Soluções para problemas concretos

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Ciência e Tecnologia

FAPESP

Dezembro 2004 • N° 106

TELECOMUNICAÇÕES EMEDICINA GANHAM COM NOVAS FIBRAS ÓPTICAS

PROSTAGLANDINA EVITA GORDURAS DAS ARTÉRIAS

PESQUISA EM POLÍTICAS PÚBLICAS N

SOLUCOES PARA PROBLEMAS CONCRETOS


IMAGENs DO MÊS

CRIATURAS OCEÂNICAS Um projeto que une pesquisadores de mais de 70 países já descobriu l3 mil novas espécies de organismos oceânicos. Entre os achados do Censo da Vida Marinha (sentido horário) há novas espécies de estrelas-do-mar e de medusas, um tipo desconhecido de peixe-escorpião, seres unicelulares e zooplânctons.

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PeieTecnologiaiSB FAPESP

www.revistapesqu is a.fapesp .br

24

CAPA

Universidades, setor público e ONGs desenvolvem novas soluções para velhas mazelas

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ENTREVISTA

REPORTAGENS POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

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AD MINISTRAÇÃO

34

ORÇAMENTO

38

AMBIENTE

Governador Geraldo Alckmin nomeia novos executivos da FAPESP

Fundação recompõe patrimônio líquido e restabelece saúde financeira

37

DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA

Congresso em Bangcoc mostra por que ações de conservação só frutificam com visão de lucro no longo prazo

ARTIGO Há quatro décadas fora do Brasil, o casal Victor e Ruth Nussenzweig fala sobre a vida acadêmica nos Estados Unidos e os avanços no desenvolvimento de uma vacina contra a malária 4 · DEZEMBRO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 106

Parceria entre Pesquisa FAPESP e Eldorado AM leva aos ouvintes o melhor da ciência nacional

O físico Roberto Salmeron narra a contribuição do Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (CERNl, maior laboratório do mundo de estudo de partículas atômicas, criado há 50 anos


REPORTAGENS CIÊNCIA

44

ECOLOGIA

Em cinco anos, o programa Biota-FAPESP levantou informações sobre 56 mil espécies da biodiversidade paulista

49

FARMACOLOGIA

Composto desenvolvido no Rio Grande do Sul dissolve as placas de gordura que obstruem as artérias

52

TECNOLOGIA

70

HUMANIDADES

82

FOTÔNICA

CULTURA

Nova geração de fibras ópticas propicia aumento da capacidade de redes de telecomunicações

74 ENGENHARIA DE MATERIAIS Utopias de Mário de Andrade à frente do Departamento de Cultura de São Paulo

GENÉTICA

86

HOMENAGEM

A morte de Celso Furtado reacende o debate sobre o crescimento

Enzima extraída de canguru reduz a perda de células de pele expostas à radiação ultravioleta

54

78 • • •• • • o • ,,.,

FÍSICA ESTATÍSTICA

USP 70

Com projeto acadêmico inovador, campus da USP na Zona Leste começa a funcionar em março

SEÇÕES IMAGENS DO MÊS .............. 3 CARTAS ....................... 6 CARTA DO EDITOR ............... 9

') .

BIOTECNOLOGIA

Apenas 3 graus de separação se interpõem entre todos os jogadores brasileiros, craques ou pernetas

60

Uso de plasma aumenta a vida útil de próteses ortopédicas e ferramentas industriais

• • •• •

Estudo procura identificar genes responsáveis pela doçura da cana-de-açúcar

MEMÓRIA ................... . 10 ESTRATÉGIAS ................. 18 LABORATÓRIO ................. 40 SCIELO NOTÍCIAS .............. 64

e

LINHA DE PRODUÇÃO ........... 66 RESENHA ..................... 90 LIVRO ........................ 91 FICÇÃO ....................... 92 Capa: Hélio de Almeida Foto da Capa: Robson Fernandes/AE

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CARTAS cartas@fapesp.br

Roberto Santos Parabéns pela entrevista com Roberto Santos (edição no 105) na excelente revista Pesquisa FAPESP. A entrevista faz justiça a um cientista e educador que não se encontrou bem com a política. Foi, no entanto, um dos melhores governadores que aBahia teve, todavia em uma fase péssima, de repressão e atraso político e cultural. Todos os votos de sucesso.

plo, menciono a revista de no 105 (novembro 2004). Um exame rápido de seu índice revela a existência de oito matérias no campo da Ciência e Tecnologia (nove, se incluirmos aquela sobre biossegurança) e apenas três sobre assuntos afeitos às Humanidades (quatro, se somarmos àquelas a matéria sobre pesquisa na Faculdade de Educação). Essa ênfase

EMPRESA QUE APÓIA A PESQUISA BRASILEIRA

L UíS HENRIQ UE DIAS TAVARES

Salvador, BA

Revista Sou um grande apreciador e assíduo leitor desta revista fantástica. Não é exagero, não: é a pura verdade. Informa na linguagem certa o que interessa. Assino algumas outras revistas e tenho só uma sugestão a fazer: disponibilizem uma versão em PDF (programa Acrobat Reader) da revista, na íntegra mesmo. Facilita a navegação, por ser uma forma mais análoga a um impresso. Ficaria muito contente em poder fazer o download das edições anteriores e poder tê-las todas na íntegra também. Parabéns pelo excelente trabalho que realizam, e muito obrigado por abrirem esse espaço de sugestões. HYGO R BELT RÃ O AMO RI M

São Carlos, SP Embora não se possam fazer reparos à excelência do projeto gráfico e do conteúdo da revista Pesquisa FAPESP, penso que há um certo desequilíbrio na atenção que a revista dá às diferentes áreas do conhecimento, um desequilíbrio que vem se mantendo historicamente desde seu primeiro número. A título de exem6 • DEZEMBRO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 106

lJ)

N O V A RT I S Trop1Net.org

nos assuntos ditos "científicos" tem se mantido de forma sistemática, em detrimento de uma área que tem dado importantíssimas contribuições no avanço da pesquisa no país. Como leitora assídua da revista, desejaria ver nela refletida, de maneira mais equilibrada, a relevância da pesquisa nas Humanidades. SAN DRA G UARDI NI T . VASCO NCE LOS

FFLCH/USP São Paulo, SP Por me interressar pelo estágio em que anda a pesquisa no país, resolvi comprar um exemplar de Pesquisa FAPESP, para ficar mais informado, após ver um anúncio na TV Cultura. A revista é ótima e aborda os vários campos da pesquisa (até as artes, veja só ). Só tenho uma suges-

tão: a capa precisa conter mais informações sobre o conteúdo (fica difícil comprar algo sem saber o seu conteúdo). O resto está ótimo. REGINALDO RESENDE

Pirassununga, SP

Cogumelo-do-sol Confesso que nunca havia lido uma única revista Pesquisa FAPESP em toda a minha vida, mas, por coincidência, um amigo meu que estava viajando de volta para nossa cidade encontrou esquecido em um banco na Rodoviária do Tietê o no 100 desta conceituada revista e o trouxe para mim. Parabenizo Pesquisa FAPESP por tão útil conteúdo editorial, com reportagens tão importantes para o nosso dia-a-dia, desenvolvimento e progresso do nosso querido Brasil. Sinceramente não sabia que existiam publicações de tão alto nível. De todas as reportagens e pesquisas que ali foram publicadas, a que mais me chamou a atenção e despertou mais interesse foi a pesquisa com o fungo Agaricus blazei, conhecido popularmente como cogumelo-do-sol. V ALDI VINO XISTO R OSA

ltabira, MG

Viver em risco Ocorreu grave problema com o título da reportagem "Onde mora o perigo" (edição no 104). Ao ler o texto enviado pelo repórter, acrescentei "e também a dignidade", frase que foi omitida. Devo frisar que isso pode colocar em xeque a continuidade da pesquisa, pois destrói a confiança e o respeito, indispensáveis ao bom an-


damento de uma investigação. Por outro lado, a omissão escamoteia o duro cotidiano das populações que habitam regiões pobres. Viver em risco supõe moralidade e perseverança que se expressam na luta contra as injustiças: é o esforço da autoconstrução de moradias, os arranjos familiares para enfrentar o desemprego, o sufocamento nos cortiços, o medo que os filhos escolham os caminhos do tráfico, este sim mora ao lado, e é imperioso distinguir-se dele em silêncio, sem nada ouvir porque existem a arbitrariedade e a impunidade dos bandidos e da polícia. Chamo esses processos de dignidade. Finalmente penso que deixar o título como está reforça o preconceito de quem vê de longe e de forma viesada as várias manifestações da imensa desigualdade presente em nossas cidades. É estimular a visão daqueles que misturam pobreza com perigo e daí o passo para a discriminação de áreas e pessoas potencialmente violentas, porque moram em certos locais, vestem-se de certa forma, têm sotaque peculiar, mas não conseguem carteira de trabalho assinada, são jovens e, sobretudo, têm pele escura. Não pode ser a abordagem de uma revista de divulgação científica como Pesquisa FAPESP. Lúcio KowARICK

FFLCH/USP São Paulo, SP

N. da R.: Como o próprio professor Lúcio Kowarick atesta na sua carta, os termos da reportagem estão corretos. Quanto ao título, não julgamos que exprima preconceito, mas apenas a dura realidade retratada na pesquisa e a urgência das soluções para os problemas apontados.

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br, pelo fax (11) 3838-418 1 ou para a rua Pio XI, 1.500, São Pau lo, SP, CEP 05468-90 1. As cartas poderão ser resumidas por mot ivo de espaço e clareza.

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O melhor da ciência nacional num clique

No endereço www.revistapesquisa.fapesp.br você encontra:

• O conteúdo integral da edição atual • Um arquivo completo com as reportagens dos números anteriores • As edições traduzidas para inglês e espanhol Acesse a página de

Peiijüiiá. FAPESP

Quem entra, não sai mais.


CARTA DO EDITOR

Pesquisa CARLOSVOGT PRESIDENTE

No corpo-a-corpo com a sociedade

CONSELHO SUPERIOR ADILSON AVANSI DE ABREU, CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, CARLOS VOGT, CELSO LAFER, HERMANN WEVER, HORÁCIO LAFER PIVA, JOSÉ ARANA VARELA, MARCOS NIACARI, NILSON DIAS VIEIRA JÚNIOR, RICARDO RENZO BRENTANI.VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO CONSELHO TÉCNICO-ADM1NISTRATIV0 JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER DIRETOR ADMINISTRATIVO E DIRETOR PRESIDENTE (INTERINO) JOSÉ FERNANDO PEREZ DIRETOR CIENTIFICO PESBUISA FAPESP CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADORCIENTÍFICO), EDGAR DUTRA ZANOTTO, FRANCISCO ANTÔNIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, JOSÉ FERNANDO PEREZ, LUIZ EUGÊNIO ARAÚJO DE MORAES MELLO, PAULA MONTERO.WALTER COLLI DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA EDITOR CHEFE NELDSON MARCOLIN EDITORA SÊNIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS DIRETOR OE ARTE HÉLIO DE ALMEIDA EDITORES CARLOS FIORAVANTI (CIÊNCIA), CARLOS HAAG (HUMANIDADES), CLAUDIA IZIQUE (POLÍTICAC1T), HEITOR SHIMIZU (VERSÃOON-LINE), MARCOS DE OLIVEIRA(TEC«0L06IA) EDITORES ESPECIAIS FABRÍCIO MARQUES, MARCOS PIVETTA EDITORES ASSISTENTES DINORAH ERENO, RICARDO ZORZETTO CHEFE DE ARTE TÂNIA MARIA DOS SANTOS DIAGRAMAÇÃO JOSÉ ROBERTO MEDDA, MAVUMI OKUYAMA FOTÓGRAFOS EDUARDO CÉSAR, MIGUEL BOYAYAN COLABORADORES ALESSANDRA PEREIRA, ANA LIMA, BRUNO ZENI, CAROL LEFÈVRE, EDUARDO GERAQUE (ON-LINE), JÚLIO ASSIS SIMÕES, MARCELO HONÓRIO (ON-LINE), MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÕ NEGRO, ROBERTO A. SALMERON, SIMONE BIEHLER MATEOS, SÍRIO J. B. CANÇADO, THIAGO ROMERO (ON-LINE) E YURI VASCONCELOS ASSINATURAS TELETARGET

TEL. (11) 3038-1434 - FAX: (11) 3038-1418 e-mail: fapesp@telelarget.com.br APOIO DE MARKETING SINGULAR ARQUITETURA DE MÍDIA singular@sing.com.br PUBLICIDADE TEL: (11) 3838-4008 e-mail: publicidade@fapesp.br (PAULA ILiADIS) PRÉ-IMPRESSÃO GRAPHBOX-CARAN IMPRESSÃO PLURAL EDITORA E GRAFICA TIRAGEM: 44.000 EXEMPLARES DISTRIBUIÇÃO DINAP CIRCULAÇÃO E ATENDIMENTO AO JORNALEIRO LMX (ALESSANDRA MACHADO) TEL: (11) 3865-4949 atendimento@lmx.com.br GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP FAPESP RUA PIO XI, N" 1.500, CEP 05468-901 ALTO DA LAPA - SÃO PAULO - SP TEL. (11) 3838-4000 - FAX: (11) 3838-4181 http://www.revistapesquisa.fapesp.br cartas@fapesp.br NÚMEROS ATRASADOS TEL. (11) 3038-1438 05 artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAPESP í PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

FUNDAÇÃO DE AMPARO A PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO

SECRETARIA DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA, DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E TURISMO GOVERNO DO ESTADO OE SÃO PAULO

E possível que alguns ainda pensem que as respostas e, principalmente, as indagações cruciais da ciência são formuladas em laboratórios isolados do mundo dos mortais comuns, em algum lugar tantas vezes negativamente associado a inexpugnáveis torres de marfim. Se assim for, eles certamente são em número cada vez menor, porque a saudável difusão da cultura científica pouco a pouco vai mostrando que se produz conhecimento científico e tecnológico em bem-equipados laboratórios tanto quanto nas ruas, escolas, postos de saúde, hospitais, enfim, em meio ao burburinho da vida social corrente. Esta edição de Pesquisa FAPESP tem a sorte de demonstrar na prática, com duas belas reportagens que disputaram sua capa, as duas situações. Comecemos pela reportagem que ganhou a capa e mostra, a partir da página 24, resultados de alguns dos mais bem-sucedidos projetos do Programa de Pesquisa em Políticas Públicas, em campos tão diversos quanto saúde, educação, abastecimento e finanças municipais, entre outros. Iniciado pela FAPESP em 1998, esse programa, hoje com 221 projetos em andamento, tem o objetivo de estimular parcerias entre, de um lado, universidades e institutos de pesquisa e, de outro, órgãos do setor público e do terceiro setor, tendo em vista a solução de problemas concretos e significativos que perturbam a vida cotidiana dos cidadãos. Estimulá-las, diga-se, no modo próprio da Fundação, ou seja, por meio do financiamento de projetos de pesquisa. No texto, a editora de política Claudia Izique e o editor especial Fabrício Marques, autores da reportagem, mostram com riqueza de detalhes como a partir do exame direto de determinados problemas, in loco, no diálogo com outros atores sociais, e com o apoio de ferramentas da pesquisa científica, especialistas podem extrair do próprio problema as soluções que o superam. Ou como um problema, por exemplo, as enchentes numa cidade, pode ser o ponto de partida para a solução de um segundo proble-

ma: o abastecimento de água da cidade. Trata-se de um relato de como criar conhecimento no contato com a sociedade, encaminhando ao mesmo tempo soluções novas para velhas questões. A segunda reportagem a que nos referimos trata de uma nova geração de fibras ópticas, as chamadas fibras fotônicas, que, conforme relata a jornalista Simone Biehler Mateos a partir da página 70, tanto abrem perspectivas para o aumento da capacidade das redes de telecomunicações quanto prometem incrementos em equipamentos de astronomia, relógios de precisão e equipamentos de diagnóstico por imagem, entre outros itens. O que está em cena aqui é criação de tecnologia de vanguarda, que, no Brasil, já vem sendo alvo da investigação de alguns grupos de pesquisa em São Paulo, como os que fazem parte do Centro de Pesquisa em Ótica e Fotônica, em Campinas. É recomendável também a leitura da reportagem sobre um novo composto, à base de prostaglandinas, que destrói placas de gordura nas artérias {página 49), entre outros textos que ficam sem destaque pela necessidade absoluta de comentar aqui duas novidades. A primeira é que, excepcionalmente, publicamos um artigo de um cientista, o físico Roberto Salmeron, a propósito dos 50 anos do Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (CERN), que se constitui numa aula magistral sobre a física de partículas {depois da página 49). E a segunda é que em 12 de dezembro estréia na Rádio Eldorado, graças a uma parceria entre esta revista e a emissora, o programa Pesquisa Brasil, uma contribuição para a difusão da cultura científica {página 37). Vamos assim também ajudar os pesquisadores a entrar ainda mais no corpo-a-corpo com a sociedade, no caso representada pelos ouvintes da Eldorado, já que estes poderão encaminhar suas indagações à produção do programa para que os primeiros apresentem suas respostas. Um bom final de ano para todos. MARILUCE MOURA

- DIRETORA DE REDAçãO

PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 9


MEMóRIA

Notícias do Novo Mundo Antes dos naturalistas já havia a preocupação em descrever bichos e plantas do Brasil NELDSON MARCOLIN

^^ s viagens com o / % objetivo de g^\ descrever as jL -A. riquezas do Novo Mundo tornaram-se freqüentes a partir do século 18 e uma série de normas foram elaboradas para definir o que deveria ser observado, coletado, descrito e desenhado, delimitando o que poderia ser interessante aos europeus e, em particular, às ciências. Antes disso, viajantes, colonos e religiosos escreveram relatos sobre animais, vegetais, minerais, geografia e nativos das Américas. Todos descreviam a flora e a fauna desconhecidas no hemisfério Norte e alguns tentavam dar o máximo de informações sobre o comportamento e a utilidade do bicho ou da planta investigada. Havia grande curiosidade pelas terras recém-descobertas e muitas dessas obras foram publicadas a partir do século 16, mas várias outras só vieram a público muito

tempo depois. Alguns relatos chegavam à metrópole, eram lidos pelas autoridades ou nas academias e acabavam arquivados e esquecidos. Outros eram proibidos pelos governos de Portugal e da Espanha, que não Edição de 1658 das viagens de Piso: gravura representa as índias Ocidentais (Brasil) e Orientais

Tatu desenhado por frei Cristóvão de Lisboa

tinham interesse em mostrar ao mundo as riqueza de suas colônias. O melhor exemplo desse cuidado em preservar a ignorância dos estrangeiros sobre o Brasil ocorreu

10 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

quando o italiano André João Antonil publicou em Lisboa seu livro Cultura e opulência do Brasil, em 1711. O governo português recolheu e queimou a edição - poucos exemplares

foram salvos. Mas qual teria sido a primeira descrição dos recursos naturais brasileiros com certo cuidado metodológico? "É impossível saber", diz Márcia Ferraz, do Centro Simão Mathias de Estudos em História da Ciência (Cesima) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, uma especialista no período. "Muitos textos apenas se tornaram conhecidos séculos depois de terem sido escritos e podem existir relatos não


&2

*4

publicados do século 16 que desconhecemos." Um dos mais antigos documentos em que há nítida preocupação com a coleta de informações é uma carta escrita em 1560 pelo padre jesuíta José de Anchieta com o título Fazendo a descrição das inúmeras coisas naturais que se encontram na província de São Vicente. Nela, o religioso fez numerosas descrições e observações: do peixe-boi ao caranguejo, do tamanduá às abelhas, das árvores diversas às "plantas purgativas". Pero de Magalhães de Gandavo publicou em 1576 História da Província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil, com 48 páginas, em Lisboa. Ele relata rapidamente o descobrimento, fala das frutas, dos bichos venenosos, das aves e peixes e índios. Já o Tratado descritivo do Brasil, de Gabriel Soares de

Sousa, escrito na colônia e levado a Portugal em 1587, não foi publicado imediatamente. Rico em informações sobre as novas terras, teve apenas uma impressão parcial em 1800,

213 anos depois. "Com a extraordinária História dos animais e árvores do Maranhão ocorreu pior", conta Márcia. Frei Cristóvão de Lisboa, franciscano português, realizou entre

1624 e 1627 trabalho semelhante ao de Anchieta com uma vantagem: fazia desenhos do que observava, os descrevia e transcrevia o nome tal qual ouvia dos indígenas. "A primeira edição dos originais guardados pelo Arquivo Histórico Ultramarino foi impressa em 1967." Melhor sorte tiveram Guilherme Piso - médico de Maurício de Nassau e holandês como ele - e George Marcgrave, engenheiro alemão. Da autoria dos dois, saiu publicada em 1648 a História natural do Brasil, em Amsterdã. Piso escreveu sobre doenças e plantas e Marcgrave sobre animais e geografia do Nordeste. Dez anos depois Piso publicou uma edição revisada, que só ganhou versão em português no século 20.

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ENTREVISTA: RUTH E VICTOR NUSSENZWEIG

Uma química que deu certo 0 casal fala sobre os avanços na busca de vacinas contra a malária e a vida de cientista, aqui e nos Estados Unidos MARCOS PIVETTA

N

ão fosse por uma sensata colega da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Victor Nussenzweig talvez não tivesse se tornado cientista. Ruth, uma vienense que emigrara para o Brasil ainda menina, demoveu-o da idéia de continuar participando daquelas entediantes reuniões do Partido Comunista e o incentivou a seguir a carreira de pesquisador. Da paquera que se iniciou no terceiro ano de faculdade, há mais de meio século, surgiu uma parceria para a vida toda. Dentro e fora dos laboratórios. "Namorávamos falando de ciência", lembram, hoje ambos com 76 anos. O golpe militar em 1964 levou Ruth e Victor, que naquela época já tinham mais do que um pé no exterior, a se transferir em definitivo para a Escola de Medicina da Universidade de Nova York (NYU), onde permanecem até hoje - ela no Departamento de Parasitologia Médica e Molecular, ele no Departamento de Patologia.

12 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

Nesta entrevista, concedida durante uma recente visita a São Paulo, o casal comenta os últimos avanços nas pesquisas sobre o desenvolvimento de uma vacina contra a malária, tema que perseguem há décadas. O nome de ambos está para sempre ligado à luta contra a doença, que, anualmente, mata ao menos um milhão de pessoas na África e continua a ser uma ameaça a várias partes do mundo tropical, como a Amazônia. Em 1967, Ruth foi a primeira cientista a provar que era possível imunizar roedores contra a doença por meio da irradiação dos esporozoítos, um dos estágios de vida dos parasitas que causam a malária, do gênero Plasmodium. Mais tarde, nos anos 1980, os Nussenzweig mostraram que uma proteína que recobre o parasita poderia ser usada para promover uma resposta imunológica contra a doença e, assim, dar alguma proteção contra a infecção. Desde então, a proteína estudada pelo casal se tornou um componente fundamental de metade das vacinas que foram e vêm sendo testadas em humanos contra o parasita. Inclusive de uma formulação

recém-experimentada na África, com resultados promissores. Os Nussenzweig também falam de uma nova linha de trabalho, em colaboração com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), do Rio de Janeiro, em que vão tentar desenvolver uma vacina de malária que use a de febre amarela, produzida no Brasil, como seu vetor. Tecem ainda comentários sobre a vida de pesquisador em Nova York, as facilidades e as dificuldades para se conseguir financiamento em ciência, e relembram as circunstâncias que os fizeram deixar para sempre o Brasil. Para sempre, em termos. Visitam com freqüência o país, por motivos de trabalho ou para ver amigos e parentes De seus três filhos, todos cientistas, dois estão nos Estados Unidos e um, na capital paulista. ■ Não é difícil vender para os norte-americanos a idéia de que é necessário investir na pesquisa de uma vacina contra malária, hoje uma doença de país pobre? Victor - Por incrível que pareça, os National Institutes of Health (NIH) são muito generosos. Claro, a verba para


doenças tropicais não é a mesma para câncer ou ataque cardíaco. Mas há bastante dinheiro envolvido com malária, talvez mais do que no Brasil. Ruth - Minha visão é um pouco diferente. É difícil arranjar dinheiro de várias fontes. A fonte principal de toda pesquisa nos Estados Unidos são os NIH. Você obtém dinheiro, mas há muita competição pela verba. Os fundos de minhas pesquisas vieram sobretudo de dois lugares. Um era a Usaid (a Agência para o Desenvolvimento Internacional dos Estados Unidos), que é muito política. A Usaid desenvolveu uma área de pesquisa de vacina contra a malária. Eles deram dinheiro para poucos laboratórios, uns quatro ou cinco, e o nosso foi o único que produziu alguma coisa. Eu recebi milhões por vários anos. Depois a verba foi descontinuada, mudou a política. A segunda fonte muito importante de financiamento, não simultânea à anterior, apareceu mais tarde. Foi uma fundação que se chama Starr Foundation, cujo financiamento a nossa pesquisa se estendeu por uns nove, dez anos. Com o di-

nheiro, milhões, compramos aparelhos modernos, porque não tinha nada, era primitivíssimo. ■ Isso aconteceu em que época? V - Na década de 1980. R - Acho que até um pouco antes, meados de 1970. Essa fundação dava ações para a faculdade, e, quando tinham terminado as ações, deu uma doação. Deu três doações no período de nove anos, que ajudaram a reformar fisicamente o departamento, que ocupava um prédio de seis andares e mais o nível subterrâneo. O porão, um local horrível e nojento que era usado pela cidade de Nova York para dar vacina, foi transformado num lugar para manter os animais de pesquisa. V - Há dois pontos importantes para enfatizar nessa história de financiamento. Primeiro: os milionários americanos doam dinheiro para pesquisa com muita freqüência. Fundações imensas, como a Howard Hughes, são o sustentáculo da pesquisa nos Estados Unidos quase tanto quanto o próprio NIH. A BiÜ & Melinda Gates Foundation dá

muito dinheiro para várias coisas. No Brasil, isso é muito raro. R - Nos Estados Unidos, as fundações particulares têm muitas vantagens. Não pagam ou pagam menos imposto. V - A vantagem fiscal, aliás, é só no começo. O milionário que doa, digamos, US$ 500 milhões deduz esse valor apenas uma vez do imposto. Depois disso, ele não tem mais nenhum controle, ou tem muito pouco, sobre o dinheiro. O milionário também é obrigado a arranjar um grupo de pessoas, às vezes um membro da família, para cuidar da fundação. Muitas fundações começaram assim, embora algumas não tenham nada que ver com o seu início. ■ Elas se profissionalizam quase como uma agência de fomento à pesquisa. V - Exatamente. Tornam-se uma agência de fomento com o nome de seu fundador. Mas o dinheiro para parasitologia em si, básico, ainda vem do NIH. R - Quero também chamar a atenção para o fato de que a maior parte do dinheiro dessas fundações é carimbado para uma certa doença. Tem, por exemPESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 13


pio, uma fundação que financia apenas pesquisa em artrite. Hoje não há fundação financiando pesquisa em malária. Existia a Starr. ■ A fundação não existe mais? R - Existe, mas hoje ela financia outros tipos de pesquisa e não há uma fundação só para malária. V - Gostaria de contar uma anedota para você ver como esse negócio funciona. Quando eu trabalhava com imunologia básica, estava estudando indiretamente alguma coisa que tinha relação com lúpus eritematoso, uma doença auto-imune muito freqüente. Nessa época, existia a Kroc Foundation, criada nos anos 1960 pelo dono do McDonakTs, um húngaro chamado Ray Kroc. Essa Kroc Foundation estava muito interessada em estudos sobre lúpus porque um membro da família tinha a doença. Então, eu ganhei uma bolsa de um ano de duração. No fim do prazo, recebi a seguinte notícia: acabou esse negócio de financiar lúpus, agora estamos financiando (pesquisas sobre) alcoolismo. A mudança aconteceu porque outro membro da família era alcoólatra. Esse tipo de coisa não ocorre com freqüência, mas acontece. No fundo, isso não importa. Alcoolismo ou lúpus, por causa de membros da família ou não, as fundações estão sempre investindo dinheiro em problemas sociais importantes. ■ Por que no Brasil não há fundações privadas financiando a pesquisa? V - Essa pergunta eu me faço também. As fundações são um negócio da cultura anglo-saxã. Eu não sei, não posso dizer quais as origens disso. De fato, essa cultura é muito arraigada tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos. Na França, na Itália, no Brasil, não é. Mas não esqueça que existem algumas exceções. Por exemplo, agora tem um milionário daqui, chamado Ricardo Semler, que fez uma reunião com cientistas e pensadores (foi um evento do Instituto DNA Brasil ocorrido em setembro). R - Acho que, além disso, precisa haver uma legislação que dê a mesma vantagem para os milionários brasileiros, como nos Estados Unidos. Isso é muito importante, pelo menos para começar. V - Também depende muito de iniciativa local. Por exemplo: é preciso ter acesso a esses milionários. Quem são 14 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

esses milionários? Os reitores de universidade precisam ter a iniciativa de procurar entrar em contato com os sujeitos que têm muito dinheiro, que muitas vezes são inteligentes, e convencêlos de que o dinheiro que vão dar será útil. Os ricos precisam ser convencidos de que o dinheiro não vai ser jogado fora. Muitas pessoas ainda são céticas com relação à qualidade da ciência no Brasil. Pensam que nada de importante vai sair daqui, o que não é verdade. Nos Estados Unidos as universidades estou falando das privadas, que são muitas, algumas delas as melhores do país - mantêm conselhos com milionários e cientistas de renome que tomam conta de toda a direção. Escolhem o reitor. Os milionários ficam satisfeitos porque eles influenciam a política da Harvard ou da NYU. E, ao mesmo tempo, estabelecem os contatos financeiros para a universidade. R - Eles também têm uma compensação pessoal no sentido de que o nome deles é colocado num hospital, numa faculdade da universidade. Quanto mais dinheiro doa um milionário, mais prestígio ele ganha - e maior é a placa com o seu nome na universidade. V - É curioso. Nos Estados Unidos muita gente tem desejo de imortalidade. Aqui o sujeito ambiciona virar nome de rua quando morre. Se é muito importante, vira nome de túnel. ■ Qual a avaliação que vocês fazem da ciência nacional atualmente? R - O nível científico é muitas vezes muito alto. Não digo que isso seja verdade para a grande maioria, mas para boa parte dos pesquisadores brasileiros. Por que eu digo isso? Experiência pessoal. Eu fiz parte por vários anos de uma fundação americana, a Pew Foundation, que paga bolsas generosas para estudantes de toda a América Latina se aperfeiçoar em laboratórios americanos. Os brasileiros eram muitas vezes, acho que quase sempre, os melhores candidatos às bolsas. V - Na América Latina, não tenho dúvida: o Brasil e a Argentina forneciam todo o contingente desses bolsistas. ■ Por que os países temperados praticamente eliminaram a malária e os tropicais não conseguiram fazer o mesmo? V - Saneamento básico. Você sabe que

houve um período na Itália - parece incrível - em que morria o papa e os cardeais tinham de ir para lá. Mas eles não queriam ir porque tinham medo de morrer de malária. Isso é conhecidíssimo. Tinha que postergar a eleição porque havia os pântanos e os mosquitos... Quando se descobriu que mosquitos do gênero Anopheles transmitiam malária, o saneamento foi a solução. Na costa dos Estados Unidos também tinha muita malária, e o saneamento resolveu o problema. R - Isso e o progresso econômico. ■ Então, se tivéssemos feito isso na Amazônia... V - Mas na Amazônia não dá para fazer saneamento. Como é que faz isso na floresta? Lembre-se de que a malária também é transmitida na floresta. O sujeito sai de casa para trabalhar e é picado pelo mosquito. Não é como (o mal de) Chagas em que se pode borrifar as cabanas dos moradores e eliminar o barbeiro (transmissor da doença). O Brasil poderia eliminar a malária. Nas áreas costeiras é fácil. Mas na Amazônia é complicado. Você vai destruir a floresta, cortar as árvores? Não se pode fazer isso. Assim, fica difícil implantar o saneamento em toda a região. R - Mas, Victor, talvez não seja possível eliminar a malária de toda a região amazônica, porque há áreas em péssimas condições e outras em situação não tão ruim. Mas se as pessoas tomassem antimaláricos e algumas áreas com imensa transmissão da doença, como aquelas escavações ilegais de ouro ou de pedras preciosas, tivessem sido tratadas com inseticidas, a situação poderia ser melhor e restrita a certos focos. V - Mas, Ruth, hoje no Brasil o serviço de saúde pública é muito bom nesse sentido. É raríssimo alguém morrer de malária. ■ Dados oficiais, de 2002, apontam cerca de cem mortes por ano. Mas a incidência de malária, que foi muito maior no passado, ainda é alta, algo como 350 mil casos, quase todos na Amazônia. R - Mas a melhora também se deve a outra razão. Houve uma mudança muito grande no tipo de malária presente no Brasil. Essa mudança aconteceu talvez dez anos atrás, não sei exatamente. As pessoas que sofriam de malária gra-


ve, causada pelo parasita Plasmodium falciparum, e que estavam mais ou menos perto de um posto de saúde pública, iam lá e se tratavam logo. Essa medida eliminava também a parte do parasita que era responsável pela transmissão. Com isso, diminuiu muito a transmissão de P. falciparum e aí surgiu, como em outros países também aconteceu, um outro tipo de infecção. A infeção ocasionada pelo Plasmodium vivax, que mata muito pouco. ■ Hoje P. vivax responde por uns 80% dos casos do Brasil. R- Como a infecção por vivax pode ser tratada a mortalidade diminuiu muito. Mas o vivax também é um caso sério, e vai ser mais sério no futuro porque o parasita está ficando resistente à droga mais barata contra a malária, a cloroquina. Isso já aconteceu em países asiáticos e, mais cedo ou mais tarde, vai acontecer aqui. Quando isso ocorrer, vai haver recaída sobre recaída. Em região tropical, o vivax dá recaídas muito freqüentes, várias por ano. Então a situação vai piorar. V - Agora, tem o seguinte: o Brasil é rico e há drogas novas, que são muito mais caras. Mas imagino que, no Brasil, o quadro é sempre menos catastrófico do que na África. R - Ah, nem tem dúvida. V - No Brasil, a saúde e a riqueza permitem que se comprem outros medicamentos. O problema é que eles são mais caros e mais tóxicos. ■ Quais medicamentos, por exemplo? V - Não faço essa medicina, mas tem esse medicamento chinês, uma erva... ■ A artemísia? R - Artemísia é fantástica. ■ Algumas pessoas advogam o seu uso conjunto com a alopatia. O que a senhora acha disso? R-A artemísia tem efeito quase instantâneo. Faz a parasitemia cair muito, mas nunca a elimina. Para acabar com o parasita, tem que dar mais uma medicação depois da artemísia. Mas a artemísia é muito cara. Ninguém na África pode tomar. V - Mas não é tóxica. É um grande medicamento novo. E tem muitos outros. A coisa mais importante disso é que, de-

pois que o genoma do parasita da malária foi desvendado, existem novos alvos para terapias. R - Acho que vai demorar mais dez anos para esses novos remédios serem testados e adotados na prática clínica. ■ Por que as vacinas contra a malária não deram certo? No final da década de 1980, quando candidatas a vacinas foram desenvolvidas a partir de seus trabalhos, vocês achavam que iria dar certo? R - Ela vai dar certo. V - Não, espera aí. Ele está perguntando por que houve o entusiasmo inicial. Foi por causa principalmente dos trabalhos da gente. Quando começaram os testes com humanos, estávamos entusiasmadíssimos. Muita gente achava que aquela vacina sintética que nós havíamos idealizado iria resolver o problema. Em animais de laboratório, os níveis de anticorpos que eram obtidos com a vacina eram suficientes para proteger contra a malária. Mas quando fizeram o primeiro teste no homem

aconteceu o seguinte: dos cerca de 15 voluntários, só três tiveram títulos altos de anticorpos. Esses três foram protegidos, mas era uma proporção muito pequena. Alguns pesquisadores e a indústria farmacêutica abandonaram os testes quando viram que não era sopa, que tinha que investir dinheiro e capital humano. Aí o trabalho parou, porque não havia mais companhia farmacêutica realmente que estivesse interessada em levar uma segunda ou terceira geração de vacina. Não foi só o nosso teste que falhou. O do Exército dos Estados Unidos que também estava testando uma vacina obteve o mesmo resultado. Mas, como a malária é um problema muito importante para o Exército americano, a pesquisa continua dirigida para resolver essa e outras questões. Eles têm um ótimo centro de pesquisa, o Walter Reed Army Institute of Research. R - Ocupa todo um prédio. V - E eles persistiram nos trabalhos com essa molécula que descobrimos por mais dez anos. Fizeram testes e mais testes. No fim, chegaram a uma vacina com essa molécula, numa conformação que não interessa discutir em detalhe, com um adjuvante muito poderoso, que aumentava a sua potência. Dessa forma, conseguiram, em testes, proteger 70% das pessoas nos Estados Unidos que receberam a vacina. Mas a proteção durava pouco. Ainda assim foram para a África, onde realizaram mais testes na população local. Cerca de 70% das pessoas ficavam protegidas com a vacina, mas o efeito durava três meses. Depois a quantidade de anticorpos caía. O problema é, então, manter a proteção. Agora um grupo do Exército americano e do laboratório GlaxoSmithKline está fazendo testes na África com a mesma vacina e novos adjuvantes, para tentar melhorá-la. ■ Essa é a vacina que obteve recentemente resultados promissores em Moçambique? V - Os resultados de testes dessa vacina em mais de 2 mil crianças de 1 a 4 anos foram muito encorajadores. Sua eficiência em relação à malária grave, que pode levar à morte, foi perto de 60%. Esse trabalho saiu numa edição da revista Lancet em outubro. E esses resultados foram obtidos seis meses depois da aplicação da última dose de vacina. Isso é um triunfo realmente. O passo seguinte já está em andamento e é vaciPESUUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 15


nar bebês. Afinal, depois de mais de 30 anos de trabalho em pesquisa básica, saiu uma vacina. E tenho certeza de que ainda não é o fim da história. A vacina ainda pode ser melhorada. Hoje existem cerca 30 vacinas de malária em desenvolvimento, em diferentes fases de experimentação. Dessas, mais ou menos a metade é baseada na molécula que descobrimos. A outra metade usa outras moléculas. ■A molécula ainda é o principal alvo para o desenvolvimento de uma vacina? V - É a mais importante de fato, mas há outras estratégias, inclusive uma iniciada pela Ruth com colaboradores da Fiocruz, do Rio de Janeiro. Antes a idéia era fazer o doente produzir mais anticorpos, mas para chegar a esses níveis altos era difícil. Mas também se pode proteger contra a malária atacando a forma hepática do parasita, que vai do sangue para o fígado. Para atacar o fígado, você precisa de imunidade celular. E, para atingir essa imunidade celular, você precisa de outra estratégia. A Ruth trabalhou mais nisso. Ela tem um approach extraordinário e interessante: usa-se a vacina de febre amarela, que contém um vírus atenuado, como vetor de malária. Essa é a melhor vacina do mundo porque toma-se uma dose só e a proteção é praticamente pela vida inteira. A Organização Mundial da Saúde (OMS) pede para as pessoas se revacinarem a cada dez anos, mas é por excesso de zelo. ■ Como é essa linha de pesquisa? R - Por meio de técnicas de biologia molecular, inserimos no vírus da febre amarela, uma parte pequenininha do parasita de malária, nove ou dez aminoácidos. Ainda não sabemos qual é o melhor lugar da vacina para inserir seqüências da malária. E também não se sabe o quanto se pode inserir sem tornar o vírus inviável. V - A idéia é fazer um vacina contra a malária que precisa de apenas uma dose para proteger as pessoas. Na África, muitas vezes só se consegue dar vacina uma vez na vida, quando a criança nasce. E o melhor é que o maior produtor de vacinas de febre amarela está aqui no Brasil. Se a estratégia der certo, vai-se fazer vacina para malária no Brasil. Isso é extraordinário, porque não precisa de companhias farmacêuticas. 16 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

■ Quando eram estudantes de medicina, no Brasil, vocês logo perceberam que seriam cientistas e iriam trabalhar juntos? V - Isso era óbvio. Namorávamos falando de ciência. Em grande parte, esse era o nosso namoro. Falávamos de ciência e do que a gente poderia fazer. Nossas idéias se confundiam, andavam juntas e assim continuaram. R - Mas nem sempre nossas linhas de pesquisa coincidiram. Na NYU tive até um laboratório que fisicamente ficava a alguns quarteirões do Victor, em outro prédio. Em minha carreira, segui uma linha constante e o Victor, muitas vezes, trabalhou com outros assuntos novos. V - Houve momentos em que nossas carreiras se diversificaram. Em 1958 fomos fazer pós-doutorado na França. Ruth foi para o Collège de France, onde trabalhou em bioquímica. Eu fui para o Instituto Pasteur me especializar em imunologia. A partir dessa escolha, nossas trajetórias se diversificaram mesmo. Em 1960 voltamos ao Brasil. Mas, depois de algum tempo, verificamos que talvez fosse melhor continuar no exterior. Então pedimos bolsas para ir aos Estados Unidos. ■ A ditadura ainda não havia começado. Por que fizeram isso? V - Havia sempre problemas menores. Nada muito sério. Mas verificamos que, no Brasil, não dava para fazer o que queríamos de forma rápida. Queríamos aprender mais, avançar mais. Então eu pedi e consegui uma bolsa da Guggenheim (John Simon Guggenheim Memorial Foundation, de Nova York) e fui para a NYU. Com a bolsa, a Ruth naturalmente teria de viver comigo nos Estados Unidos. Dessa vez decidimos que ela não iria para outra instituição de pesquisa. Inicialmente, ela iria trabalhar com o Baruj Benacerraf (que depois ganharia o Prêmio Nobel de Medicina em 1980). Mas, quando chegamos lá, a Ruth foi trabalhar com um pesquisador chamado Zoltan Ovary. Não é piada, não. O nome dele quer dizer ovário mesmo. Ovary, aliás, é um sujeito muito bom. No final, eu acabei trabalhando diretamente com o Benacerraf. Mas depois de dois anos nos Estados Unidos nós queríamos voltar ao Brasil. Então, em abril de 1964, resolvemos voltar. Chegamos no aeroporto...

