Os pequenos notáveis

Page 1

Dezembro 2005 • N° 118

CAPA DE REVISTA TRANSFORMA NOTíCIA EM PRODUT PARASITA DO MAL DE CHAGAS COPIA GENES EM SÉRIE PARA SE REPRODUZIR

Brasil já produz e vende nanotubos de carbono para futuros medicamentos, equipamentos eletrônicos, novos tecidos etc. etc. etc.


www.nossacaixa.com.br


A IMAGEM DO MÊS

Texturas marcianas Imagens convencionais da superfície de Marte sobrepostas a fotos que só registram o espectro de raios infravermelhos, captadas pela sonda Mars Odyssey, revelam um cenário noturno repleto de texturas. As cores sinalizam a temperatura: matizes azulados indicam lugares mais frios, enquanto os avermelhados mostram os mais quentes. Esse tipo de imagem ajuda os cientistas a distinguir áreas cobertas por materiais finos, como poeira e areia, de regiões cravejadas de pedras e rochas. A técnica funciona porque, à noite, a areia esfria rapidamente enquanto as rochas preservam mais o calor.

PESQUISA FAPESP 118 • DEZEMBRO DE 2005 • 3


PeiqeTeCniiisa FAPESP

10

Responsável pelo isolamento do vírus HIV

62 CAPA

no Brasil, Bernardo Galvão lembra da luta para impedir

Nanotubos de carbono produzidos na UFMG já

a disseminação

REPORTAGENS

Especialistas

da Aids

38

prevêem

mais cobrança para o Brasil controlar emissões de poluentes

atuais com HTLV na Bahia

44

CI~NCIA

POLíTICA CIENTíFICA E TECNOLÓGICA

22 AMBIENTE

no país, nos anos 1980, e fala de suas pesquisas

estão à venda para empresas e universidades

24

ENTREVISTA

ECOLOGIA Plano propõe estratégias para salvar da extinção

SAÚDE

as raias e os tubarões da costa brasileira

3ª CONFERÊNCIA DE C,T & I

48

País precisa de parceiros para manter liderança nos combustíveis

ASTRO FíSICA

renováveis

26 AVALIAÇÃO Rankings internacionais evidenciam o desempenho

Uso de laser ajuda a diferenciar os tecidos sadios

das quatro melhores universidades

29

brasileiras

GESTÃO Primeira mulher a comandar a USP, a reitora Suely Vilela quer fortalecer a graduação

4 • DEZEMBRO DE 2005 • PESQUISA FAPESP 118

dos atingidos

40

pelo câncer

BIOLOGIA Equipe de pesquisadores vai à Amazônia para vigiar a entrada de doenças emergentes

Força gravitacional estrutura

de enorme

a 500 milhões

de anos-luz puxa nossa galáxia em sua direção


--~-------~-~-

68

FARMÁCIA Medicamento

34

contra

malária derivado da planta

BIOQuíMICA

artemísia será produzido

Identificação de região do núcleo do Trypanosoma cruzi

totalmente

no Brasil

pode facilitar o combate

HUMANIDADES

FíSICA Quantidade e eficiência das conexões dependem essencialmente

da forma

O que se esconde atrás das capas de revista e das primeiras páginas dos jornais

ao mal de Chagas

52

COMUNICAÇÃO

84

SEÇÕES

3

A IMAGEM DO MÊS .........••.......

HISTÓRIA CARTAS···························6

das células nervosas

CARTA DA EDITORA .....•............

7

MEMÓRIA

8

........•.......•........

TECNOLOGIA ESTRATÉGIAS

72

SClELO NOTíCIAS ........•.........

Pequena empresa

LINHA DE PRODUÇÃO

profissionais em projetos distintos

TELECOMUNICAÇÕES

88

2

Estudo de Moniz Bandeira

RESENHA························9

disseca a formação do império norte-americano

LlVROS··························94

95

CLASSI FICADOS

TEATRO

6

FICÇÃO··························9

Empresa incubada na

Como a modernização

Unicamp domina o processo de fabricação de fibras

do palco brasileiro

Imagem:

nos anos 1940 abriu espaço para a consagração

de um nanotubo

ópticas que amplificam o sinal de luz

3° 56 58

LABORATÓRIO

COMPUTAÇÃO de São Carlos produz inovação reunindo vários

74

16

de grandes atrizes

Capa: Hélio de Almeida Moléculas

Universidade National

de água dentro

de carbono.

M. Denomme.

de Kentuckv,

Science Foundation

(NSF)

PESQUISA FAPESP 118 • DEZEMBRO DE 2005 • 5


CARTAS

Pesqerecnülsa FAPESP

As reportagens de Pesquisa FAPESPretratam a construção do conhecimento que será fundamental para o desenvolvimento do país. Acompanhe essa evolução.

• Números atrasados Preço atual de capa da revista acrescido do valor de postagem. Tel. (11) 3038-1438

• Assinaturas, renovação e mudança de endereço Ligue: (11) 3038-1434 Mande um fax: (11) 3038-1418 Ou envie um e-mail: fapesp@teletarget.com.br

• Opiniões ou sugestões Envie cartas para a redação de Pesquisa FAPESP Rua Pio XI, 1-500 São Paulo, SP 05468-901 pelo fax (11) 3838-4181 ou pelo e-mail: cartas@fapesp.br

• Site da revista No endereço eletrônico www.revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESPna íntegra e um arquivo com todas as edições da revista, incluindo os suplementos especiais. No site também estão disponíveis as reportagens em inglês e espanhol.

• Para anunciar Ligue para:

(11) 3838-4008

o que a ciência brasileira produz você encontra aqui

6 • DEZEMBRO DE 2005 • PESQUISA FAPESP 118

que relataram tal achado na Universidade de Missouri, em 1977.

Histeria

Foi com prazer que li a reportaJOÃo LUIZ COSTA CARDOSO gem ''As máscaras da histeria" (edição Hospital Vital Brazil/lnstituto Butantan 117). No entanto, gostaria de fazer alSão Paulo, SP guns comentários. Na página 44 está dito que a histeria não se enraíza em Resposta da pesquisadora Denise nenhuma causa Tambourgi: orgânica, a verO programa dade, o sintoma de pesquisa envolEMPRESA QUE APóiA histérico não tem ve aprimoramento A PESQUISA BRASILEIRA relação com uma de conhecimencausa orgânica. to e em nenhum Como a histeria momento me coé um comportaloquei como piomento de um ser neira numa desvivo, ela está encoberta. O que foi raizada na fisiolodito é que o nosso gia do organismo. grupo isolou e caNOVARTIS Alguns estudos racterizou as estêm relacionado fingomielinases de Loxosceles inseus sintomas com TroplNet_org alterações do eixo termedia, a princihipotalãmico- hipal espécie causapofisário-adrenal dora de acidentes no Brasil. Forrese com alterações relativas ao sistema serotoninérgico. ter em 1977 isolou e caracterizou Na pagina 42 fala-se de sintoma ineparcialmente esfingomielinase de L. quívoco. Os sintomas histéricos só são reclusa, espécie americana do norte, inequívocos pela falta de corresponAlém disso, a demonstração cabal de dente orgânico. Os sintomas podem que eram as esfingomielinases o prinser de ordem pseudoneurológica, cipal componente tóxico, responsável pseudogenital, dolorosos ou dissociapelos principais efeitos do veneno das tivos, podendo ou não se apresentar aranhas Loxosceles, efetivou-se em na forma de ataques. Também senti função da purificação, caracterização falta de outras abordagens do assunbioquímica, clonagem e expressão to, além da psicanalítica. Afora isto, funcional dessas proteínas, demonsé maravilhoso ver o tema vir à baila. tração da sua ação dermonecrótica e hemolítica dependente de compleAMAURI GOUVEIA JR Unesp - Departamento de Psicologia mento, e foi estabelecida originalBauru, SP mente em nosso grupo e reconhecida internacionalmente, como atestam as Veneno de aranha publicações em revistas científicas de impacto como [. Immunology, BBRC, A revista Pesquisa FAPESP (ediBlood, Immunology, J. Biol. Chem, ção 116) no artigo "O veneno sobre MoI. Immunol, [. Invest. Dermatol, longas pernas dentro de casa" faz entre outras. confusão entre descoberta e aprimoramento. Na verdade, ao informar que a esfingomielinase do veneno da Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br. pelo fax (1~ 3838'4181 aranha foi descoberto no Butantan ou para a rua Pio XI. 1.500. São Paulo. SP. em 1998, Pesquisa FAPESP deixa de CEP 05468-901. As cartas poderão ser resumidas· citar o trabalho de L. J. Forrester et ai., por motivo de espaço e clareza.

lh


Pesquisa MARCOS MACARI VICE-PRESIDENTE

CARTA DA EDITORA

Construções do mundo presente e futuro

CONSELHO SUPERIOR ADILSON AVANSI DE ABREU, CARLOS VOGT, CELSO LAFER, HERMANN WEVER, HORÁCIO LAFER PIVA, HUGO AGUIRRE ARMELIN, JOSÉ ARANA VARELA, MARCOS MACARI, NILSON DIAS VIEIRA JÚNIOR, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAK1 NAKANO CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO RICARDO RENZOBRENTANI DIRETOR PRESIDENTE JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER DIRETOR ADMINISTRATIVO CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ DIRETOR CIENTÍFICO PESQUISA FAPESP CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADORCIENTÍFICO), CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTÔNIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, LUIZ EUGÊNIO ARAÚJO DE MORAES MELLO, PAULA MONTERO, RICARDO RENZOBRENTANI, WAGNER DO AMARAL, WALTER COLLI DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA EDITOR CHEFE NELDSON MARCOI IN EDITORA SÊNIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS DIRETOR OE ARTE HÉLIO DE ALMEIDA EDITORES CARLOS FIORAVANTI (CIÊNCIA}, CARLOS HAAG (HUMANIDADES), CLAUDIA IZIQUE (POLÍTICAC&T), HEITOR SHIMIZU (VERSÃOON-LINE), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA) EDITORES ESPECIAIS FABRÍCIO MARQUES, MARCOS PIVETTA EDITORES ASSISTENTES DINORAH ERENO, RICARDO ZORZETTO CHEFE DE ARTE TÂNIA MARIA DOS SANTOS DIAGRAMAÇÃO JOSÉ ROBERTO MEDDA, MAYUMI OKUYAMA FOTÓGRAFOS EDUARDO CÉSAR, MIGUEL BOYAYAN COLABORADORES ANA LIMA, ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS), BRAZ, EDUARDO GERAQUE (ON-LINE), GONÇALO JÚNIOR, LAURABEATRIZ, MANU MALTEZ, MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO, ROBERTO DE 50UZA CAUSO, ROGÉRIO ANTUNES, SÍRIO J. B. CANÇADO, THIAGOROMERO(ON-ÜNE)E YURI VASCONCELOS ASSINATURAS TELETARGET TEL. (11) 3038-1434 - FAX: (11) 3038-1418 e-maili fapesp@teletarget.com.br APOIO DE MARKETING SINGULAR ARQUITETURA DE MÍDIA singular@sing.com.br PUBLICIDADE TEL; (11)3838-4008 e-mail: publicidade@fapesp.br (PAULA ILIADIS) IMPRESSÃO PLURAL EDITORA E GRÁFICA TIRAGEM; 35.700 EXEMPLARES DISTRIBUIÇÃO CIRCULAÇÃO E ATENDIMENTO AO JORNALEIRO LMX (ALESSANDRA MACHADO) TEL: (11) 3865-4949 atendimento@lmx.com.br GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP RUA PIO XI, Ne 1.500, CEP 05468-901 ALTO DA LAPA - SÃO PAULO - SP TEL. (11) 3838-4000 - FAX: (11) 3838-418» http://www.revistapesquisa.fapesp.br cartas@fapesp.br NÚMEROS ATRASADOS TEL. (11) 3038-1438

Os nanotubos de carbono, peças minúsculas só visíveis por meio de potentes microscópios eletrônicos, tão difíceis de explicar em palavras claras e definições sintéticas, impuseram-se como o indiscutível assunto de capa desta edição de Pesquisa FAPESP, a última de 2005. É que esse - vá lá! - material, uma das grandes conquistas tecnológicas da década de 1990, que deverá fazer parte de novos equipamentos eletrônicos, medicamentos avançados, tecidos tecnológicos e outros 1.001 produtos no futuro, já está sendo produzido nos laboratórios da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e comercializado pela Fundação de Desenvolvimento de Pesquisa (Fundep), da mesma universidade. Entre os compradores já estão instituições de pesquisa e empresas de São Paulo. Os nanotubos, como explica o editor de tecnologia, Marcos de Oliveira, a partir da página 62, medem de 1 a 3 nanômetros de diâmetro e até 1.000 nanômetros de comprimento - para ter uma idéia do que é isso, imagine um fio de seu cabelo dividido longitudinalmente 50 mil vezes, tome uma das partes resultantes, e eis aí algo de dimensões equivalentes ao minúsculo artefato. Com essas dimensões, eles possuem excelente condutividade elétrica e uma resistência mecânica cem vezes maior que a do aço, além de flexibilidade e elasticidade. A reportagem que explica tudo isso é fascinante, mesmo para quem acha difícil adentrar no mundo das novas tecnologias.

Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAflESP É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO SECRETARIA DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA, DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E TURISMO GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Enquanto mal se descortina o mundo futuro que vai sendo desenhado por essas criações tecnológicas, as capas de revistas semanais expostas nas bancas de alguma forma estetizam o mundo contemporâneo, ordenam seu caos real, se esforçam para seduzir, atrair, escapando sempre que possível à velha noção de fato mais importante da se-

mana. É isso que têm demonstrado as mais recentes pesquisas e teses sobre a função das capas de revistas, abordadas pelo editor de humanidades, Carlos Haag, a partir da página 78. No campo da ciência, vale destacar as descobertas recentes sobre as estratégias muito particulares do T. cruzi, agente causador do mal de Chagas, para se reproduzir. Isso é resultado de pesquisa básica, sem nenhuma promessa de ter um uso previsível a curto prazo. Mesmo assim, como explica o editor assistente de ciência Ricardo Zorzetto, a partir da página 34, a descoberta pode criar alternativas futuras para a busca de compostos mais eficientes para combater o protozoário que infecta cerca de 18 milhões de pessoas na América Latina. Ejá que estamos falando de estratégias de controle de doenças, vale a pena ler, a partir da página 10, a entrevista de Bernardo Galvão, personagem-chave do Programa Nacional de Controle da Aids, desde o momento mesmo em que a doença apareceu, na década de 1980. Galvão, um baiano modesto, profundamente comprometido com a melhoria das condições de vida do nosso povo, tem seu nome ligado ao isolamento do HIV no país, aos bons resultados do controle da qualidade do sangue no Brasil, às atuais pesquisas com HTLV e muito mais. Com o auxílio internacional de US$ 1 milhão que recebeu quando era um jovem pesquisador de 32 anos, há 28 anos, ele simplesmente viabilizou a montagem do importante Departamento de Imunologia da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio, entre outras contribuições valiosas para a produção científica nacional. Vale a pena ler. Boa leitura, e belas festas de final de ano. MARILUCE MOURA

- DIRETORA DE REDAçãO

PESQUISA FAPESP 118 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ 7


MEMóRIA

«

"v

^k^f*,

Rotas da eletricidade Primeira usina hidrelétrica brasileira que gerou energia para população foi inaugurada há 116 anos

NELDSON MARCOLIN

8 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP118

energia elétrica tornou-se disponível no Brasil para uso público quase ao mesmo tempo que no exterior. Um conjunto de fatores contribuiu para isso. O engenheiro alemão Werner Siemens inventou o dínamo em 1867, o que possibilitou a utilização industrial da eletricidade. Os meios de transmissão de energia em alta-tensão para distâncias mais longas, os transformadores e alternadores, tiveram desenvolvimento igualmente rápido. Essas conquistas possibilitaram a criação das redes para abastecer vias públicas, fábricas, comércio e residências. Além disso, a aceitação coletiva da eletricidade no século 19 foi rápida. O Brasil acompanhou de perto esse processo


Casa de máquinas de Marmelos-Zero no passado (ò esquerda) e em anos mais recentes: hoje virou museu

em boa parte graças ao interesse do imperador dom Pedro II, reconhecido entusiasta das novidades tecnológicas. A cronologia de alguns fatos mostra bem essa simultaneidade no uso da eletricidade. No mesmo ano em que o norte-americano Thomas Edison inventou a lâmpada elétrica, em 1879, foi inaugurada a iluminação na Estação Central da Estrada de Ferro Dom Pedro II (depois chamada de Central do Brasil), no

Rio de Janeiro. Se Nova York foi a primeira cidade do mundo a ter iluminação pública, em 1882, alimentada por uma termelétrica, já no ano seguinte o então distrito de Campos, no Rio de Janeiro, foi o primeiro do país a desfrutar do mesmo serviço, com uma máquina a vapor. Também em 1883 entrou em operação uma pequena usina no ribeirão do Inferno, afluente do rio Jequitinhonha, em Diamantina (MG). Primeira hidrelétrica instalada no

Brasil, serviu por algum tempo a uma empresa mineradora. Mas o que é considerada de fato a primeira usina hidrelétrica do país e da América Latina a fornecer energia elétrica para iluminação pública, a Marmelos-Zero foi instalada no rio Paraibuna, altura da cachoeira de Marmelos, em Juiz de Fora (MG). No início, em 1886, a idéia era ter iluminação a gás. No entanto, o industrial

Bernardo Mascarenhas e o banqueiro Francisco Batista de Oliveira conseguiram mudar a concessão original para iluminação elétrica. Para isso constituiu-se a Companhia Mineira de Eletricidade, dirigida por Mascarenhas, que começou a construir a usina em fevereiro de 1889 e a inaugurou em 5 de setembro do mesmo ano. No começo a operação era feita com dois grupos de geradores de 125 quilowatts cada, compostos de duas turbinas hidráulicas que acionavam, cada uma, dois alternadores monofásicos, sob tensão de 1.000 volts e freqüência de 60 hertz. Cento e oitenta lâmpadas incandescentes, de 32 velas, a 50 volts, compunham o sistema de iluminação pública de Juiz de Fora naquele ano. Dois anos depois, além do uso público, foram instaladas 700 lâmpadas para utilização doméstica. Nos anos seguintes um terceiro grupo gerador juntou-se aos já em funcionamento e permitiu a modernização da indústria de toda a região, especialmente a têxtil. Em 1896 a usina MarmelosZero foi desativada e outras hidrelétricas tomaram seu lugar para aproveitar melhor o potencial da cachoeira. Mais de cem anos depois, já tombada pelo Patrimônio Histórico, a casa de força da usina foi restaurada pela Companhia Energética de Minas Gerais e hoje abriga o Museu Marmelos-Zero, a cargo da Universidade Federal de Juiz de Fora.

PESQUISA FAPESP118 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ 9


ENTREVISTA: BERNARDO GALVAO

A batalha contra a Aids e outras lutas MARILUCE MOURA

ealizado em Salvador de 22 a 25 de novembro último, o 16° Encontro Nacional de Virologia foi presidido por Bernardo Galvão Castro Filho, um pesquisador brasileiro muito especial. Galvão, como o chamam todos, tinha 32 anos, voltara havia pouco de Genebra, com o doutorado em imunologia concluído sob a orientação do professor Paul Henri Lambert, quando recebeu um granida Organização Mundial da Saúde (OMS) para implantar em Salvador, na Bahia, um Centro de Imunologia Parasitária. Valor desse auxílio: US$ 1 milhão. Era dinheiro pra lá de considerável para um jovem pesquisador brasileiro, ainda mais em 1977, na Bahia. As dificuldades encontradas em sua terra para implantar o sonhado centro terminaram levando Galvão em dezembro do mesmo ano para a Fundação Oswaldo Cruz, a respeitada Fiocruz, no Rio de Janeiro. Ali, com o belo montante do Programa de Pesquisas em Doenças Tropicais (TDR, na sigla em inglês), ele deu início à história do Departamento de Imunologia da instituição, que logo se transformaria num pólo de atração de jovens e talentosos pesquisadores e, poucos anos depois, teria papel decisivo no controle da Aids no país. A equipe sob o comando de Galvão isolou o vírus 10 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 118

HIV no Brasil, trabalhou contra sua difusão, definindo as bases para a triagem de sangue e para seu controle de qualidade, entre outras importantes contribuições tanto para a pesquisa científica quanto para a saúde pública no país. Mas Galvão sempre procura minimizar seu papel nos feitos desse departamento ou nos trabalhos mais recentes no centro da Fiocruz em Salvador, para onde ele retornou em 1987 e hoje, aos 60 anos, vê-se a braços com pesquisas do vírus HTLV, novos programas de saúde pública e sempre um sem-número de projetos de forte compromisso social. Não bastasse isso Esse baiano cordial, generoso, simultaneamente cristão e comunista, nasceu no elegante Corredor da Vitória, não por ser filho de uma família rica de Salvador, mas porque seu pai, professor, educador toda a vida, mantinha um pensionato para jovens do interior que iam estudar na capital, no famoso Colégio Sofia Costa Pinto, localizado naquela rua. O pensionato era também a casa da família de Galvão, que achava absolutamente normal partilhar a mesa de almoço diária com cerca de 40 pessoas. Casado com Aninha há 35 anos, pai de Karina e Verena, avô de Thiago e Bernardo, Galvão contou muitas e deliciosas histórias na longa entrevista que concedeu para Pesquisa FAPESP. Abaixo, seus principais trechos. ■ Eu gostaria que você falasse, sem falsa modéstia, de seu papel na estratégia do

Programa Nacional de Controle da Aids, quando ele começou lá pelos anos 1980. — Acho que a contribuição mais importante do grupo que eu liderava na Fiocruz foi implantar as bases da triagem de sangue para HIV no Brasil. E também implantar as bases do controle de qualidade de sangue e do controle de qualidade dos laboratórios. A Aids foi e é um mal muito grande, mas no bojo desse mal muitas coisas importantes aconteceram. Porque como a Aids é uma doença transmitida pelo sangue, e como a bolsa de sangue fornecida por um doador infectado pode infectar várias pessoas, se não houvesse o controle da transfusão sangüínea, se não houvesse uma triagem do sangue desde aquela época, penso que a dimensão da doença no país teria sido muito maior. Por isso acredito que, dentro do que fizemos, a contribuição mais importante foi ter iniciado essa triagem em 1985. A doença foi reconhecida como uma síndrome em 1981. ■ Isto é, naquele período em que Robert Gallo e Luc Montagnier isolaram o vírus? — Não, isso foi depois. A síndrome foi notificada, divulgada e reconhecida como síndrome em 1980/1981, graças à vigilância epidemiológica dos Estados Unidos, que é muito boa, embora o sistema de saúde, de uma maneira geral, não seja. Então, o que aconteceu? Expliquei isso num artigo que o Ênio Candotti, editor da revista Ciência Hoje, me pediu para escrever. Nos reunimos, eu, Hélio Pereira e Euclides Castilho, e es-


crevemos um artigo sobre a Aids. Mas quem colocou tudo numa linguagem fácil e acessível foi César Benjamim, editor associado. De um lado tinha essa síndrome que o CDC, de Atlanta (Center for Desease Control and Prevention), e outros pesquisadores começaram a notar e a verificar que existia ali alguma coisa diferente. O que se via eram adultos jovens, antes sadios, sem nada que indicasse uma imunodeficiência inata, e que inesperadamente apresentavam uma imunodeficiência. Nos Estados Unidos, eles viram de início cinco ou seis casos de jovens que apresentavam de repente o que a gente chama de infecções oportunistas, provocadas por patógenos que normalmente não causam doenças ao homem. É preciso que o organismo esteja muito debilitado para que se instalem. Bem, foi constatado em Los Angeles, logo depois em Nova York, que eles tinham essas doenças, pneumonia por Pneumocystis carinii. E aí esses casos foram relatados para o CDC, que percebeu algumas coisas em comum a todos eles: a imunodeficiência, uma baixa de linfócitos acentuadíssima, e o que chamava a atenção era o fato de ocorrerem em homens, todos homossexuais. Isso foi se espalhando por todos os Estados Unidos, depois por toda a Europa, pelo Brasil e por outros locais... Em 1982, estávamos dirigindo o Departamento de Imunologia da Fiocruz, que resultará, como já lhe contei, daquele projeto de TDR. E como essa síndrome se caracterizava por uma deficiência imunológica gravíssima, tínhamos a ver com ela. Nesse meio tempo, eu e Cláudio Ribeiro, um colega do departamento, fomos chamados por um pai desesperado, que estava com o filho com Aids no hospital, lá no Rio. E fomos ver esse rapaz. Era muito jovem, uns 26, 27 anos, e estava se ultimando, o que nos deixou muito impressionados, muito mobilizados. Não era preciso naquele momento ser visionário para imaginar que aquela doença ia se espalhar pelo mundo todo, ia se espalhar no Brasil, que tinha características de comportamento e de cultura que permitiam isso. Então fizemos um projeto que foi imediatamente aprovado pelo CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] para estudar casos de Aids no Brasil. Queríamos verificar se as alterações imunológicas encontradas nos pacientes brasiPESQUISAFAPESP118 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ 11


leiros eram semelhantes às encontradas em pacientes de outros países. *• ■ O projeto foi feito logo em 1983? — É, 1983. E, para isso, precisávamos do sangue de pessoas infectadas para poder avaliar vários parâmetros como contagem de linfócitos. Esse sangue vinha para o laboratório, e era processado. Então houve uma reação muito forte de pesquisadores que achavam que não devíamos trabalhar com esse material biológico. Enfim, era um problema de receio, por falta de biossegurança adequada. Saí da minha sala para transformá-la num laboratório de pesquisa de Aids, porque tínhamos que cumprir a missão principal da Fundação Osvaldo Cruz, que é fazer pesquisa e ensino, não importa em que, sempre que seja preciso responder a questões de saúde pública. Houve uma demanda e nós tínhamos que dar uma resposta. ■ A resistência ocorria entre pesquisadores da própria fundação? — Dentro do próprio departamento onde as coisas se passavam. Porque tínhamos um grupo de jovens que aceitavam essa pesquisa e seus desafios, mas na realidade quase todo mundo tinha medo de manipular materiais biológicos sem a devida biossegurança. Em 1983 foi feito o primeiro relato de identificação do vírus. Quem isolou o vírus, como você sabe, foi uma mulher, Françoise BarréSinoussi, que teremos o prazer de receber para fazer a conferência de abertura no Encontro de Virologia. Ela faz parte do grupo de Luc Montagnier e foi a primeira autora do primeiro artigo sobre a identificação do vírus, publicado na revista Science. Quando saiu o artigo, Robert Gallo achou que não era justo aquilo com ele... ■ Ele se sentiu "bypassado". — Não sei nem se "bypassado", ele achava que não era justo porque realmente contribuiu muito para o isolamento do vírus. Só que não conseguiu isolar primeiro. Os dois grupos, francês e americano, contribuíram igualmente. ■ O trabalho tinha que ser assinado pelos dois, na verdade. — Lógico. O grande erro de Gallo foi ter negado essa possibilidade. Devia ter aceito. As coisas acontecem assim. Se você der uma olhada aqui num trabalho 12 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 118

que eu fiz para a Academia de Medicina [ Origem do HTLV-I em Salvador, Bahia: possível introdução pós-colombiana], sobre outro retrovírus, vai ver que desde 1908 já havia estudos sobre os retrovírus, sem se saber que eram retrovírus. E, por exemplo, Peyton Rous demonstrou em 1911 que sarcomas aviários eram causados por retrovírus, o que dois pesquisadores japoneses confirmaram três anos depois. Mas a importância da descoberta de Peyton Rous só foi reconhecida 55 anos depois, quando ele foi agraciado, em 1966, com o Prêmio Nobel de Medicina. ■ O que você quer dizer é que até o isolamento e a identificação do vírus da Aids, Gallo contribuiu muito para que isso se tornasse possível. — Quero dizer que o caso dos retrovírus é uma demonstração clara de como a pesquisa básica vai contribuindo aos poucos, sem nenhuma visibilidade para o grande público, para uma descoberta importante. A visibilidade se dá quando acontece um problema desse tipo da Aids, que chama a atenção. Na história dos retrovírus temos vários pesquisadores que ganharam o Prêmio Nobel. Em 1970, por exemplo, Howard Temin e David Baltimore identificaram em neoplasias causadas por retrovírus a enzima transcriptase reversa, que é o que caracteriza o retrovírus, e ganharam o Nobel de Medicina em 1975. Gallo contribuiu com muita coisa, só que ele não foi o primeiro a isolar o HIV. O grupo dele isolou um vírus em 1980, que era um HTLV, parente próximo do HIV, mas com várias características diferentes. Ambos são transmitidos nos seres humanos da mesma maneira, mas com intensidades diferentes. Enquanto o HIV causa uma doença devastadora, o HTLV, pelo menos é o que se sabe até agora, só provoca desenvolvimento de doença em 5% dos indivíduos infectados. O HIV é uma pandemia, ocorre no mundo todo, e o HTLV ocorre em determinadas regiões geográficas, e, com exceção do Japão, só nos países pobres, [ver Pesquisa FAPESP, edição 114, de agosto de 2005]. Curioso é que na década de 1970 houve muito trabalho sobre retrovírus, quando Gallo fez muitas contribuições, e em 1980 ocorreu um certo desestímulo, até que surgiu o HIV O grupo de Luc Montagnier identificou o vírus em 1983, e em abril de 1984 Gallo também iden-

tificou. Houve, então, aquela grande disputa sobre quem efetivamente identificara primeiro o vírus. ■ E quando vocês fizeram o isolamento aqui? — Bem antes disso, antes de 1985, dois pesquisadores, conceituadíssimos no mundo da virologia, um casal fantástico — ela inglesa, chamada Margueritte Pereira, Peggy, e ele, Hélio Pereira, um brasileiro naturalizado inglês -, se interessaram pelo trabalho com Aids que fazíamos aqui. Ela foi diretora do laboratório de saúde pública de Londres, ele foi chefe de departamento em universidades inglesas, e vinham muito ao Brasil. Ficamos muito amigos, graças a seu interesse por nosso trabalho. Eles sabiam a dimensão que tudo isso ia ter. É quando em abril de 1985 eles entram no laboratório, me procuram, com duas garrafinhas de cultura, que eram as células infectadas pelo HIV, que Gallo tinha dado a eles para que pudessem trazer para o Brasil. E aí, a partir desse momento, tudo mudou. Nosso trabalho mudou de patamar, mudou de objetivo, porque começamos a tentar instalar uma técnica de diagnóstico sorológico que possibilitasse fazer trabalhos de epidemiologia, saber quais grupos eram atingidos etc. e começar a criar os kits para diagnóstico. Então, naquela época, tínhamos tudo, estávamos num centro de referência que tinha todos os equipamentos, as tecnologias todas modernas, porque foi aplicado muito recurso para estudar imunologia parasitária. Demonstrava-se mais uma vez que, quando se aplica em ciência básica, mais cedo ou mais tarde se pode ter uma resposta. Pudemos fazer o que fizemos porque tínhamos o domínio daquela metodologia, da técnica. ■ Mas quando os dois frasquinhos foram trazidos pelo Hélio Pereira... — E Peggy, hein! Não podemos esquecer dela. Começamos a expandir, fazer cultura. A gente podia fazer cultura de célula.

f

■ E aí vocês isolaram o vírus também aqui. — Não nesse ano, ainda. Em 1985 focamos nossa atenção em coisas mais prioritárias, mais urgentes, que era criar as bases de triagem nos bancos de sangue. Com isso em mente, começamos a tentar desenvolver uma metodologia que


permitisse detectar os doadores que eram portadores de HIV. Por quê? Porque o HIV causa uma infecção crônica. Os indivíduos são sadios, sem teste não se vê que estão infectados, até que apresentem Aids, uma síndrome fácil de diagnosticar. Era como se fosse um iceberg, cuja ponta eram os indivíduos com Aids, e a grande massa de gelo submersa eram os indivíduos infectados, que infelizmente não sabiam e doavam sangue, coisa que muitos fazem para ajudar o próximo. E assim disseminavam o vírus. Esse era o grande problema naquela época: sem triagem do sangue, essa infecção ia se alastrar rapidamente. Começamos a tentar desenvolver uma metodologia, na verdade nada de original, porque os testes já existiam, devíamos apenas adaptar para o HIV a metodologia que já dominávamos para Chagas e leishmania. Então a partir da cultura de vírus preparávamos os antígenos virais, e adaptávamos as técnicas. E aí passamos a tentar fazer o Elisa, que é mais difícil. O Brasil tinha muita experiência numa técnica chamada imunofluorescência, extremamente trabalhosa e subjetiva. Mas era o que tínhamos no momento, todos os bancos de sangue estavam equipados para fazer fluorescência, porque fazia para Chagas e outros agentes infecciosos. Aí é que veio a grande idéia de que era mais fácil para a gente produzir kits de imunofluorescência. O problema é que começamos a fazer isso em escala de produção e transformamos o laboratório de pesquisa numa fábrica. Uma fábrica muito caseira, com um grupo de trabalho muito jovem, trabalhando por turnos de duas horas. Nesse momento, meu escritório passara a ser no corredor. ■ Com essas técnicas, o resultado falso positivo não era um grande problema? — Era, porque um dos princípios do diagnóstico sorológico é que, feita a primeira reação por algum método, o resultado tem que ser confirmado por métodos de princípio e/ou antígeno diferente. A rigor, a questão envolvia dois problemas: um, era a triagem do banco de sangue, em nível de saúde pública, em que se buscava proteger uma comunidade de ser infectada. E aí qualquer sinal de um resultado positivo tinha que ser levado em conta. Mas um outro problema se apresentava, mais individual, mas que não deixava de ser um problema também nosso, porque era preciso avisar al-

A Aids trouxe coisas terríveis, mas forçou a sociedade a se mobilizar como jamais ocorrera

guém se o primeiro resultado fora positivo, era preciso confirmar, porque não se ia dizer a alguém que estava infectado pelo HIV quando não se tinha certeza. Não se pode destruir a vida do outro. Então tínhamos que ter testes confirmatórios. Foi quando a Organização Mundial da Saúde [OMS] fez uma pressão muito grande e conseguiu inclusive importar testes Elisa para o Brasil. A técnica de fluorescência resolvia um pouco o problema brasileiro, mas era muito trabalhosa. Você pode imaginar? Eram milhares de bolsas para testar de forma muito artesanal, muito subjetiva. O problema do Elisa era seu custo proibitivo, e o que aconteceu então foi que a Organização Mundial da Saúde conseguiu comprar grandes quantidades do teste por um preço muito menor e distribuílos, claro que com uma contribuição dos vários países. A partir desse momento esses testes foram implantados para os bancos de sangue. Mas o teste confirmatório mais amplamente utilizado no mundo, o Westernblot, continuava apresentando o mesmo problema: era caríssimo para importar. E daí o Brasil e o Estado da Califórnia, que tinham experiência de uso da imunofluorescência

para o mesmo fim, passaram a utilizá-la, o que foi muito combatido nos grandes fóruns internacionais, na Organização Mundial da Saúde etc. Mas até hoje o Brasil a utiliza. Num determinado momento a produção se tornou tão grande que houve uma decisão de transferi-la para Bio-Manguinhos, que passaria a cuidar disso em escala industrial. E BioManguinhos ainda distribui a imunofluorescência para os bancos de sangue da rede pública. Assinamos um termo de que não podíamos em nenhum momento empregar aquele material para fins lucrativos. Só podíamos utilizá-las na área da saúde pública. O fato é que acho que a Aids trouxe coisas horrorosas, terríveis, devastadoras, mas ao mesmo tempo forçou a sociedade a se organizar para combatê-la. E, junto com ela, outros problemas passaram a ser mais controlados, porque as vias de transmissão são as mesmas. Foi a partir da Aids que uma lei regulamentou toda essa questão das transfusões, doações, veio o controle da hepatite etc. Acho isso extremamente interessante, uma mobilização de toda a sociedade como nunca antes acontecera. Hoje se diz que o Brasil tem um programa exemplar de controle e tratamento da Aids. ■ No entanto, tenho dúvidas se será possível mantê-lo a longo prazo devido ao custo elevado. — Por exemplo, por não produzirmos aqui determinados insumos, não sei se será possível manter a distribuição gratuita a longo prazo. Mas foi um acontecimento marcante a mobilização em torno da Aids, e não foi o governo que se antecipou, mas o cidadão que exigiu os seus direitos, mostrando a força que isso tem quando a sociedade está organizada. Por que outras doenças graves não tiveram essa repercussão tão grande? Na minha interpretação, o que ocorreu é que no Ocidente os grupos atingidos pela Aids já eram muito bem organizados por outras razões. ■ Você está falando dos homossexuais, basicamente. — Sim, eles já tinham uma prática de organização, principalmente nos Estados Unidos, e nesse caso se juntaram para exigir seus direitos. , ■ Mas a qualidade do programa no Brasil tem a ver também com a sua condução, PESQUISA FAPESP 118 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ 13


com a boa visão de saúde pública dos pesquisadores envolvidos - e aí eu estou falando também da Fiocruz, de seu grupo no Laboratório de Imunologia. — Sem dúvida, mas os pesquisadores são parte da sociedade. E quando disse que a sociedade se organizou em relação ao problema da Aids vale lembrar que ele atingiu, no início da epidemia, principalmente pessoas de classe média alta, intelectuais, artistas, formadores de opinião e grupos extremamente organizados, com poder de mobilização. Em paralelo, há mesmo essa questão extremamente importante do papel da Fiocruz, sua missão maior, que é resolver problemas de saúde pública. Não importa o que você faça dentro da Fiocruz, é sempre para responder a questões de saúde pública. Então, o fato de ter esses pesquisadores já motivados por esse compromisso social ajuda. Mas havia também todo o ambiente internacional favorável, porque a Aids se apresentou logo como um problema mundial seriíssimo, e houve recursos naquele momento de instituições externas, como o Banco Mundial, o que proporcionou a implantação do programa com gente treinada em vários níveis, não só pesquisadores da área básica, mas epidemiologistas e outros especialistas. Quero lembrar aqui que a pessoa que realmente iniciou e escreveu todo esse projeto brasileiro para o Banco Mundial foi Lair Guerra de Macedo, uma nordestina, piauiense, que ficou seis ou sete anos no CDC e que, voltando ao Brasil, em 1985, veio muito bem treinada para essas grandes batalhas epidemiológicas, com a missão de montar o programa. E foi ela, na realidade, quem organizou tudo isso. E conseguiu. Infelizmente perdas ocorreram também, muitas, durante esse processo. Por exemplo, Hélio e Peggy Pereira tiveram um acidente de carro, ela faleceu em 1987, ele faleceu depois. Lair teve um acidente de carro, ficou numa situação bastante difícil para voltar a trabalhar. Trabalhamos muito juntos. Participei da primeira comissão de Aids do Ministério da Saúde, juntamente com Hebert de Souza, Betinho, que era extremamente ativa e diversificada. Nós, os pesquisadores, os "cientistas" normalmente encerrados em suas torres de marfim, com conhecimento e raciocínio extremamente sofisticados, refinados, de repente começávamos a conviver com segmentos a que não estávamos habituados. Foi muito interessante. Luís Roberto Castelo IA ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 118

