Os riscos da cesárea

Page 1

Junho 2006 • N° 124

CIRURGIAS DESNECESSÁRIAS AUMENTAM MORTES DE MÃES EBEBÊS

,

REA


PESQUISA RESPONDE 06.05.06

e pela população. Os pesquisa-

ENTREVISTA

dores da empresa Lótus Química Ambiental acabam de desen-

06.05.06

volver uma tecnologia que tem muito a contribuir nesse sen-

• A presentadora

• Tatiana Moncaio - Por que as pessoas têm pa-

tido. Trata-se de um pó, que ao

- Que diferenças já foram cons-

vor de piolho?

ser jogado em pequenas quan-

tatadas entre o homem e a mu-

• Cesar Ades, do Instituto de

tidades na superfície da água

lher no desenvolvimento de

de um lago, por exemplo, forma

doenças coronarianas?

Psicologia da USP

uma película ultrafina que re-

- Esta pergunta tem a ver com

duz a evaporação da água. Mar-

• Anton io Mansur, coordena-

a relação entre o ser humano e

cos Gugliotti, coordenador do

dor do Núc leo de Estudos e

os animais. É importante lem-

projeto, nos conta que a pelícu-

Pesqu isas do Coração da Mu-

brarmos que o homem tem me-

la ou filme forma uma espécie

lher do Instit uto do Coraçã o

do de uma série de animais que

de barreira entre a atmosfera e

-Sabemos que as mulheres têm,

lhe poderiam ser prejudiciais.

a água.

Sem reposição hormonal

Esse sentimento data da pró-

antes da menopausa, uma proteção natural aos problemas cardio-

pria evolução da nossa espécie. Qualquer parasita que possa

PROFISSÃO PESQUISA

afetar a saúde do ser humano

13.05.06

provoca uma resposta de medo,

da microfilmagem e da restau-

vasculares. Depois da menopau-

ração. Esse trabalho me levou,

sa, a incidência dessas doenças

nos últimos qu inze anos, a coor-

começa a aumentar. A doença ar-

denar o Projeto Resgate de Do-

teriosclerótica pode acometer

de ansiedade. Embora não haja

• Esther Bertoletti, coordena-

cumentação Histórica Barão do

tanto o coração como também o

nada publicado especificamen-

dora do Projeto Resgate de Do-

Rio Branco, que reúne documen-

cérebro. No coração causa o in-

te sobre o temor de piolhos, me

cumentação Histórica Barão

t ação de diversos arquivos, bi-

farto agudo do miocárdio. No cé-

parece que ele tem a ver com

do Rio Branco

bliotecas e institutos históricos

rebro, provoca o acidente vascu-

esse medo generalizado de fa-

- Minha experiência profissio-

do Brasil e também do exterior.

lar cerebral, o popular derrame. É

tores que possam afetar a saú-

nal começou no Centro de Do-

Esse tipo de iniciativa, de juntar

importante destacar que, entre

de. Outros temores também se

cumentação da América Latina

documentos em uma seqüência

essas duas doenças, a que mata

encaixam nessa relação, como

em Roma. Quando voltei ao

lógica e colocar em suportes al-

mais as mulheres é o acidente

o medo de aranhas ou de cães.

Brasil, fui convidada a coorde-

ternativos, dá mais acesso ao

vascular cerebral, seguido do in-

É interessante lembrar que nem

nar um projeto da Fundação

pesquisador a fontes históricas

farto agudo do miocárdio. No der-

todo mundo tem esse tipo de

Ford junto à Biblioteca Nacio-

que estavam espalhadas em

rame, um dos maiores fatores de

medo. Algumas pessoas, em

nal, que consistia em levantar

muitos arquivos de vários paí-

risco é a hipertensão arterial sistêm ica, principalmente a pressão

particular, têm um medo exces-

fontes para a pesquisa histórica.

ses. Hoje em dia há formatos di-

sivo desses fatores e desenvol-

Desde então fui me dedicando

gitais que possibilitam ao pes-

máxima. É importante controlar

vem uma fobia. Em psicologia,

cada vez mais

à área de preser-

quisador ter todo esse material

essa pressão para tentar reduzir

estudamos muito a questão da

vação da documentação através

em casa.

fobia por aranhas. Há estudos

o número de mortes por derrame cerebral e por infarto agudo do

que buscam saber como isso sur-

miocárdio. Existe consenso de

ge. Muitas vezes, a fobia apare-

que, antes da menopausa, o es-

ce muito cedo, por influência de

trógeno produzido pelos ovários

algum adulto que deu alguma

confere a proteção natural das

dica para a criança ficar com

mulheres. Após a menopausa,

tanto medo. Há, no entanto,

existe uma insuficiência ovaria -

técn icas para resolver esse tipo

na, e a mulher deixa de produzir

de medo.

o estrógeno ou produz quantidade muito pequena. Nessa fase aumenta a incidência da doença ar-

NOTA

teriosclerótica. A grande pergunta

29.04.06

que se faz é a seguinte: após a menopausa vale a pena fazer a

• Apresentadora

reposição hormonal com estró-

- Economizar água, ainda mais

geno? Não vale. É consenso entre

em regiões secas como o Nor-

os cardiologistas que não se deve

deste brasileiro, é um desafio a ser enfrentado pelos cientistas

fazer a reposição hormonal com Espelho-d'água: pó forma película que reduz evaporação

o estrógeno.


POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

24 COOPERAÇÃO Programa ClnAPCe cria rede inéd ita para mapear a epilepsia

28 PROPRIEDADE INDUSTRIAL

48 PARADIGMAS Avan ço do criacionismo mobiliza cientistas na defesa da Teoria da Evolução

50

TECNOLOGIA

68

84

AGRICULTURA

ECONOMIA

Empresa desenvol ve equipamentos de precisão para aumentar a produ ção no campo

Crise entre Brasil e Bolívia tem mais razõe s geopolíticas do que econômicas

88

BIOLOGIA Sapos, rãs e pererecas exibem 70 cantos e 29 modos de reprodução

DESIGN Exposição em São Paulo mostra talento pouco conhecido de Santos-Dumont

Governo di vulga lista de espécies brasileiras para evitar apropriação de marcas no exterior

90

30

EXPOSIÇÃO Mostras em São Paulo e na Suíça relembram o "ano miraculoso" de Einstein

BIODIVERSIDADE Lei nacional emperra a coleta de amostras biológica s e paralisa pesquisa de campo

32 AVALIAÇÃO Artigo propõe um método qualitativo para avaliar desempenho de pesquisadores

CIÊNCIA

45 MEDICINA Ninguém sabe se são mesmo as células-tronco que funcionaram nos casos de sucesso relatados

HUMANIDADES

54 GEOLOGIA Rochas de até 250 milhões de anos contam sobre a formação do Brasil e os movimentos da cro sta terrestre

56 FÍSICA Detectores registram o desaparecimento de partículas mais abundantes do Uni verso

4 • JUNHO DE 2006 • PESQU ISA FAPESP 124

72 ENERGIA Petrobras cria técnica para uso de óleo de sója na produção de diesel

74 BIOQUÍMICA Toxina da serpente ajuda em cicatrização e atua na formação de novos vasos sangüíneos

76 METROLOGIA Novo relógio atômico capaz de atrasar um segundo em milhões de anos é desenvol vido no país

SEÇÕES

CARTAS ... . .. .. .. . . .... . .... 6

8 CARTA DA EDITORA . .. . ....... 9 MEMÓRIA ......... . ... •. . . . 10 ESTRATÉGIAS . . ... . .. . .. . .. . 18 LABORATÓRIO .. ............ 34 SCIELO NOTÍCIAS .. . ........ 58 LINHA DE PRODUÇÃO . . . . . ... 60 RESENHA . .. .. . ... . .. . .. . . . 94 LIVROS ... . .... ... .. . .. . .. . 95 FICÇÃO ... . . ..... . ......... 96 IMAGENS DO MÊS ... . ... .. . . .

CLASSIFICADOS . . . . .. .. . . .. . 98 Capa : Hélio de Almeida Foto: IT/Stock Ph otos


www. revi 5tape 5q ui 5a. f a p e5 p. b r

Professor emérito da USP, o historiador José Sebastião Witter relembra sua carreira e fala sobre ensino e futebol

38 CAPA Estudo publicado na revista Lancet mostra que cesariana desnecessária co loca em risco saúde da mulher e do bebê

64

80

COMPUTAÇÃO

SOCIOLOGIA

Projetas buscam melhorar o trânsito e a vida do usuário do transporte coletivo

Estudo da USP revela as raízes antigas da violência recente do PCC


c a r ta s@f a pes p. br

Peiijüii8 'FAPESP

As reportagens de Pesquisa FAPESP retratam a construção do conhecimento que será fundamental para o desenvolvimento do país. Acompanhe essa evolução.

• Números atrasados Preço atual de capa da revista acrescido do valor de pastagem. Tel. (11) 3038-1438

• Assi naturas, renovação e mudança de endereço Ligue: (11) 3038-1434 Mande um fax: (11) 3038-1418 Ou envie um e-mail:

fapesp@teletarget.com.br

• Opiniões ou sugestões Envie cartas para a redação de Pesqu isa FAPESP Rua Pio XI, 1.500 São Paulo, SP 05468-901 pelo fax (11) 3838-4181 ou pelo e-mail:

cartas@fapes p.br

• Site da revista No endereço eletrônico

www.revista pesquisa. fa pes p. b r você encontra todo s os textos de Pesqu isa FAPESP na íntegra e um arquivo com todas as edições da revista, incluindo os suplementos especiais. No si te também estão disponíveis as reportagens em inglês e espanhol.

• Para anunciar Ligue para: (11) 3838-4008

6 • JUNHO DE 2006 • PESQUISA FA PESP 124

Patentes Parabéns pela reportagem "Sistema imaturo" (edição 123) pela análise da pesquisa em tecnologia no Brasil. Sou inventor brasileiro (34 patentes no Brasil e uma nos Estados Unidos, Europa, Japão e China). No Brasil, as universidades não gostam de inventores, dificultam nossa vida. Parece que nos vêem como "concorrentes" ou algo semelhante. Estamos processando uma universidade brasileira (ação civil) que desenvolveu um projeto com dinheiro público, patenteou com dinheiro público, está desenvolvendo o invento com dinheiro público e cometendo grave erro de norma, que é primeiro faz~r busca das tecnologias existentes para não gastar dinheiro "inventando a roda". Infelizmente, esse fato, quando comp rovado, como estamos afirmando, mostrará uma face ruim da ciência brasileira, formada na sua maioria por acadêmicos. É uma face abominável (egocêntrica, egoísta, insensível, aética, alheia às verdadeiras necessidades do país). Cabe discutirmos as causas desse cenário.

a morte do mestre Irineu Serra é uma inverdade bisonha, pois o Alto Santo foi o único centro fundado em vida por Irineu Serra. E mais: o Mestre Irineu fundou a doutrina do Daime. Daime apenas. O tal "santo" foi agregado pelos que adicionaram o uso de maconha, a qual "batizaram" de "santa maria': Eis o trecho equivocado da matéria de Carlos Haag: "De início restritas à região amazônica, as religiões ayahuasqueiras hoje estão em todo o Brasil e em 20 países do globo, com direito a dissidências, como o Alto Santo e o Cefluris, ambas nascidas do Santo Daime, após a morte de Mestre Irineu': ALTI NO MACHADO

Rio Branco, AC

Nelson Pereira Fantástica a entrevista intitulada "Um cineasta imortal" (edição 122), em que revela por meio do nosso ilustríssimo e respeitado cineasta Nelson Pereira dos Santos as dificuldades e glórias da produção do cinema brasileiro. Fiquei ainda m aravilhada com a figura humana do cineasta, que aos 77 anos de idade revela-se um revolucionário incansável e com muito vigor e alegria para celebrar a vida e o cinema nacional. Parabéns à Pesquisa FAPESP e à colaboradora Penha Rocha que nos deu o prazer de conhecer um pouco m ais de Nelson Pereira dos Santos. ELAJ NE CUNHA B ORGES DE LI MA

Janaúba, MG

Álcool

A URÉLI O M AYORCA

Joinville, se

Santo Daime Na reportagem "A batalha dos vegetais" (edição 123) dizer que o Alto Santo é uma dissidência surgida após

Pesquisa FAPESP mais uma vez perdeu a oportunidade de abordar os aspectos negativos da cultura de cana tal como é feita hoje (edição 122). Os problemas da cultura canavieira têm dimensões maiores do que as relacionadas à produção de álcool e aos en-


IMPOltNCIA POOEtlDICAII

~

Omundo quer mais

cargos trabalhistas. Essas dimensões afetam a população em geral e nunca foram abordadas pela revista: doenças respiratórias causadas pelas queimadas (poluição do ar), exaustão do solo pela monocultura, desmatamento, poluição de rios, tráfego perigoso nas rodovias (relacionado ao transporte do produto). É deveras irritante ler reportagens tão parciais provenientes de órgãos responsáveis pela divulgação equilibrada do conhecimento. L AU RJ VA L

A.

DE L UCA )R.

Faculdade de Odontologia, Unesp Araraquara, SP

focado pela matéria foi a identificação das cargas para a conferência pelas autoridades portuárias e importadores. Não havendo consumidor no movimento transfronteiriço, não é adequado se referir à identificação das cargas, que seguem em contêineres ou no porão de navios, como "rotulagem': Outro equívoco cometido foi afirmar que há um compromisso de ir-se adotando a segregação para permitir o uso do termo "contém" em 2012. A decisão que está publicada na página da CBD

SERG IO FI GUEI REDO

Brasília, DF

Revista EMPRESA QUE APÓIA A PESQUISA BRASILEIRA

l_l)

N OVAR TIS Net.

g

Biodiversidade Peço atenção para um assunto que tenho acompanhado desde 2003 como delegado do governo brasileiro. O último parágrafo da reportagem "Pontos de atrito" (edição 122) contém algumas impropriedades que merecem correção. O Protocolo de Cartagena, gerado no âmbito da Convenção da Biodiversidade, trata dos movimentos transfronteiriços de organismos vivos modificados (OVM), uma subclasse de transgênicos. Dessa forma, estão de fora dos efeitos do protocolo as exportações de farelo e óleo de soja, por exemplo, já que estes não são "organismos vivos", mas derivados. Não há previsão no protocolo de qualquer dispositivo que vise à "rotulagem" de produtos ao consumidor. O que se discutiu especificamente no aspecto

de grãos de soja, podendo prejudicar o abastecimento dos países com economias de menor desenvolvimento relativo. A decisão foi também sábia ao atrelar o uso do termo "contém" ao adequado desenvolvimento das capacidades dos países em desenvolvimento. Sem capacidade de inspeção fica impossível avaliar a veracidade da informação, qualquer que seja ela, contida no manifesto de carga.

na internet estabeleceu que somente em 2010 serão avaliados pelas Partes do Protocolo os avanços na construção da capacidade necessária para o controle das cargas, em especial a dos países em desenvolvimento. Tendo havido evolução nessa infra-estrutura, se decidirá pela adoção a partir de 2012 do uso da expressão "contém ... etc.". Além disso, os produtos que são naturalmente segregados e usados para alimentação, ração e processamento, tais como frutas transgênicas, passarão a empregar a expressão "contém OVM ..:: segundo a decisão da 3• Reunião das Partes (MOP3). Em suma, a decisão alcançada foi sábia ao evitar que se criassem óbices desnecessários e inoportunos às exportações brasileiras

É curioso meu acesso a esta revista. Meu tio trabalha de porteiro num prédio, onde moram somente estudantes. Uma moça que assina Pesquisa FAPESP, após sua leitura, entrega-a para meu tio e ele me empresta. Como estou estudando para prestar vestibular, a leitura desta revista aumenta meu conhecimento e me mostra um ambiente de descobertas, no qual quero ingressar: a universidade. Moro na cidade que possui a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e a Universidade de São Paulo (USP). Estas já apareceram em várias reportagens, me provando que são importantes centros de pesquisa. Isso me motiva a entrar na UFSCar e cursar biologia. D AIANE G ABRIELA LoPES

São Carlos, SP

Correção A reportagem " Revolução no canavial" (edição 122) foi apurada e escrita por Marcos de Oliveira e Yuri Vasconcelos, e não apenas por este último como foi publicado nesta seção da edição 123. Cartas pa ra esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br. pelo fax 3838-4181 ou para a rua Pio XI. 1.500. São Paulo. SP. CEP 05468-901. As car tas poderão ser resumidas por moti vo de espaço e clareza.

on

PESQUISA FAPESP 124 • JUNHO DE 2006 • 7


Achado ou perdido? A descri ção de uma nova espécie de macaco no país causa discórdia entre pesquisadores do Nordeste. Para um dos autores da descoberta , o biólogo Antonio Rossano Mendes Pontes, da Universidade Federal de Pernambuco, o símio encontrado no litoral de Pernambuco, batizado de Cebus queirozi, ou macaco-prego-galego (foto), passou os últimos 500 anos ignorado pela ciência . Para Marcelo Marcelino, chefe do Centro de Proteção de Primatas do lbama em João Pessoa, o animal fora retratado no século 18 pelo naturalista alemão Johann von Schreber, que batizou o macaco de Simia flavia , ou símio loiro em latim (gravura) . O caso representaria, na verdade, a redescoberta de uma espécie já conhecida.

8 • JUNHO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 124


Carta

Pesquisa CARLOS VOGT PRESIDENTE MARCOS MAÇA RI VICE-PRESIDENTE

da Editora

Em defesa da via normal do nascimento

CONSELHO SUPERIOR CARL05 VOGT. CELSO LAFER, HERMANN WEVER, HORÁCIO LAFER PIVA, JOSÉ ARANA VARELA, MARCOS MACARI, NILSON DIAS VIEIRA JÚNIOR, SEDI HIRANO, SUELY VILELA SAMPAIO, VAHAN AGOPYAN. YOSHIAKI NAKANO

MARILUCE MOURA

- DIRETORA

DE REDAçãO

CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO RICARDO RENZO BRENTANI DIRETOR PRESIDENTE CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ DIRETOR CIENTÍFICO JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER DIRETOR ADMINISTRATIVO

PESQUISA FAPESP CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS {COORDENADOR CIENTÍFICO), CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTÔNIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER. LUIZ EUGÊNIO ARAÚJO DE MORAES MELLO. PAULA MONTERO, RICARDO RENZO BRENTANI, WAGNER DO AMARAL, WALTER COLLI DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA EDITOR CHEFE NELDSON MARCOLIN EDITORA SÊNIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS DIRETOR DE ARTE HÉLIO DE ALMEIDA EDITORES EXECUTIVOS CARLOS FIORAVANTI (CIÊNCIA), CARLOS HAAG (HUMANIDADES), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA) EDITORES ESPECIAIS FABRÍCIO MARQUES. MARCOS PIVETTA (EDIÇÃOONLINE). RICARDO ZORZETTO EDITORA ASSISTENTE DINORAH ERENO REVISÃO MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO CHEFES DE ARTE JOSÉ ROBERTO MEDOA, MAYUMI OKUYAMA ARTE FINAL LILIAN QUEIROZ FOTÓGRAFOS EDUARDO CÉSAR, MIGUEL BOYAYAN 5ECRETARIA DA REDAÇÃO ANDRESSA MATIAS TEL: (II) 3838-4Z01 COLABORADORES ANA LIMA, ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS), EDUARDO GERAOUE (ON-LINE), FRANCISCO BICUDO, JAIME PRADES. LAURABEATRIZ, LUIZ ROBERTO ALVES, MANU MALTEZ, MARIA GUIMARÃES, RENATA SARAIVA, SANDRO CASTELLI, SÍRIO J. B. CANÇADO, THIAGO ROMERO (ON-LINE) E YURI VASCONCELOS. COORDENAÇÃO DE MARKETING E PROJETOS ESPECIAIS CLAUDIA IZIOUE (COORDENADORA) TEL. (11) 3838-4272 PAULA ILIADIS (ASSISTENTE) TEL: (11) 3838-4008 e-mail; publicidade^fapesp.br ASSINATURAS TELETARGET TEL. (11) 3038-1434 - FAX: (11) 3038-1418 e-mail: fapesp@teletarget.com.br IMPRESSÃO PLURAL EDITORA E GRÁFICA TIRAGEM: 35.700 EXEMPLARES DISTRIBUIÇÃO DINAP CIRCULAÇÃO E ATENDIMENTO AO JORNALEIRO LMSX (11) 3865-4949 FAPESP

RUA PIO XI. N° 1.500. CEP 05468-901 ALTO DA LAPA - SÃO PAULO - SP Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAPESP é PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO SECRETARIA DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA, DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E TURISMO GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Há algo de francamente espantoso em boa parte das discussões que neste país se processam sobre o melhor caminho para o nascimento de bebês humanos. Falo da estranha inversão que sofrem os conceitos de normal e de excepcional em relação a um dos mais fantásticos processos fisiológicos em que o corpo feminino é especializado: o parto. De tanto que se banalizou a operação cesariana, há quem acredite, principalmente entre as novas gerações, que normal para nascer é essa alternativa cirúrgica, enquanto o parto normal, pela via vaginal, não passaria a essa altura de uma excrescência, um irremediável anacronismo. Brutal equívoco! O parto normal, ainda quando o corpo gaste mais de 24 horas num estupendo e insistente trabalho para fazê-lo finalmente acontecer, é um evento da ordem da fisiologia, do bom e saudável funcionamento do organismo feminino. Já o parto cesariano, embora devamos tomá-lo com justeza como uma bela construção da competência tecnocientífica humana, aperfeiçoado passo a passo desde que foi tentado pela primeira vez há mais de 400 anos e, ressalte-se, fundamental desde então para salvar um número incalculável de vidas, é uma cirurgia - com os riscos inerentes a qualquer cirurgia, além de outros específicos. Cirurgia que deve, sim, ser realizada em todas as situações em que o processo fisiológico normal não tiver chances de seguir seu curso, em prol da vida de mulheres e bebês. O problema são as cesarianas desnecessárias. E isso a bela reportagem de capa desta edição de Pesquisa FAPESP mostra a partir da página 38 com agudeza e profundidade, tomando como ponto de partida um estudo com participação importante de pesquisadores brasileiros publicado agora

em junho na Lancet, uma das mais importantes revistas científicas da área de medicina. Os riscos desconhecidos das cesarianas, a conversão da obstetrícia brasileira ao parto cirúrgico e suas razões, as alterações nas taxas de mortalidade materno-infantil provocadas pelo abuso do parto não-fisiológico, tudo isso e muito mais está relatado no texto denso, vigoroso e ao mesmo tempo sensível do editor especial Ricardo Zorzetto. Ouso dizer até, muito à vontade em minha condição feminina, sendo mãe de três filhos nascidos todos de parto normal, que qualquer mulher bem consciente da importância social das lutas afirmativas de gênero assinaria com prazer essa reportagem, que é um verdadeiro trabalho de utilidade pública. Para além de meu entusiasmo com a capa, no entanto, há muito a ler de novo e estimulante nesta edição. Vale destacar em tecnologia, por exemplo, a reportagem da editora assistente, Dinorah Ereno, nas páginas 74-75, sobre os efeitos cicatrizante e regenerador de tecidos lesados de uma proteína encontrada no veneno da urutu. Estamos, portanto, diante da promessa de novos medicamentos baseados em venenos de cobras brasileiras. E, nas humanidades, chamo a atenção para a reportagem do editor Carlos Haag a partir da página 80 sobre as análises mais sociológicas da explosão de violência que afetou São Paulo no meio do mês de maio e que teve seu momento mais dramático na segundafeira, 15. Foi uma crise de grande amplitude, como observou um de seus analistas, e que pela forma como espalhou o terror entre policiais e outros agentes públicos, e para a população em geral, tem um caráter inédito. Boa leitura e boas reflexões. PESQUISA FAPESP 124 ■ JUNHO DE 2006 ■ 9


Moreira (de braços cruzados) com Einstein durante visita do físico ao Brasil, em 1925

O alienista Juliano Moreira foi o primeiro a divulgar Freud no Brasil e a transformar a psiquiatria em especialidade médica NELDSON MARCOLIN

10 ■ JUNHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 124

m jovem médico de Salvador foi o primeiro divulgador, no Brasil, dos trabalhos um tanto diferentes de outro médico, de Viena. Segundo os relatos disponíveis hoje, Juliano Moreira expôs para alunos da Faculdade de Medicina da Bahia as novidades ainda controversas de Sigmund Freud em 1899. O amigo e também médico - além de político e escritor — Afrânio Peixoto fez referência ao fato em 1933, na homenagem pós-morte de Moreira: "Freud, novidade de hoje, há 30 anos era estudado por ele [Juliano Moreira] na Bahia". Ronaldo Jacobina, pesquisador da Universidade Federal da Bahia e conhecedor da vida e obra de Moreira, diz: "Os 30 anos é uma referência aproximada, pode ser 1903, 1900 ou mesmo 1899". Quem fala deste último ano, antes, portanto, da publicação da Interpretação dos sonhos, é Mariazilda Perestrello, citando


Moreira (de lenço na mão) com o corpo clínico do Hospital Nacional de Alienados em 1904 e ao lado

como fonte primária o psicanalista Danilo Perestrello. Anos depois, em 1914, Moreira fez uma comunicação oficial sobre psicanálise à Sociedade Brasileira de Neurologia, Psiquiatria e Medicina Legal. Foram os 150 anos do nascimento de Freud, comemorados em maio, que trouxeram à tona essa primeira citação relativa à psicanálise no Brasil. Juliano Moreira (18731933) é um caso excepcional na medicina brasileira. Era mestiço, pobre, nordestino, doente - adquiriu

tuberculose cedo - e filho de uma empregada doméstica e de um funcionário municipal, que o reconheceu tardiamente, de acordo com Fátima Vasconcellos, psiquiatra carioca, ex-presidente da Associação de Psiquiatria do Rio de Janeiro e autora de uma dissertação sobre ele. Foi extremamente precoce, inteligente e determinado: entrou na Faculdade de Medicina da Bahia aos 13 anos, o que era permitido aos alunos excelentes da época, e formou-se aos 18, em

1891, com a tese Etiologia da sífilis maligna precoce. Em 1900, na segunda vez em que foi à Europa, conheceu laboratórios e pesquisadores de vários países ligados à psiquiatria, dermatologia e a estudos sobre a sífilis, de acordo com Ana Maria Oda, da Universidade Estadual de Campinas, também estudiosa do assunto. E em 1903, tornou-se diretor do Hospício Nacional de Alienados, no Rio de Janeiro. Nos 27 anos em que esteve à frente da instituição, Moreira construiu a psiquiatria como especialidade médica no Brasil com idéias e práticas novas. Inspirado na Clínica de Munique, dirigida por Emil Kraepelin, aboliu as camisas-de-força e retirou as grades de ferro das janelas. Separou adultos e crianças internadas, instalou um laboratório de anatomia patológica e de análises bioquímicas.

Trouxe para o corpo clínico neuropsiquiatras, especialistas de clínica médica, pediatria, oftalmologia, ginecologia e odontologia e colocou de pé a escola para formação de enfermeiros psiquiátricos. Publicou mais de cem trabalhos. Influiu na legislação para melhorar a assistência aos doentes. Foi co-fundador de periódicos médicos e instituições como a Sociedade Brasileira de Psiquiatria, Neurologia e Ciências Afins e presidiu a Academia Brasileira de Ciências — onde recebeu Albert Einstein em 1925 — e foi vice-presidente da Academia Nacional de Medicina. Mas, antes de tudo, Juliano Moreira foi médico. "Ele dizia que o alienado' deveria ser tratado como qualquer outro doente, o que demonstrava sua falta de preconceito em relação à doença mental", conclui Fátima Vasconcellos.

PESQUISA FAPESP 124 ■ JUNHO DE 2006 • 11


Uma vida

na sala de aula

FABRÍCIO MARQUES

rofessor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), José Sebastião Witter, de 73 anos, diz que se considera mais um professor de história do que um historiador. "Sempre fui um bom professor, não tenho falsa modéstia. Aprendi a ensinar dando aulas nos cursos primário e secundário", complementa. Sua trajetória, de professor primário num colégio público da cidade de Mogi das Cruzes, ainda conhecida como o "cinturão verde" de São Paulo, a titular do Departamento de História da USP, traz à memória um sistema de ensino que se perdeu no tempo. Witter graduou-se em história, sua vocação desde jovem. Formou-se com a ajuda de uma prerrogativa instituída nos anos 1940. Ela permitia a professores primários aprovados no vestibular da USP o afastamento de suas funções, para que pudessem fazer o curso superior na área escolhida. Para manter-se comissionados, tais professores deveriam obter médias elevadas em suas notas escolares. Entre a sua diplomação como professor primário e a sua contratação no Depar12 • JUNHO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 124

tamento de História, convidado para ser assistente do catedrático Sérgio Buarque de Holanda, Witter lecionou sempre em escolas públicas, desde o seu ingresso no magistério primário em 1954 até 1968, quando veio para a USP. Quase sempre sob a orientação de Sérgio Buarque, pesquisou sobre a imigração alemã, a fundação do primeiro partido republicano e sobre arquivos históricos. Nos anos 1970 introdu zi u um assunto que era malvisto pela universidade: o futebol, sua paixão desde a infância. Como professor do Departamento de História, ministrou o primeiro curso de história do futebol na USP. Mais tarde, organizaria obras como Futebol e cultura, em colaboração com José Carlos Sebe Bom Meihy, e escreveria O que é futebol e Breve história do futebol brasileiro. Ao lado desse curso, que lhe deu certa notoriedade e foi explorado pela imprensa pelo inusitado, trabalhou sempre como professor na área de História do Brasil colonial, imperial e republicana nos cursos de graduação. Na pós-graduação teve participação ativa como professor e orientador. Paralelamente, teve uma bem-sucedida carreira de administrador. Por 11 anos, dirigiu o Arquivo Público do Es-



tado de São Paulo, ligado à Secretaria de Cultura. Foi também diretor do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da USP, que fora fundado pelo mestre Sérgio Buarque de Holanda, no período de 1990 a 1994. Na seqüência passou a dirigir o Museu Paulista da USP, mais conhecido como Museu do Ipiranga, entre 1994 e 1999, quando coordenou uma grande reforma de suas instalações físicas e produziu transformações nas áreas acadêmica e administrativa. Aposentado depois de longa carreira na USP e de volta a Mogi das Cruzes, Witter analisa com alguma nostalgia os rumos que a universidade tomou, como se pode ver na entrevista a seguir.

• Antes de fazer carreira como historiador e professor da USP, o senhor trabalhou durante anos como professor de escolas primária e secundária. Hoje essa trajetória quase não existe. O que mudou? -Muita coisa mudou. Desde o salário até o respeito com o profissional. Atualmente o professor em geral e o professor primário, principalmente, são muito mal remunerados. Quando jovens e professores da escola primária, tínhamos um salário digno e, se cuidadosos, era possível fazer poupança razoável. Hoje não. Mas, acima de tudo, o professor gozava de prestígio em qualquer comunidade. Poderia trabalhar numa metrópole ou numa pequeníssima cidade: ele era o professor. Vivemos isso por todos os lugares onde ensinamos. Além do mais, os concursos públicos, sempre rigorosos, eram os norteadores da carreira de cada mestre. As regras eram bem definidas e dificilmente alguém era favorecido. Quem eram as pessoas de destaque em qualquer cidade? O prefeito, os vereadores, o juiz de direito, o delegado de polícia, os promotores públicos ... e os professores. Hoje quem sabe quem é ou não professor em cidades como São Paulo, Mogi das Cruzes, Suzano ou Poá? Quando fiz minha carreira, bastava ser professor para ser diferente ... Desde os anos 1970 até hoje, a vida no magistério foi sendo afetada por reformas amplas ou por leis específicas, alterando o desenvolver da carreira profissional. É difícil afirmar o que mudou basicamente. Tudo, praticamente, eu diria. • O que deu errado? -Eu não gosto muito de dizer que a cul14 • JUNHO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 124

pa toda cabe aos governos militares. Mas, coincidência ou não, a escola normal, que formava os professores, decaiu no período militar. Começou a acabar lá por 1965, 1968. A responsabilidade de formar o professor de "primeiras letras" passou a ser da universidade. Se melhor ou pior, não sei ... Isso é uma discussão em que não quero entrar. Mas o fato é o seguinte: você tinha uma escola normal, que ensinava o professor de primeiras letras a ensinar a ler, a escrever e a contar. Isso era a função do professor primário. Em quatro anos, você alfabetizava, depois acompanhava as turmas. E você sabia ensinar porque tinha tido, na escola normal, grandes professores, gente que realmente sabia ensinar aquilo que o Brasil ainda precisa: o mais simples de tudo que é ler, e bem. Será que as escolas públicas fazem isso hoje? Toda tecnologia é bem-vinda, mas como levála a todos os cantos do nosso território? Um professor bem-capacitado é competente para ensinar em qualquer ponto, sem qualquer recurso, seja ele de vídeo, de áudio ou apoio da última novidade para "prender" o ouvinte. Conheço casos de professores que cancelaram a aula do dia por "falta de recursos audiovisuais': Antes cada professor usava a sua criatividade, tendo às suas costas apenas o quadro-negro e o giz, mas à sua frente tinha mentes realmente ansiosas pelo saber e vidas a transformar. Era um tempo em que a professora era "professora", e não "tia': É um tema para se pensar... Não cabe nesta entrevista .. . • O magistério foi a carreira escolhida pe-

lo senhor e sua esposa, a professora Geraldina Porto Witter. Em algum momento a trajetória de vocês se cruzou ou chegaram a disputar o mesmo espaço profissional? -Sim. Conheci minha mulher no ginásio. Havia um prêmio, em Mogi das Cruzes, conhecido como Prêmio Adrião Bernardes. Era concedido a quem obtinha as melhores notas na disciplina de História durante os quatro anos de ginásio. Disputamos o prêmio, mas foi ela quem ganhou. Era muito estudiosa. Nós dois entramos para a escola normal. As regras do jogo eram bem definidasé por isso que a escola era boa. Quem acabava a escola normal em primeiro lugar, somando as notas dos três anos, ganhava a chamada "cadeira-prêmio", que era um emprego garantido de professor

numa escola próxima ao lugar em que você vivia. Ambos conseguin1os esse prêmio: ela em um ano e eu no subseqüente. Quando nos casamos, decidimos estudar na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Íamos e voltávamos para Mogi todos os dias, durante quatro anos. Era um trajeto oposto ao dos alunos atuais. Nós saíamos de Mogi em direção a São Paulo e voltávamos no final da tarde ou à noite.

• Como o senhor se tornou professor universitário? - Naquele tempo havia os Institutos Isolados de Ensino Superior, que hoje compõem a Unesp. E surgiu uma vaga na cidade de Rio Claro. Havia um professor na Faculdade de Filosofia que gostava muito de min1, o professor Eurípedes Simões de Paula, diretor do Departamento de História. Hoje quase ninguém se lembra dele. Para alguns, é somente o nome do atual prédio da História e Geografia na Cidade Universitária da USP. Mas ele foi uma figura importantíssima. Além de professor de história antiga, diretor conselheiro da Reitoria, fazia praticamente sozinho a Revista de História, que levou até a edição de número 112. Fazia de tudo pessoalmente e com aquela dedicação típica dos homens de visão. Chegava a empacotar os volumes da revista e ele próprio encaminhá-los aos Correios. Ele me dizia: "Não deixe de passar na minha sala toda semana. Quem não é visto é esquecido". Eu lecionava, na época, na cidade de Patrocínio Paulista. Vinha de Franca de ônibus na quinta-feira à tarde e, à noite, ia ao Departamento de História na rua Maria Antônia conversar com o professor Eurípedes. Um dia ele me avisou: "Amanhã você vai procurar uma professora. Ela mora no largo do Arouche e está precisando de um professor para Rio Claro': Acabou dando tudo certo. Fiquei três anos em Rio Claro, até 1964. Minha mulher foi junto, convidada para ser assistente de Carolina Bori. Era uma professora excepcional que fez uma revolução no ensino da psicologia e nos anos 1990 foi presidente da SBPC [Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência]. Ela tinha criado um grupo de estudos e convidou minha mulher para fazer parte dele.