■ Justo em abril! V - Talvez fosse maio ou junho. Nossos colegas do Brasil já estavam dizendo "não venham, aqui tem muito problema". Mas nós viemos. ■ Então já havia ocorrido o golpe? V - Já havia ocorrido o golpe, mas desconhecíamos a sua intensidade. A Ruth e eu estranhamos quando desembarcamos no aeroporto e não tinha ninguém nos esperando. R - Não, não, não, espera um pouquinho. Tinha alguns amigos nossos e eles disseram "não vão para a faculdade". V - A memória da Ruth é diferente da minha. Mas isso não tem importância. A minha recordação é que não tinha ninguém lá. Achamos esquisito, porque tínhamos muitos e bons amigos. Mas acho que a Ruth tem razão. Na verdade, me telefonaram mais tarde e disseram "olha, não vai para a faculdade de medicina". Era domingo de manhã e eu achei que era bom ir à faculdade. Se a situação estava preta, talvez fosse bom olhar na minha escrivaninha, ver se eu tinha algum documento comprometedor, de esquerda, sei lá, do Partido Comunista... E eu fui lá, às 10 horas da manhã. Saí de lá às 11 e não tinha nada. Quando voltei para casa, telefonaram. R - Não, senhor, me telefonaram assim que você se foi. Peguei o telefone e já disseram que estava marcada uma entrevista com você na segunda-feira, no dia seguinte, com o secretário-geral da faculdade de medicina. V - Imagine a situação. No domingo, eu mal tinha entrado na faculdade e já sabiam que eu estava ali. Imediatamente alguém ligou para casa e disse que eu tinha uma entrevista com um coronel. Eu, sozinho, sem a Ruth, fui falar com o coronel, que me fez perguntas cretinas, sem sentido. Antes de ir para a França tínhamos organizado uma série de seminários, de bioquímica, de parasitologia, que eram feitos para cientistas. Pois bem, me perguntaram se aquelas reuniões eram subversivas, porque ocorriam a portas fechadas. Respondi que discutíamos estritamente ciência, que não tinha nada disso, não. Então percebi que esse coronel estava realmente mandando na faculdade. Se mandava na faculdade, mandava em mim. Percebi que eu não tinha poder algum. O coronel não ligava se eu era professor ou


não. Percebi que não poderia mais ficar no Brasil. A Ruth e eu voltamos para os Estados Unidos e nossas carreiras se separaram. Ela foi trabalhar com o Ovary e eu, com Benacerraf. Nesse momento houve uma coincidência. Eles precisavam de um imunologista para a cadeira de parasitologia. E, como ela tinha feito uma carreira brilhante com o Ovary, este a recomendou muito para o cargo. Ela então foi parar na parasitologia. Aí nossas carreiras divergiram completamente. Ela ficou na parasitologia, e depois de alguns anos virou chairman, e eu continuei na patologia, fazendo complemento, trabalhando com imunologia básica. Logo ela começou a trabalhar em malária. R - A biologia da malária já estava sendo estudada por dois professores do departamento, mas não havia estudos com imunologia. Por isso eles queriam que eu fosse para lá. Fui assistente, rapidamente virei professor. Depois criaram uma divisão - porque nesse ínterim o chefe do departamento se aposentou - e me escolheram como chefe. Mais tarde criaram uma cadeira que não existia, a de doenças parasitárias. Aliás, até hoje em nenhuma outra faculdade de medicina dos Estados Unidos há essa cadeira. V - Tem uma coisa importante nessa história. Logo que chegou - e foi por isso que a Ruth virou rapidamente líder da divisão - ela fez uma grande descoberta, a de que esporozoítos irradiados poderiam proteger contra a malária. A descoberta foi a base para as pesquisas com vacinas contra a malária. Muita coisa aconteceu em função dessa descoberta. Nos Estados Unidos as promoções dependem muito do seu currículo, do que você faz. É um sistema muito competitivo, diferente do brasileiro. Quando um pesquisador começa a fazer coisas mais importantes, ele é procurado por outras faculdades. Queriam, por exemplo, que nós fôssemos para La Jolla (na Universidade da Califórnia em San Diego). Chegaram a oferecer uma cadeira para ela. R - Mais tarde, o próprio Benacerraf, depois de ter ganho o Prêmio Nobel, ofereceu uma posição muito prestigiosa para o Victor e para mim na Escola Médica de Harvard (para onde Benacerraf se transferira em 1970). Ofereceu uma divisão, um negócio grande. Fotos

do meu laboratório foram tiradas para fazer igualzinho em Harvard. mlsso ocorreu nos anos 1980? V - Sim. Nessa ocasião tínhamos muito suporte para desenvolver a vacina. Eu já tinha feito avanços na identificação de moléculas. O Benacerraf achou que devia nos levar para Harvard. Fez várias démarches, mas era complicado obter uma cadeira para nós. R - Não éramos bem moços naquela ocasião e eles gostam de ter um chairman de 40 anos. V - A oferta de Harvard gerou um dilema. Tínhamos estudantes e tudo na NYU e gostávamos de Nova York. Boston (onde está Harvard) é uma espécie de província. Além disso, tínhamos filhos em Nova York. Por essas e outras razões resolvemos não aceitar o convite e ficamos na NYU. ■ Estrangeiros, com passado de esquerda, vocês tiveram alguma dificuldade para se adaptar aos Estados Unidos?

R-Variou muito para nós dois. Eu nunca me adaptei. Não quis me adaptar. Não fiz nem esforço e... ■ Até hoje não se adaptou? R - Até hoje. E eu não nasci no Brasil. Eu vim ao Brasil já com 11 ou 12 anos. V - A Ruth fica feliz e se sente bem aqui. Basicamente isso. Às vezes, a gente não quer, mas acaba se adaptando. Ela está adaptada, mas gosta do Brasil. Gosta mais de vir aqui do que estar lá. R - Meus amigos são daqui. Lá não tenho praticamente ninguém. V - Eu me adaptei perfeitamente bem, continuo adaptado e me sinto muito bem nos Estados Unidos. Não é que eu não me sinta bem no Brasil, me sinto muito bem aqui também. Mas, quando chego aqui, sinto que preciso voltar o mais rapidamente possível para fazer as coisas que eu estou fazendo. Eu gosto do que estou fazendo. R - Também quero continuar o trabalho. Mas gosto dos Estados Unidos unicamente pela facilidade em fazer pesquisa de forma rápida e eficiente. ■ Nunca pensaram em voltar ao Brasil? V - Houve períodos em que eu ainda considerava isso, mas hoje não mais. Depois de um certo tempo você perde essa possibilidade. Vou te contar: eu tentei voltar faz pouco tempo, uns cinco anos. Queria fazer um centro internacional de estudo de malária em São Paulo. Contatei várias pessoas, falei com o reitor da Escola Paulista de Medicina, falei com muita gente, até na FAPESP, para ver se tinha possibilidade de arranjar posições para esse centro. Mas aí o negócio engasgou. Até escrevi um projeto e mandei-o para a FAPESP, que estava disposta a apoiar. Mas faltavam as tais posições... R - O centro precisava estar debaixo de uma universidade. V - No Brasil, não estão acostumados a trabalhar numa coisa que garante carreira vitalícia. Nos Estados Unidos não é assim. Você recebe um bom salário e garantia de três, quatro, cinco anos de trabalho e depois vai... ■ Vai à luta. V - Aqui o sujeito quer já entrar num posto federal ou estadual, quer garantir a carreira. Então verifiquei que voltar era impossível. • PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 17


I POLíTICA

CIENTIFICA E TECNOLóGICA

ESTRATéGIAS

MUNDO

Onde há fumaça, há perigo

A pressão dos ecologistas para que os Estados Unidos se submetam ao Protocolo de Kyoto ganhou mais lastro com a divulgação de duas pesquisas sobre alterações ambientais em território norte-americano atribuídas ao aquecimento do clima e à emissão de poluentes. Um dos estudos, que envolveu 300 cientistas de oito países, mostra que o Ártico

■ Os cobiçados macacos chineses Cientistas europeus e norteamericanos apelam à China para fazer pesquisas que utilizam primatas como modelo animal. Enquanto pesquisadores do Ocidente sofrem restrições impostas por grupos de defesa dos direitos dos animais, na China há bichos de sobra e a legislação é flexível. O Instituto de Zoologia Kunming, no sudoeste da China, é um pólo de atração de pesquisadores estrangeiros. Suas instalações abrigam 1.400

perdeu 8% de sua capa de gelo desde 1973, o equivalente à área da Região Sudeste do Brasil. Graças ao degelo, o nível dos mares já subiu 7 centímetros. Outro estudo, divulgado pelo Pew Center on Global Climate Change, uma instituição independente de pesquisas, indica que certas espécies de plantas nativas passaram a florescer precocemente e

macacos. O neurofisiologista Fraser Wilson, da Universidade do Arizona, é um dos três cientistas norte-americanos que dão expediente no Insti-

18 • DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

alguns pássaros atrasaram o início dos vôos migratórios, em resposta às temperaturas mais altas. Um dos exemplos citados é o da raposa-vermelha, antes disseminada pelo território do país, que se mudou para latitudes mais altas. "Chegou a hora de os Estados Unidos seguirem a mobilização internacional no combate ao aquecimento global", afir-

tuto Kunming. A Universidade Sun Yat-sen, na província de Guangzhou, começa a criar macacos transgênicos talhados para o estudo de doenças.

Macacos em reserva na península Nanwan, na China

Em vermelho, áreas com maior concentração do poluente dióxido de nitrogênio

ma Benjamin Preston, pesquisador do Pew Center. Ele se refere à recente adesão da Rússia ao Protocolo de Kyoto, cujas metas de redução de emissão de gases o governo norte-americano rejeita. (Nature.com, 9 de novembro) •

Cada primata na China custa US$ 1.000, 10% do valor cobrado nos Estados Unidos. "A questão não é dinheiro. Ninguém agüenta mais essa turma dos direitos dos animais", diz Paul Malatesta, cientista obrigado a parar suas experiências com primatas. Weizhi Ji, diretor do Instituto Kunming, garante que seus laboratórios respeitam o sofrimento dos bichos. Mas alfineta as inquietações ocidentais. "Na China, a saúde humana está em primeiro lugar. Os direitos dos animais vêm depois." (Nature, 4 de novembro). •


■ O medo da reengenharia Os cientistas russos nunca se sentiram ameaçados de desemprego como agora. Temem que algumas dezenas de milhares de postos de trabalho sejam extintos se o governo levar à prática um plano de reengenharia dos 450 institutos vinculados à Academia Russa de Ciências e de outros 2 mil laboratórios financiados pelo Estado. A boataria sobre as demissões levou o ministro da Educação e da Ciência, Andrei Fursenko, a pronunciar-se no dia 18 de outubro. Ele confirmou a existência do plano de modernização, sustentou que o objetivo não é cortar gastos e cabeças e garantiu que os critérios da reforma serão traçados em parceria com a Academia Russa de Ciências. Mas admitiu que uma parte da estrutura atual pode desaparecer ou ser privatizada. "Vamos debater com a comunidade científica os critérios para determinar que institutos serão preservados e quais serão privatizados ou liquidados", disse. Yury Osipov, presidente da Academia Russa de Ciências, confirmou que está trabalhando no assunto com o ministério. A academia foi uma entidade de enorme prestígio nos tempos da extinta União Soviética, ainda que concentrasse seus esforços em poucas áreas, como a matemática e o desenvolvimento armamentista. Nos anos recentes, tem sido criticada por contribuir pouco com a indústria russa para superar os desafios de inovação tecnológica e também por ser deficiente em ciência básica. Os pesquisadores acusam o governo de planejar a privatização dos institutos apenas para gerar

caixa e fazer que os investidores privados tirem sua liberdade de trabalhar. "Todos concordamos que a ciência russa precisa de uma reforma", diz Boris Stern, físico do Instituto de Pesquisa Nuclear, em Moscou. "Mas as experiências com privatizações na Rússia mostram que elas nem sempre produzem os objetivos desejados", afirma. Yury Osipov, presidente da academia, vê vantagens na reengenharia. "Podemos nos livrar da burocracia que o governo sempre nos impôs", afirma. (Nature, 21 de outubro) •

■ Oxigênio para a ciência muçulmana A maioria dos países predominantemente muçulmanos se caracteriza por gastos restritos com pesquisa e universidades de baixa qualidade. E os líderes políticos desses países freqüentemente são incapazes de avaliar o papel da ciência no desenvolvimento. Em artigo publicado na revista Nature, o ex-ministro da Ciência do Paquistão AttaurRahma e o conselheiro científico da Organização da Conferência Islâmica (OCI),

Anwar Nasim, lembraram essas deficiências para propor um renascimento científico no mundo muçulmano. Dizem que isso é crucial para garantir um futuro de paz e de prosperidade. "Temos que nos fazer algumas perguntas duras: quais são as nossas idéias? Estamos indo para onde", indaga o artigo. Exemplos a serem seguidos, dizem os autores, são o Irã, a Turquia e o Paquistão, que ampliaram investimentos e sua produção acadêmica nos últimos vinte anos. {Nature, 18 de novembro) •

Batata para quem tem fome

Parcerias podem levar países como a índia a aumentar a produção de batata

Engenheiros agrônomos e produtores de batata da América Latina estão criando uma rede destinada a partilhar tecnologias com seus colegas da África e da Ásia. O objetivo é combater a fome e aumentar os ganhos e a produtividade nesses continentes. Batizada de Plataforma para a Inovação, a rede começou a sair do papel em setembro num encontro de pesqui-

sadores de dez países latino-americanos no Centro Internacional da Batata, em Lima, Peru. Entre os países que poderão beneficiar-se, destacam-se a China, a índia, a Etiópia, o Quênia e o Casaquistão, que carecem de tecnologia agrícola e de variedades genéticas da batata. A América Latina tem mais de 200 variedades adaptadas a diferentes climas e sistemas

agrícolas, e tolerantes a pragas. "Temos muito a oferecer a esses países", diz Stephan de Haan, agrônomo do centro. Enquanto a produtividade nos Estados Unidos e na Europa alcança 40 toneladas por hectare, em boa parte dos países pobres ela mal chega à metade disso. A rede deve começar a operar em junho de 2005. (SciDev.Net, 9 de novembro) •

PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 19


ESTRATéGIAS

MUNDO

■ De volta ao espaço, depois da tragédia A Nasa anunciou a retomada das missões de seus ônibus espaciais em maio de 2005, que estavam interrompidas desde a tragédia da nave Columbia, que em fevereiro de 2003 se desintegrou, matando sete astronautas. A nave Discovery será lançada do Centro Espacial Kennedy, na Flórida, com sete astronautas a bordo, numa missão que deve durar doze dias. A retomada promete tirar da letargia a Estação Espacial Internacional, laboratório orbital instalado a 400 quilômetros da Terra, que depende de missões regulares dos ônibus espaciais para ser concluída. Nos últimos tempos, só dois astronautas cumpriram plantão na estação, levados até lá por naves russas. O desafio da Nasa é reduzir riscos nas futuras missões. Uma nova geração de naves deve demorar alguns anos para ser desenvolvida. "Os ônibus espaciais

0 Discovery, em missão em 1999: retomada

fizeram 113 viagens e tiveram dois acidentes graves, que mataram 14 pessoas", diz Wayne Hale, técnico da agência. "Nossa tarefa é impedir uma terceira tragédia", diz. Foram seguidas as recomendações da comissão que investigou o acidente do Columbia, com mudanças na proteção térmica e nos tanques. •

■ Barrados nos Estados Unidos No ano letivo de 2003, os Estados Unidos receberam 572.509 estudantes universitários e de pós-graduação estrangeiros, contingente menor que os 586.323 do ano de 2002. É a primeira vez que esse exército decresce em três

décadas. O trauma do 11 de Setembro, evidentemente, determina a restrição nos vistos. Não por acaso, a principal redução atingiu estudantes do Oriente Médio, cujo contingente de estudantes caiu 10% em 2002 e outros 9% em 2003. Nações européias e asiáticas também mandaram menos jovens para estudar nos Estados Unidos. O tombo só não foi maior graças à índia, que enviou um exército 7% maior em 2003. Entre os estudantes chineses, a queda foi de 5%. O exemplo da aluna de doutorado chinesa Li Gao é emblemático das dificuldades. Ela foi convidada a passar seis meses na Universidade Duquesne, em Pittsburgh, mas perdeu a chance porque o visto demorou muito para sair. "Quando eles viram que a minha especialidade é química, disseram que era preciso checar meus dados e demoraram três meses para responder", diz. (Pittsburgh Post-Gazette, 10 de novembro) •

Ciência na web Envie sua sugestão de site científico para cienweb@trieste.fapesp.br

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www.centrodametropole.org.br/divercidade/

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http://www.lpi.usra.edu/research/lunar_orbiter/

A revista Divercidade, do Centro de Estudos da Metrópole, traz dados e análises sobre a Grande São Paulo

0 site fornece dados e o status de conservação de 5.743 espécies de anfíbios do planeta

Versão digital de um Atlas da Lua lançado pela Nasa em 1971 com imagens e dados obtidos em missões

20 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106


ESTRATéGIAS

BRASIL Butantan investe contra a gripe

A partir de 2006 uma nova fábrica do Instituto Butantan produzirá 20 milhões de doses contra a gripe por ano que atenderão à demanda nacional. Isso graças a um investimento de R$ 30 milhões do Ministério da Saúde, em aquisição de equipamentos, e de R$ 19 milhões do governo paulista, em obras. A unidade terá 9,8 mil metros quadrados e deve começar a operar no final de 2005. Será a primeira fábrica de vacina contra gripe do hemisfério Sul, com tecnologia transferida pelo laboratório franco-alemão Aventis Pasteur. Hoje o Butantan já envasa as va-

■ Rascunhos nervosos e traços delicados Quarenta e nove aquarelas da ilustradora botânica Margaret Mee (1909-1988) estão expostas na mostra Do esboço à natureza, aberta até 27 de fevereiro no Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo. Nascida na Inglaterra, Margaret Mee veio para o Brasil em 1952 trabalhar como professora de arte. Começou a pintar plantas e flores da Mata Atlântica, nos arrabaldes paulistanos, e logo se interessou pela Amazônia. Entre 1956 e 1988 fez 15 expedições à região, nas quais colecionou espécies e registrou imagens de bromélias, orquídeas e helicônias, algumas delas desconhecidas. As obras em

0 instituto: maior produtor de vacinas

cinas fornecidas pelo laboratório para distribuição no país. Sessenta profissionais especializados serão contratados para trabalhar na unidade. Atualmente o Brasil compra vacinas contra a

exposição, que pertencem ao acervo do Bradesco, são apresentadas em uma ordem que aproxima esboços com traços

Cattleya guttata, aquarela em exposição

gripe da França, a R$ 5 a dose, e as utiliza em campanhas de imunização de pessoas com mais de 60 anos de idade. Além da vacina contra a gripe, o Butantan também desenvolverá um

nervosos e trabalhos acabados que apresentam a delicadeza da natureza. Em 1988 ela fez sua última viagem à Amazô-

novo pacote de imunizantes graças a uma parceria com o Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos. Nesse pacote incluemse vacinas contra rotavirus, HPV (papiloma do colo do útero), coqueluche e hepatite B (juntas), entre outras. O Instituto Butantan, criado em 1889 para produzir soro contra a peste bubônica, tornou-se famoso por desenvolver soros antipeçonhentos. Hoje é responsável por 80% das vacinas que o país produz. São 200 milhões de doses por ano, na maioria contra tétano, difteria, coqueluche, hepatite B, BCG e raiva.

nia, planejada especialmente para registrar uma espécie, a üor-da-\ua (Selenicereuswittii), cuja flor desabrocha num único dia do ano. E viajou à Inglaterra e aos Estados Unidos para chamar a atenção sobre a devastação das florestas tropicais. A ilustradora, que passou seus últimos anos no Rio de Janeiro, morreu em novembro de 1988 num acidente de carro em Leicester, Inglaterra, logo depois de fundar o Margaret Mee Amazon Trust com o objetivo de preservar suas pinturas e oferecer bolsas de estudos para cientistas brasileiros. Em 1989 foi criada no Rio de Janeiro a Fundação Botânica Margaret Mee, também voltada para a concessão de bolsas, inclusive para ilustradores botânicos. •

PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 21


ESTRATéGIAS

BRASIL

A popularização das imagens de satélite

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mi Ji-Paraná, em Rondônia, nos anos 1070 (esqü e hoje (d/r.): fotos de satélite ajudam a monitorar a devastação

■ Importações desembaraçadas Desfez-se o embaraço que, durante quase três meses, bloqueou as importações de equipamentos e insumos para pesquisadores feitas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Constava dos cadastros da Secretaria da Receita Federal uma dívida do conselho que remontava aos anos de 1997 e 1998. Entre agosto e novembro, mais de 40 equipamentos importados para pesquisa estão retidos no Aeroporto Internacional de Brasília e outros nem receberam autorização para sair do país de origem. O CNPq argumentava que a dívida não era sua, mas de institutos de pesquisa, hoje vinculados ao Ministério da Ciência e Tecnologia, com

Desde julho o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em Cachoeira Paulista, disponibiliza gratuitamente pela internet o catálogo de imagens do Satélite Sino-Brasileiro de Recursos Terrestres (CBERS). Em apenas quatro meses, 40 mil imagens já foram distribuídas a usuários em território brasileiro, entre empresas públicas, universidades, pesquisadores de diversas áreas e agricultores. Antes, quando o serviço era pago, a distribuição era de apenas 3 mil imagens por ano. A política de popularização do uso de imagens terá novos desdobramentos. Além das fotos do CBERS, parte das imagens do Landsat, o satélite mais utilizado em pesquisas em todo o mundo, também será oferecida. Estarão disponíveis dados históricos de 1973 a 1985, que permitem o acompanhamento das mudanças ambientais, urbanas e hídricas no país. Dados mais recentes do Landsat também poderão ser abertos, mas ainda resta definir qual período será franqueado. No início de novembro, o Inpe apresentou sua nova política de distribuição para empresas que vivem de comercializar imagens de satélite - e, agora, correm o risco de perder o ganhapão. "Algumas ficaram preocupadas, mas entenderam que a distribuição vai ampliar o uso das fotos de satélites e de outros serviços que elas poderão oferecer", diz Luís Geraldo Ferreira, da Divisão de Imagens do Inpe. Mais informações podem ser obtidas no endereço vAvw.dgi.inpe.br/usr/principal/atus.html. •

22 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

os quais partilhou o mesmo registro de pessoa jurídica. No dia 18 de novembro, a Receita aceitou o argumento e liberou as importações. •

■ Personalidades do ano Carlos Henrique de Brito Cruz, reitor da Universidade Estadual de Campinas e diretor científico nomeado da FAPESP, foi agraciado pelo Sindicato dos Engenheiros de São Paulo com o prêmio Personalidade da Tecnologia 2004, categoria Ensino e Pesquisa. A entrega será no dia 14 de dezembro. Concedido desde 1987, o prêmio homenageia personalidades que contribuem para o desenvolvimento. Foram agraciados, em outras categorias, o presidente da Embraer, Maurício Botelho; Aron de Andrade, do


Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia; Laércio Cosentino, presidente do Grupo Microsiga; Nelson Zuanella, presidente da Fundação para o Desenvolvimento Tecnológico da Engenharia; e Carlos Lessa, ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). •

■ 0 pensamento do diplomata Organizado por Jacques Marcovitch, ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP), o livro Sérgio Vieira de Mello Pensamento e memória foi lançado no dia 25 de novembro, num seminário na USP sobre o pensamento do diplomata brasileiro que chefiou missões da Organização das Nações Unidas (ONU) na reconstrução do Timor Leste e de Kosovo e morreu em Bagdá, em agosto de 2003, num atentado contra o escritório da ONU no Iraque ocupado. Publicado pela Edusp em parceria com a Editora Saraiva, o livro reúne textos de Vieira de Mello e ensaios sobre suas idéias assinados por jornalistas, intelectuais e diplomatas, entre eles Celso Lafer, Jacques Marcovitch, Gelson Fonseca Júnior, Luiz Felipe de Seixas Corrêa, Paulo Sérgio Pinheiro e Ronaldo Sardenberg. Os autores dos ensaios foram os palestrantes no seminário, que aconteceu na Sala da Congregação da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade. •

■ Espaço para debater a arte A Fundação Bienal de São Paulo acaba de lançar uma revista voltada para o público que gosta de arte. Com tira-

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0 livro: ensaios e artigos gem de 25 mil exemplares, a revista BienArt está sendo distribuída para um público restrito, composto por dirigentes de instituições cultu-

A revista da Fundação Bienal rais, professores e estudantes, galeristas e autoridades. Mas já nas próximas edições deverá ser colocada à venda em algumas livrarias de São

Paulo. O primeiro número tem como mote a 26a Bienal, aberta ao público, gratuitamente, até o dia 19 de dezembro, no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, no Parque do Ibirapuera, na capital paulista. Entre os destaques há reportagens sobre a arte chinesa e sobre a presença da pintura na mostra e perfis dos pintores Luc Tuymans, da Bélgica, e Eugênio Dittborn, do Chile. A ambição da revista, longe de ser um órgão de divulgação da fundação, é dar voz a tendências diversas das artes plásticas, com conteúdos produzidos por outras instituições, museus e artistas. •

Entre os líderes da ciência O neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis é um dos 50 líderes de 2004, premiação concedida pela revista Scientific American para indivíduos e instituições que se destacaram no campo da pesquisa, dos negócios ligados à tecnologia e da política científica. Nicolelis foi um dos 20 vencedores na categoria Pesquisa, que, entre outros, também premiou o Laboratório de Propulsão a Jato da Nasa pela iniciativa de mandar robôs a Marte. Paulista de 43 anos, Miguel Nicolelis é professor titular de neurobiologia e engenharia biomédica da Universidade Duke, na Carolina do Norte. Ele demonstrou que é possível usar a atividade elétrica dos neurônios de macacos para controlar robôs e próteses. A pesquisa abre caminho para, um dia, permitir que indivíduos in-

Mayana Zatz e Miguel Nicolelis: reconhecimento internacional válidos manipulem objetos usando apenas a atividade da mente. No dia 23 de novembro outros dois brasileiros receberam reconhecimento internacional. A bióloga Mayana Zatz, da Universidade de São Paulo, e Welington Celso de Melo, do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), foram a Trieste, na Itália, receber o Prêmio da Acade-

mia de Ciências do Terceiro Mundo. No evento, foram anunciados os vencedores da edição 2005 do prêmio. O médico Jorge Kalil, professor da USP e diretor do Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração, foi um dos agraciados, graças a pesquisas imunológicas com aplicação em doenças como a Aids e a febre reumática. •

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Enchente em Guarulhos: projeto estuda a viabilidade de captar a chuva e injetá-la no subsolo, perto dos aqüíferos que abastecem boa parte da cidade


POLÍTICAS PÚBLICAS

Insumos para o desenvolvimento Universidades, setor público e ONGs desenvolvem projetos para a solução de problemas sociais

CLAUDIA IZIQUE E FABRíCIO MARQUES


Bntre 1997 e 2002 a arrecadação do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e do Imposto sobre Serviços (ISS), em São João da Boa Vista, no interior de São Paulo, cresceu 110%. Em 2003 as contas registraram superávit de R$ 1,2 milhão e a prefeitura pôde quitar as dívidas com fornecedores. "Com o aumento da receita foi possível ampliar os investimentos nas áreas de saúde e educação", conta Vanderlei Borges de Carvalho, diretor do Departamento de Finanças do município. "Neste ano também vamos fechar equilibrado", ele prevê. A melhora do desempenho fiscal não implicou aumento no valor dos impostos para os cidadãos. Foi resultado da modernização e informatização da gestão tributária implementada por meio de uma bem-sucedida parceria entre a prefeitura de São João da Boa Vista, o Instituto Uniemp, a Fundação de Desenvolvimento Gerencial e a Agência Dinheiro Vivo, com o apoio da FAPESP, no âmbito do Programa de Pesquisa em Políticas Públicas. O projeto Gestão Tributária e Acompanhamento da Execução Orçamentária Municipal, iniciado em 1998, está totalmente implantado e as contas da prefeitura já estão disponíveis na internet, acessíveis a qualquer cidadão, de acordo com as exigências da Lei de Responsabilidade Fiscal. "No site da prefeitura estão discriminados todos os gastos, desde o consumo de café até a quantidade de pneus consumidos por qualquer área da administração", exemplifica Borges de Carvalho. Parcerias estratégicas - O Programa de Pesquisa em Políticas Públicas é parte da estratégia adotada pela FAPESP, a partir de 1995, que teve como meta estabelecer parcerias entre universidades e institutos de pesquisa, de um lado, e órgãos do setor público e do terceiro setor, de outro, na busca de soluções para problemas concretos que comprometem o dia-a-dia dos cidadãos ou que emperram a boa gestão administrativa. Os 221 projetos aprovados estão sendo desenvolvidos por pesquisadores junto com 106 prefeituras, 133 26 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

Sistema criado pelo IPT em parceria com os bombeiros agilizou o registro de ocorrências e permitiu tratamento qualitativo das estatísticas

secretarias do estado ou de municípios e envolvem 26 organizações não-governamentais (ONGs). Os projetos do Programa de Pesquisa em Políticas Públicas são realizados e implementados em três etapas. Na primeira fase, com seis meses de duração, os parceiros realizam estudos de viabilidade e iniciam as pesquisas contando com recursos de até R$ 50 mil. As propostas são então submetidas a uma nova avaliação antes de chegar à fase 2, de execução do projeto, financiada com até R$ 300 mil da FAPESP. A terceira fase, de implementação das propostas do projeto, é de exclusiva responsabilidade dos órgãos e entidades parceiros. O Corpo de Bombeiros da Polícia Militar do Estado de São Paulo, por exemplo, está construindo um software para implantar o Sistema de Dados Operacionais (SDO) desenvolvido em parceria com o Instituto de Pesquisa Tecnológica (IPT) com recursos do programa. O projeto, iniciado em 2001, teve como objetivo melhorar o sistema de coleta de informações do Centro de Comunicações de Bombeiros e do Posto de Bombeiros. O primeiro recebe as chamadas de emergência e o segundo responde às emergências em sua área de jurisdição. O novo sistema permitirá dar um tratamento qualitativo às estatísticas e criará políticas de atuação dos bombeiros em todo o estado. Os bombeiros passaram a utilizar um sistema eletrônico de tabulação de dados, a partir de 1992, para a produção de informações quantitativas operacionais sobre o atendimento a mais

de 500 mil ocorrências. Esse sistema, no entanto, apresentava várias limitações, como estrutura inadequada dos dados em tabelas e campos e até sobre a vítima. "Os chamados dirigidos à central de emergência pelo número 193 eram digitados, mas ficavam na central sem nenhuma ligação com a rede", lembra Rosário Ono, na época no IPT, coordenadora do projeto. "Além disso, boa parte do sistema não estava informatizada." O projeto avaliou a forma de coleta de dados, estruturou relatórios que permitem análises mais detalhadas e arquitetou um piloto do novo sistema de tabulação de dados que foi instalado no 8o Grupamento de Bombeiros, em Santo André. O programa, no entanto, por utilizar rede de comunicação de dados via ondas de rádio, não permitia a expansão do modelo para as demais regiões do Estado de São Paulo. O novo aplicativo que está sendo desenvolvido


pelos bombeiros vai utilizar infra-estrutura de intranet do governo paulista e deverá estar implantado, e em funcionamento, em janeiro de 2005. Saúde da família - Oitenta e quatro projetos do programa de Políticas Públicas já estão concluídos e em fase de implementação. As propostas incorporadas pelos parceiros têm subsidiado o desenvolvimento de ações em diversas áreas de gestão, especialmente a de saúde, objeto de diagnóstico de 52 projetos. Em Campinas, por exemplo, um projeto piloto desenvolvido pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) junto com a Secretaria Municipal de Assistência Social de Campinas arquiteta uma metodologia para ampliar a atuação dos agentes de saúde da família, que, desde a década de 1990, têm sido um poderoso instrumento de combate a doenças em regiões pobres.

