O lado médico da Cannabis

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PESQUISA RESPONDE

tos repressivos ou investigati-

tos sociais como também para

vos para o seu desmantelamen-

ONGs, e também têm chegado

to. São os crimes do colarinho-

aos meios de comunicação,

branco, as fraudes financeiras.

como uma forma de conscienti-

• Ernani Cardoso

Se olharmos para as pessoas

zação e de sensibilidade em re-

- Por que os pingüins não con-

que estão cometendo esses cri-

lação a esses problemas.

gelam? E o que se deve fazer ao encontrar um pingüim na praia?

mes, veremos que são porta-

27.05.06

doras de escolaridade às vezes muito superior a qualquer ou-

NOTA

• Valéria Flora Radel,

tro tipo de criminoso. Dentro

17.06.06

do Centro de Biologia Marinha

das prisões, e isso é sabido, há

da USP em São Sebastião

uma parcela da população que,

• Apresentadora

- O pingüim tem uma série de

em geral, pertence às camadas

-Relógio do sol, ampulheta, apa-

proteções para não congelar.

pobres. Mas essa camada pobre

relhos de corda e marcadores di-

Sua temperatura interna é alta.

vem se escolarizando cada vez

Além disso, ele passa uma pro-

mais. Há pouco tempo conver-

teção nas penas: pega com o

sei com vários presos e percebi

bico uma substância gordurosa

que os com mais escolaridade

ção do trabalhador rural. Portan-

gem do tempo. E o modelo mais

numa glândula perto da cauda

têm acesso maior às informa-

to, a própria realidade que está

avançado e preciso a que se con-

e encera todas as penas. Esse

ções da sociedade. Têm muito

situada no meu contexto seria

seguiu chegar é o dos aparelhos

gesto o isola do ambiente exter-

mais noção dos seus direitos,

para mim, enquanto socióloga,

atômicos. O modelo mais recen-

no. O pingüim vive em bandos

das injustiças sociais e de quem

um verdadeiro laboratório de

te de relógio atômico acaba de

muito grandes . Quando sai da

são os responsáveis pela si-

pesquisa. A importância dessas

ser projetado e construído no

água, e essa está fria, ele já co-

tuação de crise. Enfim, há hoje

pesquisas não é somente para o

Instituto de Física de São Carlos

meu e vai para a terra se esquen-

um nível, por assim dizer, muito

meio acadêmico. Tenho preocu-

da USP. O professor Vanderlei

gitais. Ao longo da história o hoTrabalhador rural: exploração

mem já inventou muitos tipos de relógio para marcar a passa-

tar pertinho de outro pingüim.

maior de conscientização da si-

pação de fazer com que esses

Bagnato, coordenador do pro-

Por isso, quando alguém encon-

tuação política e social por par-

estudos possam contribuir para

jeto, conta que a estrutura de

tra um pingüim sozinho na praia,

te dos presos. Isso se manifes-

as transformações sociais que

construção é a mesma de outros

deve colocar pertinho delegar-

tou nos episódios de violência

são necessárias. Vejo, por exem-

países que possuem o aparelho,

rafas de água quente. Esse cui-

em São Paulo. Os presos sabem

plo, uma situação de explora-

mas foram conseguidas novas

dado evita que ele morra de frio.

quem são as autoridades peni-

ção muito grande, sobretudo

configurações. Apenas França,

ENTREVISTA 27.05.06 • Comentarista

Muitas pessoas se espantaram com o grau de organização dos ataques do PCC a São Paulo em 15 de maio passado. Há uma relação direta entre criminalidade e nível formal da educação?

tenciárias, quem é o governa-

nesse momento, em relação

Estados Unidos, Itália e Alema-

dor. Isso é um dado novo.

aos trabalhadores rurais, aos

nha possuem relógios semelhan-

chamados cortadores de cana

tes. A versão nacional é o primei-

PROFISSÃO PESQUISA 17.06.06

que são empregados nas usi-

ro do tipo Fountain na América

nas. Nesse sentido 1 os meus es-

do Sul . Esses marcadores de

tudos têm tido uma validade

tempo atrasam um segundo em

não somente para os movimen-

mais de 100 milhões de anos.

• Maria Aparecida de Moraes Silva, socióloga do Departamento de Geografia Humana e Regional da Faculdade de Ciências e Tecnologia de Presidente

• Fernando Sal la, sociólogo

Prudente, da Unesp, e

do Núcleo de Estudos

pesquisadora visitante da USP

da Violência da USP

- Pesquisar sobre a realidade

- Não. A gente não pode se es-

do trabalhador rural é algo que

quecer de que há uma série de

está ligado sobretudo às mi-

crimes cometidos por pessoas

nhas origens. Eu nasci no mun-

muito bem posicionadas na so-

do rural, e essa afinidade com a

ciedade, com altíssimo grau de

temática advém, portanto, da

escolaridade. Só que esses cri-

minha própria história de vida.

mes nem sempre têm visibili-

Resido no interior, tenho ao meu

dade e nem sempre são alvo de

redor uma situação que eu con-

fortes investimentos dos apara-

sidero gritante, que é a condi-

Relógio atômico: atrasa 1 segundo em 100 milhões de anos


POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

26 BIOSSEGURANÇA Ação de promotores e ambientalistas provoca crise na CTNBio

30 POLÍTICAS PÚBLICAS Novo sistema avalia e previne impacto ambiental em parques

CIÊNCIA

42 BIOLOGIA CELULAR Mecanismo de transmissão de bactéria entre insetos auxilia pesquisa de células-tronco e tratamento de doenças tropicais