• Por que saiu de Rio Claro? -Em 1964 meu contrato acabou. Mas,


na verdade, eu saí por razões políticas. Não tive o contrato renovado porque era visto como um dos comunistas da universidade. Era um bom professor, sempre fui, não tenho falsa modéstia. Sabia ensinar. Tinha aprendido dando aulas no primário e no secundário. Mas tinha acontecido o golpe de 1964. O delegado da cidade prendeu um colega nosso, o professor Warwick Kerr. Ele sabia que seria preso, pois o próprio delegado tinha dito aos freqüentadores de um bar que iria prendê-lo na manhã do dia seguinte. Mas ele não quis fugir. Eu e todos os outros professores, de esquerda e de direita, fomos para a delegacia e fizemos um cordão para impedir que ele fosse levado para São Paulo. Acabou libertado quando trouxemos um professor de estatística que também tinha um cargo na polícia e foi à delegacia determinar sua soltura. Mas as nossas casas começaram a ser vigiadas, tive um livro apreendido na minha biblioteca só porque tinha a capa vermelha. Aí aconteceu algo extraordinário: fui convidado a trabalhar na USP, como assistente do mestre Sérgio Buarque de Holanda. E também voltei para Mogi das Cruzes, para reassumir minhas funções de professor secundário do Estado, no Instituto de Educação Dr. Washington Luís.

• Como foi a mudança? -Eu já sabia que não teria meu contrato renovado quando o professor Sérgio Buarque foi fazer uma conferência lá em Rio Claro. Logo na chegada, na frente de todo mundo, ele me viu e disse em voz alta: "Witter, quer dizer que você vai comigo para São Paulo?". Eu respondi: "Como assim? O senhor está me convidando para ser seu assistente?': Ele complementou: "É claro! E creio que gostará de trabalhar na cadeira de História do Brasil': Ao mesmo tempo que aceitei o inesperado convite para lecionar na USP, retomei meu cargo de professor secundário em Mogi das Cruzes, no Instituto de Educação Dr. Washington Luís, que até hoje existe como escola de primeiro e segundo graus. Era para mim uma grande honra, pois havia concluído meus estudos lá. A escola passava por uma crise. Fui, então, convidado pelo secretário de Educação a assumir a direção da escola. Eu tinha 32 anos. O curioso é que, em 1964, eu saí de Rio Claro como "comunista" e entrei no Instituto

de Educação como uma espécie de interventor. • O senhor tornou-se um crítico da ex-

tinção das cátedras. Por quê? -Na década de 1960 fazíamos uma crítica muito feroz às cátedras. E, de fato, tinha catedrático que tratava o assistente como office-boy, mandava até comprar cigarros. Eram, é claro, as exceções, mas serviram como a causa maior da luta. Hoje creio que os grandes catedráticos estão fazendo falta. Fui bafejado pela sorte. Meu catedrático era o professor Sérgio Buarque de Holanda, um homem excepcional. Ele se reunia com todos os assistentes e todas as semanas discutíamos o curso, como é que tudo no departamento se desenvolvia, e, no fim do ano, recebíamos a "lição de casa" para fazer. Ele sugeria: "Você vai dar aula para a Geografia neste ano", "Você vai dar o primeiro ano de História Colonial · II", "Você dará República". Fazia isso no mês de novembro, dezembro e, na ocasião, recebíamos as bibliografias para os estudos e preparação dos cursos por ele indicados. Em fevereiro nos reuníamos para ver quais eram as dúvidas e por onde caminhar. Você pode me dizer: "Ah, você é da velha guarda, gosta de ter chefe, de ser mandado, não tem coragem de fazer as coisas': Mas o professor Sérgio sabia abrir os espaços. Você não ficava solto totalmente, mas tinha liberdade para dar os cursos. Cada qual com seu estilo. Depois que se aposentou, mais de uma vez, em entrevistas, ele dizia: "Tenho orgulho de ter orientado as pessoas que orientei até o fim e tenho também orgulho de dizer que cada um seguiu a sua carreira da sua forma, mas todos ocupam um lugar de destaque': Sérgio Buarque era um verdadeiro professor e

um catedrático exemplar. Quando digo que os bons catedráticos fazem falta, penso naqueles que fizeram da cátedra um instrumento de formação de uma verdadeira escola. Hoje as carreiras são mais independentes e quase sempre muito rápidas, muito diferente daquela época.

• Numa entrevista, o senhor fez críticas ao esvaziamento do ritual da defesa de tese. Por quê? -No meu tempo, você estava ali, suando diante da banca, e os seus amigos lotavam o anfiteatro para apoiar. A defesa de tese era um acontecimento na universidade. Hoje, às vezes, você faz a defesa com a banca e só o candidato. Outras circunstâncias também mudaram. Antigamente tese de doutorado só ia para a defesa quando o orientador e o candidato realmente se satisfaziam com aquilo que tinham pesquisado e escrito. Agora não, o mestrado acaba religiosamente em dois anos, o doutorado em quatro. Eu me lembro de uma moça que pediu uma prorrogação de dois meses para entregar sua tese. Não deram. Ela fez o que pôde e entregou a tese num dia 31 de dezembro. Mas um membro da banca ficou doente, outro viajou, e a defesa só aconteceu em maio. A banca criticou de forma muito pesada os dois últimos capítulos da tese, que considerou mal escritos, e a moça se defendeu como pôde. Não teve nota alta, por causa do final sofrível. Na hora de se despedir, ela entregou à banca os dois capítulos refeitos em janeiro e fevereiro. Estavam impecáveis. • Mas essas coisas não mudaram à toa, não é professor? -Claro que não. Muitas pessoas passavam anos fazendo uma tese. Mas sou contra o rigor excessivo, esse triunfo da PESQUISA FAPESP 124 • JUNHO DE 2006 • 15


burocracia. Um dos melhores livros de Fernand Braudel, O Mediterrâneo e o mundo mediterrâneo no tempo de Felipe II, levou 20 anos de pesquisa e publicação. Você acha que o professor Sérgio Buarque de Holanda poderia escrever Visão do Paraíso em dois anos?

• Mas a produção acadêmica hoje é muito maior do que naquela época ... -É verdade, mas não quer dizer que seja melhor. Não gosto de fazer comparações, porque os tempos são completamente diferentes. Mas alguém consegue acompanhar tudo o que é publicado? Quem é que garante que as referências bibliográficas de fato foram lidas por quem escreveu. Sempre há exceções, claro. Tem gente séria em todo lugar. Não somos eruditos mais, a erudição foi acabando. Resta um ou outro erudito. Como é que você detecta uma fraude num artigo que está bem escrito, dentro dos padrões? Vivi essa experiência com um amigo meu. Certa vez ele me disse que tinha publicado o mesmo artigo em oito revistas diferentes, m udando apenas o título, o primeiro parágrafo e o último. Ninguém percebeu que era o mesmo artigo. • Sua tese de doutoramento foi sobre o Partido Republicano Federal, uma tentativa fracassada de criar um partido nacional logo após a proclamação da República. Por que se interessou por esse tema? -Eu sempre tive uma preocupação com a falta de partidos no Brasil. Desde quando era cria nça, nunca conseguia compreender com o a UDN e o PSD, que eram antagônicos no plano nacional, podiam estar un idos em Mogi das Cruzes, por exemplo. O Partido Republicano Federal foi escolhido numa conversa minha com o professor Sérgio Buarque de Holanda. Ele me disse: "Olha, é um partido que precisa ser recuperado. No fundo é o primeiro partido republicano depois da criação da República". Ele sugeriu porque parte do núcleo documental desse partido estava nas mãos dele. Peguei as atas que ele me deu, nos sentamos depois umas duas vezes na casa da rua Buri, onde morava. Ficamos conversando muito e fui atrás da documentação existente no Arquivo Público do Estado. Dona Maria Amélia, a mulher do professor, tinha parentes que foram ligados ao partido, então ficou com cartas, documentos. Não foi uma tese 16 • JUNHO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 124

• Sua dissertação de mestrado chamavase Um estabelecimento agrícola na província de São Paulo nos meados do século 19 ... -Esse é o nome que saiu na Revista de História. Depois foi publicada como Ibicaba, uma experiência pioneira. A fazenda Ibicaba é uma primeira experiência com braço livre na mão-de-obra brasileira, uma fazenda de café no oeste paulista. Até 1840, época em que o senador Vergueiro compra a fazenda e coméça a organizá-la, tinha só escravos. Em 1850, com a proibição da entrada de mão-deobra escrava, começa a experiência com as primeiras levas de imigrantes alemães e também de portugueses, que na época nem eram considerados imigrantes. É muito bonito ver essa experiência, ver como os administradores confundiam tudo, tratando os imigrantes como se fossem escravos. Aí veio o Thomas Davatz, que é um professor alemão, e fez um relatório muito sério sobre a imigração alemã em Ibicaba, que depois resultou no livro Memórias de um colono no Brasil, publicado na Europa no século 19 e só traduzido em 1954. Foi o professor Sérgio Buarque quem o traduziu.

-Hoje muita gente na academia estuda o futebol. Acho que fui o primeiro a fazer. O professor Sérgio Buarque me alertou: "Você vai ser considerado um professor de segundo time por isso". E eu respondia: "Mas o senhor não disse que estudar o povo é o que está faltando no Brasil?". Durante muito tempo fui visto como alguém que estudava bobagens. Ninguém mais deu um curso de história do futebol na USP como eu fiz, em meados dos anos 1970. Na época, virei uma figura meio folclórica. Apareci em reportagens fazendo embaixadinhas. Escrevi o livro O que é futebol, para a coleção Primeiros Passos, da Editora Brasiliense, mas ele nunca mais foi reeditado. O Caio Graco Prado me explicou: "Eu pensei que vendesse que nem água, mas o povo não lê sobre futebol, a não ser as manchetes dos jornais': Isso hoje pode ter mudado. Quando dirigia o Arquivo Público do Estado, batalhei muito por um projeto sobre o futebol brasileiro em parceria com o diretor do Museu da Imagem e do Som (MIS), que era o professor Bóris Kossoy. Estão lá 64 entrevistas. Entrevistei o Rivelino, o Gilberto Tim, entre outros. Eu sempre achei que o que se escreve sobre o futebol no Brasil continua sendo uma história do que aconteceu em São Paulo e Rio, com um pouco de Minas, do Paraná e do Rio Grande do Sul. Queríamos fazer um livro sobre a história do futebol brasileiro que falasse de todos os estados, pensamos em dividir em 21 capítulos, que era o número de estados da época, cada um escrito por uma pessoa. Não foi adiante porque ninguém quis financiar. Na época era um tabu. Hoje acho que vingaria.

• E quanto ao futebol? Por que o senhor resolveu estudar o assunto?

• E hoje? A bibliografia sobre futebol é insuficiente?

prolixa. Foi uma tese curta, feita para dar o recado que a documentação permitia. Mas foi um partido importante. Durou pouco. Manteve-se por um único governo e não chegou a ser da situação ou da oposição na escola do presidente Campos Salles, o que tem muito a ver com a nossa prática política até hoje. Eu ia dizer que a única diferença é o PT. Apesar de tudo ainda o é.


-Tem muita coisa escrita. Só eu tenho uns 400 livros e não comprei os últimos que saíram. Um dos que melhor traduziu esta paixão brasileira pelo futebol talvez tenha sido Ruy Castro, com o livro sobre o Garrincha. Mas atualmente há muitos livros bem-feitos sobre o assunto. Mas escrever sobre um tema fascinante como este é sempre insuficiente. • O senhor é são-paulino, não é? -Continuo. Sou são-paulino desde os 9 anos de idade, quando testemunhei a estréia do Leônidas da Silva no Pacaembu. Quando foi contratado pelo São Paulo, o Leônidas fez a viagem de trem do Rio para São Paulo e parou em todas as estações do caminho. Eu fui à estação de Guararema vê-lo. Lembro-me dele como um gigante, mas na verdade não era um homem alto. Depois fui pedir para o meu pai: "Olha, o Leônidas vai estrear um dia desses. Me leva lá". Ele disse: "Não prometo nada porque você sabe que não gosto de futebol". Ele relutou, mas no final disse: "Eu vou te levar, você é bom aluno. Mas como é que fazemos? Eu não gosto de assistir': Combinamos que ele me deixaria numa rua próxima ao estádio, iria para o cinema e depois nos encontraríamos ali. Me deixou lá às 11h30, com dois sanduíches e uma garrafa de guaraná. Era a primeira vez que eu ia a São Paulo e aquele jogo teve um recorde de público, mais de 67 mil pessoas. Fiquei com medo de subir para procurar um lugar na arquibancada, eu era muito pequenininho -sou até hoje, mas naquele tempo era magrinho. Fiquei encostado no alambrado. Depois de algum tempo, senti um toque. Nunca me esqueço da mão bondosa no meu ombro e da frase: "Fique tranqüilo, menino, que você está protegido. Aproveite o jogo". Eram quatro torcedores atrás de mim. Me perguntaram qual era o meu time. Eu respondi: "São Paulo". Eram quatro corintianos. Aí um deles me disse: "Então vamos matar você". Era pura brincadeira estampada no sorriso de todos. E eles me protegeram mesmo. No final me disseram: "Você gastou dinheiro à toa. O Leônidas não jogou nada". • O senhor dirigiu o Arquivo Público do

Estado por 11 anos, entre as décadas 1970 e 1980. Como foi trabalhar para governos tão diferentes como os de Paulo Egydio

Martins, Paulo Maluf e de Franco Montara? - Fui trabalhar lá aos 42 anos. Era a primeira vez que eu atravessava os muros da universidade para agir num mundo totalmente novo, que é o mundo político. Três pessoas são responsáveis por esta experiência em minha vida: novamente o professor Eurípedes Simões de Paula, o professor Sérgio Buarque de Holanda e, principalmente, a professora Anita Novinsky. O secretário da Cultura do governo Paulo Egydio era o dr. José Mindlin . Ele estava à procura de um substituto para o professor Francisco de Assis Barbosa, de partida para o Rio de Janeiro. Aí, quando ocorreu o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, o dr. Mindlin saiu da Secretaria da Cultura e assumiu em seu lugar o dr. Max Pfeffer. A professora Anita voltou à carga e aí Pfeffer me convidou para ser o diretor do Arquivo. Fiquei 11 anos, durante quatro governos e sete secretários. Minha maior medalha na vida eu tive quando saiu o governador Paulo Maluf e entrou o professor Franco Montoro. Montoro recebeu um abaixo-assinado, encabeçado por dom Paulo Evaristo Arns, dizendo que eu não devia ser substituído, que eu era um homem da USP e estava fazendo um bom trabalho. O novo secretário, o ex-deputado Pacheco Chaves, me chamou para conversar. Depois reuniu os assessores e disse "Esse é o professor Witter. É o único que fica. Tenho certeza de que saio antes dele". • Foi o que aconteceu? -Sim. Eu só saí no governo Quércia. A nova sede do Arquivo, perto do Terminal Rodoviário do Tietê, foi idealizada na minha gestão. O projeto foi adiante no governo Covas. Sempre critiquei muito o governador Mário Covas, pois sua teimosia era conhecida em todas as esferas do poder. Mas ele deu o maior exemplo de ética que já vi. Tirou o projeto do novo prédio do papel, mas queria fazer algumas mudanças. Fui chamado pelo então secretário, o deputado Marcos Mendonça e por Zélio Alves Pinto, diretor do Departamento de Museus e Arquivos, para ver se eu concordava com as mudanças que iam ser feitas, porque não havia dinheiro para fazer tudo. Nunca vi isso acontecer. Concordei, mas sugeri que eles deixassem alicerces para permitir que o arquivo cres-

cesse. Até agora fico feliz por saber que existiram e existem pessoas com ética. Atualmente muito poucas, é verdade ...

• O senhor também teve passagem pela direção do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP e pelo Museu Paulista, mais conhecido como Museu do Ipiranga ... -O IEB também tem a minha marca. Foi na minha gestão, entre 1990 e 1994, que o instituto conseguiu sua sede nova. Funcionava em dois andares de um prédio. E eu conquistei umas seis ou sete colméias ao lado do Crusp, onde estão a direção, a biblioteca, os espaços de exposição. Lá no IEB tem um grande painel que a Tomie Ohtake deu para mim. Tenho o maior orgulho de a Tomie me reconhecer em qualquer lugar, ela está com 90 e tantos anos. Ela sempre fala: "Professor Witter, jamais esquecerei que o senhor abriu as portas da USP para mim': No Museu Paulista, tive o privilégio de coordenar uma grande reforma. A FAPESP e a iniciativa privada, com o apoio da Fiesp, sob o comando do Carlos Eduardo Moreira Ferreira, permitiram que quase todos os projetos fossem realizados. Também foi possível levar para o museu a coleção de O Estado de S. Paulo, um presente da família Mesquita. O Jornal da Tarde também. Há uma outra realização marcante na minha gestão. Falo da iluminação da fachada do prédio. Isso só foi possível pela atuação de Herman Wever, então na Siemens. Quando a iluminação foi inaugurada, num dia bonito e memorável, eu deixei o museu e a USP. Era minha aposentadoria que começava, em 9 de novembro de 1999. A saudação da despedida foi feita pelo reitor, na época o professor Jacques Marcovitch. • Como foi retornar para a cidade de Mogi das Cruzes? - Gostei muito de voltar para Mogi. Pude reencontrar muitos amigos. É quase um reviver da infância e da juventude. O melhor de tudo foi dar continuidade às minhas atividades como professor e acadêmico. Além delas, pude retomar também meu lado jornalístico como escritor de crônicas no jornal O Diário de Mogi. Tenho, no mesmo jornal, uma página dedicada a comentários de livros. Agora eu encontro gente na rua que nunca me viu, gente simples, que vem falar comigo sobre minha coluna. • PESQUISA FAPESP 124 • JUNHO DE 2006 • 17


O POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

Os petrodólares da ciênci

í A i

■ Talentos seguem bem-vindos Sob forte pressão de universidades norte-americanas, o Departamento de Comércio dos Estados Unidos desistiu de lançar normas que tornariam mais complicada a contratação de cientistas estrangeiros. No lugar das restrições foi criado um comitê com representantes do governo, da indústria e da academia para discutir políticas capazes de impedir que tecnologias sensíveis caiam em mãos erradas. A decisão, segundo o site da revista Science, permite que as universidades continuem a admitir cientistas estrangeiros sem precisar de licenças especiais. A proposta abandonada determinava que seriam necessárias tais licenças para contratar pesquisadores de diversos países, incluindo-se aí a profusão de estudantes e profissionais da China, índia e Rússia. •

O Catar, país do golfo Pérsico com território menor que o do estado de Sergipe, quer virar referência em ciência e tecnologia no mundo árabe. O monarca do país, o emir Hammad bin Khalifa AlThani, anunciou que destinará um naco dos rendimentos com a venda de petróleo para a pesquisa e convidou 200 cientistas árabes radicados em diversos países para

■ Proteção contra o aquecimento Uma parceria anglo-canadense vai disponibilizar US$ 60 milhões para financiar pesquisas que ajudem os países africanos a enfrentar os efeitos do aquecimento global. O Programa de Adaptação às Mudanças Climáticas

18 ■ JUNHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 124

discutir formas de aplicar o dinheiro. "Isso estimulará os países vizinhos a lançar projetos semelhantes", disse à revista NarwreHilal Lashuel, neurocientista do Iêmen baseada no Instituto Federal de Tecnologia da Suíça, em Lausanne. O fundo para pesquisa deve alcançar a casa das centenas de milhões de dólares por ano. A principal estratégia é atrair cérebros de ou-

na África é uma parceria entre o Centro Internacional de Pesquisa e Desenvolvimento (IDRC), do Canadá, e o Departamento de Desenvolvimento Internacional do Reino Unido. A presidente do IDRC, Maureen 0'Neil, disse à agência canadense CNW que o programa será liderado "por africanos e para africa-

tros países. O governo criou uma universidade, a Cidade da Educação, nos arredores da capital Doha, que tem um parque tecnológico aberto a laboratórios de grandes universidades. O Catar oferece recursos e instalações. Tudo o que instituições como o Imperial College de Londres e a Universidade de Tóquio tiveram de fazer foi trazer seu pessoal. •

nos". Entre as áreas-alvo, destaca-se a preparação de cidades para enfrentar secas, enchentes e epidemias - eventos extremos que tendem a se tornar mais freqüentes. O IDRC vai administrar o programa e a distribuição de fundos e supervisionar os projetos de escritórios regionais no Egito, Quênia e Senegal. •


■ Diplomacia em órbita O governo dos Estados Unidos colocou a Nasa a serviço de sua política externa. No início do ano, o presidente George W. Bush encontrou-se com líderes da China e da índia e, dessas conversas, saiu a promessa de cooperação espacial. Um deles já saiu do papel. Segundo a agência Associated Press, a Organização de Pesquisa Espacial da índia e a Nasa assinaram um acordo em torno da missão Chandrayaan-1, primeira investida indiana na Lua. A sonda nãotripulada deve ser lançada no

início de 2008. O acordo prevê a instalação de dois instrumentos da Nasa: um para mapear recursos minerais, outro para procurar gelo nos pólos. Não é a primeira vez que a Nasa torna-se apêndice da diplomacia. A acoplagem no espaço entre uma nave Apollo e uma Soyuz, em 1975, ajudou a arrefecer a Guerra Fria. •

Agricultura made in China

■ Vida nova para o navio peruano A Alemanha concedeu ao governo do Peru um crédito de €2 milhões para reformar e modernizar o Alexander von Humboldt, principal navio de pesquisa científica peruano. Segundo a agência de notícias EFE, o empréstimo permitirá reformar o motor do navio e implementar um

novo sistema de comunicação marítimo, entre outras ferramentas. O navio dispõe de laboratórios de pesquisa em recursos pesqueiros, oceanografia e meteorologia. Também é usado para transportar pesquisadores para a estação peruana na Antártida. O Alexander von Humboldt foi adquirido nos anos 1970,

também com financiamento alemão. A costa sul-americana do Pacífico, o Peru inclusive, foi o destino de uma das mais importantes viagens do naturalista germânico Alexander von Humboldt (17691859).

■ Royalties para a inovação Cerca de US$ 80 milhões que o Chile arrecadará de empresas mineradoras em 2006 serão destinados à inovação tecnológica. Segundo a agência de notícias SciDev.Net, os fundos serão distribuídos por meio de duas agências de fomento do governo, a Corporação de Fomento à Produção e a Comissão Nacional de Pesquisa Científica e Tecnológica. Significarão um aumento, respectivamente, de 20% e 65% nos orçamentos das duas instituições. Um dos enclaves de mineração mais disputados do mundo, o Chile decidiu em 2005 criar um imposto de 3% sobre as vendas de mineradoras privadas, a título de royalties. •

Cerca de 3 mil pesquisadores chineses do campo das ciências agrárias passarão três anos trabalhando em comunidades rurais de países do Terceiro Mundo, num esforço para melhorar a segurança alimentar de populações pobres. A decisão é fruto de uma parceria entre o governo da China e a FAO, o braço das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação. "Os chineses têm muito a ensinar a outros países, pois há séculos aprenderam a praticar uma agricultura intensiva em pedaços restritos de terra", disse à agência de notícias SciDev.Net Tesfai Tecle, o diretor-geral de cooperação técnica da FAO. Os pesquisadores e técnicos chineses irão compatilhar tecnologias relacionadas à irrigação, agronomia, pesca e criação de animais, entre outras. Os países-alvo serão selecionados a partir de uma lista de beneficiários potenciais compilada pela FAO. A China já faz trabalho semelhante em pelo menos 20 países da Ásia e da África, para onde enviou 700 especialistas e técnicos em agricultura. •

PESQUISA FAPESP 124 ■ JUNHO DE 2006 ■ 19


Estratégias

Mundo

Rebelde com causa Laurie Pycroft, um adolescente britânico de 16 anos, tornou-se o líder de uma mobilização contra grupos extremistas dos direitos dos animais na Inglaterra que tentam evitar a construção de um laboratório de pesquisa biomédica em Oxford. Pycroft criou um movimento, o Pro-Test, que defende a construção do

roristas já colocaram bombas em carros de cientistas e depredaram suas casas. No caso do laboratório de Oxford, listaram as empresas que financiam a universidade e ameaçam atacar cada uma delas. "O sofrimento de alguns animais pode ajudar a melhorar a qualidade de vida de milhões de pessoas", disse Pycroft ao jornal The Daily Telegraph. Filho de uma escritora e de um engenheiro, Pycroft quer estudar medicina em Oxford. •

■ Repercussão no acesso aberto

laboratório e o uso de animais em pesquisa. Conseguiu reunir 800 pessoas num protesto próximo ao lugar onde se quer criar o laboratório. A iniciativa é uma resposta a dois anos de protestos de antiviviseccionistas e de atos de vandalismo reivindicados pelo grupo extremista Frente pela Libertação dos Animais. Pycroft já recebeu mais de 30 emails com ameaças, algumas de morte, e conhece o perigo que está correndo. Os ecoter-

Artigos científicos publicados em jornais de acesso aberto têm impacto maior e são citados com mais freqüência do que estudos de leitura paga, mostra pesquisa realizada por Gunther Eysenbach, da Universidade de Toronto, Canadá. Eysenbach monitorou o número de vezes que 1.492 artigos publicados no jornal eletrônico Proceedings of the National Academy of Sciences foram citados em estudos posteriores. O jornal tem um modelo híbrido. O conteúdo é restrito a assinantes. Mas os autores podem tornar seus artigos disponíveis gratuitamente na internet, se pagarem por isso. Do total de artigos estudados, parte tinha acesso aberto e a outra parte não. Eysenbach constatou que os de acesso aberto foram citados duas vezes mais que os outros papers no período de 4 a 10 meses após sua divulgação. •

20 ■ JUNHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP124

http://www.thecephalopodpage.org/ A página traz informações científicas e perfis de vários tipos de cefalópodes, classe de moluscos que reúne lulas e polvos.


sca ae novas parce A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) procura parceiros privados para criar empresas de propósito específico, previstas na nova lei de inovação. A Embrapa vai oferecer aos sócios centenas de tecnologias patenteadas, além do conhecimento de seus pesquisadores e sua infraestrutura. Do setor privado,

■ Programa em gestação O Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) lançou o site da Semana Nacional de Ciência e Tecnologia de 2006 (www. semanact2006.mct.gov.br). A iniciativa está aberta à participação de qualquer instituição de pesquisa, escola, universidade, entidade, grupos ou ao público em geral em todo o país. Os eventos estão programados para o período de 16 a 23 de outubro. O tema é Criatividade e Inovação, tendo como pano de fundo a comemoração do centenário do vôo do 14-Bis, de Alberto Santos-Dumont. As atividades idealizadas por professores, pesquisadores e instituições precisam ser cadastradas no site, para que o público tome conhecimento do que está sendo feito e para

espera contrapartida em investimentos, estrutura de produção e canais de distribuição. Uma das frentes é a criação de uma empresa na área da agroenergia. "Os potenciais sócios da Embrapa nessa empreitada são o Banco do Brasil, a Companhia Vale do Rio Doce, a Itaipu Binacional, a Petrobras e o BNDES", disse Sil-

que as coordenações regionais e a organização nacional da semana possam acompanhar os trabalhos e divulgá-los. Palestras também precisam ser inscritas. Só será aceito o registro de atividades gratuitas. •

A primeira obra da trilogia: histórias e depoimentos

vio Crestana, presidente da empresa. "Temos que criar novas formas de trabalharmos juntos, em consórcios, em sociedades", afirmou. O limite de participação de empresas estatais nesses arranjos é de 49% das ações. A meta da Embrapa ao atrair parceiros privados é aumentar seu orçamento em R$ 200 milhões por ano. •

■ Setenta anos de história O livro USP 70 anos-Imagens de uma história vivida, apresenta em 703 páginas alguns dos momentos mais impor-

tantes da principal universidade pública do país desde a sua fundação. O trabalho de pesquisa foi feito pelo Centro Interunidade de História da Ciência da USP e organizado por Shozo Motoyama, diretor do centro e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. A Edusp co-edita a obra, a primeira de uma trilogia sobre a história e a importância da instituição. O livro narra a formação dos diversos campi e unidades que hoje compõem a universidade paulista e traz 32 entrevistas com professores que moldaram a história recente da instituição, sendo 8 reitores, 4 vice-reitores e 20 pró-reitores. O lançamento ocorreu no dia 18 de maio numa solenidade realizada no anfiteatro Camargo Guarnieri, na Cidade Universitária. •

PESQUISA FAPESP 124 ■ JUNHO DE 2006 ■ 21


Estratégias

Brasil

O empresário e bibliófilo José Mindlin, de 91 anos, assinou o termo de doação à Universidade de São Paulo (USP) de parte de sua Biblioteca Brasiliana, considerada o mais valioso acervo bibliográfico de caráter privado no Brasil. A coleção de mais de 15 mil volumes ficará abrigada na Biblioteca Mindlin, no futuro prédio do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) na Cidade Universitária, cuja construção deve terminar em 2009. A doação reúne clássicos da literatura brasileira, história, geografia e história natural, além de exemplares raros, como a primeira edição de O guarani, de José de Alencar, a revisão de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, obras do século 17 de viajantes europeus ao Brasil e livros da época da presença holandesa em Pernambuco. "Confio a guarda dessa floresta à USP. Além de todos os trabalhos que envolvem a reitoria dessa universidade, estou lhe trazendo mais um: o de guarda-florestal", disse Mindlin na cerimônia de assinatura de doação, dirigindo-se à reitora da USP, Suely Vilela.

Células-tronco revisitadas O simpósio "Células tronco adultas e embrionárias: A pesquisa antes do tratamento" acontece no dia 9 de junho no anfiteatro da Botânica, no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP). Profissionais que desenvolvem pesquisas na área vão apresentar seus dados e discutir as perspectivas do uso de terapias com as células-tronco. O simpósio é coordenado pela pró-reitora de Pesquisa da USP, Mayana Zatz, pelas professoras Maria Rita PassosBueno, da USP, e Irina Kerkis, do Instituto Butantan. •

■ Morre o professor Paiva Antônio Cechelli de Mattos Paiva, professor titular do Departamento de Biofísica da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), morreu no dia 18 de maio, aos 76 anos, vítima de câncer. Paiva foi vice-diretor da Escola Paulista de Medicina (EPM) e professor das universidades de São Paulo (USP) e Estadual de Campinas (Unicamp). Na FAPESP, foi coordenador adjunto da área de biologia e saúde e membro da comissão de supervisão do Projeto Ge-

22 ■ JUNHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 124

<< noma Fun1 cional da = Xylella fastidiosa. Até junho de 2003, ele integrou o conselho editorial de Pesquisa FAPESP. Após concluir o doutorado na Escola Paulista, fez o pós-doutoramento na Universidade de Utah. Atuou como professor visitante nas universidades de Cornell e do Colorado. Era membro da Academia Brasileira de Ciências e das academias de ciências do Estado de São Paulo e da América Latina. Presidiu a Sociedade Brasileira de Bioquímica, a Pan American Association of Biochemical Societies e a Sociedade Brasileira de Biofísica. •

■ A biologia do envelhecimento O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) lançou chamada pública para apoio a pesquisas direcionadas ao estudo do envelhecimento populacional e à saúde do idoso. As inscrições vão até 18 de junho. O edital conta com recursos de R$ 6 milhões do Fundo Setorial de Saúde e do Ministério da Saúde e contempla quatro linhas: biologia do envelhecimento, geriatria, gerontologia clínica e estudos sobre funcionalidade e fragilidade na atenção à saúde do idoso. Cerca de 30% do valor global será destinado a projetos nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. •


■ A Carta de Belo Horizonte Reunidos na capital mineira no início de maio, representantes do Conselho Nacional de Secretários Estaduais para Assuntos de Ciência e Tecnologia (Consecti) e do Conselho Nacional das Fundações de Amparo à Pesquisa (Con-

Apoio à Pesquisa em Empresa (Pappe). Os signatários pediram empenho do MCT na implementação de uma nova rodada de chamadas dessa modalidade de apoio. Os outros dois pontos também passam pela aproximação entre as esferas envolvidas com o avanço da ciência e tecnologia no Brasil. Num deles, se-

fap) divulgaram a Carta de Belo Horizonte, documento enviado ao Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) com três reivindicações. A primeira delas está relacionada à segunda edição do Programa de

cretários estaduais e dirigentes das FAPs pediram que programas como o biodiesel, ou outros igualmente estratégicos, sejam estimulados. O terceiro ponto pede a inclusão do Consecti e do Confap no

Conselho Diretor do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT).

■ Segunda fornada Em novembro do ano passado, as editoras Mostarda e Terceiro Nome lançaram uma série de nove livros, na maioria sobre temas ligados à ciência e tecnologia, escritos por jornalistas brasileiros. A boa aceitação da coleção Repórter Especial levou a dupla de editoras a publicar agora mais dez títulos. Entre eles, destacam-se Robô, o filho pródigo, de Heitor Shimizu, Amazônia, a floresta assassinada, de Sérgio Adeodato, Cérebro, a maravilhosa máquina de viver, de Alessandro Greco, Célulastronco - Esses 'milagres' merecem fé, de Martha San Juan França, e Efeito estufa - Por que a Terra morre de calor, de Fátima Cardoso. O preço médio de cada livro da coleção é de R$ 16. •

Amazônia, a floresta assassinada

Novos volumes da coleção: temas ligados à ciência PESQUISA FAPESP 124 ■ JUNHO DE 2006 ■ 23


POLÍTICA CIENTIFICA E TECNOLÓGICA omeça a funcionar até o início de 2007 o mais articulado esforço de pesquisa já realizado no país na compreensão do funcionamento do cérebro. Trata-se do programa ClnAPCe (sigla para Cooperação Interinstitucional de Apoio à Pesquisa sobre o Cérebro e uma alusão ao homófono sinapse, o local de contato entre os neurônios), uma rede que reúne três dezenas de grupos em seis instituições paulistas, de áreas diversas do conhecimento que vão da neurologia à computação, da física à genética. O ponto de partida do projeto é a aquisição de quatro máquinas de ressonância magnética de alto campo, dotadas do dobro da potência dos aparelhos de geração anterior existentes no Brasil. Combinadas com outras ferramentas, essas máquinas abastecerão um grande estudo sobre os mecanismos da epilepsia na população brasileira, também voltado para o desenvolvimento de métodos de investigação científica e de diagnóstico, prevenção e tratamento da doença. Nos próximos quatro anos, o projeto vai propiciar treinamento e formação de pelo menos 300 pesquisadores, sendo 30 pós-doutores, 100 doutores, 50 mestres, 100 alunos de iniciação científica e 20 técnicos. Os aparelhos de ressonância magnética de alto campo permitem obter imagens do cérebro com definição e resolução espacial muito maiores do que as disponíveis atualmente. Também viabilizam a obtenção de imagens num período de tempo bem mais curto. Hoje existe uma limitação para realizar exames muito longos, pois a colaboração dos pacientes dentro do claustrofóbico equipamento de ressonância resiste até um determinado ponto. Com as novas aquisições, um conjunto de exames que demorariam duas horas - e que, por isso, eram inviáveis - poderá ser feito em no máximo 40 minutos.