Um grupo de 300 agentes da família que atuam na periferia da cidade, foi treinado para fazer mais do que monitorar a carteira de vacinação e a medicação dos doentes crônicos ou acompanhar a evolução dos indicadores de saúde da população. Eles estão preparados para interferir na dura realidade social da região, como a violência, o uso de drogas e a gravidez na adolescência. "Nosso trabalho é interdisciplinar", explica o coordenador do projeto, Carlos Roberto Silveira Corrêa. "Não basta diagnosticar e tratar as pessoas. É preciso inventar e propor ações que melhorem a saúde e a qualidade de vida." No bairro de Santa Mônica um grupo de diabéticos coordenado por uma agente de saúde se reúne para trocar informações sobre receitas de alimentos sem açúcar, mas saborosas e baratas, para melhor conviver com a doença. O grupo tem uma regra: ali médico não entra. "Se tivesse um médico lá den-

tro, iria dar bronca e aplicar restrições alimentares", diz Corrêa. "No nosso paradigma, há espaço para soluções dos próprios envolvidos." As ferramentas tradicionais nem sempre funcionam também no enfrentamento da gravidez na adolescência. "Fiquei desconcertado na primeira vez que atendi uma adolescente e ela disse que seu problema era não conseguir engravidar. Para algumas, ter um filho garante um status diferente, que elas perseguem", afirma Corrêa. O programa teve início em 1999. A prefeitura de Campinas, na época, não tinha interesse em criar um programa de saúde da família e a Faculdade de Ciências Médicas pediu autorização para realizar, ela própria, um programa piloto. Foram treinados, com o apoio da FAPESP, os primeiros 25 agentes sociais selecionados entre os moradores do bairro. Em 2000, com a mudança de prefeito, o município enPES0UISA FAPESP 106 • DEZEMBRO DE 2004 ■ 27


campou o programa e o grupo original criou uma ONG, batizada de Ipês, que passou a coordenar o projeto em convênio com a prefeitura. "Nossa missão é interferir na política pública, e não se tornar concorrente do governo", sublinha Corrêa. roblemas relacionados à educação também têm destaque e são objeto de estudo de 21 projetos. Em São Carlos, um grupo de professores do Departamento de Metodologia de Ensino da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Escola de Engenharia de São Carlos - USP vem desenvolvendo pesquisas e projetos na área de educação infantil em parceria com a Secretaria Municipal de Educação e Cultura. O projeto Diagnóstico das Creches Municipais de São Carlos, encerrado em meados de 2004, preencheu as expectativas tanto dos pesquisadores como do poder público: São Carlos dispõe hoje de um banco de dados inédito no país, que revela o perfil de 1.106 crianças atendidas pelas creches e é capaz de separar os dados de acordo com gênero, renda, raça e região, entre outros. "A falta de informações sobre educação infantil é um problema em quase todas as cidades brasileiras", diz a coordenadora do projeto, Anete Abramowicz, professora do Departamento de Metodologia de Ensino da UFSCar. O banco também reúne outros dados, como o perfil dos professores e funcionários das creches, as condições físicas dos prédios e o público não atendido por elas (através do cruzamento com dados do IBGE). Um programa de computador foi desenvolvido para o projeto, utilizando uma plataforma de software livre, que já está sendo usado por outras cidades. Por meio do software, as diretoras das creches fizeram as matrículas das crianças on-line e as informações prestadas abasteceram o banco de dados. "O diagnóstico é um instrumento indispensável para traçar políticas públicas, para saber onde é preciso oferecer mais 28 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

creches e de que forma elas estão atendendo seu público", diz a especialista em metodologia de ensino. Ação contra a enchente - O Programa de Pesquisa em Políticas Públicas tem garantido que o conhecimento gerado no setor de pesquisa aponte soluções estruturais para problemas que comprometem a qualidade de vida dos cidadãos, como é o caso, por exemplo, das enchentes, foco do projeto Subsídios Técnicos ao Plano Diretor de Drenagem do Município de Guarulhos. A cidade retira boa parte da água que consome dos aqüíferos subterrâneos, que já dão sinais de exaustão. O Aeroporto de Cumbica, por exemplo, é totalmente abastecido por meio de poços artesianos. Essa estratégia, no entanto, não será sustentável para suprir o novo terminal de passageiros que será construído nos próximos anos. O único jeito será criar um sistema de reaprovei-

tamento de água, já que os lençóis freáticos não se reabastecem adequadamente porque a cidade está impermeabilizada. O resultado é que, quando chove, a água corre sobre o asfalto, produzindo enchentes. Para agravar o problema, o solo argiloso da região também contribui para dificultar a absorção da água. A solução idealizada por Hélio Nóbile Diniz, pesquisador do Instituto Geológico, órgão da Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo e coordenador do projeto, que será testada na segunda fase do projeto, é captar a água das chuvas e injetá-la no subsolo a 100 metros de profundidade, perto dos aqüíferos, abreviando o processo de filtragem pela terra. Trata-se de uma idéia polêmica. Em tese, envolve risco de contaminação da água do subsolo. "Pretendemos fazer uma experiência controlada, com a construção de dois poços, um para a injeção de água no aqüífero


Mapeamento de áreas de interesse ecológico identificou unidades de conservação de uso sustentável

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e outro para retirar a água e controlar sua qualidade", diz Nóbile Diniz. Na primeira etapa do projeto foram feitos ensaios de infiltração e métodos para diagnosticar a permeabilidade do solo. Caso a estratégia se revele viável, a prefeitura de Guarulhos, parceira no projeto, cogita propor mudanças no Plano Diretor da cidade. Uma possibilidade é exigir que novos empreendimentos imobiliários e também grandes galpões industriais construam poços de infiltração para injetar a água captada da chuva. "Alguns desses galpões têm telhados enormes, que escoam a água para a superfície e ajudam a causar enchentes", explica o geólogo Edilson Pissato, da Secretaria de Meio Ambiente de Guarulhos. O problema de abastecimento de água também foi o tema do projeto Sistema de Diagnóstico e Avaliação de Projetos Executados por Municípios, Órgãos Estaduais e Associações da Sociedade Civil

no Comitê da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê. Foi implementado pelo Comitê da Bacia do Alto Tietê - órgão colegiado composto por especialistas, representantes do governo e da sociedade civil em parceria com a Unicamp, no âmbito do Programa de Políticas Públicas. 0 projeto teve duas vertentes. De um lado, construiu-se um instrumento para avaliação dos projetos submetidos ao Comitê da Bacia do Alto Tietê. Os comitês de bacias dispõem de um fundo de financiamento e têm a tarefa de definir os projetos a serem apoiados. Estão credenciados para pleitear essas verbas os projetos que tratem de problemas como a construção de estações de tratamento de esgoto ou o remanejamento de adensamentos urbanos em

regiões de mananciais, entre outros. O desafio do grupo de pequisadores era encontrar uma metodologia capaz de avaliar adequadamento os melhores projetos a serem financiados. Para construir esse instrumento, que acaba de ficar pronto, foi fundamental implantar a segunda vertente do projeto: os cursos de capacitação para os representantes do Comitê do Alto Tietê e de seus colegiados regionais da Billings, Cabeceiras do Tietê, Pinheiros/Pirapora, Cantareira e Cotia e Guarapiranga, além de universitários de iniciação científica e de mestrado. Os comitês de bacias hidrográficas são responsáveis, desde os anos 1990, pelas decisões acerca de projetos e políticas envolvendo o abastecimento e o tratamento de água. A Região Metropolitana de São Paulo está na jurisdição do Comitê do Alto Tietê. A ausência de coordenação entre os membros e a complexidade dos problemas da bacia ameaçavam a grande finalidade do comitê, que é levar a uma transformação da gestão da água, evitando a deterioração dos mananciais e atacando os ralos do desperdício, em vez de continuar investindo bilhões em captação de água. Ao reunir os representantes nos cursos de capacitação, os responsáveis pelo projeto puderam conhecer a dinâmica dos comitês e subcomitês, condição fundamental para construir a metodologia de avaliação dos projetos. Ao mesmo tempo, tiveram a chance de sensibilizar os alunos para a complexidade de sua tarefa. Divididos em três módulos, os cursos foram ministrados entre os anos de 2001 e 2004, envolvendo 400 pessoas. PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 29


"A meta do primeiro módulo foi dar um choque de realidade nos representantes", diz Ricardo Toledo Neder, atualmente professor do Centro de Estudos Ambientais da Universidade Estadual Paulista (Unesp), de Rio Claro, que coordenou o projeto. Por choque de realidade entenda-se a exposição dos motivos na raiz do problema da água no estado: até recentemente, a falta de água era resolvida com o aumento da captação, como se não houvesse limite de água ou de dinheiro. A Lei Estadual de Recursos Hídricos, de 1991, propôs a inversão dessa lógica: em vez de ampliar cada vez mais a demanda, a solução seria combater o desperdício e articular a proteção dos mananciais. 0 segundo módulo do projeto buscou articular a gestão da água com a gestão do solo urbano, uma vez que um dos fatores mais dramáticos da deterioração de mananciais é a construção de moradias irregulares em áreas de proteção ambiental. O terceiro módulo discutiu a importância da capacidade associativa para pensar soluções, independentemente das iniciativas e idéias do poder público. "Avançamos muito no conhecimento sobre como as formas de representação social em órgãos colegiados, como os comitês de bacias, encontram obstáculos para atuar de forma coordenada", afirma Neder. Radiografia do crime - O tratamento de dados estatísticos também permitiu traçar o perfil dos criminosos no Estado de São Paulo. O projeto Construindo um Modelo de Análise Integrada das Informações, desenvolvido em parceria pela Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade) e a Secretaria de Segurança Pública, iniciou-se em 1999 e foi concluído no ano passado. Resultou na construção do Sistema Integrado de Informações Criminais, disponível no site do Seade, que integra quase 20 milhões de dados criminais, registrados entre 1981 e 2002, e faz uma radiografia da Justiça criminal paulista, com informações sobre o tempo médio dos processos, desde a ocorrência do inquérito até a execução da 30 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESdUISA FAPESP 106

pena. Os dados de 2003 estão sendo preparados e devem estar disponíveis a partir de 2005. Os números coletados foram organizados em quatro categorias: gênero, escolaridade, estado civil e cor da pele. Sua análise traz informações reveladoras. Um exemplo: apesar de a maioria dos inquéritos policiais envolver suspeitos de cor branca, os negros são, proporcionalmente, mais presos. Essa diferença pode ser atribuída ao melhor nível de escolaridade e renda dos brancos, o que lhes garantiria acesso mais fácil aos mecanismos de defesa, e ao caráter discriminatório do sistema judiciário, já que boa parte dos processos de crimes violentos é submetida a júri popular, como afirmou Luiz Henrique Proença Soares, que foi coordenador-geral do estudo, (veja Pesquisa FAPESP n° 69). Além de criar uma metodologia para a análise de dados da Secretaria de Segurança Pública, o sistema permite o monitoramento de informações antes restritas ao pessoal técnico, sublinha Renato Sérgio de Lima, coordenadortécnico do projeto. "A Secretaria de Segurança Pública é a principal usuária dessas informações", diz ele. Preservação da memória - Os recursos do Políticas Públicas também permitiram a organização de arquivos públicos e a recuperação do patrimônio histórico e arqueológico em municípios paulistas. Apesar da obrigação legal (lei 8.159/91), apenas 17 cidades do Estado de São Paulo organizaram arquivos permanentes para a preservação de documentos. Duas delas - São José dos Campos e Itatiba - o fizeram com recursos da FAPESP. O projeto Gestão de Documentos, Institucionalização e Implantação de Arquivos Municipais no Estado de São Paulo, resultado de parceria entre o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e o Fórum Nacional de Dirigentes de Arquivos Municipais (Forumdam), começou em 2000 e se encerrou este ano. São José dos Campos já tinha uma arquivo, mas em Itatiba o projeto começou do zero. Nos dois casos foi fundamental a participação das secretarias de Cultura, Administração e Assuntos Jurídicos, lembra Pedro Puntoni, coor-

denador do projeto. Os pesquisadores trabalharam com metodologia que permite integrar o acervo de documentos já existentes com a produção de documentos correntes e que inclui tabelas de temporalidade. "Estabelecemos, por exemplo, o período em que um documento de solicitação para poda de árvore deve ficar guardado antes de ser destruído", ele exemplifica. Pelo menos uma amostra de cada documento tem que ser guardada para a posteridade, acrescenta. Os pesquisadores elaboraram, ainda, um manual com todos os passos necessários para a instalação de um arquivo público municipal, conforme as exigências da lei, e que podem ser facilmente seguidos por outras administrações municipais. "Já estamos trabalhando com o município de Paracatu, em Minas Gerais, e negociando a implantação de projeto semelhante na cidade de Campinas. Bm São José dos Campos os arquivos, devidamente reorganizados, estão guardados na Fundação Cassiano Ricardo. "Em Itatiba conseguimos convencer o prefeito a alugar uma casa histórica, do início do século 20, que a FAPESP ajudou a equipar", afirma Puntoni. O projeto incluiu o desenvolvimento de softwares e até sites dos dois municípios com parte dos arquivos já digitalizados. "Os sites estão prontos para serem disponibilizados na internet." Em São Caetano do Sul, um projeto desenvolvido pelo Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da Universidade de São Paulo (USP), em parceria com a Fundação Pró-Memória, da prefeitura municipal, colaborou na preservação do patrimônio histórico da cidade. "Era preciso organizar o material para que o museu tivesse noção de seu acervo e para permitir a organização de outros projetos", explica Maria Cristina Oliveira Bruno, pesquisadora do MAE e coordenadora do projeto. O resultado foi a organização do acervo arqueológico do Museu Municipal, que reúne peças dos séculos 18,19 e 20, a preparação de um livro com a ca-


Sistema de Informações Criminais, organizado pela Fundação Seade, faz radiografia dos delitos no estado

talogação do material e a elaboração de um projeto de expansão e divulgação desse acervo. Áreas protegidas - O mapeamento das áreas de relevante interesse ecológico no Estado de São Paulo também foi patrocinado pelo Programa de Políticas Públicas. No projeto, desenvolvido pelo Instituto de Biociências da USP em parceria com a Fundação Florestal, foi realizado um amplo levantamento de áreas públicas e privadas especialmente protegidas com o objetivo de definir parâmetros para a gestão ambiental. A idéia é que parte dessas áreas poderia ser aberta ao público para a exploração comercial sustentável, como o ecoturismo, por exemplo. "Atualmente é impossível fazer isso sem se enredar na burocracia. É mais fácil dizer não", diz Paulo Nogueira Neto, coordenador do projeto. Depois de levantar os instrumentos legais relacionados ao manejo ambiental e relacionar as áreas vinculadas a cada uma das categorias de proteção, houve seleção dos fragmentos de ecossistemas que foram avaliados sob o ponto de vista da conservação ambiental e classificados segundo o grau de vulnerabilidade. Alguns foram considerados unidades de conservação de uso sustentável, cuja proteção não exige a desapropriação. Nesse momento a Secretaria do Meio Ambiente estuda a publicação de um decreto que autorizará a construção de pousadas ecológicas e a utilização comercial dessas áreas. "O proprietário poderá utilizar essa área com finalidade lucrativa", adianta Nogueira Neto. • PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 31


I POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA ADMINISTRAÇÃO

A sucessão tranqüila Governador Geraldo Alckmin nomeou rapidamente novos executivos da Fundação MARILUCE MOURA

A FAPESP está vivendo entre g^L este final de ano e o começo ^^^ de 2005 um processo inéÊ M dito, mas indiscutivel^L. -m> mente tranqüilo e maduro de substituição simultânea de alguns de seus executivos e conselheiros, com efeitos, aliás, sobre outras importantes instituições do sistema paulista de ciência e tecnologia. Assim, em 17 de novembro passado, o governador Geraldo Alckmin nomeou Marcos Macari, pró-reitor de Pós-graduação e Pesquisa da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e candidato a reitor da instituição, vice-presidente da Fundação; Ricardo Renzo Brentani, hoje diretor presidente do Hospital do Câncer e do Instituto Ludwig de São Paulo, para o cargo de diretor presidente do Conselho Técnico-Administrativo (CTA); e Carlos Henrique de Brito Cruz, atual reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), diretor científico da Fundação — todos três membros do Conselho Superior (CS) da FAPESP. A escolha do governador, feita a partir de listas tríplices encaminhadas pelo CS em 10 de novembro, envolve a Unicamp, que, a essa altura, já deu início ao processo de eleição do novo reitor que substituirá Brito. Em grau bem mais 32 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

suave, sem dúvida, alcança também a Universidade de São Paulo (USP), cujo Conselho Universitário deverá em breve encaminhar uma lista tríplice para que o governador escolha o nome de um novo conselheiro da FAPESP em substituição a Brentani, já que ele era um dos três da cota tradicional dessa universidade no CS da Fundação. E, claro, altera ainda o próprio conselho da FAPESP, com a substituição de dois de seus 12 membros - Macari permanece conselheiro. Vale observar que a segunda vaga aberta no conselho está na cota das seis que são preenchidas por nomes de livre escolha do governador. O conselho tem marcada ainda para dezembro mais uma votação, dessa vez para a elaboração da lista tríplice de diretor administrativo, em razão de o atual mandato de Joaquim J. de Camargo Engler terminar em fevereiro. Acasos e determinações - Todas essas mudanças resultam de uma combinação de acasos e decisões pessoais. Uns e outras convergiram para uma alteração na cúpula da Fundação, que era impensável no início deste ano. Primeiro, foi o falecimento repentino de Francisco Romeu Landi, 72 anos, em 22 de abril, que abriu a vaga de diretor presidente.

Em luto, a Fundação, por decisão de seu presidente, Carlos Vogt, baseada em consulta ao Conselho Superior, adiou por algum tempo a votação da lista tríplice para o cargo. Já em julho terminava o mandato do vice-presidente da Fundação, Paulo Eduardo de Abreu Machado. O conselho decidiu então que votaria as duas listas tríplices em agosto. Mas, justamente nessa reunião, o diretor científico, José Fernando Perez, cujo mandato terminaria em dezembro de 2005, anunciou que colocava o cargo à disposição, depois de ter amadurecido a decisão de iniciar uma experiência no setor privado, para daí continuar, sob uma nova forma, contribuindo com o desenvolvimento científico e tecnológico do país. Ampliava-se assim a dimensão das mudanças por que passaria a cúpula da Fundação e o conselho decidiu comandar o processo sucessório à altura do desafio apresentado, com ampla consulta à comunidade científica. Instaurou um Comitê de Busca e Seleção, que receberia as indicações da comunidade e organizaria o encaminhamento das listas de candidatos ao conselho. Com dez candidatos a diretor presidente e lia diretor científico, o processo foi concluído em 11 de novembro.


"As listas tríplices encaminhadas ao governador espelharam uma vontade institucional consistente da FAPESP, por meio de seu Conselho Superior, e o governador escolheu nomes que consideramos de grande destaque acadêmico, científico e intelectual", diz o presidente Carlos Vogt. "São nomes altamente representativos na construção das condições para o desenvolvimento cada vez melhor da produção científica, tecnológica e cultural em São Paulo e no Brasil." Novos desafios - De fato, bastam uns poucos traços das biografias intelectuais dos nomeados para sustentar a afirmação de Carlos Vogt. O físico Brito Cruz, por exemplo, 48 anos, presidente da FAPESP de 1996 até 2002, ano em que assumiu a reitoria da Unicamp, é um dos mais respeitados especialistas em políticas de desenvolvimento científico e tecnológico, sem ter abandonado as atividades de pesquisador em sua área. Engenheiro eletrônico pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica, mestre e doutor pelo Instituto de Física Gleb Wataghin da Unicamp, onde começou sua carreira em 1982, aos 26 anos, e que dirigiu em duas ocasiões. Brito entende que o sistema de ciência e tecnologia no estado tem que se

apoiar em três pilares: formação de recursos humanos, pesquisa acadêmica e pesquisa na empresa. "O primeiro é essencial porque sem pessoas preparadas não há produção de conhecimento. O segundo é fundamental porque faz avançar o conhecimento humano de maneira desinteressada e, ao mesmo tempo, forma as pessoas. E o terceiro é vital porque transforma conhecimento em riqueza", resume ele. Brentani, 67 anos, médico formado pela Faculdade de Medicina da USP, da qual é professor titular desde 1981, doutor em bioquímica também pela USP, é autor de uma respeitável lista de 119 artigos científicos publicados em periódicos internacionais. Além de dirigir o Hospital do Câncer A. C. Camargo e o Instituto Ludwig, entre outras atividades, coordena o Centro Antônio Prudente para Pesquisa e Tratamento do Câncer. A situação financeira tranqüila da FAPESP, depois das turbulências vividas em 2002, e a informatização do processamento de bolsas e auxílios, que o agilizará, "além de aumentar a segurança da comunidade em relação ao pronto julgamento de seus pedidos", são dois

pontos positivos, segundo ele, para quem assume um cargo executivo na Fundação hoje. Brentani observa que ainda tem que tomar pé nas coisas, mas destaca "o trabalho muito bonito de Landi na organização do fórum das fundações estaduais de amparo à pesquisa de todo o país", que ele gostaria de continuar. Finalmente, Marcos Macari, 54 anos, graduado em ciências biológicas pela USP, doutorado em fisiologia pela Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto e com pós-doutoramentos no Agricultural Research Council de Cambridge, Inglaterra, na Universidade de Yamagushi, Japão, e na Universidade de Lavai, Canadá, é hoje, além de pró-reitor da Unesp, professor titular do Departamento de Morfologia e Fisiologia Animal da Faculdade de Ciências Agrárias dessa universidade em Jaboticabal. Macari acredita que a FAPESP terá cada vez mais a função de apoio à produção do conhecimento básico voltado para a interação com o setor produtivo, "o que é vital porque ninguém nos passará gratuitamente as tecnologias de que carecemos para o desenvolvimento de nosso país". Isso, entretanto, deve se dar sem que a Fundação descuide "de seu lado humanístico, de apoio às ciências humanas". • PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 33


I POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA ORÇAMENTO

Sacrifício recompensado Fundação recompõe patrimônio líquido e restabelece saúde financeira

A execução orçamentária da FAi^L PESP dos últimos dois anos L^^ - que exigiu, em um determ ^ minado momento, a ado^L J^k. ção de medidas amargas como a contenção temporária de despesas em moeda estrangeira - permitiu a recomposição do seu patrimônio líquido e a volta da normalidade dos investimentos na importação de equipamentos e insumos para a pesquisa, sem comprometer o apoio à pesquisa científica e tecnológica. Os problemas orçamentários ocorreram principalmente em virtude da alta acelerada do dólar no segundo semestre de 2002. Os US$ 60 milhões de recursos demandados para a importação, cuja liberação tinha sido suspensa em julho de 2002 como saída para enfrentar a crise cambial, por exemplo, puderam ser paulatinamente autorizados a partir de setembro do mesmo ano para não comprometer a realização dos projetos em andamento. Em 31 de outubro deste ano, apenas 1% desse valor ainda não tinha sido realizado, não por indisponibilidade de verbas, mas porque os pesquisadores interessados não tinham enviado 34 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESCIUISA FAPESP 106

a documentação para a consumação da compra, conta Joaquim J. de Camargo Engler, diretor administrativo. Outro indicador da normalidade financeira nas compras externas é que das novas concessões para importação - aprovadas entre agosto de 2002 e outubro de 2004 e que somam R$ 40 milhões - cerca de 25% estão em andamento. As demais já estão agendadas ou aguardam agendamento pelos pesquisadores. Atualmente não há nenhuma restrição, por razões de câmbio, às importações de bens e serviços concedidos pela FAPESP. Superávit financeiro - No mesmo período, e em decorrência de uma programação estratégica de investimentos, o patrimônio líquido da Fundação, que tinha caído para uma faixa de R$ 500 milhões, em 2002, retornou a patamares históricos de R$ 700 milhões, segundo Engler. A recuperação do patrimônio financeiro líquido também foi significativa: aumentou de R$ 3 milhões, em 2002, para R$ 117,1 milhões em 2003. E até setembro de 2004 já atingia a casa dos R$ 182,6 milhões. "Saímos de um déficit relativamente à receita real

de mais de R$ 50 milhões em 2002 para um superávit de R$ 89 milhões em 2003. Neste ano esse valor será superado e pode chegar a R$ 90 milhões. Até setembro, o superávit registrado já estava na casa dos R$ 79 milhões", afirma Carlos Vogt, presidente da FAPESP. Dispor de um patrimônio considerável é condição para que a Fundação cumpra com regularidade sua tarefa em momentos de crise, como queda de arrecadação ou disparada do dólar. A recomposição do patrimônio e o superávit financeiro foram possíveis com um "novo modelo de gestão de recursos" que permitiu manter os programas financiados pela Fundação e retomar as obrigações contratadas que tinham sido suspensas em situação de emergência. A estratégia foi regulamentar o sistema por meio de portarias. "A primeira, aliás, foi publicada em agosto de 2002, no meio da crise cambial", lembra Vogt. As portarias, preparadas pela diretoria executiva e aprovadas no Conselho Superior, se constituíram em "um sistema de normas, regras e procedimentos públicos para tornar o sistema mais eficiente", que acabaram por criar


Proposta para 2005 (em R$)

Transferências correntes Transferências do Estado de São Paulo Transferências do governo federal Subtotal

388.653.000

5.000.010 393.653.010

Receitas patrimoniais Receitas imobiliárias Receitas de aplicações financeiras Subtotal ceitas correntes Restituições de auxílios Subtotal Receitas diversas Outras receitas Subtotal Receitas de capital Alienação de bens móveis Subtotal Total geral

uma nova "cultura" entre os funcionários da Fundação, conforme observa o presidente da FAPESP. O novo modelo de gestão prevê também a informatização de todos os procedimentos da Fundação, inclusive os milhares de processos de bolsas, auxílios e programas de pesquisa. "A informatização imprime mais agilidade, permite maior organização e planejamento e ainda garante mais visibilidade às decisões, porque todos os arquivos estarão acessíveis, preservados os níveis de confiabilidade", ele argumenta. O processo de informatização, iniciado no final do ano passado, estará pronto em abril do próximo ano. "Tudo isso tem que ser acompanhado de uma ampla participação dos gerentes e gestores em reuniões sistemáticas e periódicas com o Conselho Técnico e Administrativo, onde as políticas da Fundação são harmonizadas", diz Vogt. Orçamento de 2005 - Outra prova da saúde financeira da Fundação é o seu orçamento para 2005. A receita prevista para o próximo ano, de R$ 487.353.030,00, será 8,89% superior à de 2004. Deste total, R$ 388,6 milhões correspondem

às transferências do governo do Estado de São Paulo. As projeções da Secretaria de Economia e Planejamento foram elaboradas a partir da expectativa de que as taxas de juro recuem para patamares próximos a 14% no ano que vem. Os valores a serem repassados pelo governo estadual eqüivalem à parcela de 1% do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), conforme previsto na Constituição estadual. Mais de 18% do orçamento é formado por receitas patrimoniais e de aplicações financeiras da Fundação, entre outras receitas próprias. As receitas imobiliárias serão 10% maiores em 2005 e as de aplicações financeiras tiveram redução de 15%. O restante da receita da Fundação, pouco mais de 1%, é formado por contribuição do governo federal. No próximo ano serão destinados R$ 462.993.030,00 para o apoio à pesquisa, sendo que deste total R$ 74,3 milhões provenientes de receitas próprias da FAPESP. As bolsas contarão com valores idênticos aos do exercício atual: algo em torno de 39% do orçamento de 2005. Esses valores incluem as bolsas embutidas em auxílios nas modalida-

des Jovem Pesquisador, Mídia Ciência, Capacitação Técnica, entre outros. No cômputo total, às 24 modalidades de auxílio à pesquisa serão destinados R$ 333,9 milhões, valor cerca de 13,36% superior ao do corrente exercício. O orçamento de 2005 prevê um aumento nos recursos destinados aos programas especiais - Jovem Pesquisador, Apoio à Infra-estrutura, Mídia Ciência, Capacitação Técnica, Ensino Público, entre 12 programas -, que contarão com R$ 116 milhões, ante R$ 46,2 milhões do ano passado, e nos recursos destinados aos programas de inovação tecnológica, como, por exemplo, os Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid), Tecnologia da Informação no Desenvolvimento da Internet Avançada (Tidia), FAP Livros e o Sistema Integrado de Hidrometrologia do Estado de São Paulo (Sihesp), entre outros. Os dispêndios de custeio serão financiados com recursos da receita própria. "Esse tem sido um diferencial da FAPESP em relação às demais fundações", diz. "Temos mantido a saúde financeira da instituição e um patrimônio líquido rentável para poder complementar o orçamento", sublinha Engler. • PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 35


• POLÍTICA

CIENTÍFICA

DIVULGAÇÃO

E TECNOLÓGICA

CIENTÍFICA

Nas ondas do rádio Parceria entre Pesquisa FAPESP e a Eldorado AM leva aos ouvintes o melhor da ciência nacional ocê gosta de ler reportagens sobre descobertas científicas recentes e produção tecnológica nacional? Agora também poderá ouviIas. A partir de 11 de dezembro a Rádio Eldorado AM passa a transmitir todos os sábados às 12h30 - com reprise no mesmo dia às 19h30 e, nos domingos, às 20h30 - o programa Pesquisa Brasil, realizado por Pesquisa FAPESP em parceria com a rádio, do mesmo grupo que publica o Jornal da Tarde e O Estado de S. Paulo, e produção do Cotta Hossepian/Escritório de Comunicação. A idéia de realizar um programa com base no conteúdo da revista surgiu no final de 2003, a partir de conversações entre os dirigentes dos dois veículos de comunicação, que compartilham credibilidade e estilos jornalísticos semelhantes. "A Eldorado é uma rádio jornalística que sempre busca excelência em conteúdo e inovação", diz Isabel Borba, diretora executiva da emissora. "Essa será nossa primeira experiência voltada exclusivamente à divulgação de ciência e tecnologia." Apresentado pela jornalista Tatiana Ferraz, o programa contará com a participação de Mariluce Moura, diretora de redação da Pesquisa FAPESP. "Esse é um casamento de dois talentos", comenta Isabel. "Tatiana contribui para o programa com sua habilidade em comunicação e na interação com o ouvinte, enquanto Mariluce agrega sua experiência em divulgação científica." Cada edição de Pesquisa Brasil trará uma entrevista principal com pesquisadores brasileiros a respeito de temas de peso tratados na revista, que afetam diretamente a vida das pessoas. Também destacará um fato científico da semana e

Vj

Pesquisa Brasil: fatos científicos como estudos de borboletas, de Fritz Müller, e o inovador grafite mais resistente

apresentará notícias sobre pesquisas recentes, como a descoberta de alterações genéticas que favorecem fumar menos, e inovações tecnológicas a caminho do mercado, a exemplo dos grafites de lapiseira que se tornaram mais resistentes com a adição de nanocompostos. O ouvinte também terá a oportunidade de relembrar fatos científicos significativos, como a contribuição do Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (Cem) para a física ou o trabalho do naturalista alemão Fritz Müller no sul do Brasil, comentados no quadro Memória, e poderá tirar suas dúvidas na seção Pesquisa-responde. "Gravaremos as perguntas e procuraremos pesquisa-

dores para respondê-Ias", explica Milton Leite, editor chefe da equipe de reportagem da rádio. Com transmissão na freqüência de 700 kHz, a Eldorado AM atinge a população de São Paulo e das cidades a até 100 quilômetros da capital paulista também é possível acompanhar os programas pela Direct TV e pelo site da rádio www.radioeldoradoam.com.br. "Nosso esforço será o de apresentar os assuntos científicos em linguagem acessível ao público leigo", afirma o editor chefe da Eldorado. Afinal, como lembra Isabel: "O fundamental é mostrar para o Brasil a riqueza da produção científica e tecnológica nacional': • PESQUISA FAPESP 106 • DEZEMBRO DE 2004 • 37


POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA

AMBIENTE

0 caoital ism Ações de conservação só fmtificarão com visão de lucro no longo prazo CARLOS FIORAVANTI, DE BANGCOC

s medidas de proteção às paisagens naturais não são contrárias ao capitalismo; opõem-se apenas às for, mas de exploração econômica que buscam o lucro fácil e imediato, garantiram especialistas reunidos no Terceiro Congresso da União Internacional de Conservação da Natureza (IUCN), realizado no final de novembro em Bangcoc, capital da Tailândia. Uma multidão estimada em 5 mil pessoas participou durante três dias de apresentações e debates que analisaram as perspectivas de mudança da situação muitas vezes crítica dos ecossistemas e da biodiversidade no mundo. "Temos de rever algumas escolhas", sugeriu Robert Watson, cientista-chefe do Banco Mundial e um dos coordenadores do Millenium ecosystem assessment, provavelmente o mais amplo estudo sobre a exploração dos recursos naturais no planeta. "Temos de ver se queremos pensar no curto ou no longo prazo, em atender somente às necessidades dos ricos ou também a dos pobres e em destruir ou preservar os recursos naturais." Atualmente, segundo cálculos de Watson, 5% da população do mundo consome 80% dos recursos naturais, na forma de alimentos, energia e água. Se o crescimento econômico no curto prazo significa esquecer as preocupações com a preservação do ambiente, na avaliação de Eduardo Guerrero, coordenador de programa da América do Sul da IUCN, a opção pelo 38 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

desenvolvimento de longo prazo e pela inclusão social implica a necessidade "de conciliar os interesses econômicos e a conservação, promovendo o ordenamento da ocupação do território". Segundo ele, quando se definem as áreas de agricultura intensiva e as que serão protegidas, a paisagem natural deixa de ser um obstáculo à acumulação de riquezas e se torna um espaço essencial para manter os estoques de água, a qualidade do solo e a estabilidade do clima.

De acordo com Guerrero, a América Latina é uma região do mundo em que esses conflitos entre economia e conservação se expressam com mais nitidez, a exemplo da pressão que os plantadores de soja brasileiros exercem para ocupar as áreas de floresta ainda intactas. Essa é uma das razões pelas quais o Brasil aparece na Lista vermelha de espécies ameaçadas, um estudo da IUCN divulgado no início desse congresso, como um dos países com o maior número de mamíferos e aves amea-

Papagaio-de-ouvidoamarelo: já são raros na Colômbia

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çados de extinção, ao lado da Indonésia, da índia e da China. Segundo esse levantamento, 15.589 espécies de plantas e animais - ou uma em cada três variedades de anfíbios, uma em cada quatro de mamíferos e uma em cada oito de aves - correm alto risco de desaparecer em um futuro próximo, como resultado de razões diversas como a perda de hábitats, a poluição e as mudanças climáticas globais. Trata-se de um fenômeno que se agrava com o tempo e a ação humana: os ecologistas estimam que as atuais taxas de extinção sejam de cem a mil vezes maiores que os valores esperados de desaparecimento natural das variedades de plantas e animais.

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encontro realizado no Rio de Janeiro para tratar da contaminação dos rios por mercúrio, do qual participou a Guiana Francesa, que não integra a OTCA.

Áreas protegidas - Há perspectivas de mudanças nos próprios projetos de conservação, que, de modo geral, mundo afora, privilegiam a criação de áreas protegidas e excluem as comunidades locais. Mas os representantes Sapo-arlequim: poucos remanescentes na Costa Rica dos povos indígenas que _, compareceram ao congresso | a da Tailândia querem mudar essa situação. "Deve haver participação dos povos indígenas na definição das estratégias de conservação", comentou Ramon Tomedes Kuyujani, da Organização Indígena Rio Caura, da Venezuela. De pés descalços e Ações articuladas - Nos úlmicrofone na mão, em uma timos anos, no entanto, o tenda de bambu coberta de problema principal dos projetos que procuram manter palha ao lado do edifício principal do centro de conintactos os ambientes naturais não é o financiamento. venções, ele reivindicou: "Não queremos ficar de fora Segundo Guerrero, o que Garoupa: em extinção nas Bahamas e no Caribe da negociação, mas comparfalta é uma articulação mais Garou tilhar o conhecimento que eficaz entre os agentes finanacumulamos em milhares de ciadores, os implementadoanos e conservar a terra para vocês e res dos projetos, as iniciativas multilaprimeiro projeto regional de gestão de para nós". Em seguida, Esther Comac, terais, os governos e a sociedade civil. recursos hídricos, que conta com financiamentos internacionais da ordem da Associação Ixacavaa de Desenvolvi"Há uma enorme quantidade de atores trabalhando de modo descoordenado", de US$ 30 milhões, dos quais US$ 700 mento e Informação Indígena, de Porobservou. Como resultado, instala-se mil já foram liberados. Para ela, o Brato Rico, acrescentou: "Queremos somar uma desconfiança das ações do governo sil, mesmo abrigando 67% da bacia o conhecimento ancestral à pesquisa científica". e uma frustração da sociedade civil em amazônica, não deve deixar de olhar para os países vizinhos. "É muito imMas o diálogo que leve a soluções relação às medidas que deveriam preinovadoras e socialmente mais justas servar as áreas de floresta ocupadas por portante a relação entre os Andes e a atividades econômicas. bacia amazônica para preservação dos necessita também da participação dos representantes das empresas, lembrou Rosalia Arteaga Serrano conhecia recursos hídricos e da biodiversidade." Além da busca de ações integradas e Esther, citando como exemplo o Equaesses abismos ao assumir em maio a sedor, cujas mineradoras não consultam cretaria-geral da Organização do Tratade soluções comuns, outra conquista as comunidades locais nem os planos do de Cooperação Amazônica (OTCA). da OTCA, segundo sua secretária-geral, Mas desde então ela tem procurado faé que os problemas da região deixaram de preservação ambiental antes de avançarem em busca de novos espaços zer as pontes entre financiadores, gode ser tratados apenas pelos altos diriverno e comunidades dos oito países gentes dos ministérios das relações expara explorar. À medida que as convercobertos, em maior ou menor proporteriores, assumiram um caráter mais sas prosseguiam, tornava-se claro que as alianças - entre culturas, setores da ção, pela Floresta Amazônica. "O ser prático e agora, nas reuniões setoriais, humano", disse, referindo-se a um dos há também representantes dos ministésociedade, formas de pensar e mesmo princípios de seu trabalho, "é o princirios do meio ambiente, da defesa, da gerações - deixavam de ser uma opção. Agora são uma necessidade para concipal elemento do meio ambiente". Já no saúde e das obras públicas. Algumas veinício do próximo ano, segundo Rosazes tomam parte ainda representantes liar os interesses imediatos com os de longo prazo. • lia, deve começar a ser implantado o de outros países, como se deu em um PESOUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 39


I CIÊNCIA

Mapa dos futuros assaltos

■ Vacina promissora contra a tuberculose Pela primeira vez em oito décadas surge uma possível nova vacina contra a tuberculose, infecção transmitida pelo ar que afeta os pulmões e, a cada ano, mata 1,8 milhão de pessoas no mundo. Desenvolvido por pesquisadores da Universidade de Oxford, Inglaterra, e do Instituto Pasteur em Bruxelas, Bélgica, o composto apresentou resultados animadores nos testes iniciais em seres humanos: aumentou de 5 a 30 vezes a atividade do sistema de defesa contra a Mycobacterium tuberculosis, bactéria causadora da tuberculose, cada vez mais resistente aos medicamentos disponíveis. Mas é necessário muito trabalho antes que a vacina chegue ao mercado. Primeiro, a nova formulação - à base de um vírus inofensivo à saúde, geneticamente alterado para estimular o sistema imune - tem de comprovar sua eficiência em duas outras baterias de testes em seres humanos, que podem demorar dez anos. Se tudo der certo, a vacina belgo-britânica deverá

Com esta os gatunos não contavam. É possível que em alguns anos a polícia se mantenha um passo à frente dos assaltantes e os esteja aguardando na hora do furto, em vez de perseguilos depois do crime. Pesquisadores ingleses desenvolveram um programa de computador que permite prever as áreas da cidade em que os maganos estão de olho com uma eficiência ao menos 30% superior à dos tradicionais mapas de crime. Kate Bowers, Shane Johnson and Ken Pease, todos da University College, em Londres, constataram que a disseminação do crime segue o padrão de espalhamento das doenças contagiosas. Os crimes ocorrem em grupos e dependem da arquitetura das casas e das rotas de fuga. Enquanto os mapas tradicionais são feitos com

ser usada como reforço, e não em substituição, à BCG, vacina antituberculose criada em 1921. Os pesquisadores compararam a ação do novo composto, o MVA85A, com a da BCG em um estudo com 42 pessoas, separadas em três grupos. O primeiro recebeu MVA85A e o segundo, BCG. O terceiro grupo, formado por pessoas tratadas anteriormente com BCG, tomou uma dose da nova vacina e apresentou os índices de imunidade mais elevados - até 30 vezes maior que nos outros -, mantidos por até seis meses, segundo estudo publicado na Nature Medicine. •

40 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

Áreas visadas: construções com arquitetura semelhante

base no local dos assaltos, o novo método - o mapeamento prospectivo do crime - leva em conta também o tempo passado desde a ocorrência. Testes revelaram que as casas a 400 metros de uma residência furtada, em especial as do mesmo lado da rua, correm mais risco de serem assaltadas nos dois meses seguintes. "Os mapas prospectivos são dinâmicos",

■ Parente distante Paleontólogos espanhóis desenterraram perto de Barcelona, noroeste da Espanha, o

disse Shane Johnson ao London Press Service. "As projeções das áreas visadas são ajustadas constantemente e evoluem para refletir os novos incidentes." No condado de Merseyside, o mapeamento prospectivo previu de 62% a 80% das vezes a região dos assaltos. Já o mapa tradicional anteviu a área dos crimes em 46% dos casos (British Journal of Criminology). •

fóssil de uma nova espécie de grande macaco: o Pierolapithecus catalaunicus ou, numa tradução livre, macaco catalão de Pierola - uma referência à região em que foi encontrado, Eis Hostalets de Pierola, na Catalunha. Descrito em artigo publicado na Science, o exemplar recémidentificado era um macho de quase 55 quilos que viveu há cerca de 13 milhões de anos. A idade do fóssil e suas características levaram os pesquiReconstituição doPierolapithecus: face achatada e punho forte


sadores a crer que o Pierolapithecus seja o mais recente ancestral compartilhado pela espécie humana e pelos grande macacos - gorilas, chimpanzés e orangotangos, entre outros -, que começaram a evoluir separadamente entre 16 milhões e 11 milhões de anos atrás. A coluna vertebral mais rígida, o tronco curto e a articulação do punho mais forte são particularidades que permitiam ao Pierolapithecus subir verticalmente nas árvores. Por outro lado, suas mãos são mais curtas que as de espécies de macacos atuais, uma indicação de que o £ catalaunicus não era capaz de se dependurar em galhos e balançar, característica que pode ter evoluído em tempos diferentes nas distintas espécies de macacos. "Nosso fóssil tem a estrutura básica dos grandes macacos, mas guarda características que não se encontram nas espécies atuais", disse o paleontólogo Salvador Moyà-Solà, descobridor do fóssil, à revista Newscientist. •

Restos de supernova: fonte de partículas de altas energias

■ De onde vêm os raios cósmicos Por quase um século os astrofísicos buscaram provas irrefutáveis da origem dos raios cósmicos, partículas energéticas que incessantemente bombardeiam a Terra a partir do espaço - milhares delas atravessam nossos corpos por dia. Usando dois telescópios especiais instalados

na Namíbia, capazes de detectar a radiação emitida pelos raios cósmicos ao se chocarem com os átomos da atmosfera da Terra, pesquisadores europeus e africanos conseguiram restabelecer o caminho percorrido pelos raios cósmicos até seu ponto

Mimivírus: capaz de fabricar suas próprias proteínas como os organismos vivos

Gigante e com vida Os biólogos costumam classificar os vírus como agentes infecciosos sem vida. Extremamente simples, formados apenas por uma capa de proteína envolvendo seu material genético, os vírus em geral só se reproduzem no interior de outros organismos vivos - unicelulares, como bactérias e protozoários, ou formados por conjuntos de células, a exemplo de plantas e animais. Mas esse conceito terá de ser revisto. A equipe de Didier Raoult, da Universidade do

Mediterrâneo, em Marselha, França, identificou um vírus bastante singular, o Mimivírus. Com 400 nanômetros de diâmetro, é quase duas vezes maior que os maiores vírus conhecidos e do tamanho de bactérias pequenas. Mais importante: o Mimivírus produz 150 de suas proteínas - inclusive algumas que reparam danos no material genético -, uma característica até agora exclusiva dos organismos vivos. Em tese, tal fato permitiria a esse vírus,

de partida: os restos da supernova RX J1713.7-3946, como relata o grupo internacional em artigo na Nature. Distantes pelo menos 3.200 anosluz do sistema solar - algo como 30 quatrilhões de quilômetros -, esses remanescentes são o que sobrou da explosão violentíssima de uma estrela há aproximadamente mil anos e hoje são visíveis no céu do hemisfério Sul na constelação de Escorpião. "Essa é a primeira prova inequívoca de que as supernovas podem produzir quantidades enormes de raios cósmicos galáticos, algo de que suspeitávamos havia tempo, mas não éramos capazes de comprovar", disse Ian Halliday, diretor do Conselho de Pesquisa em Física de Partícula e Astronomia (Pparc), do Reino Unido, órgão financiador da participação britânica no projeto. •

descoberto ao acaso em 1992, sobreviver e se reproduzir sem infectar microorganismos vivos. Embora seja semelhante a uma bactéria, seu ciclo de vida é característico de um vírus, relataram os pesquisadores na descrição do Mimivírus, publicada na Science em 2003. Agora, em outro artigo na

mesma revista, o grupo detalha o resultado do seqüenciamento do genoma desse vírus e da análise de seus 1.262 genes. "A complexidade do genoma do Mimivírus desafia a demarcação de uma fronteira entre os vírus e os parasitas formados por células", escreveram os pesquisadores. •

