característica da pintura holandesa do século 17. Essa necessidade de especialização acabou incentivando também o exotismo de Frans Post e de outros pintores holandeses. Como exemplo, Krempel cita a escola dos "Bamboccianti" (pintores


holandeses que retratavam a vida diária na Itália) ou Allaert van Everdingen, um holandês que trabalhou em Haarlem, como Post, e se especializou na paisagem escandinava. Durante os dez primeiros anos na volta para a Holanda, de acordo com Corrêa do Lago, Post fornece quadros muito bonitos, de qualidade excepcional, retirados dos esboços: "Ele basicamente 'coloriza' os desenhos e faz 'caprichos paisagísticos', ou seja, um rearranjo no gosto do pintor onde todos os elementos são verdadeiros, mas dispostos isoladamente. Essa fórmula da segunda fase, de 'não mentir isoladamente mas mentir no conjunto', se transforma no auge de sua carreira." No mesmo período, seus desenhos servem também como base para as pranchas gravadas publicadas no volume Rerum per octennium in Brasília, de Gaspar Barleaus (1584-1648). Des-

liga-se de Nassau, mas continua pintando paisagens tropicais para as quais encontra mercado. Esta produção realizada distante do motivo, a partir dos estudos realizados na América, toma caminhos diversos. Até cerca de 1659, as paisagens topográficas têm precisão documental. Contudo, é comum encontrar nas cenas pintadas na Europa uma certa perda da serenidade. Post dá nova ênfase para a paisagem tropical ao povoar o primeiro plano do quadro com animais selvagens. Surgem lagartos, serpentes, tatus ou cobras devorando coelhos. A luz difusa também é substituída, aos poucos, pelo contraste de cores mais intensas. De 1660 a 1669, fase de maturidade de Post, ou a terceira fase, nota-se um crescente domínio da técnica e dos temas brasileiros, tirando proveito ao máximo dos elementos exóticos. As pinturas já não são mais espontâneas e a preocupação documental deixa de existir.

Post demonstra sua grande habilidade de miniaturista e refaz as composições, "enriquecendo" a paisagem num rearranjo das formas vegetais, animais, em diálogo com elementos topográficos e arquitetônicos imaginários. A tinta fica mais encorpada e a dimensão atmosférica é respaldada sobre um fundo cromático em tons de verdes e azuis, na tradição da pintura flamenga. Nessa fase de auge comercial, o pintor não arrisca em novas composições. São sempre os mesmos temas, "revisitados": paisagens com engenhos, com casas ou vistas de Olinda. Nos últimos anos de sua vida, Frans Post tem uma existência sombria, entregue ao alcoolismo e com pouca capacidade para a criação. Seu êxito artístico como o maior pintor da paisagem brasileira no século 17, no entanto, ficou marcado através da homenagem do amigo Frans Hals (c.1581-1666) que, em meados de 1655, fez seu retrato. Post morreu provavelmente aos 68 anos, 25 anos depois. • PESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 155


I HUMANIDADES

ARTES PLÁSTICAS

Cooperação entre institutos revelará aos Estados Unidos textos sobre as vanguardas do século 20

RICARDO ZORZETTO

Com os olhos voltados para a guerra no Oriente Médio, o preço do petróleo e a oscilação dos mercados internacionais, os Estados Unidos provavelmente não perceberam. Mas está em curso uma ocupação silenciosa no país, que deve, no mínimo, ampliar o conhecimento dos norte-americanos sobre a cultura das nações vizinhas de continente. Sem armas nem sangue, a produção artística moderna e contemporânea de origem latino-americana chega para revelar sua riqueza de cores, formas e conteúdos. Em uma iniciativa pioneira, o Museu de BelasArtes de Houston (MFAH, na sigla em inglês), Texas, uniu-se a instituições de nove países da América Latina com o objetivo de suprir a carência de informação sobre as artes plásticas de origem latina para um público que tem fami liaridade maior com a arte européia, asiática e africana. Firmada no primeiro semestre deste ano, essa parceria prevê o cumprimento de ao menos duas metas. A primeira é recuperar os principais documentos que apresentam, interpretam e analisam os movimentos de vanguarda

latino-americanos nas artes plásticas - alguns deles fora de circulação nos seus próprios países de origem, como o trabalho do arquiteto brasileiro Luís Saias sobre a influência africana na produção dos ex-votos de madeira (pinturas em retribuição a uma graça alcançada), publicado em 1939 e fora de catálogo desde então. A segunda é publicar esse material de referência na forma de livros em inglês ou em textos na Internet em versões trilíngües - português, inglês e espanhol. Latinos - Idealizado por Peter Marzio, diretor do museu de Houston, esse esforço multiinstitucional que recebeu o título Recuperação das fontes críticas para a arte latino-americana e a arte latina (esta referente à produção dos norteamericanos de origem latina) - deve beneficiar um público bastante amplo: pesquisadores, artistas, professores e visitantes de museus, em particular os mem^ bros da comunidade latina nos Estados Unidos que cresce ano a ano. A equipe do museu de Hous-

