Álcool

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Ciência eTecnologia

Abril 2006 • N° 122

FAPESP

IMPOTÊNCIA PODE INDICAR PROBLEMAS CARDÍACOS

Omundo• quer .ma1s .


Imagens do Mês

Sombra sobre o Sol O Rio Grande do Norte foi o melhor ponto para observar o eclipse total do Sol no Brasil. No alvorecer do dia 29 de março, às 5h35 da manhã, o Sol despontou quase totalmente encoberto pela Lua. A rota do eclipse começou no Nordeste brasileiro, atravessou o Atlântico, chegou ao norte da África, percorreu o Oriente Médio, a Ásia Central e o oeste da China, e desapareceu no crepúsculo da Mongólia. O espetáculo foi peculiar pela longa duração. Na Líbia, o melhor lugar para vê-lo, durou quatro minutos e sete segundos. O próximo eclipse total do Sol vai acontecer no dia 1° de agosto de 2008. Mas só vai durar cerca de dois minutos. Na foto acima, o eclipse visto a 80 quilômetros de Natal (RN). Na foto abaixo, crianças testemunham o fenômeno em Níger, na África.

PESQUISA FAPESP 122 • ABRIL DE 2006 • 3


POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

26 SAÚDE PÚBLICA

33

50

RECURSOS HUMANOS

GEOLOGIA

Pela primeira vez a Embrapa contrata centenas de mestres e doutores para investir em novas tecnologias

Cadeia de altas montanhas dominava a paisagem hoje plana de Goiás e Minas

CIÊNCIA

44

54 FÍSICA A grafite surpreende com propriedades elétricas e magnéticas incomuns

HEMATOLOGIA Unicamp estuda mutação genética que produz rara síndrome sangüínea

I

HUMANIDADES

84 TEATRO Mais de 6,1 mil textos originais de peças submetidas à censura são resgatados do acervo do Deops

88 ARQUITETURA

TECNOLOGIA

72

Livro reúne textos de Sérgio Ferro escritos entre 1963 e 2003

O Brasil prepara-se para enfrentar a gripe aviária, enquanto a ciência ainda tenta antever o espectro da pandemia

Película ultrafina reduz evaporação de água de reservatórios

CARTAS ......... . ...•• . . . ...

29

76

ESTRATÉGIAS . . .. .. . .. .. . .. . 18

QUÍMICA

DIVULGAÇÃO

NANOBIOTECNOLOGIA

Oito Faps se unem para editar revista trimestral que reflita a diversidade de sua produção

Nanopartículas de prata são a base de novos tecidos e fármacos

30 POPULARIZAÇÃO Exposição conta a história da vida no planeta nos últimos 700 milhões de anos

32 PÓS-GRADUAÇÃO A Capes vai divulgar na internet todas as 50 mil teses e dissertações que serão defendidas em 2006

46 FISIOLOGIA Equipe da Unifesp identifica interação entre batimentos e contração cardíacos, mediados por cálcio

48 GENÉTICA Espécie marinha de pei xe-boi cruza com a amazônica e gera híbridos estéreis

4 • ABRIL DE 2006 • PESQU ISA FAPESP 122

79 NOVOS MATER IAIS Suporte colorido de aparelho ortodôntico é feito com cerâmica e pigmentos

SEÇÕES

IMAGENS DO MÊS ... . ........ 3

8 CARTA DA EDITORA ... ... .. .. . 9 MEMÓRIA . ......... . ••.... . 10 34 SCIELO NOTÍCIAS .. .. . .. . ... 56 LINHA DE PRODUÇÃO ... . . . .. 58 RESENHA ..... . . . . . . . . . .... 92 LIVROS ... . .... .. .. ........ 93 FICÇÃO .. .... .. . . . . . .. .. .. . 94 CLASSIFICADOS ..... . . . .. ... 96 LABORATÓRIO . .. ... . .. . ....

Capa e ilustração: Hélio de Almeida


www. revista pesquisa. f a pes p. b r

24

12

BIODIVERSIDADE

O cineasta Nelson Pe

Reunião internacional debate adoção de leis globais sobre patrimônio biológico

CAPA

62 AGROINDÚSTRIA As soluções para suprir a demanda de álcool combustíve l englobam aumento da área plantada , variedades mais produtivas e novos recursos genéticos

80 38 EPIDEMIOLOGIA Disfunção erétil pode ser o primeiro sinal de doenças coronarianas


• Novidades de ciência e tecnologia • Entrevistas com pesquisadores • Profissão Pesquisa • Memória dos grandes momentos da ciência E o que não poderia faltar: sua participação nas seções

• Pesquisa Responde • Promoção da Semana

www.radioeldoradoam.com.br

Clincla eTecnologia

e no Brasil

UISB FAPESP

www.revlstapesquisa.fapesp.br


alguns textos. Nascida na Ucrâ-

PESQUISA RESPONDE

nia em 1925, veio para o Brasil

18.03.2006

bebê. Morou em Recife e no Rio de Janeiro, onde cursou

• Ernani Oliveira

direito e escreveu seu primeiro

- Como age o antiácido? Seu

romance, Perto do coração sel-

uso pode causar efeitos colate-

vagem, publicado em 1944. Cla-

rais no longo prazo?

rice é o principal nome de uma tendência intimista da literatu-

• Luiz Carlos Sa lles Abdo, da

ra nacional. Narrados por Aracy

Sociedade Brasil eira de

Balabanian, os contos Felicida-

Gastroenterologia

de clandestina, Tentação e Res-

a acidez

tos de Carnaval integram o CD

do estômago, gerando sensa-

Clarice Lispector por Aracy Ba-

ção de alívio. É um tipo de me-

labanian.

- O antiácido diminui

dicação bem tolerada

e

seu

uso crônico não causa problemas graves. Mas o consumo

ENTREVISTA

Antiácido: em excesso, pode causar diarréia

excessivo pode gerar incômo-

18.03.2006

dos como prisão de ventre ou diarréia. Em casos raros, pode

sitologista alemão Friedrich

haver acúmulo de magnésio no sangue de quem sofre de pro-

tros detalhes sobre o comportamento desse protozoário. Eles

blemas renais graves.

viram que, ao picar um mamí-

• Sérgio Adorno, coordenador

estar disponível no país. Para

fero, a fêmea do mosquito Ano-

do Nú cleo de Estudos da

formatar o Sistema Brasileiro

pheles inocula o Plasmodium

Violência da USP

de TV Digital, foi criada ao lon-

na pele, e não no interior dos

- A violência é um dos princi-

go de três anos uma rede de

NOTA

Frischknecht descobriram ou-

PROFISSÃO PESQUISA • Apresen tadora

04.03.2006

- Em meses um sistema de transmissão digital de TV deve

vasos sangüíneos. Em seguida

pais problemas da sociedade

1.200 pesquisadores e 75 insti-

brasileira e os governos têm de

tuições. Marcelo Zuffo, da USP,

• Ap rese ntadora

o parasita se desloca e penetra em uma artéria ou veia, alcan-

enfrentar essa questão. Afinal,

integrante dessa rede, defende

- No final do século 19, o cirur-

çando o sangue. Uma vez no

o direito à segurança está em

que o melhor sistema a ser ado-

gião francês Charles Laveran

sangue, segue até o fígado,

nossas Constituições. Mas para

tado seria o brasileiro.

identificou o protozoário Plas-

onde se reproduz e libera fo r-

uma ação eficaz é necessário

modium, causador da malária,

mas que invadirão as hemácias.

conhecimento científico, com

• Marcelo Zuffo

e recebeu o Prêmio Nobel de

Amino e Frischknecht constata-

base em dados e em análises

- Os padrões japonês, euro-

Fisiologia em 1907. Quase um

ram ainda que o Plasmodium

que permitam observar a cau-

peu, coreano e chinês tradu-

século depois o biomédico bra-

invade os vasos linfáticos do sistema de defesa do organis-

sa da criminalidade, a evolução

zem interesses econômicos, às

da violência, o perfil das víti-

vezes, contrários ao interesse

mo. "O interessante é que nos

mas em potencial e o papel do

brasileiro. Na atual dinâmica

vasos linfáticos o parasita pode

estado na promoção dos direi-

mundial, os países criam reser-

começar a se desenvolver, o que

tos fundamentais ou na con-

vas de mercado usando padrões

geralmente ocorre no fígado, e

tenção da violência. São estu-

como cercas, para proteger in-

04.03.2006

sileiro Rogério Amino e o para-

a produzir proteínas reconhe-

dos fundamentais para se

teresses econômicos. O exame

cidas pelo sistema de defesa",

chegar a uma soc iedade mais

desses padrões mostrou que ne-

explica Amino. Acredita-se que

justa, igualitária e pacificada.

esse reconhecimento dispare uma resposta imunológica contra o protozoário. Mas é possível que ocorra o oposto e surja

MEMÓRIA

Além disso, são sistemas incompatíveis entre si, o que po-

11.03.2006

deria isolar o Brasil de outros

uma tolerância a essas proteí-

Plasmodium perfurando a pele

nhum atende de modo satisfatório aos anseios brasileiros.

mercados. O país deveria ino-

e pleitear

nas, o que impediria o organis-

• Ap resentadora

var

mo de reconhecer o parasita

- Clarice Lispector era uma

dial de TV digital. Os países la-

como invasor. Essa descoberta

mulher forte, de olhar pene-

tino-americanos - e alguns da

pode, no futuro, influenciar o

trante

palavras densas. Mas

África e da Ásia - aguardam a

desenvolvimento de vacinas

também uma escritora delica-

decisão brasileira para resolver

contra o Plasmodium.

da que chegava a ser frugal em

o que fazer.

e

um padrão mun-


c a rta s@fa pes p.br

Juscel ino Kubitschek

Peiii.üisa FAPESP

As reportagens de Pesquisa FAPESP retratam a construção do conhecimento que será fundamental para o desenvolvimento do país. Acompanhe essa evolução.

• Números atrasados Preço atual de capa da revista acresc ido do valor de pastagem. Tel. (11) 3038-1438

• Assinaturas, renovação e mudança de endereço Ligue: (11) 3038-1434 Mande um fax: (11) 3038-1418 Ou envie um e-mail :

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cartas@fapesp.br

bolas de bilhar, teclas de piano e outros artigos.

Como telespectadora, gostaria de faze r alguns comentários sobre a reM ARCO-A. DE PAOLI Instituto de Química/Unicamp portagem "JK" (edição 121). Gosto Campinas, SP das minisséries da TV Globo porque sempre acho que elas trazem muito da nossa história que ficou perdida Revista em sala de aula nos anos 1970 e 80. Adorei o trabalho apresentado por Atualmente não existe no Brasil nenhuma revista com a qualidade de Pesquisa FAPESP e espero que ele possa sair dos bancos universitários e Pesquisa FAPESP. Tudo maravilhosachegar à grande massa que fica à mermente escrito em uma linguagem que todos entendem- dos que têm curso cê de projetas de políticos. Precisamos cultuar mais superior ao leitor mais humilde. Fica o que nosso Brasil difícil citar os meproduziu de bom e o que ainda pode lhores artigos na EMPRESA QUE APÓIA vir a fazer. Sempre edição 121. Vou só A PESQUISA BRASILEIRA me pergunto por citar quatro: a seque os norte-ameção Laboratório tem notas curtas, ricanos sempre cicaprichadas e comtam exemplos de pletas; "Rigor e senliderança e se us grandes personasibilidade': de Carlos Fioravanti; "JK': gens em livros e filmes. No Brasil de Gonçalo Junior; NOVARTIS isso é muito raro e "São Paulo nova, e com isso somos Ato I", de Carlos Haag. Como esuma população Trop1 Net.org de memória fraca creve bem este úlpara o que é bom timo! Sem querer e para o que é desprezar ninguém de Pesquisa FA rmm. PESP, pois aí só tem gente de gabariR OSANGELA PINHO to, o Carlos Haag é o meu preferido.

(f)

Rio de Janeiro, RJ

• Site da revista No endereço eletrônico www.revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAP ESP na íntegra e um arquivo com todas as edições da revista, incluindo os suplementos especiais. No site também estão disponíveis as reportagens em inglês e espanhol.

• Para anunciar Ligue para: (11 ) 3838-4008

8 • ABRIL DE 2006 • PESQUISA FAPESP 122

ANTONIO ARMANDO

Baquelite Muito interessante a reportagem sobre "A era do plástico" (edição 121 ). Seria importante mencionar a observação feita por H-G Elias em seu livro Grasse Molekule (Springer, Berlim, 1985). Este autor lembra que "o uso de polímeros sintéticos, no final do século 19, para fabricar bolas de bilhar e teclas de piano evitou que cerca de 10 mil elefantes fossem mortos anualmente. As presas dos elefantes eram usadas para produzir

AMARo

São Paulo, SP

Correção Na nota "Campeonato nacional de teses" (edição 120), o endereço eletrônico correto do Portal de Periódicos da Capes é http://acessolivre.capes.gov.br. Carta s para esta revista devem ser enviadas para 3838-41 81 o e-mail cart as@fapesp.br, pelo fax ou para a rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP, CEP 05468-901 . As ca rtas poderão ser resumidas por moti vo de espaço e clareza.

an


Carta

da Editora

Pesquisa CARLOS VOGT PRESIDENTE MARCOS MACARI VICE-PRESIDENTE CONSELHO SUPERIOR ADILSON AVANSI DE ABREU, CARLOS VOGT, CELSO LAFER, HERMANN WEVER, HORÁCIO LAFER PIVA, HUGO AGUIRRE ARMELIN, JOSÉ ARANA VARELA, MARCOS MACARI, NILSON DIAS VIEIRA JÚNIOR, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO RICARDO RENZO BRENTANI DIRETOR PRESIDENTE JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER DIRETOR ADMINISTRATIVO CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ DIRETOR CIENTIFICO PESQUISA FAPESP CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADOR CIENTÍFICO), CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTÔNIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, LUIZ EUGÊNIO ARAÚJO DE MORAES MELLO, PAULA MONTERO, RICARDO RENZO BRENTANI, WAGNER DO AMARAL, WALTER COLLI DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA EDITOR CHEFE NELDSON MARCOLIN EDITORA SÊNIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS DIRETOR OE ARTE HÉLIO DE ALMEIDA EDITORES CARLOS FIORAVANTI (CIÊNCIA), CARLOS HAAG (HUMANIDADES), CLAUDIA IZIQUE (POLÍTICA CST), HEITOR SHIMIZU (VERSÃO ONLINE), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA) EDITORES ESPECIAIS FABRÍCIO MARQUES, MARCOS PIVETTA EDITORES ASSISTENTES DINORAH ERENO, RICARDO ZORZETTO CHEFES DE ARTE JOSÉ ROBERTO MEDDA, MAYUMI OKUYAMA ARTE FINAL LILIAN QUEIROZ FOTÓGRAFOS EDUARDO CÉSAR, MIGUEL BOYAYAN COLABORADORES ANA LIMA, ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS), EDUARDO GERAQUE (ON-LINE), FRANCISCO BICUDO, GONÇALO JÚNIOR, LAURABEATRIZ. MANU MALTEZ, MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO, PENHA ROCHA, REINALDO JOSÉ LOPES, SANDRO CASTELLI, THIAGO ROMERO (ON-LINE) E YURI VASCONCELOS ASSINATURAS TELETARGET TEL. (11) 3038-1434 - FAX: (11) 3038-1418 e-mail: fapesp@teletarqet.com.br PUBLICIDADE TEL: (11) 3838-4008 e-mail: publicidade@fapesp.br (PAULA ILIADIS) IMPRESSÃO PLURAL EDITORA E GRÁFICA TIRAGEM: 35.700 EXEMPLARES DISTRIBUIÇÃO DINAP CIRCULAÇÃO E ATENDIMENTO AO JORNALEIRO LMX (ALESSANDRA MACHADO) TEL: (11) 3865-4949 atendimento@lmx.com.br GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP FAPESP RUA PIO XI, N° 1.500, CEP 05468-901 ALTO DA LAPA - SÃO PAULO - SP TEL. (II) 3838-4000 - FAX: (11) 3838-4181 http://www.revistapesquisa.fapesp.br cartas@fapesp.br NÚMEROS ATRASADOS TEL. (11) 3038-1438

Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAPESP É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO SECRETARIA DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA, DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E TURISMO GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

De produção, potência e beleza Há alguma coisa no microcosmo da produção de álcool no Brasil que evoca de maneira um tanto incômoda o próprio país, como se ali ele estivesse retratado em miniatura e de forma privilegiada em suas flagrantes contradições, desigualdades extremas e visíveis complexidades. Veja-se: há nesse setor pesquisa de ponta com os genes da cana-de-açúcar, por exemplo, que poderá criar vias para aumentar a concentração de açúcar em cada planta e torná-la muito mais resistente às pragas - efeitos que resultariam sem dúvida em um aumento notável de produtividade da cultura. Ao mesmo tempo, arcaísmos inaceitáveis e ofensivos à dignidade humana, como o trabalho dos chamados bóias-frias, persistem num setor que movimenta 2% do PIB brasileiro, moderniza-se aceleradamente em termos técnicos e está se tornando multinacional. Entre 2004 e 2005, constata uma pesquisa feita na USP, 13 bóias-frias morreram por excesso de trabalho na área produtiva de São Paulo. Nessa ambiência se instala hoje um desafio importante para o país: aumentar rapidamente sua oferta de álcool combustível, produto que além de ter seu consumo hoje francamente estimulado no mercado interno é cada vez mais desejado no mercado internacional. Abre-se assim aquilo que os homens de negócios chamam uma janela de oportunidade, no caso uma janela que a médio prazo pode apresentar resultados polpudos para o PIB nacional. Mas como aumentar a oferta de álcool combustível no país? Guiada por essa pergunta, a bela reportagem de capa desta edição, elaborada pelo editor de tecnologia, Marcos de Oliveira, e pelo repórter Yuri Vasconcelos, traça um extenso panorama tecnológico, mas também econômico, social e com pitadas históricas sobre a questão do álcool combustível no país. É leitura imperdível para termos uma boa noção do terreno em que pisamos quando contemplamos nas ruas invenções como os carros biocombustíveis ou flexfuel.

Da potência dos motores a uma desconfortável forma de impotência que por vezes, mais do que se supõe, acomete os homens: a reportagem que abre a seção de ciência a partir da página 38 trata da chamada disfunção erétil e revela, entre outras coisas, como ela pode ser o primeiro sinal de doenças coronarianas. Baseado nas pesquisas mais recentes sobre ó tema, o relato do editor de ciência, Carlos Fioravanti, informa que no Brasil um em cada dois homens com mais de 40 anos está sujeito em grau mais ou menos intenso à situação que acham tão embaraçosa da chamada impotência sexual. Na verdade, quase metade desses casos não deveria causar grilo algum nem merecer maiores considerações de quem se vê em meio ao constrangimento da disfunção erétil quando queria que tudo funcionasse muito bem. Isso passa. O problema está na outra metade, a dos casos moderados ou mesmo graves, com os sinais de que alguma coisa não vai bem em outros pontos do organismo. Vale a pena conferir. Às vezes, a humana potência da criação no campo da arte e da cultura se mantém para muito além do vigor físico da juventude que de certa maneira todos os homens e mulheres gostariam de preservar até o fim. E há algo de extremamente belo nessa força de criação quando o rosto já está marcado por muitas rugas e o corpo ereto já nem tão ereto se apresenta. De certa maneira é isso que em síntese, com suas múltiplas histórias, diz a entrevista feita por Penha Rocha com Nelson Pereira dos Santos, o criador de uma obra-prima do cinema brasileiro, Vidas secas, e de tantos outros belos filmes, que chegou à Academia Brasileira de Letras. Lembremos: ele é o primeiro cineasta na Casa de Machado de Assis. E isso significa um reconhecimento devido ao cinema brasileiro, que em muitos momentos nos fala da potência do povo brasileiro apesar de tudo. MARILUCE MOURA

- DIRETORA DE REDAçãO

PESQUISA FAPESP 122 ■ ABRIL DE 2006 ■ 9


Laboratório da mata Theodoro Peckolt foi o pioneiro na análise química da flora nacional no século 19

DR. THEODORO PECKOLT >_ 159 Rlff da Quitanda 159 //&:&;*■.

NELDSON MARCOLIN

-2.

1

zgavel: em moeda corrente m> dia

e excedendo este prazo pagará o prendo de ...

......alo por mes.

. _-l^

Flora brasiliensis, 15 volumes sobre as plantas do Brasil, pesquisada, editada e publicada entre 1840 e 1906, é celebrada comoa principal obra de referência sobre a diversidade dos vegetais no país. O trabalho foi liderado pelo botânico alemão Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868) na primeira metade do século 19 e teve participação de outros exploradores e naturalistas estrangeiros. Um dos mais importantes, o farmacêutico alemão Theodoro Peckolt (1822-1912), foi induzido por Martius a ir para o Rio de Janeiro estudar a flora tropical e enviar plantas para ele em troca de 50 mil-réis mensais e sementes para os jardins

botânicos de Berlim e Munique. Começava aí a trajetória bem-sucedida mas pouco conhecida de um pioneiro da fitoquímica no país o primeiro a fazer o estudo químico sistemático da flora brasileira. Peckolt desembarcou no Rio em 1847, aos 25 anos. Nos 65 anos em que viveu no país o naturalista e

10 ■ ABRIL DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 122

Marca Registrada.

..-. > .,

farmacêutico escreveu 173 artigos, a maioria publicada em periódicos científicos da Alemanha, e três livros. A pesquisadora do Instituto de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro Nadja Paraense dos Santos identificou cerca de 3 mil plantas - quase todas da Mata Atlântica - sobre as quais Peckolt publicou dados de morfologia

Prazo .

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e botânica e seus usos farmacêuticos e alimentares. Destas, ele analisou quimicamente cerca de 285. "Na maioria dos casos Peckolt era muito rigoroso na análise de folhas, flores e cascas, que fazia separadamente, e cada análise publicada correspondia a uma média de três ensaios realizados", conta Nadja, que defendeu


lítl

Receita da Farmácia Peckolt (à esquerda); vista de Cantagalo (acima) na folha de rosto do bloco de notas da farmácia; e a primeira página do livro de homenagens feito por outros cientistas (abaixo)

J%Hj>T &&H& tese de doutorado sobre a contribuição científica do alemão. "Provavelmente não existe outro pesquisador que tenha produzido tantas análises químicas da flora nacional do século 19." "Peckolt pode ser também considerado um dos precursores da etnofarmacologia." O naturalista considerava importante a sistematização

m teiMi ifr isamkiiftm üStüdt t>rfrhiri>«i ticrii mi (Ktiiztçtfrm ãrtmwjattrrmifiiipmWiclOT IHhfrhr nmítobau unímrt-MWÍniírtuitr mit xu artwlmfSitTOmmmtMdjnlBátrôrn hnlwnêiií in tmtm nn wiíímfctwffliffimiSrfPlgíit rrittim W>ai mitimiiuttaatenttmflifâmitttta. ar-. toifrtrô iinzflhtior Bauftriwr ttfrtvigrtrnarn imi> «pirhnn «nínTrtms &irBraíftiaHffrtifn IxHrit-undltaitzpflanirBundihrríSílirroiithfílf •"tennmjfleta* SSflHktwr grdtnkfn hnitr IhrrFarhi amdfím t>€ratvhniic&ràaung,l)srbirÊt\amBjwawfir OurtU mirim nraUuont fitmier m ropátíctierSuitur imíWiffmfrnaft frfuhr unô fmitat llhnniínra PfrtrttniilwimaHi übíri>m §cean Itinütwr ôiru^ntatmi&nrrzífiWiSH Sttítkwünífte

e o estudo das tradições populares do uso das plantas medicinais como estratégia para a investigação e a comprovação de suas propriedades terapêuticas. Sempre que possível, dava os nomes científico, popular e o usado pelos índios. Peckolt viveu por 17 anos entre Cantagalo e Friburgo, no interior do Rio. Estudou a flora da Mata Atlântica nas províncias do Espírito Santo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Depois mudou-se para o Rio, onde teve mais uma de suas várias farmácias. Nunca voltou à Alemanha e se dizia brasileiro. "Só reclamava que suas descobertas relativas ao uso medicinal das plantas eram muito pouco utilizadas pela população", diz Nadja.

PESQUISA FAPESP 122 ■ ABRIL DE 2006 ■ 11


Nelson Pereira dos Santo

li

Um cineasta imortal PENHA ROCHA

n

os 77 anos, o cineasta Nelson Pereira dos Santos exibe uma agilidade, lucidez e vontade de continuar ^^^^^B a fazer cinema que impressionam ^^B quem dele se aproxima por qual^PiH quer razão. Envolve-se desassomfl H brado cm longas reflexões sobre o campo ao qual está integralmente dedicado há 50 anos, em tom sereno, elegante, mas ao mesmo tempo contundente. Assim, para ele o cinema é essencialmente imagem e movimento, criação concretizada tecnologicamente e, por isso mesmo, as novas tecnologias digitais representam uma contribuição enorme para a chamada sétima arte. "O problema é que o Brasil ainda é um país escravista, o que impede que essas tecnologias sejam aplicadas. Os empresários que têm mil salas de exibição no país cobram aqui o mesmo valor de um ingresso pago por um espectador nos Estados Unidos, o que é um absurdo", ele diz. E a conseqüência disso, arremata, é que milhões de brasileiros nunca foram ao cinema. A política atual é apenas de preservar os interesses criados historicamente, e daí não se resolve o problema da distribuição nacional dos fil12 ■ ABRIL DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 122


PESQUISA FAPESP 122 ■ ABRIL DE 2006 ■ 13


mes, que, na verdade, "é simples de resolver, desde que haja um compromisso social de quem está no poder". Eleito no mês passado para a Academia Brasileira de Letras (ABL), o que o transformou no primeiro homem de cinema do país a entrar para a vetusta Casa fundada por Machado de Assis em 1897, Nelson Pereira talvez seja, até aqui, o cineasta brasileiro que mais se valeu de obras literárias de escritores nacionais para fazer belos filmes, e pelo menos uma obra-prima definitiva da cinematografia nacional: Vidas secas. Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Nelson Rodrigues, Jorge Amado e o próprio Machado, o Bruxo do Cosme Velho, submetidos a seu olhar marcado em certa medida pela estética neo-realista, passaram galhardamente para as telas do cinema. Antes de vestir o fardão, em julho próximo, entrar no belo casarão no centro do Rio, doado à academia pelo governo francês, em 1923, e tomar posse na cadeira número 7, que pertenceu ao embaixador Sérgio Corrêa da Costa, falecido no ano passado, Nelson Pereira terá em cartaz seu mais recente filme: Brasília 18%. Ele é, coincidentemente, o 18° de uma carreira que já começou com uma transgressão radical da linguagem então vigente no cinema brasileiro, ao fixar e transfigurar a realidade social em seu primeiro filme, Rio 40 graus, feito há quase 50 anos. Sobre o nome do novo filme, o cineasta comenta com humor que, se Federico Fellini pôde batizar de Oito e Meio sua obra genial, ele também se sentiu livre para fazer uma referência à insuportável baixa umidade relativa do ar de Brasília. Paulistano, doutor honoris causa da Universidade de Paris X - Nanterre e professor emérito da Universidade Federal Fluminense (UFF), Nelson Pereira toma sua indicação para a ABL como o reconhecimento de que o cinema brasileiro alçou-se ao lugar de "uma arte equivalente à arte da literatura a mais tradicional, a mais antiga, solidificada e bem-sucedida". O novo imortal diz que convive bem com a maturidade e é leitor assíduo e admirador do crítico literário americano Frederic Jameson, um marxista da estética. Veja a seguir trechos da entrevista que ele concedeu a Pesquisa FAPESR 14 ■ ABRIL DE 2006 • PESQUISA FAPESP 122

m Seu mais recente filme, Brasília 18%, é também o décimo longa-metragem de ficção da sua carreira. Qual o roteiro dessa obra e quais as dificuldades que você encontrou para filmar dentro do Congresso Nacional? — Eu cheguei em Brasília para filmar em agosto do ano passado e a umidade estava em 19% - absolutamente insuportável. É difícil conviver com este clima. As crianças não podem nem ir para a escola. Assim como o italiano Federico Fellini (1920-1993) colocou o nome de Oito e meio em um filme que fez há 40 anos, me dei ao direito também de escolher 18%. Ao contrário do que muita gente imagina - de ser uma trama sobre a corrupção que foi exposta à luz do dia na capital do país desde o ano passado -, o roteiro da obra é baseado no drama de um homem perdidamente apaixonado por uma mulher e as conseqüências desse amor romântico no imaginário masculino, que são mais dolorosas. E tem também as jogadas políticas que envolvem as Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) e dificultam a vivência do romance. Afinal, fazer um filme sobre Brasília e não falar sobre CPI é como filmar o Rio de Janeiro e não mostrar o samba. Assim como Machado de Assis, autor da frase "a polêmica me dá tédio", eu fico até constrangido com os empecilhos que encontrei na capital federal para filmar dentro do Congresso Nacional. As negociações para obter autorização demoraram dois longos meses. Apesar de ser um local público e da credibilidade do diretor, os argumentos apresentados pelos responsáveis foram os mais simplórios que podem existir. Mas, enfim, a obra está pronta e espero que as pessoas gostem. ■ Você se sente o René Clair brasileiro? — Prefiro pensar como Leandro Konder [filósofo, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, PUC-RJ], que diz que é bom sermos vaidosos prevenidos, não nos levarmos muito a sério. ■ Você ficou amigo do maestro Antônio Carlos Brasileiro Jobim através da cantora Miúcha, com quem mantém uma longa relação de afeto. A sua próxima produção são dois longas-metragens sobre Tom Jobim. Como serão divididos esses filmes?

— Estou com a equipe preparada para começar a gravar ainda este ano o primeiro longa-metragem sobre Tom Jobim, baseado no livro de autoria da irmã do compositor, Helena Jobim Antônio Carlos Jobim, um homem iluminado. O roteiro começa na infância, passa pela juventude, com depoimentos da irmã e de amigos brasileiros e americanos do maestro, dos vários filhos e netos. O ponto de partida da narrativa está na juventude, com a participação da primeira mulher, Tereza Jobim, e esse primeiro filme termina com a presença da segunda mulher dele, a fotógrafa Ana Lontra Jobim. O segundo longa será um musical dividido em três paixões do músico: o Rio de Janeiro, a mulher e a natureza, com gravações do mundo inteiro e será uma obra de montagem. Não sei como farei isso, mas vocês verão na tela em breve. É pena que todo o acervo da Rede Manchete de Televisão, onde trabalhei durante os anos 1980, tenha sumido. Programas antológicos se perderam, como A música segundo Tom Jobim, que dirigi e foi exibido em quatro episódios. Infelizmente só tenho uma fita caseira VHS. É uma pena. ■ Você foi um dos fundadores do primeiro curso de graduação em cinema no país, na Universidade de Brasília (UnB), em 1965, convidado pelos professores Pompeu de Souza e Paulo Emílio Salles Gomes para montar o Instituto de Artes e Comunicação Social. Com o novo projeto, saiu de Niterói e passou a morar em Brasília. Como foi essa experiência acadêmica na sua vida? — A idéia era salvar a Universidade de Brasília, fundada pelo antropólogo e chefe da Casa Civil do governo João Goulart, Darcy Ribeiro, que foi exilado junto com vários outros professores pelo golpe militar, em 1964. Afinal, a UnB foi a experiência mais inovadora no ensino universitário brasileiro, que até os primeiros cinco anos da década de 1960 era muito conservador. Nunca tinha pensado em ser professor, mas gostei da experiência e fiz um filme com os alunos - Fala, Brasília. Mas os tempos eram difíceis, a repressão dos militares terrível, cruel. Com a mudança do reitor da UnB, o sucessor demitiu Pompeu de Souza e 200 professores, em solidariedade, saíram da institui-


ção. Claro que eu fazia parte da lista. Foi uma experiência frustrante, já que íamos tão bem com a nossa produção. Voltei para Niterói e nessa época a Universidade Federal Fluminense já existia. Então começamos a negociar com o reitor, o médico Manoel Barreto Neto, um homem corajoso, revolucionário, como gosto de ser considerado. Junto com os intelectuais Zuenir Ventura, Luiz Alberto Sanz, Agar Hespanha, entre outros, apresentamos o projeto ao magnífico, que o levou à congregação e nos reuníamos permanentemente para discutir sobre a implantação do IACS. Finalmente, em 1968, o Instituto de Artes e Comunicação Social passou a fazer parte da UFF. Já há algum tempo o curso de cinema do instituto é um dos mais respeitados do país, assim como o de biblioteconomia, arquivologia, jornalismo, publicidade e produção cultural. Hoje os principais cineastas e outros profissionais do Brasil, da Europa e dos Estados Unidos são formados pelas escolas de cinema e de outros cursos, e isso é importante. O talento precisa ser orientado para um determinado foco e a universidade deve fazer isso com os jovens. Eu acredito nessa troca. Estou aposentado, mas sempre que posso vou até o IACS e faço algo por lá. É paixão mesmo. ■ Apesar de você gostar e acreditar na formação universitária, a vida acadêmica na UFF lhe deu dor de cabeça e você sofreu represálias. Por muito pouco não foi exonerado do cargo de professor. O então ministro Ney Braga, da Educação e Cultura, no governo do general Emilio Garrastazu Mediei, apesar das divergências políticas e ideológicas, foi quem interveio na situação. O que aconteceu de fato? — Foi uma situação completamente absurda e autoritária dos meus pares. Sou professor doutor por notório saber, titular, concursado, e fundei, como todo mundo sabe, o IACS. Num determinado período passei um mês sem ir dar aulas porque estava gravando o filme Tenda dos milagres, uma adaptação da obra de Jorge Amado, em 1975, e precisava me ausentar para fazer cinema - que sempre fiz também com os alunos e avisei a direção. Na época os professores assinavam o ponto e eu fiquei 30 dias sem dar a minha rubrica.