A teia envolve o cérebro Programa ClnAPCe promove articulação inédita para mapear a epilepsia FABRíCIO MARQUES

24 ■ JUNHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 124

Cada equipamento de alto campo custa cerca de US$ 2 milhões. Um deles já foi adquirido pelo parceiro privado da rede, o Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa, vinculado ao Hospital Albert Einstein, de São Paulo. As outras três máquinas serão adquiridas com financiamento da FAPESP e chegarão ao país até o final do ano. Vão ser instaladas na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), na capital, na Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto (FMRP). "Os hospitais dessas instituições concentram uma casuística de epilepsia que poucos centros do mundo dispõem para estudar", diz o neurologista Fernando Cendes, chefe do Laboratório de Neuroimagem da FCM-Unicamp, um dos idealizadores do projeto. Capacidade multiplicada - Com máquinas semelhantes, as quatro instituições conseguirão trabalhar simultaneamente em protocolos de pesquisa. A capacidade de recrutar pacientes de cada um dos quatro hospitais será multiplicada com o trabalho em grupo. "A decisão de comprar aparelhos idênticos resultou justamente da intenção de estimular o trabalho conjunto", diz Luiz Eugênio Mello, pró-reitor de Graduação da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), também um dos coordenadores do programa. "Uma sinergia dessa magnitude não seria atingida de outra forma", afirma. A ressonância magnética permite captar imagens de vários tipos, desde a anatomia do cérebro até seu caráter funcional. A base teórica do método é a detecção da radiação eletromagnética emitida por núcleos atômicos submetidos à ação de um campo magnético intenso e previamente excitados por pulsos de radiofreqüência. As substâncias branca e cinzenta do cérebro possuem diferentes propriedades e concentrações de prótons de hidrogênio. Isso confere aos sinais detectados as condições de contraste necessárias para a definição das estruturas anatômicas. Também é possível estudar o metabolismo e o funcionamento cerebral através da espectroscopia por ressonância magnética, capaz de dimensionar a presença de metabólitos e neurotransmissores cerebrais. Já a ressonância magnética funcional detecta áreas de maior fluxo sangüíneo e consumo de oxigênio acoplado à ativação de


PESQUISA FAPESP 124 ■ JUNHO DE 2006 ■ 25


determinadas regiões cerebrais específicas, o que permite mapear o funcionamento do cérebro durante a execução de determinada tarefa. A resolução do sinal depende do campo magnético da ressonância magnética e, portanto, o uso de alto campo propicia maior sensibilidade. A chegada dos novos aparelhos nem de longe significa que outros equipamentos não serão utilizados. Ao contrário, o programa busca incentivar a pesquisa sobre o uso combinado de tecnologias com o objetivo de desenvolver ferramentas de diagnóstico melhores. Uma dessas linhas de investigação, para citar um exemplo, é o uso combinado da ressonância magnética funcional com o eletroencefalograma (EEG). Enquanto a ressonância pode fornecer imagens do cérebro durante uma crise de epilepsia, o EEG, com eletrodos em diferentes pontos da cabeça, é capaz de informar o momento exato em que a crise começou. O uso conjunto das tecnologias é desejável, mas há problemas técnicos que os pesquisadores do programa CInAPCe tentarão superar com o uso de modelos animais. O principal deles é que os campos magnéticos dos eletrodos do EEG interferem na sensibilidade da ressonância. Um método que será pesquisado é o Diffusion Tensor Imaging (DTI), que permite estudar as conexões entre áreas diferentes do cérebro através de mapeamentos constantes feitos por computador. Por meio dele, o cérebro é transformado em uma rede de fibras nervosas que conecta pedaços diferentes de seu território. "Com as novas máquinas será possível trabalhar nessa área de ponta", diz Luiz Eugênio Mello. Outros arranjos também serão utilizados de forma articulada, como sistemas combinados como o da ressonância funcional (fMRI) com a eletroencefalografia (EEG), ou da EEG com a magnetoeletroencefalografia, entre outros. "Técnicas como essas, no estágio em que se encontram, são já extremamente úteis para o estudo do cérebro, algumas com ampla aplicação clínica. Todas se encontram em franco desenvolvimento e existe um grande esforço científico e tecnológico no sentido de estabelecer 26 • JUNHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 124

arranjos em que essas técnicas são combinadas para aquisição simultânea de dados", diz Roberto Covolan, professor do Instituto de Física Gleb Wataghin da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que também coordena o programa. xistem três empresas no mundo que fabricam aparelhos comerciais de ressonância magnética de alto campo: a General Electric, a Philips e a Siemens. Cada grupo terá liberdade para comprar de quem julgar mais adequado, desde que os equipamentos possam operar em rede. Os pesquisadores do programa CInAPCe comprarão os equipamentos das empresas que permitirem a manipulação e aperfeiçoamento dos softwares por profissionais brasileiros. O contrato de parceria permitirá criar competência nacional e adequar as técnicas às necessidades da pesquisa. Isso atende a um dos grandes objetivos do projeto, que é promover o desenvolvimento tecnológico. No campus da USP em São Carlos será construído um quinto equipamento de ressonância, esse para estudo de modelos experimentais em ratos e primatas não-humanos. O estudo fisiológico desses modelos será feito pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que tem tradição em pesquisa básica da epilepsia. Num exemplo da articulação, um achado da rede de máquinas de ressonância poderá ser testado num modelo experimental pelo grupo de São Carlos e o tecido do cérebro animal, em seguida, será encaminhado para a Unifesp, para estudos fisiológicos. Internet avançada - Embora situadas em cidades distantes, todas essas equipes trabalharão simultaneamente no ambiente virtual, pois estarão interligadas por rede óptica de altíssima velocidade inaugurada no ano passado, o projeto KyaTera (Plataforma Óptica de Pesquisa para o Desenvolvimento da Internet Avançada). Como a quantidade de dados gerada será muito grande, a rede rápida permitirá sua transmissão de forma efetiva e segura. O impacto da rede na formação de recursos humanos será ponderável, segundo os

organizadores do CInAPCe. "Os pesquisadores de diversas áreas vão atuar juntos e em rede, num ambiente novo, em que um terá de se esforçar para compreender a linguagem do outro", afirma Colovan. "A rede permitirá que todos os estudantes de pós-graduação das diferentes instituições tenham treinamento, por meio de videoconferência, com os melhores especialistas de cada grupo - o que não aconteceria sem a rede", diz Luiz Eugênio Mello. "Se a pesquisa da epilepsia já era uma área forte no Brasil, isso a tornará mais forte ainda", completa. Fatores múltiplos - Outra das preocupações do CInAPCe é a divulgação científica. Por isso haverá uma articulação com a Aspe (Assistência à Saúde de Pacientes com Epilepsia), que integra uma campanha global liderada pela Organização Mundial da Saúde cujo objetivo é propagar informações sobre a epilepsia e promover o acesso a tratamentos adequados. Houve um notável progresso na pesquisa em epilepsia na última década, impulsionado pelos avanços nos métodos não-invasivos de obtenção de imagens do cérebro. Mas questões fundamentais relacionadas à doença ainda não foram esclarecidas. Na verdade, não se trata de uma doença única. Sob o rótulo de epilepsia há uma variedade de patologias que interferem na dinâmica cerebral e têm como denominador comum a eclosão recorrente de crises. "Essa multiplicidade de fatores mostra a necessidade de se articular especialistas de diferentes áreas trabalhando num projeto comum", explica Fernando Cendes. A complexidade da atividade cerebral requer um esforço de pesquisa de caráter multidisciplinar. Por isso os centros mais avançados de países como os Estados Unidos estimulam a colaboração entre pesquisadores das ciências exatas, tecnológicas e biomédicas no estudo dos processos cerebrais. A meta sempre é buscar novas respostas sobre a dinâmica cerebral e aprimorar as ferramentas já existentes. O programa CInAPCe começou a ser gestado no final dos anos 1990, com um objetivo mais amplo e um espectro de pesquisadores mais restrito. A idéia original era criar uma rede de pesquisa


interdisciplinar dentro da Unicamp para adquirir tecnologia de ponta e estudar a dinâmica cerebral. "A complexidade inerente à atividade cerebral requer que a pesquisa nessa área cubra um amplo espectro de atividades, utilizando desde técnicas recentemente desenvolvidas pela genética molecular até sofisticados métodos para mapeamento funcional do cérebro humano", diz Covolan. A intenção de restringi-lo à Unicamp foi posta de lado no ano 2000, quando os principais articuladores do projeto, os professores Covolan e Cendes, apresentaram a idéia ao então presidente da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz, hoje diretor científico da Fundação, e ao diretor da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, Mário Saad. Foram aconselhados a envolver mais instituições e a criar uma rede de pesquisa além dos limites da Unicamp. Procuraram outras universidades e, no final daquele ano, lançaram a idéia da rede estadual. Escolha natural - Já o objeto de estudo foi limitado para tornar o projeto mais tangível. A escolha do tema epilepsia foi natural. A doença era o assunto mais estudado pelos participantes do projeto. Ao mesmo tempo, a escolha não comprometia a idéia original. "Uma boa parte do que os pesquisadores aprenderam sobre as áreas do cérebro, como as responsáveis pelo movimento e pela linguagem, foi a partir de cirurgias de epilepsia", diz Cendes. "O mapeamento de funções corticais antes e durante a cirurgia de epilepsia oferece uma oportunidade única de estudar as funções cerebrais in vivo. Situações em que a epilepsia também altera a memória permitirão buscar respostas sobre o próprio processo de formação da memória", explica ele. A epilepsia ataca 1% da população mundial, sendo que 80% dela vive em países em desenvolvimento. A incidência maior em nações pobres é atribuída a razões variadas, desde a casuística elevada de doenças infecciosas que afetam o cérebro, como é o caso da neurocisticercose e a meningite, às lesões na cabeça provocadas por acidentes de automóvel e complicações no parto.

Em 2001 o programa foi levado à FAPESP, mas precisou superar dois obstáculos. O primeiro foi a explosão da cotação do dólar em 2002, que obrigou a Fundação a congelar importações por um período de tempo. No final de 2003 a situação normalizou-se e o projeto retomou seu curso. O segundo desafio foi estabelecer uma configuração ideal para uma iniciativa de caráter inédito e multidisciplinar. Não foi uma tarefa fácil. Foi preciso chegar a um acordo, por exemplo, sobre o tipo de máquina que deveria ser comprado. Até que se alcançasse um consenso sobre ter quatro máquinas de alto campo idênticas trabalhando em rede outros tipos de equipamentos foram cogitados, como o magnetoencefalógrafo ou a tomografia por emissão de pósitrons, mas postos de lado. rês avaliadores internacionais, Brian Meldrum, professor de neurologia experimental do King's College, de Londres, Bruce Pike, do Centro de Imagem do Cérebro McConnell, em Montreal, e Ana Nobre, da Universidade de Oxford, auxiliaram a criar diretrizes. "A discussão girou em torno do arranjo que renderia melhor para todos. Alguns grupos tinham experiência e interesse em certas tecnologias e foi preciso alcançar um consenso", diz Luiz Eugênio Mello. Cada instituição participante deveria contar com um pesquisador da área de ciências exatas e outro da área de biológicas no comando de cada proposta, pré-requisito para garantir a multidisciplinaridade. O longo tempo usado no desenvolvimento do projeto não foi desperdiçado. Durante esse período, ele foi discutido à exaustão entre seus participantes. "Foi um tempo de noivado antes do casamento que permitiu que todos nos conhecêssemos", diz Fernando Cendes. "Fomos aprendendo a falar uma mesma linguagem. É um projeto que já nasce amadurecido." O programa foi idealizado para durar quatro anos. Mas a idéia é que, ao final desse período, desdobre-se em diversos projetos sobre a dinâmica cerebral que se beneficiem da expertise e da infra-estrutura desenvolvidas para o programa CInAPCe. • PESQUISA FAPESP 124 ■ JUNHO DE 2006 ■ 27


POLÍTICA CIENTÍFICA E TEC NOLÓG ICA

Jatropha curcas: pinhão

Allamanda puberula: mate

PROPRIEDADE INDUSTRIAL

Seguro contra roubo Governo divulga lista de 3 mil espécies vegetais brasileiras para evitar apropriação de seus nomes no exterior

28 • JUNHO DE 2006 • PESQU ISA F'APESP 124

Euterpe oleracea: açaí

scritórios de registras de marcas e patentes de diversos países receberão um software com uma lista de 3 mil nomes científicos de espécies vegetais tradicionais do Brasil, como cacau, pinhão, umbu, cajá, cupuaçu, maracujá, açaí, acácia, araucária, macela-da-terra e canela-de-cheiro. O objetivo é evitar registras de marcas de produtos típicos brasileiros por empresas de má-fé, que bloqueiem o acesso do país a mercados internacionais. A lista é resultado de dois anos de trabalho do Grupo Interministerial de Propriedade Intelectual (Gipi), que reuniu representantes de oito ministérios. A idéia de criar um índice de espécies nacionais surgiu após uma batalha judicial travada pelo governo brasileiro contra a empresa nipônica Asahi Foods, que conseguira registrar a marca cupuaçu e bloquear a venda de produtos brasileiros feitos com a fruta tropical de sabor exótico nos mercados do Japão, dos Estados Unidos e da Europa. Q uem quisesse usar o nome teria de pagar um pedágio à companhia japonesa. Uma parceria entre a diplomacia brasileira e organizações ambientalistas conseguiu cancelar o registro na Justiça japonesa, mas o caso mostrou a necessidade de prevenir novas investidas.


,--------------------------------------------------------------, .,

§ be. Uma análise da lista mostra que seu :::>

.,~ ~

~'"~ ~

Theobroma grandiflorum: cupuaçu

De posse da lista de 3 mil nomes, os escritórios de m arcas poderão saber se há apropriação de n omes comuns associados à biodiversidade existente no Brasil quando um pedido for requerido. "Todas as legislações de marcas respeitam nomes naturais ou palavras comuns como não sendo registráveis como marca naquelas categorias a que elas se referem. Não se trata de uma inovação na legislação, mas de uma informação adicional para permitir que o exame do registro seja bem executado", afirma Roberto Jaguaribe, presidente do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). "O interesse é mútuo. Nós queremos evitar que mercados se fechem para os nossos produtos. Já os escritórios têm como missão impedir que seus consumidores sejam obrigados a comprar produtos de empresas que obtiveram exclusividade abusiva de um direito", diz. A relação também será encaminhada a organismos internacionais como a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (Ompi) e a Organização Mundial do Comércio (OMC).

;~ í~

nrzl ... .

~

Caryocar brasiliense: pequi

A lista do Gipi foi apresentada em 22 de maio, o dia mundial da biodiversidade, mas seus efeitos vinculam-se mais ao respeito à propriedade industrial do que à prevenção da biopirataria. A relação de nomes se limita a espécies vegetais, que efetivamente têm valor comercial. "Em casos de espécies animais, o valor comercial dos nomes é reduzido ou insignificante", diz Roberto Jaguari-

conceito de biodiversidade brasileira é elástico. Lá constam nomes de espécies de enorme interesse comercial que não são nativas do Brasil, como é o caso do café. Por fim, a lista restringe-se ao registro de marcas e não tem serventia, por exemplo, para enfrentar denúncias de patenteamentos indevidos, como o registro por uma empresa norte-americana de dois princípios ativos, um analgésico e outro vasodilatador, retirados da secreção de um sapo da Amazônia. A empresa extraiu as substâncias do animal e patenteou-as, passando a produzi-las sinteticamente. A lista contempla 3 mil nomes científicos de espécies vegetais, que se desdobram em cerca de 5 mil nomes comuns e suas variantes- como aipim, macaxeira, mandioca. Contém, em alguns casos, os nomes em inglês das espécies. "Isso também pode auxiliar o trabalho do examinador de marcas estrangeiro", explicou Manuel Lousada, secretário substituto de Tecnologia Industrial do Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC). Estima-se que menos de uma centena de espécies esteja sob risco de apropriação indevida. Mas, como a lista servirá como elemento de defesa em processos judiciais, o Gipi decidiu fazer uma relação mais ampla, capaz de antecipar-se a problemas que hoje não podem ser vislumbrados. Na relação constam espécies de bromélias, de uvas e de ervas medicinais. "Com a participação cada vez maior do Brasil no comércio internacional, a tendência é que surjam falsificações de nossas marcas conhecidas", diz Roberto Jaguaribe. A iniciativa brasileira tem precedente no Peru, que já montou um banco de dados semelhante e criou uma comissão para investigar registras de produtos de sua biodiversidade em escritórios de marcas e patentes da Europa, Japão e Estados Unidos. Foram identificados cerca de SOO registras. A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, anunciou no lançamento da lista que pretende agora ampliar a discussão para outros países vizinhos ligados à Organização do Tratado de Cooperação dos Países Amazônicos (Otca). "Não somos só nós que temos a andiroba. Outros países amazônicos também têm", afirmou Marina. • FABRÍCIO MARQUES

PESQUISA FAPESP 124 • JUNHO DE 2006 • 29


O POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA BIODIVERSIDADE

A norma do campo

o dia 30 de abril passado, Massuo Jorge Kato foi interpelado por fiscais do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) no aeroporto de Belém pouco antes de embarcar para São Paulo. O pesquisador do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP) carregava uma caixa de papelão, daquelas usadas para transportar monitores de computador, com cerca de 30 amostras semiprocessadas de folhas e ramos finos de várias espécies de piperáceas, família de plantas aromáticas que inclui a famosa pimenta-do-reino. Embora os espécimes tivessem sido coletados de forma legal na Floresta Nacional de Caxiuanã por pesquisadores da Universidade 30 ■ JUNHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 124

Lei nacional emperra a coleta de amostras biológicas e paralisa a pesquisa

Federal do Pará (UFPA), que colaboram com o cientista paulista, Kato não possuía uma autorização para transportar o material da floresta para a capital paulista. À luz da lei, para os funcionários do Ibama, o especialista em plantas incorreu numa prática que beira a biopirataria. Por isso o material foi apreendido e o cientista notificado a dar explicações de seu procedimento. "Conheço as normas, há muitas exigências, algumas inviáveis", afirma o especialista da USP. "Estamos numa situação de conflito entre o Ibama e os pesquisadores, que querem apenas dar sua contribuição para o conhecimento da biodiversidade." Kato é um cientista respeitado, com endereço e linha de pesquisa conhecidos, que pode ter incorrido numa falha burocrática, mas nem de longe promove o tráfico ilegal de espécies. O episódio vivido por ele é apenas mais um que ilustra a situação de paralisia e semi-


marginalidade em que foi colocada a pesquisa biológica de campo realizada em território nacional desde a edição, em agosto de 2001, da Medida Provisória n° 2.186-16. Formulado para preservar a biodiversidade nacional, esse marco legal, editado pelo governo federal, regula o acesso ao patrimônio genético do país e tenta criar um regime de partição de eventuais ganhos econômicos decorrentes da exploração comercial do chamado conhecimento tradicional dos indígenas sobre propriedades terapêuticas das plantas ou da obtenção de extratos ou moléculas derivadas e espécies da flora e da fauna brasileira. Mirando na biopirataria, a legislação atingiu o trabalho dos biólogos brasileiros, que passaram a enfrentar uma burocracia, às vezes irracional, segundo eles, a fim de obter autorizações do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), órgão criado pela própria MP, para coletar amostras. Há pelo menos três anos os pesquisadores pleiteiam, em vão, reformas na lei. "Esperávamos que o governo federal anunciasse a flexibilização das normas em março, durante a COP 8 (a Oitava Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica, patrocinada pela Organização das Nações Unidas)", afirma Carlos Alfredo Joly, biólogo da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ex-coordenador do programa Biota-FAPESP. As boas novas não vieram, mas o Ibama e o CGEN acenam com reformas na MP para os próximos meses. Até porque, depois de embates entre cientistas e a área ambiental do governo federal, parece finalmente haver um consenso de que a atual medida provisória inibe, ao invés de fomentar, a pesquisa sobre a biodiversidade nacional. "De fato, a legislação é inadequada e jogou na ilegalidade os pesquisadores", admite Eduardo Velez, secretário-executivo do CGEN, que concede as autorizações para coletas de campo com fins econômicos (trabalhos de bioprospecção ou baseados no conhecimento tradicional). "Queremos simplificar todo esse processo."

Natureza inacessível: autorização legal para colher espécies pode demorar meses

Coleta ilegal - A concessão de uma licença desse tipo pode ser um martírio para quem trabalha na academia. "Estamos há mais de um ano tentando uma autorização", reclama Vanderlan da Silva Bolzani, do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Araraquara, uma das coordenadoras da BIOpropescTA, a Rede Biota de Prospecção e Ensaios, que pesquisa plantas da Mata Atlântica e Cerrado paulista em busca de vegetais com potencial para gerar produtos na área médica. Enquanto o aval de Brasília não vem, as viagens a parques e reservas para obter amostras para estudo estão suspensas. Segundo Vanderlan, apenas os laboratórios e empresas da área farmacêutica que contam com advogados para driblar a burocracia e assessorar os pedidos de autorização

de coleta de amostras biológicas conseguem o sinal verde do CGEN. "Não é o nosso caso, mas, diante das dificuldades, há pesquisadores que preferem trabalhar na ilegalidade", comenta a cientista. Até agora o CGEN concedeu menos de 20 autorizações de coleta com finalidade econômica. Mesmo a obtenção de amostras da fauna e da flora para trabalhos de caráter acadêmico, que visam gerar basicamente mais conhecimento científico sobre as espécies, sem implicações comerciais, esbarra na atual legislação. A autorização para esse tipo de coleta é dada pelo próprio Ibama. Os pesquisadores reclamam da morosidade e falta de critérios para expedir as licenças, embora reconheçam que hoje o Ibama se mostra mais atento aos pleitos da comunidade acadêmica. "Uma autorização demora pelo menos seis meses para sair", comenta o biólogo Carlos Roberto Brandão, do Museu de Zoologia da USP "E se, por acaso, coletarmos uma espécie diferente da que consta em nosso pedido encaminhado ao Ibama, podemos ser acusados de biopirataria." Rômulo Melo, diretor de fauna e recursos pesqueiros do Ibama, admite que a medida provisória é um desestímulo à pesquisa e também promete mudanças urgentes, no final de julho ou em agosto, para desengessar a legislação atual. "O pesquisador deve prestar contas à sociedade de seu trabalho, mas tem de ser visto como um parceiro da área ambiental, e não como um potencial biopirata", diz Melo. Entre as medidas flexibilizadoras propostas pela área ambiental federal, está a concessão de autorizações permanentes de coleta (e não caso a caso) para cientistas de instituições acadêmicas por meio de um ágil sistema on-line. "Apenas os casos mais delicados, como um pedido para retirar amostras de uma espécie ameaçada de extinção dentro de uma unidade de conservação, demandariam análise mais detalhada", afirma Melo. • MARCOS PIVETTA PESQUISA FAPESP 124 ■ JUNHO DE 2006 ■ 31


O POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA AVALIAÇÃO

Publicar não é tudo Artigo propõe um método qualitativo para avaliar desempenho de pesquisadores

uai é a forma mais justa de avaliar a produção de um pesquisador? O debate que desde há muito tempo anima a comunidade acadêmica ganhou novo combustível num artigo assinado por Edgar Dutra Zanotto, professor do Departamento de Engenharia de Materiais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Com base nos dez anos em que atuou como coordenador adjunto da diretoria científica da FAPESP - passaram por seu crivo cerca de 48 mil projetos neste período -, Zanotto propôs uma forma de classificar a produção de um pesquisador não apenas com os tradicionais parâmetros quantitativos (artigos publicados em revistas científicas e citações desses artigos em outros trabalhos), mas também em critérios de qualidade. O artigo de Zanotto foi aceito para publicação na revista Scientometrics, referência na cienciometria, disciplina que busca gerar informações para estimular a superação dos desafios da ciência. Intitulado "A pirâmide dos cientistas", apresenta um elenco de situações e qualidades capazes de situar um pesquisador dentre quatro categorias propostas. A principal delas, o topo da pirâmide, apresenta exigências nas quais raros pesquisadores brasileiros se enquadrariam. Duas delas são consagradas, como a publicação de trabalhos científicos nas mais importantes revistas científicas, como Science, Nature, Cell, New England Journal ofMedicine e Physical Review Letters, e o índice na casa dos milhares das citações de seus artigos em publicações da base Thomsom ISI. As demais são qua32 ■ JUNHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 124

litativas, como ter recebido os prêmios mais importantes de seu campo do conhecimento, trabalhar em centros de pesquisa ou laboratórios de nível internacional, ser contemplado com recursos abundantes, pertencer a academias científicas de prestígio e ao corpo editorial de publicações importantes, ter sido convidado para dar palestras e comandar mesas-redondas em congressos ou simpósios internacionais, ser citado em livrostexto de sua especialidade e na mídia. Ao todo, são 11 parâmetros. "Para pertencer a esta categoria, seria necessário cumprir pelo menos nove ou dez dos parâmetros", diz Zanotto, que antevê algum desconforto caso sua metodologia ganhe adeptos: "No Brasil, creio que não mais do que uma dúzia de pesquisadores, aqueles poucos que estariam na ante-sala de um prêmio Nobel, se encaixaria no topo da pirâmide", diz. Degraus na escala - Nas outras três categorias, batizadas de classes A, B e C, os critérios são semelhantes, mas com rigor decrescente. Tomando como exemplo o parâmetro das citações, os de classe A deveriam ter pelo menos 500 artigos citados na base Thomson ISI, os de classe B ao menos uma centena e os de classe C pouca ou nenhuma citação. Os de classe A deveriam trabalhar em centros de pesquisa ou laboratórios internacionalmente conhecidos, os de classe B em centros de pesquisa razoáveis e os de classe C em centros incipientes. Mas qual seria a serventia de uma classificação desse tipo? Zanotto acredita que o formato ajudaria os pesquisadores a perceber melhor seus pontos fortes e fracos e tentar galgar degraus na escala da pirâmide. Também crê que teria

utilidade para que agências de fomento direcionassem seus recursos. "Cada agência estabeleceria seus critérios. Um deles poderia ser, por exemplo, que só um pesquisador do topo ou classe A está apto a liderar um projeto de porte como os temáticos da FAPESP", afirma. Zanotto morou nos Estados Unidos em 2005, gozando um período sabático, e durante esse tempo refletiu sobre sua experiência em buscar uma forma mais fidedigna de classificar a produção de pesquisadores. O artigo é um resultado dessa reflexão. Os critérios da pirâmide referem-se a categorias que ele aprendeu a identificar em seu trabalho de avaliador. A preocupação em buscar uma nova classificação para o desempenho dos pesquisadores vem alimentando outras propostas. Uma delas é o chamado índice h, proposto pelo físico Jorge Hirsch, da Universidade da Califórnia, em San Diego. O índice h é definido como o número "h" de trabalhos que tem pelo menos o número "h" de citações cada. Trocando em miúdos: um pesquisador com índice h 30 é aquele que publicou 30 artigos científicos, sendo que cada um deles recebeu ao menos 30 citações em outros trabalhos. A ponderação exclui trabalhos menos citados e também evita distorções (se as citações estão concentradas num único artigo de um autor, isso não contamina a contagem geral). Assim, dá a medida do tamanho e do impacto da produção acadêmica de um pesquisador. Em seu estudo, Zanotto sugere que, embora corrija distorções, o índice h está longe da perfeição. Ele aplicou o índice à produção de quatro renomados físicos brasileiros (cujos nomes não revela para não personalizar o debate). Todos os quatro tinham índice h semelhante, entre 10 e 12. O mais produtivo deles, contudo, ostentava um índice de citações por artigo quatro vezes maior do que o último da lista. "É urgente encontrar uma forma mais holística de avaliar a qualidade, o talento e a reputação de um cientista", diz o professor da UFSCar. Mas a proposta de Zanotto também tem limitações. A principal delas, admitida pelo próprio autor, é sua aplicabilidade em certos campos do conhecimento, mas não em outros. Nas ciências humanas, o critério de contabilizar artigos e citações teria de ser substituído por outro, uma vez que a realidade é diferente


das engenharias, medicina e das ciências exatas, e pouco é publicado em revistas internacionais. "Mas seria possível fazer adaptações. O essencial é manter o espírito de mostrar o prestígio que um pesquisador tem em seu meio. Ninguém consegue enganar o conjunto de seus pares", diz Zanotto. Para o especialista em cienciometria Rogério Meneghini, coordenador científico da SciELO, professor aposentado do Instituto de Química da Universidade de São Paulo e também ex-coordenador adjunto da diretoria científica da FAPESP, o valor do trabalho de Zanotto reside em levantar a discussão sobre o melhor critério de avaliação e também em demonstrar a importância da avaliação dos pares. "Na prática, já é o que acontece quando se faz um concurso para contratação de professores em que temos 40 candidatos e apenas duas ou três vagas", diz Meneghini. "Todos esses critérios qualitativos são contemplados pelos avaliadores e produzem uma escolha mais justa." Meneghini, contudo, acha difícil transpor tais critérios para uma avaliação sistemática e de massa. "Há dificuldades de fazer comparações objetivas. Quem vai definir se uma cadeira numa determinada academia científica vale tanto no currículo de um pesquisador quanto outro assento que consta na biografia de outro pesquisador?", pergunta Meneghini. "Sempre há margem para algum tipo de distorção. A quantidade de fundos que um pesquisador recebe às vezes tem mais a ver com uma prioridade de governo do que propriamente por seu desempenho." Zanotto defende seu método. "É possível haver distorção em um ou outro parâmetro, mas não no conjunto deles", afirma. O pesquisador faz questão de avisar que não criou a metodologia em proveito próprio. "Eu não me encaixaria no topo da pirâmide", diz ele. Parece brincadeira, mas já houve pesquisadores que sugeriram critérios de avaliação talhados para fazer reluzir os próprios currículos. O famoso físico russo Lev Landau (1908-1968) certa vez propôs um logaritmo para ranquear os pesquisadores de seu campo do conhecimento. Albert Einstein recebeu uma cotação modesta: 0,5. Já Lev Landau apareceu no topo, com 2,5. • FABRíCIO MARQUES PESQUISA FAPESP 124 ■ JUNHO DE 2006 ■ 33


ç

CIÊNCIA

Um ano para manter a linha letade das pessoas que responderam a um levantamento da Universidade de Yale sobre obesidade disse que daria um ano de suas vida para não serem obesas. Entre 15% e 30% dos 4 mil participantes do estudo dessa universidade dos Estados

■ Eles ainda molham a cama Eles vão negar, claro, e talvez enrubescer se lhes perguntarem. Mas um em cada 50 adolescentes ainda padece de enurese noturna - a perda involuntária de urina durante o sono. E metade deles, aos 19 anos, deixa a cama molhada toda noite, de acordo com um estudo publicado em maio no British Journal of Urology International. Uma equipe formada por pesquisadores da Universidade de Hong Kong, da China, e do Hospital Príncipe de Wales, Reino Unido, analisou mais de 16.500 questionários respondidos por crianças e jovens de 5 a 19 anos. Com a idade, a freqüência cai,

mas a gravidade aumenta: 82% dos casos severos concentramse na faixa dos 11 aos 19 anos. Esses achados, de acordo com os autores desse estudo, desafiam a idéia de que esse problema desaparece com a idade. Em um trabalho publicado em 2004, Chung Yeung, coordenador desse levantamento,

34 ■ JUNHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 124

Unidos também prefeririam abandonar o casamento e os filhos, ficar deprimidos ou virar alcoólatras do que se tornarem obesos; 5% e 4% aceitariam até mesmo perder um membro ou ficarem cegas do que se verem com um peso acima do que

mostrou que não havia uma queda expressiva da enurese noturna entre os 10 e os 40 anos. •

■ Benefícios da jornada dupla Trabalhar e cuidar dos filhos pode ser benéfico para man-

acham que deveriam ter. Outra equipe de Yale entrevistou representantes de comunidades negras, latinas ou caucasianas que vivem nos Estados Unidos e verificou que a cultura tem um papel importante no modo pelo qual as mulheres percebem a obesidade. Na cultura negra, obesidade é definida de modo positivo e está ligada à atração e desejo sexual, força, bondade, auto-estima e aceitação social. Já para as mulheres brancas representa uma imagem corporal negativa e uma perda tanto de atração sexual quanto de auto-estima. A taxa de obesidade na população varia de 5% no Japão e na China a 75% em alguns centros urbanos da África. •

ter a saúde das mulheres em bom estado e por muito tempo. A conclusão se apoia em um estudo publicado na Journal ofEpidemiology and Community Health, que consistiu no acompanhamento do estado de saúde aos 26 e aos 54 anos de 2.547 mulheres nascidas na Grã-Bretanha em 1947: a cada década se avaliava se as mulheres estavam trabalhando, se estavam casadas, se tinham filhos e se estavam pesando mais. Aos 54 anos, as mulheres casadas e com filhos que trabalhavam relatavam menos problemas de saúde que as que não cumpriam esses três requisitos. Eram também as menos propensas à obesidade - a tendência a ganhar peso era mais clara en-


■ Estimuladas pelo Prozac

Caçada no Alasca

Os cavalos selvagens do Alasca podem ter sido caçados até a extinção - provocada, portanto, pelo homem, mais do que pelas mudanças climáticas, como se pensava. A visão mais aceita era que os cavalos se extinguiram bem antes dos mamutes e pelo menos 500 anos antes da chegada dos seres humanos da Ásia. Ou-

tre as que não saíam de casa. As mulheres que tinham sido apenas donas-de-casa durante toda a vida ou a maior parte da vida eram as que mais diziam que a saúde não andava lá muito bem, seguidas pelas mães que viviam apenas com os filhos e as mulheres sem crianças. O bem-estar mos-

'^J^^^J^J^C^^y

tra teoria: uma época de frio muito intenso, em uma região por si só já bastante fria, acabou com eles. Porém Andrew Solow, do Instituto Oceanografia) Woods Hole, dos Estados Unidos, David Roberts, do Jardim Botânico de Kew, e Karen Robbirt, da University of East Anglia, do Reino

trou-se como resultado, mais do que a causa, da adoção de muitos papéis sociais. •

■ Gelo feito a 25 graus O congelador perdeu o monopólio. A água pode congelar e tornar-se gelo à temperatu-

Unido, suspeitaram dessas duas possibilidades após encontrarem imprecisões na datação e registros incompletos dos fósseis. Mas, analisando fósseis de 24 cavalos, concluíram que esses animais podem ter sido eliminados há cerca de 11.700 anos, algumas centenas de anos depois da chegada dos seres humanos. •

ra ambiente quando colocada entre uma ponta de um fio de tungstênio e uma superfície de grafite. De acordo com um artigo da Physical Review Letters assinado por Joost Frenken e sua equipe da Universide de Leiden, na Holanda, entre a ponta e a superfície formam-se pontes de gelo, em uma escala evidentemente nanométrica, que duram apenas alguns segundos. Nessas condições a água funciona como uma cola, e não como um lubrificante, mantendo as duas superfícies unidas. Essa descoberta pode ser útil para pesquisadores que trabalham com conjuntos elétricos de peças que podem deixar de funcionar a contento se a fricção entre elas for alta demais. •

Uma equipe do Laboratório Cold Spring Harbor Laboratory descobriu quais células do cérebro são acionadas pela fluoxetina, o fármaco do antidepressivo mais conhecido no mundo, o Prozac, e comandam as respostas dos neurônios em face da escassez do neurotransmissor serotonina, que pode levar à depressão. Já se sabia que esse medicamento aplacava os sintomas da depressão mobilizando mais neurônios em algumas regiões do cérebro. Analisando os diferentes tipos de células do cérebro de camundongos marcadas com uma proteína, a equipe de Grigori Enikolopov demonstrou que a fluoxetina age no segundo passo da formação de neurônios a partir de células-tronco do cérebro, estimulando a atividade de um tipo de células chamadas progenitores neurais amplificados (ANP). A descoberta ajuda a explicar os fatores que controlam o modo, o momento e o lugar em que novos neurônios são formados, a partir das células-tronco do cérebro, e pode levar a uma nova geração de tratamentos mais específicos e com menos efeitos colaterais que os em uso atualmente contra distúrbios mentais. •

PESQUISA FAPESP124 ■ JUNHO DE 2006 • 35


Vítima do ozônio A árvore-símbolo do país, o pau-brasil (ao lado), também sofre com o ozônio, gás formado por três átomos de oxigênio cuja concentração nas regiões da atmosfera mais próximas à superfície pode produzir irritação nos olhos e no nariz, náusea, tosse ou danos aos pulmões. Regina Maria de Moraes, do Instituto de Botânica, deixou por um mês dez plantas jovens de Caesalpinia echinata em câmaras de um laboratório em Valência, na Espanha, simulando concentrações de ozônio próximas às encontradas durante a primavera na cidade de São Paulo (a concentração média nessa época do ano é de 50 micro-

gramas por metro cúbico). A taxa de assimilação de carbono caiu para 50%, a atividade dos estômatos (células responsáveis pelas trocas de gás carbônico e água com a atmosfera) caiu para 42% e a transpiração para 40%, em comparação com as plantas que só receberam ar ambiente, sem a dose extra de ozônio. Os resultados, publicados na Ecotoxicology and Environmental Safety, explicam a dificuldade de adaptação dessa espécie às cidades. "Os efeitos da poluição de São Paulo afetam o pau-brasil de tal maneira", comenta Regina, "que sua utilização na arborização da cidade não é recomendada". •

Laboratório

Brasil

■ Inventário de peixes Como são e onde encontrar o peixe-bruxa, o peixe-porco, o cherne-verdadeiro ou o congro-rosa? Já é possível identificar sem grandes dificuldades e saber a região aproximada em que essas espécies das profundezas do mar brasileiro

podem ser encontradas: basta consultar o Prospecção pesqueira de recursos demersais com armadilhas e pargueiras na Zona Econômica Exclusiva da Região Sudeste-Sul do Brasil. Esse livro, assinado por Roberto Bernardes e por outros cinco oceanógrafos, descreve 15 espécies de peixes e dez de crustáceos, além de oito