La sordidez, de José Antônio Berni 156 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESOUISA FAPESP 100


Composición madí, de Rhod Rothfuss

Jefa, de Xul Solar

Totems, de Francisco Matto

0 atirador de arco, de Vicente do Rego Monteiro

Bicho, de Lygia Clark

PESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 157


El mundo prometido a Juanito Laguna, de Antônio Berni

ton - o quinto maior dos Estados Unidos, com um acervo de 45 mil obras de arte - pretende ainda inserir as informações resgatadas no projeto ou apresentadas em novos estudos nos programas de educação e história da arte do ensino básico e universitário norte-americanos. "Nos Estados Unidos, quase não há livros disponíveis em inglês e espanhol sobre a arte latino-americana e a arte de norte-americanos descendentes de latinos produzidas ao longo do século 20", afirma o diretor do museu. "Em alguns anos, os professores não terão mais desculpa para não ensinar arte latina", diz Marzio, que calcula em dez anos o tempo necessário para cumprir essas metas e ampliar a coleção de arte latina do museu, a um custo de US$ 50 milhões. Mais que disseminar a arte produzida ao sul da fronteira com o México, Marzio espera criar um canal de comunicação contínua entre os artistas norte-americanos e latinos. "É uma iniciativa ambiciosa, mas totalmente viável por causa dos acordos de cooperação que estamos fechando", diz Mari Carmén Ramirez, curadora de arte latino-americana do MFAH. Em abril, Peter Marzio e Mari Carmén estiveram no Brasil, onde assinaram um acordo de cooperação por cinco anos com a FAPESP, que centralizará as atividades rela{ cionadas à arte nacional. í

Mutis por ei foro (cama), de Beatriz González

Cromosaturación, de Carlos Cruz-Diez 158 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESUUISA FAPESP 100

Levantamento - A colaboração entre o museu e a Fundação prevê a implementação de projetos conjuntos de pesquisa, promoção de eventos científicos e exposições, intercâmbio de informações, publicações acadêmicas, além do intercâmbio de docentes, pesquisadores e estudantes. A aprovação dos estudos brasileiros seguirá o trâmite dos projetos financiados pela FAPESP. Ou seja, a Fundação analisará cada proposta apresentada e, quando houver mérito, deverá custear o trabalho. "Essa iniciativa tem muito a ver com a FAPESP, em seu papel de estimular o desenvolvimento da ciência, tecnologia e cultura no país", diz Carlos Vogt, presidente da Fundação. Ana Maria Belluzzo, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) e coordenadora da participação brasileira, aponta o que considera o principal ganho: "Além do levantamento seletivo dos documentos de cada período da arte moderna e contemporânea, apontaremos as questões que necessitam ser investigadas para que se aprofunde a compreensão da arte no continente". Peter Marzio começou a imaginar esse projeto há quase 20 anos. Pouco depois de assumir a direção do MFAH, ele viajou em companhia do especialista em literatura hispânica Nicholas Kanellos pelos Estados Unidos à procura das melhores obras dos ar-


tistas norte-americanos de origem latina, a chamada latino art. Marzio constatou que a produção era grande, mas pouco se sabia a respeito desse movimento artístico contemporâneo. Era a indicação de que seria necessário investir em arte latino-americana nos anos seguintes. Em 1986, Marzio montou uma grande exposição de latino art no MFAH, mas outras prioridades exigiram que o projeto aguardasse. Há três anos, o museu criou o Centro Internacional de Artes para as Américas (ICAA), atualmente dirigido por Mari Carmén, e reuniu durante três dias 30 curadores e historiadores da arte dos Estados Unidos e da América Latina - entre os quais estava Ana Maria Belluzzo. Desse encontro saíram as orientações sobre como impulsionar a arte latino-americana e a latino art nos Estados Unidos, origem do projeto de resgate e disseminação do material crítico sobre o assunto.

muitos norte-americanos, Utopias invertidas oferece o primeiro olhar sobre a genialidade desses artistas." Segundo a curadora da mostra, a porto-riquenha Mari Carmén, o objetivo da exposição é trazer à tona o que escapa à história oficial das vanguardas conhecida por lá. Os visitantes da exposição podem se surpreender ao deparar com a robustez da tela O Atirador de arcos, do pintor recifense Vicente do Rego Monteiro, pouco conhecido por aqui e possivelmente ignorado pelo público norte-americano. Como em boa parte de sua obra, nessa pintura Monteiro usa os traços geométricos típicos do cubismo de Picasso para exaltar o povo mestiço brasi-

A penas este mês, o sog^L nho de 20 anos coL^^ meça a tomar forma È m com a exposição

JL.