Então foi instalada uma Comissão de Inquérito na UFF e três professores do curso de direito resolveram que eu deveria ser exonerado. Uma amiga minha e professora da Universidade Federal Fluminense soube do caso quando estava no gabinete do ministro da Educação e contou para ele o episódio. Ney Braga, numa atitude firme e democrática, mandou avisar que eu, em hipótese alguma, sairia da UFF. Mesmo assim fui punido e fiquei três anos sem poder lecionar e sem receber o meu salário. Parece ficção, mas não é. ■ Você se formou advogado pela tradicional e conceituada Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), a tradicional faculdade do largo de São Francisco. Não exerceu a profissão, estreou no cinema como assistente de direção do também paulistano Rodolfo Nanni, com o filme O Saci, era militante do Partido Comunista Brasileiro e depois veio para o Rio de Janeiro. Essa trajetória foi complicada ? — Claro, mas não joguei a tolha. Tenho bom humor. Fiz direito por questões familiares da época, mas nunca tive o menor talento para a profissão. Militei no Partido Comunista Brasileiro até o final da década de 1950, quando aconteceu a revolução na Hungria. A decisão de sair do Partidão foi tomada, já que considerava que não existia uma relação justa e democrática entre os associados. Tinha sempre um stalinista autoritário para dar ordens e que não

sabia ouvir. Não agüento isso. A partir daí passei a viver sem as amarras ideológicas e me considero um revolucionário que enxerga todas as mazelas sociais do país e do mundo. Tentei mostrar essa inquietação e inconformismo há pelo menos meio século, quando acho que transgredi a gramática do cinema brasileiro clássico, atrelando o ato de filmar ao engajamento social, com o filme Rio 40 graus, tido como o ponto de partida para o Cinema Novo. Dizem que passei a ser considerado como o cineasta mais carioca por ter descoberto e mostrado um perfil da cidade que até então não tinha aparecido no cinema: eu tive muita influência do neo-realismo italiano, um movimento cinematográfico que tem como proposta mostrar a realidade com equipamentos simples, e os cineastas da Itália fizeram isso porque o país sofreu uma destruição moral e material com a Segunda Guerra. Muito tempo depois, para eu explicar para os italianos o Rio 40 graus, disse: o Brasil vive num constante pós-guerra, por causa da nossa sociedade histórica, e a miséria aumenta cada vez mais. ■ Você desembarcou no Rio de Janeiro, então capital do país, no começo da década de 1950. Quais foram os primeiros impactos da cidade para o jovem rapaz paulistano? — Cheguei ao Rio de Janeiro aos 24 anos, em 1952, e dei de cara com favelas verticais por conta da geografia da PESQUISA FAPESP 122 ■ ABRIL DE 2006 ■ 15


cidade - em São Paulo as favelas são horizontais e distantes da classe média, normalmente não dá para se ver. Aí olhei e pensei: está aí meu texto neorealista e inventei a história e fiz o filme que já apontava o aspecto da violência urbana - que piora cada vez mais no país e a situação só vai melhorar quando fizermos as reformas agrária e urbana. Caso contrário, só tende a piorar. Afinal, o Brasil é um país cada vez mais escravagista, onde os poucos que vivem muito bem não têm o menor compromisso social e humanista: querem e lutam sempre por situações de privilégio econômico e de poder. Mas imediatamente adorei a cidade, alegre, linda, com moças belíssimas, era a verdadeira corte. ■ O filme Vidas secas foi uma de suas obras mais premiadas, mas pouca gente sabe que os nativos participaram muito do elenco e dizem alguns críticos que houve uma disputa no final das gravações pela cachorra Baleia, entre você e o produtor Luiz Carlos Barreto. Anos depois, qual a análise que você faz dessa época? — Aconteceram muitas coisas interessantes nessas gravações. O ator Jofre Soares, por exemplo, foi descoberto para o cinema nesse período, quando adaptei a obra de Graciliano Ramos, publicada em 1938. Como você mesma disse, o filme foi consagrado internacionalmente pelo público, pela crítica e pelo mundo acadêmico. Em 1962 a resumida equipe foi para Palmeira dos índios, em Alagoas, gravar a película e encontrou um oficial da Marinha aposentado e que apresentava sozinho o espetáculo As mãos de Eurídice, do dramaturgo Pedro Bloch. Era o grande e maravilhoso Jofre Soares. Aliás, a maior parte do elenco do filme é composta por atores locais com a ajuda do também produtor Jofre. Ele encontrou também a cachorra Baleia, um dos personagens principais do filme e que teve passagem paga pelos franceses para ir para o Festival de Cannes. Eu adotei o método de condicionamento do médico russo Ivan Pavlov (1849-1936): durante meses a cadela não podia comer nada antes da filmagem, para desempenhar o papel - mas Baleia saía de onde estava presa, virava a esquina e ia para a sombra dormir. Foi quando botei a 16 ■ ABRIL DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 122

mão na barriga dela e estava cheia. Aí descobri que era o Jofre quem dava comida para a cahorra. Só em Cannes Vidas secas recebeu três prêmios: Prix des Cinemas d Art et d'Essai, Prix du Meilleur Film Pour Ia Jeunesse e Prix 1'Office Catholique du Cinema, mais 11 premiações em festivais na Espanha, Berlim, Nova York, entre outros. O sucesso de Vidas secas e Deus e o Diabo na Terra do Sol, do cineasta baiano Glauber Rocha, no Festival de Cannes em 1964, aconteceu exatamente meses depois de começar a ditadura militar aqui no Brasil e foi o início do reconhecimento internacional do Cinema Novo brasileiro. Com relação à cachorra, eu não podia ficar com ela por dois motivos: na minha casa em Niterói não tinha espaço e a minha mulher, na época, a Laurita, que morreu em 1999, detestava cachorro. Então a Baleia ficou na casa do Barreto. ■ Você ficou sem filmar no período de 1987-1992, ou seja, durante quase sete anos, quando a Embrafilme foi praticamente extinta no governo do então presidente Fernando Collor de Mello e quando você retomou foi com a produção de uma obra duramente criticada. Como foi essa experiência? — Em 1987 eu já tinha um projeto assinado com franceses, espanhóis e com a Embrafilme do longa A terceira margem do rio. Mas aí o presidente que prefiro não lembrar o nome destruiu o cinema e só foi possível retomar as negociações em 1992 com a televisão francesa, e o filme ficou pronto um ano depois. Aqui no Brasil a exibição aconteceu só por uma semana e a crítica simplesmente destruiu, arrasou, disse que era péssimo. Apesar desse episódio já ter 14 anos, não penso sobre isso: não fiz psicanálise, mas prefiro lembrar só de coisas boas, é autodefesa, faz bem para celebrar a vida. E apesar de a crítica nacional ter torcido o nariz para o filme, ele foi premiado e aplaudido em festivais de cinema como em Cannes, Los Angeles, Áustria, China, Suíça e recebeu o respeitado prêmio Margarida de Prata da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). ■ Uma das obras-primas da literatura brasileira você adaptou para o cinema:

Memórias do cárcere, publicado em dois volumes, após a morte do escritor Graciliano Ramos. A trama aborda questões políticas como a entrega da judia comunista Olga Benário, casada com Luis Carlos Prestes, à Gestapo, polícia secreta alemã. Sabe-se que não foi nada simples a produção desse filme. Qual a reflexão que você faz desse trabalho? — O projeto do Memórias do cárcere começou na minha cabeça quando saíram os livros póstumos em 1953. Depois disso aconteceram várias outras situações, fiz Vidas secas e pensei de novo em filmar a obra de Graciliano, mas não tinha o amadurecimento necessário para cuidar de um elenco com tantos atores, nem dinheiro, equipamento, e estávamos em plena ditatura. O Luiz Carlos Barreto me disse que Carlos Lacerda queria falar comigo porque tinha gostado muito do Vidas secas e pretendia me ajudar a fazer o Memórias do cárcere. Mas não tinha o menor clima. Aí já estávamos em 1968 quando o regime militar endureceu e tive que parar mesmo com o projeto. Quando estava vislumbrando a redemocratização do país, retomei a obra e fiz o roteiro final Mas aí veio o filme de Roberto Faria, Prá frente Brasil, 1979, que retratava a tortura praticada pelo regime militar. Os setores da linha dura das Forças Armadas acharam a obra uma afronta e Celso Amorim, hoje ministro das Relações Exteriores, renunciou sob pressão por ter financiado o filme que foi censurado e acabou sendo liberado. Aí, claro, parou tudo de novo com relação a Memórias do cárcere. É impressionante como o cinema mexe com a vida do país. Tempos depois o Roberto Parreira assumiu a Embrafilme e recomeçaram as negociações: ele disse que era possível fazer o filme, com o Luiz Carlos Barreto apresentando o projeto. Enfim, Memórias do cárcere ficou pronto em 1984, ano das Diretas Já, com a abertura política, ganhou prêmio em Cannes da crítica internacional e foi lançado aqui e teve 1,5 milhão de espectadores, sem dúvida um grande sucesso, apesar de ter três horas de duração e com uma temática dura, densa e política. O ator Carlos Vereza interpretou o Graciliano e a atriz Glória Pires, a mulher dele, que o visitou várias vezes na cadeia. Foi um grande prazer fazer esse filme.


no Instituto Nacional do Cinema e da Educação e na Embrafilme. Foi durante o governo Geisel que criei o Conselho Nacional de Cinema. Tenho por Reis Velloso uma relação de admiração, afeto e respeito. Nos conhecemos de longa data e isso permanece.

■ O filme Como era gostoso o meu francês, de 1970, tem uma abordagem antropológica sobre os índios tupinambás e teve sérios problemas com a censura. Como foi trabalhar incorporando a pesquisa ao cinema de ficção? — Em primeiro lugar tive que ler muito o antropólogo e sociólogo Florestan Fernandes, professor da USP, para entender qual era a função da guerra entre os tupinambás e me reuni várias vezes com o cineasta Humberto Mauro, que sabia a língua tupinambá, já que participava do grupo de intelectuais ligados ao Roquete Pinto - afinal ele trabalhava com pesquisadores de relevância. Com relação à censura, tive problemas sérios com um processo barrado, muito dinheiro perdido e uma frustração imensa. O ator principal era o Arduíno Colassanti e a implicância dos censores era exatamente com cenas relacionadas ao personagem dele. Uma visão absolutamente moralista. Perdi muito dinheiro nessas e outras situações no cinema, por isso várias vezes fiquei totalmente sem um centavo e vivi várias ameaças de despejos e outras situações muito humilhantes, características de um país que trata muito mal seus artistas e intelectuais. Para driblar esses momentos difíceis, trabalhei como jornalista vários anos e assim garantia a sobrevivência da minha família. Fui redator do Diário Carioca e do Jornal do Brasil de 1956 a 1968. Felizmente, encontrei editores humanos como Carlos Le-

mos, Araújo Neto e Alberto Dines, entre outros, que toleraram meu conflito entre o jornalismo e o cinema e sempre me deram muita força quando precisava sair para fazer meus filmes. Eles tinham sensibilidade para entender a minha paixão pelo cinema. Gente do bem, assim como o empresário Nascimento Brito, que foi proprietário do JB e nunca criou nenhuma dificuldade. Essas pessoas nós não esquecemos. Não sou pobre, mas não fiquei rico com o cinema. Minha garantia mesmo são as pequenas, mas seguras, aposentadorias de professor titular da UFF e de jornalista. ■ O ministro do Planejamento, Reis Velloso, do governo do presidente Mediei, começou a admirar o cinema brasileiro quando estudava na Universidade Harvard, nos Estados Unidos. No final da administração dele, chamou vários cineastas, como você e o Caca Diegues, entre tantos outros, para conversar sobre as mudanças que poderiam acontecer na política do cinema com a posse do general Geisel, conhecido como o ditador da abertura. Como foram esses encontros? — Reis Velloso é um homem que se preocupa com o cinema brasileiro do ponto de vista econômico até hoje e sempre que pode dá a sua contribuição intelectual e de quem já esteve no poder. Na época, quando era ministro, nos chamou várias vezes e tivemos encontros proveitosos e cordiais. Velloso nos pediu para fazer uma reformulação

■ O cinema brasileiro vive hoje um momento de produção permanente, de qualidade, respeitado internacionalmente, mas as críticas existem. O cineasta paulistano Carlos Reichenbach, por exemplo, criticou com todas as letras o filme Cidade de Deus, do diretor Fernando Meirelles, que aborda a questão da violência numa favela carioca. Carlão disse que é muito cruel colocar a arma na mão de uma criança e não apresentar nenhuma solução. Qual a reflexão que você faz sobre essa polêmica? — Sempre que posso vou ao cinema ver os filmes de diretores brasileiros. Hoje o cinema brasileiro é pluralista, tem muita vitalidade e todas as tendências estão nele. Finalmente, há uma superação de obrigatoriedades ideológicas ou estéticas. O bonito do cinema brasileiro é isso, inclusive com lugar para mim com quase 80 anos fazer meus filmes com a preocupação com o social, com a proposta da mudança do que já existe. Vejo todos os filmes com um olhar de que cada um está traçando o seu caminho e o debate está aberto. Há alguns anos, se me chamassem para assistir a um filme, eu perguntava se existia a famosa luta de classes. Felizmente mudei. Acho importante o marxismo estético e para mim o pensador mais contemporâneo é o americano Frederic Jameson. ■ Você sempre foi considerado pelas mulheres como um dos diretores do cinema brasileiro de muito charme, elegante, sedutor, erudito, bem-humorado e bonito. Como lida com a maturidade, com as perdas e ganhos, ao chegar aos 77 anos trabalhando e fazendo cinema, sua grande paixão? — Olha, não vou negar: tenho uma grande inveja da juventude, gostaria de ter hoje, por exemplo, 50 anos... Mas estou feliz: faço cinema, tenho amigos, estou bem casado, não fiquei amargo nem ressentido com as adversidades da vida. Estou aí. É um privilégio estar vivo. Celebro a vida todos os dias. • PESQUISA FAPESP 122 ■ ABRIL DE 2006 ■ 17


O POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

■ Da glória ao desemprego Hwang Woo-suk, cientista sul-coreano que fraudou pesquisas com células-tronco, foi demitido da Universidade Nacional de Seul. Seis membros de sua equipe receberam suspensões de um a três meses. Woo-suk já se afastara da universidade, mas, com a demissão, ficará impedido de receber financiamento público para pesquisas por cinco anos, segundo a agência AFP. •

■ Exame de consciência Quarenta por cento dos pesquisadores mexicanos admitem a existência de faltas éticas freqüentes em suas atividades, segundo estudo feito pela Academia Mexicana de Ciências e publicado pelo diário El Uni-

O Japão decidiu abrir espaço para pesquisadoras que querem retomar suas atividades depois de se afastar da carreira para ter filhos e cuidar deles. Serão reservados trinta cargos em instituições públicas para mulheres nessa situação. O programa integra um pacote de iniciativas que inclui subvenções para instituições que mantenham esquemas flexíveis de trabalho para pesquisadoras com filhos. O objetivo é, em cinco anos, fazer

versai. Foram entrevistados 146 indivíduos vinculados a 18 instituições científicas. Entre os problemas mais citados destacaram-se a falta de rigor científico, a fraude, o plágio e o abuso do trabalho

18 ■ ABRIL DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP122

com que as mulheres ocupem pelo menos 25% dos cargos em universidade e laboratórios públicos. O ambiente científico no Japão é, em larga medida, um clube do bolinha. Em 2004 as mulheres compunham apenas 11,1% da força de trabalho acadêmica do país, a mais baixa participação entre os 30 países membros da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) - Portugal tem a taxa mais alta, de 40%.

de estudantes. Entre as conclusões, 38% dos entrevistados reconhecem que não é uma prática regular refletir sobre questões éticas com os alunos. A pesquisa foi aplicada por César Tejada e Roge-

O número de mulheres cientistas cresce no Japão. Elas ocupavam em 2004 23% das vagas de programas de doutorado em ciências e engenharia, diante de 15% em 1995. Mas a opção por ter filhos tolhe a carreira. "As universidades não fazem idéia do trabalho que dá ser pesquisadora e mãe e inviabilizam as carreiras femininas", disse à revista Science Kuniko Inoguchi, ministra da Igualdade de Gêneros e Assuntos Sociais do Japão. •

lio Macías-Ordónez da Universidade Autônoma do México (Unam). Segundo eles, é essencial reforçar os mecanismos que garantem uma carreira acadêmica sólida a pesquisadores éticos. •


■ Biotecnologia na África A FAO, braço das Nações Unidas para a alimentação e agricultura, lançou uma rede virtual para promover no continente africano a pesquisa e o desenvolvimento de políticas públicas no campo da biotecnologia. A rede busca estimular pesquisadores, autoridades, fazendeiros e jornalistas a partilhar informações e a discutir como a biotecnologia pode aumentar a produtividade agrícola. Stanford Blade, diretor do Instituto Internacional de Agricultura Tropical, festeja o advento da rede. "Esperamos que ela ajude os produtores a superar problemas", disse ao site SciDev.Net. Já Tilahun Zeweldu, conselheiro do Programa para o Avanço da Produtividade na Agricultura, de Uganda, diz que a rede só fará diferença se envolver o setor privado, com a criação de pólos regionais de biotecnologia. •

■ Articulação panamenha O presidente da Assembléia Nacional do Panamá, Elias Castillo, e o secretário Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação do país, Júlio Escobar, firmaram um acordo de cooperação cujo objetivo é criar condições para que os avanços em tecnologia e inovação ajudem a desenvolver a

economia panamenha. De acordo com o site SciDev.Net, a Secretaria funcionará como entidade assessora da Assembléia em temas de sua competência. E a Assembléia dará apoio à projetos da secretaria. Recentemente, a secretaria comandada por Escobar se transformou em entidade autônoma do governo, ganhando independência de gestão. •

■ Paquistão cria universidades O presidente do Paquistão, Pervez Musharraf, aprovou a criação de seis universidades no país nos próximos dez anos, todas elas em colaboração com centros de excelência da Alemanha, Áustria, Coréia do Sul, França, Holanda e Suécia. As instituições,

com forte vocação tecnológica, serão voltadas para a engenharia de telecomunicações, as ciências da computação, o desenvolvimento de materiais e a robótica. Segundo o jornal Pakistan Observer, o presidente Musharraf prometeu ampliar o orçamento das universidades para permitir que as novas instituições cumpram seu papel. •

Relíquia soviética Um grupo de 13 renomados cientistas da Ucrânia propôs um projeto para reformar a Academia Nacional de Ciências do país, que reúne 174 institutos e emprega 28 mil pessoas. Liderado por Aleksei Boyarski, físico do CERN, laboratório de física de partículas sediado na Suíça, o grupo classifica a academia como o grande obstáculo para o renascimento acadêmico do país, após o declínio imposto pelo colapso da União Soviética, em 1991. A produtividade dos institutos não é alta: segundo dados da base Thomson Scientific (ISI), são 1.500 artigos publicados por ano, a maioria em áreas vinculadas à tecnologia militar. Mas a grande queixa é que os líderes da

academia - cuja idade média é de 71 anos - sabotam a aproximação da Ucrânia com a União Européia (UE) por medo da competição internacional e da perda de

influência. "A academia não está interessada em fazer nenhum tipo de reforma", disse Boyarski à revista Nature. Desde 2002, a Ucrânia está apta a receber verbas de programas de pesquisa da UE. Mas só sete entre as centenas de projetos fundeados por tais programas têm colaboradores ucranianos. Em vários casos, o problema é a má vontade da academia em apresentar a documentação pedida, diz Oleh Napov, adido da missão ucraniana na UE. Recentemente, Napov solicitou à academia que apresentasse um esboço de seus programas prioritários. Recebeu uma lista de nomes de acadêmicos, e uma carta informando que eles são a prioridade. •

PESQUISA FAPESP122 ■ ABRIL DE 2006 ■ 19


Estratégias

Ciência na web

Mundo

Envie sua sugestão de site científico para cienweb@trieste.fapesp.br

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Inaugurada a Seção Ciência Brasileira ilii!JS DraiMrci ttllo rvo inclui açr«tntacS*l »Br* «vinte> d« p*tOU» rtlatWoi p« HUI pro!»gon.it*t, d«t«*ij omiNScot, diicuitGtt tebrt poític» d* ei»nei» * Mcnotogn • toor* *!it« na citnci. twnM lnnsi*K.pl-(«'»( * r«l*çO*t «nlr» «I citnciat * «I hunMnidtdai. M (ínilBi 0* l*c*o BBnfcrtnclw com Joninna OoMttiiwf. Am Ab itir, Eduwds Knagtr, Joií Gílizu Tunam, Lmpoido d* Min t Willnm Sjid Hount. Oi fut

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Viciados em prêmios A China deverá abolir parte das centenas de prêmios concedidos a cientistas mas, paradoxalmente, isso faz parte de um esforço para encorajar a inovação. "Nenhum outro país concede prêmios com tanta freqüência", disse Huang Shanglian, membro da Academia Chinesa de Engenharia. "Nossos cientistas gastam muita energia dedicando-se a disputá-los em vez de trabalhar de verdade." O governo usa as premiações para avaliar a qualidade da pesquisa produzida no país. Com isso, a pressão nos laboratórios e universidades para ganhar prêmios é enorme. Há casos, segundo Shanglian, de competidores que exageram os resultados de sua pesquisa ou contratam especialistas em relações públicas para fazer lobby junto aos jurados, quando não os subornam. A deputada Wang Chunlai apresentou um projeto de lei para punir com rigor más condutas. Zhang Ze, vice-presidente da Universidade Industrial de Pequim, disse ao jornal

<*.£ -::

3ém a rtitçlo gtrS

www.iea.usp.br/iea/online/midiateca/cienciabr/ O portal disponibiliza conferências de grandes pesquisadores realizadas no Instituto de Estudos Avançados da USP.

Peoples Daily que um levantamento nacional irá definir os prêmios que serão extintos. •

■ Estrelas do ranking O New England Journal of Medicine (NEJM) liderou o ranking das publicações que editaram artigos científicos de maior repercussão em 2005, informou o boletim Science Watch. Treze dos quarenta artigos científicos mais citados na base Thomson Scientific foram divulgados pelo NEJM. Os quatro primeiros da lista, aliás, saíram na revista de pesquisa médica. O grupo liderado por Paul M. Ridker, professor da Universidade Harvard, é autor do artigo mais citado de 2005, sobre os níveis de um marcador de processos inflamatórios após um tratamento à base de estatinas. As publicações da Lancet, com seis artigos, Science, com cinco, e Nature, com quatro, e Nucleic Acid Research, com três, completam o primeiro pelotão do ranking. •

20 ■ ABRIL DE 2006 • PESQUISA FAPESP 122

http://www.exploratorium.edu/eclipse/ 0 endereço, mantido por um museu de ciência norte-americano, transmite ao vivo eclipses visíveis em vários pontos do planeta.

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http://info.med.yale.edu/intmed/cardio/imaging/ Destinado a pesquisadores da área médica, o site oferece um grande acervo de imagens sobre a anatomia do coração e do pulmão.


A Amazônia é o alvo

USP tem novo vice-reitor O novo vice-reitor da Universidade de São Paulo é Franco Maria Lajolo, professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF). Ele foi o candidato mais votado na eleição interna da USP e encabeçou a lista tríplice enviada ao governador Geraldo Alckmin. Lajolo já ocupou os cargos de diretor da FCF e de pró-reitor de Pós-Graduação da USP. .

■ Tópicos das ciências sociais Foi lançado no dia 10 de março o 18° volume da revista Caderno CRH, editada desde 1987 pelo Centro de Recursos Humanos (CRH) da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (UFBA). O volume compre-

exploração da diversidade biológica da Amazônia é o mote de duas iniciativas patrocinadas por instituições públicas. De um lado, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) lançou um edital destinado a incentivar a formação e a fixação de recursos humanos na Amazônia e a integrar a comunidade científica da

região com o resto do país. O edital, que prevê um repasse de R$ 4,8 milhões em dois anos, contempla bolsas para técnicos, mestres e doutores e a execução de estudos e pesquisas em temas considerados prioritários. As propostas podem ser enviadas ao CNPq até o dia 8 de maio. A segunda iniciativa partiu do Instituto Butantan e do governo

do Pará, que anunciaram a construção de uma base avançada na Amazônia para pesquisa de soros e vacinas, que contará também com um museu com serpentes nativas. A instalação será erguida na cidade de Belterra, a 40 quilômetros de Santarém. O terreno fica próximo à Floresta Nacional de Tapajós e foi cedido pelo governo do Pará. •

ende três edições, as de número 43, 44 e 45, dedicadas, respectivamente, à discussão dos temas "Novas perspectivas sociodemográficas", "Pensamento social brasileiro" e "Urbanidade contemporânea". A denominação Centro de Recursos Humanos remete a um conceito do final dos anos 1960, que englobava

pesquisas sobre emprego, educação e questões demográficas. Hoje o espectro do centro é mais amplo - vincula-se às ciências sociais -, mas o nome foi preservado. "Os dossiês da revista têm vínculo com as pesquisas que realizamos no CRH", diz Guaraci Adeodato Alves de Souza, professora da UFBA

e uma das fundadoras do CRH, que organizou a edição sobre as perspectivas sociodemográficas - seus estudos são ligados à questão da fecundidade. A revista é distribuída para 200 bibliotecas universitárias. Para adquirila, é preciso entrar em contato com os editores pelo e-mail revcrh@ufba.br •

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Dossiê: NOVAS PERSPECTIVAS SOCIODEMOGRÁFICAS Dossiê: PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO

Dossiê: URBANIDADE CONTEMPORÂNEA

Os três números lançados em março: estudos vinculados às pesquisas do centro PESQUISA FAPESP 122 ■ ABRIL DE 2006 ■ 21


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A cordilheira dos Andes (branco), em foto do Cbers-2

■ Pólo tecnológico em Brasília O Distrito Federal deve ganhar até 2008 um parque tecnológico voltado para a biotecnologia e o agronegócio. Foi lançado no dia 15 de março o projeto do Parque Tecnológico Sucupira, liderado pela Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). São parceiros da iniciativa a Universidade de Brasília (UnB), que criará uma incubadora de empresas no local, os ministérios da Agricultura (Mapa) e de Ciência e Tecnologia (MCT) e o governo do Distrito Federal. O parque será instalado próximo à Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, na fazenda Sucupira, a 30 quilômetros do centro da capital federal. O pólo busca atrair investimentos de empresas que atuem em setores como agricultura, pecuária, alimentação, química, farmácia, medicamentos, meio ambiente e informática. A primeira etapa do projeto, que prevê a realização de estudos de impacto ambientais e urbanísticos, foi viabilizada com a dotação de

Uma equipe coordenada pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) recebeu a tarefa de realizar testes de recepção de imagens do Cbers-2 (Satélite Sino-Brasileiro de Recursos Terrestres), nos Estados Unidos. É a primeira vez que o satélite transmite imagens para fora do Brasil e da China. O local dos testes é o EROS Data Center do U.S. Geological Survey (USGS),

R$ 1 milhão do Fundo Setorial do Agronegócio (CTAgro), do MCT. A segunda etapa será dedicada a estudos de engenharia, jurídicos e fundiários e a terceira, à construção de prédios residenciais no local. •

22 ■ ABRIL DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 122

em Sioux Falls, estado de Dakota do Sul. A missão faz parte da estratégia de internacionalização das imagens Cbers. Com os problemas operacionais enfrentados pelos satélites americanos Landsat-5 e Landsat-7, que têm características semelhantes às do Cbers, vários países demonstraram interesse no programa sinobrasileiro. As imagens obtidas a partir dos satélites

■ Exportadora de vacinas Maior produtora da vacina contra a febre amarela do planeta, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) embarcou em março 4,5 milhões de doses do

Cbers produzem de mapas de queimadas e desmatamento da região amazônica até estudos na área de desenvolvimento urbano nas grandes capitais do país. Até o mês passado haviam sido distribuídas 200 mil dessas imagens a usuários do território nacional. O programa Cbers prevê o lançamento de mais três satélites até 2011: Cbers-2B, Cbers-3 e Cbers-4. •

imunizante para o Peru, a fim de abastecer uma grande campanha de vacinação no país. A carga de cerca de 45 toneladas foi a maior exportação já feita pelo Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Biomanguinhos), unidade da Fiocruz. Desde que a vacina contra febre amarela de Biomanguinhos foi pré-qualificada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2001, sua participação no mercado internacional vem crescendo. Em 2002 foram exportados 5 milhões de doses. Em 2006 esse número deve chegar a 28 milhões de doses. A meta da Fiocruz é obter a pré-qualificação de outras de suas vacinas. •


O céu é o limite ■ De fórum a conselho Durante um seminário técnico ocorrido em Cuiabá que contou com representantes de diversos estados, foi aprovada no final de março a criação do Conselho Nacional das Fundações de Amparo à Pesquisa (Confap), que vai substituir o Fórum Nacional das Faps. Segundo o secretário-executivo Alberto Peverati Filho, a grande mudança é a institucionalização da entidade. A primeira diretoria do Confap tem como presidente Jorge Bounassar Filho, da Fundação Araucária/Paraná, e como vice-presidente Alexandre Paupério (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia). •

■ Cooperação estimulada A Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) deverá lançar dois editais neste mês com o objetivo de estimular a cooperação entre empresas e universidades. A parceria de instituições de ensino e pesquisa com médias e grandes empresas terá R$ 60 milhões, enquanto a outra chamada pública, voltada a projetos cooperativos com microempresas e empresas de pequeno porte, contará com R$ 45 milhões. "Há novas chamadas a serem lançadas em breve. Em 2006, o total desse tipo de apoio chegará a cerca de R$ 200 milhões", afirmou

.1 Estudantes de escolas públicas ou particulares têm a oportunidade de operar remotamente telescópios e receber imagens digitais de planetas, aglomerados de estrelas e galáxias, que aparecem na tela do computador da escola imediatamente após a observação. O programa educacional Telescópios na Escola busca popularizar a astronomia disponibilizando uma rede de observatórios vinculados a seis instituições: o Instituto de Astronomia, Geofí-

a diretora da Finep Eliane Bahruth. Ela lembrou que o valor será ainda maior com a contrapartida das empresas.»