Branco gostava de lembrar que uma vez eu voltava da reunião da comissão, em Brasília, e a minha companheira de viagem era a representante das prostitutas do Rio de Janeiro. Voltávamos juntos, no avião, conversando muito amistosamente, ela uma senhora já, aposentada. Então foi muito interessante essa convivência, você via os grupos atingidos se colocarem dentro das políticas, como alvos, e eles mesmos eram participantes da elaboração, da implantação dessa política. Um dos grandes problemas que ainda então se apresentava era o da autonomia nacional para o desenvolvimento de testes. A partir de 1983 e até 1985 todos os países desenvolvidos já tinham isolado seus vírus. Recebemos muitas propostas de colaboração, que na verdade eram unilaterais. Nós gostamos muito da colaboração internacional, mas não do tipo proposto, em que um grupo de fora viria, coletaria amostras de sangue no país, isolariam o vírus e continuaríamos sem competência para isso. Poderíamos sim, desse jeito, ter isolado o vírus muito mais cedo, mas tomamos outro caminho. ■ Qual? — Tomamos a decisão de que era melhor esperar para adquirir autonomia nacional. O grande problema de isolar o vírus não era falta de expertise ou de conhecimento. Qualquer laboratório de virologia com cultura de células podia isolar. O problema era identificar o vírus, precisava fazer detecção por transcriptase reversa. Aí, junto com um grupo de jovens, resolvemos isolar o vírus. ■ Na verdade era você à frente, com um grupo de jovens. É só por modéstia que você diz de outra forma. — Não é bem assim. Acho que era o grupo todo, posso ter sido o líder mais velho... Nós tínhamos tudo para isolar, e conseguimos. Isso teve uma repercussão enorme, o laboratório se transformou totalmente. Éramos diariamente solicitados pela mídia, mas tínhamos que continuar com nossos afazeres. ■ E você estava na televisão quase todo dia. — Isso era um problema gravíssimo para nós, porque não nos conformávamos com as notícias truncadas. Mas foi um momento muito interessante na Fiocruz porque, como os jornalistas nos procuravam muito, brigávamos muito, mas ao mesmo tempo nos gostávamos

muito. E terminou surgindo uma idéia de fazer cursos. Os pesquisadores se mobilizaram para organizar cursos de biologia molecular para os jornalistas, e de tudo isso ficaram muitos relacionamentos excelentes. ■ Isso foi em 1986, 1987? — Em 1987, creio. Acho que alguma coisa ficou desse processo. Hoje sai muito mais notícias dessa área na imprensa. ■ Qual é a data de isolamento do vírus? — Posso dizer a data da publicação do artigo: maio de 1987. Era um isolamento só, mas teve uma repercussão impressionante. Lembro que fiz uma entrevista coletiva, eu era jovem naquela época, não estava acostumado, ficava muito tenso, mas conseguia me virar. E era muito engraçado, porque [Sérgio] Arouca estava conosco e dizia "como você tem paciência!" Porque num determinado momento, uma daquelas repórteres da televisão me perguntou assim: "Você pode pegar aí o vírus com a pinça?" E passamos a ser reconhecidos na rua... isso foi difícil. ■ Vocês viraram estrelas. — Eu lembro que uma vez estava com minha mulher numa fila de cinema e veio uma pessoa me pedir um autógrafo. Aquilo para mim foi... eu fiquei arrasado, mortificado. Falei, mas eu não sou artista, como é que vou fazer isso? Foi um momento difícil, mas muito rico. ■ Vocês aprenderam a lidar com muitos públicos. — É... E lembro que em 1987, com essa coisa toda, a Fundação Banco do Brasil nos procurou para fazer um projeto. Fizemos, e o Banco do Brasil, acho que para aprová-lo rapidamente, constituiu um comitê. Nesse comitê tinha um médico que votou contra o projeto. Estávamos propondo isolar mais vírus, porque certos vírus variam de região para região, e precisávamos fazer uma caracterização, pensando inclusive numa vacina futura específica para o Brasil. Isso era importantíssimo naquela época. A própria fundação não aceitou a negativa do médico e exigiu que eu fosse conversar com ele. Ficamos uma tarde inteira no consultório dele, discutindo a importância do projeto. Ele argumentava que isso já tinha sido feito nos Estados Unidos e que não era importante. Era na verdade puro preconceito. J


■ Que horror! — Era um horror. E aí, mesmo reconhecendo que o projeto era importante, ele deu baixa prioridade. O projeto ficou engavetado no Banco do Brasil. E sabe quem finalmente tirou o projeto da gaveta? ■ Quem? — D. Eugênio Sales. Existia um programa do Banco da Previdência na região do Mangue [zona tradicional de prostituição bem próxima ao centro do Rio de Janeiro] para prostitutas, travestis, mendigos. Dois médicos que trabalhavam no programa me procuraram e começamos a trabalhar juntos. Daí resultou um estudo de prevalência de HIV, sífilis e hepatite em mendigos doadores de sangue. Naquela época a doação era paga em determinados bancos de sangue privados, e os mendigos doavam para ter alguma grana para comer. Bem, d. Eugênio sabia da nossa existência, então ele me convidou e eu fui encontrá-lo. Passamos uma tarde inteira conversando, falei do veto do projeto no Banco do Brasil e ele telefonou para o presidente do banco, Camilo Calazans. ■ É o poder da Igreja levando ao encontro ciência e religião. — Ele perguntou por que o projeto estava engavetado, disse que era extremamente importante e tal, e o projeto foi desengavetado. ■ Vamos fazer um retrocesso. Toda essa sua história na Fiocruz começa com você, um jovem pesquisador, montando o Departamento de Imunologia da instituição, com uma verba disponível de nada menos que US$ 1 milhão, que na época valia bem mais que o milhão de hoje. Vamos falar disso. — Foi uma experiência desafiadora, muito enriquecedora. O que aconteceu é que esse grant do programa de Pesquisas em Doenças Tropicais da OMS permitiu que montássemos uma infraestrutura e, com essa estrutura montada, o Departamento de Imunologia se tornou um pólo de atração para jovens, recém-doutores que estavam voltando ao país. Num discurso na solenidade pelos 25 anos do departamento, em que me homenagearam, Cláudio Ribeiro disse o seguinte: "Quando você recebeu a verba da OMS, um colega da comunidade brasileira de imunologistas fez

Para mim é muito importante que o outro cresça, porque acredito na difusão do conhecimento

um comentário que você não gostou (aliás, nem nós): "Você vai ter que prestar contas à sociedade desse dinheiro, Galvão'. Estamos aqui comemorando 25 anos do departamento, que você criou, e homenageando você, acho que são relatório e prestação de contas que falam por si sós". Lógico que não fui eu que criei, foi um grupo. O que eu queria dizer é que foi uma coisa muito desafiadora, mas que talvez tenha me permitido algum sucesso. Minha mulher define bem essa coisa, é que eu sou um animador, gosto de gente junto de mim. Gosto de uma frase de Norberto Odebrecht: ele diz que o verdadeiro líder tem que se anular em prol do empreendimento. É verdade que às vezes há conflitos, você solta idéias e as pessoas se apropriam, há ciúmes, quando você reconhece que aquela idéia que inicialmente foi sua não é mais... Mas por outro lado isso é uma coisa muito salutar. Para mim é muito importante que o outro cresça, porque eu acredito na difusão do conhecimento e na sedimentação de grupos e de indivíduos trabalhando. ■ Quantos discípulos você ajudou a transformar em cientistas? — Não tenho discípulos, tenho colegas que trabalharam ou trabalham comigo. No Departamento de Imunologia foram umas 20 pessoas. Orientei teses de mestrado, doutorado... E uma das coisas que me deixou muito feliz é que, quando resolvi voltar para Salvador, vi que o departamento tinha muita gente brilhante para tocá-lo. ■ Então você voltou para Salvador em 1987, no auge de seu trabalho na Fiocruz do Rio.

Vfefel

— Sim, eu tinha naquele momento uma infra-estrutura muito boa, mas voltamos para mais um desafio. Achávamos na ocasião que Salvador, devido às características sociodemográficas muito semelhantes às de cidades africanas, com 80% mais ou menos de afrodescendentes em sua população, teria um padrão de disseminação da doença semelhante ao da África, onde já foi demonstrado que a infecção pelo HIV tinha começado há muitos anos. Também naquele momento Arouca, que era presidente da Fiocruz, tinha um interesse muito grande em descentralizar as ações da fundação e queria reforçar o centro na Bahia. Mas a progressão da doença não se deu como então pensávamos. ■ E aí seu desafio não existia mais. — Mas tivemos a surpresa de verificar que Salvador é a cidade brasileira que tem a maior prevalência de HTLV no Brasil. Então hoje temos muitos trabalhos com esse vírus, que atinge pessoas carentes, de baixa escolaridade, tem uma transmissão predominantemente heterossexual e atinge mais as mulheres. Antigamente, duas doenças estavam associadas ao HTLV: leucemia e uma doença neurológica que incapacita as pessoas para andar e termina colocando-as em cadeiras de rodas. Hoje percebemos que a infecção do HTLV é sistêmica e atinge muitos outros órgãos, como os pulmões, a visão, as articulações etc. Hoje temos um Centro na Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública da Fundação para Desenvolvimento da Ciência, resultante de um convênio com a Fiocruz, que atende os indivíduos infectados, de maneira integrada nos aspectos biopsicossociais. • PESQUISA FAPESP 118 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ 15


I POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

■ Clima de cooperação Autoridades de sete países sul-americanos - Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai, Bolívia, Chile e Venezuela formaram uma comissão científica incumbida de criar, já no próximo ano, o Centro Regional de Estudos e Pesquisas em Meteorologia, com sede em Montevidéu. A decisão foi anunciada numa reunião de ministros da Educação dessas nações realizada em novembro na capital do Uruguai. O representante brasileiro na comissão é o professor de Física Osvaldo Leal de Moraes, da Universidade Federal de Santa Maria. O objetivo do novo centro é disseminar o conhecimento em meteorologia gerado por pesquisadores dos países membros, promover parcerias, formar recursos humanos e elaborar projetos multinacionais que ajudem a lidar com os riscos climáticos na região. "O estudo do clima e o manejo dos riscos associados a sua variabilidade são de vital importância para os países do Mercosul, onde a produção agropecuária gera um porcentual significativo das exportações e a matriz energética tem um forte componente hidroelétrico", justificou o

Cérebros em fuga Um estudo divulgado pelo Banco Mundial mostra que os países mais pobres do mundo são proporcionalmente os mais prejudicados com a evasão de cérebros para nações ricas. Segundo a pesquisa, entre 25% e 50% da força de trabalho de nível universitário de países como Moçambique, Uganda e El Salvador vive no exterior, em alguma das 30 nações desenvol-

documento que lançou as bases para a instalação do centro. Rafael Terra, pesquisador uruguaio que participou da elaboração do documento, disse ao site SciDev.Net que o grande objetivo da entida-

16 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP118

vidas que pertencem à Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). O porcentual chega a 80% na Jamaica e no Haiti. Já em países do Terceiro Mundo mais desenvolvidos, como índia, China, Indonésia e Brasil, a evasão não ultrapassa 5%, ainda assim uma sangria importante. O estudo foi feito com base em recenseamentos

de é a criação de programas de pós-graduação em meteorologia. A administração será feita por um conselho superior integrado por representantes de cada país membro. •

dos 30 países da OCDE. Para Devesh Kapur, professor da Universidade do Texas e autor de um do livro sobre a fuga de cérebros, a evasão nos países muito pobres cria um círculo vicioso que perpetua a miséria. "A perda não é só de profissionais, mas de um pedaço considerável da classe média", disse Kapur ao jornal The New York Times. •

■ Bolsas em dobro no Chile O Chile vai dobrar o número de bolsas de pós-doutoramento financiadas pelo governo. Foram aprovados 52 projetos, que correspondem a 44% das propostas apresentadas ao Concurso Nacional de Pós-Doutorado de 2006. No ano passado, o concurso patrocinou 21 iniciativas. As propostas abarcam áreas como microbiologia, ciências ambientais, biologia celular, oceanografia, astronomia e química de recursos naturais. O concurso busca estimular a produtividade e a liderança científica dos postulantes favorecidos ao


E

■ •V • • • «

conceder uma bolsa que lhes permite dedicar de maneira exclusiva à pesquisa por dois anos. O Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Fondecyt) vai destinar US$ 1,15 milhão (o equivalente a R$ 2,5 milhões) para o primeiro ano de execução dos projetos. O crescimento do número de propostas e a sua qualidade pesaram bastante na decisão de ampliar as bolsas. "Queremos ampliar as oportunidades para nossos jovens talentos financiando bolsas de pós-doutoramento" , disse ao site SciDev.Net Luis Gutiérrez, subdiretor de Fondecyt. A produção científica chilena só é superada, na América Latina, pela do Brasil e do México. Mas supera os dois países quando se analisa a produção per capita, com 70 artigos publicados para cada 1 milhão de habitantes. No Brasil, a proporção é de 39 artigos por milhão de pessoas. •

■ Biotecnologia une a Ásia Será sediado na índia um centro de treinamento em biotecnologia destinado a pesquisadores de toda a Ásia. A iniciativa, que vai custar US$ 7 milhões, será

bancada por vários países da região e pela Unesco, o órgão das Nações Unidas para educação, ciência e cultura. Ao promover redes de pesquisa unindo diferentes países, o centro busca estimular parcerias e desenvolver centros regionais. O centro terá um banco de dados com informações sobre a pesquisa em biotecnologia em todo o continente. "Países como a índia, a China e a Malásia exibem competência crescente em biotecnologia aplicada à agricultura e à saúde", disse o paquistanês Anwar Nasim, presidente da Federação das Associações de Biotecnologia da Ásia. Ele admite que a forte competição tecnológica travada entre essas nações pode ser uma barreira para criar parcerias em pesquisas de ponta, mas acha que há espaço para colaborações. "Essas nações só terão a ganhar compartilhando experiências e espero que sejam generosas com os vizinhos que estão atrás na corrida da biotecnologia", afirmou. Nasim diz que a Unesco fará esforços diplomáticos para remover as barreiras que impedem o trabalho conjunto de cientistas da índia e do Paquistão, vizinhos que se ameaçam com armas atômicas. •

■ Combate à malária em três fronts Numa das maiores doações privadas de que já se teve notícia, o fundador da Microsoft, Bill Gates, anunciou a destinação de US$ 258,3 milhões (cerca de R$ 570 milhões) para pesquisa sobre a malária. A verba, distribuída pela fundação filantrópica Bill e Melinda Gates, será dividida em três partes. A maior delas, de US$ 107,6 milhões, caberá aos estágios finais do desenvolvimento de

uma vacina contra a malária, que vem sendo testada em Moçambique pelo médico espanhol Pedro Alonso. Outros US$ 100 milhões serão destinados ao projeto Medicines for Malária Venture (MMV), que pesquisa novos medicamentos contra a doença. "Nosso objetivo é produzir uma variedade de remédios que custam U$ 1 ou menos por pessoa tratada", afirmou Chris Hentschel, do MMV. Os restantes US$ 50,7 milhões serão investidos na Malária R&D Alliance, que desenvolve novos inseticidas e métodos de controle de mosquitos. Tais pesquisas estão a cargo da Escola Britânica de Medicina Tropical de Liverpool. "Milhões de crianças já morreram de malária porque elas não têm a proteção de uma rede ao redor da cama ou porque não receberam o tratamento adequado", justificou Bill Gates. Ele advertiu, contudo, que sua doação terá efeitos limitados no controle da doença. Estima-se que, para reduzir à metade o número de infectados nos próximos cinco anos, seria necessário investir anualmente US$ 3,2 bilhões, o mesmo também para diminuir em 50% até 2010 o número de mortes causadas pela malária. •

PESQUISA FAPESP 118 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ 17


ESTRATéGIAS

MUNDO

Rebelião chinesa

Oitenta mil chineses estudam nos Estados Unidos. São atraídos pela excelência das universidades norte-americanas, que, por sua vez, consideram-nos alunos esforçados e bem preparados. Um protesto liderado por estudantes chineses na Universidade Yale mostra que a realidade nem sempre combina com as expectativas dos visitantes. A causa do protesto foi a iminente expulsão de

Xuemei Han, 26 anos, aluna de segundo ano do Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária. Em junho, ela foi avisada de que seu desempenho estava abaixo do exigido. Por isso seria desligada. Ela contestou a avaliação. Afinal foi aprovada no exame de qualificação na primeira tentativa e, depois de tentar algumas vezes, conseguiu também passar nos testes de proficiência em inglês. Han

fez o que a maior parte dos estudantes chineses jamais sonharia em fazer: entrou com um processo contra Yale, alegando que os professores na verdade estão insatisfeitos com seu domínio do inglês e não se dispõem a lhe dar ajuda extra na preparação de manuscritos. "O problema é que sou a única chinesa em meu departamento. Em outros cursos, os estudantes chineses acabam ajudando

uns aos outros", disse a estudante à revista Nature. Mais da metade dos 274 estudantes de Yale oriundos da China assinou uma declaração de apoio a ela. O comando da universidade acabou autorizando-a a transferir-se para o Departamento Florestal, onde há um orientador disposto a acompanhá-la. Ela recusou a oferta, pois perderia a bolsa de estudos se mudasse de curso. •

Ciência na web Envie sua sugestão de site científico para cienweb@trieste.fapesp.br

http://www.unesp.br/universofisico 0 portal divulga para leigos os avanços da física anunciados em agências de notícia e revistas científicas.

18 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP118

http://nationalacademies.org/evolution/ 0 site mostra o estado da arte sobre a Teoria da Evolução, para defendê-la dos ataques de grupos religiosos nos EUA.

http://worldwind.arc.nasa.gov/moon.html Basta baixar um software para visitar a superfície da Lua, a partir de imagens feitas pela sonda Clementine em 1994.


ESTRATéGIAS

BRASIL

O resgate da CTNBio Os nomes dos 12 especialistas que integrarão a nova Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) serão conhecidos até o dia 24 de dezembro. Nesta data esgota-se o prazo para que a comissão especial, constituída pelo ministro da Ciência e Tecnologia, Sérgio Rezende, apresente a lista tríplice com nomes de titulares e suplentes que representarão as áreas de saúde humana, animal, vegetal e ambiental. A comissão especial foi criada por Rezende no dia 24 de novembro, um dia depois da publicação do decreto que regulamentou a Lei de Biossegurança permitindo a recomposição da CTNBio - formada por 27 membros -, cujas atividades estão suspensas desde maio. A expectativa do ministro é que a CTNBio volte

■ Rede ganha mais velocidade A Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), que interliga universidades públicas e centros de pesquisa em todos os estados brasileiros, ganhou uma nova estrutura, com capacidade de transmissão de dados 24 vezes maior que a anterior. De 2,5 gigabytes, alcançará agora 60 gigabytes, o que permitirá, entre outros ganhos, a implementação de ferramentas como videoconferências e comunicação por

a se reunir, ainda este ano, e retome as análises de mais de 400 processos que envolvem autorização para a pesquisa, para a liberação comercial de organismos geneticamente modificados (OGMs), entre outros. Integram a comissão especial Radovan Borojevic, da Universidade Federal do Rio de Janeiro; Marcello André Barcinski, da Universidade de São Paulo (USP); Ricardo Renzo Brentani, diretor presidente da FAPESP; Rodolfo Rumpf, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa); Jorge Guimarães, da Universidade Federal do Rio Grande doSul(UFRGS);AronJurkiewcz, da Universidade Federal de São Paulo; José Oswaldo Siqueira, da Universidade Federal de Lavras (UFL/MG); Ivan Sazima, da Universidade Estadual de

voz através da internet. Vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia, a rede inter-

Feijão transgênico criado pela Embrapa Campinas (Unicamp); Ima Célia Guimarães Vieira (Museu Paranaense Emílio Goeldi); Elíbio Leopoldo Rech Filho, da Embrapa; e Ernesto Paterniani, da Escola Su-

liga cerca de 240 instituições e atende a mais de 1 milhão de usuários. Por meio dela, os

m 03

^Sm

[O]

3 l^][^]|õ]-^ 3 [SS

perior de Agricultura Luiz de Queiroz, da USP. Eles foram indicados pelas sociedades científicas Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e Academia Brasileira de Ciências (ABC). No mesmo dia 24 de novembro Rezende encaminhou aos demais ministérios que compõem a CTNBio solicitação para que apresentem o nome de seus representantes. Divergências entre os membros do governo sobre o quorum para a aprovação da comercialização de transgênicos atrasaram a regulamentação e comprometeram o plantio de OGMs. Venceu o pleito dos ministérios do Meio Ambiente e da Saúde, e a liberação comercial somente será aprovada se contar com dois terços dos votos da comissão. •

pesquisadores comunicam-se entre si e têm acessos à internet. A infra-estrutura dá suporte a projetos de pesquisa e inovação em áreas como biotecnologia, genômica, astronomia, climatologia, ciências da saúde, entre outras. "A nova rede possibilitará avanços na pesquisa, no desenvolvimento e na indústria de softwares e contribuirá para a diminuição das desigualdades regionais por meio do intercâmbio de informações", disse o diretor-geral da RNP, Nelson Simões. •

PESQUISA FAPESP 118 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ 19


ESTRATéGIAS

BRASIL

Sangue jovem Os vencedores do XXI Prêmio Jovem Cientista, cujo tema foi "Sangue: fluido da vida", foram anunciados no dia 10 de novembro pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), organizador do prêmio. Na categoria Graduado, para pesquisadores com menos de 40 anos, o prêmio principal coube à bióloga Ana Beatriz Gorini da Veiga, 29 anos, formada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ela estudou componentes do veneno de taturana, que provoca uma síndrome hemorrágica, em busca de possíveis aplicações no tratamento de doenças cardiovasculares, como a trombose. Na categoria Estudante de Ensino Superior, para alunos de escolas téc-

■ Software para divulgar e Amazônia O acesso a publicações e pesquisas sobre a Amazônia estará disponível pela internet, graças à implantação do Sis-

nicas ou de cursos superiores que tenham menos de 30 anos de idade, a vencedora foi Amanda Meskauskas, 22 anos, do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein, de São Paulo. Ela integra uma equipe que desenvolve técnicas para ampliar in vitro o número de células-tronco presentes em amostras de san-

tema Eletrônico de Editoração de Revistas (Seer). Tratase de um software, dotado de ferramentas de editoração eletrônica, que auxilia os editores científicos nas etapas do processo de preparação de

20 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 118

gue do cordão umbilical. Na categoria Estudante de Ensino Médio, o primeiro lugar foi de Natália Évelin Martins, 16 anos, aluna da Escola Estadual Olegário Maciel e bolsista do Centro de Pesquisas René Rechou, em Belo Horizonte (MG), que propôs uma técnica laboratorial de detecção da doença de Chagas com me-

periódicos científicos. O Seer foi traduzido e adaptado pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict). É baseado no software desenvolvido pelo Public Knowledge Project

nos possibilidade de dar falso resultado positivo. A organização do prêmio também conferiu uma menção honrosa a Ricardo Pasquini, professor da Universidade Federal do Paraná, pioneiro na realização dos transplantes de medula óssea no Brasil e responsável por mais de 1.700 desses procedimentos. Por fim, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) foi agraciada na categoria Mérito Institucional, em reconhecimento a sua excelência acadêmica. A Unicamp foi a instituição com maior número de pesquisas inscritas no concurso. Participou da disputa com 24 trabalhos de um total de 181 pesquisas. Os trabalhos vencedores serão publicados em livro. •

(Open Journal Systems) da Universidade British Columbia, no Canadá. O treinamento para utilização do programa começou a ser ministrado por especialistas do Ibict para profissionais de uma série de


instituições da Região Norte, como a Universidade Federal do Pará e o Museu Paraense Emílio Goeldi. •

■ Sob nova direção O engenheiro eletrônico Gilberto Câmara, 49 anos, é o novo diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Vinculado à instituição há 25 anos, já foi chefe da Divisão de Processamento de Imagens e coordena desde 2001 a área de Observação da Terra (OBT). Formado pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), tem mestrado e é doutor em computação pelo Inpe. •

■ O caso da Rede Onsa A Rede Onsa (Organization for Nucleotide Sequencing and Analysis), rede de laboratórios integrantes do Projeto Genoma-FAPESP, tornou-se objeto de estudo acadêmico. Em artigo publicado na edição de novembro da revista Economy and Society, dois pesquisadores da Universidade de Manchester, no Reino Unido, analisam o caminho inovador trilhado pelo Brasil ao mobilizar um conjunto de centros de pesquisa para mapear pioneiramente o genoma da Xylella fastidiosa, causadora de uma praga de laranjais, e criar competência no campo da genômica e da bioinformática. "O ponto central é mostrar que o Brasil conduziu a ciência e a tecnologia em genômica em novas direções, desvendando novas fronteiras, ao mesmo tempo que operava num palco global", escreveram os autores Mark Harvey e Andy McMeekin. •

A sociedade do conhecimento "Um dos pressupostos essenciais da chamada sociedade ou economia do conhecimento é, para muito além da capacidade de produção e de reprodução industriais, a capacidade de gerar conhecimento tecnológico e, por meio dele, inovar constantemente para um mercado ávido e nervoso nas exigências de consumo." Tais palavras fizeram parte do discurso do presidente da FAPESP, Carlos Vogt, ao receber no dia 18 de novembro o título de doutor honoris causa da Escola Normal Superior de Letras e Ciências Humanas (ENS-LSH) em Lyon, na França. O tema era mais que oportuno. A sociedade do conhecimento, conceito que define um tipo de sociedade já não baseada na produção agrícola ou industrial, mas na capacidade de pesquisar, inovar e produzir informação, é o tema do relatório lançado em novembro pela Unesco, braço da ONU para a Educação, a Ciência e a Cultura. "Na economia tipicamente industrial, a lógica de produção era multiplicar o mesmo produto, mas-

■ Divulgador da ciência O biólogo Jeter Jorge Bertoletti recebeu no dia 10 de novembro em Budapeste, na Hungria, o Prêmio Kalinga 2005 para a Popularização da Ciência, concedido pela Unesco, o órgão das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Diretor do Museu de

sificando-o para um número cada vez maior de consumidores. Costumase dizer que na sociedade do conhecimento essa lógica de produção tem o sinal invertido: multiplicar cada vez mais o produto, num processo de constante diferenciação, para o mesmo segmento e o mesmo número de consumidores", definiu. Vogt discorreu sobre o conhecimento e seus limites. "Todo conhecimento é útil. Como o fundamento da moral é a utilidade, é possível afirmar que a utilidade do conhecimento o torna ético por definição. Nesse sentido, não há conhecimento inútil, já que a

Ciências e Tecnologia da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio Grande do Sul, Bertoletti é o quinto brasileiro agraciado com a honraria, concedida anteriormente ao jornalista José Reis (1974) e aos professores Oswaldo Frota Pessoa (1982), Ennio Candotti (1998) e Ernst Hamburger (2000). O prêmio, com recursos da Fundação Kalin-

ação de conhecer está voltada para proporcionar felicidade, prazer e satisfação à sociedade", disse. "O conhecimento é útil porque, como outras ações éticas do ser humano, corresponde à necessidade de uma prática desejável, aquela que nos leva a buscar a felicidade de nossos semelhantes e nela sentir o prazer de sua realização no outro." Professor titular em semântica lingüística da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) desde 1969, Vogt foi reitor da instituição entre 1990 e 1994 e coordena o Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor), da Unicamp. •

ga, da índia, destina-se a profissionais que contribuem para a divulgação e a interpretação de questões científicas. Bertoletti idealizou e implantou vários projetos na PUC gaúcha, entre os quais o Museu de Ciências e Tecnologia, o Museu Itinerante, a Escola-Ciência e o Pró-Mata Centro de Pesquisas e Conservação da Natureza. •

PESQUISA FAPESP 118 • DEZEMBRO DE 2005 ■ 21


POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA AMBIENTE

O mundo depois de Kyoto Especialistas prevêem mais cobrança para o Brasil controlar emissões de dióxido de carbono

]

.Vi-,

.***»_<•■

CLAUDIA IZIQUE

->.

Kí *.-. O Brasil deve se preparar para assumir o compromisso de redução de emissão de gases de efeito estufa que provavelmente constará de futuros acordos internacionais. Até 2012 valem as regras estabelecidas pelo Protocolo de Kyoto, que, na distribuição de responsabilidades entre os 154 países signatários, atribuiu às 30 nações mais desenvolvidas a tarefa de diminuir 5% de suas emissões em relação ao total registrado em 1990. Mas na 1 Ia Conferência das Partes (COP 11), realizada em Montreal, no Canadá, no final de novembro, iniciaram-se os primeiros entendimentos para a formulação de regras para o período posterior a 2012, e o Brasil - quinto maior responsável pelas emissões mundiais de gases de efeito estufa, atrás apenas dos Estados Unidos, Rússia, China e Japão - deve ser chamado a dar uma contribuição mais expressiva. Esse cenário foi o pano de fundo dos debates da II Conferência Regional sobre Mudanças Globais: América do Sul, realizado em São Paulo, entre os dias 6 e 10 de novembro. "O Brasil tem que negociar os acordos para 2012 apresentando propostas de redução de emissão de dióxido de carbono", afirma Carlos Alfredo Joly, do Instituto de Biociências da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A expectativa é de que o país repita a atuação que teve nas negociações que antecederam a assinatura do Protocolo de Kyoto, quando contribuiu para a formulação do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) que autorizou os países desenvol22 ■ DEZEMBRO DE 2005 • PESQUISA FAPESP 118

••?.

v 'V

>.£?.cr

>T?*í*JV-/v#d


vidos a adquirir créditos de carbono gerados por empresas de nações emergentes, criando um mercado estimado em € 34 bilhões até 2010, do qual o Brasil é o segundo maior beneficiário, atrás somente da índia. Nos entendimentos para o período pós-Kyoto, no entanto, a elaboração de qualquer proposta dependerá de estudos mais detalhados sobre o impacto do aquecimento global nas diversas regiões do Brasil que permitam formular recomendações de políticas ambientais, capacitar especialistas para elaboração de cenários das mudanças climáticas e subsidiar negociações futuras, conforme avaliação dos participantes do encontro. "Ainda não temos modelos climáticos refinados para fazer análises, nem base para comparação das mudanças no ecossistema", alerta Joly. Os resultados iniciais dos modelos climáticos elaborados pelo Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), só estarão concluídos no próximo ano. Pouco se sabe também sobre o impacto das mudanças de clima na saúde da população e na disseminação da malária, dengue e meningite, doenças transmitidas por insetos. "O clima tem efeito na biologia dos vetores e patógenos", lembra Ulisses Confalonieri, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). "Em termos de saúde humana, eventos climáticos extremos deverão estar relacionados a chuvas ou secas." Nesse caso, seria preciso adotar medidas preventivas para reduzir a vulnerabilidade das comunidades em área de risco. Uma das recomendações da II Conferência, aliás, é que as ações mitigadoras das conseqüências das mudanças climáticas contemplem a população menos favorecida, que seria afetada em maior escala. A alteração do ciclo das chuvas poderá ter implicações também econômicas e comprometer outros países da América do Sul. Na província de Santa Fé, na Argentina, por exemplo, a ocorrência de chuvas com mais de 100 milímetros não era freqüente até os anos 1960. Agora são registradas até 30 vezes

por ano. "Alterações nas vazões dos rios dessas regiões influem diretamente na disponibilidade de água para a geração de energia elétrica", afirma Vicente Barras, da Universidade da Argentina, que participou do encontro. As negociações para as metas de redução de emissões a partir de 2012, no entanto, serão ainda mais complicadas que as do período que antecedeu o Protocolo de Kyoto, prevêem os especialistas em relações internacionais. "As questões do meio ambiente e da pobreza, que vinham se impondo na agenda global, perderam momentaneamente o espaço alcançado, em razão do combate ao terrorismo", analisa Jacques Marcovitch, da Faculdade de Economia e Administração e ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP). Além disso, o Japão e os países da União Européia - que, ao lado dos Estados Unidos, são responsáveis por 65% das emissões globais acumuladas - têm mantido os hábitos de consumo de energia, inclusive o uso do carvão, ante a elevação do preço do petróleo. "Mantido o ritmo atual, esses países não cumprirão as metas estabelecidas por Kyoto", ele prevê.