JL. Inverted utopias

(Utopias invertidas), que exibirá de 20 de junho a 12 de setembro, no MFAH, cerca de 250 obras de 67 artistas de países latino-americanos - Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, México, Cuba, Porto Rico, Colômbia e Venezuela. De Fachada do edifício Caroline Weiss Law: sede acordo com a equipe do museu, da exposição, em que o Brasil está bem representado essa é a primeira mostra em grande escala dos movimentos de vanguarda latino-americanos, tão distintos quanleiro, que ganha corpo e volume na cor ocre. Presento distantes dos desenvolvidos na Europa e nos Este também na obra de vários outros latinos, como a tados Unidos. Organizada por Mari Carmén e Hécdo uruguaio Joaquín Torres-Garcia e a do argentino tor Olea, a exposição abrange o período de 1920 a Xul Solar, essa subversão é o grito de liberdade da 1970 e reúne as obras em seis grupos temáticos: o arte no continente, que, após séculos de influência universal e o vernáculo, que contrapõe os temas naeuropéia, torna-se madura e autônoma. cionais aos universais; o lúdico e o lutuoso, que rejeiO Brasil está bem representado na exposição. O ta a arte pela arte e parte para a crítica às injustiças grupo progressão e ruptura é um dos que contam sociais e políticas; a progressão e a ruptura, com com o maior número de representantes, com obras obras abstratas geométricas que incorporam a parde Lygia Clark, Waldemar Cordeiro e Hélio Oiticica, ticipação ativa do espectador; o vibratório e o estapor exemplo. Trabalhos nacionais, como Cildo Meicionário, no qual cores vibrantes, contrapostas ou relles e Antônio Dias, também aparecem em peso não, dão a sensação de movimento; o óptico e o sob a temática do crítico e engajado. Ana Maria háptico, que joga com o tato e a visão; e o crítico e o Belluzzo considera a brasileira tanto na exposição engajado, em que as obras fogem aos meios tradicomo na recuperação das obras críticas uma oporcionais de expressão, como a pintura e a escultura, tunidade sem igual. "Essa é a chance de a arte latinopara escapar à opressão política das ditaduras das americana se estabelecer nos Estados Unidos de décadas de 1960 e 1970 em países como Brasil, Aruma forma ainda não vista, com autoridade", afirgentina e Chile. ma. Talvez agora se compreenda por lá o que Torres"Nos 50 anos esquadrinhados pela mostra, os Garcia, o pai do construtivismo latino e autor de um artistas latino-americanos mantiveram diálogo simapa da América Latina em que o Sul aponta para multâneo com a arte moderna da Europa e dos Eso alto, quis dizer quando afirmou há quase seis détados Unidos", diz Peter Marzio. "Contudo, para cadas: "Nosso norte é o Sul". • PES0UISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 159


■ HUMANIDADES

CINEMA

C^J' CTToLLijVJOoa az

Pernambuco Tese relembra o Ciclo do Recife, os jovens que fizeram filmes como os dos americanos para o cinema local JOANA MONTELEONE

Em 1929, Gilberto Freyre recebeu uma estranha visita na redação de A Província, um dos mais tradicionais jornais do Recife. O velho homem, aristocrata da antiga geração de senhores de engenho da Zona da Mata de Pernambuco, vinha pedir ao então jovem diretor do jornal que colocasse a polícia atrás de umas assombrações que estavam a lhe atrapalhar a vida. Espantado com o pedido, Freyre encaminhou o amigo a um psiquiatra. E começou a recolher histórias de fantasmas para um livro. Era um sinal dos tempos. A cidade já não era a 160 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100

mesma. O Recife dos lampiões de azeite rendia-se às luzes fulgurantes da modernidade. E mesmo Freyre, grande defensor das tradições nordestinas, não conseguia levar essas histórias a sério. Acabara-se o espaço para histórias ao pé do fogão, contadas pelas "bás" aos sinhozinhos malcriados. Automóveis, sorvetes, aviões e filmes americanos seduziam uma nova geração, ávida pelas emoções do século da velocidade. Na cidade que fazia questão de esconder o passado - mudando o nome de ruas, construindo edifícios modernos, abrindo avenidas -, um grupo de jovens