■ Bibliotecas para todos Até o final de 2006, 403 municípios brasileiros ganharão sua primeira biblioteca pública. Serão beneficiados pelo Programa Livro Aberto, criado pelo governo federal e

sica e Ciências Atmosféricas (IAG) da Universidade de São Paulo (USP), o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o Observatório do Valongo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e as universidades federais de Santa Catarina (UFSC) e do Rio Grande do Norte (UFRN). As observações começaram em setembro de 2005 e já beneficiaram dezenas de colégios. Para participar do

coordenado pela Biblioteca Nacional, que busca zerar o número de cidades que não dispõem de pelo menos uma biblioteca franqueada à população. Para atingir essa meta, o programa terá o desafio de implantar mais de 600 bibliotecas em 2007. O programa, que beneficiou 127 municípios no ano passado, distribui kits compostos por 2 mil obras - 600 de ficção, 600 de não-ficção e 800 de li-

programa, os estudantes devem primeiro navegar até a webpage de um dos telescópios de sua escolha, disponíveis na página www. telescopiosnaescola.pro.br O passo seguinte é escolher uma das atividades sugeridas e o dia de preferência entre as datas disponíveis. Por fim, é necessário preencher um formulário de solicitação e aguardar o contato por e-mail da equipe do telescópio, que enviará as instruções necessárias para realizar as observações. •

teratura infanto-juvenil -, além de um aparelho de televisão, mesas de leitura, cadeiras, um computador, uma impressora e circuladores de ar. Para ter acesso ao programa, as prefeituras precisam encaminhar uma série de documentos à Biblioteca Nacional, comprovando, por exemplo, que têm um espaço para abrigar a coleção. O passo seguinte é a assinatura de um contrato de comodato de três anos, ao final do qual a Biblioteca Nacional avalia se a coleção está servindo a comunidade. Em caso positivo, o comodato se transforma em doação. Segundo Sandra Domingues, uma das coordenadoras do Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas, outra frente da iniciativa será a modernização de bibliotecas já existentes, por meio da doação de livros de grande demanda. •

PESQUISA FAPESP 122 ■ ABRIL DE 2006 ■ 23


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POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA BIODIVERSIDADE

Pontos

atrito Reunião internacional debate adoção de leis globais sobre patrimônio biológico MARCOS PIVETTA, DE CURITIBA

Muriqui: Brasil tem de 15% a 20% da biodiversidade do planeta

ouças pessoas discordam do princípio de que deve haver alguma regulamentação internacional disciplinando o acesso e a repartição dos ganhos advindos da exploração comercial dos recursos genéticos de uma nação ou da apropriação do conhecimento dos povos indígenas sobre a biodiversidade. Embora pareça razoável, a idéia, quando debatida em seus pormenores, gera pontos de atrito. Foi o que ocorreu no final do mês passado em Curitiba, durante a 8a Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica (COP 8), fórum patrocinado pela Organização das Nações Unidas (ONU) para discutir a redação dos textos que visam criar uma política de proteção ambiental comum aos quase 190 países signatários do acordo. O Brasil figura entre as nações que assinaram a convenção e, por deter de 15% a 20% de toda a biodiversidade do planeta, teme ser vítima preferencial da biopirataria internacional. Por isso, o governo federal é favorável à implantação de leis globais capazes de resguardar os direitos sobre seu patrimônio biológico. Apesar de louvável, essa postura, se levada a extremos, pode criar, segundo alguns cientistas, empecilhos ao estabelecimento de 24 ■ ABRIL DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 122

colaborações internacionais com projetos que estão criando grandes sistemas de informação, de acesso universal e gratuito, sobre as formas de vida da Terra. Na visão desses pesquisadores, interligar os bancos de dados nacionais como o speciesLink, que disponibiliza eletronicamente o acesso a 40 coleções biológicas de instituições do estado de São Paulo - a iniciativas globais não traria riscos ou prejuízos ao país. "Esse tipo de parceria é fundamental para a própria conservação ambiental e para os taxonomistas (especialistas na classificação de organismos)", diz Vanderlei Perez Canhos, coordenador do Centro de Referência de Informação Ambiental (Cria), de Campinas, que desenvolveu o speciesLink e o banco de dados da versão eletrônica, lançada durante a COP 8, da Flora brasiliensis, livro de referência sobre a biodiversidade nacional produzido pelo botânico alemão Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868). "Ao optarmos por participar desses projetos internacionais, poderíamos restringir o acesso a informações que consideramos sensíveis, como a localização geográfica de espécies ameaçadas de extinção ou dados sobre organismos de importância econômica." As parcerias também acelerariam a repatriação do conhecimento sobre espécies brasileiras que foram retiradas

do território nacional e hoje enriquecem as prateleiras de instituições do exterior. Embora abrigue um quinto da biodiversidade da Terra, o Brasil tem apenas 1% do material depositado nas coleções biológicas do mundo. Uma das iniciativas internacionais que despertam a atenção dos cientistas brasileiros é o Species 2000. Por sinal, o projeto aproveitou o evento na capital paranaense para anunciar um feito: seu sistema eletrônico acaba de catalogar o nome científico (e algumas informações taxonômicas) de 880 mil espécies de animais, plantas, fungos e micróbios, metade do número total de espécies identificadas até agora pela ciência. "Fizemos a primeira parte do trabalho", afirma Frank Bisby, da Universidade de Reading, Inglaterra, coordenador do Species 2000. Hoje cerca de 3 mil taxonomistas das mais diversas áreas participam da iniciativa, que congrega 37 bancos de dados. Há brasileiros envolvidos no projeto, mas não existe uma participação institucional do país nem de bancos de dados nacionais. A situação se repete no que diz respeito ao Global Biodiversity Information Facility (GBIF), um projeto ainda maior. No GBIF, além de informação taxonômica, o sistema integra dados das coleções biológicas de museus internacionais e registros de observações


Caranguejo-uçá

Mata Atlântica do interior de São Paulo

feitas em campo. "Temos carência de informações sobre alguns grupos de animais", afirma Jim Edwards, secretário executivo do GBIF, que contém cerca de 100 milhões de dados sobre espécies do planeta. "A entrada do Brasil no projeto nos ajudaria em certas áreas críticas." Apoiada por 47 países e 32 entidades internacionais, a iniciativa digital é alimentada por 169 provedores de informação e 686 bancos de dados. O Species 2000 e o GBIF não são os donos das informações que disseminam. O controle do que pode ou não aparecer é de cada provedor dos bancos

de dados integrados aos projetos. Segundo Ione Egler, coordenadora-geral de Políticas e Programas de Pesquisa em Biodiversidade do Ministério da Ciência e Tecnologia, até quatro anos atrás a comunidade científica brasileira estava dividida sobre a conveniência de firmar parcerias com esse tipo de empreitada internacional. "Mas a idéia amadureceu e agora as sociedades científicas querem participar do GBIF", afirma Ione, que toca um programa de digitalização das coleções de instituições de pesquisa nacional. No entanto, ainda há obstáculos a serem vencidos. O Ministério das Relações Exteriores, que chefia a delegação brasileira encarregada de negociar os pontos da Convenção sobre Diversidade Biológica, pensa de maneira distinta dos cientistas. "Não há por que disponibilizarmos dados sobre as espécies brasileiras", afirma Luiz Alberto Figueiredo Machado, chefe do Departamento de Meio Ambiente e Temas Especiais do Itamaraty. Bráulio Ferreira de Souza Dias, gerente de conservação de biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente, tem uma posição mais modera-

Caraguatá do Cerradão (bromélia)

da. Ele admite que há resistência à entrada do Brasil em inventários internacionais sobre a biodiversidade, mas diz que não há como impedir essa decisão. Um ponto que o preocupa é a difusão no exterior do chamado conhecimento tradicional dos indígenas, sobretudo via textos científicos. "Ainda não há um marco legal sobre essa questão", afirma Bráulio. "Por isso é preciso que haja ética na relação dos cientistas com os indígenas." No GBIF, no entanto, os provedores de informação são instruídos a não divulgar informações oriundas das práticas dos povos da floresta. Rotulagem de transgênicos - Também em Curitiba, uma semana antes da COP 8, houve a 3a Reunião das Partes do Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança, a MOP 3. A principal decisão do encontro regulou a questão da rotulagem dos organismos vivos modificados (OVMs), os populares transgênicos, destinados à exportação. Ficou acordado que os países poderão usar nas cargas agrícolas voltadas para o mercado externo a expressão "pode conter OVMs" até 2012. Ou seja, as nações têm um prazo de seis anos para separar os produtos transgênicos dos que não são modificados e só então terão de adotar a expressão "contêm OVMs" para grãos e sementes geneticamente alterados. • PESQUISA FAPESP 122 ■ ABRIL DE 2006 ■ 25


O POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA SAÚDE PUBLICA

O Brasil prepara-se para enfrentar a gripe aviaria, enquanto a ciência ainda tenta antever o espectro da pandemia

FABRICIO MARQUES

Plano de guerra contra o w

vírus

o

Brasil deu novos passos na preparação para enfrentar uma epidemia da gripe aviaria. Até maio, o país contará com seis laboratórios capazes de diagnosticar, num prazo de apenas três horas, a contaminação de aves com o vírus H5N1. Os Laboratórios Nacionais Agropecuários (Lanagros) incumbidos da tarefa ficam nas cidades de Belém (PA), Concórdia (SC), Recife (PE), Pedro Leopoldo (MG), Porto Alegre (RS) e Campinas (SP), atualmente o único equipado. O investimento é de R$ 39 milhões e implicará o treinamento de 1.700 técnicos. "É uma medida importante para detectar prontamente focos da doença. Para se ter uma idéia, alguns países atingidos pela gripe aviaria na Europa precisam mandar amostras para análise na Inglaterra", diz o infectologista Vicente Amato Neto, professor da Facul-

26 ■ ABRIL DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP122

dade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Cinco outros laboratórios ganharão equipamentos de diagnóstico molecular por PCR, ou reação em cadeia da polimerase, que analisa o DNA do vírus com sensibilidade de 98%. A medida integra um plano de contingência traçado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Em outra frente, o Instituto Butantan, de São Paulo, anunciou que começará a testar em junho a vacina contra a gripe aviaria desenvolvida a partir de cepas do H5N1 enviadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS). "Vamos testar em seres humanos diretamente, pois a vacina não é feita com vírus vivo. Queremos saber se a vacina é capaz de desencadear a produção de anticorpos", afirmou Jarbas Barbosa, secretário de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde. O vírus já causou a morte e o sacrifício de dezenas de milhares de aves no continente asiático

desde 2003. Nos últimos meses, o pânico disseminou-se com a identificação de aves contaminadas em vários países da Europa, da Polônia à Dinamarca. As fronteiras da doença avançaram também sobre a África, com casos na Nigéria, e no Oriente Médio, atingindo o Afeganistão e o Azerbaijão. Mais de 200 seres humanos contraíram a moléstia. Pouco mais da metade deles morreu, a maioria na Ásia, berço do vírus. Sacrifício - Da forma como é transmitida hoje - apenas das aves para humanos - a gripe aviaria representa antes um problema econômico, pelo sacrifício maciço de aves contaminadas, do que de saúde pública. Mas, para a OMS, pode ser apenas questão de tempo para que o vírus sofra uma mutação e comece a ser transmitido de ser humano para ser humano. Isso ocorreria caso uma pessoa estivesse infectada com a gripe aviaria e uma gripe co-


Criação de avestruzes perto de Moscou: os primeiros casos na Rússia foram registrados numa granja

mum, ao mesmo tempo, o que poderia criar um novo tipo de vírus capaz de alastrar-se entre os homens. Segundo Jarbas Barbosa, se a alteração no vírus for pequena, o Brasil estará mais preparado para produzir rapidamente um imunizante eficaz. A princípio, serão fabricadas 20 mil doses, mas o Ministério da Saúde planeja formar um estoque que permita vacinar pessoas que possam ter entrado em contato com o vírus ou com indivíduos contaminados. Tais medidas somam-se a outras tomadas desde o final de 2005. O Brasil, seguindo as recomendações da OMS, traçou estratégias de combate a vários flancos. A primeira delas consiste em tentar impedir a entrada do vírus. Para tanto, a importação de aves ornamentais foi proibida e intensificaram-se os controles nos portos e aeroportos para evitar a entrada de produtos avícolas de origem suspeita. A segunda estratégia é identificar focos do vírus imediatamen-

te após sua chegada, para evitar que o mal se alastre. O governo está monitorando nove rotas de aves migratórias nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Mato Grosso do Sul, Bahia, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Maranhão, Pará e Amapá, a partir de um trabalho conjunto realizado pelo Ministério da Agricultura, o Ibama e universidades. Hospedeiras do vírus, as aves migratórias são consideradas o principal fator de difusão do H5N1. Em abril, o ciclo de migração dessas aves termina. No nascedouro - Na eventualidade de haver contágio de aves para seres humanos, a estratégia é isolar a área, tratar os doentes com antivirais e vacinar a população ao redor. Além de patrocinar o desenvolvimento da vacina no Butantan, o governo comprou 9 milhões de doses do antiviral Oseltamivir, cujo nome comercial é Tamiflu, o mais eficiente no tratamento da gripe aviaria.

Entre os dias 6 e 8 de março, 70 especialistas de todo o mundo, reunidos por iniciativa da OMS, discutiram a logística, a vigilância e outras medidas de saúde pública que seriam necessárias para enfrentar a doença. De modo geral, foi reafirmada a estratégia de contenção que propõe quarentena nas áreas infectadas e o uso em massa do antiviral Tamiflu. Nunca se conseguiu limitar uma pandemia de gripe dessa forma, mas a OMS crê que exista uma chance de contê-la no nascedouro. "Embora controlar uma pandemia em sua fonte seja algo que nunca foi tentado, crescem as evidências de que isso possa ser possível", informou a OMS, por meio de uma nota. Ocorre que o primeiro surto do H5N1, registrado em 1997 em Hong Kong, foi contido de forma bem-sucedida com o abate de todas as 1,5 milhão de aves de criação do país. Modelos teóricos sugerem que é plausível conter a pandemia desde que haja providências contra vírus que atinjam humanos num prazo de poucos dias após sua mutação. E se não der certo? "Pode ser que os esforços de contenção só reduzam a velocidade da difusão da pandemia", disse Margaret Chan, diretora-assistente da OMS para doenças transmissíveis. "Mas mesmo assim nos fará ganhar tempo para o início da produção de vacinas." Se tais medidas serão tímidas, suficientes ou exageradas, só o tempo poderá dizer. "A estratégia é calcada rigorosamente no bom senso, porque não existem dados científicos que permitam traçar as medidas adequadas", afirma Eduardo Massad, professor de InPESOUISA FAPESP 122 ■ ABRIL DE 2006 ■ 27


Desinfecção de um mercado de aves na ilha de Bali: mais de 20 indonésios já morreram

Veterinário monitora frangos no distrito de Nandurbar, na índia, onde mais de 300 mil aves foram sacrificadas

formática Médica da FMUSP. Massad lembra, em primeiro lugar, que há dú vidas sobre a capacidade de o vírus H5N1 sofrer mutações e disseminar-se entre humanos. "As grandes pandemias de gripe foram causadas por vírus influenza dos tipos Hl, H2 e H3, e se alternam a cada 68 anos. Por essa conta, a próxima pandemia seria causada por um vírus do tipo H2 no ano de 2025", afirma. Caso a mutação se viabilize, diz Massad, seria necessário conhecer sua intensidade de transmissão. "Podemos traçar cenários. Por exemplo: se a intensidade repetir a da gripe espanhola, que matou 40 milhões de pessoas e foi a maior de que se tem notícia, seria necessário imunizar pelo menos 80% da população para evitar uma pandemia. Ou seja, pelo menos uns 130 milhões de brasileiros precisariam ser vacinados. Mas se essa intensidade fosse a da gripe asiática, que aconteceu em 1957, seria preciso vacinar 40% da popula28 ■ ABRIL DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 122

ção", afirma. O Fundo Monetário Internacional (FMI) também projeta cenários. Avalia que as nações mais atingidas poderão sofrer quedas de até 25% de seu Produto Interno Bruto. conclusão de Massad é que não é possível elogiar nem criticar o que as autoridades estão fazendo. "Eles estão fazendo o que pode ser feito nas circunstâncias atuais." Massad está concluindo um trabalho sobre a incidência da gripe espanhola na cidade de São Paulo, que corrobora a tese de que a Europa destroçada pela Primeira Guerra foi um palco ideal para a disseminação da doença. Ele observou que a letalidade da doença na Europa foi três vezes superior à observada na capital paulista, que, apesar das condições sanitárias, não exibia feridas abertas de um grande conflito armado. A mobilização para enfrentar a gripe aviaria no Brasil e no mundo encontra raros paralelos na história das doen-

ças emergentes. Como a mutação que poderá desencadear a pandemia ainda não se materializou, os países estão ganhando tempo para se preparar. Isso não aconteceu, por exemplo, com o surto de 2003 da Síndrome Respiratória Aguda Atípica (Sars), que, quando foi detectada, já havia se disseminado por vários países. Em relação ao H5N1, o continente americano estaria em situação privilegiada, pois não registrou ainda nenhum caso. "Mas as migrações que levaram o vírus para a Europa também podem ir para a América do Norte e, de lá, para o Brasil", diz o virologista Edison Durigon, professor do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP. Pelo menos um prejuízo da gripe já é bastante tangível no Brasil e atinge os produtores de frango. O medo da doença levou a uma queda de consumo de aves em vários países, embora o contágio não seja possível através da ingestão de carne cozida. Com isso, as exportações brasileiras em janeiro sofreram uma queda de 13%. O preço dos produtos desvalorizou-se em 16% desde dezembro.»


O POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA DIVULGAÇÃO

Olhares do Norte e Nordeste Oito Faps se unem para editar revista trimestal que reflita a diversidade de sua produção

s evidências de que um complexo sistema de divulgação de ciência e tecnologia se diversifica e se sofistica mais e mais nos últimos anos no Brasil estão se acumulando. E uma das mais recentes delas vem das regiões Norte e Nordeste do país: a revista trimestral Ciência em Rede, resultado do trabalho conjunto de oito fundações estaduais de amparo à pesquisa (Faps) dessas regiões, ou seja, as do Amazonas, Maranhão, Ceará, Piauí, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Bahia. A iniciativa conta com a parceria da Companhia Editora de Pernambuco (Cepe) e o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Concebida num claro padrão jornalístico, bem editada em suas 64 páginas, e veiculando temas relevantes para a pesquisa nacional nesse momento, como a reportagem de capa sobre o biodiesel e a matéria sobre nanotecnologia, a pretensão da revista não é falar só do Norte e Nordeste, e apenas para essas regiões. "Queremos nos situar como uma publicação que, embora feita fora do eixo tradicional de jornalismo e divulgação científica, ou seja, Rio-São Paulo, traz em suas reportagens temas relevantes da pesquisa nacional e até alguma coisa do panorama internacional", diz o editor científico da Ciência em Rede, Marcos

Costa Lima, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Políticas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). "E queremos ter circulação nacional", acrescenta ele. É claro, concede, que a revista deve refletir em boa medida o conhecimento produzido nos territórios de atuação das Faps envolvidas no projeto. A tiragem da primeira edição, lançada em março, como explica José Carlos Wanderley, diretor presidente da Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (Facepe), foi de 10 mil exemplares e cada instituição envolvida no projeto teve direito a um número de exemplares que definiu proporcionalmente à sua contribuição para viabilizar a

Na capa, o menino do Amazonas mede a tucumã

revista e que redistribuirá livremente para escolas, universidades e outras instituições. Do total da tiragem, mil exemplares destinam-se a bancas e os responsáveis pela publicação esperam que por esse canal também possa ser adiante atingido o conjunto do país. Em termos da produção jornalística propriamente, o acerto entre as Faps foi de que haveria um rodízio na responsabilidade editorial do produto. Pernambuco está nesse momento à frente, mas cada fundação terá na verdade um período de dois anos no comando do trabalho, tempo em que fica responsável pela saída de oito edições da revista. O coordenador tem entre outras tarefas a de mobilizar seus parceiros para garantir que todos enviem material jornalístico de qualidade para cada edição. A responsável pela produção gráfica da revista é a Cepe, que a partir da Continente, dedicada a cultura, vem firmando seu conceito na publicação de revistas especializadas de boa qualidade. Ciência e tecnologia, mas também política científica, questões da área de educação e iniciativas no âmbito da arte e da cultura, fazem parte do cardápio da nova publicação que, segundo Costa Lima, teve como modelos "a Revista Pesquisa FAPESP, a Diretrizes, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), e a Ciência Hoje, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)". • MARILUCE MOURA

PESQUISA FAPESP 122 ■ ABRIL DE 2006 ■ 29


POPULARIZAÇÃO

Dinossauros e outros

bichos Achado brasileiro: crânio de espinossaurídeo reconstituído a partir de fósseis encontrados no Maranhão

onto exposições para me vingar da escola", afirma Luiz Eduardo Anelli, da Universidade de São Paulo (USP), curador ■■■■ da mais abrangente mostra realizada no ■ ■■ I país de fósseis de dinossauros e outros IWI animais que habitaram a ferra nos úlI W I timos 700 milhões de anos: a Dinos na ' Oca, em cartaz até 30 de abril no Parque do Ibirapuera, na capital paulista. "A vida toda vi a escola como um castigo, um lugar em que não se ensina de forma divertida." Determinado a provar que não precisa ser assim, Anelli passou os últimos meses de 2005 dividido entre suas pesquisas no Instituto de Geociências da USP e horas e horas de reuniões com a equipe de Emilio Kalil, da agência GabineteCultura, organizadora dessa exposição de R$ 7 milhões. Sob o domo de concreto projetado por Oscar Niemeyer, o paleontólogo paulista conseguiu reunir réplicas


O POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

Exposição conta a história da vida no planeta nos últimos 700 milhões de anos

de alguns dos mais importantes dinossauros dos Estados Unidos, da África, da China, da Argentina e, claro, do Brasil. O maior deles é o Jobaria tiguidensis, um herbívoro de 22 metros de comprimento da cabeça à cauda que viveu há 135 milhões de anos. A equipe do paleontólogo norte-americano Paul Sereno, da Universidade de Chicago, recuperou seu esqueleto quase completo em 1997 nas areias do deserto do Niger, região central da África. Dos predadores carnívoros estão expostos o crânio de 1,5 metro do temido e popular Tyrannosaurus rex, que há 70 milhões de anos habitou o território onde hoje fica a América do Norte, e o crânio de outro animal ainda maior: o Carcharodontosaurus saharicus, cujo esqueleto foi desenterrado em 1995 pela equipe de Sereno no Marrocos. Ao contrário do que muitos podem pensar, nem sempre os dinossauros foram tão grandes. Quando surgiram sobre a Terra cerca de 230 milhões de anos atrás, eram relativamente pequenos. Um exemplo é o Eoraptor lunensis, dinossauro carnívoro que media apenas 1 metro da cabeça à ponta da cauda e andava sobre as pernas traseiras. Seu fóssil, encontrado na região noroeste da Argentina, indica que viveu há 228 milhões de anos, no período geológico chamado Triássico. Outro precursor dos dinossauros que está na Oca é o Staurikosaurus pricei, um carnívoro de quase 2,5 metros de comprimento. Descoberto em 1937 na região de Santa Maria, interior do Rio Grande do Sul, o Staurikosaurus é um dos fósseis de dinossauro mais antigos já encontrados no Brasil. Mas não é o único. Na parte da exposição dedicada aos representantes na-

cionais é possível ver a reconstituição do Unaysaurus tolentinoi - outro avô dos dinossauros, que viveu 1 milhão de anos mais tarde que o Staurikosaurus — e o Santanaraptor placiáus, predador de 1,5 metro cujo fóssil de 110 milhões de anos foi achado na Chapada do Araripe, no interior do Ceará. oi dessa região, rica em fósseis com idade entre 120 milhões e 110 milhões de anos, que saíram os ossos petrificados de outros animais expostos na Oca como peixes fósseis e os pterossauros - répteis voadores aparentados dos dinossauros Anhanguera piscator, um dos maiores já descobertos no Brasil, com 5 metros de uma ponta da asa à outra, e o Thalassodromeus setti, com uma das maiores cristas ósseas já observadas em vertebrados. Bem mais novo que esses animais, mas não menos impressionante, é o crocodilo primitivo Purussaurus brasiliensis, que habitou entre 8 milhões e 6,5 milhões de anos atrás uma região pantanosa do que hoje é a Amazônia brasileira. Considerado o maior crocodilo já encontrado - maior mesmo que o T. rex -, o Purussaurus tinha quase 15 metros de comprimento. Certamente a mais grandiosa exposição montada por Anelli, a Dinos na Oca soma-se a outras realizadas nos últimos anos no Instituto de Geociências da USP e na Estação Ciência, em São Paulo. Especialista em moluscos primitivos, esse paleontólogo de 41 anos descobriu a vocação de divulgador de ciência por acaso, em 1987, quando terminava a graduação em biologia na Universidade Estadual de Londrina, no Paraná. "Eu não tinha idéia do que faria ao terminar o curso e procurei estágio no laboratório de paleontologia do

professor André Celligoi", diz Anelli. "Lá vi diversos fósseis, que resolvi limpar, catalogar e expor na universidade." De lá para cá ele não parou de tirar os esqueletos das gavetas e buscar formas de usá-los para ensinar a história evolutiva do planeta de maneira lúdica. Sob essa perspectiva, um de seus maiores achados talvez tenha sido uma sala vazia no Instituto de Geociências da USP. Ali Anelli encontrou em 1998 o espaço necessário para ampliar o acesso à coleção de fósseis da USP: criou a Oficina de Réplicas, que reproduz em material plástico cópias idênticas aos ossos petrificados originais que, segundo o paleontólogo, podem ser usadas até mesmo para desenvolver pesquisa. "É como ler a cópia de um livro", diz. Nesses quase dez anos de atividade da oficina, escolas de diversos estados brasileiros compraram cerca de 17 mil réplicas para ensinar a paleontologia e evolução. Esse trabalho de popularização da ciência é possível, em parte, por causa do acordo que o paleontólogo da USP faz com seus alunos da graduação e da pós-graduação: seus trabalhos não devem permanecer guardados nem circular apenas entre os pesquisadores, na forma de artigos científicos. Alguns deles já se transformaram em livros infantis, como Conhecendo os dinossauros: histórias reunidas, Colorindo a história da vida e Extinção épara sempre: a história dos mamíferos gigantes da América do Sul, adotado como material paradidático pelas secretarias estaduais de Educação de São Paulo e da Bahia. A razão de selecionar crianças e adolescentes como seu público-alvo é óbvia: "É nessa fase que se desperta o interesse pelo mundo", diz o pesquisador. "Por isso escrevo os livros que gostaria de ter lido quando criança." • RICARDO ZORZETTO PESQUISA FAPESP 122 ■ ABRIL DE 2006 ■ 31


O POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA POS-GRADUAÇAO

Produção na rede Capes vai divulgar na internet as 50 mil teses e dissertações defendidas em 2006

odas as dissertações de mestrado e as teses de doutorado defendidas no país terão de ser disponibilizadas num endereço da internet e poderão ser consultadas por qualquer interessado. Uma portaria da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), agência de fomento e avaliação do sistema de pós-graduação do país, obriga os programas de mestrado e doutorado stricto sensu a apresentar uma cópia em arquivo digital de cada tese e dissertação aprovada. Estima-se que, neste ano, o volume atinja 50 mil trabalhos acadêmicos, sendo 75% de dissertações de mestrado e 25% de teses de doutorado. Em 2005, eles somaram 40 mil. Todo esse material ficará disponível numa biblioteca digital desenvolvida em software livre, no endereço www.dominiopublico.gov.br A versão dos trabalhos que deve ser enviada para a agência é a final, contendo inclusive 32 ■ ABRIL DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP122

as eventuais alterações sugeridas pela banca. A única exceção permitida pela portaria são os trabalhos que contenham algum dado protegido por sigilo. Como a portaria tem efeito imediato, as primeiras dissertações e teses começarão a gotejar já nos próximos meses. "Muitas universidades já disponibilizam esses trabalhos. Outras não o fazem por falta de estrutura para divulgá-los. Agora, com o endereço virtual, bastará nos enviar o arquivo por e-mail, sem nenhum esforço extra", diz o presidente da Capes, Jorge Guimarães. As avaliações de cursos feitos pela Capes em 2007 já exigirão o cumprimento da nova regra. "Mas não antevemos grandes problemas. Quando foi lançada a Plataforma Lattes, por exemplo, imaginou-se que haveria resistência, mas hoje ninguém quer estar fora dela", afirma Guimarães. Com a iniciativa, busca-se acabar com a invisibilidade de uma parte da produção acadêmica brasileira. Apesar da exigência de que teses de doutorado

dêem origem a publicações, artigos, livros, patentes ou protótipos, não é sempre que isso acontece. No caso das dissertações de mestrado, a perda é mais significativa. Será mais fácil, por exemplo, avaliar até que ponto um texto acadêmico é original, assim como o trabalho de mestrandos e doutorandos poderá ser enriquecido com referências que até então não estavam disponíveis. Para a Capes, a publicação on-line das teses tem uma importância extra. Permitirá à agência auditar os dados sobre produção acadêmica informados pelos programas de pós-graduação. "Não que tenhamos indícios de fraudes, mas trata-se de um dado que precisa ser auditado", afirma Guimarães. Ele lembra que, no final da década de 1990, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) cortou 50% das bolsas de mestrado com o argumento de que as dissertações não apareciam. "Essa é uma irregularidade que agora poderemos pegar", diz Guimarães. •


O POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA RECURSOS HUMANOS

Semente vigorosa Pela primeira vez a Embrapa contrata mestres e doutores para investir em novas tecnologias

erca de 3.500 mestres e doutores estão disputando 271 vagas de pesquiH i^^^B sador num concurso que a Empresa Brasileira de H M| Pesquisa Agropecuária ^L^V (Embrapa) realiza cm ^^^ todo o país. O processo seletivo, que deve ser concluído neste mês, tem formato e propósito inéditos na história da instituição. Pela primeira vez a Embrapa dispõe-se a renovar seus quadros buscando 24 mestres e 271 doutores, quando, em sua trajetória, sempre optou por contratar profissionais jovens e patrocinar sua formação em pós-graduação. "O sistema brasileiro de pós-graduação amadureceu e está produzindo grande quantidade de bons pesquisadores, ávidos por oportunidades de trabalho. Dos 10 mil doutores formados a cada ano, mil estão na área de ciências agrárias", diz o presidente da Embrapa, Silvio Crestana. "Não oferecemos salários espetaculares e ainda assim conseguimos atrair um número significativo de participantes do concurso", afirma. A remuneração oferecida vai de R$ 3.660,61 a R$ 4.886,86 mensais. A principal justificativa para o concurso é a necessidade premente de renovar os quadros da Embrapa. Com 37 centros de pesquisa espalhados pelo país, a empresa tem mais de 2 mil pesquisadores na ativa, sendo pouco mais de um terço com nível de mestrado e

quase dois terços com doutorado e pós-doutorado. Mas, com 33 anos de idade, enfrentará em breve a aposentadoria de centenas de profissionais -justamente aqueles que ajudaram a montar a empresa. Estima-se que, até 2009, mais de 700 pesquisadores deixem a empresa. As ambições do processo seletivo vão muito além da reposição de recursos humanos. Parte das vagas oferecidas está vinculada a campos do conhecimento emergentes nos quais a Embrapa decidiu criar massa crítica. Os 21 profissionais recrutados para a área de sistemas de produção agroenergéticos, por exemplo, auxiliarão na formação de uma rede de pesquisa que, mais adiante, servirá de base para a criação de uma nova unidade da empresa, a Embrapa Agroenergia. A empresa fez um levantamento criterioso para determinar o perfil das vagas. Definiu algumas demandas do setor para o momento, como defesa sanitária, agroenergia, agroecologia, mudanças climáticas, e as áreas promisso-

ras para o futuro, caso de segurança alimentar, biologia avançada, nanotecnologia e rastreabilidade. Na maioria delas, abriu vagas para profissionais com diploma de doutorado. Em outras, nas quais o Brasil ainda não tem uma tradição, ofereceu vagas para mestres. Mas as vocações consagradas da empresa nem de longe foram esquecidas. "Também estamos procurando profissionais em áreas que dominamos, para manter a competência que já existe", afirma Silvio Crestana. "Com o melhoramento genético tradicional, criamos variedades de diversas culturas, como arroz, feijão, milho, trigo e soja, que estabeleceram uma tecnologia brasileira e tropical. É nossa preocupação não perder massa crítica." Parte dos cargos, não por acaso, vincula-se a áreas em que a empresa tem tradição, como sistemas de produção sustentável (40 vagas), recursos genéticos e melhoramento vegetal (30) e uso sustentável de recursos naturais (28). Os contratados começarão a trabalhar no segundo semestre. • PESQUISA FAPESP122 ■ ABRIL DE 2006 ■ 33


CIÊNCIA

A rã que ouve em ultra-som

■ Longo caminho até a maturidade A maturidade que caracteriza - ou deveria caracterizar - a idade adulta só começa lá pelos 25 anos, depois de o cérebro passar por expressivas mudanças anatômicas. Para dimensionar o impacto de novas experiências emocionais e sociais, uma equipe coordenada por Abigail Baird, da Universidade de Dartmouth, nos Estados Unidos, mapeou o cérebro de 19 estudantes de 18 anos do primeiro ano do curso universitário que para estudar tinham se mudado de alguma cidade a pelo menos 130 quilômetros de distância; depois compararam com o grupo controle, formado por 17 estudantes mais velhos, de 25 a 35 anos. Os dois grupos apresentaram diferenças em regiões do cérebro que integram emoção e pensamentos. As mudanças, acreditam os pesquisadores, ampliam a capacidade de reunir informações sensoriais - essa síntese ajuda a moldar as respostas emocionais e comportamentais: é quando um adolescente se convence por si só que pode ser de fato perigoso nadar em um mar

Uma espécie rara de rã encontrada na China comunica-se produzindo sons de freqüência ultra-sônica, acima da que pode ser captada pelos ouvidos humanos. A Amolops tormotus pode assim se fazer ouvir além do barulho das cascatas de uma região próxima a Xangai onde vive e avisar sobre o território que está ocupando. É o primeiro exemplo registrado de um anfíbio que se comunica como os morcegos, baleias e golfinhos. De

cheio de tubarões. Segundo Abigail Baird, a idade adulta deve realmente chegar muito depois do que normalmente pensamos. Acreditava-se antes que o cérebro já estivesse pron-

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acordo com um estudo publicado na Nature de 16 de março, coordenado por Albert Feng, da Universidade Illinois em Urbana-Champaign, Estados Unidos, essa capacidade é uma conseqüência de um canal auditivo com um formato que não é encontrado em nenhuma outra espécie de rã. Segundo James Battey, diretor do Instituto Nacional de Surdez e outros Distúrbios da Comunicação

to e acabado aos 12 anos, mas outros estudos já haviam mostrado que a habilidade em lidar com muitas informações ao mesmo tempo só se desenvolve após os 16. •

(NIDCD), uma das patrocinadoras desse trabalho, quanto mais os biólogos descobrirem sobre as habilidades dessa e outras espécies se comunicarem, melhor se poderá entender os mecanismos da audição em humanos e desenvolver novos tratamentos para a perda de audição - ou para ouvir em lugares com muito barulho de fundo. •

■ Cegueira e mal de Chagas O mal de Chagas pode não produzir apenas problemas no coração de, atualmente, 17 milhões de pessoas. Os anticorpos produzidos pelo organismo em resposta ao ataque do protozoário Trypanosoma cruzi, o agente causador da doença, podem afetar as células da retina e diminuir a capacidade de adaptação do olho à falta de luz à noite, de acordo com uma equipe do Instituto de Pesquisas em Genética e Biologia Molecular, de Buenos Aires, coordenada


Pimenta-vermelha contra câncer de próstata componente das pimentas-vermelhas chamado capsaicina, além de fazer a língua arder, faz as células de tumores de próstata se suicidarem, de acordo com um estudo publicado na edição de 15 de março da revista Câncer Research. Em experimentos feitos em laboratório pela equipe de Sôren Lehmann, do Centro Médico Cedars-Sinai, Estados Unidos, a capsaicina induziu cerca de 80% das cé-

por Mariano Levin e Cristina Paveto. Publicado na revista Faseb Journal, editada pela Federação Norte-americana de Sociedades de Biologia Experimental, esse trabalho pode indicar se há anticorpos específicos que se associam a danos ao coração e à retina, simultaneamente, e possam levar a diagnósticos mais precisos contra uma enfermidade que mata anualmente 30 mil pessoas por ano, sobretudo na América do Sul. •

lulas tumorais de próstata de camundongo mantidas em cultura a acionarem os mecanismos bioquímicos que conduzem à morte celular, também chamada de apoptose. Como resultado, tumores tratados com capsaicina tinham cerca de um quinto do tamanho de tumores não tratados. A capsaicina também reduziu tanto a produção de PSA, uma proteína produzida em quantidades elevadas

anos. Metade participava de aulas de tango, a outra metade fazia caminhadas em grupo. Após algumas semanas, as mulheres da turma da dança começaram a aparecer com jóias e maquiagem. Dez semanas depois, os dois grupos tiraram notas melhores em

pelos tumores de próstata, quanto o crescimento de tumores cujo crescimento está associado à testosterona, um hormônio sexual masculino. Segundo Lehmann, a dose necessária para surtir o mesmo efeito nos seres humanos eqüivale

testes de memória, mas somente os que curtiram o tango melhoraram o desempenho em testes de multitarefas, como falar ao telefone enquanto respondiam a uma mensagem do correio eletrônico. Os dançarinos também se beneficiaram mais que os participantes do outro grupo em equilíbrio e coordenação motora, com menos risco de queda - algo muito importante para os mais velhos. •

■ Memória no ritmo do tango

■ Mesma toxina em aranha e bactéria

Os rápidos movimentos do tango não só mantêm o corpo em forma: estimulam também a memória e a autoestima, de acordo com um estudo apresentado no encontro anual da Sociedade de Neurociência, realizado no mês passado nos Estados Unidos. Para realizar o experimento que levou a essas conclusões, Patrícia McKinley da Universidade McGill, de Montreal, Canadá, recrutou 30 homens e mulheres cuja idade variava de 68 a 91

Um caso para os detetives especializados em evolução. Biólogos da Universidade do Arizona, Estados Unidos, encontraram evidências de uma antiga transferência de uma toxina entre ancestrais de dois organismos muito distantes evolutivamente - um tipo de aranha-marrom e em algumas cianobactérias. Como a toxina passou de um para outro? Segundo Greta Binford e Matthew Cordes, autores do estudo publicado na revista Bioinformatics, pode

à ingestão de três a oito pimentas-vermelhas frescas, três vezes por semana. Os pesquisadores trabalharam com o extrato de uma pimenta mexicana com teor maior de capsaicina, conhecida como habanera. •

se tratar de um exemplo de transferência lateral de genes - quando um gene passa entre organismos não relacionados entre si, evolutivamente distantes, em contraste com a transferência vertical, dos pais para os descendentes. Uma estrutura comum no final das duas toxinas não é encontrada em nenhuma outra proteína, indicação de que ambas estiveram mais relacionadas entre si do que com qualquer outra proteína conhecida. Esse detalhe também sugere que a aranha e a bactéria já tiveram um ancestral comum relativamente recente, mesmo que seus genes sejam hoje bem diferentes. Outra possibilidade é que a toxina em um desses grupos de organismos seja o resultado da transferência de outra linhagem, que pode ter desaparecido sem deixar pistas. Enquanto não se descobre a origem do mistério, cogita-se a possibilidade de o tratamento contra as picadas dessa aranha funcionar também contra os problemas causados pelas toxinas das bactérias. •

