Uma nova doença no Brasil

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Energia que gera progresso

Energia que o mundo reconhece

A Usina Hidrelétrica Tucuruí gera energia para a maior parte da Amazônia Legal. A arrecadação de ICMS e de outros impostos é importante fonte de renda para os municípios da região. O intercâmbio de energia com o Nordeste e a interligação com os sistemas elétricos do Sul, Sudeste e Centro-Oeste confirmam a importância da usina para o País.

A UHE Tucuruí fornece energia para grandes projetos mínero-metalúrgicos e é responsável pelos maiores contratos de fornecimento de energia elétrica do mundo. Grandes multinacionais de alumínio como a Albras e a Alumar, além da brasileira Companhia Vale do Rio Doce, contam com a energia produzida em Tucuruí.


Energia que melhora a vida das pessoas

Energia que preserva o meio ambiente

Na área da Usina Hidrelétrica Tucuruí a Eletronorte investe e apóia diversos programas de inclusão social e cidadania junto às comunidades. Seja apoian-

A Eletronorte desenvolve em Tucuruí diversos programas de preservação ambiental, como o Banco de Germoplasma, que cuida da diversidade genética de centenas de espécies vegetais. Já o Mosaico de Unidades de Conservação do Lago preserva a biodiversidade e melhora a qualidade de vida da população local.

do as populações indígenas ou promovendo a capacitação técnica de ribeirinhos, a Eletronorte assume seu papel de levar qualidade de vida para milhares de pessoas.


peiqerecnüisa

www.revistapesquisa.fapesp.br

FAPESP

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ENTREVISTA presidente da Fundação

Instituto

Butantan,

Isaias Raw, fala sobre o ensino de ciência

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e a produção de vacinas

CAPA

24

ECOLOGIA Gestão privada de florestas públicas pode ganhar

Geneticistas descobrem doença neurodegenerativa

amparo legal para deter

em cidade onde há muitos

desmatamento

casamentos consangüíneos

REPORTAGENS

CI~NClA

POLíTICA CIENTíFICA E TECNOLÓGICA

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embrionárias

FISIOLOGIA

GENÉTICA Trechos móveis do DNA regulam a diferenciação

LEGISLAÇÃO

de células nervosas

Lei que permite utilização de células-tronco

29

44

50

é contestada

GOVERNO FEDERAL

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BIOQuíMICA Rede paulista supera risco de fracasso e esclarece a estrutura de 52 proteínas Acupuntura aciona neurotransmissor e protege contra úlcera e parada respiratória

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durante o sono

PALEONTOLOGIA

Medida Provisória

Datação de dentes

acelera estímulo

ajuda a reconstituir

à

megafauna do Nordeste

inovação tecnológica

4 • JULHO DE 2005 • PESQUISA FAPESP 113


66

QUíMICA Nanofitas de cerâmica são candidatas

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a fazer conexões

BOTÂNICA Total de espécies de plantas com flores em São Paulo

de circuitos e transistores

80

Autoritarismo

terços da flora européia

rege serviço de informação brasileiro

HUMANIDADES

70

ENGENHARIA AEROESPACIAL

84

ENTORPECENTES

CARTAS

Estudos do Cebrid distinguem

Brasil domina tecnologia

do uso de drogas no Brasil

de

propulsores

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LITERATURA e nova edição

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ESTRATÉGIAS

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AS IMAGENS DO MÊS MEMÓRIA

Biografia

GASTROE NTEROLOG IA

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CARTA DO EDITOR

e catalisadores,

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V

LABORATÓRIO

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revivem polêmica

por pequena empresa higieniza

sobre o libertá rio

LINHA DE PRODUÇÃO

endoscópios

Gregório

RESENHA

com mais eficiência

de Mattos

Porto do Ceará terá usina que gera eletricidade por meio das ondas do mar

SCIELO NOTíCIAS

LIVROS

92

CINEMA Filme revela vida de escravo que criou uma religião pessoal

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FiCÇÃO

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Máquina desenvolvida

ENERGIA

ainda

SEÇÕES

mito e realidade no panorama

componentes essenciais para satélites

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HISTÓRIA

equivale a dois

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Capa: Hélio de Almeida Foto: Eduardo Cesar

PESQUISA FAPESP 113 • JULHO DE 2005 • 5


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CARTAS cartas@fapesp.br

Pesquisa Brasil

Alterações hormonais

Gostaria de parabenizá-Ios pelo excelente programa de rádio Pesquisa Brasil, na Rádio Eldorado AM. O conteúdo é interessante e os temas são atuais.

A nota "Cérebro se altera no ciclo menstrual" (Pesquisa FAPESP, edição 112) menciona que o nível baixo do hormônio progesterona faz com que neurônios do hipocampo produzam mais receptores de um neurotransmissor chamado Gaba, prejudicando a comunicação entre os neurônios, o que explica o aumento da sensibilidade, ansiedade e até ataques epilépticos, que afetam as mulheres no período pré-menstrual, na depressão pós-parto e na gravidez, ou seja, apenas fazem referência a mulheres na idade reprodutiva. Na nota deixa-se de comentar que essa ausência de progesterona é ainda mais grave nas mulheres na pré-menopausa, que atravessam a menopausa ou na pós-menopausa. Atualmente mulheres desinformadas se transformam em joguetes nas mãos de profissionais da medicina, que chegam a recomendar a reposição de apenas estrogênio para as que foram histerectomizadas ou reposição de progesterona sintética com intervalos de dois ou três meses, acreditando que a progesterona após a menopausa só tem a função de proteger o endométrio uterino dos efeitos deletérios do estrogênio. Isso sem considerarmos que a progesterona natural é mais barata e acessível em farmácias de manipulação. Os sintomas de depressão e ansiedade, que acometem as mulheres na pré-menopausa e menopausa, em muitos casos iniciam-se antes dos 40 anos. Tal omissão só pode ser interpretada como um "descuido" machista, mais uma atitude preconceituosa contra a mulher na maturidade, excluída até mesmo das análises científicas sobre as mulheres. É inaceitável que essa atitude continue numa revista de divulgação científica!

DENISE SALDANA

São Paulo, SP As entrevistas do programa Pesquisa Brasil são superinteressantes e aprende-se muito. Além do mais acho que vocês fazem perguntas excelentes aos entrevistados. MARIA ALICE SAMPAIO DORlA

São Paulo, SP

Medicina nuclear A reportagem de Claudia Izique na revista Pesquisa FAPESP "Diagnóstico de ponta em todos os cantos" (edição 112) traz à consideração a problemática do monopólio da União em questões de energia atômica aplicada à medicina. Penso que essa área tem de ser entendida à vista de sua importância para o diagnóstico médico e do qual todos nós somos dependentes. A abertura que o governo federal pretende dar à medicina nuclear, especialmente à técnica Tomografia por Emissão de PÓsitrons (PET), é dependente de suas intenções na política de instalação de aceleradores de partículas, no caso o ciclotron, em outros centros especializados do país e, como é desejo de muitos, a abertura para uma política mais livre quando se trata de saúde. Vejo agora, com satisfação, que se pretende estender, até mesmo para empresas e instituições privadas, novas possibilidades nos domínios do diagnóstico médico que utiliza radiofármacos. Ioss

CARLOS BARBÉRlO

Genese, Produtos Farmacêuticos e Diagnósticos São Paulo, SP 6 • JULHO DE 2005 • PESQUISA FAPESP 113

REGINA

C.

DI CIOMMO

Universidade Federal de São Carlos São Carlos, SP


Ficção

Orquídeas

É um prazer - e também uma alegria

Li a reportagem "As belas e as feras", em Pesquisa FAPESP (edição 111). Parabéns pelo conteúdo e ilustrações.

- participar da Pesquisa FAPESP de junho (edição 112). Não me canso de "lamber a própria cria" e avisar aos amigos sobre o conto "Um herdeiro de Gobineau nos trópicos" (página 96). E o resultado final, em termos de diagramação e ilustração, está perfeito. RODRIGO

PEKIN TENORIO

VAZ

Manaus,AM

EMPRESA APESQUISA

GURGEL

QUE APÓIA BRASILEIRA

São Paulo, SP

Privação e excesso Considero de grande importância as informações da entrevista com Carlos Augusto Monteiro sobre a "transição" do estado nutricional da população brasileira (edição 111). As medidas corretivas a serem adotadas são de diversas ordens, devendo-se ter consciência de que será necessária uma geração para começar a ver os resultados. De momento, considero importante entender que a persuasão educativa do consumidor a migrar para o consumo de alimentos nãoindustrializados, como forma de evitar o agigantamento do problema, é uma solução incompleta e pouco eficaz. Se houve "aumento explosivo" nos últimos anos no consumo de alimentos industrializados, seria interessante conhecer as causas do fenômeno. Uma força-tarefa deveria ser criada com órgãos normativos, academia e indústrias, para propor soluções corretivas de curto e longo prazo, pois a magnitude e teri.dência do problema acabaram demonstrando que as medidas clássicas de adaptação da indústria são inadequadas. JAIME AMAYA FARFAN

Faculdade de Engenharia de Alimentos/Unicamp Campinas, SP

lJ)

NOVARTIS TroplNet.org

Divulgação científica

o conhecimento científico produzido em qualquer lugar do mundo é divulgado basicamente por dois meios: publicações em revistas especializadas ou em congressos e reuniões. Em julho será realizado em Viena, Áustria, o XVII Congresso Internacional de Botânica. Os melhores e mais atuantes pesquisadores na área de botânica do mundo estarão lá. Defendi o meu doutorado em novembro de 2004 na área de taxonomia vegetal e ingressei como pesquisador científico no Instituto de Botânica de São Paulo (IBt). Pedi auxílio para a FAPESP para participar do congresso em março deste ano, para apresentar parte do meu doutorado: um estudo da filogenia molecular da família dos cítricos (Rutaceae), projeto com possíveis aplicações econômicas. Enviei o trabalho à organização do congres-

so, paguei a taxa de inscrição e o trabalho foi aceito. Entretanto, logo depois tomei conhecimento de norma da Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo, órgão ao qual o IBt é subordinado, que impedia o afastamento para o exterior (para congressos, cursos ou estágios) de um funcionário com menos de dois anos no sistema (o meu caso). A alegação era de que o estado não poderia arcar com o ônus de custear um funcionário em estágio probatório. A FAPESP,por sua vez, libera os recursos dos pedidos de auxílio, desde que acompanhados de uma carta comprovando o afastamento oficial do candidato. Podem avaliar a minha frustração. Não posso ir a um congresso internacional por causa de uma norma que, a priori, não leva em conta a qualificação do pesquisador nem o tempo gasto no afastamento, cerceando um dos meios de um profissional divulgar o seu trabalho. No meu caso, o afastamento seria de apenas cinco dias úteis. O estado apenas continuaria a pagar o meu salário. Em troca, eu apresentaria um trabalho original na minha área, levando o nome de uma instituição de pesquisa brasileira, divulgando-a. Além disso, aprimoraria a minha capacitação técnica, beneficiando o desenvolvimento de projetos de pesquisa na minha instituição. Resta esperar o próximo congresso, quem sabe, em 201l... MILTON

GROPPO

Instituto de Botânica - Herbário São Paulo, SP

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br.

pelo fax (11)3838'4181

ou para a rua Pio XI. 1.500. São Paulo. SP. CEP 05468-901.

As cartas poderão ser resumidas

por motivo de espaço e clareza.

PESQUISA FAPESP 113 • JULHO DE 2005 • 7


Pesquisa CARLOS V06T PRESIDENTE MARCOS MACARI VICE-PRESIDENTE

CARTA DO EDITOR

O Brasil profundo se oferece ao olhar

CONSELHO SUPERIOR ADILSON AVANSI DE ABREU, CARLOS VOGT, CEL50 LAFER, HERMANN WEVER, HORÁCIO LAFER PIVA, HUGO AGUIRRE ARMELIN, JOSÉ ARANA VARELA, MARCOS MACARI, NILSON DIAS VIEIRA JÚNIOR, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO RICARDO RENZOBRENTANI DIRETOR PRESIDENTE JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER DIRETOR ADMINISTRATIVO CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ DIRETOR CIENTÍFICO PESQUISA FAPESP CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADORCIENTÍFICO), CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ. FRANCISCO ANTÔNIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, LUIZ EUGÊNIO ARAÚJO DE MORAES MELLO, PAULA MONTERO, RICARDO RENZO BRENTANI, WALTER COLLI DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA EDITOR CHEFE NELDSON MARCOLIN EDITORA SÊNIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS DIRETOR DE ARTE HÉLIO DEALMEIDA EDITORES CARLOS FIORAVANTI (CIÊNCIA), CARLOS HAAG (HUMANIDADES), CLAUDIA IZIQUE (POLÍTICACST), HEITOR SHIMIZU (VERSÃOON-UNE). MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA) EDITORES ESPECIAIS FABRÍCIO MARQUES, MARCOS PIVETTA EDITORES ASSISTENTES DINORAH ERENO, RICARDO ZORZETTO CHEFE DE ARTE TÂNIA MARIA DOS SANTOS DIAGRAMACÃO JOSÉ ROBERTO MEDDA, MAYUMI OKUYAMA FOTÓGRAfOS EDUARDO CÉSAR, MIGUEL BOYAYAN COLABORADORES ADOLFO BITTENCOURT, AFFONSO NUNES, ANA LIMA, ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS), BRAZ, DOROTHY BALLARINI, EDUARDO GERAQUE (ON-LINE), FRANCISCO BICUDO, GONCALO JÚNIOR, JULES RIMET, LAURABEATRIZ, MANU MALTEZ, MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO, SÉRGIO L. OLIVEIRA, SÍRIO J. B. CANÇADO, THIAGO ROMERO (ON-LINE), VERÔNICA FALCÃO E YURI VASCONCELOS ASSINATURAS TELETARGET

TEL (ll) 3038-1434 - FAX: (11} 3038-1418 e-mail: fapesp@teletarget.com.br APOIO DE MARKETING SINGULAR ARQUITETURA DE MÍDIA singular@sing.com.br PUBLICIDADE

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Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAPESP t PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

FUNDAÇÃO DE AMPARO Ã PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO SECRETARIA DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA. DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E TURISMO GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

8 ■ JULHO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 113

Há muitas décadas, uma pequena cidade nordestina, a 370 quilômetros de Natal, no Rio Grande do Norte, acostumou-se a ver parte de seus habitantes atacada por uma misteriosa doença que reduz a visão, aos poucos vai enrijecendo e enfraquecendo as pernas, depois os braços, afeta mais adiante toda a postura, até que os atingidos "se fecham como uma flor", na delicada comparação de uma pesquisadora. Os moradores de Serrinha dos Pintos - esse é o seu nome -, onde são muito comuns os casamentos consangüíneos, fantasiam que a doença se originou da sífilis de um ancestral comum de muitos deles, "o velho Maximiniano", ocorrida há 150 anos. Daí o mal se disseminou pelo sangue dos descendentes. Em maio último, essa narrativa passada de geração em geração sofreu um golpe mortal: pesquisadores do Centro de Estudos do Genoma Humano e do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP) definiram o estranho mal dos serrinhenses, na revista Annals ofNeurology, como uma doença neurodegenerativa provocada por mutação num gene que se encontra numa região do cromossomo 11 até aqui não associada a qualquer enfermidade neurológica. A descoberta se impôs, sem concorrentes, como objeto da reportagem de capa, da Pesquisa FAPESP de julho, elaborada pelo editor especial Marcos Pivetta, que, junto com o fotógrafo Eduardo César, em junho passou um par de dias na bucólica Serrinha. No texto a partir da página 36, ele aborda os achados científicos dos pesquisadores sobre a doença, relata a sempre intrigante mistura de acasos e bem orientada investigação que desembocou nesses resultados e mostra de que maneiras levam a vida na cidade potiguar as vítimas da síndrome Spoan - o nome refere-se à sigla em inglês de Spastic Paraplegia, Optic Atrophy and Neuropathy, palavras que praticamente resumem o quadro clínico que a síndrome provoca. Ainda no âmbito de medicina e saúde, vale ressaltar a reportagem de Fran-

cisco Bicudo, a partir da página 50, sobre novas evidências dos benefícios da acupuntura encontradas por pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Eles constataram que essa milenar terapia chinesa de introdução superficial de agulhas na pele pode combater gastrite e úlcera do estômago, além da irritante e perigosa apnéia noturna, e perceberam que seu mecanismo de funcionamento está ligado a um melhor aproveitamento da serotonina como potente analgésico para os nervos periféricos. Acho interessante chamar a atenção para a variedade de reportagens desta edição que mostra como hoje é espalhada a pesquisa feita no país. Assim, de Recife, a jornalista Verônica Falcão conta nas páginas 58 e 59 como pesquisadores das universidades federais de Pernambuco (UFPE) e da Paraíba (UFPB), com a ajuda de físicos de São Paulo, reconstituíram a megafauna do Nordeste de cerca de 50 mil anos atrás. De São Carlos, em São Paulo, o editor de tecnologia, Marcos de Oliveira, fala das nanofitas de cerâmica candidatas a fazer conexões de circuitos e transistores (página 66), enquanto a editora assistente, Dinorah Ereno, trata da adaptação de uma câmara hiperbárica, no Rio de Janeiro, para equipar a primeira usina piloto de geração de energia pelas ondas do mar, a ser instalada no Ceará (página 76). Daí, na seção de humanidades, o jornalista Gonçalo Júnior nos leva a Salvador (página 88), onde um estudo sobre o poeta seiscentista Gregório de Mattos, o Boca do Inferno, apresenta novos fatos documentados de sua vida que dificilmente silenciarão a polêmica sobre esta figura controversa. E para fechar o círculo voltamos a um Brasil tão profundo quanto o do começo, mas num outro sentido, na reportagem do editor de humanidades, Carlos Haag (página 80), sobre pesquisas que revelam entre outras coisas como um autoritarismo sem controle rege ainda o serviço brasileiro de informação. MARILUCE MOURA

- DIRETORA DE REDAçãO


As

IMAGENS

DO

MÊS

CROCODILO PAULISTA Uma nova espécie de crocodilo pré-histórico do país foi apresentada por pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro e do Museu de Paleontologia de Monte Alto (SP). O Baurusuchus salgadoensis viveu há 90 milhões de anos, media 3 metros e pesava 400 quilos. Fósseis de pelo menos 11 animais dessa espécie foram encontradas em General Salgado, pequena cidade do interior paulista. As pernas eretas indicam capacidade de longos deslocamentos. Com dentes serrilhados, era presumivelmente um grande predador.

PESQUISA FAPESP 113 • JULHO DE 2005 • 9


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ferro

Acima, a Fábrica de Ferro São João de Ipanema em funcionamento, no final do século 19. À direita, três fornos em processo de restauração

Bicentenária, siderúrgica Ipanema é restaurada no interior de São Paulo

NELDSON MARCOLIN

entro da Fazenda Ipanema, em uma área de 5 mil hectares em Iperó, São Paulo, convivem uma floresta de Mata Atlântica, assentamentos de sem-terra, instalações da Marinha e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), atividades do Ministério da Agricultura, uma vila com poucos moradores e alguns prédios velhos em ruínas. Desse conjunto, de longe o mais interessante são as construções em péssimo estado. 10 ■ JULHO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 113

Elas representam provavelmente a primeira siderúrgica construída no Brasil, em 1810, uma das mais antigas represas feitas para gerar energia hidráulica e um pioneiro cemitério protestante autorizado para que se pudessem enterrar os operários suecos luteranos há estudos não conclusivos sobre uma tentativa frustrada de extração de minério de ferro do morro de Araçoiaba, também na Fazenda Ipanema, que teria sido feita por Afonso Sardinha em 1591. Instalada próxima deste morro, a Real Fábrica de Ferro São João de Ipanema foi mais uma das conseqüências da vinda da Corte para o Brasil, em 1808. Os


estudos iniciais foram feitos pelo sargento-mor Frederico Luiz Guilherme Varnhagen, mas quem instalou a siderúrgica foi o sueco Carlos Gustavo Hedberg, que trouxe técnicos, equipamentos e ferramentas. Divergências levaram ao afastamento de Hedberg em 1814, substituído pelo próprio Varnhagen. Nesse período, o açude feito pelos suecos

foi ampliado, novos canais construídos, surgiram novos prédios, como o do refino, da ustulação (queima de minério para retirar enxofre), fundição, e alojamentos. Em 1860, as máquinas foram transferidas para o Mato Grosso, onde se planejava explorar as minas do rio Mutum. Em Ipanema ainda seriam feitos canhões, armas brancas

Primeiro cemitério protestante do país, usado pelos luteranos

e munição para a Guerra do Paraguai (1864-1870), sob o comando do capitão Joaquim de Souza Mursa. A siderúrgica foi definitivamente fechada em 1895 - saía mais barato importar - e transformada num quartel do Exército. Depois de 1930 foi instalada lá uma escola de agricultura e, já nos anos 1960, o Centro de Aviação Agrícola. Todas as atividades foram extintas em 1989. Três anos depois o Ibama assumiu a administração do que hoje se chama Floresta Nacional de Ipanema. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) decidiu intervir na região em 1964, quando tombou o conjunto. Algum tempo depois começaram as obras de restauro, sempre interrompidas por alguns intervalos de anos, dependendo dos parcos recursos disponíveis. Mas no ano passado a Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa) e a Usinas Siderúrgicas de Minas Gerais (Usiminas) investiram R$ 600 mil no restauro dos altos-fornos de Ipanema, numa primeira fase do plano de conservação. "A segunda fase da restauração das demais estruturas está estimada em R$ 2,7 milhões, também financiada por empresas, e começará este ano", diz o arquiteto José Saia, técnico do Iphan que coordena o trabalho. Quando estiver pronto, o conjunto será aberto ao público. "As visitas abrangerão boa parte da região em razão do valor histórico e por estar localizada em um dos maiores maciços de Mata Atlântica de São Paulo." PESQUISA FAPESP113 ■ JULHO DE 2005 ■ 11


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Cientista bom de briga IQUE E NELDSON MARCOLIN

esde o tempo em que era estudante na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), no final dos anos 1940, Isaias Raw conviveu com dois tipos de fama: a de empreendedor e a de brigão. Ao unir os dois qualificativos, ele se transformou num extraordinário agitador educacional, com idéias e projetos dirigidos a professores e alunos que iam do ensino médio ao curso superior - no caso, medicina. Até ter seus direitos cassados pelo regime militar, por meio do Ato Institucional n° 5, Raw foi responsável por grande movimentação nesse setor. A nomeação para o Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (Ibecc), em 1952, o liberou para organizar pioneiramente feiras, clubes de ciência e museus, a elaborar currículos, treinamento de professores e produção de equipamentos de laboratórios. Raw também criou e liderou a fabricação dos famosos kits de química, eletricidade e biologia, caixas repletas de experiências que podiam ser realizadas em casa por estudantes comuns. Ainda nessa primeira fase, entre os anos 1950 e 1969, Isaias Raw manteve um ritmo alucinante de atividades. Fundou a Editora da Universidade de São Paulo e a da Universidade de Brasília, unificou os exames vestibulares de

São Paulo (junto com o professor e sanitarista Walter Leser), dirigiu a Fundação Brasileira para o Desenvolvimento do Ensino de Ciências (Funbec), criou a Fundação Carlos Chagas e o Curso Experimental de Medicina da FMUSP. Em meio a gestões de programas e fundações, continuou um pesquisador atuante em bioquímica, publicando em revistas especializadas no exterior. Quando de sua cassação, trabalhou em Israel e em universidades norte-americanas. Nos anos 1980 em diante, de volta ao Brasil, Raw instalou-se no Instituto Butantan e ajudou, de modo decisivo, a transformá-lo no maior centro produtor de vacinas do país, com 200 milhões de doses anuais - hoje é o presidente da Fundação Instituto Butantan. Este ano ganhou o Prêmio Conrado Wessel de Ciência e Cultura, edição 2004, na categoria Ciência Geral. Aos 78 anos, casado, com os três filhos divididos entre os Estados Unidos e Israel, e três netos, ele ri quando percebe a quantidade de informação que despejou sobre os entrevistadores: "Sei que é impossível enquadrar, em uma única entrevista, uma vida de 65 anos, contando o laboratório na garagem, de atividades, onde me diverti fazendo ciência". Como o senhor se interessou por educação científica? — Comecei estimulando a observação em análise experimental, criando uma feira de ciências em São Paulo nos anos

1950. A idéia era ocupar um salão da ção a cada três ou quatro meses. A feira de ciências, naquele tempo, era uma forma de estimular a criançada a fazer e apresentar seus trabalhos. Depois inventei de levar dez estudantes selecionados, do ensino médio, para a reunião da SBPC [Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência] e eles se apresentavam como se fossem pesquisadores que mostram seus resultados. A coisa começou nos anos 1950 também porque existia um organismo chamado Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura, o Ibecc. Era a tradução do nome Unesco e representava esse organismo no Brasil. O objetivo era atrair o jovem para a ciência desde cedo? — Se não atraíamos os jovens no equivalente, naquele tempo, ao colégio, para se dirigir a uma carreira científica, já perdíamos o aluno. Tem que começar muito cedo. Colocávamos dez ou 20 jovens escolhidos por nós para fazer experiências - construir aparelhos, por exemplo, com um torno que era da Escola Politécnica num tempo em que não tinha motor, que era com pedal, e iam fazer a experiência. Mas rapidamente ficou claro para mim que 20 pessoas não iam mudar o Brasil. Tínhamos que achar um outro jeito de multiplicar esse processo. E esse processo era o clube de ciência - que foi redesco-

PESQUISA FAPESP 113 -JULHO DE 2005 ■ 13


berto muitos anos depois, no Rio de Janeiro, pelo bioquímico Leopoldo de Méis, da UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro]. O problema é que nossos clubes eram muito modestos em termos de número. Achei que, em vez de investir na formação de uma elite, deveria intervir na escola secundária e partir para a massificação usando os kits e minikits de química, eletricidade e biologia. ■ Como surgiram os kits de ciência? — Eu tinha um laboratório no quintal da minha casa. Naquele tempo se comprava ácido na esquina, na loja de ferragens. Tive a idéia de fazer algo mais organizado, que as pessoas pudessem comprar - um pacote de material, com reagentes e o que fosse necessário para trabalhar em casa, que pudesse ser fechado e guardado. Isso já existia comercialmente na Alemanha nos anos 1930. Criei uma mala, na verdade um caixote de madeira com uma alça. Aí surgiram os kits de química, de eletricidade, de biologia e até de matemática. ■ O senhor bolou os kits, mas quem financiava a fabricação? — Fazíamos na Faculdade de Medicina, primeiro no 4o andar, depois ocupamos a garagem. Quando o Ulhôa Cintra foi reitor da USP, de 1960 a 1963, ganhamos um galpão na Cidade Universitária e tudo passou a ser industrializado. Chegamos a ter 650 operários. Quando saí do projeto, a Editora Abril topou fazer isso comercialmente. Inicialmente recebíamos doação da Fundação Rockefeller e, logo após, da Fundação Ford. Depois fui ao Ministério da Educação e vendi a idéia para o Anísio Teixeira, um educador brilhante. A cada 15 dias eu ia lá, para conversar. O problema era que o Anísio não era cientista, mas filósofo. Tudo o que ele dizia numa semana desdizia 15 dias depois, com a mesma tranqüilidade. ■ O que é um defeito grave, diga-se de passagem. — Não é não, porque era uma conversa lógica, encadeada. O Anísio Teixeira foi o primeiro sujeito que concebeu a escola como deveria ser: pública, gratuita e universal. ■ O senhor geria a fábrica de kits e fazia pesquisa ao mesmo tempo? 14 • JULHO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP113

— Ao mesmo tempo. Fazia pesquisa em bioquímica. O foco da pesquisa foi mudando. Antes da genômica o importante era entender metabolismo e enzima. Naquele tempo a grande promessa era que, se se conhecia a diferença entre, digamos, o homem e um parasita, você era capaz então de identificar uma droga que ia inibir a enzima do parasita, que difere da do homem, e curava a doença. Foi naquele momento que se começou a fazer bioquímica. Comecei com o Tripanossoma cruzi quando era aluno, nos anos 1940. Vi que aquela área do conhecimento estava vazia e comecei a trabalhar nisso. ■ Como o senhor foi parar no Instituto de Química? — Havia a necessidade de criar massa crítica, com gente de todas as áreas conversando e trocando experiências. A Faculdade de Medicina era muito fechada e não deixava contratar profissionais não-médicos. Aí veio a idéia, ainda no tempo do Ulhôa Cintra, de pegarmos o Departamento de Bioquímica, que eu chefiava, pôr no caminhão e levar para o Instituto de Química, cujo prédio nem estava completamente construído. A Faculdade de Medicina reagiu extremamente mal a isso. Mas foi essa ação que levou a criação, na prática, da USR Até então a universidade era apenas um condomínio. Mesmo já implantada, a Cidade Universitária era um condomínio, as faculdades eram isoladas e ninguém falava com ninguém. O Cintra me deu cobertura naquela ocasião. Ele mandou construir o Instituto de Química, que era diretamente ligado à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Depois que eu mudei para lá, com o tempo, mudou a Farmácia, praticamente inteira, e as outras. Houve uma evolução clara da universidade depois dessas mudanças. ■ O senhor sempre quis ser pesquisador? — Eu entrei na faculdade definitivamente interessado em fazer pesquisa, não em ser médico. A Faculdade de Medicina era um dos poucos lugares onde havia tempo integral, laboratórios e permitia fazer pesquisa. Eu tinha um tio que era um médico "de massa", atendia mil pessoas por mês. Ele tinha alguns livros de química farmacêutica que me interessavam. Meu interesse e vontade de pesquisar surgiram quase por geração espontânea.

■ Mas foi a partir dessas leituras que o seu entusiasmo cresceu, não foi? — É. De alguns livros, um em especial sobre o Louis Pasteur, que ficou obsoleto, obviamente, ninguém tinha descoberto uma porção de coisas na época. Mas era um livro muito bom, contava as histórias do Pasteur, que foi outro sujeito que surgiu assim, quase por acaso, também. Toda a ciência do século 19 surgiu desse jeito, alguém que se interessou por alguma coisa e foi fazer. O Pasteur inventou um modelo, que acho que é o modelo que tentei ressuscitar no Butantan. O Pasteur dizia "vou fazer pesquisa, fazer desenvolvimento, produzir o produto, ganhar dinheiro e financiar minha pesquisa". ■ Seus caminhos como pesquisador não são nada convencionais. — Vou dizer uma coisa: me diverti muito na minha vida. Eu assisti a poucas aulas na Faculdade de Medicina, sabe por quê? Porque eram sempre as mesmas aulas. Nada mudava. E você, em metade do tempo, lê um livro sério e aprende mais do que ouvindo um professor às vezes não muito competente. Meu grande problema era saber que matéria tinha sido dada, para poder estudar para o exame. Olhando os cadernos dos meus colegas da primeira fila, que enchiam páginas e páginas, descobri que não chegava à conclusão sobre qual era o tema da aula. Quer dizer, esse sujeito, por mais que ele estudasse aquele maldito caderno, não podia ter uma nota adequada porque não tinha a visão do que foi ensinado. ■ Em 1964 o senhor foi preso acusado de subversão. Como foi esse episódio? — Fui preso como um sujeito altamente periculoso. Vinte e cinco soldados vieram me prender às 11 horas da noite, quando estava entrando em casa. Foi um momento terrível porque, naquela época, minha sogra estava morrendo e meus três filhos eram pequenos. E há algo muito sério: como é que você explica para os seus filhos pequenos que a polícia está errada e você certo? Não existe isso. Não tem explicação. ■ O que alegaram para o senhor? — Que eu era um violento e subversivo comunista. Fiquei 13 dias preso e fui libertado por dois motivos. O primeiro deles é que eu iria para um congresso de bioquímica em Nova York e uns 12


professores, incluindo sete ganhadores de Prêmio Nobel, escreveram um telegrama de protesto para o presidente da República, o marechal Castello Branco, e isso foi notícia na Folha de S.Paulo. Então criou-se um caso. O segundo motivo é que o então diretor de ensino de ciências da Unesco, Albert Baez, estava no Brasil e tinha uma hora marcada para conversar comigo sobre ensino de ciências. Como estava preso, ele foi ao quartel. Esses dois fatos ajudaram a me libertar. Na verdade, minha prisão ocorreu porque o Exército era ignorante, malinformado e foi enrolado. Na USP tinha professores importantes que formaram uma comissão de extrema direita e envolveram o Exército. Eu era candidato imbatível para professor catedrático da Faculdade de Medicina e essa comissão envolveu meu nome em atividades subversivas para me tirar do páreo. ■ O senhor participava de organizações de esquerda? — Não. Uma vez a antiga TV Record noticiou que eu era chefe de uma célula comunista que se reunia em Washington. O que houve é que o programa de ensino de ciência do qual eu estava à frente foi assimilado pela Unesco, que tinha interesse muito grande pelo tema. Durante algum tempo houve uma série de reuniões internacionais financiadas pela Opas [Organização Pan-americana de Saúde] para rever o ensino de física, de química, de biologia, assim por diante, algumas delas em Washington, no fim dos anos 1950. E eu era o denominador comum, porque a Funbec [Fundação Brasileira para o Desenvolvimento do Ensino de Ciências], que eu dirigia, trabalhava em todas essas áreas. ■ Como foi sua cassação? — Em 1969 já foi diferente. Quando me soltaram, em 1964, minha vida continuou normalmente. Fiz o concurso para catedrático, embora tentassem me impedir, assumi meu posto e continuei trabalhando. Em 1969 fui aposentado pelo o AI-5 [Ato Institucional n° 5]. Mas entre 1964 e 1969 surgiu uma porção de coisas. O Ibecc tinha virado Funbec, uma fundação muito importante, não só para o ensino de ciência era a primeira indústria de eletrônica médica. No Brasil ninguém tinha equipamento médico. Só se tirava eletrocardiograma quando o médico tinha importado, por conta própria, um apa-

relho de eletrocardiograma. Monitor, desfibrilador, não tinha nada disso. Eu também estava profundamente envolvido com o vestibular unificado, que era feito pela Fundação Carlos Chagas. ■ Isso foi na época que o senhor era presidente da Fundação Carlos Chagas? — É. Havia todo um complexo relacionado à educação e ao ensino de ciências que funcionava harmonicamente. No fundo, isso representava poder. Em 1969 eu tinha a soma desse poder todo e não era submisso. Era um peão que tinha que ser removido do caminho. ■ Uma vez cassado o senhor fez o quê? — Fui embora do Brasil. Primeiro, para a Universidade Hebraica de Jerusalém, em Israel. Eles estavam atrás de mim havia muito tempo por causa do ensino em ciências. Mas não funcionou. Independentemente do problema de língua, que não é fácil, é muito difícil interferir na educação de um outro país, se você é estrangeiro. Não tem jeito. ■ Epara onde o senhor foi? — Entrei no MIT [Massachusetts Insti-

tute of Technology] primeiro, nos Estados Unidos. A vida lá foi conturbada porque caí de pára-quedas e sem minha equipe de pesquisa. Pesquisa não é uma atividade individual, mas de um grupo que trabalha harmonicamente. Pensei, vou fazer aquilo que sei, que é trabalhar com ensino em ciências. Era um negócio que nós tínhamos começado no Brasil, onde éramos pioneiros. Nos Estados Unidos se dizia o seguinte: o ensino de ciências é muito sério para se deixar nas mãos de um professor. É a comunidade científica que tem de dizer para onde vai a ciência. No MIT tinha algo parecido com a Funbec e começamos um projeto, que chegou a ter um impacto muito grande e era o reverso do que eu fazia no Brasil: como é que você ia ensinar ciência para quem não quer aprender ciência? Então nós inventamos um projeto. Como o americano é louco para saber o que come, decidimos que cada estudante juntaria tudo o que comia num dia dentro de um único saco: Coca-cola, hambúguer, tudo. E depois passamos meio ano analisando com método o que ele tinha comido naquele dia. Esse programa teve grande impacto e me deu a capa do Chemical News, o que naquela época era um brutal prestígio. Esse trabalho acabou saindo em livro em 1972. ■ Quanto tempo o senhor ficou no MIT? — Quatro anos. Quando o programa morreu, fui convidado para ir para a Escola de Saúde Pública da Universidade Harvard, no Departamento de Nutrição. Lá fiz um outro negócio que foi muito importante na época e hoje voltou a ter importância. Recentemente foi feita uma análise das escolas de medicina, das inovações do ensino médico e quem ganhou primeiro lugar? Londrina. O que Londrina fez? De certa forma repetiu o Curso Experimental de Medicina que fiz em 1969 na Cidade Universitária. Naquela época havia duas idéias em jogo: trazer o curso de medicina para a Cidade Universitária e inovar. Não era para repetir a mesma coisa. Então nós conseguimos aprovar na congregação da faculdade o curso experimental, que preparava os alunos para o estudo de uma medicina científica. ■ Qual era o conceito do Curso de Medicina Experimental? — Acabar com a separação das disciplinas e tentar integrar ciência básica, clíPESQUISA FAPESP113 ■ JULHO DE 2005 ■ 15