PESQUISA FAPESP 106 • DEZEMBRO DE 2004 ■ 41


LABORATóRIO

BRASIL

ereías de Abrolhos

Ópera aquática: baleias-jubartes cantam melodias complexas no cortejo às parceiras

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As baleias em geral emitem variadas seqüências de sons, que lembram cantos. Mas as únicas capazes de cantar mesmo são as baleias-jubartes, segundo o zoólogo Jacques Vielliard, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). "Seus sons compõem seqüências melódicas de 20 minutos, em média, quase uma sinfonia", afirma o pesquisador, especialista em bioacústica. Entre julho e novembro de 2000, Vielliard e o biólogo Eduardo Arraut passaram dias em um pequeno barco no arquipélago de Abrolhos, litoral da Bahia, para gravar o canto das baleias-jubartes (Megaptern novaeangliae) - mamíferos marinhos de até 16 metros de comprimento e 50 toneladas, também co-

nhecidos como baleias-corcundas por causa da forma do dorso. As cinco horas de canto registradas são compostas por 20 ciclos de canções, com duração de 6 a 35 minutos cada. No período de reprodução, as jubartes migram das águas frias do Atlântico Sul, onde se alimentam de plâncton, pequenos peixes e crustáceos, para as águas quentes da costa brasileira, em especial Abrolhos. Chamadas de baleines chanteuses pelos franceses, as jubartes fazem cortejos longos e elaborados. Enquanto as fêmeas cuidam dos filhotes, os machos se isolam em grandes círculos, com quase 10 quilômetros de diâmetro. Com a cabeça mergulhano ar, como se plantassem ba-

42 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

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naneira, permanecem horas cantando na expectativa de seduzir uma parceira, a exemplo das mitológicas sereias. Na análise das gravações, publicada nos Anais da Academia Brasileiras de Ciências, Vielliard e Arraut identificaram cinco temas diferentes, compostos por frases de extensão variável e 24 notas distintas - de longas notas graves semelhantes a mugidos (huuummtnm) às mais agudas (fiiiiii) ou curtas (táá-tá-tátá). As populações de baleiasjubartes se distribuem ao redor do planeta, mas cada grupo tem um canto característico, uma espécie de dialeto - o canto dos outros grupos estudados é composto por 16 a 20 notas diferentes. "As jubartes da costa brasileira são

mais musicais: produzem maior variedade de notas e temas", diz Vielliard. Isso torna possível, em teoria, identificar uma jubarte brasileira entre as que se reproduzem na costa da África. Segundo o zoólogo, uma característica distingue as jubartes dos outros animais - os seres humanos inclusive. Quando um indivíduo se une a um novo grupo, os membros do grupo passam a imitar as novidades da canção estrangeira, como se os norte-americanos aprendessem a língua de um visitante brasileiro. Essa característica talvez influencie na escolha do seu parceiro pelas fêmeas, que selecionariam os machos com maior capacidade de aprender e inovar, sugerem os pesquisadores. •


Células polivalentes Capazes de originar diferentes tipos de tecido, as células-tronco vêm se mostrando uma alternativa possível para tratar a insuficiência cardíaca. Testes co 20 pacientes - seis e doze meses após o implante dessas células no coração - revelaram importante melhora na capacidade física, segundo estudo de pesquisadores do Hospital PróCardíaco e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), publicado na Circulation. Diante desse resultado e de pesquisas com ani-

Contra a hepatite e o HIV Muitas pessoas infectadas pelo HIV também adquirem o vírus da hepatite C, igualmente transmitido pelo sangue. Mas, com receio de que o tratamento da hepatite prejudique a eficácia dos remédios anti-HIV, em geral os médicos optam por combater apenas o vírus da Aids. Um estudo internacional recente, publicado no New England Journal of Medicine, desfaz esse mito e renova a esperança de pessoas contaminadas por ambos os vírus - em um terço dos casos, esses indivíduos são hospitalizados ou morrem por causa da hepatie câncer hepático. Os pesquisadores submeteram 860 pessoas - todas contaminadas com os dois vírus e atendidas em 95 centros de 19 países, inclusive do Instituto de Infectologia Emilio Ribas, em São Paulo - a três tratamen-

ü mais, as Dohmann, do Pró-Cardíaco, e de Radovan Borojevic e Rosália Mendez-Otero, da UFRJ, iniciaram em agosto o implante experimental de células-tronco no cérebro de pessoas com isquemia, a

rônios por falta de sangue. A primeira paciente foi Maria Pomaceno, de 54 anos. Sete dias após a cirurgia, imagens da área cerebral afetada mostravam metabolismo onde antes não havia atividade. "Não

Mais um dino brasileiro Santa Maria, no Rio Grande do Sul, é o que se pode chamar de berço dos dinossauros. Três das mais antigas espécies desses répteis foram achadas ali. Agora paleontólogos do Museu Nacional, no Rio, e da Universidade Federal de Santa Maria descrevem na revista Zootaxa uma quarta espécie de dinossauro primitivo, que habitou a

Unaysaurus: parentesco com dinossauro da Alemanha

região há 220 milhões de anos: o Unaysaurus tolentinoi. Com 2,5 metros da cabeça à cauda, o Unaysaurus é a 1 Ia espécie identificada no país e a primeira de um prossaurópode: dinossauro herbívoro com membros anteriores curtos e pescoço e cauda longos. O exemplar brasileiro é mais semelhante ao da Alemanha do que ao da Argentina ou da África, indicação da complexa dispersão desses répteis quando os continentes estavam unidos. •

podemos afirmar que a recuperação se deve às células-tronco, mas não dá para imaginar outro fator", diz Dohmann, que deve repetir o procedimento em 14 pacientes. A equipe do PróCardíaco também avaliará a eficácia do implante dessas células no coração de 300 pessoas vítimas de infarto agudo. Pesquisadores do Instituto Nacional de Cardiologia Laranjeiras analisarão o uso dessa técnica na insuficiência cardíaca. No Incor, ela será testada na isquemia crônica do coração. •

tos contra a hepatite. O primeiro grupo tomou interferon alfa-2a e ribavirina. Os outros dois receberam um dos dois esquemas terapêuticos com o interferon alfa-2a peguilado, que permanece ativo mais tempo no organismo: o interferon peguilado puro ou associado à ribavirina - esta última terapia padrão contra a hepatite C. Os participantes foram tratados por um ano e acompanhados por mais seis meses. Durante esse período, 86% deles também tomavam drogas antiHIV. Resultado: o interferon peguilado - com ribavirina ou puro - foi mais eficiente e eliminou o vírus da hepatite em 40% e 20% dos casos, respectivamente. O interferon comum associado à ribavirina funcionou para 12% dos pacientes. O tratamento não interferiu na ação dos remédios que combatem o vírus da Aids. •

PESOUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 43


CIÊNCIA ECOLOGIA

Natureza sob novo olhar Aos cinco anos, programa Biota consolida dados sobre fauna e flora e investe em educação ambiental

Lançado oficialmente em março de 1999, o programa Biota-FAPESP encerra seu quinto ano de vida com feitos sem paralelo entre iniciativas similares destinadas a mapear a biodiversidade numa grande faixa de terra. Nunca se soube tanto quanto hoje sobre as mais variadas formas de vida encontradas no Estado de São Paulo, um território com 250 mil quilômetros quadrados, um pouco maior do que a Grã-Bretanha - sejam elas microorganismos, plantas ou animais que habitam a terra firme, a água doce ou o mar. Até agora, US$ 10 milhões foram destinados a cerca de 50 projetos do Biota, um programa guarda-chuva que abriga iniciativas das mais diversas e em áreas distintas. Dentro do Biota, há estudos sobre peixes de água doce e animais marinhos; trabalhos sobre a distribuição dos mamíferos das Américas; projetos que tentam descobrir árvores capazes de retirar grandes quantidades do poluente gás carbônico da atmosfera; levantamentos sobre o grau de preservação da vegetação nativa no estado. Um dos filhotes mais recentes do programa é a BIOprospecTA, rede que procura biofármacos escondidos nas matas e rios, cujos primeiros quatro projetos de pesquisa acabam de ser aprovados (veja quadro na página 46). Esses são apenas alguns exemplos da abrangência do Biota. Haveria outros, mas a lista seria enorme. Com a dedicação e a competência dos 500 pesquisadores e 500 alunos de graduação e pós-graduação que participam de seus projetos, o Biota inaugurou uma nova forma de fazer pesquisa na área ambiental. Estimulou o trabalho em conjunto e o intercâmbio de informações, em especial via internet, entre pesquisadores baseados em dezenas de instituições de São Paulo (e de outros estados e até do exterior) que antes tendiam a ficar isolados em seu campo específico de trabalho. "A FAPESP não passou a gastar mais em estudos ambientais com o Biota. Passou a gastar melhor", afirma o biólogo Carlos Alfredo Joly, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ex-coordenador do programa. "Mudamos o paradigma de quem trabalha com história natural. O lema agora é compartilhar dados." 44 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

Biodiversidade paulista: pequi, típico do Cerrado; casal de aranhas-gigante e jacupemba, comuns na Mata Atlântica. No litoral o peixe-borboleta


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O espírito cooperativo norteou as grandes iniciativas do programa. Quando vão a campo procurar amostras de espécies para seus trabalhos, os pesquisadores do Biota utilizam, por exemplo, a mesma metodologia de coleta de organismos e preenchem uma ficha padronizada sobre os exemplares capturados. Em seguida, os dados da coleta são inseridos no Sistema de Informação Ambiental do Biota, o SmBiota, uma ferramenta virtual que contabilizava registros de aproximadamente 56 mil espécies encontradas em São Paulo (44 mil de vida terrestre, 8 mil de água marinha e 4 mil de água doce). Assim, com os cientistas adotando procedimentos comuns, fica mais fácil comparar os registros de distintas coletas feitas por diferentes pesquisadores do programa. "Mesmo pesquisadores de fora do Brasil comentam que não há projeto internacional como o Biota", comenta Maria Cecília Wey de Brito, diretora-geral do Instituto Florestal, de São Paulo. Desde outubro passado, as informações geradas pelo Biota estão integradas à rede SpeciesLink, um banco de dados ainda maior que junta os registros de 38 coleções científicas, 24 de instituições paulistas e 14 do exterior. A própria criação do SpeciesLink - a cargo do Centro de Referência em Informação Ambiental (Cria), em Campinas, que também implantou o SmBiota - só foi possível graças à existência do programa sobre a biodiversidade do estado. O SpeciesLink é um dos projetos do Biota. Ainda faltam informações ambientais sobre algumas partes do estado, como a região oeste, onde restou pouca vegetação e há escassez de pesquisadores. Mas ninguém duvida de que o conhecimento sobre a biodiversidade paulista era um antes do Biota e hoje é outro. "Já atingimos massa crítica suficiente para, sem pararmos os trabalhos de coleta de espécies em campo, começarmos a gerar propostas de políticas públicas na área de conservação ambiental", diz Ricardo Ribeiro Rodrigues, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), de Piracicaba, novo coordenador do Biota. Uma das idéias defendidas é não restringir os esforços de preservação da 46 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

natureza apenas ao interior das áreas públicas ou privadas legalmente constituídas como unidades de conservação. Vários estudos do Biota mostram que manter um parque como uma ilha de biodiversidade enquanto o seu entorno se encontra devastado não é uma política muito eficaz. A destruição das cercanias afeta a vida dentro do oásis de verde. É um efeito semelhante à influência das bordas sobre os destinos de um rio. Não há cursos d'água sadios com margens doentes ou destruídas (e vice-versa). Por falar em meio líquido, ao coordenar a confecção do recémlançado Catálogo de peixes de água doce no Brasil, Naércio Aquino de Menezes, do Museu de Zoologia da Uni-

versidade de São Paulo (USP), ficou espantado com a realidade submersa nas áreas do Cerrado, as savanas do coração do Brasil. "Encontramos muitos resíduos de soja contaminando rios na região central", comenta Menezes, um dos pesquisadores-líderes do Biota. "Tentamos registrar todas as espécies de peixes que encontramos antes que elas acabem." Rios sufocados - O cidadão comum tende a associar a poluição dos rios e lagos basicamente à existência de atividades industriais e grandes cidades em sua vizinhança. A imundície do Tietê em seu trecho que corta a capital paulista é o exemplo mais gritante da ação dele-


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Terra, água e ar: a copa do jequitibá, a tartaruga-verde; uma visitante da costa paulista, e a joaninha se alimentando de pólen de margarida

PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 47


teria dos dejetos humanos e fabris sobre um rio. Essa é parte da tragédia aquática, mas não toda ela. O avanço das plantações e pastagens também sufoca muitos rios e ribeirões pelo interior do estado e do Brasil, além de promover diretamente o desmatamento de áreas de vegetação nativa. Uma das boas notícias oriundas de um trabalho do Biota, coordenado por pesquisadores do Instituto Florestal, foi que, neste início de século, a área com vegetação natural em São Paulo aumentou 3,8% (1,2 quilômetro quadrado) em relação à existente há dez anos. O crescimento, ainda tímido, concentrou-se na faixa de Mata Atlântica, o ecossistema mais extenso do estado. No norte e no noroeste de São Paulo, onde há fragmentos de Cerrado que respondem por somente 1% da vegetação nativa paulista, o desmatamento ainda viceja. Nessas regiões, diferentemente do que ocorre nas savanas do

Hora do lanche: cambacica se alimenta em flor de bromélia. Ao lado; iguana e borboleta Agraulis

Brasil central, a expansão agrícola é ditada pelo cultivo da cana-de-açúcar, e não da soja. Avanços na questão ecológica, como o pequeno crescimento na área paulista de Mata Atlântica, decorrem da entrada em vigor de uma legislação con-

servacionista mais severa e da adoção de medidas concretas para reduzir as agressões à natureza. E, acreditam os pesquisadores, sobretudo da tomada de consciência pela população da necessidade de preservar o ambiente. Daqui para a frente, um dos pontos a serem mais enfatizados pelo Biota é a questão da educação ambiental. Como se pode transformar e difundir o conhecimento técnico gerado pelos cientistas do programa em informação intelegível para mestres e professores, que têm a função de repassar esses conceitos para as novas gerações de cidadãos? Estimulando iniciativas específicas de educação ambiental dentro do Biota. "Hoje temos três projetos com esse perfil", afirma Rodrigues, o novo timoneiro do programa.

Remédios da biodiversidade Desde o seu início, o Biota apoia pesquisas voltadas ao desenvolvimento de fármacos a partir de extratos vegetais ou moléculas de plantas e animais encontrados em São Paulo. Em 1999, um dos primeiros projetos do programa, coordenado por Vanderlan da Silva Bolzani, do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Araraquara, tinha como objetivo procurar por drogas em meio à biodiversidade do Cerrado e da Mata Atlântica. O interesse pelo tema cresceu tanto que, em junho de 2003, foi criada uma rede para abrigar iniciativas com esse perfil dentro do Biota. Inicialmente denominada RedeBio, a Rede Biota de Bioprospecção e Bioensaios

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passou a se chamar BIOpropescTA. Quase 60 pré-projetos de pesquisa em bioprospecção foram submetidos à FAPESP. Por serem semelhantes, algumas propostas foram redimensionadas ou fundidas e geraram 32 projetos para a BIOprospecTA, hoje subprograma do Biota. Quatro desses projetos acabam de ser aprovados - os demais estão sob análise. As propostas aceitas são de pesquisadores de distintas instituições. João Valdir Comasseto, do Instituto de Química da USP, pretende estudar o metabolismo de bactérias de ecossistemas brasileiros. Luis Eduardo Soares Netto, do Instituto de Biociências da USP, vai procurar inibidores de proteínas antioxidantes na Xyllella

fastidiosa, a bactéria que causa nos laranjais a clorose variegada dos citros, o popular amarelinho. O trabalho de Monamaris Marques Borges, do Instituto Butantan, terá como objetivo a implantação de ensaios in vitro para identificar produtos com atividade antimicrobacteriana. Mario Sérgio Palma, da Unesp de Rio Claro, vai procurar na fauna de artrópodes paulista compostos úteis para o desenho de novas drogas e pesticidas seletivos. "A maioria dos fármacos no mercado foi inspirada em moléculas extraídas de fontes naturais", diz Vanderlan, uma das coordenadoras da BIOprospecTA. "Com a implantação da rede, queremos dominar todas as etapas do processo de bioprospecção."


CIÊNCIA

Faxina arterial Composto desenvolvido no Rio Grande do Sul dissolve placas que obstruem vasos sangüíneos

DlNORAH ERENO E RICARDO ZORZETTO

s vezes nossas artérias lembram canos velhos de metal, que com o tempo enferrujam e acumulam detritos até entupirem por complei to. É assim ao menos com a mais freqüen_k^ te das doenças que danificam os vasos sangüíneos, a aterosclerose, associada a 17 milhões de mortes no mundo por ano. Marcada pela formação de placas de gordura que impedem a passagem do sangue, a aterosclerose em geral é fatal quando afeta as artérias do coração ou do cérebro, órgãos que resistem apenas poucos minutos sem oxigênio. Parece paradoxal, mas pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) descobriram que um tipo de hormônio produzido pelo organismo com estrutura similar à das gorduras, as prostaglandinas, pode auxiliar no tratamento e até mesmo na prevenção desse problema. Utilizando prostaglandinas, a equipe do bioquímico Paulo Ivo Homem de Bittencourt Júnior produziu um composto que, em experimentos com camundongos, mostrou-se capaz de dissolver as placas de gordura que se acumulam nas artérias - os ateromas, como dizem os médicos. Essa formulação, que recebeu o nome provisório de LipoCardium, também impediu a formação de placas, conseqüência do consumo de alimentos gordurosos, do tabagismo e do sedentarismo. Caso se demonstre a segurança e a eficácia desse composto nos futuros testes com coelhos, cães e seres humanos, é possível que em até dez anos chegue às farmácias um PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 49


medicamento novo para evitar a formação das placas que impedem a circulação normal do sangue. Fabricadas em pequeníssimas quantidades no interior das células, as prostaglandinas formam uma vasta família de moléculas pequenas - cada uma delas composta por uma seqüência de apenas 20 átomos de carbono -, com ações distintas nas diferentes partes do corpo, que vão do controle da pressão arterial e da ativação do centro cerebral da dor à indução ao parto. Entre as 36 prostaglandinas naturais conhecidas, o pesquisador da UFRGS selecionou as ciclopentenônicas (CP-PGs, na sigla em inglês), em cuja estrutura cinco dos 20 átomos de carbono se unem formando um anel. Não foi uma escolha ao acaso. Durante seu doutoramento, orientado pelo bioquímico Rui Curi, da Universidade de São Paulo, Homem de Bittencourt passou um ano no laboratório da bióloga Maria Gabriella Santoro, da Universidade de Roma, Itália. Foi ela que descobriu uma propriedade fundamental dessas prostaglandinas: uma vez no interior das células, essas moléculas impedem dois fenômenos ligados ao surgimento do ateroma, a inflamação e a multiplicação celular. É mais fácil entender o valor desse composto com uma rápida explicação de como se formam essas placas de gordura nas paredes das artérias. A hipertensão arterial crônica, a ingestão de alimentos ricos em gorduras ou o consumo de cigarros, por exemplo, produzem lesões imperceptíveis no endotélio, a camada de células que reveste o interior das veias e artérias. É um efeito restrito, mas que ecoa pelo organismo. Nas células danificadas, um sinal químico induz a produção de proteínas típicas da inflamação, que, expostas na superfície celular, servem como um cartaz luminoso, indicando ao sistema de defesa: "Há problemas por aqui!". Células de defesa se deslocam até a região afetada dos vasos sangüíneos e destroem as células doentes. Mas o sinal químico que dispara a produção dessas proteínas também indica às células do endotélio que elas devem se multiplicar. As novas células do revestimento das artérias passam então 50 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PES0.UISA FAPESP 106

a envolver as células de Acesso defesa, que não param Lipossomos - cápsulas de gordura recheadas de chegar à região do de uma espécie de hormônio, as prostaglandinas ferimento. Não fosse o alcançam a região da artéria bloqueada bastante, as moléculas pela placa de gordura e recoberta de gordura em excesso pelas células do endotélio, camada que reveste no sangue - e não aprointernamente os vasos sangüíneos veitadas pelo organismo na produção de energia - aderem a esse bolo celular que cresce para o interior das veias e artérias. Eis o ateroma, que não é formado Lipossomo apenas por moléculas de gordura como normalmente se imagina. Há também átomos eletricamente carregados (íons) de cálcio, que se depositam sobre o ateroma e tornam a artéria menos elástica e Células mais propensa ao romendoteliais pimento. Com as prostaglanPlaca dinas ciclopentenônide gordura cas, imaginou Homem de Bittencourt, em tese seria possível travar o problemas intestinais, além de um ingatilho que dispara a formação do atetenso mal-estar geral. "A solução foi emroma e eliminar o mal antes de seu balar as prostaglandinas em lipossoaparecimento. É que essas moléculas mos, cápsulas de gordura produzidas se ligam a uma proteína-chave no proartificialmente, com uma estrutura secesso de multiplicação celular e inflamelhante à de uma bola de futebol", exmação, a enzima I-kappaB quinase ou plica Homem de Bittencourt. Mas messimplesmente IKK. Como um goleiro mo o uso de lipossomos não garantia a que intercepta a bola a caminho do ação das prostaglandinas no local certo. gol, as prostaglandinas se atracam à Como essas cápsulas gordurosas apreIKK e impedem o envio do sinal para sentam a mesma carga elétrica que as as células multiplicarem e o sistema de células do endotélio, seriam repelidas defesa entrar em ação. Há um efeito pelas paredes das artérias e permanecebenéfico extra: as CP-PGs auxiliam no riam no sangue até as células de defereparo de proteínas danificadas pela sa as consumirem. Ainda era preciso lesão na célula. encontrar um modo de conduzir as cápsulas ao local da lesão. Embalagem segura - Era a escolha perA equipe da UFRGS só encontrou a feita. Mas faltava encontrar uma forma saída quando notou uma peculiaride levar as prostaglandinas ciclopendade das células danificadas do endotenônicas até o ateroma. É que, embora télio: elas apresentam em sua superfície sejam naturalmente produzidas pelo uma proteína que não é encontrada em organismo, essas moléculas não podem nenhum outro lugar do corpo. São as ser injetadas diretamente no sangue. Por moléculas de adesão vascular, o tal carcausa de sua potente ação antiproliferataz luminoso que atrai a atenção das tiva, se lançadas na circulação sangüícélulas de defesa e ao qual elas se linea, essas prostaglandinas causariam os gam. O pesquisador gaúcho teve então mesmos efeitos indesejados da quimioa idéia de acrescentar aos lipossomos terapia convencional com medicamencarregados de prostaglandinas uma tos anticâncer, como queda de cabelo,


Cavalo-de-tróia Anticorpos

Limpeza _^ Como um cavalo-de-tróia; os lipossomos liberam as © prostaglandinas no interior das células endoteliais. Assim, bloqueiam a reprodução dessas células e permitem que o sistema imune elimine a gordura

Adesão

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Revestidos de anticorpos, os lipossomos se ligam a proteínas chamadas moléculas de adesão na superfície das células que se multiplicaram sobre a gordura acumulada

proteína que se encaixa perfeitamente às moléculas de adesão vascular. Ação pontual - Resultado: os lipossomos mergulhados no sangue enrascam nas moléculas de adesão ao passarem pelo ferimento e, como o cavalo recheado de guerreiros que os gregos ofertaram aos troianos, são absorvidos pelas células avariadas. Assim, as prostaglandinas atuam apenas no ponto desejado, sem gerar os efeitos indesejáveis. Eis a principal diferença entre o composto desenvolvido pelo grupo do Rio Grande do Sul e os outros medicamentos usados no combate à aterosclerose - as estatinas, por exemplo, atuam de outra forma e reduzem o risco de aterosclerose porque inibem a produção de colesterol em especial no fígado. "Além de usado para tratar a aterosclerose, o composto à base de prostaglandinas talvez possa prevenir a formação dos ateromas nos casos em que há histórico familiar de colesterol alto", diz Homem de Bittencourt, que já obteve o registro de patente da nova formulação no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI).

Na primeira bateria de testes, o composto da UFRGS mostrou resultados animadores. Experimentos com camundongos geneticamente alterados para desenvolver aterosclerose e alimentados por quatro meses com uma dieta rica em gorduras mostraram que o composto à base de prostaglandinas eliminou as placas de ateroma após duas semanas de uso diário os animais que não receberam a formulação, em geral, morreram em 15 0 PROJETO Prostaglandinas ciclopentenônicas no sistema cardiovascular: potencial terapêutico na hipertensão arterial e na aterosclerose por citoproteção e redirecionamento do metabolismo lipídico COORDENADOR PAULO IVO HOMEM DE BITTENCOURT JúNIOR-

UFRGS

INVESTIMENTO

R$497.000,00 (CNPq) R$34.250,00 (UFRGS) R$61.050 (Fapergs)

dias. Segundo o pesquisador, esse resultado - claro, guardadas as devidas proporções - corresponderia ao caso de uma pessoa com 80% das artérias do coração bloqueadas que se curaria da doença após um ano e meio de tratamento com o composto. De acordo com Homem de Bittencourt, uma indústria farmacêutica nacional, cujo nome se mantém em sigilo, atualmente negocia com o escritório de transferência de tecnologia da UFRGS para tornar o composto à base de prostaglandinas de fato em um novo medicamento. É uma parceria fundamental, uma vez que os testes necessários para comprovar a eficácia e a segurança do composto devem custar cerca de R$ 5 milhões, quase oito vezes mais do que já se gastou. Dificilmente as instituições que apoiaram essa pesquisa até agora - o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs) e a própria UFRGS - teriam condições de financiar, sozinhas, a etapa de desenvolvimento desse limpador de artérias. • PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 51


■ CIÊNCIA

À prova

de

luz

Enzima reduz a perda de células saudáveis expostas à radiação ultravioleta

ALESSANDRA PEREIRA

uem teve filhos ou foi criança na década de 1980 | certamente se lembra de um jogo de videogame famoso na época, o PacMan. O personagem, uma Ia amarela, saía comendo as pílulas que encontrava pela frente em um labirinto cheio de fantasmas. Vencia o jogo quem conseguisse papar mais pílulas e fugir dos monstrinhos. No corpo humano acontece algo semelhante quando alguns genes estão alterados. As células velhas ou com material genético danificado se desintegram e são engolidas por células vizinhas ou do sistema imunológico. Esse mecanismo de morte celular programada, ou apoptose, é um processo normal de renovação das células. Mas, quando ocorre de maneira descontrolada, causa danos ao organismo - tumores, inclusive. É assim com os portadores de xeroderma pigmentosum (XP), uma rara doença genética que afeta um em cada 250 mil norte-americanos e, estima-se, quase mil brasileiros - embora apenas cerca de cem casos tenham sido identificados no país. Por causa de alterações no DNA, as células da pele dessas pessoas apresentam uma forma defeituosa de certo tipo de proteína - as enzimas de reparo, que detectam e consertam as alterações na estrutura do 52 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

DNA causadas pelos raios ultravioleta, após reiteradas exposições ao sol. Como essas células perdem a capacidade de corrigir esses defeitos, mensageiros químicos dão a ordem de suicídio celular, evitando a transmissão de genes defeituosos aos descendentes. Os portadores dessa doença nascem com alta sensibilidade à luz solar - por isso são obrigados a usar cremes protetores, óculos escuros e roupas compridas - e correm o risco 2 mil vezes maior de ter câncer de pele do que a população em geral, porque algumas das células que deveriam morrer eventualmente não seguem as ordens e não se suicidam. Pois um outro tipo de luz ajudou pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP) a consertar lesões no DNA de células retiradas da pele de pessoas com xeroderma pigmentosum e a reduzir pela metade a morte de células saudáveis expostas à radiação ultravioleta, criando uma técnica que poderá vir a ser empregada no tratamento de outros tipos de câncer de pele. Usando um adenovírus, a equipe de Carlos Menck introduziu, pela primeira vez com sucesso, o gene da enzima fotoliase em células retiradas de pessoas com xeroderma. Ativada pela luz visível e encontrada em bactérias, vegetais e animais, mas não em mamíferos placentários como os se-

res humanos, essa enzima restaurou em menos de uma hora as lesões mais numerosas, chamadas de dímeros de pirimidina-ciclobutano (CPD), em geral corrigidas muito lentamente. O sistema natural de reparo em humanos - as proteínas XP - consegue consertar em quatro horas apenas parte dessas lesões geradas pelos raios ultravioleta. Terapia gênica - "Demos às células a capacidade extra de reparar lesões. As que já tinham sistemas de reparo conseguiram consertar melhor o DNA. Nas que apresentavam defeito a enzima fotoliase [extraída] de canguru resolveu o problema das lesões CPD", atesta Menck. Em julho, ele e Vanessa Chiganças publicaram um artigo sobre o estudo no Journal ofCell Science, em colaboração com a equipe de Alain Sarasin, do Instituto Gustave-Roussy, na França. Os resultados permitem entender melhor como funciona o sistema de reparo em células humanas e as conseqüências das lesões causadas pela luz ultravioleta. E, embora ainda faltem várias etapas - testes em animais e ensaios clínicos com humanos -, os dados desse trabalho abrem perspectivas para a terapia gênica. "Se forem bem-sucedidos, será possível pensar em usar no futuro a fotoliase como prevenção para qualquer câncer de pele", afirma Vanessa.


Para verificar se a fotoliase era capaz de pôr em ordem o DNA das células de portadores de xeroderma - os pesquisadores mostraram em 2000 ser possível reparar com essa proteína o material genético de células humanas normais -, a equipe da USP usou um vírus inofensivo à saúde como uma espécie de carteiro celular, que carregou o gene capaz de reparar o defeito e uma proteína verde fluorescente de água-viva, que permitiu mapear o caminho percorrido pelo gene da fotoliase. Depois expôs as células à radiação ultravioleta. Algumas delas também foram submetidas à luz visível para ativar a enzima. Vanessa dividiu as células em quatro grupos: o primeiro, no qual foi implantado o gene da fotoliase, foi mantido na luz branca após a exposição aos raios ultravioleta; o segundo recebeu a fotoliase, mas permaneceu no escuro. No terceiro e no quarto, também expostos à radiação, o gene não foi implantado e um dos grupos permaneceu no escuro e outro, na luz. A taxa de mortalidade entre as células expostas à luz ultravioleta, que receberam ou não a enzima fotoliase e permaneceram no escuro, variou de 55% a 68%. A morte das células com o gene de reparo XPA defeituoso, nas quais a fotoliase foi implantada e que foram mantidas na presença de luz, caiu pela metade: entre

25% e 29%. "Eliminei a lesão, que é um dos sinais de apoptose das células, e com isso preveni a indução da morte delas", explica Vanessa. Dados preliminares de outro estudo da equipe de Menck apontam uma forma de proteger ainda mais as células da pele dos portadores de xeroderma pigmentosum. Está em teste um adenovírus contendo um novo gene da fotoliase, dessa vez extraído da planta Arabidopsis thaliana, para corrigir um outro tipo de lesão chamada fotoprodutos 6-4. Essa falha genética sempre foi considerada inofensiva por aparecer em menor quantidade e ser reparada rapidamente. Mas parece que o prejuízo que pode causar às células era subestimado. "Embora surja numa proporção menor, essa lesão é tão importante 0 PROJETO Genes de reparo de DNA: análise funcional e evolução MODALIDADE Projeto Temático COORDENADOR CARLOS MENCK-

ICB/USP

INVESTIMENTO R$ 1.059.975,46 (FAPESP)

Poder extra: fotoliase ajuda a reparar danos genéticos causados por excesso de sol

quanto a outra para induzir a morte celular", afirma Keronninn de Lima, autora do estudo em andamento. Ela expôs as células à radiação ultravioleta e inseriu o novo gene de reparo, específico para esse tipo de lesão. Resultado: também houve o aumento da sobrevivência das células. A equipe da USP também vem obtendo sucesso com o uso do gene XPD, que integra o sistema natural de reparo em humanos. Por meio de um adenovírus, uma versão normal desse gene foi introduzida em células de pele retiradas de pessoas com xeroderma e outras duas doenças causadas por defeitos nas proteínas que consertam as alterações no DNA geradas pelos raios ultravioleta - a síndrome de Cockayne e a tricotiodistrofia. "Enquanto nenhuma das células expostas à radiação, mas que receberam o gene de reparo, morreu, apenas 10% das células sem a proteína XPD sobreviveram", diz Melissa Armelini, cujo trabalho deve ser publicado em breve na Câncer Gene Therapy. É como se o jogo Pac-Man se invertesse e as pílulas arranjassem uma maneira de não serem engolidas pela bola amarela. • PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 53


CIÊNCIA

FÍSICA ESTATÍSTICA

A pequena pátria em chuteiras Apenas 3 graus de separação se interpõem entre todos os jogadores brasileiros, craques ou pernetas MARCOS PIVETTA

perna-de-pau liga para o celular do craque. — Alô, é o Romário? Aqui é o Cláudio Clara-deOvo — Cláudio o quê? — Clara-de-Ovo, do Juventude. — Não te conheço. Vou desligar. O futevôlei vai começar. — Não, peraí. Sou amigo do Rafa-TrêsEm-Um, que jogou no Criciúma com o Fritz-Dogue-Alemão, que é amigo do Caiçara, que foi seu parceiro no Fluminense. — Ah, o Caiçara é meu peixe. O diálogo acima e os personagens, com exceção de Romário, são fictícios. Mas um trabalho feito por pesquisadores do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC/USP) mostra que o mundo do futebol profissional no Brasil, onde há talentos e nulidades reais, é pequeno, um pouquinho menor do que, por exemplo, o universo dos atores de Hollywood. Na rede de relações interpessoais que conectam a elite nacional de boleiros, qualquer atleta, famoso ou desconhecido, consegue estabelecer contato com outro colega de profissão com a ajuda de apenas outros três jogadores ou ex-jogadores. Estudos semelhantes realizados na meca do cinema norte-americano sugerem que, em média, a distância social entre dois atores é de 3,7 graus de separação, ligeiramente maior do que o nível de afastamento entre dois jogadores da elite do futebol nacional, calculado em 3,3 graus. 54 • DEZEMBRO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 106

Segundo um trabalho clássico, feito em 1967 pelo psicólogo social Stanley Milgram, da Universidade Harvard, meros 6 graus de separação - e não mais do que isso - interpõem-se entre todas as pessoas do mundo. Você e o papa, Bush e Bin Laden, Brad Pitt e sua irmã. Dá-se o nome de efeito mundo pequeno a essa proximidade exagerada entre os 6,4 bilhões de habitantes do planeta. Um tipo de proximidade que deriva mais da rede de amigos e conhecidos das pessoas do que das barreiras geográficas. "Achávamos que a distância entre os jogadores brasileiros seria menor que 6 graus, mas não imaginávamos que seria a metade", comenta o físico (e corintiano) Roberto Nicolau Onody, principal autor do estudo, publicado em setembro na revista Physical Review E. Com a ajuda do também físico Paulo Alexandre de Castro, seu aluno de doutorado e co-autor do artigo científico, Onody coletou e analisou dados de todos os atletas e clubes que, entre 1971 e 2002, participaram ao menos uma vez da série principal do campeonato brasileiro. Para conseguir essa montanha de informações brutas, os pesquisadores recorreram a um CD-ROM editado em 2003 pela revista Placar com a história de 32 edições do torneio. "Tentamos obter esse material na internet, mas nem na página da Confedera-



ção Brasileira de Futebol (CBF) achamos o que queríamos", conta Castro, torcedor do Santos. No período estudado, 13.411 jogadores e 127 equipes disputaram o campeonato. O artigo da dupla Onody-Castro enfoca a teia de relações sociais existentes entre os esportistas e entre esses e suas (ex-)agremiações. Eles trabalharam o assunto sob a ótica das redes complexas, um campo de estudo da física estatística que vem sendo utilizado para analisar a arquitetura organizacional de sistemas tão díspares como as reações bioquímicas envolvidas no metabolismo celular, os contatos sexuais entre pessoas e as conexões entre páginas da web. Uma rede é um conjunto de vértices, também chamados de nós ou pontos, interligados. Uma lei costuma reger a conexão entre esses nós. Quando todos os vértices de um sistema apresentam sempre o mesmo número de conexões, como a estrutura de um cristal, há uma rede homogênea ou cristalina. Se alguns vértices de um sistema exibem muitas ligações enquanto a maioria dos nós tem poucas, existe um sistema complexo. Esse é o caso da rede de jogadores profissionais do Brasil. No mundo do futebol, os físicos estudaram as inter- relações entre dois tipos de vértices, os jogadores e os clubes da primeira divisão nacional, com ênfase na primeira forma de nó. O que faz um atleta se ligar, se conectar, a outro esportista? Terem disputado a divisão de elite do campeonato brasileiro pelo mesmo mesmo time numa mesma temporada. Não é necessário que tenham jogado lado a lado numa partida, mas devem ter feito parte do elenco do mesmo time num determinado ano. Essa foi a norma arbitrariamente usada pelos pesquisadores para encontrar conexões entre os jogadores. Segundo as regras propostas pelos pesquisadores, atletas que deixaram clubes da primeira divisão brasileira por qualquer motivo - transferiram-se para equipes das divisões inferiores, para times do exterior ou simplesmente penduraram as chuteiras - continuam fazendo parte da rede, mas não estabelecem novas conexões até que, eventualmente, retornem à elite do futebol nacional. Trabalhos si56 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

milares feitos na indústria cinematográfica estabeleceram uma ligação entre dois atores quando ambos atuaram num mesmo filme. Portanto, boleiros que disputaram várias edições do torneio por uma equipe ou que trocaram constantemente de clube tendem a exibir muitas conexões. "Podem até não ter feito amizade com seus companheiros de equipe, mas certamente mantiveram uma relação social com eles enquanto jogaram lado a lado", pondera Onody. A rede formada pela elite dos jogadores brasileiros é complexa porque muitos (ex-)atletas têm poucas ligações enquanto poucos têm muitas. Em 2002, cada esportista inserido no sistema tinha estabelecido, em média, conexões com outros 47 jogadores. Em outras palavras, tinha atuado ao lado dessa quantidade de boleiros. Como toda média, o número esconde os extremos. O membro da rede com mais conexões é o excentroavante Dada Maravilha, um folclórico artilheiro que encerrou a longa carreira em meados da década de 1980. Dada entrou nos gramados com 305 colegas de profissão. "Foi um nômade do futebol", afirma Onody. Em mais de duas décadas de carreira, o atacante defendeu 11 clubes da primeira divisão, outro recorde pertencente ao rei Dada. No outro extremo, entre os menos interligados da rede, aparecem dez obscuros jogadores, cuja trajetória foi curta, pelo menos em equipes da primeira divisão. Um deles é o ex-goleiro Vílson,

que disputou uma partida pela equipe capixaba do Colatina em 1979 e se conectou com outros 14 jogadores. Carreira mais longa - Um dado do estudo sugere que o tempo de duração da carreira dos jogadores de futebol aumentou nas últimas três décadas. Isso porque em 1975 cada membro da rede tinha jogado - tinha conexões - com outros 39 colegas de profissão, quantidade 8% menor do que a verificada em 2002. "Ou a carreira dos jogadores está se tornando mais longa, ou eles estão trocando de times com mais freqüência", comenta Castro. Como a maioria dos atletas que passaram pela primeira divisão do futebol nacional não chegou a atuar por duas equipes, a primeira hipótese parece mais razoável. Os físicos perceberam que, apesar de os esportistas exibirem mais conexões hoje do que no passado, a rede de jogadores de futebol torna-se cada vez mais elitista. Atletas muito populares, com um número elevado de conexões, tendem cada vez mais a se relacionar com jogadores de perfil semelhante, enquanto os que apresentam baixa conectividade transitam basicamente entre colegas igualmente pouco conhecidos. "Jogadores de clubes grandes tendem a se transferir para outras equipes grandes e os de times pequenos mudam preferencialmente para agremiações modestas", resume Onody. Ou seja, a distância média entre todos os jogadores é pequena, de apenas 3 graus


passado, fica mais fácil para o atleta continuar jogando na divisão de elite", comenta Onody. O boleiro adquire uma certa estabilidade na ocupação, o que lhe garantirá ofertas de emprego.