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Laboratório

Brasil

■ A samambaia que resiste à seca Durante dois anos, o botânico Tiago Breier, professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Sorocaba, interior paulista, percorreu as matas do estado de São Paulo - tanto as próximas do litoral, mais úmidas, quanto as do interior, mais secas. Seu olhar detinha-se nas epífitas, como são chamadas as plantas que crescem sobre outras, a exemplo das bromélias, orquídeas e samambaias. Como ele verificou, uma área de restinga da Ilha do Cardoso, extremo sul do estado, abriga o maior número de espécies de epífitas: 178, dez vezes mais que no Cerradão do sudoeste paulista. E somente uma espécie conseguiu se adaptar às intensas variações de umidade e luminosidade: uma samambaia de folhas cilíndricas chamada Pleopeltis augusta. Quando falta água, ela desidrata, enruga e entra em estado vegetativo, semelhante, nos animais, à estivação, o equivalente dos trópicos à hibernação. Assim que a chuva regressa, a Pleopeltis acorda, reidrata e retoma a vida normal. •

Distantes, porém semelhantes

Passaram-se 500 anos, os hábitos são outros, mas do ponto de vista do cromossomo Y, transmitido pela linhagem paterna, não há diferenças essenciais entre os homens brancos do Brasil e os de Portugal, de acordo com um estudo publicado na Genética. Coordenado por Sérgio Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), esse trabalho mostrou que são também bastante semelhantes, geneticamente, os brasileiros das regiões Norte, Sul, Sudeste e Nordeste. A equipe de Minas, em colaboração com Jorge Rocha, da Universidade do

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Porto, examinou trechos específicos do DNA, os polimorfismos de evolução rápida, de 200 brasileiros autoclassificados como brancos e 93 portugueses: os polimorfismos apresentaram 95% de coincidência. Esse resultado indica que os imigrantes não portugueses, como os italianos, espanhóis e alemães, que chegaram após o século 19, não mudaram de modo expressivo a estrutura genética da população. Ou então esses trechos do cromossomo Y dos imigrantes portugueses e dos não portugueses já eram bastante semelhantes - a

população de Portugal é uma mistura de outros povos, como celtas, árabes, romanos, vândalos, visigodos e ciganos. O Sul do Brasil, com italianos, alemães e povos do Leste Europeu, mostrou uma diversidade genética maior que a de Portugal. Segundo Pena, no Brasil inteiro a diversidade genética do cromossomo Y se tornou mais evidente com os marcadores de evolução rápida do que com os de evolução lenta usados em estudos anteriores, mas não a ponto de alterar a conclusão de que as semelhanças ainda são bastante altas. •


Os répteis voadores r um tempo, há cerca de 110 milhões de anos, as terras que se tornariam o território brasileiro abrigaram pelo menos 24 espécies de répteis voadores conhecidos como pteurossauros. Suas cristas eram tão coloridas e de formas tão variadas que os gaios e perus de hoje certamente se sentiriam humilhados diante desses animais contemporâneos dos dinossauros. Em Pterossauros - Os senhores do céu do Brasil (Editora Vieira & Lent), Alexandre Kellner, pes-

■ O sono dos médicos Cuidado da próxima vez que pisar em um hospital. Se puder, pergunte ao médico quantas horas ele dormiu na noite (ou dia) anterior. Um em cada dois (56,6%) dos 303 médicos entrevistados em cinco hospitais públicos do Distrito Federal (quatro em Brasília e um em Taguatinga) sofre de perturbações do sono, como insônia, apnéia e alterações neurológicas, com movimentos bruscos durante o sono - em um terço dos casos a situação é grave. A autora desse

quisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e raro exemplo de paleontólogo que se pôs a escrever para o público não-especializado, escreve com liberdade e oferece um texto fluente, contando de suas andanças pela Chapada do Araripe, um rico depósito de fósseis no Nordeste brasileiro, e dos momentos de frustração e êxtase vividos ao encontrar e descrever esses animais, extintos há cerca de 65 milhões de anos sem deixar descendentes. •

levantamento, a psiquiatra Ana Paula Megale Hecksher, da Universidade de Brasília (UnB), verificou também que a sonolência pode prejudicar a memória, alimen-

tar a ansiedade, atrapalhar a concentração e aumentar a chance de diagnósticos equivocados. Segundo ela, os médicos têm sono porque dormem pouco. E dormem pouco porque precisam trabalhar muito, mesmo que o Distrito Federal seja uma das unidades da Federação em que os médicos da rede pública de saúde ganham melhor. •

imensas quantidades de raios gama - razão pela qual os fenômenos desse tipo são também chamados de explosões de raios gama ou gamma-ray burst, explicando-se assim o GRB de seu nome. Eventos desse tipo devem ser gerados pelo colapso de estrelas de massa muito elevada, resultando, provavelmente, em buracos

■ A mais antiga explosão Astrônomos de São Paulo e de Minas Gerais participaram da descoberta da mais antiga explosão cósmica já registrada, ocorrida há 12,8 bilhões de anos, quando o Universo tinha apenas 900 milhões de anos. Descrita em três artigos publicados na revista Nature de 9 de março, a explosão, chamada de GRB 050904, liberou negros. A equipe coordenada por Giancarlo Cusumano, do Instituto Nacional de Astrofísica, da Itália, com colaboradores também nos Estados Unidos e no Japão, analisou as emissões de raios gama coletadas pelo satélite Swift no dia 4 de setembro de 2005. Duraram 225 segundos e são as mais antigas provas dos estágios iniciais do Universo. • PESQUISA FAPESP122 ■ ABRIL DE 2006 ■ 37


O CIÊNCIA EPIDEMIOLOGIA

Disfunção erétil pode ser o primeiro sinal de doenças coronarianas

CONFISSÕES CARLOS FIORAVANTI

lguns dos segredos mais íntimos dos homens e das mulheres estão saindo de baixo dos lençóis. No Brasil, um em cada dois homens com mais de 40 anos está sujeito, em menor ou maior intensidade, a uma situação normalmente embaraçosa chamada na linguagem médica de disfunção erétil ou, no senso comum, de impotência. Quase metade desses casos consiste de formas leves, que não deveriam despertar maior preocupação por serem episódios passageiros, que podem reverter espontaneamente, sem maiores repercussões orgânicas ou psicológicas. O problema é a outra metade: os casos moderados ou graves, que realmente necessitariam de tratamento por representarem "uma sentinela para outras doenças", nas palavras de Edson Duarte Moreira Júnior, médico epidemiologista da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) de Salvador. Desde 1998 ele trabalha em pesquisas que dimensionam a abrangência e as conseqüências desse e de outros problemas sexuais masculinos no Brasil e no mundo. Não bastassem por si sós, por causar abalos psicológicos que podem alimentar a depressão, além de poten-


Rene Magritte Os Amantes, 1928

PESQUISA FAPESP 122 ■ ABRIL DE 2006 ■ 39


cialmente corroer relações conjugais, familiares e sociais, os casos mais graves de incapacidade de ereção podem refletir deficiências da circulação sangüínea - se não tratadas a tempo, podem levar ao infarto. "A disfunção erétil pode ser o primeiro sinal de doenças coronarianas", alerta o urologista Archimedes Nardozza, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). A explicação é simples: as artérias do pênis, relativamente pequenas em comparação com as coronárias, que irrigam o músculo cardíaco, podem dificultar a ereção mesmo com baixas quantidades de gordura bloqueando a chegada de sangue aos compartimentos do pênis chamados corpos cavernosos, que levam à ereção à medida que se enchem. O risco de um homem com impotência apresentar acúmulo de gordura nas artérias coronárias é até 2,5 vezes maior que o de um homem sexualmente normal, de acordo com uma pesquisa feita em São Paulo com 287 participantes (137 com disfunção e 150 sem). "E quanto mais grave a disfunção erétil, maior o risco de problemas coronarianos", comenta o cardiologista Juarez Ortiz, coordenador desse estudo, que saiu em outubro de 2005 na revista Arquivos Brasileiros de Cardiologia. Em 23 de janeiro deste ano, a revista Archives of Internai Medicine publicou um trabalho semelhante, assinado por James Min, da Universidade de Chicago, Estados Unidos, comparando o estado geral de saúde de 121 homens com disfunção erétil com o de outros 100 sem. Nesse trabalho, 44% dos homens com disfunção apresentavam problemas coronarianos, encontrados apenas em 17% daqueles sexualmente normais. O estudo norte-americano foi um pouco além e mostrou uma relação do mais comum distúrbio sexual masculino com menores atividade e resistência físicas. Segundo esse trabalho, a incapacidade de ereção poderia ser até mais eficaz que os fatores de risco habitualmente avaliados, como níveis de colesterol, pressão arterial ou história familiar, para indicar precocemente quando as artérias perderam a capacidade de conduzir sangue na quantidade e na 40 ■ ABRIL DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 122

velocidade necessárias para o bom funcionamento do coração. Pode-se entender essa associação porque as razões que levam à dificuldade de ereção são as mesmas que conduzem às doenças coronarianas: obesidade, hipertensão e diabetes. Nesses dois estudos, o diabetes era ao menos 2,2 vezes mais freqüente e a hipertensão, 1,5 vez, nos homens com disfunção erétil que nos do outro grupo. A associação entre problemas coronarianos e a incapacidade de ereção emerge também de um dos maiores levantamentos epidemiológicos nesse campo já feito em um país: o projeto Avaliar. Em mutirão, 4.377 médicos entrevistaram 71.503 homens com idade mínima de 18 anos em 380 cidades de 24 estados do Brasil. Realizado entre agosto de 2002 e janeiro de 2003, o Avaliar mostrou que a incapacidade de ereção - leve, moderada ou grave - passava de 47% em homens com pressão arterial normal para 73,5% naqueles com hipertensão grave e de 48,2% em homens com peso normal para 60,7% em homens obesos. essa aridez numérica surge uma conclusão que pode ser bastante útil. "Para prevenir a disfunção erétil, bastaria atuar nos fatores de risco para doenças coronarianas, como obesidade, hipertensão, sedentarismo e diabetes", diz Nardozza. Isoladamente, lembra ele, o diabetes é a principal causa dessa debilidade masculina, em razão de seus dois efeitos: danifica tanto os vasos sangüíneos quanto as terminações nervosas do pênis. Eis por que homens com diabetes são os que menos se beneficiam dos medicamentos contra disfunção erétil, quimicamente chamados inibidores de fosfodiesterase. Ao conter a ação da enzima fosfodiesterase e manter o oxido nítrico em circulação por mais tempo, esse composto estimula o fluxo do sangue e dilata as artérias do pênis, mas nada pode fazer contra nervos destruídos pelo excesso de açúcar no organismo. A dificuldade de ereção é considerada uma conseqüência do gradativo entupimento dos vasos sangüíneos, mas também pode ser tanto causa quanto conseqüência da depressão, o mais co-

mum desequilíbrio psíquico ao qual está associada. Um estudo publicado no Journal of Affective Disorders em 2004 mostra claramente essa relação de mão dupla. Uma equipe coordenada por Alfredo Nicolosi, pesquisador do Instituto de Tecnologias Biomédicas, de Milão, Itália, entrevistou 2.417 homens no Brasil, na Itália, no Japão e na Malásia. Desse total, 2% apresentavam depressão já diagnosticada, mas 21% mostravam sintomas depressivos, como uma tristeza prolongada sem uma razão real. A depressão era mais comum entre os homens mais jovens, que apresentavam disfunção erétil e nutriam uma expectativa maior de uma vida sexual normal e saudável. Mulheres - Estima-se que, no mundo todo, 150 milhões de homens com mais de 18 anos padecem das formas leve, moderada ou grave de disfunção erétil. No Brasil vivem cerca de 11 milhões de indivíduos que nos 12 meses anteriores à pesquisa, por pelo menos dois meses contínuos, apresentaram dificuldade de ereção. Predomina a forma leve, que corresponde a 26,6% do total que na maioria dos casos não deve preocupar por ser passageira e não afetar a saúde. Já a moderada eqüivale a 18,3% e a forma grave, a 3,5% do total - essas duas sim de fato preocupantes pela possibilidade de sinalizarem problemas circulatórios ou cardíacos. Segundo Moreira Júnior, deve surgir 1 milhão de casos novos desse tipo de distúrbio sexual masculino no Brasil a cada ano. Mas a falta de ereção, lembra ele, só pode ser considerada um distúrbio sexual quando dificulta a vida ou atrapalha as relações conjugais ou sociais. Não é só a incapacidade de ereção que soa como ameaça à virilidade. Estatisticamente, um em cada quatro homens deve apresentar ao longo da vida pelo menos um distúrbio sexual - da falta de desejo à ejaculação precoce, nem sempre com conseqüências mais sérias à saúde. Entre as mulheres, uma em cada cinco pode enfrentar a falta de desejo ou de orgasmo - e duas em cinco podem ser acometidas por algum tipo de dificuldade ligada à sexualidade, algo que também não chega a ser necessariamente patológico. Com pequenas variações, esse quadro é encon-


trado também em outros países, de acordo com estudos que se tornaram mais freqüentes depois de 1998, quando surgiu o Viagra, o primeiro medicamento oral contra disfunção erétil. A pílula azul e, a seguir, seus concorrentes, Cialis e Levitra, além de seus benefícios mais evidentes, retiraram das alcovas os problemas sexuais - inicialmente só os dos homens, mas com o tempo também os das mulheres. Por substituir os dolorosos tratamentos até então adotados, à base de elásticos ou de injeções aplicadas no pênis, esses medicamentos permitiram que os homens reconhecessem suas frustrações e se lançassem novamente em busca de desejos que haviam sido deixados de lado. A incapacidade de ter ou de manter a ereção de modo satisfatório durante uma relação sexual deixou então de ser vista apenas como um acidente ocasional, que deveria preocupar só os homens com mais de 70 anos. Edificou-se um cenário totalmente diverso, em que a dificuldade de enrijecimento do órgão sexual masculino despontou como um fenômeno disseminado pelo mundo, a despeito das diversidades étnicas, geográficas ou culturais, e mais comum e grave à medida que a idade avança. Essas descobertas integram o Global stuáy of sexual attitudes and behaviors (Estudo global de atitudes e comportamentos sexuais), provavelmente o mais amplo levantamento já feito nessa área, com a mesma metodologia de coleta de informações aplicada a 13.882 homens e 13.618 mulheres entrevistados em 29 países. Esse trabalho foi financiado pela Pfizer, a fabricante do Viagra, que também patrocionou o Avaliar, sem impor limitações à autonomia dos pesquisadores - foi um unconditional grant, como atestado nos artigos científicos em que se divulgam os resultados obtidos. Os estudos sobre a situação de cada país - e o Brasil é um dos primeiros países a divulgar os resultados - começaram a sair no ano passado, após a fase de análise global dos resultados obtidos. As entrevistas, que registram as tendências populacionais em cada país, indicam que 28% dos homens e 39% das mulheres do mundo apresentam algum problema sexual, considerando

Rene Magritte A Filosofia no Quarto de Dormir, 1966

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apenas as formas moderada e grave. Estudos desse tipo, lembra o psiquiatra Jair Mari, professor da Unifesp, normalmente são essencialmente descritivos, "desprovidos do contexto médico, social e cultural". Não consideram a ocorrência simultânea de outros desequilíbrios orgânicos ou o uso de medicamentos que poderiam estar associados à dificuldade de ereção, nem as histórias de vida ou as circunstâncias que poderiam explicá-la, muito menos comportamentos intrigantes de mulheres como Séverine, a personagem central de A bela da tarde, filme de 1967 dirigido por Luis Bunuel. Interpretada por Catherine Deneuve, Séverine ama o marido, mas só consegue se libertar sexualmente com os homens que encontra toda tarde em um prostíbulo. Para evitar números inflados e resultados alarmistas, Moreira Júnior ressalta, porém, que esse levantamento procurou considerar a ocorrência simultânea de outros problemas de saúde e circunstâncias pessoais, como desemprego ou morte de familiares, que possam interferir temporariamente na vida sexual. Segundo ele, os questionários foram preparados e analisados não só por médicos, mas também por estatísticos, sociólogos, antropólogos e psiquiatras. Universos paralelos - Muitos resultados ainda precisam ser interpretados, mas já quantificam potenciais fontes de insatisfações da vida sexual, como a ejaculação precoce, encontrada mundialmente em 14% dos homens. Com representantes de populações das mais variadas culturas e etnias, esses levantamentos tornam conhecidas também as dimensões dos problemas da sexualidade feminina, cujas causas e conseqüências - os próprios pesquisadores reconhecem - ainda são bem menos estudadas que as masculinas. Entre as mulheres, a falta de interesse sexual é a queixa mais comum, relatada por 21% das participantes desses estudos, enquanto a incapacidade de atingir o orgasmo e as dificuldades de lubrificação vaginal se mostraram em proporções equivalentes, encontrandose cada uma delas em 16% do público 42 ■ ABRIL DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 122

feminino. Curiosamente, as dificuldades mais comuns nas mulheres eram as menos comuns nos homens: apenas 9% dos homens relataram falta de interesse por sexo, menos de duas vezes do verificado no público feminino. Entre as mulheres, 15% comentaram que o sexo não era uma atividade prazerosa - apenas 6% dos homens deram a mesma resposta. ginecologista Eleonora Bedin Pasqualotto, professora da Universidade de Caxias do Sul, do Rio Grande do Sul, atribui essas diferenças às visões contrastantes dos homens e das mulheres a respeito do próprio corpo e dos papéis sexuais que acreditam que devem desempenhar. "As mulheres dão mais atenção que os homens à percepção de si mesmas, geralmente se deixam levar por estereótipos de beleza feminina e valorizam todo o corpo", diz ela. Quando se sentem gordas ou feias diante do espelho, mesmo que não estejam, podem se afastar do parceiro, refrear o desejo e cultivar apenas as lembranças das longas noites de amor. "Já os homens parecem não se abater ao se verem no espelho, mesmo que as transformações provocadas pela idade já sejam evidentes, e se preocupam somente com o desempenho sexual." A obstinação pelo desempenho sexual ajuda a entender por que no Brasil os homens compram 1,18 milhão de comprimidos contra impotência por mês. O Brasil é um dos maiores mercados consumidores mundiais desses medicamentos, criticados por alimentar nos homens, mesmo nos que iniciam a vida sexual, o medo de falhar em um momento em que, acreditam, a ereção é uma obrigação, uma prova inadiável de masculinidade. Em uma placa pregada em frente a uma farmácia na entrada da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), os primeiros medicamentos anunciados para um público predominantemente jovem são justamente os contra impotência. Há tempos seus consumidores não são mais só os homens que realmente precisam de tratamento contra disfunção erétil. Mari, porém, sugere

mais cuidado: "O uso precoce e prolongado pode gerar insegurança e dependência psicológica". Preconceitos - Em um estudo publicado no ano passado na revista Clinics, Eleonora Pasqualotto comenta que nas mulheres as manifestações que poderiam ser vistas como disfunções sexuais podem, na verdade, sinalizar insatisfações com a própria vida ou com a relação conjugai, além de expressar um mecanismo de defesa psíquico resultante de experiências sexuais traumáticas. Além disso, lembra ela, ainda parecem persistir os preconceitos sociais, igualmente conduzindo ao bloqueio do desejo e à dificuldade de responder aos estímulos sexuais. Com a pílula anticoncepcional, as mulheres se afastaram do medo de engravidar toda vez que tivessem uma relação sexual, mas não se livraram do peso dos estigmas sociais e de um modelo de comportamento social segundo o qual a iniciação sexual dos homens é estimulada e reforça a virilidade, enquanto a das mulheres é coibida - se não, levará à desvalorização e promiscuidade. Resultado: homens ansiosos e mulheres insatisfeitas. Entre os representantes de 29 países, os homens brasileiros apresentaram a segunda maior taxa de ejaculação precoce (30%), que reflete a preocupação com o desempenho e com os estereótipos sexuais, ficando atrás apenas dos espanhóis (31%). Foi um resultado inesperado, cujos efeitos já podem ser delineados: "O homem se frustra, mas se acostuma com a ejaculação precoce", diz Moreira Júnior. "A mulher se frustra muito mais." A ejaculação precoce não é a única razão do descontentamento feminino. As mulheres brasileiras são as que se mostraram mais insatisfeitas com a duração das preliminares ao ato sexual: até agora, 22% das brasileiras, quase o dobro da média mundial, gostariam que as preliminares durassem mais tempo. No mundo quase todos os participantes (92% dos homens e 91% das mulheres) consideram o contato físico e as carícias muito importantes, mesmo sem relação sexual. Para Moreira Júnior, esses resultados são importantes por duas razões:


por mostrar que as mulheres estão expressando as frustrações e por indicar que os homens, em conseqüência da cultura machista, não se preocupam como deveriam em atender plenamente às expectativas das mulheres. Sugerem também, para Jair Mari, uma visão reducionista do ato sexual, focado na penetração, com pouca atenção aos jogos eróticos e à possibilidade de exploração do corpo do parceiro. "As pessoas perdem assim a oportunidade de se desenvolver sexualmente", diz ele. Ainda que a qualidade possa não ser lá essas coisas, a quantidade chama a atenção. De acordo com esses estudos, o Brasil é o país em que se pratica sexo com mais freqüência: 74% das pessoas de 40 a 80 anos têm relações sexuais pelo menos uma vez por semana - a média mundial é 50%. "Temos de ver primeiramente se os brasileiros também não são os que mentem mais", diz Moreira Júnior. "É pouco provável." Segundo ele, os dados são confiáveis porque os entrevistadores deixaram os entrevistados à vontade e enfatizaram a importância de respostas honestas. Os resultados poderiam ser inicialmente explicados pelo fato de o Brasil ser um país com uma população mais jovem que a de países do hemisfério Norte, como os Estados Unidos e os da Europa, que representaram a maior parte dos entrevistados. O pesquisador da Fiocruz acredita que uma interpretação mais consistente deveria considerar também o peso da cultura, da história e do clima. "Nos países tropicais", diz ele, "tende a haver um maior culto ao corpo, que fica mais à vista, promovendo a sensualidade e a sexualidade". Um tabu derrubado com esses levantamentos internacionais é que a atividade sexual não se encerra com os cabelos brancos dos pais ou dos avós: de acordo com esses levantamentos, 69% dos homens e 40% das mulheres mantêm-se sexualmente ativos após os 60 anos de idade. "A atividade sexual diminui com a idade, é natural, mas não desaparece abruptamente, como as pessoas normalmente acreditam", comenta. "Talvez algumas pessoas não tenham mais relações sexuais depois dos 60 simplesmente porque não têm mais parceiros." •

Rene Magritte A Tentativa do Impossível, 1928

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©CIÊNCIA HEMATOLOGIA

ulha no palheiro Unicamp identifica mutação genética que produz rara síndrome sangüínea

Poucas horas depois de nascer, no dia 18 de outubro de 2003, i^i a curitibana Letícia Laudino foi levada à UTI neonatal com anemia hemolítica seus glóbulos vermelhos estavam sendo destruídos por anticorpos herdados da mãe. O diagnóstico imediato foi de eritroblastose fetal, a patologia que atinge crianças com sangue Rh positivo cujas mães são Rh negativo. A favor dessa tese havia o fato de que a mãe de Letícia, Débora, tivera o sangue classificado como A Rh negativo. Os médicos aplicaram o tratamento padrão - uma transfusão de sangue Rh negativo capaz de bloquear os anticorpos herdados e interromper o ataque. Mas a anemia, em vez de arrefecer, agravou-se. A ação dos médicos nas 72 horas seguintes não apenas salvou a vida da menina como ganhou registro na literatura médica internacional. Depois da segunda crise, amostras de sangue de Letícia e de Débora foram submetidas a testes avançados no Hemocentro de Curitiba, que revelaram uma característica raríssima. Não eram Rh positivo nem Rh negativo, mas Rh nulo, condição que afeta uma em cada 6 milhões de pessoas e se torna um pesadelo quando uma transfusão é necessária. Um Rh nulo só pode receber sangue de outro Rh nulo. 44 ■ ABRIL DE 2006 • PESQUISA FAPESP 122

O sistema de grupo sangüíneo Rh tem 49 antígenos, proteínas que podem levar à formação de anticorpos capazes de interagir com os glóbulos vermelhos. O mais importante deles é conhecido como RhD. Quando se diz que um indivíduo é Rh positivo, quer dizer que a proteína RhD está presente na membrana de suas hemácias - esse é o caso de 85% dos seres humanos. Os indivíduos Rh negativo não apresentam essa proteína específica - mas as hemácias, apesar disso, são normais. Já os indivíduos Rh nulo, além da ausência do antígeno RhD, também não expressam outros antígenos do sistema Rh - e, por isso, padecem de uma fragilidade dos glóbulos vermelhos que causa uma anemia branda, mas crônica. Uma pesquisa feita na família mostrou que além da mãe de Letícia uma tia da menina também tinha sangue Rh nulo - mas havia uma incompatibilidade no sistema de antígenos ABO. Letícia tinha o tipo sangüíneo O, enquanto sua mãe e sua tia eram do tipo A. Em busca de uma solução, os médicos de Curitiba telefonaram para a bióloga Lilian Maria de Castilho, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), responsável por um estudo pioneiro no campo da biologia molecular com o sistema Rh. Lilian acabara de participar de um congresso onde soube que havia registro de uma portadora de sangue RH nulo no Rio de Janei-

ro com o mesmo tipo ABO de Letícia. Ato contínuo, tocou o telefone de Ana Maria da Silva, moradora de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, que não se furtou ao gesto humanitário. Seu sangue foi rapidamente coletado e levado a Curitiba. Letícia sobreviveu. Dois anos depois, em novembro de 2005, uma pesquisa baseada no caso de Letícia foi publicada na revista científica Transfusion, assinada por Lilian Castilho, sua aluna de mestrado Karina Rosa, além dos médicos de Curitiba e do Rio de Janeiro e de pesquisadores novaiorquinos que participaram da investigação. Por meio da análise do DNA, descobriu-se a origem genética da patologia - a mãe e a tia de Letícia adquiriram a síndrome de Rh nulo porque são fruto de um casamento consangüíneo. Os avós da menina são primos. A característica, amplificada graças à união entre parentes, ganhou expressão no sangue das duas mulheres e só foi descoberta com o nascimento de Letícia. A mãe da garota foi aconselhada a não engravidar novamente. Numa segunda gestação, são grandes as chances de que o ataque dos anticorpos seja ainda mais intenso. A síndrome de Rh nulo tem duas causas. A mais comum resulta da mutação de um gene que não tem relação direta com os antígenos Rh, mas é responsável pela síntese de uma proteína que interage com a proteína Rh na membrana dos glóbulos vermelhos. Com a alte-


ração, os antígenos não são expressos. A segunda causa, mais rara, ocorre por defeito do gene responsável pelo sistema Rh. Só existiam três casos desse tipo detectados no mundo. O da mãe de Letícia foi o quarto. O seqüenciamento genético das amostras de sangue da mãe, avós e tios de Letícia fez uma outra descoberta. A mutação que originou o problema na família curitibana jamais havia sido descrita. Está instalada numa região cromossômica diferente dos outros três casos identificados no mundo, um na França, um nos Estados Unidos e um no Japão. Tais alterações foram descritas a partir de 1998, graças ao aprimoramento das técnicas de diagnóstico molecular. A pesquisadora Lilian Castilho especializou-se em imunoematologia no

Centre National des Reference pour les Groupes Sanguines, da França, e fez o pós-doutoramento no New York Blood Center, nos Estados Unidos. Ela coordena no Hemocentro da Unicamp o único laboratório público que faz biologia molecular de grupos sangüíneos, adquirido graças ao apoio da FAPESR "Hemocentros de várias cidades nos procuram porque sabem que somos um pólo de biologia molecular de grupos sangüíneos", diz Lilian. A grande ambição do grupo é fazer um banco nacional de doadores de sangue capaz de melhorar a segurança das transfusões no país. A idéia é submeter amostras de sangue dos doadores a técnicas de tipagem por DNA e cadastrar portadores de sangues raros. A composição genética do sangue de 500 doadores da região de Campi-

nas já se encontra cadastrada no Hemocentro da Unicamp. Esse processo ganhará agilidade com a recente aquisição de um equipamento, baseado na técnica de microarray, ou tecnologia chip. Por meio desta técnica, amostras genéticas de sangue ou secreções são rastreadas por microscópicas sondas de DNA contidas em sensores dispostos em lâminas especiais de vidro com diferentes genes de grupos sangüíneos. Um equipamento e um software específicos monitoram o processo e, quando os genes procurados nas amostras são localizados, os chips emitem um sinal de fluorescência. "Precisamos estudar mais a população brasileira", diz Lilian Castilho. "Há variantes de grupos sangüíneos que predominam entre nós e não são freqüentes em outros países", afirma. O mapeamento de doadores raros, diz Lilian, além de impulsionar a pesquisa no campo da hematologia, dará mais segurança às transfusões e ajudará a prevenir dramas como o de Ana Maria da Silva, a fluminense que doou sangue para a menina Letícia. Depois do gesto de solidariedade, Ana Maria precisou ela própria de uma transfusão sangüínea. Só se salvou porque os médicos que a tratavam conseguiram na Inglaterra uma bolsa do raríssimo sangue Rh nulo. • FABRICIO MARQUES PESQUISA FAPESP 122 ■ ABRIL DE 2006 ■ 45


O CIÊNCIA FISIOLOGIA

Os canais do

Equipe da Unifesp identifica interação entre batimentos e contração cardíacos, mediados por cálcio

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cálcio presente na circulação sangüínea tem um papel primordial num evento que se repete, com vigor variado, centenas de milhares de vezes ao dia. A capacidade de contração do músculo cardíaco é regulada pela quantidade de cálcio no interior de suas células, cujo fornecimento depende dos canais de cálcio situados na membrana celular. Um exemplo: conforme se eleva o número de batimentos cardíacos, os canais nas membranas abrem-se e deixam mais cálcio entrar. O estiramento do músculo também deflagra uma cadeia de eventos que aumenta a capacidade de contração. São liberadas substâncias que ampliam a entrada de sódio nas células - e uma proteína na membrana promove a troca do excesso de sódio por cálcio. O cardiologista Paulo José Ferreira Tucci, professor do Departamento de Fisiologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), começou a estudar há três décadas as origens da complexa cadeia de mecanismos que regula a passagem do cálcio. Um deles, mostrou Tucci nos anos 1980, tem a ver 46 ■ ABRIL DE 2006 • PESQUISA FAPESP 122

com o aumento da sensibilidade ao cálcio das proteínas contrateis do coração sempre que o músculo é estirado. Recentemente, o grupo liderado por Tucci voltou a debruçar-se sobre os fenômenos bioquímicos que fazem o miocárdio contrair e pulsar. Utilizando um coração isolado de cachorro, abastecido pelo sangue arterial de outro cão, foi possível avaliar a interação entre dois desses eventos mediados pelo cálcio, o estiramento do músculo e o aumento da freqüência cardíaca. Concluiu-se que a freqüência cardíaca elevada intensifica a resposta do órgão ao estiramento. A preparação da experiência leva algumas horas e demanda cirurgias nos dois cães. Primeiro, retira-se o coração de um dos cachorros. Dentro deste coração isolado é instalado um balão que avalia sua capacidade contrátil e a pressão gerada no seu interior durante a contração cardíaca. Do outro lado, há o segundo cachorro, cuja função é fornecer o sangue arterial para o coração isolado e recebê-lo de volta. "Um dos méritos do trabalho foi avaliar numa condição fisiológica - o coração integrado a um organismo intacto - a interação entre fatores que antes haviam sido estudados isoladamente e em condições experimentais muito artificiais", diz Tucci.

Em outro estudo, o grupo da Unifesp analisou o funcionamento desses mecanismos quando o fluxo sangüíneo do coração diminui - num quadro de isquemia equivalente ao da angina do peito, a dor aguda causada pelo estreitamento da artéria. Quando o fluxo é restabelecido, a função do coração demora algumas horas a voltar ao normal. Nessa fase crítica há o risco de intercorrências sérias, como o acúmulo de líquidos no pulmão. O estudo concluiu que, no período de atordoamento, a resposta do coração ao estiramento e ao aumento de freqüência não é afetada. Velocista - A importância desses estudos não se mede só pelos achados individuais. O estiramento do músculo e o aumento dos batimentos são mecanismos que permitem ao coração ajustar-se rapidamente às demandas do organismo. Um velocista consegue quintuplicar o desempenho do coração numa corrida de 100 metros rasos. "Em vítimas de cardiopatias crônicas, o funcionamento de tais mecanismos é comprometido e os médicos não têm meios de interferir terapeuticamente neles", diz Tucci. A pesquisa busca ampliar a compreensão de tais fatores nas doenças cardíacas.