nica e medicina social desde o primeiro dia do curso. As matérias do curso médico são totalmente artificiais, porque cresceram além dos limites delas. Também tinha um segundo porém: naquele tempo, 40% do curso médico era de anatomia descritiva, do mesmo jeito que se ensinava no século 18. Hoje isso mudou, naturalmente. Nossa idéia era misturar a medicina logo no primeiro ano com as outras coisas de ciência básica. Nós, os professores que davam o curso, nos reuníamos uma vez por semana para decidir o que ensinar. "Hoje eu tenho que ensinar citologia do fígado, você fala sobre mitocôndria..." Funcionou tão bem que, no primeiro ano, quando abriu, os 80 melhores alunos escolheram Experimental. Mas, assim que eu saí, durou mais um ano e a faculdade acabou com o curso. ■ Depois das experiências bem-sucedidas nos Estados Unidos, por que voltou para o Brasil? — Porque o sistema americano de pesquisa foi pervertido. Deixou de ter uma estrutura mais ou menos permanente para ter uns tantos líderes geniais que fazem pesquisa e um exército de escravos, que trabalham sete dias por semana, 18 horas por dia. Quando acaba a bolsa, se o pesquisador quiser ter família, horários menos ruins, um ordenado mais decente, tem de ir embora. O pesquisador é temporário. Fazer propriamente a pesquisa não é mais uma atividade permanente de ninguém, a não ser de 1% que está no topo. O resto é um exército de escravos. Isso ocorre por causa da máquina poderosa que eles têm montada lá, da quantidade de dinheiro existente. Agora, ninguém interfere na pesquisa, a liberdade é total. O problema é que há uma estrutura em que se tem de trabalhar muito, ser muito bom e correr à beca para ficar no mesmo lugar. E é impessoal, totalmente impessoal. ■ Na volta para o Brasil o senhor fez o que da vida? — Tentei voltar para a Funbec, mas também lá o processo havia se pervertido, num outro sentido. Eles estavam sem uma boa administração e haviam perdido a inovação. Depois de uns dois anos surgiu a oportunidade de ir para o Instituto Butantan e começar do zero. Na época, começo dos anos 1980, não havia permeabilidade entre o Butantan e a USP e o instituto não tinha pesqui16 ■ JULHO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 113

sa nem aluno. Nesse momento, o Willi Beçak era o diretor da instituição e pediu a contratação de dez professores da universidade. Eu já estava aposentado e não havia voltado para o Instituto de Química por dois motivos. O primeiro era que a condição da Anistia, dos militares, era de perdoar, não de reintegrar. Tinha de assinar um documento dizendo que você aceitou o perdão e eu não aceitei o perdão de ninguém. O segundo motivo era que eu tinha deixado cinco ótimos professores lá que não precisavam mais de mim - eles eram melhores do que eu. Os mais conhecidos são o Walter Colli, hoje também assessor adjunto da diretoria científica da FAPESP, e o Ricardo Brentani, diretor do Instituto Ludwig de Pesquisa contra o Câncer e diretor presidente da FAPESP. ■ O Butantan começou a ser recomposto com esses dez professores? —- Sim. Entrei em uma área diferente dos outros, porque eu já tinha conseguido que a Finep [Financiadora de Estudos e Projetos] me desse um pouquinho de dinheiro para fazer biotecnologia na Funbec. Só que lá não havia mais condições. Quando vim para cá a coisa mudou. O mundo desabou em 1985 quando o pouco soro antiofídico que o Butantan fazia foi testado em um laboratório central de controle de qualidade, no Rio de Janeiro, e descobriu-se que era inativo. Então, o Brasil não tinha soro. A essa altura, eu já estava tentando resolver o problema dentro do Butantan. Isso começou a abrir os caminhos e fui reconstruindo instalações e comprando máquinas com a ajuda do governo federal. Da FAPESP nós conseguimos muita ajuda com auxílios pontuais, individuais, para os pesquisadores. ■ Mas como o instituto se tornou um grande centro de produção de vacinas? — O orçamento para fazer vacinas imunobiológicas no Butantan era zero. O governo do estado não financia conscientemente a produção de vacina. Se antes era zero e agora produzimos 200 milhões de doses de vacina, de onde veio esse dinheiro? Tivemos que criar uma estrutura onde esse dinheiro se retroalimentasse. Essa era uma parte do problema. A outra era desenvolver tecnologia. O pesquisador da universidade imagina que desenvolve tecnologia. Na verdade, ele desenvolve uma idéia de bancada. O pesquisador está sempre

sonhando com uma coisa que mesmo no Primeiro Mundo leva muitos anos. Na área de medicamento e vacina leva dez anos depois de o produto estar estabelecido para se chegar no mercado. Outro conceito fundamental é que, se você não faz o produto aparecer, não se realizou nada. Quer dizer, a medida de tecnologia não é o trabalho publicado, muito menos a discussão interna. Se não tem um produto, você pouco fez do ponto de vista industrial. E, se em uma instituição pública esse produto não é da sociedade como um todo, você não fez saúde pública. Para fazer saúde pública tem que ter um custo que o país comporte. Há um outro problema: no Brasil, aceitou-se a idéia americana de que se o cientista tem uma participação nos lucros ele tem mais interesse em criar tecnologia. ■ Isso não é verdade? Pode até ser. O negócio é que, se for assim, ninguém vai fazer nada que não tenha perspectiva de lucro. Você mata a pesquisa. Não dá para imaginar que a solução de todos os problemas passa pela empresa lucrativa. Acredito que o Brasil está, na área de saúde, na contramão dessas idéias. ■ Por quê? — Houve uma evolução considerável da tecnologia, do controle da qualidade, para fazer um produto como vacina. Quando descobriram que não tinha soro bom aqui e não dava para importar porque não era produzido usando veneno extraído das cobras brasileiras criou-se um programa de auto-suficiência de vacinas. Esse programa derivou para um monopólio estatal. Quando a instituição pública faz a vacina, o governo compra sem questionamento, não entra em licitação. Claro que ele paga o preço mais baixo possível e atrasado, ainda por cima. Freqüentemente tenho de comprar matéria-prima previamente, antes da encomenda do governo para dar tempo de produzir a vacina. No momento, estou devendo US$ 30 milhões usados para fabricar a vacina da gripe. ■ Isso vale para todas as vacinas? — Não. As outras nós também fazemos, mas sempre tem que ter dinheiro. Criamos uma estrutura que é pública, mas não pode ser pública, porque se for pública, stricto sensu, quando o dinhei-


ro volta, volta para o Tesouro e desaparece. O governo pensa - por causa da regulamentação e não por causa de vacina em especial - que, se ele está financiando o instituto, se houver lucro, é natural que vá para o Tesouro. O drama é que aí o dinheiro desaparece, não é reinvestido no instituto. ■ O dinheiro nunca fica no Butantan? — Não, não. O instituto pode ter esse dinheiro, mas desde que o governo não o enxergue. Se enxergar o dinheiro, no dia seguinte ele é recolhido ao Tesouro. É uma questão de legislação. Até os primeiros auxílios grandes que o Ministério da Saúde nos deu desapareceram no Tesouro. A Secretaria Estadual da Saúde e o Butantan nunca receberam nada. Precisa ser muito burro para inventar uma lei desse tipo. O orçamento é imaginado pelo menos um ano antes, se não dois anos antes, então, se vem dinheiro, é como se o governo dissesse: "Não tenho nada previsto no meu orçamento, portanto não aceito o dinheiro". É completamente esquizofrênico. Então, a Fundação Instituto Butantan, criada em 1985, resolveu esse problema. A fundação opera como uma empresa privada, mas de modo muito mais flexível. ■ Apesar de andar na contramão, esse parece ser o caminho certo... — É o que acho. Dentro do modelo econômico atual nós estamos na contramão. Qual o país que dá remédio para Aids gratuitamente? O Brasil criou uma estrutura que permite fabricar o produto que precisa para a saúde pública a um preço que pode pagar. Aqui na Fundação Instituto Butantan eu cuido mais do preço do que o Ministério da Saúde. Nós estamos testando uma forma de usar um quinto da dose da vacina da gripe para o ano que vem, o que permitirá, com o mesmo dinheiro, baixar a vacinação para 50 anos para cima. Hoje vacinamos de 60 para cima. Também desenvolvemos, com a ajuda da FAPESP, o surfactante para proteger crianças prematuras. O governo vai distribuir para todas as maternidades públicas de graça. Isso porque conseguimos tecnologia para fabricar a um preço muito baixo. O Brasil é o único país da América Latina que produz vacina publicamente. ■ A inovação torna-se, então, essencial dentro desse processo?

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tecnologia não é o trabalho ublicado. e não tem um iroduto, você •ouço fez o ponto de vista idustrial

— Sem dúvida. E para ter inovação é preciso ter pesquisador que faz pesquisa básica. A convivência entre pesquisa básica e pesquisa aplicada é fundamental. A indústria faz de conta que inventa tudo. Ora, quem inventa é o governo americano, o governo inglês, o francês e assim por diante. O grande financiamento para desenvolvimento de medicamento é público, não privado. E para se receber dinheiro público é preciso uma estrutura que funcione para fazer a pesquisa, que a indústria privada não tem. O mundo não vai ser mais social ou socialista, mas precisa ser socialmente responsável de algum jeito. A relevância social foi trocada pela filantropia - uma concepção americana do tipo "eu fiquei rico, fiz uma estrada de ferro, vou fazer um museu também". ■ Precisamos de um novo modelo? — Eu acho que sim. Não diria que o modelo do velho Pasteur seja um bom modelo, mas funciona. Tenho 25 doutores aqui na fundação e eles têm o direito de fazer a pesquisa que querem, desde que façam, em uma parte do tempo, o que foi definido como prioridade. Ele acaba descobrindo que faz tão boa pesquisa trabalhando nas prioridades do Butantan como nas idéias dele. ■ Como defensor dos alimentos geneticamente modificados, o que o senhor pensou quando viu a notícia, em maio, sobre estudo da Monsanto relativo a anormalidades nos rins e no sangue de ratos alimentados com milho transgênico? — Quanta gente deixou de morrer de fome por causa do milho transgênico? Quanta gente agora pode obter comida

para ficar obeso, estupidamente obeso, porque comida deixou de ser importante? O que não é correto é esconder os resultados. O que está acontecendo é que agora, nos Estados Unidos, o ensaio clínico tem de ser registrado - o que não é o caso dos transgênicos. Depois, se não der certo, não pode esconder. ■ Acredita que há algum risco de se voltar atrás na Lei de Biossegurança depois que o procurador-geral da República, Cláudio Fontelles, entrou com uma ação de inconstitucionalidade contra ela? — Difícil saber. Até nos Estados Unidos, um país teoricamente mais racional, não está o presidente Bush tentando enfiar na cabeça dos americanos o que ele pensa do ponto de vista da religião dele? É muito complicado. E esse não é um problema de opinião pública. Nos Estados Unidos é uma catástrofe porque a importância da ciência não é entendida. ■ Por que isso ocorre? — Eu fiz um esforço muito grande na minha vida a favor de uma educação científica, racional. Hoje o ensino de ciência é um faz-de-conta. Tem até a mistura do conceito da palavra "pesquisa" com "procura no computador". Esse conceito de pesquisar na internet não é o de descobrir alguma coisa, mas apenas de acreditar que o que está na tela é verdadeiro. Aprender não é adquirir informação. Obviamente, se não há informação não se consegue fazer as coisas nem se entender o mundo. Mas, se você não tem a capacidade de analisar criticamente o que é falso e verdadeiro, complica brutalmente as coisas. E a grande maioria das pessoas não tem. • PESQUISA FAPESP 113 ■ JULHO DE 2005 ■ 17


I POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

ESTRATéGIAS

MUNDO

Uma parceria possível Com recursos da Unesco, o órgão das Nações Unidas para educação, ciência e cultura, está saindo do papel uma iniciativa inédita que reúne israelenses e palestinos em torno de 30 projetos de pesquisa. A Organização da Ciência Israelense-Palestina (IPSO, na si-

gla em inglês) foi criada em novembro do ano passado, graças ao patrocínio da Academia Norte-americana de Ciências e da Fundação Rothschild, entre outras. O dinheiro, contudo, não foi suficiente para viabilizar o início das pesquisas. Agora, com os US$ 100 mil conce-

■ Antevisão de catástrofes Começou a funcionar em Lanzhou, no noroeste da China, um centro internacional de pesquisas dedicado ao estudo de problemas ecológicos que resultam da interação de atividades humanas com fatores ambientais, tais como o aquecimento global, a chuva ácida e a desertificação. "Vamos tentar decifrar esses problemas por meio de projetos multidisciplinares, antes que eles causem desastres naturais", diz Ye Qian, vice-presidente do centro, cientista baseado no Centro Nacional de Pesquisa Atmosférica dos Estados Unidos. Mais de 20 cientistas e bolsistas da China, Estados Uni-

Mar de Arai: sem água

dos, Alemanha, Rússia e Usbequistão devem participar dos projetos. Eles são vinculados às áreas de meteorologia, hidrologia, geografia, sociologia e economia. As despesas iniciais são bancadas pelo Bu-

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didos pela Unesco, serão lançados projetos nas áreas de agricultura, irrigação, genética, meio ambiente, medicina, nanotecnologia e física, entre outros. Além de fortalecer a pesquisa, o estímulo à colaboração entre israelenses e palestinos tem como meta estabelecer

reau de Meteorologia da província chinesa de Gansu. "Vamos agora buscar financiamento internacional para estudar cada um desses problemas ambientais", diz o secretário-geral do centro, Sun Guowu. A entidade planeja publicar documentos anuais sobre os problemas ambientais que afetam o noroeste da China e a Ásia Central. Sun diz que essas regiões sofrem as conseqüências das mudanças climáticas vinculadas ao aquecimento global, e essa foi a razão de Lanzhou ter sido escolhida para sediar o centro. De acordo com Sun, nos últimos 20 anos a temperatura média no noroeste da China aumentou entre 0,8 e 0,9°C, o dobro da média nacional. O aqueci-

laços entre rivais que coabitam o mesmo território e, assim, promover a paz no Oriente Médio. Os objetivos da entidade foram endossados por academias de ciências de vários países, entre os quais o Brasil, a Nigéria, o Reino Unido e os Estados Unidos. •

mento e a crescente atividade humana na região seriam as causas do desaparecimento de lagos e rios. Dezenas de milhares de habitantes de Minquan, em Gansu, tiveram de se mudar devido à escassez de água na região. A Ásia Central tem problemas semelhantes. O mar de Arai, situado entre o Usbequistão e o Casaquistão, é um exemplo típico, diz Sun. Desde a década de 1960, seu volume de água sofreu redução de 75%, em boa medida devido a programas de irrigação nos arredores. Isso teve conseqüências climáticas, ecológicas e econômicas. Tempestades de areia se tornaram mais freqüentes e a pesca entrou em colapso. (SciDevNet, Io de junho) •


■ Distinção à matemática O matemático Peter Lax, de 79 anos, foi agraciado com a edição de 2005 do Prêmio Abel, criado há três anos em desagravo ao que seria uma omissão dos Prêmios Nobel: a distinção de pesquisadores nas áreas de física, química, medicina... mas não da matemática. Lax nasceu em Budapeste, na Hungria, numa família judia, e radicou-se nos Estados Unidos em 1944, fugindo da perseguição nazista. Professor do Instituto Courant de Ciências Matemáticas, centro de pesquisas vinculado à Universidade de Nova York, é conhecido, entre outras contribuições, pelo estudo das equações diferenciais não-lineares e pela introdução dos esquemas numéricos de Lax-Friedrichs e Lax-Wen-

droff, utilizados na informática. O trabalho de Lax tem influência da meteorologia ao desenho aeronáutico. O Prêmio Abel é uma iniciativa da Academia Norueguesa de Ciências e Letras em memória do matemático norueguês Niels Henrik Abel. •

■ A Argentina tateia o futuro Os argentinos traçaram um plano de dez anos de duração com a missão de tirar do atoleiro a pesquisa no país. Propõem a elevação dos gastos em ciência e tecnologia

para 1% do PIB do país e a duplicação do número de cientistas e técnicos. Se for implementado, implicará o treinamento de 36 mil novos pesquisadores e um investimento de US$ 2 bilhões até o ano de 2015. O documento resultou do trabalho de 400 pesquisadores e representantes da indústria e está sendo avaliado pelo governo, que o encomendou. Ao longo de cinco volumes, apresenta os resultados de uma consulta feita a pesquisadores, mostra cenários possíveis para a Argentina nos próximos dez anos e compila as conclusões de diversos painéis de discussão. "Para criar capacidade científica e tecnológica própria, é preciso que se tomem decisões de longo prazo", diz o pesquisador Mario Albornoz, coordenador do estudo. (La Nacion, 6 de junho) •

Plataforma no mundo árabe A Academia de Ciências para o Mundo em Desenvolvimento (TWAS) abriu um escritório no Egito para apoiar suas atividades em 22 países do mundo árabe. A sucursal tem endereço nobre. Foi instalada na Bibliotheca Alexandrina, majestoso projeto arquitetônico da cidade de Alexandria, situado no mesmo lugar onde funcionou a

lendária biblioteca dos primórdios da Era Cristã. O escritório também dará apoio às atividades de organizações afiliadas, como a Rede de Organizações Científicas do Terceiro Mundo, a Organização do Terceiro Mundo para as Mulheres na Ciência. Cerca de 6% dos sócios da TWAS vêm do mundo árabe. "Países como Egito,

Kuwait e Síria já contribuem com as atividades da academia", diz Mohamed El-Faham, diretor do Centro para Estudos e Programas Especiais da Bibliotheca Alexandrina. A meta é arregimentar novos membros entre cientistas locais e criar um prêmio voltado para jovens cientistas da região. A TWAS é uma organização interna-

cional fundada em por cientistas dos países do Terceiro Mundo liderados pelo Nobel Abdus Saiam, do Paquistão. O escritório árabe é a quinta sucursal criada pela TWAS. Os outros escritórios ficam em Nairóbi, Quênia, no Rio de Janeiro, em Bangalore, índia, e em Pequim, China. (SciDevNet, 2 de junho)

A sede da Bibliotheca Alexandrina

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ESTRATéGIAS

MUNDO

O fôlego da tuberculose

Ciência na web Envie sua sugestão de site científico para cienweb@trieste.fapesp.br

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Vítima da doença é transportada pelos filhos na Etiópia

O número de novos casos de tuberculose cresce a cada ano, de acordo com um estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS). Mas ainda pode ser alcançada a meta da ONU de reduzir à metade o contingente de doentes até 2015, desde que se obtenha um controle nos países mais atingidos, sugerem os autores da pesquisa. A quantidade de doentes cresce, na verdade, porque vários países implementaram métodos de diagnóstico mais confiáveis. "A recente aceleração deve-se principalmente à rápida implementação desses métodos na índia, onde a notificação cresceu de 1,7% dos casos em 1998 para 47% em 2003, e na China, onde a detecção cresceu de 30% em 2002 para 43% em 2003", diz Christopher Dye, autor do estudo. O objetivo da ONU é garantir, até 2015, o diagnóstico de 70% dos novos casos e tratar adequadamente pelo menos 85% dos doentes. Os autores apontam progressos sobretudo na Ásia, mas lembram que a situação na África é menos

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www.physics.org/evolution/evolution.asp A exposição on-line sobre física faz um passeio por 5 mil anos de descobertas, dos sumérios a Stephen Hawking.

promissora, devido à extensão da epidemia da Aids, que tem na tuberculose usual infecção oportunista. Se os esforços na África aumentarem, dizem os pesquisadores, o impacto nos números globais da doença será grande. (SciDevNet, 9 de junho) •

■ Dança das cadeiras naNasa A Nasa, agência espacial norte-americana, deverá sofrer uma profunda reorganização. Fontes ligadas ao novo chefe da agência, Michael Griffin, citadas em jornais dos Estados Unidos, dizem que ele decidiu afastar pelo menos 50 cientistas vinculados a diferentes projetos espaciais e recrutar novos especialistas para os postos vagos. As atividades da Nasa estão sob forte vigilância dos parlamentares norte-americanos desde que o Columbia pulverizou-se ao entrar na atmosfera, em 2003, paralisando o programa dos ônibus espaciais. A renovação seria uma resposta a tais cobranças. •

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gslc.genetics.utah.edu A genética e a biotecnologia são apresentadas em linguagem acessível a estudantes no portal do Genetic Science Learning Center.

Paleo Art

www.nmnh.si.edu/paleo/PaleoArt Esboços de fósseis e de animais extintos ajudaram os paleontologistas a divulgar seus achados. 0 site aborda a arte dos paleoilustradores.


Caça aos planetas

■ Vogt é reconduzido na presidência Carlos Vogt foi reconduzido ao cargo de presidente da FAPESP até 2008. Seu nome foi escolhido pelo governador Geraldo Alckmin em uma lista tríplice escolhida pelo Conselho Superior da Fundação da qual faziam parte também os nomes de Vahan Agopyan, diretor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), e Marcos Macari, vice-presidente do Conselho e reitor da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Formado em Letras pela USP, Vogt é poeta, lingüista e professor de Semântica Lingüística na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), desde 1969. Foi reitor da Unicamp entre 1990 e 1994. É presidente do Centro Franco-Brasileiro de Documentação Técnica e Científica (Cendotec), vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e coordenador do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor), da Unicamp. •

O Brasil uniu-se à França no Projeto Corot, que irá procurar planetas fora do Sistema Solar e medir pulsações de estrelas por meio de um satélite que entrará em órbita em 2006. Segundo acordo firmado entre a Agência Espacial Brasileira e o Centro Nacional de Estudos Espaciais da França, será instalada em Alcântara, no Maranhão, uma antena capaz de receber dados do satélite. Uma outra antena ficará na Europa. Com a

Visão de planeta extrasolar e o satélite do Projeto Corot

participação brasileira, a capacidade de observação de estrelas será ampliada, o que aumenta as chances de achar planetas. Mais de 80 especialistas brasileiros estão envolvidos na iniciativa. Cinco deles foram para a França. O projeto busca detectar diferenças no bri-

lho de estrelas causadas pelo trânsito de planetas, como ocorre durante um eclipse. A meta é encontrar astros rochosos como a Terra, que são relativamente pequenos. Dos cerca de 150 planetas catalogados, quase 140 são gasosos, de dimensões muito maiores.

■A década da internet

Vogt foi escolhido pelo governador Geraldo Alckmin

Ao completar dez anos, o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI) anunciou a criação do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br), entidade que será responsável, entre outras tarefas, pela distribuição de endereços na internet (IPs), registro e manutenção dos nomes de domínios. Os registros de domínios e distribuição de IPs, até então, eram de res-

ponsabilidade da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Existem 768 mil domínios br registrados no país. O número total de domínios no mundo é de cerca de 72 milhões. A assembléia que indicará o conselho de administração do novo órgão será formada pelos 21 membros do CGI. O conselho de administração será composto de três representantes do governo e quatro da sociedade civil. •

PESQUISA FAPESP 113 -JULHO DE 2005 -21


ESTRATéGIAS

BRASIL

Hora da aposentadoria nizou grandes projetos, mas sua grande aventura foi a série de excursões científicas pela Antártica, entre 1982 e 1988. Foram seis campanhas de pesquisa. Os périplos na Antártica terminaram devido ao desgaste de sua estrutura, provocado pelas condições adversas do mar na região. O desgaste foi a provável causa dos problemas mecânicos que passaram a prejudicar o desempenho do Professor W. Besnard. Depois de 150 cruzeiros oceanográficos, o navio passou por uma ampla reforma de 1994 a 1997. Em 1998, contudo, teve que voltar aos reparos depois de problemas com o motor. Os elevados custos de manutenção determinaram sua substituição. •

Pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) estão projetando a embarcação que substituirá o navio Professor W. Besnard, que, em quase quatro décadas de atividade e 3 mil dias de navegação, foi essencial para o ensino e a pesquisa do Instituto Oceanográfico da USP. Os custos da construção, que deverá ser feita num estaleiro nacional, estão estimados em US$ 15 milhões. Projetado pelo Departamento de Engenharia Naval e Oceânica da Escola Politécnica, em parceria com a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), o novo navio terá motor mais potente, gastará menos combustível e poderá abrigar mais pesquisadores. O Professor W. Besnard foi projetado pela Escola Politécnica e lançado ao mar em 1967. Protago-

Professor W. Besnard: manutenção cara

■ Atalho russo para o espaço O tenente-coronel Marcos César Pontes, que há sete anos faz treinamento nos Estados Unidos para ir ao espaço, pode trocar Houston pela Cidade das Estrelas, próxima a Moscou. O chefe da Agência Espacial Russa, Anatoli Perminov, confirmou entendimentos com a Agência Espacial Brasileira para que o primeiro astronauta brasileiro participe de uma missão entre 2006 e 2007 rumo à Estação Espacial Internacional

Marcos Pontes: nova chance

a bordo de uma nave Soyuz. Se o acordo vingar, Pontes terá de passar uma temporada de 13 meses de treinamento na Rússia, para familiari-

22 ■ JULHO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 113

zar-se com as naves russas. O sonho de Pontes está congelado desde fevereiro de 2003, quando a nave Columbia explodiu ao penetrar a atmosfera, paralisando o programa dos ônibus espaciais. Mas, para levar astronautas estrangeiros, a agência russa costuma cobrar caro. A missão de Marcos Pontes dependerá da retomada dos vôos dos ônibus espaciais, programada para este mês, que vão tirar das Soyuz o ônus de ser a única opção para trocar tripulantes e abastecer a Estação Internacional. •

■ As promessas do sangue Estão abertas até 31 de agosto as inscrições do Prêmio Jovem Cientista, promovido pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que neste ano tem como tema "Sangue. Fluido da Vida". Serão distribuídos prêmios nas categorias graduado, estudante, mérito institucional, orientador e menção honrosa ao pesquisador. Mais informações no endereço www. jovemcientista.cnpq.br. •


■ Vanguarda da comunicação A FAPESP foi um dos vencedores do Prêmio Luiz Beltrão de Ciências da Comunicação, concedido pela Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. Coube à Fundação o prêmio na categoria "instituição paradigmática". "Ao instituir um programa especial de comunicação científica e tecnológica, cujos veículos principais são a revista Pesquisa FAPESP e a Agência FAPESP, a entidade converteu-se em paradigma para instituições congêneres de todo o país", justificou o júri. Na categoria "maturidade acadêmica", o vencedor foi o professor Murilo César Ramos, ex-diretor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, especialista em políticas públicas no segmento das telecomunicações e mídias digitais. O troféu de "grupo inovador" coube ao Núcleo de Comunicação e Educação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, que há mais de dez anos desenvolve estudos e pesquisas, desencadeando iniciativas fora do campus. Por fim, na categoria "liderança emergente", foram premiados conjuntamente os professores Giovandro Marcos Ferreira, da Universidade Federal da Bahia, e Raquel Paiva, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O prêmio foi instituído em 1997 para homenagear o pioneiro da pesquisa acadêmica sobre os fenômenos de comunicação brasileiros. A entrega dos troféus vai acontecer no dia 8 de setembro, no campus da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), na cidade do Rio. •

A marca das 100 mil imagens

A capital federal e o litoral do Rio de Janeiro: fotos do CBERS têm distribuição gratuita O programa CBERS-2 (Satélite Sino-Brasileiro de Recursos Terrestres) atingiu, em apenas um ano, a marca de 100 mil imagens de satélite distribuídas gratuitamente a mais de 5 mil empresas públicas, universidades, pesquisadores de diversas áreas e

■ Os premiados

agricultores. A disponibilização das imagens é coordenada pela Divisão de Geração de Imagens do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Quando o serviço era pago, a distribuição era de apenas 3 mil imagens por ano. Para ter uma idéia da

magnitude do programa os Estados Unidos distribuem anualmente cerca di 20 mil imagens do satélit Landsat. Para ter acesso às imagens do CBERS-2 o usuários precisam apena: cadastrar-se no endereço http://www.dgi.inpe.br/ 1 CDSR.

O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) anunciou os vencedores de dois prêmios. A socióloga Maria Aparecida de Moraes Silva, professora da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), conquistou o prêmio Érico Vannucci Mendes, concedido a pesquisadores com trabalho destacado nas áreas de cultura brasileira e preservação

da memória nacional. Maria Aparecida tem uma série de publicações referentes aos trabalhadores rurais e suas condições sociais, particularmente a condição do migrante e da mulher. Para concorrer, ela inscreveu os livros Errantes do fim do século, A luta pela terra: experiência e memória e O avesso do trabalho, além de 19 artigos sobre cidadania, reforma agrária e assentamentos, entre outros temas. "O prêmio tem um grande significado para a sociologia rural e, principalmen-

Aparecida: a luta pela terra

Leite: divulgação científica

de 2005

te, no reconhecimento de uma categoria de pessoas que sofre discriminação social, racial e de gênero, e tem sua força de trabalho desvalorizada", diz. O jornalista Marcelo Leite, ex-editor de Ciência, ex-ombudsman e atualmente colunista da Folha de S. Paulo, ganhou o Prêmio José Reis de Divulgação Científica, atribuído neste ano à modalidade Jornalismo Científico. Autor do blog Ciência em Dia (www.cienciaemdia.zip.net), já publicou artigos abordando principalmente assuntos relacionados à genética e à Amazônia. Sobre esses temas, lançou três livros na série Folha Explica: O DNA, A Floresta Amazônica e Os alimentos transgênicos. Marcelo Leite está concluindo o doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). •

PESQUISA FAPESP 113 ■ JULHO DE 2005 ■ 23


POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA ECOLOGIA ■%

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Lei autoriza a gestão privada de florestas públicas para conter o desmatamento

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governo federal vai criar uma Floresta Nacional (Flona) no vale do Jamanxim, no Pará, numa área pública de cerca de 6 milhões de hectares e implantar um projeto piloto de exploração sustentável. A idéia é estimular práticas de manejo entre a população local e atrair investimentos privados para a exploração da madeireira e da biodiversidade, por meio de concessão onerosa de áreas de florestas, apoio tecnológico, assistência técnica e crédito. Fundado no conceito de floresta produtiva, o projeto inaugura um novo modelo de proteção à biodiversidade que integra a política científica e tecnológica do país. As Flonas são áreas de cobertura vegetal nativa constituídas por lei em 1995 para promover o manejo de recursos naturais, proteger os recursos hídricos e fomentar o desenvolvimento de pesquisas. A Flona do vale do Jamanxim - localizada a noroeste da BR-163 que liga Cuiabá a Santarém - pretende ser uma vitrine do potencial econômico do manejo responsável da floresta e uma espécie de antípoda das ações de desmatamento que, no período 2003-2004, degradaram 2,6 milhões de hectares na Amazônia, de acordo com as estimativas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). O objetivo é criar uma infra-estrutura de produção que estanque, por exemplo, a venda da madeira in natura e estimule investimentos na sua transformação em produto. Prevê desde a ampliação do número de escolas técnicas até a instalação de indústrias processadoras de toras, centros de biotecnologia e bioindústrias na região. "O problema da Amazônia é de modelo de desenvolvi-

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• Amazônia: de hectares desmaiados

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PESQUISA FAPESP113 -JULHO DE 2005 -25


mento: tem que ter política de crédito, treinamento para agregar valor à floresta em pé por meio da exploração de madeiras, óleos, estratos, essências etc", diagnostica João Paulo Capobianco, secretário de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente (MMA). O projeto começou a ser arquitetado por técnicos de 21 órgãos federais, em março do ano passado, quando se decidiu pavimentar a rodovia CuiabáSantarém para facilitar o escoamento de produtos, sobretudo da soja cultivada no Mato Grosso. Assim foi concebido um modelo de desenvolvimento que viabilizasse as atividades econômicas e o uso sustentável dos recursos naturais. Construída em 1973, a rodovia recorta regiões de cerrado, áreas de transição e florestas habitadas por cerca de 2 milhões de pessoas. No Pará, a estrada atravessa grandes áreas indígenas e de florestas públicas que têm sido utilizadas para a extração de madeira e de garimpo, grande parte das vezes por meio de ocupação de terras públicas.

exploração dos produtos e não poderá ser superior a 60 anos. Os concessionários não terão acesso ao patrimônio genético para fins de pesquisa, bioprospecção ou constituição de coleções, sob pena de incorrer em crime de biopirataria. Nem direito à titularidade imobiliária. O acompanhamento dos contratos e o gerenciamento dos programas, entre outras atribuições, ficarão sob a responsabilidade do Serviço Florestal Brasileiro, cuja criação está prevista na lei e que integrará a estrutura do MMA. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) segue com a tarefa de fiscalizar e punir infratores, já que a lei qualifica como crime ambiental as ações de degradação da floresta. Até agora o desmatamento ilegal era considerado uma contravenção e punido com multa e embargo. O projeto institui ainda o Fundo Nacional de Desenvolvimento Florestal com a tarefa de fomentar o desenvolvimento das atividades sustentáveis e promover a inovação tecnológica.