36 ■ JUNHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 124

exemplares novos e ainda não identificados de uma fauna pouco acessível, que vive longe do litoral. É um dos resultados do programa Avaliação do Potencial Sustentável de Recursos Vivos na Zona Econômica Exclusiva, mais conhecido pela sigla Revizee, um megalevantamento dos seres vivos e do relevo da faixa cos-

teira que só pode ser explorada pelo Brasil, a Zona Econômica Exclusiva (ZEE). Equipes de institutos de pesquisa de todo o país mapearam a superfície marinha e fizeram um inventário dos mais diversos grupos de seres vivos, das baleias aos organismos microscópicos que se movem com a água do mar. •


■ Os perigos de fabricar pneus Lidar constantemente com solventes e borrachas pode fazer muito mal à saúde. Já havia estudos mostrando a maior freqüência de leucemias, cânceres de bexiga, pulmão, laringe, estômago, fígado e pele nos trabalhadores da indústria de borracha do que na população em geral. Agora, em um trabalho publicado na Revista de Saúde Pública, Hélio Neves, da Secretaria do Verde e Meio Ambiente do Município de São Paulo, José Eduardo Moncau, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Paulo Kaufmann, do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Artefatos de Borracha, de Pneumáticos e Afins de São Paulo, e Victor Wünsch Filho, da Universidade de São Paulo (USP), verificaram que o risco de morte por câncer é maior nas pequenas que nas grandes empresas, provavelmente por causa da maior probabilidade de exposição a substâncias cancerígenas. Os pesquisadores acompanharam por dez anos, de janeiro de 1990 a dezembro de 2000, o estado de saúde de 9.188 homens que trabalhavam na fabricação de pneus, na manufatura de artefatos de borracha e em recauchutadoras. Quando comparados aos empregados das grandes empresas, mostraram-se mais suscetíveis a todos os tipos de câncer, em especial tumores de estômago (25,4%), dos brônquios e pulmões (13,4%) e esôfago (10,4%). Verificou-se também um aumento de 13% na chance de morte por câncer para cada ano adicional de vida. A indústria da borracha mobiliza 7 milhões de empregos e 650 mil empresas em todo o país. •

■ Passado nos dentes O estado de conservação e as características físicas macro e microscópicas dos dentes podem revelar os hábitos e as razões pelas quais animais de milhões de anos atrás conseguiram viver mais ou se extinguiram rapidamente. A paleontóloga Lílian Paglarelli Bergqvist, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),

e o dentista Sérgio Roberto Peres Line, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), estudaram o esmalte dentário de fósseis para conhecer alguns dos mecanismos de adaptação de mamíferos herbívoros da bacia de Itaboraí - situada na região central do estado do Rio de Janeiro, guarda registros de animais e plantas de 60 milhões de anos. Em um estudo na revista Journal ofVertebra-

te Paleontology, Lílian e Line mostram como ramificações do esmalte do dentes, conhecidas como bandas HunterSchereger (HSB), podem indicar como os animais se alimentavam e como os dentes resistiam aos diferentes tipos de alimentos. Dois padrões de orientação de bandas são conhecidos nos dentes dos mamíferos: horizontal e vertical. O padrão horizontal é o encontrado nos mamíferos primitivos, mas o estudo dos fósseis de Itaboraí revelou que o padrão de HSB vertical era mais comum entre os mamíferos do que se imaginava. O padrão vertical ajudou a dar resistência aos dentes dos primeiros mamíferos herbívoros de médio a grande porte. "Essa técnica de trabalho é ainda muito pouco aplicada no estudo dos fósseis brasileiros", comenta Lílian. Também é bastante raro um dentista participar de um estudo sobre animais extintos. •

O lagarto que ama as flores Lagartos não são tão bárbaros e brutos quanto poderiam parecer à primeira vista: alguns adoram flores. É o caso do mabuia de Noronha {Euprepis atlanticus) que se delicia com o néctar das flores de uma árvore, o mulungu (Erythrina velutina), que floresce na seca, durante quatro meses do ano. Só encontrado no arquipélado de Fernando de Noronha, o mabuia escala 12 metros da árvore até chegar às flores amarelas: retira não só o doce néctar como também a água que se acumula entre as pétalas. Bas-

tante raro, esse hábito deve também beneficiar a polinização, já que o lagarto leva grãos de pólen de uma flor a outra, de acordo com um estudo publicado na revista eletrônica Biota Neotropica e coordenado por Ivan Sazima, com a participação de Cristina e Mariles Sazima, todos do Instituto de Biologia da Universidade de Campinas (Unicamp). Não se trata de uma dieta radical: o mabuia não hesita em comer os insetos que encontra entre uma árvore e outra. •

PESQUISA FAPESP 124 ■ JUNHO DE 2006 ■ 37


CAPA SAÚDE REPRODUTIVA

Estudo publicado na revista Lancet mostra que cesariana desnecessária coloca em risco a vida da mulher e do bebê



Tma pesquisa internacional publicada na edição de 3 de junho da Lancet, uma das mais respeitadas revistas médicas do mundo, traz um alerta para os médicos e os futuros pais e mães: a realização de partos cirúrgicos ou cesáreos sem uma indicação médica específica coloca em risco a saúde da mulher e do bebê. É um chacoalhão mais do que necessário nos ginecologistas, obstetras e gestores de saúde do mundo todo, que nas últimas quatro décadas viram as taxas de cesarianas desnecessárias crescerem de modo assustador sem as conseguir frear. O recado das páginas da Lancet assume um significado particular para a América Latina e, em especial, para o Brasil, segundo colocado em realização de partos cesáreos no mundo - uma das principais questões relacionadas à saúde reprodutiva da mulher no país, ao lado da esterilização cirúrgica e da retirada desnecessária do útero (histerectomia). Aqui os índices de partos cirúrgicos insistem em se manter escandalosamente elevados desde a década de 1980, sobretudo entre as mulheres de classe média e alta. Atualmente quatro de cada dez crianças nascem por meio de cesarianas, na maioria das vezes agendadas pelas mães e pelos obstetras bem antes do final da gestação — uma proporção exagerada, duas vezes e meia maior que o índice de 15% aceito pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Difícil de ser modificada, segundo os próprios médicos, essa realidade preocupa porque boa parte dessas cirurgias são desnecessárias e nem sempre representam a forma mais adequada e segura de dar à luz uma criança, como muitas mulheres crêem. Nesses casos, com um pouco de paciência das mães e habilidade dos obstetras, a natureza cumpriria seu papel e esses bebês nasceriam saudáveis de parto normal. Nesse trabalho coordenado pela OMS e financiado pelo Banco Mundial, epidemiologistas e especialistas em saúde reprodutiva feminina avaliaram o desfecho de quase 100 mil partos realizados entre setembro de 2004 e março de 2005 40 ■ JUNHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 124

em oito países da América Latina (Argentina, Brasil, Cuba, Equador, México, Nicarágua, Paraguai e Peru). O resultado confirmou o que se temia: os partos cirúrgicos desnecessários fazem mais mal do que bem. Quando a taxa de cesáreas de um hospital ultrapassa a faixa que vai de 10% a 20% do total de partos, aumenta muito o risco de complicação para a mãe e o bebê. É maior a probabilidade de a mulher morrer durante o parto, apresentar sangramento grave ou adquirir uma infecção que exija internação no setor de tratamento intensivo. Já a criança corre mais risco de nascer com menos de 37 semanas (prematura) por erro de cálculo médico, de morrer durante o nascimento ou na primeira semana de vida e de necessitar de cuidados intensivos. Mesmo quando se levaram em consideração os diferentes níveis de complexidade dos 120 hospitais avaliados, ou seja, a capacidade de atenderem casos de maior ou menor gravidade, os perigos para a mãe e o bebê não diminuíram. "Todos os indicadores de saúde da mulher e da criança pioram", afirma o obstetra chileno Aníbal Faúndes, uma das mais respeitadas autoridades internacionais em saúde reprodutiva. Coordenador da equipe de 90 brasileiros que participou desse estudo, Faúndes mudou-se para o Brasil há 30 anos após deixar o Chile na ditatura de Augusto Pinochet depois de coordenar o programa de saúde da mulher no início do governo de Salvador Allende. Gasto desnecessário - "Como as complicações decorrentes das cesarianas são relativamente raras, os médicos costumam dizer: 'Isso não acontece nas minhas mãos'", comenta Faúndes, professor aposentado da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador do Centro de Pesquisas em Saúde Reprodutiva de Campinas (Cemicamp). "Mas do ponto de vista populacional as conseqüências desses eventos são graves e devem ser levadas em consideração", diz. Um desses efeitos é o aumento dos gastos públicos com saúde. Nos países de- ■ senvolvidos o acréscimo de 1% nas taxas de cesarianas representa um gasto extra de US$ 9,5 milhões. Calcula-se que no Brasil, onde nascem 2,5 milhões

Cultura nacional: mães acreditam que cesárea é o parto mais seguro para a criança

de crianças por ano, haja 560 mil cesáreas desnecessárias que consomem quase R$ 84 milhões. "É um dinheiro que poderia ser investido em outras formas de cuidado da mãe ou da criança", diz Faúndes. Embora o risco de morrer durante uma cesariana seja muito menor do que foi quase quatro séculos atrás, quando esse procedimento começou a ser feito em mulheres vivas - antes fazia-se a cesárea apenas após a morte da mãe para salvar a vida do bebê -, os partos cirúrgicos dispensáveis contribuem para manter a mortalidade materna brasileira em níveis bem superiores aos de países desenvolvidos como o Reino Unido. Estima-se que entre 75 e 130 brasileiras em cada grupo de 100 mil morram durante o parto ou por complicações associadas à gravidez. Entre as súditas da rainha esse índice é de aproximadamente dez mortes por 100 mil. Apesar da imprecisão dos dados brasileiros, é fácil associar boa parte dessas mortes à cesariana. Estudos internacionais apontam que perto de cem mulheres perdem a vida a cada 100 mil cesáreas, cinco vezes mais que o parto normal. Até o século 19 três de cada quatro mulheres morriam de infecção ou sangramento intenso (hemorragia) em conseqüência dessa cirurgia. Hoje, em uma cesariana, o médico faz uma incisão de 10 a 15 centímetros no ventre materno logo acima dos pêlos pubianos e corta outras cinco camadas de tecido até alcançar o útero para retirar o bebê. "É impressionante o grau de abuso da cesariana no país", afirma a socióloga Jacqueline Pitanguy, diretora da ONG Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação (Cepia), que atua na área de direitos reprodutivos e sexuais. "Há por aqui um descaso histórico com gestação e parto", diz. A persistência dos índices de cesariana em níveis tão elevados por mais de duas décadas levou o Ministério da Saúde a adotar algumas estratégias - infeliz-


mente, nem sempre suficientes - para tentar reduzir o número de cesáreas. A mais recente é a Campanha de Incentivo ao Parto Normal, lançada em 30 de maio para conscientizar a população sobre a importância do parto normal e ajudar a desfazer a idéia já cristalizada na sociedade de que o parto cirúrgico é melhor e mais seguro. São três os objetivos da campanha: explicar a importância dos exames de acompanhamento da saúde da mulher e do bebê durante a gestação, mostrar os benefícios do parto normal e reforçar a idéia de que a mulher tem direito a um parto mais acolhedor, sem a realização de procedimentos médicos desnecessários e com o acompanhamento de uma pessoa de sua escolha - é o chamado parto humanizado. Caminho certo - Mas por que realizar uma campanha de esclarecimento para a população e não para os ginecologistas e obstetras, que por razões éticas deveriam recomendar para a mulher a forma mais apropriada de parto? "Não adianta trabalhar apenas com os médicos", afirma a epidemiologista Daphne Rattner, da Área Técnica de Saúde da Mulher do Ministério da Saúde. "Queremos conscientizar as pessoas sobre a importância do parto normal para que passem a cobrar dos profissionais da saúde." Na opinião de Jorge Francisco Kuhn dos Santos, professor de obstetrícia na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), esse é mesmo o caminho: "É fundamental que a mulher esteja mais beminformada sobre a necessidade de fazer ou não uma cesariana para o seu bebê nascer. Somente quando as mães souberem que o cordão umbilical enrolado no pescoço do bebê ou a redução do líquido amniótico por si sós não representam obrigatoriamente a necessidade de parto cesáreo é que vão lutar para melhorar esse quadro". Essa não é a primeira ação do governo federal para tentar reduzir o número de cesarianas desnecessárias. Em 2000 o Ministério da Saúde fez com os estados um pacto pela redução das cesáreas. Uma portaria do ministério determinou que as secretarias estaduais da Saúde acompanhassem o número de partos nos hospitais afiliados ao SUS PESQUISA FAPESP 124 ■ JUNHO DE 2006 ■ 41


para garantir que o índice de cesáreas não aumentasse nos estados em que já era inferior a 20% e que baixasse para 25% naqueles em que era superior. Mas, aparentemente, aconteceu o contrário. ''As taxas de cesáreas estão subindo': afirma Daphne. Há dois anos o ministério iniciou também uma série de cursos de Atenção Obstétrica e Neonatal Humanizadas e Baseadas em Evidências Científicas como parte da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher. Até maio haviam sido treinadas equipes de cerca de 250 maternidades que se comprometeram a implantar modificações para reduzir a taxa de cesáreas e oferecer o parto normal humanizado em seus hospitais de origem. Essas equipes também assumiram a responsabilidade de repassar o conhecimento para as principais maternidades de seus estados, uma forma de disseminar a informação mais rapidamente entre os quase 6 mil hospitais do país. ''A expectativa é de que quanto mais serviços oferecerem atenção humanizada ao parto mais os profissionais passem a compactuar com essa estratégia", explica Daphne. Espera-se que os efeitos dessas medidas não se restrinjam ao setor público, em que o número absoluto de partos cesáreos (618 mil por ano) é bem maior que no privado. Mas certamente outras ações serão necessárias para reduzir os índices de partos cirúrgicos particulares ou pagos pelos planos de saúde- menores em valor absoluto, 246 mil cesáreas por ano, mas proporcionalmente mais elevados. Por essa razão, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que regula o funcionamento dos planos e seguros de saúde, uniu seus esforços aos do ministério. Em 2005 a ANS fez o primeiro diagnóstico das taxas de cesariana no setor e atualmente estuda uma forma de reduzir o índice de cesarianas desnecessárias dos inquietantes 80o/o. "Estamos avaliando a estratégia de tornar disponível no site da ANS uma pontuação de cada operadora de plano de saúde, determinada por uma série de indicadores, entre eles o índice de cesarianas", afirma Karla Santa Cruz Coelho, gerente-geral técnico-assistencial de 42 • JUNHO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 124

produtos da ANS. "Pretendemos alcançar uma redução de ISo/o nos próximos três anos." Mesmo essas medidas são consideradas tímidas. "É necessária uma ação mais firme", diz Santos, da Unifesp. "O médico que só faz cesariana deveria ser descredenciado." m um ponto todos concordam: a questão dos partos cirúrgicos desnecessários é um problema de solução complexa que depende tanto da mudança de postura de ginecologistas e obstetras como da sociedade. "Há no Brasil uma cultura medicalizada da saúde da mulher", explica Daphne Rattner. Suas raízes estão no início do século passado, quando os partos deixaram de ser realizados em casa, com o auxílio de uma parteira que em geral havia ajudado a nascer quase toda a família, e passaram para as mãos dos médicos nas salas de parto dos hospitais, até então destinados ao atendimento das camadas mais pobres da população. O desenvolvimento de técnicas de anestesia e tratamentos com antibióticos para prevenir infecções nos últimos 50 anos também contribuiu para reduzir muito a mortalidade materna e tornar a cesárea a cirurgia mais popular do mundo. No Brasil a proporção de partos cirúrgicos dobrou durante a•década de 1970 e não baixou mais. Hoje as cesarianas correspondem a 82% dos partos pagos por convênios médicos, que atendem 14 milhões de brasileiras com idade entre lO e 49 anos, e a 30% dos partos feitos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), única forma de acesso aos serviços de saúde para 58 milhões de mulheres em idade reprodutiva. Esse crescimento, no entanto, não se explica somente pela tentativa de proteger a vida da mãe e da criança, como identificaram Faúndes e José Guilherme Cecatti, da Unicamp,já em 1991 em um artigo publicado nos Cadernos de Saúde Pública. Se as cesarianas fossem realizadas apenas com indicação médica- por exemplo, quando não chega oxigênio suficiente para o bebê durante o trabalho de parto-, era de esperar que seus índices fossem mais elevados entre

as mulheres mais pobres, sabidamente portadoras de mais complicações durante a gravidez e o parto do que as mais abastadas. Mas não é o que se observa no país, onde essas cirurgias são mais comuns nas classes média e alta. Outros fatores não-médicos também influenciaram a expansão das taxas de cesariana. Até 1980 o governo federal pagava ao médico mais pelo parto cesáreo que pelo normal, que não incluía anestesia. Na tentativa de reduzir as cesáreas, diminuiu-se a diferença entre o valor do parto normal e o do cesáreo no setor público - hoje o SUS paga aos hospitais, não aos médicos, R$ 317,39 pelo parto normal e R$ 443,68 pela cesárea -, sem muita eficiência. Controle de natalidade - Além disso, naquele período tornou-se popular no Brasil a esterilização cirúrgica, conseqüência, em parte, da pressão das nações desenvolvidas como os Estados Unidos pela redução do crescimento da população nos países pobres. Em meio à política autoritária que vigorava no país, pregava-se o controle da fecundidade como solução para a pobreza. Resultado: três de cada quatro mulheres aproveitavam a cesariana, muitas vezes induzida pelos médicos, para fazer a esterilização definitiva por meio de uma técnica chamada laqueadura tubária, em que o cirurgião corta e amarra as pontas dos pequenos canais que conduzem os óvulos até o útero. Proibida em 1997 pela Lei do Planejamento Familiar de ser feita ao mesmo tempo que a cesárea, a laqueadura tubária permanece o método anticoncepcional mais comum no país. Segundo Faúndes, há dois motivos por que as mulheres ainda optam por essa forma de contracepção, difícil de ser revertida em caso de arrependimento: elas desconhecem que outros métodos como o dispositivo intra-uterino (DIU) e os hormônios injetáveis trimestrais são tão eficientes quanto a laqueadura e nem sempre os métodos alternativos estão disponíveis no setor público. "Há mais de 20 anos o governo federal tomava providências no país para tentar combater o efeito dinheiro", diz a socióloga Jacqueline Pitanguy, que na década de 1980 presidiu o Conselho Na-


Dois em um: mulheres e méd icos aproveitavam a cesárea para fazer esteriliza ção definitiva

cional dos Direitos da Mulher, ligado ao Ministério da Justiça e à Presidência da República. "Mas não surtiu muito efeito." Já no setor privado esse estímulo praticamente não existe. O valor dos partos particulares varia muito e, embora os planos de saúde paguem honorários quase iguais para partos cirúrgicos e normais, os obstetras poupam tempo ao optar pela cirurgia "Não dá para culpar apenas o médico, que tem de pagar os gastos para manter seu consultório", explica Santos. Uma alternativa seria aumen tar o valor pago pelo parto natural, que n unca tem hora marcada para ocorrer. Assim, quem sabe, os obstetras se animariam em abrir um espaço na agenda do consultório para pacientemente acompanhar o trabalho de parto, que pode durar mais de 24 horas- em urna cesárea pré-agendada entre médico e pacien te, a chamada cesariana com hora marcada, o obstetra é capaz de se deslocar até o hospital, realizar o parto e retornar ao consultório em menos de três horas, mesmo em uma cidade com trânsito complicado como São Paulo. Mas dinheiro não é tudo. Os próprios médicos se sentem com mais controle da situação quando realizam a cesárea, ainda que sua paciente não tenha consciência completa dos riscos que corre durante essa cirurgia. Afinal, lembra Santos, dificilmente se processa um médico por ele ter realizado uma cesárea feita sem necessidade. "Mesmo que haja uma complicação as pessoas pensam: 'Pelo menos o médico usou a melhor tecnologia disponível"', afirma. Esse mesmo médico poderia ser questionado judicialmente se tivesse optado nessa mesma situação por um parto normal. Essa postura médica é o que o respeitado neonatologista e obstetra norteamericano Marsden Wagner, ex-diretor da área de saúde da mulher e da criança da OMS, chamou de obstetrícia defensiva, uma tendência mundial, em um comentário publicado em 2000 na Lancet. Mas, segundo Wagner, ao realizar a obsPESQUISA FAPESP 124 • JUNHO DE 2006 • 43


das que haviam tido filho por cesárea preferiam o parto normal. A aceitação da cesariana pela mulher é, em parte, conseqüência do desequilíbrio de poder na relação entre médico e paciente. "O parto é um momento de muito medo para a mulher, em especial psicóloga Ana Cristina quando é o do primeiro filho", explica Gilbert, a historiadora Jacqueline. "Ela se sente poderosa por Maria Helena Cardoestar grávida e, ao mesmo tempo, fragiso e a pediatra Susana lizada. Por isso acha mais seguro assuWuillaume viram que mir uma postura passiva e deixar a deessa confiança na téccisão nas mãos do médico." O obstetra, nica já aparece durante por sua vez, sente-se mais valorizado o processo de formaquando está no domínio da situação. ção do especialista em "Se o médico disser à mãe que o bebê um estudo com resiestá sofrendo, ela se sujeitará a qualquer dentes de ginecologia Pela via natural - Nove de cada dez coisa", comenta Santos. Essa diferença mulheres que já haviam experimentae obstetrícia do Instide poder também ajuda a explicar tratado as duas formas de parto preferiam o tuto Fernandes Figueira, da Fundação mentos radicais como a retirada do útenormal. Mais interessante: entre as que Oswaldo Cruz, no Rio, publicado em ro para combater tumores benignos só haviam feito cesarianas, 73% declaramaio nos Cadernos de Saúde Públiem casos que nem sempre a cirurgia seram também que a melhor forma de ca. "Os residentes se sentem com mais ria necessária (16% do total). Esse proparto é o natural. O motivo mais citado controle sobre a saúde da mulher e socedimento é mais freqüente entre as por elas é que a dor do parto normal é bre o tempo em uma cesariana", explica mulheres de menor renda e nível de esmenos intensa que a do pós-operatório Ana Cristina. "Isso é importante para colaridade, como constatou Renata Arada cesariana. "A dor no parto normal é eles, que se vêem profissionalmente nha, da Universidade do Estado do Rio forte, mas passa", diz Jacqueline Pitandesvalorizados na profissão e são muito de Janeiro (Uerj). guy, mãe de três filhos que nasceram cobrados pelos pacientes, que buscam Uma forma de reduzir as taxas de pela via natural depois de muita insisneles sempre respostas para seus proparto cesáreo é tornar obrigatória a tência dela com o médico. "Nem semblemas." consulta de um obstetra mais experienpre o parto normal é sinônimo de dores Uma das motivações dessa forma te, a conhecida segunda opinião, como de agir é a insegurança para realizar o horríveis, afinal, como se fazia milhares mostraram Maria José Osis, Karla Páparto normal, conseqüência de como de anos atrás?" Em 2001 um levantadua e Aníbal Faúndes, do Cemicamp, e mento com 1.600 mulheres de quatro se dá no país a especialização médica José Guilherme Cecatti, da Unicamp, cidades brasileiras mostrou que parte nessa área. Concluída a graduação, em artigo na Revista de Saúde quem deseja se tornar um obs^^^_ Pública de abril. Também se tetra tenta uma disputadíssipode estimular a realização de ma vaga em um hospital de partos em casa, como ainda é alta complexidade, como os feito na Inglaterra em quase universitários. Ali, esse profisA cada minuto são feitas três cesarianas metade dos casos. Em 2005 a sional atende sobretudo gesno Brasil: duas pagas pelo Sistema Universidade de São Paulo tantes de alto risco, com indiÚnico de Saúde e uma por convênios (USP) reabriu depois de 33 cação para cesárea. Como não anos o curso superior para a vê situações mais simples, ele médicos privados. formação de parteiras, atividaperde a habilidade de realizar Por ano são realizados no país 864 mil de exercida informalmente o parto normal. "Esses profispartos cirúrgicos, o equivalente a 40% hoje por entre 40 mil e 60 mil sionais deveriam fazer estágio mulheres no Norte e Nordeste em casas de parto, onde os bedo total de partos. do país. "A questão do parto é bês em geral nascem natural65% das cesarianas são consideradas um problema político porque mente, acompanhados por há médicos e enfermeiras legaldesnecessárias. enfermeiras obstétricas", mente habilitados para execuafirma Santos. Uma em cada mil mulheres que faz tar essa função", diz Santos, "e Nos últimos anos equipes cesariana morre em conseqüência agora novamente haverá pardo Cemicamp e da Unicamp teiras". A solução certamente da cirurgia. ajudaram a derrubar um arnão é única, nem virá em pougumento muito usado pelos co tempo. • obstetras para justificar a rea-

tetrícia defensiva, os profissionais da saúde violam um princípio fundamental da sua prática: "O que quer que o médico faça deve ser, em primeiro lugar e acima de tudo, em benefício do paciente".

44 ■ JUNHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP124

lização das cesarianas: o de que as mulheres preferem a cirurgia por medo da dor do parto normal ou por receio dos efeitos desse tipo parto sobre a vida sexual feminina - em alguns casos, é preciso fazer um pequeno corte na lateral da vagina ou no períneo para facilitar a passagem do bebê. Mas esse receio da dor parece ser apenas palpite médico. "Essa afirmação não se sustenta", diz Faúndes, que coordenou um estudo com 656 mulheres que haviam tido mais de um parto em hospitais públicos do interior de São Paulo e de Recife, Pernambuco.


CIÊNCIA MEDICINA

Dúvida atroz Ninguém sabe se são mesmo as células-tronco adultas que funcionaram nos casos de sucesso relatados

Metamorfose contínua: células-tronco do tecido adiposo adulto tratadas para se diferenciarem em células de gordura (aumento de 200 vezes)

CARLOS FIORAVANTI

o início de maio o cearense Sátiro da Costa contou no Jornal Nacional que se sentia melhor após receber uma dose de células-tronco em um hospital do Rio de Janeiro. Diante da remota possibilidade de transplante de coração, a aplicação dessas células, que formam um líquido esbranquiçado, era uma alternativa para restabelecer o vigor do músculo cardíaco enfraquecido pelo mal de Chagas. Em Ribeirão Preto, interior paulista, uma semana depois de receber células-tronco extraídas de sua própria medula óssea, a dona-de-casa Martinha da Cunha verificou que começava a reconquistar a liberdade de movimentos perdida com a esclerose múltipla, que lhe paralisara o lado direito do corpo. No mundo inteiro correm pelo menos 65 testes de células-tronco adultas, com o propósito de combater tumores, problemas cardíacos, mal de Parkinson, lesões na medula espinhal, doenças auto-imunes e anemias. Mas até agora nem pesquisadores nem médicos asseguram que os aparentes benefícios se devem de fato às células-tronco adultas. Capazes de se especializar em outros tipos de células, de acordo com o órgão ou tecido em que se instalem, as células-tronco adultas são fabricadas - e retiradas - junto com outros tipos de células principalmente na medula, a massa avermelhada que recheia os grandes ossos do corpo. "Todo mundo gosta de usar o rótulo 'terapia com células-tronco', mas mesmo aqui nos Estados Unidos a maioria dos pesquisadores nem chega a purificar as células antes de aplicar", diz Alysson Muotri, geneticista brasileiro que trabalha no Instituto Salk dos Estados Unidos. PESQUISA FAPESP 124 ■ JUNHO DE 2006 ■ 45


Mas como explicar os resultados? Ricardo Ribeiro dos Santos, coordenador do Instituto do Milênio de Bioengenharia Tecidual, que há quatro anos estuda essa forma de terapia para reduzir o impacto do mal de Chagas, acredita que as células-tronco possam liberar hormônios e acionar células que restabeleçam a atividade de tecidos danificados. Seria uma forma de entender a recuperação do quadro geral de saúde exibida há pelos menos um ano pelas 50 pessoas que já receberam aplicações de células-tronco na unidade da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Salvador, onde Santos trabalha: 20 sofriam de graves problemas no fígado e estavam longe de receber um transplante e outras 30 eram portadoras do mal de Chagas. "Como injetamos uma mistura de populações de células", comenta Santos, "ainda não é possível dizer qual ou quais estão funcionando". Tarcísio Barros Filho, do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), também não tem como provar se as células-tronco que ele e sua equipe usaram para tratar lesões crônicas da medula espinhal se diferenciaram em neurônios ou apenas aderiram a outras e assim ajudaram a recuperar a capacidade de transmissão dos impulsos nervosos. Não passava nenhum estímulo nervoso pela medula espinhal das 30 pessoas que tinham perdido o movimento das pernas e participaram de um estudo experimental no HC. Dois anos depois, nenhuma voltou a andar, mas em 60% dos participantes desse estudo se verificou uma recuperação na passagem dos impulsos elétricos sensitivos das pernas em direção ao cérebro. "É um resultado animador", diz Barros Filho, "mas está longe de ser a cura". A um quarteirão dali, em outra unidade do HC paulista, o Instituto do Coração (InCor), 35 pessoas infartadas submeteram-se a um implante de uma veia no coração para restaurar a irrigação do músculo cardíaco e, ao 46 ■ JUNHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 124

Rotina do InCor: o biomédico Vinícius Bassaneze manipulando células-tronco que cresceram na estufa (acima) a 37 graus

Á&ttò

1 mesmo tempo, receberam doses de células-tronco diretamente no coração. Dois anos depois, recuperaram-se com mais rapidez que as outras 30 que receberam apenas o vaso sangüíneo. José Eduardo Krieger, um dos coordenadores desse estudo, gostaria muito de saber como essas pessoas se recuperaram. té agora um dos poucos resultados comprovados de que as células-tronco podem funcionar tanto em animais de laboratório quanto em seres humanos - descartando-se efeitos secundários causados por outros tipos de células da medula óssea - foi obtido por Irving Weissman, da Universidade Stanford, e acenou com a perspectiva de novos tratamentos contra leucemia e algumas formas de câncer em células sangüíneas. "O transplante de células-tronco hematopoéticas (que originam as células do sangue) é a única forma de terapia com células-

^ ■» ^

tronco em uso médico seguro hoje", assegura Marco Antônio Zago, professor da USP de Ribeirão Preto. Esse tipo de transplante, feito normalmente com células da própria pessoa a ser tratada, é uma forma de repor as células do sangue já maduras que foram destruídas por tratamentos contra o câncer - é uma técnica adotada com regularidade há pelo menos dez anos, bem antes, portanto, de essa forma de terapia celular ganhar visibilidade. Jefferson Luis Braga da Silva, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio Grande do Sul, reconhece: "Os testes com células-tronco deram muita falsa esperança". Ele próprio sentiu o peso da angústia de quem sofre de uma doença crônica depois que o Jornal Nacional de 17 de abril apresentou os resultados de seus estudos para tratar lesões de nervos. Em menos de um mês ele recebeu mais de mil mensagens eletrônicas de pessoas que insistiam para ser voluntárias em seus próximos testes. Só cinco, porém, haviam sofrido

3


rompimentos em nervos periféricos havia menos de um ano e ainda tinham alguma chance de recuperação. Silva havia empregado tubos de silicone preenchidos com células-tronco para tratar lesões de até 3 centímetros nos nervos do antebraço de 20 pessoas, que, segundo ele, recuperaram os movimentos e a sensibilidade em até um ano, enquanto outras 22, tratadas apenas com o tubo de silicone, demoraram três anos. "Os ganhos são claros", diz ele. "Só não tenho como afirmar se foram mesmo as células-tronco que funcionaram, porque não as marquei." Bianca Gutfilen e Lea Mirian resolveram esse problema na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) marcando as células-tronco com tecnécio 99-m, um isótopo de um elemento radioativo bastante utilizado na medicina nuclear. Foi esse o elemento radioativo usado nas células de Sátiro, o cearense que participa de um dos testes de avaliação das células-tronco em andamento na UFRJ. "Agora sabemos exatamente

aonde vão parar as células-tronco", conta Bianca. Segundo ela, só se recuperaram dos danos da doença de Chagas as regiões do músculo cardíaco que receberam células-tronco, mas persiste o desafio de demonstrar que essas células é que são as responsáveis por esses benefícios. "Muita gente está pulando etapas e querendo pôr a carroça na frente dos bois", observa Sílvio Duailibi, pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que defende mais pesquisas básicas e pré-clínicas antes do uso em seres humanos, para que se possa entender com clareza o que pode acontecer. "Antes da aplicação em humanos, precisamos de mais pesquisas básicas e pré-clínicas, para entender com clareza o que pode acontecer", diz. Krieger, do InCor, alerta: estudos como os feitos até agora, com dezenas de pessoas, mesmo que tragam resultados positivos, devem ser vistos com cautela. Não representam a população de potenciais usuários nem exibem argumentos científicos suficientes, de acordo

com os modelos internacionais de pesquisa médica, para dar a palavra final sobre os limites da eficácia dessa forma de terapia celular. Conclusões mais consistentes só virão com testes clínicos feitos com centenas de pessoas ao mesmo tempo em mais de uma instituição de pesquisa. Com apoio do Ministério da Saúde, Antônio Carlos Campos de Carvalho, professor da UFRJ, coordena um desses estudos, chamados multicêntricos. Quatro equipes no Rio, em Salvador, em São Paulo e em Porto Alegre - começaram no início deste ano a tratar 1.200 pessoas com Chagas, com os corações dilatados por outro tipo de doença ou com lesões causadas por infarto. É o tipo de estudo conhecido como duplo-cego: até o final do trabalho nem os pacientes saberão se receberam células-tronco ou placebo nem os médicos o que aplicaram (a seringa será coberta para não mostrar o que contém). "Temos de apresentar os resultados em no máximo dois anos", aflige-se Ricardo Santos, que acompanhará o tratamento dos portadores de Chagas. Até que cheguem as demonstrações decisivas, as células-tronco devem seguir um percurso semelhante ao da terapia gênica, vista com grandes esperanças há dez anos, mas ainda distante da aplicação. À notoriedade deve seguir a desilusão, "quando se verificar que grande parte das atuais promessas de suas aplicações médicas não pode ser alcançada em médio prazo ou são inexeqüíveis", comenta Zago em um artigo publicado na revista Hipertensão. As ressalvas não devem tirar o valor dos avanços, parte deles retratada no livro Células-tronco -A nova fronteira da medicina, organizado por Zago e por Dimas Tadeu Covas, também da USP de Ribeirão Preto. Como diria Barros Filho: "Acertamos apenas as primeiras peças desse enorme quebra-cabeça, mas ainda temos muito a aprender". • PESQUISA FAPESP124 ■ JUNHO DE 2006 ■ 47


O CIÊNCIA

Avanço do criacionismo mobiliza cientista na defesa da Teoria da Evolução

embate entre as idéias fundamentalistas sobre a criação e a Teoria da Evolução, definitivamente deflagrado em 1859 com a publicação da Origem das espécies, de Charles Darwin, está prestes a comemorar 150 anos sem perder o fôlego nem a paixão. Os criacionistas, que nunca aceitaram a tese da seleção natural, nem tampouco as evidências científicas acumuladas ao longo deste quase século e meio, recentemente voltaram à carga com um argumento mais sutil, a do design inteligente: a complexidade do homem e a sua perfeição são resultados - e a prova concreta - de um projeto divino. Esta visão segue ganhando adeptos em todo o mundo, notadamente nos Estados Unidos, onde até tem o status de disciplina em escolas públicas. O recrudescimento do neocriacionismo - que nada mais é do que o criacionismo num "smoking barato", na visão do biólogo Leonard Krishtalka, diretor do Museu de História Natural da Universidade do Kansas - mobiliza pesquisadores na defesa da ciência, do evolucionismo e do próprio Darwin, inclusive no Brasil. Tanto que foi o tema do V São Paulo Research Conference, promovido 48 ■ JUNHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 124

versus Adão

pela Pró-Reitoria de Pesquisa da Universidade de São Paulo (USP), entre os dias 18 e 20 de maio. "Todos os seres vivos descendem de um único ancestral ou de um número muito pequeno de formas primitivas. Somos assim por acaso, e não por conta de um projeto inteligente", afirmou José Mariano Amabis, do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biociências da USP, dando início a uma maratona de conferências que mantiveram cativa, por inebriada, uma platéia de mais de 350 jovens biólogos, filósofos, geneticistas, antropólogos, entre outros. A ira fundamentalista é compreensível, afinal o darwinismo decretou a "morte de Adão", afirmou Aldo Mellender de Araújo, do Instituto de Biociências da Universidade de Rio Grande do Sul (UFRGS), referindo-se à sentença proferida pelo inglês John C. Greene. "É como confessar um crime", teria reconhecido o próprio Darwin, segundo seus biógrafos Adrian Desmond e James Moore. Não foi por menos que ele - que chegou um dia a considerar a sugestão de seu pai de tornar-se clérigo quando constatou sua falta de aptidão para a medicina - esperou 20 anos para publicar Origem das espécies. E só o fez quando outro naturalista, Alfred Wallace, estava prestes a publicar os resultados de suas pesquisas. O trabalho de ambos foi apresentado à

Linnean Society, num artigo assinado pelos dois autores, em 1858 A reação contra a idéia da seleção natural incendiou a Europa, tanto que nas cinco edições subseqüentes de sua obra mais famosa Darwin viu-se obrigado a dialogar com seus críticos, revisando e modificando o texto. O avanço da biologia, da genética e da biologia molecular no século 20, no entanto, lhe conferiu um status semelhante ao de Copérnico no panteão da ciência, na avalição da antropóloga Eunice Ribeiro Durham, do Núcleo de Pesquisas sobre o Ensino Superior da USP. "Darwin alterou a posição do homem em relação ao Universo." O darwinismo se consolidou no século 20, entre 1930 e 1950, quando vários autores "fizeram a teoria sintética da evolução, casando a genética com seleção da espécie, criando assim novos paradigmas para a ciência", observou Francisco Salzano, do Instituto de Biociências da UFRGS, pioneiro no estudo genético de populações indígenas. "Posteriormente, a descoberta de Watson e Crick, sobre a estrutura e funcionamento do DNA, abriu perspectivas para o desenvolvimento de técnicas que impulsionaram a pesquisa de forma fantástica", sublinhou. Ele próprio investiga, há 50 anos, a origem dos povos indígenas nas Américas utilizando dois marcadores


As teses darwinistas foram ironizadas na Inglaterra vitoriana. No cartaz da época, Darwin, num corpo de macaco, mede a pulsação da feminilidade

uniparentais - o DNA mitocondrial e o cromossomo Y - que sugerem que o homem pode ter chegado ao continenTHAT TROUBLES OÜE MOXKKY AGAIN. te há 40 mil anos, e não 20 mil, como supõem as teorias vigentes. Salzano começa agora a analisar marcadores chamados indels- sigla que a origem genética de algumas doenças. aglutina duas palavras: inserções (gaA biologia molecular oferece pistas nhos) e deleções (perdas) - de adenina, relativamente seguras sobre a origem do guanina, citosina e timina. Já constatou, homem moderno: "Foi na África, há mais por exemplo, que 85,62% da variação ou menos 165 mil anos", diz o geneticista gênica pode ser encontrada num mesSérgio Danilo Pena, do Departamento de mo continente. "Somos igualmente deBioquímica da Universidade Federal de siguais", afirma ele. Minas Gerais (UFMG), referindo-se ao Se existe algum consenso sobre a oriHomo sapiens idaltu, considerado, até gem do homem moderno, do ponto de agora, o fóssil mais antigo do Homo savista da biologia molecular, ainda há piens. "A diversidade genômica reflete essa divergências quanto ao modelo de ocuevolução", afirma. O problema, ele ressalpação das Américas quando se leva em va, é que um bom experimento científiconta a morfologia de nossos antepassaco deve ser repetido várias vezes e este dos. Há pelo menos dois modelos de tem que ser feito uma vez só. "Não sabeanálises disponíveis: o de que o continenmos o estado inicial e jamais saberemos te foi povoado por três levas de migração se o resultado é correto", pondera. de origem asiática, com traços orientais Em todo o mundo pesquisadores tentam reconstruir a origem da humani(mongolóides); e o da migração única. Walter Neves, do Laboratório de Estudade utilizando a técnica dos marcadodos Evolutivos Humanos, do Instituto res celulares, tomando como referência de Biociências da USP, considera uma um banco de dados com 1.064 amosterceira hipótese: a de que a América foi tras de DNA de pessoas de 52 populaocupada por duas correntes migratórias ções de todos os continentes. A equipe vindas da Ásia. A primeira - cujos crâde Pena utiliza este banco de dados e 40 :.:l:. DA&WJN, 8ATC WBAT vii

:

;:<.N-

\L SI

UKE

ADOCT MAN-

nios são encontrados em Lagoa Santa - parece ter se extinguido, enquanto da segunda descendem todas as tribos indígenas das Américas. A biologia molecular, à luz do paradigma da evolução, é reveladora. Permitiu, por exemplo, que Bianca Zingales, do Instituto de Química da USP, identificasse duas espécies do Trypanosoma cruzi, agente causador do mal de Chagas. "Concluímos que há um dimorfismo do gene", afirmou. As teses da evolução também dão notícias sobre os principais inimigos do homem: os agentes infecciosos. "O HIV é virulento porque o vírus ainda não evoluiu. O ebola também. Ao matar rapidamente, não tem tempo de transmissão", explicou Jorge Kalil, da Faculdade de Medicina da USP. Na luta entre o homem e o agente infeccioso existe a barreira evolutiva, disse, numa estimulante conferência sobre imunidades inata e adquirida. Para Henrique Krieger, do Instituto de Ciências Biomédicas, da USP, o evolucionismo foi o impulsionador da moderna biologia. "Sem isso, os estudos seriam extremamente chatos." Para o ano que vem já estão agendados novos debates sobre origens da vida; cérebro e pensamento; e drogas e dependência.

l!l'T I WISH VI.