ou passos, mas tal proximidade não é suficiente para acabar com a existência de castas, de grupos bem definidos no mundo da bola. Além de esmiuçar matematicamente as relações sociais entre os jogadores de futebol, os físicos produziram reve-

lações surpreendentes em outros campos do mundo da bola. Descobriram, por exemplo, que um boleiro profissional se torna razoavelmente conhecido — e, assim, garante sua empregabilidade nas melhores equipes do país - depois de ter participado de um certo número de jogos. Quantas partidas são necessárias para garantir o futuro de um atleta nos gramados do Brasil? Quarenta jogos, por qualquer clube, grande ou pequeno. "Se esse número crítico é ultra-

Poucos fazem gols - Não faltam estatísticas curiosas no estudo dos físicos. No período analisado, o ex-atacante Tarciso, que atuou no Grêmio nas décadas de 1970 e 1980 e chegou à seleção brasileira, foi o atleta que mais entrou em campo: esteve em 336 partidas de 18 campeonatos, envergando a camisa do tricolor gaúcho em 13 edições. A lista dos atletas que disputaram apenas uma partida na primeira divisão é enorme, composta de 2.160 anônimos boleiros, pouco mais de 16% dos que atuaram no campeonato entre 1971 e 2002. Gols é outro tema que rende números interessantes. Usando esse quesito como parâmetro de comparação, dois grupos de jogadores despontam na rede montada por Onody-Castro: os que marcaram menos de dez tentos, a imensa maioria, e os que fizeram mais. No mínimo, dois terços dos atletas de futebol jogam na defesa ou no meio de campo. Têm, portanto, menos probabilidade de estufar a rede dos adversários. Ainda assim, é surpreendente a escassez de artilheiros. No campeonato brasileiro, marcar gols é um privilégio para poucos. Quase 65% dos jogadores 8.709 para ser mais preciso - nunca fizeram um gol e cerca de 30% - 4.089 - assinalaram apenas entre um e dez tentos em sua carreira. O restante, 618 esportistas, podem se considerar íntimos da pelota: balançaram a rede 11 ou mais vezes. "A chance de um jogador qualquer, escolhido ao acaso na rede, ter feito 13 gols é dez vezes maior do que a de ter marcado 36", diz Castro. Contabilizando os dados das 32 edições analisadas do campeonato, o ex-atacante Roberto Dinamite é o maior goleador da competição. Marcou 186 gols em 20 campeonatos disputados pelo Vasco da Gama, do Rio de Janeiro, e um pela Portuguesa, de São Paulo. Quer dizer, segundo o estudo da USP, os jogadores não estão distantes uns dos outros, mas o gol está bem longe da maioria deles. • PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 57


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USP

A conquista do Leste Na última reportagem da série sobre os 70 anos da Universidade de São Paulo, Pesquisa FAP ESP mostra o inovador projeto pedagógico que, a partir de 2005, terá espaço num novo campus da capital paulista FABRíCIO MARQUES

Universidade de São Paulo (USP) sempre se preocupou em renovar os compromissos de excelência acadêmica e de expansão do ensino público estabelecidos em sua fundação, era 1934. No início buscou agrupar no campus na Zona Oeste de São Paulo, na antiga fazenda Butantan, todos os seus institutos e faculdades, numa estratégia para assegurar a qualidade homogênea - só as tradicionais faculdades de Medicina e de Direito, que já existiam antes da fundação da USP, resistiram em seus endereços originais. Já consolidada, decidiu deitar raízes também em outras regiões do estado. Hoje possui campinos municípios de Bauru, Piracicaba, Pirassununga, Ribeirão Preto e São Carlos. Pois agora, aos 70 anos de idade, a universidade dá mais um salto ambicioso. Em março de 2005 começam as aulas da USP Leste, um novo campus que está sendo erguido às margens do rio Tietê e da rodovia Ayrton Senna, que liga São Paulo a Jacareí. Com cursos diferentes dos oferecidos na Cidade 60 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

Universitária e um projeto acadêmico inovador, em que as fronteiras entre as carreiras são mais flexíveis, a instituição também é um marco na Zona Leste de São Paulo, região habitada por 4,5 milhões de pessoas, escassamente assistida pelo ensino superior público. No vestibular de 2005, a Escola de Artes, Ciências e Humanidades nome ainda provisório da nova instituição - vai oferecer 1.020 vagas nos cursos de Sistemas de Informação, Ciências da Natureza (Licenciatura), Obstetrícia, Gerontologia, Ciências da Atividade Física, Marketing, Lazer e Turismo, Gestão de Políticas Públicas, Gestão Ambiental e Tecnologia Têxtil. Os alunos serão divididos em turmas de 60 pessoas, distribuídas pelos períodos matutino, vespertino e noturno. No canteiro de obras, operários estão concluindo o primeiro prédio, que abrigará os alunos do ciclo básico, primeiro ano comum a todas as carreiras. "Trata-se da obra de maior repercussão durante as comemorações dos 70 anos da USP", disse o reitor da USP, Adolpho José Melfi. O projeto demorou 30 meses para amadurecer e envolveu o trabalho de mais de uma centena de docentes, sob a coordenação-geral de Celso de Barros Gomes, che-


A concepção artística mostra como o campusda USP Leste estará em 2006, quando todos os prédios estiverem construídos

fe de gabinete da Reitoria, e de Myriam Krasilchick, professora da Faculdade de Educação e presidente da Comissão Central da USP Leste no tocante ao projeto acadêmico. O processo de escolha dos novos cursos envolveu consultas a estudantes de escolas públicas e privadas de São Paulo. Quase seis mil alunos foram convidados a opinar. A consulta mostrou a preferência por profissões tradicionais, como medicina e engenharia, mas outras carreiras puderam ser identificadas, como informática, marketing e esportes. A definição, contudo, foi moldada por uma limitação jurídica. O Estatuto da USP proíbe que haja duplicidade de cursos numa mesma cidade. Ou seja, nenhuma carreira na Zona Oeste poderia ser oferecida na Zona Leste. Depois de muita discussão, em que todas as unidades da USP foram ouvidas para evitar que os cursos da Zona Leste abortassem projetos em andamento na universidade, chegou-se ao conjunto de dez carreiras. Algumas che-

gam a tangenciar outras já oferecidas, mas os currículos não se chocam. O desenvolvimento do projeto acadêmico é um dos capítulos mais vibrantes na trajetória da futura instituição. Embora as carreiras pertençam a áreas distintas do conhecimento, todas comungarão de um mesmo ciclo básico, o primeiro ano comum a todos os alunos ingressantes na Escola de Artes, Ciências e Humanidades. O diálogo entre os cursos, estimulado pela ausência de uma rígida estrutura de departamentos, também terá espaço na formação de núcleos de pesquisa interdisciplinares, como o Laboratório de Estudos e Pesquisas sobre Complexidade e Cidadania, o Observatório de Políticas Públicas e o Observatório de Pesquisas Integradas sobre Meio Ambiente Urbano, para citar alguns exemplos. O currículo do ciclo básico gira em torno de três eixos. Parte dele compreende matérias introdutórias, mas com propostas interdisciplinares, como "Sociedades complexas, multiculturalismo e direitos" ou "Psicologia, educação e temas contemporâneos". "Essa diversidade deverá ser encarada como oportunidade exemplar para a construção de novas fronteiras na organização do coPESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 61


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USP

nhecimento", diz a professora Myriam. Outro quinhão da carga horária é específico de cada carreira. Isso para evitar a frustração dos calouros com o excesso de disciplinas genéricas e introdutórias no primeiro ano, que é um dos fatores responsáveis pela evasão escolar. E um terceiro pedaço da carga horária segue uma experiência inovadora. É composto por disciplinas em que o desafio do estudante é dar solução a problemas concretos. "Promover a iniciação acadêmica e científica por meio da resolução de problemas é uma das abordagens inovadoras surgidas nos últimos anos, que vem ganhando espaço em algumas das principais universidades européias e norte-americanas", diz a professora Myriam. "A intenção é criar um ambiente para dar autonomia intelectual aos alunos que acabam de sair da escola média", ela afirma. Processos acadêmicos de resolução de problemas envolvem os alunos de várias maneiras. Primeiro eles discutem o problema, que não tem resposta simples. Depois utilizam seus conhecimentos e experiências na tentativa de achar uma saída. Levantam hipóteses, investigam-nas e, por fim, preparam um trabalho coletivo com possíveis soluções. "A proposta estimula o protagonismo dos estudantes na compreensão da complexidade dos fenômenos e promove a troca e a cooperação entre docentes, estudantes e comunidade", diz Valéria Amorim Arantes, professora da Faculdade de Educação e coordenadora do ciclo básico, que se inspirou em modelos como o da Universidade de Aalborg, na Dinamarca, onde esteve recentemente. Outra característica do projeto acadêmico é a utilização de recursos multimídia e da informática. Os cursos e atividades terão como suporte um site que reunirá seus conteúdos, a exemplo de uma experiência de sucesso realizada pela Escola Politécnica da USP. Toda essa proposta foi submetida a um importante crivo, o das inscrições para o vestibular. Quase 6 mil candidatos, na imensa maioria moradores da própria Zona Leste, inscreveram-se no primeiro vestibular e vão concorrer às 1.020 vagas oferecidas nas dez carreiras. O curso mais concorrido é o de Sistemas de Informação (9,47 candidatos por vaga), seguido pelos de Marketing, Lazer e Turismo, Obstetrícia e Tecnologia Têxtil. É certo que, entre os dez cursos menos concorridos no vestibular da Fuvest, cinco pertencem à USP Zona Leste: Ciências da Natureza (uma licenciatura para formação de professo62 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

No canteiro de obras, operários concluem as instalações que, em março de 2005, receberão a primeira turma de 1.020 alunos

res), Ciências da Atividade Física, Gerontologia, Gestão de Políticas Públicas e Gestão Ambiental - com concorrência entre 2,17 e 4,44 candidatos por vaga. O saldo, contudo, é considerado positivo. Projetava-se um contingente de candidatos menor, na casa dos 4 mil a 5 mil inscritos. Como os cursos são novos e desconhecidos, é natural que não atraiam multidões. No final da década de 1930, logo depois de a USP ser fundada, as salas de aula da recém-criada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) ficavam literalmente às moscas, pois os candidatos ao vestibular continuavam concorrendo às tradicionais Faculdade de Medicina, Escola Politécnica e Faculdade de Direito, incorporadas à estrutura da nova universidade. O interesse de docentes por trabalhar na nova instituição é animador. Os editais dos processos seletivos


que preencherão as 69 vagas necessárias para o primeiro ano estão em andamento. Isso envolveu a formação de 31 bancas examinadoras. Mas, antes que esse processo fosse aberto, fez-se uma consulta a professores da USP sobre o interesse de se transferirem para a Zona Leste. Dezoito foram pré-selecionados e, ao final do processo, dez professores tiveram seus pedidos de transferência aceitos. "A idéia inicial era de evitar que esse aproveitamento superasse 20% das vagas", diz o coordenador-geral Celso de Barros Gomes. "É uma instituição nova e é importante que tenhamos também material humano novo para erguê-la." Da mesma forma, os atuais funcionários tiveram a chance de se candidatar aos 86 empregos que serão criados na Zona Leste, no primeiro ano de funcionamento. Despontaram 208 interessados. O trabalho da Comissão Central é avaliar quais se encaixam nos cargos para, depois, abrir concursos para preencher os que sobrarem. O plano de implantar a USP Leste começou a ser gestado em 2002. A princípio, duas áreas foram cogi-

tadas para abrigar o campusr. o Parque do Carmo, no bairro de Itaquera, e uma área na zona do Parque Ecológico do Tietê. O Parque do Carmo foi logo descartado por razões ambientais. A segunda área também tinha empecilhos ecológicos, mas eles puderam ser contornados. O plano inicial era erguer a unidade numa gleba de mata fechada, de 1 milhão de metros quadrados, paralela ao leito do rio. O conjunto arquitetônico, idealizado pelo professor Sylvio Sawaia, era ambicioso. Previa a construção de quatro prédios interligados e dispostos como lados de um quadrado. O miolo do quadrilátero formaria uma enorme praça. Outros prédios seriam erguidos acompanhando o leito do Tietê e, numa gleba próxima, de 250 mil metros quadrados, haveria um centro esportivo. O plano desmoronou quando os órgãos ambientais vetaram o uso da área de mata fechada. Para salvar o projeto, inverteu-se a estratégia. A gleba à beira do Tietê vai ser aproveitada como um laboratório ambiental a céu aberto. E o conjunto de prédios foi transferido para a segunda gleba, aquela que abrigaria o centro esportivo, onde não há entraves ecológicos. Trata-se de um aterro. O projeto arquitetônico foi simplificado. Para não perder tempo, optou-se por começar as obras erguendo uma construção idêntica a um dos prédios do campus da USP de São Carlos. É ali que, em março de 2005, começará a funcionar o ciclo básico. No primeiro ano estarão prontos esse prédio, com 5.200 metros quadrados, uma guarita, um posto de segurança, o centro de apoio técnico, de 600 metros quadrados, dotado de salas para docentes e funcionários, além de uma construção destinada ao serviço de refeições. As obras continuarão em 2005, com a construção de outro prédio com 17 mil metros quadrados, de uma biblioteca com 7,2 mil metros quadrados e de instalações destinadas a serviços. Em 2006 um terceiro prédio será entregue, com 17 mil metros quadrados. O acesso será feito pela rodovia Ayrton Senna, ou pela avenida Assis Ribeiro, no bairro de Ermelino Matarazzo, que delimita o novo campus. Outro meio de acesso é uma linha da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), que tem duas estações nas proximidades. No futuro será construída uma nova estação de trem destinada à USP Leste. A integração da nova instituição com a comunidade também está prevista. De um lado, continuará funcionando numa casa do bairro o Núcleo de Apoio Social, Cultural e Educacional (Nasce), um centro de extensão universitária com atividades voltadas para a população, que já vem oferecendo cursos desde abril de 2004. Também funcionarão nas imediações do campus uma escola estadual de ensino fundamental e médio e outra municipal, de educação infantil. • PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 63


Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org

Notícias Implementações na metodologia SciELO permitem que as revistas da coleção publiquem seus artigos em mais de um idioma. Dentre as vantagens decorrentes da utilização desse recurso, destacam-se a diminuição dos custos de publicação, o aumento do alcance dos artigos da coleção no cenário internacional e, conseqüentemente, do impacto dos resultados das pesquisas brasileiras.

■ Agrotóxicos

Exposição de risco O estudo "Trabalho rural e intoxicações por agrotóxicos", de Neice Faria, Luiz Facchini, Anaclaudia Fassa e Elaine Tomasi, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), teve o objetivo de construir um perfil da exposição aos agrotóxicos por parte dos trabalhadores rurais e analisar a incidência de intoxicações por estes produtos. "Apesar de o uso de agrotóxicos na agricultura brasileira ser intenso, são escassos os estudos de base populacional sobre as características de sua utilização ou sobre as intoxicações", justificam os autores à realização da pesquisa. Foram avaliadas as características da propriedade e da exposição aos pesticidas. Entre 1.379 agricultores, a incidência anual de intoxicações por agrotóxicos foi de 2,2 episódios por cem trabalhadores expostos. "O levantamento evidenciou que entre as várias formas de exposição, aplicar agrotóxicos, entrar na cultura após aplicação e trabalhar com agrotóxicos em mais de uma propriedade se mostraram associadas a um aumento no risco de intoxicação", diz o artigo. No Brasil, entre 1997 e 2000, houve um aumento médio de 18% nas vendas de agrotóxicos, com destaque para os herbicidas, cujas vendas cresceram 31%", dizem os pesquisadores. Segundo dados do Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (Sinitox), no ano 2000, por exemplo, os pesticidas de uso agrícola foram responsáveis por 37% dos óbitos por intoxicação no país. "Além disso, ao se agruparem esses casos com aqueles causados por pesticidas de uso doméstico, produtos veterinários e raticidas, os pesticidas se tornam responsáveis por 57% dos óbitos por intoxicação", estimam os autores do artigo. CADERNOS DE SAúDE PUBLICA - VOL. 20 - N°5Rio DE JANEIRO - SET./OUT. 2004

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311 X2004000500024&lng=pt&nrm= iso&tlng=pt

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■ Direito

Debate sobre impunidade A partir de documentos legais e do relato de historiadores, cronistas e viajantes, o artigo "Impunidade no Brasil: Colônia e Império", do advogado e articulista Luís Francisco Carvalho Filho, mostra de que forma a impunidade está no centro do debate político. O autor teve como referência, entre outros enfoques, a aplicação de penas para delitos comuns, em contraposição a delitos políticos, militares e religiosos. "Do ponto de vista estritamente jurídico, impunidade é a não aplicação de determinada pena criminal a determinado caso concreto", explica Carvalho Filho. "Fala-se em impunidade não apenas quando se verificam a incapacidade ou a falta de disposição de o Estado fazer prevalecer a punição estabelecida, mas também quando a própria lei e o magistrado que a aplica são considerados benevolentes para com determinado ato criminoso", diz. O estudo mostra que a lei prevê uma punição para cada delito, e quando o infrator não é alcançado por ela o crime permanece impune. "Trata-se, apenas, de um olhar retrospectivo para a história do Brasil, que mostra que a impunidade sempre esteve na ordem do dia." ESTUDOS AVANçADOS PAULO - 2004

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www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid= S0103-40142004000200011 &lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

* Psicologia

Universo infantil O artigo "O uso de entrevistas em estudos com crianças", de pesquisadoras do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Centro Universitário Fieo (Unifieo) e Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), relata algumas contribuições potenciais da entrevista como instrumento de coleta de dados com crianças, bem como algumas de suas limitações e riscos. O estudo foi baseado em observação direta, entrevistas individuais e em grupo. "A entrevista com crianças é uma técnica ainda relativamente pou-


co explorada na literatura, inclusive porque, usualmente, se pensa a criança como incapaz de falar sobre suas próprias preferências, concepções ou avaliações", descreve o artigo. Com um conhecimento sobre a criança cada vez mais acurado, tem sido explorado crescentemente o uso de entrevista com crianças. "A entrevista ou o questionário é uma forma de obtenção de dados sobre fenômenos pouco suscetíveis de serem observados diretamente, seja pela baixa freqüência de sua ocorrência, seja por serem afetados pela presença do observador", diz o artigo. O texto mostra uma série de situações e exemplos dos quais alguns ressaltam aspectos problemáticos e outros ilustram casos de emprego bem-sucedido dessa técnica. "A entrevista não é um instrumento melhor ou pior do que a observação direta", conclui o estudo. Em alguns dos casos comentados no artigo, a entrevista é o principal instrumento de coleta, na medida em que se desejava apreender as concepções da criança sobre determinado fenômeno ou situação. Em outros, a entrevista complementa a análise da observação direta do comportamento. PSICOLOGIA EM ESTUDO MAIO/AGO.

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www.scielo.br/scielo.php?script=scLarttext&pid=S141373722004000200015&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Temas de pesquisa

Foco no envelhecimento As tendências da pesquisa sobre envelhecimento humano no Brasil são discutidas no artigo "A pesquisa sobre envelhecimento humano no Brasil: pesquisadores, temas e tendências", escrito por Shirley Prado e Jane Sayd, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). O estudo se desenvolve a partir de indicadores que compõem o Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil (2002), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O critério para a identificação dos grupos estudados foi o desenvolvimento de, pelo menos, uma linha de pesquisa referente ao envelhecimento humano. Ao todo, foram analisados 144 grupos, 511 pesquisadores e 209 linhas de pesquisa descritas como ativas na geração de conhecimento relativo ao envelhecimento humano no Brasil. O artigo revela que, no interior desses grupos, foram identificados dois subconjuntos: 43 grupos específicos, ou seja, aqueles que se voltam exclusivamente para o estudo dos idosos, da velhice e do processo de envelhecimento, e 101 grupos não específicos, ou seja, que têm a temática como uma questão abordada em uma área maior de interesse. "A pesquisa relativa à velhice, ao velho e ao processo de envelhecimento se volta de forma enfática para o estudo das doenças crônicas e degenerativas e das síndromes geriátricas. A educação, a promoção da saúde e a prevenção de doenças, ao lado do envelhecimento biológico, se situam também como temas privilegiados", concluem os pesquisadores. Segundo o artigo, há no Brasil alguns gru-

pos altamente qualificados, com geração de conhecimento reconhecida nacional e internacionalmente, desenvolvendo suas pesquisas em associação com renomados programas de pós-graduação. CIêNCIA & SAúDE COLETIVA - VOL. NEIRO - JUL./SET. 2004

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www.scielo.br/scielo.php?script=sci„arttext&pid=S141381232004000300027&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Nutrição

Cuidados com o coração Revisar os principais marcadores de risco para doenças cardiovasculares em adultos relacionados à nutrição, como os antropométricos, dietéticos e bioquímicos, é a idéia contida no artigo "Nutrição e doenças cardiovasculares: os marcadores de risco em adultos", de Luiza Castro, Sylvia do Carmo Franceschini, Sílvia Priore e Maria do Carmo Pelúzio, pesquisadoras do Departamento de Nutrição e Saúde da Universidade Federal de Viçosa, em Minas Gerais. "A avaliação do estado nutricional é de grande utilidade para o estabelecimento de estratégias visando à prevenção de doenças cardiovasculares", dizem as pesquisadoras. "Os marcadores de risco relacionados à nutrição podem ser modificados com a adoção de estilo de vida saudável e controle do peso corporal." O estudo enfatiza o impacto dessas morbidades na sociedade, bem como a necessidade de serem estabelecidas medidas de prevenção primária. "As doenças cardiovasculares contribuem significativamente como grupo causai de mortalidade em todas as regiões brasileiras, principalmente na Região Sudeste." De acordo com o Ministério da Saúde, o Sudeste possui o maior coeficiente de mortalidade por doenças do aparelho circulatório (207 mortes por 100 mil habitantes), enquanto a média brasileira é de 169 mortes/100 mil habitantes. Segundo o estudo, o ônus econômico das doenças cardiovasculares tem crescido nas últimas décadas. Em 2000, esse tipo de doença foi responsável pela principal alocação de recursos públicos em hospitalizações no Brasil. Entre 1991 e 2000, os custos hospitalares atribuídos às doenças cardiovasculares aumentaram 176%. Entre os fatores de risco de maior probabilidade detectados no estudo para o desenvolvimento das doenças cardiovasculares, destacam-se o fumo, a hipertensão arterial, a obesidade, a inatividade física e o diabetes mellitus. REVISTA DE NUTRIçãO JUL./SET. 2004

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www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141552732004000300010&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

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■ TECNOLOGIA

LINHA DE PRODUçãO

MUNDO

Sistema detecta fitas adulteradas O Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia dos Estados Unidos (Nist, da sigla em inglês) desenvolveu um sistema de reprodução de imagens que permite descobrir sinais de adulteração nas fitas de áudio. O sistema, que possibilita uma análise mais rápida e precisa, foi transferido ao Federal Bureau of Investigation (FBI) e poderá ser usado em investigações criminais de rotina. O FBI recebe por ano centenas de fitas para análise com evidências de terrorismo, homicídios e fraudes, provenientes de aparelhos como secretárias eletrônicas, gravadores cassete e digitais. Determinar a autenticidade da fita, comparar vozes e iden-

■ Submarino com célula a combustível Um submarino que se move mais rápido e vai mais longe que os atuais movidos com os tradicionais motores diesel e elétricos foi projetado na Inglaterra em uma parceria entre as empresas British Maritime Technology (BMT) e Rolls-Royce. A novidade é que a embarcação desprovida de qualquer combustível nuclear é movida por um sistema de turbinas a gás, células a combustível e baterias acumuladoras de energia. O submarino, que viaja com velocidade máxima de 30 nós (55 quilômetros por hora) e pode atingir até 11 mil quilômetros sem reabastecimento, utiliza o sis-

Investigações digitais revelam adulterações em gravações

tema de propulsão conforme a posição de navegação. Quando ele está semi-submergido, a geração da energia vem das turbinas a gás instaladas na torre que fica para fora da água. As células a combustível geram energia elétrica também no modo semi-submer-

so ou quando o submarino está submerso. O hidrogênio que faz a célula funcionar é extraído do querosene por um sistema de reforma. Esse combustível fica estocado em compartimentos colocados na cobertura externa da embarcação. O oxigênio, igualmen-

tificar duplicação são algumas tarefas realizadas pelos investigadores. O coração da tecnologia criada pelo Nist é um toca-fitas modificado com um arranjo de 64 sensores magnéticos que detectam e mapeiam o microscópico campo magnético das fitas quando estão em funcionamento. O arranjo é conectado a um computador programado para converter os dados magnéticos em imagens. As fitas sem adulterações produzem imagens ininterruptas, com padrão previsível, enquanto os trechos apagados e adulterados produzem borrões na imagem, associadas a estalos e batidas no sinal de áudio. •

te essencial para a célula, pode ser extraído da superfície por um mastro ou obtido do oxigênio líquido estocado a bordo. Para a velocidade máxima, também podem entrar em ação as baterias elétricas carregadas, quando necessário, pelas turbinas a gás e pelas células (London Press). •

■ Bactéria libera cobre do enxofre

Turbinas a gás e hidrogênio impulsionam submarino britânico

66 • DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

Pesquisadores chilenos descreveram, pela primeira vez, o mecanismo molecular de uma bactéria utilizada para extrair cobre e outros metais de minerais de baixa concentração, por um processo chamado de biomineração. "Conhecer o mecanismo da


■ Sensor revela doença respiratória

bactéria é crucial para países mineradores como o Chile, onde reservas de cobre de alta concentração não estão mais disponíveis", disse o pesquisador David Holmes, da Universidade Andrés Bello, do Chile, ao SciDev.Net. Em minérios de baixa concentração, o cobre está ligado a uma matriz que contém enxofre. A bactéria Acidithiobacillus ferrooxidans pode quebrar a ligação entre cobre e enxofre para obter energia, o que resulta na liberação do metal. O entendimento da bioquímica do micróbio poderá ajudar a melhorar o método de biomineração. Investigações experimentais do metabolismo da bactéria usando técnicas genéticas convencionais encontraram muitas dificuldades, apesar do esforço feito por muitos laboratórios no mundo. Para superar essa limitação, Holmes e seus colegas usaram a bioinformática - a análise da informação biológica empregando computadores e técnicas estatísticas. Os pesquisadores analisaram duas seqüências públicas disponíveis do DNA da bactéria. Usando essa informação, eles identificaram o processo molecular que possibilita ao micróbio adquirir energia de minérios e confirmaram sua descoberta em um experimento em laboratório. • >

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Um minúsculo aparelho para monitorar a respiração de vítimas em situações de emergência e em pacientes em cirurgias foi desenvolvido por pesquisadores da empresa Nanomix, de Emeryville, na Califórnia, financiados pela Fundação Nacional de Ciência (NSF, na sigla em inglês), o principal órgão de fomento à pesquisa nos Estados Unidos. Eles criaram um novo tipo de transistor de nanotubos de carbono, fundidos com polímeros e silicone, dentro de um sensor utilizado para monitorar a concentração de dióxido de carbono no sangue. Essa medida é importante para evitar que o sangue fique ácido, o que pode levar a conseqüências danosas para o funcionamento do organismo. O estudo mostra que os transistores de nanotubos de carbono podem determinar concentrações de dióxido de carbono tanto no ambiente quanto no ar em que é exalado. Alexander Star, gerente de Desenvolvimento da Nanomix e seus colegas da empresa e da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, descreveram o novo sensor em um artigo publicado na revista Advanced Materials de 15 de novembro. • fC

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Nanotutaos de carbono, fundidos com polímero e l silicone, vistos no i microscópio de força atômica

BRASIL

Mil utilidades da tinta invisível

Marcas feitas com tinta invisível sob luz ultravioleta

Visível apenas com luz ultravioleta, uma tinta sem cheiro pode ser utilizada como item de segurança para marcar livros raros, cartões de crédito, CDs e cédulas de dinheiro. A tinta invisível foi descoberta por acaso na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), quando pesquisadores trabalhavam na síntese da wedelolactona, substância com propriedade antiofídica retirada da erva-botão {Eclipta erecta). Tentando chegar à estrutura química final, eles passaram por uma substância intermediária (3-aril cumarina). Foi quando faltou energia e um aluno de graduação que participava da pesquisa acendeu uma lâmpada ultravioleta. "Ao dirigir a luz para a substância química, apareceu um brilho azul forte", conta o professor Cláudio Lopes, do Laboratório de Análise e Síntese de Produtos Estratégicos (Lasape), do Instituto de Química da UFRJ, e coordenador do projeto. Para

produzir a tinta invisível, foi colocada uma mistura de solventes para formar uma solução incolor e transparente com a 3-aril cumarina. Canetas marca-texto já receberam a nova carga, que também pode ser usada em carimbos. No momento, os pesquisadores estão à procura de uma empresa que queira produzir a tinta. Entre os usos já testados está a marcação do gado, que pode substituir o ferro em brasa e os ácidos, já que a tinta não é tóxica e resiste à água. Um bom lugar para a marcação de animais é a parte interna da orelha, que não está exposta diretamente à luz solar. O produto poderá ser usado ainda para imprimir documentos sigilosos em computadores ligados a impressoras com jato de tinta invisível. "Ao ser colocado em um scanner com leitor com luz ultravioleta, imediatamente será feita a tradução simultânea para o computador", diz o pesquisador. •

PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 67


■ Sensor revela doença respiratória

bactéria é crucial para países mineradores como o Chile, onde reservas de cobre de alta concentração não estão mais disponíveis", disse o pesquisador David Holmes, da Universidade Andrés Bello, do Chile, ao SciDev.Net. Em minérios de baixa concentração, o cobre está ligado a uma matriz que contém enxofre. A bactéria Acidithiobacillus ferrooxidans pode quebrar a ligação entre cobre e enxofre para obter energia, o que resulta na liberação do metal. O entendimento da bioquímica do micróbio poderá ajudar a melhorar o método de biomineração. Investigações experimentais do metabolismo da bactéria usando técnicas genéticas convencionais encontraram muitas dificuldades, apesar do esforço feito por muitos laboratórios no mundo. Para superar essa limitação, Holmes e seus colegas usaram a bioinformática - a análise da informação biológica empregando computadores e técnicas estatísticas. Os pesquisadores analisaram duas seqüências públicas disponíveis do DNA da bactéria. Usando essa informação, eles identificaram o processo molecular que possibilita ao micróbio adquirir energia de minérios e confirmaram sua descoberta em um experimento em laboratório. • >

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Um minúsculo aparelho para monitorar a respiração de vítimas em situações de emergência e em pacientes em cirurgias foi desenvolvido por pesquisadores da empresa Nanomix, de Emeryville, na Califórnia, financiados pela Fundação Nacional de Ciência (NSF, na sigla em inglês), o principal órgão de fomento à pesquisa nos Estados Unidos. Eles criaram um novo tipo de transistor de nanotubos de carbono, fundidos com polímeros e silicone, dentro de um sensor utilizado para monitorar a concentração de dióxido de carbono no sangue. Essa medida é importante para evitar que o sangue fique ácido, o que pode levar a conseqüências danosas para o funcionamento do organismo. O estudo mostra que os transistores de nanotubos de carbono podem determinar concentrações de dióxido de carbono tanto no ambiente quanto no ar em que é exalado. Alexander Star, gerente de Desenvolvimento da Nanomix e seus colegas da empresa e da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, descreveram o novo sensor em um artigo publicado na revista Advanced Materials de 15 de novembro. • fC

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Nanotutaos de carbono, fundidos com polímero e l silicone, vistos no i microscópio de força atômica

BRASIL

Mil utilidades da tinta invisível

Marcas feitas com tinta invisível sob luz ultravioleta

Visível apenas com luz ultravioleta, uma tinta sem cheiro pode ser utilizada como item de segurança para marcar livros raros, cartões de crédito, CDs e cédulas de dinheiro. A tinta invisível foi descoberta por acaso na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), quando pesquisadores trabalhavam na síntese da wedelolactona, substância com propriedade antiofídica retirada da erva-botão {Eclipta erecta). Tentando chegar à estrutura química final, eles passaram por uma substância intermediária (3-aril cumarina). Foi quando faltou energia e um aluno de graduação que participava da pesquisa acendeu uma lâmpada ultravioleta. "Ao dirigir a luz para a substância química, apareceu um brilho azul forte", conta o professor Cláudio Lopes, do Laboratório de Análise e Síntese de Produtos Estratégicos (Lasape), do Instituto de Química da UFRJ, e coordenador do projeto. Para

produzir a tinta invisível, foi colocada uma mistura de solventes para formar uma solução incolor e transparente com a 3-aril cumarina. Canetas marca-texto já receberam a nova carga, que também pode ser usada em carimbos. No momento, os pesquisadores estão à procura de uma empresa que queira produzir a tinta. Entre os usos já testados está a marcação do gado, que pode substituir o ferro em brasa e os ácidos, já que a tinta não é tóxica e resiste à água. Um bom lugar para a marcação de animais é a parte interna da orelha, que não está exposta diretamente à luz solar. O produto poderá ser usado ainda para imprimir documentos sigilosos em computadores ligados a impressoras com jato de tinta invisível. "Ao ser colocado em um scanner com leitor com luz ultravioleta, imediatamente será feita a tradução simultânea para o computador", diz o pesquisador. •

PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 67


LINHA DE PRODUçãO

BRASIL

írculos da natureza e da integração Jm processo de desenvolvimento sustentável para pequenas comunidades agrícolas deverá ser implementado pelo Programa Nacional de Estímulo ao Primeiro Emprego do governo federal. Serão 1.200 jovens do Distrito Federal e municípios vizinhos que irão iniciar atividades agrícolas num sistema criado pela organização não-governamental (ONG) Agência Mandalla, de João Pessoa, na Paraíba. Com uma perspectiva holística que abrange as técnicas agrícolas atuais, o sistema recebeu o nome de mandala, palavra que significa círculo mágico. "Ele funciona como o sistema solar em que o Sol, no caso, é um tanque com 6 metros de diâmetro e 1,80 metro de profundidade que

■ Modelo elétrico para áreas rurais Fábio Luís de Oliveira Rosa, engenheiro gaúcho que desenvolveu um novo modelo para levar eletricidade via energia solar a moradores de áreas rurais sem acesso às redes convencionais de distribuição, foi o vencedor deste ano do World Technology Award (WTA), prêmio mundial de tecnologia na categoria empreendedor social. O prêmio é concedido pelo World Technology Network (WTN), organização com cerca de 800 membros de 50 países, entre eles a Microsoft e a

Mandala: sistema de cultivo de hortaliças por um sistema barato e auto-sustentável

prove água para os vários círculos de plantações, à semelhança das órbitas dos planetas", diz Tárcio Handel, um dos diretores da ONG. Analogia à parte, o sistema é tecnicamente engenhoso. Nos círculos concêntricos, que vão até 25 metros do tanque, são plantadas hortaliças e

fruteiras. A água é aspergida nas plantas por um sistema de bomba de água, conduítes e cabos de cotonetes. No tanque são criados peixes e patos e os excrementos deles adubam a plantação. "Chamamos esse tipo de sistema de permacultura, em que buscamos maximizar as

Philips. "O modelo de atendimento compreende não só a aplicação da tecnologia mais adequada, mas também um modelo de negócio e de ges-

WèÊÈSM.

tão", diz Rosa, fundador e diretor executivo do Instituto para o Desenvolvimento de Energias Alternativas e da Auto-Sustentabilidade (Ideaas),

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Nova concepção para levar energia solar a áreas isoladas

68 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

conexões da natureza e suas interações entre plantas, animais, solo e chuva", diz Handel. A agência já implantou 350 sistemas em estados do Nordeste, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Oito mandalas são suficientes para obter um faturamento bruto de R$ 5 mil. •

de Porto Alegre. Inicialmente foi feito um estudo para entender melhor o perfil das pessoas atendidas e suas necessidades. O levantamento apontou que 70% das famílias gastavam cerca de US$ 10 com energias não-renováveis, como querosene, vela de parafina e pilhas, apenas para ouvir rádio e obter iluminação precária. Com o mesmo valor, 40 famílias já atendidas pelo novo modelo têm acesso à luz elétrica, rádio, televisão, telefonia e bombeamento de água. A compra dos sistemas fotovoltaicos é financiada por um fundo internacional de investidores sociais. •


■ Anel corrige imagem distorcida No Observatório Pierre Auger, instalado na Argentina por instituições de 18 países, telescópios com espelhos e fotodetectores, chamados de detectores de fluorescência, são utilizados para captar os raios cósmicos, partículas subatômicas raríssimas, com energia pelo menos 100 milhões de vezes superior à produzida no mais potente acelerador de partículas do mundo, o Tevatron, nos Estados Unidos. Como os espelhos esféricos dos equipamentos provocam distorção na imagem, conhecida como aberração esférica, pesquisadores da Uni-

telescópio de 85 centímetros para 110 centímetros, sem perder a qualidade da imagem. "O anel foi criado com base na sugestão de um colaborador norte-americano de aumentar a abertura do telescópio sem perder resolução na imagem formada na câmera fotomultiplicadora", diz o professor Marcelo Augusto de Oliveira, que participou do projeto para montagem do Pierre Auger na equipe do Instituto de Física da Unicamp. •

Patentes Inovações financiadas pelo Núcleo de Patenteamento e Licenciamento de Tecnologia (Nuplitec) da FAPESP. Contato: nuplitec@fapesp.br

■ Acompanhamento em tempo integral Diabéticos monitorados durante 24 horas todos os dias. Atualmente 1.200 pacientes já

Módulos da plataforma integrada de navegação

Mais segurança nos pequenos aviões

Fotodetectores de raios cósmicos: imagens melhoradas

versidade Estadual de Campinas (Unicamp) criaram um anel corretor, fabricado pela empresa Schwantz, de Indaiatuba, interior de São Paulo, que já está sendo usado em quatro dos 12 telescópios do observatório. Normalmente, para limitar essa distorção coloca-se um diafragma no centro de curvatura do espelho, que corta os raios afastados do eixo óptico principal. Com o anel corretor, parte do diafragma, que regula a entrada de luz, é retirada e, com isso, aumenta a abertura do

dispõem desse acompanhamento, criado pelo professor Flávio Jota de Paula, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Um aplicativo permite que o portador da doença, após fazer as medições de glicemia, o nível de açúcar no sangue, passe os resultados por telefone ou internet a um banco de dados da IDVida, empresa que trabalha com cartões de identificação e informação na área de saúde. Se a glicemia estiver fora do padrão, o médico recebe um alerta. •

Uma única plataforma, onde estão integrados dois sistemas de navegação sistemas inerciais e Sistema de Posicionamento Global (GPS) -, vai dar mais segurança e precisão aos vôos de aviões de pequeno porte. Os dois sistemas são utilizados separadamente para determinar a posição, a trajetória e a atitude (posição angular) de aeronaves. Os sensores inerciais, considerados instrumentos primários de navegação e formados principalmente por giroscópios e acelerômetros, independem de sinais externos para funcionar. Eles registram todos os movimentos da aeronave durante o vôo. Já o GPS é um sistema para informação de coordenadas formado por 24 satélites na órbita de 20 mil quilômetros de altitude

que enviam sinais captados por receptores nos aviões. A plataforma integrada, chamada de Sistema Modular de Atitude e Navegação (Sman), foi concebida para suprir falhas que possam existir nos dois sistemas quando usados isoladamente. A forma modular também permite a utilização do Sman em outras aplicações, como lançadores de satélites, veículos terrestres e navais. O projeto de pesquisa foi coordenado por Otávio Santos Cupertino Durão, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em parceria com a empresa Navcon. Título: Sman - Sistema Modular de Atitude e Navegação Inventor: Otávio Santos Cupertino Durão Titularidade: FAPESP

PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 69


TECNOLOGIA

I

Nova geração de fibras ópticas abre espaço para o aumento da capacidade das redes de

na dose certa

telecomunicações e traz novidades para a medicina

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aprimoramento de uma nova geração de fibras ópticas - chamadas de fibras fotônicas (ou fibras de cristal fotônico, do inglês photonic crystal fiber) - abre grandes perspectivas para o aumento da capacidade das redes de telecomuni1

mite a produção de fibras desenhadas para usos específicos em áreas tão diversas como astronomia, equipamentos industriais, relógios de precisão, componentes para computadores mais rápidos que os atuais e diagnóstico por imagem - um protótipo de um endoscópio com uma única fibra, dezenas de vezes menor que os convencionais, já foi produzido na Austrália. Nas telecomunicações, a maioria das pesquisas se dirige para o desenvolvimento de fibras s como a necessidade de aumento da velocidade em equipamentos de transmissão e recepção (amplificadores, conversores etc), lambem são candidatas a substituir os velhos cabos de cobre que conectam a re-

de de telecomunicações até os usuários. São novidades que estão na vanguarda tecnológica de centros acadêmicos na Inglaterra e na Austrália ou, como desenvolvimento de aplicações, em mais de 60 grupos de pesquisa no Centro Nacional de Metrologia de Freqüência, da França, Instituto Max-Planck, da Alemanha, e o Laboratório Nacional de Pesquisa em Metrologia do Japão, além de vários institutos de pesquisa nos Estados Unidos, Itália e Israel. No Brasil, as novas fibras são objeto de estudo de alguns grupos de pesquisa do Instituto de Física Gleb Wataghin da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) que fazem parte do Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica (CePOF). Também há grupos que estudam as fibras fotônicas na Universidade Estadual Paulista, de Araraquara, e no Instituto de Estudos Avançados do Centro Técnico Aeroespacial, em São José dos Campos, onde há uma equipe envolvida com trabalhos teóricos sobre as possibilidades das estruturas fotônicas. Com mais de 30 anos de pesquisas na área de fibras ópticas, a Unicamp,

além de ter formado dezenas de profissionais, já repassou tecnologias e possui contratos de parcerias para o desenvolvimento de inovações com várias empresas. Um trabalho que passa agora a ter nas fibras fotônicas um dos pilares da tecnologia de ponta da área. Os estudos foram intensificados no intercâmbio com os dois centros pioneiros mundiais no desenvolvimento dessas fibras: o Grupo de Fotônica e Materiais Fotônicos, da Universidade de Bath, na Inglaterra, e o Centro de Tecnologia de Fibra Óptica, da Universidade de Sydney, na Austrália. Os pesquisadores de Bath desenvolveram, no início da década de 1990, o conceito de fibras fotônicas. Em novembro de 1995 eles fizeram a primeira fibra fotônica do mundo. Até vidro (principalmente sílica), quando o grupo de Sydney elaborou a mesma esvembro deste ano um dos principais pesquisadores de Bath, o professor Jonathan Knight, que fez a primeira fibra fotônica, esteve em Campinas com patrocínio da FAPESP. Na mesma época,


o grupo da Unicamp recebeu a visita de Maryanne Large, pesquisadora australiana que desenvolveu as fibras fotònicas plásticas. Os dois pesquisadores deram palestras e acompanharam os trabalhos realizados na Unicamp. Para entender as novidades do funcionamento das novas fibras criadas

fibras ópticas tradicionais. Elas são feitas por um núcleo e uma camada externa, ambos quase sempre de sílica. Sua capacidade de confinar a luz e fazê-la viajar em seu interior com as informações que se quer transmitir se baseia na alta transparência do vidro e no fato de o núcleo ter sempre um índice de refração superior ao da camada externa. Essa diferença de índice permite aprisionar a luz porque a interface entre materiais com altos e baixos índices de refração funciona como um espelho que facilita o percurso da onda luminosa no interior desses dispositivos. Para ter um índice de refração superior ao da camada externa, a sílica do núcleo é enriquecida (dopada) com átomos de outro material

como germànio e boro. O processo requer um excelente controle da química do vidro porque é nessa fase que se define boa parte das características da fibra e, por conseqüência, do sinal que será transmitido. ma das diferenças entre as fibras tradicionais e as novas é que as fotònicas não se baseiam em dopantes químicos para a obtenção de variações no nível de refração. Elas possuem um núcleo (que pode ser de sílica, polímero ou mesmo ar) envolto por um conjunto regular de diminutos buracos de ar na forma de túneis, que correm paralelos ao longo de toda a fibra. No caso das fibras de núcleo sólido (sílica ou plástico), considera-se que o guiamento se deva ao fato de a parte externa da fibra ter sido "dopada" com ar, um material com menor índice de refração. Surpreende, porém, que a luz possa também ser guiada em fibras de núcleo oco, viajando no ar. Toda a física tradicional mostra que a luz prefere viajar em materiais com

altos índices de refração e o ar tem o mais baixo deles. Um comportamento estranho que é possível de ser aplicado para esse tipo de fibra fotônica com base em princípios físicos diferentes daqueles que regem as fibras tradicionais. Na década de 1980, físicos descobriram que materiais estruturados na escala do comprimento de onda da luz - uma fração de micròmetro - podiam ter suas propriedades ópticas radicalmente alteradas. São os cristais fotònicos, assim chamados porque sua estrutura interna, regular como a de um cristal, permite controlar o guiamento da luz. No caso das fibras fotônicas de núcleo oco, os espaços entre os buracos de ar na parte que envolve a fibra devem ter dimensões da mesma ordem do comprimento de onda da luz que se pretende guiar no seu núcleo. A região microestruturada cria então, ao redor do núcleo, uma zona proibida para certos comprimentos de onda, um band gap, obrigando a luz a ficar confinada nnXiírlpn rLi fibra. É dessa forma que a da fibra tradicional, agora

Pré-forma: a partir desse material, que possui alguns centímetros, são produzidas as finas fibras ópticas


tos túneis de ar, passa a funcionar como um novo material, com propriedades ópticas inéditas. As vantagens das fibras fotônicas em relação às convencionais é a possibilidade de projetar sua microestrutura de maneira que a fibra apresente propriedades escolhidas segundo a necessidade de cada caso. Assim é possível projetar e fabricar fibras para um amplo espectro de aplicações, aumentando a concentração de luz ou alterando a sua própria freqüência, para citar apenas alguns exemplos. "É uma nova tecnologia que permite ter diferentes tipos de fibras desenhadas com propriedades específicas", frisou o físico britânico Jonathan Knight durante sua visita à Unicamp. Uma das boas perspectivas das fibras fotônicas está nas telecomunicações, área em que há três décadas as fibras ópticas promovem uma verdadeira revolução, com ganhos de velocidade em relação aos fios de cobre. "As atuais limitações das fibras ópticas tradicionais devemse ao fato de a luz viajar no vidro. Uma vez libertadas dessa amarra, o potencial é imenso", diz Knight. Ele se refere ao fato de a interação entre o vidro e a luz causar perda de potência e dispersão do sinal luminoso, um problema no caso de percursos longos. A dispersão, entre outras características, provoca o alargamento do comprimento de onda do sinal luminoso a ponto de torná-lo irreconhecível. Já a perda de potência chega a ser de 96% em 100 quilômetros. Esses problemas hoje são contornados com amplificadores de sinal e outros dispositivos, mas eles limitam o potencial da rede porque não recuperam integralmente o sinal. "Com as fibras fotônicas é possível controlar muito melhor a dispersão e, teoricamente, reduzir a perda a quase zero", garante Knight. Foi a confiança nesse potencial, aliás, que levou o físico a fundar em março de 2001, junto com 72 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESUUISA FAPESP 106

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Estruturas da fibra fotônica de vidro com os túneis que correm em paralelo ao núcleo. Na última foto, a fibra produzida em polímero

seus colegas, uma empresa, a Blaze Photonics, para desenvolver fibras fotônicas capazes de substituir os atuais cabos transatlânticos, que hoje dependem de amplificadores caríssimos e de manutenção com submarinos. A empresa acabou vendida por £ 3 milhões (quase R$ 15 milhões) para a Crystal Fibre, uma empresa dinamarquesa. A venda foi antes de a Blaze atingir um protótipo comercial, mas Knight considera promissores os resultados obtidos. "Não chegamos a obter uma perda menor do que a das fibras convencionais, mas essas levaram três décadas se aperfeiçoando e estão no limite de suas possibilidades tecnológicas, enquanto nós avançamos muito rápido em pouco tempo." Dentro dos amplificadores - Se para transmissões em longas distâncias as fibras fotônicas ainda não apresentam vantagens, seu desempenho superior em muitas áreas já as converteu em opção para o desenvolvimento de novos dispositivos usados em telecomunicações como amplificadores de sinal, controladores de dispersão e conversores de comprimento de onda. Para aumentar a quantidade de informação transmitida nesses equipamentos hoje, por exemplo, é necessário usar um leque maior de comprimentos de onda diferentes para transmitir simultaneamente muitos dados na mesma fibra. Os amplificadores convencionais, porém, só am-

plificam uma pequena faixa de compri mento de onda. A solução são os amplificadores paramétricos, que operam numa faixa muito maior {veja Pesquisa FAPESP n° 81). No CePOF da Unicamp, Hugo Fragnito trabalha no desenvolvimento desses amplificadores desde 2000 e este ano iniciou uma colaboração científica com o grupo de Bath. A idéia é desenvolver fibras fotônicas especialmente projetadas para aumentar ainda mais a banda dos amplificadores paramétricos. Para concretizar essa colaboração, Paulo Dainese, aluno de Fragnito, trabalhou três meses com o grupo de Knight em Bath. Na Unicamp, o grupo de Luiz Carlos Barbosa, com os alunos Enver Chillcce e Sérgio Ozório, também estuda a produção de suas próprias fibras fotônicas desde 2002, projeto que agora toma impulso com a volta de Cristiano Cordeiro, que fez pós-doutorado nessa área na equipe de Knight, na Universidade de Bath. Recém-chegado ao Brasil, e com bolsa de pós-doutorado da FAPESP, Cordeiro continuará agora suas pesquisas na universidade, voltadas para o desenvolvimento e caracterização de fibras fotônicas com propriedades ópticas não-lineares. São fibras com capacidade de alterar o comprimento de onda da luz que as atravessa. As pesquisas de Cordeiro pretendem também explorar outra possibilidade das fibras fotônicas, que é a geração de supercontínuo. Tra-


ta-se de uma luz muito forte e de comprimento de onda extenso para ser usada, por exemplo, em experimentos de espectroscopia (caracterização de materiais), metrologia e num tipo especial de tomografia que fornece, de maneira não invasiva, imagens tridimensionais de tecidos biológicos (a tomografia de coerência óptica). A s novas possibilidades tec#W nológicas abertas com o Lmm supercontínuo eram imj m pensáveis com as fibras ^L .^L- tradicionais. "Quero trabalhar e fabricar fibras fotônicas para essas aplicações que são também objeto de estudo de vários grupos brasileiros", diz Cordeiro. Um exemplo é a equipe coordenada por Nilson Dias Vieira, do Instituto de Pesquisas Nucleares e Energéticas (Ipen). Ele planeja utilizar fibras fotônicas para geração de supercontínuo a ser usado em experimentos de tomografia de coerência óptica. A recente visita de Knight selou o fornecimento de fibras ópticas produzidas em Bath para o laboratório brasileiro. Isso vai acontecer, inclusive para os experimentos de Cordeiro, enquanto as fibras fotônicas brasileiras não são produzidas. Outro projeto de Cordeiro é tentar, em colaboração com Maryanne, produzir no Brasil fibras fotônicas de plástico (polímero). Essas fibras têm um nicho

potencial de mercado nas redes de telecomunicações: substituir as conexões dos usuários finais, área ainda dominada pela tecnologia de cabos de cobre que se transforma em um empecilho para o aumento da velocidade de transmissão. Com o plástico, as vantagens em relação ao vidro são evidentes: é mais barato, menos frágil e seu método de fabricação permite desenvolver um leque muito mais amplo de estruturas fotônicas, além de ser possível dopar o material com uma diversidade muito maior de substâncias e com quantidades bem maiores do que aquelas toleradas pelo vidro. Assim, o plástico supera a desvantagem de sua menor transparência, irrelevante no caso de distâncias pequenas. Na fase de fabricação, as fibras de polímero possuem características diferentes das tradicionais de vidro que são

0 PROJETO Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica (CePOF), da Unicamp MODALIDADE Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) COORDENADOR HUGO FRAGNITO

- Instituto de Física

da Unicamp INVESTIMENTO R$ 1.000.000 por ano (FAPESP)

produzidas a partir de uma pré-forma de alguns centímetros, composta por pequenos tubos de vidro empilhados de forma a compor a estrutura desejada. Aquecida, essa préforma é puxada até converter-se numa fibra da espessura de um fio de cabelo (125 microns), que mantém, em escala microscópica, a mesma estrutura da pré-forma original. O sistema só permite produzir as estruturas que podem ser feitas por meio desse empilhamento. Já as fibras de plástico possibilitam fazer qualquer tipo de estrutura, basta usar uma furadeira especial controlada por computador para produzir na préforma a seqüência desejada de buracos. Conexão de chips - O desenvolvimento dessas fibras pela equipe de Maryanne tem aplicação potencial não só nas conexões da rede com os usuários finais como em amplificadores e lasers e nas conexões internas de computadores e outros equipamentos. "Os dispositivos eletrônicos que conectam os chips de um computador não podem operar acima de certas velocidades porque se transformam em antenas que emitem e captam sinais para o ar. As nossas fibras poderão servir para fazer essas conexões com uso de luz, permitindo transmissões em velocidades milhares de vezes superiores às atuais", explica Maryanne. Algumas aplicações das fibras fotônicas já estão deixando de ser apenas especulações. A equipe de Sydney produziu, por exemplo, um protótipo de endoscópio dezena de vezes menor do que os convencionais porque transmite a imagem por uma única fibra óptica. Além de ser mais confortável para os pacientes que passam pelos vários tipos de exames endoscópicos, a nova tecnologia permite melhor visualização para o médico. Isso acontece porque a fibra plástica microestruturada tem dezenas de núcleos microscópicos por onde a luz é transportada. O aparelho deverá primeiro orientar implantes de próteses no ouvido interno. • PESQ.UISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 73


TECNOLOGIA

Estado da resistência Uso de plasma amplia a vida útil de próteses ortopédicas e ferramentas industriais

o tudo correr bem, dentro de três anos a empresa Baumer, da cidade paulista de Mogi-Mirim, maior labricante latino-americana de implantes ortopédicos, colocará no mercado próteses cie joelho e de que as produzidas atue do uso de um 11 ■>or imersao )écie de gás que é considerado um dos :om estrutura molecular, atômica e de partículas aiterente dos tradicionais solido, liquido e gasoso). Esse tratamento aumentou a dureza das ligas de aço que compõem as próteses em até 250% e reduziu o desgaste em cerca de 160 vezes. "O método revelou-se biocompatível e os resultados foram além das nossas expectativas. Testes laboratoriais demonstraram um considerável aumento na sobrevida das próteses, que normalmente é de 12 a 15 anos", diz o químico Roberto Parpaioli, gerente da Divisão de Pesquisa e Desenvolvimento da Baumer. "Agora nossa intenção é organizai" um ou dois grupos clínicos para fazer exames in vivo nas próteses submetidas á implantação iònica por plasma. Acreditamos que dentro de dois ou três anos estaremos com a avaliação clínica concluída." Para esses exames, a empresa vai escolher duas equipes de ortopedistas ligados a uma universidade. Cada grupo clínico terá, em média, cinco profissionais e de dez a 30 pacientes. A Baumer cederá todas as próteses e arcará com os custos dos testes. Melhorar a dureza e, conseqüentemente, a vida útil de implantes ortopédicos é uma cias muitas aplicações dessa técnica de tratamento superficial, desenvolvida de forma pioneira, no Brasil, pela Metrolab, empresa de São José dos Campos especializada na calibração, ajuste e manutenuusiriais mecânicos e ek desenvolvimento da técnica foi feito em colaboração com o

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I

Prótese de cabeça de fêmuf na câmara de plasma

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Laboratório Associado de Plasma (LAP) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). O método de implantação iônica por imersão em plasma (IIIP ou 3IP) pode ser empregado para melhorar as propriedades tribológicas (características que envolvem dureza, resistência à corrosão e ao desgaste e redução de atrito e fricção), ópticas e eletrônicas de um variado leque de materiais, como alumínio, titânio, aço inoxidável, ligas metálicas, polímeros, plásticos, teflon, náilon e, no caso de semicondutores, possibilitar a criação de dispositivos cada vez menores. Assim, além das próteses ortopédicas, também podem ser beneficiadas as ferramentas e os componentes industriais das áreas automotiva, médica, odontológica e aeroespacial, como facas de corte, moldes para alumínio, pistões de motores, rolamentos, brocas de aço, implantes odontológicos e garrafas de polímero poli (tereftalato de etileno), mais conhecidas como PET, usadas para acondicionar refrigerantes e água mineral. Descoberta no final dos anos de 1980 por pesquisadores da Universidade de Wisconsin, nos Estados Unidos, a técnica 3IP ainda é pouco explorada comercialmente no mundo. Os principais grupos de pesquisa localizam-se nos Estados Unidos, na Alemanha, na Austrália, no Japão, na China e na Coréia. "No Brasil nós trabalhamos com essa tecnologia na área de tratamento de materiais desde 1995", diz o físico Mário Ueda, pesquisador do LAP do Inpe que coordenou o final do projeto na Metrolab. No início, a coordenação foi do também pesquisador do Inpe, Raul Murete de Castro. "No instituto nós utilizamos vários tipos de plasma, como, por exemplo, na aplicação em propulsão iônica para controle dos satélites no espaço e no tratamento de superfícies de polímeros em sistemas aeroespaciais", diz Ueda. "Desde o início já sabíamos que o uso do 3IP teria uma ampla aplicação comercial porque essa técnica mostrou-se altamente eficiente para estender a vida média de muitas ferramentas e componentes utilizados nas indústrias." O repasse da tecnologia e a realização de pesquisas complementares por parte da Metrolab só foram possíveis 76 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

com o financiamento da FAPESP recebido pela empresa por meio do Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE). Os recursos, da ordem de mais de R$ 400 mil, foram usados para aquisição dos equipamentos necessários para a construção de uma estação de processamento 3IP. O coração do sistema é uma câmara de vácuo de aço inox, na qual é gerado o plasma e o tratamento é implementado na peça. Junto dessa câmara, que tem cerca de 100 litros de volume, está instalado um sistema de vácuo e uma fonte de tensão de corrente contínua, responsável pela geração do plasma. Complementam o sistema um equipamento de injeção de gás, um pulsador de alta-tensão e uma fonte para controle dos parâmetros do plasma. O primeiro passo do processo de tratamento é a colocação da peça na câmara de vácuo e a criação do plasma, um gás ionizado produzido em altas temperaturas. Ele é diferente dos estados sólido, líquido e gasoso porque a ionização (perda ou ganho de elétrons) das suas partículas, moléculas e átomos é significativa. Para a produção do plasma foi usado principalmente o gás nitrogênio - dependendo da aplicação, gases como hélio, argônio e hidrogênio também podem ser usados. A finalidade do tratamento é implantar íons positivos de nitrogênio, presentes no plasma, na peça - são esses íons que conferem melhores características ao material. Para que isso ocorra, a peça sofre um bombardeio de pulsos negativos de alta-tensão, que variam de 10 mil a 100 mil volts. Ao receber esses pulsos, a peça atrai os íons positivos de nitrogênio do plasma. Os íons penetram até dezena de milhares de ângstrons de profundidade - 1 ângstron eqüivale a IO7 milímetros, ou 1 milí-

metro dividido 10 milhões de vezes. A temperatura da peça, a pressão dentro da câmara e o tempo de processamento variam de acordo com o material. "No caso de polímeros, o tratamento leva cerca de 15 minutos, enquanto materiais feitos de aço precisam de uma implantação mais longa, em torno de uma hora", afirma Ueda. Depois que as peças são modificadas, elas passam por testes e medições para verificação da eficiência do processo. Como é quase impossível fazer esses testes nas próprias peças sem danificá-las, cada tratamento é acompanhado de amostras ou corpos de prova, avaliados posteriormente. "O teste mais importante é o perfil de concentração atômica, que revela se os íons de nitrogênio penetraram adequadamente. Além dele, analisamos a estrutura do material e medimos seu perfil de dureza e sua resistência ao desgaste", conta o físico Luiz Ângelo Berni, do LAP, que também participou do projeto. Excelentes resultados - Durante a realização do projeto PIPE a Metrolab firmou parceria com várias empresas, além da Baumer, para a execução de tratamento superficial em diferentes materiais e componentes. Todas as peças


Câmara de vácuo onde próteses e peças metálicas são tratadas por imersão em plasma

foram cedidas de forma gratuita à Metrolab. "Os resultados mais surpreendentes foram obtidos com as ferramentas da Refal, uma fabricante de rebites e rebitadeiras com sede em São Paulo", informa o engenheiro eletrônico Antônio Claret Pereira Fernandes, dono da Metrolab. Em uma das peças tratadas, no caso um martelo de aço, verificou-se uma melhoria de mais de 25 vezes na vida média comparada a uma peça que não foi modificada por 3IR Em outra, um rolete de aço, o prolongamento de vida média foi superior a quatro vezes. O principal resultado, no entanto, 0 PROJETO Melhoramento das propriedades superficiais de componentes de uso industrial por implantação iônica tridimensional MODALIDADE Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE) COORDENADOR MáRIO UEDA

- Inpe-Metrolab

INVESTIMENTO R$ 93.240,00 e US$ 121.314,75 (FAPESP)

aconteceu numa ferramenta de punção para trabalhos em alta temperatura na produção de rebites que teve uma melhoria na durabilidade de 70 vezes. Para a Refal, esses resultados representam uma grande economia, não só na maior durabilidade, mas também na redução de tempo de troca, o que tem reflexos diretos na produtividade da indústria. O sucesso dos tratamentos rendeu bons frutos à Metrolab. "Estamos contentes porque a Refal já formalizou um pedido para processamento de um lote de ferramentas empregadas na produção de rebites e de rebitadeiras", afirma Fernandes, acrescentando que com a estrutura atual a Metrolab tem capacidade para tratar cem peças por semana, entre rebites, martelos e próteses. Outra parceira da Metrolab foi a AS Technology, empresa especializada na fabricação de implantes dentários de São José dos Campos. Segundo Luiz Roberto Castro de Souza Aguiar, gerente de projeto da companhia, o processo de implantação iônica tridimensional apresentou resultados altamente promissores quando aplicados a ferramentas de corte usadas na usinagem de implantes odontológicos. Em alguns casos, o aumento da vida útil da peça foi de 40% a 100% e, em outros, a qualidade foi melhorada, mas a vida útil reduzida. "O processo de 3IP melhora sensivelmente a qualidade da usinagem dentro da nossa aplicação, como, por exemplo, não produzir película superficial, como no caso da nitretação (enriquecimento com nitrogênio) por produtos químicos. O plasma insere os íons na ferramenta, melhorando sua aresta de cor-

te", afirma Aguiar, que ressalta: "Sem dúvida, existe um fenômeno de melhoramento, mas ainda não dominamos todas as variáveis do processo". Por isso, a empresa continua fazendo testes nas peças submetidas ao tratamento 3IP para descobrir a condição ideal de processamento. A Metrolab também experimentou a aplicação da técnica 3IP em garrafas PET, com a colaboração da fabricante de cervejas Primo Schincariol. Nesse caso, o objetivo da pesquisa não era torná-las mais resistentes, mas reduzir a taxa de transmissão de oxigênio através das paredes da garrafa de polímero a fim de evitar a rápida degradação da cerveja que ocorre depois de uma ou duas semanas em PET não tratadas. Ao final do processo, testes preliminares revelaram que houve um pequeno aumento da barreira contra penetração de oxigênio, o que proporcionou uma leve melhora na conservação do produto. No entanto, o processo ainda precisa ser aperfeiçoado para que a cerveja seja conservada por pelo menos seis meses. Limpo e econômico - Uma das principais características do método 3IP é o fato de ele poder ser aplicado em peças de grande porte e de formatos complexos porque o tratamento tem amplitude tridimensional. Além disso, as peças não sofrem alterações em suas dimensões e a implantação pode ser feita individualmente ou em fornada, com várias peças ao mesmo tempo. Para Ueda, o método apresenta vantagens sobre os processos normalmente empregados no tratamento de superfícies, como a nitretação, que consiste na colocação de átomos de nitrogênio em peças de aço por meio de banhos de sais ou imersão em gás amônia sob alta pressão. "Esses métodos são tóxicos e de manuseio perigoso, já que são realizados a altas temperaturas, de até 600°C. Sem falar que são problemáticos do ponto de vista ambiental, porque geram resíduos de alta periculosidade, como o banho de cianeto." Em comparação com os métodos tradicionais, o tratamento 3IP é similar no âmbito econômico. "Traz também as vantagens de tratar as peças de forma homogênea, com os íons atingindo a peça em todas as direções e perpendicularmente à superfície, além de não agredir o ambiente", garante Ueda. • PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 77


TECNOLOGIA BIOTECNOLOGIA

Segredos da doçura Estudo pretende identificar os genes responsáveis pela sacarose da cana-de-açúcar

"os próximos três anos, lâminas especiais de vidro do tamanho de um dedo, nas quais se inserem milhares de genes ou fragmentos de DNA, poderão revelar ao homem os caminhos da biologia molecular que levam à produção de variedades mais doces de cana-de-açúcar. Até 2007, com a ajuda das lâminas, denominadas microarrays ou chips de DNA, pesquisadores paulistas pretendem identificar genes que favoreçam a se, o popular açúcar de mesa, durante seu processo de maturação. "Se descobrirmos bons marcadores moleculares envolvidos nesse processo, poderemos mais rapidamente desenvolver variedades geneticamente modificadas mais ricas em açúcar", diz Glaucia Mendes Souza, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ/USP), coordenadora dos estudos. "Num estudo acúmulo de sacarose, mas a meta é encontrar muitos outros. mcroarrays também serão utilizados para procurar (insetos), na tolerância à escassez de água e na interação da cana com bactérias naturais que a auxiliam a fixar nitrogênio em suas raízes e funcionam como fertilizantes da lavoura. Plantas assim, ricas em sacarose e mais fortes, formariam a lavoura ideal para os produtores de açúcar e álcool. Por isso, o projeto recebe financiamento do programa Parceria para Inovação Tecnológica (PITE) da FAPESP, do Centro de Tecnologia Canaviera (CTC),

de Piracicaba, controlado pela Coop rativa de Produtores de Cana, Açúcar Álcool do Estado de São Paulo (Cope sucar), e da usina Centralcool, da cid de de Lucélia, no noroeste paulista. "E tamos investindo na melhoria da nos matéria-prima, a cana-de-açúcar", d Carlos Yokio Nomura, gerente de logí rica da Centralcool. A expressão dos g_ nes em 12 tipos de cana, todas desenvolvidas pelos técnicos do CTC por meio do tradicional cruzamento de plantas com diferentes características, será alvo da análise da equipe de Glaucia. "São programa de melhoramento genético, mas não são plantas transgênicas", afirma o engenheiro agrônomo Eugênio César Ulian, gestor de biotecnologia do CTC. Produzir canas transgênicas é uma meta para um segundo momento do trabalho, quando forem identificados produção de sacarose na planta. Se o projeto gerar inovações tecnológicas de interesse comercial, as três fontes financiadoras dos estudos serão as detentoras de sua patente. Também as universidades dos pesquisadores envolvidos na iniciativa - além da USP, há cientistas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade Estadual Paulista (Unesp) engajados nos estudos — terão direito a uma parcela dos royalties gerados por eventuais patentes. Menos preocupado em produzir conhecimento básico nara a acabara encontra soluções tecnológicas capazes de aumentar a competitividade de setores da economia paulista e nacional, o PITE

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experimentos mais cruque junta as universidaGenes do chip de DNA em forma de pontos -0S ciais do projeto, que vão des paulistas e empresas «6n tentar descobrir as bases do setor de açúcar e álg genéticas do acúmulo cool é um filhote direto precoce de sacarose no de uma grande empreicolmo da planta, o funtada científica sobre a cionamento desse concana, o projeto Sucest, sijunto de genes será megla em inglês para Sugar dido em quatro tipos de Cane EST, também cocana-de-açúcar. Duas vanhecido como Genoma riedades produzem preCana. Entre as contribuicocemente muito açúcar, ções do Sucest, que mologo no início da safra, bilizou 240 pesquisadono mês de maio. As oures e foi concluído em tras duas variedades de2003, destaca-se a monmoram mais tempo para tagem de um grande atingir teores elevados de banco de dados sobre o sacarose. "Vamos obsermaterial genético do vevar a expressão dos genes getal. Nele há informadurante todo o processo T)enos ções sobre o seqüênciaGenes igua Genes menos Genes igualmente Genes mais de amadurecimento da mento de cerca de 240 expressos Bos expressos expressos planta", diz Ulian. As mil fragmentos de gecomparações serão feines, denominados ESTs, tas em quatro momentos do ano: antes Os verdes retratam os menos expressos, ou etiquetas de seqüência expressa. "O da colheita da cana (em março) e no e os amarelos os que foram usados em Sucest nos deu a base para montarmos início (maio), meio (julho) e fim (seambas as situações. Se um gene se moso nosso projeto", comenta Glaucia, que tembro) da safra. O comportamento tra superexpresso num dado contexto, vai armazenar as informações sobre as dos genes será analisado em dois tipos como num tecido com câncer, ele deve funções dos genes descobertas pelos de tecidos, nas folhas e no colmo (causer importante para a ocorrência dessa estudos com microarray num segundo le), onde se concentra a sacarose. banco de bancos, recém-construído. condição. Os estudos que visam encontrar ge1 nes para a promoção de outras caracteFração genômica - Em busca dos segretecnologia de chips de DNA rísticas economicamente desejáveis na dos moleculares que tornam a cana permite analisar quais genes cana-de-açúcar terão um desenho semais doce e resistente a pragas, os pesou pedaços de genes de um melhante. As bases moleculares para a quisadores vão construir um microar, organismo são expressos tolerância à falta de água serão o alvo ray com 4.608 genes. Esse não é o nú, (usados) em diferentes de um trabalho que vai comparar a exsituações. Não é uma ferramenta para mero total de genes que compõem o pressão de genes em quatro variedades descobrir genes difíceis de serem idengenoma do vegetal, mas apenas uma de cana, duas adaptadas a climas secos tificados, mas sim para mapear o papel, fração deles - a fração mais importante e duas não acostumadas à aridez. Separa os estudos comparativos a serem a função de genes ou trechos de DNA guindo essa lógica, de confrontar o feitos. "Nossos resultados preliminares previamente conhecidos, cuja seqüênfuncionamento dos mesmos genes em com um chip piloto com 1.920 genes fovariedades da planta com traços conram promissores", avalia Glaucia. Nos cas da biologia molecular. A metodolotrastados, serão ainda analisadas variegia é muito empregada atualmente em dades pouco e muito resistentes a doentrabalhos sobre as bases genéticas de 0 PROJETO ças e suscetíveis à ação de bactérias doenças humanas. Em estudos sobre o fixadoras de nitrogênio. Se tudo der câncer, por exemplo, os microarrays são Transcriptoma da cana-de-açúcar certo, os pesquisadores e as empresas usados para comparar o funcionamenMODALIDADE de álcool e açúcar que participam do to de conjuntos de genes em tecidos saPrograma Parceria para Inovação PITE terão identificado genes capazes dios e doentes. Dessa forma, os cientisTecnológica (PITE) de aumentar a capacidade produtiva tas identificam quais genes são mais, de um canavial. Com esses dados, será menos e igualmente expressos por céCOORDENADORA possível, em tese, produzir plantas gelulas normais e com tumores. Os expeGLAUCIA MENDES SOUZA - Instituto neticamente modificadas mais eficiende Química/USP rimentos com chips de DNA geram fites e seguras para o ambiente - ou, se as guras em que os genes inseridos nas INVESTIMENTO empresas preferirem não criar plantas lâminas são representados por pontos. R$ 555.693,00 - US$ 82.867 transgênicas, obter novas variedades Os pontos vermelhos representam ge(FAPESP)e pelo processo clássico de melhoramenR$ 800.000,00 (CTC e Centralcool) terminada situação do que em outra. PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 79



HUMANIDADES CULTURA

Da teoria à prática A história do Departamento de Cultura de Mário de Andrade

CARLOS HAAG

iz o ditado popular que "quem sabe faz; quem não sabe fazer ensina". Por trás da evidente simplificação do dito está um dos grandes dilemas dos intelectuais do século 20: é possível concretizar utopias teóricas, fazer delas realizações práticas e populares, unindo forças com a política sem sujar as mãos ou se sujeitar a concessões. O exemplo pioneiro desse dilema quase hamletiano ocorreu entre 1935 e 1938, durante a gestão de Mário de Andrade à frente do Departamento de Cultura de São Paulo, um paradigma até hoje do que é fazer cultura. "Não seria exagero afirmar que, com a experiência do Departamento de Cultura, começa haver no Brasil a noção do que seja propriamente uma política cultural", explica Roberto Barbato, autor de Missionários de uma utopia nacional, tese de doutorado que contou com apoio da FAPESP e que acaba de ser lançada em livro pela Annablume. "Mário e seu grupo abdicaram de suas obras pessoais por projeto cultural para a sociedade. O Estado figura nesse processo como um instrumento necessário à consecução dos fins colimados pelo Departamento", avalia o pesquisador. Afinal, apenas o Estado tinha dinheiro suficiente para possibilitar a grande ambição modernista de "ir até o povo e mostrar o que era o Brasil para os brasileiros". Mas havia muitos senões: Mário e seu grupo (que incluía Sérgio Milliet, Paulo Duarte, entre outros) tinham aversão à política e acreditavam que

apenas a cultura poderia modificar o homem e deixá-lo melhor. Daí o pacto algo mefistofélico. "Os intelectuais acabam negociando a perspectiva de levar a cabo uma obra pessoal em troca da colaboração que oferecem ao trabalho de constituição nacional', silenciando quanto ao preço dessa obra que o Estado indiretamente subsidia", observa Sérgio Miceli. "Na condição de presas do Estado, resolveram esse dilema cedendo ao encanto de justificações idealistas." Como diz o personagem central de Mephisto, livro de Klaus Mann, ao se ver confrontado com a maldade com que colaborara: "Eu sou apenas

Mário de Andrade (ao lado), Cabeça de Cristo (acima) e figuras de Xangô PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 • 83


Mamoeiro, de Tarsila do Amaral, Serão em casa de Mário de Andrade, de Noemia Mourão {abaixo), e Retirantes, de Clóvis Graciano (.ao lado)

um ator". "Parece haver uma certa ingenuidade do grupo do Departamento de Cultura em relação à política. A ilusão de que era possível prescindir da política para empreender seu trabalho custou muito a Mário de Andrade, mostrando, além disso, que a cultura era insuficiente como álibi de sua posição e mesmo como instrumento de transformação social", observa Barbato. Não sem razão, o próprio modernista chamou sua gestão de "meu túmulo", ao mesmo tempo que, para aumentar a ambigüidade da sua situação, exclamava num discurso, feito após o malogro do Departamento, que "se refugiar em livros de ficção e valores eternos como amor, amizade, Deus, a natureza, é um abstencionismo desonesto e desonroso como qualquer outro. Uma covardia como qualquer outra. De resto, a forma política da sociedade é um valor eterno também". O pacto teve início com uma conversa entre Paulo Duarte e o prefeito Fábio Prado sobre a criação de um organismo que começaria paulista para, depois, se expandir pelo Brasil. O "nomão"que lhes veio à cabeça para dirigir a iniciativa foi o de Mário de Andrade. "Você vai acabar com meu sossego iríermão", reagiu o modernista, que repensou ao re84 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

fletir que, talvez, "as antigas aspirações dos modernistas que queriam ver concretizado um veículo de cultura seriam abandonadas enquanto simples fantasia", nota Barbato. Quem sabe faz. Afinal, dizia Mário, "ainda não se percebeu em nossa terra que a cultura é tão necessária quanto o pão e essa é a nossa mais dolorosa imoralidade cultural". Como observa o pesquisador, o Departamento, no fundo, era uma continuidade da posição pessoal do modernista

e o que houve foi uma personificação de seu projeto de realidade nacional. No entanto havia uma ligação indesejável entre esse projeto e outro, conservador e bairrista, levado a cabo pelos paulistas da Revolução de 32, que desejavam, também por meio da cultura, retomar a hegemonia paulistana no Brasil. "De certa forma, a aventura dos intelectuais paulistanos pode ser vista como um desdobramento desse objetivo, ao menos no plano cultural." O preço subia.