Gestão de florestas - A implantação do projeto de exploração sustentável no vale do Jamanxim, no entanto, depende da aprovação do projeto de lei de gestão de florestas públicas que autorizará o uso econômico da área por comunidades locais e a concessão para o manejo sustentável. O projeto tramita no Congresso Nacional e já foi aprovado por unanimidade por uma comissão mista na Câmara dos Deputados. Em meados de junho, era o primeiro item de pauta para a votação em plenário, atrás de uma fila de medidas provisórias. Da Câmara, o projeto segue para o Senado Federal. A expectativa de Capobianco é que a lei seja votada este ano. Aprovada, ela vai permitir que o poder público firme convênios, parcerias ou contratos - inclusive de concessão onerosa - para a exploração sustentável de áreas de florestas nacionais. A concessão obedecerá a um Plano Nacional de Outorga Florestal, que exclui, desde logo, unidades de conservação de proteção integral, reservas extrativistas, territórios indígenas e áreas de relevante interesse ecológico. O prazo dos contratos de concessão obedecerá ao ciclo de

pesar de o desmatamento na Amazônia ter crescido 6,23% entre 2003 e 2004, os últimos dados registram queda nas taxas em seis dos oito estados monitorados pelo Inpe. Os índices cresceram apenas no Mato Grosso — que respondeu por um porcentual de 48% do desmatamento na Amazônia, segundo a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva - e em Rondônia. "A contabilidade do desmatamento deve ser feita por região e por estado. Cada um deles tem condicionantes distintos", observa Gilberto Câmara, coordenador-geral do Observatório da Terra, do Inpe, setor responsável pelo monitoramento da floresta por meio de imagens de satélite. No Mato Grosso, a maioria das terras é privada e sua exploração deve obedecer o Código Florestal, que estabelece áreas de reserva legal de 80% se a propriedade estiver situada em área de floresta,

26 ■ JULHO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 113

35% para as de área de cerrado e 20% para as fazendas em campos gerais. Na Amazônia, ao contrário, apenas 24% das áreas são tituladas e o principal vetor do desmatamento é a grilagem de extensas áreas de terras. De acordo com Philip Fearnside, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), o desmatamento produzido por família de agricultores não supera a casa de 3 hectares. A presença de madeireiras é forte. Em 2004, segundo o Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), o setor madeireiro - que nos cálculos do Imazon reúne algo em torno de 2.500 empresas - extraiu 24,5 milhões de metros cúbicos de madeira em tora, o equivalente a 6,2 milhões de árvores. Esse resultado confirma a região na segunda posição entre os maiores produtores de madeira tropical em todo o mundo, atrás apenas da Indonésia. Em 1998, o volume de madeira em tora extraído era ainda maior, chegando a 28,3 milhões de metros cúbicos. O Imazon atribui essa redução ao acirramento da fiscalização contra a exploração legal, ao aumento da eficiência do processamento e ao cancelamento de centenas de planos de manejo. Já as áreas exploradas sob as regras de boas práticas de manejo têm aumentado: cresceram de 300 mil hectares, em 2003, para 1,4 milhão de hectares, em 2004. "Até o final do ano chegaremos a 1,4 milhão de hectares", prevê Capobianco. A ampliação da exploração certificada, aliada às ações de fiscalização do Ibama e da Polícia Federal, contribuiu para reduzir os índices de desmatamento nesses estados, na avaliação de Capobianco. Ele acredita que essa taxa deverá cair ainda mais quando forem contabilizados os efeitos das novas regras para obtenção do cadastro de imóvel rural, modificadas por meio da portaria editada em dezembro do ano passado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário e Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para a regularização de posse por ocupação em uma centena de municípios da Amazônia. "Ao longo de 23 anos, o Incra cadastrou pedidos de titulação de terras sem nenhuma vistoria", conta Capobianco. Qualquer pessoa podia chegar e solicitar ao Incra um Certificado de Cadastro de Imóvel Rural em área inferior a


Madeireiras extraíram 24,5 milhões de metros cúbicos de toras em 2004

2.490 hectares - "acima de 2.500 hectares é preciso autorização do Congresso". De posse desse certificado, era possível obter financiamento do Banco do Brasil e autorização do Ibama para manejo. Feitas as benfeitorias - que geralmente incluíam o desmatamento -, o próximo passo era solicitar a posse definitiva das terras públicas. Os portadores dessa modalidade de titulação tiveram prazo até fevereiro deste ano para comprovar a origem do documento. "Quem não compareceu teve o seu certificado de cadastro inibido, perdeu o acesso a crédito e não pode vender a propriedade", explica Capobianco. Floresta produtiva - Na extração da madeira, por exemplo, está prevista a derrubada de um número muito pequeno de árvores por hectare de floresta e a utilização de técnicas que permitam a sua reposição. Para garantir o retorno dos investidores, serão concedidas grandes áreas de exploração. "Em duas décadas teremos 40 milhões de hectares em regime de exploração", estima Ronaldo Seroa Motta, coordenador de Estudos de Regulação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). "Tudo vai depender da demanda do mercado." O grande mérito do projeto, na sua avaliação, é prever a conservação por gestão privada, uma experiência que deu certo nos países escandinavos, mas fracassou no Sudeste Asiático por pro-

blemas nos critérios de concessão. O risco está na capacidade de gerir a concessão em função da extensão das áreas e da baixa extração de madeira por hectare: o custo do capital é maior e o investidor ainda tem que reduzir o impacto do transporte. Isso sem falar na heterogeneidade típica da floresta tropical. "São poucas as madeiras assimiladas pelo mercado", explica Motta. É preciso reduzir os riscos do investimento. "Não pode haver falhas na regulação para evitar a possibilidade de o concessionário esquentar' a madeira, comprando de terceiros", afirma Motta. Ele defende que esse mesmo modelo - de concessão onerosa e conservação por gestão privada - deveria ser adotado também na exploração agropecuária. "O agricultor não precisaria desmaiar para ganhar a titularidade", justifica. O "plano de negócio" do projeto de concessão de florestas tem ainda outra carta na manga: a possibilidade de um acordo garantir ao país crédito internacional por compensação da redução das emissões de gases de efeito estufa oriundas do desmatamento em florestas tropicais. Seria uma espécie de pagamento por serviços prestados ao clima global: o desmatamento dos 23 mil quilômetros quadrados de florestas registrados pelo Inpe resultou em emissão de 260 milhões de toneladas de dióxido de carbono por ano na atmosfera, algo em torno de 70% do total das emissões

brasileiras e 2% das emissões globais, nos cálculos do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). A proposta, apresentada pelo Ipam na conferência da Organização das Nações Unidas sobre as mudanças climáticas, em 2003, ganha cada vez mais adeptos no MMA. A idéia é a seguinte: se o Brasil for capaz de reduzir a taxa de desmatamento para um patamar abaixo de 16 mil quilômetros quadrados por ano - média histórica nos anos 1990 -, teria acesso a créditos internacionais pela redução de emissões. "Se a redução for de 5%, a injeção de recursos poderá variar entre US$ 60 milhões e US$ 100 milhões por ano", calcula Paulo Moutinho, coordenador de pesquisa do Ipam. A medida não integra os mecanismos de compensações previstos no Protocolo de Kyoto. Enfrenta resistências, sobretudo de organizações não-governamentais que temem que o crédito por redução de emissões em florestas tropicais atenuem, por compensação, o compromisso dos países mais poluidores, como os Estados Unidos, por exemplo. Segundo Capobianco, "há um intenso debate em torno dessa questão". A compensação por redução de emissões ganha adeptos e poderá integrar o segundo período de compromisso previsto no Protocolo de Kyoto, a partir de 2012. "Mas nada impede que surja um novo protocolo que considere essa questão", prevê. • PESQUISA FAPESP 113 ■ JULHO DE 2005 ■ 27


I POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

LEGISLAÇÃO

Batalha no tribunal Lei que permite utilização de células-tronco embrionárias é contestada pelo procurador-geral da República

láudio Fonteles, procurador-geral da República, protocolou no Supremo Tribunal Federal, no dia 30 de maio, uma ação direta de inconstitucionalidade em que questiona o dispositivo da Lei de Biossegurança, que permite a realização de pesquisas com células-tronco embrionárias no país. Fonteles contesta o artigo 5o da lei, sancionada em março, que abriu uma porta para as pesquisas ao dispor sobre a utilização de embriões humanos armazenados em clínicas de reprodução que são considerados inviáveis para a implantação no útero ou estão congelados há mais de três anos. Para Fonteles, tais dispositivos chocamse com a proteção que a Constituição confere à vida e à dignidade da pessoa humana. "A vida acontece na fecundação e a partir dela. O artigo 5o e outros parágrafos da lei inobservam a inviolabilidade do direito à vida, porque o embrião humano é vida humana", diz Fonteles. Católico, o procurador admite que convicções religiosas o influenciaram. "Os que pensam contrariamente a mim são agnósticos fervorosos. Se você pergunta se tem uma visão católica na ação, digo que tem. Mas ela está embasada em concepções científicas", disse. Em 21 de junho Fonteles voltou à carga contra a lei. Pediu a inconstitucionalidade também do artigo que estabelece a competência da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança 28 • JULHO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 113

(CTNBio) para decidir se os transgênicos causam impacto ambiental. Argumentos técnicos - Na ação contra as células-tronco, Fonteles cita trechos de especialistas em bioética e sexualidade. Alguns dos nomes são rotineiramente arrolados por ativistas antiaborto, como o geneticista francês Jérôme Lejeune - morto em 1994 - e o cirurgião espanhol Damián-García-Olmo. No dia 15 de junho o Ministério da Saúde reagiu à ação de Fonteles e encaminhou à Advocacia Geral da União um documento com argumentos técnicos para serem usados na defesa judicial do uso de células-tronco embrionárias em pesquisas. No texto, o ministério informa que a Lei de Biossegurança na verdade protege os embriões humanos armazenados em clínicas de reprodução. Antes da lei não havia nenhuma regra a regular seu uso. As teses de Fonteles têm problemas jurídicos, na opinião de Oscar Vilhena, professor de Direito Constitucional da

Pontifícia Universidade Católica (PUC), de São Paulo. O principal deles, diz Vilhena, é o de recorrer ao debate sobre o momento em que a vida deve começar a ser protegida pelo Direito. "Os Estados Unidos autorizam o aborto até os cinco meses de gestação, pois é impossível nessa fase haver vida fora do útero. Nosso código autoriza o aborto quando o caso é de estupro, a mãe tem menos de 14 anos ou a gravidez oferece risco de vida à mãe. Nesses casos, então, o feto não seria humano?", indaga. "A legislação brasileira dá ao feto proteção menor do que dá à vida. No aborto autorizado, a lei permite que a necessidade de outros, como a da mãe, supere as necessidades do feto", diz. Segundo Vilhena, é possível transpor o raciocínio para as células-tronco. "Por que o interesse de embriões sem viabilidade e sem expectativa real de vida teria mais valor do que o conhecimento científico capaz de resolver o problema de milhares de pessoas?" Com a palavra, o Supremo Tribunal Federal. •


■ POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

GOVERNO FEDERAL

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Via rápida MPdo Bem acelera medidas de estímulo à inovação tecnológica

Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) desistiu da idéia de enviar ao Congresso, por meio de projeto de lei, as novas medidas de incentivo à inovação. Por sugestão dos ministros Antônio Palocci, da Fazenda, e Luiz Fernando Furlan, do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, as propostas foram incorporadas à Medida Provisória n° 252 - batizada de MP do Bem -, editada no dia 15 de junho. A MP reúne ações com o objetivo de aperfeiçoar a legislação tributária, incentivar o investimento produtivo, as exportações, o agronegócio, a inclusão digital e a inovação tecnológica. De acordo com Francelino Grando, secretário do Desenvolvimento Tecnológico e Inovação do MCT, a MP agiliza a regulamentação da lei - que será publicada por meio de decreto presidencial - e permite obediência ao princípio

da anualidade, já que os incentivos entrarão em vigor em Io de janeiro do próximo ano. "Se as propostas chegassem ao Congresso na forma de projeto de lei, só seriam aprovadas no final do ano e não teriam repercussão no orçamento de 2006", justifica. No capítulo III da MP, que trata do incentivo à inovação, um dos destaques é o artigo 21, que permite que a União, por meio das agências de fomento, subvencione até 50% da remuneração dos pesquisadores empregados em atividades de inovação tecnológica em empresas. A estimativa do MCT é que esse estímulo gere um ingresso de mil mestres e doutores no setor privado em 2006. "Este instrumento não existia antes de forma tão clara, embora existissem programas de bolsa em empresas", comenta Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP. Uma das "grandes ausências" notadas por Brito é a falta de instrumento de apoio à pequena e média empresa, base fundamental no desenvolvimento da

tecnologia empresarial. Ele também lamenta que a medida provisória não trate das encomendas tecnológicas, "instrumento largamente utilizado por países com os quais competimos para estimular o desenvolvimento de tecnologias em empresas". Grando explica que a intenção do MCT, ao conceber as medidas que integrariam o projeto de lei, era adotar a subvenção econômica como o principal mecanismo de incentivo. Mas o principal instrumento da medida provisória é o da subvenção múltipla do Imposto de Renda (IR) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). Como as pequenas e médias empresas, em sua maioria, integram o Simples - imposto simplificado para declaração do IR e CSLL, entre outros, criado em 1995 com o objetivo de promover redução da carga tributária -, elas acabaram, de fato, não sendo beneficiadas. "O decreto de regulamentação, no entanto, vai dizer que o foco da subvenção são as micro e pequenas empresas", adianta. • PESQUISA FAPESP 113 • JULHO DE 2005 ■ 29


FURNAS foi criada para gerar e transmitir energia. Mas faz mais que isso. Cuida do meio ambiente, promove o desenvolvimento e a cidadania das comunidades carentes onde atua, apóia a cultura e investe-em novas tecnologias. Além disso, FURNAS participa do programa nacional LUZ PARA TODOS, com o objetivo de levar energia elétrica a milhões de brasileiros sem acesso ao serviço. E construir um país de todos.

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CIÊNCIA

LABORATóRIO

MUNDO

Um primo maior da Terra Em torno de uma estrela da constelação de Aquário com um terço da massa do Sol, um grupo de astrônomos norte-americanos descobriu o menor planeta extra-solar de que se tem notícia (representação artística ao lado). Sua massa é apenas 7,5 vezes maior que a da Terra. O recém-descoberto corpo celeste, que dá uma volta completa em torno de sua estrela em apenas dois dias, parece ser o primeiro dos cerca de 150 mundos extra-solares conhecidos a ter uma superfície sólida, rochosa - si-

"Ele é como um primo maior da Terra", disse o astrofísico Paul Butler do Instituto Carnegie de Washington, um dos responsáveis pelo achado. Os demais planetas extra-solares já localizados são gigantes gasosos, como Júpiter, com massa dezenas ou centenas de vezes maior que a da Terra. Ainda que seja um parente distante do nosso mundo, o companheiro de abrigar vida: a temperatura em sua superfície oscila de 200 a 400°C. •

■ Fotossíntese no fundo do mar

■ Os neurônios da paixão

Bactérias encontradas no golfo do México podem ser os primeiros organismos capazes de realizar fotossíntese a 2.400 metros de profundidade. Aparentemente elas vivem entre duas lâminas de água, uma de 350°C, que sai de uma fonte hidrotermal, e outra de 2°C. Como a luz do sol é muito escassa no mar abaixo de 200 metros, a hipótese da equipe de Thomas Beatty, da Universidade da Colúmbia Britânica, do Canadá, é que esses microorganismos coletem qualquer luz, proveniente, provavelmente, das fontes hidrotermais próximas de onde vivem. "São campeões de fotossíntese com luz reduzida", comentou Robert

A paixão é diferente do amor - e a distinção, segundo um grupo de pesquisadores de Nova York, é visível até em imagens que comparam o funcionamento do cérebro humano nas duas situações. Assim que se enamora por alguém, o recém-apaixonado ativa neurônios do núcleo caudado e, em menor intensidade, da área tegmental ventral. Tais zonas cerebrais são ricas em células nervosas que interagem na presença de dopamina, um tipo de neurotransmissor cuja circulação aumenta quando as pessoas antecipam ou querem alguma forma de prêmio ou recompensa. Estado emocional geralmente marcado por uma

Blankenship, da Universidade Estadual do Arizona, Estados Unidos. A descoberta mostra que a fotossíntese não está limitada à superfície da Terra e alimenta a busca de vida em outros planetas. Acredita-se

32 ■ JULHO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP113

que a superfície gelada de Europa, um satélite de Júpiter, tenha os atributos necessários à vida, mas estaria muito longe do Sol para permitir as formas tradicionais de fotossíntese. •


dose generosa de irracionalidade e desejos incontroláveis, a paixão exibe um perfil neuronal semelhante ao de situações como sentir fome, ter sede ou ser viciado em algo, como jogar ou usar alguma droga. "Isso ocorre numa área do cérebro dos mamíferos que toma conta das funções mais básicas e inconscientes, como comer, beber, movimentar os olhos", diz Lucy Brown, da Faculdade de Medicina Albert Einstein, no Bronx, um dos autores do estudo, publicado na revista científica Journal of Neurophysiology. Quando o ímpeto da paixão diminui e a ligação entre duas pessoas caminha para o que comumente se chama de amor, um estado mais sereno, os pesquisadores constataram que ocorrem pequenas alterações na circuitaria cerebral acionada. Áreas ligadas a sentimentos mais duradouros passam a ser ativadas pelo amor. Os pesquisadores chegaram a esses resultados depois de analisar 2.500 imagens do funciona-

mento do cérebro de 17 universitários, que estavam no auge da paixão ou viviam um amor mais consolidado. Seria um exagero pensar que a paixão e o amor poderiam ser simplesmente retratados por meio de gráficos de atividade neuronal, mas esse tipo de estudo se encaixa perfeitamente com a crescente literatura científica que descreve a existência de um sistema cerebral de recompensa e aversão. •

■ O ebola mais perto de casa Primeiro foram os chimpanzés e os gorilas. Agora são os cães os suspeitos de trazerem o vírus ebola do interior da floresta tropicial para perto do ser humano em cidades do Gabão e da República Democrática do Congo, na África Central. A equipe de Eric Leroy, do Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento, na França, analisou o sangue de

337 cães que viviam em quatro áreas do Gabão durante o mais recente surto da febre hemorrágica causada por ebola, que em 2001 e 2002 contaminou 428 pessoas e matou 338. O objetivo era verificar se esses animais haviam sido contaminados pelo vírus, embora não apresentassem sinais dessa doença, que em seres humanos provoca febre alta e sangramentos pelo corpo. Um em cada quatro cães das áreas mais atingidas pela febre abrigava anticorpos contra o vírus, sinal de que haviam sido infectados. Esse índice caiu para 9% em duas outras cidades distantes ao menos 600 quilômetros dos focos da doença. "Estas são as primeiras evidências de que cães podem ser contaminados na natureza e permanecerem sem sintomas da infecção", escreveu Leroy em um estudo publicado na Emerging Infectious Diseases. Antes Leroy havia encontrado uma taxa de infecção de 13% em chimpanzés selvagens. •

Caminhar mais e dirigir menos Está correndo - ou melhor, andando uma campanha pública que motiva os ingleses a caminharem pelo menos 30 minutos por dia. Resultado de uma iniciativa promovida pela British Heart oundation e pela Countryside Agen:y, a campanha Walking for Health ressalta que as caminhadas regulares são um dos melhores modos de promover o bem-estar físico e mental. Há recomendações especiais para os sedentários ou para quem não tem tempo ou tem medo de caminhar pelas ruas: sair em grupos, descer do ônibus um ponto antes, estacionar um pouco mais longe do mercado, levar o cachorro de um amigo para passear ou

Exeter: sem preguiça de andar

ao menos afastar-se do controle remoto da TV. Em 2003 a cidade de York fez um projeto piloto com 240 moradores incentivando a busca de alternativas para ir ao trabalho. O uso de carros caiu 16% e a quilometragem rodada, 28%. Se metade da população participasse, haveria 15 mil carros a menos nas ruas. O conceito de Viagem Inteligente, que motivou esse projeto, foi importado da Áustria e da Alemanha. Seus resultados sugerem que as pessoas andam mais e usam mais o transporte público quando recebem informações diretas e detalhadas, além de assistência com alternativas ao uso do carro próprio. •

PESQUISA FAPESP113 -JULHO DE 2005 -33


Cheiros e palavras "O olfato humano é muito pouco confiável", concluiu o neurobiólogo Ivan Araújo. Durante seu doutoramento na Universidade de Oxford, na Inglaterra, ele mostrou como estímulos quimicamente idênticos geram respostas diferentes em função de um segundo estímulo externo, como uma palavra ou um rótulo, que ativou áreas do cérebro ligadas ao olfato e ao processamento de recompensas a perspectiva de comer o que cheira tão bem. Araújo apresentou a 12 pessoas o cheiro de queijo cheddar combinado com ácido isovalérico, cujo aroma se assemelha ao de odores corporais. Depois mostrou rótulos de "queijo cheddar" ou "odor corporal": o chei-

■ Braços robóticos movidos pelo cérebro Daqui a três anos, o primeiro ser humano a usar os sinais do próprio cérebro para movimentar braços robóticos pode ser um brasileiro. Esse é o principal objetivo científico de um acordo firmado no mês passado entre a Associação Alberto Santos Dumont de Apoio à Pesquisa (AASDAP), criada pelo neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, da Universidade de Duke, e o Hospital Sírio-Libanês, de São Paulo. Pela parceria, a operação para implantar uma interface máquina-cérebro num paciente com alguma deficiência motora deverá ser realizada nas dependências do hospital privado paulista e médicos do Sírio participarão da equipe cirúrgica. Em contrapartida, o hospital doará US$ 1 milhão para as ações sociais do futuro Instituto Internacional de Neurociências de Natal, um projeto concebido por Nicolelis que, se tudo der certo, deverá sair em breve do papel. Enquanto não começa a construção da sede definitiva do novo centro de

pesquisas, o neurocientista planeja abrir o primeiro laboratório do instituto num prédio alugado de três andares na capital potiguar. "A Associação Santos Dumont também pretende dar bolsas de pesquisa para jovens cientistas do Brasil", diz Nicolelis. •

34 ■ JULHO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 113

ro foi considerado mais agradável sob o rótulo de queijo. Algumas áreas do cérebro, como o córtex piriforme e a amígdala, mostraram-se mais ativas quando o rótulo era de queijo. Em outra parte desse experimento, publicado na Neuron, criou-se uma ilusão olfativa, dando nomes como "queijo cheddar" ou "odor corporal" ao ar limpo

■ Qualidade de vida se mantém O prejuízo do câncer de mama à qualidade de vida feminina parece não ser tão grave quanto se imaginava. Pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

Será que é mesmo um queijo? Pode ser uma ilusão olfativa

liberado por uma válvula. As mesmas áreas ligadas ao olfato foram acionadas, ainda que menos intensamente, sob o ar limpo apresentado como cheiro de queijo, mas nenhuma das duas etiquetas de "odor corporal" ativou essas regiões do cérebro. •

e da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto compararam a saúde física e psicológica de 85 mulheres saudáveis com a de 97 portadoras de câncer de mama identificado em média havia cinco anos. A qualidade de vida foi semelhante nos dois grupos. O câncer afeta a vida sexual: 52% das mulheres que tratavam ou já haviam vencido o tumor eram sexualmente ativas, em comparação com 62% das saudáveis. O ginecologista da Unicamp Délio Marques Conde, principal autor da pesquisa, verificou que quatro dos 25 fatores analisados contribuíram para uma pior qualidade de vida de 75 mulheres que haviam enfrentado o tumor de mama. O pri-


?:

..-. ■-."'.

Mambaí, Goiás: tempestade de areia varre o solo nu

meiro foi o estado civil: as mulheres casadas apresentaram qualidade de vida inferior à das solteiras. "O câncer de mama provavelmente teve pouca influência sobre a qualidade de vida dessas mulheres porque elas receberam atendimento psicológico, social e fisioterápico, além do tratamento contra o tumor" comenta o ginecologista Aarão Mendes Pinto Neto, coordenador das pesquisas. •

■ A árvore que purifica a água Sementes de uma árvore, a moringa, moídas e despejadas em um pote com água suja, deixam o líquido transparente em segundos. Mas a água após contato com as sementes

da Moringa oleifera contém uma proteína classificada como lectina, concluiu um estudo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Essa proteína, ao mesmo tempo que é ao menos uma das responsáveis pela purificação da água, pode atrapalhar a nutrição, por diminuir a absorção de outras proteínas no trato digestivo. Há uma solução: ferver a água. "A lectina fica inativa quando se ferve a água", diz Andréa Santos, que trabalhou com Patrícia Paiva neste estudo publicado na Water Research. Dessa árvore de origem asiática, que pode atingir 10 metros de altura, também se aproveitam as folhas, comparadas ao espinafre em aparência e poder nutritivo. •

Vinhas da ira no Brasil O extermínio quase completo do Cerrado em São Paulo é considerado iminente pelos autores do livro Viabilidade de conservação dos remanescentes do Cerrado, coordenado por Marisa Bitencourt, da USP, e por Renata Mendonça, do Departamento Estadual para a Conservação dos Recursos Naturais (DEPRN). Embora proteja reservatórios subterrâneos de água, essa vegetação encontra-se extremamente fragmentada - e quase sem proteção legal. São poucas as unidades de conservação e a maioria das ilhas de Cerrado encontram-se em propriedades particulares, cujos donos as vêem como o mato que atrapalha a expansão das plantações e das pastagens. Já se considera impossível manter em pé as matas próximas às cidades, por causa da pressão por novos loteamentos.

"Tenho a impressão de que só sobreviverão as áreas protegidas na forma de unidade de conservação", comenta Giselda Durigan, engenheira florestal e uma das autoras do livro. Em maio, ela e a bióloga Marinez Siqi ra percorreram cerca 7 mil quilômetros de Mi nas Gerais, Bahia, Mato Grosso e Goiás. Viram um cenário semelhante. "Ainda que muitas vezes o desmatamento seja feito dentro da lei, é doloroso ver enormes trechos de vegetação natural serem substituídos pela so ja", observa Giselda paisagens lembram nhas da ira [romance do escritor norte-americano John Steinbeck publicado em 1940], o vento açoitando a terra nua depois da colheita e formando uma manta de poeira que cobre toda uma região agora totalmente desprovida de árvores." •

Sementes de moringa: convém ferver a água que limpam PESQUISA FAPESP113 ■ JULHO DE 2005 ■ 35


CAPA MEDICINA

Uniões consangüíneas provocam uma forma desconhecida de deficiência em cidade do Nordeste

uma nova

DÉ Sr.RKJNHA DOS PlNTOS (RN) DE EDUARDO Cí;SAR

T

I

á quinze anos, Elenara Maria de Queiroz Moura estava grávida - e a cena de uma novela não lhe saía da cabeça. Um casal de primos queria ter filhos e procurara um ginecologista. Quando soube que os clientes eram parentes próximos, o doutor do folhetim televisivo fora taxativo: era melhor evitar a gravidez. Casamentos consangüíneos apresentam maior risco de gerar crianças com alguma doença hereditária. Se queriam descendentes, era mais prudente adotar um, sentenciara o médico. Elenara, então com 20 anos, tinha motivos para se preocupar. Era casada com José Moura Sobrinho, um primo em primeiro grau cinco anos mais velho. Ambos eram naturais de Serrinha dos Pintos, um município de 4.300 habitantes, distante 370 quilômetros a oeste de Natal, no Rio Grande do Norte, onde subir ao altar com um parente é um costume lo-


Anoitecer no nĂşcleo urbano de Serrinha dos Pintos: cidade dos Queiroz, Dias e Fernandes


cal. E tinham na família "deficientes", tios confinados a cadeiras de rodas devido a uma misteriosa doença que, paulatinamente, enrijece e enfraquece primeiro pernas e depois braços, além de afetar a postura em geral e, em menor intensidade, a visão e a fala. Apesar dos temores, Isabela, a primogênita do casal, nasceu normal. "Fiquei aliviada e pensei que estava tudo bem", relembra Elenara. "Engravidei da minha segunda filha sem medo." Mas a história de Paulinha, a caçula de 10 anos, foi diferente. A menina nasceu com a síndrome Spoan, uma doença neurodegenerativa recém-descoberta entre os habitantes da localidade potiguar e descrita em maio por pesquisadores do Centro de Estudos do Genoma Humano e do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP) num artigo publicado na revista norte-americana Annals of Neurology. Ainda não se sabe em qual gene está a mutação que causa a doença, mas os cientistas analisaram amostras de DNA de 74 moradores da cidade, entre doentes e sadios, e os resultados dos estudos indicam que o gene da Spoan se encontra numa região do cromossomo 11. O problema é que existem ao menos 143 genes nessa região, dos quais 96 são ativados em tecido nervoso. Ou seja, por ora, quase uma centena de genes são candidatos a causadores da doença. "Mapeamos a região do gene, ou bairro onde ele se encontra", compara a geneticista Mayana Zatz, coordenadora dos trabalhos com a nova doença e do Centro de Estudos do Genoma Humano, um dos dez Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP. "Falta achar a casa, o gene ligado à síndrome." Com sorte, em um ou dois anos, a equipe da USP espera ter isolado o gene e identificado a mutação que provoca a Spoan. Assim que tiverem essas informações, os cientistas vão criar um teste pré-natal capaz de detectar a presença da mutação em bebês ainda em gestação e identificar os indivíduos heterozigotos para essa anomalia genética (pessoas saudáveis, mas que podem ter filhos com a doença). "Até agora não se conhece nenhuma 38 ■ JULHO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 113

doença neurológica associada a genes dessa região do cromossomo 11", diz a aluna de doutorado Lúcia Inês Macedo-Souza, encarregada de achar a "casa" onde se encontra a base molecular da Spoan.

m inglês, Spoan significa Spastic Paraplegia, Optic Atrophy and Neuropathy, nome complicado para um quadro complexo. Para um "problema de família", no falar simples dos moradores de Serrinha. Até agora os cientistas identificaram 26 pessoas vivas com Spoan, das quais 17 são mulheres e 9 homens. Todos os indivíduos afetados são brancos, caucasianos, provavelmente de ascendência portuguesa ou talvez holandesa, e originários dessa cidade serrana. A maioria ainda mora em sua terra natal e todos descendem de casais aparentados, de 19 uniões consangüíneas. "Examinamos pacientes de várias idades com a síndrome, dos 10 aos 63 anos", afirma a bióloga Silvana Santos, principal responsável pela descoberta da inédita patologia e bolsista de pós-doutorado da FAPESP. "Pudemos ver a evolução da doença. Com o tempo, as pessoas se fecham como uma flor." Embora sem cura, a doença em si não é fatal e mantém intacta a capacidade de pensar dos doentes. Não provoca retardo mental, dor ou surdez. Mas seus efeitos sobre a qualidade de vida dos afetados, que se tornam deficientes físicos, são devastadores. Sobretudo numa população rural e carente de serviços de saúde como a de Serrinha dos Pintos, que credita, de forma folclórica, a origem da nova doença a uma sífilis hereditária de um antigo e mulherengo ancestral que teria se espalhado pelo sangue da família (veja quadro na página 42). Ali não há serviço de fisioterapia para minimizar os problemas de postura decorrentes da paraplegia associada à doença e as vítimas da síndrome vivem apartadas do dia-a-dia, recolhidas ao interior de suas casas, totalmen-

te dependentes dos cuidados de familiares. Sem o devido acompanhamento médico, ninguém toma remédios para reduzir a rigidez e o enfraquecimento das pernas e braços. Os pés entortam para fora e a cabeça cai. Dos doentes conhecidos, apenas Paulinha não está em cadeira de rodas. Com a energia interminável que só as crianças parecem ter, a menina consegue se locomover com o auxílio de um andador com rodinhas. No jargão da biologia molecular, a Spoan se classifica entre as doenças de herança autossômica recessiva. Homens e mulheres têm a mesma probabilidade de apresentar a patologia, a despeito de o número de casos conhecidos em Serrinha ser maior entre o sexo feminino. Uma pessoa só vai desenvolver Spoan se as duas cópias do ainda desconhecido gene associado à síndrome, uma vinda do pai e outra da mãe, carregarem a mutação que leva ao problema de saúde. Portanto, os pais de um doente com Spoan são necessariamente heterozigotos. São portadores da mutação em apenas uma das duas cópias do gene, nunca nas duas, e não manifestam a síndrome. Mas podem transmiti-la para a prole, como atestam os pacientes de Serrinha. Filhos de pais heterozigotos participam involuntariamente de uma roleta-russa biológica. Têm 25% de risco de se tornarem doentes, de herdarem as duas cópias do gene com a mutação; 50% de somente portarem a mutação em uma das cópias do gene, de serem heterozigotos; e 25% de não serem portadores de nenhuma alteração nas duas cópias do gene da Spoan, sendo saudáveis e incapazes de passar adiante a mutação. "Um em cada 250 habitantes de Serrinha tem a doença e um em cada nove é heterozigoto para essa condição", estima o neurologista Fernando Kok, que fez a descrição clínica e neurológica dos sintomas da Spoan. Olhos tremidos - Nos primeiros meses de vida, os recém-nascidos acometidos pela doença não manifestam nenhum sintoma clínico da Spoan. Parecem saudáveis, como qualquer outro bebê. A não ser por um detalhe, perceptível apenas por quem tem um histórico de doentes na família: as crianças apresentam "olhos tremidos", para usar uma


Familiar com um dos 26 afetados pela síndrome: doença recessiva

expressão corrente em Serrinha. Esses movimentos anormais e involuntários do globo ocular, resultantes da atrofia congênita do nervo óptico, reduzem o campo de visão dos afetados. A essa disfunção ocular os médicos dão o nome de nistagmo. Na recém-descoberta síndrome, o problema não se agrava com o tempo, mas a visão dos pacientes, mesmo com o emprego de óculos, não é das melhores. "Eles conseguem enxergar os dedos de uma mão a uma distância máxima de 2 metros", comenta Kok. Casada com um primo em segundo grau de Serrinha, Maria Inês de Queiroz, de 57 anos, teve seis filhos, dos quais três morreram ainda bebês e três estão vivos, dois homens com Spoan, a quem dedica o melhor do seu dia, e uma moça saudável. A dona de casa lembra de ter visto o tremor nos olhos de um de seus filhos mortos quando ele tinha 4 meses de idade. "Eu sabia que ele tinha a deficiência. Seus olhos iam para cima", conta a ex-feirante, que vendia roupas e morou por uma década na cidade de São Paulo. Suas recordações da vida na capital paulista, aliás, não são nada boas. "Passei dez anos indo de médico em médico. Houve um pediatra que chegou a me dizer que o Marquinhos era sadio - e que eu é que era doente", diz Maria Inês. Marquinhos é o tratamento carinhoso que a família e os amigos usam para se referir ao caçula Marcos Roberto, de 27 anos, que, como o irmão mais velho, Francisco, de 39, o Chiquinho, tem Spoan. Provavelmente, os médicos achavam que Marquinhos era normal porque o garoto andava até os 10 anos. Só que andava com dificuldades e sua mãe sabia que, a exemplo de Chiquinho, que caminhara até os 6 anos, ele tinha o mesmo problema do irmão. Relatos assim não são raros entre as faPESQUISA FAPESP 113 ■ JULHO DE 2005 ■ 39


mílias de Serrinha que têm parentes com a nova síndrome. São a regra, e não a exceção, entre as pessoas que convivem com doentes de Spoan. A paraparesia espástica progressiva dos membros inferiores e superiores - termos difíceis da linguagem médica que significam o contínuo enrijecimento e enfraquecimento das pernas e braços é uma das assinaturas clínicas da síndrome. Outra são lesões progressivas nos neurônios motores e sensoriais, danos que diminuem ainda mais os movimentos e os reflexos. Paradoxalmente, apesar de não conseguirem mover de forma espontânea as pernas, quase todos os pacientes reagem de forma abrupta quando ouvem sons inesperados: produzem contrações involuntárias nos músculos dos membros inferiores. Alguns habitantes da cidade dizem que certas crianças afetadas já nascem meio "molinhas", aparentemente sem muita firmeza para se sentar ou mesmo engatinhar. Mas mesmo esses doentes mais precocemente fragilizados geralmente conseguem se locomover, sozinhos ou amparados, com quedas e tropicões freqüentes, até uma certa idade, em geral em torno dos 10 anos. A paralisia costuma chegar aos braços um pouco mais tarde, no final da adolescência ou perto dos 20 anos. "Com o tempo, as mãos dos doentes, que nunca se submeteram a qualquer forma de fisioterapia, acabam ficando semifechadas, num formato que lembra o de garras", explica a bióloga Silvana Santos. "Eu colocava sapatinhos com salto alto para ajudar a Sarinha a andar", lembra Maria Euda de Queiroz, a dona Loló, uma viúva de 67 anos, cujo marido, Francisco Assis de Queiroz, era seu "primo legítimo", primo em primeiro grau. "Ela andou quase sem tropeçar até os 8 anos." Quando criança, a filha mais nova de dona Loló, hoje com 21 anos, caminhava equilibrada apenas na ponta do pé, como uma bailarina hesitante, e o emprego do calçado feminino de solado alto lhe servia de apoio. Deparar com dona Loló na pequena cidade potiguar é fácil. Basta passar em frente à sua casa, que fica ao lado de 40 ■ JULHO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 113

uma igreja evangélica, quase na saída da cidade em direção a Martins, município vizinho do qual Serrinha dos Pintos se desmembrou em 1993. Ela passa as tardes ali, sentada ao lado de suas meninas: Sara e Eda, ambas com Spoan e em suas cadeiras de rodas; Tranquilina, a Neta, que tem distúrbios psiquiátricos e, a rigor, não fica parada em nenhum lugar por muito tempo; e Iza, a única das cinco filhas sem problemas de saúde.

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ula, a sua primogênita que também teve Spoan, morreu de aneurisma ^Ê cerebral em 1999 quan.^fl do tinha 46 anos. "Meu marido, que teve dois irmãos deficientes, dizia que fomos muito sem sorte", explica dona Loló, que estudou até a antiga quinta série e sabe ler e escrever. Seu pai, José Firmino de Queiroz, casou-se duas vezes e teve 18 filhos, três deles deficientes. "Se eu soubesse do problema, tinha tentado esquecer o Francisco, arrumava outro", diz, sem muita convicção, a mãe zelosa. Dona Loló acorda todo dia às 5h30 da manhã, faz café, dá banho e penteia as filhas doentes, que estão sempre bem cuidadas. E dá uma "bandinha de diazepam", ainda no desjejum, para Eda, a filha com Spoan em condição mais delicada que acorda com tremores típicos da síndrome de abstinência. A noite, para induzir o sono, Eda toma outra dose de tranqüilizante e Sara, o seu primeiro e único comprimido do dia. Dona Loló garante que ela mesma já largou esse hábito, embora não negue que tenha recorrido ao calmante em dias mais difíceis do passado. "As meninas ficam nervosas com qualquer problema" explica. Nervoso é um adjetivo muito empregado pelos familiares das vítimas de Spoan para descrever o comportamento dos doentes. É impossível saber desde quando pacientes, familiares e outras pessoas da cidade estão consumindo medicamentos de uso controlado. Que a prática é antiga e institucionalizada, não resta dúvida.