PESQUISA FAPESP 124 ■ JUNHO DE 2006 ■ 49


t

CIÊNCIA BIOLOGIA

Música no brejo MARIA GUIMARãES

noitece, os "sapólogos" esperam à beira da lagoa. Um som rompe o silêncio, "pluic, pluic, pluic...". Leptodactylus notoaktites, diz Célio Haddad. É a rã-gota. Aos poucos surgem mais e mais coaxos: graves, agudos, coros, solos, trinados, batidas metálicas, de pontos diversos da lagoa ou da mata ao redor. Haddad acompanha: Hypsiboas faber, Dendropsophus minutus... "Temos que encontrar a Phyllomedusa", orienta. São pererecas verdes, com coxas vermelhas ou laranja rajadas de roxo, e ficam na vegetação próxima à água. O canto parece um estômago roncando. Haddad, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro, coordena um projeto de mapeamento da diversidade de anfíbios anuros (sapos, rãs e pererecas) do es-

Hypsiboas bischoffi, uma perereca da Mata Atlântica

50 ■ JUNHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 124

Sapos, rãs e pererecas exibem 70 cantos e 29 modos de reprodução

tado de São Paulo. A Mata Atlântica abriga grande abundância de anuros, com os mais diversos tamanhos, cores e vozes. São verdes, castanhos, dourados, a perereca-de-pijama tem listras e bolinhas, que variam de um indivíduo para o outro, o sapo-de-chifre parece uma folha seca... Além disso, essa diversidade envolve dezenas de estratégias reprodutivas, ciclos de vida, composições químicas, estados de conservação etc. Para estudar essa imensidão, Haddad trabalha com estudantes e colaboradores, que em conjunto buscam desvendar a riqueza natural dessa floresta brasileira, uma das regiões mais biodiversas do mundo e que está seriamente ameaçada pelo avanço da ocupação humana. Explorar a floresta - Parte do trabalho é andar pelo mato, esperar à beira de charcos. Ouvir com atenção revela as espécies em atividade reprodutiva, pois os machos cantam para atrair as fêmeas. Pesquisadores experientes ouvem a cacofonia de um lago e logo reconhecem os integrantes do coro. Para guardar e transmitir esse conhecimento, é preciso gravar os cantos de representantes das espécies estudadas. Essas grava^k ções são armazenadas em coleções sonoras e dão origem a representações gráficas, os sonogramas, que permitem diferenciar cantos com mais detalhe do que ouvidos humanos captam. A descrição de uma espécie, portanto, inclui dados sobre sua aparência, sua composição genética e seu coaxo também. Como parte do projeto, Haddad e três de seus alunos produziram um CD com amostras do canto de 70 Ik espécies de sapos, rãs e perere■-->, ';:\ cas da Mata Atlântica. Esse guia sonoro traz um coaxo em


Perereca-das-folhagens (Phyllomedusa sp.), dos arredores da cidade de São Paulo

cada faixa, que no livreto corresponde a seus nomes científico e popular, além de uma foto e informações sobre o hábitat do animal. Segundo Haddad, "o guia tem muito valor para pesquisadores, mas também para leigos e pode ser usado no ensino". Agora qualquer um pode sair pela noite silvestre ou escutar a perereca que mora no chuveiro e tentar descobrir sua identidade. Ao encontrar os sapinhos na mata há inúmeras informações a coletar. Observá-los, ver onde o macho canta, como a fêmea reage, como se acasalam, o que fazem com os ovos e muito mais. Gravar seu canto. Capturá-los. É importante fotografar, de preferência na natureza; dessa forma se preservam informações sobre suas cores e formas, assim como o ambiente onde vivem. Um dos produtos de tanta observação foi uma revisão dos modos reprodutivos dos anuros. Quando se pensa em reprodução de sapos, vêm à mente girinos em lagos, que aos poucos criam per-

nas e perdem a cauda, para enfim sair da água. Os mais observadores terão visto desovas, como longos colares de contas pretas ou em massas de espuma presas à vegetação. Mas não há só isso: até recentemente eram conhecidos 29 modos reprodutivos diferentes no mundo todo, dos quais 21 ocorrem na América tropical, campeã em estratégias ecológicas devido à diversidade de ambientes. Modos reprodutivos envolvem a descrição de onde os ovos são postos, do desenvolvimento dos embriões e se há algum tipo de cuidado parental. Algumas espécies carregam os ovos nas costas. "De dentro deles saem girinos, depositados pela mãe na água empoçada em bromélias", conta Haddad, que mostra a perereca recém-encontrada em viagem de campo. Algumas mães engolem seus ovos, e os girinos se desenvolvem em seu estômago. A revisão feita por Haddad e Cynthia Prado, pós-doutoranda em seu laboratório,

Rãzinha-da-praia (Physalaemus atlanticus), em Ubatuba, descoberta recentemente

Hypsiboas latistriatus, também conhecida como perereca-de-pijama

PESQUISA FAPESP 124 ■ JUNHO DE 2006 ■ 51


Machos da pererequinha-do-brejo (Dendropsophus minutus)

acrescentou mais dez modos reprodutivos, todos da Mata Atlântica. Há ninhos em tocas subaquáticas ou escavados fora de lagos, até mesmo massas de ovos depositadas diretamente no solo úmido; girinos que saem de ovos grudados a rochas perto da água e se desenvolvem aderidos à pedra molhada. Infelizmente é preciso sacrificar alguns indivíduos em prol da ciência. Por isso, Haddad ressalta que "é preciso coletar o máximo possível de informação, para valorizar aquela vida". Os animais são medidos, uma amostra de fígado é retirada e preservada em álcool para análises genéticas. A partir daí passam a ser espécimes de coleção: recebem uma etiqueta que os identificará conforme onde e quando foram coletados, por quem e todas as informações de que se dispõe sobre a espécie. Serão preservados em formol e álcool e transferidos para um museu. A coleção de anfíbios da Unesp de Rio Claro é uma das mais importantes do Brasil, em parte graças ao projeto

em andamento. Haddad conta que há três anos a coleção tinha cerca de 6 mil espécimes. Hoje chega a cerca de 15 mil. Além disso, trocas com o Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP), o Museu Nacional, do Rio de Janeiro, e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) vêm contribuindo para o enriquecimento da coleção da Unesp. Muitos se chocam ao ver coleções zoológicas, mas elas são essenciais ao avanço do conhecimento sobre a natureza. No laboratório de Haddad é comum encontrar pesquisadores em busca de auxílio para identificar algum animal. O herpetólogo (especialista em répteis e anfíbios) chega com seus sapinhos em conserva, quem sabe com fotos e uma gravação do coaxo. Haddad olha, ouve o canto, pergunta onde o bicho foi encontrado. Todas essas informações são peças que se encaixam e levam à identificação. Ou não. Os pesquisadores comparam com espécimes do museu, com coaxos da coleção sonora. Talvez não

Perereca-de-pijama (Hypsiboas latistriatus) de Campos do Jordão

m

cheguem a uma conclusão decisiva. Quem sabe é uma espécie nova? "A diversidade biológica brasileira é tão grande e ainda tão pouco conhecida que espécies novas aparecem todo dia", diz Haddad. E são descobertas mesmo em áreas habitadas, como a perereca do gênero Phyllomedusa que vive nos arredores da cidade de São Paulo e ainda não foi oficialmente descrita. Diversidade invisível - Muitas vezes nem a experiência e a comparação com os espécimes de museu são suficientes. Certas espécies têm aparência muito semelhante e só podem ser distinguidas pelo que não enxergamos. O que manda na natureza é a evolução, não nossos olhos. Por isso, dois grupos de animais podem ser parecidos por fora, mas geneticamente tão diferentes que não conseguem cruzar e se reproduzir. Talvez um exame mais cuidadoso revele diferenças, por exemplo, em comportamento ou fisiologia. Essa diversidade deve ser conhecida e preservada. Por isso é preciso recorrer ao material genético, extraído daquelas amostras de fígado preservadas em álcool. A partir daí se desvenda a seqüência genética, que será comparada à de outros animais. O resultado são as chamadas árvores filogenéticas, que são genealogias de espécies. Em colaboração com pesquisadores de vários países, Haddad publicou no último ano duas monografias que ' reorganizaram a classificação dos anfíbios e mudaram muito da nomenclatura científica. "Isso vai dar uma chacoalhada nessa área de pesquisa, que está meio estagnada. Para contestar as mu-

1 £ ã e


A perereca-da-folhagem ou Phyllomedusa tetraploidea, de Ribeirão Branco, interior paulista

danças será preciso mais trabalho, o que trará avanços", prevê. Outra fonte de variedade são os cromossomos, pacotinhos nos quais os genes são organizados. O número e arranjo dessas estruturas é importante porque durante a fertilização os cromossomos do espermatozóide têm que se alinhar com seus correspondentes no óvulo. A partir daí forma-se um embrião, e cada divisão celular depende desse pareamento de cromossomos. Há mecanismos com que organismos contornam esse problema. Mas na maior parte das vezes alterações em número de cromossomos dão origem a espécies distintas. Na Unesp de Rio Claro, Sanae Kasahara coordena uma linha de pesquisa que representa a forma de compreender os processos evolutivos: o estudo do surgimento de novos cromossomos e de como eles se comportam durante a fertilização e a divisão celular. Tempo e espaço - Para desvendar a evolução, há mais do que distinguir espécies, que são como uma imagem estática de um processo dinâmico - como quando se aperta o pause durante um filme. Mas como ir além? Uma forma é compreender processos espaciais. Kelly Zamudio, da Universidade Cornell, dos Estados Unidos, trabalha em colaboração com Célio Haddad. Ela tem um projeto financiado pela Fundação Nacional de Ciências norte-americana (NSF, na sigla em inglês), em que compara três espécies com níveis diferentes de especialização ecológica: uma que vive somente em bromélias, outra que circula por qualquer lu-

gar ao longo da Mata Atlântica e uma terceira que depende de áreas mais úmidas para se reproduzir. De acordo com Kelly, "essa especialização ecológica é correlacionada com movimento e tem efeitos detectáveis na diversidade genética de cada uma das espécies". Ou seja, se pegarmos exemplares da perereca mais móvel em vários pontos de sua distribuição, não haverá grande diferença. Já na que não se afasta de sua bromélia, detectaremos diferenças genéticas mais marcadas entre as populações. Com esse trabalho, a pesquisadora mostra que "aspectos inerentes à ecologia ou biologia dos animais podem nos ajudar a compreender diferenciação e, ao fim, especiação". A filogeografia vai ainda mais longe. É o estudo geográfico da diversidade genética, que permite inferir a história das populações no tempo e no espaço. Um pressuposto central é que, se a constituição genética de uma população é mais diversa, é porque ela talvez exista naquele local há mais tempo, em relação a popu-

lações mais homogêneas. Essa é a abordagem usada por João Alexandrino, pesquisador associado à Unesp de Rio Claro. Seu projeto envolve comparar padrões filogeográficos de seis espécies de anuros com ampla ocorrência na Mata Atlântica. O pesquisador busca compreender mais do que sua evolução: "Pretendo identificar as áreas que ao longo dos milhares de anos permaneceram estáveis o suficiente para sustentar populações viáveis de sapos e seus parentes", explica Alexandrino. Essas áreas têm maiores chances de continuar vicejantes ao longo de flutuações ambientais, portanto é essencial que sejam preservadas. "Sapos, credo!", é o que muita gente diz. Com muita boa vontade, alguns concedem que pelo menos eles comem moscas e mosquitos. Preconceitos à parte, são bichinhos cheios de surpresas e maravilhas. E como são mais frágeis do que aves ou mamíferos, conhecê-los ajuda a detectar quais áreas de nossas florestas estão mais em apuros. •

O sapo-de-chife ou Proceratophrys boiei, que parece uma folha seca PESQUISA FAPESP 124 ■ JUNHO DE 2006 ■ 53


CIÊNCIA GEOLOGIA

Montanhas de histórias Rochas de até 250 milhões de anos contam sobre a formação do Brasil e os movimentos da crosta terrestre FRANCISCO BICUDO

Na viagem entre São Paulo e Rio de Janeiro, uma paisagem que se destaca são as montanhas com 2 mil metros de altitude nas proximidades das cidades de Engenheiro Passos e de Itatiaia. O que muitos viajantes talvez não saibam é que essas montanhas da serra da Mantiqueira representam duas das principais ocorrências de rochas magmáticas alcalinas do Brasil. Resultantes do resfriamento do magma do interior da Terra, essas rochas de coloração escura formaram-se há milhões de anos e são ricas em sódio e potássio e em minerais como o feldspato. "As rochas alcalinas são mensageiras de tempos remotos", diz Celso de Barros Gomes, professor do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (USP). "Elas revelam detalhes sobre o magmatismo que ocorreu em nosso con54 ■ JUNHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 124

tinente a partir do início da Era Mesozóica, há 250 milhões de anos, oferecem informações preciosas sobre a formação geológica do território brasileiro e ajudam a entender os movimentos das placas de continentes sobre a crosta terrestre, incluindo o momento em que o Brasil se separava da África." Depois de quase 20 anos de pesquisas, Gomes e sua equipe produziram um mapa que indica onde aparecem as rochas magmáticas alcalinas no Brasil. Segundo esse levantamento, que inclui o Paraguai, o Uruguai e a Bolívia, essas rochas distribuem-se por 15 províncias geográficas com dimensões bastante variáveis. Além das ocorrências de Itatiaia, com 220 quilômetros quadrados, e de Passa Quatro, com 165 quilômetros quadrados, destaca-se a ocorrência de Poços de Caldas, a maior área de exposição do país, com cerca de 800 quilômetros quadrados. "Em alguns pontos do Paraguai esse tipo de rocha é encontrado na forma de pequenos cor-

pos, que cobrem poucos metros quadrados", diz Gomes. O livro Mesozoic to cenozoic alkaline magmatism in the brazilian platform, produzido em parceria com a Universidade de Trieste, da Itália, mostra que a idade das rochas também pode variar bastante - de 50 milhões de anos nas proximidades de Cabo Frio, no Rio de Janeiro, e nas imediações de Assunção, capital do Paraguai, a 250 milhões em algumas regiões ao longo do rio Paraguai. A análise química sugere que as rochas se formaram a partir de um magma heterogêneo que ocupava a região do manto, a camada interna pastosa do interior da Terra cuja temperatura pode atingir 1.200°C. A profundidade não seria tão grande: esse magma estaria próximo da zona de transição para a litosfera, a estrutura superficial do planeta, com cerca de 100 quilômetros de espessura, que inclui a crosta terrestre, que forma os continentes. O magma, viscoso e incandescente, foi enriquecido


Serra da Mantiqueira e Itatiaia: concentração de rochas alcalinas

por elementos fluidos, principalmente água, cálcio e flúor, além de metais alcalinos terrosos como magnésio, berílio e bário. Mesmo depois de resinadas as rochas alcalinas magmáticas continuam até hoje localizadas a algumas dezenas de quilômetros de profundidade, embora possa aflorar à superfície. O município goiano de Santo Antônio da Barra é um dos locais onde as formações chegam a se destacar no solo, principalmente por conta da erosão (ver Pesquisa FAPESP n°15). Rupturas bruscas e repentinas - As

conclusões sobre a origem do magma reforçam a idéia, ainda não consensual entre os geólogos, de que o material incandescente teria subido e se aproximado da superfície, estimulado por fraturas ocorridas na crosta terrestre. Como essas rupturas teriam sido muito brus-

cas e repentinas, a pressão e a temperatura do manto se elevaram rapidamente, empurrando e expulsando o magma que, distante das zonas de calor intenso, alojado na base da crosta, se resfriaria e daria origem às rochas. Esse trabalho parece reforçar essas evidências, pois grande parte do material analisado corresponde, em termos de idade, ao momento de fragmentação do supercontinente Gondwana, quando várias placas terrestres, até então reunidas, estavam se rompendo e se afastando - incluindo a porção oriental do Brasil e o litoral ocidental da África. Equipes do Museu de História Natural de Londres já localizaram em países africanos como Angola e Namíbia rochas magmáticas alcalinas com composições e idades semelhantes às do Brasil. Pode ser mais uma evidência não apenas da remota união territorial entre Brasil e África, mas também da origem das rochas. Apesar de sua importância, as rochas alcalinas representam cerca de 1%

do total das magmáticas do planeta. Ficam em segundo plano em relação a seus parentes mais próximos e populares: os basaltos, com pouco potássio e muitos silicatos, responsáveis pela formação de solos férteis conhecidos como terras roxas, e os granitos, ricos em quartzo e mica, usados como peças de revestimento, em calçamentos e em lápides de cemitério. Ainda que sendo uma espécie de prima pobre dos basaltos e dos granitos, as magmáticas alcalinas, especialmente os carbonatitos, apresentam um alto potencial econômico. Nas regiões de Jacupiranga, em São Paulo, de Araxá e de Tapira, em Minas Gerais, e de Catalão, em Goiás, essas rochas aparecem associadas ao fosfato, muito usado na indústria de fertilizantes. Araxá, além de reservas de fosfato, concentra a maior jazida mundial de nióbio, um metal bastante resistente e usado na construção de ligas para a indústria de aviação e espacial. • PESQUISA FAPESP 124 ■ JUNHO DE 2006 ■ 55


?

CIÊNCIA FÍSICA

Fantasmas sob a terra Detectores acompanham desaparecimento das partículas mais abundantes do Universo

preciso ficar três minutos dentro de um elevador na total escuridão e descer 710 metros até chegar ao fundo de uma antiga mina de ferro do centro-leste dos Estados Unidos chamada Soudan, transformada em um laboratório de física de altas energias. Tão logo se deixa o elevador já se pode ver, à esquerda, o equipamento principal: um detector de partículas formado por 486 lâminas octogonais de puro aço, alinhadas como fatias de um pão de fôrma, com 7,6 metros cada uma. Esse detector de quase 6 mil toneladas funciona em sintonia com outro, um pouco menor, com 282 lâminas de aço e mil toneladas, a 750 quilômetros de distância e 105 metros de profundidade - ambos formam um dos experimentos do Laboratório Acelerador Nacional Fermi (Fermilab), próximo à cidade de Chicago. Os resultados iniciais desses equipamentos, colhidos após um ano de operação e examinados por um grupo de físicos, incluindo brasileiros, apresentam aspectos cruciais do comportamento de partículas sem as quais o Sol não poderia brilhar: os neutrinos. São um dos componentes mais abundantes do Universo cada metro cúbico contém 1 bilhão de neutrinos e apenas 1 próton, outro tipo de partícula, de massa muito maior - e ainda se formam a todo momento no interior do Sol quando os átomos de hélio se fundem com os de hidrogênio. Os detectores do Minos, sigla de Busca das Oscilações de Neutrinos Usando o Injetor Principal, comprovaram que os neutrinos desaparecem, como experimentos feitos no Japão já haviam indicado, e foram um pouco além, mostrando o quanto desaparecem. Em alguns meses, quando a análise de dados estiver concluída, talvez seja possível saber em que outras formas essas partículas eletricamente neutras podem se transformar. Há três tipos de neutrinos, cada um deles associado a uma partícula eletricamente carregada: o neutrino do múon, o neutrino do tau e o neutrino do elétron. Os resultados preliminares sugerem que os neutri56 ■ JUNHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 124


m

~\ rpm-» i rrri

I-fl

Algumas respostas da física podem ser respondidas sob a terra: lá se encontram uma das peças do detector de mil toneladas (acima) e as lentes da linha de feixe de neutrinos

nos do múon devem se converter em neutrinos do tau com uma probabilidade centenas de vezes maior do que se transformariam em neutrinos do elétron, de acordo com Carlos Escobar, professor da Universidade de Campinas (Unicamp) que integra o grupo de análise dos resultados, ao lado de Philippe Gouffon, da Universidade de São Paulo (USP). Do Minos participam também físicos da França, dos Estados Unidos, da Grécia, do Reino Unido e da Rússia. Os neutrinos do múon estudados nesse experimento formaram-se a partir da colisão de prótons com um alvo de grafite no interior de um tubo com 1 quilômetro de extensão, o NuMi, sigla de Neutrino do Injetor Principal. Atravessaram sem nenhum esforço uma barreira de 200 metros de rocha e encontraram o detector mais próximo da superfície. Passaram por lá milhares de neutrinos, mas a maioria se dispersou, viajando por baixo da terra, e 2,5 milissegundos depois só 92 neutrinos chegaram à antiga mina de ferro. "Chegariam 177 se não houvesse oscilação", diz Escobar (oscilação é a transformação de um tipo de neutrino em outro). "Se os neutrinos desapareceram", acrescenta Gouffon, "a única explicação é que tenha ocorrido uma mudança de identidade". Para os físicos, esse fenômeno é uma clara demonstração da massa dos neutrinos, sobre a qual até recentemente ainda havia dúvidas, já que as partículas de um tipo só podem se converter em outra se apresentarem massas e energias diferentes. Experimentos feitos no ano passado no Canadá e no Japão demonstraram que os neutrinos têm uma massa 500 mil vezes menor que a do elétron. A massa dessas partículas e as metamorfoses por que passam podem estar ligadas à origem dos prótons, dos elétrons e de todos os outros elementos fundamentais da matéria. Portanto, "a massa do neutrino pode mesmo explicar nossa existência", comentou Hitoshi Murayama, físico da Universidade da Califórnia em Berkeley, Estados Unidos, em um artigo da Physics World. "É muito bom ver que o Minos já está produzindo resultados importantes, apenas um ano depois de ter entrado em operação", disse Píer Oddone, diretor do Fermilab, ao anunciar essas descobertas, na tarde de 30 de março. "Os resultados do Minos, com apenas um ano de operação, dão água na boca", diz Escobar. Mas à satisfação soma-se uma boa dose de preocupação: não há garantia de que seja atendida a reivindicação dos especialistas em neutrinos para que seja instalado no Minos um feixe de partículas com 4 megawatts, visto como indispensável para permitir um real avanço nas pesquisas (os experimentos atuais foram feitos com um feixe de 140 quilowatts). Outras equipes do Fermilab também vivem a perspectiva de cortes orçamentários em razão do interesse dos Estados Unidos de participar, do melhor modo possível, do projeto de um superacelerador, o Colisor Linear Internacional (ILC). Escobar sabe, porém, que, uma vez feita a escolha, as 2.300 pessoas que trabalham no Fermilab vão novamente se unir em torno de objetivos comuns. "No Fermilab há competição entre grupos", diz ele, "mas não lutas fratricidas como no Brasil". . CARLOS FIORAVANTI PESQUISA FAPESP 124 ■ JUNHO DE 2006 ■ 57


Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org

A abordagem da propriedade intelectual foi enriquecida com o avanço dos conteúdos artísticos e científicos na internet com um novo sistema de atribuições de acesso e uso denominado Creative Commons (www.creativecommons.org/). O sistema, em linhas gerais, oferece possibilidades de tratamento do direito de acesso e uso que varia desde o tradicional "todos os direitos reservados" até o "domínio público", passando por uma grande variedade de opções de acesso e uso. A Bireme/Opas/OMS promovem o estudo do Creative Commons com o objetivo de dotar as redes Biblioteca Virtual em Saúde, SciELO e ScienTI com mais capacidade e mecanismos de especificar com transparência os atributos de acesso e uso das fontes de informação disponibilizadas em suas interfaces.

■ Inovação

Patentes em nanotecnologia As primeiras patentes envolvendo nanotecnologia começaram a ser publicadas na metade de década de 1980, segundo o artigo "Patenteamento em nanotecnologia: estudo do setor de materiais poliméricos nanoestruturados", assinado por Suzana Borschiver, Tais dos Santos, Paulo Brum, Maria Guimarães e Flávio da Silva, todos da Escola de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A fonte utilizada para a pesquisa foi o banco de patentes da United States Patent Trademark Office (Uspto). Os dados foram obtidos via web, utilizando-se diversas palavras-chaves. O estudo foi feito com um volume de patentes publicadas entre 1976 e junho de 2004. Nesse período foi registrado um total de 542 patentes dentro da área nanotecnológica. Como apenas 70 eram relacionadas a materiais poliméricos nanoestruturados, os cientistas optaram em estudar apenas esse conjunto de registros de uma forma mais aprofundada. Patentes envolvendo materiais poliméricos nanoestruturados só apareceram na década de 1990, conclui a pesquisa. Observou-se ainda que mais de 70% das patentes sobre materiais poliméricos nanoestruturados foram depositadas pelos Estados Unidos, França e Alemanha. Com relação às aplicações, nota-se que os maiores setores são os de suportes poliméricos e processos de fabricação de polímeros. As empresas foram as maiores depositantes, seguidas das universidades, centros de pesquisa e pessoas físicas.

janeiro (UERJ), verificaram as relações entre incidência de quedas e possíveis fatores de risco, considerando um grupo de indivíduos com mais de 65 anos. Todos são participantes de um programa de atividades físicas, com variáveis apontadas pela literatura como associadas ao risco de quedas: visão, uso de medicamentos, doenças associadas, flexibilidade, força e equilíbrio. "As quedas são um problema de saúde pública entre idosos. Além de prejuízo físico e psicológico, esses acidentes geram um aumento dos custos com cuidados de saúde", afirmam os autores. "As quedas podem levar o idoso à dependência funcional, além de representarem uma das principais causas de morte nessa população." Os idosos mudam radicalmente sua vida cotidiana, tanto pela queda em si como pelo temor de uma nova ocorrência. Restrição das atividades, maior isolamento social e declínio na saúde são alguns exemplos do impacto causado na vida da pessoa idosa após um episódio de queda. REVISTA BRASILEIRA DE MEDICINA BRASILEIRA VOL.

-

11 - N° 5 - NITERóI - SET./OUT. 2005

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttextSpid=S15!786922005000500011&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

POLíMEROS - VOL. OUT./NOV. 2005

15 - N° 4 - SãO CARLOS

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010414282005000400007&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Geriatria

Quedas perigosas Em "Análise descritiva de variáveis teoricamente associadas ao risco de quedas em mulheres idosas", Paulo de Tarso Farinatti, da Universidade Salgado de Oliveira (Universo), e Joanna Guimarães, da Universidade do Estado do Rio de

58 ■ JUNHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 124

■ História

Profissionais da odontologia O processo de profissionalização da odontologia tendo como cenário os Estados Unidos, local em que se estabeleceram as primeiras organizações odontológicas profissionais no Ocidente, é o assunto discutido no artigo "A transformação no mercado de serviços odontológicos e as disputas pelo monopólio da prática odontológica no século 19" de autoria de Cristiana Leite Carvalho, professora da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas).


"Quando analisamos o processo histórico de algumas especialidades médicas que até o século 19 se constituíram como práticas relativamente independentes ou concorrentes da medicina, como a oftalmologia, a homeopatia, a ortopedia, a obstetrícia e, até hoje, estão integradas à profissão médica, é estimulante pensar e analisar o processo de profissionalização da odontologia, que teve um destino bem diferente", diz a autora. Para ela, fatores externos específicos tiveram papel fundamental na emergência da profissão, entre eles a transformação nos padrões de consumo do açúcar, determinando a disseminação da cárie dentária na sociedade e a expansão do mercado de serviços odontológicos. O artigo divide o modelo de profissão odontológica em três categorias, caracterizadas pela extensão da dominância médica. O primeiro modelo, mais comum, representa a autonomia técnica e a independência da odontologia mundial em relação à medicina e tem na odontologia norte-americana o mais forte exemplo. O segundo representa o sistema no qual a medicina tem domínio sobre a prática odontológica e o exemplo recente mais conhecido era o da Itália, onde qualquer médico era legalmente capaz de praticar a odontologia até 1985. No terceiro modelo, visto atualmente em países do Leste Europeu, a odontologia apenas divide com a profissão médica o campo de trabalho. HISTóRIA, CIêNCIAS, SAúDE-MANGUINHOS N° 1 - Rio DE JANEIRO - JAN./MAR. 2006

notheroidea), 16 famílias é 29 gêneros representados por 44 espécies. Comparando-se as duas regiões de estudo percebe-se que a maior diversidade, tanto para o número de espécies quanto para o de indivíduos, foi registrada na região de Caraguatatuba, o que pode estar relacionado com a presença das ilhas Vitória, Búzios e de São Sebastião. "As ilhas são de suma importância para a manutenção de várias espécies de caranguejos formando uma ponte de ligação, tanto para as espécies que chegam do mar aberto quanto para as que estão nas enseadas e migram para as regiões de maiores profundidades", descreve o estudo. BlOTA NEOTROPICA - VOL. 5 - N° 2 - CAMPINAS - 2005 w ww. scielo.br/sciel o.php?script=sci_arttext&pid=SI 67606032005000300003&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Tecnologia

Sêmen suíno resfriado

- VOL. 13 -

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010459702006000100004&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Ecologia

Caranguejos do litoral "Os estudos sobre a composição dos invertebrados marinhos são de fundamental importância para um melhor conhecimento do número atual de espécies presentes nas comunidades bentônicas, servindo como base para a conservação da biodiversidade", justificam os autores do artigo "Composição e abundância dos caranguejos (Decapoda, Brachyura) nas regiões de Ubatuba e Caraguatatuba, litoral norte paulista, Brasil". São eles: Adriane Braga, Adilson Fransozo e Patrícia Fumis e Giovana Bertini, pesquisadores do Núcleo de Estudos em Biologia, Ecologia e Cultivo de Crustáceos (Nebecc), vinculado à Universidade Estadual Paulista (Unesp). Os caranguejos representam um grupo altamente significativo dentre os decápodos marinhos, com aproximadamente 5 mil espécies descritas em todo o mundo. O litoral brasileiro é composto por 302 espécies de braquiúros, sendo que destas 188 ocorrem no litoral paulista. Nas duas regiões investigadas pelos pesquisadores foram realizadas coletas mensais em sete profundidades, durante o período de dois anos. Foram obtidos 30.231 caranguejos (13.305 em Ubatuba e 16.926 em Caraguatatuba), abrangendo nove superfamílias (Dromioidea, Homoloidea, Calappoidea, Leucosioidea, Majoidea, Parthenopoidea, Portunoidea, Xanthoidea e Pin-

Um contêiner de baixo custo para o transporte e resfriamento de sêmen suíno à temperatura de 17°C ou 5°C, durante um período mínimo de 24 horas. O processo de fabricação desse recipiente está disponível no artigo "Desenvolvimento de um sistema de resfriamento e conservação de sêmen suíno", escrito por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). No Brasil, a utilização do sêmen suíno transportado não é rotina nas centrais de inseminação. Cada sistema de produção mantém a sua própria central e, em alguns casos, ocorre o transporte das doses inseminantes para centrais próximas ou para outros estados. "No entanto, o transporte é realizado dentro de caixas de isopor, sem nenhum controle da temperatura, e, em alguns casos, em geladeiras de menor tamanho ou caixas térmicas que mantêm a temperatura de 17°C", mostra o artigo. O contêiner, desenvolvido na Escola de Engenharia Mecânica da UFMG, constitui-se de três blocos de isopor: um bloco compacto formando o fundo, um bloco central com perfurações para colocação dos blocos menores, contendo os frascos plásticos que acondicionam o sêmen diluído e uma perfuração central para colocação do sistema refrigerador. "A utilização dessa tecnologia de resfriamento, estocagem e transporte de sêmen suíno pode contribuir para o aumento da difusão da inseminação artificial em locais de menor escala de produção e melhorar o nível genético nas granjas", conclui o artigo. ARQUIVO BRASILEIRO DE MEDICINA VETERINáRIA E ZOOTECNIA - VOL. 58 - N° 1 - BELO HORIZONTE - FEV. 2006 www.scielo.br/scielo.php7script=sci_arttext&pid=S010209352006000100012&lng=pt&nrm=íso&tlng=pt

PESQUISA FAPESP 124 ■ JUNHO DE 2006 ■ 59


Pesquisadores do Massachusetts Institute of Technology (MIT) e do Brigham and Women's Hospital, nos Estados Unidos, desenvolveram partículas em escala nanométrica e inseriram nela uma droga chamada docetaxel, capaz de atacar com alta eficiência tumores cancerígenos. A novidade desse experimento é que as partículas, de cerca de 150 nan ô metros ( l nan ômetro

• Algas dão pistas sobre o clima Um sensor que auxiliará na compreensão das mudanças climáticas no planeta foi criado por uma equipe de pesquisadores do Centro Nacional de Oceanografia e da Escola d e Eletrônica e Ciência da Computação, ambos da Universidade de Southampton , na Inglaterra. O microchip foi projetado para medir a quantidade e os diferentes tipos de algas presentes no oceano. Ao passar por dentro do sensor em alta velocidade o aparelho

lança um feixe de luz na planta e ela responde com a emissão de luz em diferentes comprimentos de onda, permitindo sua caracterização. O sensor

60 • JUNHO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 124

equivale a l milionésimo de milímetro), conseguem encontrar as células doentes no organismo e descarregar o remédio dentro delas, deixando intactas as células sadias da vizinhança. A pesquisa foi conduzida com sucesso em camundongos de laboratório. "Uma simples injeção de nanopartículas erradicou a doença em cinco dos sete animais tratados e os ou-

também capta infor mações sobre as propriedades elétricas das plantas. As algas dão pistas sobre o clima porque um grupo delas produz certos com-

tros dois tiveram significativa redução nos tumores'; disse Omid Farokhzad, um dos líderes da pesquisa, em nota divulgada pelo MIT. Apesar dos bons resultados, os pesquisadores dizem que ainda é preciso fazer uma série de testes até que o sistema- projetado para transportar também outros tipos de medicamento para diferentes doenças - possa ser usado em humanos. •

postos, com o dimetil-su lfonio-proprionato (DSMP), que podem ser ativados por alterações climáticas. Além disso, todas as algas util izam dióxido


de carbono, embora apenas algumas mantenham esse gás em seus esqueletos calcificados. "Para compreender isso, precisamos ser capazes de diferenciar os tipos de algas e contá-las usando um equipamento preciso e barato o suficiente para que muitos possam ser usados. Esse é o maior desafio da nossa pesquisa", disse Peter Burkill, do Centro Nacional de Oceanografia, em comuni• cado da instituição.