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Numa outra linha de investigação, Paulo Tucci corrobora uma tese que soa paradoxal - corações pequenos batem melhor. Estudos realizados com ratos infartados revelaram que o miocárdio dos roedores ganhou capacidade de bombeamento depois que o pedaço do ventrículo esquerdo necrosado pelo infarto foi removido e a câmara ficou com um tamanho menor. "Matematicamente, isso é fácil de provar: a força a ser gerada pelo miocárdio é diretamente proporcional à relação raio da cavidade dividido pela espessura da parede. Quanto maior a cavidade, mais difícil de gerar pressão", diz Tucci. Na década de 1990, esse princípio foi aplicado em seres humanos. A retirada de até 30% do coração hipertrofiado, estratégia desenvolvida pelo cirurgião paranaense Randas Batista, devolveu qualidade de vida a centenas de pacientes com insuficiência cardíaca grave, que os impedia de andar ou de fazer qualquer esforço. Médicos de todo mundo a testaram. A cavidade menor conferia ao miocárdio, mesmo debilitado, uma função mais adequada. Apesar do benefício imediato e do entusiasmo inicial, a técnica, conhecida como ventriculoplastia redutora, foi praticamente abandonada. Em

médio e longo prazos, seus efeitos na mortalidade mostraram-se frustrantes. Um benefício da redução da cavidade é observado em outra situação da prática médica: a retirada de grandes cicatrizes produzidas pelo infarto do miocárdio, quadro conhecido como aneurisma do ventrículo esquerdo. A remoção da cicatriz é unanimemente aceita como vantajosa para a evolução dos doentes. Por isso, na avaliação de Tucci, o problema pode não estar na técnica de Randas Batista, mas em sua aplicação em pacientes num estágio muito grave de insuficiência cardíaca. O PROJETO Fisiologia e fisiopatologia em cardiologia MODALIDADE Projeto Temático

COORDENADOR Departamento de Fisiologia, Unifesp PAULO JOSé FERREIRA TUCCI

INVESTIMENTO R$ 1.006.278,24

"Os resultados possivelmente seriam diferentes se a redução fosse aplicada em pacientes com coração dilatado mas ainda com suas funções preservadas", afirma. O trabalho de operar os minúsculos corações dos ratos infartados coube à pesquisadora Rosemeire Kanashiro, que hoje faz pós-doutorado num hospital em Baltimore, Estados Unidos. A resistência do coração é maior do que se imagina, como atesta uma pesquisa feita com ratos infartados submetidos à desnutrição. A conclusão foi a seguinte: embora tenham sido submetidos a um esquema de restrição de proteínas e calorias seis semanas antes do infarto e três semanas depois, não sofreram depressão da capacidade de contração miocárdica. No período de cicatrização há uma sobrecarga cardíaca causada pelo infarto. Além disso, a síntese de proteínas no coração aumenta bastante. Apesar disso, não houve comprometimento da função do músculo cardíaco. Esse estudo corroborou o conceito da existência de uma hierarquia de importância de alguns sistemas do organismo. O coração e o cérebro são poupados em situação de privação de alimentos. • FABRíCIO MARQUES PESQUISA FAPESP 122 ■ ABRIL DE 2006 ■ 47


CIÊNCIA GENÉTICA

Cruzamentos de alto risco Espécie marinha de peixe-boi cruza com a amazônica e gera híbridos estéreis

oque, um filhote de peixe-boi, instalou-se no final de 1993 em um dos tanques do Centro Nacional de Pesquisa, Conservação e Manejo de Mamíferos Aquáticos (CMA) do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama), na ilha de Itamaracá, em Pernambuco. Nessa época, deveria ter 1 ano e meio. Encontrado meses antes em um lago próximo à foz do rio Oiapoque - daí seu nome -, tinha um ferimento nas deira, causado por arpão. Recuperou-se rapidamente, mas permaneceu em cativeiro para que pudesse escapar de outras investidas de caçadores. Está lá até hoje, com outros oito peixes-boi. Esse animal sempre chamou a atenção dos pesquisadores - e não só por nadar de um lado para o outro quase 48 ■ ABRIL DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 122

sem parar. Com couro áspero e unhas nas nadadeiras, características da espécie de peixe-boi marinha {Trichechus manatus), Poque tem também manchas brancas no peito e cor menos escura e mais acinzentada, marcas da espécie que habita os rios da bacia amazônica (Trichechus inunguis). Seu peso (205 quilos) e comprimento (pouco mais de 2 metros) são menores que o esperado ainda intrigante é que, apesar de diversas tentativas de cruzamento, jamais conseguiu engravidar uma fêmea. "Poque era uma grande interrogação", conveterinária da Fundação de Mamíferos Aquáticos (FMA), que atua em parceria com o CMA em projetos de preservação do peixe-boi. "Achávamos que ele poderia ser uma mistura das duas espécies", A suspeita se confirmou com um estudo coordenado por Fabrício Rodrigues dos Santos, da Universidade

Federal de Minas Gerais (UFMG), publicado na Molecular Ecology. A equipe de Santos analisou o DNA das mitocôndrias, um compartimento da célula que conserva energia e contém as in-

da célula e identificou alelos, como são chamados os genes que ocupam o mesmo lugar em cromossomos homólogos, tanto da espécie marinha quanto da amazônica. Por fim, descobriu que Poque tem 50 cromossomos. Os parentes dele que vivem nos rios têm 56; os do mar, 48. Se ainda havia dúvidas, elas desapareceram: Poque é mesmo resultado do cruzamento do peixe-boi marinho com o amazônico - o chamado híbrido. Trata-se da mesma situação verificada quando a égua cruza com o jumento, tendo como filhote uma mula ou um burro. "Ele provavelmente é um híbrido de segunda geração, filho de uma fêmea também híbrida", afirma Santos,


Outra desvantagem: o peixe-boi marinho (na página ao lado) apresenta uma diversidade genética bem mais baixa que o amazônico

que anos atrás já havia atestado a endogamia - o cruzamento entre parentes próximos - na espécie marinha, que pode levar a filhotes pouco saudáveis. "As conseqüências dessa nova realidade são catastróficas, porque provavelmente todos os híbridos machos e a maior parte das fêmeas com essa herança são estéreis." Segundo ele, o cenário é grave também porque as duas espécies correm riscos de extinção - a situação do peixe-boi marinho é ainda mais crítica. Calcula-se que na costa brasileira existam apenas 500 representantes da espécie. No litoral dos estados da Bahia e do Espírito Santo, onde aparecia até a década de 1960, esse mamífero aquático e herbívoro, que se alimenta do capimagulha que cresce perto das praias, já não pode mais ser encontrado: foi eliminado pela caça predatória. Curiosamente, as duas espécies se encontram de forma natural, sem relação com a caça ou a possível fuga dos animais dos mares para os rios, em

busca de proteção contra a perseguição humana. Ainda que seja natural do mar, o Trichechus manatus não consegue beber a água do mar e mata a sede com a água dos rios. Essa espécie de peixe-boi é capaz de entrar até 200 quilômetros no rio - quando pode, então, cruzar com a espécie amazônica. "A solução é preservar as espécies em cativeiro, principalmente a marinha, e estimular o acasalamento", propõe Santos. Sua equipe analisou amostras de material genético de outros 49 animais, que viviam no Brasil e nas Guianas. O hibridismo foi detectado em sete delas (quase 15% do total). Um filhote a cada quatro anos - Outra característica marcante do peixeboi amazônico, em relação à espécie marinha, é a elevada diversidade genética - quando a seqüência de genes é diferente de um animal para outro, mas sem incorporar informações de outra espécie, de acordo com um estudo da

Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Segundo Izeni Pires Farias, professora da UFAM e uma das autoras de outro estudo com essas conclusões também publicado na Molecular Ecology, essa diversidade genética - da ordem de 80 a 90% - pode ser vista como uma vantagem, por estar relacionada a uma melhor resistência a doenças e a uma melhor adaptação a mudanças no ambiente. Já o peixe-boi marinho exibe uma baixa diversidade, próxima a 50%, que pode favorecer a endogamia, debilitar a resistência a doenças e reduzir a capacidade de responder a mudanças ambientais. "O peixe-boi marinho perdeu a diversidade genética natural, pois sua população foi brutalmente reduzida ao longo das gerações", diz Izeni. "Com o hibridismo e a esterilidade", diz Fabrício Santos, "as chances de reprodução se tornam ainda menores". Esses animais se reproduzem a cada quatro anos

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O CIÊNCIA GEOLOGIA

Há 630 milhões de anos cadeia de altas montanhas dominava a paisagem hoje plana de Goiás e Minas

RICARDO ZORZETTO

olhar não tem onde se encostar em meio a terras tão planas. Plantações de cana-de-açúcar e soja ou pastagens com gado esparso se estendem por quilômetros e quilômetros na região central do Brasil, cuja monotonia só é quebrada por umas poucas árvores tortuosas típicas do Cerrado. Bem mais altos e solenes, erguem-se aqui e ali palmeiras com folhas espalmadas e pesados cachos de cocos - são os buritizeiros, árvore símbolo da capital do país. Milhões de anos atrás, porém, a paisagem por aqui era inóspita. Onde hoje se assenta esse planalto havia uma extensa cadeia de montanhas com até 8 mil metros de rochas cobertas apenas por liquens ou neve. Era o Himalaia brasileiro, que se alongava por quase 1.500 quilômetros, do sul do atual estado de Tocantins ao sul de Minas Gerais. Quem viaja por esses estados só encontra morros com algumas centenas de metros: chuva, vento e fraturas naturais consumiram a imensa massa de granito ao longo de 630 milhões de anos. Mas do maciço rochoso restaram resquícios a partir dos quais geólogos de São Paulo e de Brasília estão reconstruindo a história geológica do Centro-Oeste do país. Os blocos sólidos que compuseram essa imponente cadeia de serras muito antes de os continentes assumirem a forma atual encontram-se pulverizados ao longo de centenas de quilômetros em Minas Gerais e Goiás, misturados à terra vermelha que tinge o céu de castanho antes das tempestades. 50 ■ ABRIL DE 2006 • PESQUISA FAPESP 122


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Nem tudo virou pó. As equipes dos geólogos Renato Moraes e Mario da Costa Campos Neto, da Universidade de São Paulo (USP), e de Reinhardt Fuck, da Universidade de Brasília (UnB), encontraram em Goiás e Minas testemunhas desse remoto Himalaia do Novo Mundo. São os granulitos, rochas cuja cor varia do creme ao verde-azulado, salpicados de grãos caramelo-escuro. Sob o microscópio vêem-se os cristais de quatro minerais - quartzo, feldspato, granada e piroxênio. Os granulitos formam-se somente em regiões abaixo da superfície terrestre sujeitas a temperaturas elevadas, da ordem de 800°C e a pressões altíssimas, milhares de vezes superiores à que os seres humanos suportam no dia-a-dia. Segundo Campos Neto, que desde 1995 estuda os granulitos do sul de Minas, essas condições de alta pressão ou alta temperatura geralmente ocorrem em trechos bem profundos da crosta terrestre. "Essas rochas estiveram na raiz dessa cadeia de montanhas", comenta ele. Montanhas em crescimento - Peculiaridades da composição mineral revelam que os granulitos do Centro-Oeste formaram-se entre 40 e 60 quilômetros abaixo da superfície. Resultam da recombinação de seus componentes essen52 ■ ABRIL DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 122

Os efeitos do tempo: chuva, vento e fraturas corroeram uma cordilheira como o Himalaia (acima)...

ciais, como silício, cálcio, potássio, magnésio e ferro, que se reagrupam em proporções diferentes, originando compostos mais estáveis. Só afloraram no norte de Goiás e no sul de Minas por causa da constante e lenta movimentação das gigantescas placas rochosas que formam os continentes e o assoalho dos oceanos. As placas continentais colidem ao deslizar sobre o manto, camada mais quente e pastosa que a crosta. Em conseqüência, uma placa pode provocar o enrugamento daquela com que colidiu. Em um tempo relativamente curto, estimado em poucas dezenas de milhões de anos, à medida que uma placa comprime a outra e amplia o enrugamento, pode surgir uma cadeia de montanhas como o atual Himalaia, a cordilheira de 2.500 quilômetros no sudoeste asiático que abriga os picos mais altos do mundo - o Everest, com 8.848 metros, e o K2, com 8.611 metros. Uma placa continental pode também pressionar o assoalho de um oceano. Neste caso, a camada de rochas sob o mar normalmente mergulha sob a placa, levantando cordilheiras como os Andes,

uma cordilheira bem mais jovem, que costeia o oeste da América do Sul. Provavelmente foi esse segundo mecanismo - o mergulho do assoalho oceânico sob a placa, também chamado de subducção - que começou a erguer o Himalaia brasileiro há 700 milhões de anos. Naquela época os continentes não existiam como se conhecem hoje: estavam todos reunidos em um megacontinente - a Rodínia ou Terra-mãe, em russo - que se encontrava próximo ao pólo Sul e naquela época começava a se esfacelar. Nessa separação, o sólido bloco continental sobre o qual atualmente se assenta parte do Nordeste brasileiro, o cráton do São Francisco, encontrava-se conectado ao que hoje é a Namíbia e o deserto de Kalahari, no sul da África. O afastamento dessas placas empurrou o cráton do São Francisco contra o assoalho de um oceano primitivo chamado Goianides, descrito por Campos Neto e pelo geólogo francês Renaud Caby, da Universidade Montpelier II, em artigos publicados na Precambrian Research em 1999 e na Tectonics em 2000. Conforme penetravam sob as bordas do cráton, as rochas do oceano atingiam regiões próximas ao manto, tornavam-se pastosas e seus componentes químicos passavam a se recombinar em compostos mais estáveis, formando novos minerais.


Nesse mergulho rumo ao centro da Terra parte desses minerais é arrastada de volta em direção à superfície ou expulsa por entre as fraturas de rochas para regiões menos quentes ou de menor pressão. Desse modo, resfria-se rapidamente e preserva na forma de cristais registros da profundidade que atingiram. Cristais de cianita - mineral formado por alumínio e silício - revelaram a Campos Neto que os granulitos encontrados com facilidade entre as cidades mineiras de Três Pontas e Pouso Alto provavelmente se formaram em uma região muito profunda da crosta. Incolor ao microscópio e azul-claro em quantidades macroscópicas, a cianita desses granulitos deve ter se formado a quase 60 quilômetros abaixo da superfície, sob uma pressão de 13 mil a 17 mil vezes maior que a da atmosfera e a temperaturas que podem ter variado de 750 a 900°C. Rocha intrigante - Já na região central de Goiás os granulitos contêm safirina, mineral de um azul-água exuberante, formado por silício, alumínio e magnésio. Os granulitos dali se formaram a 40 quilômetros de profundidade, mas sob temperaturas bem mais elevadas: entre 1.000 e 1.100 °C, consideradas anormais até mesmo pelos geólo-

gos. "Essa descoberta é perturbadora", diz Moraes, que descreveu o achado no Journal ofPetrology em 2002 e em dois artigos no Journal ofMetamorphic Geology, o mais recente deles publicado no ano passado. "Ainda não sabemos explicar ao certo por que essas rochas se formaram a temperaturas tão elevadas." Moraes começou a investigar esse tipo de rocha em 1995 durante seu doutoramento sob a orientação de Reinhardt Fuck, da UnB. Em viagens pela região O PROJETO O papel dos líquidos silicáticos na evolução de rochas de alto grau da faixa Brasília MODALIDADE Linha Regular de Auxílio à Pesquisa

COORDENADOR RENATO DE MORAES

- USP

INVESTIMENTO R$ 114.356,50 (FAPESP)

de Goianésia encontrou afloramentos bastante esparsos, distantes dezenas de quilômetros uns dos outros, alguns com o tamanho de uma sala com 5 metros de comprimento por 5 de largura e 3 de altura. A golpes de marreta extraiu centenas de amostras com o tamanho aproximado de um punho fechado, semelhantes às que encontrou anos mais tarde na região de Inhumas, já próximo a Goiânia. Em uma temporada em que trabalhou com a equipe de Rudolph Trouw, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Moraes conheceu os afloramentos de granulito do sul de Minas, por onde já andava Campos Neto. Contratado pela USP em 2003, Moraes se aproximou de Campos Neto. Algumas vezes por ano ambos seguem com seus alunos em excursões para coletar mais amostras de granulito em Minas e Goiás. "Queremos conhecer melhor a estrutura dessa cadeia de montanhas", afirma Moraes. O Himalaia goianomineiro pode não ter sido o único a serpentear pelas terras que hoje formam o Brasil. "Muito antes, por volta de 2 bilhões de anos atrás, aparentemente existiram cadeias montanhosas bastante elevadas na região da atual Amazônia e do Nordeste", conta Campos Neto. É uma outra história. • PESQUISA FAPESP 122 ■ ABRIL DE 2006 ■ 53


©CIÊNCIA FÍSICA

Colméias de carbono Debruçado sobre uma bancada de fórmica branca, o físico peruano Juan Medina Pantoja cola uma fita adesiva em uma das faces de um bloco prateado quadrado menor que a unha do polegar. O material entre seus dedos é uma amostra de grafite ultrapura, que apenas sob certas condições comporta-se como metal. Produzida a temperaturas altíssimas, próximas às encontradas nas regiões mais profundas do planeta, essa é a grafite pirolítica altamente orientada, assim chamada por causa de sua estrutura: os átomos de carbono arranjam-se em hexágonos regulares como os favos de uma colméia e formam camadas com um átomo de espessura, as folhas de grafeno, que se sobrepõem umas às outras. Camadas mais finas - Medina puxa lentamente a fita e descola uma película de grafite com umas poucas camadas de grafeno. Em seguida, cola essa amostra entre duas lâminas de vidro que secarão sob uma luz muito forte. Foi mais ou menos assim, no início deste ano, que ele verificou que talvez seja possível reduzir ainda mais a espessura das amostras de grafite. "A essa temperatura, os átomos de carbono começam a se desprender da grafite e a combinar com o oxigênio do ar, formando gás carbônico", explica o físico Yakov Kopelevich, coordenador do laboratório do Instituto de Física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em que Medina pesquisa. Ao acrescentar a etapa de secagem, Kopelevich e Medina acreditam ter encontrado uma forma de obter lâminas de grafite ainda mais finas que as obtidas apenas com o uso da fita adesiva. Condutor ou isolante - Os avanços dessa equipe não se restringem a essa refinada colagem. Como resultado das pesquisas que contaram com R$ 1 milhão da FAPESP e do Conselho Na-

54 ■ ABRIL DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 122

cional de Pesquisa e Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Kopelevich e dois alunos, Medina e Robson Ricardo da Silva, identificaram propriedades elétricas e magnéticas que jamais se imaginou que a grafite pudesse apresentar - e ajudam a compreender por que a grafite pode se comportar ora como um metal e conduzir eletricidade, ora como um material isolante. Efeito Hall Uma dessas propriedades é o chamado Efeito Hall Quântico, que coordena o movimento de partículas eletricamente carregadas - no caso da grafite, os elétrons - em superfícies planas. Descoberto por Klaus von Klitzing, físico do Instituto Max Planck que recebeu o Nobel em 1985 por causa desse achado, esse efeito é a versão para o mundo microscópico de um fenômeno identificado um século antes pelo físico norte-americano Edwin Hall. Hall observou o efeito que leva seu nome ao aplicar um campo magnético a uma barra condutora atravessada por uma corrente elétrica. O campo magnético, perpendicular à corrente, causa um desvio na trajetória dos elétrons, que se acumulam em uma das extremidades da barra, gerando um campo elétrico na direção transversal à da corrente. Resistência variável - Hall reuniu esses conceitos, bastante abstratos para a maioria das pessoas, em uma equação de apenas três termos que prevê como varia a capacidade de um material conduzir corrente elétrica à medida que se altera a intensidade do campo magnético. Usada pelos físicos na investigação das propriedades elétricas e magnéticas de metais ou semicondutores, essa equação mostra que a resistência Hall cresce de modo contínuo com o campo magnético. Mas esse fenômeno só vale para objetos macroscópicos nos quais as partículas eletricamente car-


Cinco séculos após sua descoberta, a grafite surpreende os físicos com propriedades elétricas e magnéticas incomuns

regadas se movimentam nas três dimensões - profundidade, largura e altura. No mundo das partículas, regido pelas leis da física quântica, pouco compreendidas até mesmo pelos especialistas, tudo é diferente. Aos saltos - Quando os físicos submetem um material qualquer a temperaturas baixas e a um campo magnético, o aumento da intensidade desse campo faz a resistência Hall crescer em saltos proporcionais, permanecendo constante entre um aumento e outro. Esse fenômeno toma a forma de gráficos que lembram lances de uma escada intercalados por patamares. Foi esse padrão de aumento da resistência Hall em conseqüência da variação do campo magnético que a equipe de Kopelevich detectou na grafite e detalhou em um artigo publicado em 2003 na Physical Review Letters. "A resistência à passagem de corrente elétrica entre uma folha e outra de grafeno é 100 mil vezes superior à resistência ao longo do plano", diz Kopelevich, que há 13 anos trocou seu trabalho no Instituto Físico-Técnico de A. F. Ioffe, na gélida São Petersburgo, na Rússia, pelo calor abafado de Campinas. Nem mesmo os físicos, que duas décadas atrás imaginavam já ter descoberto tudo sobre a grafite, esperavam esses resultados. "É surpreendente que o Efeito Hall Quântico tenha sido observado na grafite", comenta Douglas Galvão, da Unicamp, que estuda as propriedades de outro material composto de carbono, os nanotubos, formados por folhas de grafeno enroladas. Mistério - Ainda não se sabe ao certo por que o Efeito Hall Quântico, antes observado no silício e em outros materiais semicondutores, também ocorre na grafite submetida a temperaturas de cerca de 200° Celsius negativos e a campos magnéticos razoavelmente intensos. Uma explicação provém da própria es-

trutura atômica do grafeno, cujos elétrons, nessas condições, só podem se movimentar em duas dimensões. Os elétrons responsáveis pela condução da corrente elétrica localizam-se ligeiramente acima e abaixo do plano dos átomos de carbono, situados nos vértices dos hexágonos e unidos uns aos outros pela interação entre os demais elétrons. Na grafite, as folhas de grafeno são fracamente unidas umas às outras - eis por que se desprendem facilmente e deixam um traço acinzentado quando um prosaico lápis corre sobre o papel. Supercondutividade - Em outro artigo da Physical Review Letters, Kopelevich e Igor Luk'yanchuk, da Universidade de Picardie Jules Verne, na França, descobriram outra propriedade da grafite. Variando a intensidade do campo magnético, constataram que os elétrons livres desse material exibem um comportamento atípico, descrito por equações da física quântica criadas em 1928 pelo físico inglês Paul Dirac: esses elétrons movemse como partículas sem massa, de modo semelhante às partículas de luz, os fótons. Em 2005 André Geim, na Inglaterra, e Philip Kim, nos Estados Unidos, viram em folhas de grafeno esse mesmo efeito. Os resultados obtidos pela equipe da Unicamp e publicados em 2003 também indicam a relação entre Efeito Hall Quântico e supercondutividade. Como um ímã - De fato, Kopelevich, Sérgio Moehlecke, José Henrique Spahn Torres e Vladislav Lemanov haviam descrito a supercondutividade na grafite pura seis anos antes na Physics of the Solid State. Esse efeito precisa ser confirmado, mas reitera a possibilidade de que esse material possa ganhar outras aplicações tecnológicas: Kopelevich também verificou que a grafite, em condições específicas, pode funcionar como um ímã. • RICARDO ZORZETTO

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Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org

Notícias A coleção SciELO Brasil ultrapassou a marca de 150 periódicos científicos disponíveis, com a incorporação de 12 novos títulos. Foram incluídas publicações de diversas áreas temáticas - como saúde, educação, ambiente, história e economia -, aumentando a abrangência da coleção e as opções para o usuário. Dentre os títulos incorporados recentemente à coleção, pode-se citar: História (São Paulo), Revista Dental Press de Ortodontia e Ortopedia Facial e Economia Aplicada. Estima-se que, ao longo de 2006, a coleção disponibilizará entre 170 e 180 títulos de periódicos científicos brasileiros.

■ Sociologia

Delinqüência juvenil "Os jovens que se envolvem em infrações graves na cidade de São Paulo chamam a atenção pela crueldade com que praticam seus atos", afirma Antônio Sérgio Spagnol, doutor em sociologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo, em seu artigo "Jovens delinqüentes paulistanos". A partir de uma pesquisa de campo realizada na capital paulista entre 1999 e 2002, o autor levanta questões relativas ao comportamento desses jovens, além de esclarecer a relação entre o envolvimento dos representantes das classes média e média alta na prática de homicídios. A pesquisa incluiu entrevistas com os internos na Febem do Tatuapé, em São Paulo. A primeira causa de mortalidade entre os jovens na faixa de 15 a 24 anos é o homicídio. Além disso, o número de jovens que morrem assassinados no Brasil, segundo a Polícia Militar, é quase sete vezes maior do que o número de vítimas de homicídios na população total. Na Região Metropolitana de São Paulo, 42% dos jovens afirmaram já ter visto pessoalmente alguém assassinado e, em cada três jovens, um já foi assaltado. O autor diz que o modo de inserção social dos jovens de diferentes grupos em São Paulo pode ser distinto, mas há uma marca em todos eles: o uso da violência como forma de expressão. As explicações para isso seguem várias direções, passando pela delinqüência, a exclusão social, a cultura adolescente, as gangues de rua e até o crime organizado. TEMPO SOCIAL NOV.

- VOL. 17 - N° 2 - SãO PAULO -

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medidas específicas que evitem a contaminação desses vegetais. Essa é a principal conclusão do artigo "Qualidade parasitológica e condições higiênico-sanitárias de hortaliças comercializadas na cidade de Florianópolis", de Bolívar Soares e Geny Aparecida Cantos, ambos da Universidade Federal de Santa Catarina. "A ingestão de verduras cruas constitui importante meio de transmissão de parasitas intestinais", alertam os autores. O estudo avaliou a presença de formas transmissíveis em três tipos de hortaliças, a rúcula, o agrião e a alface-crespa, comercializadas em cinco pontos-de-venda da cidade no período de junho de 2003 a maio de 2004. As hortaliças in natura foram lavadas com água e esta foi submetida ao método de sedimentação. Simultaneamente à pesquisa laboratorial, foram avaliadas as condições de cultivo e manipulação de diferentes produtores agrícolas que forneciam as hortaliças. A análise parasitológica mostrou alta freqüência de parasitas intestinais na grande maioria das amostras analisadas. REVISTA BRASILEIRA DE EPIDEMIOLOGIA N° 4 - SãO PAULO - DEZ. 2005

- VOL. 8

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415790X2005000400006&lnq=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Saúde

Salto com consciência

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010320702005000200012&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Parasitologia

Hortaliças contaminadas As hortaliças comercializadas em Florianópolis (SC) têm relevante papel na transmissão de enfermidades intestinais e são necessárias

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O artigo "Alterações oculares associadas ao bungee jutnping" descreve um caso de diminuição da acuidade visual após a prática do esporte. A justificativa dos autores José Diniz, Tiago Faria, Roberta Urbano, Diana Danda e Denízio Almeida, todos pesquisadores da Fundação Altino Ventura, no Recife (PE), é que, em razão da popularização do bungee jutnping, vem se observando aumento na ocorrência de lesões oculares associadas a sua prática. O bungee jumping surgiu em ilhas do Pacífico Sul e foi in-


traduzido no mundo ocidental em 1955, quando uma equipe da National Geographic aprendeu a prática com nativos dessas ilhas. O estudo apresenta o caso de um paciente do sexo feminino, sem histórico de doença ocular, que chega à consulta de emergência oftalmológica com queixa de baixa da acuidade visual após praticar o esporte. Durante o exame oftalmológico inicial, a paciente apresentou hemorragias em ambos os olhos. Avaliada após 14 semanas, ela evoluiu clinicamente com melhora da visão, mas permaneceu com queixa de alterações campimétricas mesmo cinco meses após o evento inicial. Segundo alertam os especialistas, existem outros relatos na literatura de casos de lesões oculares associadas à prática desse esporte envolvendo desde hemorragia subconjuntival até hemorragias retinianas e edema macular, causando redução temporária e, em alguns casos, permanente da acuidade visual. "Na literatura, há descrição de recuperação visual na maioria dos casos, porém há relato de dois casos onde houve apenas recuperação parcial da acuidade visual", afirmam. O estudo mostra que as lesões estão relacionadas a um rápido aumento da pressão intravascular nas porções superiores do corpo, devido à gravidade, e com a súbita desaceleração que ocorre no final da queda do indivíduo. Durante o salto, o aumento súbito da pressão intratorácica causa um aumento repentino da pressão venosa nos olhos. ARQUIVOS BRASILEIROS DE OFTALMOLOGIA

- VOL. 68 - N°

6 - SãO PAULO - NOV./DEZ. 2005 www.se ielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S000427492005000600027&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

Economia

Alocações ineficientes O estudo "Sobre a inexistente relação entre política industrial e comércio exterior", de Pedro Cavalcanti Ferreira, da Escola de Pós-Graduação em Economia da Fundação Getúlio Vargas, busca discutir a política industrial brasileira, centrando em argumentos encontrados no debate de crescimento e de apoio à indústria no Brasil. Mais especificamente, o artigo investiga possíveis elos entre política industrial e comércio exterior. "Ao contrário do que se encontra na literatura internacional, em nosso país a defesa da intervenção governamental para promoção da atividade industrial está, via de regra, associada à necessidade de melhoria de nossas contas externas", explica Ferreira. O artigo propõe uma política industrial com um sentido clássico e restrita a políticas setoriais, de modo a corrigir falhas de mercado que implicam produção privada ineficiente. Exemplos tradicionais dessas falhas seriam economias externas, falhas de coordenação e informação assimétrica. A necessidade de políticas agressivas de promoção de exportações parece hoje quase uma unanimidade entre economistas, empresários e políticos. Entretanto, as bases teóricas utilizadas em sua defesa

são bastante frágeis, mostra o estudo. Mais problemático ainda é o fato de que toda esta argumentação não leva em conta aspectos macroeconômicos que inviabilizam os resultados esperados dessas políticas, o que justifica a necessidade de intervenção governamental, principalmente devido a fatores de aprendizado. "É questionável a capacidade do governo de escolher os setores certos que serão competitivos no futuro desde que recebam apoio presente", afirma Ferreira. ECONOMIA APLICADA DEZ.

- VOL. 9 - N° 4 - RIBEIRãO PRETO -

2005

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=Sl41380502005000400001&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Pedagogia

Complexidade humana Analisar o processo de formação e desenvolvimento humano, tendo como ponto de partida conceitos da pedagogia humanista, é a proposta do estudo "Educação, desenvolvimento humano e cosmos", de Maurício Mogilka, da Universidade do Estado da Bahia. As reflexões do artigo se baseiam em algumas idéias da pedagogia humanista, especialmente no pensamento de Jean-Jacques Rousseau (retrato acima), Carl Rogers e John Dewey. O autor resgata importantes contribuições desses três pensadores sobre o desenvolvimento humano. "A idéia é demonstrar a necessidade de superar algumas contradições nas idéias desses autores, de modo a radicalizar uma compreensão interacionista sobre o tema. Ao radicalizarmos o interacionismo, podemos exercitar uma compreensão complexa de ser humano, que o enxerga como um ser afetivo, político e cósmico, simultaneamente", articula Mogilka. Assim, continua o autor, o organismo humano passa a ser entendido em sua unidade interna, em seu escopo social e em sua ligação com o cosmos, dimensões imprescindíveis para uma compreensão não fragmentária do desenvolvimento humano. No pensamento de Carl Rogers, por exemplo, o estudo mostra a existência de uma base orgânica para o processo de valores, sendo que esses não são exclusivamente culturais. "Essa base orgânica para a elaboração dos valores é tão mais eficaz quanto mais a pessoa é aberta às suas próprias experiências", conta. EDUCAçãO E PESQUISA SET./DEZ.