54 ECOLOGIA A superfície de uma única folha pode abrigar mais de 600 espécies de bactérias

56 ZOOLOGIA Cidade de São Paulo abriga 433 espécies de animais silvestres, de sabiás a bugios

58 PALEONTOLOGIA Há 15 milhões de anos, planícies alagáveis ocuparam um terço da América do Sul e abrigaram uma fauna mais rica que a da Amazônia

TECNOLOGIA

72 METALURGIA Pequena empresa produz pós metálicos especiais para a fabrica ção de filtros industriais

78 QUÍMICA Alimentação animal monitorada por cápsula ingerida diariamente traz benefícios para as criações

HUMANIDADES

76 EDUCAÇÃO Escolas e prefeituras adotam softwares para crianças com dificuldade de aprendizagem

86 HISTÓRIA Estudar os antigos gladiadores ajuda a entender a sociedade atual

90 ECONOMIA País asiático pode tomar lugar que o Brasil guardava para si no mundo globalizado

SEÇÕES

46

CARTAS . . ...... . .......•.... 6

VIROLOGIA

9 MEMÓRIA ............•••.. . 10 ESTRATÉGIAS ... .. .. ........ 20 LABORATÓRIO . . ......• . .... 32 SCIELO NOTÍCIAS ............ 62

Cresce o papel do homem na prevenção de um tipo de câncer comum entre mulheres

IMAGEM DO MÊS .......... ... 8 CARTA DA EDITORA ..... .. ... .

LINHA DE PRODUÇÃO .. . .. . .. 64

50 NUTRIÇÃO Análise de unhas mostra como a alimentação pode variar

4 • JULHO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 125

RESENHA .... .............. 94

95 FICÇÃO ..........••........ 96

LIVROS . . ... .. .............

CLASSIFI CADOS .....•....... 98 Capa: ilustração Héli o de Almeida-Mayumi Okuyama sobre foto de John William Banaga/Getty lmages


l~=============================================================================w=w=w=.=re=v=i=st=a=p=e=s=qu=i=s=a=.f=ap=e=s=p=.b=r

O antropólogo Emilio Moran, da Universidade de Indiana, fala das inevitáveis mudanças ambientais globais e da adaptação dos homens a elas

36 CAPA Extraído da maconha, canabidiol age contra ansiedade e out ros distúrbios mentais

68

80

GENÉTICA

CIÊNCIA POLÍTICA

Cana geneticamente modificada tem propriedade inseticida apenas quando atacada por inseto

Apesar do desejo de alguns, PT e PSDB parecem destinados a seguir caminhos separados


c a r ta s@f a pes p. br

a escola brasileira morre de medo de livros como esse. lo

E M ELO NI N ASSAR

Editora de Literatura Infantil e Juvenil Editora Mercuryo Jovem São Paulo, SP

Avaliação Fiquei aborrecido ao ler na reportagem "Publicar não é tudo" de

(considerava-se, portanto, cerca de 30 vezes menos importante para a ciência que seus colegas de primeira classe). Einstein, por estar, na opinião de Landau, muito acima dos outros, foi colocado na "classe meia". Só no fim de sua vida Landau sentiu-se digno de se considerar um físico de segunda classe. Todos sabemos, no entanto, que Landau foi, no mínimo, um físico de primeira classe, e poucos hesitariam em dar-lhe um 0,7 em sua própria escala.

J. RI CARDO G. M E Riscos da cesárea Acompanho todos os finais de semana o programa Pesquisa Brasil na Rádio Eldorado AMe também a revista Pesquisa FAPESP- não assiduamente- pelo site. Em junho, a revista tratou dos perigos da cesariana ("Escolha errada'; edição 124) . Por coincidência, editamos um dos únicos livros para crianças que tratam de parto natural (e nesse caso parto domiciliar com a ajuda da parteira e de toda família), de Naoli Vinaver, uma parteira mexicana bem conhecida no meio. Editamos Nasce um bebê... Naturalmente (trilíngüe: português, inglês e espanhol) em novembro, por ocasião da II Conferência Internacional sobre Humanização do Parto e Nascimento, sob a coordenação da ReHuna, Rede de Humanização do Nascimento, que aconteceu no Riocentro no ano passado. No encontro estiveram presentes as maiores autoridades internacionais e nacionais no assunto (Marsden Wagner, Michel Odent, Lesley Page, Elisabeth Davis, Jan Tritten, Naoli Vinaver, Mario Merialdi, Martha Gonzales, Soo Donne, Chris Mccourt, Laura Uplinger) e todos, sem exceção, fizeram muitos elogios ao Nasce um bebê... , pois esse tema ainda é tabu no Brasil. Tanto que fizemos uma edição pequena e vendemos metade dela no congresso. O restante da edição está em nossos depósitos, pois 6 • JULHO DE 2006 • PESQU ISA FAPESP 125

DONÇA

São Paulo, SP EMPRESA QUE APÓIA A PESQUISA BRASILEIRA

Sebastião Witter Excelente a entrevista com José Sebastião Witter ("Uma vida na sala de aula", edição 124). Parabéns! GISLE E G AMA

Petrolina, PE

t'

NOVARTIS Trop Net.org

Pesquisa FAPESP (edição 124) uma inverdade acerca do brilhante físico russo Lev Davidovich Landau. Em sua escala para classificar os físicos a que se refere o artigo, Landau colocava em uma classe superior os físicos que, segundo ele, seriam dez vezes mais importantes para a ciência que aqueles na classe imediatamente abaixo, em uma escala que ia de 1 a 5. Assim, um físico "de primeira classe" seria dez vezes mais importante para a ciência que um físico "de segunda classe", cem vezes mais importante que um físico "de terceira classe" e assim por diante. Nesse esquema, Landau colocou Bohr, Heisenberg e Dirac na primeira classe, enquanto colocou a si mesmo na "segunda classe e meia"