ções de gases de efeito estufa, o desenvolvimento de tecnologias eficientes para uso de energia limpa e a identificação de medidas - com relação custobenefício favorável - que possam ser imediatamente adotadas para uma redução substancial das emissões causadoras das mudanças climáticas. De outro lado estão as empresas globais que assumiram os compromissos estabelecidos por Kyoto e ingressaram no mercado de crédito de carbono e agora buscam meios e modos de reduzir os custos dos projetos. Em declaração que precedeu o último encontro do G-8, em Gleaneagles, na Escócia, elas pleiteavam o estabelecimento de um esquema global de mercado de emissões com vigência até 2030 e extensão até 2050, a definição de limites para as emissões de gases e outros mecanismos de mercados para a comercialização de certificados de emissões, o desenvolvimento de tecnologias limpas, a simplificação dos procedimentos do MDL para reduzir custos, entre outros. "É caro incorporar preço de redução aos custos de energia. Quando são repassados aos consumidores, estes exigem benefícios", diz Marco Antônio Fujihara, diretor da PricewaterhouseCoopers Brasil. Algumas companhias de energia da União Européia, ele conta, já estão propondo aos governos trocar investimentos em redução de emissão por redução de taxas e impostos.

essa rodada de entendimento que agora se inicia, os diversos protagonistas cientistas, governos e empresas - deverão manter seu compromisso com os objetivos globais de redução de emissões de gases de efeito estufa e com o desenvolvimento de tecnologias limpas e eficientes, prevê Marcovitch. Mas já é possível adiantar algumas discordâncias entre as partes. "As dissonâncias verificam-se na repartição das responsabilidades, na forma de alcançar os objetivos almejados, nos mecanismos que viabilizem redução de emissões e na mobilidade de tecnologias limpas." A comunidade científica pede, por meio de manifesto conjunto das academias nacionais de ciências lançado este ano, a realização de um estudo internacional para definir alvos de concentra-

Quem paga a conta? - "As negociações internacionais estão centradas na repartição do ônus", analisa Luiz Gylvan Meira, do Instituto de Estudos Avançados da USP. Existe tendência de maximização de ganhos que leva em conta os custos de emissões, danos de mudanças, esforços de adaptação, entre outros, e uma enorme dificuldade de repartir esses custos no tempo - afinal, estimase que serão necessários 40 anos para reduzir os impactos das emissões atuais. Nesse imbróglio, na análise de Meira, três aspectos cruciais têm que ser acordados: "Como rebater para hoje os custos distribuídos no tempo? Qual o fator de aversão ao risco? Quais os custos marginais de redução de emissões?" Para Marcovitch, aos protagonistas brasileiros cabe agora influir na configuração das bases legais das decisões que devem resultar da COP 11. • PESQUISA FAPESP 118 ■ DEZEMBRO DE 2005 -23


POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

3a Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação reuniu mais de 2 mil cientistas, empresários e representantes de diversos ministérios, em Brasília, entre os dias 16 e 18 de novembro, e a principal conclusão foi que o Brasil precisa investir em seu potencial inovador, de acordo com informação divulgada pela assessoria de Comunicação do Ministério da Ciência e Tecnologia. Essa recomendação, aliás, foi enfaticamente sublinhada por um cientista estrangeiro: o neozelandês Alan MacDiarmid, vencedor do Nobel de Química em 2000 pela descoberta e estudo de polímeros condutivos. "O Brasil representa um grande caso de sucesso na produção e utilização dos combustíveis renováveis. Tem enorme potencial, está dois ou três anos à frente dos outros países e ainda desponta como um dos principais fabricantes de veículos bicombustíveis", afirmou o pesquisador. Ele advertiu, no entanto, que em pouco tempo o país perderá essa posição de liderança para os Estados Unidos e algumas nações européias se não buscar parcerias e dividir custos das pesquisas com outras nações. Para MacDiarmid, a energia é um dos dez principais problemas que a humanidade terá de enfrentar nos próximo 50 anos e o Brasil é um país privilegiado nessa corrida contra o tempo. "Nós podemos projetar um futuro em que o bioálcool se transformará em uma commoditie internacional", prevê. Bom seria se o Brasil tivesse a mesma visão de futuro que teve na década de 1970, quando criou o Programa Nacional do Álcool (Proálcool). "Foi o único país que teve essa visão." A falta de investimento na inovação poderá comprometer não apenas a posição do Brasil no mercado mundial de energia, mas também a tecnologia nacional de agricultura tropical, considerada uma das melhores do mundo, desenvolvida pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e outros institutos públicos de pesquisa. O principal gargalo é a falta de recursos para a pesquisa, reconheceu o ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues. O orçamento da Embrapa, ele exemplificou, corresponde a menos de 0,6% do Produto Interno Bruto (PIB). Isso sem falar na falta de infra-estrutura e logística, fatores

O biodiesel

é nosso Para ganhador de Nobel de Química, Brasil precisa de parceiros para manter liderança nos combustíveis renováveis

24 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 118

que, na sua opinião, levam à perda de competitividade do país. A falta de investimento em pesquisa nas empresas também é obstáculo à inovação. O setor privado destina apenas 0,42% do PIB para pesquisa e desenvolvimento (P&D), ante uma média de 2% destinada à inovação nos países mais desenvolvidos. Outro indicador negativo é o baixo porcentual de pesquisadores brasileiros em empresa que não passa de 23%. Para o presidente do Conselho de Política Industrial e Desenvolvimento da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Rodrigo Loures, a falta de investimento do setor privado em P&D resulta do fato de não existir, na prática, "vontade política para fazer inovação". "Precisamos ter uma meta definida para ampliar o número de empresas de inovação tecnológica das atuais 160 para 4 ou 5 mil em cinco anos." Ele sugeriu um esforço conjunto para construir um ambiente econômico propício ao empreendedorismo, mas listou uma série de obstáculos para a inovação, entre eles a burocracia, a alta taxa de juros e a falta de recursos financeiros. "A inovação também tem que ser feita na gestão pública." Sustentabilidade - O lento avanço da inovação faz contraponto com o ritmo com que progride a produção científica nacional, que cresce a uma taxa de 8% ao ano e de forma equilibrada entre as diversas áreas do conhecimento, sublinhou Eduardo Moacyr Krieger, presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC). "Essa é uma taxa de crescimento notável", comentou. Esse desempenho tem sido um dos fatores de atração de investimentos estrangeiros ao país. Krieger citou pesquisa recente publicada pela revista inglesa The Economist, com dirigentes de grandes empresas mundiais, que colocou o Brasil no sexto lugar na lista de intenção de investimentos, atrás da China, Estados Unidos, índia, Reino Unido e Alemanha. "Esse é o momento em que o governo, a comunidade científica e as empresas privadas deveriam aproveitar para inserir o Brasil em um círculo virtuoso que consiga transferir o conhecimento ao setor produtivo, de modo a gerar riqueza e melhorar a qualidade de vida da população", concluiu. Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP, ressaltou que as idéias inovadoras são um insumo importante para o desenvolvimento de um país. Mas a capacidade de "usar conhecimento" não deve estar diretamente atrelada à capacidade de "gerar conhecimento". Para ele, o Brasil tem demonstrado forte capacidade de ge-


rar conhecimento no mundo acadêmico. "O que falta é a repetitividade da geração de riqueza com base no conhecimento nacional", ressaltou. Isso faz com que a indústria brasileira ainda sinta dificuldades em criar tecnologias inovadoras que sejam suficientemente relevantes para se transformar em patente. "Em 2004 o Brasil depositou 106 patentes nos Estados Unidos, enquanto a Coréia ultrapassou 4 mil", comparou. "O pesquisador brasileiro precisa entender que qualquer produto que tenha perspectiva de ser negociado deve, antes de tudo, ser patenteado", enfatizou. Além da disposição dos pesquisadores para proteger o conhecimento, o aumento no volume de depósito de patentes depende também de maior agilidade do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), cuja reestruturação foi amplamente debatida na conferência. Roberto Jaguaribe, presidente do instituto, afirmou que um dos seus maiores desafios é resolver problemas operacionais e estimular o uso das informações patentárias, que atualmente não ultrapassam a média de quatro consultas diárias. "Esse número é irrisório", observou. As questões do orçamento e do equipamento, ele garantiu, foram, em boa medida, solucionadas. E ponderou que as deficiências no processo de inovação brasileiro não são exclusivamente do INPI. "Propriedade intelectual é apenas parte da solução." O ministro da Ciência e Tecnologia, Sérgio Rezende, era o mais otimista em relação ao avanço da inovação. Citou uma lista de conquistas, entre elas a Lei de Inovação, a criação das ações transversais e a ampliação do Programa de Apoio à Pesquisa em Empresas (Pappe). "É fundamental que ocorra uma integração entre a política de ciência e tecnologia e a política industrial. E várias ações estratégicas foram feitas nesses últimos anos para que essa convergência ocorresse." O ministro aproveitou para garantir que os recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) - formado com verbas dos fundos setoriais - terão, no máximo, 40% de contingenciamento no próximo ano, com perspectivas de chegar a 0% em 2009. Todas as conclusões da 3a Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação serão reunidas em documento a ser apresentado ao Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia e ao Congresso Nacional. "Queremos que a ciência, a tecnologia e a inovação passem a ser usadas como instrumento básico para o desenvolvimento sustentável", afirmou Carlos Aragão, coordenadorgeral da conferência. •

mmw®^

PESQUISA FAPESP118 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ 25


I POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

AVALIAÇÃO

O clube da excelência Rankings internacionais evidenciam o desempenho das quatro melhores universidades brasileiras FABRíCIO MARQUES

AUniversidade de São Paulo (USP), segundo uma série de parâmetros, é a mais importante instituição pública de _ ensino superior do Brasil. Tem 75.962 alunos, oferece 221 programas de pós-graduação e, sozinha, é responsável por um quarto da produção científica nacional. Não é tão simples situar a USP, ou qualquer outra grande universidade brasileira, entre as melhores do mundo. No ano passado, o jornal britânico The Times publicou pela primeira vez um ranking das 200 melhores universidades do planeta - e não havia nenhum representante brasileiro. A metodologia do levantamento mudou e, na segunda edição do ranking, divulgado em novembro, a Universidade de São Paulo, enfim, apareceu. Está em 196° lugar. É a única instituição da América do Sul a figurar no levantamento - e a segunda da América Latina, sendo superada pela Universidade Autônoma do México (Unam), que está na 96a posição. A mudança na metodologia ajuda a entender a ascensão da USP. Em 2004 tinha peso preponderante na lista do The Times a opinião de 2.375 acadêmicos entrevistados em todos os cantos do mundo. "Rankings são instrumentos importantes para uma universidade avaliar seu desempenho e estabelecer os desafios para o futuro. Mas víamos esse levantamento britânico mais como um indicador de prestígio do que como ferramenta objetiva de avaliação", diz o pró-reitor de Pesquisa da USP, Luiz Nunes de Oliveira. A produtividade da Universidade de São Paulo é crescente - o número de artigos publicados em revistas científicas avança a uma velocidade de 10% ao ano -, mas isso era ofuscado pelo prestígio de instituições de países desenvolvidos com muita tradição, e não o mesmo desempenho. Na edição de 2005 a opinião dos acadêmicos perdeu espaço (de 50% para 40% do peso final) e, além de dados sobre citações de pesquisas em revistas científicas, regime de dedica26 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP118

ção dos professores, número de docentes e de alunos e a presença de quadros estrangeiros na instituição, inseriram-se novos critérios, como uma consulta a grandes empresas sobre a qualidade da formação superior de seus profissionais. "A idéia é evitar distorções que privilegiem universidades grandes e tradicionais em detrimento de instituições menores e não tão conhecidas, mas igualmente produtivas", explica Martin Ince, coordenador do ranking do The Times. Com a mudança, a Alemanha, por exemplo, que tinha 17 universidades no ranking de 2004, conseguiu emplacar apenas nove instituições em 2005. Comparando-se os dados de 2004 e 2005, as primeiras posições pouco mudaram. A liderança cabe à Universidade Harvard e, em segundo lugar, aparece o Massachusetts Institute of Technology, ambos nos Estados Unidos. As universidades britânicas de Cambridge e de Oxford ocupam respectivamente a terceira e a quarta colocações, seguidas de um pelotão norte-americano formado por Stanford, CaliforniaBerkeley, Yale, Califórnia Institute of Technology e Princeton. No primeiro time, a alteração mais significativa foi a ascensão da École Polytechnique de Paris do 27° para o 10° lugar - e a queda do Instituto Federal de Tecnologia de Zurique, rebaixado para o 21° lugar por ser especializado demais para os novos padrões do ranking. As universidades brasileiras vinham prestando mais atenção a um outro ranking internacional, publicado desde 2003 pela Shangai Jiao Tong University, da China, que aponta as 500 melhores universidades do planeta. Há quatro universidades brasileiras nessa lista: a USP, a Estadual de Campinas (Unicamp), a Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Estadual Paulista (Unesp). Neste levantamento o desempenho é medido por indicadores bastante concretos. A quantidade de artigos publicados nas revistas Science e Nature, por exemplo, tem peso de 20% na avaliação de cada instituição. Respondem por outros 20% as citações de artigos da instituição em outras publicações "^


científicas, tradicional medida de impacto da produção acadêmica. O tamanho da instituição vale 10% do peso. As grandes universidades brasileiras saemse bem nesses indicadores - o número de artigos científicos brasileiros publicados cresceu quase 50% nos últimos quatro anos. Mas em outros parâmetros simplesmente não marcam pontos: a existência de professores ou ex-alunos que ganharam grandes prêmios científicos, como o Nobel, eqüivale a até 30% da pontuação final. Visibilidade - A análise dos dados de 2004 e de 2005 do ranking da Shangai University revela um desempenho ascendente das universidades brasileiras. A USP foi da 190a posição no ranking de 2004 para o 146° lugar em 2005. A Unicamp saltou 114 posições: da 367a em 2004 para a 253a em 2005. A UFRJ, que estava em 368° lugar em 2004, chegou em 364° em 2005. E a Unesp, 465° lugar em 2004, foi ao 461° neste ano. Esse avanço é lastreado por um aumento de produtividade - mas, em alguns casos, não só por ele. A existência de um ranking fez com que as instituições se preocupassem em valorizar pontos fortes e em corrigir pontos fracos. O exemplo da Unicamp é emblemático. O salto no ranking deveu-se, em certa medida, a um esforço para tornar mais visível sua produtividade. "Tomamos várias iniciativas, como a padronização do nome e do endereço da universidade nos trabalhos dos docentes. Antes, uns colocavam Unicamp, outros State University, outros Estadual de Campinas, o que dificultava a tarefa dos ranqueadores para medir a produção", diz Daniel Pereira, pró-reitor de Pesquisa da Unicamp. "Dar visibilidade é fundamental. Por isso também passamos a enviar J informações e comentários para Shangai e colocamos na página da Pró-Reitoria gráficos e informações sobre a produção acadêmica da Unicamp, o que poucas universidades fazem", afirma Pereira. Num desses gráficos, a Unicamp sugere que é proporcionalmente mais produtiva do que a USP, PESQUISA FAPESP118 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ 27


pois fica à frente quando se divide a quantidade de artigos publicados pelo número de docentes. Embora responda por 11% da produção brasileira publicada na base de dados ThomsonISI (a USP é responsável por 26%), a Unicamp divide essa produção por 1.800 docentes. Já a USP tem 4.868 professores. Um dos efeitos do ranking, como se vê, é estimular uma saudável competição entre universidades. ^ A USP também monitora sua situação nos rankings internacionais, mas suas preocupações são de outra natureza. "Começamos a fazer um trabalho com o objetivo de levar nossos pesquisadores a investigar mais problemas na raiz. Em geral, nossas melhores pesquisas são, na verdade, seqüências ou desdobramentos de pesquisas feitas no exterior", diz o pró-reitor Luiz Nunes de Oliveira. "Trabalhos originais têm mais chance de produzir artigos de impacto e, eventualmente, até de render um Prêmio Nobel." Nunes cita exemplos: "O trânsito de São Paulo oferece material de pesquisa que poderia ser aproveitado por diferentes disciplinas, da sociologia à matemática. Mas há pouca investigação sobre esse tema. Também poderíamos aprofundar a pesquisa em doenças tropicais. Parecem temas regionais, mas há muita pesquisa desse tipo publicada nas revistas Nature e Science". Outra preocupação da USP é a internacionalização da universidade, um quesito valorizado nos rankings. "Todos concordaram na teoria, mas ainda falta definir o que isso é na prática. Uns acham que é participar mais de congressos, outros consideram que é ter mais estudantes estrangeiros aqui dentro", diz Nunes. Não por acaso as quatro universidades brasileiras reconhecidas entre as 500 melhores são as que se consolidaram nas últimas décadas. No caso das 28 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 118

três instituições paulistas teve importância a autonomia financeira e um fluxo regular de recursos, garantidos pela legislação. "Graças a isso foi possível investir de modo adequado em ensino, pesquisa e extensão, que são os três pilares de uma grande universidade", diz Marcos Macari, o reitor da Unesp. Vice-

presidente da FAPESP, Macari ressalta a importância da Fundação. "Não adiantaria ter docentes de alto nível de competência sem que eles tivessem recursos para pesquisa. A FAPESP reconhece a qualificação dos pesquisadores", afirma. No caso da UFRJ, o desempenho se deve a uma tradição de excelência e aos recursos destinados por empresas como a Petrobras ao Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe), apesar das dificuldades financeiras que as federais sofreram nas últimas décadas. Num artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, o economista Rogé-

rio Werneck, professor da PUC do Rio, assinalou a importância de a USP despontar no ranking do The Times, mas considerou desfavorável a situação do Brasil. "A Unam e a USP são as duas únicas universidades latino-americanas. Mas a lista contém 21 instituições de países em desenvolvimento asiáticos", escreveu Werneck. "Da China, há nada menos do que dez universidades, quatro delas de Hong Kong. Entre as três instituições da índia, está o Instituto Indiano de Tecnologia, classificado em invejável 50° lugar. Há três universidades da Coréia do Sul e duas de Cingapura. As outras três são da Malásia, de Taiwan e da Tailândia. Mesmo tendo em conta as falhas que o ranking certamente tem, não há a menor dúvida de que o Brasil aparece mal na foto." Liderança - A comparação entre o Brasil e os asiáticos é pertinente porque pertencem a um raro grupo de nações que, na contramão do mundo em desenvolvimento, conseguiu consolidar grandes universidades e ampliar sua produtividade acadêmica. "A China instituiu um forte sistema de mérito que transforma um professor recém-contratado em professor titular se ele consegue publicar um artigo numa grande revista, como a Nature", diz Nunes, o pró-reitor de Pesquisa da USP. "O desempenho da Coréia do Sul se deve a investimentos estruturais em educação e, no caso do Brasil, é resultado do sistema de pós-graduação criado há três décadas que, a despeito das dificuldades, se auto-alimenta" afirma. A USP assumiu a liderança desse sistema, mas ele se espalha por outras instituições. "Há dez anos a metade das teses de doutorado do Brasil saiu da USP. Hoje esse quinhão é de 25%. Isso é ótimo, pois mostra a expansão de outras instituições", diz Nunes. •


I POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

GESTÃO

Reitora Suely Primeira mulher a comandar a USP, professora de farmácia quer fortalecer a graduação

s mulheres ainda são minoria entre os quase 5 mil docentes da Universidade de São Paulo (USP). Para cada dois homens que lecionam na universidade, há apenas uma mulher. Mas uma delas, pela primeira vez nos 71 anos de história da instituição, vai dirigir a maior universidade pública brasileira. Suely Vilela Sampaio, professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (FCFRP), foi nomeada reitora pelo governador Geraldo Alckmin, no dia 23 de novembro. Pró-reitora de Pós-graduação na gestão de Adolpho Melfi, Suely, 51 anos, foi a segunda colocada no primeiro turno da eleição, apenas 14 votos atrás do então vice-reitor, Hélio Nogueira da Cruz. Mas tomou a liderança no segundo turno, que definiu a lista tríplice encaminhada ao governador, no qual votam apenas os membros do Conselho Universitário e dos conselhos centrais. "A escolha representa o espaço importante da mulher na sociedade moderna", elogiou Alckmin. A nova reitora anunciou que sua grande prioridade será o fortalecimento da graduação e disse que um dos seus maiores desafios será ampliar a presença de estudantes das escolas públicas na universidade. Não será, já alertou, por meio de cotas, mas sobretudo por medidas que ajudem os alunos carentes a se preparar para o ingresso na USP. Uma das metas é ampliar o número de

Suely Vilela: desafios vagas noturnas. "Nos últimos anos, houve um aumento considerável no número de vagas. Mas não avançamos o suficiente para garantir a diversidade dos nossos alunos", afirmou Suely. No último vestibular, a USP ofereceu 9.952 vagas, contra 7.811 em 2001. Mas apenas 20% dos aprovados eram egressos do ensino público. Também planeja ampliar o caráter internacional da USP. "É preciso dar mais mobilidade aos docentes, para realizar estágios ou pesquisas com profissionais de fora." Suely acredita que foi eleita pela comunidade da USP por conta de suas ações recentes, desenvolvidas na pósgraduação da universidade. "Sempre houve um diálogo com professores e

alunos e todos os temas eram colocados em votação somente depois de estarem bem discutidos e aceitos", afirmou. "Fui eleita pelas idéias e propostas, não por ser mulher ou de um campus do interior, mas esta escolha representa uma mudança de paradigmas na USP." Ela deve anunciar os nomes de seus pró-reitores no dia 20 de dezembro. Nascida em 1954 numa fazenda em Ilicínea, interior de Minas Gerais, Suely fez toda a formação superior na USP de Ribeirão Preto, desde a graduação em farmácia e bioquímica, concluída em 1975, mestrado em 1980, doutorado em 1985, até o pós-doutorado em 1990 e livre-docência em 1991. Desde 1996 é titular do Departamento de Análises Clínicas, Toxicológicas e Bromatológicas da FCFRP. A partir de 2002 assumiu a pró-reitoria de Pós-graduação. Sua carreira científica foi dedicada a pesquisas na área de toxinas, principalmente venenos de serpentes. Professora colaboradora da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Suely atuou como professora visitante na Université de Nice (França) em 1993, Universidade do Chile (1996), Universidade da Costa Rica (1997), University of London (Inglaterra), em 1999, Università Degli Studi - Parma (Itália), Universidad de La Habana (Cuba), Rutgers University (EUA), Universidad de Barcelona (Espanha) e Ohio University (EUA) em 2004. Divorciada, tem um filho, um advogado de 24 anos. Mantém dois endereços: um flat em São Paulo e uma casa em Ribeirão Preto. • PESQUISA FAPESP118 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ 29


CIÊNCIA

LABORATóRIO

MUNDO

Os sutis efeitos das mudanças climáticas Em um artigo de revisão publicado na Nature em 17 de novembro, um grupo da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Universidade de Wisconsin, Estados Unidos, assinala que a elevação de temperatura registrada nas últimas três décadas pode já estar causando cerca de 150 mil mortes anualmente, por elevar a mortalidade causada por doenças respiratórias e cardíacas. Além disso, o aquecimento global tende a elevar a incidência de doenças como malária e diarréia, principalmente em países subdesenvolvidos. As conclusões casam-se com as de outro trabalho, do New England Journal of Medicine, segundo o qual o aquecimento do planeta pode de fato estar associado à ocorrência de mais problemas de saúde, como os casos de asma nos Estados Unidos, que quadruplicaram nas últimas duas décadas. Outro estu-

■ Os riscos dos sedativos Dormir mais, à custa de remédios, nem sempre compensa ao menos para os idosos, os riscos podem superar os benefícios. Uma análise de 24 estudos feitos entre 1966 e 2003 com 2.417 pessoas com 60 anos ou mais, publicada no British Medicai Journal, indicou que os efeitos colaterais de sedativos como os benzo-

Folha de 55 milhões de anos: rumo ao norte, mais frio

diazepínicos - tonteira, perda de equilíbrio e quedas - foram freqüentes a ponto de se pensar que tratamentos não medicamentosos poderiam levar a resultados melhores no tratamento de insônia. •

■ Sexos diferentes, remédios diferentes Não é discurso feminista. Acumulam-se evidências de que os medicamentos para ho-

30 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 118

mens e para mulheres deveriam ser diferentes: a maioria foi testada em homens, mas podem não ter a mesma eficácia em mulheres (BBC News). Segundo Anita Holdcroft, pesquisadora do Imperial College, de Londres, não só os cérebros dos homens e mulheres são diferentes, mas o próprio cérebro das mulheres se modifica ao longo da vida, em resposta à flutuação do nível de hormônios,

do da Nature mostra que a quantidade de água pode cair de 10% a 40% na África equatorial e na Bacia do Prato em algumas décadas. Um trabalho que saiu na Science em 11 de novembro indica o que as alterações climáticas podem ter causado nas plantas e o que, em situações análogas, se pode esperar no futuro, a partir das folhas fósseis de um período de intensas mudanças climáticas, há 55 milhões de anos, desenterradas das rochas da Bacia Bighorn, no Estado deWyoming, noroeste dos Estados Unidos. Esses registros sugerem que árvores e arbustos migraram 1.500 quilômetros para o norte em resposta à elevação da temperatura, que passou de 5o para 10° Celsius em cerca de 10 mil anos, um tempo curto para a geologia. Antes só se sabia que nessa época houve uma extinção em massa de comunidades de animais. •

que pode interferir no desenvolvimento das doenças e mesmo no funcionamento dos medicamentos. Durante a gravidez, por exemplo, o cérebro das mulheres encolhe, mas volta ao normal depois do parto. Dick Swaab, do Instituto Holandês de Pesquisa do Cérebro, em Amsterdã, defende a idéia de que as doenças devem ser vistas como masculinas e femininas, em razão do sexo do cérebro -


definido durante a gestação, entre outros fatores, pelos níveis de hormônios: níveis mais altos de testosterona determinam o cérebro do homem e de estrógeno, o cérebro da mulher. O sexo do cérebro faz homens e mulheres serem mais propensos a doenças diferentes: mulheres apresentam mais depressão e esclerose múltipla que os homens, que, por sua vez, têm mais mal de Parkinson. Swaab demonstrou que há receptores para hormônios sexuais nas células que formam o eixo de estresse: nas mulheres há mais receptores de estrógeno e nos homens, mais receptores de hormônios sexuais masculinos (nas mulheres, o estrógeno protege os neurônios, que de outro modo iriam degenerar). Em laboratório, ratas sem ovário mostraram uma condição similar ao Parkinson em ratos. Se recebiam estrógeno, readquiriam a proteção contra a doença. Em ratos castrados, que perdiam a fonte de testosterona, a degeneração dos neurônios era reduzida. Porém, quando recebiam estrógeno, o dano piorava. Administrar estrógenos nos dois sexos parece levar a efeitos opostos, concluiu Glenda Gillies, a pesquisadora do Imperial College responsável por esse estudo. •

Uma saltadora: de preferência, sobre mosquitos sangüíneos de interesse. Ela e sua equipe então foram à caça e descobriram: são os mosquitos que estão por toda a região, incluindo o Anopheles gambiae, transmissor da malária. Mas a aranha Evarcha culicivora não quer um mosquito qualquer. Ximena verificou que

as aranhas se aproximavam de mosquitos fêmeas que haviam se alimentado de sangue havia pouco tempo, mas não se interessavam tanto pelas fêmeas que se nutriram de açúcar ou de machos que não estavam cheios de sangue. As aranhas escolhem as presas pelo odor e pelo tamanho, mas a busca de sangue superou essa preferência. Não se sabe por que se adaptaram para se alimentar de sangue, mas este é o primeiro caso em que um animal escolhe a presa com base no que ela tenha comido. A única outra possibilidade, lembra Ximena, seriam as pessoas, já que alimentamos o gado de modo que o gosto seja o melhor possível. •

■ Aranhas que caçam presas com sangue

■ Sempre é bom reler Darwin

Não deveria haver aranhas nas casas do Quênia e de Uganda construídas às margens do Lago Vitória. São muito escuras, e as aranhas saltadoras precisam de muita luz para ver. Mas então por que estavam lá? Ximena Nelson, da Universidade Macquarie, da Austrália, imaginou que deveria haver algum tipo de presa

No supervigiado mundo da ciência parece que nunca é demais perguntar se uma idéia é mesmo original. Geneticistas norte-americanos relataram em setembro na Nature mutações de uma planta, a Arabidopsis, que não estavam nos cromossomos das plantas matrizes, mas teriam sido herdadas de gerações pré-

vias. Os autores dessa descoberta propuseram então um modelo teórico em que um tipo de RNA (ácido ribonucleico) poderia ser transmitido por múltiplas gerações. Seria uma forma de explicar o fenômeno, que eles acreditavam ter descoberto. Semanas depois, porém, em um artigo na revista Trends in Plant Science, Yongsheng Liu, do Instituto Henan de Ciência e Tecnologia, da China, derrubou o suposto pioneirismo ao mostrar que o naturalista inglês Charles Darwin previu esse fenômeno em 1868 no livro A variação de animais e plantas sob domesticação. Esse mecanismo,

Darwin: a origem das idéias que ele chamava de reversão ou atavismo, explicaria não só o reaparecimento de características ancestrais, mas também o surgimento de traços dos avós não nos filhos, mas nos netos. Yongsheng Liu lembra que Darwin descreveu quase todos os fenômenos relevantes da genética, como mutações, dominância e hibridização. Arne Muntzing, ex-presidente da Sociedade Mendeliana, sugere que os geneticistas leiam Darwin no original porque seus estudos são bastante ricos em dados experimentais que ainda poderiam ser úteis. •

PESQUISA FAPESP 118 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ 31


Algo errado no cromossomo 15 Tornou-se clara a origem genética de uma doença extremamente rara, a síndrome de Johanson-Blizzard, até hoje com cerca de 60 casos registrados no mundo. Descrita em 1971, pode ser identificada por meio de seus sinais externos, principalmente pela falta de parte do couro cabeludo, narinas bastante reduzidas, surdez, má-formação dos dentes e retardamento mental. Ocasiona também alterações nas glândulas tireóides e no pâncreas. A origem dessa síndrome encontra-se em mutações em um gene localizado no cromossomo 15, concluiu um grupo de geneticistas coordenado por Martin Zenker e André Reis, da Universidade de ErlangenNuremberg, Alemanha. Desse estudo, publicado na Nature Genetics, participaram três brasileiros: Reis, Marta Vieira, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, e Vera Lopes, da Universidade de Campinas (Unicamp). A análise das amostras de san-

Outra seca à vista no Sul A Rede de Estações de Climatologia Urba na, da cidade gaúcha de São Leopoldo, está alertando desde setembro: o Rio Grande do Sul, que este ano já enfrentou uma seca que derrubou a produção agrícola, pode passar por outra estiagem em 2006, em conseqüência de La Nina, o resfriamento do Pacífico equatorial, que atinge principalmente a região dos Pampas, que inclui o

gue colhidas de 15 famílias de nove países mostrou que o gene truncado é o UBR1, responsável pela produção da enzima ubiquitina ligase. Sem funcionar direito, o UBR1, ainda durante a gestação, causa uma inflamação no pâncreas que leva à destruição das células acilares, que produzem enzimas que aju-

32 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 118

o amarelo representa as regiões mais quentes que as em vermelho). O Noaa, centro norte-americano de estudos atmosféricos, confirma a possibilidade de chegada de La Nina. Pode chover menos também por causa da redução da umidade que viria da Amazônia e foi absorvida pelos furacões do Caribe. Em setembro e outubro choveu mais que o normal no Sul, mas o excesso

dam a absorver gorduras. Surgem daí as diarréias, que podem levar à desnutrição. Esse mecanismo agora é conhecido, mas "não são necessários testes complexos para estabelecer o diagnóstico ou realizar o aconselhamento genético da família", diz Vera. O diagnóstico e o aconselhamento, segundo ela, podem

ser realizados por geneticista clínico com base nas manifestações da síndrome. "Da mesma maneira, é possível, junto com o pediatra, iniciar complicações da doença e melhorar a qualidade de vida dos portadores dessa doença." No Brasil, até agora, foi descrito só um caso, em 2002.


Ganhos e perdas da queima da cana As queimadas da cana-de-açúcar, feitas para eliminar as folhas secas antes da colheita, lançam ao ar moléculas precursoras de partículas ácidas que podem permanecer em suspensão na atmosfera durante dias e serem carregadas pelo vento para áreas muito distantes, além de provocar problemas respiratórios. Por quase dois anos, a equipe do químico Arnaldo Alves Cardoso, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), colheu amostras do ar em Araraquara, interior paulista, e dimensionou as mudanças na composição da atmosfera entre a safra e a entressafra. A queima da cana eleva em até 40% a concentração no ar dessas partículas muito finas, ricas em potássio, nitrogênio e enxofre, que antes nutriam as plantas. "Como o solo perde nutrientes, os agricultores têm de usar mais fertilizante na safra seguinte", diz Cardoso. Levados pelo vento, esses nutrientes podem acelerar o crescimento das plantas nas matas próximas. Os efeitos das queimadas foram detalhados em três artigos - o mais recente na Environmental Sciences and Technology-, feitos com Gisele Rocha, da Unesp, e Andrew Allen, da Universidade de Birmingham, Reino Unido. •

Preconceito na cadeira de dentista A raça - ou, mais precisamente, o aspecto racial - de uma pessoa pode influenciar na decisão de um dentista em extrair ou tratar um dente cariado, concluiu um estudo realizado por pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). A conclusão é o resultado de um estudo feito em Recife com 297 dentistas. Todos eles avaliaram a mesma situação: extrair ou tratar um dente molar bastante cariado? Examinaram imagens detalhadas do dente, viram as fotos das pessoas que seriam tratadas e souberam que eram de pobres em bom estado de saúde, que relatavam apenas uma dor moderada no molar. A equipe coordenada por Etenildo Dantas Cabral, da UFPE, apresentou-lhes dois

cenários, elaborados de tal forma que apenas a raça do paciente era diferente, e pediu-lhes que contassem o que fariam. Segundo o estudo publicado na Community Dentistry and Oral Epidemiology, 9,4% dos dentistas, valor considerado estatisticamente relevante, preferiram extrair o molar dos pacientes negros, mas tratar o dos pacientes brancos. No entanto, nenhum dentista, independentemente do nível socioeconômico, decidiu extrair o dente de um branco e tratar o de um negro. Para os autores desta pesquisa, as conclusões mostram o peso de comportamentos estereotipados e reforçam a importância de os cursos de odontologia oferecerem também um pouco mais de ciências humanas, que poderiam ajudar a reduzir o preconceito racial. •

Sem medo da física quântica A física quântica parece complicada. De fato é. Mas ao menos seus conceitos essenciais podem ser compreendidos e, melhor ainda, apreciados, sem torturas ou fórmulas misteriosas, por meio de livros como A face oculta da natureza - O novo mundo da física quântica (Editora Globo). O autor, Anton Zeilinger, um físico da Universidade de Viena que escreve de modo que até os não-físicos entendem, deszados há cem anos que consolidaram conceitos como superposição e emaranhamento. As novidades contrariam o conhecimento estabelecido, mas pouco a pouco começaram a explicar o comportamento dos átomos e das partículas subatômicas, além de criar uma área cada vez mais comentada, por causa dos computadores quânticos e da criptografia. Página por

das descobertas e conhecer um pouco melhor personagens ora mais conhecidos, ora menos, como Albert Einstein, Max Planck ou Werner Heisenberg. A revisão técnica do livro é de George Matsas, pesquisador do Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista (Unesp). PESQUISA FAPESP118 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ 33


CIÊNCIA BIOQUÍMICA

Reproduçãocü Identificação de região do núcleo do Trypanosoma cruzi pode facilitar o combate ao mal de Chagas

RICARDO ZORZETTO

A costumados a ser mal recebidos durante milhões J^K de anos, os parasitas da família do Trypanosoma f^^k cruzi, causador da doença de Chagas, desenvol/ ^^à veram mecanismos próprios de funciona/ ^^L mento que lhes permitem escapar das defesas I ^^k dos organismos que invadem e se reprodu/ ^^k zir com rapidez. No momento de se dividir i ^^L e originar outra célula idêntica, esses proi ^^k tozoários não seguem a estratégia de ou-^^^— ^KK tros organismos formados por células com núcleo. Na etapa inicial de produção de proteínas, em vez de decodificarem um gene por vez, os parasitas da família do Trypanosoma cruzi lêem todos os genes de uma vez. Nesse momento, a longa molécula espiralada de DNA, que contém os genes, esparrama-se pela periferia do núcleo do parasita. Só depois que essa cópia simultânea dos genes termina é que a mensagem de cada gene é separada e começa a produção de proteínas que vão formar seus descendentes. Biólogos da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) identificaram a região do núcleo onde se concentram centenas de cópias de um único gene, o SL (spliced leader ou seqüência líder), essencial para organizar essa aparente bagunça. É ele que vai marcar, em cada um dos outros genes já copiados, o ponto a partir do qual deve começar a produção das proteínas. Os genes SL se acumulam em uma região bem central do núcleo da célula: a fábrica de transcrição do gene SL. Essa descoberta pode criar alternativas para a busca de compostos mais eficientes para o protozoário que infecta cerca de 18 milhões de pessoas na América Latina. "Se conseguirmos evitar que essa fábrica de transcrição se forme, talvez possamos impedir que esses parasitas se reproduzam", diz o biólogo Sérgio Schenk34 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP118

CD CO CD


Ér+* •■)*.•-><

è&0 ^

-7

JT* -:-;

tSfc

Detalhe do núcleo do Trypanosoma cruzi: genes essenciais à reprodução se concentram na área em rosa


Fábrica desmontável

Quando o Trypanosoma cruzi (à esquerda) vai se reproduzir, forma-se a fábrica de transcrição (detalhe em rosa) e a maioria dos genes (em azul-escuro na imagem à direita) se espalha pela periferia do núcleo

man, coordenador do grupo que des vendou as peculiaridades dessa família de protozoários, que inclui o Trypanosoma brucei, causador da doença do sono, e representantes do gênero Leishmania, que provocam a leishmaniose. O mecanismo especial de reprodução é bem diferente do funcionamento clássico de uma célula - seja a de um ser humano, seja a de uma esponja. De certo modo, uma célula normalmente lembra uma cidade grande. Só que em vez de carros e pessoas transitando por ruas há milhões de estruturas que carregam ou interpretam os genes além de moléculas de proteínas, açúcares e gorduras -, sendo transportadas o tempo todo para fora ou para dentro do núcleo, por sua vez cercado por um espaço superpovoado, o citoplasma. O núcleo eqüivale a uma prefeitura e coordena as atividades executadas continuamente na célula. É de lá que saem os comandos que indicam se é hora de aumentar os estoques de proteínas e se preparar para a reprodução ou se é tempo de descansar e economizar energia. 36 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 118

rmazenados dentro do núcleo, os genes integram a longuíssima molécula em forma de uma escada em espiral - o ácido desoxirribonucléico, DNA. Os genes guardam os comandos celulares como se fossem livros de leis arquivados na prefeitura. Como estão escritos em uma linguagem muito específica, esses comandos são copiados e interpretados antes de seguirem adiante, para serem executados no citoplasma. Nesse processo de cópia e interpretação, denominada transcrição, cada trecho de DNA correspondente a um gene é lido por enzimas e transformado em uma molécula de material genético menos complexa, o ácido ribonucléico, ou RNA. Entre as quase dez formas de RNA já descobertas, uma em especial o RNA mensageiro - atravessa a membrana que envolve o núcleo e leva uma cópia simplificada dessa informação

aos ribossomos, unidades produtoras de proteínas espalhadas pelo citoplasma. É assim na maior parte dos seres vivos, exceto com os protozoários da família Trypanosomatidae. Parece que até agora só esses protozoários apresentam a fábrica transcritora de genes SL, descrita pela equipe da Unifesp na Eukaryotic Cell. Essa região do núcleo é rica em RNA polimerase II, enzima capaz de ler e interpretar a informação contida no gene SL. Essas enzimas geram uma molécula de RNA criado a partir do gene SL, o SLRNA, que vai aderir a uma das extremidades das cópias dos outros 22.500 genes do Trypanosoma cruzi, indicando que já pode ser iniciada a produção de proteínas no citoplasma. Transformação intensa - Schenkman e seu aluno de doutorado Fernando de Macedo Dossin mostraram também que essa fábrica é montada cada vez que o parasita vai se reproduzir. Nessa fase seu núcleo apresenta-se como uma esfera quase perfeita. Bem próximo ao centro dessa esfera, a fábrica de transcrição do gene SL assume a conforma-


ção de um pequeno globo e funciona a pleno vapor. No fim do período reprodutivo, o protozoário passa por uma intensa transformação em apenas três dias e seu núcleo se torna alongado. Nesse estágio o parasita não se reproduz mais, mas se encontra pronto para infectar os mamíferos, e sua fábrica de transcrição se torna menos ativa, com seus componentes dispersos pelo núcleo. Liberado nas fezes do barbeiro, o Trypanosoma chega à corrente sangüínea, penetra nas células humanas e retorna à forma reprodutiva. Como pessoas que se unem em um mutirão, a fábrica de transcrição se recompõe no centro do núcleo e cerca de 200 cópias do gene SL se agrupam em uma área rica em enzimas RNA polimerase II. Para o parasita, é mais eficiente construir essa fábrica nos períodos em que é preciso produzir muito e desativá-la quando o consumo cai. Não se sabe ao certo por que isso ocorre no núcleo dessa família de protozoários, mas há algumas hipóteses. Dossin acredita que a concentração de RNA polimerase II em uma região específica torne mais eficiente a transcrição.