• Minissatélites no espaço Os primeiros testes com o protótipo de um minissatélite que tem o tamanho de uma bola de vôlei, desenhado para flutuar no espaço mantendo sempre uma posição precisa, foram realizados no dia 18 de maio passado pelos astronautas da Estação Espacial Internacional (ISS). Construído por pesquisadores do Massachusetts Institute of Techno-

logy (MIT), a idéia é que ele possa, no futuro, ser empregado em uma série de atividades espaciais, como conserto a danos na ISS e veículos espaciais e para reabastecimento de outros satélites. Poderá também ser usado como partes de telescópios maiores e ajudar na identificação de planetas na órbita de outras estrelas. Os testes feitos dentro da estação espacial permitem aprimorar a tecnologia num ambiente de microgravidade menos arriscado do que as severas condições de temperatura do espaço sideral. Dois outros minissatélites deverão ser enviados para testes na ISS ainda neste ano. •

• Chips mais eficientes Um dos grandes obstáculos na fabricação de chips, células solares e outros semicondutores é a dificuldade de remover das diversas camadas de

silicone que formam esses componentes os átomos de hidrogênio, que são, propositadamente, inseridos para evitar a oxidação do material durante sua montagem. A boa notícia é que um time de pesquisadores norte-americanos liderado pelo engenheiro elétrico e de computação Philip Cohen, da Universidade de Minnesota (EUA), desenvolveu uma técnica baseada no uso de laser que pode realizar a tarefa sem danificar o material. O método convencional emprega uma fonte de calor, de cerca de 800 graus Celsius, que pode comprometer a estrutura cristalina do silicone e causar defeitos no chip. O laser, por sua vez, utiliza temperaturas bem'mais baixas. A descoberta, já patenteada pelos cientistas e publicada na revista Science de 19 de maio, pode reduzir o custo de produção e melhorar a qualidade de microchips e semicondutores em geral. •

• Ajuda do céu no combate à gripe Um sistema criado para garantir a pureza do ar em naves e estações espaciais poderá ser empregado para conter o alastramento de uma possível pandemia da gripe aviária. É o que garantem os pesquisadores da AirinSpace, empresa francesa especializada em equipamentos de bioproteção que, com apoio do Programa de Transferência Tecnológica da Agência Espacial Européia (ESA), adaptou com sucesso uma tecnologia utilizada para proteger astronautas no espaço para uso em hospitais. O sistema, batizado de Plasmer, utiliza poderosos campos elétricos e câmaras de plasma gelado para eliminar microorganismos existentes no ar, reduzindo praticamente a zero os riscos de contaminação por vírus, fungos e bactérias. Cerca de 70 centros médicos na França já empregam a tecnologia, que poderá controlar o risco de contaminação caso ocorra uma pandemia da gripe do frango. A empresa francesa anunciou que o sistema tem condições de ser instalado, em poucas horas, em escolas, ginásios e outros locais fechados, que se transformariam em centros de emergência temporários livres da contaminação por microorganismos. •

PESQUISA FAPESP 124 • JUNHO DE 2006 • 61


Conforto no trabalho Uma cadeira ergonômica, com mesa, mouse, tela e apoio para teclado acoplados, é uma das mais recentes criações da empresa Das Haus, abrigada na Ekoa, incubadora de empresas da Universidade Salgado de Oliveira (Universo) e a primeira de Goiânia (GO). A idéia de criar uma cadeira confortável para quem passa boa parte do tempo em frente a uma tela de computador surgiu há três anos, durante um concurso de design promovido pela Associação Brasileira de Indústrias do Mobiliário. Desde então várias pesquisas sobre ergonomia foram feitas pelo designer de produto Marcos Leão, dono

Ergonomia em móvel integrado

da empresa, com o apoio de ortopedistas, fisioterapeutas e de dois estudantes do curso de design. Na pesquisa feita, a equipe avaliou que era

necessário criar um móvel integrado, projetado para usuários que passam longos períodos trabalhando com o computador. "O diferencial

do móvel está na posição que a pessoa usa para trabalhar no computador", diz Leão. A peça, projetada para prevenir dores e lesões na coluna ocasionadas pelo impacto entre as vértebras e os músculos, também conta com um suporte para os pés. A previsão é que no segundo semestre deste ano a cadeira, feita com tubos de aço e carbono e assento de espuma injetada, comece a ser vendida. Para isso, a Das Haus firmou uma parceria com uma indústria goiana. O preço estimado é de cerca de R$ 3 mil. Mesmo antes de entrar no circuito comercial, duas unidades já foram vendidas durante exposição em feiras. •

Linha de Produção

Brasil

■ Interação entre luz e som Um estudo que mostra novas propriedades da interação entre luz e ondas acústicas em fibras de cristal fotônico, um tipo de fibra óptica caracterizado pela presença de ar ao redor de seu núcleo e com grande potencial de aplicação em telecomunicações, foi capa da edição de Io de maio da Optics Express, revista da Optical Society of America. Um outro artigo sobre o mesmo tema foi publicado na edição on-line e na versão impressa da primeira semana de junho da revista Nature Physics. Os estudos resultam de um trabalho conjunto conduzido por

pesquisadores do Laboratório de Comunicações Ópticas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), dirigido pelo professor Hugo Fragnito, coordenador do Centro de

Interior da fibra fotônica: estudo melhora potencial d aplicação

62 ■ JUNHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 124

Pesquisa em Óptica e Fotônica (Cepof) de Campinas, e pesquisadores da Universidade de Bath, da Inglaterra, do Instituto Max-Planck, da Alemanha, e do Institut Femto, da

28KW

França. "Existem algumas aplicações em que a interação entre luz e ondas acústicas resulta em um indesejado fenômeno de espalhamento de luz, chamado Brillouin, que limita a potência óptica que pode ser transmitida pela fibra", diz o pesquisador Paulo Dainese, da Unicamp, primeiro autor do artigo. Outras aplicações requerem exatamente o contrário, ou seja, aumentar o efeito. "Nosso trabalho abre oportunidades de explorar ambos os casos", diz Dainese. O trabalho publicado também mostra particularidades da fibra de cristal fotônico em comparação com a fibra óptica tradicional. Uma delas é a capacidade de confi-


nar simultaneamente fótons (luz) e fônons (ondas acústicas) no núcleo da fibra de cristal fotônico, resultando numa interação mais forte. •

■ Habitação em portal na rede O Programa de Tecnologia de Habitação (Habitare) colocou em seu portal, na seção Publicações, várias obras que podem ser consultadas gratuitamente pelos interessados. Resultantes de projetos financiados pelo programa, as publicações são compostas de três séries, divididas em Coletânea, Coleção e Recomendações Técnicas. Na série Coletânea são quatro volumes que abordam temáticas diferenciadas sobre a área de tecnologia da habitação, um dos quais trata da Inserção urbana e avaliação pós-ocupação da habitação de interesse social. Na Coleção o leitor encontra, entre outras, a obra Pluralismo na habitação, que aborda o processo utilizado em seis programas habitacionais da Região Metropolitana de São Paulo e faz a avaliação de cada um deles. E na série Recomendações Técnicas o objetivo da publicação é transferir conhecimentos técnicos para profissionais que atuam na cadeia produtiva da construção. O programa Habitare tem o apoio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), do Ministério da Ciência e Tecnologia. •

■ Brasileiro ganha prêmio nos EUA

riT«ÍOái[tliM^l

produzir clones A Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, de Brasília, fechou um acordo com a empresa Brasif para transferência da tecnologia de clonagem de bovinos desenvolvida pela instituição. O objetivo da parceria é aumentar a eficiência da técnica para diminuir a perda de clones durante a gestação e aumentar a sobrevivência após o nascimento. A estimativa é que em três anos o primeiro clone bovino resultante da parceria chegue ao mercado. A Brasif ficará encarregada do repasse da tecnologia para o setor produtivo. O primeiro passo para isso é a construção de um laboratório

destinado à clonagem, que funcionará inicialmente dentro de uma fazenda da empresa em Minas Gerais, com a contratação e capacitação de pessoal especializado. Em contrapartida, a instituição repassará à Brasif o protocolo contendo todas as etapas para a produção de clones bovinos, baseada na tecnologia de transferência nuclear que resultou no primeiro caso bem-sucedido de clonagem no Brasil com o nascimento de uma fêmea da raça simental chamada Vitória, nascida em 2001. Por essa técnica, o núcleo, que contém toda a informação genética, de uma célula adulta é retirado e fundido com um óvulo sem núcleo. •

Vitória, primeira clonagem de bovino da Embrapa

Um sistema de dessalinização de água para regiões carentes à base de energia solar criado pelo estudante Denilson Luz Freitas, de 18 anos, de Vitória da Conquista, na Bahia, foi premiado em duas categorias na Intel International Science and Engineering Fair 2006 (Intel Isef), realizada de 7 a 13 de maio, em Indianápolis, Estados Unidos. A maior feira mundial de ciências e engenharia para jovens de ensino fundamental, médio e técnico teve a participação de cerca de 1.500 estudantes de 47 países. Do Brasil participaram nove projetos, selecionados na Feira Brasileira de Ciência e Tecnologia 2006, realizada no final de março e organizada pelo Laboratório de Sistemas Integráveis da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP). O sistema de dessalinização, batizado de Projeto Aram, ficou com a primeira colocação no prêmio concedido pelo Departamento do Interior norte-americano. No prêmio concedido pelo Colegiado Nacional de Inventores e Inovadores, o sistema brasileiro também foi premiado. No total, Denilson recebeu US$ 2 mil. Em sua 47a edição, a Intel Isef 2006 ofereceu US$ 4 milhões em prêmios, incluindo três bolsas de estudos no valor de US$ 50 mil. .

PESQUISA FAPESP 124 ■ JUNHO DE 2006 ■ 63


TECNOLOGIA COMPUTAÇÃO

Vidas

programadas

Projetas buscam melhorar o trânsito para o usuário do transporte coletivo

ÜI NORA II ERENO

elhorar a vida do usuário do transporte coletivo e das operadoras de ônibus é a proposta de dois estudos realizados em universidades que estão prontos para serem aplicados. Um deles, fruto de um projeto desenvolvido por pesquisadores da Coordenação dos Programas de Pós-Graduação de Engenharia (Coppe), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), utiliza rastreadores nos ônibus para oferecer um serviço diferenciado ao usuário. O outro, criado no Instituto de Computação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp ), tem como base um programa que faz desde a tabela dos horários de veículos até a escala de serviço dos motoristas e dos cobradores e, como resultado, distribui mais racionalmente a operação da frota e o trabalho dos funcionários. O projeto da Coppe foi concebido para funcionar em linhas especiais de ônibus urbano com clientes cadastrados que ligam para uma central de atendimento, em um esquema similar ao dos radiotáxis, mas sem a mesma flexibilidade porque o atendimento é feito de forma simultânea com outros usuários. Os atrativos para o cliente incluem preço menor que o cobrado em uma viagem de táxi e a economia do tempo gasto nas viagens em comparação com o carro particular, já que o ônibus trafega em faixas exclusivas. "É uma opção de transporte mais segura, oferecida para veículos que operam com menor capacidade,


como microônibus de 25 a 30 lugares'; diz o professor Ronaldo Balassiano, do Núcleo de Planejamento Estratégico de Transportes (Planet) da Coppe, coordenador do projeto, que recebeu financiamento de R$ 16 mil do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e de R$ 28 mil da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). O fator segurança é um diferencial vantajoso também para as operadoras. Como é um veículo rastreado, qualquer anormalidade ou mudança não programada no trajeto é detectada pela central. Controle preciso - O sistema de rastreamento utili-

za um chip que emite dados com as coordenadas geográficas da posição dos veículos. Os sinais emitidos são captados por antenas distribuídas pelas cidadesas mesmas utilizadas para a transmissão de sinais para o celular- e retransmitidos para uma central de controle. A tecnologia permite adicionar uma série de dispositivos acoplados ao sistema de rastreamento que ajudam a operadora a ter um quadro mais detalhado do funcionamento da frota que está nas ruas. Entre eles está o monitoramento do fluxo de passageiros na entrada e na saída, o número de passageiros em trechos específicos da área servida pelos ônibus, o consumo de combustível e a maneira como o motorista está conduzindo o veículo. Como é um sistema dinâmico, em vez de os ônibus operarem vazios fora dos horários de pico, eles podem ser redirecionados para atender a outros cha-

macios. "Os microônibus podem operar, por exemplo, em áreas onde comercialmente não é interessante trabalhar com um veículo comercial comum, como bairros onde as moradias ficam mais dispersas, com intervalos predefinidos", diz Balassiano. São áreas em que o serviço regular não atende de forma adequada porque não há demanda suficiente o dia todo. O público-alvo é bem amplo e inclui pessoas que usam carros nos deslocamentos diários ou esporádicos, usuários da terceira idade com dificuldades de locomoção ou visão, adolescentes que fazem várias atividades no dia-a-dia e dependem de alguém que os transporte, além dos portadores de deficiências. As rotas podem ser estabelecidas de duas naaneiras, ponto fixo de origem ou origem flexível. O ponto fixo de origem, como o próprio nome diz, é um local onde os passageiros se concentram para, em horários predeterminados, pegar o ônibus e serem transportados para destinos flexíveis, ou seja, em locais diferentes. Pela rota origem flexível, o ônibus passaria nas proximidades ou na casa de cada passageiro, que seria levado a um destino fixo, um ponto central e favorável a todos. Como os veículos são rastreados, tanto se poderia alterar o trajeto da linha de acordo com os imprevistos do percurso quanto mudá-lo segundo o desejo dos passageiros. Uma pequena amostra do projeto está funcionando experimentalmente no campus do Fundão, dentro da Cidade Universitária do Rio de Janeiro, em uma frota composta por nove ônibus, três dos quais são reservas, usados apenas em caso de problemas com os


veículos da frota principal. Seis ônibus da linha reitoria-alojamentos que atendem gratuitamente cerca de 10 a 15 mil usuários estão circulando com aparelhos rastreadores. As informações captadas são retransmitidas para os computadores da Coppe, de onde é possível acompanhar, num mapa local, o trajeto e a localização dos veículos. "A nossa idéia é que o usuário da universidade possa, da sua sala, acessar o computador e saber exatamente onde o ônibus se encontra': diz Balassiano. A previsão é que até o final do ano essa informação esteja disponível para o usuário. Novos produtos - Os equipamentos rastreadores instalados nos veículos são da marca Geocontrol, uma empresa fabricante de equipamentos que se tornou parceira efetiva no projeto. Na atual fase, a empresa está encarregada do desenvolvimento ou adaptação de softwares para os novos produtos que estão

66 • JUNHO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 124

sendo concebidos na universidade a partir do projeto original. O pesquisador ressalta que mais importante do que ter os aparelhos instalados é o uso que se pode fazer dessa ferramenta no planejamento urbano. A experiência do campus do Fundão será estendida para a cidade de Vitória, no Espírito Santo, que começará a testar o sistema na sua frota de cerca de 300 ônibus municipais que circulam diariamente. O acordo foi fechado com a prefeitura e teve a participação da Geocontrol, empresa prestadora de serviços para as secretarias de Segurança Pública do Rio de Janeiro e do Espírito Santo. Com os resultados do projeto, Balassiano quer oferecer transporte de qualidade e, como conseqüência, tirar das ruas parte dos automóveis particulares hoje em circulação. "O transporte público também tem sido prejudicado pela lentidão do trânsito", diz. A velocidade média do transporte por ônibus é inferior


a 20 quilômetros por hora em um grande número de municípios brasileiros. "A idéia que estamos propondo, de oferecer um sistema de transporte sob demanda, já vem sendo aplicada em alguns casos experimentalmente e em outros de forma definitiva em cidades de menor porte da Europa", diz. Tabelas e escalas - O outro projeto para melhorar o transporte coletivo, coordenado pelo professor Arnaldo Moura, da Unicamp, já foi testado na Serra Verde e na Pioneira, duas empresas de ônibus urbano de Belo Horizonte, em Minas Gerais, e na Metra, de São Bernardo do Campo, na região do ABC paulista. O projeto começou com uma dissertação de mestrado de Tallys Yunes, apoiada pela FAPESP, para a construção de escalas de ônibus urbanos na capital mineira. "O programa tinha que alocar a frota e o pessoal, com os horários de saída já predefinidos", diz Moura.

Para responder a essas questões empregaram-se modelos matemáticos. Em um deles usou-se a Programação Linear, técnica clássica que trabalha com modelos compostos de variáveis de decisão e tem as restrições expressas por equações e inequações lineares. No outro usou-se a Programação por Restrições, linguagem que permite tratar de problemas mais complexos. O estudo feito em Belo Horizonte teve continuidade com duas bolsas de iniciação científica de André Ciré e Tony Lopes, orientados por Moura. Nessa fase o desafio foi ampliado. Era necessário otimizar a programação da Metra, empresa de ônibus urbano de São Bernardo do Campo, uma tarefa mais difícil do que a anterior, pois os horários de partida não eram predeterminados, mas também tinham de ser calculados. Foi desenvolvido um programa que tem como entrada as demandas de transporte de passageiros nos dois sentidos da linha (bairro-centro e vice-versa) por faixa horária, os tempos de percurso do ônibus por faixa horária e por sentido, a qualidade de serviço (número de passageiros transportado por cada ônibus) e os tempos de percurso do ponto até a garagem dos ônibus por faixa horária. O software processa esses dados e produz uma escala dos ônibus que vão fazer os percursos, uma escala das duplas de motoristas e cobradores que vão operar os ônibus e os horários de partida nos pontos. "É uma programação completa para cada linha da frota", diz Moura. Para conseguir a melhor solução para tantas variáveis, foram utilizados algoritmos genéticos, que tentam imitar o processo de evolução natural, e um método tipo busca tabu, que guarda informações sobre buscas anteriores para guiar o processo de pesquisa usando' memória de longo prazo. Técnicas similares às que foram usadas para asescalas de ônibus urbanos serviram de base para a criação de dois outros softwares de escalas. Um deles, em uso há dois anos no Hospital das Clínicas da Unicamp, responde pela escala de serviço mensal de cerca de 1.500 funcionários que trabalham na enfermagem da instituição. O outro, que trata do escalonamento de atividades de engenharia no processo de preparo de poços de petróleo em águas profundas, ficou com o terceiro lugar na categoria produção do Prêmio Petrobras de Tecnologia de 2005. Desenvolvido por Rômulo Albuquerque Pereira, sob orientação de Moura e do professor Cid Carvalho de Souza, também do Instituto de Computação, o software faz o escalonamento de tarefas que serão executadas para perfurar e colocar um campo de petróleo em produção. "As operações têm de seguir uma ordem predeterminada para que não haja desperdício de recursos alocados para executar essas tarefas, como barcos-sonda especiais e plataformas de perfuração", diz Moura. • PESQUISA FAPESP 124 • JUNHO DE 2006 • 67


O TECNOLOGIA AGRICULTURA

Empresa desenvolve equipamentos que controlam melhor o corte da cana-de-açúcar e permitem pulverizar e irrigar outras culturas com mais precisão

YURI VASCONCELOS

Eficienci

té o final deste ano os usineiros brasileiros poderão contar com uma ferramenta inovadora para melhorar a produção de seus canaviais. Pesquisadores da empresa Enalta Inovações Tecnológicas, de São Carlos, e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) criaram um monitor de produtividade que pode ser adaptado em máquinas colhedoras de cana-de-açúcar. O sistema gera informações que permitem um melhor gerenciamento da área plantada e contribuem para elevar a produtividade por hectare. Com um sistema GPS, sigla de Global Positioning System, ins68 ■ JUNHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 124

talado na máquina, que faz o posicionamento geográfico (latitude, longitude e altitude) por satélite, os dados mostram, por exemplo, a produção da área colhida. "O equipamento oferece ao produtor uma radiografia precisa de sua propriedade, identificando onde a produtividade é maior ou menor. Embora existam no mercado monitores para colhedoras de grãos, como soja, milho e trigo, esse é o primeiro voltado exclusivamente para a cultura de cana-de-açúcar", afirma o engenheiro agrônomo Domingos Guilherme Cerri, pesquisador da Faculdade de Engenharia Agrícola (Feagri) da Unicamp, que coordenou o projeto. O sistema encontra-se em estágio final de desenvolvimento e dois protótipos estão em testes em colhedoras das usinas Catanduva e São Domingos, am-

bas no município de Catanduva, no interior paulista. Ele é composto por um kite uma série de sensores instalados nas máquinas que identificam, por exemplo, o peso da cana cortada, que passa na esteira transportadora da máquina, para determinar o fluxo colhido e medir a quantidade de matéria-prima a ser lançada no veículo de transbordo. Os sensores também revelam a velocidade de deslocamento da colhedora, a condição de corte de base da cana e o funcionamento da esteira, entre outros dados do processo, reduzindo erros provenientes de paradas indesejadas, troca do veículo de transbordo e manobras realizadas ao longo da colheita. Um software instalado no computador de bordo da colhedora gerencia todas as informações e gera um mapa


da produtividade do canavial. "Creio que essa tecnologia, inédita no mercado, dará uma importante contribuição ao sistema de gerenciamento da cultura e permitirá que a produção de cana, tradicionalmente mais atrasada do que a cultura de cereais, tenha um avanço significativo", diz o engenheiro agrícola Paulo Graziano Magalhães, professor da Feagri, que também participou do desenvolvimento do sistema. Com as informações geradas, será possível cruzar mapas de produtividade com informações específicas do solo para identificar problemas de baixa produção, permitindo que os produtores adotem um manejo diferenciado para corrigir o problema. O equipamento já foi patenteado e custará entre R$ 20 mil e R$ 25 mil - valor relativamente peque-

no diante do custo de uma colhedora, em torno de R$ 700 mil. Ele poderá ser instalado diretamente nas fábricas de colhedoras ou comprado avulso pelos donos de usinas para equipar sua frota. Contatos gerais - "Estamos sentindo que é um produto com boas perspectivas comerciais porque não temos concorrentes no mercado. Todos os meses recebemos telefonemas de produtores querendo saber em que estágio está o projeto, mas só queremos lançá-lo quando ele estiver totalmente confiável", explica o engenheiro elétrico Cleber Rinaldo Manzoni, dono da Enalta. "Existe perspectiva de venda para outros países da América do Sul, onde a cultura de cana é forte, e já estamos mantendo contato com os fabricantes de colhedoras,

como a Case New Holland e a John Deere", diz Manzoni. O monitor de produtividade para cultura de cana-de-açúcar é apenas um dos sistemas criados recentemente pela Enalta, uma empresa de base tecnológica voltada para o desenvolvimento de equipamentos de automação para máquinas agrícolas e de sistemas de gerenciamento de produção no campo. O forte da empresa são os equipamentos para a cultura de cana-de-açúcar, mas ela também fornece produtos e sistemas para as áreas florestal e de fruticultura. Desde que foi criada, em 1999, a Enalta participa de quatro projetos (um deles em fase inicial) aprovados no Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe) da FAPESP. O projeto relativo ao desenvolvimento de um PESQUISA FAPESP 124 ■ JUNHO DE 2006 ■ 69


controlador automático de pulverização e de um sistema de informações geográficas para agricultura foi finalizado em outubro do ano passado. "O apoio da FAPESP foi muito importante para o nosso crescimento, pois no começo não tínhamos faturamento e dependíamos basicamente das bolsas da Fundação", diz Manzoni. "Começamos com duas pessoas - eu e o meu ex-sócio - e hoje temos 20 funcionários registrados, além de 14 bolsistas. Nosso faturamento tem crescido por volta de 30% ao ano e chegou a R$ 1 milhão em 2005." O crescimento da empresa foi, em parte, devido ao estabelecimento de parcerias com universidades e institutos de pesquisa, como Unicamp, Universidade de São Paulo (USP), Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Universidade Estadual Paulista (Unesp) e Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Valendo-se da parceria com pesquisadores dessas instituições, a Enalta conseguiu desenvolver uma vasta linha de equipamentos voltados para as áreas de colheita, pulverização e irrigação agrícolas. "Estamos terminando produtos para os setores de plantio e corretivos de solo. Com isso, teremos equipamentos destinados a todas as fases da produção agrícola. Queremos oferecer um amplo leque de produtos integrados, compatíveis entre si", afirma Manzoni. O sistema de gerenciamento para pulverização de precisão finalizado em 2005, por exemplo, possibilita o perfeito controle da pulverização e uma aplicação balanceada dos defensivos agrícolas utilizados para o controle de pragas, como insetos, ervas daninhas e fungos. "Atualmente, quando há uma infestação na lavoura, o agrônomo visita o local e calcula visualmente a quantidade de agroquímico a ser aplicado. Nosso sistema, ao contrário, permite a aplicação otimizada, conforme a necessidade de cada área da plantação. Assim, áreas mais atingidas por pragas recebem mais defensivos, enquanto as menos afetadas, menores quantidades do produto", destaca o engenheiro eletrônico Ivan Rogério Bizari, funcionário da Enalta, que coordenou o projeto de pulverização. O sistema trabalha em conjunto com um sistema de informações geográficas (SIG), um software 70 ■ JUNHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 124

Acima, o kit do sistema de pulverização para ser instalado no trator permite uma aplicação balanceada de defensivos agrícolas. Ao lado, sensores sem fio instalados no campo para sistema de irrigação de precisão

também desenvolvido pela Enalta, que fornece um mapa da cultura conforme o grau de infestação. ara a elaboração do mapa, um técnico agrícola percorre a plantação munido de um aparelho GPS e um palmtop fazendo a demarcação das manchas de infestação. Essas informações são carregadas no SIG e analisadas por um agrônomo. Em seguida os dados são enviados para o controlador de pulverização, que faz a aplicação automaticamente, conforme a necessidade da área e sem a interferência do condutor do trator de pulverização. Sensores meteorológicos instalados na máquina permitem que ele faça, instantaneamente, correções na aplicação, conforme a intensidade da evaporação e da velocidade do vento. O equipamento custa cerca de R$ 22 mil e está disponível para compra desde o início deste ano, período em que foram vendidas três unidades. Quem quiser adquiri-lo em conjunto com o SIG, útil também para o mapeamento da colheita e outras fases da produção, terá que desembolsar mais

R$ 15 mil. De acordo com Cleber Manzoni, não existem produtos semelhantes no mercado. "A vantagem do nosso sistema de pulverização, projetado para controlar todos os parâmetros da operação, é que, ao otimizar a aplicação do agrotóxico, ele reduz a quantidade utilizada do produto, levando à redução de custos e gerando importantes benefícios ambientais", diz Bizari. Irrigação de precisão - Outro projeto da Enalta, desta vez em parceria com a Embrapa Instrumentação Agropecuária, também de São Carlos, é um sistema de irrigação de precisão, batizado de Irrigap. A agricultura irrigada é responsável por mais de 40% das colheitas mundiais e ocupa em torno de 18% das áreas agrícolas do planeta. No Brasil é irrigada apenas 4% da área plantada, o que demonstra ser alto o potencial de crescimento de produção e de melhoria na qualidade do produto agrícola a ser explorado com o uso da irrigação de precisão. A grande vantagem do Irrigap quando comparado aos processos tradicionais é a economia de água e de energia que proporciona redução de custos.


"Queremos levar o conceito da agricultura de precisão para a irrigação, que é a aplicação espacial variada de água na cultura. Estamos criando um sistema de acordo com as demandas de cada pedacinho da lavoura", explica o engenheiro eletricista e pesquisador da Embrapa André Torre Neto. Para ele, diversos fatores contribuem para a necessidade diferenciada de irrigação numa mesma plantação, como variações no relevo, diferenças da textura do solo, insolação, /

estágios de desenvolvimento da planta e do sistema radicular (da raiz). "No sistema de irrigação convencional, esses fatores não são levados em conta", afirma Torre Neto. A plataforma desenvolvida pela parceria entre a Enalta e a Embrapa é composta por uma série de sensores sem fio que captam basicamente informações sobre umidade e temperatura. Eles são instalados no campo e fornecem informações sobre a variabilidade espacial da

quantidade de água necessária. No sistema de automação de irrigação tradicional, a necessidade hídrica de determinado talhão (uma das unidades de produção de uma fazenda) é resultado da aplicação de poucos sensores, a partir dos quais se calcula um valor médio da vazão da água. "Na irrigação de precisão, nossa idéia é instalar sensores a cada 50 metros, dispostos no formato de uma grade, para conhecermos a real necessidade de água em cada ponto, criando assim um mapa da necessidade hídrica do talhão. A partir daí podemos estruturar o sistema hidráulico de irrigação para atender de forma diferenciada cada uma das zonas de manejo", diz Torre Neto. Para cada 25 hectares de plantação, informa o pesquisador, serão instalados cem sensores. Uma unidade piloto do sistema está sendo implantada numa plantação de laranja na Fazenda Maringá, da Fischer Agropecuária, no município paulista de Gavião Peixoto. Até o final do ano ele estará totalmente instalado e operacional, com os cem sensores previstos no projeto. "No início de 2007 faremos os mapas de necessidade hídrica e as análises para a criação das diversas zonas de manejo. A avaliação do sistema, com dados sobre a economia de água e energia, vai ocorrer em 2008. Até lá a Enalta colocará no mercado vários subprodutos para monitoramento e automação da irrigação, como o sensor de umidade que agora será fabricado no Brasil, além de outros componentes", afirma Torre Neto. A estimativa é de o índice de nacionalização do sistema de irrigação da empresa atingir a marca dos 50%. • \

OS PROJETOS Desenvolvimento de um monitor de produtividade de cana-de-açúcar para obtenção de mapas de produtividade para colhedoras autopropelidas

Sistem( 3 para gerenciamento da ativi dade "pulverização" na aqri cultura com tecnologia de aqui sição automática ue uduos no campo

Desenvolvimento de plataforma tecnológica para irrigação de precisão em culturas perenes MODALIDADE

MODALIDADE

Programa Inovação Tecnológica em Peguenas Empresas (Pipe) COORDENADOR DOMINGOS GUILHERME PELLEGRINO CERRI

- Unicamp/Enalta

INVESTIMENTO

R$ 313.248,00 (FAPESP)

MODALIDADE

Programa Inovação Tecnológica em Peguenas Empresas (Pipe)

COORDENADOR ANDRé TORRE NETO

COORDENADOR CLEBER RINALDO MANZONI

Programa Inovação Tecnológica em Peguenas Empresas (Pipe)

- Enalta

INVESTIMENTO

R$ 148.454,12 (FAPESP)

-

Embrapa/Enalta INVESTIMENTO

R$ 352.639,10 e US$ 30.505,00 (FAPESP)

PESQUISA FAPESP 124 ■ JUNHO DE 2006 ■ 71


T

TECNOLOGIA ENERGIA

Soja na refinaria Centro de pesquisa da Petrobras desenvolve técnica para uso de óleo vegetal na produção de diesel

fisturar óleo de soja no processo de refino do diesel é a nova tecnologia desenvolvida ao longo de 18 meses por pesquisadores do Centro de Pesquisas e Desenvolvimento (Cenpes) da Petrobras. Inédito em todo o mundo, o novo sistema de produção já tem patentes depositadas no Brasil e no exterior. O diesel, usado por caminhões, ônibus, tratores, barcos, locomotivas, geradores e máquinas industriais, não sofrerá modificações essenciais na sua estrutura química, que continuará a mesma. Por ser o mesmo combustível, serão evitados os testes complementares em veículos. Os testes realizados nos laboratórios e plantas piloto da empresa aprovaram o produto para uso imediato. O novo diesel também não poderá ser classificado como biodiesel. O biodiesel é o acréscimo de óleo vegetal ao diesel, já nas distribuidoras de combustíveis. Esses óleos passam antes por um processo químico de transesterificação, quando ele é purificado para não causar problemas aos motores. O novo combustível nasce durante o processo de refino. "É feita a inserção de óleo de soja durante a produção do diesel", diz Alípio Ferreira Pinto Júnior, gerente-geral de abastecimento do Cenpes. O combustível estará disponível nos postos de abastecimento a partir de 2007 e vai contribuir para reduzir a importação desse produto ou do petróleo mais denso usado para produzi-lo, existente em pouca quantidade nos poços petrolíferos brasileiros. Dos 40 bilhões de litros de diesel utilizados no país por ano, 2,3 bilhões foram importados em 2005. Inicialmente o Cenpes calcula que serão produzidos 256 milhões de litros anuais do novo diesel, quase 10% do total importado atualmente. As primeiras levas do combustível serão produzidas em Minas Gerais, no município de Betim, na 72 ■ JUNHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 124

Refinaria Gabriel Passos (Regap), e no Paraná, na Refinaria Presidente Getúlio Vargas (Repar), no município de Araucária. Posteriormente, outras refinarias também poderão produzir o novo combustível, como em Canoas, no Rio Grande do Sul, e Paulínia, em São Paulo. As duas refinarias passam agora por uma adaptação logística para recebimento e armazenamento do óleo de soja, que chegará até elas por caminhão. Essas unidades, além de estarem próximas a centros produtores de soja, possuem estações de hidrotratamento que são fundamentais para produzir o novo diesel, que levará o nome de H-Bio. "Essas estações utilizam o hidrogênio para remover moléculas de enxofre do diesel", diz Pinto Júnior. Dentro desse processo, sob severas condições de pressão e de temperatura, além da adição de outros produtos químicos que promovem a catalise (aceleram a reação química), o hidrogênio também quebra as moléculas do óleo vegetal que se transformam em óleo mineral (diesel). O processo comporta a mistura de 90% de diesel e 10% de óleo vegetal. "De cada 100 litros de óleo de soja inseridos no processo, 96 litros são transformados em óleo mineral." Sobra ainda propano (o gás liqüefeito de petróleo), que poderá também ser aproveitado, e água. Novo mercado - A soja foi escolhida pela Petrobras porque sua produção está baseada em uma cultura bem disseminada e uma agroindústria bem desenvolvida no Brasil. Esse setor também é um grande exportador, embora nos últimos anos os preços tenham caído para os produtores brasileiros, devido à queda do dólar em relação ao real e ao excesso de grãos no mercado mundial. "A previsão é de que a Petrobras consuma 10% do óleo de soja exportado atualmente, que é de 2,7 bilhões de litros", diz Pinto Júnior. A produção brasileira é de 5,6 bilhões de litros. A soja, no en-