Ainda assim, a utopia parecia valer e muito: o Departamento de Cultura pretendia "rechaçar o caráter ornamental da cultura brasileira e uma 'ida ao povo' que se exprime no ideal de democratização do acesso à cultura", explica Barbato. Mário e seus amigos desejavam "elevar" o povo à cultura burguesa e não destruí-la, propiciando o acesso a concertos, exposições e aos livros em bibliotecas ambulantes. Ao mesmo tempo, quiseram buscar o Brasil profundo e trazê-lo ao conhecimento das sociedades urbanas que, em geral e por vontade das elites, nem sabiam da sua existência. "Nesse contexto, eles são utópicos, no sentido de um estado de espírito incongruente com a realidade social. A utopia só se realiza na medida em que há a subversão da ordem social estabelecida. No caso deles, fica claro o papel de democratização da cultura na cidade de São Paulo", avalia o pesquisador. Há, porém, a sutileza do dilema: como subverter a ordem social fazendo parte

integrante do Estado que está lá para manter essa ordem burguesa em vigor? "Sempre considerei o problema máximo dos intelectuais brasileiros a procura de um instrumento de trabalho que os aproximasse do povo", escreveu Mário. "Podemos entendê-los então como divulgadores e administradores no papel de uma missão civilizatória, cujo cerne não poderia se situar fora da esfera cultural", analisa o autor. Daí o seu caráter, segundo Barbato, de missionários do nacional-popular. Exclusão - "O público que vai ao Municipal não representa absolutamente o povo da cidade, que elegeu os donos da Prefeitura, pra que esta por preços exorbitantes satisfizesse uma moda da elite. O povo foi abolido da manifestação melodramática oficial da cidade", reclamava o modernista. Assim, ingressos gratuitos para todos e programas didáticos que chegavam mesmo ao ponto de ensinar quando aplaudir durante os

concertos. O mesmo se deu com as bibliotecas ambulantes, que deveriam democratizar o acesso à leitura, chamadas de "loucura de menino" por Prestes Maia, para quem a iniciativa "oferecia romances policiais para os desocupados da praça da República". O prefeito que iria substituir Fábio Prado não se interessava por cultura, e sim por urbanismo. Em vez de livros e música, Maia queria gastar seu dinheiro com avenidas e pontes. Mas enquanto isso, às pressas, antes de cair, Mário despachou para o Nordeste a sua Missão de Pesquisas Folclóricas, para tentar trazer de volta o Brasil ainda intocado pela industrialização. Boa parte do resultado desse esforço de "mostrar o Brasil aos brasileiros" pode ser visto até 25 de janeiro no Instituto de Estudos Brasileiros da USP, na exposição Coleção Mário de Andrade, com curadoria de Marta Rossetti Batista, reunindo as obras de arte sacra, tradicional e popular, arte indígena e afrobrasileira, reunidas pelo poeta ao longo de sua vida e, em especial, pela Missão. Ao mesmo tempo, a Edusp acaba de editar o catálogo dessa mostra. Em 1938 Mário foi demitido e partiu para o exílio no Rio de Janeiro. Para o amigo Paulo Duarte, foi o início de sua morte. Seja como for, a experiência foi um paradigma usado por Getúlio durante o Estado Novo, quando a ambigüidade da relação entre artistas, intelectuais que queriam construir uma consciência de nacionalidade e o poder estatal iria se consolidar. "A questão da cultura passa a ser concebida em termos de organização política, ou seja, o Estado cria aparatos culturais próprios, destinados a difundir sua visão de mundo para o conjunto da sociedade", diz Barbato. O dilema mefistofélico se desvanece. "O Estado Novo, como o coroamento da 'revolução passiva', correspondia a uma demanda de Estado expressa também como demanda de unificação cultural, resumido num projeto sui generis: a um só tempo modernizador e restaurador de pilares da nacionalidade. Tudo em nome do bem comum e da construção da nação. Dessa forma foi bem aceito por setores da intelectualidade", observa o pesquisador. O ovo da serpente fora aberto de vez. Nacional e popular ganham novos sentidos. • PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 85


I HUMANIDADES

HOMENAGEM

Fantasia desfeita Morte de Celso Furtado, aos 84 anos, traz de volta a questão dos problemas do subdesenvolvimento nacional

A morte tem o poder de erradicar todos os /% defeitos do falecido e não foi diferente com Zjk Celso Furtado (1920-2004). Personalidai m des se derreteram em elogios, relemJL. .A^ brando o economista paraibano. Mas, em meio à mesmice das declarações, é possível perceber que a força real de Furtado aparece nas entrelinhas. "Ele enriqueceu o Brasil e não a si próprio", disse José Serra. "Foi um exemplo notável de como se dedicar ao estudo da economia para apresentar transformações sociais", observou Eduardo Suplicy. "Era um grande pensador do desenvolvimento do país e, sem ele, o Brasil perde um pouco de sua vontade de crescer", declarou Delfim Netto. "Mais do que um economista, Furtado era um brasileiro que nos enchia de orgulho por seu compromisso com o Brasil, com a América Latina e com todos os países em desenvolvimento", notou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Curiosamente, essas frases trazem o verdadeiro Celso Furtado, um intelectual que, nos moldes de Gilberto Freyre ou Sérgio Buarque de Holanda, via-se com a missão de entender o Brasil para fazer dele uma nação. Mesmo em constante mutação: do otimista pré-golpe de 64, que acreditava na eficácia da participação política e tinha esperança no desenvolvimento nacional, até o pessimista dos anos 1990, no ostracismo e presenciando a vitória do que mais temia: o neoliberalismo e a globalização. Entre os dois, foi um amargurado com sonhos de mudança que, nos anos 1970 e 1980, sofreu ao ver os militares dourarem a pílula do subdesenvolvimento ao implementar, na marra, a modernização que beneficiou apenas a elite. É sintomático que tenha batizado um de seus muitos livros de A fantasia desfeita. Economistas não trabalham com fantasias nem sonham com nações. A economia de Furtado não é a mesma dos tecnocratas; antes, ancorava-se numa crença no poder da política para controlar as forças econômicas e preconizava a necessidade da distribuição da renda para humanizar 86 - DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

a sociedade. O economista, em verdade, escondia o pensador político e social. A era em que ele produziu suas obras mais importantes, os anos 1950 e 1960, foi de grande efervescência intelectual na América Latina. Revisitava-se o ideal pós-1930 da inevitabilidade de uma nova Revolução Industrial, desta vez conduzida pelos Estados, para fazer frente ao aumento da demanda (crescimento demográfico) e do estrangulamento da oferta, já que a maioria dos países estava em descompasso com a modernidade do empresariado do Primeiro Mundo. Por que alguns países cresciam e prosperavam e outros, como o Brasil, viviam à margem das vantagens do capitalismo? Desde o início a pergunta acompanhou o pensamento de Furtado, que fez da questão do desenvolvimento, ou do subdesenvolvimento nacional, e da inserção periférica do país no sistema capitalista internacional parte de sua missão. Pensadores como Freyre e Buarque de Holanda se debruçaram sobre esse dilema, mas Furtado foi o pioneiro em usar a economia política, em vez de interpretações biológicas, climáticas ou raciais. Para ele, faltavam racionalidade no sistema econômico e um grupo de intelectuais e políticos que se colocassem acima dos interesses de classe, pondo-se, em suas palavras, "a serviço dos interesses da nação". Para Furtado, país subdesenvolvido, mera fonte de matéria-prima para outros, sempre à mercê de decisões externas, não se podia considerar uma nação. Nisso foi fundamental a passagem, entre 1949 e 1953, pela Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal), no Chile, e o contato com seu secretário-executivo, Raul Prebisch. As teses cepalinas repensavam o papel do intelectual, agora convertido em força ativa, e criticavam o ideário liberal, que livrava o mercado da intervenção do Estado. Antes da Cepal, acreditava-se numa divisão internacional do trabalho com países destinados naturalmente à produção agrícola e outros, à produção in-


dustrial, tudo funcionando à perfeição, já que, no fim das contas, haveria um equilíbrio global e todos sairiam ganhando. Logo, os países exportadores de matérias-primas não precisariam transformar suas estruturas produtivas. Os cepalinos puseram o dedo na ferida: o progresso e o desenvolvimento do chamado "centro" (os países industrializados) ocorriam em detrimento dos exportadores de primários, a "periferia". Furtado usou esse instrumental para dissecar o Brasil e revelar que o dualismo também vigorava internamente: no mesmo país conviviam setores atrasados, voltados para os primários, onde estavam as camadas populares, e outros, modernos, cujo padrão de vida e consumo eram semelhantes aos países do centro. O economista viu nisso a ponta do iceberg do subdsenvolvimento e deu a receita para a virada: industrialização e reforma agrária. Mais: questionou como era possível fazer o país crescer usando modelos externos: o Brasil tinha abundância de mão-de-obra e terras, mas pouco progresso técnico. O resultado era óbvio: desemprego, baixa produtividade e, logo, subdesenvolvimento, para ele, o grande obstáculo para a construção de uma integração nacional, de uma nação. Começou a sua missão pela história. Em Formação econômica do Brasil, de 1959, avaliou a singularidade do desenvolvimento capitalista do país que, nascido parte integrante do sistema capitalista mundial, logo se desviou para o subdesenvolvimento. "Esse é um processo histórico autônomo e não uma etapa pela qual tenham, necessariamente, passado as economias que já alcançaram grau superior de desenvolvimento", escreveu. Foi o primeiro embate com os liberais, que agrupavam de forma universal o desenvolvimento das economias. Havia exceções. E elas eram provocadas por escolhas políticas, já que, para Furtado, tudo se resumia à maneira pela qual se dava a difusão do progresso técnico pela sociedade. Nos países do centro, a escolha de uma dada tecnologia obedecia a critérios racionais, ou seja, se usaria uma ou outra técnica pari passu com a otimização do uso de terras e mão-de-obra. Ricos e pobres se beneficiavam do progresso técnico. No Brasil, era o avesso. As elites políticas escoPESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 87


lhiam o caminho mais benéfico para elas: o progresso estava a serviço de padrões de consumo sofisticados e que mimetizavam o centro do sistema econômico. Na maioria das vezes se optava por tecnologias que poupavam trabalhadores e terras, que o país tinha em abundância. "Nas economias desenvolvidas existe um paralelismo entre a acumulação das forças produtivas e diretamente os objetos de consumo. O crescimento de uma requer o avanço da outra. A raiz do subdesenvolvimento reside na articulação entre esses dois processos causada pela modernização", avisou. "O que caracteriza o desenvolvimento é o projeto social subjacente. O crescimento funda-se na preservação dos privilégios das elites que satisfazem seu afã de modernização. Quando o projeto social dá prioridade à efetiva melhoria das condições de vida da maioria da população, o crescimento se metamorfoseia em desenvolvimento. Mas essa metamorfose não é espontânea. Ela é fruto da expressão de uma vontade política." O problema do Brasil não era falta de progresso técnico, mas a nãodifusão dele por toda a sociedade. A industrialização não era sinô/% nimo de desenvolvimento L^L puro e simples. Sem conÊ M trole e planejamento, os ^Lm .^L> riscos eram grandes como os do modelo arcaico. Em 1955 Furtado elabora o Esboço de um programa de desenvolvimento para a economia brasileira, que serviu de base para o Plano de Metas de Juscelino Kubitschek. O sonho pareceu possível para o economista. Mas, se naquele momento as estruturas produtivas nacionais estavam se alterando, a estrutura agrária e a mentalidade das elites dominantes ainda eram as mesmas de antes da Revolução de 30. Ele não percebeu isso e, baseado na crença keynesiana do papel benéfico de intervenção estatal, ainda acreditava que eram possíveis escolhas políticas racionais para os rumos econômicos: o Estado poderia fazer com 88 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

Furtado, ao lado de Goulart iao centro): o teórico vira ministro e tenta colocar idéias em prática

que o excedente econômico e os avanços técnicos fossem empregados em acordo com as condições sociais e econômicas do Brasil, quebrando o ciclo do subdesenvolvimento. As fantasias ainda não estavam desfeitas. Bastava que a sociedade optasse pela industrialização racional e modernizadora, que atingisse a todos. Dessa maneira, afirmava, decisões políticas internas se refletiriam em mudanças externas na forma como o país se integrava no sistema econômico internacional. Era preciso se repensar internamente (incluindo-se aí a reforma agrária, que pararia o sangramento do êxodo rural, que rebaixava os salários urbanos e concentrava a renda) para romper de vez o sistema centro-periferia, que, acreditava, nada tinha de natural. Furtado colocou em prática esse ideário ao dar subsídios para a criação, após longos estudos da Região Nordeste, da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), em 1959. Três anos depois voltaria ao governo, nomeado por Goulart para ocupar o novo ministério, do Planejamento, onde editou um Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social. Teve tempo, ainda em 1962, para lançar dois

livros: Subdesenvolvimento e Estado democrático e A pré-revolução, em que reafirmava a chance que o país tinha de reformular sua política econômica em moldes adequados ao modelo brasileiro e, assim, crescer e distribuir a riqueza pela sociedade. Suas idéias colocaram seu nome no topo da lista de cassados do AI-1 e o levaram ao exílio, de início no Chile e, mais tarde, em Paris, onde ficou por 20 anos. O "milagre econômico" transformou suas crenças em ilusões perdidas. O regime forte dos militares introduziu a modernização do subdesenvolvimento, quando foram adotadas algumas práticas do capitalismo contemporâneo (urbanização, novos padrões de consumo, nascimento de novos segmentos produtivos etc), mas deixando inalterados os aspectos fundamentais que efetivamente geravam o subdesenvolvimento. A fachada de desenvolvimento iria agravar a realidade subdesenvolvida e até mesmo perpetuar o atraso brasileiro. Furtado virou pessimista e reviu suas crenças nas possibilidades reais de reverter o quadro de retardo econômico. Desilusão - O mito do desenvolvimento econômico, de 1974, expressa essa


Furtado no exílio, em Paris: o otimista foi dando lugar ao pessimista

desilusão. O problema do país, escreveu, era "gerar fontes de emprego para sua numerosa e crescente população, grande parte da qual vegeta em setores urbanos marginalizados ou na agricultura de subsistência". Se algo se modernizou no Brasil, explicou, foi a demanda, não a oferta ou a estrutura produtiva. Ao contrário do que pensara, o que se viu no período entre 1930 e 1970 foi apenas uma mudança dos padrões de consumo, sem nenhuma elevação ou ganho de produtividade. O regime militar piorou a situação ao fazer reformas que apenas concentraram ainda mais a renda e favoreceram o consumismo mimético. O economista deixou, de vez, sua roupagem técnica e se assumiu como pensador social. No novo livro, à Freyre, Furtado confessa o engano do entusiasmo anterior e questiona culturalmente a elite nacional. "A reprodução das formas sociais, que identificamos como subdesenvolvimento, está ligada às formas de comportamento condicionadas pela dependência." Mais do que uma questão econômica, tratava-se de uma herança ancestral colonial de que o país não abria mão. "Para a elite manter-se moderna, ela apenas imita o comportamento das eli-

tes cêntricas, o que obriga mudanças na estrutura produtiva que necessariamente devem adaptar-se a este novo estilo. Assim, o crescimento industrial não supera o subdesenvolvimento e a dependência. E toda economia subdesenvolvida é dependente, pois o subdesenvolvimento é uma criação da situação de dependência." Não adiantava idealizar: nesse contexto, o desenvolvimento era um mito. Igualmente não se podia pensar na construção de uma nação num país cujo desenvolvimento se dava aos solavancos, com o processo de industrialização a reboque da lógica da modernização dos padrões de consumo da elite. Apesar do desalento, em 1979, com a anistia, Furtado retornou ao Brasil. O pessimismo agora é confesso em O Brasil pós-milagre, de 1981, em que antecipa as conseqüências terríveis da inflação, da dívida externa, da crise energética, do caráter anti-social do modelo econômico e o papel das empresas transnacionais. Em 1985 ensaiou retornar ao Estado, convidado por Tancredo Neves para elaborar o Plano de Ação do Governo. Terá outro papel: ministro da Cultura de Sar-

ney, em 1986, participando de forma triste do triste episódio da censura do filme Je vous salue, Marie, de Godard. Debaixo de críticas, deixou o ministério em 1988. Mas será a desilusão com o novo modelo econômico o golpe mais forte em Furtado, como demonstra o livro Brasil: a construção interrompida, de 1992, crítica do projeto neoliberal dos anos 1990 que, segundo ele, abortou a construção possível da integração nacional, ao subtrair do Estado a sua função reguladora e ao colocar a lógica da economia voltada para o mercado externo, sem nenhuma preocupação com as desigualdades internas. "As transnacionais, o grande capital financeiro e o grupo dos países mais ricos atuam como forças desreguladoras do sistema nacional. E essas forças dão duas opções ao Brasil: ou adapta-se à nova ordem internacional ou torna-se um anacronismo histórico." Furtado não quis festejar, como tantos, a globalização emergente e passou a ser visto, ele, como um anacronismo. Em 1997 teve uma pequena alegria: a eleição para a Academia Brasileira de Letras. Depois ficou por anos calado e só voltou a falar, e muito, sobre política e economia, com a eleição de Lula. Antes de morrer, atacou o atual modelo econômico. Curiosamente, morreu próximo à queda de um de seus grandes discípulos: Carlos Lessa, ex-presidente do BNDES. Furtado exagerou sua crença na autonomia do Estado burguês e no interesse deste na distribuição da riqueza pela sociedade. Demorou a perceber a dependência cultural das elites e foi otimista em demasia ao acreditar que a reversão das estruturas tecnológicas e a incorporação dos salários nos ganhos de produtividade iriam tirar o país do subdesenvolvimento. Seja como for, o seu desencanto com a globalização não é mais privilégio da esquerda. Mas, com certeza, o que o deixaria mesmo feliz é ser lembrado por ser o brasileiro que nos enchia de orgulho por seu compromisso com o Brasil. • PESUUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 89


RESENHA

A dinâmica da antropologia Coletânea de artigos revela a maioridade intelectual da disciplina JúLIO ASSIS SIMõES

Eunice Ribeiro Durham é um referencial no ensino e na pesquisa em antropologia entre nós. Não só para as diversas gerações de estudantes e profissionais da área, que tiveram o privilégio de acompanhá-la em sua melhor forma, na sala de aula e no campo, ao longo de impressionante carreira que já conta cinco décadas. Todos os que se engajaram em investigações e debates a que ela se dedicou, sobre temas medulares nas ciências sociais brasileiras nas últimas cinco décadas - e a lista não é pequena: migração, urbanização, família, participação política, movimentos sociais, institucionalização da antropologia, ensino universitário -, podem testemunhar o alcance e a influência de suas contribuições e polêmicas, que conservam muito de seu impacto e atualidade. Por isso só se pode saudar a iniciativa dessa publicação (que deve ser creditada a Ornar Ribeiro Thomaz) reunindo artigos de toda a trajetória da professora emérita da Universidade de São Paulo (USP). Como assinala Peter Fry no belo prefácio, a coletânea, além de perfazer uma autobiografia intelectual da autora, oferece ao leitor uma parte da história da antropologia no Brasil, em que também se afirma a maioridade intelectual da disciplina. Da visão antropológica, enriquecida pelo diálogo com a sociologia, a ciência política, a história e (por que não?) a biologia, são enfrentadas grandes questões: a explosão da vida urbana e da sociedade civil organizada, a resistência à ditadura militar e a transição para a nova democracia, a expansão e os desafios da educação básica e da universidade. Nada mau para uma disciplina tida como eterna outsider das ciências sociais. A coletânea permite identificar alguns traços persistentes no pensamento e na obra de Eunice Durham. Encontramos, inicialmente, trabalhos representativos de sua formação na antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, na década de 1950, em sua preocupação com a "mudança cultural". Destacamos a dupla marca dessa formação: a incorporação das técnicas e perspectivas da etno90 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

grafia clássica - Malinowski é uma paixão permanente, mas não menos significativa lhe Eunice Ribeiro Durham foi a tradição dos "estudos de comunidade" - e a orientaCosac Naify ção teórica provida pela ca480 páginas / R$ 59,50 deira de sociologia comandada por Florestan Fernandes. Provêm dessa aliança o interesse duradouro da autora em "entender como grupos ou segmentos sociais empiricamente delimitados vivem, atuam e pensam" como também sua insistência em que estudos de base etnográfica sejam referidos ao contexto histórico mais amplo e à "importância crucial da dominação política e econômica". Essa marca a afastou dos estudos de "aculturação", que davam a tônica da velha cadeira de antropologia da USP, e foi transposta para o programa de pesquisas com populações urbanas, com ênfase nas relações entre cultura e política, que ela desenvolveu nas décadas de 1970 e 1980, ao lado de Ruth Cardoso. Alocadas ambas na área de ciência política, formaram novas gerações de antropólogos num contexto institucional e político bem diferente: no país, sob a ditadura militar; nas ciências sociais uspianas, sob a hegemonia do marxismo. Nessa fase, apropriadamente chamada de "heróica" pelo prefaciador, Eunice Durham escreveu talvez os seus melhores ensaios: "A dinâmica cultural na sociedade moderna", "Cultura e ideologia", "Movimentos sociais: a construção da cidadania", entre outros. São diálogos fecundos da antropologia com o marxismo, argutos na avaliação das formas então emergentes de participação cultural e política; e precisos na crítica tanto ao abuso dos macroconceitos estruturais como na confiança ingênua nos recursos da pesquisa qualitativa. Juntamente com a magistral introdução preparada para o volume ("Uma história muito pessoal de meio século de antropologia na USP"), merecem ser (re)lidos com especial atenção, sobretudo pelos jovens pesquisadores. A dinâmica da cultura

é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp e professor do Departamento de Antropologia da USP, autor de O dilema da participação popular (Marco Zero/Anpocs, 1992) JúLIO ASSIS SIMõES


LIVROS

O rei ausente

Para uma nova história

Ana Paula Torres Megiani Editora Alameda / FAPESP 326 páginas / R$ 44,00

Textos de Sérgio Buarque de Holanda Marcos Costa (organizador) Editora Fundação Perseu Abramo 174 páginas / R$ 30,00

Festa já foi coisa muito séria, assunto mesmo de Estado. É isso que revela esse livro sobre a festa, a etiqueta e o poder no "tempo dos Filipes", período histórico escolhido por Ana Megiani para discutir a importância das cerimônias no Antigo Regime, momentos em que se recriava, de forma alegórica, o status quo monárquico e a hierarquia, uma maneira de perpetuar a ordem estabelecida. O "tempo dos Filipes" foi o período em que Portugal esteve submetido à Espanha. Alameda Casa Editorial (11) 3862-0850 www.alamedaeditorial.com.br

Luta história da tísica no Êtrasil

Perdidos no tempo e no espaço de velhos jornais, os artigos de Sérgio Buarque de Holanda foram recuperados pelo historiador Marcos Costa e trazem novas luzes sobre o pensamento do autor de Raízes do Brasil. São escritos que perpassam toda a vida do pensador, dos anos 1920 até os anos 1970, obras curtas, enxutas que, ainda assim, tratam de temas como capitalismo, democracia, filosofia e escravidão. O resultado é um perfil menos acadêmico e mais político. Editora Fundação Perseu Abramo (11) 5571-4299 www.fpabramo.org.br

Uma história da Física no Brasil

Trincheira, palco e letras

José Leite Lopes Editora Livraria da Física 224 páginas / R$ 39,00

Antônio Arnoni Prado Cosac Naify 350 páginas / R$ 49,50

Um dos maiores nomes da física nacional, José Leite Lopes tem, finalmente, seus escritos mais importantes reunidos em livro. São várias seções que falam da física brasileira e mundial. Leite Lopes faz um balanço de seus 55 anos de carreira, dá sua visão sobre cientistas ilustres, como Einstein, Newton, entre outros. Os blocos finais revelam a preocupação com o descaso pela pesquisa no Brasil e a responsabilidade da ciência. Editora Livraria da Física (11) 3816-7599 www.livrariadafisica.com.br

Um dos mais respeitados estudiosos da literatura brasileira lança uma coleção de artigos sobre as letras nacionais no século 19 que consegue formar um panorama do desenvolvimento da nossa escrita. São cinco blocos: "Boêmios, letrados e insubmissos", sobre os escritores da Belle Époque; "Cena libertária", sobre os escritores libertários; "Interregno", sobre Augusto dos Anjos e Euclides da Cunha; "Variações sobre um narrador sitiado", sobre Lima Barreto; e um ensaio sobre Sérgio Buarque, entre outros. Cosac Naify (11) 3218-1444 www.cosacnaify.com.br

A irrecusável busca de sentido Scarlett Marton Ateliê Editorial 288 páginas / R$ 36,00

0 "it verde e amarelo" de Carmen Miranda [1930-1946] Tânia da Costa Garcia Annablume/FAPESP 252 páginas / R$ 35,00

Conhecida por seus estudos sobre Nietszche, a professora da Universidade de São Paulo Scarlett Marton, quase nos moldes do mestre alemão, resolveu fazer da experiência de seu concurso para professora titular de filosofia na Universidade de São Paulo o tema de um livro autobiográfico. Mas, mais do que revelar o seu percurso intelectual, Scarlett quer discutir a condição humana e o papel assumido hoje pelo mundo acadêmico.

Como desvendar a vida real e a verdadeira importância de uma diva como Carmen Miranda? Foi a isso que se propôs a pesquisadora nesse estudo que pretende descobrir o que a cantora e atriz portuguesa, símbolo do Brasil até hoje, significou. Tânia disseca todo o mistério que envolve a utilização da artista como ponte entre Brasil e Estados Unidos.

Ateliê Editorial (11) 4612-9666 www.atelie.com.br

Annablume Editora (11) 3812-6764 www.annablume.com.br PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ 91


Travessia BRUNO ZENI

A rotina clínica, para o paciente, é ao mesmo tempo um estorvo e um conforto. A mãe tomou um ZA susto ao medir a pressão - altíssima - num exame rotineiro. De súbito, tudo o que nos parecia -L JL hábito e cuidado passou a significar descaso. Para os que são próximos, como eu - ainda que morando a distância -, vive-se com mais intensidade o costume da recorrência: as consultas constantes asseguram certa confiança, que os médicos dosam com sabedoria. A ocorrência inesperada, porém, nos devolve, paciente e familiares, ao plano da incerteza e da intranqüilidade. A pitose no olho direito não regredia, um dos braços - do mesmo lado direito do corpo - continuava inchado, e o cansaço que ela sentia - ela que sempre fora uma mulher disposta - não era habitual, fato que nos deixava apreensivos, mas não preocupados o suficiente para que nos decidíssemos a consultar outros nomes. Eu, a distância, acompanhava o caso pelas palavras do pai. Havia água no pulmão, como informariam depois os exames. E também os ossos talvez tivessem sido atingidos, o que os levou, os novos médicos, a pedir uma cintilografia óssea. Agora, durante a visita de emergência que faço aos meus pais, ouço da própria mãe o relato dos acontecimentos recentes. O geriatra não levou em conta a pressão fora do normal e o oftalmologista supôs que a queda da pálpebra pudesse decorrer de alguma alergia. A mãe, porém, nunca fora alérgica a nada. A pressão, aliás, sempre tendeu à queda mais do que à alta. Ambos, geriatra e oftalmo, desconsideraram o histórico clínico - nada desprezível - da paciente. "Vocês ligaram para o mastologista?" eu quis saber. Era o médico que a havia operado e que, de certa forma, tinha responsabilidade pelo quadro clínico geral da mãe. Ignoro se é a conduta recomendada para o caso, mas o mastologista era, digamos, o titular. E, afinal, me parece que quem decide pela conduta mais acertada são os próprios médicos, não o paciente. Não é para isso que eles servem? "Vocês ligaram para o seu médico?", eu quis saber, enquanto ainda retinha a mãe junto ao meu corpo, num abraço de filho crescido. Para acompanhar todo o procedimento de longe é preciso administrar a angústia. Tive, pela primeira vez, a sensação forte de que a mãe pode morrer. "A mãe pode morrer" - essa frase tornava-se recorrente dentro de minha cabeça, ecoando materialmente em torno de meus pensamentos cotidianos. "E talvez não demore." Talvez a morte tenha reservado um ritmo galopante para nossas vidas de compasso regular. O horizonte da vida, assim, começava a parecer muito próximo, tomando concretude. Eu podia entrevê-lo numa medida de tempo alarmante. Um ano, meses, semanas? Nossas vidas organizavam-se em torno dela, percebi pela primeira vez com toda nitidez. A mãe nos unia em torno de sua personalidade. Marido e três filhos homens, todos com trajetórias particulares e muito pessoais, com as quais ela sabia se relacionar com especial atenção a cada um. Sua falta seria um rombo em nossas existências seguras e encaminhadas. Uma mudança de rota? Uma troca de mapa? Um novo espírito? As metáforas me soavam desprovidas de significado. Pareciam, também elas - como todos nós -, quase mortas. Reencontrar a mãe depois de meses foi, assim, reconfortante e ao mesmo tempo assustador. A estrada, deixada para trás, era um caminho de retorno a uma situação com a qual eu nunca havia deparado. Eu voltava a casa de meus pais, mas já não como filho que busca aconchego e segurança, mas como um homem que vai de encontro à possibilidade da morte súbita. Vim ao encontro da falta da mãe, sabendo que ainda a encontraria presente. O caminho era novo e eu precisava me certificar de que poderia atravessá-lo. 92 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106


Me senti desestabilizado como há muito não sentia. Sem nada comentar diretamente, compartilhamos a experiência. Acho que a recorrência da moléstia também a atingiu, e o sentimento de abandono gerado pela postura dos médicos - geriatra e oftalmologista - assolou-a mais do que a idéia de que a doença não estava de todo debelada. "Depois que mediram a pressão, não me deixaram mais sair da clínica", ela contava agora, de novo apartada dos meus braços de filho adulto. "A equipe toda é muito atenciosa", a mãe continuou. "Não sei o que teria acontecido se eles não tivessem tomado conta de mim." Estava emocionada com a dedicação com que a nova equipe a tinha tratado. Vi a mãe chorar. Algo raro, muito raro, em todos esses anos. "Não precisa muito. Basta um pouco de atenção. O paciente sente quando alguém se preocupa com ele, e essa é a tarefa do médico, ele tem de desconfiar e cercar todas as possibilidades", o pai ainda disse, como forma de comemorar o encontro com a equipe nova, enquanto a mãe enxugava as lágrimas. Minha mãe continua bonita, pensei. Continua bonita a minha mãe e talvez até mais atraente, agora que sua luta, explícita, a torna mais forte, mais viva, mais mulher. "Vai deixar de ser uma doença fatal para ser uma doença crônica", disse o médico, ao final de mais uma bateria de exames. Em outras palavras, teremos de nos habituar com a rotina confortadora e exasperante do tratamento e de suas seqüelas. O cabelo enfraquecido, enjôos e falta de paladar, queda de imunidade, ressecamento das mucosas, inchaço do rosto. Hoje, quando penso na frase do médico, oscilo entre o alívio e o pesar. Talvez a morte seja mesmo um evento que exija mudanças de rotas, trocas de mapas e renovação do espírito. Só ela, e não a percepção de sua ocorrência, é capaz de promover essa ruptura e essa cicatriz. Mas encarar sua possibilidade exige o convívio entre a permanência do antigo mundo e a ferida que ainda não veio mas virá. Eu pensava em tudo isso enquanto minha mãe terminava de narrar sua peregrinação, da clínica para o hospital, de médico geriatra para um novo oncologista, da periodicidade dos exames para a constância dos procedimentos terapêuticos. Certo, precisamos nos acostumar com a idéia de que, em algum momento, envelhecemos todos, mas a doença nos empurra de peito aberto rumo à degeneração, sejamos jovens, adultos ou velhos. Enquanto a morte não chega, vivemos com seu gosto nos lábios, sentindo-o de quando em quando, de forma que os momentos vitais assumem significação luminosa, a ponto de não conseguirmos assimilá-los, tão intensos e incisivos. Eu pensava nessas coisas todas, enquanto meus pais e eu adentrávamos a casa, reconfortados por estarmos mais uma vez juntos, os três vivos, os dois ainda casados, amando um ao outro, eu adulto e sozinho, numa situação improvável e fugaz. "Ser é lembrar. É do ser humano ser um ser rememorativo. A morte apaga a essência do ser." Agora eu colecionava frases quebradiças e recorrentes, que reverberavam - metálicas - pelo caminho. nasceu em 1975, em Curitiba (PR). É formado em jornalismo e mestre em Teoria Literária pela USP. É autor de O fluxo silencioso das máquinas (Ateliê Editorial) e coordenador editorial de Sobrevivente André du Rap (do Massacre do Carandiru) (Labortexto Editorial). BRUNO ZENI

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ARTIGO

Aula de física

m ■ esquisa FAPESP quebra um tabu nas páginas a seguir. m ^Ê Pela primeira vez publica um longo artigo de um pesm quisador sobre um tema importante para a ciência. M Como se sabe, esta revista edita reportagens sobre proM. jetos de pesquisa de ciência e tecnologia e, apenas eventualmente, curtos artigos de pesquisadores. O físico e professor Roberto Salmeron, radicado há muitos anos na França, oferece aos leitores um relato único sobre os 50 anos do Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (CERN), um dos grandes feitos científicos do século passado. E aproveita para dar uma panorâmica bastante didática sobre as pesquisas de física de partículas. Este artigo se justifica não só pela importância do assunto, mas também pela excelência do autor. Físico, diretor de pesquisa emérito aposentado da Escola Politécnica da França, Roberto Salmeron foi um dos primeiros pesquisadores do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, no Rio de Janeiro, e do CERN, em Genebra, Suíça, professor da Universidade de São Paulo e da Universidade de Brasília. É autor do livro A universidade interrompida: Brasília, 1964-1965 (Editora UnB, 1999, esgotado) e é um dos pesquisadores entrevistados no livro Prazer em conhecer (FAPESP/Instituto Uniemp, 2004). Com este artigo, Pesquisa FAPESP crê contribuir para a história da física nesse período. PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ I


CERN Uma experiência científica, social e humana ROBERTO

A.

SALMERON

O laboratório Organização Européia para a Pesquisa Nuclear, conhecido pela sigla CERN, situado em Genebra, na Suíça, fundado em 29 de setembro de 1954, comemora 50 anos. Esse prestigioso laboratório é uma das maiores aventuras científicas do século 20. Sua importância é considerável não somente pelos sucessos científicos e tecnológicos, mas também porque inventou a colaboração internacional em ciências, criando uma nova relação em pesquisa entre os países e entre laboratórios de diferentes países, uma nova sociologia na ciência, que resultou numa experiência humana pioneira na história da civilização. O CERN é o maior laboratório do mundo em pesquisa fundamental, incluindo todas as ciências. Apesar de ser europeu, sua importância vai além da Europa, influenciando a física mundial. É a instituição internacional de maior sucesso, por ter atingido plenamente os objetivos para os quais foi criado. Sua história é exemplo de idealismo, de relações humanas, de colaboração entre países, de planificação científica e tecnológica, de formação de jovens pesquisadores, de relações da ciência básica com a indústria. Previsto inicialmente para que nele trabalhassem 400 pessoas dos 12 países que o criaram, é hoje freqüentado por 6.500 pesquisadores de 80 países. Uma das mais antigas curiosidades do homem é saber de que são feitas as coisas, como é feito o Universo, como compreender o que há na Terra e no céu. As tentativas de explicação começaram há mais de 5 mil anos com a mitologia e continuaram sem base objetiva durante séculos, sem o método experimental introduzido por Galileu no século 17. Os primeiros passos científicos se deram em meados do século 19 e grandes progressos foram feitos no século 20. Nos últimos 50 anos, desde o início do CERN, com trabalhos realizados em muitos lugares, não somente no CERN, aprendemos mais sobre a estrutura da matéria do que em toda a história anterior da humanidade. O objetivo do CERN é o estudo da estrutura íntima da matéria, isto é, das partículas elementares que II ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

constituem a parte mais profunda da matéria, e das leis que regem as forças exercidas pelas partículas entre elas. Aprendemos que essas partículas constituem todos os corpos existentes na Terra e no Universo. Conhecendo as leis que as regem, estaremos conhecendo leis fundamentais do Universo. Tive o privilégio de trabalhar no CERN desde a sua fundação, quando terminei meu trabalho de tese na Universidade de Manchester, na Inglaterra, tendo sido um dos dez primeiros físicos experimentais contratados pelo laboratório. Fui membro do quadro permanente de físicos durante dez anos e continuei fazendo experiências lá durante mais 25 anos como físico da École Polytechnique da França, até me aposentar. Tive então a oportunidade excepcional de acompanhar a evolução do laboratório desde a sua origem. Este artigo foi organizado levando-se em consideração que em sua grande maioria os eventuais leitores não conhecem a física de partículas elementares. Queremos mostrar a motivação para a fundação do CERN e o apoio constante que teve durante 50 anos, e continua tendo, de tantos países. Veremos como estudamos as partículas e o impressionante arsenal tecnológico desenvolvido para esses estudos. Por isso mostraremos inicialmente o que são raios cósmicos e sua contribuição à física de partículas, o que são aceleradores, a história da fundação do CERN, sua estrutura e os objetivos fundamentais das experiências no CERN. Daremos também algumas noções sobre física de partículas e sua relação com a astronomia, os grandes desafios científicos nesses ramos da física e, finalmente, um resumo dos sucessos do CERN. A primeira fotografia na página 6 mostra onde está instalado o CERN, na região fronteiriça entre o cantão de Genebra e a França. Os vários círculos correspondem aos lugares onde estão os aceleradores de partículas, em túneis subterrâneos. O círculo maior, de 27 quilômetros de comprimento, indica o Large Hádron Collider (LHC), cuja construção terminará em 2007.