"Temos 345 pessoas cadastradas na prefeitura para receber, por orientação médica, diazepam", afirma o pedagogo e ex-agente comunitário José Antônio Queiroz, hoje secretário municipal de Saúde de Serrinha. Quase 10% da população local. Alguns moradores dizem que o número de usuários de tranqüilizantes é, no mínimo, o dobro. Queiroz, Fernandes e Dias - Situada numa região de montanhas de porte modesto, com cerca de 750 metros de altitude, Serrinha dos Pintos tem um clima ameno para um lugar que os mapas colocam no interior da Caatinga nordestina, em geral inferior a 25°C. Apesar dos quase 400 quilômetros que a separam de Natal, a cidade é de fácil acesso. Da capital do estado, chega-se nesse pedaço pouco conhecido do Rio Grande do Norte por estradas asfaltadas e os buracos não passam a ser um problema durante a viagem. Em sua origem, há uns 200 anos, quando ainda era um pedaço da vizinha Martins, Serrinha não passava de uma grande fazenda. Dos moradores iniciais dessa extensa propriedade rural descende praticamente toda a sua população atual, cheia de Queiroz, Fernandes e Dias nos sobrenomes. Em Serrinha a chuva não é tão escassa, a vegetação nesta época do ano é abundante e as plantas apresentam tons de verde normalmente não associados pelos habitantes do sul a uma área semi-árida. É uma cidade pobre, sem dúvida. Mas seu núcleo urbano é limpo e as ruas estão calçadas com pedras. Não há sinais de miséria. Provavelmente nos sítios sertão adentro a situação seja mais precária. "Temos oito escolas públicas", diz o professor Leidmar Fernandes de Queiroz, vice-prefeito da cidade, pai de Leia, para os da família Leinha, uma menina de 20 anos com Spoan e um sorriso lindo. Para a gente hospitaleira e humilde de Serrinha, de cujas casas não se sai sem provar um gole de café ou experimentar uma pamonha de milho ou uma carne-de-sol, o trabalho que existe é na agricultura, em geral de subsistência. Eles plantam milho e feijão e tiram castanha do caju. Para os mais graduados, ou influentes, existe a alternativa de arrumar um emprego na prefeitura. Não há bancos na cidade e a agência


Doença mapeada A sfndrome Spoan foi descoberta em Serrinha dos Pintos, cidade de 4.300 habitantes situada 370 quilômetros a oeste de Natal

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RIO GRANDE DO NORTE SERRINHA DOS PINTOS

mais próxima fica em Martins. A aposentadoria dos moradores mais velhos e o dinheiro que vem de programas federais, como o Bolsa Família, também são importantes fontes de renda das famílias. Em sua maioria, os deficientes com Spoan (e outras patologias) são aposentados e também ajudam a reforçar o caixa doméstico. Mas a maior parte da receita da prefeitura não deriva de alguma atividade econômica local. Vem do repasse federal do Fundo de Participação dos Municípios, um valor anual que gira em torno dos R$ 2 milhões. Nos registros de 2003 do Departamento Nacional de Trânsito havia cerca de 300 veículos com a matrícula da cidade, quase dois terços deles eram motocicletas. Mais do que os animais de transporte e os carros, as motos se destacam na paisagem local. Desde o final do ano passado, Serrinha conta com um hospital. Ou melhor, conta e não conta. O prédio da Unidade Mista Terezinha Maria de Jesus, concebido para ser um híbrido de hospital e posto de saúde, ficou pronto em novembro passado e opera parcialmente. A rigor, é subutilizado e a cidade não

tem dinheiro para fazê-lo funcionar em sua totalidade. Motivo: construído com verbas federais conseguidas com o apoio de um político potiguar de alguma influência em Brasília, o estabelecimento, segundo o secretário municipal de Saúde, José Antônio Queiroz, foi concebido para uma cidade de 20 mil habitantes, cinco vezes maior do que a população local. Em suma, é muita castanha para o pequeno cajueiro de Serrinha. Quase todo o seu equipamento mais sofisticado, como o aparelho de raios X, está encaixotado. A atual rede de luz do prédio não daria conta para suprir o equipamento. A maioria das alas médicas está vazia. "Vai ser difícil fazermos todo o hospital funcionar", diz, com franqueza, o secretário municipal de Saúde. Não se pode dizer que a unidade mista não funciona porque dois clínicos-gerais e dois dentistas dão expediente durante a semana na ampla construção, também freqüentada pelo pessoal do posto de saúde e por um cardiologista que quinzenalmente atende os moradores da cidade. Há ainda seis leitos, dois para homens, dois para mulheres e dois para crianças, que podem

abrigar pacientes durante o dia, até as 17 horas. Para consultas das demais especialidades, os munícipes têm de recorrer aos serviços das cidades vizinhas, ou nem tão vizinhas, como no caso de Natal. A cada 15 dias sai uma van com pacientes para a capital do estado. Dica da vizinha - Confundida por leigos e médicos com outros tipos de paraplegia e até com a paralisia infantil, a síndrome Spoan só foi identificada graças ao faro de cientista de Silvana Santos. E a uma dose de sorte. É possível dizer que, num primeiro momento, foi a doença que a achou, e não o contrário. Depois ela foi ao encontro da mesma. Uma de suas vizinhas no Butantã, um bairro de São Paulo, Zilândia Dias de Queiroz, uma moça de uns 20 anos, era de Serrinha dos Pintos e tinha uma forma diferente de deficiência física. As duas se tornaram amigas e a pesquisadora começou a tomar contato, de maneira informal, ainda sem nenhum projeto de pesquisa em mente, com a realidade da cidadezinha potiguar. "Ela me disse que havia mais deficientes em Serrinha e que lá todo mundo era apaPESQUISA FAPESP 113 ■ JULHO DE 2005 ■ 41


rentado e casava com primos", relembra Silvaria. Em 2001, por conta própria, ao lado de suas duas filhas pequenas, a bióloga foi ao interior do Rio Grande do Norte, numa viagem que foi um misto de trabalho e férias em família. Ficou espantada com a quantidade de uniões consangüíneas na localidade e o número de deficientes. Voltou convencida de que ali havia muito a ser pesquisado. Desde então a bióloga visitou Serrinha em outras três ocasiões, a última no mês passado, e envolveu nos trabalhos com os doentes da cidade um grupo razoável de pesquisadores do Centro de Estudos do Genoma Humano da USP. Do ponto de vista científico, o resultado mais visível desse esforço concentrado foi a descoberta de que a forma de deficiência física de Zilândia é, na verdade, um novo tipo de doença neurológica, a síndrome Spoan, que ainda não havia sido descrita pela ciência e deve desencadear uma série de estudos sobre a patologia. "Temos de estudar agora e com urgência essas doen-

ças de origem consangüínea, que aparecem em pequenas cidades do interior do Brasil", afirma Fernando Kok. "Esses lugares hoje não estão mais isolados do país e, daqui a pouco, não será mais possível descobrir a origem de certos problemas de saúde." Famílias numerosas, com muitas uniões entre pessoas aparentadas, como as de Serrinha, são cada vez mais raras.

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o Brasil, estima-se que 2% dos matrimônios sejam entre cônjuges consangüíneos. E é justamente nesse tipo de ambiente que se encontram novas doenças hereditárias, como a Spoan, ou genes de patologias já conhecidas. Nos anos 1990, a pesquisadora Maria Rita Passos-Bueno, também do Centro de Estudos do Genoma Humano, descobriu em dois genes mutações associadas a problemas de saúde quan-

do analisava o DNA de uma grande família de Euclides da Cunha, município baiano de 55 mil habitantes. Uma das alterações genéticas, identificada em 12 indivíduos, causava a síndrome de Knobloch, uma forma progressiva de cegueira. A outra, presente em seis pacientes, levava a uma forma de distrofia muscular. "Essa cidade da Bahia também se formou a partir de uma fazenda, como Serrinha dos Pintos", diz Maria Rita. Além dos ótimos resultados científicos, a pesquisa rendeu dividendos práticos. Hoje há testes preditivos, desenvolvidos na USP, capazes de dizer se a gestante carrega um bebê com essas duas doenças ou se um casal tem risco de vir a ter descendentes com esses problemas. Espera-se que o mesmo possa ser feito em breve no caso da síndrome Spoan. Enquanto isso não ocorre, a mera presença de pesquisadores na Caatinga potiguar, ainda que ocasional, serve de estímulo para os deficientes locais e seus familiares se organizarem. Há cerca de um ano foi fundada a Associação dos Deficientes Físicos de Serrinha dos Pintos, um dois-cômodos com um banheiro situado bem em frente à prefeitura. Quase 300 pessoas, entre doentes

Um "problema de família" Se os pesquisadores não têm mais dúvidas de que a síndrome Spoan é uma doença genética recessiva, herdada por alguns filhos de casais consangüíneos de Serrinha dos Pintos, os parentes dos doentes ainda não pensam assim. Eles atribuem a gênese de todos os casos da síndrome a um "problema de família" — a uma hipotética sífilis hereditária que teria acometido, há cerca de 150 anos, um antepassado comum, "o velho Maximiniano", e se disseminado pelo sangue de seus descendentes. "Meus avós diziam que o problema vinha dos Dias da Cacimba da Vaca", conta Laurita Firmino de Queiroz, 65 anos, fazendo referência ao ramo da família que, às vezes, é apontado como o depositário da origem da deficiência. Os pais dos afetados pela Spoan tam-

H2 ■ JULHO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP113

bém sugerem que seus filhos só começaram a ter dificuldades maiores de locomoção depois de terem sido vítimas de algum evento traumático na infância, como um febrão ou um sarampo. Dona Laurita recorda que seu filho com a síndrome, Esdras, de 43 anos, teve uma forte inflamação na garganta. "Cresci e o corpo não acompanhou", diz o falante Esdras, tentando explicar a sua própria dificuldade de locomoção. "Acho que perdi a prática de andar." Baseada no senso comum, a tese de que o sangue familiar poderia ser o agente de transmissão hereditária de uma doença como a Spoan podia fazer sentido no século 19. Nessa época, pesquisadores sérios pensavam assim. Hoje a idéia não conta mais com o aval da ciência, que atri-

bui a causa da patologia a uma mutação genética. No entanto, esse tipo de concepção, abandonada pela academia, ainda persiste na mente de muitas pessoas, sobretudo num local de gente simples como Serrinha. "Um dos nossos desafios é explicar para a população da cidade, de forma simples, o significado das nossas pesquisas", diz a bióloga Silvana Santos, que lança em agosto um livro a respeito de como os leigos compreendem os conceitos da herança genética. "As pessoas precisam entender o significado de ser heterozigoto para uma doença como a Spoan e também quais são as repercussões do eventual desenvolvimento de um teste pré-natal capaz de identificar, ainda na barriga da mãe, os bebês que portam a síndrome."


A cidade tem economia baseada no milho, feijão e castanha, mas o grosso do dinheiro vem do Fundo de Participação dos Municípios

e saudáveis, contribuem mensalmente com a entidade. As doações variam de R$ 2 a R$ 5. Com o dinheiro arrecadado foram compradas cinco cadeiras de rodas especiais para banho e reformada uma cadeira. Embora não faltem laços de parentesco entre seus habitantes e o lugar seja pequeno, Serrinha parece estar descobrindo os seus deficientes físicos, com Spoan e outras patologias, só agora. "Só quando voltei para cá vi que havia tanto deficiente em Serrinha", admite Gilcivan Geraldo da Costa, um filho da cidade que virou paraplégico em São Paulo ao cair de um telhado e agora preside a associação de deficientes em sua terra natal. "A gente só conhece o problema quando tem o problema." Um dos trabalhos mais notáveis da entidade foi um levantamento sobre o número de deficientes no município, que se aproxima das 140 pessoas. Quer dizer, há muito mais deficientes ali do que as 26 vítimas conhecidas de Spoan. "Tem muita gente com problema mental, síndrome de

Down e surdo-mudo", diz Odi dos Santos de Queiroz, voluntária da entidade que cuidou dessa sondagem. Ranking da deficiência - As informações da associação batem com dados do IBGE sobre Serrinha dos Pintos. Numa lista dos 50 municípios nacionais com maior porcentagem de portadores de deficiências físicas ou mentais, o lugar onde O PROJETO Conhecimento cotidiano sobre herança biológica MODALIDADE

Bolsa de Pós-doutoramento SUPERVISOR PAULO ALBERTO OTTO

- IB/USP

BOLSISTA

- Centro de Estudos do Genoma Humano da USP SILVANA SANTOS

se descobriu a nova doença neurológica ocupa o 38° posto. Quase 6% de seus habitantes apresentam alguma forma de deficiência. "Há outras seis cidades do Rio Grande do Norte nesse ranking", afirma o neurologista Fernando Kok, fazendo referência aos municípios de Riacho de Santana, Cruzeta, Timbaúba dos Batistas, 01ho-d'Água do Borges, São Miguel e Pilões. Os pesquisadores acreditam que também pode haver casos de Spoan não diagnosticados - e de outras doenças - nessas localidades potiguares, algumas vizinhas de Serrinha dos Pintos. "De imediato, temos de concentrar os estudos com a Spoan em Serrinha e tentar melhorar a qualidade de vida dos afetados com a síndrome, em especial dos mais jovens, que podem manter uma boa postura com um trabalho adequado de fisioterapia", diz Silvana Santos. "Mas, em breve, teremos de olhar para outras cidades." E não só as do Rio Grande do Norte. Dez dos 50 municípios com mais deficientes no Brasil ficam em Minas Gerais. • PESQUISA FAPESP113 ■ JULHO DE 2005 ■ 43


CIÊNCIA

GENÉTICA

Os saltos da inteligência Trechos móveis do DNA regulam a diferenciação de células nervosas CARLOS FIORAVANTI

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urgiram algumas pistas biológicas para entender por que uma mesma pintura ou uma situação idêntica faz uma pessoa rir, leva outra às lágrimas e deixa uma terceira completamente indiferente. As diferenças de percepção, a habilidade de reagir com maior ou menor rapidez a uma fechada no trânsito ou mesmo a inteligência mais ou menos apurada enraízamse na genética - especificamente, nas conseqüências dos movimentos de seqüências de DNA capazes de saltar de um ponto a outro do genoma, chamadas retrotransposons. Dependendo de onde estacionarem, esses elementos móveis podem ativar ou silenciar genes responsáveis pela diferenciação de células neuronais, precursoras dos neurônios. Forma-se assim um mosaico de neurônios, que se traduz na maior ou na menor habilidade de emocionar-se por um quadro ou de resolver um problema de física. Realizado por uma equipe do Instituto Salk, Estados Unidos, esse estudo contou com dois biólogos brasileiros, Alysson Muotri e Maria Carolina Marchetto, e abre perspectivas para aprofundar a pesquisa de doenças como autismo e esquizofrenia, que poderiam resultar, à primeira vista, das posições em que se assentam os retrotransposons. "Nossa hipótese é que os pulos de retrotransposons em células nervosas adultas podem estar contribuindo para gerar diversidade de neurônios do cérebro, conferindo adaptabilidade e contribuindo para cada indivíduo ter um cérebro único", comenta Maria Carolina. Publicado na edição de 16 de maio da revista Nature, o trabalho tem outros méritos. Em primeiro lugar confirma o valor dos genes saltado-

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Destinos marcados: neurônios com retrotransposon Li (em verde) e sem (em vermelho)

res como elementos controladores do genoma. A geneticista norte-americana Barbara McClintock descobrira há 60 anos os genes saltadores e lançara essa idéia estudando as origens da variação de cores do milho, mas foi esquecida por quase 40 anos até ganhar o Prêmio Nobel de Medicina em 1983. Mesmo que outros estudos tenham mostrado essa habilidade de interferir nas características de um ser vivo, os retrotransposons permaneciam um tanto malvistos: suspeitava-se que poderiam ser genes egoístas e parasitas, assim chamados porque se movimentariam com o objetivo exclusivo da auto-replicação, sem nenhuma contribuição ao organismo - uma hipótese sustentada pelo fato de seus movimentos já terem sido testemunhados em células germinativas (óvulos e espermatozóides) e em tumores, mas nunca, até agora, em células somáticas, em especial no cérebro.


As cores dos grãos de milho: efeito dos genes saltadores

Além disso, esse estudo apresenta indicações de como funciona um dos tipos de retrotransposons, os Line-1 ou LI, que ocupam cerca de 20% do genoma dos mamíferos. Outras idéias ganham novos ajustes. "Pensava-se que as regiões gênicas que contêm os genes ligados ao sistema nervoso estivessem protegidas contra esses elementos móveis do DNA", comenta Marie-Anne van Sluys, especialista em elementos móveis que trabalha no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP). Mas os L-l criam cópias de si mesmos e se encaixam exatamente nas regiões do DNA mais ricas em genes responsáveis pela formação das células nervosas, favorecidos por um momento em que os genes estão sendo copiados e o DNA se encontra pouco enovelado. Específicos - Mas por que os LI procuram exatamente os genes cuja atividade determina o futuro das células nervosas? "Aparentemente", comenta Carlos Menck, professor do Instituto de Ciências Biomédicas da USP que orientou o doutoramento de Muotri e de Maria Carolina,"os LI parecem específicos ao modularem a expressão de genes de células diferenciadas". Não seriam os primeiros: outros estudos já haviam mostrado que outros tipos de elementos móveis regulam a expressão de genes durante a formação do embrião. Segundo Menck, esses estudos poderiam constituir indícios de um processo não

necessariamente aleatório, mas de algum mecanismo que ativa os retrotransposons em um momento específico. O trabalho dos dois brasileiros no laboratório de Fred Gage no Instituto Salk mostrou que os LI atuam mais livremente quanto menor a atividade de genes conhecidos como Sox2. Os Sox2 poderiam ser, assim, não apenas bloqueadores casuais desses retrotransposons, mas atores intermediários desse mecanismo de ativação ou bloqueio de genes dos neurônios, que resultariam em neurônios que fariam mais ou menos conexões entre si, levando, num plano mais amplo, animais ou seres humanos com comportamentos distintos - mais agressivos ou mais pacíficos ou, de modo geral, capazes de responder de modo diferente a um estímulo. Tais conclusões resultam de testes feitos em camundongos transgênicos, que carregavam cópias de um LI ativo humano, marcadas com uma proteína verde fluorescente. Assim, as células em cujo DNA elas se implantassem ficariam verdes. Feito o experimento, "só ficaram verdes as células do cérebro e as células germinativas", conta Muotri. Nenhum dos animais tinha as mesmas células verdes - indicação de que a interação com o ambiente e uma boa dose de acaso ainda são decisivos para determinar o futuro dos neurônios. É um jogo de resultados incertos: "Mesmo animais geneticamente idênticos", diz ele, "têm cérebros diferentes". •


CIÊNCIA BIOQUÍMICA

Ourivesaria

molecular Rede paulista supera o alto risco de fracasso e esclarece a estrutura de 52 proteínas

RICARDO ZORZETTO

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haker Chuck Farah, bioquímico canadense que há 15 anos vive em São Paulo, aponta na tela do computador um conjunto de círculos concêntricos definidos por uma sutil variação de tons cinza. Pontos negros salpicam o centro do monitor e formam uma imagem que lembra um alvo crivado de balas. É a assinatura de luz de uma proteína produzida pela Xanthomonas axonopoâis pv citri, a bactéria causadora do cancro cítrico, uma das piores pragas da citricultura nacional. Ao atravessar um cristal da proteína, um feixe de raios X sofre desvios e registra no detector pontos que permitem identificar a estrutura tridimensional dessa molécula. Por meio dessa técnica chamada difração de raios X, a equipe desse bioquímico da Universidade de São Paulo (USP) definiu, átomo por átomo, a estrutura em relevo da YaeQ: seus 182 blocos essenciais (aminoáci-

46 ■ IULHODE2005 ■ PESQUISA FAPESP113

dos) se agrupam e modelam um barril sem tampos, com uma fenda no alto. A YaeQ é apenas uma das 52 moléculas cuja estrutura espacial foi descrita nos dois últimos anos pelos pesquisadores da Rede de Biologia Molecular Estrutural, ou Smolbnet, sigla em inglês de Structural Molecular Biology Network. Criada em dezembro de 2000 sob a coordenação do bioquímico Rogério Meneghini, com apoio da FAPESP e do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), essa rede começa agora a colher os principais resultados da análise de proteínas após quatro anos e meio de trabalho. É que primeiro foi preciso treinar biólogos, bioquímicos, químicos e médicos de 20 laboratórios paulistas nas técnicas adotadas para descobrir a forma tridimensional dessas moléculas, essenciais à composição e ao funcionamento dos organismos vivos. Duas características dessa rede tornaram a tarefa mais difícil. A primeira é que as equipes exercem atividades dis-

tintas umas das outras. O grupo do médico Ismael Silva, por exemplo, estuda proteínas ligadas ao surgimento de cânceres ginecológicos, enquanto a equipe chefiada pelo biólogo Luis Eduardo Soares Netto investiga um conjunto de proteínas que protegem as células dos radicais livres. Já a bióloga Carla Columbano de Oliveira analisa a estrutura das proteínas componentes de um aglomerado - o exossomo - existente no núcleo das células, responsável pelo controle de qualidade das moléculas de ácido ribonucléico (RNA) que, entre outras tarefas, copiam a informação dos genes e orientam a produção de outras proteínas. O segundo complicador é que quase todos os grupos apresentavam pouco ou nenhum conhecimento sobre as técnicas de determinação da estrutura de proteínas. "Nosso objetivo era ensinar o processo de investigação da forma tridimensional das proteínas às equipes de pesquisadores que freqüentemente se deparam com a necessidade de conhe-


Cristais raros: blocos de enzimas que desfazem o RNA defeituoso vistos por lupa

cer a estrutura dessas moléculas", afirma Meneghini, que dirigiu de 1997 a 2004 o Centro de Biologia Molecular Estrutural (Cebime) do LNLS. Múltiplas técnicas - O esforço valeu. Nos últimos dois anos as diferentes equipes determinaram a estrutura de 24 proteínas pela difração de raios X a principal técnica usada no estudo dos cristais dessas moléculas, a cristalografia de proteínas. Entre elas, há duas importantes proteínas que inibem em estágios diferentes a coagulação do sangue e, no futuro, poderão ser aplicadas nos tratamentos de infarto e trombose. Os pesquisadores também chegaram à forma tridimensional de outras 14 proteínas com uma segunda técnica que usa raios X, mas é menos precisa que a anterior: o espalhamento a ângulo baixo, ou Small Angle XRay Scattering (Saxs). Por meio de uma terceira técnica, a ressonância magnética nuclear, eles desvendaram a conformação de mais 14 moléculas.

Apresentados em 50 artigos publicados em revistas internacionais, esses resultados foram considerados bastante bons na avaliação feita em outubro de 2004 por uma comissão independente, com especialistas do Instituto Pasteur, na França, da Universidade de Oxford, na Inglaterra, e do Laboratório Nacional Brookhaven, nos Estados Unidos. "A taxa de sucesso desde a obtenção dos clones até a determinação das estruturas é comparável à de projetos internacionais", afirmaram os avaliadores estrangeiros. Eles também reforçaram a necessidade de instalar no LNLS uma outra linha de raios X, que fornece radiação mais intensa em comprimentos de onda específicos. Essencial para identificar a estrutura de proteínas desconhecidas, essa linha, a MAD (Multiwavelength Anomalous Dispersion), deve entrar em operação até o final deste ano. Era mesmo necessário criar uma rede como essa. Até o final da década de 1990 contavam-se nos dedos de uma só

mão os laboratórios brasileiros dedicados à cristalografia de proteínas, com destaque para o grupo do cristalógrafo Glaucius Oliva, do Instituto de Física de São Carlos, ligado à USP, e do próprio Cebime. Reduzindo uma histórica defasagem, as equipes de outros 20 laboratórios são capazes de percorrer sozinhas ao menos cinco das seis etapas desse processo. "A julgar pelos resultados obtidos, esse programa promoveu um importante estímulo para o desenvolvimento dessa área no país", comenta Meneghini, que atualmente é pesquisador do Centro Latino-americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (Bireme). Ofuscada pela notoriedade conquistada pelo seqüenciamento do genoma de 180 organismos, a cristalografia reassume agora, no mundo todo, o papel primordial que sempre desempenhou no estudo da função das proteínas. Explica-se: a conformação espacial dessas moléculas determina o papel que exercerão. Uma proteína é produzida


lhões de cópias da proteína no interior das células pelo começam a perder água e a se acréscimo de um aminoácido aproximarem umas das ouapós outro, em uma longa fita tras, formando um bloco no composta essencialmente por estado sólido. Com alguma átomos de hidrogênio, carbosorte, as moléculas da proteíno, nitrogênio e oxigênio. Tão na se acomodam todas a meslogo é formada, essa fita coma distância umas das outras meça a sofrer torções e a doe com a mesma orientação, brar-se sobre si mesma, assutal qual um pelotão de soldamindo uma forma espacial dos perfilados que aguardam por causa da atração e da reinstruções do comandante. É pulsão exercida pelas cargas o cristal da proteína. Mas se as elétricas de determinados tredistâncias entre uma molécuchos da molécula. la e outra são irregulares ou O resultado desse bale soa orientação das cópias da litário são moléculas com forproteína não é homogênea, ma de barbante, de globo ou surge um sólido disforme no até de ampulheta. Como uma fundo do recipiente. E não há chave que abre apenas uma receita certa. "Cada proteína fechadura, as proteínas aprenecessita de condições especísentam uma estrutura espaficas — pouco mais de detercial tão específica que em geminado sal ou um tanto meral elas só interagem com nos de um certo álcool - para outras moléculas de forma formar um cristal", comenta a complementar. "Foi a forma bióloga Andréa Balan, do Instridimensional do DNA que tituto de Ciências Biomédicas indicou a James Watson e da USP, que, em parceria com John Kendrew e Max Perutz, à direita: quase Francis Crick como essa moLuis Carlos Ferreira, investiga 20 anos para descobrir a estrutura da hemoglobina lécula se comportava", comena forma espacial de um conta Farah. E o que a forma de junto de 18 proteínas da Xanbarril com fenda conta para o thomonas citri envolvidas no transro passo é escolher o gene responsável bioquímico da USP a respeito da funporte de nutrientes para o interior da pela produção de uma proteína e desção dessa proteína? Farah ainda não bactéria. cobrir a seqüência de pares de bases nisabe. A comparação com outras proteítrogenadas (adenina, timina, citosina e nas sugere que a YaeQ seja completaQuebra-cabeça - Só então começam os guanina) que o formam. Em seguida mente diferente do que se conhecia. testes de difração no LNLS, em Campitenta-se copiar o gene da proteína de "Esse é o nosso próximo desafio", afirnas. Em um imponente prédio de conque se deseja obter um cristal. ma o bioquímico da USP. "Estamos secreto, potentes ímãs aceleram elétrons Quando tudo corre bem, os pesquiguindo o caminho oposto ao percora velocidades próximas à da luz no insadores inserem o gene escolhido no marido tradicionalmente", diz Farah. Em terior de um anel circular. Cada vez terial genético de uma bactéria ou uma geral usa-se a cristalografia para desque são desviados para manterem a levedura, que devem produzir a proteívendar a estrutura de proteínas com trajetória circular, os elétrons liberam na em quantidade suficiente para as etafunções conhecidas, mas, com o térmiuma luz muito intensa, a luz síncropas seguintes. Com o trabalho por conno de vários genomas, cresceu o númetron, composta por radiações que vão ta desses microorganismos, não há o ro de proteínas cujas funções ainda não do infravermelho aos raios gama. Em que fazer além de aguardar. A próxima foram identificadas. um laboratório conectado a esse anel fase é separar a proteína a ser estudada de luz síncrotron, os pesquisadores das demais fabricadas pela bactéria ou Sucessos e frustrações - Mais artesanal controlam por meio de um computapela levedura - a filtragem pode duque o seqüenciamento dos genomas, a dor a orientação do cristal exposto aos rar semanas. Os poucos miligramas determinação da forma tridimensioraios X e fazem centenas de imagens da proteína purificada são diluídos nal das proteínas é uma tarefa tortuosemelhantes às exibidas por Farah, cada em diferentes concentrações de sais e sa, quase sempre composta por seis etauma de um ângulo diferente. Um proalcoóis, depositados em dezenas de repas e com taxa de sucesso baixa, em grama de computador analisa as imacipientes lacrados e distribuídos sobre média 5%. É que cada fase apresengens e gera um esboço da proteína. Coplacas retangulares de acrílico, um pouta empecilhos, com uma dificuldade nhecendo a seqüência de aminoácidos co maior que um maço de cigarros. E extra: não há como antever qual etapa das proteínas, os pesquisadores iniciam novamente é preciso esperar. dará errado nem por que razão não um verdadeiro jogo de quebra-cabeça Em um processo ainda pouco comfuncionou, em um retorno aos testes que pode consumir meses de trabalho: preendido pelos pesquisadores, os miempíricos de tentativa e erro. O primei48 • JULHO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 113


Quatro cenas de uma longa jornada

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Etapas da identificação da estrutura espacial de um anticoagulante, o inibidor do fator Xlla: da esquerda para a direita, cristais vistos por lupa (na escala, 100=1 mm) e por difração de raios X antecedem a reconstituição da molécula átomo a átomo

experimentam um a um os aminoácidos até descobrir sua posição específica na proteína enovelada. O que é complicado hoje já foi muito mais difícil. Em 1937, quando o bioquímico austríaco Max Ferdinand Perutz começou a usar difração de raios X para investigar a estrutura da hemoglobina, proteína que transporta o oxigênio no sangue, não havia computador. O trabalho era todo manual: as imagens eram feitas com equipamentos de raios X bem menos potentes, impressas em placas de vidro e dispostas em molduras enfileiradas no laboratório antes de se calcular no papel a posição dos átomos. Perutz estava determinado a revelar a forma tridimensional da hemoglobina durante seu doutorado no prestigioso Laboratório Cavendish, da Universidade de Cambridge, mas não conseguiu. Só esclareceu a estrutura espacial da hemoglobina em 1959, quase duas décadas depois de completar o doutoramento, feito que lhe valeu o Nobel de Química de 1962, partilhado com o britânico John Kendrew. Seguindo essa receita - mas com o apoio de computadores -, a equipe de Farah estudou 35 dos 1.700 genes da Xanthomonas citri responsáveis pela fabricação de proteínas ainda desconhecidas e determinou a forma de duas proteínas por meio da difração de raios X. No meio do caminho, porém, o bioquímico da USP teve a sorte de topar com Ana Paula Valente e Fábio Almei-

da, ambos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que haviam desenvolvido uma forma de analisar proteínas por ressonância magnética nuclear sem passar pela etapa de purificação. Farah adaptou o uso da ressonância para analisar a estabilidade das proteínas - quanto mais estáveis, ou seja, dobradas sobre si mesmas, mais facilmente elas formam cristais - e poupou meses de trabalho que possivelmente não seria bem-sucedido. Anticoagulante - Outras equipes tomaram caminho diverso. Em vez de partirem de conjuntos de proteínas de um microorganismo para identificar a estrutura de algumas poucas, deixando o que não deu certo para trás, escolheram investigar a forma espacial de proteínas com as quais já trabalhavam. Foi a decisão do biólogo Sérgio Schenkman, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que há 20 anos estuda proteínas do ciclo de vida do protozoáO PROJETO Structural Molecular Biology Network (Smolbnet) COORDENADOR ROGéRIO MENEGHINI

- Bireme

INVESTIMENTO R$ 13.036.329,12 (FAPESP)

rio Trypanosoma cruzi, causador da doença de Chagas, e do seu transmissor na América do Sul, o inseto Triatoma infestam, ou barbeiro. A equipe de Schenkman detalhou a estrutura de duas proteínas do sistema digestivo do barbeiro que atuam em fases distintas da seqüência de reações da coagulação do sangue: uma inibe a ação da trombina e a outra impede o funcionamento do fator Xlla. Ambas apresentam potencial aplicação no tratamento de problemas provocados pela coagulação do sangue, como a trombose. "Essas proteínas devem impedir a coagulação do sangue no trato digestivo do inseto, que se alimenta uma vez a cada 15 ou 20 dias", explica o pesquisador. Por ressonância magnética nuclear, Schenkman identificou a estrutura espacial de uma terceira molécula, correspondente à porção terminal da trialisina, proteína da saliva do barbeiro que abre poros nas células, matando-as. Possivelmente o inseto injeta essa proteína na pele no momento da picada, abrindo caminho para sugar o sangue. Análises da equipe da Unifesp e do LNLS permitiram mapear regiões do trecho terminal da trialisina importantes para a atividade dessa molécula. Com base nessas informações, os pesquisadores acreditam ser possível desenhar peptídeos com ação antimicrobiana. Diferentemente dos genomas, a cristalografia de proteínas avança um passo por vez. • PESQUISA FAPESP 113 ■ JULHO DE 2005 ■ 49


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CIÊNCIA FISIOLOGIA

A química da acupuntura ^

Agulhas acionam neurotransmissor e protegem contra úlcera gástrica e paradas na respiração durante o sono FRANCISCO BICUDO

econhecida como especialidade médica no Brasil há dez anos, a acupuntura ainda carece de provas de que é eficaz do ponto L»« de vista científico. Estudos com animais e seres humanos indicam que essa técnica chinesa milenar, baseada na aplicação de agulhas em pontos específicos do corpo para restabelecer a saúde, funciona sim, mas apenas em determinados casos. O uso das agulhas já se mostrou eficiente no combate à dor e às intensas náuseas provocadas pelo uso de medicamentos contra o câncer. Também se revelou como um potente aliado no tratamento da asma, do acidente vascular cerebral e do uso abusivo de drogas. Agora três pesquisas conduzidas na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) mostram que a acupuntura pode combater gastrite e úlcera, além das interrupções na respiração que prejudicam a qualidade do sono. Mais importante: esses trabalhos ajudam a entender como ela funciona. Ao que tudo indica as agulhas, aplicadas em determinados pontos do corpo, promovem a

liberação ou o melhor aproveitamento de uma substância química chamada serotonina. Mais conhecida como um mensageiro químico (neurotransmissor) que leva informações de uma célula a outra no sistema nervoso central, a serotonina também age como potente analgésico nos nervos periféricos, que se prolongam pelos braços, pelas pernas e pelo tronco. Segundo a tradição oriental, a energia vital Qi circula pelo organismo ao longo de meridianos que terminam em pontos específicos da pele. O bom funcionamento do corpo depende do equilíbrio entre as duas forças contrárias e complementares - yin e yang - que compõem Qi. Se esse equilíbrio se desfaz, o corpo adoece. A acupuntura então tenta restabelecer esse equilíbrio energético pela manipulação das agulhas espetadas em alguns dos mais de mil pontos já identificados. Na interpretação da medicina ocidental, esses pontos correspondem a terminações nervosas que, excitadas por meio de agulhas ou de calor, enviam um sinal ao sistema nervoso central que, por sua vez, o decifra e devolve uma resposta a regiões específicas do corpo. "Ainda não


sabemos como esse processo começa nem se a serotonina é produzida em maior quantidade ou apenas é mais bem aproveitada pelos neurônios", comenta o neurofisiologista Luiz Eugênio Mello, um dos coordenadores dos estudos da Unifesp. "Os resultados mostram que a acupuntura precisa da serotonina para funcionar", diz. Essa não é uma suspeita recente. Na década de 1980, estudos feitos no Japão e na China indicavam que era esse neurotransmissor o responsável pela redução da dor após as sessões de acupuntura. Interessados em produzir embasamento científico para a acupuntura, os pesquisadores da Unifesp decidiram verificar se a serotonina também estava associada aos efeitos benéficos observados no tratamento de outros problemas. Os primeiros estudos indicam: sem serotonina, nada feito. Em um dos experimentos, o grupo paulista avaliou se a acupuntura poderia aliviar os sintomas de quem sofre de apnéia do sono, como são chamadas as freqüentes interrupções de até dez segundos na respiração durante o descanso noturno. Esses bloqueios na passagem de ar - em geral provocados pelo estreitamento da faringe, tubo muscular que conduz o ar aos pulmões - podem ocorrer até 30 vezes por hora nos casos graves. Como a pessoa acorda a cada episódio, o sono deixa de ser restaurador. No dia seguinte o cansaço é maior do que ao deitar. Apesar de eficaz, o tratamento incomoda. Os médicos indicam ao paciente o uso de um aparelho conhecido como CPAP - sigla de Continuous Positive Airway Pressure -, uma máscara conectada a um pequeno compressor que mantém constante o fluxo de ar para os pulmões. A equipe coordenada por especialistas de três áreas - Luiz Eugênio Mello, da neurofisiologia, Sérgio Tufik, da medicina do sono, e Ysao Yamamura, do Setor de Medicina Chinesa e Acupuntura - decidiu então verificar se dez aplicações de acupuntura ao longo de três meses produziriam algum beneficio real para essas pessoas. Os pesquisadores selecionaram 36 portadores de apnéia e os separaram em três grupos. Os inte52 ■ JULHO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP113

grantes do primeiro não foram tratados, enquanto as pessoas do segundo receberam aplicações de agulhas em pontos que reconhecidamente não produzem efeito (pontos falsos) - nesse caso, o objetivo era verificar se a simples sugestão de que a acupuntura possa funcionar produz algum efeito sobre o organismo. Só os integrantes do terceiro grupo receberam aplicação de agulhas nos pontos corretos.

epois de três meses, os pesquisadores reavaliaram os participantes. As interrupções da respiração se agravaram entre os que não receberam tratamento. Quem passou pelas sessões de acupuntura falsa relatou, de modo genérico, que o sono havia melhorado, mas um exame que mede a atividade elétrica do cérebro durante o sono não confirmou esses resultados. A equipe de Mello só constatou melhora real entre aqueles tratados com aplicações de agulha nos pontos corretos: metade deixou de apresentar interrupções na respiração, enquanto houve uma redução de 80% nos episódios da outra metade. "Do ponto de vista quantitativo, a melhora proporcionada pela acupuntura é semelhante à obtida com o CPAP", afirma Anaflávia Freire, uma das autoras do estudo. "Mas a acupuntura foi infinitamente superior em termos de qualidade de vida", completa a pesquisadora, que atribui o resultado à ação da serotonina, associada ao fortalecimento dos músculos da traquéia. Em outro experimento, o grupo da Unifesp comparou, em ratos, os efeitos da acupuntura no combate à úlcera gástrica usando outra técnica da medicina oriental chamada moxibustão. A moxibustão - ou moxa, como também é conhecida - utiliza um bastão em brasa de folhas secas da planta Artemisia vulgaris, enroladas na forma de um charuto, para aquecer os pontos de energia da acupuntura ou as próprias agulhas aplicadas nesses pontos. Segundo a medicina chinesa, a moxibustão atua so-

bre as fibras nervosas que conduzem os estímulos de forma mais lenta, enquanto as agulhas agem sobre as fibras de condução rápida. Os dados indicam que ambas as técnicas auxiliam o combate à úlcera gástrica. Antes das aplicações de acupuntura ou de moxibustão, os pesquisadores deram aos animais uma dose de indometacina, um antiinflamatório que induz à formação de lesões no estômago. Meia hora mais tarde, alguns ratos foram submetidos ao tratamento com a moxa, aplicada por cinco minutos nos pontos recomendados pela acupuntura - na lateral das patas para combater o


Pontos de aplicação: terminações nervosas acionadas pelas agulhas ou pelo calor

problema no estômago. Um segundo grupo recebeu aplicações em pontos falsos, enquanto um terceiro não foi tratado. Seis horas após as sessões de moxibustão, os pesquisadores observaram melhoras significativas nos animais do primeiro grupo. O número de lesões no estômago foi quatro vezes menor que o apresentado pelos ratos que não receberam tratamento e fizeram parte do grupo de controle. Nos ratos que passaram por aplicações em pontos fictícios, o

número de lesões foi metade do apresentado pelo grupo de controle, segundo artigo publicado na Digestive Diseases and Sciences. Talvez os céticos questionem: esses resultados não se devem apenas ao efeito do calor, reconhecidamente um antiinflamatório? Para desfazer dúvidas, a equipe comparou a ação da moxa com a de duas outras fontes de calor: charuto em brasa e bolsa de água quente. Novamente os resultados confirmaram: a técnica oriental foi duas vezes mais eficiente que o charuto e três mais que a bolsa. Mas faltava entender por que a moxa reduz o surgimento de lesões quando usada na temperatura correta (60°C). A resposta surgiu em um terceiro trabalho, conduzido por Gisele Sugai. Ela verificou que, em ratos, a moxa acelera os movimentos do estômago que empurram os alimentos até os intestinos. O aumento no ritmo desses movimentos expulsa a indometacina mais rapidamente e evita as lesões, como descreveu a equipe em um artigo publicado na Physiology Behaviour de outubro de 2004. Nesse mesmo estudo, Gisele observou que a aplicação de agulhas nas patas dos animais produzia efeito semelhante ao da moxa. "Nessa situação, é provável que a serotonina ajude a acelerar os movimentos do estômago", diz Mello. Passo seguinte: verificar se a redução das lesões no estômago estava mesmo associada à serotonina. Os ratos receberam então uma dose de paraclorofenilalanina (PCPA), que bloqueia a produção desse neurotransmissor. Dessa vez o efeito das agulhas sobre os movimentos do estômago foi nulo. A PCPA também diminuiu significativamente a estimulação provocada pela moxa. "Quando existe produção de serotonina, os resultados da acupuntura são significativamente melhores", afirma Mello. Como o estudo foi realizado com ratos, é pouco provável que a diminuição das lesões seja decorrente do efeito placebo - resultado real produzido pela crença de que uma substância ou tratamento inócuo vai funcionar.