Pesquisa Brasil Com relação à seção Pesquisa Responde, publicada no anúncio sobre o programa de rádio Pesquisa Brasil (edição 124), não contesto a informação de Cesar Ades, do Instituto de Psicologia da USP, quando ele explica por que as pessoas têm pavor de piolho. Mas minha resposta seria: porque piolho é indício de sujeira, como vários outros animais que seriam prejudiciais à saúde humana. Raízes históricas nos dizem que, desde sempre, a falta de higiene representou um perigo para os homens e nem há necessidade de apontar exemplos. Não há que comparar o horror ao piolho àquele atribuído a cães - que podem atacar o homem e transmitir moléstias - e aranhas animais peçonhentas. Nada a ver, portanto, com o piolho, exceto se um pesquisador esclarecer que ele é responsável por alguma moléstia pelo simples fato de estar presente em con-


tato com o homem. Esses, me parece, são os esclarecimentos que faltaram. FLÁVIA DE C ASTRO LI MA

São Carlos, SP

Revista

.:NIU#I

=:.=.=--·-·-

Peiijüisa FAPESP

.

. ~ Tenho agora a oportunidade de fazer um contato com a revista Pesquisa FAPESP, pelo boletim do novo site, para expressar minha admiração como sua leitora há alguns anos e, sobretudo, avaliar sua qualidade e ocaráter científico, os quais a revista alcançou em sua trajetória histórica. A cada número que recebo, mais reafirmo o excelente trabalho editorial dos artigos selecionados, atualizados tematicamente e artisticamente apresentados, em favor da satisfação plena do seu leitor. Parabenizo a vocês todos, esperando sempre ter em mãos a revista Pesquisa FAPESP. MARIA JOSÉ P ALO

Vinhedo, SP

Correções Na reportagem "Precisão tupiniquim" (edição 124) o nome correto da pesquisadora identificada como Stella Tavares Miller é Stella Torres Muller. Na nota "Chips mais eficientes" (edição 124) a palavra inglesa silicon (silício ) foi traduzida erroneamente como silicone. Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fa pesp.br, pelo fax OU 3838- 41 81

As reportagens de Pesquisa FAPESP retratam a construção do conhecimento que será fundamental para o desenvolvimento do país. Acompanhe essa evolução.

• Números atrasados Preço atual de ca pa da revista acrescido do va lor de pastagem. Tel. (11) 3038 -1438

• Assinaturas, renovação e mudança de endereço Ligue: (11) 3038-1434 Mande um fax: (11) 3038-1418 Ou envie um e- mail: fapesp @teletarget.com .br

• Opiniões ou sugestões Envie cartas para a redação de Pesquisa FAPESP Rua Pio XI, 1.500 São Paulo, SP 05468-901 pelo fa x (11 ) 3838-4181 ou pelo e-mail : carta s@fapesp.br

• Site da revista No endereço eletrônico www.revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP na íntegra e um arquivo com todas as edições da revista, incluindo os suplementos especiais. No site também estão disponíveis as reportagens em ing lês e espanhol.

• Para anunciar Ligue para: (11 ) 3838-4008

ou para a rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP, CEP 05 468-901. As carta s poderão ser resumidas por motivo de espaço e clarez a.

PESQUISA FAPESP 125 • JULHO DE 2006 • 7


Refúgio dos pássaros Um sítio arqueológico encontrado no mês passado em Veio, perto de Roma, abriga algumas das mais antigas pinturas da história da civilização ocidental. Trata-se da tumba funerária de um príncipe etrusco decorada com desenhos de aves migratórias e leões, datados do século 7 a.C. Antes deste achado, as pinturas etruscas mais antigas, situadas em Tarquínia, na Toscana, datavam do século 6 a.C. A tumba, localizada num campo de trigo, havia sido pilhada recentemente. Os arqueólogos a encontraram com a ajuda de um saqueador de antiguidades que serviu de informante.

8 • JULHO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 125


Carta

da Editora

Pesquisa CARLOS VOGT PRESIDENTE

Sob o signo da mudança

MARCOS MACARI VICE-PRESIDENTE CONSELHO SUPERIOR CARLOS VOGT. CELSO LAFER, GIOVANNI GUIDO CERRI, HERMANN WEVER, HORÁCIO LAFER PIVA, JOSÉ ARANA VARELA, JOSÉ TADEU JORGE, MARCOS MACARI, SEDI HtRANO, SUELY VILELA SAMPAIO, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO

MARILUCE MOURA

- DIRETORA

DE REDAçãO

CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO RICARDO RENZO BRENTANI DIRETOR PRESIDENTE CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ DIRETOR CIENTÍFICO JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER DIRETOR ADMINISTRATIVO