1 - A física na Europa no fim da Segunda Guerra Mundial Para compreendermos a importância da fundação do CERN é necessário voltarmos à situação da Europa no fim da Segunda Guerra Mundial, que durou de setembro de 1939 a maio de 1945. Antes da guerra a ciência européia era a vanguarda. Os trabalhos fundamentais que assentaram as bases da física moderna foram feitos na Europa. Durante a guerra os laboratórios europeus foram destruídos, fechados ou tiveram sua atividade muito reduzida. De outro lado, os Estados Unidos, que também fizeram grande esforço de guerra, nunca tiveram batalhas em seu território, suas universidades e laboratórios ficaram intactos, a pesquisa continuou e um esforço enorme e apoio sem limites foram dados à física nuclear. Além disso, os Estados Unidos contaram com a colaboração de excelentes físicos europeus que para lá emigraram. A Europa tinha, no entanto, trunfos de grande valor: nível científico elevado e tradição. Terminada a guerra, a pesquisa foi retomada gradualmente, com poucos recursos disponíveis. Um dos campos da física ao qual alguns laboratórios se dedicaram foi o de raios cósmicos; em alguns casos construindo equipamentos de porte reduzido para experiências em que a imaginação era mais importante do que o material, em outros, retomando e completando o equipamento construído para experiências antes da guerra, interrompidas durante cinco anos. Raios cósmicos são relacionados com as pesquisas feitas no CERN com aceleradores de partículas. Vejamos inicialmente o que são raios cósmicos e algo sobre aceleradores. 2 - Raios cósmicos A física de partículas elementares, que se faz no CERN, começou com estudos de partículas em raios cósmicos. Existem fenômenos atômicos em todos os astros, e nesses fenômenos são produzidas partículas atômicas, como prótons, nêutrons, elétrons, fótons, que percorrem o Universo em todas as direções; muitas chegam até a Terra. Essas partículas atômicas que chegam do Universo à Terra são chamadas raios cósmicos, nome dado antes de sabermos o que eram. Quando chegam à atmosfera, colidem com as moléculas de ar e produzem mais partículas atômicas, que têm energia menor do que as partículas iniciais. As partículas emitidas pelos astros produzem assim cascatas ou chuveiros de partículas na atmosfera. Raios cósmicos constituem, portanto, uma fonte de partículas atômicas. Em experiências que detectavam raios cósmicos várias partículas foram descobertas e suas propriedades mais características foram medidas. Dois anos depois de terminada a guerra foram feitas na Inglaterra duas descobertas fundamentais em raios cósmicos, em 1947, com dois meses de interva-

lo. Na Universidade de Bristol, Cecil Powell tinha desenvolvido e posto em prática a técnica de emulsões nucleares espessas, de milímetros e centímetros de espessura, para detectar partículas, depois de vários anos de trabalho em colaboração com a fábrica de filmes Ilford (tinha iniciado o trabalho antes da guerra). Por essa técnica de grande importância Powell recebeu o Prêmio Nobel. Utilizando essas emulsões, Cecil Powell, César Lattes e Giuseppe Occhialini descobriram uma nova partícula atômica, que chamaram méson pi (letra grega jt). Na Universidade de Manchester, Clifford Butler e George Rochester trabalhavam com a técnica de câmara de Wilson, na qual a trajetória da partícula deixa um rastro que pode ser fotografado. Com essa técnica descobriram um novo tipo de partículas, que chamaram partículas V, atualmente chamadas partículas estranhas. As duas descobertas causaram sensação e uma revolução na física. A descoberta do méson pi não causou surpresa, porque teoricamente se esperava que um tipo de partículas com suas propriedades poderia existir, para explicar as forças existentes entre os prótons e os nêutrons dentro do núcleo atômico. Mas a descoberta das partículas estranhas foi grande surpresa, ninguém as esperava, não havia nenhuma evidência, nem experimental nem teórica, de que tais partículas pudessem existir. O grande físico inglês Patrick Blackett, diretor do Departamento de Física da Universidade de Manchester, dizia: "O que estão fazendo na natureza essas partículas? A natureza está nos enviando uma mensagem que nós ainda não compreendemos". A descoberta dessas partículas, especialmente das partículas estranhas, estimulou grande curiosidade. Formaram-se grupos de raios cósmicos em vários países europeus e nos Estados Unidos para estudar as novas partículas. Havia nesses grupos uma expectativa rara em ciência. Fazíamos experiências com a convicção de que novos domínios da natureza estavam se abrindo para nós, que a probabilidade de encontrarmos algo de novo era grande, mas não tínhamos a mínima idéia do que poderíamos encontrar. Não podemos deixar de assinalar que um grupo de físicos da Universidade de São Paulo (USP) teve papel importante nessa evolução. Quando a USP foi fundada, em 1934, assumiu a direção do Departamento de Física da recém-criada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras o professor italiano Gleb Wataghin, excelente físico teórico e experimental. Wataghin ensinou a nós, brasileiros, a física moderna do século 20 e como fazer pesquisa nessa física. Organizou um grupo para pesquisas em raios cósmicos que em poucos anos adquiriu reputação internacional. Gleb Wataghin e dois jovens, Paulus Aulus Pompéia e Marcello Damy de Souza Santos, descobriram em São Paulo, em 1940, um novo fenômeno físico: uma partícula colidindo com outra pode produzir na colisão outras partículas que penetram muitos centímetros na matéria, por exemplo ferro ou chumbo. Esse processo nunca tinha sido observado. Chamaram as partículas PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 • m


assim produzidas de chuveiros penetrantes, atualmente chamados chuveiros hadrônicos. Nos aceleradores como os do CERN, eles são produzidos milhões de vezes por segundo. A experiência de São Paulo foi feita com contadores Geiger-Muller, que são os mais simples detectores de partículas que existem. Lembremos que em 1940 a Europa estava em guerra. Quando ela terminou, Patrick Blackett propôs a George Rochester e Clifford Butler que repetissem na Universidade de Manchester a experiência de São Paulo com uma técnica diferente, a câmara de Wilson. Assim Rochester e Butler descobriram as partículas estranhas. O grupo de São Paulo contribuiu, portanto, para essa descoberta. O professor Wataghin disse-me uma vez que queria fazer a experiência com câmara de Wilson, mas não teve condições para fazê-la. Durante a guerra os norte-americanos construíram aceleradores de prótons, chamados ciclotrons, importantes para a física nuclear, alguns construídos em laboratórios nacionais que tinham trabalhado para as pesquisas de guerra. Depois da descoberta dessas partículas, os norte-americanos, com seus laboratórios intactos e com a hábito de financiar projetos importantes adquirido durante a guerra, começaram a construir aceleradores para o estudo do méson pi e das partículas estranhas, porque com aceleradores podemos estudá-los muito melhor do que com raios cósmicos. Na Europa havia somente dois ciclotrons pequenos, incapazes de produzir as novas partículas; um em Paris, no Collège de France, construído por Frederic Joliot antes da guerra, outro na Universidade de Liverpool, na Inglaterra, levado a termo pelo grupo de James Chadwik. A conseqüência foi que o estudo dessas partículas podia ser feito somente nos Estados Unidos, era uma ciência americana. 3 - Aceleradores de partículas Um acelerador, como o nome indica, é uma máquina que acelera partículas, isto é, aumenta a sua velocidade. Somente partículas que têm carga elétrica podem ser aceleradas; o próton e o elétron podem ser acelerados porque têm cargas elétricas, o nêutron não pode ser acelerado porque não tem carga elétrica. Isso porque a partícula é acelerada por um campo elétrico que exerce uma força sobre a carga elétrica e "empurra" a partícula. Quando uma partícula é acelerada, sua energia aumenta, como acontece com qualquer corpo acelerado. As unidades de energia utilizadas são chamadas milhão de elétron-volts, indicado por MeV, e giga elétron-volts, indicado por GeV. Um MeV é igual à energia que adquire uma partícula quando passa entre dois pontos que têm diferença de potencial de 1 milhão de volts. O GeV é mil vezes maior: é igual à energia que a partícula adquire quando passa entre dois pontos que têm diferença de potencial de 1 bilhão de volts. IV ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

Essas energias são grandes para partículas, porque elas adquirem grandes velocidades, muito próximas à velocidade da luz no vácuo, que é a maior velocidade que existe na natureza. Com 1 GeV, em um segundo podem percorrer sete vezes o equador terrestre. Mas são energias muito pequenas em comparação com as energias que utilizamos todos os dias. Por exemplo, um grão de areia de volume igual a 2 milímetros cúbicos, com velocidade de apenas 1 centímetro por segundo, tem energia igual a 1 GeV. No acelerador, a partícula tem de passar por uma região onde há um campo elétrico. Não é possível obtermos tensões tão altas, como milhões e bilhões de volts, para produzirmos esse campo elétrico. Usamos então uma astúcia. Fazemos a partícula percorrer uma trajetória circular, e nessa trajetória são colocados campos elétricos em várias regiões; cada vez que a partícula passa por esses campos ela é acelerada, e passando muitas vezes é muito acelerada. Por exemplo, a partícula pode passar por 10 mil volts cada vez que percorre a circunferência; percorrendo 1 milhão de vezes terá passado por 1 milhão x 10 mil volts, ou 10 bilhões de volts, isto é, 10 GeV. É por isso que muitos aceleradores são circulares. Todos os aceleradores de partículas têm fontes de diferença de potencial. Os aceleradores circulares têm eletroímãs que curvam a trajetória das partículas e as fazem descrever circunferências. Os eletroímãs não aceleram, não dão energia às partículas, somente fazem as partículas descrever circunferências. As partículas ficam dentro de um tubo metálico no qual se faz alto vácuo, superior ao vácuo interestelar no Universo. A segunda fotografia na página 6 mostra parte do acelerador de prótons de 400 GeV instalado num túnel subterrâneo, como todos os aceleradores do CERN. Aparecem alguns eletroímãs e o tubo metálico com alto vácuo, no interior do qual circulam os prótons. O comprimento do acelerador é de 6 quilômetros. As vantagens de estudarmos partículas com aceleradores em relação a raios cósmicos são imensas: a) com um acelerador de prótons, por exemplo, sabemos que são os prótons, de energia conhecida, que vão entrar em colisão, na qual serão produzidas as partículas que queremos estudar; em raios cósmicos, não conhecemos a natureza da partícula que colidiu nem a sua energia; b) o fluxo de raios cósmicos é pequeno; nas experiências para estudar as partículas estranhas em raios cósmicos era detectada uma colisão de cinco em cinco minutos, aproximadamente, e era detectada uma partícula por dia ou cada dois dias; com os aceleradores, são produzidos milhões de colisões por segundo e dezenas das partículas estranhas por segundo. Com o acelerador que o CERN está construindo, o LHC, haverá 1 bilhão de colisões por segundo. A terceira fotografia na página 6 mostra um detector de partículas. Esse aparelho complexo foi construído por uma colaboração de grupos de mais de 20 países, cada grupo tendo feito uma parte do detector


no seu país. As partes foram transportadas e o conjunto montado no CERN. Vemos que os detectores atuais são projetos industriais. O detector dessa fotografia é da penúltima geração; os que estão sendo construídos para o LHC são muito maiores. A quarta fotografia na página 6 mostra trajetórias de partículas com carga elétrica num detector colocado dentro de um eletroímã. O campo magnético faz com que as trajetórias sejam circulares. 4 - A idéia de Louis de Broglie e a fundação do CERN As conseqüências da guerra para a Europa foram dramáticas, como é sabido. Em alguns países, mesmo entre aqueles com melhores situações econômicas, como a Grã-Bretanha e a França, ainda havia racionamento de certos alimentos e de carvão para aquecimento das residências dez anos depois de terminada a guerra. O dinheiro para a ciência era limitado, nenhum país tinha condições para construir um laboratório de pesquisa de grande porte. Em 1949, numa conferência cultural européia realizada em Lausanne, na Suíça, o físico francês Louis de Broglie propôs que, para restaurar grandes atividades de pesquisa, a Europa criasse laboratórios europeus de ciências. De Broglie gozava de imenso prestígio, tinha recebido o Prêmio Nobel pelo trabalho de sua tese de doutorado, que estabeleceu as bases da mecânica quântica, o mais importante ramo da física moderna, que revolucionou a física. No ano seguinte, em 1950, o físico de origem alemã naturalizado norteamericano Isidore Rabi, que também tinha recebido o Prêmio Nobel, na 5a Conferência-Geral da Unesco, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, em Florença, na Itália, retomou a idéia de De Broglie e propôs uma resolução, adotada unanimemente, autorizando a Unesco "a auxiliar e encorajar a formação e organização de centros regionais e laboratórios a fim de aumentar e tornar mais útil a colaboração internacional de cientistas". Mas havia uma grande diferença entre os dois homens e entre suas intenções. De Broglie era um puro, queria restaurar o nível e manter a tradição da ciência européia. Rabi, apesar de ser professor na Universidade de Columbia, em Nova York, era conselheiro do Departamento do Estado (Ministério das Relações Exteriores) dos Estados Unidos e era uma espécie de inspetor da física internacional para o governo norte-americano. Sua idéia era de que a Europa, com sua tradição científica, poderia ter centros regionais de várias ciências, não somente de física, e obter resultados em pesquisa básica que poderiam ser úteis para os Estados Unidos, que assim poderiam concentrar 25% de seus pesquisadores em trabalhos para a guerra. Essas propostas eram gerais para as ciências. Mas, para que fosse criado um laboratório europeu específico para a física de partículas, para que o CERN viesse a existir, as pessoas mais importantes foram o físi-

co italiano Edoardo Amaldi, principalmente, e o físico francês Pierre Auger. Amaldi, que tinha uma rara visão global da ciência e do seu impacto na sociedade, foi o homem que sugeriu a filosofia de comportamento do CERN, seguida desde a origem: um laboratório aberto a todos os países, com trabalhos científicos amplamente divulgados, sem nenhuma atividade secreta e nenhuma influência militar. Em outras palavras, um laboratório de paz. Ele colocou o Departamento de Física da Universidade de Roma à disposição para secretariar os grupos de discussão. A idéia de fazer um laboratório internacional foi logo apoiada por eminentes físicos europeus, entre eles: Enrico Fermi, grande amigo de Amaldi, que trabalhava da Universidade de Chicago, Niels Bohr, da Dinamarca, Patrick Blackett, da Inglaterra, Werner Heisenberg, da Alemanha, H. Casimir, da Holanda, Louis Leprince-Ringuet, da França. 5 - Etapas importantes na fundação do CERN Os físicos interessados na idéia de um laboratório europeu procuraram apoio dos respectivos governos, porque um empreendimento científico de importância, seja internacional ou nacional, somente pode ser feito com vontade política. Em 1952, numa outra Conferência-Geral da Unesco, 11 governos europeus concordaram em criar provisoriamente um Conselho Europeu para Pesquisas Nucleares (Conseil Européen pour Ia Recherche Nucléaire, donde vem a sigla CERN), para organizar reuniões e discussões. Numa reunião ulterior desse conselho em Amsterdã, na Holanda, foi escolhido o cantão de Genebra, na Suíça, como lugar de instalação do CERN. Um cantão na Suíça é equivalente a um estado no Brasil. Foi escolhida Genebra por já ter grande experiência em acolher organizações internacionais, dispondo de um aparelhamento jurídico para o funcionamento dessas instituições. Depois da ratificação inicial de um convênio pelos Estados-membros, foi criada a Organização Européia para Pesquisas Nucleares em 29 de setembro de 1954 por 12 países. O conselho provisório foi dissolvido e um novo conselho foi criado de acordo com os estatutos. Os 12 países fundadores do CERN são: Alemanha, Bélgica, Dinamarca, França, Grã-Bretanha, Grécia, Holanda, Itália, Iugoslávia, Noruega, Suécia e Suíça. A Iugoslávia retirou-se em 1961. Em fevereiro de 1955 houve a primeira reunião do novo conselho do CERN num edifício público de Genebra. Foi escolhido como diretor-geral o físico suíço Felix Bloch, Prêmio Nobel de Física. Bloch presidiu a cerimônia de depósito da pedra fundamental num terreno próximo à cidade de Meyrin, oferecido pelo cantão de Genebra, em junho de 1955. Bloch, físico teórico, não quis continuar na direção do laboratório, que entrava num período de construção de aceleradores e desenvolvimento tecnológico, e pediu para ser substiPESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ V


Localização do CERN. Os círculos correspondem aos lugares onde estão os aceleradores

Parte do acelerador de prótons de 400 GeV, com 6 quilômetros de comprimento

Detector de partículas de penúltima geração, construído por grupos de mais de 20 países Trajetórias de partículas com carga elétrica em detector dentro de um eletroímã VI ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106


tuído. Corneis Jan Bakker, diretor do Zeeman Laboratory de Amsterdã, o substituiu em setembro de 1955. Foi nesse início das atividades que ingressei no CERN, em agosto de 1955. O CERN não tinha ainda nenhum edifício; trabalhávamos em barracas de madeira no aeroporto de Genebra. Outros países aderiram aos 12 iniciais. A Áustria ingressou em 1959, a Espanha em 1961, retirou-se em 1969 e reintegrou-se em 1983. Portugal ingressou em 1985, a Finlândia e a Polônia em 1991, a Hungria em 1992, a República Tcheca e a República Eslovaca em 1993, a Bulgária em 1999. O CERN tem atualmente 20 Estados-membros. Em 1965 houve um acordo entre a Suíça e a França para que o CERN se estendesse para o território francês. Os aceleradores construídos desde então passam pelos dois países. 6 - A estrutura do CERN A autoridade máxima do CERN é o conselho, responsável por todas as decisões importantes; controla as atividades científicas, tecnológicas e administrativas. O conselho tem dois comitês: o Comitê de Política Científica, cujos membros são escolhidos pela sua competência científica, decide sobre os grandes projetos; e o Comitê de Finanças, ambos com representantes de todos os Estados-membros. O conselho reúne-se oficialmente duas vezes por ano, mas os conselheiros podem também se reunir, todos ou em pequenos grupos, para discutir assuntos urgentes. São os países que escolhem seus representantes no conselho. O conselho escolhe o diretor-geral, que não é membro do conselho. Há um diretório, composto pelo diretor-geral, vice-diretor-geral e diretor de Finanças. Há uma secretaria-geral, uma administração de projetos e sete departamentos. Um ponto extremamente importante no funcionamento do CERN, desde as suas origens, é a abertura para transferência de tecnologia. O CERN não tira patente das inovações que faz, elas podem ser utilizadas por qualquer país. Além dessa facilidade, há uma secretaria de Educação e Transferência de Tecnologia e um Departamento de Informação Tecnológica, abertos para todos os países, não somente para os Estados-membros. O Brasil, por exemplo, pode aproveitar a transferência de tecnologia ofertada pelo CERN. Vemos o interesse do CERN em ensino e transferência de tecnologia para qualquer país. Este é um ponto extremamente importante que deveria ser conhecido no Brasil pelas autoridades responsáveis pelo fomento à pesquisa e pela comunidade de físicos. 7 - Financiamento A verba anual do CERN é de € 630 milhões. A contribuição de cada país é proporcional ao seu Pro-

duto Interno Bruto (PIB). A Alemanha é o país com o maior PIB na Europa e faz a maior contribuição, seguida pela França, Grã-Bretanha e Itália. Esses quatro países financiam cerca de 75% e os outros 16 países, 25%. A cooperação internacional começa desde o momento em que um país adere ao CERN. Um novo membro é sempre um país que não tem laboratórios bem equipados para a física de partículas. Uma vez decidida, em comum acordo entre o conselho e as autoridades do país, qual será a sua contribuição anual, no primeiro ano o país paga ao CERN somente 10% da sua cota e usa 90% para melhorar a infra-estrutura de seus laboratórios. No segundo ano, paga 20% da sua cota ao CERN e usa 80% para infra-estrutura no país, e assim por diante, de modo que somente depois de dez anos passa a pagar ao CERN a integralidade da sua cota. Com esse sistema de financiamento, Portugal, por exemplo, tem laboratórios bem instalados para física de partículas em duas universidades, de Lisboa e de Coimbra. Além disso, nos anos iniciais a indústria portuguesa ganhava em contratos com o CERN mais do que Portugal pagava. A colaboração internacional existe também no financiamento das experiências. Há uma idéia errada a respeito de financiamento que precisa ser corrigida. Muitos pensam que os países que não são membros do CERN precisam contribuir para a verba anual de € 630 milhões para que seus físicos participem das experiências. Isso não é verdade. Somente os 20 países-membros contribuem para essa verba. Os países que não são membros devem contribuir somente para o financiamento da experiência que os físicos desejam fazer. A colaboração internacional é feita com grupos de muitos países, cada grupo se responsabilizando por uma parte do equipamento. Se um grupo de físicos do Brasil, por exemplo, desejar participar de uma experiência, deverá contribuir, dentro de suas possibilidades, para o detector de partículas. A despesa anual desse grupo, com equipamento feito no Brasil para as experiências realizadas no CERN, será da mesma ordem de grandeza que a despesa anual dos grupos brasileiros que se dedicam a outros ramos da física. 8 - As primeiras grandes decisões científicas As primeiras grandes decisões científicas foram as escolhas de dois aceleradores de prótons a serem construídos. Um de 600 MeV e outro maior de aproximadamente 12 GeV. O acelerador maior tem uma história interessante. Sua construção foi confiada a um norueguês de inteligência excepcional, Odd Dahl, ao mesmo tempo ótimo físico e engenheiro, autodidata sem nenhum diploma universitário. Sua formação era de aviador civil. Os Estados Unidos têm no Estado de Nova York, em Long Island, um laboratório importante, o Brookhaven National Laboratory (BLN), dedicado a vários PESaUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ VII


aspectos da física nuclear. O BNL tinha construído um acelerador de prótons de 3 GeV, que começou a funcionar na época em que o CERN foi fundado. A idéia do CERN era construir um acelerador de aproximadamente 12 GeV. Odd Dahl e colaboradores pensaram que em vez de iniciar os planos para esse acelerador a partir de zero, seria mais interessante solicitar ao BNL os planos do acelerador de 3 GeV e modificá-los para 12 GeV. Os colegas norte-americanos concordaram. Quando os planos para o acelerador de 12 GeV ficaram prontos, Dahl e colaboradores os levaram ao BNL para submetê-los aos comentários dos colegas norte-americanos. Quando chegaram ao BNL, souberam que um artigo teórico de Courant, Livingstone e Snyder havia sido enviado para publicação no Physical Review, no qual propunham um novo tipo de acelerador de prótons, que poderia ter energia duas a três vezes superior à do acelerador clássico por aproximadamente o mesmo preço. Era evidente que se esse trabalho estivesse correto teria importância enorme para aceleradores futuros. Dahl discutiu com os autores do artigo e se convenceu de que suas idéias e seus cálculos estavam certos. Voltando a Genebra, propôs ao conselho do CERN que construísse o acelerador grande baseado no novo esquema proposto pelos três teóricos. Vemos nessa decisão a segurança desse homem. A proposta foi aceita. Os planos baseados no acelerador do BNL foram abandonados, e um projeto inteiramente novo foi iniciado, a partir do zero. Mudança radical, porque o acelerador baseado nos novos princípios tinha de ser calculado em todos os detalhes, exigindo uma reestruturação das equipes e contratação de especialistas em várias áreas novas. O acelerador foi construído segundo o novo modelo, com 28 GeV, circular com 630 metros de comprimento. Foi concluído em novembro de 1959, segundo os planos, com sucesso; na primeira vez que o acelerador foi ligado foi produzido o feixe de prótons. O CERN começou então com um sucesso, com muita coragem e determinação para enfrentar novas tecnologias, cultivadas durante toda a sua história. A partir desse, todos os aceleradores de prótons de altas energias, no CERN e em outros laboratórios, foram construídos segundo esse processo. Os sucessos tecnológicos do CERN com aceleradores continuam até hoje. 9 - A escolha do pessoal O internacionalismo do CERN não existe somente na estrutura, é característica permanente da sua vida. Lá trabalham pessoas de muitos países, seja no quadro permanente científico, técnico ou administrativo, seja nos grupos que fazem experiências e permanecem somente algum tempo. Foram contratadas para dirigir a construção dos dois primeiros aceleradores pessoas com experiência em grandes projetos industriais: alemães que trabaVIII ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 106

lhavam nas indústrias Siemens; franceses que tinham trabalhado na construção do acelerador de prótons de Saclay ou na construção de laboratórios de energia atômica; holandeses que trabalhavam na Philips; ingleses que tinham desenvolvido o radar, inventado por eles durante a guerra, e outros que tinham participado da construção do laboratório de energia atômica de Harwell. Como assessores, havia italianos da indústria pesada Ansaldo e suíços da indústria Brown Boveri. Para dirigir a administração foi convidado um francês que havia trabalhado na reorganização de serviços públicos da França com o general De Gaulle. Quando o laboratório tem necessidade de contratar alguém, seja engenheiro, técnico ou para administração, a vaga é anunciada em todos os países-membros, e qualquer pessoa tem o direito de se candidatar. Os interessados são convidados para uma entrevista em Genebra e a escolha é feita independentemente da nacionalidade. Trabalham no CERN pessoas de todos os países-membros, é uma espécie de sociedade de nações. O CERN tem três línguas oficiais: francês, inglês e alemão, nas quais são redigidos os documentos oficiais, mas lá se ouvem dezenas de línguas. Para que os trabalhos tenham continuidade, os engenheiros, técnicos e pessoal de administração têm contratos permanentes. Os físicos dos vários países preparam o equipamento para as experiências em seus laboratórios, depois o levam para Genebra. Fazem a experiência no CERN, mas são radicados em seus laboratórios de origem. Mas para que o sistema funcione é indispensável que haja um número mínimo de físicos com contrato permanente no CERN. 10 - Os objetivos científicos do CERN estudo das leis fundamentais obedecidas pelas partículas É necessário que o CERN se dedique a assuntos muito importantes para que receba tanto apoio. Seu objetivo é o estudo das partículas que constituem a matéria e das leis que governam as forças existentes entre essas partículas, não somente na Terra, mas em todo o Universo. Para compreendermos o que isso significa, temos de saber o que são partículas elementares e como as estudamos. Sabemos há muito tempo que os corpos são formados de moléculas, que as moléculas são formadas de átomos, que os átomos são formados de prótons, nêutrons e elétrons; que os prótons, com carga elétrica positiva, e os nêutrons, que não têm carga elétrica, ocupam uma região do átomo chamada núcleo; que os elétrons, que têm carga elétrica negativa igual à dos prótons, giram em torno do núcleo; e, como o número de prótons é igual ao número de elétrons, suas cargas elétricas se neutralizam. Até 1947 eram conhecidas somente sete partículas: o próton, o nêutron, o elétron, o elétron positivo, cha-


mado pósitron, o múon positivo e o negativo e o fóton. A grande revolução das partículas estranhas foi mostrar que havia outras partículas na natureza além dessas, mas não tínhamos a mínima idéia de quantas seriam. Hoje conhecemos 327 partículas e há evidência de mais de uma centena, cuja existência não foi definitivamente comprovada. Essas partículas não existem na matéria estável; são produzidas em colisões de partículas. À medida que novas partículas iam sendo descobertas, os físicos foram observando que elas poderiam ser agrupadas em famílias, nas quais todos os membros têm propriedades idênticas. Veremos que chegamos a uma simplificação, a princípios gerais que ao mesmo tempo nos permitem compreender as relações entre as partículas e nos dão poder de previsão de novos fenômenos, revelando uma harmonia na natureza. Produção de partículas - Quando duas partículas colidem, pode haver produção de novas partículas, isto é, criação de partículas que não existiam antes da colisão. Exemplo: um próton, colidindo com outro próton, pode dar um próton, um nêutron e um méson pi positivo, o que indicaremos por: próton + próton -» próton + nêutron + méson pi positivo (1)

O méson pi positivo foi criado, não existia antes da colisão. Pode haver reações mais complexas que essa, com produção de muitas partículas diferentes, até dezenas de partículas. Qual o interesse do estudo dessas colisões? Estudando essas reações aprendemos as propriedades das interações entre partículas e propriedades das partículas que interagem. Desintegração de partículas - A maioria das partículas produzidas vive pouco tempo e se desintegra em outras partículas. Por exemplo, o méson pi vive aproximadamente três centésimos de milionésimos de segundo e se desintegra em duas partículas chamadas múon e neutrino:

partículas sujeitas a essa força chamamos interação forte. É a interação forte entre o próton e o nêutron no núcleo atômico que mantém a matéria estável. A interação forte existe entre muitas partículas, não somente entre prótons e nêutrons, como veremos nas sessões 12 e 13. A interação forte dura um tempo muitíssimo curto, da ordem de IO"24 segundo. Força fraca, ou interação fraca, é igual a um milionésimo de bilionésimo da força forte, isto é, da força existente entre o próton e o nêutron dentro do núcleo. Duas partículas têm probabilidade muito pequena de entrar em colisão por interação fraca. Por exemplo, um próton ou um nêutron penetrando num bloco de ferro tem interação forte com prótons ou nêutrons do ferro em menos de 15 centímetros. A partícula chamada neutrino tem massa quase nula, não tem carga elétrica, e tem somente interação fraca; a probabilidade de interação fraca é tão pequena que ela pode percorrer a Terra inteira, de lado a lado, sem ter nenhuma colisão. Força eletromagnética, ou interação eletromagnética, é aquela devida à carga elétrica. Somente as partículas que têm carga elétrica têm este tipo de interação. Força gravitacional é a força que existe entre todos os corpos devido à atração universal. Essa força é proporcional às massas dos corpos. É a mesma força que existe, por exemplo, entre a Terra e a Lua, mas no caso de partículas ela é extremamente pequena, porque as massas das partículas são extremamente pequenas. Para termos idéia dos valores relativos dessas forças, se representarmos por 1 o valor da força forte, os valores das outras forças serão: eletromagnética, IO"2; fraca, IO"14; gravitacional, IO"38. Vemos que a força gravitacional é muito menor que as outras; por isso a desprezamos como força entre as partículas. 12 - Tipos de partículas

méson pi -» múon + neutrino

(2)

O estudo da desintegração de uma partícula é fundamental para conhecermos as suas propriedades. Em resumo, fazemos dois tipos de experiência: produção de partículas e desintegração de partículas. 11 - Os quatro tipos de interação Há quatro tipos de força, de interação entre as partículas: forte, fraca, eletromagnética e gravitacional. Força forte, ou interação forte -A força que se exerce entre o próton e o nêutron dentro do núcleo atômico é a força mais forte que existe entre as partículas, chamada força forte. A interação entre as

Classificamos as partículas de acordo com os tipos de interação que elas podem ter. Há dois grandes grupos de partículas, hádrons e léptons. Chamamos hádrons as partículas que têm os quatro tipos de interação. Chamamos léptons as partículas que não têm interação forte, têm interação fraca e eletromagnética. A cada partícula corresponde outra com a mesma massa e carga elétrica de sinal oposto, que chamamos a sua antipartícula. Por exemplo, o próton tem carga elétrica positiva; existe o antipróton, que tem a mesma massa que o próton mas carga elétrica negativa. O méson pi negativo é a antipartícula do méson pi positivo. O átomo de hidrogênio tem um próton no núcleo e um elétron girando em torno do próton. O PESQUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004


anti-hidrogêneo tem um antipróton no núcleo e um antielétron, chamado pósitron, girando em torno dele: é um átomo de antimatéria. Léptons - Não têm interação forte. Há seis léptons, três com carga elétrica negativa, o elétron, o múon e o tau; e três sem carga elétrica, chamados neutrinos: um neutrino-elétron, que é sempre associado ao elétron, um neutrino-múon e um neutrino-tau, associados ao múon e ao tau respectivamente: elétron eneutrino-elétron vp

tauxneutrino-tau vx

muon [r neutrino-múon v

Há seis antiléptons, três com carga positiva, e+, \i+, T , e três antineutrinos sem carga, antineutrino-elétron, antineutrino-múon e antineutrino-tau. +

Hádrons e quarks - Os hádrons, as únicas partículas que podem ter interação forte, são constituídas de partículas menores chamadas quarks. O próton e o nêutron, por exemplo, são compostos de quarks. Há seis quarks, chamados quark u (representado pela letra u), quark d (d), quark estranho (s), quark charme (c), quark beleza (b) e quark top (t). Os quarks foram detectados experimentalmente. Um grupo do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), do Rio de Janeiro, liderado por Alberto Santoro, deu contribuição importante para a descoberta do top, o último quark descoberto. Suas cargas elétricas são surpreendentes. Sempre pensamos que a menor carga elétrica que existe na natureza fosse a carga do próton ou do elétron, que representamos pela letra e. Descobrimos que os quarks têm cargas elétricas menores, iguais a 1/3 ou a 2/3 do valor da carga do próton, isto é, e/3 ou 2e/3. A cada quark corresponde um antiquark, de mesma massa e carga elétrica de sinal oposto. Cargas elétricas dos quarks e dos antiquarks u

d

s

c

b

t

+2/3

-1/3

-1/3

+2/3

-1/3

+2/3

antiquark -2/3

+1/3

+1/3

-2/3

+1/3

-2/3

quark

Há dois tipos de hádrons: bárions e mésons. Bárion é uma partícula formada de três quarks. Por exemplo, o próton é um bárion formado de dois quarks u e um quark d. A carga do próton é a soma das cargas dos quarks, portanto +2/3 + 2/3 -1/3 = + 1, isto é, igual à carga e do próton. O nêutron é formado de dois quarks d e um quark u; sua carga é -1/3 -1/3 +2/3 = 0. Méson é uma partícula formada de um quark e um antiquark. Exemplo, o méson pi positivo é formado X ■ DEZEMBRO DE 2004 ■ PESUUISA FAPESP 106

de um quark u e um antiquark d; sua carga é +2/3 + 1/3 = +1, isto é, igual à carga e do próton. O méson pi negativo é formado de um quark d e um antiquark u; sua carga é -1/3 -2/3 = -1, isto é, igual à carga -e. Com todas as combinações possíveis de quarks e de antiquarks, podemos reconstituir centenas de bárions e de mésons. Estas combinações, que parecem um jogo de quebra-cabeça de criança, são no entanto verdadeiras, as partículas com essas combinações de quarks e de antiquarks existem realmente na natureza, nós as detectamos nas experiências. A conclusão de que há somente seis quarks e seis antiquarks, seis léptons e seis antiléptons, introduz uma grande e elegante simplificação. Há centenas de reações e centenas de partículas, mas podemos ter a certeza de que somente essas componentes podem participar, não há outra possibilidade. As interações entre partículas ocorrem por meio de interações entre os quarks das partículas. Por exemplo, quando um próton tem uma interação forte com outro próton, são os quarks de um que interagem com os quarks do outro. 13 - As partículas intermediárias nas interações As interações entre duas partículas se dão com troca de uma terceira partícula entre as duas, que chamamos partícula intermediária na interação. As partículas intermediárias são diferentes para as diferentes interações. Interações eletromagnéticas - A força entre duas cargas elétricas é exercida através de uma partícula chamada fóton. Uma carga elétrica emite um fóton que é captado pela outra. Podemos fazer analogia entre interação através de partículas intermediárias e duas pessoas jogando tênis. Uma pessoa joga a bola que é captada pela outra; a troca de bola mantém o interesse no jogo, assim como a troca de fótons mantém a ação entre as duas cargas elétricas. Interações fortes - A interação forte entre duas partículas se passa entre os quarks das duas partículas. A força forte entre os quarks é exercida através da troca de uma partícula chamada glúon. Glúon vem da palavra inglesa glue, que significa cola. Os glúons mantêm os quarks associados para formarem os hádrons. Quando dois prótons interagem, os quarks de um trocam glúons com os quarks do outro. Os glúons foram detectados experimentalmente. Interações fracas - As interações fracas ocorrem com a troca de três partículas, chamadas W+, com carga positiva, W", com carga negativa, e Z, sem carga. As três partículas foram detectadas experimentalmente no CERN. Interações gravitacionais - Por analogia com as outras interações, imaginamos que as interações gravitacionais também se exercem através da troca de uma partícula chamada gráviton. Contrariamente às outras partículas intermediárias, que foram detectadas experimentalmente, o gráviton nunca foi detectado.


14 - A física de partículas elementares, a astronomia e resumo dos fenômenos físicos no Universo As interações entre partículas que ocorrem aqui na Terra também ocorrem em todo o Universo, nos astros e fora dos astros. O conhecimento atual dos tipos de partículas, tipos de interação e partículas intermediárias nas interações, aplica-se a todo o Universo. Chegamos a uma síntese dos fenômenos físicos do Universo, resumidos no quadro seguinte: 1- Partículas-léptons -6 léptons e 6 antiléptons hádrons-6 quarks e 6 antiquarks duas classes de hádrons: bárion- 3 quarks méson-1 quark e 1 antiquark 2-Interações - forte, fraca, eletromagnética, gravitacional 3- Partículas intermediárias nas interações interação partícula intemediária forte glúon fraca W+ W" Z eletromagnética fóton gravitacional gráviton

A física de partículas passou a ter uma influência enorme em astronomia nos últimos 20 anos. O estudo do Universo, que era realizado somente com detecção de ondas eletromagnéticas por telescópios, nos últimos anos passou a ser feito também com detecção de partículas emitidas pelos astros. Como já vimos, essas partículas são raios cósmicos. O estudo de raios cósmicos, que havia perdido o seu interesse para o estudo de partículas depois da construção dos aceleradores, retomou importância com sua aplicação em astronomia. No início estudávamos raios cósmicos para estudar partículas; hoje detectamos partículas de raios cósmicos para estudar astronomia. Passamos a utilizar em astronomia os mesmos tipos de detectores de partículas utilizados nas experiências no CERN. Criou-se um novo tipo de astronomia, chamado astropartículas. O Universo é dinâmico. Devido às partículas que são criadas em colisões e às desintegrações de partículas, em cada segundo o Universo é diferente. Tudo isso é evidentemente acompanhado de um formalismo matemático que ultrapassa os objetivos deste artigo. Partindo de um grande número, centenas de partículas, e de muitos trilhões e trilhões de fenômenos que ocorrem no Universo por segundo, chegamos a uma síntese extremamente elegante, que com o formalismo matemático tem grande poder de previsão. Podemos prever processos que nunca haviam sido observados e que depois são confirmados pelas experiências. Esse belo progresso começou na época em que o CERN foi fundado. Podemos concluir que já compreendemos tudo? Longe disso. A ciência não pára. Cada vez que um

problema é resolvido, a solução desse problema cria outros problemas, e esse é o desafio eterno da ciência. Muitos problemas de física de partículas estão sendo estudados experimentalmente e teoricamente em vários lugares. Para trabalhos com o próximo acelerador LHC estão sendo preparadas quatro grandes experiências, cada uma com participação de mais de mil físicos, engenheiros e técnicos de dezenas de países. Vejamos dois exemplos de problemas não resolvidos que são grandes desafios: 1) Não sabemos se os quatro tipos de interação podem ser apresentados como quatro casos de uma única teoria, que faria a unificação dos quatro; muitos físicos matemáticos estão trabalhando neste problema; 2) Detectamos, nas colisões, a criação de partículas que têm massas e cargas elétricas. No entanto, não sabemos o mecanismo que produz a massa nem como é criada uma carga elétrica. As quatro grandes experiências que serão feitas junto ao LHC procurarão detectar o processo responsável pela origem das massas. 15 - Resumo de sucessos do CERN O CERN tem uma história de sucessos nas mais diversas atividades. Física - Três experiências fundamentais que assentaram os conhecimentos sobre as interações fracas foram realizadas no CERN. A primeira, em 1957, com o acelerador de 600 MeV, o italiano Giuseppe Fidecaro e o inglês Alex Merrison descobriram que o méson pi se desintegra também em elétron e neutrino, não somente em múon e neutrino (reação 2 acima). Esta descoberta foi fundamental para o avanço teórico. Na segunda, em 1973, uma colaboração coordenada por três franceses, André Lagarrigue, Paul Musset e André Rousset, descobriu um processo fundamental chamado corrente neutra com a câmara de bolhas Gargamelle. É opinião geral entre os físicos que Lagarrigue sem dúvida receberia o Prêmio Nobel, mas infelizmente ele faleceu. Na terceira, em 1983, descobriram as partículas intermediárias W+, W~ e Z, com o trabalho do italiano Cario Rubbia e do holandês Simon Van der Meer, que receberam o Prêmio Nobel. Esta experiência é uma das mais importantes da história da física, pois contribuiu para os seus fundamentos. Com esta descoberta foi possível mostrar que as teorias das interações fracas e eletromagnéticas podem ser reunidas numa única teoria, que interpreta os dois tipos de fenômenos, a teoria elétrofraca. Além desses trabalhos que permanecerão na história da física, foram publicados milhares de outros feitos no CERN. Um dos detectores de partículas mais importantes, utilizado em todas as experiências, chamado câmara proporcional, foi inventado no CERN pelo franPESUUISA FAPESP 106 ■ DEZEMBRO DE 2004


cês George Charpak, que recebeu o Prêmio Nobel por essa invenção.

desse importante problema e colabora para o desenvolvimento da informática em outros países.

Informática e a invenção de internet www - A física de partículas utiliza muita programação, exige colaboração de especialistas em informática. Foi no CERN que o inglês Tim Berners-Lee e o francês Robert Cailliau em 1990 inventaram a internet sob a forma www {world wide web), que se espalhou por todo o mundo e revolucionou o modo de comunicação. A internet invadiu a sociedade, é indispensável na indústria, no comércio, na pesquisa, no jornalismo, nos contatos entre pessoas. É uma das mais importantes invenções dos últimos tempos. O CERN desenvolveu um novo método de programação chamado GRID, que permitirá a qualquer laboratório ter todos os dados de uma experiência, desde o instante em que os prótons entram em colisão no acelerador. No LHC, que entrará em funcionamento em 2007, haverá 1 bilhão de interações próton-próton por segundo! Os eventos terão de ser selecionados, as trajetórias das partículas reconstruídas no espaço, as partículas identificadas, e depois começarão a funcionar os programas para se estudar a física dos eventos. O GRID fará todas essas etapas da análise da experiência. Um grupo no Brasil com esse programa terá as mesmas condições de trabalho que um grupo no CERN ao lado do acelerador. Por outro lado, os laboratórios que não tiverem esse programa não terão condições de trabalhar nessas experiências. A filosofia do GRID está se estendendo a outras ciências e outras aplicações, como medicina, geologia, cristalografia, meteorologia, ensino etc, e permitirá colaborações internacionais e nacionais entre as instituições. Ainda em informática, o CERN foi uma das primeiras instituições a chamar a atenção para o perigo do Digital Divide. Esse nome indica a divisão entre países que terão informática de vanguarda e os que não terão. Os primeiros poderão desenvolver ou ter acesso a programas indispensáveis para trabalhos em domínios os mais diversos, como ensino em todos os níveis e em todas as áreas, medicina, biologia, meteorologia, tecnologia. Os países que não tiverem essa informática não poderão acompanhar o desenvolvimento dos outros. Em outras palavras, a informática tornou-se fator indispensável para o desenvolvimento e vai aumentar o fosso entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos. O CERN é ativo no esforço para diminuir o Digital Divide, tem organizado e estimulado reuniões internacionais para tratar

Aceleradores - O CERN, com seu complexo de aceleradores e as inovações que introduziu, é uma referência em todo o mundo. Construiu vários aceleradores de prótons, de energias cada vez maiores: 600 MeV; 28 GeV; depois dois anéis com prótons de 28 GeV que faziam colisão frontal; um acelerador de 400 GeV; um acelerador de prótons e de antiprótons de 400 GeV girando em sentidos contrários que faziam colisão frontal; está construindo o LHC, anéis de colisão frontal de prótons de 7.000 GeV cada, a maior energia jamais obtida num acelerador. Além desses aceleradores de prótons, construiu um acelerador de elétrons e de pósitrons de 100 GeV que faziam colisão frontal. O CERN está projetando pequenos aceleradores para aplicação em medicina e colocará o projeto à disposição de qualquer país.

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Eletroímãs, vácuo e eletrônica - Para construção de aceleradores, o CERN tornou-se especialista em grandes eletroímãs supracondutores, cujas bobinas são mantidas a temperaturas próximas do zero absoluto. Para o LHC, os eletroímãs têm o maior campo magnético jamais obtido com eletroímãs grandes, de 15 metros de comprimento. Nos aceleradores, as partículas são mantidas num tubo onde se faz alto vácuo. No LHC o tubo tem 27 quilômetros de comprimento e o vácuo é superior ao vácuo interestelar no Universo. O CERN desenvolve eletrônica rápida. Pode-se medir diretamente o tempo de um bilionésimo de segundo, tempo que a luz demora para percorrer 30 centímetros (lembremos que a velocidade da luz é de 300 mil quilômetros por segundo). O impacto tecnológico do CERN pode ser avaliado pelo fato de que aproximadamente a metade da verba anual de € 630 milhões é utilizada em contratos com a indústria. Vemos por esta curta descrição que o CERN é realmente um laboratório de paz, tratando de questões fundamentais da natureza em espírito de grande colaboração internacional.

Paris, outubro de 2004


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