A compreensão do efeito analgésico disparado pelas agulhas aumentou recentemente, com um estudo publicado na Neuroimage. Usando uma técnica que faz imagens do cérebro em atividade, George Lewith, da Universidade Southampton, constatou que, aplicadas corretamente, as agulhas ativam áreas produtoras de substâncias analgésicas, as endorfinas, além de áreas associadas à inibição da dor. Mas o consenso sobre a eficácia dessa técnica oriental parece distante. Klaus Lind, da Universidade Técnica de Munique, Alemanha, comparou os efeitos da acupuntura real e da acupuntura com agulhas falsas contra a enxaqueca. Publicados em maio no Journal ofthe American Medicai Association, os resultados sugerem que a acupuntura exerce apenas uma influência psicológica sobre o organismo.

a busca por evidências científicas sobre a eficácia da acupuntura, quem ganha são os pacientes. Em 1992, Ysao Yamamura criou na Unifesp o Setor de Medicina Chinesa e Acupuntura, que além de realizar pesquisas atende os casos de dores ósseas e musculares agudas. Três anos mais tarde, o fisiatra Wu Tu Hsing organizou o curso de especialização em acupuntura do Instituto de Ortopedia e Traumatologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). No ambulatório do instituto são atendidos cerca de cem pacientes por semana com dores nos ossos e nas articulações. "O preconceito está diminuindo", afirma Hong Jin Pai, do Centro de Dor da Clínica de Neurologia da USP. O esforço desses pioneiros valeu. Em 1995, o Conselho Federal de Medicina reconheceu a acupuntura como uma especialidade da medicina. Calcula-se que hoje existam cerca de 50 cursos de especialização em acupuntura em escolas médicas no país, cenário bem distinto de algumas décadas atrás, quando a técnica era aplicada por pessoas sem formação na área da saúde. • PESQUISA FAPESP113 ■ JULHO DE 2005 ■ 53


CIÊNCIA

BOTÂNICA

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Aflor

da terra CARLOS FIORAVANTI AQUARELAS DE CECíLIA TOMASI

A bromélia Tillandsia araujei, da Ilha de Alcatrazes

botânica Luiza Sumiko Kinoshita criou para si própria um trabalho extra cinco anos atrás. Não bastassem as aulas e as pesquisas na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ela começou a visitar pelo menos uma vez por semana algumas escolas do ensino fundamental da cidade. Conversava com os professores, ajudava a planejar atividades em sala de aula e conduzia as crianças pelas ruas, praças, bosques e áreas de vegetação nativa. Seu propósito era abrir o olhar e libertar a sensibilidade da garotada, que nunca havia notado que as árvores das avenidas eram poucas e de poucas espécies, portanto incapazes de atrair pássaros e vários outros polinizadores e dispersores de sementes. Era nessas expedições que os meninos e meninas descobriam quão diferentes são as formas, os tamanhos, as texturas e os tons de verde das folhas - em um dos exercícios, com os olhos vendados, tinham de reconhecer uma árvore que já haviam visto apenas tateando-lhe o tronco, ora mais liso, ora mais rugoso. Essa experiência, que incluiu visitas aos laboratórios da Unicamp e do Instituto Agronômico de Campinas, resultou no livro A botânica no ensino básico - Relatos de uma experiência transformadora, a ser lançado agora em julho. Com os professores de Campinas e de outras três cidades - São Carlos, São Paulo e Santos -, Luiza compartilhava o conhecimento acumulado ao longo de um projeto monumental, realizado por um grupo de 250 botânicos: a identificação e a descrição das plantas com flores - as fanerógamas - do Estado de São Paulo. São 7.297


Botânicos identificam em São Paulo 7.239 espécies de plantas nativas, o equivalente a dois terços da flora européia

O maracujá-doce Passiflora alata„ à sombra das matas do litora'

espécies nativas, de acordo com a estimativa mais recente, já excluindo os erros (havia plantas com até três nomes científicos) e somando as 40 espécies descobertas feitas até agora. No meio da coleção - "Em número de espécies", diz George Shepherd, da Unicamp, "São Paulo abriga dois terços da flora da Europa". O estado que enriqueceu pondo abaixo quase toda a vegetação natural, que hoje cobre apenas 13,9% de seu território, ainda reservava surpresas como as novas espécies de canela-de-ema, Vellozia obtecta e a Vellozia peripherica, que crescem nos campos rochosos próximos à serra da Canastra, na divisa com Minas Gerais. Essas plantas de grandes flores violeta estão entre as 475 espécies das 33 famílias descritas no quarto volume da coleção Flora Fanerogâmica do Estado de São Paulo, lançado em julho. Uma explicação importante: para os taxonomistas, como são chamados os especialistas em classificação de plantas e de animais, família é um grupo de gêneros, que reúnem espécies semelhantes. "Já trabalhamos 12 anos e o levantamento está longe de terminar", diz, com um misto de orgulho e exaustão, Maria das Graças Lapa Wanderley, pesquisadora do Instituto de Botânica de São Paulo que divide a coordenação do projeto com Shepherd. A publicação do quarto volume marca tão-somente o final do projeto apoiado pela FAPESP e o início da batalha por novos financiamentos, porque o trabalho não pára: está quase pronto o material para outros três volumes, com as descrições minuciosas das plantas e ilustrações feitas a nanquim. Desde o primeiro volume, lançado em 2001, foram publica-

das cerca de 2.500 páginas e descritas 139 famílias, 475 gêneros e 1.830 espécies das plantas com flores que ajudam a compor matas mais abertas como o Cerrado e os campos de altitude ou mais densas e impenetráveis como as da floresta litorânea. E a coleção ainda vai longe: saindo um livro por ano, só termina em 2016, com o 15° volume. O quinto, mais tangível, deve sair no próximo ano com mais espécies novas, como uma bromélia da Mata Atlântica do sudeste paulista, a Quesnelia sp., com flores violeta e a inflorescência vermelha que parece querer saltar de uma base formada por folhas longas em forma de vaso. Há algo ainda mais raro - o gênero Randia, formado por cinco espécies novas de arbustos e árvores também na Mata Atlântica que integram a família Rubiaceae, a mesma do cafeeiro, que só não entrou no livro por ser nativo da África, não do Brasil. O projeto Flora é o primeiro e mais abrangente mapeamento da vegetação nativa do Estado de São Paulo para uma catalogação completa falta apenas um grupo bem menor, o das plantas sem flores, cujo levantamento está a cargo de Jefferson Prado, do Instituto de Botânica. É um trabalho pioneiro também por reunir especialistas de oito instituições de pesquisa: desde 1993, trabalham juntos especialistas das três universidades estaduais - Unicamp, USP e Universidade Estadual Paulista (Unesp) -, de três institutos de pesquisa - Botânico, Florestal e Agronômico - e de um órgão municipal - o Departamento de Parques e Áreas Verdes da prefeitura de São Paulo. Some-se a contribuição de pesquisadores de uma instituição do governo federal, a Embrapa de Jaguariúna, e de colaboradores de 15 estados e de outros países.


Uma vez formada a equipe, começaram a brotar novidades - nem sempre boas. Nos acervos de coleções históricas de herbários como o do Instituto de Botânica, os pesquisadores encontraram registros de dezenas de plantas como as que há um século ocupavam a Fazenda Butantan, que originou o instituto, e o alto do morro do Caaguaçu, onde se ergueu a avenida Paulista - e nunca mais foram vistas. Evidentemente, também calçaram as botinas e enfiaram-se no que resta de florestas paulistas: foram feitas até agora cerca de 500 expedições de coleta, no início a um ritmo de uma por semana. Analisando as 20 mil amostras de ramos com folhas, flores e frutos que trouxeram, a equipe do Flora reencontrou espécies que se presumiam extintas e pelo menos outras 50 endêmicas, especialmente nas serras. O próprio Shepherd esteve à frente de uma equipe que escalou a serra Fina, que abriga o ponto mais alto de São Paulo, a Pedra da Mina, com 2.797 metros de altitude. "Passamos três noites no topo da serra, uma delas muito desconfortável: o acompamento inundou após uma chuva forte", conta ele. Desceram molhados e exau56 ■ JULHO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP113

ridos, mas com espécies novas, como a Cortaderia sp., um capim com uma inflorescência de 2 metros de altura.

m Votuporanga, noroeste paulista, os botânicos depararam-se com uma espécie amazônica de figueira, a Ficus catappifolia. Encontraram espécies novas até mesmo no município de São Paulo, a exemplo da Ocotea curucutuensis, uma canela de até 10 metros de altura, além de preciosidades da Região Metropolitana, como um maracujá com pétalas rosa-claro, a Passiflora ischnoclada, que só vive em Salesópolis. Não há só boas notícias: outras espécies de maracujá não foram mais encontradas em Campos do Jordão, São Sebastião e Caraguatatuba, onde antes cresciam. O Flora é hoje uma generosa fonte de informações, que já inspirou uma publicação mais simples, um guia de bromélias da Reserva Biológica do Alto da Serra de Paranapiacaba. Foi também a matéria-prima a partir da qual se atualizou a lista de espécies ameaçadas de

extinção no estado: a versão mais recente, de setembro do ano passado, contém 1.020 espécies - na relação anterior, de seis anos atrás, havia 300. Por indicar a distribuição geográfica das plantas, esse levantamento presta-se também como guia para políticas de conservação ambiental mais eficazes, capazes de proteger os ambientes naturais e as espécies mais frágeis. O principal objetivo desse levantamento é conhecer a biodiversidade paulista, mas há outro, igualmente importante: a conservação do patrimônio natural. Com esse objetivo, uma equipe do próprio Instituto de Botânica está ampliando o cultivo em viveiro de espécies raras da Mata Atlântica que correm o risco de desaparecer, para mais tarde as devolver aos seus espaços nativos. A devastação é ainda mais intensa no Cerrado, a oeste e centro do estado, justamente a região que mereceria mais expedições, reconhecem os coordenadores do Flora. "É duvidoso saber se algum dia conheceremos a real diversidade do Cerrado paulista", diz Shepherd. Do ponto de vista científico, o Flora frutificou na forma de 20 dissertações de mestrado, cinco teses de doutoramento e cerca de 30 artigos científicos. Em termos práticos, podem sair daí alternativas de plantas a serem cultivadas para tratar doenças, para fornecer ma-


À esquerda, a Eryngium pandanifolium, das margens de rios. À direita, uma Manettia sp. da serra Fina. Abaixo, flor do Croton tricolor, arbusto do morro do Diabo. Abaixo à esq., Griffinia hyacinthina, de matas úmidas

deira, para deixar a comida mais saborosa ou simplesmente para enfeitar a casa. É o caso da cicuta, a Conium maculatum, uma erva vinda de regiões temperadas que se adaptou ao clima tropical do país. Seu suco contém o alcalóide conicina, veneno fortíssimo que, em doses terapêuticas, poderia ser usado contra tétano, coqueluche ou convulsões. Anos atrás, mudas de uma erva conhecida como cornos-do-diabo (Ibicella luted) foram levadas à Europa e aos Estados Unidos e cultivadas para delas se colher os frutos ainda verdes, mantidos em vinagre e consumidos na forma de conserva. "Antes", conta Maria das Graças, "só havia um levantamento sobre a flora da cidade de São Paulo, feita em 1911 por um botânico suíço, Alfred Usteri, com cerca de 800 espécies". A situação não é muito melhor nos outros estados: em geral só há levantamentos isolados, como os da flora das serras do Cipó ou de Grão-Mogol, em Minas, e raros estudos abrangentes. Além de São Paulo, outra exceção é Santa Catarina com a Flora Ilustrada Catarinense, coordenada atualmente por Ademir Reis, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Dessa coleção, que começou a ser publicada em 1965, já saíram 183 volumes, somando 13.843 páginas com a descrição de 158 famílias e 3.690 espé-

cies. Como ainda faltam 63 famílias, há pelo menos mais dez anos de trabalho pela frente. Obra de uma geração - O inventário mais completo das plantas nativas de todo o país ainda é a Flora Brasiliensis, uma coleção de 46 volumes editada pelo bávaro Karl Friedrich Philipp von Martius que começou a ser publicada em 1840 e só terminou 66 anos depois. A flora nacional é ali apresentada por meio de 3.811 ilustrações e de informações - em boa parte desatualizadas - sobre 22.767 espécies de plantas, quase metade do que existe no território brasileiro. Essa coleção também dá uma idéia do que já se perdeu, a exemplo das florestas com árvores imensas na região O PROJETO Flora Fanerogâmica do Estado de São Paulo MODALIDADE Projeto Temático COORDENADOR HERMóGENES DE FREITAS LEITãO FILHO-

Unicamp INVESTIMENTO R$ 726.190,57 (FAPESP)

de Mogi das Cruzes, próxima à capital paulista. "O Flora Fanerogâmica é a contribuição de nossa geração de taxonomistas", diz Luiza Kinoshita, que conciliou as visitas às escolas com a tarefa de descrever a família Apocynaceae, a mesma da alamanda, uma trepadeira de jardim com grandes flores amarelas, apresentada no quarto volume. Ela diz "nossa geração" por considerar que os botânicos que assinam esse levantamento são herdeiros do estilo de trabalho de ao menos dois professores paulistas que fizeram a taxonomia germinar no país nas últimas décadas. O primeiro é Aylthon Brandão Joly, botânico da USP e depois da Unicamp e profundo conhecedor da flora paulista, falecido em 1975, aos 50 anos. O outro é Hermógenes de Freitas Leitão Filho, idealizador e o primeiro coordenador do Flora, que morreu em 1996, aos 52 anos, durante uma expedição botânica. Foi a partir daí que a coordenação do trabalho ficou com Maria das Graças, uma pernambucana que vive há 30 anos em São Paulo, ao lado do escocês George Shepherd e da também pernambucana Ana Maria Giulietti, que depois que se aposentou da USP transferiu-se para a Universidade Estadual de Feira de Santana, na Bahia, e hoje vive em Londres. • PESQUISA FAPESP 113 ■ JULHO DE 2005 ■ 57


CIÊNCIA

PALEONTOLOGIA

O mastodonte e a macrauquênia Datação de dentes ajuda a reconstituir megafauna do Nordeste VERôNICA FALCãO, DE RECIFE ILUSTRAçãO DOROTHY BALLARINI

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E ADOLFO BITTENCOURT

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ois anos atrás, uma equipe da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) tinha em mãos três dentes de dois mamíferos gigantes que habitaram a região Nordeste, mas não conseguia situá-los com precisão na escala geológica. Como a busca de respostas às vezes implica a colaboração com outros especialistas, os paleontólogos procuraram um grupo de físicos da Universidade de São Paulo (USP) em Pdbeirão Preto. Submetidos à datação por meio da quantidade de radiação que acumularam, os fósseis revelaram quando viveram os mastodontes e os parentes distantes do lhama, o representante americano da família dos camelos. Um dos dentes do mastodonte, animal aparentado do elefante chamado de Haplomastodon waringi, pertenceu a um indivíduo que viveu no Nordeste 49 mil anos atrás; o outro dente, a um exemplar dessa mesma espécie que habitava a região há 40 mil anos, de acordo com o estudo publicado na revista Applied Radiation and Isotopes. Já o parente do lhama - a macrauquênia ou Xenorhinotherium baiense - é um pouco mais antigo: viveu há 52 mil, como revelou o dente que resistiu ao tempo. Os fósseis estavam a cerca de 1 metro de profundidade na Lagoa de Dentro, suave depressão onde se acumulam água e pedras em Puxinanã, no agreste paraibano. Nesses locais, chamados de depósito de cacimba, esses animais matavam a sede no final do Holoceno e no início do Pleistoceno, a época que vivemos. Essa transição, marcada pela passagem de um período glacial para um interglacial, mudou a vegetação e o clima do Nordeste a ponto de levar à extinção a megafauna, que inclui essas duas espécies.

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Os animais da megafauna geralmente eram herbívoros. Pastavam em meio à vegetação escassa da savana que deu lugar à atual Caatinga e buscavam água nas cacimbas. "Já fragilizados pela fome e pela sede, muitos desses animais morriam ali mesmo, de inanição ou atacados por um tigre-dentes-de-sabre", diz Alcina Barreto, paleontóloga da UFPE que escavou a área com o colega José Augusto Costa de Almeida, da UFPB. "Por essa razão é que os depósitos de cacimba são ricos em fósseis de megafauna." O mastodonte era maior que um elefante atual. Tinha presas de até 1,5 metro de comprimento, voltadas para cima, andava em bandos e se alimentava de brotos, arbustos e capim. Seus dentes cresciam continuamente e eram substituídos por outros à medida que se desgastavam com a mastigação. A macrauquênia, igualmente herbívora, era um pouco maior que um cavalo atual. Similar argentino - O naturalista britânico Charles Darwin encontrou fósseis de um animal semelhante na Terra do Fogo, na Argentina, em uma das paradas de sua viagem ao redor do mundo a bordo do Beagle. Darwin o situou no grupo dos ungulados, os quadrúpedes com casco, mas se tratava de uma espécie restrita à América do Sul da qual não existem hoje descendentes diretos ou indiretos. O animal pesava cerca de 1 tonelada, três vezes mais que uma anta, atualmente o maior mamífero da América do Sul, e tinha pernas semelhantes às dos lhamas. O corpo era robusto como o de um cavalo e alcançava 3 metros, incluindo o pescoço e a cabeça. Tinha uma tromba mais longa que a de uma anta, mas menor que a de um elefante. A espécie da Patagônia era um pouco diferente da encontrada no Brasil. As duas pertenceram à ordem dos litopternos, mas eram de espécies diferentes. A da


atual Argentina ganhou ainda no século 19 seu nome científico: Macrauchenia patachonica, algo como grande pescoçudo da Patagônia (auchenia é o termo grego que significa longo pescoço). A macrauquênia brasileira é igualmente pescoçuda, mas tem narinas mais recuadas - atrás dos olhos - que a correspondente argentina. Dentes e bomba atômica - Os dentes dos mastodontes e da macrauquênia foram datados na USP de Ribeirão Preto pelo físico Oswaldo Baffa e por sua então aluna de doutoramento Angela Kinoshita, em colaboração com Ana Figueiredo, do

Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), de São Paulo. O método empregado, a Ressonância do Spin Eletrônico (ESR, na sigla em inglês), consiste na determinação da dose de radiação, chamada dose arqueológica, da amostra fóssil. A dose arqueológica provém da radiação emitida principalmente por elementos químicos radioativos do solo e recebida pelos fósseis durante o período em que ficam enterrados. A taxa de dose média anual é cerca de 1 miliGray (Gray é a unidade de medida da dose de radiação). "Em uma primeira avaliação, um fóssil com uma dose

arqueológica de 20 Grays tem 20 mil anos", diz Ângela. Descoberta na Rússia há 60 anos, a ESR pode avaliar ossos, dentes (fósseis) e cerâmicas pré-históricas. Os dentes são mais fáceis de datar por causa do elevado grau de mineralização. O pioneiro no uso dessa técnica no Brasil foi o físico Sérgio Mascarenhas, da USP de São Carlos, que há 30 anos a empregou para determinar a dose de radiação recebida pelas vítimas da bomba atômica que explodiu em 1945 em Hiroshima. Mascarenhas começou a fazer datação arqueológica em 1980, com Baffa e com pesquisadores do Japão. • PESQUISA FAPESP113 ■ JULHO DE 2005 ■ 59


Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org

A Rede SciELO passou a contar com uma nova iniciativa em desenvolvimento: o site SciELO Portugal. O site surgiu a partir de um acordo de cooperação entre o Centro Latino-americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (Bireme), a Organização Pan-americana da Saúde (Opas), a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Observatório da Ciência e do Ensino Superior (Oces), do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior de Portugal. A coleção SciELO Portugal (www.scielo.oces.mctes.pt) é composta por cinco títulos de periódicos científicos que representam as seguintes áreas temáticas: ciências agrárias, ciências humanas e ciência exatas. Com essa iniciativa, a Rede SciELO passou a disponibilizar o acesso ao texto completo de aproximadamente 300 títulos de periódicos ibero-americanos.

■ Ambiente

Vilão dos solos A contaminação de solos por metais pe' '"* sados é resultado das atividades humana, agrícola e industrial. Entre os metais pesados, o chumbo (Pb) é um poluente potencial que se acumula nos solos e sedimentos. O artigo "Toxicidade de chumbo em plantas", de autoria de Pallavi Sharma e Rama Dubey, pesquisadoras da Universidade Varanasi, na Índia, mostra que, apesar de não ser um elemento essencial para as plantas, o chumbo é facilmente absorvido e acumulado em diferentes partes delas. "A absorção de Pb é regulada pelo pH, tamanho de partículas e capacidade de troca de cátions dos solos, assim como pela exsudação e outros parâmetros fisicoquímicos", descrevem os pesquisadores. Segundo o estudo, o excesso de chumbo no solo pode causar diferentes sintomas de toxicidade em plantas, como, por exemplo, a redução de crescimento, clorose e escurecimento do sistema radicular. "Além disso, o chumbo inibe a fotossíntese, altera a nutrição mineral e o balanço hídrico, modifica o estado hormonal e afeta a estrutura e a permeabilidade da membrana", revela. O artigo se propõe a abordar os efeitos morfológicos, fisiológicos e bioquímicos da toxicidade de Pb e também as estratégias adotadas pelas plantas para a destoxificação e o desenvolvimento de tolerância ao metal. Os autores mostram que a tolerância ao chumbo está associada à capacidade das plantas a restringir o metal à parede celular, síntese de osmólitos e ativação do sistema antioxidante de defesa. "Remediação de solos contaminados com Pb usando as tecnologias de fitorremediação e rizofiltração parecem ter grande potencial para a limpeza de solos contaminados com esse metal pesado", apostam.

■ Sociedade

Falsa sensação de imunidade Compreender a representação social que as mulheres casadas, em situação de pobreza, possuem sobre a Aids é o objetivo do artigo "Mulheres de Camaragibe: representação social sobre a vulnerabilidade feminina em tempos de Aids", escrito por Ana Maria do Nascimento e Constança Barbosa, ambas do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães da Fundação Oswaldo Cruz, e Benedito Medrado, do Instituto Papai, em Recife (PE). No Brasil começaram a ser identificados os primeiros casos de Aids no início dos anos 1980, e hoje não há uma epidemia uniforme, mas um conjunto de microepidemias regionais. Por conta disso, o objetivo do artigo é contribuir para que o enfrentamento da epidemia ocorra de forma mais sintonizada com a realidade em que a doença ocorre. Foi realizada uma série de entrevistas com mulheres que apresentavam relação conjugai estável. Com base nas respostas do questionário, os pesquisadores observaram um aumento da vulnerabilidade feminina diante da infecção pelo HIV. "Baseado na representação social que essas mulheres têm da doença, suas percepções acabam por lhes fornecer uma falsa sensação de imunidade, pois elas não se encaixam dentro do perfil que imaginam como sendo de quem apresenta a doença", diz o estudo. Segundo o artigo, o perfil epidemiológico atual da Aids aponta a mulher como o principal alvo da infecção. "Isso ocorre principalmente por meio das relações sexuais, que são ditadas pelas relações de gênero", acreditam os autores. REVISTA BRASILEIRA DE SAüDE MATERNO-INFANTIL

- VOL. 5 - N° 1 RECIFE - JAN./MAR. 2005 www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=Si5i9382920050ooioooio&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Método

Pesquisa em psicologia clínica

BRAZILIAN JOURNAL OF PLANT PHYSIOLOGY- VOL.

17 - N° 1 - JAN./MAR. 2005 www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=Si67704202005000ioooo4&lng=pt&nrm=iso&tlng=en

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"A ciência é constituída por teorias que resumem e organizam, de forma racional e coerente, muitas relações colocadas em evidência de forma empírica", diz Elizabeth Batista Pinto,


pesquisadora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) e autora do artigo "A pesquisa qualitativa em psicologia clínica". "Assim, a ciência produz zonas de sentido da realidade do fenômeno estudado e se constitui a partir de paradigmas e modelos que fornecem problemas e soluções por um determinado período", acrescenta. Com base nesses e outros conceitos, o artigo discute a metodologia qualitativa de pesquisa científica em psicologia clínica, considerando a ciência como uma construção da subjetividade humana e buscando compreender suas particularidades. "Tal metodologia implica um processo dinâmico de investigação dentro de um determinado sistema teórico", aponta. Segundo o estudo, a pesquisa qualitativa em psicologia clínica é sempre uma pesquisa-ação, pois, conforme a ação vai sendo construída, ela é também investigada e interpretada, fazendo com que o próprio processo seja modificado. "A pesquisa científica busca descobrir regularidades que ampliem os conhecimentos no campo específico e possibilitem o progresso da ciência", diz. O estudo mostra que diversas teorias psicológicas têm sido usadas como base na pesquisa qualitativa em psicologia clínica, sendo a psicanálise a mais tradicional dentre elas. No entanto, a psicanálise difere de outros modelos teóricos de investigação na área, pois também propõe um modelo específico de pesquisa. "Assim, a psicanálise é um método de pesquisa e um método de tratamento do qual deriva uma técnica de psicoterapia", conclui. PSICOLOGIA USP JAN./JUN. 2004

VOL.

15 - N° 1-2 - SãO PAULO -

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=Soio365642004000ioooi2&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Negócios

Potencial desperdiçado Refletir sobre o desenvolvimento de um modelo de análise que explique o processo de profissionalização na gestão de clubes de futebol é o objetivo do artigo "Entendendo o futebol como um negócio: um estudo exploratório". O estudo, de autoria de Marvio Pereira Leoncini, da Faculdades Integradas Stella Maris Andradina, e Márcia Terra da Silva, da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), aponta as principais características estruturais da indústria do futebol, além de indicar alguns princípios de gestão aplicáveis aos clubes como empresas de serviços. "O futebol mundial é hoje um grande negócio. O esporte movimenta, em média, cerca de US$ 250 bilhões anuais em todo o mundo", revela o artigo. Esta cifra inclui os agentes diretos, como clubes e federações, e indiretos, como indústrias de equipamentos esportivos e a mídia. Do ponto de vista econômico, os mercados produtores e consumidores de espetáculos esportivos sofreram grandes transformações desde que os ingleses inventaram o futebol. Os pesquisadores mostram que o futebol tem grande capacidade de gerar empregos. No Brasil, o es-

porte conta com 300 mil empregos diretos, 30 milhões de praticantes formais e não-formais, 580 estádios com capacidade para abrigar mais de 5,5 milhões de torcedores e cerca de 500 clubes profissionais disputando uma média de 90 partidas por ano. "O Brasil está longe de aproveitar seu potencial. Comparado ao valor mundial, o futebol brasileiro representa menos de 1% dos US$ 250 bilhões movimentados anualmente." GESTãO E PRODUçãO JAN./ABR. 2005

- VOL. 12 - N° 1

SãO CARLOS

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=Soio453oX2005000ioooo3&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Bioquímica

Pães com maior validade Depois de produzidos, os pães sofrem transformações que levam rapidamente à perda de crocância e ao endurecimento. Este processo tem impacto econômico grande, o que obriga as empresas produtoras a trabalharem com data de validade curta. Isso se traduz em um retorno grande de produtos não comercializados e aumento dos custos de produção e distribuição. Este impasse mercadológico serviu de base para que os pesquisadores Maurício Sérgio Esteller, Renata Lira Amara e Suzana Caetano da Silva Lannes, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo, e Rosa Maria de Oliveira Yoshimoto, da Getec Guanabara Química Industrial, pudessem estudar metodologias de produção alternativas visando aumentar a vida útil dos pães. "Isso porque o pão é um produto bastante popular no Brasil, com consumo per capita de 27 quilos por ano", justificam os autores. Os resultados do estudo podem ser encontrados no artigo "Uso de açúcares em produtos panificados". Segundo a pesquisa, a maioria dos produtos panificados apresenta algum tipo de açúcar que, além do enriquecimento calórico, funciona para melhorar sabor, cor, plasticidade, conservação e auxiliar na fermentação. Os pesquisadores utilizaram uma formulação padronizada, substituindo a sacarose da formulação inicial por outros açúcares, como frutose líquida e cristalina, dextrose anidra, mel e açúcar invertido, mantendo-se o teor de água e sólidos totais. "A interação entre os ingredientes é fator primordial para a obtenção de um produto de boa qualidade e que deverá ser considerada para um ajuste de formulação." CIêNCIA E TECNOLOGIA DE ALIMENTOS CAMPINAS

- VOL. 24 - N° 4 -

- OUT./DEZ. 2004

www.scielo.br/scie Io. php?scri pt=sci_arttext& pid=Soioi2o6i2oo4ooo40002i&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

PESQUISA FAPESP 113 ■ JULHO DE 2005 ■ 61


I TECNOLOGIA

LINHA DE PRODUçãO

MUNDO

Uma ponte 11 anos no azul Pelos próximos 11 anos, tudo deve estar azul para quem passar pela ponte Vincent Thomas, um dos cartões-postais de Los Angeles, nos Estados Unidos. Numa parceria com a prefeitura, a empresa LEDtronics instalou 160 lâmpadas decorativas baseadas na tecnologia dos LEDs, cuja vida útil seria de 100 mil horas, os tais 11 anos, duração dez vezes maior do que a das lâmpadas incandescentes. Os LEDs são diodos semicondutores que emitem luz quando recebem energia. Segundo o fabricante, o uso desse tipo de iluminação é ideal para lugares de difícil acesso, onde trocar uma lâmpada queimada não é tarefa fácil. Além de durar mais de uma década, cada lâmpada consome apenas 19,5 watts. No caso do sistema instala-

■ Casas resistentes a ondas de tsunamis Um grupo de pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), dos Estados Unidos, desenvolveu uma solução simples para o problema de como construir casas em áreas suscetíveis a tsunamis. Eles construíram um modelo de residência com arquitetura própria para o Sri Lanka que permitirá às ondas passar através das casas, em vez de derrubá-las. As casas, que serão construídas por cerca de US$ 1.200 usando materiais disponíveis na

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ú â do na Vincent Thomas, também foram colocados painéis de energia solar. Não que os LEDs sejam abastecidos pela conversão dos raios solares em eletricidade. Eles estão ligados à rede convencional. Toda a energia gerada pelos painéis é re-

região, terão quatro colunas centrais feitas de concreto e barras de ferro com cerca de 3 metros de largura cada uma.