resolveu fazer filmes como os americanos para exibi-los nos cinemas da cidade. Começava assim um dos mais importantes ciclos do cinema regional do país, até hoje pouco conhecido. A pesquisadora de cinema do Programa de Pós-Graduação em Multimeios da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Luciana Corrêa de Araújo, agora desenvolve uma pesquisa de pós-doutoramento que procura analisar o Ciclo do Recife, identificando o cenário social e cultural em que essas produções foram realizadas. "Nesse período", diz Luciana, "convivem com particular intensidade as ambições de modernidade e desejo de manter as tradições, num processo que se desenrola sob diversos aspectos e que tem entre suas principais manifestações a polêmica envolvendo o sociólogo Gilberto Freyre, que chegaria a escrever o 'Manifesto Regionalista', e o jornalista Joaquim Inojosa, ligado aos intelectuais da Semana de 22 e grande entusiasta e divulgador das idéias modernistas no Nordeste." A polêmica toma conta do Recife e vai pautar tanto a produção de filmes como a crítica de jornal sobre as películas exibidas nos cinemas da cidade. As sessões não ocorriam apenas no famoso Cine Royal, sempre

lembrado. "Insisto nesse ponto porque se costuma falar apenas no Royal, mas a pesquisa nos jornais diários mostrou que os filmes eram exibidos em outros cinemas, alguns filmes até percorrendo um circuito de exibição significativo, em salas do centro e dos bairros." O Ciclo do Recife tem como um dos principais marcos a volta do ourives Edison Chagas para a cidade, vindo do Rio de Janeiro, então capital da República, com a idéia de fazer cinema americano em Pernambuco. No Rio, Chagas chegara a trabalhar em pequenas produções cinematográficas, onde aprendera algumas técnicas utilizadas por ele para as produções do Ciclo. Logo ele se junta ao gravador Gentil Roiz, que possuía uma câmera de segunda mão e já escrevia argumentos para filmes imaginários. Os dois, ao lado do estudante de engenheira Ary Severo, fundam a Aurora-Film, a primeira e mais importante produtora do Ciclo. Em 1924 já estão filmando o primeiro longa-metragem. "Em pouco tempo, eles conseguem reunir cerca de 30 jovens de diversas ocupações, como jornalistas, comerciários, artistas, funcio-

Edison Chagas, principal cinematografista do período; e Almery Steves em Aitaré da praia, filmado nas praias pernambucanas

nários, que enxergam na Aurora uma oportunidade de passarem de fãs a atores e técnicos de cinema", conta a pesquisadora. Inicialmente as produções eram baratas e contavam com a boa vontade dos jovens que gravitavam em torno da produtora. Com o tempo, os custos de produção e distribuição foram aumentando e a produtora passou a ter sérios problemas financeiros. A Aurora-Film faliu duas vezes, mas seus idealizadores continuaram a fazer cinema de diferentes maneiras. O primeiro filme do Ciclo, Retribuição, estréia em março de 1925. Escrito e dirigido por Gentil Roiz e com fotografia de Edison Chagas, o filme conta a história, tipicamente hollywoodiana, de um casal que, à procura de um tesouro, luta contra um grupo de bandidos. Compunham o elenco Barreto Júnior e Almery Steves, que mais tarde seria reconhecida como a maior estrela do Ciclo do Recife. O filme fez grande sucesso no Cine Royal, local que se tornaria a principal vitrine do cinema pernambucano produPESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 161


zido no período, graças ao co-proprietário, o português Joaquim Matos, cuja atuação garantiu a exibição dos filmes sempre em grande estilo. No período que vai de 1922 a 1931 foram produzidos 13 filmes de enredo e vários chamados de filmes naturais, "que é a nomenclatura da época para filmes de não-ficção", segundo Luciana Corrêa de Araújo. Logo depois de Retribuição, saem Um ato de humanidade e Jurando vingar, ambos em 1925. Mesmo com o sucesso comercial de Retribuição, a produtora teve de fazer uma película comercial para equilibrar os gastos e assim surgiu Um ato de humanidade, propaganda da Garrafada do Sertão, do Laboratório Maciel. Nessa fita, Jota Soares - que se tornaria um nome importante no Ciclo do Recife - estreava como ator, representando um jovem sifilítico que se curava milagrosamente com a tal garrafada. "É interessante notar que esses filmes de propaganda ajudaram a profissionalizar os jovens cineastas e também se tornaram o ganha-pão de muitos depois que o Ciclo terminou", diz a pesquisadora. 162 • JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100

Logo em seguida estreava Jurando vingar, no qual os jovens cineastas tentam repetir o esquema do primeiro filme com forte influência do cinema norte-americano. Dessa vez, a reação do público não foi tão entusiasmada. Os três resolveram então filmar a própria realidade do Recife. Pensando nisso, surgiu Aitaré da praia, em 1926 (o filme foi bem preservado e hoje está disponível em DVD). Nele, o pescador Aitaré namora Cora, moça inocente de uma pequena aldeia. Diversos desentendimentos separam os heróis até o esperado final feliz. Neste filme, em que participam atores como Almery Steves e Jota Soares, são mostradas tanto as belas praias do lugar como o ambiente sofisticado da aristocracia do Recife. O embate entre tradição e modernidade pode ser visto de maneira evidente na fita que tem uma hora de duração. O filme foi enorme sucesso e chegou a ser exibido em outras cidades. A notícia de que existia um grupo empenhado em fazer cinema no Recife logo chegou ao Rio de Janeiro, com críticas especializadas de jornalistas como Adhemar Gonzaga e Pedro Lima. Isso despertou o interesse de outros empreendedores que queriam fazer cinema. Quatro novas produto-