- VOL. 31

3 - SãO PAULO

2005

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid = S151797022005000300003&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

PESQUISA FAPESP 122 • ABRIL DE 2006 ■ 57


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■ Digitais e nanofibras As impressões digitais, conhecidas como instrumento de identificação pessoal, foram fundamentais no desenvolvimento de uma nova técnica de fabricação de nanofibras com potencial para aplicação em lesões, administração de medicamentos, ensaios biológicos e outras aplicações médicas. A novidade foi apresentada por pesquisadores da Universidade do Estado da Pensilvânia, nos Estados Unidos. As nanofibras são feitas a partir do ingrediente básico de muitas colas ou supercolas, o cianoacrilato, um material biologicamente compatível. A descoberta de que a mesma substância poderia ser usada para criar um novo material de uso para a nanotecnologia aconteceu durante uma investigação forense. Para poder descobrir quem manuseou uma arma ou mexeu na ma-

Por dentro da fibra óptica Componentes eletrônicos, incluindo um transistor, foram construídos no interior de fibras ópticas por pesquisadores da Universidade do estado da Pensilvânia, nos Estados Unidos, e da Universidade de Southampton, no Reino Unido. O novo dispositivo é a base para uma tecnologia que poderá permitir a

caneta de uma porta que fazem parte da cena de um crime, por exemplo, os pesquisadores forenses empregam vapores de cianoacrilato, que formam um resíduo de polímero branco que deixa visíveis os sulcos das impressões digitais. A idéia de usar o mesmo sistema na produção de nanofibras aconteceu durante

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criação de vários componentes dentro de fibras ópticas. Ele traz a possibilidade de novos arranjos eletrônicos para todo tipo de equipamento, do tocador de MP3 a um computador. O "pulo do gato" dessa descoberta foi a habilidade de formar semicondutores cristalinos que preenchem quase comple-

a investigação de um caso. Um investigador deixou acidentalmente suas impressões digitais em um dos equipamentos utilizados na investigação que tinha vestígios de cola à base de cianoacrilato. Após algum tempo, na marca do dedo, surgiram as nanofibras e o interesse dos pesquisadores em estudar o processo. •

ertamente o diâmetro inter>pno, ou poro, das fibras óp ticas, tubos longos e transparentes que transmitem sinais luminosos de vários comprimentos de onda simultaneamente. Quando o tubo é preenchido com um semicondutor cristalino como o germânio, forma-se um fio no interior da fibra óptica. •

■ Chips mais velozes Conexões ópticas substituem os fios de cobre no interior dos chips e aumentam a velocidade de transmissão de informações. Para desenvolver a tecnologia, a empresa japonesa NEC utilizou um sistema de multiplexação por divisão do comprimento de onda da luz, em que é possível concentrar um gigantesco volume de dados em um fio óptico que mede menos de 1 micrômetro (a milionésima parte do metro). Os equipamentos usados para converter o sinal eletrônico em óptico, que têm o tamanho de amplificadores de som, foram miniaturizados. Outra inovação que garante sobrevida aos chips atuais foi criada pela IBM e diz respeito ao processo de gravação, feito por laser. No caso, os pesquisadores usaram


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na lente de gravação um outro tipo de quartzo e líquidos de imersão com propriedades refratárias muito superiores às dos materiais utilizados. A nova tecnologia vai permitir criar chips com fios de apenas 29,9 nanômetros (1 nanômetro é igual a 1 milímetro dividido por 1 milhão) de espessura, ou pelo menos três vezes mais finos do que os atuais, capazes de armazenar mais dados. •

■ Nanotubos nas baterias Celulares, automóveis, lanternas e aparelhos de som po-

derão se beneficiar com as baterias desenvolvidas por pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Massachu-

setts (MIT), dos Estados Unidos. A equipe do professor Joel Schindall, do Laboratório de Sistemas Eletromag-

néticos e Elétricos, está usando nanotubos de carbono para melhorar o armazenamento de energia nas pilhas. Com esses tubos nanométricos formados por uma folha enrolada com apenas uma camada de átomos de carbono, eles conseguiram produzir baterias que recarregam rapidamente, possuem grande capacidade de estocagem e de potência, além de serem longevas. Os nanotubos possuem superfície extremamente porosa e conforme a disposição dos átomos eles podem ter ou não condutividade elétrica. •

Vistos em detalhes resina tecnologia médica usada para obter imagens de tumores no cérebro e examinar os ligamentos do joelho está levando o campo da biologia marinha para uma nova dimensão. Qualquer pessoa com acesso à internet dentro em breve será capaz de ver peixes nos mínimos detalhes com a criação de um catálogo on-line com imagens de ressonância magnética em alta resolução e em três dimensões, por pesquisadores do Centro Keck para

Imagens de Ressonância Magnética Funcional e do Instituto de Oceanografia Scripps, ambos da Universidade da Califórnia, em San Diego, nos Estados Uni-

dos. A coleção de Marinhos Vertebrados Scripps encontra-se entre as maiores e mais abrangentes, com cerca de 90% de todas as conhecidas famílias de pei-

xes. O projeto usa imagens digitais para mostrar o interior de peixes vertebrados sem destruir preciosos espécimes. Ele é financiado pela Fundação Nacional de Ciência, NSF na sigla em inglês. Serão feitas imagens de anatomias internas de uma grande gama de peixes, permitindo comparações dos músculos de um habitante do fundo do mar que migra regularmente para a superfície com aqueles que permanecem em altas profundidades. •

PESQUISA FAPESP 122 ■ ABRIL DE 2006 ■ 59


Software para laptop Pesquisadores brasileiros já estão engajados na produção de softwares para o laptop popular de US$ 100 idealizado no Laboratório de Mídia do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos, e que deve ter o protótipo industrial apresentado em abril. A idéia é tornar o computador mais acessível para crianças de países em desenvolvimento. "O projeto recebe contribuições de muitos países", diz a professora Roseli de Deus Lopes, do Laboratório de Sistemas Integráveis da Escola Politécnica (Poli) da Universidade de São Paulo

(USP). A Poli-USP, a Fundação Centros de Referência em Tecnologias Inovadoras (Certi), de Florianópolis (SC), e o Centro de Pesquisas Renato Archer (Cenpra), em Campinas (SP), estão avaliando a idéia do laptop para o governo brasileiro e desenvolvendo programas. "O sistema será o , Linux (sistema operacional gratuito) e nós vamos incentivar outros grupos para colaborar no projeto." O laptop terá 1 gigabyte de memória e funcionará com eletricidade e pilhas ou ainda com uma manivela, por dez minutos. •

Ao custo de US$ 100, computador vai funcionar com eletricidade, pilhas e manivela

Linha de Produção

Brasil

■ Inscrições para o Prêmio Finep As inscrições para o Prêmio Finep de Inovação Tecnológica 2006 podem ser feitas até 30 de junho em sete categorias: Produto, Processo, Pequena Empresa, Média/Grande Empresa, Instituição de Ciência e Tecnologia, Inventor Inovador e Inovação Social. Poderão participar em-

presas e instituições públicas ou privadas que tenham introduzido novos conceitos na geração, absorção e uso das tecnologias de processos e produtos. A premiação será feita em duas etapas: regional, em cada uma das cinco regiões brasileiras, e nacional. O projeto classificado em primeiro lugar nas etapas regionais concorre ao prêmio nacional. •

60 ■ ABRIL DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 122

■ Compartilhando equipamentos Uma transmissão a laser entre dois laboratórios da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o Laboratório de Comunicações Ópticas (LCO) do Instituto de Física e o Laboratório Avançado de Comunicações Ópticas e Móveis (Lapcom) da Faculdade de Engenharia Elétrica, demons-

trou que é possível compartilhar equipamentos a distância no mesmo campus. Chamada de experimento geograficamente distribuído, a viagem do sinal que voltou ao local de origem em seguida evidenciou a possibilidade de compartilhamento de equipamentos. "Testei o sinal de um amplificador de sinais (usado em sistemas de telecomunicações via fibra óptica) do meu laboratório com um analisador de espectro óptico mais moderno e caro existente no LCO", conta Cristiano Gallep, pesquisador do Lapcom. Esses equipamentos são muito sensíveis e não podem ser deslocados. O experimento foi objeto de um artigo na revista Optics Express (20 de fevereiro) da Optical Society of Ame-


das entre pequenos canais de água - está o onipresente IAC 572, que também no Brasil é o principal porta-enxerto de videira usado em áreas cálidas.»

rica (OSA) e transformou-se no primeiro trabalho científico do projeto KyaTera, do Programa Tecnologia da Informação no Desenvolvimento da Internet Avançada (Tidia) financiado pela FAPESP. •

■ Turfa para cogumelos

■ Água limpa com ultravioleta Um esterilizador de água de baixo custo composto de tubulações simples, pequenas bombas de circulação de água e uma lâmpada de radiação ultravioleta foi desenvolvido

Cogumelo-do-sol: cobertura com matéria orgânica Colonização e Reforma Agrária (Incra) com recursos do Programa Fome Zero e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). •

■ Cavalo na Tailândia

Esterilizador barato

Em fevereiro, os pesquisadores Jorge Tonietto e Umberto Camargo, da Embrapa Uva e Vinho, de Bento Gonçalves (RS), participaram na Índia de um simpósio sobre vitivinicultura tropical, campo em que o Brasil ocupa posição de destaque devido aos progressos obtidos no cultivo da uva destinada a consumo in naturae à fabricação de vinhos e sucos em zonas de clima quen-

te. A segunda escala da viagem incluiu uma visita a vinhedos de outro país asiático, a Tailândia. Ao desembarcarem na região de Hua Hin, cerca de 200 quilômetros distante da capital Bangcoc, tiveram uma surpresa agradável: descobriram que a maior parte das videiras locais usa um porta-enxerto (ou cavalo, no jargão do produtor) desenvolvido pelo Instituto Agronômico de Campinas, o IAC 572, bastante vigoroso e resistente a doenças. "Os tailandeses o chamam simplesmente de porta-enxerto Brasil", diz Camargo. O cavalo forma as raízes que abastecem a planta com os nutrientes do solo. Até nos exóticos vinhedos flutuantes - filas de videiras planta-

Na busca das melhores condições de cultivo para o cogumelo-do-sol (Agaricus brasiliensis) e o champignon (Agaricus brunnescens), pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) avaliaram que a turfa, material que resulta da decomposição lenta da matéria orgânica em regiões alagadas, melhora a produtividade e a qualidade do produto. O material é usado na preparação da camada usada para cobrir o substrato onde cresce o fungo selecionado para produzir os cogumelos. A pesquisa, coordenada pela professora Margarida de Mendonça, do Departamento de Microbiologia e Parasitologia do Centro de Ciências Biológicas da universidade, contribui para o aumento da produção de cogumelos no estado catarinense, que tem também uma das maiores turfeiras do país, em Arroio do Silva. •

pelo estudante Alex Rampozzo, da Faculdade de Engenharia Mecânica da Universidade de Brasília (UnB), para uma escola da cidade goiana de Padre Bernardo. "A caixa-d'água da escola estava infestada por microorganismos e a solução resolveu o problema, conforme mostram os testes realizados", diz a professora Eliana Ramirez Abrahão, da Faculdade de Agronomia e Veterinária e do Instituto de Biologia da UnB. O esterilizador nasceu em um projeto de extensão multidisciplinar com assentados do Instituto Nacional de PESQUISA FAPESP 122 ■ ABRIL DE 2006 ■ 61


CAPA

MARCOS DE OLIVEIRA E

m dos atuais desafios do Brasil é aumentar a oferta de álcool combustível. As soluções englobam desde novas variedades de cana-de-açúcar, incluindo plantas transgênicas, até a simples expansão da área agrícola, além de inovações na linha de produção das usinas. Sinônimo de combustível renovável, que polui menos em comparação com os derivados de petróleo, o etanol voltou a ocupar um lugar de destaque no cenário energético do país e também começou a ser desejado por vários países. No caso brasileiro, os responsáveis pelo renascimento do álcool são os carros bicombustíveis, ou flexfuel, que podem ser reabastecidos com álcool ou gasolina, ou ainda os dois juntos em qualquer proporção. No exterior, durante os últimos meses várias manifestações de governos e de empresas mostraram o potencial A e da tecnologia de produção de etanol. do vieram do presidente norte-americano, George Bush, de editoriais no New York Times e de notícias no jornal inglês Financial Times. Também foram destaque o interesse do milionário Bill (Iates, um dos donos da Microsoft, em produzir etanol e a visita de dois empresários não menos endinheirados, I.arry l'age e Sergei Brin, proprietários do site Google, ao Brasil para conhecer usinas de álcool. ipo, segundo os próprios ireco alio. dos anos 1980 quando o desabasmidor nos cairos a álcool. Com a >s e empresários do setor só pensam em aumentar a produção de álcool. Um aumento nesse sentido, segundo os especialistas, só virá mesmo a curto prazo com a expansão agrícola da cultura e a inauguração de novas usinas. A demanda vai crescer, em pouco tempo, com o aumento da venda de carros bicombustíveis. Em 2003 eles representaram 53% do lotai de automóveis e veículos comerciais leves produzidos. Em fevereiro deste ano a porcen-

sucroalcooleiro no país. Nesse


Novas usinas, variedade mais produtivas e pesquis genética são as soluções para aumentar a oferta de álcoo

/

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Cana nova cresce no município de Ribeirão Preto PESQUISA FAPESP 122 ■ ABRIL DE 2006 ■ 63


Atualmente, dos 15 bilhões de litros de álcool produzidos, o Brasil exporta apenas 3 bilhões. A demanda do mercado externo vai aumentar principalmente pelo alto preço do barril de petróleo e para atender às prerrogativas do Protocolo de Kyoto, em que as nações desenvolvidas terão que reduzir em 5% as emissões de dióxido de carbono (CO2), gás resultante, principalmente, da queima de derivados de petróleo. Conta também o declínio das reservas mundiais de petróleo. "A expectativa de uma demanda de álcool para os mercados interno e externo somente será atendida se houver uma expansão da área plantada de cana-de-açúcar, em regiões tradicionais ou em novas fronteiras", comenta Antônio de Pádua Rodrigues, diretor técnico da União da Agroindústria Canavieira de São Paulo (Única), entidade que reúne os produtores paulistas de cana, álcool e açúcar. A expansão em São Paulo está começando pelo município de Araçatuba, uma área tradicionalmente voltada para a pecuária, que já responde por 20% da produção de cana do estado. Outras áreas de expansão estão no Triângulo Mineiro e nos estados de Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Calcula-se no setor que, entre 2006 e 2010,89 novas usinas serão instaladas no país. Hoje são 300 usinas. Mas existirá terra para se plantar tanta cana e alimentar todas essas usinas? Uma pergunta que pode ser respondida num estudo conduzido pelo professor José Antônio Scaramucci, do Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético (Nipe) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sob a coordenação do professor Rogério Cerqueira Leite e realizado para o Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) e para o Ministério de Ciência e Tecnologia. "Existem no Brasil mais de 90 milhões de hectares (ha) agriculturáveis, sem contar com destruições de áreas de preservação da Amazônia, do Cerrado, do Pantanal e da Mata Atlântica", diz o professor Scaramucci. Em 2004, a área cultivada atingiu 58 milhões de hectares e o Brasil possui no total 851 milhões. Nesse mesmo ano, a cana foi a terceira cultura, com 5,63 milhões de 64 ■ ABRIL DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 122

hectares, bem atrás do milho, com 12,34 milhões e da soja, com 21,54 milhões. "Existe uma faixa entre os estados de Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Goiás, Tocantins, Piauí e leste da Bahia e noroeste de Minas Gerais em que a cana poderia ter boa produtividade." caramucci indica que o Brasil pode aumentar, no período de 20 anos, a produção de cana em 35 milhões de hectares e produzir 100 bilhões de litros de álcool por ano. "Grande parte iria para a exportação." Esses números, segundo o estudo, gerariam 5,3 milhões de empregos, depois de 20 anos, e uma renda de R$ 153 bilhões, valor semelhante ao Produto Interno Bruto (PIB) do estado do Rio de Janeiro. A única região que não aparece no mapa da expansão da lavoura da cana é o Nordeste, mesmo sendo uma tradicional área produtora, principalmente em Pernambuco e Alagoas, na chamada Zona da Mata. Essa área é responsável por 15% da produção do país e tem produtividade de 55 toneladas por hectare (t/ha), enquanto a região centro-sul, que engloba os estados

de São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais, Paraná e Mato Grosso do Sul, concentra 85% da produção sucroalcooleira com 82 t/ha. "Nos últimos anos a seca esteve muito freqüente, ultrapassando o índice histórico", diz Luiz José Oliveira Tavares de Melo, pesquisador da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), participante da Rede Interuniversitária para Desenvolvimento do Setor Sucroalcooleiro (Ridesa), composta também por mais sete universidades federais (Alagoas (Ufal), Goiás (UFG), São Carlos (UFSCar), Viçosa (UFV), Paraná (UFPR), Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e Sergipe (UFS), e responsável por desenvolver novas variedades de cana-de-açúcar. "Outro problema na Zona da Mata é o relevo da região que impede o uso de colhedeira", diz Melo. Em Pernambuco, 75% das terras com cana estão acima dos 12% de declividade de terreno, o que impede a colheita com máquinas. A safra 2005-2006 do estado, que termina agora em abril, deve resultar em 13,5 milhões de toneladas, um resultado 20% menor que o da safra anterior. Esses motivos têm levado os produtores a procurar terras no centro-sul do país para investir em novas plantações.


H

A pesquisa genética e o desenvolvimento de novas variedades de cana-de-açúcar: aumento de produção

Genes no campo - Enquanto novas usinas são construídas, outros flancos estão sendo abertos no âmbito da pesquisa tecnológica. As novidades vêm principalmente dos estudos genéticos, como novas variedades e plantas transgênicas. A notícia mais recente é o depósito de patente de 200 genes identificados em diversas variedades de cana que estão relacionados à produção de sacarose, substância fundamental para fabricar o açúcar e também imprescindível no processo de fermentação, servindo de alimento para a levedura produzir o álcool. Assim, quanto mais sacarose, mais álcool. A identificação dos 200 genes produtores de açúcar foi realizada em um projeto entre o Centro de Tecnologia Canavieira (CTC), a Usina Central de Álcool Lucélia e pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e Unicamp financiados pela FAPESP. O CTC é uma associação civil mantida por 101 usinas independentes e 15 associações de produtores. "Depositamos a patente com os 200 genes em março nos Estados Unidos", diz Glaucia Mendes Souza,

pesquisadora do Instituto de Química da USP e coordenadora do projeto. A identificação desses genes foi realizada com o material resultante do seqüenciamento Sucest, sigla para Sugar Cane ESTs (etiquetas de seqüências expressas, correspondentes ao genoma expresso ou ativo de um organismo), mais conhecido como Genoma Cana, realizado entre 1999 e 2003 por universidades paulistas, pernambucanas e fluminenses. Com isso os pesquisadores conheceram cerca de 90% dos genes da cana, resultando em 43 mil seqüências expressas de genes. "Analisamos 2 mil genes e encontramos esses 200 alvos relacionados ao acúmulo de sacarose na planta", diz Glaucia. A busca desses 200 genes foi realizada em plantas oriundas de variedades comerciais e resultados de cruzamentos entre elas. Além disso, o grupo de pesquisadores analisa genes ancestrais de cana-de-açúcar. "Como as variedades atuais de cana são híbridas, formadas há muitos anos pelas espécies Saccharum spontaneum e Saccharum officinarum, nós também procuramos genes de in-

teresse econômico nessas espécies ancestrais, como num trabalho de arqueologia", diz Glaucia. Alguns dos 200 genes já estão sendo usados para produção de plantas transgênicas mais produtivas em sacarose. "Durante os cruzamentos tradicionais feitos no campo (em que pólen de duas variedades são cruzados para produzir uma terceira variedade), os pesquisadores procuram selecionar plantas com característica de interesse sem conhecimento dos genes. Esse trabalho é muito demorado. Com o conhecimento dos processos moleculares associados às características genéticas podemos escolher variedades bem produtivas de sacarose e introduzir genes relacionados à produção dessa substância que elas não possuem", explica Glaucia. Outra opção é introduzir esses genes em variedades resistentes à seca ou a doenças, mas que não apresentam uma boa produção de açúcar. As plantas transgênicas podem também ter aptidão para outras funções, como resistência a certas doenças e insetos. Mas tudo isso precisa ser testado no campo para verificar se realmente elas vão herdar todas as potencialidades dos genes. Já são milhares de plantas que estão nos laboratórios do CTC, em estufas e salas de cultura. O próximo PESQUISA FAPESP 122 ■ ABRIL DE 2006 ■ 65


passo é fazer experimentos em campo tadas para o campo quando o CTNBio de melhoramento genético da cana-deaçúcar, promovidos pelo CTC, Institusob a autorização da Comissão Técnica teve suas atividades paralisadas para Nacional de Biossegurança (CTNbio). novos estudos sobre suas atribuições. to Agronômico de Campinas (IAC) e a Ridesa, rede que ficou responsável pelo Glaucia acredita que em três anos será "Estávamos com plantas resistentes a herbicidas, a insetos danosos à cultura acervo genético (variedades, pesquisas, possível obter os primeiros resultados. e a doenças. Mas ficamos paralisados laboratórios) do Programa Nacional de Outro perfil da pesquisa biotecnoMelhoramento da Cana-de-Açúcar do lógica com cana é a identificação de por quase cinco anos. Agora já temos indicações de que algumas plantas Instituto do Açúcar e do Álcool extinto marcadores moleculares a partir das seqüências do Sucest que são aquelas de transgênicas que temos aqui podem no início dos anos 1990. A Ridesa, resaumentar em 20% a produção de sacaponsável por quase 60% da produção repetições curtas do genoma, úteis nos estudos de variação genética e identifirose. Mas ainda precisamos plantar no total do país, lançou em março mais campo para confirmar esse número." quatro novas variedades de cana. Todas cação de linhagens, além de contribuílevam a sigla que identifica as variedarem para o mapeamento dos genes. Uma planta que produza mais sacarodes da Ridesa, RB, que significa Repú"Alguns desses marcadores estão relase vai gerar mais álcool em uma mesblica do Brasil. A unidade responsável cionados a características de interesse ma área de cultura canavieira. "Especomercial da cana", diz a pesquisadora ramos poder produzir uma planta pelo desenvolvimento foi a UFSCar. Uma delas, a RB925211, possui matuAnete Pereira de Souza, do Instituto de transgênica totalmente desenvolvida no país", diz Ulian. ração precoce com alto teor de sacaroBiologia da Unicamp. Esses marcadores podem também ser usados se e alta produtividade, além de ser rena identificação de um gene no programa de melhoramensistente às principais doenças da cana. No total, a Ridesa já lançou em mais de específico, por exemplo, que to de variedades que o país deve, no curto prazo, se valer dez anos 17 variedades para a região esteja ligado à produção de para o aumento da produção. centro-sul e 13 para a Norte-Nordeste. sacarose. "Identificamos esses O problema é que a criação de O IAC lançou, nos últimos anos, 13 marcadores e produzimos o uma variedade não demora novas variedades de cana, entre elas quaprimeiro mapa funcional (de menos de dez anos. É preciso estro tipos com vocação regional. São vagenes) para cana-de-açúcar, colher linhagens e indivíduos riedades adaptadas para ambientes espeanalisando o genoma de plancíficos de regiões de São Paulo, Goiás e tas que são filbas de um cruzacom características desejadas, Minas Gerais. Com essa adequação, a mento entre duas variedades, cruzá-las e testar no campo ao resposta da cultura pode ser maior. "Popor exemplo", diz Anete. Esse longo de alguns anos, e verifidemos criar estratégias para cada amcar se essas características se mapa de genes da cana, cuja perpetuam nos descendentes. biente, respeitando as características de primeira parte estará disponíO aumento da diversidade genética solo e condições climáticas", afirma o vel em agosto, vai servir como uma dos canaviais é importante porque agrônomo Marcos Landell, diretor do ferramenta de apoio aos programas Centro de Cana do IAC. Mais recentede melhoramento da cana-de-açúcar torna as lavouras mais protegidas contra doenças e pragas. Quando se tem mente, o instituto lançou outras quatro do CTC. variedades que atendem às condições pouca variabilidade genética, as plan"Para a área de biotecnologia do seclimáticas e de solo do centro-sul do tas tornam-se suscetíveis aos mesmos tor sucroalcooleiro, o Projeto Genoma país e são adequadas para serem colhiCana foi um divisor de águas. Além do problemas. das no meio e no fim de safra, períodos Para evitar situações como essas, o seqüenciamento e da identificação de país conta com três grandes programas de maior volume de produção. genes, alguns grupos de pesquisadores ^ Além dos centros de universidades que tradicionais, a emprenão tinham interesse OS PROJETOS sa Canavialis adentrou em cana se voltaram nessa área em 2003 para o estudo dessa Desenv olvimento de marcadores Transcriptoma para desenvolver varieplanta", diz o engenheida cana-de-açúcar molecu lares a partir de ESTs dades superprecoces ro agrônomo Eugênio de ranf i-de açúcar e plantas transgênicas César Ulian, responsáMODALIDADE de cana. "Estamos em vel pelo Programa de MODALIDADE Parceria para Inovação Parceria para Inovação processo de seleção de Biotecnologia do CTC. Tecnológica (Pite) Tecnológica (Pite) variedades para serem "Além dos estudos acacolhidas em abril com COORDENADORA dêmicos básicos, eles COORDENADORA GLAUCIA MENDES SOUZA - USP alto teor de sacarose", estão nos ajudando a ANETE PEREIRA DE SOUZA diz Hideto Arizono, produzir novas varie- Unicamp iMurCTiuruTn diretor técnico da Cadades no laboratório." R$ 555.693,00 INVESTIMENTO navialis. "Atualmente Entre 1999 e 2000 o US$ 82,867.00 (FAPE! SP) R$ 172.403,00 e existe apenas uma opCTC estava com plane R$ 800.000,00 US$ 45.495,22 (FAPESP) ção para a safra de tas transgênicas pres(CTC e Central de Álcc )Ol) R$ 103.675,30 (CTC) abril no centro-sul." tes a serem transplan66 ■ ABRIL DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 122


A mecanização da colheita evita a queima da cana, mas só é viável em terrenos planos

Na crescente demanda por álcool algumas usinas, para colher a cana em março (normalmente a safra começa em abril e vai até novembro no centro-sul), usam um maturador, que é um produto químico para ser aplicado na planta e interromper o período vegetativo, concentrando a sacarose. A empresa também desenvolve plantas transgênicas junto com a Alellyx, empresa de biotecnologia do mesmo grupo, a Votorantim Novos Negócios. A primeira planta transgênica já está em testes em uma propriedade agrícola no Paraná. Essa cana possui um gene retirado do vírus causador do mosaico, uma das doenças que atacam essa cultura. O gene manipulado pela Alellyx conferiu resistência à doença em laboratório. Agora os testes, já aprovados pelo CTNBio, são realizados no campo. "Há 30 anos, o Brasil contava com cinco ou seis variedades comerciais, hoje são cerca de 500 (contando também aquelas que estão no país desde o descobrimento), representando um

patrimônio genético inigualável. Com isso, o cultivo de cana torna-se mais seguro, com plantas menos expostas a pragas e a doenças", analisa Pádua, da Única. O trabalho de melhoramento da cana é também responsável pelo aumento da produção canavieira nos últimos 30 anos. Nos anos de 1970, a lavoura rendia 47 t/ha e em 2005 chegou a 82 t/ha. Investir na mecanização e na adoção de técnicas de agricultura de precisão são outras alternativas para elevar a produção de álcool no país. "O índice de mecanização da colheita de cana-deaçúcar em São Paulo é de 35%, mas algumas culturas, como a de soja, chegam a 100%", afirma o engenheiro Suleiman José Hassuani, pesquisador do CTC. Para ele, o processo de mecanização, iniciado na década de 1990, traz grandes benefícios para o setor, embora alguns obstáculos ainda precisem ser superados, como a compactação do solo e os danos causados pelas máquinas às soqueiras (raiz da cana que fica em terra para rebrotar). Para o pesquisador, a mecanização do setor é irreversível porque um decreto do governo federal proíbe a queima dos canaviais a partir de 2018. "Há um custo social, com a redução da mão-de-obra, que deve ser

considerada, mas os novos postos de trabalho são bem mais qualificados." Avanços na indústria - Além dos avanços no campo, pesquisadores têm trabalhado para desenvolver processos industriais de destilação e fermentação mais eficazes. A equipe do geneticista Gonçalo Amarante Guimarães Pereira, do Instituto de Biologia da Unicamp, criou uma levedura geneticamente modificada capaz de simplificar o processo de produção e baratear os custos das usinas. As leveduras são organismos responsáveis pela transformação do açúcar em álcool, num processo conhecido como fermentação. A levedura modificada da Unicamp torna obsoleta uma das etapas da fermentação, chamada de centrifugação, que encarece e alonga o processo. "Fizemos alterações genéticas na levedura que funcionaram muito bem na fermentação", diz Pereira. "Trabalhamos com levedura de laboratório. Agora nosso desafio é conseguir fazer a modificação genética em leveduras industriais, usadas pelos usineiros." Ainda na Unicamp, outra pesquisa para aperfeiçoar o processo de fermentação é realizada nos laboratórios da Faculdade de Engenharia de Alimentos. Lá, o pesquisador Francisco Maugeri FiPES0UISAFAPESP122 • ABRIL DE 2006 ■ 67


O aproveitamento do bagaço de cana e novos processos industriais devem aumentar a oferta de álcool

lho e seu aluno de doutorado Daniel Atala criaram uma técnica que faz a extração a vácuo do etanol ainda nas dornas de fermentação. "O método convencional é limitado pela elevada concentração de etanol no meio, que inibe a ação da levedura. Com a extração a vácuo, o etanol fica sempre em concentração baixa nas dornas de fermentação, e o microorganismo age de maneira mais eficiente", explica Maugeri Filho. Uma conseqüência direta da redução do etanol é a possibilidade de elevar a concentração de açúcar no mosto. "Ao elevar o teor de açúcar, conseguimos duplicar ou triplicar a produtividade do sistema e reduzimos a produção de vinhaça, um resíduo do processo. Agora estamos em negociação para iniciar um teste-piloto nas usinas ainda nesta safra. Simulações do custo do álcool por esse processo apontam para uma redução final de 10% a 15%", conta Maugeri Filho. Na área de destilação, uma novidade desenvolvida no país já é responsável por quase um terço da produção. Trata-se de um processo de desidratação do etanol, conhecido como destilação extrativa, um método para produção de álcool anidro, que é adicionado à gasolina. Depois da etapa de destilação, que separa uma mistura líquida de componentes em função da diferença de vola68 ■ ABRIL DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 122

tilidade entre eles, fazendo com que o de maior volatilidade se concentre no vapor e o de menor, no líquido, o etanol hidratado ainda tem cerca de 4% de água. "Pela técnica de destilação extrativa, adicionamos um terceiro componente, o monoetileno glicol (MEG), que reduz a volatilidade da água, permitindo a vaporização do etanol. Em seguida, o álcool é condensado, gerando o etanol anidro. O monoetileno glicol, por sua vez, é purificado e retorna para a primeira fase do processo", diz Antônio José de Almeida Meirelles, professor da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp, que estudou o processo e participou da transferência da tecnologia para o setor industrial. "A destilação com MEG ante o método convencional reduz, pela metade, o consumo de vapor para destilar o etanol hidratado. Introduzida no setor produtivo em 2001, a nova destilação já foi adotada por 28 usinas e responde pela produção de mais de 2,5 bilhões de litros de álcool anidro por ano, cerca de 30% do total produzido no país. Outro sistema que promete trazer elevados ganhos de produtividade nas usinas é o aproveitamento do bagaço e da palha desenvolvido pelo CTC em conjunto com o Grupo Dedini, um dos maiores fabricantes de equipamentos para o setor sucroalcooleiro. Batizado

de Dedini Hidrólise Rápida (DHR), a tecnologia já está patenteada no Brasil e em outros países e promete transformar o bagaço e a palha em álcool em poucos minutos por meio de um processo de hidrólise (reação química com água). Uma unidade de demonstração funciona desde o início de 2004 na Usina São Luiz, em Pirassununga (SP). "Estamos levantando informações para ver se ainda é preciso aperfeiçoá-lo", diz o engenheiro químico Carlos Eduardo Vaz Rossel, líder do projeto no CTC. "A maior vantagem do novo método é elevar a produção de etanol em até 30%, sem aumentar a área plantada." Todos esses fatores e novas tecnologias na produção de álcool estarão na arrancada da expansão da cultura e na melhora da produtividade para os próximos anos. Na safra 2005-2006 a produção brasileira chegou a 386 milhões de toneladas de cana e os estudos indicam que em 2010 serão 535 milhões. "Para a safra 2013-2014 seriam 670 milhões, mas já para a safra 2006-2007 deverão ser colhidos 420 milhões para produzir 17 bilhões de litros de álcool e quase 29 milhões de toneladas de açúcar", diz Pádua. A safra 2005-2006 deve atingir 15,7 bilhões de litros de álcool, superior aos 15,1 bilhões de litros da safra anterior. •


Engenho com moinho de cana-de-açúcar em tela do alemão Johann Rugendas

Uma história de sucesso e polêmicas

setor sucroalcooleiro movimenta 2% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, algo como R$ 39 bilhões por ano. É visto como um sistema agroindustrial exemplar para a produção de combustível renovável, como demonstram as visitas constantes de delegações estrangeiras para conhecer as usinas produtoras de açúcar e álcool. É também o setor mais antigo da nossa economia. A cana-de açúcar chegou por aqui com os portugueses, logo no início da colonização. A planta originária, provavelmente, do Sudeste Asiático se desenvolveu principalmente no Nordeste do país. Logo ganhou projeção econômica com a produção de açúcar enviada para Portugal. Em 1600 já existiam 200 engenhos que serviram também para a formação de uma forte parcela da elite brasileira: os senhores de engenho. Eles cresceram

fabricando açúcar e cachaça e só diversificaram suas atividades em 1931, quando o presidente Getúlio Vargas decretou o acréscimo à gasolina de 5% de álcool. Essa proporção variou muito ao longo dos anos, inclusive no início de 2006, quando o governo baixou de 25% para 20% a adição de álcool na gasolina devido ao aumento de preços. "Essa crise sinalizou para o governo que não dá para confiar plenamente nas empresas. É preciso, a exemplo de outros produtos agrícolas como feijão e trigo, manter estoques reguladores, reduzindo as pressões altistas de preços em períodos de entressafra", diz o professor Walter Belik, do Instituto de Economia da Unicamp. Ele lembra que a situação era bem diferente há alguns anos. "Em 1942, o governo Getúlio Vargas lançou o Estatuto da Lavoura Canavieira, que atribuía ao Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA) a regulamentação do setor. Cabia ao IAA zelar pelo equilíbrio

de poder entre agricultores, industriais e trabalhadores. O estatuto estabelecia, por exemplo, que quem possuía usina não podia plantar mais que 40% de sua necessidade", lembra Belik. A desregulamentação do setor começou em 1990 e marcou o fim do Programa Nacional do Álcool (Proálcool). Nascido em 1975, o Proálcool recebeu generosos incentivos financeiros e teve seu auge em meados da década de 1980, quando quase 100% dos automóveis fabricados eram movidos a álcool. Nessa época a cultura de cana ganhou um novo impulso no estado de São Paulo. "A indústria canavieira começou a crescer em São Paulo na segunda metade dos anos 1950, quando passou na frente do Nordeste com usinas modernas e com melhores terras adaptadas ao cultivo da cana", diz Belik. Com os incentivos fiscais e os investimentos privados na época do Proálcool, o setor se transformou em uma agroinPESQUISAFAPESP122 ■ ABRIL DE 2006 ■ 69


Exemplo para o exterior, o setor sucroalcooleiro ainda tem problemas com os bóias-frias

dústria avançada, incorporando tecnologia no plantio e nas usinas. Mas sua imagem ficou abalada no final dos anos 1980, quando o alto preço do açúcar no mercado externo fez os usineiros produzirem o adoçante em vez de álcool. A falta do combustível e as filas nos postos tiraram a confiança do consumidor. Os bons ventos e a boa imagem do setor voltariam em 2002, quando as montadoras de veículos no Brasil resolveram adotar a tecnologia Flex Fuel, ou bicombustível, que havia sido desenvolvida pela empresa Bosch, em meados dos anos 1990, em sua filial na cidade de Campinas. Por esse trabalho a empresa foi reconhecida com o Prêmio Finep de Inovação Tecnológica na categoria produto em 2005. O sucesso do sistema bicombustível, porém, logo provocou desconforto entre os consumidores que viram o preço do álcool subir muito, tirando a vantagem sobre a gasolina. "Hoje existe certo descontrole, é o produtor que decide sozinho onde vai colocar a usina e comprar a terra em volta para plantar cana. Isso leva à concentração fundiária e revela uma necessidade de planejamento estratégico para a indústria canavieira a longo prazo." Para o professor José Antônio Scara70 ■ ABRIL DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 122

mucci, do Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético (Nipe) da Unicamp, também está acontecendo uma forte concentração industrial. "O setor está dominado por cinco grandes grupos. É um oligopólio (situação em que poucas empresas possuem o controle de grande parte do mercado) em que as usinas maiores estão transformando o canavial em uma estrutura industrial concentrada", diz Scaramucci. lém da concentração, o setor também está se modernizando e se tornando multinacional, embora parte desse setor ainda tenha problemas trabalhistas relacionados aos bóias-frias. Normalmente são migrantes que vêm para São Paulo da Região Nordeste do país, além de Minas Gerais. Esses trabalhadores, muitas vezes, são contratados por intermediários chamados de "gatos" e possuem condições de trabalho e moradia muito precárias. "O maior problema é que entre 2004 e 2005 tivemos a morte de 13 bóias frias por excesso de trabalho. Eles ganham por produção diária, cuja meta é cortar 12 toneladas de cana por dia", diz a socióloga Maria Aparecida de Moraes Silva, professora da pós-graduação do curso de geografia da Universidade de

São Paulo, e colaboradora da Universidade Estadual Paulista, em Presidente Prudente. "O Ministério Público já fez seis audiências públicas sobre as mortes", diz Maria Aparecida. "Fora isso, os trabalhadores muitas vezes são lesados na pesagem porque eles cortam por metro e recebem por tonelada." O Ministério Público quer o fim do trabalho por produção em 2007. As usinas, que querem pagar R$ 410,00 mensais e os trabalhadores, inclusive os próprios sindicatos, não querem esse sistema. "Um bom cortador consegue ganhos de até R$ 800,00 por mês", lembra Maria Aparecida. "A União da Agroindústria Canavieira de São Paulo (Única) entende que as unidades que não cumprirem as legislações trabalhista, ambiental ou de transporte arquem com as conseqüências do não cumprimento. Quanto à morte dos trabalhadores pelo excesso de trabalho, não há nenhuma comprovação. O sistema de remuneração por produtividade é o mais adequado no entendimento da classe patronal e dos trabalhadores. O ponto a ser revisto é a transparência no sistema de aferição de pagamento", diz Antônio de Pádua Rodrigues, diretor técnico da Única. O setor sucroalcooleiro emprega no país cerca de 450 mil trabalhadores na fase agrícola, segundo estudos do Nipe. •