Diesel e óleo de soja: união vai produzir o H-Bio, combustível menos poluente

tanto, é apenas uma opção, a mais fácil de ser obtida no momento. Tecnicamente outros vegetais já demonstraram boa qualidade para o refino de diesel. "Nós já fizemos testes positivos com mamona, babaçu e dendê, entre outras plantas." Menos enxofre - Uma das vantagens inovadoras do H-Bio diesel é que, com a adoção do óleo de soja, é possível eliminar de vez o enxofre existente normalmente neste combustível. Quando jogado na atmosfera, esse elemento pode se transformar em dióxido de enxofre e até em ácido sulfúrico, contribuindo para a chuva ácida. O diesel vendido no Brasil possui entre 0,20% e 0,05% de enxofre. O valor menor é distribuído nas regiões metropolitanas de maior população. Além de benefícios ambientais, o H-Bio também vai permitir uma melhor ignição. "Ele possui um índice de cetano (que é um componente do diesel) alto e isso indica uma boa qualidade de ignição", afirma Pinto Júnior. Também chamada de partida a frio, essa função, com bom desempenho, permite uma combustão de melhor qualidade e economia de combustível. Entre os benefícios econômicos está o fato de o agronegócio se tornar um fornecedor direto para a indústria petroleira, para a fase de refino. A Petrobras vai a partir de agora ficar de olho não só na cotação mundial do petróleo, mas também nos preços internacionais da soja para firmar contratos de suprimento com os produtores dessa oleaginosa. No caso do álcool da cana-de-açúcar e do biodiesel, o fornecimento acontece diretamente para a distribuidora, sem passar por refinarias. A adoção do H-Bio também aumenta a participação de biomassa na matriz energética brasileira, consolidando a posição de vanguarda da pesquisa com combustíveis renováveis no Brasil. • MARCOS DE OLIVEIRA PESQUISA FAPESP 124 ■ JUNHO DE 2006 ■ 73


f

TECNOLOGIA BIOQUÍMICA

Acura no veneno resultados de novos testes, mais específicos, para avama proteína encontrada no veneno liar qual a faixa de segurança de concentração da proda serpente urutu (Bothrops alternateína. "Esses testes são necessários porque é muito têtus) demonstrou em testes potencial nue a linha que separa o efeito desejado do efeito para atuar como cicatrizante e regenetóxico", diz Heloísa. rador de tecidos lesados, como nos casos de infarto do miocárdio. DepenFerraduras alternadas - A escolha da urutu ocorreu dendo da concentração empregada, a porque os pesquisadores queriam trabalhar com uma alternagina-C ou ALT-C, nome dado serpente tipicamente sul-americana. Além do Brasil, à toxina isolada do veneno, tanto poela é encontrada na Argentina, no Uruguai e no Parade promover como inibir a formação guai. Do mesmo gênero da jararaca (Bothrops), ela rede novos vasos sangüíneos. "São dois cebe a denominação alternatus por causa dos desenhos efeitos opostos", diz a professora Hedistribuídos pelo seu corpo, em forma de ferraduras loísa Sobreiro Selistre de Araújo, do alternadas. "A princípio só sabíamos dos efeitos decorDepartamento de Ciências Fisiológicas da Universidade rentes do envenenamento", diz o pesquisador Oscar Federal de São Carlos (UFSCar), coordenadora de um Henrique Pereira Ramos, que começou a participar da grupo que pesquisa venenos de serpente para isolamenpesquisa durante o seu mestrado e doutorado, realizato de compostos naturais e aplicações farmacêuticas. dos no Laboratório de Bioquímica e Biologia MolecuEm concentrações baixas, a proteína isolada prolar do Departamento de Ciências Fisiológicas da UFSmove a formação de novos vasos, o que torna a moléCar. Hoje ele faz o pós-doutorado no Laboratório de cula candidata ao desenvolvimento de medicamentos Biofísica e Bioquímica do Instituto Butantan. Os efeipara tratamento de patologias que resultam em uma tos após a picada da urutu são principalmente hemorvascularização inadequada, como infartos, feridas de rágicos, locais ou sistêmicos. Quando são sistêmicos, difícil cicatrização nos membros inferiores, principalpodem produzir toxicidade no rim, levando à falência mente em diabéticos, e até mesmo na disfunção erétil. renal, e hemorragia no cérebro ou nos pulmões. Em altas concentrações, ela inibe a formação de novos "Percebemos que o veneno tinha alguns compovasos, atividade interessante para os tratamentos de nentes bastante ativos", diz Ramos. Entre esses compocâncer e de metástases. Embora os dois efeitos tenham nentes estão as desintegrinas, proteínas que interagem sido verificados nos testes in vitro e in vivo com camuncom as integrinas, uma classe de moléculas de adesão dongos, os pesquisadores estão concentrando os estulocalizadas na superfície celular. Os processos adesivos dos nas atividades de regeneração de tecidos apresentaocorrem quando uma célula faz contato com a outra das pela toxina, que mostraram ser mais promissoras. ou com a matriz extracelular. EsDuas empresas da área farsas interações são fundamentais macêutica demonstraram inte0 PROJETO para diversos processos biológiresse em fazer uma parceria com cos, como diferenciação celular, a universidade para trabalhar no Utilização da alternagina-C como desenvolvimento embrionário, desenvolvimento da nova molémolécula coadjuvante no processo resposta imunológica, manutencula. O laboratório da UFSCar de formação e inibição da formação ção da estrutura celular, cicatrificará encarregado de todos os de novos vasos sangüíneos zação de ferimentos e formação testes até a etapa de ensaios préMODALIDADE de metástases. clínicos, que consiste de ensaios Programa de Apoio à Propriedade A busca por proteínas de incom animais maiores. Na fase dos Intelectual (Papi) teresse levou à toxina alternagitestes clínicos, com humanos, que na-C, uma desintegrina isolada será feita pela empresa, os pesCOORDENADORA HELOíSA SOBREIRO SELISTRE DE ARAúJO pela primeira vez pela pesquisaquisadores vão produzir e forne- UFSCar dora Dulce Helena Ferreira de cer a quantidade de proteína neSouza, que fazia seu pós-doutocessária. Antes da formalização INVESTIMENTO rado no laboratório e hoje é prodo compromisso com a universiR$ 6.000,00 (FAPESP) fessora do Departamento de dade, as empresas aguardam os 74 ■ JUNHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 124


Toxina da urutu atua como cicatrizante e na formação de vasos sangüíneos Química da UFSCar. A toxina altera o comportamento celular porque ela se liga aos receptores de superfície, no caso as integrinas, e dispara uma cascata de sinalização dentro da célula que culmina com a alteração na expressão de certos genes. Algumas proteínas que são ativadas dentro da célula e alguns genes que passam a ser mais ou menos expressos dentro das células já foram testados pela pesquisadora Márcia Regina Cominetti, da UFSCar, e identificados em relação aos efeitos cicatrizantes. Os ensaios biológicos sobre a atividade da toxina em células endoteliais de cordão umbilical foram liderados pela professora Verônica Maria Morandi da Silva, do Instituto de Biologia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). As células endoteliais formam os capilares sangüíneos e são elas que precisam se dividir para permitir o crescimento dos novos vasos. Efeito reproduzido - Estudos feitos com camundongos comprovaram o efeito da ALT-C na indução e inibição da angiogênese, processo de formação de novos vasos que ocorre naturalmente no organismo durante a cicatrização de ferimentos e a regeneração tecidual, para a restauração do fluxo sangüíneo nos tecidos lesados. Os estudos foram feitos pela pesquisadora Cristina Helena Bruno Terruggi, atualmente no Departamento de Ciências da Saúde da Universidade Municipal de São Caetano do Sul, no ABC paulista, durante parte do seu doutorado feita na Universidade Paris 13, na França. Para os testes foi utilizado um gel contendo proteínas da matriz extracelular disponível comercialmente, chamado matrigel, injetado no tecido subcutâneo abdominal dos animais com duas combinações diferentes. No grupo de animais de controle, foi incorporado ao gel o fator de crescimento de fibroblastos, células envolvidas na produção de vários tipos de fibras e que promovem a angiogênese. O grupo de animais tratados recebeu, além dessa combinação, a toxina alternagina-C em diversas concentrações. Após 14 dias, foi feito um estudo histológico para verificar a formação de novos vasos dentro do matrigel. "O efeito

observado in vivo reproduziu o que havia sido observado in vitrd\ diz Ramos. Assim comprovou-se in vivo a revascularização. A obtenção da proteína no laboratório ocorre com a passagem do veneno bruto em colunas cromatográficas, processo relativamente simples usado para separar as substâncias químicas em faixas bem definidas e com rendimento satisfatório para pequenas escalas. Para a produção em larga escala a proteína pode ser obtida pela tecnologia do DNA recombinante, estudo que está sendo feito atualmente no laboratório da UFSCar. Por essa tecnologia, o gene de interesse é colocado dentro de uma célula hospedeira, como bactérias, leveduras, células de inseto ou de mamíferos, para produzir a toxina com as propriedades biológicas originais em grande quantidade. As melhores formulações para a alternagina-C estão sendo estudadas nos laboratórios da UFSCar. Entre elas estão o microencapsulamento da proteína em lipossomas, que tem como objetivo proteger o medicamento para que possa ser entregue no local onde deve atuar, a aplicação na forma livre por meio de cateter nos casos de infarto e em forma de pomadas ou cremes para feridas superficiais. O mercado para produtos baseados na alternaginaC é bastante promissor. Até agora nenhuma outra proteína extraída de veneno de serpente e com as mesmas características estruturais da ALT-C foi descrita como molécula capaz de induzir a formação de novos vasos sangüíneos. Sem contar que no mercado farmacêutico atual existem poucas opções de medicamentos para essa finalidade. • DINORAH ERENO


O TECNOLOGIA METROLOGIA

Precisão tupiniquim Um novo relógio atômico capaz de atrasar um segundo em milhões de anos é desenvolvido no país MARCOS DE OLIVEIRA

to longo da história, o homem inventou muitos tipos de relógio para marcar a passagem do tempo. A trajetória tecnológica começou com o relógio de sol, passou pela ampulheta, pelos mecanismos de corda e pelos marcadores digitais até chegar aos modelos mais avançados e precisos que são hoje os aparelhos atômicos. Esses equipamentos funcionam com lasers e são baseados na oscilação da radiação natural de átomos de césio-133, sem ser nocivo para os seres vivos. O modelo mais recente desses relógios foi projetado e construído no Instituto de Física de São Carlos (IFSC) da Universidade de São Paulo, em São Carlos. Ele é do tipo chamado de fountain ou chafariz, nome relacionado aos movimentos sincronizados de átomos frios (resfriados), dentro do equipamento, de cima para baixo, e representa uma evolução sobre os relógios atômicos comerciais que usam átomos quentes (aquecidos) e ímãs. Apenas França, Estados Unidos, Itália, Alemanha e Inglaterra já fizeram relógios semelhantes. "A filosofia é a mesma dos pesquisadores de outros países, mas nós conseguimos configurações próprias para esse equipamento, que deverá, futuramente, servir como novo padrão de tempo e freqüência em todo o mundo", diz o professor Vanderlei Salvador Bagnato, coordenador do projeto que faz parte do Centro de Pesquisas em Óptica e Fotônica (Cepof) de São Carlos, um dos 11 centros de pesquisa, 76 • JUNHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 124


inovação e difusão financiados pela FAPESP. As conclusões e os resultados obtidos pelos pesquisadores brasileiros serão mostrados em um simpósio sobre metrologia de tempo e de freqüência do Instituto de Engenheiros Eletricistas e Eletrônicos, organização conhecida pela sigla IEEE, em Miami, nos Estados Unidos, neste mês de junho. Os relógios atômicos são marcadores de tempo que atrasam um segundo em mais de 100 milhões de anos. Um atraso que certamente não interfere no cotidiano das pessoas, como na hora de despertar, na entrada do trabalho, em compromissos variados ou em horários de partida de ônibus ou de aviões. Mas tem importância fundamental em muitas outras áreas. Eles são os responsáveis, por exemplo, pela marcação da hora mundial. Mais de 300 relógios atômicos espalhados por 50 países, inclusive o Brasil - Observatório Nacional, no Rio de Janeiro -, acertam o horário oficial de todo o planeta. Eles compõem o Tempo Universal Coordenado, UTC na sigla em inglês, baseado na chamada Hora Atômica Internacional (TAI, do francês Temps Atomic International), instituída em 1972, que substituiu a Hora Média de Greenwich (GMT em inglês) baseada na observação do Sol e das estrelas. Sincronismo óptico - Relógios atômicos são imprescindíveis nas telecomunicações. Eles controlam o tráfego das comunicações de fibras ópticas, mensuram os fluxos de dados, medem a duração das transmissões e ajudam a direcionar as ligações. Na troca de dados e de voz o sincronismo garante o bom funcionamento do sistema. Atualmente, sem um horário preciso e equivalente entre dois ou mais pontos nos sistemas de telecomunicações, corre-se o risco de erros que comprometem as ligações. Na localização geográfica via satélite, as frações de segundo também são imprescindíveis. Composto por 24 satélites que orbitam o planeta, o GPS, sigla em inglês para sistema de posicionamento global, identifica um ponto preciso no solo terrestre, facilitando a navegação de aviões, de navios, de barcos e, mais recentemente, de automóveis e jipes sofisticados. Apenas três sinais são suficientes para o receptor na terra decodificar a transmissão e informar as coordenadas (latitude, longitude e altitude). "Esses satélites emitem


sinais de microondas que são sincronizados entre si, atingem o solo e voltam. A diferença do tempo de chegada do sinal de cada satélite determina no receptor terrestre a localização pontual na superfície do planeta. A distância entre os satélites também é marcada em frações de segundo e é importante para a determinação das coordenadas. Todas essas informações de tempo vêm do relógio atômico instalado dentro dos satélites", explica Bagnato. amanho sincronismo é igualmente importante nas transações bancárias e até na prospecção de petróleo, quando é preciso medir, em frações de segundo, os sinais enviados para o interior da terra e obter o sinal de volta para ajudar na identificação da existência de óleo lá embaixo. "Também podemos utilizar o relógio atômico para aferir instrumentos de precisão que serão usados em medidas de grandezas eletrônicas e magnéticas", diz Bagnato. Em todos os exemplos, a precisão exigida é de até picossegundos, ou a fração do segundo (s) com até 11 casas (IO"11), equivalente a 1 s dividido por 1 bilhão de vezes. É essa a medição apresentada pelos relógios atômicos comerciais. Mas na área de pesquisa científica e tecnológica, em todo o mundo, busca-se maior precisão ainda. O mais avançado relógio atômico, também no sistema fountain, foi construído no Observatório de Paris, na França, e tem a precisão de 10 "16, já na casa do femtossegundo, medida que eqüivale a 1 segundo dividido por 1 quatrilhão. "Ainda não finalizamos a aferição do nosso aparelho porque estamos esperando um equipamento para completar essa medida, mas acreditamos que, pelo menos, possamos atingir IO"13, o que representa para nós uma maturidade científica e tecnológica", diz Bagnato. "Afinal, ele é o primeiro relógio fountain feito no hemisfério Sul", comemora. "Construir relógios atômicos no Brasil é fundamental para pesquisa básica e desenvolvimento de tecnologia. É importante possuir o domínio desse conhecimento. O padrão do segundo é o mais preciso que existe e serve para 78 ■ JUNHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 124

Átomos frios e aprisionados 0 funcionamento do relógio atômico fountain começa com um vapor de átomos de césio-133 resfriados e aprisionados por uma armadilha óptica de feixes de lasers, na parte de baixo do equipamento. A força da luz laser faz o grupo coeso de átomos subi até o interior de um tubo metálico que possui uma câmara (cavidade). Nesse lugar, os átomos recebem um banho de microondas de freqüência idêntica à oscilação da radiação do césio. Como eles estão frios, ocorre uma perturbação na freqüência, que corresponde ao segundo. Depois, os primeiros lasers e outros sistemas são desligados e os átomos descem e recebem feixes de outro laser, que detectam as modificações provocadas pelas microondas.

obter outras medidas como o metro", diz o físico Humberto Siqueira Brandi, diretor de metrologia científica e industrial do Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Inmetro). Ele se refere ao fato de o padrão usado para identificar o metro não ser mais uma barra de metal em um instituto europeu, como no passado. O PROJETO Relógios atômicos MODALIDADE

Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids)

COORDENADOR USP/Centro de Óptica e Fotônica (Cepof) de São Carlos VANDERLEI SALVADOR BAGNATO

INVESTIMENTO

US$ 70.000,00 por ano (FAPESP)

Ápice dos átomos Cavidade de microondas • Blindaqem magnética

Feixes de laser para aprisionamento

Nuvem de átomos frios e aprisionados

Detecção com laser

Hoje o metro é a distância percorrida pela luz no vácuo durante o intervalo de tempo de 1 s dividido por 299.792.458 partes ou metros por segundo, que é a medida exata da velocidade da luz. "Essas medidas são possíveis com os relógios atômicos e quanto mais avançados, como o chafariz, maior é a garantia de precisão", diz Brandi. Um relógio atômico mais preciso pode servir também para aferir outros similares existentes no país, assim como avaliar a precisão levando em conta a ação dos agentes externos como temperatura, umidade, vibrações e campos magnéticos. Oscilação certeira - O modelo chafariz é o segundo relógio atômico construído pela equipe liderada por Bagnato, composta atualmente pelas doutorandas Aida Bebeachibuli, com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Stella Tavares Miller, com bolsa do Conselho


Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), e o pós-doutorando Daniel Varela Magalhães, pesquisador da USP que atualmente trabalha no Observatório de Paris. O primeiro relógio foi o do tipo horizontal de feixe térmico em que átomos de césio são lançados em alta velocidade de um forno para uma câmara onde eles recebem feixes de laser infravermelho e interagem com a radiação (onda eletromagnética) de 9.192.631.770 gigahertz (GHz) produzida por um gerador de microondas. Essa mesma freqüência representa o segundo que é definido pela duração de 9.192.631.770 períodos de oscilação, entre os níveis do estado fundamental e o de mais baixa energia da radiação do átomo do césio-133. O chafariz também trabalha com energias muito precisas em radiações que oscilam em freqüência bem determinada. Ele funciona de forma vertical e semelhante ao relógio térmico, mas a precisão é maior porque ele trabalha com átomos frios e sem a velocidade dos outros tipos de relógio atômico. A função dos lasers é juntar esses átomos de césio e paralisá-los numa espécie de armadilha óptica. A força do próprio laser faz, então, o grupo coeso de átomos se elevar num tubo metálico até a uma cavidade onde ele receberá o banho de microondas com a freqüência de 9.192.631.770 gigahertz (GHz) que é a mesma da oscilação da radiação do átomo de césio-133. Ao entrarem na cavidade os átomos experimentam a freqüência e saem dali. Como eles estão frios, o patamar de energia é diferente. Essa diferença entre as duas freqüências corresponde ao segundo. O próximo passo do grupo do Cepof é desenvolver relógios compactos de átomos frios, equipamentos ainda inéditos no mundo. O nome a equipe já tem. Será o TAC (Tupiniquim Atomic Clock), ou o relógio atômico brasileiro. Eles estão desenvolvendo um relógio pequeno, do tamanho dos comerciais, que são um pouco maiores que um videocassete. Esse seria um equipamento tipo de feixe térmico. "Também estamos preparando o Super TAC, que deverá ser um relógio que não vai precisar ter reposição, de tempos em tempos, de átomos de césio como os demais", conta Bagnato. • PESQUISA FAPESP 124 ■ JUNHO DE 2006 ■ 79


HUMANIDADES

Castigo e crime Estudo da USP revela que violência recente do PCC tem raízes antigas CARLOS HAAG

enhores, São Paulo tem 140 mil presos. São 140 mil homens do PCC (Primeiro Comando da Capital) dentro da cadeia e 500 mil ou mais familiares fora. Eles estão hoje programando inclusive para fazer eleições de políticos, está certo? O PCC é forte na capital, mas ele é apoiado em todo o Brasil aonde vai. Virou realmente uma febre. Ser do PCC é um bom negócio. Muitas pessoas vão cometer o crime sem saber o que têm de fazer. Se não vai, morre." Quem afirmou isso é o diretor do Departamento de Investigações sobre o Crime Organizado (Deic), de São Paulo, Godofredo Bittencourt Filho, numa reunião reservada da CPI do Tráfico de Armas, no dia 10 de maio. No dia seguinte ao encontro fechado vários presídios estaduais iniciaram rebeliões quase simultâneas e uma onda de violência paralisou São Paulo por vários dias. "Essa crise foi de uma grande amplitude, envolvendo mais de 70 unidades penitenciárias rebeladas, o que eqüivale à metade do número de prisões sob a responsabilidade da Secretaria de Administração Penitenciária. E, mais importante, as ações do grupo ultrapassaram as muralhas do sistema prisional. Chegaram às bases policiais, às delegacias, aos ônibus, às agências bancárias. Espalharam terror não só entre policiais e outros agentes públicos, mas na população em geral. Isso é inédito", observa o sociólogo Fernando Salla, do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP e coordenador (ao lado de Marcos César Alvarez) do projeto do Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) Cons80 ■ JUNHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 124

Rebelados com faixas do PCC: ações do grupo ultrapassaram as muralhas dos presídios e atingiram a polícia e a sociedade com violência


trução das políticas de segurança pública e sentido de punição em São Paulo, financiado pela FAPESP. Um amplo painel, ainda em desenvolvimento, a pesquisa revela que a passagem do tempo não mudou tanto quanto deveria a política do Estado brasileiro no trato da segurança pública. Segundo o Cepid, as elites, desde o século 19, quiseram transformar o Brasil num país materialmente moderno, sem demonstrar grande entusiasmo pelas formas de vida democrática dos países que tomavam como modelo. Há um desencaixe entre a modernização política e institucional (inclusive do sistema de

segurança pública e da Justiça criminal) e o avanço efetivo na garantia dos direitos e na consolidação da democracia e da cidadania. As representações sobre a forma de proceder no trabalho policial, no lidar com o criminoso, foram marcadas pela possibilidade do uso da violência ilegal, do recurso à arbitrariedade, pela certeza de que sempre houve uma legitimidade nesses procedimentos e a conivência das elites, que assegurariam a impunidade a qualquer irregularidade. Inteligência - O projeto demonstra que a parte repressiva das políticas de segurança é uma face da questão, mas

não pode ser vista como solução para tudo. O mais importante seria ter um trabalho de inteligência policial e penitenciária que desarticulasse o crime organizado fora e dentro das prisões. "O mais difícil de combater o crime não é o que está no território da ilegalidade, que está na clandestinidade, mas os seus aliados que atuam e circulam na legalidade. A prisão não é uma bolha isolada da sociedade e, logo, ver os celulares como a questão central é olhar para a direção errada", alerta o pesquisador. "É bom as autoridades tirarem lições dessa experiência, pois muitos dos atos foram praticados não apenas PESQUISA FAPESP 124 • JUNHO DE 2006 ■ 81


pelos 'soldados', mas também por simpatizantes do PCC, que se queriam mostrar prontos para a facção, dispostos a correr riscos." Para o pesquisador, sem uma política consistente de enfrentamento do crime organizado, as chances de um novo levante nas prisões e um novo caos urbano não devem ser descartadas. Os resultados iniciais do projeto mostram que a crise na área de segurança é mais antiga do que se imagina. Desde os anos 1950 o sistema penitenciário vive um colapso crônico. Ao longo dos anos 1970, o autoritarismo favoreceu uma invisibilidade aos problemas mais graves do sistema e mantinha a atuação das forças policiais em sintonia com as forças de repressão política. Com a redemocratização, frustrou-se a esperança de que o novo ordenamento trouxesse novos caminhos para a área de segurança. A pesquisa revela que as autoridades até hoje não tiveram a ousadia de enfrentar problemas recorrentes, e que, afirma Salla, se manifestaram, com grande força, na crise recente: as relações entre os agentes públicos e criminalidade, nas prisões e fora delas; a fragilidade dos mecanismos de responsabilização dos agentes públicos; a interferência política no funcionamento dos órgãos policiais e prisionais, de forma a prejudicar a sua atuação; a ausência de transparência no funcionamento desses órgãos. Salla concorda com Bittencourt sobre o potencial de organização do PCC. "Está dentro das prisões, mas possui amplas conexões com atividades criminosas fora das prisões, em especial o tráfico de drogas. Impressiona a sua capacidade de manter um comando mais centralizado das ações criminosas e de mobilização de seus membros e ao mesmo tempo dispor do poder de sufocar as demais facções que aparecem no sistema prisional", analisa. Nesse sentido, segundo o sociólogo, o PCC mostra habilidade em construir identidade de grupo, em estabelecer os vínculos de pertencimento, em exercer a coerção sobre os possíveis dissidentes. O "nós", continua Salla, é constituído não apenas pelos encarcerados que passam pelas mesmas privações e hu82 ■ JUNHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 124

milhações, que precisam se ajudar para enfrentar as angústias e precariedades da prisão, mas compreende também a identificação com a situação de pobreza e desemprego vivida pelos pobres da periferia. "Vários dos líderes do PCC têm efetivamente níveis consideráveis de politização e têm clareza com relação à sua força política e identificam nas autoridades o interlocutor e o inimigo de suas disputas", avalia. "O senhor, quando fala na televisão, o senhor representa o governo; eu sou o líder do PCC, pô, então somos duas lideranças, entende?", como disse Marcola para o diretor do Deic. á uma astúcia política dos governos que não querem provocar turbulências na relação com seu aparato repressivo. Os problemas na área da segurança provocam desgaste político junto à opinião pública e os governantes tendem, para evitar exposição do setor, a se acomodar aos desmandos e arbitrariedades dos aparatos, desde que não provoquem uma exposição desfavorável dos governos, em especial na mídia", observa o pesquisador. No depoimento que vazou para o PCC, Bittencourt chega à mesma conclusão: "Houve uma época em que o governo do estado cometeu um erro, quando pegou a liderança do PCC e os bandidos mais perigosos e os redistribuiu pelo Brasil. Então isso, na realidade, acabou fazendo um acasalamento. O Comando Vermelho, por exemplo, começou a ter muito contato com o PCC, a ponto até de liberar droga no Rio para que o PCC pudesse até explorar em briga de ponto de droga". Para Salla, também a reação das polícias civil e militar foi desastrosa nos eventos recentes. "Passado o primeiro momento, em que a polícia poderia repactuar sua relação com a sociedade, aprofundar os laços de solidariedade, estreitar sua relação de confiança, o aparato repressivo deixou-se levar pelo caminho da violência que sempre semeou a desconfiança e o temor junto à população", avisa. O sociólogo observa que um dos maiores desafios é construir políticas de segurança que respeitem os direitos dos cidadãos e que não coloquem em suspensão o ordenamento legal cada

Ônibus incendiado pela facção em São Paulo: quanto maior a violência, maior a aceitação do arbítrio pela população

vez que se acha que se está vivendo um momento excepcional. O pesquisador lembra que os agentes da lei precisam agir no estrito cumprimento da lei, mas, afirma, o que se viu foi a atribuição de um estado de guerra, uma situação de exceção que justificava um enfrentamento quase ao arrepio da lei. "Foi mais uma oportunidade perdida de dar para a sociedade uma aula magistral de respeito ao Estado de direito, respondendo aos ataques criminosos não com arbitrariedade ou legalidade duvidosa, mas por meio de ações inteligentes e que demonstrassem ser a polícia moralmente superior aos atos dos bandidos." Assim, os pesquisadores vão na contramão do senso comum, que vê a manutenção de direitos civis de presos como "dar mole para bandido". Ao contrário: é justamente a incapacidade do Estado em assegurar o que está disposto em lei que provoca as fragilidades do sistema. "A pena privativa de liberdade não pode ser vista como a principal solução para a criminalidade. É preciso reduzir as pressões, hoje fortes no Brasil, para a construção de novas vagas, que são caras e geram uma população que só cresce. Reduzir essa pressão significa estimular outros mecanismos de punição, as penas alternativas." A análise histórica das políticas de segurança revelam que seria igualmente imperioso que o conjunto de entidades que gravitam em torno do sistema penitenciário (juizes, ministério público, conselhos penitenciários etc.) aumentasse sua eficiência, exercendo um monitoramento efetivo das prisões que estimule um controle democrático por todo o sistema de Justiça criminal. "Talvez essa crise possa trazer um sinal de


\

■■■■^■■■■inm

alerta para que os estados busquem a organização de seus sistemas penitenciários de forma muito mais consistente e eficiente, em que a ilegalidade no exercício do cargo seja punida", observa. Para o sociólogo, um dos fatores essenciais para compreender o crescimento das facções criminosas é a sua capacidade de envolver agentes do Estado que atuam como policiais ou que lidam com a custódia de presos. A facilitação de fugas, a conivência com a entrada de armas de fogo, drogas, celulares, dinheiro são formas pelas quais esses agentes se envolvem com as organizações e permitem que elas se desenvolvam. Já o diretor do Deic tem outras preocupações. "O PCC é hoje uma organização extremamente estruturada, que faz a sua arrecadação com cinco tesoureiros diferentes que se reportam a um responsável, que é para a polícia, na hora em que pegar, não pegar tudo." Segundo Bittencourt, Marcola teria dividido a capital em quatro áreas de influência e teria um repre-

sentante em cada uma delas, determinando tudo o que aconteceria lá. Inclusive a provocação do caos. Mas é preciso tomar cuidado com generalizações. Rotina - "Um acontecimento excepcional, quebra na rotina carcerária, faz com que um assunto pouco abordado pela mídia mereça atenção por meses. Mas como pouco se fala do cotidiano dos presídios, quando se enfatizam os acontecimentos extraordinários que são os motins, produz-se uma imagem invertida das penitenciárias, que passam a ser representadas como locais onde não há rotina, por obra das manifestações violentas dos presos. O que é excepcional assume a aparência de regra", nota a geógrafa da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Eda Maria Góes. Até mesmo porque expor a população à violência contínua demanda um preço elevado na saúde dos cidadãos. "Qual é o impacto dessa exposição a uma violência que parece nunca termi-

nar? Nessa socialização negativa, aos poucos vão se perdendo os interditos morais contra o uso da violência, vista como forma de reparar danos, de se 'fazer justiça', de se proteger contra ameaças reais ou imaginárias", avisa a pesquisadora do NEV, Nancy Cárdia. "Quanto maior a exposição à violência, menor a crença nas forças encarregadas de aplicar as leis e maior o risco de cinismo em relação às leis, e, paradoxalmente, maior a aceitação do arbítrio e da violência, contanto que aplicados contra suspeitos da prática de delitos percebidos como muito graves." Todo esse quadro levaria a um processo de isolamento, de privatização, já que as pessoas, aterrorizadas, tenderiam a se retirar do espaço público, isolando-se e construindo barreiras que, na contramão do desejado, as deixam ainda mais vulneráveis. Afinal, com apenas R$ 200, Marcola comprou o depoimento de altas autoridade atrás de portas cerradas, dentro do Congresso Nacional. • PESQUISA FAPESP 124 ■ JUNHO DE 2006 ■ 83


O HUMANIDADES ECONOMIA

encartado Crise entre Brasil e Bolívia tem mais razões geopolíticas do que econômicas

CARLOS HAAG

84 • JUNHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 124


a

em sempre a Bolívia esteve sob a influência de venezuelanos polêmicos. Simón Bolívar, por exemplo, em honra de quem o país foi batizado, queria que a nova nação fosse "uma associação de indivíduos livres e iguais, fraternos, unidos por um mesmo projeto, um mesmo contrato". Numa carta, escrita pouco antes de morrer, em 1830, o Libertador desabafou, menos entusiasta e mais realista: "Este país vai cair, inevitavelmente, nas mãos da massa desorganizada para passar, depois, para as de tiranos quase imperceptíveis, de todas as cores e raças". A "nação de iguais", hoje, quase se transformou na boutade dita, no século passado, por um diplomata espanhol: "A Bolívia é um nonsense geográfico". Miserável, despovoada, tendo perdido 53% de seu território no primeiro século de existência independente, sem saída para o mar, com quase 190 golpes

Nacionalização da Petrobras: erros do passado


de Estado em sua biografia, o sonho de Bolívar é uma colcha de retalhos de mais de 36 nações indígenas encarapitadas nos Andes em total contraponto a uma minoria branca concentrada nas regiões orientais, em especial Santa Cruz, em luta contra a sua "bolivianização". Usse país arrancou agora protestos patrióticos de brasileiros que não perdoam a ousadia do vizinho pobre que "meteu a mão" na Petrobras e no nosso gás. "Sem rodeios, estou preocupado com a deterioração da democracia nos países que você mencionou", afirmou, em entrevista recente, o presidente americano George W. Bush, referindo-se à Venezuela e à Bolívia. Curiosamente, a eleição de Evo Morales foi resultado de um desejo democrático boliviano de, enfim, conseguir um país unificado. "Antes de dirigir suas baterias contra o Brasil ou o Chile, o que ele quis foi tentar uma unidade política num Estado que é quase fictício, dividido pela questão étnica. Ele nunca teve expressividade na sociedade boliviana e seu partido, o MAS, guardadas as proporções, era um arranjo a toque de caixa como o PRN, de Fernando Collor. Evo, porém, foi eleito. Não por ser socialista, revolucionário etc, mas por ser índio", explica José Alexandre Hage, autor da tese de doutorado Bolívia, Brasil e o gás natural, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). "Hoje os 80% de índios da Bolívia podem se sentir simbolizados por um irmão que iria tentar unir a todos num bem comum, com distribuição de renda por meio da nacionalização dos hidrocarbonetos. Se vai dar certo, é 86 ■ JUNHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 124

outra história. Mas o simbolismo político da ação é de um sucesso inegável." Segundo Hage, a projeção nacional brasileira, tanto pela promoção do poder quanto pela via integrativa, sempre gerou desconfiança entre os vizinhos imediatos. "A queixa é a de que a nossa política externa trazia gravada em sua alma o comportamento de 'hegemonismo' em detrimento dos fronteiriços e sempre se temeu que o Brasil exercitasse uma 'divisão do trabalho latino-americana', em que ele exportasse produtos manufaturados e forçasse os sócios a se concentrar na exportação de produtos agrícolas e primários." E essa desconfiança não é atual. "Senores Disputados: um vecino poderoso confiado quizá em su própria fuerza pretende desconecer ai derecho, pero ei pueblo boliviano debe asumir uma defensa heróica de sus atributos." O discurso, que parece saído da boca de Morales ontem, em verdade foi feito em 1958 por um deputado boliviano contra o Brasil. Os que louvam o Barão do Rio Branco pela forma firme como lidou com o conflito de 1903 com a Bolívia se esquecem de mencionar que, à sua ação, seguiram-se décadas de saias (dança típica boliviana) justas entre as duas nações. Os bolivianos logo se deram conta de que sua geopolítica passava pela posse dos hidrocarbonetos e foram pioneiros ao criar, em 1936, a sua Petrobras, a YFPB. "O projeto desenvolvimentista de Vargas necessitava superávit de petróleo para conseguir a substituição de importações e a industrialização. Daí o tratado sobre saída e aproveitamento de petróleo boliviano, em que o ditador brasileiro se comprometia a construir uma estrada de ferro para o escoamento do petróleo boliviano", conta Hage. Depois do movimento nacionalista de 1952, em que um grupo de trabalha-

dores indígenas e camponeses estatizou minas e fez a reforma agrária, o Brasil voltou à carga. Em 1958, com os Acordos de Roboré, o governo brasileiro se comprometeu a comprar todo petróleo da Bolívia, dando emprego ao gás natural, bem como prometeu fazer o transporte por um gasoduto ligando Santa Cruz ao Sudeste do Brasil, colaborando, de quebra, com a construção de infra-estruturas proveitosas para o vizinho pobre. Assim, não é de hoje que o país investe na Bolívia a fim de manter a estabilidade política desejável para salvaguardar os nossos empreendimentos em solo boliviano. Mas a nossa diplomacia mudou, e muito. "Acho até que um certo componente ideológico pode estar presente nas negociações entre o