ras surgiram, a Vera Cruz-Film, a Planeta-Film, a Veneza-Film e a OlindaFilm. Ainda em 1925 são produzidos Filho sem mãe, da Planeta, filme perdido que, segundo consta, teria a presença de cangaceiros na trama, indicando o aproveitamento dramático de personagens típicos da região. Picante - Os integrantes da AuroraFilm, apesar das dificuldades financeiras decorrentes de Aitaré da praia, partiram para o mais ambicioso dos filmes do Ciclo do Recife, A filha do advogado, que estreiou em 1926 e tinha duração de 92 minutos. Com roteiro de Ary Severo e direção de Jota Soares, o filme é um melodrama em torno de uma picante história de sedução, que deixaria o escritor Nelson Rodrigues com inveja por não ter criado a história. O herói, Helvécio, é filho de um famoso advogado da cidade, o doutor Paulo, e leva uma vida boêmia. Seu pai tem uma amante e uma filha desse relacionamento ilícito, Heloísa. Helvécio, não sabendo que a moça é sua meia-irmã, tenta seduzi-la à força. Na luta que se segue, ela o mata. Ninguém aceita defendê-la no tribunal, até que um estranho aparece disposto a ajudá-la. No elenco: Jota Soares,


Guiomar Teixeira, Euclides Jardim, Norberto Teixeira, Olíria Salgado, Ferreira Castro, Jasmelina de Oliveira, Severino Steves. O filme chegou a ser exibido no Rio, mas as dívidas com a produção foram imensas e a AuroraFilm foi à falência pela segunda vez. A falência não significou que os cineastas que criaram a produtora pararam de fazer filmes. Edison Chagas continuou a filmar na Liberdade-Film, que lançou Dança, amor e ventura, em 1927, e No cenário da vida, em 1930, um drama romântico que seguia a linha de A filha do advogado. "Em 1930, encerra-se a produção de filmes de enredo do Ciclo, em meio à consolidação do cinema sonoro, às dificuldades na exibição dos filmes locais e ao conturbado momento político e econômico pelos quais passava o país." Os filmes de enredo, contudo, representam apenas uma parte da produção do Ciclo do Recife. Os documentários são ainda menos conhecidos e mostram a cidade em datas especiais, como Pernambuco e sua exposição de 1924, de Ugo Falangola e J. Cambière, o Carnaval pernambucano de 1926, da Aurora -

Film, O progresso da ciência médica, feito por Edison Chagas, em 1927. No projeto de pesquisa de Luciana Corrêa de Araújo, o Ciclo do Recife é entendido dentro de um quadro mais amplo, que extrapola o campo cinematográfico, para se debruçar sobre a sociedade e cultura pernambucana dos anos 1920. "Uma das principais questões que marcam o período é o embate entre tradição e modernidade." Um dos espaços privilegiados para se perceber essa tensão são os jornais e revistas de época. "Os diários do Recife, as revistas e colunas de cinema

0 PROJETO Ciclo do Recife, os Filmes, as Histórias MODALIDADE

Bolsa de Pós-doutoramento SUPERVISORA LúCIA NAGIB

- Programa de PósGraduação em Multimeios/Unicamp

PESQUISADORA LUCIANA Sá LEITãO CORRêA DE ARAúJO - Programa de Pós-

Graduação em Multimeios/Unicamp

Almery Steves, a estrela do Ciclo do Recife, em Dança, amor e ventura; e Guiomar Teixeira, protagonista de A filha do advogado

do Rio de Janeiro trazem uma visão contemporânea capaz de enriquecer e problematizar as leituras feitas posteriormente", completa. Os últimos filmes do Ciclo do Recife são exibidos em 1930, mas a produção cinematográfica na cidade continua ao longo das décadas seguintes. Uma produção que se constitui, sobretudo, de cinejornais e documentários, que não alcançam a mesma repercussão dos filmes de enredo realizados na época do cinema mudo. Com o super 8, na década de 1970, o cinema pernambucano ganha novo fôlego, com realizadores, que também escreviam em jornais da cidade, como Fernando Spencer, Celso Marconi e Geneton Moraes Neto. E, a partir da retomada dos anos 1990, a produção volta a se afirmar para além das fronteiras do estado. Surgem filmes como Baile perfumado (1987), O rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas (2000) e Amarelo manga (2004), que, assim como a produção do Ciclo do Recife, encontram terreno fértil no diálogo entre o moderno e o tradicional. • PES0UISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 163