PESQUISA FAPESP CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADOR CIENTÍFICO). CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTÔNIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J, DE CAMARGO ENGLER, LUIZ EUGÊNIO ARAÚJO DE MORAES MELLO, PAULA MONTERO, RICARDO RENZO BRENTANI, WAGNER DO AMARAL, WALTER COLLI DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA EDITOR CHEFE NELDSON MARCOLIN EDITORA SÊNIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS DIRETOR DE ARTE HÉLIO DE ALMEIDA EDITORES EXECUTIVOS CARLOS FIORAVANTI (CIÊNCIA), CARLOS HAAG (HUMANIDADES), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA) EDITORES ESPECIAIS FABRfclO MARQUES, MARCOS PIVETTA (EDIÇÃO ON-LINE), RICARDO ZORZETTO EDITORA ASSISTENTE DINORAH ERENO REVISÃO MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO CHEFES DE ARTE JOSÉ ROBERTO MEDDA, MAYUMI OKUYAMA ARTE FINAL LILIAN QUEIROZ FOTÓGRAFOS EDUARDO CÉSAR. MIGUEL BOYAYAN SECRETARIA DA REDAÇÃO ANDRESSA MATIAS TEL: (II) 3838-4201 COLABORADORES ANA LIMA, ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS), BRAZ. EDUARDO GERAOUE (ON-LINE), ELISA FRANÇA, ERNANE GUIMARÃES NETO, FRANCISCO BICUDO, GONÇALO JÚNIOR, JAIME PRADES, LAURABEATRIZ, LAURA TEIXEIRA, MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO, MARIA GUIMARÃES, SANDRO CASTELLI, THIAGO ROMERO (ON-LINE) E YURI VASCONCELOS COORDENAÇÃO DE MARKETING E PROJETOS ESPECIAIS CLAUDIA IZIOUE (COORDENADORA) TEL (11) 3838-4272 PAULA ILIADIS (ASSISTENTE) TEL: (11) 3838-4008 e-matl: publicidatfe@fapesp.br ASSINATURAS TELETARGET TEL. (11) 3038-1434 - FAX: (11) 30381418 e-mail: fapesp@teletarget.com.br IMPRESSÃO PLURAL EDITORA E GRÁFICA TIRAGEM: 35.700 EXEMPLARES DISTRIBUIÇÃO DINAP CIRCULAÇÃO E ATENDIMENTO AO JORNALEIRO LMSX (11) 3865-4949 FAPESP RUA PIO XI, N° 1.500, CEP 05468-901 ALTO DA LAPA - SÃO PAULO - SP

Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAPESP t PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESOUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO SECRETARIA DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA, DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E TURISMO GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

As vezes, bons remédios para delicados problemas de saúde humana surgem de fontes inesperadas e até um tanto surpreendentes. Essa é uma entre outras conclusões possíveis da leitura da reportagem de capa desta edição de Pesquisa FAPESP. Como relata a partir da página 36 o editor de ciência, Carlos Fioravanti, pesquisas na Universidade de São Paulo (USP) acabam de demonstrar que o canabidiol, uma das substâncias mais abundantes da maconha, é capaz de deter a ansiedade de modo equivalente a alguns medicamentos sintéticos utilizados há décadas. Aparentemente, ele pode também reduzir a depressão. Outros estudos da mesma universidade trazem evidências preliminares de que o canabidiol funciona também como antipsicótico e é capaz de tornar mais leves sintomas dramáticos da esquizofrenia. Outras pesquisas já haviam indicado alguma eficácia da mesma substância contra leucemia, epilepsia e doenças neurodegenerativas, como o mal de Alzheimer. Ora, considerando tudo isso, é irrecusável a idéia de que a maconha - normalmente tratada apenas como uma droga cujo consumo contínuo pode ter efeitos físicos e psicológicos perniciosos - se apresenta como campo vastíssimo e promissor de um ramo da pesquisa científica comprometido acima de tudo com a saúde e o bem-estar dos seres humanos - o de fármacos. E a julgar pelos resultados que têm saído recentemente dos laboratórios das universidades brasileiras e de alguns de seus melhores institutos de pesquisa, trata-se de um campo em que o país parece destinado a avançar

rapidamente, seja valendo-se de plantas, de substâncias em que tem considerável know-how acumulado, como o veneno de serpentes, ou talvez mesmo de moléculas sintéticas. Do reino vegetal, aliás, saem outras boas notícias desta edição. Por exemplo, o desenvolvimento de uma canade-açúcar geneticamente modificada que, quando atacada pela broca-dacana - e só aí -, funciona como um verdadeiro inseticida, segundo o relato da editora assistente de tecnologia, Dinorah Ereno, a partir da página 68. A broca, uma das principais pragas da cultura da cana, é um inseto que penetra no interior da planta e aí vai cavando galerias internas por onde escoa boa parte do investimento dos produtores. Contra isso, genes promotores entraram na engenharia dessa nova planta com notável capacidade de defesa contra os hóspedes indesejáveis. Vale a pena destacar também nesta edição a entrevista do antropólogo Emílio Moran, a partir da página 14, na qual ele fala de forma notavelmente viva das profundas transformações sociais que estão em gestação neste mundo em que vivemos, em decorrência das mudanças climáticas globais já em curso. Manejadas com mestria, as palavras de Moran, como dizemos na abertura da entrevista, são capazes de capturar a atenção mesmo do mais cético dos antiambientalistas para esse tema das mudanças climáticas, cada vez menos vistas como apenas aborrecidas para quem não é especialista. Vale a pena conferir. PESQUISA FAPESP 125 ■ JULHO DE 2006 • 9


emoria

Movido a paixões José Leite Lopes, morto aos 87 anos, deixa vasto leque de realizações

NELDSON MARCOLIN

os 68 anos, em 1986, o físico José Leite Lopes recebeu uma homenagem da Universidade Federal de Pernambuco e, ao agradecer, fez um discurso cujo título resumia sua vida e suas paixões, "Pernambuco, ciência e cultura". Os amigos dizem que o estado natal era uma referência constante, não importava se estivesse em Princeton, Paris, Cidade do México ou Rio de Janeiro. A ciência foi amor à primeira vista, cultivada desde sempre e exercida no mais alto nível. A cultura foi conseqüência de uma vida passada entre homens e mulheres de espírito e algo que ele se empenhou em disseminar onde quer que estivesse. Ao morrer aos 87 anos na manhã de 12 de junho em razão de falência múltipla de órgãos, o físico deixou uma obra científica consistente e um vasto leque de realizações institucionais. A carreira de Leite Lopes começou a despontar ainda no Recife, onde nasceu, durante seu curso de química industrial na Escola de Engenharia de Pernambuco, concluído em 1939. Influenciado pelo professor Luiz Freire, decidiu estudar física na Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi) da Universidade do Brasil, atual Universidade 10 ■ JULHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 125