Em um estudo anterior, publicado em 2002 na Eukaryotic Cell, Schenkman e Maria Carolina Elias já haviam observado outro tipo de mudança na estrutura nuclear do Trypanosoma cruzi. Quando o parasita assume sua forma reprodutiva e inicia a transcrição do gene SL, os demais genes migram para a periferia do núcleo, onde são copiados. Só no fim do período reprodutivo os genes voltam a se distribuir pelo núcleo. Para Schenkman, esse talvez seja o mecanismo pelo qual a atividade dos genes do parasita é regulada. O PROJETO Organização nuclear e controle da expressão gênica MODALIDADE

Projeto Temático COORDENADOR SéRGIO SCHENKMAN

- Unifesp

INVESTIMENTO R$ 818.071,51 (FAPESP) R$ 482.518,54 (FAPESP)

Nas últimas décadas, microscópios mais potentes - e capazes até mesmo de produzir imagens tridimensionais do interior de células vivas - têm permitido aos biólogos constatar que o núcleo das células é tão complexo que deixaria pasmo o botânico escocês Robert Brown, que descreveu essa estrutura celular pela primeira vez em 1831. Aparentemente existem regiões bem definidas do núcleo das células que, à semelhança de bairros operários, agrupam fábricas de RNA às quais os genes se dirigem no momento da transcrição. Outras regiões, por sua vez, parecem servir de depósito para diversos compostos que se deslocam até os genes no momento da duplicação celular. O trânsito de moléculas de DNA, RNA e proteínas no interior do núcleo é tão elevado a ponto de biólogos e bioquímicos o compararem à movimentação - aparentemente caótica - de pessoas e vagões de trem nos horários de maior movimento de uma estação de metrô. Uma análise detalhada, porém, revela que esses movimentos são tão precisos quanto os do mecanismo de um relógio suíço. • PESQUISA FAPESP 118 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ 37


CIÊNCIA SAÚDE

Diagnóstico em forma de luz Uso de laser ajuda a diferenciar os tecidos sadios dos alterados por câncer

uando precisam diferenciar com exatidão se um tecido é sadio ou tem câncer, os médicos geralmente recorrem à biópsia. Retiram um pedaço do material suspeito e o enviam para um exame laboratorial, que dirá, com um determinado grau de confiabilidade, se a amostra contém células tumorais ou não e de que tipo elas são. Em breve, é possível que os profissionais da saúde contem com um outro aliado para fechar o veredicto, a chamada espectroscopia de fluorescência, nome técnico para o uso de um feixe 38 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 118

de laser no diagnóstico de doenças, em especial de tumores. Experimentos feitos por pesquisadores do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC/USP) indicam que a metodologia consegue distinguir de forma rápida, não-invasiva e confiável um tecido normal de outro com câncer - pelo menos se o paciente for um hamster e o órgão afetado pela doença for a língua. "Nos roedores, nosso grau de acerto no diagnóstico de tumores nesse órgão é de 96%, um resultado muito bom", afirma o físico Vanderlei Salvador Bagnato, coordenador dos estudos com a nova técnica e do Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica (Cepof) do IFSC/USP, que, ao lado do Cepof da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), forma um dos dez Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP.

Os testes com o equipamento de fluorescência, uma fina cânula ou lanterna que emite um feixe de laser sobre a área a ser analisada e absorve a luz devolvida pelo tecido biológico, foram feitos em 72 roedores. Alguns animais eram sadios, outros tinham câncer em diversos graus de desenvolvimento e havia os que estavam em estágio terminal. Os bichos eram examinados a cada duas semanas com o equipamento e foram acompanhados por cinco meses. Por ora, o diagnóstico fornecido por essa abordagem consegue apenas separar os roedores em dois grandes grupos: os que têm câncer e os que não têm. O método, que ainda precisa ser refinado, não é capaz de discriminar se um tumor se encontra em estágio inicial, intermediário ou avançado, nem fornecer o seu grau de agressividade. "Cada tipo de lesão celular tem características comuns e diferentes de outras formas de lesão",


Feixe de laser: técnica distingue na língua de roedores células normais das tumorais

afirma a dentista Cristina Kurachi, que conduziu o trabalho com os ratos e concluiu o doutorado em óptica em São Carlos. "No momento, queremos entender o que há em comum nas respostas ópticas fornecidas por qualquer tipo de tumor de língua." Há ainda estudos, em estágio preliminar, sobre o uso do 0 PROJETO Diagnóstico por fluorescência MODALIDADE Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) COORDENADOR VANDERLEY SALVADOR BAGNATO

-

IFSC/USP INVESTIMENTO R$ 90.000,00 por ano (FAPESP)

laser para identificar tumores de pele, também em hamsters. A equipe de Bagnato tem boa experiência no emprego da espectroscopia de fluorescência para fins de diagnóstico. Há três anos, os pesquisadores do IFSC criaram um aparelhinho baseado nessa tecnologia capaz de apontar com precisão e de forma instantânea se uma laranjeira foi acometida de cancro cítrico, doença provocada pela bactéria Xanthomonas axonopodis pv. Citri, que provoca dezenas de milhões de reais de prejuízo à citricultura paulista. O raciocínio que norteia o emprego de feixes de laser, seja em amostras de vegetais ou animais, é o mesmo. As moléculas do tecido em questão absorvem uma parte da luz disparada pela cânula e reemitem uma fração alterada do laser originalmente jogado sobre elas. Essa resposta luminosa, que é captada e reprocessada pelo equipamento de espectrosco-

pia, contém informações sobre a composição do tecido examinado. Em outras palavras, quando em contato com o laser, o tecido normal e cada tipo de tumor exibem uma assinatura óptica específica. "Estamos comparando os espectros de tecidos sadios e alterados para criarmos padrões ópticos que diferenciem rapidamente células normais de células com câncer", diz Cristina. Os próprios cientistas são os primeiros a admitir que a eventual adoção de métodos de diagnóstico por fluorescência não tem como objetivo substituir a forma tradicional de identificar tumores ou outras doenças. A técnica que lança mão do laser seria uma ferramenta a mais à disposição do profissional da saúde. "Na biópsia convencional, a subjetividade está presente em muitas etapas do trabalho", comenta Bagnato. "Queremos criar uma forma de diagnóstico capaz de dar respostas mais objetivas e rápidas, que permita aos patologistas localizar até lesões pré-malignas, em estágio muito inicial." Em caráter experimental, o gastroenterologista Orlando de Castro e Silva Júnior, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, usou, com bons resultados, o equipamento desenvolvido em São Carlos para delimitar com precisão a extensão de tumores no fígado presentes em dez pacientes que sofreram cirurgia para remoção do câncer. Nesses casos, por mais experientes que sejam os profissionais responsáveis pela operação, quase sempre fica uma ponta de dúvida: será que todo o tumor foi retirado na excisão ou sobrou algum nódulo em alguma área vizinha? A vantagem da espectroscopia de fluorescência é fornecer uma resposta em tempo real, durante a própria cirurgia, a essa pergunta. "Mas ainda precisamos testar o equipamento em mais 40 ou 50 casos para termos certeza de que ele é realmente eficaz no diagnóstico de tumores hepáticos", pondera Silva Júnior, que também experimenta, com os colegas de São Carlos, a técnica de fluorescência no trabalho de triagem de fígados doados para transplante. • PESQUISA FAPESP 118 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ 39


CIÊNCIA

BIOLOGIA

r

QUITO

Caçadores de vírus Equipe da pesquisadores vai à Amazônia para vigiar a entrada de doenças emergentes FABRíCIO MARQUES

férias de julho foram de muito trabalho para um grupo de pesquisadores e estudantes da Universidade de São Paulo (USP). A bordo de um jipe e de uma picape, eles se embrenharam por trilhas na Floresta Amazônica com a missão de coletar material biológico de aves, insetos e outros animais. Objetivo: municiar pesquisas que buscam rastrear a chegada de doenças como a gripe aviaria ou a febre do oeste do Nilo, transportadas por aves migratórias. A escolha da Amazônia não foi casual. De um lado, a riqueza de sua biodiversidade e o impacto do desmatamento descontrolado favorecem o surgimento de viroses emergentes. De outro, a Região Norte do Brasil é a porta de entrada das principais rotas migratórias de aves, que podem trazer essas moléstias. "A vigilância epidemiológica da região é importantíssima", explica o biólogo Luciano Matsumya Thomazelli, participante da expedição. Encerrada a empreitada, na qual percorreram cerca de 9 mil quilômetros passando por dez estados brasileiros, voltaram a São Paulo de bagagem cheia. Haviam coletado amostras de sangue, fezes e secreção oral de mais de 400 patos, perus, aves silvestres, insetos e morcegos, que agora são analisadas no Instituto de Ciências Biomédicas 40 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 118

(ICB) da USP. Nesse tipo de levantamento, os pesquisadores buscam encontrar os primeiros sinais da entrada das doenças emergentes e, assim, deflagrar com rapidez estratégias de prevenção e de tratamento. Os primeiros resultados desse esforço mostram que, por enquanto, não há indícios de animais infectados. Mas o monitoramento vai continuar e deve estender-se por vários estados. O temível vírus H5N1, que produziu epidemias em países asiáticos, foi detectado em aves migratórias achadas mortas em vários países da Europa. A importância da expedição, capitaneada pelo professor de virologia da USP Edison Luiz Durigon, pode ser compreendida por vários parâmetros. Em primeiro lugar, foi testada com sucesso uma estrutura móvel de monitoramento capaz de sair de São Paulo e chegar por terra a lugares remotos e pouco acessíveis. "Ê um desafio que teremos de cumprir no caso da emergência de alguma doença desconhecida. Agora estamos preparados para isso", diz Durigon. A qualquer momento, podem partir de novo, a bordo do jipe Land Rover e da picape Ford com capacidade para transportar dez pessoas, duas barracas, um barco, equipamentos de laboratório e um gerador elétrico. Tal aparato é um apêndice de um projeto maior. A idéia é que colete material para abastecer o Laboratório Klaus Eberhard Ste-

wien, criado há dois anos no ICB, o primeiro no país com o padrão NB3+ (nível de biossegurança 3+). É quase o máximo possível para a pesquisa civil há instalações mais sofisticadas somente em países desenvolvidos. Em segundo lugar, a viagem foi útil para treinar futuros pesquisadores. Entre os oito integrantes que viajaram com Durigon e outros quatro que compuseram a equipe de retaguarda, contam-se oito alunos de doutorado, um de mestrado e três de iniciação científica. A maioria enfrentou nessa viagem sua primeira grande experiência de campo. "Nunca mais vou olhar uma amostra num tubo de ensaio da mesma forma que antes. Aprendi a respeitar o trabalho de quem obtém o material", diz Jansên de Araújo, biólogo e aluno de doutorado do ICB. A viagem também foi importante por motivos que não cabem propriamente em currículos acadêmicos. Se a expedição prestou-se ao amadurecimento dos pesquisadores, também foi rica em aventura e em experiência de vida. Teve desde passagens cinematográficas (como a da ponte que desmoronou segundos após a passagem dos carros) até ataques de nervos, racionamento de comida e pelo menos um tombo com ferimentos. Sem falar dos personagens curiosos que o grupo conheceu ao longo dos 29 dias de viagem. Eram 13 horas do dia 3 de julho quando a expedição, contando oito pes-


JOÃO PESSOA

:C!FE

Os estudantes percorreram 9 mil quilômetros em dez estados (mapa ao fundo): coleta de material de aves migratórias serviu como treinamento

PESQUISA FAPESP118 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ 41


soas, partiu do estacionamento do ICB, na Cidade Universitária. A saída coroou um esforço de superação do biólogo e doutorando Luiz Francisco Sanfilippo. Responsável pela equipe de campo, ele dividiu com o aluno de graduação Ricardo Lieutaud a tarefa de montar a estrutura da expedição. Poucos dias antes da partida, descobriu que o barco foi entregue fora das especificações pedidas e teve de jogar duro com o fornecedor, que acabou trocando a mercadoria. Também se aborreceu com o atraso na entrega da capota da picape Ford. Lieutaud, convocado para a viagem, não pôde ir por conta de um problema familiar. Foi substituído por Miguel Augusto Golono, biólogo e aluno de doutorado, r Quatro dias depois, após pernoitar em Três Lagoas (MS), Coxim (MS), Cuiabá (MT) e Comodoro (MT), o grupo chegaria ao primeiro destino, o núcleo de estudos do ICB em Monte Negro, em Rondônia, a 250 quilômetros de Porto Velho. Permaneceriam ali por uma semana, coletando material e aquecendo-se para o que encontrariam pela frente. Contando com uma boa estrutura - o núcleo do ICB dispõe de laboratórios, alojamentos e comunicação -, arriscaram-se nas primeiras capturas. Abriam redes às 4h30 da manhã para capturar insetos e aves. Ao cabo da temporada em Monte Negro, a expedição ganharia um nono integrante. A bióloga Carolina da Silva Ferreira, aluna de mestrado do ICB, convenceu os colegas a deixarem-na ir junto. Carolina estava em Monte Negro havia dois meses, fazendo a pesquisa que servirá de base à sua dissertação. Entediada com a longa temporada longe de casa, uma de suas poucas diversões era consumir o baratíssimo sorvete de açaí vendido em Monte Negro - quatro bolas por apenas R$ 2,50. "Em dois meses, já tinha engordado 10 quilos", lembra a bióloga. Nas semanas seguintes, não apenas perderia o peso acumulado como protagonizaria algumas das situações mais difíceis da expedição. A saída de Monte Negro, com destino a Manaus, aconteceu às 11 horas do dia 15 de julho. Os pesquisadores planejavam cumprir o trecho de 680 qui42 • DEZEMBRO DE 2005 • PESQUISA FAPESP118

lômetros em um dia e avisaram um grupo que os esperava em Belém que, se em três dias não dessem notícia, deveriam procurar ajuda. Pernoitaram num hotel em Humaitá, cidade amazonense logo após a divisa com Rondônia, e, na manhã do dia 16, mergulharam no pior momento da viagem: a rodovia BR 319, intransponível no período de chuvas, um calvário mesmo no período de seca e para quem viaja em jipes de trilha. Sem imaginar o que teriam pela frente, cometeram uma temeridade - levaram pouca comida. "Pediram para eu comprar 20 pães para a viagem e eu comprei 40, mas foi pouco", lembra o biólogo Jansen de Araújo. A estudante de biomedicina Tatiana Lopes Ometto, aluna de iniciação científica, resume o que aconteceu: "Saímos felizes e entusiasmados, mas conforme os buracos da estrada se sucediam, o sorriso foi desaparecendo. Uns estavam preocupados. Outros, bastante nervosos".

o caminho depararam com um homem numa motocicleta. Era um morador das redondezas que recebera do governo amazonense a incumbência de fazer a manutenção das pontes de madeira da BR. O homem sugeriu que voltassem. Isso porque a última ponte da estrada caíra havia poucos dias. "Fomos adiante mesmo assim porque o Land Rover e a picape passam sobre pequenos rios", diz o professor Durigon. O homem recomendou que parassem para dormir num vüarejo quilômetros adiante. K. Os obstáculos eram tantos e as condições da estrada tão precárias que a certa altura o grupo parou para decidir se deveria mesmo ir adiante. Fizeram uma votação sob a sombra do barco que a picape carregava. A maioria optou por seguir viagem - uma das poucas vozes dissonantes foi a de Luiz Francisco Sanfilippo, não por acaso o membro da expedição que melhor conhecia a região. A tensão atingiu o nível

máximo quando uma ponte desmoronou segundos após a passagem dos carros. Agora não havia mesmo como voltar para trás. O tempo foi passando, o sol se pôs - mas nada de aparecer o tal vilarejo descrito pelo homem da motocicleta, ou de qualquer vestígio de vida humana. O mais estressado com a situação era Miguel Golono. A beira de um acesso nervoso, exigia todos os três pães a que tinha direito. Foi acalmado pelos colegas. Eram 23 horas daquele sábado de lua crescente quando, extenuados, resolveram montar acampamento no meio da estrada, num quinhão de asfalto que a floresta e as chuvas esqueceram-se de engolir. Alguns, como Luiz Sanfilippo, dormiram mesmo ao relento - só mais tarde ele saberia que onças habitam a região. "Aquela parada foi um paraíso. Pensei comigo, estamos vivos, vamos dormir'", lembra Tatiana Ometto. Os pãezinhos foram consumidos com apreensão - ninguém sabia dizer quanto tempo ainda gastariam naquele arremedo de estrada. Acordaram cedo e, às 6 da manhã, já estavam na estrada. Novos contratempos, claro, estavam à espera. Carolina Ferreira, a bióloga que se juntou à equipe em Monte Negro, sofreu um acidente. Ela e o colega Mario Luiz Figueiredo, biólogo e aluno de doutorado, estavam incumbidos de analisar as condições das pontes antes que os carros passassem. Numa dessas vistorias, Carolina caiu num desvão e quase despencou no rio. Passou o restante da viagem com dores e escoriações. Duas preocupações marcaram este trecho da viagem. Uma era a tal ponte que não existia mais, conforme antecipara o homem da motocicleta. O grupo teve uma boa surpresa. Encontraram uma ponte novinha em folha, construída horas antes por uma equipe que estava instalando um cabo óptico entre Manaus e Porto Velho. A outra preocupação era o atraso. Programado para levar um dia, esse trecho da viagem já durava três - e eles não tinham como se comunicar. Estavam completamente isolados. Celulares não pegam naquele pedaço da floresta. "Não faria a viagem de novo sem um telefone por satélite", diz Durigon. / A 5,5 mil quilômetros dali, na Ilha do Mosqueiro, no Pará, a equipe de apoio formada pela biomédica Daniel-


Amost dos animais estão sendo analisadas em laboratório de alta segurança le Leal de Oliveira e as biólogas Juliana Rodrigues e Lílian Keller, exasperava-se com a falta de notícias. Começaram a discutir o que fazer e a procurar telefones de socorro. Às 23 horas do dia 17 de julho, o telefone da casa onde estavam finalmente tocou. Elas correram a atender. Em vão. A ligação caiu. Como o número ficou registrado, retornaram a ligação. Do outro lado atendeu alguém num telefone comunitário em Careiro Castanho, no Amazonas, a 88 quilômetros de Manaus. "Era um morador. Perguntei se tinha um homem barbudo por perto", diz Danielle, referindo-se ao biotipo de Edison Durigon. "Disseram que sim. Ufa. Eles tinham conseguido." Nos dois dias seguintes relaxaram a tensão fazendo a manutenção dos carros, embarcados de balsa para Belém, e preparando-se também para viajar à capital paraense - agora de avião. Chegaram à Ilha do Mosqueiro, a 79 quilômetros da capital paraense, às 21 horas do dia 19 de julho. O objetivo era visitar criadores de patos nos arredores de Belém. O grupo de apoio formado por Danielle, Juliana e Lílian já havia rastreado endereços e visitado criadores, desde granjas a moradores que criam no

quintal de casa, pedindo autorização para que os pesquisadores, quando chegassem, fizessem a coleta de material biológico. Percorreram localidades como Marabitana, Vigia, Santa Bárbara, Santo Antônio do Taruá e Santa Isabel. A criação de patos é antiga na região - o pato no tucupi é comida típica do almoço do Círio de Nazaré, festa religiosa do Pará. "A gente ia parando de casa em casa e explicando para as pessoas. Alguns se recusavam. A maioria perguntava: o meu pato vai morrer?", lembra Juliana. Não morriam, ela alertava. Só era preciso tirar um pouco de sangue.

Nesses lugares é comum os moradores criarem patos, porcos, galinhas e outros animais domésticos, todos juntos, no quintal de casa. É a partir dessa convivência excessivamente próxima entre homens e animais que evolui o contágio de doenças como a gripe aviaria, moléstia veterinária capaz de infectar seres humanos. O temor é que mutações do vírus da gripe do frango ganhem meios de se transmitir entre os homens, produzindo uma pandemia. "Tiramos fotos desses lugares e elas parecem com cenas do Vietnã, onde já houve um surto humano da gripe do frango", diz Durigon. "Os elementos são os mesmos: residências rurais pobres, cercadas de bichos. Numa das casas, as galinhas chocavam na cozinha." A estada paraense, que durou uma semana, foi produtiva. Coletaram material de aves silvestres, patos e perus, e conheceram lugares e pessoas que jamais vão esquecer. "Foi tocante ver aquelas pessoas simples nos ajudando. Teve um homem que foi de bicicleta buscar um pato para que a gente pudesse colher material", diz a aluna da Veterinária Renata Ferreira Hurtado. Lá conheceram uma certa dona Maroquinha, humilde camponesa que brindou os pesquisadores da USP com um banquete extraído de seu quintal, com direito a patos e perus temperados com coentro e urucum, guarnições de arroz, feijão e mandioca, e creme de cupuaçu de sobremesa. "Eles são muito pobres, mas ninguém passa fome", diz Durigon. A viagem de volta para São Paulo, a bordo novamente do Land Rover e da picape Ford, duraria quatro dias, com paradas em Imperatriz (PA), Paraíso do Tocantins (TO) e Goiânia (GO). Felizes com o sucesso da empreitada, os pesquisadores exibiam, contudo, as marcas da aventura. Vários viajaram debilitados por gastroenterites. A bióloga Carolina Ferreira, aquela que se juntou ao grupo em Rondônia e se machucou ao despencar de uma ponte de madeira, passaria os meses de agosto e setembro em repouso. Logo que chegou a São Paulo descobriu que contraíra hepatite A na viagem. Foi assim que perdeu os 10 quilos acumulados pela orgia de sorvetes na temporada em Monte Negro. • PESQUISA FAPESP118 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ 43


CIÊNCIA

Predadores Plano propõe estratégias para salvar as raias e os tubarões da costa brasileira

redadores de mares e rios, os tubarões e as raias que habitam ecossistemas brasileiros vivem o seu dia de caça. Nas últimas duas décadas, a pesca abusiva colocou na lista dos animais sob ameaça de extinção vários elasmobrânquios - classe que reúne os tubarões, as raias e os cações, os quais, em comum, têm o esqueleto formado apenas por cartilagens. Pesquisas realizadas no Brasil baseiam a inclusão nessa lista de espécies que já foram bastante prevalentes na costa nacional como a raia Rhinobatos horkelii, o tubarão-quati (Isogomphodon oxyrhynchus), o tubarão-boca-de-velha-listrado (Mustelus fasciatus), o peixe-serra {Pristis spp.), o tubarão-mangona (Carcharias taurus) ou o tubarão-anjo (Squatina spp). Esses animais têm crescimento relativamente lento, tardam a ingressar na idade adulta e reproduzem-se com parcimônia. Não há sequer justificativa econômica para o infortúnio dos elasmobrânquios. Isso porque são raras as espécies que têm valor econômico, como é o caso da raia Dasyatis marianae, vendida para uso ornamental em aquários, ou do tubarão-toninha (Carcharhinus signatus), cujas carne e barbatanas são apreciadas. Na verdade, a imensa maioria de tubarões e raias são capturados por pesqueiros que buscam outros alvos, como cardumes de atum. Mortos, acabam descartados. Ou então, para não perder a oportunidade, os pescadores arrancam produtos de algum valor, como dentes (usados como ornamentos) e barbatanas de tubarão (ingrediente de sopas em países asiáticos) e lançam as carcaças de volta ao mar. Faz anos que um grupo de oceanógrafos e ictiologistas alerta para o extermínio dos elasmobrânquios, mas agora eles tiveram a chance de apresentar uma estratégia para garantir a sobrevivência das espécies. Trata-se do Plano Nacional de Ação para a Conservação e o Manejo de Peixes Elasmobrânquios no Brasil, que sugere uma série de medidas, como a moratória na exploração de algumas espécies, o aumento do controle dos barcos pesqueiros e ò banimento de técnicas de pesca lesivas a tubarões e raias. O diagnóstico ampara-se em 44 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 118


Tubarões-mangona: desaparecidos da costa sul brasileira

;,:,■■■

.

■."■

.

■."''■■■■


quase 200 artigos científicos. Encaminhado ao Ministério do Meio Ambiente, é o resultado de dois anos de trabalho de 12 pesquisadores membros da Sociedade Brasileira para o Estudo de Elasmobrânquios (Sbeel), que trabalham em diferentes regiões do Brasil. O plano recomenda um esforço de pesquisa para conhecer melhor a biologia desses peixes e suas dinâmicas populacionais. Na costa brasileira, são conhecidas 85 espécies de tubarões e 55 de raias. O número, considerado modesto, seria o reflexo do ainda vasto desconhecimento científico sobre tubarões e raias do Brasil. "Como os elasmobrânquios não são os alvos diretos de pescarias, sua pesquisa não é considerada prioritária por órgãos financiadores", diz a oceanografia Rosângela Lessa, professora da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e organizadora do documento. Os pesquisadores admitem que é difícil sensibilizar agências de fomento e o público leigo para a necessidade de preservar espécies que protagonizam filmes de suspense e de terror. Mas, lembram, tubarões e raias são importantes para a biodiversidade de mares ou rios. "Eles fazem parte da cadeia alimentar e, se forem eliminados, podem produzir um desequilíbrio ecológico em cascata cujos contornos nem sequer podemos imaginar", diz Ricardo Rosa, pesquisador da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). "Além disso, o estigma é infundado. Das mais de 400 espécies de tubarões, não mais do que uma dú zia é realmente perigosa." Entre as espécies mais prejudicadas, destaca-se uma variedade da raia-viola, a Rhinobatos horkelii, que, conhecida pelo tamanho avantajado, chega a atingir 1,3 metro de diâmetro. Até o início da década de 1980 era abundante na costa do Rio Grande do Sul. Hoje está criticamente ameaçada. Entre 1985 e 1997 houve um declínio de 85% de sua população na plataforma sul brasileira, por conta da pesca exagerada de outras espécies. O plano de manejo é drástico em relação a esta raia-viola. Propõe a moratória da pesca, com proibição de sua comercialização no Brasil por tempo indeterminado, até que dados científicos atestem a recuperação de suas populações. 46 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP118

s costas das regiões Sudeste e Sul do Brasil são as mais afetadas, de acordo com o diagnóstico do plano de ação. No Sul, a expansão da atividade pesqueira do Brasil começou em 1947, com o desenvolvimento de uma técnica capaz de capturar peixes a até 50 metros de profundidade. A pesca de espécies oceânicas começou em 1959, com o uso de espinhei para a pesca de atum. O espinhei é um equipamento de pesca bastante utilizado, que consiste em uma linha principal unida a outras secundárias dotadas de anzóis para fisgar os peixes. Em 1998, a frota que faz esse tipo de pesca direcionou-se para alguns tipos de tubarões, devido à valorização de suas nadadeiras no mercado internacional.

Mas a carne não costuma ter valor comercial. Por isso, os pescadores arrancam as nadadeiras e devolvem os animais ao mar, às vezes ainda vivos. Como o controle da exploração costuma se dar no desembarque dos pesqueiros, essa prática escapa da fiscalização. / Um estudo feito em 2000 pelo pesquisador Carolus Maria Vooren, da Fundação Universidade Federal do Rio Grande (Furg), avaliou que a frota de barcos que fazem pesca a espinhei do Sudeste e Sul foi responsável pela captura de 186 mil exemplares de tubarões em 1997 - dos quais 156 mil foram descartados no mar, depois de retirados produtos lucrativos. O dado sugere que 83% dos tubarões capturados nem chegaram a ser desembarcados. Entre os tubarões de grande porte, uma das maiores vítimas é o mangona (Carcharias taurus), que sumiu das regiões Sudeste e Sul. Dois fatores determinaram o declínio. Como sua distribuição restringiase à faixa costeira, a espécie tornou-se


vulnerável às pescarias em águas rasas. Em segundo lugar, sua fecundidade é baixa, de apenas dois filhotes por ninhada, o que atrapalha a recomposição num ambiente hostil. Outro abuso é a exploração de raias-manta (Manta birostris) na costa de Santa Catarina, o que é proibido. Na região central da costa brasileira, que abrange os estados da Bahia, Espírito Santo e Rio de Janeiro, a pesca de tubarões e raias tem importância econômica, social e cultural. A carne de raia é bem-vinda na preparação de moquecas e há mergulhadores que capturam animais vivos para vender como peixes ornamentais. Estatísticas apontam queda na população desses peixes na Bahia entre 1998 e 2002. No caso das raias, o volume caiu de 6% para 2% do total de toneladas de pesca. Entre os cações, a queda foi de 4,7% para 0,8%. Próximo às regiões urbanas, o problema é a poluição. Na baía de Todos os Santos há registros de raias-viola do tipo Rhi-

nobatos percellens capturadas com deformidades congênitas. Frota arrendada - No Nordeste, o mais preocupante é a abertura da exploração de atum para barcos arrendados por outros países. Do total de peixes capturados por essa frota, até 25%, na maioria das vezes acidentalmente, são elasmobrânquios. Em 1998 estavam em atividade dois barcos atuneiros nacionais e 16 arrendados para países como Belize, Espanha, Portugal, Taiwan e Guiné Equatorial. Esse número aumentou para 29 barcos nacionais e 69 arrendados em 2002.0 crescimento da frota não foi acompanhado pela estrutura de monitoramento da pesca. "Temos informações de que ainda é comum a prática proibida de arrancar as barbatanas dos tubarões e jogar as carcaças de volta ao mar", diz Rosa, da UFPB. Entre os tubarões estudados, o galhabranca-oceânico (C. longimanus) é um dos mais vulneráveis. Já o tubarão-azul

(C. glauca), espécie de alta fecundidade, com aumento populacional de 5% ao ano, corre menos risco. Curiosamente, um dos principais esforços de pesquisa no Nordeste não atinge nenhum animal ameaçado de desaparecer. Trata-se do Carcharhinus leucas, o tubarão-cabeça-chata, objeto de um projeto capitaneado pela Universidade Federal Rural de Pernambuco. Vem a ser a espécie que atacou cerca de 50 surfistas em Recife nos últimos 12 anos. O objetivo do projeto é estudar os ciclos biológicos e analisar fatores ambientais relacionados aos ataques. Dáse como certo que as agressões têm a ver com a construção do porto de Suape, que mudou a configuração do estuário e pode ter empurrado os tubarões em direção a Recife. Já na costa norte, chama atenção o desconhecimento sobre a fauna marinha e de água doce. "As metas de maior urgência são a coleta de dados biológicos dos desembarques e a implementação de um programa de observadores de bordo para a frota da região", diz a bióloga Patrícia Charvet Almeida, doutoranda da UFPB, uma das poucas pesquisadoras de elasmobrânquios em atividade no norte do Brasil. "Até o momento, só foram levantadas informações sobre exploração, alimentação e reprodução de 12 espécies", afirma. "A costa norte ainda trará novidades quanto à diversidade de espécies de elasmobrânquios." O ecoturismo, que é visto como uma saída ambientalmente sustentável de desenvolvimento, é um grande inimigo das raias de água doce em algumas partes da região amazônica. Elas são alvo da chamada "pesca negativa". Trata-se de uma forma suave de classificar a matança. Donos de hotéis ou de empresas mandam matar raias que habitam áreas rasas das praias de água doce. Ocorre que, quando os turistas pisam nelas, levam ferroadas. O ferimento é extremamente dolorido e muitas vezes de difícil cicatrização. O plano de manejo está nas mãos do Ministério do Meio Ambiente, que decidirá o que fazer com as sugestões. A expectativa é que ao menos uma parte das sugestões seja incorporada à legislação de conservação ambiental. • FABRíCIO MARQUES PESQUISA FAPESP118 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ 47


-CIÊNCIA

ASTROFÍSICA

O grande ímã .da „

Via Láctea Força gravitacional de enorme estrutura situada a 500 milhões de anos-luz puxa nossa galáxia em sua direção MARCOS PIVETTA

1\T ^^^k I ^H ^H ^

radicados nos Estados Unidos e Inglaterra, autodenominado os Sete Samurais, mostrou que a Via Láctea e outras galáxias vizi—m4L_ nhas se moviam mais rapidamente do que a velocidade estimada de expansão do Universo. Uma anomalia cosmológica parecia arrastá-las 400 quilômetros por segundo acima do esperado em direção às constelações de Hidra e Centauro. A explicação para tal aceleração inesperada deveria ser a presença de uma quantidade colossal de massa não-identificada nessa região do Universo, que funcionaria como um ímã gravitacional para a nossa e outras galáxias adjacentes. Como um Grande Atrator, termo cunhado pelos cientistas para designar o fenômeno. Desde então, muitos astrofísicos tentaram (e ainda tentam) localizar a origem da perturbação, sem chegar a uma resposta definitiva. Num artigo a ser publicado ainda este ano na revista científica européia Astronomy and Astrophysics, uma equipe internacional de pesquisadores, com a participação de um brasileiro, afirma ter identificado a estrutura que responde por metade do efeito Grande Atrator. Seria o supercluster Shapley, um megaagrupamento de galáxias distante um pouco menos de 500 milhões de anos-luz de nós (um ano-luz eqüivale à distância percorrida pela luz em um ano, cerca de 9,5 trilhões de quilômetros). Descoberto na década de 1930 pelo astrônomo norte-americano Harlow Shapley, esse supercluster, composto por 44 clusters (agrupamentos) menores, cada um com centenas ou milhares de galáxias, se situa ao norte da constelação de Centauro e é visível apenas do hemisfério Sul terrestre,

48 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 118


Desenho da Via Láctea {ao lado) e imagem de Andrômeda (alto): movimento das galáxias se acelera em razão do supercluster Shapley


sempre com o auxílio de telescópios. Seu formato é o de uma nuvem ovalada de galáxias. De seus clusters centrais emanam raios X, indício de que ali há gás a temperaturas superiores a 10 milhões de graus Celsius. Devido às suas gigantescas proporções, Shapley é considerado por alguns astrofísicos como a maior estrutura localizada no chamado Universo local, que engloba tudo que existe a uma distância de uns 500 milhões de anos-luz da Terra. "Ele é cerca de 40 vezes maior que o grupo local de galáxias", compara Laerte Sodré, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG/USP), um dos autores do trabalho. O grupo local, do qual fazem parte a Via Láctea, Andrômeda e outras três dezenas de galáxias, mede aproximadamente 3 milhões de anos-luz. O supercluster Shapley apresenta números impressionantes. A começar por seu comprimento, que se estende por 120 milhões de anos-luz. Sua densidade também é quase inimaginável: se fosse uma bola, seu volume seria equivalente ao de uma esfera com raio de 80 milhões de anos-luz. Sua massa, de acordo com os cálculos do estudo, é aproximadamente 5 x 1.016 vezes maior que a do Sol. Os astrofísicos não sabem quantas galáxias existem em toda essa estrutura, mas conhecem a velocidade de 5.701 delas. Enfim, o supercluster é uma estrutura descomunal, muito rara no Cosmos, cuja força gravitacional arrastaria em sua direção nossa galáxia e suas vizinhas. "Falta agora descobrir uma quantidade de matéria idêntica a Shapley, na mesma direção do Cosmos, para explicarmos o movimento particular de nossa galáxia", afirma o astrofísico Dominique Proust, do Observatório de Paris, principal autor do novo estudo sobre a natureza do Grande Atrator, que também inclui pesquisadores chilenos, argentinos e australianos. Uma das dificuldades dessa linha de pesquisa é obter dados confiáveis sobre a massa contida num supercluster. Sem esse tipo de informação, fica difícil estimar a ordem de grandeza do campo gravitacional que pode emergir dessa megaestrutura. Em busca da possível fonte do Grande Atrator, a equipe mul50 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 118

tinacional de astrofísicos primeiramente calculou, ou consultou os registros disponíveis, a velocidade de recessão de 8.632 galáxias situadas na direção das constelações de Hidra e Centauro, a região do Cosmos para a qual a Via Láctea está sendo puxada.

maioria dessas galáxias pertence ao supercluster Shapley. Outras são de áreas vizinhas, como o supercluster Hidra-Centauro, ou de clusters menores. A velocidade de recessão registra o ritmo com que um objeto se distancia de seu observador. Em 1929, o astrofísico norteamericano Edwin Hubble - o primeiro homem a mostrar que o Universo estava em expansão e não era estático estabeleceu a lei cosmológica de que, quanto mais longe se encontrava uma galáxia da Via Láctea, mais rapidamente ela se afastava de nós. Em outras palavras, quanto mais distante estiver uma galáxia, maior é a sua velocidade de recessão. E ter em mãos esse tipo de registro, além de dados sobre a luminosidade das estrelas e galáxias, ajuda a abastecer os modelos usados pelos astrofísicos para estimar a densidade de objetos e formações celestes de grande porte. Se a proposta do novo estudo estiver correta, pelo menos metade do Grande Atrator está localizada a uma distância do grupo local de galáxias bem maior do que apontavam estimativas anteriores. A maioria dos trabalhos defende a idéia de que essa anomalia gravitacional é provocada por estruturas cósmicas mais próximas da Terra, situadas entre 150 milhões e 250 milhões de anos-luz. Antes e na direção de Shapley há um outro megaagrupamento de galáxias e clusters de galáxias, o supercluster Hidra-Centauro, distante aproximadamente uns 200 milhões de anos-luz. Certos pesquisadores acreditam que a matéria reponsável pelo efeito Grande Atrator se encontra em algum ponto desse supercluster, que é o mais próximo da Via Láctea. "Certamente, é possível que o supercluster

Shapley forneça uma parte significativa do Grande Atrator, mas as evidências que vi até agora sugerem que uns dois terços do efeito total vêm de regiões mais próximas", diz o astrofísico inglês Donald Lynden-Bell, da Universidade de Cambridge, um dos Sete Samurais que descobriram essa perturbação gravitacional. A equipe liderada por Dominique Proust, do Observatório de Paris, como era de esperar, não concorda com a visão do britânico. "O supercluster HidraCentauro está situado em frente ao Shapley, mas ele não poderia produzir o campo gravitacional necessário para justificar o deslocamento do grupo local de galáxias em sua direção", pondera o astrofísico francês. "Esse movimento deve ser associado a uma estrutura com muito mais massa, o Shapley." Laerte Sodré bate na mesma tecla. "O assunto não está resolvido, mas nosso estudo indica que o Shapley dá uma contribuição importante para o Grande Atrator", afirma o pesquisador do IAG/USP. Na verdade, o artigo da Astronomy and Astrophysics sustenta a tese de que esse supercluster é muito maior do que se imaginava - portanto capaz de originar campos gravitacionais ainda mais fortes - e possui "pontes" que o ligam ao supercluster Hidra-Centauro, situado mais próximo da Via Láctea. Dinâmica do Universo - Determinar a natureza do Grande Atrator é, sem dúvida, importante para a compreensão das estruturas celestiais que alteram os movimentos da Via Láctea, galáxia no interior da qual, em meio a centenas de bilhões de estrelas, estão o Sol, a Terra e os demais planetas do sistema solar. Mas a relevância desse campo de estudos tem repercussões ainda mais fundamentais: pode ajudar a entender melhor as variáveis que atuam sobre a dinânica do Universo, que, segundo a teoria mais aceita no meio científico, está se expandindo desde o Big Bang, a hipotética explosão primordial que teria criado o Cosmos há 13,7 bilhões de anos. Hoje há evidências de que a distribuição de matéria no Universo não é uniforme. Algumas regiões do espaço são aparentemente grandes vazios, sem matéria visível, enquanto outras apresentam enormes concentrações de estrelas e galáxias, dando origem a megaestrutu-