■ HUMANIDADES

EDUCAÇÃO

Sem tempo para o príncipe

Ensino esmerado das filhas de D. Pedro II foi pioneiro num tempo em que mulheres não estudavam

GERMANA BARATA E RENATA SARAIVA

Profissionais bem-sucedidas, que não medem esforços nem tempo para a educação continuada, com cursos de língua, especializações, pós-graduações, MBAs. A emancipação feminina do século 21 é reflexo direto da presença das mulheres na educação formal durante o século 20, quando se observou, no Brasil, a predominância das mulheres nas turmas que concluíram a universidade - em 2002, elas representavam 63% dos formandos, segundo o Censo de Ensino Superior. Essa é uma realidade que em pouco mais de um século jogou terra sobre uma educação voltada para a formação exclusiva de mães de família, com ênfase nas habilidades para corte, costura e bordado, alimentando uma sociedade voltada para o domínio dos varões, esses sim incentivados a aprender mais que ler, escrever e contar. Até 1879, as mulheres eram proibidas por lei de freqüentar cursos de ensino superior e, no ensino básico, seus conhecimentos restringiam-se à economia doméstica, além de excluírem noções de geometria, limitando o aprendizado da aritmética às quatro operações básicas. Uma exceção apareceu no coração do Império, com o preparo da princesa Isabel Cristina Leopoldina de Bragança (1846-1921) e sua irmã, Leopoldina Teresa (18471871), filhas de D. Pedro II. Elas receberam uma rigorosa educação formal, considerada, para os padrões da época, masculina. Das 7 da manhã às 9 e meia da noite, as aulas, ministradas nas dependências imperiais, incluíam conhecimentos científicos, principalmente o da química. É o que constatou o pesquisador Carlos Filgueiras, químico da Universidade Federal do Rio de Ja164 • JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100


A família real em Petrópolis, com Isabel à direita de D.Pedro II: filhas receberam ensino em moldes masculinos PESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 165


neiro (UFRJ). Seu estudo, baseado em documentação pertencente à família imperial brasileira, guardada no Arquivo de Grão Pará, em Petrópolis (RJ), foi publicado recentemente na revista Química Nova, vol. 27, n° 2. Filgueiras mostra que a preocupação com a educação científica das princesas era fruto do interesse do imperador pela ciência em geral e, em particular, pela química. Além de se corresponder com químicos famosos, como Louis Pastem (1822-1895) e Marcelin Pierre Eugène Berthelot (1827-1907), D. Pedro II realizava experimentos em seu laboratório, na Quinta da Boa Vista, e participava da Academia de Ciências de Paris. Decisões - O imperador era também apaixonado por fotografia e processos de revelação, como demonstrou a exposição De volta à luz, apresentada em São Paulo de junho a outubro de 2003. "Existe um debate que diz que o imperador se pretendia um cientista. Considero a discussão falsa, pois acredito que ele achava que um governante deveria se interessar por muitos assuntos e acompanhar o progresso das ciências e de suas aplicações, o que facilitaria o processo de tomada de decisões", explica Filgueiras. Proporcionar uma educação formal rígida às filhas significava para o imperador garantir o preparo para a futura governante. Dos quatro filhos que teve com a imperatriz Tereza Cristina, os dois herdeiros homens morreram prematuramente, deixando para Isabel, aos 14 anos, a responsabilidade de ser a sucessora do pai. Assim, em 1860, após juramento à Constituição do Império diante do Senado Imperial, a filha mais velha de D. Pedro II recebeu o título de Princesa Imperial. Quatro anos antes, contudo, o imperador já se preocupava com a educação de suas herdeiras. Contratou a condessa de Barrai, D. Luísa Margarida Portugal de Barros, para ser a preceptora das princesas. Era sua missão garantir às meninas uma educação não 166 ■ JUNHO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 100

Graça e elegância: moças de boa família deveriam se preparar para representar socialmente os seus maridos

diferenciada da recebida pelos homens da elite, mas que fosse combinada com a recebida por mulheres. Barrai também supervisionava o ensino de cerca de 20 disciplinas, podendo, inclusive, impor castigos às meninas, quando necessário. Inúmeros profissionais de alto gabarito, alguns com especialização na Europa, dividiam-se no ensino das línguas (latim, grego, português, francês, inglês, alemão e italiano), das artes (literatura, piano, desenho e pintura), filosofia, história, álgebra, química, física, zoologia, botânica, mineralogia, geologia, geografia, geometria e cosmografia. "Muitas vezes, o próprio imperador tomava o lugar dos professores, pois gostava muito de estar presente na educação das filhas", afirma Filgueiras. O rigor também existia na hora da avaliação, feita por meio de provas e de um detalhado boletim, escrito em francês. Foi através desse boletim que Filgueiras constatou que Isabel era a mais aplicada das meninas, destacando-se em química, disciplina pela qual se interessava também fora da sala de aula por força da fotografia, como o pai. Fora das dependências imperiais, a realidade era outra, embora, no decor-