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TECNOLOGIA QUÍMICA

Mistura fina Película protetora reduz evaporação de água doce em reservatórios

DlNORAH ERENO

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ma película ultrafina formada por calcário e surfactantes, substâncias usadas em cosméticos e fármacos e obtidas de fontes como óleos vegetais e cera de abelhas, conseguiu reduzir em 30%, em média, a evaporação de um espelho d'água de 13 mil metros quadrados e poderá ser usada em represas e açudes. Um alento para regiões como o semi-árido nordestino, em que a seca é um flagelo crônico devido principalmente à alta taxa de evaporação da água, e mesmo para o Sul do Brasil, que enfrenta um prolongado período de estiagem por conta da falta de chuvas nos últimos meses, com graves conseqüências para a agricultura familiar. A mistura antievaporante é apresentada na forma de um pó fino que, ao ser jogado em pequenas quantidades na superfície da água, rapidamente se espalha, formando uma película invisível a olho nu. "Só dá para perceber que a película recobre a água porque ela fica lisa, e as ondulações existentes naturalmente na superfície são atenuadas", diz Marcos Gugliotti, diretor científico da empresa Lótus Química Ambiental e coordenador do projeto da mistura antievaporante, financiado pelo Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe), da FAPESP. O filme ultrafino forma uma espécie de barreira protetora entre a água e a atmosfera, sem interferir nas trocas gasosas de oxigênio e gás carbônico, importantes para a manutenção da vida aquática. 72 ■ ABRIL DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 122

Como o filme é biodegradável, processo que leva em média 48 horas, o produto tem de ser reaplicado para manter o efeito. Depois de ser testado em tanques ao ar livre, o produto foi aplicado no ano passado na represa do Broa, em São Carlos (SP), e no espelho-d'água do Anexo 1 da Câmara dos Deputados, em Brasília. O teste realizado no espelho-d'água teve o apoio do Núcleo de Gestão Ambiental da Câmara dos Deputados. A represa do Broa, uma área de quase 10 mil metros quadrados, onde cabem oito piscinas olímpicas, foi isolada com bóias de contenção para a realização dos testes de espalhamento e impacto ambiental. Espalhamento rápido - Um barco a motor foi usado para distribuir a mistura antievaporante, tarefa feita manualmente com o auxílio de uma pá do tamanho de uma colher, luvas e máscara para evitar a inalação das partículas do pó, que não é tóxico, mas incomoda se aspirado. Ao ser colocado na água, o pó se espalha rapidamente. Apenas meio quilo do produto foi suficiente para recobrir toda a área, quantidade menor do que a esperada, indicando espalhamento eficiente, embora a dosagem recomendada seja de 1 quilo para cada 10 mil metros quadrados. Diversos parâmetros da água, como pH, que é a medida do índice de acidez, temperatura, turbidez e condutividade, foram analisados em três pontos de coleta dentro da área isolada e em um ponto da represa fora do isolamento. Uma sonda contendo vários sensores foi usada para analisar estratos verticais em várias profundida-


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des. "Não houve nenhuma evidência de impacto ambiental, incluindo as análises de zooplâncton e fitoplâncton", diz Gugliotti. A afirmação tem como base o parecer do Instituto Internacional de Ecologia, presidido pelo professor José Galizia Tundisi, do Programa de Pós-Graduação em Ecologia e Recursos Naturais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), contratado para fazer a análise. O produto não trata a água, mas também não altera a sua qualidade, o que significa que se ela for potável vai se manter inalterada após a aplicação. Isso porque a quantidade aplicada é muito pequena em relação ao volume de água. Além disso, os álcoois graxos, componentes que formam o filme, são muito usados em cosméticos por serem inertes e atóxicos. No espelho-d'água da Câmara dos Deputados, a mistura antievaporante aplicada na área total de 13 mil metros quadrados evitou a perda de 80 mil litros de água em cinco dias, representando uma economia de R$ 800,00, já que o litro de água tratada usada para preencher o reservatório custa em torno de R$ 0,01. No período foram feitas três aplicações de 1,3 quilo cada uma, totalizando 3,9 quilos do produto. Descontado o custo total da operação, estimado em R$ 156,00, houve uma economia de R$ 644,00 em cinco dias. Evaporação calculada - Foram feitas duas medidas diárias da evaporação, determinada pelo abaixamento do nível de água, cinco dias sem o produto e cinco dias com o produto, de 9 a 18 de setembro do ano passado. Como o reservatório é de concreto impermeável, portanto, sem vazamentos, e as entradas e saídas da água foram fechadas, a única perda de água é pela evaporação. "A redução mínima foi de 14% e a máxima de 55%", afirma Gugliotti. A evaporação muda em função do período do dia observado. A evaporação média do espelho de 5,88 milímetros por dia chegou a ser reduzida em até 2,62 milímetros. As duas séries de medidas diárias foram comparadas entre as etapas com e sem aplicação do produto e feitas médias aritméticas. "No pior resultado obtido ocorreu uma redução média na 74 ■ ABRIL DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 122

evaporação de 21,14%, com economia de 16 mil litros de água por dia, suficiente para garantir a viabilidade da aplicação do produto", diz Gugliotti. interesse pela tecnologia surgiu durante o doutorado e o pós-doutorado em físico-química de superfícies realizado por Gugliotti no Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), quando estudava as propriedades mecânicas de filmes ultrafinos, chamados de monomoleculares porque têm a espessura de apenas uma molécula, nesse caso cerca de 25 ângstrons. Um ângstron corresponde a 1 milímetro dividido em 10 milhões de partes. "Quando comecei a estudar, vi que essa tecnologia já existia desde 1925, data do primeiro artigo científico." Os testes em campo, porém, começaram apenas na década de 1950 e até 2002 a tecnologia era usada apenas em caráter experimental em vários países. Foi quando uma empresa canadense anunciou o desenvolvimento de um produto viável técnica e economicamente com a tecnologia das películas ultrafinas, considerada pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) uma tecnologia alternativa para a conservação de água doce. Os surfactantes para reduzir a evaporação são basicamente os mesmos, o que muda é o aditivo. No caso da empresa canadense, que vende o produto principalmente para o Oriente Médio, foi utilizado hidróxido de cálcio, ou cal hidratada. "A escolha do hidróxido de cálcio como aditivo restringiu um pouco a comercialização do produto em outros países, porque essa substância é cáustica e queima tecidos de peixes e plantas", diz Gugliotti. Antes do lançamento do produto canadense, também em forma de pó, duas outras empresas desenvolveram produtos na forma líquida, mas sem sucesso comercial. Gugliotti depositou um pedido de patente com o calcário como aditivo principal, que também engloba outras combinações de aditivos com uma mistura de surfactantes. O segredo está na proporção, que torna viável a aplicação. O aditivo serve para facilitar o espalhamento do produto na água e impedir a aglomeração das partículas. Mas, além

Espelho-d'água em Brasília: economia de 80 mil litros de água em cinco dias

disso, a substância adicionada aos surfactantes tem que causar o menor impacto possível ao ambiente. Impacto avaliado - Estudos feitos por pesquisadores norte-americanos no lago Hefher, em Oklahoma, apontaram que os álcoois graxos, surfactantes que formam os filmes ultrafinos, não causam impacto ambiental significativo. Vários experimentos de redução de evaporação, um deles com duração de cinco anos, foram realizados para chegar a essa conclusão. Nesse estudo, dois anos foram dedicados ao estudo da fauna e da flora do lago de 12 quilômetros quadrados, outros dois à aplicação contínua do produto e o último ano à análise dos resultados obtidos. O impacto ambiental é baixo ou imperceptível porque a quantidade de produto usada é muito pequena, e os surfactantes, além de não serem tóxicos, são insolúveis, interagindo pouco com o ecossistema e permanecendo na superfície da água na forma de um filme. A molécula do surfactante é composta por duas partes: uma hidrofílica, que interage com a água, e outra hidrofóbica, que repele a água. Devido a essa estrutura, as moléculas orientam-se na


superfície de forma que a parte hidrofílica fica em contato com a água, enquanto a parte hidrofóbica permanece voltada para o ar, formando assim um filme com espessura igual ao comprimento de uma molécula. A aplicação em represas e açudes é apenas uma das possibilidades de uso do produto. Alguns ensaios apontam a possibilidade de utilização em canais de irrigação, se a velocidade do curso d'água for baixa, e também para reduzir a evaporação de água no solo. Testes preliminares mostraram ser possível diminuir a evaporação da água absorvida pelo solo em cerca de 4% com a aplicação do produto. Pelos cálculos do pesquisador, mesmo com uma porcentagem bem mais baixa de redução de evaporação, da ordem de 0,5%, por exemplo, se o pó antievaporante for utilizado em milhares de hectares de culturas agrícolas, será possível economizar muita água. "Além de reduzir a evaporação de água no solo, o produto diminui a transpiração das plantas, o que reduz a necessidade de reidratá-las em períodos mais secos", diz Gugliotti. O fato de o aditivo da mistura ser o calcário, o insumo mais usado no mundo para cor-

reção de solo, representa uma vantagem para a aplicação em culturas agrícolas. Outra linha de pesquisa mostra que modificações no antievaporante original poderão resultar em produtos para controlar a proliferação de algas e larvas de mosquitos, incluindo o Aedes aegypti, principal vetor de transmissão do vírus causador da dengue. As várias possibilidades de aplicação do produto indicam que há muito trabalho a ser feito pela Lótus, empresa criada em 2003 para desenvolver tecnologias de preservação do ambiente O PROJETO Desenvolvimento de mistura antievaporante para a conservação de água doce MODALIDADE

Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe) COORDENADOR MARCOS GUGLIOTTI

Lótus Química

Ambiental INVESTIMENTO R$ 303.688,00 (FAPESP)

usando principalmente filmes monomoleculares. Residente no Centro Incubador de Empresas Tecnológicas (Cietec), localizado na Cidade Universitária, a empresa é uma sociedade familiar. Marcos e seu pai, Eduardo Gugliotti, com mais de 30 anos de experiência no gerenciamento de laboratórios de indústrias farmacêuticas e alimentícias, e que já foi gerente do departamento de análises de água da Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb), trabalham em sintonia para que o pó antievaporante comece a ser desenvolvido em escala comercial. O plano de negócios que a Lótus elaborou para o produto foi classificado como finalista do II Fórum New Ventures de Investidores em Negócios Sustentáveis, realizado em novembro de 2005 e operado no Brasil pelo Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getúlio Vargas (FGV). E tem atraído investidores e outras empresas interessadas em licenciar a patente, forma de negociação preferida pelos sócios da Lótus, uma vez que o foco da empresa é o desenvolvimento de novas formulações. Enquanto isso, eles se preparam para ampliar os testes. • PESQUISA FAPESP 122 ■ ABRIL DE 2006 ■ 75


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O TECNOLOGIA NANOBIOTECNOLOGIA

Trama

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Nanopartículas de prata obtidas com fungo vegetal são a base de novos tecidos e fármacos

Um fungo encontrado em vegetais e uma bactéria originária da Amazônia são a base de sistemas nanobiotecnológicos com potencial para uso no transporte e entrega de medicamentos dentro do organismo humano e até na produção de tecidos com propriedades bactericidas. Do fungo Fusarium oxysporum, que provoca a morte das plantas após infectar a raiz e causa perdas significativas a culturas brasileiras como a da banana-prata e ouro, um grupo de pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) conseguiu, por meio da ação de dois componentes presentes no fitopatógeno, a enzima nitrato reductase e o composto orgânico quinona, transformar íons de prata (Ag+) em nanopartículas de prata metálica, que apresentam forte ação bactericida. O emprego dessas nanopartículas em tecidos que ajudam a cicatrizar lesões é uma das possíveis aplicações do material observado apenas por meio de microscópios eletrônicos de transmissão ou de varredura. "Estamos avaliando a aplicação dessas nanopartículas em curativos feitos de gaze, ou tecidos semelhantes, impregnados com prata que poderiam ser indicados para pessoas diabéticas, com freqüentes ulcerações nos pés", diz o professor Oswaldo Luiz Alves, coordenador do Laboratório de Química do Estado Sólido, que

desenvolveu a pesquisa em parceria com o professor Nelson Duran, coordenador do Laboratório de Química Biológica. "Como as partículas são muito ativas, elas acabam destruindo as substâncias indesejáveis." Outra aplicação na linha de nanobiotêxteis prevê a produção de tecidos anticheiro, indicados para meias, por exemplo. "Nos Estados Unidos existem no mercado meias bactericidas impregnadas com nanopartículas de prata, mas o processo de obtenção é completamente diferente do nosso", relata o pesquisador. Compostos associados - A proposição do mecanismo pelo qual as nanopartículas de prata são formadas a partir do fungo F. oxysporum resultou em uma patente, assim como a aplicação do processo para tecidos impregnados com essas partículas de prata, ambas depositadas pela Agência de Inovação da Unicamp (Inova). "A pesquisa permitiu definir uma plataforma para aplicação dessas partículas com outros sistemas envolvendo várias famílias de compostos, como antibióticos e antimaláricos, associados com nanopartículas metálicas", diz Alves. O mecanismo utilizado para chegar às pequeníssimas partículas de prata teve como base um processo químico conhecido por oxido-redução, que basicamente promove a transferência de elétrons entre moléculas, íons e átomos neutros. Os PESQUISA FAPESP 122 ■ ABRIL DE 2006 ■ 77


pesquisadores usaram uma solução contendo nitrato de prata misturada a cepas selecionadas do fungo, seleção necessária porque nem todas as linhagens possuem a enzima nitrato reductase, essencial para que ocorra a reação de óxido-redução. As quinonas, compostos orgânicos presentes em plantas como o ipê-roxo, por exemplo, também são importantes nesse processo, porque elas têm grande facilidade de transferência de elétrons. Na medida em que se forma a prata metálica, a cor da solução muda do amarelo-claro para o marrom-escuro. A banda de absorção decorrente da redução dos íons de prata para prata metálica é observada pela técnica de espectroscopia de absorção ultravioleta-visível, que permite associar os espectros ópticos às espécies químicas presentes. pesquisa foi publicada na conhecida revista da área de nanobiotecnologia Journal ofNanobiotechnology, onde o artigo figurou entre os dez mais acessados no ano passado. O projeto contou ainda com a participação de Priscyla Marcato, também da Unicamp, e de Gabriel de Souza e Elisa Esposito, ambos do Laboratório de Química Biológica da Universidade de Mogi das Cruzes. A perspectiva dos pesquisadores na atual fase é trabalhar com outros fungos, bactérias, microorganismos e sistemas vegetais que tenham capacidade de transformar íons de prata em nanopartículas de prata metálica. Resultados preliminares de pesquisas realizadas recentemente apontam que é possível obter esse material a partir de extratos de algumas flores bem comuns na região de Campinas. "Isso nos leva a um entendimento que podemos executar o mesmo tipo de processo de redução do metal sempre que houver a presença da enzima e de substâncias redutoras", conta Alves. A outra linha de pesquisa, desenvolvida também em parceria entre os dois

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Nanopartículas de prata (acima) formadas pela ação do fungo Fusarium oxysporum

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laboratórios da Unicamp, trata do desenvolvimento de um sistema nanobiotecnológico para combater células cancerígenas que envolve nanopartículas de ouro e a violaceína, o princípio ativo da Chromobacterium violaceum, bactéria encontrada em grande quantidade no rio Negro, no Amazonas, e conhecida por sua capacidade de combater doenças como o mal de Chagas e a leishmaniose. Para o transporte da violaceína, um pigmento de cor violeta insolúvel em água, foi escolhida a ciclodextrina, um anel de moléculas de glicose que tem a forma de um balde, capaz de armazenar diversas substâncias. Mas testes feitos in vitro mostraram que a associação entre a violaceína e a ciclodextrina não agia de forma seletiva, isto é, matava além das células cancerígenas também as normais. Pigmento seletivo - A solução encontrada para levar as moléculas do fármaco até as células com tumor foi agregar nanopartículas de ouro ao composto. Nesse caso, as nanopartículas são formadas por um mecanismo diferente do proposto para os fungos. O processo de obtenção envolve uma substância

que contém ouro, como o ácido tetracloroáurico, a ciclodextrina e um agente redutor, como o boridreto de sódio. O sistema nanobiotecnológico proposto, além de resolver o problema da insolubilidade da violaceína, também conferiu seletividade ao pigmento, o que significa que ele mata apenas as células cancerígenas, capacidade que a maioria dos quimioterápicos empregados atualmente não tem apresentado. Os pesquisadores agora estão tentando entender o mecanismo que faz com que as nanopartículas sejam atraídas para as células cancerígenas, como as leucêmicas testadas in vitro. Os primeiros ensaios com animais, dentro dos protocolos de testes de novos medicamentos, estão previstos para ter início no segundo semestre e podem contemplar outras células cancerígenas além das leucêmicas. O projeto teve ainda a participação dos pesquisadores Iara Gimenez, Maristella Anazetti, Patrícia Melo, Marcela Haun e Marcelo Mantovani de Azevedo. O desenvolvimento foi publicado na revista Journal of Biomedical Nanotechnology, no final de 2005. O caminho para chegar a esses novos sistemas biotecnológicos, que usam como meios de transporte as nanopartículas de ouro e prata, teve início em 1989, quando Alves e sua equipe começaram a trabalhar com nanopartículas de semicondutores chamadas de quantum dots, ou pontos quânticos, estabilizadas dentro de diferentes famílias de vidros. O desenvolvimento desses nanocompósitos baseados em vidro e nanopartículas destinava-se basicamente à área de telecomunicações, ou seja, amplificadores ópticos e materiais para óptica não-linear e fotônica. A privatização da Telebrás, órgão do governo que respondia pelo sistema de telecomunicações brasileiro, e a conseqüente interrupção no desenvolvimento de novos materiais levaram os pesquisadores a procurar outros caminhos para aplicar a experiência acumulada no estudo dos pontos quânticos, como as pesquisas com nanopartículas metálicas. • DlNORAH ERENO


O TECNOLOGIA NOVOS MATERIAIS

Boca mais colorida Suporte de aparelho ortodôntico nas cores azul, rosa e vermelha é feito com cerâmica e pigmentos

Peça essencial nos tratamentos de correção ortodôntica que servem para alinhar os dentes, o braquete funciona como um suporte que transmite os esforços do arame para a arcada dentária. Durante muitos anos, essas peças eram basicamente metálicas, feitas de aço inox. Com a incorporação de novos materiais, como plástico compósito e cerâmica, surgiram os suportes brancos e transparentes. Agora eles podem ser encontrados também em cores mais radicais, como azul, rosa, amarela, vermelha, além da discreta pérola e da branca, como resultado de um desenvolvimento feito pelo Laboratório Interdisciplinar de Eletroquímica e Cerâmica (Liec), do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp), de Araraquara, em parceria com a empresa Tecnident Equipamentos Ortodônticos, de São Carlos. O lançamento do novo produto, que está no mercado interno desde março deste ano e prepara-se para ganhar o externo, tem como público-alvo os adolescentes, que estão sempre em busca de novidades nos consultórios odontológicos, como a aplicação de piercings nos dentes, que são pequenos cristais colados. As novas cores foram obtidas com a utilização de dois materiais cerâmicos conhecidos, a zircônia e a alumina. Para chegar ao resultado desejado, os pesquisadores adicionaram diferentes quantidades de partículas de ferro, níquel, cromo e cobre, em escala nano-

dent. A parceria, que começou em 2003, vai continuar. "Pretendemos agora trabalhar no desenvolvimento de um braquete translúcido com a alumina", diz José D'Amico Neto, diretor da Tecnident. Na verdade, chegar a um braquete translúcido era a Tons tradicionais obtidos da cerâmica zircônia proposta inicial da pesquisa, já que o mercado de suportes cerâmicos transparentes é dominado atualmente por apenas duas empresas, uma da Alemanha e outra dos Estados Unidos. "O produto é muito caro no mercado internacional e chega a custar dez vezes mais que o comum, de metal", diz D'Amico Neto. O conjunto de 20 braquetes de metal, usados para um aparelho ortodôntico, custa cerca de US$ 7,00, Cobre, ferro e níquel imprimem cores à alumina enquanto o transparente fica em torno de US$ 130,00. métrica, capazes de colorir as matrizes As estimativas apontam que o mercado de componentes ortodônticos cerâmicas. A aplicação dos pigmentos movimente no Brasil cerca de US$ 100 na alumina resultou nas cores vermelha e rosa, enquanto na zircônia as comilhões por ano. A participação da indústria brasileira deve alcançar de 60% res obtidas foram azul, branca, pérola a 80% desse total, fatia alcançada com e amarela. a gradativa substituição de produtos importados por nacionais. O mercado Braquete translúcido - A tecnologia para obtenção das diferentes cores resulexterno para os produtos brasileiros tou em um pedido de patente conjunto também tem crescido por conta da entre o Liec, que integra o Centro Mulqualidade e dos preços competitivos. É tidisciplinar para o Desenvolvimento de com base nessa dobradinha que a Tecnident quer ampliar as vendas para a Materiais Cerâmicos (CMDMC), um dos dez Centros de Pesquisa, Inovação e América Latina, os Estados Unidos e Difusão (Cepid) da FAPESP, e a Tecniparte da Europa e Ásia. • PESQUISA FAPESP 122 ■ ABRIL DE 2006 ■ 79


Q HUMANIDADES SOCIOLOGIA

Licença para

criar

ilhos são o demo. Melhor não tê-los. Mas se não os temos, como sabêlos?", questiona-se Vinícius de Moraes em Poema enjoadinho. Mas será que basta sabê-los? Segundo estudos da Organização Mundial da Saúde, é preciso mais: o aleitamento materno exclusivo deve se estender aos seis primeiros meses de vida da criança. "O governo brasileiro faz campanhas orientando as mães a dar de mamar aos filhos durante esse período. Contraditoriamente, a Constituição prevê uma licença-maternidade de quatro meses", reclama a senadora cearense Patrícia Saboya Gomes, autora do projeto de lei que cria o Programa Empresa Cidadã (que começou a ser discutido em meados do último mês), destinado à prorrogação da licença por mais 60 dias, mediante concessão de incentivo fiscal. "Nas últimas décadas as mulheres obtiveram grandes avanços em diversas áreas, incluindo-se a profissional, com a conquista de espaço no mercado de trabalho. O desafio da mulher do século 21 é outro: equilibrar essas conquistas e uma experiência inerente ao sexo feminino, a vivência plena da maternidade." As projeções da senadora indicam que a renúncia fiscal da proposição "é palatável", correspondendo a cerca de R$ 500 milhões, referentes à dedução, no imposto de renda, da remuneração 80 ■ ABRIL DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 122

da empregada afastada. Na contramão do senso comum, que tende a ver a prerrogativa feminina como uma "mordomia" e mesmo como um dos fatores que encarecem os custos de contratação de profissionais femininas, o que causaria uma suposta rejeição a elas pelo mercado, bem como explicaria os salários inferiores aos dos homens, um estudo recente da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Questionando mitos, quer combater, com dados, as fontes de segregação ocupacional entre solteiras e casadas e entre homens e mulheres. "O custo para as empresas do trabalho das mulheres associado diretamente à maternidade e ao cuidado infantil representa menos de 2% da remuneração bruta mensal da mulher assalariada, o que contradiz a crença de que os benefícios associados à maternidade tornam as mulheres mais caras para as empresas", afirma Laís Abramo, editora da pesquisa. O economista Márcio Pochman, da Unicamp, concorda com o estudo. "O custo adicional pelo emprego feminino é de 13,81%, considerando a licença-maternidade atual de 120 dias. Mas, quando se considera que a empresa terá quatro meses de gastos a menos com a empregada no ano, decorrente da licença, que não é assumida pelo empregador mas pela Previdência Social ou outro órgão público, o custo médio anual sofre uma redução de 22,12%." Ponto para o novo projeto. Mas um outro estudo, da Mercer Human Resource Consulting, que ana-

lisou condições de trabalho e benefícios em 60 países, avalia que as trabalhadoras brasileiras seriam, por conta disso, uma das mais privilegiadas do globo. Em relação à licença-maternidade em 34 países, o Brasil está no segundo lugar do ranking de remuneração semanal e beneficio total dados à profissional depois do nascimento de um filho. O prazo de 120 dias põe o país no nono lugar da lista, perdendo para Suécia e Austrália, lugares onde, no entanto, não existe a prática da remuneração integral garantida pela nossa Previdência. Uma ressalva importante: por aqui boa parte das mães retorna ao trabalho sem gozar o tempo integral da licença. Em tempos de globalização, em que o custo do trabalho (em especial, os não-salariais ligados ao trabalho feminino) é variável-chave da competitividade de empresas e países, a discussão da licença-maternidade ganha importância econômica fundamental, já que no Brasil, entre 1982 e 1997, a taxa de participação na força de trabalho das mulheres como um todo cresceu em média 35%. "Filhos ou carreira, para uma camada da sociedade, despontam cada vez mais como opções excludentes. É fato que as mulheres (e os homens) tendem a retardar a maternidade/paternidade e os quadros sociais da reprodução são desestabilizados em nome da camisa da empresa'", avalia a economista Adriana Strasburg, autora da tese de doutorado A mulher e o trabalho no Brasil dos anos 90, com apoio da FA-


CARLOS HAAG

Projeto de aumento da licença-maternidade traz à luz a questão do mercado de trabalho das mulheres

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PESP, defendida há pouco na Unicamp, com orientação de Cláudio Dedecca. Ela lembra que a entrada das mulheres no mercado de trabalho, entre os anos 1960 e 70, foi celebrada como uma vitória feminista, conquista de igualdade e independência financeira. Os anos 1980 e 90 consolidam o sucesso. "Mas é preciso denunciar o tempo expropriado das mulheres em nome da reprodução social. Para uma parte crescente da população, a desestabilização aparece pela sobrecarga de trabalho, acompanhada de uma inserção precária, não reconhecida socialmente, de má remuneração", avisa Adriana. Mesmo as mulheres com nível de educação mais elevado, que são mais facilmente absorvidas pelo mercado, ao sair para o trabalho são obrigadas a colocar dentro de casa outras mulheres, em condições inferiorizadas, para cuidar de seus filhos. "As estimativas apontam a existência de um impacto negativo da maternidade sobre a participação da mulher no mercado: as que têm filhos recebem, no geral, um salário-hora 27% menor que as que não têm", explica Elaine Toldo Pazello, autora da pesquisa A maternidade e a mulher no mercado de trabalho, da FEA-USP. "Mulheres com filhos tendem a ter uma jornada menor e procuram empregos com esse perfil mais flexível, que, não raro, pagam menos. No entanto, para mulheres com mais de 40 anos, essa diferença salarial é quase inexistente, já que, algum tempo após o nascimento do filho, os diferenciais de produtividade tendem a diminuir até não mais influenciarem", diz a economista. No entanto, um estudo feito pelo demógrafo da UFMG, Eduardo Rios-Neto, mostra que, se a taxa da participação feminina da População Economicamente Ativa (PEA) cresceu nos últimos 40 anos, o segmento de mulheres casadas foi o que alcançou a maior taxa de crescimento. "É possível especular que a licença-maternidade tenha contribuído para 82 ■ ABRIL DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 122

o aumento da participação das mulheres na PEA, particularmente das casadas", observa Rios-Neto. O pesquisador lembra que a licença é concedida às mulheres brasileiras desde a legislação trabalhista varguista. Em 1974 o benefício deixou de ser encargo direto do empregador e passou a estar a cargo de um instituto previdenciário. Em 1988, com a nova Constituição, ampliou-se o beneficio de 84 dias para 120 dias. "A primeira mudança foi fundamental para uma queda na segregação ocupacional por gênero, uma vez que os custos diretos saíram das mãos do patrão para o Estado. Já a segunda mudança teria favorecido uma retomada da segregação casadas/solteiras ao ampliar o tempo da ausência." Os resultados, porém, não são conclusivos. O que se sabe com certeza é que "há uma baixa incidência anual de gestações e, portanto, de licenças-maternidade e outras prestações a ela associadas entre as trabalhadoras assalariadas", como ressalta o estudo da OIT. Isso é um reflexo da tendência histórica à redução da fecundidade das mulheres, ainda mais acentuada entre as integrantes da força de trabalho. "Está em curso um acentuado e sistemático declínio da taxa de fecundidade que desacelerou o crescimento anual da população. Explosão demográfica é só para os desinformados. Entre 1970 e 2000 deixaram de nascer 50 milhões de brasileiros", diz a demógrafa Elza Berquó, do Cebrap. Segunda ela, justamente entre as classes menos favorecidas é que a fecundidade exibiu declínio mais acentuado na última década: 20,5%. O dado mais alarmante é que, dentre o grupo que mais concentra a fecundidade (entre os 15 e 34 anos), uma fatia grande, 19%, é de mulheres entre 15 e 19 anos. "De acordo com os resultados de minha pesquisa, mulheres que têm seu primeiro filho na adolescência

possuem menores chances de participar do mercado de trabalho: o diferencial de renda familiar é de 25% a favor das mulheres que não tiveram filhos na adolescência", avisa Elaine. e há pouco espaço de trabalho para mães jovens, há menos ainda para outras mulheres que, supostamente, estariam cobrindo a ausência da mãode-obra feminina beneficiada com a licença-maternidade. "Apenas 36% do total de dias é coberto com a contratação de um substituto. As práticas mais comuns para cobrir as ausências consiste na distribuição das tarefas de quem se licencia entre os demais funcionários", afirma Laís Abramo, da OIT. Assim, ao contrário do esperado, os gastos das empresas com substitutos e o pagamento de horas extras (para os que acumulam funções das mulheres em licença) não chegam a 26% dos salários que deixam de pagar durante as licenças-maternidade. As diferenças se verificam mesmo no absenteísmo resultante do benefício à nova mãe. A OIT lembra que, como a maior causa de ausências ao trabalho, para homens e mulheres, são os acidentes de trabalho, que correspondem a, respectivamente, 58% e 51% do total de dias não-trabalhados, no caso das mulheres essa média supera inclusive aqueles não trabalhados em função da licença-maternidade (2,5 dias por ano, ou seja, 40% do total de ausência das mulheres, diante de 3,2 dias por ano, resultado de acidentes no trabalho). "Não se justifica atribuir aos custos de proteção à maternidade e ao cuidado infantil a persistência de uma série de desigualdades que continuam marcando a situação das mulheres em relação aos homens no mercado de trabalho", acredita Laís. A pesquisadora lembra ainda que os custos da reprodução biológica con-


tinuam sendo atribuídos às mulheres e confinados ao âmbito não-mercantil, tomados como um dado na economia convencional e considerados bens gratuitos fornecidos pela natureza. "Isso significa que essas atividades continuam sem ser reconhecidas em termos econômicos e ainda são pouco valorizadas socialmente", diz. Assim, o adiamento da maternidade ou opção por não ter filhos cresce e merece atenção, como quer Elza Berquó. "O cuidado é um recurso natural em via de extinção", analisa a economista Nancy Folbre, revelando a resistência das mulheres a seguir assumindo os custos da reprodução. "Ainda assim, a análise da relação entre maternidade e trabalho feminino sugere que as mulheres continuarão a ingressar no mercado, apesar das dificuldades da condição familiar. Isso a despeito das condições adversas que enfrentam, seja no interior da família, na qual os papéis seguem sendo desigualmente distribuídos, seja na sociedade, cujos equipamentos sociais públicos e privados continuam aquém da necessidade das mulheres", adverte Cristina Bruschini, pesquisadora da Fundação Carlos Chagas. "Por isso, qualquer política social que queira beneficiar as trabalhadoras deveria buscar não só a igualdade no mercado e a proteção das trabalhadoras que são mães, mas também criar mecanismos que viabilizem uma nova divisão de papéis na família, com os integrantes partilhando as responsabilidades profissionais e domésticas." "Não creio que a licença de seis meses vá dificultar a entrada de mulheres no mercado de trabalho. Acho que está na hora de o Brasil respeitar mais todas nós. Afinal de contas somos profissionais, sim, mas também mães e precisamos ter tranqüilidade para desempenharmos os diferentes papéis que temos na sociedade moderna", explica Patrícia Saboya. Não basta sabê-los, é preciso condições para criá-los. • PESQUISA FAPESP 122 ■ ABRIL DE 2006 ■ 83


O HUMANIDADES

A delirante

encenação da

Mais de 6,1 mil textos originais de peças são resgatados do acervo do Deops e devem permitir que se reescreva a história do teatro paulista no século 20