Em Los Angeles, ponte ganha luzes LEDs que são bem mais duráveis

vendida para a companhia de eletricidade e serve para pagar a conta da luz consumida pelas lâmpadas que adornam o cartão-postal. •

Entre as colunas, os proprietários poderão construir paredes de madeira ou bambu para dar um toque pessoal às

Ondas passam através das casas, sem derrubá-las

62 ■ )ULH0 DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP113

moradias. Simulações de engenharia indicam que o projeto concebido ajudará o núcleo e as fundações das casas a suportar a água ou a força dos ventos cinco vezes mais do que os blocos de concreto tradicionais usados nas construções do país localizado no sul da Ásia e banhado pelo oceano Índico. Com cerca de 36 metros quadrados, elas serão construídas sobre blocos de concreto ou madeira com 30 ou 60 centímetros acima do chão para que a água possa fluir por baixo, fazendo com que apresentem mais resistência a tempestades. •


BRASIL Atração fatal para inseto

■ Locomoção no solo antártico

■ Microcélula de propano

Um veículo leve e inovador para explorar a Antártica, um dos ambientes mais inóspitos da Terra, foi desenvolvido na Grã-Bretanha por engenheiros do Levantamento Britânico na Antártica (BAS, na sigla em inglês), com base em um projeto do designer James Moon, do Colégio Real de Artes. Chamado de Noventa Graus Sul, o veículo de dois lugares foi concebido para manter seus ocupantes seguros, aquecidos e protegidos dos altos níveis de radiação ultravioleta causados pelo buraco na camada de ozônio que está localizado bem acima da Antártica. Para se locomover, ele usa um mecanismo híbrido, composto por esteiras articuladas e rodas, permitindo que seja utilizado em qualquer lugar no continente gelado, desde um solo rochoso até em várias situações de gelo e neve. Para evitar os riscos representados por uma camada muito fina de gelo, por exemplo, foi projetada uma espécie de batedor, uma roda que vai à frente do veículo. Um radar penetra a camada superficial de gelo e, com isso, o batedor consegue detectar se o veículo poderá ou não passar sem correr perigo algum. O Noventa Graus Sul poderá ser usado também na região ártica. •

Uma microcélula a combustível com 1,42 centímetro quadrado que funciona com gás propano é a novidade que poderá no futuro aposentar as baterias de lítio usadas hoje em celulares e outros pequenos aparelhos eletrônicos como os tocadores de MP3. O projeto é de um grupo de pesquisadores norte-americanos das universidades do Sul da Califórnia, do Noroeste, em Illinois, e do Instituto de Tecnologia da Califórnia. Esse tipo de equipamento transforma, normalmente, hidrogênio e oxigênio em eletricidade por meio de uma reação química em uma placa chamada eletrólito. Nesse caso, o propano, que é facilmente transformado e comprimido na forma líquida, contém hidrogênio na sua molécula (C3H8) e reage diretamente nos eletrólitos junto com o oxigênio em uma espécie de câmara que aproveita o calor característico produzido por esse tipo de célula, a Sofc, sigla em inglês de Célula a Combustível de Oxido Sólido. O novo tipo de bateria tem também um apelo ambiental na medida em que as células a combustível podem ser simplesmente reabastecidas e ganhar mais tempo de vida útil, demorando mais para serem descartadas. •

O feromônio sexual da praga conhecida como minadordos-citros foi sintetizado, após décadas de estudos no mundo, por um grupo de pesquisadores na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo (USP) de Piracicaba. Para identificar as substâncias responsáveis pela atração dos machos e sintetizá-las, foram retiradas as glândulas de fêmeas do minador e estudados todos os componentes presentes. O feromônio é produzido apenas na fase do acasalamento, que ocorre entre uma hora antes e uma hora depois do amanhecer. As pesquisas realizadas em países como os Estados Unidos e o Japão, onde a praga causa grandes prejuízos econômicos, não levavam em conta o comportamento do inseto.

Nos testes realizados em campo, a ação do composto sintetizado pelo grupo brasileiro foi eficaz, já que conseguiu atrair os adultos machos do inseto para as armadilhas. A idéia inicial é utilizar a tecnologia para monitorar a praga e saber o momento ideal de fazer o controle. No Brasil, o inseto foi detectado pela primeira vez em 1996. Além da queda das folhas e o conseqüente prejuízo no desenvolvimento da planta, o principal problema do minador é que ele facilita a disseminação do cancro cítrico, doença que provoca grandes prejuízos aos citricultores. O inseto forma galerias (ferimentos) nas folhas, que se tornam importantes vias de penetração da bactéria causadora da doença, considerada uma das piores da citricultura mundial. •

Minador-dos-citros {no detalhe) e armadilha para capturar o inseto

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BRASIL Atração fatal para inseto

■ Locomoção no solo antártico

■ Microcélula de propano

Um veículo leve e inovador para explorar a Antártica, um dos ambientes mais inóspitos da Terra, foi desenvolvido na Grã-Bretanha por engenheiros do Levantamento Britânico na Antártica (BAS, na sigla em inglês), com base em um projeto do designer James Moon, do Colégio Real de Artes. Chamado de Noventa Graus Sul, o veículo de dois lugares foi concebido para manter seus ocupantes seguros, aquecidos e protegidos dos altos níveis de radiação ultravioleta causados pelo buraco na camada de ozônio que está localizado bem acima da Antártica. Para se locomover, ele usa um mecanismo híbrido, composto por esteiras articuladas e rodas, permitindo que seja utilizado em qualquer lugar no continente gelado, desde um solo rochoso até em várias situações de gelo e neve. Para evitar os riscos representados por uma camada muito fina de gelo, por exemplo, foi projetada uma espécie de batedor, uma roda que vai à frente do veículo. Um radar penetra a camada superficial de gelo e, com isso, o batedor consegue detectar se o veículo poderá ou não passar sem correr perigo algum. O Noventa Graus Sul poderá ser usado também na região ártica. •

Uma microcélula a combustível com 1,42 centímetro quadrado que funciona com gás propano é a novidade que poderá no futuro aposentar as baterias de lítio usadas hoje em celulares e outros pequenos aparelhos eletrônicos como os tocadores de MP3. O projeto é de um grupo de pesquisadores norte-americanos das universidades do Sul da Califórnia, do Noroeste, em Illinois, e do Instituto de Tecnologia da Califórnia. Esse tipo de equipamento transforma, normalmente, hidrogênio e oxigênio em eletricidade por meio de uma reação química em uma placa chamada eletrólito. Nesse caso, o propano, que é facilmente transformado e comprimido na forma líquida, contém hidrogênio na sua molécula (C3H8) e reage diretamente nos eletrólitos junto com o oxigênio em uma espécie de câmara que aproveita o calor característico produzido por esse tipo de célula, a Sofc, sigla em inglês de Célula a Combustível de Oxido Sólido. O novo tipo de bateria tem também um apelo ambiental na medida em que as células a combustível podem ser simplesmente reabastecidas e ganhar mais tempo de vida útil, demorando mais para serem descartadas. •

O feromônio sexual da praga conhecida como minadordos-citros foi sintetizado, após décadas de estudos no mundo, por um grupo de pesquisadores na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo (USP) de Piracicaba. Para identificar as substâncias responsáveis pela atração dos machos e sintetizá-las, foram retiradas as glândulas de fêmeas do minador e estudados todos os componentes presentes. O feromônio é produzido apenas na fase do acasalamento, que ocorre entre uma hora antes e uma hora depois do amanhecer. As pesquisas realizadas em países como os Estados Unidos e o Japão, onde a praga causa grandes prejuízos econômicos, não levavam em conta o comportamento do inseto.

Nos testes realizados em campo, a ação do composto sintetizado pelo grupo brasileiro foi eficaz, já que conseguiu atrair os adultos machos do inseto para as armadilhas. A idéia inicial é utilizar a tecnologia para monitorar a praga e saber o momento ideal de fazer o controle. No Brasil, o inseto foi detectado pela primeira vez em 1996. Além da queda das folhas e o conseqüente prejuízo no desenvolvimento da planta, o principal problema do minador é que ele facilita a disseminação do cancro cítrico, doença que provoca grandes prejuízos aos citricultores. O inseto forma galerias (ferimentos) nas folhas, que se tornam importantes vias de penetração da bactéria causadora da doença, considerada uma das piores da citricultura mundial. •

Minador-dos-citros {no detalhe) e armadilha para capturar o inseto

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LINHA DE PRODUçãO

BRASIL

Mamona e biodiesel no Nordeste A primeira fábrica de produção de biodiesel da Petrobras foi instalada no Pólo Industrial de Guamaré, a 160 quilômetros de Natal, no Rio Grande do Norte. Ela está produzindo o combustível em fase experimental a partir do óleo da mamona. A partir de 2008, será obrigatório o acréscimo no diesel vendido em todo o país de 2% de óleo vegetal. Na Região Nordeste, a escolha dessa planta com sementes oleaginosas representa também a possibilidade de transformar o projeto biodiesel em uma fonte de renda para a agricultura familiar. A mamona é uma planta resistente, conhecida como "carrapateira", que se espalhou naturalmente pelo Nordeste. Ela foi alvo de um projeto realizado pela unidade Embrapa Algodão da Empresa Brasileira de

■ Melancia com novas cores e tamanho Quem gosta de melancias certamente vai apreciar as novas variedades dessa fruta. Melancias menores, com alto teor de açúcar, boa resistência ao transporte e com diferentes padrões de casca e cor de polpa foram desenvolvidas pela Embrapa Rondônia, unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária sediada em Porto Velho. As três novas cultivares, com polpas amarela, laranja e vermelha, estão previstas para chegar ao mercado dentro de dois anos.

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ÉÈ

Plantação de mamona no Rio Grande do Norte: agricultura familiar

Pesquisa Agropecuária, de Campina Grande, na Paraíba, para torná-la economicamente viável para a produção de biodiesel. O principal resultado foi o desenvolvimento de duas variedades da mamona, a BRS Nordestina e a BR Paraguaçu, que atingem um rendimento de 47 a 48% de óleo, enquanto a

Mas a cor da polpa não modifica o sabor das novas melancias, que são menores, com peso em torno de 2 a 4 kg, e bastante precoces. Com

64 ■ )ULH0 DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 113

planta encontrada naturalmente no sertão e nas cidades nordestinas produz no máximo 4%. "É preciso de 12 a 14 anos para desenvolver cultivares como essas da mamona, resistentes a doenças e com alta produtividade", diz Napoleão Beltrão, pesquisador da Embrapa de Campina Grande. No Rio Grande do

60 dias elas já podem ser colhidas, contra os 85 dias das variedades tradicionais, o que garante retorno mais rápido para o produtor e proporcio-

Norte, o Programa do Agronegócio da Mamona está incentivando o plantio de 10 mil hectares de mamona por ano, num total de 40 mil, até 2007. Para isso, disponibiliza as sementes (o custo do quilo da semente qualificada é de R$ 17) e oferece assistência técnica, com pessoal treinado pelo Instituto de Assis-

na melhor aproveitamento da área e da mão-de-obra, além de reduzir riscos de perdas por pragas, doenças e condições ambientais desfa-

Melancias menores com polpas amarela, laranja e vermelha


Patentes Inovações financiadas pelo Núcleo de Patenteamento e Licenciamento de Tecnologia (Nuplitec) da FAPESP. Contato: nuplitec@fapesp.br

A qualidade do som

Baga de mamona (no alto) e a fábrica de processamento

tência Técnica e Extensão Rural do Rio Grande do Norte (Emater-RN), para os 28 municípios selecionados pela Embrapa. A Petrobras garante a compra de 3 mil toneladas por ano da baga da mamona produzidas pelas cooperativas de pequenos agricultores. "Um dos nossos objetivos ao pro-

voráveis. As pesquisas que resultaram nas novas cultivares foram coordenadas por Flávio de França Souza, da área de Melhoramento Vegetal. •

■ Acesso gratuito a programas da IBM Professores e pesquisadores ligados a instituições de nível médio e superior terão acesso gratuito a mais de 1.200 softwares, material didático para cursos, suporte técnico via email e descontos em certificações. A iniciativa faz parte de um programa de relacionamento com o público acadê-

duzir biodiesel no estado é aumentar a renda de pequenas comunidades rurais", diz Fernando Ribeiro, gerente de suporte técnico da Petrobras na região. O próximo passo é convencer os agricultores a adotar uma cultura ainda sem tradição no estado e mostrar que o negócio é rentável. •

mico, chamado de Scholars, implementado no Brasil desde 2002 pela empresa IBM. Atualmente, o programa foi ampliado e transformou-se no Academic Initiative, que tem como objetivo disseminar a cultura de tecnologia da empresa e padrões de software abertos para as universidades. Por ser dirigido aos professores, a instituição não precisa se cadastrar, mas passa a fazer parte automaticamente do programa no ato da inscrição do docente. A inscrição dos interessados é feita pelo site www.ibm.com/university/. •

Sistema para a avaliação da qualidade de áudio de mídias digitais e equipamentos eletrônicos baseado em técnicas de processamento digital de sinais que modelam o comportamento auditivo humano. Elaborado na Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação (Feec) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ele recebeu o nome de Processo para Medida Objetiva de Qualidade de Sinais de Áudio (MOQA). O objetivo desse sistema é ser uma alternativa aos testes subjetivos de avaliação de qualidade de áudio que, além do alto custo, exigem ouvintes especializados, muito tempo de execução, salas especiais e equipamentos padronizados. Os testes subjetivos, elaborados pela União Internacional de Telecomunicações, ITU na sigla em inglês, avaliam a qualidade do som por meio de notas, enquanto o sistema computacional desenvolvido na Uni-

camp faz uma estimativa desse tipo de pontuação. A precisão atinge o índice de 92%, bem superior aos 85% alcançados pelos métodos semelhantes até então desenvolvidos. O MOQA é de interesse de operadoras de sistemas de telecomunicações, de geradoras de programas de rádio e televisão digital, empresas que codificam sons ou fazem análise de som em cinemas e teatros, além de pesquisadores na área de áudio digital. Título: Processo para medida objetiva de qualidade de sinais de áudio - MOQA Inventores: Jayme Garcia Amai Barbedo e Amauri Lopes Titularidade: Unicamp/FAPESP

Avaliação subjetiva de áudio pode ser substituída por sistema digital

PESQUISA FAPESP 113 ■ JULHO DE 2005 ■ 65


TECNOLOGIA QUÍMICA

Ligações poderosas Nanofitas de cerâmica são candidatas a fazer conexões de circuitos e transistores

MARCOS DE OLIVEIRA

Jk

s previsões futuras para o desenvolvimento de áreas como eletroeletrônica, computação ou qual■ quer outro segmento industrial não estarão completas sem instrumentos, peças ou qualquer tipo de desenvolvimento que possa ser medido em nanômetros, medida comparável ao tamanho das partes de um fio de cabelo dividido em 100 mil vezes. Uma das projeções mais próximas de ser implementada em computadores ou aparelhos eletrônicos nos próximos 20 anos é o uso de nanofios metálicos na ligação entre componentes de um chip ou de uma placa de circuito integrado. São muitos os estudos realizados em todo o mundo que apontam para esse caminho no sentido de facilitar ainda mais a miniaturização dos circuitos e tornar mais rápida a capacidade de processamento de equipamentos eletrônicos. Mas mesmo antes desses nanofios ganharem os ambientes industriais, surgem as nanofitas de cerâmica que já

aparecem como uma opção promissora nessa corrida tecnológica. "As nanofitas têm a vantagem de não fundirem como os nanofios metálicos. Elas podem receber potências altas de corrente elétrica sem se romper. Suportam dez vezes mais densidade de corrente do que um nanofio de ouro, por exemplo", afirma o físico Marcelo Ornaghi Orlandi, da equipe de pesquisadores da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), que desenvolveu novos tipos de nanofitas de cerâmica. O grupo também faz parte do Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos (CMDMC), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP. A nanofita desenvolvida em São Carlos é a primeira no mundo nesse formato, segundo os pesquisadores. Até agora, só existiam filmes finos desse material, que é produzido com um semicondutor, no caso o oxido de índio (ln203), dopado com estanho (SnOi), outro metal. Isso significa que alguns átomos da molécula de índio foram substituídos por outros de estanho. O ma-


«n

Circuito eletrônico: conexões entre chips, transistores e outros componentes serão miniaturizados


terial dopado chamado de ITO, de Indium Tin Oxide, nome de oxido de índio dopado com estanho, torna-se condutor de corrente elétrica. Os filmes de ITO, pela característica de serem transparentes, são indicados para funcionar como antiembaçador nos vidros de carros. Ao receber uma pequena corrente elétrica ele se aquece e elimina o embaçamento. O problema é que essas películas ainda são caras para esse tipo de instalação. Alta carga - A primeira nanofita do Cepid Cerâmica possui em sua molécula 85% de oxido de índio e 15% de oxido de estanho. Com ela é possível interligar componentes com um bom nível de passagem de corrente elétrica. "As nanofitas serão úteis onde exista necessidade de alta capacidade de potência elétrica, nas ligações de circuitos", diz Orlandi. Elas poderão ser adaptadas ao atual processo de fabricação de circuitos integrados porque a cerâmica resiste às substâncias corrosivas utilizadas nesse processo. As nanofitas também serão úteis na construção e nas conexões entre transistores, que são ampliadores dos sinais elétricos. Nos compu-

OS PROJETOS 1. Nanofitas condutoras 2. Sensores de gases tóxicos MODALIDADE Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) COORDENADOR - Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos (CMDMC) ELSON LONGO

INVESTIMENTO R$ 1.200.000,00 anual para todo oCMDMC

Sensor de cerâmica instalado no catalisador identifica os gases emitidos pelo motor Motor

tadores, por exemplo, cada chip carrega vários minúsculos transistores no seu interior e as nanofitas farão as conexões entre eles, permitindo o funcionamento em velocidades de processamento maiores, cerca de dez vezes mais que as atuais. Assim, um computador poderia rodar em 30 gigahertz (GHz), em vez dos 3 GHz atuais. Quanto maior a freqüência, maior é o processamento das informações no circuito de um celular, de um computador ou de uma televisão. As nanofitas de cerâmica medem de 40 a 800 nanômetros de largura e de 4 a 100 nanômetros de espessura e, mesmo nesse tamanho, proporcionam uma alta densidade de corrente elétrica. Isso ocorre porque as nanofitas possuem excelentes características cristalinas, com pouca concentração de imperfeições. Dessa forma, elas possibilitam uma condução de elétrons com muito baixo espalhamento, facilitando a obtenção de transistores de alto desempenho. Os pesquisadores já testaram com sucesso a nanofita cerâmica com 1 ampere de corrente elétrica. Isso eqüivale a uma densidade de aproximadamente 15 milhões de amperes por centímetro quadrado, corrente suficiente para fundir

Sensor da fumaça Ao contrário das nanofitas que são uma aposta para o futuro, um outro composto cerâmico de alto conteúdo tecnológico poderá chegar ao mercado de forma mais rápida. É um sensor de gases tóxicos desenvolvido pelo Cepid Cerâmica. Ele tem a função principal de estar ligado a um catalisador automobilístico e informar seu desempenho. Esse catalisador é uma peça também produzida com cerâmica que fica acoplada ao escapamento dos veículos para transformar os gases produzidos pelo motor como o monóxido de carbono (CO) e oxido de nitrogênio (NOx), deixando-os na forma de nitrogênio (N2), totalmente inerte, e o dióxido de carbono (CO2), menos poluente que o CO. Os pesquisadores, coordenados pelos professores Edson Leite e Elson Longo, desenvolveram o

68 • JULHO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP113

Catalisador

sensor para que ele detecte os gases CO e NOx quando o catalisador apresentar falhas. Instalado ao lado do catalisador no cano do escapamento, o sensor detecta esses dois gases nocivos e envia um sinal eletrônico para o painel do veículo. Outras formas de uso é a produção de pequenos aparelhos que possam ser acoplados ao bocal de escapamento, tanto para testes da polícia rodoviária como para as oficinas. "No caso da Polícia Rodoviária, seria como um bafômetro para o carro", diz Elson Longo. Veículos emitindo gases acima

dos níveis aceitos pela legislação podem ser enquadrados em crime ambiental, com multas que vão de R$ 500,00 a R$ 10 mil. O sensor é produzido a partir de oxido de estanho com partículas nanométricas que medem 8 nanômetros e são capazes de suportar as altas temperaturas de um motor, em torno de 400 e 500°C, sem modificar suas características físicas. "Desenvolvemos um método em que o estanho foi dopado com elementos chamados de terrasraras, como cério (Ce), Lantânio (La) e


Microscopia eletrônica mostra as nanofitas de cerâmica que medem de 40 a 800 nanômetros de largura

índio

Estanho Oxigênio

Nanofitas

Representação da molécula da nanofita com os elementos químicos e o uso futuro em circuito fechado

metal ítrio (Y) para dar estabilidade às nanopartículas", diz Leite. O sensor funciona com a ação dos gases sobre a sua superfície, modificando suas características elétricas e emitindo sinal elétrico que pode ser convertido em sinal luminoso ou sonoro. O sensor que passa por testes na Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP) e ainda apresenta problemas de funcionalidade num ambiente extremamente sujo como é o escapamento de um automóvel tem chances de interessar quatro empresas que produzem catalisadores no Brasil. Na parte essencialmente acadêmica, o trabalho com o sensor gerou 15 artigos em revistas internacionais e três doutorados. O primeiro artigo publicado na revista Advanced Materials, em 2000, foi considerado um dos mais citados (entre o 1% mais citado) na área durante três anos. Desde 2000 foram 51 citações na área de novos materiais.

um fio de cobre com 0,025 milímetro de diâmetro, enquanto a nanofita, com 0,00008 milímetro, não se rompe. Garantia da patente - Os resultados da nanofita foram mostrados em outubro de 2004, num congresso da Sociedade de Pesquisa de Materiais (MRS, na sigla em inglês), em Boston, nos Estados Unidos, e chamou a atenção de um representante de uma multinacional japonesa. "Mas nós estávamos preparando a patente para depósito no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) e não demos ainda informações mais precisas que eles estão pedindo", diz Orlandi. "Agora já podemos negociar porque temos um ano, segundo as normas mundiais, para depositar a patente em outros países", diz o professor Elson Longo, coordenador do CMDMC, que deixou recentemente o corpo docente da UFSCar e agora está vinculado ao Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Araraquara. As duas universidades e mais o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) formam o Cepid Cerâmica.

Outra vantagem do novo material é o processo de produção muito mais barato que outras formas utilizadas por pesquisadores de todo o mundo para produzir nanomateriais dopados. "Nós utilizamos um método químico controlado em vez de métodos físicos que utilizam feixes de laser, muito mais caros", afirma Longo. No mundo já existem filmes de ITO produzidos em fornos e a inovação do grupo de São Carlos foi produzir esse material na forma de nanofitas. "Nós fizemos a síntese das nanofitas de ITO em 1.100°C, uma temperatura considerada baixa para o crescimento do material e para o controle da dopagem", diz Orlandi. A dopagem, que é a introdução de átomos em uma molécula, é feita dentro de um forno em que os óxidos de estanho e de índio são colocados junto com carbono. Na queima, o carbono reage com os óxidos formando os gases de oxido de estanho e oxido de índio. Em seguida interagem com o oxigênio para formação do ITO na região fria do forno, com um controle preciso de temperatura e de pressão. O uso de nanofitas ainda é um projeto industrial de médio prazo, para cerca de 20 anos. Em paralelo à diminuição do tamanho desses dispositivos, será preciso o desenvolvimento de técnicas de nanomanipulação, porque o controle sobre a posição de onde colocar as nanofitas ou nanofios condutores em um circuito eletrônico é uma tarefa muito árdua e industrialmente impensável atualmente. "Outro problema que limita o uso de nanofios, que são objeto de estudos avançados, em dispositivos eletrônicos é que a junção de circuitos não é tão eficiente quanto aquelas de fios de tamanhos macroscópicos. O calor produzido pelo alto valor de corrente elétrica faz romper os nanofios metálicos", diz Orlandi. "Com o tempo, esses nanofios também passam por um processo de oxidação e não suportam as grandes densidades de carga elétrica", diz Longo. Assim, eles apostam no estudo e no desenvolvimento das cerâmicas em escala nanométrica. • PESQUISA FAPESP113 ■ JULHO DE 2005 ■ 69


■ TECNOLOGIA ENGENHARIA AEROESPACIAL

Espaço para conquistas Brasil já possui propulsores e catalisadores, dois componentes essenciais para satélites

YURI VASCONCELOS

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em fazer alarde, o Brasil está prestes a dar um grande passo Para dominar de vez a tecnologia de fabricação de satélites artificiais. Pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, e da empresa Fibraforte Engenharia, de São José dos Campos, concluíram com sucesso uma seqüência de testes para validação de um propulsor para satélites e de um catalisador, uma substância química que participa da queima do combustível. O fato é importante porque poucos países dominam a tecnologia de fabricação desses componentes. Os propulsores, também chamados de motores, são responsáveis por fazer o posicionamento e as correções de órbita durante a vida útil dos satélites, estimada em quatro anos. O equipamento projetado e construído pela Fibraforte é do tipo monopropelente, ou seja, funciona apenas com um combustível 70 • JULHO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP113

líquido, no caso a hidrazina anidra, e não precisa de um elemento oxidante para fazer a combustão. O catalisador nacional, essencial em satélites monopropelentes, foi desenvolvido pelos pesquisadores do Laboratório Associado de Combustão e Propulsão (LCP) do Inpe. "O Programa Espacial Brasileiro é o grande beneficiado com o desenvolvimento desses componentes. A partir de agora, somos um dos poucos países do mundo com capacidade para produzir propulsores completos com catalisador", afirma o engenheiro mecânico Humberto Pontes Cardoso, coordenador da equipe da Fibraforte responsável pelo projeto do propulsor. O equipamento fará parte do subsistema de propulsão da Plataforma Multimissão (PMM), um moderno conceito de arquitetura de satélites que reúne em uma única estrutura todos os equipamentos necessários à sobrevivência e à operação desses artefatos no espaço. Com previsão para ficar pronta no final de 2007, a PMM encontra-se atualmente em


Grãos do catalisador, formados por alumina e irídio, que participam da queima do combustível

processo de qualificação de seus equipamentos e subsistemas (veja mais informações sobre a PMM na página 72). Financiados pelo Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE) da FAPESP, os propulsores desenvolvidos pela Fibraforte terão a função de dar o impulso necessário para a realização de manobras orbitais da Plataforma Multimissão, após sua separação do veículo lançador. Essas manobras são necessárias porque os satélites de observação da Terra, posicionados entre 600 e 1.200 quilômetros de altitude, sofrem perturbações em sua órbita em razão de anomalias magnéticas e do campo gravitacional do nosso planeta. Os propulsores corrigem o posicionamento do satélite e a precisão de suas manobras depende em grande parte do

casamento entre o propulsor e o catalisador. Isso porque o impulso para movimentação do satélite é resultado da expulsão em alta velocidade de gases derivados da decomposição da hidrazina pelo catalisador, segundo Cardoso. "Ao entrar em contato com o catalisador na câmara catalítica, a hidrazina é decomposta gerando hidrogênio, nitrogênio e amônia. Ao passar pela tubeira do sistema propulsor, os gases são acelerados gerando o empuxo necessário para as manobras do satélite." União perfeita - O módulo de propulsão da PMM pesará 10 quilos e será composto por seis motores, cada um com 5 Newtons (N) de empuxo. Essa força corresponde ao esforço necessário para equilibrar 500 gramas num pra-

to de uma balança. O equipamento terá ainda um tanque de combustível esférico com 50 centímetros de diâmetro e capacidade para 45 litros de hidrazina líquida (N2H4), duas válvulas de enchimento e dreno do tanque, uma tubulação que liga os propulsores ao reservatório de combustível, também fabricados pela Fibraforte, além de um sensor de pressão e um conjunto de válvulas para isolar o tanque dos motores durante o lançamento. "O grande segredo de um propulsor monopropelente é a perfeita união entre o catalisador utilizado e o sistema de injeção do combustível na câmera catalítica", afirma Cardoso. O ideal, diz o pesquisador, um ex-engenheiro do Inpe, é que o injetor vaporize a hidrazina antes de ela entrar em contato com o PESQUISA FAPESP 113 ■ JULHO DE 2005 ■ 71


catalisador. "Isso elimina dois problemas sérios. O primeiro é o impacto mecânico do fluido com o catalisador, que vai reduzir sua vida útil. E o segundo é evitar que ele fique encharcado, pois o acúmulo de combustível em estado líquido na câmera catalítica pode fazer com que as partículas cheguem a explodir", explica Cardoso. A Fibraforte adquiriu nos últimos anos larga experiência no desenvolvimento de tecnologia para fabricação de motores para satélite. No final dos anos 1990, a empresa foi coresponsável pelo desenvolvimento de propulsores monopropelentes de 2N de empuxo e de um tanque cilíndrico de combustível para uma plataforma suborbital do Inpe. "Esse foi o primeiro sistema de propulsão projetado pela empresa. Foi um bom aprendizado, mas era um projeto bem mais simples, porque os requisitos não eram tão rigorosos", afirma o engenheiro aeronáutico Jadir Nogueira Gonçalves, sócio-diretor da Fibraforte. Em seguida, a empresa trabalhou no projeto de um propulsor bipropelente de 200N, que não voou. "Fizemos três protótipos para o Inpe, que eram modelos de engenharia para teste", conta Gonçalves. Assim como os propulsores da Fibraforte, o catalisador desenvolvido pelo

Inpe também representa uma conquista importante para a independência tecnológica do Brasil na área espacial. "É muito difícil importar esse material. As duas últimas vezes que tentamos adquiri-lo de uma empresa norte-americana nem sequer tivemos resposta. Até onde temos conhecimento, apenas os Estados Unidos e a França, e, provavelmente, a Rússia e a China, dominam a tecnologia de fabricação desse tipo de catalisador", diz o pesquisador Demétrio Bastos Netto, chefe do LCP do Inpe.

ntre os catalisadores mais utilizados em satélites monopropelentes está o Shell-405 - uma referência à companhia petrolífera anglo-holandesa Shell que integrou um consórcio, juntamente com a Reynolds Metal Company, encarregado de desenvolvêlo para a agência espacial norte-americana, a Nasa, nos anos 1950. Desde 2003, o S-405 passou a ser comercializado pela empresa norte-americana Aerojet General Corporation, que só pode vendê-lo com a aprovação do governo dos Estados Unidos. A última vez que o Inpe conseguiu comprar o produ-

to foi em 1984. Naquele ano, meio quilo do material custou o equivalente a US$ 7 mil e serviu apenas para testes em solo. Até agora os satélites que o Brasil desenvolveu, como os Satélites de Coleta de Dados (SCD1 e SCD2) e o Satélite de Aplicações Científicas (Saci), não possuem propulsores. A correção de posição no espaço é feita por meio de um sistema que usa o campo magnético da Terra. Nos dois Satélites Sino-Brasileiros de Recursos Terrestres (CBERS), maiores em tamanho e peso, foram usados propulsores e catalisadores chineses. "A produção de um catalisador nacional abre a perspectiva de o Brasil competir nesse restrito mercado com a Aerojet e outros produtores, fornecendo o material para outros países, como Argentina, Chile e Peru", afirma Bastos Netto. Com a aparência de grãos esferóides, de cor preta, o catalisador é formado por uma substância que funciona como suporte, no caso uma alumina especial altamente porosa (AI2O3), e um metal, o irídio (Ir), que é o elemento ativo na reação de decomposição da hidrazina, combustível obtido a partir da desidratação do hidrato de hidrazina, uma substância líquida incolor e altamente tóxica que é produzida em laboratório. "A alumina é extremamente difícil de ser obtida com as propriedades adequadas para dar suporte ao catalisador e ao irídio porque elas podem otimizar ou mesmo impedir o processo de

Uma plataforma versátil Considerado um dos principais projetos desenvolvidos atualmente pelo Inpe, a Plataforma Multimissão (PMM) está prevista para ficar pronta em dezembro de 2007. O Satélite de Sensoriamento Remoto 1 (SSR-1) deverá ser o primeiro a ser montado nessa estrutura. Segundo o engenheiro aeronáutico Mário Marcos Quintino, gerente responsável pelo desenvolvimento da PMM, nesse tipo de arquitetura existe uma separação física entre os vários módulos da plataforma como suprimento de energia, propulsão, comunicações, supervisão de bordo, controle térmico e de ati-

72 ■ JULHO DE2005 ■ PESQUISA FAPESP113

tude, e a carga útil (radar imageador, por exemplo), que podem ser desenvolvidos, construídos e testados separadamente, antes da integração dos módulos e dos testes finais. Além disso, existe também a vantagem de reutilização do projeto, com a conseqüente redução dos custos dos novos satélites, já que a PMM poderá levar ao espaço vários tipos de missão. "O primeiro modelo da PMM terá um custo da ordem de US$ 25 milhões, mas esse valor pode cair para algo em torno de US$ 10 milhões a US$ 15 milhões, dependendo da configuração, nos modelos seguir

afirma Quintino. Idealizada totalmen te no Inpe, a PMM tem um índice de nacionalização de cerca de 80%. Quase todos os seus subsistemas são projetados e desenvolvidos por empresas brasileiras. "Acreditamos que a plataforma é um produto interessante a ser oferecido no mercado espacial, graças a seu alto potencial comercial. Na PMM cabem vários tipos de cargas úteis, principalmente satélites de porte médio, de até 600 quilos, usados para observação da Terra." A adoção0 de plataformas multimissão é um; tendência mundial porque alia van tagens técnicas e comerciais


catalise da hidrazina", afirma o engenheiro químico José Augusto Jorge Rodrigues, pesquisador do Inpe. Uma propriedade importante da alumina é sua elevada resistência térmica e mecânica e a alta cristalinidade que garantem a macroporosidade do material. A resistência ao calor é imprescindível porque a temperatura da câmara catalítica, durante a decomposição da hidrazina, é muito alta, em torno de 900°C, e a resistência mecânica se faz necessária porque o catalisador trabalha sob alta pressão, de até 22 atmosferas, equivalente à pressão do fundo do mar em uma profundidade de 220 metros. A escolha do irídio como metal ativo se dá porque ele é o único elemento químico capaz de decompor espontaneamente a hidrazina em baixa temperatura - condição encontrada no espaço. "O irídio é um metal caro, subproduto da extração do ouro. Um grama custa em torno de US$ 200", diz o químico David dos Santos Cunha, pesquisador do Inpe. O teor de irídio no catalisador é de 30% a 36%, bem acima da maior parte dos catalisadores industriais, cujo teor metálico não ultrapassa 5%. "A dificuldade maior é fazer a correta impregnação do irídio na alumina, melhorando sua distribuição de forma a obter partículas de irídio de 2 nanômetros", afirma Cunha. Os pesquisadores do Inpe também tiveram no projeto contribuições do Instituto Militar de Engenharia, Centro de Pesquisas da Petrobras e Universidade Pierre e Marie Curie, de Paris, na França. Além do catalisador para uso espacial, o LCP também pesquisa catalisadores para emprego na indústria química e de refino de petróleo. O catalisador espacial do Inpe já foi qualificado e está pronto para ser embarcado na PMM ou em outros satélites. Durante o processo de qualificação,

Propulsor: gases expelidos geram empuxo para manobras do satélite

o material foi submetido a uma campanha de 39 seqüências de acionamentos, acumulando um total de 11 mil segundos ou cerca de três horas, o dobro do tempo que funcionará no espaço ao longo dos quatro anos de vida do satélite. A qualificação do conjunto propulsor-catalisador foi feita no Banco de Testes com Simulação de Altitude O PROJETO Desenvolvimento e qualificação de propulsor monopropelente de 5N para satélite MODALIDADE Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE) COORDENADOR HUMBERTO PONTES CARDOSO

INVESTIMENTO R$ 400.000,00 (FAPESP)

- Fibraforte

(BTSA) do Inpe, na cidade de Cachoeira Paulista (SP). "O primeiro passo da campanha foi usar o catalisador comercial S405 para qualificar o propulsor da Fibraforte e escolher o melhor injetor, peça responsável pela injeção da hidrazina na câmara catalítica. Definido o injetor, passamos a testar o nosso catalisador. Fizemos uma comparação do desempenho dos dois sistemas, em condições idênticas de operação, e concluímos que o catalisador cumpre os requisitos exigidos pela Plataforma Multimissão", afirma o físico Carlos Eduardo Rolfsen Salles, pesquisador do LCP e responsável pelo Banco de Testes, único desse porte na América Latina. "Uma campanha de testes como esta custa em torno de US$ 80 mil no Brasil. Sem o nosso Banco de Testes, qualquer projeto de desenvolvimento ficaria inviável porque teria que ser realizado no exterior a um preço maior", diz Salles. Até o momento já foram construídos quatro protótipos dos propulsores e outros seis estão sendo fabricados pela Fibraforte. Eles passarão por novas baterias de testes até que, em junho do próximo ano, deverá ficar pronto o modelo de qualificação do módulo de propulsão da PMM. "O módulo final, também chamado de modelo de vôo, será uma cópia fiel ao modelo de qualificação, etapa em que todos os equipamentos estarão integrados", diz Humberto Cardoso. Segundo o pesquisador, para que os propulsores e o catalisador ganhem credibilidade internacional, ele terá que ter um histórico de vôo bem-sucedido. "Isso significa voar, com sucesso, pelo menos duas vezes. A primeira deve ocorrer em 2007 e a segunda está prevista para antes de 2012, sempre com a PMM", diz o pesquisador. A partir daí, o Brasil estará credenciado para fornecer essa sofisticada tecnologia para clientes em outros países. • PESQUISA FAPESP 113 ■ JULHO DE 2005 ■ 73


I TECNOLOGIA

GASTROENTEROLOGIA

Limpeza na área Máquina desenvolvida por pequena empresa higieniza endoscópios com mais eficácia