Acima, Leite Lopes explica predição do bóson neutro em 1958. Ao lado, em foto mais recente


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N* Em 1945, com Pauli (centro) e Joseph Jauch (à direita) comemorando o Nobel de Física ganho naquele ano

Com os amigos Celso Furtado (centro) e Luiz Hildebrando Pereira da Silva (esquerda), em Paris, abril de 1992: lembranças do exílio

Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).Eml942,já formado, começou a trabalhar no Instituto de Biofísica a convite de Carlos Chagas Filho. Mas só por alguns meses, até se transferir, com a ajuda de Chagas, para o estimulante ambiente criado pelo físico ucraniano naturalizado italiano Gleb Wataghin em São Paulo. Na Universidade de São Paulo (USP) se reuniam talentos como Mário Schenberg, Marcello Damy de Souza Santos, César Lattes, Paulus Aulus

Pompéia, Oscar Sala e Roberto Salmeron, entre tantos outros. "Todos vinham para esse ambiente criado por Wataghin. Veio o Lattes, veio muita gente e foram se produzindo coisas novas", contou para Pesquisa FAPESP em entrevista publicada em novembro de 2000 (edição 59). Lopes era filho de José Ferreira Lopes e Beatriz Coelho Leite. O pai era dono de uma loja de ferragens no Recife. A mãe morreu três dias depois de seu nascimento

atingida pela gripe espanhola, o que levou Leite Lopes e os irmãos Arlindo e Abelardo a serem criados pela avó paterna, Claudina. Quase todos os cursos que o físico fez foram bancados por bolsas conseguidas em indústrias e fundações do Brasil e do exterior - algo importante, dada a falta de recursos da família. Em 1944, Lopes conseguiu mais uma delas, dessa vez do governo norte-americano, e foi para a Universidade de Princeton concluir a pós-graduação iniciada na

USP. Lá assistiu a seminários de alguns dos maiores cientistas da época, como Albert Einstein, o matemático suíço Joseph Maria Jauch e o físico austríaco Wolfgang Pauli (Nobel de 1945), um dos fundadores da mecânica quântica. Dois anos depois doutorou-se sob a orientação do próprio Pauli e, na volta ao Rio, foi nomeado professor de física teórica na FNFi. Foi nesse período que Leite Lopes se deslocou para o centro da política científica brasileira - e lá permaneceu por várias décadas, sem abandonar a pesquisa e as aulas. Em 1947 e 1948, César Lattes ganhou notoriedade com descobertas sobre o méson pi feitas em colaboração com físicos da Inglaterra, da Itália e dos Estados Unidos. Lattes já pensava em criar um centro de pesquisa em física no Rio e contava com o apoio entusiasmado de Lopes, amigo e interlocutor freqüente. Em 1949 os dois ajudaram, com outros pesquisadores, a fundar o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), com o auxílio de João Alberto Lins e Barros, um dos líderes da Revolução de 30 e, naquele momento, ministro do Itamaraty. Participaram também da articulação para criação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em 1951. Nos anos seguintes, Lopes continuou trabalhando e publicando. Em 1953, influenciado pelo artista plástico Adolfo Soares, começou a pintar. Embora não tivesse religião, as catedrais e igrejas barrocas exerciam grande

PESQUISA FAPESP 125 • JULHO DE 2006 ■ 11


fascínio sobre ele e estão presentes em muitas de suas telas. Em 1956 passou uma temporada no Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech), nos Estados Unidos, onde ficou até 1957. Nesse período, morreu Carmita, sua primeira mulher, com quem teve dois filhos, José Sérgio e Sylvio Ricardo. No ano seguinte, já no Brasil, publicou seus trabalhos mais importantes. Na entrevista de 2000 à Pesquisa FAPESP, o cientista explicou qual de suas descobertas ele considerava mais significativa: "Fiz um trabalho em 1958 em que propus uma relação entre o bóson e o fóton, e a partir daí uma igualdade entre a interação fraca e a constante eletromagnética que é dada pela carga do elétron. Quando fiz essa hipótese, obtive o valor da massa dos bósons w+ e w-, na ordem de 60 massas do próton. Isso foi novidade, e o C. N. Yang [físico chinês da Universidade de Princeton, Nobel de 1957] não acreditou. Ele achava que a massa do bóson seria apenas um pouco superior à do próton. Propus no mesmo trabalho a existência de um bóson neutro, que hoje se chama Z0 (z-zero), que se devia buscar na interação de elétrons com nêutrons". Esse bóson neutro predito por Lopes só foi descoberto na década de 1980. "Mas pouca gente tinha lido meu trabalho, embora tivesse sido editado na Nuclear Physics, uma publicação importante", disse Lopes. Um de seus ideais era a disseminação de um forte ensino de física na América Latina. Em 1959 fundou com Marcos Moshinsky, do México,

Com Mário Schenberg (acima), físico e crítico de arte, e César Lattes, um dos mais antigos companheiros de lutas

e Juan José Giambiagi, da Argentina, a Escola Latino-Americana de Física, com atividades anuais, por rotação, nos três países. Também coordenou a comissão de conselheiros convidados para estruturar a física na futura Universidade de Brasília, que começaria a funcionar em 1962, embora não tenha trabalhado lá. Com o golpe militar de 1964, Lopes aceitou o convite para ser professor visitante na Faculdade de Ciências de Orsay, em Paris. Voltou em 1967 para organizar o novo