Soldado em frente da refinaria brasileira

governo Lula e Morales, mas não pautam as discussões. A reação do Brasil à nacionalização segue um modelo de quase 15 anos desenvolvido pelo Itamaraty que prega a integração entre os países da América Latina como forma de inserção segura do Brasil de forma a barrar o poder da Alça", analisa o pesquisador. Segundo Hage, a geopolítica nacional passou da "arrogância" anterior, em que nos víamos como líderes natos e capazes de ser contraponto aos EUA, como se pensava nos anos 1950 e 60, para uma visão de conciliação, mais moderna e "humilde". "A partir dos anos 1990, a nossa diplomacia assume a estratégia de amenizar a imagem de país subimperialista e passa a jogar suas fichas no papel de condutor de uma inte-

gração com as Américas, abrindo mão de se projetar por si mesmo", explica Hage. Antes disso, só se pensava numa cooperação entre Brasil e Argentina, como se os outros vizinhos não importassem. Collor se empenhou nisso com o Tratado de Assunção e, depois de 1994, com FHC, o governo brasileiro chegou a ponto de achar que o Mercosul era pouco: era preciso atrair a comunidade andina para o bloco integrado. O gasoduto Brasil-Bolívia, o Gasbol, embora acalentado desde os tempos de Geisel, é resultado concreto dessa nova política diplomática de simpatia pelos nossos

hermanos. Ao lado disso havia o aspecto prático. Em 1993 o físico Pinguelli Rosa e o grupo do Cop (Conferência das Partes) já alertavam para o potencial esgotamento das reservas energéticas brasileiras, antevendo uma crise de energia elétrica. Sem condições de construir rapidamente (sem falar nos altos custos) novas usinas, a solução parecia estar nas termoelétricas, que faziam o gás boliviano ainda mais atrativo em termos econômicos do que diplomáticos. Segundo Hage, de investimento menor e maior rentabilidade, eram um convite para a entrada de empresas estrangeiras. Daí, observa, a privatização de empresas como a Comgás. "Assim, há um certo oportunismo de muitos políticos e velhos diplomatas em atacar a reação do governo atual à ação da Bolívia. Pode-se gostar ou não do governo Lula, mas o que ocorreu foi o grana finale do que havia começado anos antes, durante o governo FHC. Não se pode culpar exclusivamente o governo atual, apenas lamentar que tenham mantido o mesmo modelo, calcado sobre a falácia de que a integração é a solução dos problemas do mundo globalizado", avisa o professor. "O que o governo Morales demonstra, ainda que em escala modesta, é uma característica dos países que têm nos recursos energéticos o seu maior trunfo ou vulnerabilidade. O Brasil não pode mais encarar esse problema com romantismo, apegado ao plano estratégico de inserção via integração física, o que o leva a suportar melindres dos vizinhos em nome de algo maior, a unidade sulamericana. Como já dizia Afonso Arinos, "o ato de se integrar regionalmente subentende, em princípio, que há o apego e o respeito à afirmação nacional dos países, e não o contrário". Só se integra quem não se entrega. • PESQUISA FAPESP 124 ■ JUNHO DE 2006 ■ 87


O HUMANIDADES

UA** Exposição em São Paulo mostra talento pouco conhecido do inventor

Demoiselle voando com Santos-Dumont (acima) e suas cópias na exposição (à dir.): sucesso de público

NELDSON MARCOLIN

este ano do centenário do vôo do 14-Bis, Alberto Santos-Dumont Ml é protagonista de uma exposição que mostra um lado ainda pouco conhecido do inventor genial. O artista plástico Guto Lacaz tratou de escancarar um talento do brasileiro voador que, para o olhar do artista, é óbvio. "Santos-Dumont é um dos pioneiros do design de produto", afirma Lacaz. "Ele projetou, construiu e pilotou 22 aeronaves sempre procurando o melhor desenho para conseguir o melhor desempenho de cada balão e avião." Para mostrar mais essa face de seu pioneirismo, o artista montou Santos-Dumont Designer no Museu da Casa Brasileira, em São Paulo, com reproduções de balões, aviões, hangar, desenhos e maquete da casa de Petrópolis, entre outros projetos. Todos têm a marca da ousadia do inventor. Lacaz deu vazão a um interesse que teve início ao ler Os meus balões, de San88 ■ JUNHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP124

tos-Dumont, há quase 20 anos. Como tantos brasileiros, na época o artista acreditava que o 14-Bis era sua única criação. Começou a colecionar informações e fotos de tudo o que se referia a ele. Em 1998 deu a aula inaugural de História do Design na Faculdade de Artes Plásticas da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), com o tema "Santos-Dumont designer', a convite de Adélia Borges, professora da disciplina. Foi ela quem o convidou a conceber e montar a exposição no Museu da Casa Brasileira ainda em 2003, quando assumiu a direção dessa instituição especializada em design. Lacaz tratou de providenciar uma boa retaguarda para ser fiel a Santos-Dumont. Fernando Martini Catalano, especialista em aerodinâmica e professor de engenharia mecânica da Universidade de São Paulo em São Carlos, e Henrique Lins de Barros, físico do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), do Rio de Janeiro, prestaram assessoria. Foram contratados marquetistas e a exposição se fez com o patrocínio da Aço Villares. Todo o trabalho resultou em uma aula

sobre a originalidade de Santos-Dumont - em especial quando se fica sabendo que em cada projeto feito por ele havia sempre alguma inovação tecnológica. Podia ser um leme maior, um novo formato de balão, um motor adaptado à nacela (cesta) do dirigível ou desenhos originais para um novo avião. Contribuições - Na sala central do museu há túneis de vento onde modelos em escala do 14-Bis e do Demoiselle voam literalmente. Uma Torre Eiffel estilizada com o balão n° 6 lembra o prêmio que o brasileiro ganhou ao provar a dirigibilidade dos balões, em 1901. Há outros aeronaves reproduzidas em escala e até a recriação do Campo de Bagatelle, de Paris, nos jardins do museu. Lá são realizadas demonstrações mecânicas dos vôos do 14-Bis, com modelos. Em uma das salas foi montada a maquete de um hangar com mais uma criação sua: a porta de correr, que exigia uma força muito menor para ser aberta. Outras contribuições de Santos-Dumont são um chuveiro original, na verdade, um balde furado pendurado acima da ca-


Maquete de hangar com dirigível: porta de correr foi uma das inovações do brasileiro

beca onde se misturavam a água fria e a quente, esta aquecida a álcool. A Encantada, casa do inventor construída por ele em Petrópolis, aparece detalhada em outra curiosa maquete aberta. A exposição vai até 16 de julho. Mais informações estão disponíveis em www.santosdumontdesigner.com.br Foi o interesse comum de Lacaz e Adélia que levou à exposição da obra de Santos-Dumont como um grande designer. "O conhecimento de mecânica, de tecnologia e de materiais o habilitava a materializar a solução para suas necessidades e oportunidades em objetos ou mecanismos perfeitamente originais", escreveu ela no catálogo. "Um raro senso de elegância, por sua vez, permitia a ele ir além da praticidade para se distinguir pelo apuro das formas."

"Design é solução", diz Guto Lacaz. Os novos desenhos de balões e aviões que Santos-Dumont fazia eram para resolver problemas. "Ele obtinha muito sucesso porque as soluções eram sempre muito simples e corretas." O físico Henrique Lins de Barros, um dos maiores estudiosos do aviador, confirma essa sagacidade tecnológica que levava com freqüência a projetos bem-sucedidos. "Santos-Dumont saiu do balão para o avião, o 14-Bis, sem passar pelo planador. Foi o único a conseguir", diz Barros.

Lacaz considera o 14-Bis algo excêntrico dentro da obra do inventor. Para ele, parecia esquisito imaginar o 14-Bis voando pelo "lado errado", e não como se voa hoje. "Sempre tive dúvidas se ele era realmente bonito", conta. Mas, ao ver no ar a réplica feita pelo piloto Alan Calassa, de Caldas Novas (GO), o artista não teve mais dúvida: "Fiquei convencido de que o 14-Bis voa lindamente, com suavidade". O projeto mais emblemático que reforça a idéia de que Santos-Dumont foi um pioneiro do design de produto é o Demoiselle, um ultraleve muito copiado. Ele publicou o projeto na revista Popular Mechanics em 1910 e mais de 200 unidades foram construídas por pequenas empresas ou particulares - situação ilustrada com miniaturas em formação no céu cenográfico de uma das salas da exposição -, o que o torna o primeiro avião a ser produzido em série. "É o modelo que realmente vai influenciar a aeronáutica." • PESQUISA FAPESP 124 ■ JUNHO DE 2006 ■ 89


T

HUMANIDADES EXPOSIÇÃO

Veré1 .

relativo

Mostras em São Paulo e na Suíça relembram o "ano miraculoso" de Einstein RENATA SARAIVA

ano de 2005, batizado pela International Union of Purê and Applied Physics (IUPAP) e pela ONU de o Ano Mundial da Física por marcar o centenário dos primeiros escritos sobre a Teoria da Relatividade, deixará ecos por um bom período de 2006. É que a fama e o carisma de Albert Einstein (1879-1955), o primeiro, digamos, cientista-pop da história da academia, impediram que as comemorações se encerrassem. Em Berna, cidade suíça em que o cientista de origem alemã publicou em 1905 os cinco textos notáveis que lançaram sua fama mundial - dois deles dando início à Teoria da Relatividade -, uma exposição que traça um paralelo entre a vida do físico e o desenvolvimento urbano da cidade no início do século 20 foi iniciada em abril do ano passado e está sendo prorrogada até outubro deste ano (leia mais na página 92). Bem mais perto, no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen), sediado no campus da Universidade de São Paulo (USP), a exposição Einstein e a América Latina, organizada pelo Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast), com colaboração da Sociedade Brasileira de Física (SBF), exibe documentos, objetos, textos e imagens relacionados às visitas de Einstein à América Latina em 1925 e 1930, assim como à expedição de as90 ■ JUNHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 124

trônomos ingleses à cidade de Sobral, no interior do Ceará, em 1919. Devido às excelentes condições climáticas da região, a observação do eclipse total do Sol permitiu aos cientistas comprovar a Teoria da Relatividade Geral, concluída por Einstein em 1915. "A exposição foi montada para celebrar o Ano Mundial da Física, estabelecido em função do centenário do chamado 'ano miraculoso', em que Einstein mudou o curso da história da ciência com seus cinco estudos. E resolvemos reforçar a relação entre Einstein e a América Latina", diz Alfredo Tiomno Tolmasquim, diretor do Mast e autor do livro Einstein, o viajante da Relatividade na América do Sul (Vieira&Lent). A mostra esteve em cartaz de setembro a novembro de 2005 no Mast, no Rio de Janeiro, e marca, em São Paulo, o início das comemorações do cinqüentenário do Ipen, além de uma série de atividades entre o instituto e o Mast com o objetivo de preservar e divulgar a memória da ciência brasileira.


Einstein no Rio de Janeiro visita o Jardim Botânico (à esquerda), passa por Sobral (acima) e encontra-se com o presidente Arthur Bernardes (logo acima)

Além de dados biográficos e das principais idéias científicas de Einstein, a mostra apresenta como a imprensa notificou as viagens que o cientista fez à Argentina, ao Uruguai e ao Brasil, em 1925, e ao Panamá e a Cuba, em 1930. "Quando esteve na América do Sul em 1925, Einstein já era renomado internacionalmente", explica Tolmasquim. "Assim, uma rápida observação da cobertura da imprensa já nos permite vislumbrar como ele era considerado um cientista genial por aqui. Ao mesmo tempo, principalmente no Brasil, que a tradição positivista era muito forte, houve algumas críticas à Teoria da Relatividade, que remetia à abstração e a resultados pouco práticos na ciência até então", pondera o autor. "É curioso notar que os textos não se referiam a Einstein como físico, mas como cientista. Sobretudo no Brasil, não havia o estatuto social do físico." O convite para a viagem à América Latina partiu da Argentina, país em que havia uma comunidade científica mais amadurecida em torno da física. Por isso foi em Buenos Aires, Córdoba e La Plata

que os latino-americanos tiveram as maiores oportunidades de ouvir sobre a Teoria da Relatividade. "Einstein proferiu oito palestras durante um mês na Argentina. Depois passou uma semana em Montevidéu e uma no Rio de Janeiro", conta Tolmasquim. O pai da Teoria da Relatividade mostrouse extremamente cordial durante a viagem. Porém seus diários durante a estada, aliás um dos principais documentos da exposição, revelaram posteriormente que algumas situações desagradaram o gênio. "Por exemplo, ele participou de uma reunião na Academia de Ciências da Argentina e, depois, enviou uma carta elogiosa de agradecimento aos organizadores", conta Tolmasquim. "Nos diários escreveu que achou as discussões pouco produtivas, com perguntas e observações muito fracas por parte dos participantes." Trópicos - Além disso, o diretor do Mast enfatiza que os diários de Einstein revelam um desgaste no decorrer de sua visita à América Latina. "Percebese muito rapidamente que ele não se sentia bem no calor dos trópicos. Também viajava sozinho e sentia-se isolado. Tanto que, em determinado ponto, quando descreve o navio em que viajava entre Montevidéu e Rio, tem-se a impressão de que não agüentava mais", relata o pesquisador. Nem por isso Einstein deixou de ser poético em sua visita ao Brasil. Em 1925, a expedição inglesa que comprovara a Teoria da Relatividade no interior do Ceará em 1919 já era mundialmente famosa e, claro, tivera grande repercussão junto à imprensa brasileira. "Quando Einstein chegou ao país, o médico Aloísio de Castro expressou o quanto a população brasileira era orgulhosa da expedição a Sobral", conta Tolmasquim. Gentilmente, Einstein respondeu: "A idéia que minha mente concebeu foi comprovada pelo ensolarado céu do Brasil". A expedição de 1919 sem dúvida colaborou para a consolidação da fama de Einstein no efusivo começo de século 20, em que os meios de comunicação contribuíram muito para a propagação da Teoria da Relatividade. "Durante muito tempo, Einstein se dedicava a analisar o possível desvio de um feixe de luz ao passar próximo a uma grande PESQUISA FAPESP 124 ■ JUNHO DE 2006 ■ 91


O pai da Teoria da Relatividade e os sábios brasileiros no Observatório Nacional

massa, como o Sol. Em 1915, com sua Teoria da Relatividade Geral, ele previu o desvio da luz, causado pela deformação do espaço e do tempo nas proximidades da matéria", conta o pesquisador. "Einstein também concluiu que a teoria poderia ser testada durante um eclipse total do Sol: se estivesse certo, estrelas que, naquele momento, se encontrassem quase atrás do astro poderiam ser vistas, já que a sua luz seria desviada", explica. Duas regiões geográficas foram escolhidas para a comprovação da Teoria da Relatividade: Sobral e Ilha do Príncipe, na costa africana. Esses locais, segundo cálculos astronômicos e meteorológicos, tinham as condições mais favoráveis à observação do fenômeno. As duas expedições foram organizadas sob a liderança do inglês Frank Dyson, mas somente a brasileira teve resultados conclusivos, já que o clima africano no dia do eclipse dificultou a observação. "O Observatório Nacional também participou da expedição e deu suporte à comissão inglesa, mas seu interesse estava concentrado em outros aspectos do eclipse", diz Tolmasquim. Segundo o pesquisador, a visita de Einstein aos trópicos não mudou a realidade da ciência na região. Porém contribuiu muito para a divulgação das novas idéias científicas no período. "Einstein mostrou-se também um bom observador do ponto de vista etnográfico. Ao saber dos trabalhos do Marechal Rondon junto às comunidades indígenas brasileiras, chegou a escrever ao comitê do Nobel para sugerir uma possível indicação de Rondon ao Prêmio Nobel da Paz", conta Tolmasquim. A carta em nada resultou, mas sem dúvida mostrou mais uma faceta da incrível sensibilidade científica e humana de Einstein. 92 ■ JUNHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 124

Einstein e a cidade: criações mútuas Luiz

ROBERTO ALVES*

ma sintaxe poderosa legitimou a história, o conhecimento, aprece e o fluxo articulado da introspecção. O futuro possui sua gramática específica!' George Steiner

A cidade de Berna não deixou por menos. Sobre o ingresso à exposição do seu filho adotivo ilustre, Albert Einstein, fez imprimir a fórmula inesquecível: E = me2. Massa e energia tanto para entender a teoria do seu cidadão de 1905 quanto para a prática da gestão urbana daquele tempo. No museu da cidade, às margens do gelado Aare, a mostra iniciada em 15 de abril de 2005 está sendo prorrogada até outubro, na certeza de público e divulgação crescentes. A capital suíça não somente se sente no direito de juntar documentos fundamentais sobre e do físico-politécnico e jovem trabalhador da seção municipal de propriedade intelectual como explicita uma importante referência urbana, isto é, seus cidadãos e cidadãs, ilustres


ou não, inventam-se e se reinventam na dinâmica urbana. Do mesmo modo, poderiam estagnar-se na cidade esquecida e desgovernada. A vida e a obra de Einstein, primorosamente abertas para o olhar, as mãos e o coração em seu movimento de imagens, se mesclam à urbanidade bernesa em torno do annus mirabilis de 1905. No mesmo andar do museu em que se detalha a sua vida de estudante, amigo e amante, um amplo painel de mulheres trabalhadoras e suas crianças na Berna de fins do século 19 sinaliza as transformações urbanas. Einstein vive na cidade em mutação. Nela elabora textos básicos sobre a Teoria da Relatividade Restrita e prepara os movimentos do espírito inquieto que levam a Berlim, ao Nobel de 1922 e ao polêmico retiro americano. A sociedade multicultural de cem anos atrás, dotada de educação liberal e estímulo ao saber e ao trabalho, revive-se na memória do físico humanista. A recente exposição espalha pelos jardins e por vários andares do edifício localizado na Helvetiaplaz equipamentos, material documental e geringonças para a invenção e a imaginação das pessoas, principalmente crianças e adolescentes. Do mesmo modo faz ver que o jovem estudante que busca o primeiro emprego em Berna o faz porque acredita na cidade. Entre 1890 e 1910 Berna passa de 48 para 117 mil habitantes. Constrói pontes, organiza projetos habitacionais, amplia a educação pública e inova no binômio ciência-tecnologia. O próprio museu da cidade foi construído entre 1892 e 1894. Costuma-se dizer que nessa época o jovem Estado helvético atraiu muitos intelectuais do norte e muitos trabalhadores braçais do sul. Na interseção desses atores sociais definiu sua dinâmica urbana. A exposição sugere que não se esqueça do modo classista de organização da cidade, visto que apresenta o salário de Einsten e o compara ao dos trabalhadores braçais. O jovem cientista ganhava 3.500 francos por mês, enquanto um casal de trabalhadores da construção civil recebia, conjuntamente, bem menos de 2 mil. Anota-se em curiosa descrição que para comprar 1 quilo de açúcar Einsten trabalhava 17 minutos; do seu lado, o casal de trabalhadores despendia 38 minutos de sua força de trabalho para adquirir o açúcar. Portanto, as questões de física e o jogo do tempo-espaço devem ter muito a ver com o açúcar de cada dia, que tem a ver com o duro trabalho humano. Como sabemos, no início do século 20 o jovem Albert Einstein dava pareceres na Prefeitura local sobre propostas de estabelecimento de patentes de invenções no campo da física. Naquele tempo era casado com a cientista Mileva Maric'. Embora reservado e de amizades limitadas, em torno da mesa de salsicha, chá, queijo e frutas reunia a pequena galera de aficionados por física, música e filosofia. O grupo, denominado Academia Olímpia, a par de noites inteiras de divagações,

chegou a construir um potenciômetro, consta que jamais usado. De fato, a Suíça de Einstein vem de estabelecerse como Estado moderno a partir da Constituição federativa de 1874. A apologia em torno da suposta neutralidade faz esquecer efetivos valores da confederação no quadro europeu do tempo: espaço intercultural, com educação diferenciada, formas plurais de religiosidade e capacidade de atração de inovações. Por isso, a família Einstein se move de Ulm, Alemanha, onde nasceu - 1879 - o menino que a mãe considerava muito grande e desajeitado, para Munique, depois Itália e Aarau, Suíça. Albert, tido como problemático e questionador na escola católica de Munique, por vezes pouco brilhante na ótica da escola rígida e conteudista, sofre insucesso na primeira tentativa, mas entra para o famoso Instituto Politécnico de Zurique em 1896. Seguem-se outros tropeços na tentativa de ser professor. Cidadão suíço, torna-se técnico e daí ajuda decisivamente a recriar o nosso mundo físico e político. exposição enche os olhos das crianças, adolescentes e adultos, pois cria relações entre as teorias e o cotidiano do cidadão. Uma mostra para as famílias da cidade. Na qual a cidade também é sujeito histórico. O que se vê na inteireza da mostra é o cenário da cidade transfigurada em memória e fenômenos do cotidiano. A vida do cientista, do trabalhador, do cidadão, que cruzava a ponte de Kirchenfeld a pé e seguia para o trabalho, que gastava 18 minutos de tempo para levar à casa o quilo de açúcar, que usou o dinheiro do Prêmio Nobel para comprar algumas casas em Zurique e providenciar o pagamento mensal aos filhos que teve com Mileva. Que se formou humanista na observação do perigoso quadro europeu que rumava para as duas guerras. Que assumiu a integridade política da fama e afirmou com todas as letras o seu horror à construção crescente da violência. Que imortalizou discursos sobre a igualdade de direitos e oportunidades, a par da proteção econômica das pessoas. Einstein, na ótica de Berna, reinventa-se na cidade modernizada. Entre luz, velocidade, tempo-espaço, filosofia e música o cientista patrocinou o que de algum modo Walter Benjamin queria dizer com a habitação da cidade em nós. Os frutos do habitar e ser habitado somente podem servir ao mundo na medida em que se ajustam ao destino do que é local, do que é político, polis. A partir daí poderemos discutir e questionar a globalização. •

* Luiz Roberto Alves é professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) e atualmente pesquisador visitante na Universidade de Florença, com o apoio do CNPq. PESQUISA FAPESP 124 ■ JUNHO DE 2006 ■ 93


Resenha

O homem é o lobo do homem Gilberto Dupas alerta para a desumanização da tecnologia CARLOS HAAG

0 mito do progresso Gilberto Dupas

ara definir a pe(jilbertq Dupas quenez de Richard Wagner, Nietzsche usou a imagem do "humano, demasiado humano". Hoje é preciso repensar a diatribe como uma nova virtude: o humano nunca é demasiado e os tempos modernos, de conquistas e progresso científico e tecnológico, embotaram a sensibilidade do homem, a ponto de ele deixar para trás a priorização do que é sua melhor (e pior) característica: justamente a sua humanidade. "Apesar de todo o encantamento das conquistas que se nos apresentam como possíveis para o novo século, as preocupações com as graves eventuais conseqüências das direções em marcha ainda estão em fase de gestão dialética", escreve Gilberto Dupas em seu mais novo livro, O mito do progresso, um erudito e fascinante percurso de alerta sobre o entusiasmo acrítico que ainda mantemos sobre a visão baconiana da conquista da natureza. "Saber é poder", dizia Bacon, indicando que a ciência tinha condições ilimitadas de gerar alternativas positivas para que os homens pudessem melhorar seu universo pessoal e sua condição social. Mas será que estamos pensando certo? "Caso contrário, parece claro que podemos dar um passo largo em direção a um quadro civilizatório que pode significar uma ruptura de humanidade com suas responsabilidades de auto-sobrevivência enquanto cultura e espécie", observa Dupas. Para ele, o progresso do discurso das elites, do neoliberalismo, não passaria de um mito renovado por um aparelho ideológico que nos quer convencer de que a história tem um destino certo e 94 ■ JUNHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 124

sempre para melhor. Engana-se quem pensa ser o autor um retrógrado contrário à ciência. O dilema do progresso não pede uma paralisação da ciência e da tecnologia, apenas um novo modelo de lidar com essas conquistas, de forma que elas sirvam ao bem comum, e não a poucos, ao mercado. Para tanto, Dupas pede "apenas" cidadãos vigilantes e críticos, não consumidores fascinados. Tarefa que parece árdua, mas passa pelo mais objetivo dos crivos: a escola e seus professores, que teriam de educar, e não só informar. Sem isso, estamos condenados a um vazio ético, uma sociedade nas mãos das regras de mercado, em que os valores são econômicos. Nesse mundo, humano é demasiado humano e o valor da vida geral e o bem-estar de todos são secundários diante do prazer do consumo, da absorção direta de todas as conquistas científicas, seja o novo tênis, seja os transgênicos. Tudo é válido se for economicamente viável. Dupas deseja o retorno de uma macroética, de uma ética da responsabilidade, nos moldes do pensador alemão Hans Jonas, em que é preciso pensar o presente ao mesmo tempo que se olha para o futuro para construir um universo saudável para todos. "Aja de modo que os efeitos de sua ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida autenticamente humana sobre a Terra; de modo que sua ação não comprometa a possibilidade futura de tal vida", observa Jonas, fazendo eco no belo estudo de Dupas, um libelo denso e bem-escrito sobre o que nos espera se não formos capazes de exercer a nossa crítica.

Editora Unesp 312 páginas R$ 35,00


Livros

A desintegração americana

Cuba: uma nova história

Paul Krugman Editora Record 546 páginas, R$ 62,90

Richard Gott Jorge Zahar Editor 427 páginas, R$ 49,90

CUBA | UM* NOVA HISTORIA]

O economista americano Paul Krugman é um comentarista respeitável e sua visão de como se deu a implosão da bolha econômica americana é de grande lucidez. Krugman avalia o efeito dos escândalos corporativos, comenta a crise energética na Califórnia, revela por que Bush lutou tanto para ir guerrear no Iraque e fala da conspiração dos falcões da direita.

Num momento em que se fala tanto na retomada do populismo na América Latina, com ecos castristas, o livro do historiador britânico traz boas pistas sobre como foi a evolução do país que ainda permanece uma das poucas ditaduras comunistas. Para Gott, não se pode entender a Revolução Cubana sem se repensar a identidade nacional do país, forjada sobre desigualdade e problemas racias.

Editora Record (21) 2585-2000 www.editorarecord.com.br

Jorge Zahar Editor (21) 2240-0226 www.zahar.com.br

Navegação nos séculos XVII e XVIII Rumo: Brasil

O sagrado selvagem Roger Bastide Companhia das Letras 275 páginas, R$ 42,00

Uma coletânea de artigos e ensaios do sociólogo francês Roger Bastide (1898-1974), em que ele discute sobre Deus e a revolução até a paixão humana inevitável pelo sagrado, passando ainda pela mitologia moderna, em que Marx é convidado a participar de uma curiosa digressão sobre a multiplicação dos mitos na modernidade, ao contrário do que se esperava. Sem um olhar preconceituoso eurocentrista, Bastide analisa manifestações sagradas de várias culturas de forma crítica. Companhia das Letras (11) 3707-3500 www.companhiadasletras.com.br

Lucy Maffei Hutter Edusp 403 páginas, R$ 68,00

A historiadora da USP traz um livro fascinante sobre as dificuldades enfrentadas pelos navegadores para chegar ao Brasil por meio de seus problemas técnicos e econômicos. São relatos de portugueses, holandeses, espanhóis, ingleses e franceses, sempre extraídos de fontes originais, que dão um panorama intenso de como era a preparação, a navegação e o cotidiano desses marinheiros. Edusp (11) 3091-4008 www.edusp.com.br

As estratégias sensíveis: afeto, mídia e política

Perfis brasileiros Boris Eausto, Evaldo Cabral de Mello, Isabel Lustosa, Alberto da Costa e Silva Companhia das Letras vários preços

^^

Muniz Sodré Editora Vozes, 232 páginas, R$ 39,00

A coleção traz, em formato agradável e tamanho ideal, biografias de grandes personagens da história nacional escritas por intelectuais de peso como Boris Fausto, que assina Getúlio Vargas, Isabel Lustosa, autora de D. Pedro I, Alberto da Costa e Silva, biógrafo de Castro Alves, e o historiador pernambucano Evaldo Cabral de Mello, que traz uma esperada biografia de Maurício de Nassau.

O novo livro de Muniz Sodré reúne ^^™^^^^ artigos sobre temas aparentemente díspares, mas que o autor, com sabedoria, sabe reunir sobre a tríade afeto, mídia e política, tendo como interlocutores Baudrillard, Bobbio, Rorty, Deleuze, Vattimo. Seja analisando a presença do celular na nossa vida e de que maneira ele nos permite falar à vontade, fotografar e, ao mesmo tempo, mandar matar de um presídio, seja falando de Lula, Sodré é boa leitura.

Companhia das Letras (11) 3707-3500 www.companhiadasletras.com.br

Editora Vozes (024) 2233-9000 www.vozes.com.br PESQUISA FAPESP 124 ■ JUNHO DE 2006 ■ 95


O escavador do futuro Diário de bordo de um trombonista (1977-2042)

MANU MALTEZ

ão Paulo, 15 de março de 2041 - O Homem mal pisou em Marte. A cantora ia além dos quartos de tom e os auto-afinadores em milésimos de segundo já faziam daqueles uivos dós ou dós sustenidos: não há mais constrangimento; assim será a missa de meu enterro? Ando por aí: Jedai aposentado empunhando espectros de som, ouvindo minha consciência como um estudo de trombone. No tronco, ainda um formigueiro: vou carregando minhas células: umas vivas, outras mortas. Valerão alguma coisa? Já se dispensa o sêmen em pó, meus netos são coisas do passado: instantâneos. Miles Davis finalmente foi clonado, mas parece que já não se fazem mais ouvidos como antigamente, o menino permanece chorando diante das câmeras. O Homem mal dormiu na Lua e os cientistas da Terra anunciam que os ratos do Ibirapuera aprenderam a imitar sabiás. São Paulo, 20 de março de 2041 - Encontrada uma gruta no morro do Cantagalo, Rio de Janeiro, na qual é possível escutar sambas inéditos do início do século 20. As vozes daquele povo que habitava as encostas desbarrancadas na eternidade ricocheteiam. Acústica: a orquestra mais fenomenal que habita o cérebro de um surdo. Tudo aquilo que Alguém deixou de me dizer. Essas coisas que ficam ressoando. Essas coisas que tiram o sono. São duas da manhã e a luz do sol já me chega assim queimando pelas fibras ópticas. A tarde caindo sobre o Japão. Jogo o jato de luz sobre a antena do vizinho ao lado: são uns olhos que brilham: uma coruja saberá amanhecer? Itaim, 23 de março de 2041 - Compus um quinteto de sopros sobre um velho tema: um choro azul que batizei de Celacanto. Fizemos sua estréia naquele velho supermercado. Num determinado momento a polícia apareceu: está proibido o consumo do peixe abissal. Motivo: alergia nos andróides superiores. São Paulo, 24 de março de 2041 - Mais uma peça: agora um duo de violino e trombone, Nosferatu me 96 ■ JUNHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 124

pareceu o nome mais apropriado. Acho que perdi o senso, peguei o jeito: viver nessa penumbra em ininterrupto alumbramento: para nunca mais fazer distinção: entre um enterro e um nascimento, entre um segundo e um milênio: entre o gás carbônico e o oxigênio. São Paulo, 25 de março de 2041 - Este novo diafragma que me arrumaram está de vento em popa. Me sinto um elefante africano, sol acima da quarta linha suplementar da clave de sol. E todo ele feito a partir de mim, eu e minha célula-tronco: nós estamos realmente destinados à originalidade: cresceu durante três meses no aquário à base de hormônios e um ou outro mosquito que caía na superfície. São Paulo, 28 de março de 2041 - Este rosto: cada vinco é um vínculo desfeito. Este rosto, este espelho. Este espelho, este vínculo. Este rosto, este vinco. Esses cacos. Hoje meu filho me matriculou num curso de como refazer poemas. Recomendaram-me nanocápsulas de farinha de pulmão bovino, fingi que engoli e guardei no bolso. São Paulo, 29 de março de 2041 - Esta tarde desfizeram o último poema. Agora só falta domesticarem os espelhos. São Paulo, 31 de março de 2041 - A mais antiga serpente: estavam à cata de seu fóssil. Um grande valor em prêmio para quem encontrasse. Um homem chegou carregando a coluna vertebral de uma mulher. São Paulo, 32 de março de 2041 - Os "anjos" apareceram pela primeira vez naquela manhã de agosto. Deus já havia lhes dado de tudo, mas eles queriam mais; mais bondade, mais inocência, mais gratidão. Então Deus arrancou suas asas e desses buracos foram nascendo essas mãos. São Paulo, 33 de março de 2041 - Fui renovar minha carteira de identidade e minha impressão digital já tinha mudado novamente. Uns dizem que é por causa de nossa comida, outros, que seria devido à nos-


sa água. Penso que estamos cada vez mais parecidos com nossos pensamentos. São Paulo, 1o de abril de 2041 - Não percebo mais certos harmônicos da minha voz, mas eles estão lá, eu sei: como tubarões num mar negro, se devorando. Fiz uma peça eletroacústica usando apenas harmônicos que não consigo mais escutar (segundo meu último exame). Uma elegia à Beethoven, uma coleção de cascas de cigarra dos verões rachados. Também não ouço mais aplausos. Campos Elíseos, 13 de maio de 2042 - "Na dieta destes animais, a ferrugem é indispensável." Dizia o apresentador da Discovery, enquanto nós em meio aos passantes. Concordei, mas por via das dúvidas saí de férias. Itatiba, 18 de maio de 2042 - Estradas de terra vermelha: já mastiguei muito tijolo, já senti o gosto do meu sangue. A gente pegando na mão esta terra morna que eles estão trazendo agora do planeta vizinho: parece que foi ontem que eu andava de Vinhedo até Itatiba sem pisar num asfalto, parece que o futuro é como o passado, só que uma oitava abaixo; e bota vibrato nisso. Vinhedo, 21 de maio de 2042 - Eucaliptos: árvores de aço - postes de osso. Ouço suas folhagens: quando essas árvores pegam a andar de madrugada, vê-se bem que elas não são daqui. Espécies invasoras: olhamos com furiosa saudade das estrelas. São Paulo, 7 de junho de 2042 - "Depois que o último prédio for demolido, o minhocão se libertará e todos poderão comprovar sua beleza." Tocamos ontem na posse do prefeito: no repertório, a Re-encarnação da primavera. São Paulo, 2 julho de 2042 - Um menino, quando envelhece, escreve estas coisas. São as águas de Marte. Chegam assim: em pílulas com gosto de lágrima. Dizem que é bom para as rugas: 150 anos de vida e haja poesia. O trombone ainda vibrando em serpen-

tes de pensamento: memória ou saudade? Consciência ou paciência? ... Prefiro andar através dos campos gravitacionais. São Paulo, 4 agosto de 2042 - Minhas escavações aqui no quintal prosseguem: o cóccix de uma preguiça gigante ou o crânio da cachorra Graúna? Uma lasca de machado de sílex ou aquele dente escurecido do Jucá? Sigo escavando. São Paulo, noite de 37 de agosto de 2042 - O furacão não passou por aqui. Mesmo com toda essa parafernália, os metereologistas são uns astrólogos. Que pena, já tinha estendido aquelas roupas que você nunca veio buscar, já tinha me amarrado na antena uma pena... São Paulo, 38 de agosto de 2042 - Através dos sonhos, que agora são registrados e podemos revê-los na manhã seguinte nas telas tridimensionais, percebi que você me tinha. Paralisei o sonho num determinado momento em que sorriu dentro de mim e agora se evaporam minhas dúvidas. Por isso te mando aí uma cópia pra que vejas com seus próprios olhos humanos de gente feminina que a terra não agüenta mais comer, que não canso de tanto olhar. Igreja do Sumaré, tarde de 38 de agosto de 2042 -

Uma vela para Heitor, outra para Bela e mais uma para Igor. Estes amavam realmente os trombonistas. São Paulo, 39 de agosto de 2042 - Doa-se um trombone. Espaço sideral...

— Fui. — O primeiro que ler este diário, por favor, cuide dos "anjos" trancados no armário.

nasceu em 1977, é músico, compositor e desenhista. Está lançando seu primeiro CD, As neves do Kilimanjaro. MANUMALTEZ

PESQUISA FAPESP 124 ■ JUNHO DE 2006 ■ 97


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.