A misteriosa matéria escura (em azul] em torno de um grupo de galáxias: Shapley tem sete vezes mais partículas invisíveis que visíveis

ras cósmicas, como os superclusters. Mesmo no interior dessas gigantes formações cósmicas a presença de matéria não é igual em todos os seus setores. Em outras palavras, não é fácil ter uma noção clara da densidade de todo o Universo ou mesmo de algumas de suas zonas. "Os modelos cosmológicos dependem muito desse tipo de dado", afirma Proust, que, além de astrofísico, e, apesar do sobrenome literário, é músico (toca órgão na igreja de Notre-Dame da Assunção em Meudon, nos arredores de Paris, e já gravou CDs com a obra de autores como o britânico William Herschel, astrônomo e compositor que viveu entre 1738 e 1822). "Uma das questões atuais é descobrir por que parece faltar matéria no Universo." A região do Cosmos que seria a fonte de metade do Grande Atrator não é exceção a essa regra. A parte visível de Shapley parece ser apenas a ponta do supercluster, acreditam os cientistas. No aparente vazio que existe entre seus milhares de galáxias deve haver muita matéria escura, um misterioso tipo de partícula que aparentemente não emite nem absorve luz. "Há mais ou menos sete vezes mais matéria escura que visível em Shapley", estima Sodré. A existência desse tipo de matéria, aceita pela maioria dos astrofísicos, só pode ser inferida pela influência de seu campo gravitacional sobre corpos vizinhos. Se, por exemplo, o movimento de uma galáxia ou uma estrela é afetado em uma proporção não compatível com a massa visível dos objetos cósmicos em suas redondezas, essa perturbação costuma ser explicada pela presença, nessa região do espaço, de partículas invisíveis às formas diretas de observação cósmica. Até o final da década passada, cogitava-se que mais de 90% do Universo era composto por matéria escura. Desde então, com a descoberta da ainda mais intrigante energia escura, uma força que funcionaria como um contraponto à gravidade, afastando, em vez de atrair, a massa dos corpos celestes, a quantidade de matéria escura passou a ser calculada em cerca de 23% do total do Universo (a matéria visível responderia por meros 4% do Cosmos e a energia escura, por 73%). Se esse raciocínio estiver correto, Shapley, o coração do Grande Atrator, é possivelmente um dos pontos do Universo local com mais matéria e energia escuras. • PESQUISA FAPESP118 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ 51


CIÊNCIA FÍSICA

As longas asas dos neurônios Quantidade e eficiência das conexões dependem essencialmente da forma das células nervosas

CARLOS FIORAVANTI

Dessa vez não são neurologistas, mas físicos e engenheiros que apresentam propostas novas - e aparentemente úteis - sobre os neurônios e o funcionamento do cérebro. Uma equipe do Instituto de Física de São Carlos demonstrou que a capacidade de os neurônios se conectarem não depende apenas dos caminhos já trilhados ou das ligações já estabelecidas. Depende também da própria forma dos neurônios: quanto mais ramificado for um neurônio, mais conexões poderá estabelecer com outros neurônios. A conclusão parece óbvia, mas nem por isso deixa de ser importante. No Brasil é provavelmente a primeira vez que o sistema nervoso é analisado por meio da Teoria das Redes Complexas, um dos artifícios matemáticos pelos quais se busca uma visão integrada dos fenômenos da natureza. Esse caminho leva também a outras conclusões, nem tão evidentes. Pode-se agora entender melhor, por exemplo, por que a informação circula com diferentes velocidades no sistema nervoso. Segundo os físicos, o tráfego é mais lento no córtex, a camada mais superficial do cérebro, porque os neurônios se distribuem de modo relativamente uniforme em um espaço plano e todos se conectam com seus vizinhos. As mensagens são mais velozes quando saem de um ponto do córtex e seguem para regiões mais distantes por meio de conexões de longo alcance, com menos intermediários. A Teoria das Redes Complexas oferece outras formas de explicar a origem de alguns tipos de retardamento mental, que, vistas por esse olhar, resultariam não da falta de cone52 • DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP118


Neurônios artificiais (células ganglionares da retina) em crescimento: dendritos e axônios expandem-se um pouco a cada instante, atraídos pelo campo elétrico produzido pelos outros neurônios

PESQUISA FAPESP118 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ 53


xões, como se pensava, mas de seu excesso, que atrapalha o fluxo de informações. Em qualquer pessoa, o número e a eficiência das conexões regem tanto os fenômenos involuntários, como os batimentos cardíacos, quanto os voluntários, como a escolha da roupa pela manhã. Em conseqüência de fatores genéticos e de estímulos ambientais, varia muito a forma dos neurônios, que podem ser pouco ou muito ramificados. Suas ramificações podem ser curtas ou longas. As curtas são os dendritos, que recebem as informações de outros neurônios. As longas, chamadas de axônios, com cerca de meio metro, enviam as mensagens. A arquitetura dessas células, ao permitir estabelecer mais ou menos conexões com outras, pode determinar as conexões e influenciar o funcionamento do cérebro, o comportamento humano e mesmo o desenvolvimento de algumas doenças. Foi o que demonstrou a equipe de São Carlos, por meio de análise de dados biológicos fornecidos por outros grupos de pesquisa e de simulações em computador do comportamento das redes de neurônios. Segundo esse grupo, a forma do neurônio casa-se com sua função, do mesmo modo que as asas curtas das galinhas as impedem de voar, enquanto as asas das andorinhas, proporcionalmente mais longas, lhes permitem amplos vôos. Segundo Luciano da Fontoura Costa, coordenador da equipe do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP), essa interdependência entre forma e função dos neurônios constitui um paradigma pouco explorado pela neurobiologia. "O funcionamento global do sistema nervoso depende totalmente da forma, que, por sua vez, determina as interconexões entre os neurônios", diz David Schubert, coordenador do laboratório de neurobiologia celular do Instituto Salk, dos Estados Unidos. Costa assinou com Schubert um estudo publicado na revista especializada Journal of Neuroscience sobre a aglomeração dos neurônios, que pode ser determinada pela adesão entre eles e com o ambiente extracelular: quando se agru54 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 118

pam muito, podem surgir problemas como o mal de Alzheimer. "A forma das células nervosas muda muito em doenças como o Alzheimer", observa Schubert. "Entender a forma dos neurônios e como ela é regulada é essencial para desvendar o funcionamento do sistema nervoso em condições normais ou patológicas."

osta, dessa vez com a participação do pós-doutorando Marconi Barbosa, verificou que grupos de neurônios com o mesmo número de elementos, cada um deles com o mesmo número de conexões, mas com formas distintas, podem funcionar de modo diferente. A conclusão emergiu de um experimento em computador no qual se fixou um conjunto de neurônios e se simulou uma função - a memória. De modo geral, a memória mais ou menos afiada depende de pelo menos duas variáveis: as ramificações e o espalhamento dos neurônios. "No caso da memória", observa Costa, "o melhor é que os neurônios apresentem ramificações com uma ampla distribuição espacial". Em um trabalho feito com Fernando Rocha e Silene Lima, da Universidade Federal do Pará (UFPA), Costa analisou a distribuição dos fotorreceptores neurônios especializados em captar luz - da retina de um roedor, a cutia (Dasy0 PROJETO Desenvolvimento e avaliação de métodos originais e precisos em análise de formas e imagens de visão computacional MODALIDADE Projeto Temático COORDENADOR LUCIANO DA FONTOURA COSTA

- IFSC-USP

INVESTIMENTO R$ 1.571.439,06 (FAPESP) R$48.000,00 (CNPq) US$ 180.000,00 (Human Frontier Science Program)

procta agouti). O resultado, publicado na Applied Physics Letters, indica que não existe melhor ou pior espalhamento dos neurônios. "Dependendo da situação", diz Costa, "os dois tipos de distribuição funcionam bem". Costa e o veterinário Marcelo Beletti, da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), de Minas Gerais, demonstraram como se organizam os canais internos dos ossos que abrigam as artérias e as veias por onde flui o sangue que irriga e nutre a medula óssea, central de produção das células sangüíneas. Essas estruturas esponjosas, conhecidas como canais de Havers e de Volkmann, obedecem a uma hierarquia similar à das ruas e avenidas de uma cidade: há caminhos principais e secundários e alternativas mais longas ou mais curtas. Como proposto em um artigo na Physkal Review Letters, há sempre um caminho mínimo entre dois pontos, além de redundâncias: se um canal entope, o sangue encontra desvios que compensam o bloqueio. ^ As conclusões resultam do estudo de um fragmento de fêmur de gato, cortado em finíssimas fatias e convertido em imagens. A reconstrução tridimensional do osso revelou uma rede de canais com 852 nós e 1.016 conexões. Nela as equipes de Costa e Beletti encontraram elos menos importantes, que podem ser fechados sem problemas, e os essenciais, cuja perda prejudica a irrigação sangüínea. É um conhecimento que pode ajudar a planejar cirurgias, implantes ou tratamentos médicos mais seguros. Pequeno mundo - A Teoria das Redes Complexas está alimentando uma visão mais integrada dos organismos vivos, a chamada biologia de sistemas ou systems biology. "As redes complexas são adequadas para modelar e representar os problemas em biologia dos sistemas por incorporarem as transformações da própria rede, com a perda ou acréscimo de elementos ou de conexões", diz Costa. Essa abordagem já explicou uma característica inesperada das interações sociais, ao propor que a distância entre as pessoas era bastante pequena e qualquer uma poderia alcançar outra sem muitos intermediários: existem em média seis estágios de separação entre dois


•a*

Jrr A estrutura das conexões entre os canais de um osso {pontos vermelhos são os nós): desvios evitam obstruções

habitantes quaisquer da Terra. Teoricamente, qualquer leitor desta revista pode conhecer alguém que conhece alguém que conhece a supermodelo Gisele Bündchen. É o chamado pequeno mundo, expressão a que os físicos e sociólogos ajudaram a dar consistência. Uma das conseqüências da aplicação dessa teoria é que às vezes alguns elementos de um conjunto - pessoas, células, genes ou proteínas - são mais importantes que outros. Cinco anos atrás, o físico húngaro Albert-László Barabasi, hoje na Universidade de Notre Dame, Estados Unidos, mapeou as conexões entre as páginas da internet e descobriu que elas seguiam a chamada lei de escala: poucos nós - os hubs - fazem muitas conexões, concentrando o fluxo de informações da teia de computadores. Os hubs são como os aeroportos, a exempo do de Cumbica, na Grande São Paulo, que centraliza o tráfego aéreo nacional. Os artifícios matemáticos dessa teoria reduzem fenômenos diferentes a conjuntos de conexões entre dois ou mais pontos. Barabasi aplicou esse conceito a outros problemas da biologia de

sistemas, como a rede de interação de proteínas: algumas são mais importantes que outras e, se danificadas, podem pôr em risco o funcionamento do organismo que ajudam a formar. Uma sociedade de neurônios - Costa começou a aplicar os conceitos da Teoria das Redes Complexas em 2002. Foi quando o físico Dietrich Stauffer, da Universidade de Colônia, Alemanha, o convidou para analisar o funcionamento das redes neuronais seguindo os padrões de conexão de Barabasi. De acordo com o modelo clássico, cada neurônio se liga com todos os outros mais próximos, mas a realidade não é assim tão democrática. Stauffer e Costa chegaram a um modelo mais realista por meio das redes livres de escala, um dos filhotes mais férteis das redes complexas, que leva à formação de hubs. De acordo com essa abordagem, alguns neurônios seriam mais importantes e teriam mais conexões que outros. "Os neurônios são como indivíduos, que aprendem a viver em sociedade, o cérebro", compara Costa. "Mais estímulos tendem a estabelecer mais conexões

entre os neurônios, mas podem também reduzir as conexões." Segundo ele, o funcionamento do cérebro depende dessas conexões, selecionadas desde o nascimento. O cérebro de um recémnascido contém cerca de 100 bilhões de neurônios. Após migrarem para seus lugares definitivos, as células nervosas estabelecem o maior número possível de conexões com outros neurônios cerca de 1 trilhão a mais do que seriam capazes de usar. Há quem acredite que lá pelos 10 anos de idade sobrevivam apenas as conexões mais usadas, em razão dos estímulos do ambiente. Costa acredita que tem em mãos ferramentas versáteis, que poderiam ajudar a estudar e solucionar outros problemas, a exemplo da identificação de autores de textos literários, interpretação de imagens ou a expressão de genes durante o desenvolvimento animal. Mas também sabe que só a matemática não resolve tudo. "Trabalhos como esses só se desenvolvem com especialistas de muitas áreas, que não só fornecem dados biológicos, mas também são indispensáveis na interpretação dos resultados das pesquisas." • PESQUISA FAPESP 118 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ 55


Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org

Recentemente, cinco periódicos brasileiros foram incluídos nas bases de dados do Institute for Scientific Information (ISI), da Thomson Scientific, e constam na Master Journal List. São eles: a Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, aceita para indexação nas bases de dados Current Contents/ Clinicai Medicine e Science Citation Index Expanded; e os periódicos Journal of Venomous Animais and Toxins including Tropical Diseases, Revista Brasileira de Botânica, Papéis Avulsos de Zoologia e Revista do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo, selecionados para as bases de dados Biological Abstracts e Biosis Previews. Desde 2002, um número crescente de periódicos da coleção da Scientific Electronic Library Online (SciELO) tem sido selecionado para indexação em importantes bases de dados internacionais, como Medline, Embase e bases de dados da Thomson/ ISI Scientific. 0 aumento da presença dos periódicos de qualidade dos países ibero-americanos nos índices internacionais é um dos objetivos principais do projeto SciELO que vem sendo atingido sistematicamente nos últimos anos.

■ Ciência

Produção intelectual Os pesquisadores da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM/Unifesp) Fábio Xerfan Nahas e Lydia Masako analisaram todas as variáveis que se devem conter na publicação de um estudo científico. "O título é a maior arma para convencer o leitor de que vale a pena ler o artigo", descrevem os autores do artigo "Análise dos itens de um trabalho científico". "Por esta razão deve ser curto e ao mesmo tempo completo, de fácil compreensão e traduzir a proposição do trabalho." A introdução visa situar o leitor sobre o que se passa na literatura mundial sobre o assunto. Deve ser concisa e objetiva, principalmente no caso de artigos para revistas, além de demonstrar a relevância do estudo de forma bem resumida, com citações e estatísticas. O objetivo do estudo deve ser colocado ao final da introdução. "O objetivo é a pergunta à qual o estudo se propõe a responder e, ao final, deverá fazê-lo, seja positiva ou negativamente", dizem. O texto mostra que a introdução e o resumo dão a primeira impressão ao revisor do periódico. Dessa forma, merecem especial atenção do autor, pois aumentam a chance de aceitação do artigo. Em métodos, devem ser descritos a amostra e os procedimentos realizados durante o experimento. Os detalhes que limitam e descrevem a amostra devem ser colocados neste momento. Já os resultados devem ser relatados com clareza e podem ser expostos de três modos: no texto, para valores únicos ou poucos dados; em tabelas que facilitam a apresentação de alguns tipos de dados; ou em gráficos que podem dar a noção de evolução, comparação e frações de um total. "Os resultados não devem ser repetidos no trabalho em suas diversas formas de apresentação. Se os valores forem colocados na tabela, os mesmos não devem ser apresentados em gráficos", recomendam os autores. No item resultados, os valores devem ser apenas relatados e nunca comentados ou justificados. A interpretação dos resultados deve ser colocada no item discussão. "A discussão é a essência do artigo científico. Expressa as opiniões dos autores em relação ao tema em estudo e permite comparações dos resultados obtidos com os dados

56 • DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 118

disponíveis na literatura." É neste momento que o autor pode discorrer com maior liberdade sobre o tema, fazendo suas hipóteses e considerações. São colocados os futuros caminhos a serem estudados sobre o assunto. Atualmente alguns periódicos incluem a conclusão como último parágrafo da discussão, sem colocá-la em item separado. "Obrigatoriamente os autores devem concluir com a resposta à questão inicial do trabalho colocada no objetivo. Todo trabalho deve ter pelo menos esta conclusão", afirmam os autores do artigo. ACTA CIRúRGICA BRASILEIRA SãO PAULO

- VOL. 20 - SUPL. 2 -

2005

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=Soio2865020050oo8oooo4&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Agricultura

Nichos ecológicos Durante três períodos diferentes, dez famílias de uma comunidade de agricultores de Minas Gerais consumiram 76 diferentes refeições que foram analisadas. O estudo "Nicho ecológico de agricultores familiares da região sul do Estado de Minas Gerais (Brasil)", assinado por Nivaldo Nordi e colaboradores, investigou os meses de setembro de 1995 (fim da estação seca), dezembro de 1995 (estação chuvosa) e abril de 1996 (fim da estação chuvosa). Além de defender a utilização do conceito de nicho ecológico como um dos principais para estudar o ser humano e sua relação com o meio ambiente, o estudo discutiu os resultados obtidos nos contextos sociocultural, econômico e agrário. A comunidade analisada pareceu depender marcadamente de determinados itens alimentares, mostrando pouca variação sazonal em sua dieta, e também ser auto-suficiente quanto ao suprimento alimentar, com satisfatório estado nutricional. A largura do nicho alimentar para as famílias de pe-


quenos agricultores estudadas esteve sempre abaixo de 50%, com alta sobreposição sazonal, variando de 72% a 80%. Em termos econômicos, os dados mostram ainda que o sistema de produção dos agricultores oferece a eles uma independência apenas relativa do mercado. Em compensação, metade dos alimentos ingeridos foi produzida pelas próprias famílias. Além disso, do ponto de vista social, a cooperação no trabalho e a troca de alimentos permitem que ocorra uma maior consolidação das relações humanas entre os grupos familiares da comunidade.

diversos setores sociais que produzem e consomem informação para flexibilizar os critérios classificatórios da disciplina, abrindo suas fronteiras para os novos fenômenos informacionais", aponta a pesquisadora.

BRAZILIAN JOURNAL OF BIOLOGY CARLOS - FEV. 2005

■ Radiologia

vou 65 - N° 1 - SãO

CIêNCIA DA INFORMAçãO JAN./ABR. 2005

- VOL. 34 - N° 1 - BRASíLIA ■

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=Soiooi9652005000ioooo9&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

Comparação Brasil e Austrália www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=Si5i969842005000ioooo9&lng=pt&nrm=iso&tlng=en

■ Tecnologia

Fenômenos informacionais Como conseqüência das recentes tecnologias, surgem novas áreas de interesse dentro da biblioteconomia e ciência da informação que necessitam ser examinadas. A webometria é uma dessas áreas de estudo que vêm adquirindo importância crescente para as análises quantitativas na internet. O artigo "Os links e os estudos webométricos", de Nadia Vanti, bibliotecária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), reflete exatamente sobre isso: o surgimento de diferentes conceitos quantitativos aplicados à internet. O estudo evidencia o conceito de webometria, sua abrangência, aplicações e possíveis denominações. São assinaladas as suas diferenças com a cibermetria e estabelecidas as relações que estes dois métodos mantêm com outros conceitos tradicionais. "A webometria é o estudo dos aspectos quantitativos da construção e uso dos recursos de informação, estruturas e tecnologias na web" explica Nadia. O artigo analisa também um recurso que vem despertando grande interesse entre os pesquisadores no assunto, não só por facilitar a navegabilidade entre sítios dentro da web, mas também por constituir um dos indicadores mais relevantes dentro dos estudos webométricos: os chamados weblinks. "É possível observar a utilidade que os weblinks revestem não só para os internautas como uma ferramenta de movimentação dentro da web, mas também a informação que eles proporcionam ao pesquisador que busca estabelecer as relações entre determinadas áreas do conhecimento", afirma Nadia. Segundo o artigo, atualmente a web constitui a mais rica fonte de informação já conhecida pela humanidade. Assim sendo, não surpreende que pesquisadores que habitualmente se dedicavam a estudar os sistemas de informação tradicionais voltem-se agora para a investigação de como este ambiente virtual pode ser utilizado, organizado e avaliado. "Pode-se concluir que a webometria representa área fundamental dentro da biblioteconomia e ciência da informação. Nesse sentido, é importante incorporar os

Bons exemplos do outro lado do mundo, se trazidos para o Brasil, poderão aumentar a segurança dos pacientes, sem prejuízo da qualidade dos exames radiológicos mais comuns. O trabalho "Estudo comparativo das técnicas radiográficas e doses entre o Brasil e a Austrália", de autoria de Ana Cecília Pedrosa de Azevedo, da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz, e colaboradores, comparou técnicas radiográficas em uso nos dois países. No total, quatro tipos de exames foram avaliados: o de tórax, de abdome, de pelve e de coluna torácica em três projeções: ântero-posterior, pósteroanterior e lateral. Na Austrália, todos os equipamentos são digitais, enquanto no Brasil os aparelhos são convencionais. Os valores médios de entrada na pele do radiofármaco e da dose efetiva desses medicamentos foram consideravelmente mais altos no Brasil do que na Austrália. A única exceção foi detectada nos exames de tórax, mais baixos aqui. As maiores diferenças encontradas foram para os exames de pelve (26 vezes maior no Brasil) e de coluna torácica (43 vezes maior no Brasil). Nos hospitais australianos, os programas de controle e garantia de qualidade fazem parte da rotina nos serviços de radiologia. Contam com equipamentos digitais de última geração e os serviços possuem uma equipe de física médica atuante. Esse conjunto de iniciativas resulta na produção de imagens radiográficas de alta qualidade, com baixas doses e índices de rejeição próximos a zero. Tais resultados apontam para a necessidade de estimular a implantação de ações semelhantes em toda a rede hospitalar brasileira. No entanto, analisando os resultados dos exames de tórax, concluímos que doses baixas também são possíveis no Brasil se forem empregadas técnicas radiográficas adequadas. RADIOLOGIA BRASILEIRA SET./OUT. 2005

- VOL. 38 - N° 5 - SãO PAULO -

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=Soioo39842005000500007&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

PESQUISA FAPESP118 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ 57


I TECNOLOGIA

Satélite Envisat: imagens da Terra que ajudam no controle ambientai

■ Robô e jogos para criança deficiente Videogames interativos e um braço robótico são partes da tecnologia que engenheiros biomédicos do Instituto de Tecnologia de Nova Jersey, nos Estados Unidos, usaram para ajudar crianças com paralisia cerebral a aperfeiçoar seus movimentos, reduzir a rigidez em suas articulações e viver com mais independência. Os pesquisadores trabalharam com um braço robótico programado para realizar movimentos repetitivos intensos de braços e dedos e que será adaptado às necessidades das crianças. Elas farão exercícios enquanto assistem a jogos de realidade virtual usando uma luva computadorizada que ajudará a movimentar os dedos. Também foi criado um videogame interativo sem controle manual, acionado com movimentos do corpo. •

Proteção via satélite Um sistema de vigilância por satélite está ajudando a proteger a merluza-negra (Dissostichus eleginoides), um peixe ameaçado de extinção, de embarcações pesqueiras piratas nos arredores das ilhas Kerguelen, situadas entre o sul do oceano Indico e a Antártica. Os navios são atraídos pela possibilidade de pescar a valiosa espécie que está nos mares há 40 milhões de anos. O peixe também é conhecido como "ouro branco" por conta do alto preço que alcança no mercado negro. Para controlar as embarcações em volta das ilhas pertencentes à França, a empresa CSL, subsidiária da agência espacial francesa

58 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP118

nas Kerguelen: hábitat da merluza-negra

CNES, utiliza um sistema de vigilância baseado nas imagens dos satélites Envisat e Radarsat-1. Com essa medida, o número de incursões pesqueiras ilegais nos arredores da ilha foi reduzido em 90%. Com o auxílio de radares de aviões, as imagens, enviadas em tem-

po real para uma estação terrestre nas ilhas Kerguelen, são automaticamente processadas para distinguir os ecos dos radares dos navios na zona vigiada. As embarcações autorizadas têm um transmissor de satélite a bordo e podem ser localizadas e identificadas. •


BRASIL Novo canal de comunicação

Miniprotótipo aprovado no túnel de vento

■ O avião de uma asa só Quem tem pavor de sentar nas fileiras de poltronas que ficam ao lado das asas de um jato vai se sentir desconfortável se o novo projeto de aeronave da Nasa vier realmente a deixar os campos de prova e ganhar os ares. O avião-asa, que consumiria 20% a menos de combustível devido ao seu design, não tem estrutura tubular, tampouco cauda, como os modelos de hoje. Conduzido remotamente por uma tripulação de três pilotos, um miniprotótipo dessa futurista aeronave - com 5% das dimensões de um eventual modelo comercial e pesando 36 quilos - foi aprovado em novembro em testes de desempenho realizados num túnel de vento da agência espacial norte-americana, situado no Centro de Pesquisas Langley em Hampton, no Estado da Virgínia. Um dos desafios que ainda faltam ser vencidos para que a idéia, um sonho de

mais de dez anos, decole de vez é encontrar um jeito de pressurizar por igual todo o interior do avião-asa. •

■ Câmera tira fotos sempre em foco Deixar alguém fora de foco em uma fotografia não será mais lamentado se uma câmera fotográfica desenvolvida por uma equipe de pesquisadores da Universidade Stanford, comandada por Pat Hanrahan, chegar ao mercado. Para corrigir o foco eles adaptaram dezenas de microlentes em uma câmera convencional entre a lente principal e o sensor digital. Essas microlentes gravam cada ângulo de raio de luz captado pela câmera que depois podem ser usados para corrigir a fotografia por meio de um software. O invento poderá ser útil principalmente para melhorar as imagens de microscópios e de câmeras de segurança, além das fotografias de objetos em velocidade. •

Consumidores com deficiências auditivas necessitam de um canal de comunicação adaptado para serem atendidos pelas empresas. Foi pensando nesse universo que chega a 4,7 milhões de pessoas no Brasil, dos quais 1,3 milhão não ouve absolutamente nada, de acordo com o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2000, que a empresa Koller & Sindicic criou a Central de Atendimento ao Surdo (CAS) em parceria com o Fundação Centro de Pesquisa e Desenvolvimento (CPqD), de Campinas. "A central permite às empresas abrir um canal de comunicação novo com consumidores e clientes com deficiência auditiva", diz Alexandre Sayão, gerente da empresa. Para que a comunicação possa ser feita, é necessário que o deficiente auditivo utilize um telefone público ou residencial especialmente moldado para surdos, dotado de um teclado alfanumérico. Tudo o que ele envia e recebe

aparece no visor luminoso do telefone. Na empresa, o atendimento é feito com o TS-PC, um dispositivo telefônico acoplado a uma central telefônica, que possui secretária eletrônica, histórico de ligações, discagem rápida para dez números telefônicos, mensagens personalizadas e agenda telefônica. A CAS começou a ser desenvolvida em 2001, quando a Koller ainda estava abrigada no Centro Incubador de Empresas Tecnológicas (Cietec), na Cidade Universitária em São Paulo. Hoje o novo sistema já está em funcionamento em empresas como Sadia, TIM, Ache, Claro e Porto Seguro. "É um produto voltado para empresas que possuem call center e que mantêm relacionamento com o consumidor", diz Sayão. A CAS serve também como um sistema alternativo e personalizado para a empresa não depender do serviço Central de Intermediação Surdo-Ouvinte (Ciso), oferecido pela Telefônica. •

Telefone público para surdos com teclado alfanumérico PESQUISA FAPESP118 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ 59


LINHA DE PRODUçãO

DRASIL

Garrafa PET substitui tijolo Garrafas plásticas de refrigerante e de água descartadas podem substituir tijolos, blocos cerâmicos e de concreto no sistema construtivo denominado Casa PET, concebido na Uni versidade Federal de Santa Catarina (UFSC) com o objetivo de aproveitar um material abundante e durável para habitações de interesse social. As paredes da casa são formadas por painéis pré-fabricados de 65 e 85 centímetros de largura por 265 centímetros de altura, compostos de colunas verticais de garrafas plásticas - produzidas de

■ Próteses oculares biocompatíveis Plástico, cálcio e fósforo são a base de um novo material, chamado de compósito bioativo, desenvolvido para reconstituir partes do rosto próximas aos olhos comprometidas por acidentes ou doenças. A pesquisa, que teve início em 2000, foi coordenada pelo professor Rodrigo Lambert Oréfice, do Departamento de Engenharia Metalúrgica e de Materiais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O material também pode ser usado como prótese ocular. Ele surgiu da necessidade dos cirurgiões do setor de Plástica Ocular do Hospital São Geraldo, em Belo Horizonte,

Casa é montada com painéis compostos de colunas verticais de garrafas e argamassa

poli (tereftalato de etileno), o PET -, cortadas e encaixadas, reforçadas com treliça plana de aço e revestidas com argamassa. As instalações elétricas e hidráulicas são colocadas durante a fabricação dos painéis. A pesquisa que tem

mantido pelo Departamento de Oftalmologia da universidade, em trabalhar com um material biocompatível, fácil de ser manipulado e com preço acessível. Atualmente as próteses usadas são importadas dos Estados Unidos. Como são feitas basicamente de polietileno, plástico utilizado para

60 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP118

como objetivo a construção de uma casa térrea de 57 metros quadrados, com dois dormitórios e possibilidade de ampliação, teve início em 2003 e é o tema da dissertação de mestrado da arquiteta Thaís Lohmann Provenzano, orienta-

várias aplicações, elas funcionam como material inerte, que apenas substitui as partes danificadas, como tecidos, cartilagens, ossos ou mesmo o globo ocular. Com o uso da cerâmica bioativa, que tem em sua composição cálcio e fósforo, materiais semelhantes aos encontrados no osso humano, ocorre uma interação

da pelo professor Fernando Barth, do Laboratório de Sistemas Construtivos da universidade. "A leveza e a rigidez dos painéis préfabricados facilitam a fabricação, o transporte e a montagem das habitações", diz Thaís. •

entre o implante e o tecido. "O novo material pode ser manipulado não só na forma, como também na textura, nas propriedades de rigidez e de maleabilidade", diz Oréfice. O que facilita bastante o trabalho dos cirurgiões. •

■ Amplificadorda Unicamp em revista A revista norte-americana Photonics Spectra destacou na sua edição de novembro os avanços mostrados pelo Amplificador Paramétrico de Fibra Óptica, Fopa na sigla em inglês, que está em desenvolvimento no Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica (CePof) na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Esse tipo de amplificador, que se-


rá usado na amplificação dos sinais de laser nas telecomunicações, é objeto de uma corrida tecnológica mundial da qual participam, além da Unicamp, a Universidade Stanford e os Laboratórios Bell da empresa Lucent, nos Estados Unidos, mais companhias japonesas, australianas e francesas, como a Alcatel. O artigo foi baseado num paper publicado na IEEE Phtonics Technology Letters de setembro. Enquanto os equipamentos atuais trabalham com freqüências de apenas 30 nanômetros (nm), o Fopa brasileiro já atinge os 58 nm. Isso eqüivale a vários amplificadores usados atualmente. "Ainda

poços tem água salina, antes de ser utilizada ela precisa passar por um processo de dessalinização. Para isso, o Instituto Eco-Engenho, uma organização não-governamental (ONG), desenvolveu um dessalinizador solar térmico em que o vidro, utilizado nesses equipamentos, foi substituído por uma película plástica resistente aos raios ultravioleta. "Testamos vários materiais até identificar o mais adequado, que não ressecasse ao sol", diz David Cerqueira, diretor técnico e um dos sócios do Eco-Engenho. O dessalinizador é coberto por duas películas de vinil, uma preta, para absorver

Patentes Inovações financiadas pelo Núcleo de Patenteamento e Licenciamento de Tecnologia (Nuplitec) da FAPESP. Contato: nuplitec@fapesp.br

Laser no processo de cristalização de polímero

Plásticos em menos tempo

Dessalinizador: água destilada para hidroponia

podemos avançar mais", diz o professor Hugo Fragnito, coordenador do projeto. A revista Pesquisa FAPESP apresentou o Fopa na sua edição 81, em junho de 2002. •

■ Água tratada com película plástica Uma solução simples e barata está ajudando pequenas comunidades do interior de Alagoas a suprir as necessidades básicas de água tanto para consumo como para projetos de hidroponia. Como na região a maioria dos

o calor, e outra transparente, responsável por retê-lo. No fundo, uma lâmina capta a água que, aquecida pelo sol, evapora e se condensa nas paredes do plástico transparente. A água é então captada em uma calha lateral e levada para o reservatório de abastecimento. "O equipamento serve não só para dessalinização, mas também para tratamento da água", explica Cerqueira. O projeto teve o apoio da Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional (Usaid). O tamanho depende da necessidade. •

Novo processo industrial permite monitorar com mais precisão o momento em que materiais poliméricos cristalinos, como garrafas de refrigerante e água, pára-choque de carros e peças de engrenagem são cristalizados dentro do molde, levando à economia de preciosos segundos no processo de fabricação e, com isso, a uma redução nos custos industriais. Ao mesmo tempo é feito o controle de produção de cada peça, independentemente de seu tamanho, volume ou forma. A inovação, desenvolvida no Departamento de Engenharia de Materiais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), é formada por um sistema óptico, que pode ser adaptado a qualquer máquina injetora, composto por um molde metálico, um laser, duas fibras ópticas, um detector e um atenuador de la-

ser. Tudo acoplado a um computador ou laptop. O monitoramento é feito com base na medida de luz. Quando o laser atravessa o polímero fundido, a intensidade da luz é elevada. No momento em que o polímero começa a cristalizar, ela começa a diminuir porque durante o processo de cristalização o material aumenta a sua opacidade. Além de polímeros cristalinos, o processo serve também para materiais amorfos, como o polimetilmetacrilato, mais conhecido como acrílico. Título: Sistema óptico e método para monitorar a cristalização de materiais poliméricos durante a moldagem por injeção Inventora: Rosário Elida Suman Bretas, Alessandra Lucas Marinelli e Marcelo Farah Titularidade: UFSCar e FAPESP

PESQUISA FAPESP 118 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ 61


CAPA

Nanotubos no mercado Dimilinutas peças de carbono já estão à venda para universidades e empresas MARCOS DE OLIVEIRA

Os nanotubos de carbono ainda não estão nos supermercados nem em lojas especializadas, mas já é possível adquirir no Brasil e com tecnologia nacional essas peças minúsculas só vistas com potentes microscópios eletrônicos. Elas medem de 1 a 3 nanômetros (nm) de diâmetro e até 1.000 nm de comprimento, medidas comparáveis a um fio de cabelo dividido 50 mil vezes na forma longitudinal. Os nanotubos de carbono são uma das grandes conquistas tecnológicas nascidas na década de 1990 e hoje estão sendo produzidos nos laboratórios da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e comercializados pela Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa (Fundep) da mesma instituição. Entre outras qualidades os nanotubos possuem excelente condutividade elétrica e uma resistência mecânica cem vezes maior que a do aço e, ao mesmo tempo, flexibilidade e elasticidade. São características que os credenciam a uma infinidade de aplicações importantes em ciência e tecnologia. Podem, por exemplo, interligar nanochips de silício, na indústria eletrônica, compor polímeros para torná-los mais resistentes ou deixar tecidos impermeáveis e cerâmicas mais reforçadas. Na área médica também são bemvindos porque são biocompatíveis e podem, por exemplo, liberar de forma mais segura e gradual um medicamento em um ponto específico do corpo humano ou carregar moléculas para o interior das células e ser um componente básico na arquitetura de nanomáquinas biológicas. 62 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 118



Esses pequeníssimos tubos já se tornaram uma mercadoria em várias partes do mundo. Algumas poucas empresas produzem o material ainda em grande parte para experimentos e desenvolvimento de produtos de alta tecnologia no Japão, na China e nos Estados Unidos. Um exemplo é um colete à prova de balas fabricado com nanotubos que o tornam mais leve, maleável e resistente que os convencionais. Talvez por isso e também por um possível uso na energia nuclear e na produção de armamentos e bombas, os Estados Unidos vetaram a exportação desse produto alegando interesses estratégicos. A proibição já foi comprovada por pesquisadores brasileiros que receberam negativas de empresas norte-americanas para a importação desse material.

produção de nanotubos da UFMG, além de mostrar a capacidade científica nacional e formar pesquisadores na área, também cria independência tecnológica para o país. Essa história começou a ser elaborada a partir de 1999 no Laboratório de Nanomateriais do Departamento de Física, sob a coordenação do professor Luiz Orlando Ladeira. "Nossas inovações na síntese de nanotubos de carbono foram no processo e no equipamento para produzi-los em larga escala", diz Ladeira. Com o avanço nos estudos percebeu-se que era hora de tornar esse material disponível para um maior número de pesquisadores. A idéia foi disponibilizar os nanotubos para outras universidades, institutos de pesquisa ou empresas brasileiras que teriam um acesso mais facilitado ao material, sem a necessidade de importá-lo. Assim, com as vendas iniciadas a partir de setembro deste ano, a Fundep já comercializou nanotubos de carbono para uma universidade e para uma empresa brasileira. Até o início de novembro, foram 60 gramas (g) de nanotubos vendidos ao preço de US$ 30 o grama, totalizando US$ 1,8 mil, 64 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP118

que serão divididos entre os pesquisadores, com um terço, e a UFMG, com dois terços, já descontados 5% da Fundep. No mercado internacional, o preço varia entre US$ 60 e US$ 200, dependendo do grau de pureza. Assim o produto nacional, que possui alta qualidade e oferece opções de manipulação em várias áreas, tem preço competitivo. As primeiras vendas brasileiras foram para o Instituto de Química de São Carlos (IQSC) da Universidade de São Paulo (USP) e para uma empresa paulista que os pesquisadores preferem não revelar o nome. "Estamos negociando com mais três empresas grandes das

quais também não podemos falar o nome por determinação de cláusula de sigilo", afirma Francisco Eduardo Ferreira da Cunha, analista de transferência de tecnologia da Fundep, responsável pela comercialização do produto. O incentivo inicial para o desenvolvimento dos nanotubos na UFMG partiu do professor Marcos Pimenta, do mesmo Departamento de Física, que, em 1997, num ano sabático, trabalhou no Instituto de Tecnologia Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos. "Trabalhei com nanotubos lá e quando voltei incentivei o professor Luiz Ladeira a desenvolvê-los porque minha área é a es-

Uma rápida história Os nanotubos de carbono foram descobertos pelo físico japonês Sumio Iijima, em 1991, pesquisador da empresa NEC no Japão. Com um microscópio eletrônico de varredura, ele encontrou nanotubos e nanopartículas sobre um eletrodo quando estudava a síntese de fullerenos, que são arranjos de carbono no formato de bolas de futebol e possuem gomos hexagonais nas ligações entre os átomos. Os fullerenos foram descobertos em 1985 pelos norte-americanos Robert Curl e Richard Smalley (falecido no último dia 28 de outubro), da Universidade de Rice, e pelo inglês Harold Kroto, da Universidade de Sussex. Foi a primeira formulação estável de uma molécula essencialmente feita de carbono, depois dos bem conhecidos grafite e diamante, encontrados na natureza. Esse resultado rendeu o Prêmio Nobel de Química, em 1996, aos três pesquisadores. O nanotubo viria a ser a quarta forma de uma molécula só de átomos de carbono. Inicialmente, Iijima, que hoje também é pro-


Estrutura de um nanotubo: uma folha enrolada de átomos de carbono dispostos de forma hexagonal

pectroscopia óptica e ele já tinha experiência no estudo de carbono", conta. "Eu já trabalhava com carbonos especiais desde 1996 e aí parti para tentar fazer nanotubos", diz Ladeira. / Na fabricação dos primeiros exemplares não faltaram criatividade e até uma modalidade original de reciclagem de instrumentos científicos. "Eu estava pensando em como fazer os nanotubos quando lembrei de um equipamento de crescimento de cristais obsoleto que estava há dez anos parado no meu laboratório", conta Ladeira. "Aí o transformei em uma máquina que fizesse nanotubos de carbono." Quanto custou

essa adaptação? "Praticamente nada. Não dá nem para contabilizar." Processo contínuo - Na máquina transformada, os pesquisadores conseguiram produzir o primeiro nanotubo em 2001. "Era um processo semicontínuo em que, durante a produção, era necessário abrir diversas vezes a câmara onde eles são produzidos. Depois encontramos uma maneira de produzir de forma contínua por muito tempo", revela Ladeira. "No momento estamos desenvolvendo um novo processo de síntese contínua que poderá atingir a produção de 20 a 25 g por dia."