Asimples menção de realizar uma endoscopia, aquele exame em que um fino tubo flexível com uma mi_ crocâmera embutida na ponta percorre o sistema digestivo, costuma provocar arrepios. Apesar de já ser um exame de rotina para muitos pacientes, poucos sabem que o endoscópio, antes de ser utilizado, tem de passar por uma rigorosa limpeza e assepsia para evitar o risco de transmitir doenças como hepatite, Aids e tuberculose. Um equipamento automatizado chamado Endolav, desenvolvido por uma pequena empresa paulistana, a Ibasil Tecnologia, tem dado conta do recado com eficiência e já está instalado em cerca de 80 hospitais e clínicas do Brasil. Por meio de produtos químicos germicidas, a reprocessadora automática limpa endoscópios com mais rapidez que a maioria dos similares produzidos nos Estados Unidos, na Europa e no Japão, permitindo ao médico realizar um maior número de exames por dia. "A máquina atende às normas do Ministério da Saúde e o sistema de desinfecção utilizado evita a transmissão de doenças por meio de bactérias e vírus", diz o professor Shinichi Ishioka, do Departamento de Gastroenterologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e chefe do Serviço de Endoscopia Gastrointestinal do Hospital das Clínicas, um dos lo74 ■ JULHO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP113

cais onde a Endolav é utilizada. Atualmente a reprocessadora é fabricada pela Lifemed, empresa nacional que produz equipamentos para a área da saúde. Com fábrica no Rio Grande do Sul, a empresa comprou, há 18 meses, a patente do produto e da marca por R$ 1 milhão. "A Lifemed, que este ano espera faturar R$ 45 milhões, apostou em um produto desenvolvido no Brasil para adentrar em um novo nicho de mercado, o da endoscopia", diz Geraldo Stedile, diretor comercial. "Esse mercado, pelo seu crescimento, é bastante atraente." Rapidez no processo - Para chegar ao produto final, Luís Iba, diretor da Ibasil Tecnologia, aproveitou a sua experiência como gerente em uma empresa da área de endoscopia. "A idéia surgiu da necessidade de automatizar o sistema utilizado para desinfecção do endoscópio, que era basicamente manual", conta Iba, que cursou engenharia mecânica, mas não se formou. Na época existiam equipamentos importados no mercado para essa tarefa, mas eram caros e não se adequavam às necessidades dos médicos brasileiros, que necessitam de rapidez no processo de desinfecção do endoscópio por conta do grande número de atendimentos. Cerca de 33 minutos bastam para a Endolav cumprir as quatro etapas programadas,


compostas de limpeza enzimática, desinfecção de alto nível, enxágüe e secagem dos endoscópios. Todo o procedimento é realizado automaticamente. Em todas as etapas do processo a água suja é descartada e dá lugar a fluxos de água limpa filtrada. Essa operação é importante para garantir a correta limpeza do aparelho. No Hospital das Clínicas, o primeiro lugar procurado por Iba para testar a eficácia da Endolav, cinco anos atrás, o aparelho tem sido utilizado especificamente para casos em que já se sabe que os pacientes são portadores de doenças como hepatite, Aids e tuberculose, pois existe outro sistema instalado para a demanda de rotina. Antes da desinfecção automatizada é feita uma detalhada limpeza manual com mangueira de água em jato sob pressão, detergente e esco-

Endoscópio com microcâmera pronto para o uso (no detalhe) e na fase da limpeza automatizada

vação. "Essa é uma limpeza para remover secreções e detritos", diz a enfermeira chefe do Serviço de Endoscopia do HC, Maria da Graça Silva, há dez anos no cargo e três décadas de trabalho no hospital. Após essa etapa é realizada a desinfecção com agentes químicos. O principal desinfetante utilizado é o glutaraldeído, solução com alto poder bactericida e fungicida. É uma substância química poderosa, que requer cuidados no seu manuseio. Por isso os técnicos de enfermagem que fazem a limpeza dos aparelhos utilizam máscaras, óculos e luvas apropriados. E os endoscópios imersos nessa solução, após o tempo de desinfecção, precisam ser muito bem enxaguados. No final, o aparelho é seco com ar comprimido e, quando fora de uso, guardado em armários com ventilação adequada. Como

os exames realizados no hospital-escola chegam a até cem por dia, número bastante elevado, a seqüência de procedimentos tem de ser seguida à risca. Já em clínicas e hospitais em que o atendimento é em menor número apenas a limpeza manual básica do aparelho e, em seguida, o tratamento feito pela Endolav são suficientes para conseguir os mesmos resultados. Mecanismos modificados - A máquina original passou por modificações de mecanismos internos e materiais até chegar ao produto final. Com isso o peso do equipamento foi reduzido de 50 para 22 quilos e a capacidade de produção aumentou de três unidades por mês para 15. Essas modificações foram feitas com a Ibasil instalada no Centro Incubador de Empresas de Tecnologia (Cietec), que fica no prédio do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), na Cidade Universitária, em São Paulo, e reúne atualmente 70 empresas de base tecnológica. A proximidade com outras empresas inovadoras foi providencial. "Várias soluções tecnológicas foram descobertas em conversas informais com colegas de outras empresas, no corredor do prédio", conta Iba. Em abril deste ano a Ibasil completou seu ciclo na incubadora, iniciado em fevereiro de 2002, e mudou-se para novas instalações no bairro do Butantã, mas fez questão de manter a menor distância possível do prédio do Ipen. Mesmo porque ainda mantém a parceria com a Electrocell, uma das incubadas que ajudaram a reprojetar a Endolav. Agora elas trabalham no desenvolvimento de um novo sistema de desinfecção à base de água e sal, destinado a substituir o glutaraldeído na limpeza química de endoscópios e também para ser utilizado na higienização de frutas e legumes e na assepsia de frigoríficos. A Lifemed também continua como parceira. Atualmente, além de trabalhar no desenvolvimento de outros projetos, as duas empresas dedicam-se a fazer modificações na Endolav para adaptá-la às normas da União Européia, o próximo mercado a ser conquistado. "O produto deve ser um dos principais responsáveis pelo aumento das exportações da empresa", diz Stedile, da fabricante. • DINORAH ERENO PESQUISA FAPESP 113 ■ JULHO DE 2005 ■ 75


I TECNOLOGIA ENERGIA

Nas i ondas

domar

Porto cearense terá usina de geração de eletricidade desenvolvida na UFRJ DlNORAH ERENO

porto cearense de Pecém, a 60 quilômetros de Fortaleza, será o primeiro ponto da costa brasileira a abrigar uma usina piloto de geração de energia elétrica pelas ondas do mar. Quando ela estiver completa, em escala comercial, será capaz de gerar inicialmente 500 quilowatts (kW), suficientes para suprir as necessidades de consumo de 200 famílias. A principal inovação tecnológica em relação a usinas de ondas desenvolvidas em outros países, muitas ainda em estágio de testes, é o uso de uma câmara hiperbárica - um recipiente de aço que armazena água comprimida e simula as pressões existentes no fundo o mar - para produzir energia. A câmara hiperbárica já vem sendo usada no Laboratório de Tecnologia Submarina da Coordenação dos Programas de Pós-graduação de Engenharia (Coppe), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), responsável pela coordenação do projeto, para estudar o comportamento de estruturas utilizadas na produção de petróleo em águas profundas. Foi essa experiência que levou os pesquisadores da instituição, coor76 ■ JULHO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP113

denados pelo professor Segen Stefen, do Programa de Engenharia Oceânica, a conceber um dispositivo para a usina funcionar de forma semelhante a uma hidrelétrica. No mar, a uma distância de aproximadamente 3 quilômetros da praia, sobre o quebra-mar do porto, ficam instalados flutuadores, ligados a uma estrutura metálica em forma de viga de 22 metros de comprimento. Com a passagem das ondas, os flutuadores se movimentam para cima e para baixo e atuam como uma espécie de bomba, impulsionando a água armazenada em um tanque por um tubo até a câmara hiperbárica de alta pressão. A câmara simula a pressão de uma queda-d'água, similar à de uma usina hidrelétrica, que movimenta turbinas para gerar energia. A hidrelétrica, depois de represar a água do rio, tem uma queda-d'água de 100 a 200 metros, responsável por girar a turbina que está embaixo. No caso da usina de ondas, a água do mar é armazenada na câmara hiperbárica. "A potência da hidrelétrica é dada pela vazão de água multiplicada pela pressão. A nossa vazão está armazenada na câmara, que mantém água sob pressão equivalente a uma queda-d'água de 300 metros", diz Stefen. Depois da câmara hiperbárica,


Modelo comercial Quando estiver completa, a usina de ondas que será instalada no Ceará vai gerar eletricidade para 200 famílias

A usina será instalada a 3 quilômetros da praia onde as ondas são constantes

Toda a estrutura da usina fica sobre o quebra-mar do porto

Vaivém das ondas movimenta os flutuadores

Braços mecânicos se movimentam e bombeiam a água

Câmara hiperbárica comprime a água sob alta pressão

Jato d'água aciona a turbina e o gerador, produzindo eletricidade

PESQUISA FAPESP 113 ■ JULHO DE 2005 ■ 77


Usina instalada em Portugal funciona com base na compressão e descompressão do ar

tudo funciona de forma convencional, como se fosse uma hidrelétrica. A água em forma de jato aciona a turbina, que, acoplada ao gerador, produz eletricidade. Essa seqüência de movimentos ocorre continuamente enquanto houver ondas, mas pára se elas cessam", relata Stefen. Por isso a escolha do local para instalar a usina é estratégica para o sucesso do empreendimento. Vento contínuo - No caso do porto cearense, ela se beneficia de um fenômeno que ocorre praticamente em todo o Nordeste, chamado de ventos alísios, responsável pela brisa que sopra continuamente. "Essa região não tem ondas muito grandes, mas elas são constantes", diz o coordenador do projeto, que começou a pensar nessa usina em 2001, na época em que no Brasil se discutiam possíveis alternativas energéticas para a crise do apagão. "Naquele ano, nós organizamos e sediamos uma conferência internacional em que o tema central da discussão era o mar", conta Stefen. Ele se refere à International Conference on Offshore Mechanics and Arctic Engine-

ering (Omae), ou Conferência Internacional de Mecanismos Costeiros e Engenharia Ártica, evento promovido anualmente pela Associação Americana de Engenheiros Mecânicos, da sigla em inglês Asme, sediada nos Estados Unidos. Como a crise energética brasileira era um assunto que estava em todas as rodas de discussão na época, um dos temas tratados na conferência, além das estruturas para produção de petróleo, foi o aproveitamento da energia das ondas para gerar eletricidade.

O primeiro passo para levar adiante a idéia de aproveitar a energia do mar começou com um levantamento do que estava sendo feito naquele momento em outros países. Após um seminário sobre o potencial da energia das ondas no Brasil, apoiado pelo Ministério das Minas e Energia e realizado em 2002 no Rio de Janeiro, o projeto começou efetivamente a tomar forma, com estudos sobre tamanho, público-alvo e modelo de funcionamento. Vários outros levantamentos foram feitos pelos pesquisa-

Sonho antigo O interesse em obter energia das ondas ganhou impulso a partir da década de 1970 com a crise do petróleo e um reforço, principalmente entre os países da Europa, com a assinatura do Protocolo de Kyoto, que prevê a redução de emissões de gases poluentes em até 12% entre 2010 e 2012. Uma das formas de atingir essa meta é aumentar a participação das energias renováveis na geração de eletricidade. Mas a idéia de aproveitar essa matriz energética é bem antiga. Em 1799 a França já registrava o primeiro pedido de patente de uma usina de ondas. A primeira a efetivamente funcionar por meio dessa energia foi a do porto de Huntington, na GrãBretanha, em 1909, que a utilizava para iluminação do cais. "Essa usi-

78 ■ JULHO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 113

na foi destruída pelas próprias ondas, pois o conhecimento técnico era incipiente na época", diz Eliab Ricarte Beserra, da UFRJ. Estudos realizados no Reino Unido sobre o potencial energético disponível nos oceanos indicam valores da ordem de 1 terawatt (TW), o que significa a possibilidade de suprir toda a demanda do planeta. "Embora o aproveitamento de toda a energia disponível nos oceanos é praticamente impossível, a conversão em eletricidade de uma pequena fração pode ter grande significado para os países que dominarem essa tecnologia", diz o professor Segen Stefen. Vários países têm feito pesquisas nesse sentido, como Estados Unidos, Canadá, Noruega, Suécia, Dinamar-

ca, Reino Unido, Holanda, Espanha, Portugal, Índia, China, Coréia do Sul, Japão, Austrália e Nova Zelândia. Já possuem instalações no mar em operação comercial a Holanda, com o projeto AWS, de 2 megawatts (MW) de potência, Portugal, com o OWC, de 400 quilowatts (kW), e o Reino Unido, com o Limpet, de 500 kW. A Dinamarca instalou recentemente no mar a Wave Dragon, com 4 MW de potência, e o Reino Unido um protótipo, que já possui proporções comerciais, chamado de Pelamis, com 750 kW (veja Pesquisa FAPESP n° 112). O Japão tem o maior número de protótipos e fez uma série de adaptações para fins específicos, como para barcos que fazem dragagem utilizando a energia das ondas.


dores para avaliar a viabilidade de desenvolver a primeira usina de ondas das Américas. Um deles mostra que o litoral brasileiro tem potencial para suprir 15% do total de energia elétrica consumida no país, hoje em torno de 300 mil gigawatts por ano. "Com 8,5 mil quilômetros de costa e cerca de 70% da população ocupando regiões até 300 quilômetros da costa, o país apresenta condições propícias para obter vantagens com essa fonte de energia abundante, renovável e não-poluente", diz Stefen. Estimativa do custo de energia das ondas aponta que deverá ficar entre os custos da hidrelétrica - US$ 1 mil o kW - e o da eólica - US$ 1,4 mil o kW. "Somente a versão comercial trará o valor exato", ressalva Eliab Ricarte Beserra, aluno de douto rado participante do projeto. Tanque oceânico - Modelos em escala reduzida da usina de ondas foram testados no tanque oceânico da Coppe, que simula ambientes marinhos em profundidades de até 5 mil metros, para avaliar a resistência do produto a condições adversas, lá foi feito também o dimensionamento do protótipo em escala real. Dentro de um mês serão feitas as medições do local, e a previsão é que até o final de 2005 comecem a ser instalados os dois primeiros módulos do protótipo, que vão gerar 50 quilowatts, energia suficiente para iluminar e fazer funcionar uma pequena fábrica. A usina foi concebida de forma modular para facilitar a ampliação quando houver necessidade de gerar energia adicional. "Durante dois anos será feito um monitoramento do protótipo da usina para avaliar como se melhora o desempenho e otimiza a máquina até chegar ao produto final", explica Stefen. Só depois disso é que a energia no modelo comercial será fornecida para a rede de energia elétrica convencional. Nessa fase entrarão inicialmente em funcionamento 20 módulos da usina. Para que as pesquisas fossem estendidas até chegar à usina piloto foi assinado um convênio no início do ano passado entre Coppe, Eletrobrás e governo do Ceará. A universidade ficou encarregada do desenvolvimento do equipamento e monitoramento do protótipo. Para a etapa de implantação

do protótipo, a empresa dará metade do valor necessário para o projeto, com custo estimado em R$ 3,5 milhões. A outra metade depende da aprovação de um pedido feito à Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) pela própria Eletrobrás, cujo resultado deve sair até setembro. O governo do Ceará cuidará da infra-estrutura e do apoio logístico, para viabilizar a monitoração das condições do mar.

energia das ondas, na atual fase, não tem como objetivo substituir as outras fontes hoje utilizadas, mas sim complementá-las. Não existe ainda uma tecnologia única para fazer funcionar uma usina desse tipo. Um dos modelos mais estudados é o da planta piloto instalada nas ilhas dos Açores, em Portugal. Ele se baseia em um sistema conversor de energia chamado de OWC (coluna de água oscilante, da sigla em inglês Oscillating Water Column) para aproveitamento das ondas. Em terra fica uma câmara de ar, que também contém água, ligada com o mar através de uma boca submersa. A elevação das ondas provoca uma diferença de pressão do ar na câmara. Essa diferença funciona num sistema de compressão e descompressão que faz a turbina girar e produzir eletricidade por meio de um gerador. Os possíveis impactos ambientais relativos à instalação de uma usina de ondas são descritos como mínimos pelos pesquisadores. Como a experiência na utilização desses projetos ainda é pouca, não é possível avaliar em toda a extensão os efeitos que poderá causar ao ambiente circundante. "O principal impacto será sentido durante o período de construção, com todo o aparato de montagem à beira-mar", ressalta Beserra. De qualquer forma, no modelo real que será montado no porto cearense a água que passa pela câmara hiperbárica e movimenta a turbina fica dentro de um circuito fechado, para evitar que seja devolvida ao mar com qualquer tipo de contaminação. •

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HUMANIDADES HISTORIA

Duro de

matar Autoritarismo ainda rege serviço de informação brasileiro

CARLOS HAAG

80 ■ JULHO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 113

os tempos bíblicos - quando Moisés enviou os representantes de cada uma das tribos sob seu comando para espionar a terra de Canaã - até os dias de hoje, temos um vasto acervo de referências às atividades de espionagem, ligadas de início ao campo militar e depois também ao político e finalmente englobando o poder de forma integrada", pregava um manual do Curso de Informações da Escola Superior de Guerra em 1967, lembrando ainda que até mesmo "Noé enviou uma pomba para ver se as águas haviam se retirado da face da terra". A justificativa bíblica não dissimulava o pecado capital da má formação dada aos agentes de informação: vigiar é preciso e, ao contrário do passado, o foco não é a guerra, mas o controle do poder. "O inimigo externo', considerado o alvo dos serviços de inteligência dos países democráticos significou, no Brasil, no Chile e na Argentina, qualquer um que fosse 'externo' ao centro do poder. Foi desses 'excluídos do poder'que se procurou proteger o Estado, por meio da banalização da violência e de uma cultura de segredos governamentais", afirma Priscila Antunes, autora da pesquisa Serviços de inteligência do Cone Sul, apoiada pela FAPESP, um estu-


do comparativo sobre os legados das transições para a democracia nesses três países. O resultado assusta: pouco mudou com o fim das ditaduras e a "ameaça" ainda é "interna". "A democracia necessita de controle civil sobre o poder militar e, o mais complexo, de um efetivo controle político sobre as agências de inteligência civis e militares", avisa a pesquisadora. Em Ministério do silêncio, recém-lançado pela Editora Record, o jornalista Lucas Figueiredo revela que, em outubro de 2003, em pleno governo Lula, a Agência Brasileira de Informações (Abin), criada em 1999, numa reunião para discutir as possibilidades de cooperação entre os serviços de inteligência da América do Sul, no relatório final, incluiu entre as "ameaças" atuais "os movimentos sociais, em especial as organizações que lidavam com a questão da pobreza". A Doutrina de Segurança Nacional, idealizada pelos regimes militares, pode ter saído de moda, mas o "monstro" - apelido dado pelo general Golbery do Couto e Silva à sua criação, o Serviço Nacional de Informações (SNI) -, ainda que em nova forma, permanece ativo. "O órgão procurava os inimigos do Estado dentro das fronteiras do país e não via

que a ameaça maior sempre fora ele próprio. Mas a existência do serviço secreto, tal qual ele se encontra em 2005, é um sinal de que o Brasil saiu da ditadura, mas ainda não chegou à democracia plena", avalia Figueiredo. Vigiar é mesmo preciso? Ameaças - "A inteligência é extremamente útil para a democracia, desde que atue de forma eficiente na avaliação de ameaças, hoje cada vez mais diversificadas. É uma realidade a ser absorvida pelos políticos e pelos cidadãos comuns", explica Priscila. "Mas é fundamental o controle democrático, pois apenas por meio do desenvolvimento de mecanismos de controle eficazes podemos evitar que democracia e inteligência se tornem termos antagônicos", avalia. Os riscos são grandes, tanto da manipulação dos governantes, interessados na maximização do poder, como na autonomização dos órgãos de inteligência (o que ocorreu durante a ditadura), pois eles têm uma notável capacidade de se transformar em poder paralelo dentro do Estado. Infelizmente, a história recente mostrou que tanto o Executivo quanto o Legislativo não têm interesse em mexer nessa "criatura": "A

elaboração dos pactos que condicionaram a transição no Brasil permitiram a autonomia militar na definição de suas missões e áreas de atuação. A inércia civil não apenas permite que os militares definam de forma autônoma os seus focos de atenção, como corrobora com suas perspectivas", nota a pesquisadora. "No Brasil, além de termos uma lei de inteligência mal elaborada, não se nota no Congresso um interesse real em legislar sobre o assunto. A ação ilegal dessas instituições, para alcançar objetivos políticos ou privados, é de responsabilidade tanto de quem pratica a ação quanto de quem não controla esses organismos. Serviços de inteligência sem controle ameaçam a democracia." É preciso vigiar quem nos vigia. O Estado, porém, tem se esquivado dessa responsabilidade desde os primórdios: o primeiro serviço secreto brasileiro foi criado em 1927, por Washington Luís, para investigar os adversários políticos do presidente e espionar operários em greve. "Ele nascia com um vício que o órgão carregaria para sempre: um mandato excessivamente amplo, feito sob medida para que o governo pudesse usá-lo contra quem quisesse. Na maioria das vezes, contra o povo",

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PESQUISA FAPESP 113 -JULHO DE 2005 -81


afirma Figueiredo. O "monstro" só piorou na adolescência: Vargas e, depois, Dutra, ele constata, militarizaram a instituição e a moldaram segundo os parâmetros norte-americanos da Guerra Fria e a luta contra o comunismo. Assim, nos manuais da Escola Superior de Guerra, o povo brasileiro passou a ser descrito como potencial inimigo da pátria, base da Doutrina de Segurança Nacional, o país visto pelas lentes verde-oliva. Mas tampouco o civil Juscelino Kubitschek resistiu às pressões externas e, deixando o seu lado bossanova de lado, deu forma oficial ao chamado Serviço Federal de Informação e Contra-informação (Sfuci), o "pai" do SNI e "escola" de Golbery e do general Figueiredo. "Nas entranhas do governo JK, considerado o mais democrático da nossa história, estava sendo gerado o 'monstro'", lembra Figueiredo. Após servir a Jânio Quadros e ajudar a derrubar Jango, o Sfuci foi extinto por Castello Branco, que colocou o SNI em seu lugar, baseado num documento de três páginas redigido por Golbery. Com autonomia financeira e sua chefia dotada de status de ministro de Estado, o serviço era o único órgão do Executivo que não sofria nenhum tipo de controle externo. Então, como hoje, nota Priscila, o Legislativo não se interessou em controlar a instituição, que estava sendo criada para mandar muito e não ser cobrada de nada. Mais:

82 ■ JULHO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 113

na contramão do que ocorria nos Estados Unidos, Inglaterra, França e Alemanha, que não permitiam que seus serviços secretos tivessem uma ação interna e externa, o SNI reunia as duas funções. "Ele era parecido com a KGB da URSS e chegou mesmo a ter mais poder do que a organização comunista", diz a pesquisadora.

olbery foi ainda além e deu ao SNI uma nova prerrogativa: intervir diretamente nas políticas do governo. O Estado, aos poucos, foi sendo engolido pelo "monstro". Que não ficou muito tempo sozinho. Durante os governos de Costa e Silva e Mediei (que foi chefe do SNI), juntaram-se a ele o Centro de Informações do Exército (CIE), o Centro de Informações da Marinha (Cenimar), o Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (Cisa) e os DOI e Codi, formando a chamada comunidade de informações, responsável pela repressão sangrenta do regime militar. O problema inesperado é que a comunidade se tornara um Estado paralelo. Assim, no governo Geisel, quando Golbery percebeu que chegara a hora de desmontar o aparato, o "monstro" reagiu. Mesmo com a "ameaça" comu-

nista extinta, o serviço engendrava perigos inexistentes para se manter vivo e, mais importante, livre de julgamentos sobre suas atividades na possibilidade da democratização do país. O medo não procedia. José Sarney, o primeiro presidente civil após o fim da ditadura, adorava a eficiência do SNI e o usou, sem cerimônias, para monitorar os movimentos grevistas. "O órgão ainda concentrava a maioria de seus recursos na vigilância de grupos capazes de mudar os rumos da política nacional", nota Priscila. Curiosamente foi uma vendeta pessoal que pôs fim ao serviço. O então governador Collor foi impedido de visitar Sarney no Planalto pelo chefe do SNI, Ivan de Souza Mendes (que ficara furioso com as críticas feitas pelo "caçador de marajás" ao presidente), e prometeu acabar com o órgão se eleito. Cumpriu a promessa e, em 1990, o "monstro" deixou de existir. Ao menos na aparência. O novo Departamento de Inteligência manteve boa parte dos quadros do falecido, continuou sem controle algum, apesar das promessas colloridas de uma comissão de supervisão do Congresso, e ainda vigiava a oposição. Abin - O interregno Itamar Franco serviu apenas para trazer de volta os militares para o serviço, e o mineiro soube usá-lo para manter sob controle sindicatos, movimentos religiosos e, em especial, o Partido dos Trabalhadores. A eleição de Fernando Henrique Cardoso deu outro rumo ao serviço, pois o novo presidente, apesar de seu desejo de fortalecer o órgão, tentou, pela primeira vez, dotá-lo de mecanismos de supervisão externa. Rebatizado de Abin, o serviço de informações, sob a chefia do general Alberto Cardoso, prometia "agir com irrestrita observância dos direitos e garantias individuais, fidelidade às instituições e aos princípios éticos". Mas o militar insistia, com a anuência do presidente, que ainda era preciso vigiar "grupos nacionais que podem ser uma ameaça à continuidade do Estado e aos interesses da nação brasileira". Apesar da criação do Ministério da Defesa, a Abin servia ao presidente e à política de defesa nacional instituída por ele, segundo Priscila, por ser estabelecida em termos vagos e reafirmando a capacidade dos militares de exercerem funções


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ligadas à política interna do país, "e não causou nenhum tipo de mudança significativa na atuação do sistema de inteligência". "Os militares mantiveram poder para decidir de forma autônoma e assegurar vários de seus interesses", avalia a pesquisadora. Mais uma vez, o Legislativo se calou. Espião - O governo Lula não alterou a estrutura desenhada por FHC e chegou mesmo a retomar uma antiga prática do SNI: a legalização do grampo telefônico pelo serviço, que ainda continua a operar internamente. O presidente, aliás, tem hoje como segurança uma antiga agente do "monstro", que, em 1993, dizendo-se jornalista, infiltrou-se num encontro fechado do PT em Vitória para espionar Lula. "Foi recentemente que o governo fez mudanças na direção da Abin, apenas depois do escândalo Waldomiro Diniz, filmado pedindo propina e cuja gravação evidencia a participação de agentes da Abin", acredita Priscila. Esse movimento pode ser resultante da guerra fratricida por que passava o órgão, em que se digladiavam a velha guarda do SNI, lutando para se manter nos cargos, e os novos civis, contratados por concurso público (a partir de 1996), que se ressentiam da falta de oportunidades de ascensão e da segregação pelos "antigos". A disputa, avalia o jornalista, alimentou os muitos vazamentos de informações secretas para a mídia, incluindo-se a gravação da corrupção de Diniz. "Somente nesse momento o governo se deu conta do perigo da opção de entregar a gestão dos setores às próprias corporações e de como ele poderia se transformar em vítima dessa política de descaso", diz Priscila. "Por incrível que pareça, passado um ano e meio do seu mandato, o presidente não havia nomeado alguém de sua confiança para a coordenação da inteligência nacional. Mesmo a nomeação do general Félix parece subordinada a uma política de 'paz e amor'com as áreas militares mais do que pautada por critérios profissionais ou políticos. Se os responsáveis pela condução do sistema de inteligência continuarem a se omitir de suas funções, isso pode conduzir a uma crise do sistema político, pouco desejável para o Brasil." • PESQUISA FAPESP113 ■ JULHO DE 2005 ■ 83


I HUMANIDADES

ENTORPECENTES

Caminhos da prevenção Estudos do Cebrid ajudam a distinguir mito e realidade no panorama do uso de drogas no Brasil FABRICIO MARQUES

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ons programas de prevencão do uso de entorpecentes dependem, em primeiro lugar, de um diagnóstico preciso da realidade brasileira. O Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), de São Paulo, produziu nos últimos anos uma coleção de trabalhos científicos que conseguiu desfazer mitos e mostrar nuanças insuspeitadas do problema das drogas no país. Tome-se o exemplo mais recente: o Quinto levantamento sobre o uso de drogas entre estudantes do ensino fundamental e médio em 27 capitais brasileiras, divulgado no final de maio. O estudo mostra que a experiência com substâncias psicoativas legais ou ilegais é cada vez mais precoce entre os estudantes. A média de idade do primeiro contato com álcool e tabaco foi de 12,5 anos e 12,8 anos, respectivamente. Entre os que experimentaram maconha, o primeiro uso ocorreu, em média, aos 13,9 anos e, no caso da cocaína, aos 14,4 anos. A estatística confirma a impressão de que as drogas pesadas raramente são a primeira escala na trajetória da dependência. "A prevenção deveria começar antes dos 10 anos e caminhar junto aos esforços de adiar o primeiro uso do álcool e tabaco", diz o psiquiatra José Carlos Galduróz, pesquisador do Cebrid e coordenador do levantamento. Outra novidade: a pesquisa desmente a idéia de que os solventes, vasto espectro de substâncias que englobam desde a gasolina dos automóveis até a cola de sapateiro e o esmalte de unha, são os preferidos dos meninos de rua ou de crianças pobres. Esses entorpecentes não conhecem fronteiras de classes sociais e são a droga ilegal que os estudantes mais experimen84 ■ IULH0 DE 2005 • PESQUISA FAPESP 113

taram na vida. O Brasil revelou-se o campeão mundial no uso de solventes, com 15,4% de jovens que os utilizaram pelo menos uma vez. Em segundo lugar vem a Grécia, com 15%, e os Estados Unidos, com 12,4%. "Há um desafio enorme a vencer, pois o acesso aos solventes é fácil", afirma Galduróz. O levantamento também traz boas notícias. Em comparação com levantamentos anteriores, pela primeira vez registrou-se uma redução na porcentagem de jovens que já experimentaram drogas, em capitais como Curitiba, Fortaleza, Porto Alegre e Salvador. Em outras cidades a tendência geral foi de estabilidade. Distorção - Vinculado ao Departamento de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), antiga Escola Paulista de Medicina, o Cebrid foi criado em meados dos anos 1980 com o objetivo de produzir trabalhos científicos sobre o abuso de drogas e propagar seus resultados. Consolidou-se graças à regularidade com a qual divulga levantamentos, o que permite monitorar mudanças de comportamento. Um de seus pratos-de-resistência é a tese de que os brasileiros têm uma imagem distorcida do problema das drogas. Os pesquisadores convenceram-se de que a sociedade superestima o perigo de substâncias ilegais, como a maconha e a cocaína, e releva a importância de um problema maior, que é o abuso de drogas lícitas, como o tabaco e o álcool. Os números do amplo levantamento nacional sobre uso de drogas, que em 2001 entrevistou 8 mil pessoas nas 107 cidades brasileiras com mais de 200 mil habitantes, mostram essa distorção. Nos Estados Unidos, 34,2% das pessoas já usaram maconha e 11,2%, cocaína. Já no Brasil os índices são muito menores, respectivamente, de 6,9% e 2,3%. Mas 11,2% da população é depen-



dente do álcool e 9%, do tabaco. A questão do álcool se mede por outros números. Ele é o responsável por 80% dos casos de internações por dependência química. Um estudo realizado em Salvador mostrou que 37% dos motoristas envolvidos em acidentes relataram estar sob efeito de bebidas alcoólicas. Segundo os pesquisadores do Cebrid, a distorção resultou, em boa medida, da influência da política antidrogas dos Estados Unidos e se reflete na cobertura que a imprensa faz do assunto. Estudos coordenados pela pesquisadora Ana Regina Noto vêm acompanhando o que jornais e revistas brasileiros publicam a respeito das drogas. Um desses trabalhos, que analisou 502 artigos divulgados em 1998, mostrou que os psicotrópicos mais abordados em manchetes foram o cigarro (18,2%), os derivados de coca (9,2%), a maconha (9,2%), as bebidas alcoólicas (8,6%) e os anabolizantes (7,4%). Já os solventes, entorpecentes ilegais mais consumidos no país, mereceram apenas um artigo. "Os dados indicam um descompasso entre o enfoque jornalístico e o perfil epidemiológico", diz Ana Noto. A preocupação com a cobertura da mídia tem uma justificativa. No final da década de 1970, a imprensa do país deu asas a uma suposta explosão do uso de drogas ilícitas, como maconha e cocaína. Os primeiros estudos com estudantes realizados pelo Cebrid, no final dos anos 1980, mostraram uma realidade bem diferente: o consumo de psicotrópicos proibidos no Brasil era pequeno e estável. Mas, ao longo dos anos 1990, o número de consumidores começou, de fato, a aumentar, embora ainda esteja a anos-luz dos padrões norte-americanos. O número de usuários de cocaína entre estudantes, que era de 0,5% em 1987, passou a 2,0% em 1997. Também cresceu o contingente de consumidores de maconha no Brasil, de 2,8% em 1987 para 7,6% em 1997. É possível que a imprensa tenha registrado precocemente um fenômeno que só mais tarde seria captado pelas estatísticas. Mas, dizem os pesquisadores, também é possível que o exagero 86 ■ JULHO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 113

de informação, influenciado pela política norte-americana de combate às drogas, tenha estimulado o interesse pelas substâncias.

e há risco em espelhar-se em outros países, também se apresenta o desafio de criar estratégias específicas de prevenção em diferentes pontos do território nacional. Cada região do país sofre o problema de modo peculiar, como revelou um grande levantamento nacional feito em 2001 pelo Cebrid. As regiões Norte e Nordeste tiveram as taxas mais elevadas do país de dependência de álcool e tabaco. Mas no Norte foi baixa a adesão a drogas proibidas, enquanto no Nordeste quase um terço da população já usou maconha, cocaína ou tranqüilizantes, entre outros. A Região Sul concentrou recordes negativos. Reúne a maior porcentagem do país de dependentes de tabaco (12,8%) e os maiores contingentes de indivíduos que usaram pelo menos uma vez na vida maconha (8,4%) e cocaína (3,6%). No Sudeste, o número de dependentes em cigarro (8,4%) e maconha (0,7%) é proporcionalmente o mais baixo do Brasil, mas há incidências ponderáveis de uso de cocaína (2,6%) e de crack (0,4%). Já na Região Centro-Oeste um destaque são os analgésicos opiáceos, experimentados por 4% dos entrevistados. O Cebrid já conseguiu mapear caminhos promissores para a prevenção. Um trabalho coordenado pela pesquisadora Solange Nappo entrevistou 62 jovens moradores de 12 favelas da capital paulista - 30 deles eram dependentes químicos e 32 nunca haviam consumido psicotrópicos. O objetivo era compreender o que leva um indivíduo a evitar as drogas mesmo quando vive num ambiente em que o acesso é fácil. A pesquisa, que resultou numa tese de mestrado de Zila van der Meer Sanchez, conseguiu estabelecer uma espécie de ranking dos fatores de proteção. O mais importante, segundo 78% dos nãousuários, foi a influência de uma famí-

lia bem-estruturada, capaz de impor regras de conduta e dar apoio nos momentos difíceis. Entre os 30 usuários de drogas, o dado se repetiu: 21 afirmaram que uma família bem-resolvida pode evitar o envolvimento com psicotrópicos. Em segundo lugar, com 75% das respostas, surgiu a religiosidade, propagada por diferentes igrejas. Já o desempenho das escolas foi reprovado. Só 6,7% consideraram úteis os conselhos recebidos dos educadores. "A informação não tem credibilidade, pois o jovem testemunha o consumo de drogas no pátio e vê o traficante na porta do colégio", diz Solange Nappo. Os fatores de proteção são alvo de investigações detalhadas. No caso da religiosidade, está em andamento um estudo com ex-viciados para compreender o que os faz trocar o apelo concreto do entorpecente pelas promessas imateriais da fé. No caso da família, há evidências de que o bom relacionamento entre pais e filhos tem um papel na prevenção. "Num levantamento com estudantes, o uso pesado de álcool e de outras drogas estava associado ao relacionamento ruim do jovem com seus pais e à desarmonia entre pai e mãe", diz o psiquiatra Galduróz. O pai e o drinque - Também é comum que conflitos familiares tenham vínculo com o uso de entorpecentes pelos pais. Com apoio da FAPESP, a equipe do Cebrid analisou o perfil dos envolvidos em casos de violência doméstica em 27 cidades paulistas. Constatou-se que metade deles está associado ao uso de álcool. Em 52% das situações, o agressor estava sob efeito de bebida. As principais vítimas da violência são as mulheres, em geral casadas com os agressores. Não houve variação entre classes sociais. Acontece na periferia e nos bairros nobres. "O papel da família não se limita a oferecer informações", diz Galduróz. "A prevenção começa com os exemplos que os pais dão. A pior coisa que um pai fumante pode fazer é explicar ao filho que 'fuma porque é bobo'. A criança não pode espelhar-se num bobo", afirma. Segundo Galduróz, não existe uma receita, mas muita coisa pode ser feita. "Uma estratégia é acostumar a criança a um estilo de vida saudável, que valorize atividades ao ar livre. Se