rer do século 19, diversas vozes da sociedade clamassem pelo aprimoramento e o acesso à educação por parte das mulheres. "No início do Império, o que se oferecia às meninas era o ensino doméstico limitado às primeiras letras e às habilidades manuais, noções de música e dança, bordados e quitutes caseiros. Nada de mais, mas também nada de menos do que necessitava a sociedade de então", explica Eliane Marta Teixeira Lopes, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). "Por incrível que pareça, muitas vezes a alfabetização era um impedimento para que os pais matriculassem suas filhas em escolas. A leitura era vista como menos perigosa - pois era possível controlar a circulação de livros -, mas a escrita, como forma de expressão, era vista como perigo a que as meninas não podiam estar expostas", salienta a professora. No decorrer do século, cresceu o número de estabelecimentos particulares destinados ao ensino das meninas. "As escolas, ou simplesmente as aulas, funcionavam nas casas de suas fundadoras e acolhiam limitado número de alunas a quem ofereciam parcos conhecimentos", diz Eliane. Também em escolas religiosas, as filhas da elite apren-


A mestra e suas discípulas: professoras serviam como exemplo para as alunas, com controle rígido sobre fala e atitudes

diam a leitura, a escrita, noções básicas de matemática e, para complementar, piano e francês. "As habilidades com a agulha, os bordados, as rendas, as habilidades culinárias, bem como as habilidades de 'mando' das criadas e serviçais, também faziam parte da educação das moças", explica Guacira Lopes Louro, professora do Departamento de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Além de boa companhia para seus maridos, essas moças precisavam estar preparadas para representá-los socialmente. As transformações sociais e políticas do Império e, posteriormente, a proclamação da República levaram naturalmente a mudanças na forma como as mulheres tiveram acesso à educação no século 19. Havia, nas últimas décadas do século, uma preocupação com a modernização da sociedade, a higienização da família, a construção da cidadania dos jovens. Algumas vozes, como a de Benjamin Constant, pretendiam colocar o ensino a serviço da mentalidade positivista e dos estudos científicos. "A preocupação em afastar do conceito de trabalho toda a carga de degradação que lhe era associada por causa da escravidão e em vinculá-lo à ordem e ao progresso levou os condutores da

sociedade a arregimentar as mulheres das camadas populares", explica Guacira. "Elas deveriam ser diligentes, honestas, ordeiras, asseadas; a elas caberia controlar seus homens e formar os novos trabalhadores e trabalhadoras do país", continua. Apesar disso, a democratização ampla do ensino para as mulheres só ocorreu no século 20. A inda que abrisse espaço para g*m a emancipação, a nova vi^^^ são da educação feminiÈ % na em fins do século 19 -AJBL. não significava a ruptura total da necessidade de educar para o lar. Para muitos, o ensino cristão era essencial e, para outros, o estudo das ciências contribuíam para o fim das superstições, o que resultaria em mulheres mais bem preparadas para a maternidade. Foi assim, entre a visão de uma mulher com a pureza maternal de Maria, nos princípios cristãos, e a de uma mulher gabaritada pelos conhecimentos científicos, que o magistério surgiu como o primeiro campo de trabalho para as mulheres brasileiras. "Esse fenômeno não é só brasileiro. Também na França o magistério foi um importante campo de trabalho para as mulheres no século 19", diz Guacira Lopes.

"O magistério era visto como uma extensão da maternidade, o destino primordial da mulher." Assim, a docência não subverteria a função feminina fundamental, ao contrário, poderia ampliá-la ou sublimá-la. E as professoras serviam como modelo a suas alunas, exercendo um estrito controle sobre suas falas, posturas, comportamentos e atitudes. Os padrões de ensino para a formação dessas professoras nos cursos "normais", porém, continuaram bastante semelhantes aos dos tempos em que a educação era voltada apenas para o lar. A economia doméstica, por exemplo, permaneceu, agora não mais como uma simples transposição dos conhecimentos adquiridos em casa, mas como uma disciplina mais complexa, apoiando-se em conceitos científicos, adotando uma roupagem escolar e didática. Sustento - Também o magistério, embora fosse o primeiro passo para a inserção da mulher no mercado de trabalho, ainda não rompia a forma como a sociedade era conduzida por homens. Ao ocupar as salas de aulas, as mulheres os desincumbiam do papel de professores, liberando-os para outras atividades mais rentáveis - por exemplo, dirigir as escolas em que elas eram as professoras. Ao mesmo tempo, filhas de famílias menos privilegiadas tinham ali boa alternativa de sustento, muitas vezes a única. A ruptura total só veio mais tarde, no século 20, com a crescente proliferação de mulheres em diferentes postos do mercado de trabalho, cargos públicos, administrativos e ato políticos. Antes, contudo, ficou provada a eficácia da educação da princesa Isabel. Ela regeu o Império três vezes e, na ausência do imperador, substituiu o governador com os gabinetes Rio Branco (1871 a 1872), Caxias (1876 a 1877), Cotegipe e João Alfredo (1877 a 1888). Sancionou a Lei do Ventre Livre, em 1871, e a Lei Áurea, que aboliu a escravatura no país, em 1888. • PESQUISA FAPESP 100 ■ JUNHO DE 2004 ■ 167