: de Meijo, no Japão, descobriu nanotubos formados com diversas folhas. Em 1993 ele e o pesquisador da IBM, Don Befhune, formataram o nanotubo com apenas uma folha de carbono. Daí para a frente diversas formas de produção e aperfeiçoamento dessas peças surgiram em todo o mundo. Além de todas as qualidades e utilidades atribuídas aos nanotubos, já existiu inclusive quem o indicasse para fazer ligações diretas com a Estação Espacial Internacional, a ISS na sigla em inglês, que hoje sobrevoa a Terra. Seria uma ligação, entre o chão terráqueo e a estação, capaz de levar suprimentos até o espaço. Uma idéia ainda não levada a sério, mas que mostra o quanto vai longe a imaginação com os nanotubos de carbono. Outro aspecto, esse sim levado a sério, são as possíveis interferências dessas minúsculas peças no ambiente natural ou no corpo humano, como

A disponibilidade de nanotubos para o sistema de pesquisa científica e inovação no Brasil é de extrema importância em um momento que essas peças de carbono estão cotadas para servir a muitos experimentos científicos e uso na indústria. A própria aquisição do IQSC da USP mostra a diversidade e as possibilidades que se abrem com os nanotubos de carbono. O professor Sérgio Spinola Machado e sua aluna de mestrado Cláudia Razzino adquiriram 20g do produto da Fundep na forma de um pó enegrecido semelhante ao mineral que lhe dá origem, o grafite, dentro de um pequeno recipiente de vidro. Eles vão utilizar os nanotubos na formulação de biossensores capazes de identificar a contaminação por pesticidas em alimentos ou na água de rios. "Usaremos os nanotubos para imobilizar uma enzima, a acetilcolinesterase, que tem sua ação inibida pelos pesticidas durante o processo analítico", afirma Machado. "Assim vamos resolver um problema dos eletrodos (para a passagem de corrente elétrica na análise) feitos de carbono vítreo que possuem superfície lisa e servem de suporte para a enzima. A estrutura tridimensional dessa molécula se ajeita melhor nos poros dos nanotubos que são fixados no

nos casos de transporte até um tumor de drogas anticâncer. "Esse nanotubo vai ficar, provavelmente, no organismo para o resto da vida do indivíduo", diz o professor Luiz Ladeira, da UFMG. "A probabilidade é que não aconteça nada porque são feitos de carbono, como a maior parte do nosso organismo, mas precisamos saber com certeza." Para Marcos Pimenta, também da UFMG, "as válvulas cardíacas são feitas de carbono e, se os riscos existirem, seriam muito pequenos, como, por exemplo, no caso de eles perfurarem alguma célula". Também estão nessa discussão possíveis problemas ambientais do tipo: o que aconteceria se nanotubos caíssem num rio? São questões que começam a ser analisadas em várias partes do mundo e no Brasil. "Iniciamos um projeto com o Instituto de Ciências Biológicas da UFMG para estudar a biodistribuição dos nanotubos de carbono em seres vivos", revela Ladeira.

PESQUISA FAPESP 118 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ 65


eletrodo." Presa apenas na superfície lisa, a enzima fica estabilizada como se estivesse achatada e a sua atividade diminui. Assim, com os nanotubos, o processo de análise de pesticidas deverá ficar mais preciso e eficiente, jí Os nanotubos que a UFMG disponibiliza são do tipo single wall, ou parede única, em que apenas uma folha composta de átomos de carbono ganha a forma de tubo. Outra forma existente é a de paredes múltiplas, em que várias folhas de carbono são enroladas na forma de tubo. Esse tipo de nanotubo também é um dos objetos de estudo do grupo da UFMG, que no período entre 2004 e 2005, por exemplo, publicou quatro trabalhos na revista científica Physical Review Letters. O nanotubo de parede única é um potencial candidato para duas esperadas revoluções tecnológicas deste século na indústria eletroeletrônica e na medicina. Nesta última área, pesquisadores de todo o mundo buscam maneiras de levar os nanotubos carregados com anticorpos e citotoxinas até um tumor canceroso, com o objetivo de aniquilar as células doentes. "Um dos nossos sonhos aqui na UFMG é produzir esses nanomísseis inteligentes para tratamento de câncer", revela Ladeira.

Espaguete: nanotubos de parede única produzidos em larga escala

Na indústria eletroeletrônica, o nanotubo de carbono tipo single wall é apontado como a ligação ideal para os futuros nanochips, substituindo totalmente o silício usado hoje. Nesse caso os nanotubos fariam as ligações entre transistores e diodos de um circuito eletrônico, numa situação que melhoraria os desempenhos dos componen-

tes e de todo o sistema. Conexões semelhantes, entre postes de dióxido de silício, com nanotubos já foram testadas na UFMG e comprovadas com imagens de microscopia eletrônica de varredura. Alguns grupos de pesquisa no mundo, como os pioneiros da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, em 1998, já produzem experimentalmente tran-

Fabricando nanotubos O carbono possui uma característica que é a auto-organização. Quando dentro de uma câmara sob condições especiais de temperatura, pressão e outros parâmetros, os átomos de carbono se agrupam em forma de tubo espontaneamente. "É da natureza do carbono se formatar assim", diz o físico Marcos Pimenta, professor da UFMG. O trabalho dos pesquisadores é dar as condições necessárias para que se formem os pequenos tubos. "Dentro das câmaras precisamos controlar temperatura, pressão e outros parâmetros de forma bem precisa", diz Ladeira. A técnica inicial usada na UFMG foi a descarga por arco elétrico, onde os nanotubos de carbono crescem junto com nanopartículas metálicas que catalisam sua reação de formação. "Vaporizamos carbono em uma câmara com gás hélio, junto com metais como níquel, a temperaturas entre 3.700° e 4.000°C. Dentro da câmara existem dois eletrodos que estabelecem uma corrente elétrica, levando o material a se transformar em uma mistura gasosa de níquel e

66 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP118

carbono. Quando esse vapor esfria, o níquel não consegue suportar mais a quantidade de carbono dissolvida em seu interior e assim ele expulsa o carbono, levando à formação de nanotubos." O resultado é um emaranhado de fios que mais lembram um prato de espaguete. Outra técnica que está sendo usada pelos pesquisadores de todo o mundo é a tecnologia chamada Deposição Química na Fase Vapor, ou Chemical Vapor Deposition (CVD). Nesse caso, os nanotubos são produzidos numa reação de termodecomposição em um gás hidrocarboneto, como o metano, dentro de uma câmara, com temperaturas entre 600° e 1.000°C, que contém também pó cerâmico com nanopartículas de metais. Nesse processo, os nanotubos de carbono são formados sobre esse material cerâmico. A tecnologia CVD é mais barata e a mais usada atualmente. O Laboratório de Nanomateriais da UFMG possui dois equipamentos de CVD. "Um nós importamos e o outro nós fizemos aqui", afirma Ladeira.


Floresta: nanotubos de carbono de paredes múltiplas

bono de um nanotubo. "Conforme se sistores e diodos com nanotubos de carenrola a folha de grafite, o material pobono. Uma empresa norte-americana, de se comportar com propriedades elea Nantero, de Woburn, Massachusetts, trônicas distintas, como um semiconpor exemplo, desenvolveu um sistema dutor ou um metal", explica Ladeira. para fabricação de chips CMOS, da sigla em inglês de metal oxido semicon >laneja . dutor complementar, e agora planeja A um sistema de memória para computadores baseado em nanotubos abos j^^ ado f^k que será oferecido ao mercado como substituto das atuais me mória RAM, de randômica ou s propriedades eletrônicas aleatória memória de acesso são obtidas pela forma Os primeiros passos na como os hexágonos de eletrônica já fazem imaginar átomos de carbono são que os nanotubos são candiorientados em relação datos a se instalar dentro de ao eixo do tubo (fecomputadores e em qualnômeno chamado de quirialidade). quer outro tipo de aparelho eletrônico "No fiozinho do nanotubo, os elétrons nos próximos anos. "Hoje toda a comunidade de pesquisadores de semiconestão confinados e caminham em uma só direção de forma unidimensional. dutores está interessada em nanotubos de carbono", diz Pimenta. Ainda faltam Eles se movimentam sem colisões com os átomos de carbono, o que se traduz resolver muitos problemas na produção dessas peças para fins eletrônicos e numa condutividade elétrica muito melhor que a do cobre", diz Ladeira. estabelecer as ligações entre os elementos de um circuito eletrônico, por exemCom longas paredes de espessura de um átomo, flexíveis e altamente replo. "As pesquisas ainda estão num estágio distante da aplicação comercial." sistentes, os nanotubos de carbono são Uma característica dos nanotubos também bons absorvedores e armazenadores de gases. Um dos usos previsque favorece a sua inclusão no mundo da eletrônica, embora o carbono não tos será a utilização dos nanotubos no seja um elemento condutor por excetransporte e no acondicionamento de hidrogênio nos sistemas de células a lência, é a capacidade de eles possuírem condutividade elétrica. O segredo combustível, os equipamentos que transformam esse gás e o oxigênio em está na forma de enrolar a folha de car-

A

energia elétrica. "As suas características permitem o acúmulo de gases entre e dentro dos tubos colocados lado a lado como canudinhos de refrigerante, além de fixarem moléculas gasosas em suas superfícies para algum tipo de análise como um nariz eletrônico, por exemplo", diz Pimenta. Esse projeto é uma das linhas de estudo da recém-criada Rede Nacional de Pesquisa em Nanotubos de Carbono, financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). "Reunimos 15 universidades como a USP, a Estadual de Campinas (Unicamp), e as federais do Rio de Janeiro (UFRJ), Fluminense (UFF), do Paraná (UFPR), do Maranhão (UFMA), do Pará (UFPA), de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul, e de Juiz de Fora (UFJF) e Lavras (UFLA), em Minas Gerais", diz Pimenta, coordenador da rede. Transferência tecnológica - As aplicações vislumbradas nos projetos, agora reunidos em rede, são variadas como a mistura de nanotubos com polímeros ou resinas de modo a aumentar as propriedades mecânicas e térmicas no revestimento de aeronaves, ganhando mais resistência e leveza em relação ao aço (seis vezes mais leves). "Um aspecto fundamental na rede é ter nanotubos disponíveis em grande escala para os grupos trabalharem sem se preocupar em produzi-los", analisa Pimenta. Aí entra novamente a importância da produção do grupo do professor Luiz Ladeira. A UFMG já repassa os nanotubos gratuitamente para projetos de pesquisa em que o grupo de pesquisadores da universidade esteja engajado. Isso acontece com a Unicamp, a Universidade Federal do Ceará e o Centro de Desenvolvimento da Tecnologia Nuclear da Comissão Nacional de Energia Nuclear. Com a demanda crescendo e a universidade não sendo propriamente um local para produção de peças de cunho científico e tecnológico em larga escala, os pesquisadores já imaginam a formação de uma empresa para a fabricação de nanotubos. "Isso vai depender do mercado", diz Ladeira. Outra possibilidade é a transferência de tecnologia para uma empresa que invista na produção, pagando royalties para os pesquisadores e para a universidade. • PESQUISA FAPESP118 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ 67


I TECNOLOGIA

FARMÁCIA

A terapia da artemísia

«^ _.<4)1

Medicamento contra a malária derivado da planta chinesa será produzido no Brasil DlNORAH ERENO

Febre alta e calafrios são os sintomas mais marcantes da malária, doença causada por um organismo de apenas uma célula, os protozoários chamados Plasmodium ou plasmódio, e transmitida ao homem pela picada de mosquitos do gênero Anopheles. A Amazônia brasileira concentra a quase totalidade dos casos na América Latina, com registro médio de cerca de 450 mil por ano. O quadro previsto para este ano não é muito alentador. Estima-se que o número chegue a mais de 600 mil casos, com cerca de 200 mil novos no Estado do Amazonas, metade dos quais apenas em Manaus. Como não existem vacinas para combater a doença, um dos tratamentos recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) é feito com medicamentos derivados da artemisinina, o princípio ativo extraído da artemísia (Artemisia annua), um arbusto que ocorre naturalmente na China e no Vietnã, onde é usado há muitos séculos pela população, em forma de chá, para tratamento da febre da malária. Embora a doença seja endêmica no Brasil, só agora, com os resultados de pesquisa realizada pelo Centro Pluridisciplinar de Pesquisas Químicas, Biológicas e Agrícolas (CPQBA), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), um medicamento feito a partir das folhas da artemísia será totalmente produzido no país pela empresa Labogen, de Indaiatuba, no interior de São Paulo. Em 2006, a planta produzida no Brasil será processada e transformada em antimalárico. Atualmente a matériaprima para elaboração dos remédios usados para tratamento da malária é importada da China e do Vietnã. "O grande problema é que o material importado apresenta variações grandes no teor de pureza, resultando num produto sem padronização", diz a pesquisadora Mary Ann Foglio, coordenadora da pesquisa na universidade. 68 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP118

"Sem contar que é importante o país ser auto-suficiente na produção de um medicamento tão necessário." O estudo da artemísia no centro de pesquisas da Unicamp teve início em 1988, quando foi estabelecido um intercâmbio entre o CPQBA e o governo chinês. Em uma pesquisa científica realizada na China na década de 1970, a planta mostrou ter atividade antimalárica. Na época, foram avaliadas várias das espécies do gênero artemísia, para ver qual delas combatia a febre da malária. Nesse estudo foi constatado que apenas duas apresentavam atividade de fato. E uma delas era a Artemisia annua, que lá cresce com facilidade e tem altos teores de artemisinina, que chegam a 1,2% do peso da planta seca. Com base nesses resultados, os pesquisadores brasileiros decidiram trazer a planta para o Brasil. Para isso, conseguiram sementes da China, do Vietnã e de outras regiões da Ásia. Impasse resolvido - O primeiro passo consistia em adaptar a artemísia às condições climáticas do Sudeste brasileiro, já que é uma planta originária de clima temperado, com inverno rigoroso e verão com bastante luminosidade, mas não tão quente quanto o dessa região. "Quando se tentou cultivar essa espécie no Brasil, a planta crescia rapidamente, florescia mais depressa ainda, mas não produzia quase nada da substância de interesse", conta Mary Ann. Os resultados iniciais foram decepcionantes. As variedades com alto teor de artemisinina tinham pouca biomassa, enquanto aquelas com muita biomassa tinham baixo teor dessa substância. Esse impasse só foi resolvido quando foram desenvolvidos híbridos capazes de resistir ao clima do Sudeste, resultantes de estudos feitos pela equipe do pesquisador Pedro Magalhães, coordenador da Divisão de Agrotecnologia do CPBQA. Com isso o florescimento da planta foi retardado para que houvesse tempo de a substância química de interesse ficar acumulada nas folhas. Esses híbridos chegam hoje a aproximadamente 1% de artemisinina, resultados bem próximos dos obtidos das plantas chinesas. "Isso

«tf


w Princípio ativo está concentrado nas folhas da artemísia


foi demorado, mas avançamos muito", diz Mary Ann. Quando o trabalho foi iniciado, as primeiras espécies apresentavam teores inferiores a 0,01%. Era um índice extremamente baixo, difícil de conseguir isolar e inviável economicamente. Ao mesmo tempo que foi feito o trabalho de aclimatação da planta, os pesquisadores começaram a estudar o processo de extração da artemisinina e a desenvolver metodologias analíticas eficientes. Só assim é possível monitorar a quantidade da substância na planta e no extrato e quanto está se perdendo no processo. Em 1998, dez anos depois de iniciados os estudos com a artemísia, a Unicamp entrou com pedido de patente para o processo de obtenção dos extratos de isolamento da artemisinina pura. "Na patente nós garantimos 98% de pureza da substância", diz Mary Ann. A Cumprida essa etapa com sucesso, os pesquisadores começaram a observar que era descartada uma grande quantidade de resíduo produzido durante o processo de isolamento da substância de interesse. Para extrair a artemisinina das folhas secas utiliza-se um solvente orgânico. O resultado inicial é um caldo grosso, parecido com um chá verde extremamente concentrado. Mas à medi-

da que o processo de purificação avança obtém-se um cristal branco, que é a forma pura da artemisinina.

orno a folha tem apenas 1% dessa substância, isso significa que os outros 99% são compostos de várias substâncias, como clorofilas, graxas e outros componentes que são eliminados. "Achamos interessante estudar esses componentes descartados para avaliar um possível interesse farmacologia) nesse material", diz Mary Ann. "E realmente constatamos que ele é muito rico em substâncias que demonstraram atividade farmacológica." Essas substâncias já foram testadas em ratos para tratar lesões decorrentes de úlceras gástricas induzidas, com resultados positivos. Além disso, verificou-se em modelos in vitro que elas têm atividade antiproliferativa em oito linhagens de células tumorais humanas. São estudos que ainda estão em andamento. Depois de conseguir definir os parâmetros de cultivo da planta e de extração e isolamento da artemisinina, era necessário ter uma metodologia analítica validada para garantir a qualidade do produto que será colocado no mer-

cado. Essa inclusive é uma das exigências da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Para isso, os pesquisadores desenvolveram uma metodologia analítica validada para a cromatografia líquida de alta eficiência. Por essa técnica, uma luz ultravioleta permite visualizar separadamente todas as substâncias químicas dos extratos de plantas. Como a molécula da artemisinina não é visível no ultravioleta, foi utilizado um detector universal de índice de refração, que gera um sinal elétrico intenso para determinada quantidade de amostra. A pesquisa que resultou na validação da metodologia, que garante a reprodutibilidade, exatidão e precisão da análise, teve início em 2002 e foi financiada pela FAPESP. Com todas as etapas cumpridas, faltava viabilizar a produção em escala industrial. E isso tornou-se possível com a assinatura do contrato de transferência de tecnologia para a Labogen, em junho deste ano, feito pela Agência de Inovação (Inova) da Unicamp. "Estamos repassando para a empresa toda a tecnologia já estabelecida de obtenção de sementes, extração do material vegetal e processos de produção, com o apoio do controle de qualidade que desenvolvemos", diz Mary Ann. "Acreditamos que até o final de 2006 já teremos feito todos os testes para o lançamento", diz José Machado de Campos Neto, diretor executivo da empresa. "Na primeira fase produziremos apenas o princípio ativo, que será vendido para os laboratórios

Presença antiga no planeta A malária é uma doença parasitária que faz parte da história da humanidade. Dados obtidos em fósseis indicam que a doença originou-se na África e que o protozoário que a produz está presente na Terra há tanto tempo quanto o próprio homem, ou ainda mais. Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), a malária é a doença tropical e parasitária responsável pelo segundo maior número de óbitos no mundo, perdendo apenas para a Aids. Estima-se que mais de 1 milhão de crianças morre por ano no continente africano com a doença ou

70 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 118

por complicações decorrentes, como anemia e insuficiência renal. Cerca de 40% da população mundial, o que corresponde a aproximadamente 2,4 bilhões de pessoas, vive em áreas com risco de transmissão da malária, que ocorre em mais de cem países. Uma mesma pessoa pode pegar a doença dezenas de vezes. O mosquito contamina-se ao picar um doente e então passa a transmiti-la. A contaminação também pode ocorrer, mais raramente, pelo uso de seringas infectadas, transfusão de sangue ou da mãe para o bebê, no momento do parto.

Após a contaminação, os sintomas aparecem entre nove e 40 dias, dependendo da espécie de plasmódio. No Brasil, a malária é registrada desde 1587. A partir da década de 1870, com o início da exploração da borracha, tornou-se um grande problema de saúde pública. Na década de 1940 ocorriam em torno de 6 milhões de casos por ano no Brasil, reduzidos, por conta de campanhas de combate à doença, para 52 mil casos em 1970. Logo em seguida, com a ocupação da Amazônia, os casos voltaram a aumentar na região.


farmacêuticos que já têm registro do medicamento." Um desses laboratórios que já produzem o antimalárico com a matéria-prima importada é a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) do Rio de Janeiro. Em setembro, mudas da planta, de cerca de 12 centímetros, foram levadas para a fazenda da empresa. No final de janeiro, elas terão atingido 2 metros e estarão prontas para serem processadas. Na primeira fase serão cerca de 100 quilos de planta seca, na segunda, 1,5 tonelada e no terceiro ano serão processadas 3 toneladas de planta. "Apenas 1 quilo da substância pura é suficiente para tratar as necessidades da malária grave no Brasil", diz Mary Ann. Essa quantidade poderá ser obtida já na primeira fase do projeto, com o processamento dos 100 quilos de planta seca. O excedente que será produzido pela empresa nas fases subseqüentes poderá ser exportado para países como a África, que registra mais de 100 milhões de casos por ano, a maioria provocada pelo protozoário Plasmodium falciparum, a forma mais grave da doença. Para essa forma, a OMS recomenda que o tratamento seja feito sempre com artemisinina associada a outros medicamentos, como a mefloquina. "Essa associação é uma orientação recente que tem um apelo muito grande", diz o médico infectologista Marcos Boulos, professor de Moléstias Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Existem mais de cem plasmódios, mas no homem só quatro espécies produzem a doença. Além do falciparum, o vivax, o malariae e o ovale. Os protozoários são transmitidos de uma pessoa para outra pela picada de mosquitos Anopheles. No Brasil, a malária é causada por duas espécies de plasmódios, pelo vivax, que é a forma branda, e pelo falciparum, a grave. O chá utilizado há séculos nos países do Sudeste Asiático

formas graves, pode inclusive criar resistência para o protozoário, como já aconteceu com derivados do quinino, também extraído originariamente da casca da árvore quina {Cinchona pubescens) e muito usado desde 1908 no Brasil. V

Início do processo de purificação da artemisinina

para tratar a febre da malária só tem efeito para a forma branda da doença, que em alguns casos, mesmo sem tratamento, regride naturalmente. Para as OS PROJETOS i. Implementação do processo de obtenção do antimalárico a partir da Artemisia annua 2. Aplicação em cromatografia líquida de alta eficiência na análise da variação sazonal das lactonas sesquiterpênicas presentes em Artemisia annua MODALIDADE

i. Chamada pública MCT/MS/ Finep- Bioprodutos 2. Linha Regular de Auxílio a Pesquisa COORDENADORA MARY ANN FOGLIO

- Unicamp

INVESTIMENTO

i. R$ 490.000,00 (Finep) 2. R$ 117.120,00 e US$ 11.161,00 (FAPESP)

Menos poluente - Como a artemisinina não é solúvel em água nem em óleo, ela precisa passar por transformação química para que seja solúvel em um solvente que possa ser administrado ao homem. Dois derivados da artemisinina, o arteméter e o artesunato de sódio, solúveis em óleos e água, representam alternativas eficazes no tratamento da doença e permitem a aplicação na forma endovenosa e intramuscular. Coube à pesquisadora Vera Rehder, da Divisão de Química Orgânica e Farmacêutica da CPQBA, melhorar esse processo de semi-síntese. "A síntese total da artemisinina, que é a produção total do princípio ativo em laboratório, é possível, mas é muito mais viável economicamente obter o extrato a partir da folha da planta e transformá-lo em duas reações químicas", diz Mary Ann. O processo é mais rápido, barato e menos poluente. O medicamento utilizado atualmente no Brasil para o tipo grave da doença é aplicado na forma injetável, em três doses. Hoje outras formas de administração, como a oral, estão sendo pesquisadas pelo Instituto de Tecnologia em Fármacos - Far-Manguinhos, laboratório vinculado à Fiocruz, que trabalha com a matéria-prima importada para produzir o antimalárico. O grande obstáculo até agora para esse tipo de formulação é que a artemisinina é dissolvida no estômago. Novas formulações apontam para sua dissolução no intestino, onde ganha a circulação sangüínea de forma mais eficaz. Vencida essa barreira, a região amazônica poderá se beneficiar da matéria-prima produzida aqui mesmo, em todas as etapas. • PESQUISA FAPESP 118 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ 71


I TECNOLOGIA

COMPUTAÇÃO

Cientistas associados Grupo de profissionais se une em pequena empresa e inova no formato empresarial

vontade e o sonho de fazer tecnologia dentro de uma empresa fizeram dois amigos, Antônio Valério Netto, 33 anos, e Cláudio Adriano Policastro, 35, a formatar um tipo de empreendimento que agrega, ao mesmo tempo, vários profissionais em projetos distintos com o objetivo de produzir inovação. Os dois, com pósgraduação em computação e matemática computacional pelo Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da Universidade de São Paulo (USP), montaram a empresa em 2003 na cidade de São Carlos assim que viram aprovado o primeiro projeto, dentro do Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe) da FAPESP, que prevê o desenvolvimento de um software para auxiliar na redução de perdas em redes de distribuição de energia elétrica utilizando sistemas computacionais avançados em três dimensões (3D) baseados em realidade virtual. Depois eles conseguiram financiamento do Pipe para mais outros quatro, mais três bolsas de pósdoutorado empresarial do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), além de outras seis bolsas do Programa de Capaci72 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 118

tação de Recursos Humanos para Atividades Estratégicas (RHAE), também do CNPq. No total, a empresa possui 32 profissionais, sendo oito doutores e quatro mestres. Entre 2005 e 2006, a empressa vai receber investimentos em torno de R$ 1,5 milhão da Fundação e quase R$ 200 mil do CNPq e da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). "A empresa também possui três sócios eméritos que, além de coordenar projetos específicos, participam de todo o planejamento estratégico", conta Valério Netto. Com o objetivo de fazer ciência e tecnologia, a empresa rece-

beu logo no início o nome ambicioso de Cientistas Associados Desenvolvimento Tecnológico. "Recebemos muitas críticas por isso, inclusive por ser um nome não-comercial, mas nossa intenção é a militância e a responsabilidade de transformar o conhecimento científico em tecnologia e, conseqüentemente, em riqueza." Instalada no Centro Incubador de Empresas Tecnológicas (Cinet) da Fundação Parqtec, a Cientistas desenvolve, como projeto mais perto de seguir para o mercado, um jogo de futebol de robôs que vai abranger as áreas de educação,


entretenimento e pesquisa. Serão duas versões. A primeira será destinada a alunos do segundo grau ou universitários. O objetivo é que eles programem todo o sistema por meio de softwares específicos, com cada jogador-robô tendo, previamente, uma função no campo de jogo, com táticas e estratégias. "Esses robôs servem para a iniciação à programação e também como plataforma de acesso à robótica." A outra versão será oferecida ao mercado como um pebolim, um jogo também chamado de futebol totó, em que as varetas que sustentam os jogadores serão substituídas por joysticks. "Dentro de alguns meses vamos colocá-lo para testes em uma casa de jogos eletrônicos, num shopping, afirma Valério Netto. A idéia dos empresários-cientistas não é fabricar no futuro os robôs e seus sistemas. "Isso não está no nosso modelo de empresa. Nossa função é prospectar tecnologia e suas possíveis aplicações. Depois do produto pronto, vamos captar investidores, licenciá-lo ou mesmo vender todo o projeto para outra empresa. Não queremos ser 100% donos do robô." Nesse sentido, a empresa está aberta para aqueles que têm um projeto na cabeça e gostariam de transformá-lo em um negócio. "Recebemos profissionais que têm uma idéia e partimos para uma ampla análise. Se o resultado se mostrar positivo comercialmente, fazemos o planejamento do negócio e, quando necessário, a captação de recursos para desenvolvimento. À

medida que o projeto amadurecer, ele pode ser transformado em uma unidade de negócio dentro da empresa."

or enquanto, os sócios não recebem pró-labore e a maioria dos colaboradores é remunerada por meio de bolsas. "Temos que viabilizar a empresa primeiro." A Cientistas também possui um departamento de negócios e alianças responsável por prospectar projetos de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D), além de oferecer serviços de consultoria tecnológica para a iniciativa privada. Nos últimos meses foram contratados pequenos projetos por um período de 30 a 60 dias, cujos valores serviram para o pagamento do custo fixo da empresa. Os sócios da Cientistas sabem que o caminho para o sucesso é longo, como mostraram os erros e acertos do passado. "Começamos desfocados. Mesmo com a minha experiência profissional, em duas empresas multinacionais e a do Cláudio, que possuía uma empresa de desenvolvimento de software e de prestação de serviço na área de informática, começamos a desenvolver e a produzir softwares e equipamentos que não tinham demanda de mercado. Aí mudamos os parâmetros e procuramos

o que o mercado oferece ou quais serão as necessidades nos próximos anos." Assim, a diversidade de projetos é grande mas se concentra na informática. Um dos mais recentes é da área de bioinformática, que tem como parceiros a Fundação Butantan e o Centro de Biotecnologia Molecular Estrutural do Instituto de Física de São Carlos da USP, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP. O projeto é uma demanda dos pesquisadores do Butantan e foi denominado de AbEvo, sigla em inglês para Evolução de Anticorpos. Os primeiros anticorpos a serem gerados por essa metodologia serão dirigidos contra toxinas da bactéria Escherichia coli e contra uma toxina do veneno da cascavel. "Quando terminarmos esse trabalho teremos um protótipo de um software que poderá ser retrabalhado e oferecido a empresas da indústria farmacêutica e de biotecnologia, na forma de serviço ou produto", diz Valério Netto. Na área de instrumentação biotecnológica, a empresa desenvolve um equipamento miniaturizado para análise de DNA em parceria com o Centro de Óptica e Fotônica (Cepof), outro Cepid da FAPESP, e o Instituto de Química de São Carlos da USP. O equipamento deverá ser mais barato e apresentar inovações em relação aos equipamentos similares importados para uso em exames de paternidade, criminais e de detecção de transgênicos. Esse projeto foi apresentado à empresa e é coordenado pelo hoje sócio emérito Sandro Hillebrand, químico com doutorado em física pela USP. A empresa ainda mantém parcerias por meio de projetos com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e a Universidade Federal da Paraíba. Com tudo isso, os empresárioscientistas associados querem mostrar que podem desenvolver tecnologia dentro de um inovador formato empresarial. "Nós queremos mostrar também que não é por falta de opção de emprego no meio acadêmico, ou mesmo empresarial, que essas pessoas trabalham na empresa. A grande maioria de nossos colaboradores tem o objetivo de gerar tecnologia dentro de uma empresa brasileira." • MARCOS DE OLIVEIRA PESQUISA FAPESP 118 ■ DEZEMBRO DE 2005 • 73


74 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP118


I TECNOLOGIA

ELECOMUNICAÇÕES

Empresa domina o processo de fabricação de equipamentos ópticos que amplificam o sinal de luz YURI VASCONCELOS

ma pequena empresa nascida na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) coloca o Brasil na vanguarda das comunicações por redes de fibras ópticas, em que as transmissões são feitas por laser. Criada em 2003, a Sun Quartz é uma das poucas empresas no mundo que dominam a tecnologia para fabricação de fibras ópticas conhecida como deposição axial na fase de vapor, cuja sigla em inglês é VAD (de Vapor-phase Axial Deposition). Esse processo apresenta diversas vantagens sobre métodos similares e permite o desenvolvimento de fibras amplificadoras que intensificam o sinal do laser. O domínio do processo de fabricação desses componentes é importante porque a maior parte da estrutura mundial de telecomunicações atual baseia-se em redes ópticas, capazes de transmitir grande volume de dados com muito mais segurança e rapidez entre cidades próximas ou de um ponto a outro do planeta. A expectativa da Sun Quartz, que está instalada na Incubadora de Empresas de Base Tecnológica da Unicamp (Incamp) e contou com financiamento do Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe), é colocar suas fi-

bras ópticas no mercado no primeiro semestre de 2006. No momento, elas estão em testes nos laboratórios da Padtec, uma das maiores fabricantes brasileiras de sistemas de comunicações ópticas. Atualmente as fibras amplificadoras usadas no Brasil são todas importadas. Ao contrário das fibras ópticas comuns, as fibras especiais são dopadas com érbio, um elemento químico natural conhecido como terra-rara. A dopagem é a introdução de um elemento químico para mudar as propriedades de um material. No caso, o érbio serve para amplificar o sinal luminoso que se propaga nos cabos ópticos na forma de laser. Elas são fundamentais porque, na medida em que a luz trafega por uma rede óptica, ela vai sendo absorvida e seu sinal é atenuado. Para recuperar a amplitude do sinal original, a saída é instalar amplificadores ópticos ao longo da rede, cujo principal componente são as fibras de érbio, como a fabricada pela empresa campineira. "Para uma ligação entre as cidades de São Paulo e Campinas, distantes uma da outra cerca de 90 quilômetros, é preciso colocar no meio do caminho um amplificador óptico. Em torno de 20 a 30 metros de fibra de érbio são usados nesse sistema, conhecido como amplificador óptico à base de fibra de érbio (EDFA). Nas cidades, as fibras especiais são utilizadas PESQUISA FAPESP118 ■ DEZEMBRO DE 2005 -75


nos pontos de distribuição do cabeamento", explica o físico Carlos Kenichi Suzuki, professor da Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp e sócio da Sun Quartz. Com diâmetro um pouco maior que um fio de cabelo, as fibras ópticas surgiram nos anos 1970 e desde lá têm sido cada vez mais utilizadas na transmissão de dados via internet, TV a cabo, telefonia fixa e móvel, e várias outras aplicações envolvendo imagem e som. Isso acontece porque os cabos ópticos podem transmitir muito mais informações do que os sistemas convencionais de comunicação, que empregam fios de cobre, freqüências de rádio ou microondas. As fibras ópticas são formadas por um núcleo central, que é por onde a luz transita, e têm diâmetro de 3,5 micrômetros (no caso das fibras de érbio) a 9 micrômetros (nas fibras comuns), sendo 1 micrômetro igual a 1 milímetro (mm) dividido por mil. A camada externa da fibra que envolve o núcleo, conhecida como casca, serve para fornecer isolação óptica e possui espessura média de 125 micrômetros, ou 0,125 mm. A matéria-prima básica para fabricação das fibras é o quartzo, também usado na produção de células solares e microchips. E o Brasil possui a maior reserva deste mineral no planeta. O domínio da tecnologia de fabricação de fibras ópticas é importante em razão do alto valor agregado desse produto. Enquanto 1 quilo de quartzo custa cerca de US$ 0,10 e 1 quilo de silício não passa de US$ 1, a fibra óptica dopada com érbio vale um milhão de vezes mais e chega a custar US$ 100 mil o quilo. Essas fibras também são bem mais caras do que as convencionais. Um quilômetro de cabo óptico comum sai por cerca de US$ 20 a US$ 30, enquanto a mesma metragem de fibra amplificadora vale de US$ 10 mil a US$ 15 mil. "Trata-se de um mercado milionário. Em 2001 estimava-se que o setor de aparelhos de amplificação óptica girava em torno de US$ 4 bilhões. Hoje esse número deve ser bem maior", diz o pesquisador. Quando começar a produzir comercialmente, a Sun Quartz irá abastecer o mercado interno, que 76 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 118

hoje compra as fibras dopadas com érbio do exterior, e se tornar exportadora do produto. "Além das fibras, poderemos vender também a tecnologia VAD, porque temos o pleno domínio dela e o instrumental utilizado no processo foi inteiramente desenvolvido por nós."