GONçALO JúNIOR

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modo como as palavras são colocadas às vezes, com o tempo, pode revelar os absurdos de uma época. Em 4 de janeiro de 1932, para encenar a peça Andaime, de Paulo Torres, o produtor Raul Soares foi obrigado a seguir um ritual um tanto quanto bizarro pela inversão de valores. Ao encaminhar o texto ao censor do Departamento Especial de Ordem Social e Política (Deops), escreveu: "Venho, respeitosamente, requerer a vossa senhoria para que se digne de mandar censurar a peça em três atos Andaime". Soares ainda teve de pagar pelo serviço - 60 mil-réis em selos "estaduais". A ditadura do Estado Novo estava longe de começar, mas já havia nesse momento uma caça aos "subversivos" da ordem pública e da moral e seu texto foi integralmente vetado no primeiro momento. Em seu parecer, o censor Antônio Romão de Souza Campos recorreu ao seu suposto conhecimento crítico para desqualificar o diretor: "A peça teatral é um arranjo sem técnica, sem nenhum merecimento literário, que visa unicamente à propaganda subversiva". O produtor recorreu e o chefe da censura determinou que sete censores fossem ver o ensaio. Todos votaram pela liberação. O relatório mais entusiasmado foi de Emiliano Di Cavalcanti (1897-1976), expoente das artes plásticas brasileiras, idealizador e um dos organizadores da Semana de Arte Moderna de 1922, mas que completava o orçamento doméstico como censor do Deops: "Nada oponho à representação de Andaime, comédia de um legítimo escritor brasileiro. Seria ridículo proibir a um artista, já conhecido por suas idéias, com livros publicados onde elas se afirmam, que trouxesse ao teatro seu ponto de vista". Quase 30 anos depois, a censura se mostrava ainda mais implacável. Em abril de 1961, o censor Benjamin Raymundo da Silva, do mesmo Deops, esforçou-se para mostrar conhecimento analítico e poder de compreensão do

que se escondia por trás do texto de A semente, de Gianfrancesco Guarnieri (1934): "É sabido que, para os comunistas, a instituição que deve ser combatida com veemência e intransigência é a policial porque constitui a ação coercitiva que impede a propagação do ideal vermelho. Isso o autor consegue com maestria. Parece um Lenine redivivo". Em seguida, justificou o veto integral da peça: "Homem culto, conhecedor do assunto, Gianfrancesco Guarnieri, nesta peça, expõe matéria perigosa. A representação é prejudicial". As experiências de Soares e Guarnieri estão registradas num tesouro da memória nacional que ainda está sendo dimensionado: o arquivo do Deops sobre censura ao teatro em São Paulo entre 1926 e 1968. São 6.147 processos de peças submetidas à tesoura. Cada um traz anexo o texto original, exatamente como foi pensado pelo autor. A maioria é inédita - 894 foram parcialmente vetados e 43 integralmente proibidos, sem contar que 1.519 tiveram restrições quanto à faixa etária. A papelada inclui desde casos notórios - com detalhes desconhecidos - como Roda viva, de José Celso Martinez Correia, proibida depois de um ano em cartaz; a censura a todas as peças de Nelson Rodrigues (1912-1980), Dias Gomes (1922-1999), Plínio Marcos (1935-1999), Augusto Boal e Guarnieri. Ou desconhecidas e inéditas de vários autores, além de centenas de textos de teatro amador, circo-teatro e peças estrangeiras. O acervo recebeu o nome de Miroel Silveira (1914-1988), professor de teatro, diretor, produtor e autor, responsável por literalmente "salvar" os processos de censura. A documentação cobre o período quando a censura era estadual - embora fosse submetida à esfera federal - e hoje pertence ao patrimônio da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP). No momento, 25 pesquisadores estão debruçados sobre os documentos, com a coordenação da professora doutora Maria Cristina Castilho Costa. As pastas reúnem solicitação do produtor ou diretor, pareceres dos censores - com seus respectivos nomes -, pedidos de revisão (quando havia veto ou proibição integral), nomes das companhias teatrais - muitas esquecidas ou


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Cena da montagem original de Eles n達o usam black-tie (1958), de Gianfrancesco Guarnieri e abaixo, da de Vestido de noiva (1943), de Nelson Rodrigues

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sem registro histórico - recortes, de jornais e outros anexos que compõem um dos mais ricos legados para contar a história do teatro paulista. m maio sai o primeiro fruto da pesquisa: o livro Arquivo Miroel da Silveira: a censura em cena, de autoria de Maria Cristina, com edição da FAPESP, Edusp e Imprensa Oficial. A obra traz um inventário do acervo, contexto político e até entrevistas com quatro ex-censores do Deops - somente um dos remanescentes se negou a falar -, diretores e produtores que foram vítimas de vetos. No segundo semestre será lançado o volume Palco, picadeiro e censura: ensaios sobre produção cultural em São Paulo, de Roseli Fígaro. Parte do que já foi levantado pode ser consultada no site www.eca.usp.br/censuraemcena Estão sendo desenvolvidas três linhas de pesquisa no momento: "Palavras proibidas: um estudo da censura no teatro brasileiro", da professora doutora em jornalismo Mayra Rodrigues Gomes; "Teatro amador: uma rede popular de cultura na cidade de São Paulo", de Roseli Fígaro; e "A censura e a influência no teatro, no rádio e na televisão", de Maria Cristina. "Com a base de dados que formamos, pudemos perceber que muitos nomes do teatro são os mesmos que construíram o rádio e a TV no Brasil", justifica a pesquisadora. Segundo ela, a amplitude de possibilidades que os documentos do Deops permitem pode ser exemplificada com o fato de o teatro ter influenciado muito a televisão nos primeiros anos. Não apenas com os teleteatros ao vivo. O humorístico A praça é nossa, exibido há décadas, tem a mesma estrutura de quadros amarrados por um tema e um apresentador do teatro de revista. Maria Cristina destaca ainda a importância do circo-teatro no passado. Só para ter uma idéia, enquanto a cidade de São Paulo mantinha apenas três teatros, havia mais de 120 companhias do gênero a percorrer todo o interior e a capital. A pesquisa de Mayra Rodrigues parte do pressuposto de que a censura, en86 ■ ABRIL DE 2006 • PESQUISA FAPESP 122

"maldito" dramadurgo Plínio Marcos: alvo favorito dos censores

quanto dispositivo disciplinar, tem como estratégia prioritária a exclusão de palavras. Assim, ela vem catalogando os termos mais vetados em diferentes períodos. Engana-se quem imagina que tudo tem a ver com pornografia. A partir do ponto de vista do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), ela está analisando o discurso da censura e as relações de poder. Trata-se de um enfoque dos mais reveladores. Mayra encontrou surpresas, como o veto que se fazia à palavra café sempre que estivesse relacionada com o governo. Aconteceu, por exemplo, com a peça Feitiço, de 1942, escrita por Oduvaldo Viana (1892-1972). "Como o censor não justificava o veto, ao buscar o contexto social, econômico e político, verifica-se que o país naquele momento passava por uma política cafeeira bastante complicada e polêmica, quando se queimavam os excedentes do produto em grandes quantidades para garantir um bom preço no exterior." Doação - A descoberta do acervo de peças submetidas à censura do Deops aconteceu por acaso, em 1988. Miroel Silveira sabia que o órgão de repressão

fora responsável pela proibição de peças porque ele mesmo se tornara vítima em algumas ocasiões, como autor e diretor. Segundo contou, assim que foi anunciado o fim da censura pela Constituição de 1988, procurou o Deops para examinar os processos como pesquisador. Encontrou perto de duas centenas de volumes com os mesmos encadernados e jogados no canto de uma sala. Ao ser informado de que tudo seria incinerado em breve, perguntou se não podia levá-los. O funcionário teria concordado desde que retirasse tudo naquele mesmo dia. Dito e feito. Conseguiu uma perua e levou tudo para sua sala, na ECA. Silveira, porém, morreu poucos meses depois. Com a reforma da faculdade em 1992, a documentação foi levada para a biblioteca, onde ficou dez anos, enquanto não se lhe definia um destino. Ninguém se arriscou a fazer um projeto de pesquisa. Em 2002, Maria Cristina assumiu a presidência da comissão de bibliotecas e, como socióloga por formação, ao saber do arquivo, começou imediatamente sua catalogação, com a ajuda da bibliotecária Bárbara Júlia Leitão e a diretora da biblioteca Lúcia


de outros países, trazidas por imigrantes e encenadas na língua original. Nesses casos, recorriam a um tradutor juramentado que fazia uma sinopse. Há na coleção textos em espanhol, árabe, alemão, lituano. Suas encenações tinham o propósito de preservar nas colônias as tradições dos imigrantes. Os pesquisadores acreditam que traziam conteúdo subversivo e talvez parte dessas peças nem mais exista HM em seus países de origem.

Recine. Em 2004, a pesquisa tornou-se um projeto temático da FAPESP, com suporte para seu desenvolvimento. Pelo que já foi inventariado, é possível saber que entre as décadas de 1920 e 1960 nada menos que 11 órgãos públicos censuraram o teatro em São Paulo. Descobriu-se que, em alguns momentos, os ministérios da Justiça e da Educação e Cultura brigaram para ver quem ficava com a função. Depois do veto ou da liberação, a peça ainda passava pelo crivo do Juizado de Menores. O que se percebe, diz Maria Cristina, "é que a censura sempre foi tratada como caso de polícia, desde a época colonial, quando muitos artistas foram presos". Na sua opinião, é incrível que o Brasil acabou por nos habituar com essa forma de repressão. "Uma vez que o espetáculo é sempre único a cada apresentação, quando os artistas falam ao vivo para a platéia, isso fez com que o teatro fosse escolhido como palco da briga ideológica e da perseguição aos ideários da esquerda." Para a pesquisadora, o impacto do período em estudo está nas conseqüências nefastas da censura prévia, uma vez

que havia o temor de que tudo fosse perdido, pois a produção inteira da peça - aluguel de teatro, construção de figurinos, contratação de técnicos, ensaio do elenco etc. - era feita antes da ação dos censores. Na fase áurea do teatro de revista - e suas vedetes com as pernas de fora - a repressão só se dava por satisfeita depois de assistir ao ensaio, uma vez que figurinos, gestos e expressões podiam exprimir a que estava proibido. "A censura busca nas entrelinhas um subtexto, a intencionalidade nos interstícios da ocultação." Em alguns processos há registros de que os censores interferiam até na iluminação como forma de amenizar o impacto de alguma cena. Se tivesse insinuação erótica, determinavam que a cena fosse representada de forma "bem rápida". Gêneros populares como circo-teatro e teatro de revista foram especialmente perseguidos sob a desculpa de defesa da língua portuguesa, da educação e da moral. "Com isso, tiravam-lhes a espontaneidade, o jogo de palavras." Por outro lado, o texto estrangeiro traduzido, considerado mais sofisticado e elitista, era mais aceito. Os censores também lidavam com as peças vindas

Tipos - O mergulho de Maria Cristina nos arquivos da censura lhe permitiu estabelecer quatro tipos básicos de censura predominantes no trabalho de quem achava que cabia agir em nome do Estado contra a subversão: a censura religiosa, que não permitia referências a padres, Igreja, Jesus Cristo, Nossa Senhora e Deus; a política, que não admitia citações do Exército, pobreza, governo e determinados políticos; a moral, com veto a cenas de erotismo, palavrões e situações de duplo sentido; e a que ela chama de censura social, uma vez que temas como racismo não eram tolerados - judeus, negros etc. Entusiasmada com o material de pesquisa e indignada ao mesmo tempo quando fala da censura, Maria Cristina faz questão de ressaltar o prejuízo que essa forma de repressão causou às artes no Brasil. Conta que foi procurada por um antigo autor e diretor do interior que soube do projeto e veio ver se o texto de sua peça ainda existia. Emocionado, com os olhos cheios de lágrimas, culpou a censura pelo desencanto e por ter deixado o teatro ainda no colégio. "A censura atrasou a vida artística brasileira em 30 anos, impediu que talentos florescessem, que ciclos fossem completados." A pesquisadora diz que é preciso perceber que o censor atrasa o desenvolvimento do público, infantiliza a platéia quando assume um papel paternal por achar que esta não tem discernimento para escolher o que deve ver. A tesoura, acrescenta, era manejada por pseudo-intelectuais, burocratas despreparados e apadrinhados que não tinham o que fazer. A não ser cuidar da parte suja em tempos de intolerância. Não significa que a censura acabou. Hoje continua em nome da moral, dos bons costumes e dos bons negócios. • PESQUISA FAPESP 122 ■ ABRIL DE 2006 ■ 87


O HUMANIDADES ARQUITETURA

Quatro paredes mágicas

Livro reúne textos de Sérgio Ferro, críticas apaixonadas da arquitetura

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um divertido paradoxo, após a queda do Muro de Berlim (que, apesar de horrendo, era uma construção arquitetônica), os arquitetos estão entre os poucos e últimos a continuar, com coragem utópica, defendendo idéias marxistas libertárias, que muitos hoje preferem ver como um incômodo entulho autoritário do passado. Está aí Oscar Niemeyer, um comunista convicto e suave como os pilotis de Brasília, e, no outro extremo, o curitibano Sérgio Ferro, que, quase septuagenário, continua o mesmo professor, arquiteto, teórico e pintor engajado que, durante a ditadura militar, uniu-se à Aliança Libertadora Nacional, de Marighela, e, em 1968, colocou uma bomba no estacionamento do Conjunto Nacional, em São Paulo, onde funcionava o consulado americano. A explosão amputou a perna de um passante. A busca pelo caminho da violência e o ato marcaram o ápice do seu desânimo com a profissão, que antes era fonte de entusiasmo para o jovem Sérgio, para quem a arquitetura era um instrumento capaz de transformar a sociedade. O grupo formado por ele, Rodrigo Lefèvre e Flávio Império logo percebeu que "havia uma impossibilidade humana de suportar a contradição entre o discurso cheio de boas intenções dos arquitetos e a queda dessas intenções numa realidade das mais difíceis, o canteiro de obras, lugar privilegiado da exploração e da violência", nas palavras de Ferro. Leituras de Kant, Marx, Hegel transformaram o "homem de desenhos" no crítico de palavras que abominava o que o capitalismo fizera a sua amada arte: "São nossos candangos a desabar dos andaimes que sustentam as montadoras abarrotadas de robôs. Nosso desenho de arquitetura continua a ser instrumento da extração da mais-valia nos canteiros, maisvalia que migra para alimentar os lucros dos setores 'avançados'", critica, revelando, na ira, um indisfarçável amor pela profissão, "violada" pelo capital. Assim, não basta ver Sérgio Ferro, suas casas experimentais, dotadas da "poética da economia", com suas abóbadas e seus materiais acessíveis e brasileiros. Também é preciso ler seus escritos teóricos, agora reunidos em Sérgio Ferro: 40 anos de produção (Cosac

Naify, 456 páginas, R$ 65,00), 19 artigos (bem como palestras e entrevistas) escritos entre 1963 e 2003, com toda a sua produção crítica, idealizada no Brasil e na França. Entre eles, destacam-se os clássicos: "O canteiro e o desenho", ponto fulcral de seu pensamento sobre a questão da moradia; "Arquitetura nova", de 1964, em que disseca a desfiguração a que foi submetida a arquitetura moderna nacional, colocada a serviço do desenvolvimentismo burguês dos militares; e, entre tantos outros, análises devastadoras de ícones como Niemeyer, Le Corbusier e Brasília, cuja construção Ferro acompanhou de perto e foi o mote para transformar o artista em militante e pensador crítico. "Entre 1958 e 1961, fui freqüentemente a Brasília e assisti um pouco ao nascimento da capital. Nós havíamos de modificar o Brasil, tudo com uma perspectiva social muito bonita. Mas, ao chegar lá, via aqueles desenhos lindos do Niemeyer, brancos, puríssimos, mas uma massa de gente ultramiserável, ultra-explorada, construindo aquilo. Foi um enorme contraste ver como era produzida a arquitetura: o nosso desenho, teoricamente carregado das melhores intenções, era realizado nas piores condições que se possa imaginar. Isso quebrava o nosso sonho de arquiteto", confessa Ferro. Mas o desencanto levou à criação. "Nessa atmosfera de confiança no futuro e na força racionalizadora e saneadora da industrialização, Sérgio, Rodrigo e Flávio dão um passo surpreendente: como a industrialização e suas bênçãos iriam tardar, eles buscaram uma solução para a casa popular que fosse para já, barata, fácil e pré-industrial", nota Roberto Schwarz no posfácio do livro. Num espírito próximo da "estética da fome", de Glauber Rocha, os arquitetos passam a buscar uma democratização da técnica, uma aliança entre técnicos e trabalhadores. Daí as casas com abóbadas, feitas de material barato, de princípios construtivos simples, fáceis de aprender e de ensinar a fazer. "Um abrigo, uma oca, que adquiria estatuto metafórico de protótipo para uma nova aliança de classe, para a aliança produtiva entre a intelectualidade e a vida popular, à procura de uma redefinição nãoburguesa da cultura", nota Schwarz. Essa "poética da economia" colocou Ferro frente a frente com seu métier, obrigando-o a rejeitar o que, um dia, ao lado do seu mentor, o arquiteto Vilanova Artigas, idolatrara. ArPESQUISAFAPESP122 ■ ABRIL DE 2006 ■ 89


Casa Bernardo Issler, Cotia, 1961

quitetura Nova foi um dos seus primeiros petardos. "Sérgio investiga por que, após 1964, a celebrada arquitetura moderna brasileira não só se desfigura, como se conforma à nova situação. Ele constata o mal-estar numa arquitetura que, naquele momento adverso (a ditadura militar), teimava ainda em conferir aparência de ordem racional a um objeto (a residência burguesa) de reconhecida insignificância, bem como a irracionalidade da encomenda individual, quando confrontada com as soluções de massa que se faziam, de fato, necessárias", observa Pedro Arantes, o organizador dos textos teóricos integrais de Ferro. Cada vez mais, ficava patente a dissociação entre o progresso técnico e qualquer promessa de progresso material e Sérgio começa a esboçar uma economia política da arquitetura. Em "A produção da casa no Brasil", revela 90 ■ ABRIL DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 122

como, dada a abundância de mão-deobra, interessava aos empresários manter o setor da construção civil em patamares primitivos, com muito pessoal e pouca técnica e maquinário, visão que fazia do canteiro de obras um campo fértil para a produção de mais-valia, apropriada na indústria. O passo seguinte foi a composição de "O canteiro e o desenho", cuja tese central vem de Marx, ou seja, de como tudo sob o capital, incluindo a arquitetura, é mercadoria que o serve e, como tal, procura a mais-valia que alimenta o lucro. "Pouco importa a ideologia do arquiteto: ele serve ao capital. Daí decorrem: a irracionalidade do projeto (a simplicidade da construção exige injeções de boas doses de mistificação para justificar a 'necessidade' da dominação; desaparecimento de qualquer vestígio de arte (fruto exclusivo do traba-

lho livre); e, no pólo operário, miséria, desqualificação etc." Como na linha de montagem, o operário é alienado do processo total, centralizado nas mãos e nos desenhos técnicos do arquiteto, cuja figura ganha ares artísticos e superiores. Para Ferro, segregado do todo, o trabalhador se "idiotiza", soterrado na suposta neutralidade técnica do "mestre". Foi um processo histórico e concomitante ao desenvolvimento do capitalismo. Sérgio relembra a figura de Brunelleschi, no fim do gótico italiano, e a feitura da cúpula da Igreja Santa Maria de Fiori, em Florença. "Ele tinha trabalhadores magníficos, artesãos de grande capacidade que tinham feito, praticamente sem arquiteto, as igrejas românicas e góticas. Brunelleschi vai buscar uma linguagem do passado que não era a dos operários que estavam ali: bota coluninha, bota capitei, bota coluna


Casa Albertina Pederneiras, São Paulo, 1964

Casa Sylvio Bresser Pereira, São Paulo, 1964

grega. O novo desenho já não é mais o dos trabalhadores, não está à disposição do conhecimento deles. Assim, de um lado há a estrutura massiva de tijolos que sustenta o edifício e, na frente, colunas, frontões etc." Para Ferro, nesse momento, a arquietura se transforma na "arte do travestimento", na necessidade de apagar qualquer traço da simplicidade da construção feita pelos operários, escondida sob os ornamentos, sob a decoração. Encobria-se, assim, tudo aquilo que, avalia, é a verdadeira linguagem, a verdadeira prática construtiva, apagando os "traços" do trabalho. "Para que a exploração se instale sem excesso de coerção cotidiana, é preciso pôr cunhas, rachadura, complicar, sombrear a simplicidade. Desde o início da penetração do capital no canteiro, no século 12, as ordens do arquiteto afastam a normalidade do construir. O resultado é

que os índices deixados pelo processo de trabalho passam a ser não pertinentes", analisa. Daí, é claro, a arquitetura que ele, Rodrigo e Império passam a defender, calcada na simplicidade e para servir à moradia das grandes massas populares. Para ele, era possível que os canteiros de obras se transformassem num terreno fértil de trabalho livre, de troca de conhecimentos, momento em que a arquitetura voltaria a sua razão de ser arte, como nas palavras de William Morris, citadas por Ferro, no sentido em que "arte é a alegria no trabalho". "Eu tentei fazer uma história da arquitetura de cabeça para baixo, olhando a arquitetura de baixo para cima, do canteiro de obras para o desenho, e não o contrário." O desenhista de obras se transmuta em humanista. "Sérgio considera que trabalho e emancipação caminham juntos, ou seja, a libertação do sujeito não

se dará pela conquista do tempo livre, no ócio, na abstração intelectual, mas na re-significação do trabalho manual", avalia Arantes. "A negação do trabalho abstrato não será sua automação, o nãotrabalho, mas o retorno ao trabalho concreto útil, simultaneamente intelectual e manual, e à sua expressão poética, o ornamento." Para Ferro, entre a mão que faz e seu objetivo se inseriu, indevidamente, o desenho do projetista, cuja missão seria separar essa mão do seu objetivo, o fazer do feito. Em vez das elucubrações modernas, a serviço de poucos, Sérgio optou pela simplicidade que atingiria muitos e que revelaria, sem vergonha, as marcas do fazer humano. "Só uma arquitetura do trabalho livre (incluindo o trabalho do arquiteto) merecerá respeito", avisa Ferro. • CARLOS HAAG PESQUISA FAPESP 121 ■ MARÇO DE 2006 ■ 91


Resenha

A caixa pré-modernista Kit da Edusp traz à luz vanguarda indigenista de Rego Monteiro

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CARLOS HAAG

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ale em índio malandro e você logo pensará em Macunaíma. Ouça a palavra antropofagia e logo virá à sua cabeça o nome de Oswald de Andrade. Pesquise vanguarda no Brasil e só se comentará a Semana de 22. Mas, bem antes de tudo isso ser inventado, um pernambucano pouco conhecido influenciou a cabeça desses paulistas tão celebrados. Vicente do Rego Monteiro (1889-1970) foi o moderno número um e morreu se queixando de que poucos o reconheciam como tal. A justiça tardou e não falhou. A Edusp acaba de lançar a caixa Do Amazonas a Paris: as lendas indígenas de Vicente do Rego Monteiro, um kit que, nos moldes da Caixa modernista, de 2003, traz, em edição fac-similar, com tradução para o português (o original é em francês), duas raridades de Rego Monteiro, editadas na França entre 1923 e 1925, respectivamente: Legendes, croyances et talismans des indiens de VAmazone e quelques visages de Paris. Organizada pelo professor da USP Jorge Schwartz, a caixa com os livros reproduz originais que estão guardados no acervo de Mário de Andrade no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP). O mesmo kit serviu como catálogo para a exposição homônima que, até fevereiro, estava em cartaz em Paris, na Maison de FAmérique Latine. Lendas e crenças é uma deliciosa mistura de estética marajoara e orientalismo japonês ilustrando a cosmogonia tapuia e tupi, como o nascimento da noite,

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Do Amazonas a Paris: as lendas indígenas de Vicente do Rego Monteiro

da lua e do mar; histórias sobre o broto das palmeiras; a origem do Amazonas; gênios e poderes do amor boto; e um sem-número de historietas sobre Jorge Schwartz (org.) medos, bichos, assombrações, velhos de mil mulheEdusp res, cobras e personagens 200 páginas míticos como Curupira, R$ 150,00 Caapora, Tupã etc. A apresentação do fac-símile é primorosa e os desenhos de Rego Monteiro, de um vanguardismo inaudito. Impossível não pensar que, cinco anos depois deles, Mário de Andrade buscaria nesses livros inspiração para seu Macunaíma. O antropófago desenhado pelo pernambucano certamente marcou Oswald. E, bem antes da Semana, o pintor, na França, já sabia que o caminho do novo passava pela recuperação, estilizada, do passado mítico das nossas raízes mais ancestrais. Era a ousadia de mostrar a brasilidade mais extremada como contraponto da cultura europeizada e, ainda mais abusado, na própria Europa. Daí a paródia genial de "Algumas vistas de Paris", em que, nos moldes dos antigos viajantes europeus que vinham ao Brasil para descrever o exotismo, Rego Monteiro inventa um diário de um velho cacique em visita aos principais pontos turísticos da cidade-luz: a torre Eiffel ("São os escombros da torre de Babel"), o Trocadero ("Foi com o maior aperto no coração que vi meus ancestrais em posturas estranhas"), o arco do Triunfo, entre outros. O desenho do nativo-Rego Monteiro é uma primorosa mistura de art déco geométrica e o traço marajoara, presente no outro livro da caixa. Um programa de índio, no bom sentido da expressão.


Livros

Os judeus no Brasil: inquisição, imigração e identidade Keila Grinberg (org.) Civilização Brasileira 476 páginas, R$ 49,00

Desde 1500 que os judeus e os cristãos-novos fazem parte da cultura brasileira, vindos, não raro, como fugidos de perseguições nos países de origem. O livro é um estudo que reúne vários artigos, entre os quais: Inquisição, judeus e cristãos-novos no Brasil colonial; Imigração e identidade judaica no Brasil contemporâneo; Imigrantes e refugiados judeus em tempos sombrios; entre outros. Editora Record (21) 2585-2000 www.editorarecord.com.br

UMANOCKAfUDC nstaSi&SBUS

Uma história da cidade da Bahia Antônio Risério Versai Editores 624 páginas, R$ 59,00

Com modéstia, o escritor Antônio Risério faz questão do artigo que precede o título de sua saborosa e baianíssima história de Salvador. Afinal, afirma, a sua "é uma história entre outras possíveis". A tese do autor é que, apesar de nascida sob a égide de uma severa hierarquia, Salvador se caracteriza por sua pioneira informalidade, pelos amplos espaços de convívio, pela reunião da cultura negra com a erudita, européia. Versai Editores (21) 2239-1778 www.versal.com.br

O inimigo do rei: uma biografia de José de Alencar

Pensando com demônios: a idéia de bruxaria no princípio da Europa moderna

Lira Neto Editora Globo 432 páginas, R$ 45,00

Stuart Clark Edusp 984 páginas, R$118,00

QUECOlfi ÍWi.V.'

Mais do que um dos nossos maiores autores, José de Alencar também ocupou outros papéis de grande destaque na vida pública nacional, como jornalista, político e um notável polemista. Capaz de, ainda jovem, atacar sem piedade Gonçalves de Magalhães, o poeta favorito do rei. Foi tachado de indecente e imoral, amargou a pecha de "escrever errado" na sua missão de renovar a literatura brasileira e merece, com certeza, esta biografia detalhada e plena de anedotas. í ACABOU IHHMIMgo o!

Um portentoso livro de referência que mostra o interesse de intelectuais europeus (filósofos, teólogos, médicos, juristas) pelo tema da demologia, uma paixão iniciada no século XV e que se estenderia, moldando mentalidades e pessoas, até o século XVIII. Conceitos como Deus, a ciência, os costumes, a cultura, a moral, os valores, todos sofreram a influência desses estudos nada ortodoxos. Edusp (11) 3091-4008 www.edusp.com.br

Editora Globo (11) 3767-7880 www.globolivros.com.br

A revolução burguesa no Brasil

Medalhistas olímpicos brasileiros: memórias, histórias e imaginário

Florestan Fernandes Editora Globo 512 páginas, R$ 55,00

Katia Rubio Casa do Psicólogo / FAPESP 368 páginas, R$ 47,00

Um clássico da sociologia brasileira, agora reeditado pela editora Globo, que vai colocar no mercado toda a obra de Florestan, numa coleção organizada por Maria Arminda Nascimento Arruda. O estudo analisa um grande período histórico que vai da Independência nacional, tempo de constituição da nação brasileira, até os desdobramentos do golpe militar de 1964.

Preocupada em entender as dimensões psicológicas dos esportistas brasileiros que participaram e venceram Olimpíadas, Katia Rubio entrevistou vários atletas, muitos hoje esquecidos, para formar um quadro de como se desenvolveu no Brasil a importância dada aos esportes. Iniciado com uma mentalidade militarista e higienista, o esporte foi sempre em busca do jovem. Os depoimentos são fundamentais.

Editora Globo (11) 3767-7880 www.globolivros.com.br

Casa do Psicólogo (11) 3034-3600 www.casadopsicologo.com.br PESQUISA FAPESP 122 ■ ABRIL DE 2006 ■ 93


Ficção

Um jardim murado REINALDO JOSé LOPES

roga de GPS", xingou Sean. Em retrospecto, tinha sido uma péssima idéia desde o começo. Todo mundo estava de folga no fim de semana, e boa parte do pessoal tinha corrido para pegar o primeiro vôo para Jacarta, ou mesmo para Bali (apesar dos alertas de bomba). Mas ele tinha decidido "conhecer a floresta um pouquinho melhor". "A gente passa dia e noite curvado dentro desses muros de calcário. Eu adoro esse trabalho, mas tem um monte de espécies por aí que a gente deveria conhecer antes que elas entrem para o registro fóssil, moçada", dissera então. Ele se lembrava de que Pete, o paleoantropólogochefe, tinha rido e sacudido a cabeça. "Companheiro, agora eu sei por que você entrou nesse negócio de caçar hominídeo. Você é uma droga de sonhador, isso sim." E agora já passava das três e, depois do que tinha parecido um cochilo inocente encostado a um tronco, ele estava inegavelmente perdido. Nem adiantava tentar achar o leste pela posição do Sol debaixo de um dossel daqueles. "Tenho de encontrar uma clareira. Não deve ser tão difícil com tanta madeireira por aí hoje em dia", pensou. Sean escolheu uma direção qualquer e foi em frente. Os pássaros ficaram estranhamente quietos depois de um tempo, até que ele viu um trecho de céu aberto e escutou o que parecia ser uma voz de criança a algumas dezenas de metros de distância. Talvez fosse uma família de lavradores, levando a vida dura da floresta tropical. Ele então entrou na clareira e olhou para baixo havia uma depressão não muito funda, cheia de grama baixa, moitas e pequenas flores. "Eles não chamam esse lugar de Flores à toa", sorriu Sean consigo mesmo. 94 ■ ABRIL DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 122

O antropólogo viu os meninos cujos gritos escutara: tinham uns cinco ou seis anos, pelo jeito. Estavam de costas para ele e andavam nus pela grama, com bastões na mão. Ele os saudou em indonésio (usando as poucas palavras que conhecia) e, por alguma razão, aquilo pareceu assustá-los. Correram e gritaram de novo, e três garotos ligeiramente mais velhos, também com algum tipo de bastão, saíram de trás de uma moita mais alta, caminhando rápido na direção de Sean. Não pareciam lá muito contentes. E então, quando chegaram perto o suficiente para que ele visse o rosto deles, o mundo de Sean virou pó. ******** Sean não precisava medir suas mandíbulas nem plotá-las ao lado de uma amostra de povos do resto do mundo para saber, para sentir nos próprios ossos que eles ficavam de fora da variação normal do Homo sapiens — que, literalmente, eles não eram humanos modernos. As cabeças eram tão pequenas — Sean, um australiano grandalhão, quase seria capaz de cobri-las inteiras com as duas mãos. E os "garotos mais velhos" tinham tanto pêlo no corpo — tanto quanto um europeu adulto — que só podiam ser "gente grande". O antropólogo estava tão atordoado que precisou de um tempo para perceber que um triângulo de bastões com pontas de pedra acabara de cercá-lo. Sons (aquilo eram palavras?) saíam das bocas nervosas dos ilhéus. Sean respirou fundo. "Pelamordedeus, não me vá estragar tudo, companheiro", resmungou. Limitouse a levantar as mãos, palmas viradas para fora, e a sorrir, tentando não olhar os lanceiros direto nos olhos. Por alguma razão, isso pareceu acalmar os ilhéus. Um deles veio até Sean, uma figura minúscula, de ar


digno, e olhou fundo nos olhos cinzentos do antropólogo. Ele também sorria. Seja como for, os juvenis (ou crianças?), depois daquele olá assustador em indonésio, tinham se acalmado e estavam se aproximando de novo. Meninos são meninos em qualquer lugar: o menorzinho cutucou o traseiro de Sean com a lança e saiu correndo e rindo (sim, eles riam). Ele logo voltou para inspecionar o gigante de cabelo vermelho. Sean tocou o rosto dele e, devagarzinho, abriu a boca do menino. Havia linhas de crescimento nos dentes: o garoto claramente tinha passado por maus bocados, mas, no geral, parecia saudável. O sol poente deu a Sean uma boa idéia de onde diabos estava, afinal de contas, e ele sentiu um impulso esquisito para voltar para a base o mais rápido possível. Passava das oito e uma chuva furiosa estava encharcando o mundo quando chegou. Não conseguia ligar o telefone, ainda não. Sean secou o cabelo e decidiu que precisava de uma boa leitura. O terceiro chimpanzé estava em cima da cama, e ele retomou o livro de onde tinha parado na noite anterior. Coincidência ou não, o tema era a Tasmânia. "Uma vez que os únicos barcos dos tasmanianos eram jangadas que só serviam para jornadas curtas, eles não tiveram nenhum contato com outros humanos desde que o aumento do nível do mar separou a Tasmânia da Austrália há 10 mil anos. Confinados no seu universo particular por centenas de gerações, eles sobreviveram ao mais longo isolamento da história humana moderna - um isolamento que só foi retratado de forma parecida pela ficção científica. Quando os colonos brancos da Austrália finalmente encerraram esse isolamento, não havia na Terra dois povos menos equipados para entender um ao outro do que os tasmanianos e os brancos."

Sean leu sobre a caçada, o confinamento e o extermínio lento e sistemático de cada homem, mulher e criança tasmaniana. Leu sobre os cientistas vitorianos enlouquecidos que mutilaram, enterraram, escavaram e voltaram a enterrar os restos daquela gente como se fossem troféus, como curiosidades que só se prestavam aos shows de horrores ou aos museus. Leu sobre Truganini, que tão horrorizada estava com tal destino que fez seus guardiões brancos prometerem que seu corpo seria jogado em mar aberto. Uma promessa que, claro, eles não cumpriram. Sean estremeceu. Não conseguia tirar os olhos e os dentes minúsculos do menino da cabeça. Seu O senhor dos anéis também estava lá (ótima coisa para carregar quando se procura hobbits, pensou ele, embora não desse jeito tão literal). Sabia exatamente onde abrir o livro: era tão amargamente apropriado. Ele quase podia ouvir a voz de Gildor Inglorion falando com Frodo: "O vasto mundo está à volta de vocês: podem se cercar por dentro, mas não podem cercá-lo para fora para sempre". "Dane-se. Eu pelo menos posso tentar", respondeu Sean. Quando seus colegas voltaram, não ouviram nem uma palavra sobre o encontro na floresta. A equipe ficou desapontada ao saber, alguns anos mais tarde, que o governo indonésio tinha declarado o sítio parte de um santuário inviolável de vida selvagem, proibindo futuras escavações. Aparentemente, havia uma espécie muito ameaçada de primata ali. A boca pequena, as pessoas comentavam que Sean era muito amigo dos lobistas.

REINALDO JOSé LOPES é repórter da editoria de Ciência do jornal Folha de S.Paulo e mestrando em Estudos Lingüísticos e Literários em Inglês da USP. PESQUISA FAPESP 122 ■ ABRIL DE 2006 ■ 95


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