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ela der importância a respirar ar puro, será mais fácil afastá-la do apelo do cigarro", diz. "Um pai que chega em casa e sempre toma um drinque está dando um exemplo que poderá ter efeitos no comportamento do filho." Também não adianta negar o prazer das drogas. "Mensagens que só tratam dos malefícios perdem credibilidade com os adolescentes", afirma. Para os pesquisadores do Cebrid, é utópico imaginar um mundo livre dos entorpecentes. "O homem recorre a eles desde sempre, para alterar seu estado psíquico e aliviar tensões", diz o diretor e fundador do Cebrid, o médico Elisaldo Carlini, professor aposentado da Unifesp. "Não há solução radical. Mas não se pode permitir que o problema transborde e se torne patológico." Com base nisso, Carlini e sua equipe defendem, entre outras estratégias, as chamadas políticas de redução de danos, como a polêmica oferta de seringas a dependentes de drogas injetáveis para evitar o contágio da Aids. Se os dados gerais desautorizam o pânico, os estudos do Cebrid mostram que em alguns estratos da população a situação é, sim, preocupante. Pesquisa sobre uso de entorpecentes entre crianças e adolescentes de rua, realizada nas 27 capitais brasileiras, mostrou dados aterradores: 12,6% haviam tentado suicídio. Outro grupo de altíssimo risco são os usuários de crack. Incinerado num cachimbo, o derivado de cocaína em

forma de pedra produz vapores que são absorvidos pelos pulmões e alcançam rapidamente o cérebro. Um estudo do Cebrid entrevistou mulheres das cidades de São Paulo e São José do Rio Preto que vendem o corpo para comprar a droga. O preço que cobram varia segundo a necessidade de usar o crack em crises de abstinência, um programa pode sair por R$ 10,00. Algumas delas aceitam fazer sexo com os traficantes em troca da droga em espécie. O uso de preservativos é irregular, o que as expõe à gravidez indesejada e à Aids. Dinamismo - O Cebrid começa a investigar agora o perfil do consumidor de crack, dez anos depois de sua chegada ao Brasil. Já se sabe que, apesar do caráter desagregador da droga, há usuários que escaparam da morte precoce e encontraram estratégias para fumar as pedras e continuar vivendo, em geral por meio de associações com outros entorpecentes. Naturalmente há situações de alto risco em estratos mais altos da sociedade. O pesquisador Murilo Baptista, do Cebrid, prepara-se para revisitar os universitários usuários de ecstasy que entrevistou no ano 2000 para sua tese de mestrado. Naquela época, os comprimidos do estimulante estavam restritos a ambientes de festas. A confiança nos dados sobre o consumo de drogas depende da regularidade com que as investigações são feitas. É comum que, em intervalos curtos

de tempo, pesquisas dêem resultados distintos, daí a necessidade de se tomar como verdadeiras tendências históricas, não dados isolados. Por razões metodológicas, há diferenças nos resultados das pesquisas que o Cebrid faz com os estudantes e o levantamento em domicílios realizado em 107 cidades. Os estudantes preencheram um questionário sigiloso. Já no levantamento domiciliar, os pesquisadores batiam à porta das pessoas e lhes faziam perguntas. É possível que parte delas tenha se sentido constrangida em responder. Outra causa das oscilações é o dinamismo do mercado dos entorpecentes. A procura, dizem os especialistas, é influenciada pelas notícias sobre grandes apreensões e pelo surgimento de drogas da moda. É preciso estar atento às novidades. Um exemplo é a triexifenidila, vendida com o nome de Artane, indicada no tratamento do mal de Parkinson. Tempos atrás, em entrevistas com usuários de maconha e álcool, surgiram referências a esses comprimidos. Os pesquisadores do Cebrid resolveram investigar. Foram ouvidos 37 usuários e ex-usuários que utilizaram a droga pelo menos dez vezes na vida. Observou-se que a substância era usada em associação com outras. A triexifenidila provoca alucinações ora agradáveis, ora aterrorizantes. É barata e relativamente fácil de obter. Cerca de 1% dos brasileiros já a experimentou. • PESQUISA FAPESP113 ■ JULHO DE 2005 ■ 87


I HUMANIDADES

LITERATURA

A Boca que o inferno não quer calar Biografia e nova edição revivem polêmica sobre o libertário Gregório de Mattos

GONçALO JúNIOR FOTOS DE RINO MARCONI

As vésperas do Natal de 1969, o então governador Luis Viana Filho recebeu um ofício em tom de indignação do ge_ neral Abdon Sena, comandante da 6a Região Militar, sediada em Salvador. O militar queria que a maior autoridade do Executivo baiano mandasse apreender toda a edição em sete volumes das poesias completas do baiano Gregório de Mattos Guerra (1636-1695) - organizada por James Amado a partir de códices do gramático Celso Cunha e da Biblioteca Nacional e publicada pela pequena editora Janaína, de Salvador. No mesmo comunicado Sena repreendeu o governador por ter ajudado na publicação de um autor que o Exército considerava "subversivo, anticlerical e pornográfico". Membro da Academia Brasileira de Letras, biógrafo de Rui Barbosa e, depois, do presidente Castello Branco, Viana Filho fora escolhido pelo regime militar para governar a Bahia. Ele havia mandado comprar parte da tiragem da obra de Mattos para distribuí-la nas escolas da rede estadual de ensino, bibliotecas e entidades culturais da Bahia. O conteúdo do ofício vazou e logo circulou a informação nos meios literários e acadêmicos de 88 • JULHO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 113


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O ator Emanoel Cavalcante no pátio do Solar do Unhão, em foto de cena do filme A volta do Boca do Inferno, curta do cineasta Agnaldo Siri Azevedo, de 1978

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que a edição fora confiscada e queimada, como nos tempos da Inquisição. Como não era baiano, talvez Sena não soubesse que Gregório de Mattos estava morto e sepultado havia dois séculos. Mais que isso, havia sido transformado nos últimos cem anos num mito de uma Bahia que ele supostamente defendeu com uma poesia crítica corrosiva e libertária. De qualquer modo, o episódio mostrou, em parte, porque o nome do poeta barroco se tornara um tabu por tanto tempo: o pouco conhecimento sobre sua vida e obra que persiste até hoje. Por incomodar a todos na Bahia, o poeta jurista foi atirado ao limbo. O tempo, porém, fez dele herói. Autor de poemas satíricos e recheados de pornografia, não deixou um único manuscrito. Seus versos sobreviveram no imaginário popular ou foram compilados por admiradores. E como quem conta um conto aumenta um conto, não existe unanimidade quanto à autoria do que lhe é atribuído. Não dá para compreender o poeta sem considerar sua complexa personalidade e época. Embora várias edições de seus versos tenham sido lançadas ao longo do século 20, foi com a publicação do compêndio de James Amado que teve início o resgate da produção do poeta maldito. Nessa frente, tem se destacado nas últimas três décadas o historiador baiano Fernando da Rocha Peres. Depois de Gregório de Mattos Guerra: uma re-visão biográfica e de Um códice setecentista inédito de Gregório de Mattos (em parceria com a pesquisadora italiana Silvia La Regina), ele organizou em 2000 o seminário "Gregório de Mattos, o poeta renasce a cada ano", que virou uma coletânea de artigos de sete intelectuais baianos e do poeta paulistano Haroldo de Campos (19292003). Agora Rocha Peres lança Gregório de Mattos, o poeta devorador, tercei90 ■ JULHO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP113

dão de casamento do poeta com a espanhola Micaela de Andrade, que até o momento ninguém sabia. O volume traz também um mapeamento preciso dos cargos públicos que Mattos ocupou e a existência de uma filha que teve quando viveu em Portugal. No momento, Peres e Silvia La Regina preparam a publicação de uma leva inédita de poemas do baiano que deve sair em breve. Antagonismo - O crescente interesse de acadêmicos de todo país e até do exterior para melhor compreender Gregório de Mattos tem levado ao aparecimento de correntes antagônicas. O esforço divide opiniões quanto às leituras críticas e interpretativas, à autenticidade de códices com compilações de suas poesias e escritos, além da opção de No filme de Siri, falecido em 1995, Gregório análise que ajude a traçar de Mattos revisita Salvador para constatar que um perfil mais completo e a cidade continua cheia de mazelas honesto dos pontos de vista histórico e literário. ro volume da coleção Bahia com H, da A partir de uma escrita em português editora carioca Manatti. arcaico barroco setecentista, Gregório de Investigador rigoroso, Rocha Peres Mattos fez versos que misturaram sagratomou para si a missão de reconstituir do e profano, e usou a linguagem sexual da forma mais precisa possível a vida como recurso para tratar de valores e cronológica do poeta, além de resgatar de atitudes políticas e religiosas ou de fragmentos desconhecidos de sua poecomportamento. Para os críticos rosia. No novo livro, o autor faz uma sínmânticos do século 19, ele construiu tese de tudo que apurou e constrói um uma obra que o transformou no maior rico painel da vida cultural, social e popoeta satírico da língua portuguesa do lítica da Bahia e do Brasil colônia e de período barroco e um homem à frente sua relação com Portugal. O autor prodo seu tempo, um febril defensor de curou principalmente rever o que estamudanças. va errado quanto à vida de Gregório de Apesar do lado satírico irreverente Mattos e adicionar novos fatos docuter feito sua fama, Mattos escrevia tammentados. bém poesia sacra e amorosa. Ainda hoje, Para isso, viajou às principais cidapara muitos, continua a ser visto como des portuguesas nos últimos 20 anos um cavaleiro solitário que confrontou em busca de cartas, documentos e texverbalmente a elite, a Igreja e o poder tos da época que falavam do poeta. central. Teria acontecido exatamente "Encontrei fontes documentais que me assim? Novas leituras defendem que ele permitiram datas exatas e levantar fatos deixou em seu legado o perfil de uma importantes até então mal relatados", pessoa racista e conservadora, marcada diz, em entrevista. Ele teve acesso na pela origem de uma família abastada e Torre do Tombo, por exemplo, à certium profundo desprezo pela sociedade


colonial brasileira. Em retribuição ao apelido de "Boca do Inferno", por exemplo, chamou Salvador e seu povo de "canalha infernal". Venerado na Bahia como um herói romântico, Gregório de Mattos pode ser mais bem compreendido a partir de um contraponto estabelecido pelo professor paulista João Adolfo Hansen na década de 1980, quando publicou o indispensável A sátira e o engenho (1989) pela Companhia das Letras. O livro acaba de ganhar nova edição pela editora Unicamp. Sua polêmica tese se opõe à corrente que resgatou Mattos há mais de um século e que teria em acadêmicos baianos seus principais defensores. Em seu doutorado, Hansen reconstituiu "a primeira legibilidade normativa da sátira" atribuída ao poeta setecentista baiano. A partir de fontes primárias, investigou seus poemas satíricos, os tratados retóricos da época e os documentos históricos - como delações de pecados e heresias ao Santo Ofício e as atas da Câmara de Salvador. Para isso, consultou documentos produzidos ao longo de cem anos e que abrangem a época do poeta. Ao romper com a crítica biográfica e se afastar dos clichês românticos sobre a suposta vida do poeta, retratado habitualmente como ébrio, boêmio, obsceno e libertino, Hansen ganhou alguns desafetos. Para chegar a essa visão da poesia barroca brasileira, ele analisou o humor de Mattos pela tradição retórica do século 17, em que a obscenidade e a maledicência estavam previstas em regras precisas. "Nunca pensei em fazer uma revisão crítica, minha proposta foi uma leitura histórica, mas o liberalismo, o romantismo e o nacionalismo dos que se acham donos de Gregório de Mattos foram tão fortes que muita gente se sentiu ofendida, agredida", diz.

0 poeta farreia no mais famoso bordel da Ladeira da Montanha

Hansen contestou principalmente o anacronismo da crítica romântica do século 19, até hoje ensinada nas escolas e que teria distorcido completamente a vida e a obra do poeta barroco baiano. Assim, a sátira foi entendida por seus detratores como a psicologia do homem. Ou seja, por criticar e usar termos obscenos, Mattos seria um doente, um degenerado. O pesquisador mostra que havia, na verdade, um movimento literário a partir da sátira na Europa que evidenciava a retomada de modelos de humor medieval como instrumento de ataque e de crítica. Liberal - Para outros, diz Hansen, Mattos passou a ser visto como um liberal, um libertário e até um "beatnic hippie"

As mulheres de todas as cores eram sempre benvindas para o poeta mítico

do século 17. "Ele era, na verdade, um tipo aristocrático católico, fidalgo, que lutava pela correção de condutas, que defendia os bons usos monárquicos." O melhor termo para defini-lo, portanto, é "tradicionalista", uma vez que não conhecia o conceito de conservador. "Não se pode manter a crítica romântica quando se tem ferramentas que evidenciam que se trata de uma interpretação, mas que não é a única possível." O autor acredita que essa imposição romântica distorceu a visão mítica que a Bahia tem hoje de Gregório de Mattos como herói anárquico popular. "Tem-se orgulho de ele ter nascido em Salvador, mas não sei de onde veio isso porque sua nação era mesmo Portugal" Um argumento nesse sentido era que ele arrasava a Bahia em seus versos não porque estivesse na busca de reformas, da pregação de ideais libertários ou anárquicos. Não por acaso, mostrou em diversas oportunidades um indisfarçável ódio contra judeus, negros, índios e pobres. Pelos poemas atribuídos a si, segundo Hansen, Mattos recorria a uma linguagem agressiva e obscena para defender postura moralizante. Presumiu-se que tomou para si o papel de reformador de costumes das torpezas, vícios e enganos, como se ele mesmo fosse inatacável. Os versos mostram que não aceitava de bom grado as mudanças ocorridas na província. Para Hansen, mesmo tendo sido um homem do seu tempo e que muitas vezes refletia os interesses da classe de sua família ante a Coroa, Gregório de Mattos era singular e genial porque, entre todos os homens e poetas satíricos de sua época, mostrou uma visão crítica e perspicaz da sociedade local. A mesma que fez dele o mais temido, combatido e censurado poeta da história literária brasileira. • PESQUISA FAPESP113 ■ JULHO DE 2005 ■ 91


■ HUMANIDADES CINEMA

A África no Brasil Filme revela vida do escravo que criou uma religião pessoal

Cenas do filme Cafundó, com Lázaro Ramos (à dir.), como João de Camargo, e Luís Mello, como o sacerdote

afundo é, no senso comum, um lugar longe demais. Para a universidade foi uma grande "descoberta", ocorrida em 1978, quando um jornalista visitou o bairro rural do mesmo nome, situado no município de Salto de Pirapora. Ali estava uma "Galápago" cultural, pois, nas terras doadas no século 19 a dois ex-escravos, os moradores guardavam, na língua e nos costumes, a ancestralidade africana. Carlos Vogt e Peter Fry, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), estudaram a região e, em 1996, publicaram Cafundó: a África no Brasil. "A língua africana do Cafundó não significa apenas a sobrevivência de uma língua banto qualquer; ela é, acima de tudo, uma prática lingüística em constante processo de transformação e cujo significado político e social é dado pelo contexto das relações onde ela tem vida", observaram. O longe levava para perto do passado. Cafundó, então, virou símbolo da integração e da permanência de valores trazidos pelos negros ao Brasil. É nesse contexto que o ator e diretor Paulo Betti batizou seu novo filme, que deve estrear no segundo semestre, de Cafundó (com Lázaro Ramos, Leona Cavalli e Luís Mello). Pois, apesar do nome, o longa-metragem não fala da comunidade, mas de João de Camargo, um ex-escravo fundador de uma curiosa religião que reunia santos católicos, candomblé e espiritismo. O culto sincrético chamou a atenção de um jovem sociólogo, Florestan Fernandes, com 22 anos, e o levou a escrever Contribuição para o estudo de um líder carismático e repensar a questão racial. "Aprendi sociologia em campo com pesquisa do culto a João de Camargo", afirmou. Diz a lenda que o ex-escravo, sempre bêbado, teve uma revelação diante da cruz colocada no córrego das Águas Vermelhas em memória de Alfredinho. O garoto, filho de um comerciante português, em 1859, 92 ■ JULHO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP113


andava pela região caçando com seu bodoque quando caiu do cavalo e, preso ao estribo, foi arrastado pelo animal. Seu corpo, estraçalhado, foi achado nas águas do córrego. João, em 1906, teria recebido uma mensagem do menino, que lhe prometia proteção se ele assumisse a missão de curar e ajudar as pessoas. Dessa história prosaica nasceu um culto que impressionou Florestan por seu desenvolvimento rápido a partir de um início tão modesto. Em pouco tempo, o ex-alcoólatra montou a sua igreja, em que, escreveu Fernandes, "ao lado das práticas de curandeirismo, desenvolveu o culto católico às imagens dos santos e, ao mesmo tempo, organizou também traços da cultura africana, fundidos no espiritismo". No começo conquistou seus adeptos com pequenos "milagres" feitos nas águas do córrego. As multidões logo chegaram à região. "Ele fundou uma religião e se tornou um líder quase messiânico. Derrotado e delirante, deslumbrado com o mundo em transformação e desesperado para viver nele, João de Camargo saiu da senzala, passou por tudo de ruim,

deu a volta por cima e se tornou um líder religioso", observa Betti. Foi justamente esse deslumbramento que mais atraiu a atenção do sociólogo. "É provável que João de Camargo tenha encontrado no conhecimento de valores de origem africana e na observância dos mesmos no culto religioso que desenvolveu um ponto de apoio extraordinariamente forte, capaz de atrair por si mesmo um número relativamente grande de seguidores", anotou Florestan. Era a permanência do Cafundó. "Se, de início, ele ainda se ajoelhava diante da imagem de N.S. Bom Jesus do Bonfim para 'receber', no auge de sua influência não mais se ajoelhava para 'falar' com os santos", observa. "Mais tarde passa a receber ordens' do Espírito Santo e, no fim, até de Deus. Este mesmo foi suplantado pois, no apogeu de sua carreira, considerado taumaturgo, recebe as ordens' da Igreja, uma entidade ampla e abstrata, que me parece, para ele e para os crentes iniciados, está acima do próprio Deus." Num processo que misturava a força da herança africana e o entendimento

da realidade brasileira, João conseguiu, com sua religião, reabilitação pessoal e social. "A sua carreira é exemplar das formas assumidas pela transformação da personalidade sob o influxo da vida grupai. Depois que se alteraram os critérios de avaliação de sua pessoa, com o êxito obtido, ele se colocou sucessivamente em novas categorias de atuação social, transformando o círculo de relações sociais e a natureza dessas relações", diz Florestan. "Com o incremento do prestígio, ele ampliava paralelamente o edifício da igreja e passava a 'receber' espíritos 'mais fortes': daí a transição do menino Alfredinho para o de monsenhor Soares, deste para o dos santos, para o Espírito Santo, para Deus e, enfim, para a Igreja." O sociólogo observou que nesse movimento, ligado às alterações sofridas na forma de atuação social de João de Camargo, refletia-se a elevação de seu status dentro da estrutura social de Sorocaba. O que levou as autoridades, em 1913, a processá-lo por "prática de curandeirismo". Mais uma vez, o Cafundó traz o longe para muito perto. • PESQUISA FAPESP113 ■ JULHO DE 2005 ■ 93


RESENHA

Uma caçada transcontinental Resgate de um estudo pioneiro amplia conhecimento sobre o movimento gay no país MARILUCE MOURA

■ a ousadia de Florestan Fernandes, para quem o segmento homossexual era um grupo específico dentro da sociedade mais ampla - e não pessoas portadoras de uma patologia, como até então eram pensados no Brasil -, e do acesso de Barbosa da Silva ao círculo social composto de homossexuais de classe média em que convivia, abria-se a possibilidade para que o primeiro estudo sociológico moderno sobre homossexualidade fosse feito em São Paulo." Esse comentário de Ronaldo Trindade (páginas 253-254), responsável junto com James N. Green pela organização de Homossexualismo em São Paulo e outros escritos, resume com fina precisão tanto o status acadêmico de Aspectos sociológicos do homossexualismo em São Paulo, de José Fábio Barbosa da Silva - texto que é o pretexto fundamental para a publicação do livro em questão -, quanto a situação singular que permitiu sua elaboração, em 1958, como monografia de especialização em sociologia na Universidade de São Paulo (USP). Vale a pena, antes de seguir alguns percursos dos anos 1950 ao presente e de entrar em territórios geográficos e simbólicos da comunidade gay masculina na cidade de São Paulo, apresentados por diferentes pesquisadores dessa temática, tomar conhecimento das peripécias em que se meteu Green para resgatar o trabalho pioneiro e inédito de Barbosa da Silva. Já no prefácio do livro, o antropólogo Peter Fry observa que durante muitos anos os estudiosos da homossexualidade sabiam da existência do trabalho de Barbosa da Silva, que supunham ser uma dissertação de mestrado orientada por Florestan Fernandes e cuja defesa fora feita ante uma banca da qual participavam os sociólogos Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni. Mas foi a persistência obsessiva de Green, um historiador, que permitiu arrancar literalmente das sombras em que fora enfiada a monografia de Barbosa da Silva. Green viu pela primeira vez uma referência ao trabalho de Barbosa da Silva em 1979 e foi procurá-lo na Faculdade de Filosofia da USP, onde deveria estar registrado. Não encontrou nada além da informação de que o autor, àquela altura, morava nos Estados Unidos. Por longos 15 anos deixou de lado o assunto. Em 1993, de volta ao Brasil para a pesquisa de sua tese de doutorado na Universidade da Califórnia, sobre a história da homossexualidade masculina no Rio e em São Paulo, mais uma vez os eflúvios de Barbosa da Silva o atingiram. E Green voltou às bibliotecas, à USP, à Escola de

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Sociologia e Política, enfim, a todo lugar onde pudesse obter uma pista. Encontrou na última uma dissertação de mestrado de seu personagem James N. Green e sobre o Padre Cícero - o que só o Ronaldo Trindade (org.) deixou desnorteado, mais intrigado e frustrado. Teria ele feito duas disEditora Unesp sertações de mestrado? Em 1997, um 344 páginas / R$ 36,00 novo encontro com Barbosa da Silva, ou melhor, com algo mais material de sua lavra: o artigo sobre os homossexuais, baseado na misteriosa monografia, publicado na revista Sociologia nos anos 60. Retomou as investigações e dessa vez elas o levaram ao autor, nos Estados Unidos. Desembocaram num final feliz quando, finalmente, ele recebeu o pacote com o tão desejado texto datilografado em cerca de 150 páginas. É exatamente esse trabalho o ensaio central de Homossexualismo em São Paulo, e por meio dele tomamos conhecimento sobre lugares de freqüência, práticas de sociabilidade, práticas amorosas e sexuais, estratégias de preservação, jargão, dentre uma imensa gama de outros aspectos que servem para compor um retrato rico e multifacetado de uma parcela importante dos homossexuais na São Paulo dos anos 50, traçado em linguagem surpreendentemente clara, às vezes crua. Na abertura da segunda parte do livro, sob o título Outros olhares, um texto contemporâneo de Barbosa da Silva, professor emérito na Universidade de Notre Dame, lança um olhar crítico sobre sua produção remota. Lembra aí que o modelo teórico usado por Florestan era o estrutural funcionalismo, baseado principalmente nos trabalhos de Emile Durkheim, Mareei Mauss e Malinowski, ao qual "adicionou uma dimensão marxista". Portanto, a orientação do mestre lhe permitiu uma abordagem bem diferente das histórica e cultural e médico-psicológicas que na época prevaleciam para os estudos de homossexualidade. Os outros ensaios que compõem a segunda parte do volume tem por autores Ronaldo Trindade, que examina o mundo acadêmico na USP e, especialmente, a contribuição de Florestan para a sociologia no país; Néstor Perlongher (falecido em 1992), que baseado em Giles Deleuze e Félix Guattari envereda com seu estilo original, sofisticado e polêmico pelos territórios marginais de encontros entre michês e entendidos na São Paulo dos anos 70, ampliando para muito além dos limites geográficos a noção de territorialidade; Edward MacRae, que, observando os anos 70 e 80, move-se Em defesa do gueto e, para encerrar, Júlio Assis Simões e Isadora Lins França, que em Do "gueto" ao mercado examinam a expansão e a diversificação dos territórios dos homossexuais na cidade desde os anos 80 até o presente. Homossexualismo em São Paulo e outros escritos


LIVROS

Micro Macro Marcelo Gleiser PubliFolha 600 páginas, R$ 54,00

O professor de física e astronomia do Dartmouth College, nos EUA, acredita ser "impossível não se maravilhar com o mundo". Partindo desse princípio, desde 1999, o acadêmico escreve artigos sobre temas científicos variados no jornal Folha de S.Paulo. Agora todos foram reunidos em um único volume que consegue agradar especialistas e leigos com sua multiplicidade de temas. Entre os artigos: "A coragem do jovem Einstein", "O que é vida?", "Big bang em xeque", entre outros. Publifolha (11) 3224-2186 www.publifolha.com.br

Organização e poder: análise do discurso anticomunista do Exército brasileiro Roberto Martins Ferreira Annablume 198 páginas, R$ 35,00

O estudo disseca o comportamento ideológico do Exército nacional, de 1935 a 1985. O anticomunismo foi, por mais estranho que pareça, o elemento fundamental para que a instituição se organizasse ideologicamente e foi parte essencial da definição de suas finalidades e de sua relação com a sociedade e com a política brasileiras por quase 60 anos, analisando o discurso oficial. Annablume (11) 3812-6764 www.annablume.com.br

Princesa Isabel do Brasil

Paixão Pagu: a autobiografia precoce de Patrícia Galvão

RoderickJ. Barman Unesp 352 páginas, R$ 39,00

Organização de Geraldo Galvão Ferraz Editora Agir 164 páginas, R$ 29,90

Enfocando a vida da princesa Isabel no contexto dos estudos de gênero, o autor traz um retrato surpreendente da nobre brasileira, uma das nove mulheres em todo o globo que ocuparam postos de grande autoridade durante todo o século 19. Em uma sociedade em que ser mulher e ter o poder eram coisas inconciliáveis, Isabel, a herdeira por 40 anos do Império brasileiro, ganha destaque, sem espaço para saudosismo monárquico, apenas um perfil sério e preciso.

O livro é, em verdade, uma longa carta que a mais famosa das personalidades femininas brasileiras do século 20 escreveu como um depoimento para o marido, o crítico de arte Geraldo Ferraz, logo após sair, nos anos 1940, de uma das suas 23 prisões. Os filhos de Pagu agora trazem o texto, inédito ao público por 60 anos. Corajosa, a escritora se revela por inteiro, desde a sua iniciação sexual até o difícil relacionamento com o poeta modernista Oswald de Andrade.

Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br

Editora Agir (21) 3882-8416 www.ediouro.com.br

0 sertão itinerante: expedições da capitania de São Paulo no século 18 Glória Kok Editora Hucitec/FAPESP 280 páginas, R$ 45,00

Proust e a fotografia Brassaí Jorge Zahar Editor 184 páginas, R$ 29,50

O estudo analisa a presença da cultura mameluca na capitania paulista durante o século 18, mostrando a composição das expedições em que tomavam parte, como viviam, como eram seu universo mental e também suas relações com outros grupos indígenas e com os brancos. Homens, de certa forma, sem raízes, eles foram fundamentais na colonização do sertão na conquista do espaço.

Um texto apaixonante escrito por um dos maiores fotógrafos de todos os tempos. Brassaí, partindo do fato de que o autor de Em busca do tempo perdido era um apaixonado pela recém-nascida fotografia, mostra como sua técnica narrativa decorre, em boa parte, desse amor, responsável por um olhar atento e observador do seu entorno, no caso a sociedade francesa decadente. O livro traz a percepção aguçada do fotógrafo em descobrir a visão privilegiada de Proust.

Editora Hucitec (11) 3060-9273 www.hucitec.com.br

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Getsêmani JULES RlMET

Quando o sol se põe, é por acaso que eu choro? Acho que não. Claro que não é. Uma: talvez a ave-maria me conceda esses segundos de lágrimas, porque anexadas ao pôr-do-sol; Outra: a consciência da mecânica da coisa. Essa outra é culpa exclusiva do professor de geografia do primeiro grau que me ofereceu aquilo que em outras épocas era chamado de "iluminação". A ciência... ora a ciência... serve também pra isso: desmistificar. Porque até aquela aula onde tudo se derreteu em minha cabeça eu acreditava que o sol se punha apenas por ordem da ave-maria tocada no rádio, às seis horas de todas as tardes. Por isso eu choro quando vejo um pôr-do-sol. E também porque sei que no fundo sou um sujeito sensível e boa-praça. Coisa que nunca quis admitir, no antanho. Um tio meu sempre dizia prós amigos "esse aí é boa-praça", e apontava com o queixo. Eu era o "esse aí" e não levava na brincadeira. Tampouco considerava elogio. Boa-praça sempre me pareceu algo vizinho do "sujeito legal"; o mesmo que "o último a saber". Quando o professor de geografia me explicou (para a turma, na verdade) o funcionamento da esfera celeste, algo se desligou dentro de mim, ao mesmo tempo que algo acendeu, e eu me senti como sendo o último a saber. Miserável e deslumbrado, chorei sozinho no quintal de casa, olhando um sol que já não se punha mais, vendo a terra me girar para longe do calor e o sol ser deixado solitário na berlinda. O universo é cheio de berlindas, concluí. Eu também me sentia na berlinda fria de uma noite de estrelas frias. Também choro pelos amores inverossímeis que cultivei ao longo da vida. Amores inverossímeis salpicados de pores-do-sol. Eu sou um cara sensível, que se há de fazer? Depois de adulto eu ia — de vez em quando, mas ia — exercitar os canais lacrimais, limpar as vias respiratórias, na beira do mar, e aí eu providenciava um sol amarelo-ouro se pondo, cantava a ave-maria, soprava algumas nuvens só pra refletirem aquelas cores escorrendo no fim do céu e, por três segundos, calava o mar. Depois a trilha sonora das ondas voltava a toda, e eu ficava ali ainda alguns minutos, respirando fiapos daquele som. Tive consciência também das hecatombes, olhando o sol cair — nossas pequenas hecatombes pessoais. De minha solidão e nossa pequenez. Por isso algum comportamento cínico. Por isso essa vida. A solidão é um amontoado de garrafas vazias no canto da sala. Guimbas de cigarro, em cinzeiros, em copos, em pratos, também acusam a manhã solitária. É quando a gente tem que, definitivamente, limpar de toda a visão aquele ataque à alma. Meu avô dizia que depois que a gente sobrevive a uma morte considerada certa, tudo passa a ser vazio, a morte perde seu condão misterioso, o medo morre e a vida perde a graça. Sobreviver à morte não é, necessariamente, ganhar a vida. Porque não há saída. Porque não há subterfúgio. Eis a consciência que fica martelando depois. Ele me dizia isso toda vez que recontava as histórias da guerra. Eu percebia um pingo de tristeza em sua voz, uma mancha de decepção pela sobrevivência. Foi ferido de morte-certa, disse-lhe o médico, e sobreviveu. "A maravilha da vida está em ser incerta, meu filho." Desde então meu avô perdeu o prazer pela "maravilha da vida". Eu aprendi a desconfiar dos deslumbramentos. Eis outra: Minha prima era anjo na coroação da Virgem Maria. Tinha asas de algodão e aura de arame encapado com papel alumínio. Na primeira vez em que ela coroou a estátua foi que eu vi a quimera, tive certeza do fiasco, foi confirmada minha desconfiança. Uma coroa todinha feita de bijuteria. Vi. 96 ■ JULHO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP113


A vida inteira acreditei na máxima de minha avó, conjugada com a filosofia de vida — de desvida, melhor seria — do meu avô. Passei a tomar ao pé da letra o que minha avó falava, entre uma risada e outra, toda vez que acontecia alguma coisa que outros consideravam "relevante": as pequenas hecatombes, os dramas cultivados de cada um: "essa vida é uma novela". Tomei isso ao pé da letra e não me decepcionei. Por isso eu fabricava um pôr-do-sol, vez por outra. A solidão aí, latejando. E ao amanhecer, ainda lá, naquele amontoado de garrafas vazias. Eu me sentia um monstro enorme numa Tókio particular de 3 x 5 metros: meu quarto. Sentia a solidão de um Godzilla. Meus olhos de míope passaram a ver outro mundo, principalmente depois que o professor explicou a lógica da coisa. Durante muito tempo a geografia ficou latejando, expurgando crenças: a razão em metástase. O que apagou antigos brilhos e iluminou novas trilhas: a consciência. É um ser para o qual, em seu próprio ser, acha-se a consciência do nada de seu ser — isso é Sartre. Desde o primeiro estalo, quando as estrelas se fragmentaram em mil sóis distantes e o romantismo passou a me parecer esdrúxulo, eu vi inchar em mim esse nada. Um balão vazio cheio de nada parecia inflar no meu estômago e, daí, chegar à minha cabeça, enchendo-a desse nada, dessas dúvidas e, sobretudo, de fúrias. Eu vivia meu getsêmani particular. Química e física. Matemática. Um mundo de cálculos, um universo de fórmulas. O aleatório? O homem e suas crenças. Eis minha hecatombe particular, meu pequeno drama. Essa vida é uma novela. Porque a ciência, ora a ciência... também serve pra isso: deflagrar hecatombes pessoais. E o amor, esse não consola nunca de núncaras — isso é Drummond. O amor, todos os amores, inverossímeis manifestações químicas? Sobretudo as paixões, tenho certeza. Alguém, algum dia, encontrará a fórmula que deflagrará esses sentimentos? O amor encontrado na tabela periódica, no fim. A despeito das inzonices cristãs, não obstante os enredamentos poéticos. Latente, esperando ser arrebatado para nos arrebatar. No pôr-do-sol, eu sofria antecipado por um amor que não possuía. No meu getsêmani, eu chorava, mas não renegava o peso: bebia o cálice. Desde o primeiro cálice oferecido naquela aula de geografia se acendeu em mim o desiderato pela verdade. Mais a desconfiança dos deslumbramentos, plantada por meu avô com boa semente em alma fértil de jovem sedento. A faculdade de física me deu outras saciedades, depois. Plantou novas sementes, regou outras mudas, fortaleceu novas edificações. Mas eu ainda sofria por aquele antigo pôr-do-sol e não me recuperara das ave-marias. Os fins de tarde eram, para mim, ainda, motivo de angústia, e eu escondia essas minhas idiossincrasias íntimas indo vez por outra à pedra da Gávea soprar nuvens, assobiar "ora pro nobis" e calar as ondas. No resto do dia pesquisava os céus. Noite adentro, penetrava nos astros. De vez em quando um deslumbramento se acendia em mim, claro que diferente da ignorância de antanho porque salpicado de equações. A ciência é uma metástase. E eu mergulhava no desconhecido, buscando nunca mais ser o último a saber. RiMET é escritor, professor e advogado, nasceu em 1970, em Campos dos Goytacazes. Possui contos e poesias publicados em diversas revistas eletrônicas, entre elas www.paralelos.org. e http:patife.art.br. Mantém oblog http://imagina.blogspot.com JULES

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EPIDEMIOLOGIA ganha novo livro Acaba de ser lançado o livro Epidemiologia - Abordagem Prática, obra dirigida aos profissionais de saúde com interpretações críticas de artigos científicos. Também pretende estimular o aumento do conhecimento sobre epidemiologia dos alunos de graduação e de pós-graduação de todos os cursos da área de saúde. Editado pela Sarvier, o livro foi escrito a partir da experiência dos médicos clínicos e epidemiologistas doutora Isabela M. Bensefior e doutor Paulo A. Lotufo, professor associado da disciplina de Clínica Geral e Propedêutica da FMUSP. À venda nas livrarias especia/izadas em saúde. Sarvier Tel: (11) 5571-4570 www.almed.com.br sarvier@uol.com.br

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