arlos Suzuki explica que todos os fabricantes nacionais de fibras ópticas utilizam a tecnologia MCVD (Modified Chemical Vapor Deposition), criada pelos Laboratórios Bell, dos Estados Unidos, há mais de 30 anos. "A principal vantagem comercial da tecnologia VAD, desenvolvida no Japão, é que, ao contrário do processo MCVD, ela não necessita da importação de tubos de sílica. Isso torna nosso produto mais barato", afirma o cientista. Os tubos, usados para fazer o núcleo e a casca da fibra, esclarece Suzuki, não são produzidos no país. Além disso, a tecnologia de deposição axial na fase de vapor emprega como matéria-prima um subproduto do silício que é dez vezes mais barato do que o empregado na metodologia MCVD. Outra importante vantagem comparativa da tecnologia do sistema VAD é que as fibras ópticas de nova geração, capazes de transmitir a luz por distâncias bem mais longas, só são possíveis de ser produzidas por esse processo, porque ele corrige um efeito indesejado que atenua o sinal luminoso, conhecido como fenômeno de espalhamento Rayleigh, coisa que a tecnologia MCVD não faz. , Elevada automação - O processo de fabricação das fibras ópticas da Sun Quartz pode ser dividido em cinco etapas e é completamente automatizado. Ele permite o controle das propriedades do produto final, como a distribuição da nanoporosidade e o índice de refração. A primeira etapa consiste na fabricação de uma preforma porosa de sílica nanoestruturada, uma espécie de bastão leitoso de cerca de 60 milímetros de diâmetro por até 30 centímetros de

comprimento. Cada preforma, elemento precursor da fibra óptica, pode dar origem a 4 quilômetros de fibra. Ela é produzida com o uso de um maçarico especial instalado dentro de uma câmara de deposição e já possui todas as características da futura fibra. O passo seguinte é fazer a adição dos elementos que fornecerão as características de amplificação. A dopagem da sílica é realizada com a imersão da preforma numa solução contendo íons de érbio, que proporciona o efeito especial de amplificação. A dopagem da preforma garante que os íons de érbio penetrem em sua estrutura em nível atômico. Terminada essa fase, a preforma sofre um tratamento termoquímico para secagem e purificação. O objetivo é remover de sua estrutura elementos indesejáveis como hidroxilas (OH) e metais de transição (ferro, cromo, níquel etc.) que causam perda na potência do sinal. Depois o material sofre novo tratamento térmico em um forno de consolidação de alta temperatura e com atmosfera controlada para torná-lo totalmente transparente e livre de microbolhas, uma imperfeição que prejudicaria o perfeito funcionamento das fibras ópticas. Por fim, o vidro transparente é alongado e sofre uma deposição externa de nanopartículas de sílica para a formação da casca, responsável pela proteção mecânica do núcleo por onde a luz transita. A partir desse ponto, a fibra de sílica nanoestruturada sofre uma série de alongamentos e novas deposições até que o núcleo e a casca atinjam os diâmetros esperados. "É um processo altamente complexo e que depende de uma enorme variedade de fatores para dar certo", afirma Suzuki. Para certificar-se de que a fibra tem qualidade e possui as características desejadas, ela passa por uma ampla bateria de testes para caracterização das propriedades estruturais, ópticas e de amplificação, como microscopia eletrônica de varredura, espalhamento e espectrometria de raios X. As fibras ópticas amplificadoras são apenas um dos produtos desenvolvidos pela Sun Quartz, que opera dentro do Laboratório Ciclo Integrado de Quartzo da Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp e mantém vínculo com o Centro de Pesquisas em Óptica e Fotônica (CePOF), instalado na universi-


Processo de fabricação de fibras ópicas na Sun Quartz: domínio da tecnologia é credencial para o mercado externo

dade, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP. A empresa também domina o processo de fabricação de fibras ópticas sensoras e de lentes de alta homogeneidade óptica para uso na região de luz ultravioleta. As fibras sensoras têm um largo leque de aplicações e são empregadas como sensores de pressão e temperatura, proporcionando medidas em tempo real em operações de monitoramento de dutos de petróleo, gás e água. Também podem ser utilizadas em praças de pedágio para controle de passagem de veículos e como detectores de presença em aplicações ligadas ao setor de segurança. "Essas fibras têm estrutura distinta das dopadas de érbio, sendo que o núcleo é mais espesso e pode atingir 0,8 milímetro de diâmetro. Elas custam a partir de US$ 1 o metro e, até onde conhecemos, não existem fabricantes nacionais do produto", conta o executivo da Sun Quartz. As lentes de alta resolução são produtos que estão na fronteira do conhe-

cimento. Elas são componentes importantes na fabricação de microchips de nova geração e são fundamentais para aumentar a resolução espacial de seus componentes (transistores, capacitores, diodos etc), em virtude da ultra-alta homogeneidade à luz ultravioleta de pequenos comprimentos de onda, e, conseqüentemente, a velocidade de O PROJETO Fibras ópticas amplificadoras de sflica dopadas com érbio MODALIDADE

Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe) COORDENADOR

Unicamp/Sun Quartz

CARLOS KENICHI SUZUKI

INVESTIMENTO R$ 307.627,00 e US$ 12.700,00 (FAPESP)

operação do processador do computador. Essas lentes são utilizadas em equipamentos chamados Stepper que fabricam os microchips por meio de uma tecnologia conhecida como litografia óptica. "Existem poucos fabricantes desses equipamentos no mundo, entre eles a Canon e a Nikon. Essas indústrias precisam de lentes de alta homogeneidade na região do ultravioleta, que só podem ser fabricadas a partir da tecnologia VAD", explica Suzuki. Acontece que as empresas que dominam essa tecnologia estão direcionadas apenas para a fabricação de microchips. Assim, a Sun Quartz quer ocupar um nicho de mercado até então pouco explorado nesse setor. O processo de fabricação das lentes já é dominado e agora a empresa está fazendo ajustes para deixar o produto com as especificações requeridas pelo mercado. Para aumentar a perspectiva comercial da empresa, Suzuki esteve, no final de outubro, no Japão, onde visitou empresas e discutiu parcerias. • PESQUISA FAPESP 118 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ 77


I HUMANIDADES HISTORIA

Longe de Deus, perto dos EUA Estudo de Moniz Bandeira disseca formação do império americano

CARLOS HAAG

m velho e lamentoso adágio mexicano afirma: "Que azar o nosso. Estar tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos". Da nação jovem que arrancava suspiros dos iluministas europeus pela sua "passion de Vegalité", nas palavras de Alexis de Tocqueville, a América hoje, pouco mais de dois séculos de seu nascimento, conseguiu que boa parte do globo chegasse a um consenso negativo sobre ela, algo antes visto como uma "turrice" invejosa esquerdista. O país parece pairar sobre o mundo, orgulhoso de seu isolacionismo, sempre disposto a começar uma nova guerra em nome da liberdade, que, afirmam, teria sido inventada lá pelos founding fathers em 1776. Curiosa falácia, já que o pai da pátria, George Washington, já advertia, em 1796, que "qualquer excesso militarista é 84 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP118

daninho para a liberdade, particularmente para a liberdade republicana". "Este desprezo dos Estados Unidos pela soberania dos outros povos, o unilateralismo de sua política internacional, o militarismo, a arrogância e a prepotência, a pretensão de reformar o mundo à sua imagem e semelhança, o pretexto de promover a democracia como rationale para a deflagração ou participação em guerras não afloraram como resultado dos atentados do 11 de Setembro, mas nos primórdios da formação do país", afirma o historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira, autor de Formação do império americano, um sólido estudo sobre como o "império da liberdade" faz de tudo para dar "liberdade ao império". "Para compreender esse processo de perversão da democracia, que rompeu a vida civilizada e estabeleceu um estado de guerra permanente, foi que me propus a escrever sobre a formação do império


W 0m»: **5s>

americano como epílogo da globalização do sistema capitalista, que é um todo mundial e não uma soma de economias nacionais", analisa o professor. A idéia desse mundo global, com a América no comando, Moniz foi buscar em Karl Kautsky, um discípulo de Marx, desprezado pela esquerda a favor de Vladimir Lênin, para quem o imperialismo seria a expressão do "capitalismo agonizante, em decomposição". A prática, observa o historiador, deu razão a Karl, e não a Vladimir. "Kautsky afirmou que se podia aplicar ao imperialismo o mesmo que Marx dissera sobre o capitalismo, isto é, que o monopólio gerava a concorrência e essa o monopólio, numa competição furiosa, o que levou

os grupos financeiros a conceber a idéia do cartel. Segundo ele, não era impossível que o capitalismo entrasse em nova fase, marcada pela transferência dos métodos dos cartéis para a política internacional, a fase do ultra-imperialismo." A teoria de Kautsky é de uma lógica notável: o imperialismo como fruto do capitalismo industrializado precisa exportar seus capitais para sobreviver, o que fazia da guerra de conquista uma necessidade econômica, já que era preciso garantir mercado para despejar as mercadorias produzidas. O problema é que essas guerras, como a competição entre as empresas, eram dolorosamente custosas. Daí a ousadia da antevisão: de tanto baterem cabeças, as grandes potên-

cias acabariam por formar um "truste universal, um único Estado mundial, sujeito ao capital financeiro dos vitoriosos, que assimilaria todo o resto". Bush - A visão das potências se devorando umas às outras, que Lênin vendera como certeza de que o socialismo triunfaria, único sobrevivente dessa guerra entre capitalistas, foi definitivamente abafada em 1976, com o estabelecimento do Grupo dos Sete (ou oito), o G-7, a reunião das grandes economias para coordernar a economia global, confirmando, assegura Moniz, a previsão de Kautsky, de que ocorreria uma exploração conjunta do mundo pelo capital financeiro, embora essa integração não eliminasse a competição comercial e as contradições entre as potências industriais. A frente das quais estão os Estados Unidos. Longe de uma inovação de Bush Júnior, essa tendência para o messianismo, nota o professor, marcou a formação do povo americano, a América renovando a tradição judaica. "Nós, os americanos, somos o povo escolhido, o Israel do nosso tempo; carregamos a arca das liberdades do mundo. Deus predestinou grandes coisas para a nossa raça e o resto das nações logo seguirá na nossa esteira", escreveu, em 1850, o criador da baleia branca Moby Dick, Herman Melville. "O povo americano, como os israelitas, passou a se considerar o mediador, o vínculo entre Deus e os homens da Terra", lembra o professor, A Os peregrinos que saíram da Europa para a aventura no Novo Mundo, onde fundaram a colônia que se transformaria nos Estados Unidos, se consideravam "protagonistas de um exercício de excepcionalismo, crentes de que eram capazes de um papel que outros povos não podiam desempenhar". Já em 1912, recorda Moniz, o embaixador do Brasil em Washington, Domício da Gama, resumiu o que era o espírito ianque: "O duro egoísmo individual ampliou-se às proporções do que se poderia chamar de egoísmo nacional". "Não sem razão, em janeiro de 2003, um alto funcionário do Departamento de Estado, ao ser indagado até que ponto os Estados Unidos se dispunham a delegar sua sobePESQUISA FAPESP 118 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ 85


rania, ao juntar-se a instituições multilaterais ou tratados internacionais, declarou: 7f dependi. Infere-se que a única soberania intangível é a da América e somente ela tem o direito de decidir o que deve ou não internacionalmente respeitar", observa o pesquisador. Assim, o país vai, ao longo de sua história, oscilar entre o isolacionismo e o expansionismo até, enfim, assumir na administração atual "o desprezo pela soberania de outros Estados, o unilateralismo e o militarismo, que eram latentes e por vezes se manifestavam, converteram-se em normas oficiais de sua política internacional". Foi um longo caminho, embora percorrido rápida e dubiamente. No início do percurso estava a Doutrina Monroe, a "América para os americanos", formulada em 1823 pelo presidente James Monroe, que isolava os Estados Unidos do Velho Mundo, reforçando o desejo de George Washington, para quem "a Europa tem interesses sem relação com os nossos, senão remotamente", mas, ao mesmo tempo, continha a "praxidade" de Thomas Jefferson, que afirmava ter "a América um hemisfério para si mesma", de um expansionismo explícito. Que começou, aliás, dentro do seu próprio território, com a conquista do oeste e a compra de vastas áreas adjacentes ao seu (como a Louisiana, da França) pertencentes a países europeus. O progresso industrial pedia novas áreas de consumo e logo o imenso território americano pareceu pequeno. Com o espírito do "destino manifesto", analisa o historiador, os EUA viram que era preciso "estender a área de liberdade". A dubiedade da Doutrina Monroe foi funcional nisso e o precursor no uso da "brecha" ideológica do ideal do isolacionismo foi o presidente Theodore Roosevelt, inventor da política do big stick, o porrete pela democracia. "Roosevelt foi a primeira 'presidência imperial' dos EUA, já que pela primeira vez foram administradas possessões perto e longe do seu território, alcançou influência dominante no Caribe e na América Central, transformando a 86 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 118

sua Marinha na segunda mais poderosa do mundo e, assim, convencendo os demais países a levar seriamente as suas políticas e conselhos", analisa Moniz. O país logo compreendeu que as restrições do mercado doméstico exigiam um movimento militar de expansão. Assim, em 1848, a guerra forjada contra o México, o ataque e a anexação do Havaí, em 1898, e, naquele mesmo ano, o confronto com o que restava do império espanhol, fustigado por um movimento de libertação em Cuba. Usando um incidente com um navio americano, o USS Maine, ancorado em Havana, os EUA intervieram militarmente em Cuba e a tomaram como uma espécie de protetorado.

ouço depois foi a vez das Filipinas, onde também se travava um movimento de libertação contra os espanhóis, que perderam para a América o que restava dos seus domínios no Caribe e no Pacífico. Cessava tudo o que a antiga musa cantava e outro império se levantava. Ou, nas palavras de Teddy Roosevelt, em 1904, "a adesão à Doutrina Monroe podia forçar a América, embora de forma relutante, a exercer um poder de polícia internacional" no caso de "wrong doing or impotence" em países do hemisfério ocidental. O ápice desse primeiro movimento ocorreu após o fim da Primeira Guerra Mundial, quando o expansionismo imperial alemão foi derrotado e os americanos saíram do conflito enriquecidos e todo-poderosos. E foi a nova tentativa tedesca de competir com os mercados dos EUA que levou Franklin Roosevelt, nos anos 1930 e 1940, a se dedicar a reverter a tendência isolacionista americana e partir para o conflito. Moniz lembra as várias provocações feitas pela América ao Japão e à Alemanha, e evitadas, para que ambos rompessem relações com os

americanos. A guerra, observa o historiador, era um imperativo categórico para Roosevelt e Pearl Harbor foi o pretexto de que o presidente precisava. Há mesmo quem afirme que ele cutucou os japoneses ao extremo e sabia do ataque de 7 de dezembro à base e calouse, ainda que, palavras do secretário da Marinha, Frank Knox, Roosevelt "expected to get hit but no so hurt". Mas, nota o pesquisador, nem só de armas vivem os impérios. / Em 1944 o acordo de Bretton Woods criou o Fundo Monetário Internacional, o FMI, e o Banco Mundial. "O fator fundamental nas políticas do Fundo não emanou da sua capacidade de decidir que Estado merecia assistência, mas seu princípio de condicionalidade. Quem recebesse ajuda seria obrigado a satisfazer determinados objetivos, o que outorgava ao FMI ingerência nas políticas internas de cada país", afirma Moniz. "A partir da Primera Guerra, com o enfraquecimento da França e da Inglaterra, os EUA emergiram como potência hegemônica e consolidaram essa posição após a Segunda Guerra, modelando também o sistema econômico internacional em conformidade com seus interesses, sob a égide do Banco Mundial e do FMI. A liberdade pela qual os foundingfathers se bateram passou a se identificar, cada vez mais, com o capitalismo de consumo, o freeenterprise. O free world passou a significar o mundo do free-markef, explica o historiador. Medo - A exceção não deixou de confirmar a regra. Governos democratas e republicanos podiam ter divergências, mas todos, com raras exceções (Jimmy Carter, por exemplo), continuaram a exercer seu poder pelo globo pela força direta das armas ou pela intervenção branca (via FBI e CIA). "O militarismo foi o meio privilegiado encontrado pelo capitalismo americano para sua acumulação de capital. Desde o início do século 20, tornou-se necessário alimentar continuamente a indústria bélica e os grandes negócios, nos quais militares e industriais se associavam, forjando clima de ameaças, um ambiente de medo, de modo a compelir o Congres-


so a aprovar vultosos recursos para o Pentágono e órgãos de defesa", analisa o pesquisador. Daí a necessidade constante de "novos inimigos" que eram substituídos ao longo do tempo, de comunistas a fundamentalistas islâmicos, passando pela guerra contra as drogas. De que outra maneira, pergunta-se Moniz, entender a razão do aumento crescente do orçamento militar americano mesmo com o fim da Guerra Fria? Mais: "Os governantes e políticos americanos em seu extremado nacionalismo, jamais admitiram o nacionalismo nos povos da América Latina ou de qualquer outra região do mundo". Mas podia-se negociar, vez ou outra, recorda o historiador, com ditaduras, se do interesse dos EUA, como foi o caso dos militares brasileiros, Saddam, Pinochet, entre tantos outros. Surge com força o antiamericanismo, ressaltado no Oriente Médio pela aliança forte com Israel. "O 'terrorismo internacional', que após a revolução islâmica no Irã aparece nos discursos dos líderes americanos, como o novo inimi-

go, substituiu o 'comunismo internacional'. Tudo para justificar os altos gastos com defesa." Não culpem só George W. Gigante - O conflito Leste-Oeste é deixado de lado e a nova retórica fala do clash de civilizações, cristianismo versus islamismo, tudo no bojo da questão primordial do acesso às reservas petrolíferas, pois o gigante tem pés de barro e necessita de matérias-primas. Após a primeira guerra no Iraque, reunindo militarismo e racionalismo econômico, surgem os chamados "falcões" (Wolfowitz, Cheney, Perle, referências da atual administração americana), funcionários civis do Pentágono que defendiam a "guerra preventiva", atacar antes para impedir o surgimento de um rival. Com eles veio também o Consenso de Washington, que encorajava a privatização, a desregulamentação das economias e a liberalização do comércio. Dos outros. "A redução do papel do Estado, o Estado-mínimo, significava, em meio do processo de globalização do capital, a redu-

ção da soberania dos Estados nacionais, transferindo o poder econômico para as corporações transnacionais, a maioria norte-americanas", avalia Moniz. Kautsky parece cada vez mais correto. E o movimento externo foi acompanhado internamente. "A democracia continuou, como desde os tempos de Theodore Roosevelt, identificada com o conceito de 'good government', que significava não o respeito às liberdades públicas e aos direitos individuais, mas a manutenção da estabilidade." Moniz diz que a escolha de Bush para governar os EUA confirma que a democracia americana nas décadas recentes começa a claudicar e mostrar sinais de ter perdido a sua direção. O que não é algo tão recente, já que "a política pós-11 de Setembro não foi um turning point na política exterior dos EUA, apenas deu ímpeto a tendências que sempre existiram. Bush deve ser visto como um ator que recita falas consolidadas mais do que um dramaturgo que acaba de escrever uma nova peça". • PESQUISA FAPESP 118 ■ DEZEMBRO DE 2005 -87


HUMANIDADES

COMUNICAÇÃO

Decifra-me ou devoro-te O que se esconde atrás das capas de revistas e das primeiras páginas dos jornais

CARLOS HAAG ILUSTRAçõES HéLIO DE ALMEIDA

o princípio era o verbo. Mas ele, sozinho, não vendia muita revista e jornal, em especial num mundo onde a luz se fez e encheu-se de imagens fotográficas. "O sol se reparte em crimes/ espaçonaves, guerrilhas/ em caras de presidentes/ bomba e Brigitte Bardot/ O sol nas bancas de revistas/ me enche de alegria e de preguiça/ Quem lê tanta notícia?" Se Caetano Veloso, em 1967, já se perdia no mar anárquico de manchetes oferecido aos passantes, imagine hoje, com televisão, internet e outros meios, como é difícil atrair um leitor para que ele pare, olhe e compre um dado jornal ou revista, tudo a partir de um mero pedaço de papel colorido: a capa ou a primeira página. "A capa é a janela que conduz o leitor a um mundo ilustrado, que ele percorre todos os dias: a realidade enquanto montagem", diz o historiador Boris Kossoy, professor da USP. "O tema central da publicação apresentado apenas de forma séria não basta, pois o leitor tem uma expectativa de emoção e a revista promete isso. Nada de tédio, o que importa é o choque. A realidade deve ser estetizada para comunicar, o simples documento do fato da semana deve ser embalado com cores vivas e a capa deve 'gritar'para se destacar das concorrentes." Para o estudioso em semiótica Nilton Hernandes, que pesquisou a revista Veja, em seu doutorado recentemente concluído na USP, a capa nega o caos do cotidiano humano ao eleger o grande "fato" para o qual todos os outros devem se subordinar, hierarquizando o resto dos acontecimentos. "Isso é parte de um ritual aguardado pelo leitor", explica. Esse é fato razoavelmente recente.


"Quando os jornais surgiram no Brasil, no século 19, não havia diferença entre a primeira página e o resto do jornal. Só quando a imprensa foi se industrializando é que foi surgindo essa distinção, cuja origem também pode ser explicada pela ligação forte, numa sociedade como a nossa, de pouca tradição letrada, entre palavra e imagem", diz o historiador Marco Morei, autor de Palavra, imagem e poder, da editora DPA. "As primeiras páginas ou capas são uma atualização dos murais, pasquins, cartazes, sem falar dos rumores de boca a orelha." Mas se o rumor de boca para a orelha, no caso dos jornais, é imediato, no das revistas ele demora mais a chegar. O tempo divide a primeira página, do jornal, a capa, da revista, e determina como eles devem se aproximar do seu público. "A capa é mais 'vendedora que a primeira página, pois ela tem basicamente uma matéria que destaca. O

jornal tem compromissos com os fatos dominantes da véspera", lembra o jornalista Luiz Weiss. O jornal dura no dia; a revista fica atual por sete dias, dando um tempo maior para as pessoas se sentirem informadas. Cada qual, então, assume a sua aproximação do "comprador de notícias". Assim, a primeira página funcionaria, nota o também jornalista Matinas Suzuki Jr., como uma "amostra grátis, uma história sortida e dispersa, disponível a todos que podem vê-la presa às bancas". "Ela é a folha mais impessoal do jornal e a que procura o público mais indiferenciado: nela todos devem se reconhecer", observa. É o polêmico ideal do "espelho do mundo". "Nos jornais, a luta pela capa é tarefa cotidiana. Inúmeras fotografias são vistas até que uma seja eleita. Trabalhase com riscos calculados, controlados pela experiência dos editores, e, apesar da pressão do fechamento, o equilíbrio

da página é sempre procurado. A primeira página não tem a necessidade do espetáculo, com que lidam as capas das semanais", ananlisa Kossoy. "Quando, por exemplo, várias primeiras páginas trazem a mesma foto, com o mesmo assunto, aceitamos isso naturalmente, ao contrário da competição das revistas." Ao mesmo tempo que isso gera a suposta maior "seriedade" dos jornais, esse "despojamento" continua atrelado a uma necessidade de venda, embora o discurso oficial possa ser mais "ético" e "objetivo". "O jornalista vai além: ele não só assume o olhar do leitor como atribui a si mesmo a missão moral de orientar a visão do público. Em nome do espectador da notícia, ele disciplina o mundo, hierarquiza os acontecimentos", acredita Suzuki. Nesse movimento, o leitor, de sujeito, vira espectador. "Na primeira página, maquiada, além de seduzir o leitor, há a indução PESQUISA FAPESP 118 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ 79


do sujeito da notícia: diz-se que o que acontece e quem foi o responsável, operação disfarçada na conjugação em terceira pessoa. Considera-se que o leitor precisa ter seu mundo organizado na capa, ao qual ele assiste. Não é sujeito, mas objeto a ser seduzido, dominado. Note-se que será a primeira página a conseguir isso", afirma Ana Cristina Silva, autora da tese de doutorado O tempo e as imagens de mídia, da Unesp. "O homem que olha a primeira página estendida na banca tem o seu pensamento onde apenas ele sabe, é silencioso. Esse ser é desqualificado como sujeito e leitor. O mundo foi para ele _ mastigado, a ele é oferecido um mundo seguro, controlado, com um certo 'domínio' sobre o acontecer." E quem são esses que lêem tanta notícia? "O problema não é apenas que poucos lêem, mas esses poucos lêem mal. Não basta ler, não basta ler muito, é preciso ler bem", lembra o jornalista Caio Túlio Costa, do Instituto DNA Brasil. Afinal, numa primeira página há muito o que ver e nem sempre imagem e texto parecem estabelecer um casamento ideal e 80 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 118

claro. "Isso é ilusório, pois essa desconexão abre um campo para a metáfora como composição de significados por meio da justaposição da sintaxe visual, imagens e textos", explica Elizabeth Luft, doutora em semiótica.

persuasão, no caso dos jornais, está justamente na ausência de significados ou na falta de crença de que determinada construção metafórica tenha sido 'arquitetada'. Para não se sentir enganado, o leitor pode optar pela falta de sentido, no entanto ele já está envolvido pelo percurso metafórico. A sensação de que algo é estranho numa primeira página permanece e o poder desse tipo de metáfora é muito mais emotivo", avisa. Ainda assim, avalia Túlio Costa, os jornais "estão num mato sem cachorro, sem norte e sem guia". "As capas são como uma coleção de déjà vu em relação ao que internet, rádios e TVs deram no dia anterior e nenhum jornal, nem no exterior, vem conseguindo superar esse desafio. Um scholar america-

no acredita que os jornais impressos vão desaparecer em 2043", conta. Já as revistas vão bem, obrigado. A ponto mesmo de se verificar, nessa atual crise política, uma inversão de valores consagrados. "No Brasil, quem tem rabo preso deixou há muito de temer as primeiras páginas do dia seguinte. Teme as capas das revistas no fim da semana. O que se vê, cada vez mais, são as manchetes dos grandes jornais serem, por exemplo, a capa da Veja transplantada", analisa Weiss. Os magazines surgem nos EUA na virada do século 20, quando o país se industrializou e os leitores se transformaram em consumidores. "A dinâmica da revista de grande circulação atual é o leitor visto como consumidor em potencial e o editor torna-se um especialista em grupos de consumidores. Uma vez encontrada uma fórmula de atração, ela tende a se repetir, mês a mês, ano após ano. Afinal, é um mercado com taxa de mortalidade altíssima e mesmo os líderes nunca estão numa posição segura. Para sobreviver, uma revista tem de acompanhar as mudanças de seu público", observa Maria Celeste Mira, autora de O leitor e a banca de jornais, obra que teve o apoio da FAPESP.


É o plugging, como analisado por Adorno e Horkheimer, esse sistema de enredamento do leitor que, enquanto consome, tem seus gostos sondados para que a cada semana se possa agradá-lo ainda mais. Não sem razão, enquanto os jornais minguam, a Veja é a quarta maior revista do globo. "Nessa era do marketing, é imprescindível conhecer o leitor, que obriga todas as revistas a se reformularem constantemente, que leva as editoras a sondar os seus desejos." Para resistir, é impossível não morder a maçã. "Uma revista como a Veja tem de apagar da memória do leitor a sua maior limitação: o grande intervalo de tempo entre a coleta de dados, a edição e a distribuição nas bancas. O lapso temporal gera uma série de inconvenientes, em especial após a internet etc. O principal objetivo de uma capa de revista, não só de Veja, está ligado principalmente à busca do efeito de atualidade para concorrer com as mídias mais rápidas", analisa Hernandes. Segundo o pesquisador, a manchete é o resultado dessa busca, que deve resultar num produto que traga uma sensação de presente alargada, um "agora" que, paradoxalmente, deve manter-se vibrante enquanto a revista

tiver que ser consumida. A antecipação, o "furo", é um caminho. Mas, na maioria dos casos, a interpretação funciona como elemento de atualização que, unida ao fato gerador, cria a sensação de novidade. "Podemos afirmar que, para manter o efeito de atualidade de determinadas notícias, em função do lapso entre coleta e divulgação, revistas como Veja devem obrigatoriamente produzir um grande número de textos interpretativos ou opinativos." O veículo revista nasceu sob a égide do tempo contado: homens, e principalmente mulheres, precisariam o máximo de informação no mínimo tempo possível, como um fastfood editorial. O modelo de Veja foi a revista Time americana, cujos princípios eram a organização das notícias em setores e "mostrar" para o leitor o que elas significavam, sem nenhum ideal de neutralidade ideológica ou imparcialidade. "A partir de Veja será criada uma nova série de departamentos, como os de pesquisa de mercado, marketing e assinaturas, e foram essas mudanças que livraram a revista do fracasso inicial", lembra Maria Celeste, cuja proposta era "estampar na capa o assunto que marca a semana". O mesmo

se deu com IstoÉ e, mais recentemente, com Época. "Todas vêm optando por falar sobre os interesses imediatos dos 10% da população que têm a capacidade financeira para sustentar a sobrevivência dessas publicações diante da concorrência dos novos meios de comunicação", explica Maria Alice Carnevalli, autora da tese de doutorado "Indispensável é o leitor", defendida na ECA-USP. Analisando e comparando as edições das três semanais em 2000, a pesquisadora descobriu que 50% das manchetes de capa, ou seja, metade das capas analisadas, trouxeram fait divers (dietas, sexo, saúde, como manter seu emprego etc), enquanto 27% trataram de assuntos factuais desvinculados da periodicidade ou saíram com furos de reportagem. Os assuntos ligados diretamente à semana ficaram em último lugar, com apenas 23% das capas, sendo o caso mais acentuado o de Veja, que dedicou aos acontecimentos da semana apenas seis capas durante um ano, ou 12% do total. , Analistas da Meio e Mensagem descobriram que quem pode comprar revista é consumidor em potencial e, assim, ela se torna a mídia privilegiada do mercado publicitário. Curiosamente, as PESQUISA FAPESP118 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ 81


revistas são, ao mesmo tempo, consideradas como "meios de maior credibilidade" e "transmissoras de idéias". "As capas trazem um potencial de leitura que sonda qual é o norte do público que lhe dá legitimidade, em que se pauta, qual é o seu imaginário", afirma Ana Cristina. "Pesquisas mostram que política não vende, a não ser no caso de crises graves, como o caso do presidente Collor e agora. Elio Gaspari costuma dizer que, para baixar a vendagem de uma revista, basta colocar temas ligados ao Congresso", conta Maria Alice. Vários fatores tiraram das revistas o interesse em aprofundar na economia e na política. O fim do regime militar, por exemplo, foi um deles, já que, observa a pesquisadora, havia desaparecido a posição ideológica de contestação à ditadura e os efeitos da inflação galopante sobre a economia. Da mesma forma, as privatizações fizeram com que o leitor perdesse o interesse pelo Estado, como ocorria quando oito a cada dez empregos estavam ligados a uma esfera governamental. "Hoje a obrigação da revista se82 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 118

manal é dizer ao leitor que ele pode ser feliz, viver menos angustiado, cuidar melhor da saúde e conseguir se dar bem numa empresa privada." Só assim pode-se entender por que as três maiores semanais do país deram como capa o novo livro do mago Paulo Coelho. Mas nem tudo é fait divers.

omo observa a professora Celeste Mira, a atuação política inicial de Veja fez dela uma revista de amplitude nacional que conquistou o mercado e hoje sua força ideológica reside no seu poder mercadológico. "As capas das revistas têm, de certa forma, o poder da agenda setting, ou seja, de colocar temas em pauta, criar opiniões e mudar o país. Se nem sempre consegue impor o que pensar, seguramente impõe sobre o que pensar. Podem estar brincando com fogo", avalia o historiador Fernando Lattman-Weltman, da FGV. "Uma revista não é um partido político e precisa avaliar o impacto que sua manchete pode ter sobre a sociedade e a democracia brasileira ao defender certas teses,

como a capa de Veja sobre o desarmamento, ou divulgar informações sem ter provas, como no caso das capas sobre a ligação entre PT e as Farcs ou o ouro de Cuba." O cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, do Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (Iuperj), vai ainda mais longe: "A mídia é capaz de construir não só a agenda pública de discussão, mas a agenda do governo. Enquanto os partidos competem pelo poder, a grande imprensa disputa o monopólio de dizer o que fazer com ele. Nas democracias estáveis, a capacidade de uma capa de revista ou jornal de afetar a estabilidade institucional é reduzidíssima". Tudo se amplifica, observa Hernandes, pela tendência das revistas, em suas manchetes, de se aproximar do leitor, do "você". "É algo como nós somos o seu veículo, nós vamos falar pela maioria silenciosa que não aparece nos discursos intelectuais'", completa Weltman, que lembra como os veículos aprenderam, com os tempos de censura, a passar, com precisão, mensagens subliminares ao seu leitor, só que agora num outro viés ideológico e de mercado. "O público de Veja se sente inteligente por ler a revis-


ta, por fazer parte do clube, ser diferente dos outros sem ter que se assumir de uma forma ideológica. O jornalismo dá ao leitor a confirmação de um status, embora, em verdade, a revista, em boa parte do tempo, esteja apenas falando o que ele, o leitor, quer ouvir." Num paradoxo interessante, os porta-vozes da objetividade, que têm suas vendas calcadas nessa isenção, são justamente os mais parciais. Weltman lembra que a Folha criou o espírito do "rabo preso com o leitor" para vender mais e ganhar fidelidade do público, um jornal com "eleitorado". "Veja está abusando dessa prática e age com seu grupo com a lógica de um partido: assim como há quem use a estrelinha do PT na lapela, você tem quem diga que é leitor da revista." Há mesmo quem analise as capas por meio de suas cores e cortes de fotos, como Luciano Guimarães, autor de As cores na mídia e professor da Unesp. "No jornalismo brasileiro, durante a censura militar, a mensagem de entrelinhas foi consagrada como forma de escapar ao controle. Hoje não haveria mais necessidade disso. No entanto, o que se pode perceber é que esses recursos são atualmente utilizados para alterar de

forma obscura o imaginário daqueles que consomem mídia, principalmente em períodos que antecedem o processo eleitoral", avisa. Assim, observa o pesquisador, o uso do azul e do amarelo nas capas cujos temas eram positivos ou ligados ao governo anterior, cujo partido usa as mesmas paletas. Em contraposição, o vermelho aparece associado, salvo exceções, como cor da negatividade, da esquerda e, quando associado ao preto, presente nas capas que trataram de corrupção, golpes etc. Outro fator importante é sempre "personalizar" as crises com fotos de pessoas específicas: inflação associada ao ministro da Fazenda, corrupção a um dado dirigente etc. De preferência, para acentuar o aspecto negativo, o retrato da "crise personificada" aparece em dose. Se essa tradição promete ficar, a preferência pelo fait divers está em quarentena. Uma pesquisa recém-divulgada, The State of News Media 2005, um raio X da mídia americana, revela que a estratégia de buscar assuntos genéricos e leves não está mais dando resultado e, por lá, as revistas estão perdendo leitores, que, além de terem um leque de revistas especializadas para poder esco-

lher, agora desejam conteúdos mais densos. "Aqui isso ainda não está ocorrendo. Embora não se possa ter certeza, já que a atual crise política reúne o mercado e a ideologia. As revistas podem manipular as informações político-partidária-econômicas e ao mesmo tempo chamar a atenção em suas capas daqueles que não estão nem aí para a política, já que a crise de agora é um espetáculo midiático puro", observa o cientista político Eduardo Ferreira Souza, autor de Do silêncio à satanização, da editora Annablume. Para Caio Túlio Costa, vai ser complicado fugir das capas assertivas, opinativas. "Depois de deitar e rolar com o conceito de objetividade, a indústria de comunicação viu esse ideal se desgastar e passou a tentar ser, de verdade, objetiva. Mas com esse mar de blogs, sites etc, uma a rede rasteira, opinativa, parcial, houve um refluxo, o que reforçou novamente a necessidade de a indústria ser assertiva, ainda que imparcial. E isso é impossível." Kossoy é ainda mais pessimista: "Capas sóbrias não sobrevivem numa cultura que busca emoção e reality shows". É o dilema da esfinge sem compaixão: "Eu te decifro e te devoro". • PESQUISA FAPESP118 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ 83


HUMANIDADES TEATRO

O teatro e a invenção da estrela Pesquisadora investiga como e por que a modernização do palco brasileiro a partir da década de 1940 abriu espaço para a consagração de grandes atrizes

elembrar os maiores personagens do teatro brasileiro nos últimos 50 anos remete a, principalmente, nomes de grandes atrizes - Cacilda Becker, Fernanda Montenegro, Maria Delia Costa, Tônia Carrero, Bibi Ferreira, Cleyde Yaconis e Marília Pêra, entre outras. Até a década de 1940, porém, o palco pertencia aos homens, que não se furtavam em usar roupas femininas para representar o sexo oposto. Até então, a mulher desempenhara um papel secundário tanto diante da platéia quanto nos bastidores. Não havia também a função de diretor e a dramaturgia nacional estava mais para os espetáculos populares de comédia, ancorados no "ponto", que ajudava os atores a lembrar o texto. Dois fatos aparentemente isolados se tornariam fundamentais para mudar esse contexto e, assim, levar à modernização do teatro brasileiro e a redefinir a presença da mulher na representação. Primeiro, a turnê da companhia francesa liderada por Louis Jouvet (1887-1951) pela América do Sul, em 1941. Durante sete meses, ele e mais 25 pessoas - além de 35 toneladas de equipamentos - encantaram 11 países com os mesmos luxuosos cenários parisienses. No Brasil, apresentaram-se no Rio de Janeiro e em São Paulo. Jouvet ainda morou quatro meses no Rio. Soma-se a isso o processo de "metropolização" de São Paulo nos aspectos cultural e intelectual. Ou seja, por meio da consolidação da Universidade de São Paulo (USP), com a vinda de professores europeus - entre eles, Jean Maugué, Claude LéviStrauss, Pierre Monbeig e Roger Bastide —, a construção do Museu de Arte de São Paulo (Masp), o movimento da revista cultural Clima, a fundação da Companhia Cinematográfica Vera Cruz e a chegada da televisão em 1950. O evento mais representativo para o palco, porém, foi a fundação, em 1948, do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), considerado um marco na dramaturgia brasileira por sua profissionalização e modernização temática. O que teriam a ver, entretanto, Louis Jouvet, o TBC e o destaque que ganharam as atrizes? A resposta está sendo investigada por Heloísa Pontes, professora do Departamento de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisadora do Pagu, Núcleo de Estudos de Gênero da Unicamp. "Presenças marcantes - História social e etnográfica das relações de gênero no teatro brasileiro, DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 118


r

4

ffl

•••(>.