12 ■ JULHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 125

Instituto de Física da UFRJ. A tranqüilidade não durou muito: em 1969 foi um dos cassados pelo Ato Institucional n° 5. Com sua segunda mulher, Maria Laura, e a filha Ângela, partiu para a Universidade Carnegie Mellon, em Pittsburgh, nos Estados Unidos. Nos anos seguintes deu aulas na Universidade Louis Pasteur, em Estrasburgo, na França, na Universidade Central da Venezuela e no México. Em 1974, foi abolida uma velha lei que proibia estrangeiros de se tornarem professores titulares em

universidades francesas. A nova lei foi assinada pelo presidente Giscard d'Estaing meses antes do fim do contrato de Lopes como professor associado e a Universidade Louis Pasteur pediu sua promoção a professor titular com contrato permanente. Ocupou a vice-diretoria do Centro de Pesquisas Nucleares, órgão do Centro Nacional de Pesquisa Científica francês (CNRS, na sigla original), onde ficou até 1978. Só voltou de vez ao Brasil em 1986 convidado pelo então ministro da Ciência e Tecnologia, Renato Archer, para dirigir a mesma instituição que ajudou a fundar, o CBPF. Leite Lopes escreveu 22 livros, mais de 80 artigos científicos e uma centena de textos sobre educação e política científica. "A força que ele tinha para fazer política científica vinha de sua capacidade como cientista", atesta Amélia Hamburger, pesquisadora do Instituto de Física da USP com trabalhos em história da ciência. Amigo de Lopes por 60


Leite Lopes: o poliedro e o albatroz AMOS TROPER*

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I

V

Girassol, (44 x 36 Sem título, 1979 (46 x 38 cm)

Leite Lopes é uma figura poliéirica, multifacetada. Físico teórico dos mais brilhantes de sua geração, é também um grande professor que através de seus livros influenciou toda uma geração de cientistas. Tem sido, ademais, ao longo de sua vida, agitador cultural e político, combatendo o bom combate visando à implantação de um ambiente de pesquisa científica no Brasil - chave para sua verdadeira emancipação nacional. Leite Lopes é um apóstolo do homem total concebido no Iluminismo, interligando o trabalho científico, político e artístico numa atividade coerente e unificada. A sua pintura não é um simples pendant de sua atividade científica; antes, se constitui numa parceira entre arte e ciência, visando exaltar a civilização e a vida, bradando contra a "desespiritualização" moderna e a morte. A pintura de Leite Lopes possui essencialmente dois leitmotiven - as jangadas e as catedrais que se interpenetram - a refletirem experiências fundamentais de sua vida: a sua infância e adolescência passadas no Recife e o seu exílio na maturidade em Estrasburgo. Nos seus trabalhos abstratos, as cores vivas refletem a luz firme do Recife, notando-se aí uma furtiva lembrança da fase parisiense de seu conterrâneo Cícero Dias.

Madona, 1954 (55 x 46 cm)

Não se pense que seus quadros se bastam a exibir um colorismo fácil e superficial. No cadinho da impaciência e do desespero, pelo fracasso da sonhada Utopia, Leite Lopes forja uma Obra em que se insinuam maravilhas e mistérios do mundo dos vivos, vistos das alturas como por um albatroz baudelairiano.

* AMOS TROPER é pesquisador do CBPF. O texto consta do catálogo da exposição Construção e desconstrução: o mundo cósmico de Leite Lopes, realizada na Academia Brasileira de Ciências, no Rio de Janeiro, em 2003.

anos, o também físico Roberto Salmeron ressalta a influência exercida por ele sobre a física brasileira. "Entre os físicos de minha geração foi um dos que desempenharam papel extremamente importante, incontestável, no desenvolvimento de nossa física, ainda incipiente quando iniciamos nossas carreiras", testemunha. De acordo com Salmeron, sua influência se fez sentir em vários aspectos. Como professor, ministrava excelentes cursos e escreveu bons livros didáticos. "Alguns foram os primeiros sobre física moderna escritos em português." Foi também um bom orientador de jovens em início de carreira e como animador de programas de ensino e de pesquisa. "No início das atividades do CBPF, teve papel fundamental no convite a eminentes físicos estrangeiros para passarem temporadas no Brasil e no intercâmbio do instituto com físicos de outros estados brasileiros", conta. Outro amigo de Lopes, Francisco Caruso, pesquisador do CBPF e editor de José Leite Lopes, idéias e paixões (Editora CBPF, 1999), guardou uma imagem mais pessoal do físico. Em texto publicado na Folha de S.Paulo, Caruso escreveu: "Se devesse defini-lo com apenas um adjetivo, escolheria apaixonado. Sua paixão era transcendente; ultrapassava em muito as fronteiras da ciência, espalhando-se pela educação, pela cultura, pela arte e, por que não dizer, pelas mulheres e pela vida. Foi essa paixão que sempre nutriu seu intelecto vivaz e contagiante". PESQUISA FAPESP125 ■ JULHO DE 2006 ■ 13


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Um mundo em mudança FABRíCIO MARQUES E MARILUCE MOURA

uando fala sobre mudanças climáticas globais, o antropólogo Emilio Moran parece capaz i^B^^^^B de capturar a atenção até mesmo do mais cético dos antiambientalistas. Talvez porque, em ■S vez de se deter só em números ^11^ seja de espécies animais e vegetais em processo de extinção, seja de graus Celsius a mais ou a menos na temperatura da Terra ou referentes a volumes de determinados gases da atmosfera -, ele ordene palavras com mestria suficiente para levar o ouvinte a vislumbrar, quase tocar, mundos futuros. São cenários às vezes assustadores que se deixam entrever por entre suas frases, outras vezes menos, mas que carregam sempre aquele quê de desconforto inerente às mudanças inevitáveis, em especial às grandes mudanças. Cubano naturalizado americano, Moran foi um dos primeiros pesquisadores a lançar um olhar de cientista social sobre o debate do aquecimento global, por muito tempo confinado ao âmbito da meteorologia. Diretor do Centro Antropológico para Treinamento e Pesquisa em Mudanças Ambientais Globais da Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, ele sugere que a melhor forma de sensibilizar as pessoas para o perigo real dessas mudanças e, assim, provocar transformações em seu comportamento tradicional é estudar a dimensão humana do fenômeno, tornando cada vez mais interdisciplinar a pesquisa neste campo. Em conferência realizada no auditório da FAPESP, em dia 8 de junho passado, Moran mostrou que é pouco produtivo o debate sobre o aumento médio da temperatura no planeta. O importante não é a elevação média de 3 ou 4 14 ■ JULHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 125