LIVROS Política e drogas nas Américas Thiago Rodrigues Educ/FAPESP 334 páginas / R$ 39,00

A pesquisa chega no momento mais do que necessário e traz uma notável discussão sobre a questão do chamado narcotráfico, discutido aqui sem os preconceitos, mitos e tabus que costumam revestir a questão e impedir uma boa apreciação do tema. Partindo de uma análise dos antecedentes históricos, Rodrigues mostra como foi montado todo um sistema jurídico e legal sobre o assunto, só piorando as coisas. Editora Educ (11) 3873-3359 educ@pucsp.br

Influenza, a medicina enferma

Redação científica Paulo Abrahamsohn Guanabara Koogan 272 páginas / R$ 40,00

Um guia para solucionar as eternas dúvidas sobre como escrever teses, dissertações e artigos para revistas especializadas. Com uma linguagem simples e direta, o autor dá uma série de dicas para estudantes de graduação, pós-graduação, em especial nas áreas de Ciências Naturais, Biologia, Medicina e outras áreas da saúde. O pesquisador ensina o que escrever ou não escrever, o estilo preciso da redação científica, como reunir material e escrever o texto, como desenvolver as idéias, como publicar e fazer um bom texto final. Editora Guanabara (21) 2221-9621 www.editoraguanabara.com.br ou gbk@editoraguanabara.com.br

Liane Maria Bertucci Editora Unicamp/ FAPESP 448 páginas / R$ 32;00

Língua e realidade Vilém Flusser Annablume Editora 228 páginas / R$ 32,00

INFIUENZA,

Tema pouco discutido, a epidemia de gripe espanhola que assolou São Paulo em 1918 serve como pano de fundo para discutir o estado dos serviços de saúde nacionais da época. A pesquisadora revela como, diante das mortes, a população perdeu a confiança na nova e incipiente medicina científica e, por um bom intervalo de tempo, foi obrigada a um convívio forçado com curandeiros, herboristas, rezadeiras e outros, mostrando mazelas ainda não de todo resolvidas no país. A MEDICINA ENFERMA

Editora Unicamp (19) 3788-7235/7786 www.editora.unicamp.br ou vendas@editora.unicamp.br

Um livro fora de catálogo há várias décadas está de volta numa bonita edição da Annablume. Considerado pelo crítico Anatol Rosenfeld como uma obra magistral, ainda que ele discordasse de suas teses, Língua e realidade é uma bela discussão sobre a filosofia da língua, escrita por um tcheco em português. No cerne da teoria de Flusser, a noção de que realidade, conhecimento, universo e toda a verdade são aspectos lingiísticos. Leitura recomendada. Annablume Editora (11) 3812-6764/3031-9727 www.annablume.com.br

A queda do Muro de Berlim Flavia Bancher Ateliê Editorial 136 páginas / R$ 20;00

Lideranças do Contestado

§

Paulo Pinheiro Machado Editora Unicamp/FAPESP 400 páginas / R$ 28,00

Uma visão nacional e diferenciada de um fato fundamental que fechou com chave de ouro o século 20: a queda do Muro de Berlim. Mas a autora não se prende apenas aos eventos, já muito discutidos, que levaram ao fim do muro que separava as duas Alemanhas e as duas formas de ideologia. Bancher também analisa o que significa um fato histórico e suas ramificações. Uma análise muito lúcida e inovadora de um acontecimento.

Em tempos que o Movimento dos Sem-Terra ocupa as manchetes dos jornais, torna-se leitura necessária esse revisitar como se deu e acabou o movimento social do Contestado, em Santa Catarina e Paraná, entre 1912 e 1926. É uma boa discussão sobre a história social do sertão e de como, a partir de entrevistas com sobreviventes, se pode analisar como foi a luta dos caboclos e sertanejos pelo que eles entendiam como liberdade e justiça.

Ateliê Editorial (11) 4612-9666 www.atelie.com.br ou atelie_editorial@uol.com.br

Editora Unicamp (19) 3788-7235/7786 www.editora.unicamp.br ou vendas@editora.unicamp.br

LIDERANÇAS DO CONTESTADO

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