V-£

(

I I

i


1940-1968" é um trabalho de livre docência que está em sua etapa final e deve ser concluído no próximo ano, quando deverá ser publicado em livro. Ancorada em ampla pesquisa, Heloísa está próxima de fechar um quebra-cabeça que vai nos ajudar a ter uma visão científica de tudo que aconteceu com o teatro brasileiro na segunda metade do século 20. Seu propósito é mostrar a transformação fundamental na cena nacional a partir de década de 1940 - cujo marco simbólico foi a encenação de Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues (1912-1980), em 1943.0 teatro e as classes sociais tiveram, então, uma proximidade em termos da construção de uma linguagem moderna do perfil social, intelectual e cultural de seus praticantes.

ssa história começou a ser contada com o ensaio "Louis Jouvet e o nascimento da crítica e do teatro brasileiro modernos", publicado na revista Novos Estudos CEBRAP, em novembro de 2000. Depois a pesquisa foi ampliada para incluir o caso da atriz francesa radicada no Brasil Henriette Morineau (1908-1990), que também participou da segunda turnê do ator pela América Latina. Heloísa conta que estabeleceu como pano de fundo "o exame dos deslocamentos, das redes de sociabilidade e das relações de homens e mulheres que atravessaram fronteiras nacionais e de gênero". Assim procurou rastrear o impacto e a presença dos dois artistas franceses na cena teatral brasileira do século passado. Jouvet é descrito não só como um grande ator e diretor, mas um observador e ensaísta atento às experiências teatrais. Deixou vários escritos sobre dramaturgia, cenografia, direção e contribuiu decisivamente para a renovação da cena teatral francesa. Sua inusitada vinda para a América do Sul - que se prolongou por quatro anos, devido à guerra - colocou-o em conexão com o 90 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP118

Brasil. Coube a ele trazer alguns dos espetáculos teatrais de ponta na Europa e até mesmo influenciar diretamente na montagem de Vestido de noiva, considerada marco zero do moderno teatro brasileiro. Dirigida pelo polonês Ziembinski e encenada por Os Comediantes, a peça foi montada, segundo depoimentos de vários ex-integrantes do grupo, graças também à influência que Jouvet exerceu sobre eles no período. Em contato com jovens talentos brasileiros, o francês teria sugerido que rompessem com a tradição naturalista do teatro e adotassem a idéia de que o texto é central, fundamental, quase sagrado. Cabia ao diretor lhe dar voz, o que estabelecia sua necessidade e importância. Disse ainda que, mesmo assim, só alcançaria nível internacional quando surgisse um dramaturgo à altura. Nelson Rodrigues preencheu de imediato o posto, i Henriette Morineau, em vez de voltar à França com Jouvet, passou a morar no Brasil. "Ela teve uma atuação im-

portante no teatro carioca, contribuiu diretamente na formação de vários atores e atrizes." Como Fernanda Montenegro, considerada a maior atriz viva do país. Em 1953, na Companhia de "Madame", como era chamada Morineau, Fernanda deu a guinada necessária para a sua profissionalização como atriz, graças à influência decisiva que dela recebera. "Ela me fez ver que eu tinha encontrado uma profissão qualificada, disciplinada, conseqüente." Para Fernanda, Morineau mantinha sempre a distância própria de uma primeira figura do elenco, não permitia intimidades, mas forjava sempre um caráter teatral. A chegada da missão francesa, cujos professores passaram a fazer parte da USP, contribuiu decisivamente para uma transformação capital nos hábitos intelectuais. "Eles mostraram a indissociabilidade entre teoria, método e pesquisa e insistiram que os modernos métodos de investigação das ciências humanas deveriam ser aplicados aos estudos de dimensões variadas da cul-


tura e da sociedade brasileiras", diz Heloísa. Enquanto isso, diretores estrangeiros - como Adolfo Celi, Gianni Ratto, Ruggero Jaccobbi - revolucionaram as artes cênicas, ao implantar novos procedimentos num sistema cultural diverso e complexo, sem precedentes na história brasileira. Essa investigação levou-a a concluir que "havia uma clara demarcação de fronteiras simbólicas entre o trabalho dos diretores, todos eles homens, e o das atrizes". Apesar disso, acrescenta, não se deve perder de vista que mais cedo do que em outras esferas da atividade cultural as mulheres que perseguiram a carreira no palco conquistaram o bem simbólico mais prezado nesse domínio: "nome próprio" e tudo que dele decorreu - notoriedade, prestígio e autoridade. "Exemplo vigoroso da importância das mulheres no interior de um campo de produção cultural, o caso do teatro abre pistas instigantes para adensarmos a etnografia das relações de gênero a partir de novas chaves analíticas."

O Teatro Brasileiro de Comédia virou pólo difusor de uma nova era teatral porque, além de dar importância ao texto e à direção, viu-se a virada de papéis para as mulheres. Elas passariam a protagonizar peças, enquanto os atores viravam empresários. Como explicar isso? "Para entender as condições sociais, intelectuais, institucionais e as relações de gênero que estão na base da formação e da consolidação do teatro moderno, é preciso destacar ainda o papel central das atrizes que saem do TBC e formam suas companhias, quase sempre com seus parceiros amorosos." Elite - Nesse processo surgem elementos para se pensar a história social da cultura no Brasil. Um dos aspectos mais importantes é que o teatro passou a atrair um público novo e influente, que era a elite paulistana - enquanto, no Rio, continuaria com programas dirigidos para platéias mais populares. Nesse momento apareceram dois nomes renovadores - além de Nelson Rodrigues,

Jorge Andrade (1922-1984). "Por serem uma atividade muito importante na agenda intelectual e cultural, as peças começam a ser discutidas, fazia-se teatro de repertório com disciplina muito grande, de preocupação autoral e presença de diretores estrangeiros." O esforço de Heloísa aponta alguns questionamentos e exclusões para explicar o fenômeno. "Se considerar, por exemplo, a necessidade de adotar a mulher para papéis femininos, é deixar de lado que uma das essências do teatro está em burlar convenções." Quer dizer, durante séculos, coube aos homens representar papéis femininos com a cumplicidade e a licença das platéias. "Os antropólogos sempre mostraram que existe uma relação forte entre corpos, marcas no corpo, processo de renomeação e aquisição de prestígio. Deixando de lado essa ciência, a sociologia da cultura tem revelado correlação entre corpo, prestígio e aquisição de nome próprio." Assim aconteceu com as atrizes. Começaram a representar o novo teatro que surgia e que atingiria seu clímax no decorrer da década de 1960. Aliás, a beleza não era um elemento central nessa consagração do sexo feminino. Pelo contrário, podia servir como um impedimento. Que o digam Tônia Carrero e Maria Delia Costa, que tiveram de provar que tinham mais talento que um rosto bonito. No caso de Tônia, o elogio da crítica só veio duas décadas depois, em 1965, quando fez o papel de uma prostituta em A navalha na carne, de Plínio Marcos. Para confirmar essa regra, Cacilda e Fernanda estavam longe do padrão de beleza vigente. Atualmente, Heloísa desenvolve a última parte da pesquisa: dimensionar a importância da televisão na consagragação desse novo teatro que surgia. Sim, porque, na primeira década, como ter um aparelho de TV era um luxo permitido somente às famílias ricas, estabeleceu-se uma programação elitista na qual os chamados teleteatros - peças escritas para televisão e transmitidas a partir do palco - ocuparam o horário nobre da programação. Também vai comparar a trajetória das grandes estrelas, origem social e inserção na cena teatral antes e depois do TBC, presença na televisão e relação com os diretores estrangeiros. • PESQUISA FAPESP118 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ 91


RESENHA

No fio da navalha Textos de Novais se esbatem entre a arte e a ciência

JOSé JOBSON DE ANDRADE ARRUDA

Todos aqueles que privamos da intimidade intelectual de Fernando Novais bem sabemos: lê muito, reflete como poucos, escreve moderadamente, porque extremamente exigente com a natureza do conteúdo traduzido na sua escrita. Um perfeccionista, pois se esmera no burilar detalhado de seu texto que, finalizado, resplandece o brilho da obra de arte: um clássico. Este é o qualificativo justo para seu Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial, que, desde sua primeira edição, em 1979, transformou-se em referência incontornável para todos os estudiosos do período colonial. Impecável no seu acabamento, modelar no perfeito entrelaçamento entre forma e conteúdo. Simples; sóbrio; sem excessos ornamentais; correto; apurado; estético; um texto imorredouro, independentemente das alterações de conteúdo e senso explicativo que a pesquisa ulterior viesse a prodigalizar. Nestes termos, para além de uma obra histórica, transformou-se numa obra de ficção histórica, de refinado acabamento literário, pureza de expressão, originalidade e forma irrepreensível. Um modelo a ser imitado no gênero; lido e comentado nas escolas; um clássico na acepção do termo por ser sempre moderno; pedagógico e paradigmático, por seu vigor que alimenta a renovação historiográfica, mesmo que tomado em seu viés antitético. Definitivamente alojado na galeria dos grandes intérpretes do Brasil, o mais novo professor emérito da USP brinda a comunidade científica e os leitores em geral com seu Aproximações - Estudos de história e historiografia, primorosa edição que merece o autor e a editora Cosac Naify. É preciso que se diga que não foi o ego do autor que originou a obra. Foi a invenção de seus alunos de pós-graduação que, reunidos em seminário comemorativo pela passagem dos 70 anos de Fernando Novais, decidiram registrar a data 92 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP118

Aproximações Estudos de história e historiografia

com esta publicação. Uma selecta apreciável de textos do autor de natureza vária, subdivididos em dois agrupamentos, um Fernando Novais de história, outro de historiografia, completada por compilação de cinco Cosac Naify entrevistas por ele conce440 páginas didas entre 1989 e 2004, R$ 69,90 que, ao longo de 64 páginas, fala de seu mundo da história, um quase ensaio de ego-história. A coleção de estudos da primeira parte inclui textos, em sua grande maioria, de difícil acesso a seus leitores. Mas incluem também reflexões seminais, que vertebram sua obra inteira e, adaptados, integram seu clássico já referido. A seleção realizada exclui textos consagrados, a exemplo do capítulo sobre o "Capitalismo tardio e sociabilidade moderna", publicado no volume 4 da História da vida privada no Brasil, em parceria com João Manuel Cardoso de Mello, o que talvez se explique por se alojar fora do período colonial, que concentra o grosso de sua produção intelectual. Na segunda parte, o objeto de sua atenção desloca-se da história em si para a reflexão sobre seus cultores, um cerrado diálogo com as obras históricas, exercício historiográfico do mais alto nível, sobretudo na tradução temporal do significado de grandes intérpretes do Brasil, tais como Capistrano de Abreu, Celso Furtado, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda, entre outros. O título é criativo. Foge ao batido Selected Essays. Tem a vantagem de revelar as inquietações que se abatem sobre o historiador, formado na melhor tradição do marxismo crítico, mas fustigado pelo vendaval do pós-modernismo historiográfico, que minou algumas de suas certezas absolutas, sobretudo no que diz respeito ao papel da cultura no processo histórico. Aproximações transmite ao leitor a sensação de um título incompleto, pois bem poderia ter sido Aproximações à história, mas ele se explicita no subtítulo: Estudos da história e historiografia, grafado na sobrecapa. Não é de menor importância elucubrar sobre o significado do título na trajetória do próprio Fernando Novais, assumido como


objeto historiográfico. Enquanto Aproximações teve que responder ao impacto da Nova Históalude ao literário, remete ao alegórico, uma das ria, da tarefa de dirigir uma coleção sobre a Hisformas do discurso pós-modernista apontado tória da vida privada no Brasil. Em meio ao repor Hydnum White, o subtítulo traciona a alenhido combate entre historiadores ancorados na goria para a materialidade objetiva, a história visão de totalidade, epistemologicamente enraitout court. Aproximações indica a dificuldade, ou zados no marxismo, e aqueles dotados de uma mesmo impossibilidade, de se visão fragmentária, narrativa, chegar ao conhecimento absoavessa ou mesmo hostil aos reluto. Uma concessão à Nova cursos da teorização no seu priHistória a tisnar sua heterodovilegiamento de um relativismo xia marxista, mas Aproximações subjetivo, Fernando Novais inrais está remete também ao cálculo, ao corporou a sábia virtude da mena galeria espírito analítico que se aloja diação. no coração do constructo mardos grandes No prefácio da obra, não xista em que se enraíza Fernanconstante desta coletânea, critica intérpretes do Novais, sobejamente conhea Nova História por não elaborar doBra; cido por sua vinculação com o um aparato conceituai adequadistinguido Seminário Marx. A do à abordagem dos novos teacepção resultante seria entenmas, apontando aí sua fragilidader por aproximações a busca de de essencial pelo acentuamento uma síntese entre velha e nova do caráter narrativo, reconhehistória, que somente um hiscendo na própria abertura para toriador que realizou a longa novas temáticas e o conseqüente travessia da segunda metade do enriquecimento do discurso hisséculo 20 como objeto e sujeito toriográfico sua virtude primada história poderia realizar. Por esta via, aproxicial. Para contornar a sensação transmitida pela mações têm também o sentido de recolha de Nova História, a de pairar no ar, em permanenmemória, de avaliação de trajetória intelectual. te suspensão, por não trabalhar as formas de esO título remete, portanto, a uma concepção truturação da sociedade, do Estado, da vida mahistórica que se esbate entre a arte e a ciência, terial, propôs um novo arranjo metodológico, dimensão científica que, contudo, prevalece no através do qual os fragmentos se incrustassem conteúdo do livro, pois em sua grande maioria na reconstituição mais compreensiva do profoi produzido entre os anos 1950 e 80, fase de cesso histórico, repondo o cotidiano da vida hegemonia inconteste, entre nós, das interpreprivada na formação histórica brasileira, enlatações alicerçadas no marxismo. A complexiçando de modo renovado velha e nova história. dade historiográfica de nosso tempo se reflete É por essa via que, sem abrir mão dos pressuno corpo seleto de pesquisadores, professores postos mais gerais, implícitos nas determinae intelectuais formados por Fernando Novais. ções do antigo sistema colonial, repõe a escraviExpressa-se na apresentação de Pedro Puntoni, dão como relação social dominante, a partir da que sobreleva a dimensão marxista de seus texqual perscrutaria a esfera do cotidiano e da intitos; na "orelha" de Laura de Mello e Sousa, que midade, definida pela ambigüidade presente na enfatiza sua abertura para a dimensão cultural. descontinuidade, desconforto, instabilidade, proAmbos, Pedro e Laura, belos exemplos da abervisoriedade, desterro, que emblematizam a vida tura intelectual de Fernando Novais, sempre na Colônia. disponível a acolher o ar fresco das renovações Por esta via, vislumbramos uma saída, um historiográficas, sem cair nos modismos fáceis caminho estreito, nos dizeres de Roger Chartier, ou abandonar as convicções longamente acalenpara quem rechaça, ao mesmo tempo, a redução tadas, um espaço de criatividade para seus disda história a uma atividade literária de simples cípulos e amigos, não obrigados a seguir a fatucuriosidade, livre e aleatória, e a apreensão de ra do mestre. sua cientificidade, um reduzido espaço de manoHá, visivelmente, dois Fernandos; filhos unibra para o historiador que quiser, como Fervitelinos do perseverante mestre-escola Laurinnando Novais, equilibrar-se no fio da navalha, do Novaes Júnior. O segundo Fernando Novais que é operar entre a história artefato literário e nasce em 1997, no texto Condições da privacidaa história discurso científico. de na Colônia, que, por sua força teórica e metodológica, poderia ter figurado na segunda parte JOSé JOBSON DE ANDRADE ARRUDA é historiador e do livro. Travejado no velho e bom marxismo, professor titular da USP/Unicamp/USC.

i

PESQUISA FAPESP 118 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ 93


LIVROS Geraldo Ferraz e Patrícia Galvão: a experiência do suplemento literário do Diário de S. Paulo, nos anos 40

Mapas e história: construindo imagens do passado Jeremy Black Edusc 424 páginas, R$ 62,00

Um fascinante e inovador estudo sobre o mapeamento do passado e de como ir de um lugar para outro nem sempre foi uma mera questão de análise geográfica. O autor, professor da Exeter University, na Inglaterra, inicia o seu livro com uma historiografia dos atlas e mapas. Ao longo do caminho vamos conhecendo como esse mapeamento podia servir a interesses alheios, sejam ideológicos, sejam teológicos. Como o mapa da Guerra Fria, que "unia" URSS e EUA.

Juliana Neves Annablume/FAPESP 214 páginas, R$ 35,00

Entre 1946 e 1948, o extinto Diário de S. Paulo publicou um suplemento sobre literatura editado pela escritora e ativista Pagu e seu marido, o crítico de arte Geraldo Ferraz. São Paulo se transformava em metrópole e os dois conseguiram reunir as cabeças pensantes da época moderna. Annablume (11) 3812-6764 www.annablume.com.br

Edusc (14) 3235-7111 www.edsuc.com.br

As mulheres ou os silêncios da história

Carta a Christophe de Beaumont e outros escritos sobre religião e moral Jean-Jacques Rousseau Estação Liberdade 237 páginas, R$ 37,00

Michelle Perrot Edusc 520 páginas, R$ 68,30

Esta edição traz reunião inédita em língua portuguesa de cartas e textos do filósofo francês Jean-Jacques Rousseau. O livro foi lançado na programação do Colóquio Rousseau, na Unicamp, realizado em outubro. São cartas dirigidas a amigos do pensador, como as Cartas morais, a Carta ao senhor de Voltaire, as Cartas a Malesherbes e, é claro, a famosa Carta a Beaumont.

Um livro que virou clássico entre os estudos sobre gênero e feminismo. A historiadora da Universidade de Paris mostra as muitas dificuldades enfrentadas pelas mulheres na construção de suas reais identidades. Os obstáculos iniciam-se pelo chamado "apagamento" dos traços públicos e privados do sexo feminino no século 19, o que dificulta para os cientistas sociais e historiadores a localização da mulher dentro de contextos sócio econômicos. O livro mostra como se deu esse "apagar" e como ele foi superado hoje.

Estação Liberdade (11) 3661-2881 www.estacaoliberdade.com.br

Edusc (14) 3235-7111 www.edusc.com.br

História econômica: estudos e pesquisas

Independência: história e historiografia

Alice Piffer Canabrava Editora Hucitec/Editora Unesp/Fipe 315 páginas, R$ 40,00

István Jancsó (organizador) Editora Hucitec/FAPESP 934 páginas, R$ 120,00

Uma das figuras de proa da moderna historiografia econômica brasileira, Alice Canabrava tem aqui agrupados os seus melhores textos e análises. Entre os principais artigos dessa antologia: "Uma economia em decadência", "Terras e escravos", "As chácaras paulistanas", "A influência do Brasil na técnica do fabrico de açúcar nas Antilhas francesas e inglesas".

Resultado do Seminário Internacional Independência do Brasil: História e Historiografia, esse imenso compêndio é uma fonte preciosa de pesquisa para todos aqueles que estudam o tema. Entre os vários artigos: "A visão estrangeira da independência do Brasil"; "A independência brasileira na historiografia portuguesa"; "A retórica da recolonização", "Independência no papel".

Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br

Hucitec (11) 3083-9273 www.hucitec.com.br

94 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 118


PeiqeTeCniiiiil

CLASSIFICADOS

• Anuncie você também: tel. (11) 3838-4008

www.revistapesquisa.fapesp.br

FAPESP

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA ':JÚLIO DE MESQUITA FILHO"

A Universidade Esladual Paulisla "Julio de Mesquila Filho" realizará Concursos Públicos de Títulos e Provas poro conlralação

de docentes nos Unidades abaixo relacio-

nadas.

Titu/ação mínima: Doutor

Regime Jurídico: CLT Regime de Trabalho:

Regime de Dedicaçõo

Integral à Dacência e à Pesquisa

(RDIDP)

FCL/Araraquara:

Língua Espanhola I a V, literatura Espanhola I a 111e literatura I a 111(inscrições até 4/12/05); Língua Espanhola I a V

Hispano-Americana

IQ/Araraquara: Química Inorgânica FCL/Assis: Estatística I e 11; Teoria da literatura I e 11; Técnicas de Exames e Aconselhamento Psicológico I e 11 FC/Bouru: Didática e Prática de Ensino de Psicologia I a V; Didático da Educação Física, Prática de Ensino em Educaçõo Física Escolar I o IV, Prática de Ensino: Projetos Interdisciplinares em Modalidades Esportivas I e 11 e Prático de Ensino: Projetos

Alta sensibilidade sem comprometer seus resultados Apresentamos o novo Power SYBR® Green PCR Master Mix

Interdisciplinares em Atividades Corporais

FE/Bouru: Introdução à Ciêncio da Computaçõo, Computaçõo e Métodos Numéricos e linguagem de Alto Nível FCA/Botucatu: Informática Aplicada à Agricultura,

• Permite detecção de até Infarmática Aplicada,

Elemen-

2 cópias do alvo

tos de Geoestatística e Geoprocessamento

FM/Botucatu:

Patologia Geral e Anatomia

Geral; Dermatologia

• Alta reprodutibilidade

Patológica Geral; Clínica Pediátrica

Infeccioso e Parasitária; Gastroenterolagia

IB/Botucatu: Física 111,Elelromagnetismo e Eletrônica Experimental; Evoluçõo; Prótica de Ensino de Biologia I e 11 FHDSS/Franca: Projetos de Investigaçõo

dos; Física I a IV; Etologia, Bioclimatologia

Po"",SY8Re PCRM.aster Mil (2X) PIN:4361&59

Prática; Política Internacional e Política

Externo: Mecanismos de Integraçõo; História Medieval FE/llha So/teíra: Inlroduçõo à Ciência da Computaçõa

garante

resultados mais confiáveis

Cirúrgica

• Compatível com protocolos padrão Applied Biosystems

e Processamento de Da-

Zootécnica, Exterior e Julgamento Animal

e Eqüinocultura

FFC/Marília:

Documentaçõa Audiovisual, Planejamento e Gestão de Arquivos, Automaçõo em Arquivos, Arquivos Especializados e Empresariais e Gestõo Elelrônica

Informações: 0800 704 90 04 GrandeSP: (11) 5070-9634/9652 vendas@appliedbiosystems.com

,;p.

~.Q

Applied Biosystems

de Documentos; História das Relações Internacionais no Mundo Moderno e História e Diplomacia

no Século XX; Saúde Pública e Epidemialogia,

Bioquímica, Fisiologia

do Exercício, Noções de Enfermagem, Farmacologia, Biofísica, Pneumologia, e Geriatria, Gerontologia

e Reumatologia

FCT/Presidente Prudente: Projeto I, 11e 111;Química Inorgânica I, 11e 111;Desenho e Representação Gráfica e linguagens Visuais - Percepção e Expressão

IB/Rio Claro: Prático de Ensino - Ensino Fundamenlall e 11,Prática de Ensino - Ensino Médio I e 11,Metodologia do Ensino Fundamental e Metodologia do Ensino Médio IGCE/Rio Claro: Metodologia em Geografia, Quantificaçõo em Geografia, Técnicas de Pesquisa em Geografia

Física e Climatologia

IBILCE/São José do Rio Preto: Prática de Leitura em língua Portuguesa, Prática de Redaçõo em língua Portuguesa, Estilística da língua Portuguesa e Tópicos Especiais de Língua Portuguesa; língua Italiana I a IV; Filosofia do Educação I e 11e Fundamentos Epistemológicos do Pesquisa Educacional; Geometria Analítica e Vetares, Geomelria

Euclidiana e Geometria

Diferencial; Cálculo Avançado

e Cálcu-

lo Diferencial e Integral 111;Ecologia Geral e Parasitologia; Bioquímica I e 11e Bioquímica de Alimentos

Regime de Trabalho:

Regime de Turno Completo (RTC)

FHDSS/Franca: Direito Romano Outros Concursos Públicos paro provimento de cargos de Professor Assistente lcrorn autorizados conforme Despacho do Reitor, Prof. Dr, Marcos Macari, de 17/11/2005, publicado no Diário Oficial do Eslado de São Paulo, de 18/11/2005, no página 35. Para o provimento de cargos de Professor Titular já estõa ou serõo abertas inscrições nas seguintes Unidades:

FO/Araraquara: Diagnóstico Bucal; Radiologia FE/Bouru: Vibrações, Higiene e Segurança no Trabalho (inscrições até 11/12/05) FHDSS/Franca: Direilo Processual Civil (inscrições até 18/01/06) FE/llha Solteira: Mecânica dos Fluidos I e 11(inscrições até 12/02/06) IB/Rio Claro: Teoria do Treinamento Desporfivo (inscrições até 20/02/06) FO/São José dos Campos: Anatomia (inscrições até 12/02/06) Inlormações:

PeiqeT~uisa FAPESP

Ligue 3838-4008

ou acesse

www.revistapesquisa.fapesp.br

www.unesp.br/unidades

PESQUISA FAPESP 118 • DEZEMBRO DE 2005 • 95

--

--_.

__.~---------------


Tasmânia ROBERTO DE SOUZA CAUSO

Josiel Monte evitava encarar diretamente a fogueira — desfrutava a visão da Via Láctea despejada acima de sua cabeça, e não queria ofuscar-se. O walkie-talkie estalou e a voz anasalada da profa. Kristie Carroll soou bastante clara, na noite fria: — Monte? Já terminamos por aqui. Estaremos de volta em uma hora. — Certo, Kristie. Vou guardar o acampamento. Ele era professor visitante de biologia junto à Universidade de New South Wales, Austrália. Um embaixador dos marsupiais sul-americanos, no reino onde os marsupiais eram soberanos. Desde o início sentira-se um membro júnior na confraria de especialistas do Departamento de Zoologia. No Brasil ele tinha nome e um sólido nicho profissional; ali, era pouco mais que uma curiosidade acadêmica. Associada a isso, havia a solidão. Por isso, quando Alan Briggs, o chefe do departamento, convidou-o para uma atividade de campo, viu-a como chance de estreitar os laços com ele e Carroll, sua assistente. Sorriu. Briggs no início "esquecera" de informá-lo da real natureza da expedição: procurar evidências da existência do tigre-da-tasmânia, ou tilacino. O último exemplar conhecido da espécie morreu em 1936, no zoológico de Hobart, a capital da ilha. Lembrou-se de imagens em película do tilacino mostrando o corpo alongado de cauda rígida, a cabeça canina, o flanco listrado e a expressão alerta. Imagens da terrível solidão sépia de um animal exilado das matas, exilado do futuro, condenado a um registro desbotado e a uma presença nebulosa no sentimento coletivo de culpa da humanidade. Pois ainda se falava em avistamentos do animal, alguns mesmo fora da ilha. Gente na Austrália (e até na Inglaterra) dizia tê-lo visto. Na Tasmânia propriamente, as últimas buscas se deram em meados da década de 1990, sem sucesso. O predador marsupial existira em Papua e por toda a Austrália, mas fora encurralado na Tasmânia com a chegada do dingo, um mamífero placentário da família dos cães e predador mais agressivo. Uma vez restrito à ilha que se pendurava como um brinco ao sul da Austrália, o tilacino foi massacrado pelos recém-chegados criadores de ovelhas, em luta breve mas definitiva. O casal de biólogos não acreditava realmente na idéia de o tilacino ter sobrevivido. Recebiam bem a pausa em suas atividades acadêmicas — e o incentivo financeiro do milionário australiano que patrocinava, discretamente, a expedição. Ele participava no esforço de clonar o tilacino de volta à vida. Se encontrassem animais vivos, como afirmavam as testemunhas, poderiam somar sua variedade genética aos exemplares fósseis que formavam a base do projeto de clonagem, e então criar e manter uma população viável. Briggs e Carroll estavam lá embaixo no vale, entrevistando o fazendeiro que era a última "testemunha" da existência do animal. Estar no sopé do pico Ossa, acompanhando-os e guardando o acampamento, era para Monte como participar de uma busca pela mula-sem-cabeça ou pelo mapinguari nos campos e selvas do Brasil. Por mais que se afirmasse que tigres-da-tasmânia sobreviventes teriam adquirido uma timidez quase sobrenatural, após a escala em que foram caçados ou envenenados, não podia mais haver tilacino algum vivendo uma guerrilha contra o Homem naquelas montanhas... Monte fechou os olhos. Desejava estar errado. Tornou a abri-los. O que teria franqueado a ele a visão? Talvez o seu olhar estrangeiro... ou a solidão que sentia e o faria se sintonizar com o estranho sentimento de perda que existia por trás das notícias de avistamentos. O animal deixou o abrigo das rochas e caminhou timidamente para dentro do acampamento. Era maior do que Monte imaginara. As orelhas giravam para a frente e para trás em sua cabeça, e o focinho 96 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ PESQUISA FAPESP 118


comprido subia e descia, enquanto ele circundava devagar a fogueira, os olhos cintilantes de labaredas voltados para Monte. Chegou mais perto de onde ele estava, farejou o ar, bocejou. As mandíbulas se abriram num ângulo surpreendente. Monte pôde sentir o seu hálito de carnívoro, e o cheiro não bem canino do seu pêlo. O tilacino chegou até ele, farejou o seu braço, e então se sentou sobre um dos flancos. Ficou ali ao seu lado, observando a fogueira. Monte estendeu a mão esquerda para tocá-lo. Moveu-a devagar, como se realmente pudesse assustar a aparição. Seus dedos nunca encontraram a pelagem parda, não traçaram as listras que cobriam as ancas e parte das costas. O braço todo foi fustigado por um formigar intenso, um estertor e o desfalecimento dos nervos. Monte recolheu-o. O tilacino não mudou de posição; apenas olhou-o de soslaio e piscou, como que embaraçado por sua própria imaterialidade. A mente do cientista vivia um estado alterado de consciência? A razão ia dormir e cedia o lugar diante da tela de sua visão para o mito? Não era o Homem o vigia do mundo? O sentinela solitário diante da fogueira da mente? E quando a razão não respondia mais às ansiedades do espírito, um outro olhar devia manter a vigia e dar testemunho. Mas Josiel Monte era testemunha do quê? De que a culpa do ser humano por suas vítimas ia mais longe e mais fundo do que imaginava? Ou de que os animais também produziriam os seus fantasmas, assombrando o Homem com uma presença fugidia ou tranqüila como esta, e não odiosa e irada como os fantasmas humanos? Teria ainda a aparição nascido não de sua mente, mas da própria terra que também sonhava e lamentava a ausência de um de seus filhos? Talvez cada espécie extinta deixasse uma ferida no coração de Gaia, saudades fundas da mãe que sente a perda do filho como mutilação da própria carne. Monte e o tilacino ficaram ali junto ao fogo, como um homem e seu cão partilhando o acampamento e o que os dois representavam: o ponto em que o mundo natural e o mundo humano se tocavam e um se despedia do outro, antevendo a fronteira intransponível ainda não traçada. Nessa penumbra vigorava ainda uma estranha completude. Talvez fosse esse sentimento a fonte última dos avistamentos do tilacino. E que a vergonha se misturava à sensação de perda pelo que fora deixado para trás, no caminhar da espécie humana. Briggs e Carroll retornaram, passada a prometida hora de subida da montanha. — Oh, você parece bem — a mulher disse. — Alan e eu pensamos que ficaria entediado, aqui sozinho. O fantasma do tigre-da-tasmânia era invisível para eles. Castigo ou bênção?, Monte perguntou silenciosamente à aparição ao seu lado, que ainda tinha as orelhas alertas, as chamas se refletindo em seus olhos. Os dois, companheiros um do outro, contemplavam uma segunda fronteira traçada no chão do precário acampamento. Que olhos podiam ver o que havia para ser visto? — De fato — disse. — Estou bem, como há muito não estava. Briggs disse que devia ser o ar da montanha, fazendo Monte sorrir. Ao seu lado, o tilacino bocejou. Ficou junto dele a noite toda, para ir embora apenas ao nascer do sol.

ROBERTO DE SOUSA CAUSO tem contos publicados em dez países, é autor do estudo Ficção científica, fantasia e horror no Brasil e do romance A corrida do rinoceronte. PESQUISA FAPESP 118 ■ DEZEMBRO DE 2005 ■ 97


Toda semana, em meia hora, você tem: • Novidades de ciência e tecnologia • Entrevistas com pesquisadores • Profissão Pesquisa • Memória dos grandes momentos da ciência

E o que não poderia faltar: sua participação nas seções

·

• Pesquisa Responde • Promoção da Semana Apresentação Tatiana Ferraz Comentários Mariluce Moura Diretora de redação de Pesquisa FAPESP

Sábados, às 12h30 Reprise aos sábados às 19h30 e aos domingos às 14h

Pesqerecnüisa ~APESP

www.revistapesquisa.fapesp.br

www.radioeldoradoam.com.br


caso do embolismo,

PESQUISA RESPONDE

quando

você tem a efervescência

12.11.2005

dos

gases dissolvidos no sangue humano. Você tem efervescên-

• Sabrina Canassa, redatora

cia em geologia.

de São Paulo - Por que e quanto tempo o

vulcânicos

feijão precisa ficar de molho

ela ocorre dentro das plantas.

Tem lagos

que chegam a cau-

sar catástrofes.

E na botânica

antes de ser cozido? Tem gente que diz que é duas horas e

PROMOÇÃO DA SEMANA

receitas que pedem até dois dias. Feijão de molho: para eliminar açúcares não-digeríveis • Carina Coelho, nutricionista da

em que fiz pesquisa,

sempre

05.11•2005

tes do Pesquisa Brasil as ou-

• Produção

gostei e gosto cada vez mais.

tras tantas possibilidades

estudo que vem desenvolven-

- O que você faz para evitar machucados e contusões quan-

em sua

Estou com quase 70 anos e não pretendo parar nunca.

do em conjunto com cientistas

do pratica exercícios?

casca há alguns açúcares, cha-

Acho que é uma atividade cria-

franceses:

mados oligossacarídeos,

tiva. Suas novidades

Universidade

de São Paulo

- O feijão tem que ser deixado de molho

porque

que

fazem a

• Nassab M. T. Galante,

causam gases e desconforto

gente rejuvenescer.

Não há ro-

• Alberto Tufaile

intestinal,

tina

cansativa.

Primeiro,

visto que nosso in-

de trabalho

do

a pesquisa

trata de

-

de São Paulo Não faço nenhum exercício,

testino não é capaz de digeri-

Sempre há alguma coisa nova.

efervescência.

los. Por isso, é importante

Mesmo as áreas mais antigas

bolhas

xar o feijão de molho, para que

apresentam

através da efervescência.

esses açúcares saiam da cas-

po todo. E as mais novas, como

é um fenômeno

ca. Assim, ao ser cozinhado, o grão fica mais digerível. Além

a nanotecnologia

ção quântica, que nasceram há

resse para várias áreas: medicina, geologia, botânica. E, até

desses açúcares, o feijão apre-

cinco ou dez anos, são campos

o momento, ninguém tinha ob-

Espero que vocês encarem (a

senta outros

de estudo bastante

servado

resposta)

compostos

dei-

anti-

novidades

o tem-

e a informa-

abertos a

A formação

no champanhe

nhar seis meses de assinatura da revista. Assim ficarei mais

Pouca coisa já foi

esse aspecto, ocorrendo

descoberta

nessas áreas e es-

fibra

tão é preciso deixar o feijão de

pera-se

molho,

mas não um ou dois

sejam feitos em 15 ou 20 anos,

dias. Duas ou três horas já são

ou até em mais tempo. É um

o suficiente

futuro

para tirar esses

compostos. E é muito importante não usar a água em que o feijão

ficou de molho

de celulose,

sob numa

num nível

Então você tem

aplicação da efervescência

no

tempo sem fazer exercícios. com

paro o jantar.

Há muita pesquisa a

ser feita.

NOTA 19.11•2005

PROFISSÃO PESQUISA 19.11.2005

• Nelson Velho, físico da Universidade

Federal

do Rio de Janeiro Entendi

a razão de fazer pes-

quisa depois que comecei a fazê-Ia. Antes de iniciar a carreira universitária, quisador,

ou de pes-

a gente não sabe o

que vem adiante.

• Apresentadora - Mais do que uma festa, a pesquisa sobre o borbulhar dos vinhos espumantes - chamados erroneamente de champanhe aqui no Brasil-

é uma

tarefa cheia de utilidades. Além da possibilidade de uso da produção dos pesquisadores para aplicações no mercado vinícola, o físico da Univer-

Mas posso

sidade de São Paulo Alberto

dizer que, ao longo dos anos

Tufaile explicou para os ouvin-

Champanhe:

humor.

pelo programa, que ouço no sábado à tarde, enquanto pre-

para

a cocção. É preciso usar outra água para cozinhar.

bom

Um grande abraço. E parabéns

que a gente ainda não

domina.

faço a

Vocês não

acham? Gostaria muito de ga-

a efervescência

microscópico.

Portanto,

melhor "prevenção".

Esse

novidades.

avanços

infelizmente.

que tem inte-

nutricionais que também causam algum desconforto. En-

que muitos

de

se dá

bolhas nascem de fibras de celulose



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.