graus nos próximos 90 anos, mas as mudanças extremas, na forma de enchentes, nevascas e ondas de calor, que deverão varrer o planeta com mais freqüência. Outro exemplo de seu olhar agudo: a idéia de que a ocupação humana da Amazônia é a vilã do desmatamento não se sustenta. Isso porque a população da região está concentrada nas cidades e o que se vê nos campos devastados é a pecuária extensiva. Por que a floresta arde? Porque vigora um círculo vicioso no qual pequenos produtores devastam para ter terra de graça, lançam-se à pecuária e esperam alguns anos até a terra valorizarse, para então vendê-la a grandes proprietários. Um estudioso do Brasil, Moran graduou-se em Literatura Brasileira e fez pós-graduação em Antropologia, nos Estados Unidos. Em 1971 soube por um professor e grande conhecedor de América Latina, Charles Wagley, que algo importante estava acontecendo no Brasil a abertura de uma estrada que rasgaria a maior floresta tropical do planeta. Durante um ano e meio acompanhou o nascimento da ocupação humana na Transamazônica. Nos anos 1990 deu uma guinada na carreira. Seu campo de pesquisa atual combina métodos de sensoriamento remoto com trabalhos de campo na Amazônia. Autor de diversos livros sobre a região, participa do Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia (LBA), coordenado pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Seu interesse pelo país é mais do que acadêmico. Um de seus sonhos é mudar-se, um dia, para o Brasil, especialmente o Rio de Janeiro. "Sonho em português", diz ele, que deixou Cuba aos 14 anos de idade. A seguir, os principais trechos da entrevista que concedeu a Pesquisa FAPESP:



■ Eu começaria por lhe perguntar o seguinte: como apresentar ao público os problemas ligados às mudanças climáticas globais sem que o assunto pareça irremediavelmente aborrecido, de interesse só para especialistas? Como colocar no debate uma dimensão mais claramente humana, social, capaz de sensibilizar a sociedade para esse tema? — Eu acho que o ponto de partida tem que ser falar sobre como o clima afeta e sempre afetou a vida de todas as pessoas. Quando alguém sai pela manhã, ao chegar à porta já tem que enfrentar o clima. Pode estar chovendo ou não, pode estar quente ou frio. E de saída isso influi no modo como a pessoa se veste, na escolha sobre sair ou não sair naquele dia. Hoje fala-se muito no aquecimento global, mas em termos de mudança climática global não é isso, na verdade, o mais importante. Porque esse aquecimento global tem uma média muito baixa, espera-se um aumento na temperatura de poucos graus, 3,4 ou 5 graus nos próximos 90 anos. E isso nos piores cenários do IPCC [sigla de Painel Internacional de Mudanças Climáticas, no original inglês]. ■ E o que então é o mais importante? — São as mudanças extremas de clima, que com certeza vamos ter e que vão resultar em diferentes experiências para as pessoas. Em qualquer lugar no mundo, numa área específica, a alteração pode ser de 10 ou 15 graus, para cima ou para baixo. As mudanças já estão em curso. Sabemos, por exemplo, que El Nino ocorre agora com mais freqüência. Antes aparecia a cada 20 anos, coisa assim, agora esse intervalo já baixou quase para cinco anos e algumas pessoas falam no fenômeno se apresentando a intervalos de três a quatro anos daqui a pouco. Em diferentes partes do mundo, como a Amazônia e outras áreas tropicais, vai ter seca com mais freqüência, mais fogo descontrolado... Em outras áreas, como o Rio Grande do Sul, vai ter mais chuva devastadora... Então as médias não traduzem o problema. Lembro de uma discussão com uma climatóloga em Belém do Pará. Relatei que os colonos falaram que já dava para ver, após 20 anos de desmatamento, uma queda na precipitação. E ela me respondeu: "Não é verdade". Aí fomos procurar essa informação no arquivo e deu para ver que, na média dos anos, a chuva até tinha aumentado, mas nos dados diários ficava muito claro que ocorrera uma grande mudança - antes não tinha um mês com menos de 100 milímetros de chuva e agora, com freqüência, por dois, três, quatro meses observava-se 16 ■ JULHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 125

quase zero de chuva. No ano tinha-se quase 100 milímetros mais, só que havia mais chuva do que antes na época chuvosa e quase nada no período seco.

depressão econômica que acabou com essas fazendas. As pessoas as abandonaram e os governos começaram a pegá-las para criar reservas florestais.

■ Ou seja, havia uma irregularidade muito maior na distribuição das chuvas. — Exato. O que afeta a agricultura seriamente. E essas divergências de precipitação pluviométrica vão aumentar. No mundo inteiro. E em diferentes partes do país de forma diferente.

■ Ou seja, nesse momento houve um certo reflorestamento. — É. No final do século 19 a área de florestas baixou até 6% do que havia originalmente e no momento está em 24% em Indiana, e tem outros estados em que ela já é 40% do original, na região de Nova York.

■ Mas quais são efetivamente os grandes vilões dessas mudanças globais que se verificam? — Bom, tem uma série de gases que são emitidos, aquecem a atmosfera e criam esse aquecimento. O dióxido de carbono é o principal, mas tem também o metano, que vem dos fertilizantes, por exemplo, e outros - mas esses são os principais. Tem o problema na camada de ozônio, agora mais ou menos estabilizado...

■ Seguindo nessa perspectiva histórica, o desmatamento se intensifica na América do Sul e na América Central, já na segunda metade do século 20, não é isso? — Exatamente. Tudo começa com a expansão econômica mundial promovida por economias como a dos Estados Unidos, quando se intensifica a industrialização, mudam os padrões da agricultura, que se mecaniza sempre mais, e passa-se a usar mais combustíveis fósseis na produção de energia. O mundo inteiro entrou numa fase de crescimento econômico rápido, mas um crescimento que favorecia uns e desfavorecia outros.

■ E que atividades humanas estão mais vinculadas às emissões que provocam essas mudanças climáticas globais? — A principal, em nível global, é o uso de combustíveis fósseis, sem dúvida nenhuma. Há, claro, uma variação de país para país. No Brasil, a contribuição do desmatamento é enorme, não sei exatamente a proporção, mas é quase igual ou maior do que a emissão dos combustíveis fósseis. Toda essa história, no entanto, com seus vilões, começou ainda na Idade Média, com a agricultura na Europa, com os monastérios e os padres nos monastérios desmaiando áreas para agricultura. A Europa toda foi desmatada. ■ E logo se chegava à destruição das florestas européias. — Em mil anos acabaram com as florestas da Europa. Delas restaram só poucas manchinhas originais. Depois foi a fase de destruição das florestas dos Estados Unidos, no século 19. Em Indiana, onde moro, eram 94% floresta, e em um século isso baixou para 6%. Foi a mesma coisa em Ohio, Pensilvânia, Nova York... O pessoal chegou, colonizou, desmatou tudo, deixou só umas manchinhas onde era mais difícil o acesso. Isso continuou para a frente. No final do século 19, houve uma certa parada econômica na agricultura, uma transição para a atividade industrial, as cidades começaram a absorver gente liberada pela lavoura, e as fazendas que não eram muito bem manejadas, muito econômicas, com boa produção, começaram a falir. Nos anos 1930 entrou em cena a grande

■ Os problemas de desmatamento no Brasil na verdade começam pela Mata Atlântica... — Que já quase já acabou também, não é? Está na mesma faixa de 6%, 5%... ■ O desmatamento da Floresta Amazônica é um problema mais recente. Antes dele, como se encaixa nesse raciocínio mais global a questão das florestas tropicais africanas e a questão das florestas da Ásia? — Bom, as florestas africanas e as da Ásia quase já acabaram também. E a grande preocupação de muitas pessoas que trabalharam naquela área e a conhecem bem, como uma colega minha que trabalhou por quase 20 anos em Sarawak, Indonésia, e agora mudou para a Amazônia, é que as companhias da Malásia, que são os grandes madeireiros que acabaram com a floresta lá, estão indo para a Amazônia. E se eles entrarem sem controle de governo, sem limites, áreas de proteção ambiental bem protegidas, pode acontecer no Brasil a mesma coisa que na Ásia, porque essas companhias são devastadoras. Elas acabaram com a floresta, em Sarawak, até em áreas de difícil acesso. Isso é preocupante. ■ E o que se pode fazer para evitar sua ação daninha? — Tem uma teoria, muito usada agora em alguns círculos, segundo a qual, se um lugar que tem muita floresta se torna acessí-


dade, com seu valor em termos de proteção climática, proteção das águas... a água é o provável objeto de uma grande crise futura, e isso é uma possibilidade para o Brasil e a Amazônia. Essa é uma coisa que tem que ser mais bem estudada, para que se possa manejar melhor e ganhar mais dinheiro com os recursos da Amazônia. Com a devastação se desperdiça a maior parte de seus recursos.

As mudanças do clima serão extremas. Em áreas específicas, a temperatura poderá oscilar até 15 graus, para cima ou para baixo

vel, a população humana irá atrás dele para usar esse recurso florestal. O governo é o principal ator nessa cena. Ele incentiva o acesso a uma área antes inacessível de floresta para incorporar sua riqueza à riqueza nacional. No caso do Brasil, criaram-se estradas com a intenção de integrar a Amazônia ao resto do país, e esse movimento foi seguido por madeireiros, por empresas da área de minério, enfim, houve uma frente de colonização, depois acompanhada por outras ondas econômicas. Mas o objetivo principal foi dar acesso e criar condições para as pessoas penetrarem naquela floresta. ■ Ao falar da Amazônia, estamos nos situando dos anos 1970 para cá. No caso da Mata Atlântica, é muito diferente: são séculos. — Sim, nesta o desmatamento começou em 1500, mas acelerou muito na mesma época, nos anos 1960, começo da era militar. Houve um programa do governo dedicado ao crescimento econômico, com uma estratégia de incorporação, cujo lema era "Integrar para não entregar", lembram? Existia uma mentalidade naquele momento na América Latina de que sem uma política de ocupação dessas áreas elas seriam entregues a outros. Não só no Brasil. Os governos do Peru e da Bolívia tinham programas idênticos de integração nacional. ■ Isso é claro em relação à Amazônia, mas no que se refere à Mata Atlântica o que as políticas de ocupação de territórios virgens daqueles anos têm a ver com a aceleração do desmatamento? Afinal ela estava ali no litoral, bem integrada às áreas de ocupação mais antigas do território brasileiro. — Aí já se trata de efeitos do desenvolvimento econômico, industrial. Com o aumento significativo da riqueza no país, muitas pessoas passaram a ter condições de possuir uma segunda casa no campo ou na praia, e ofereceram-se para isso terras antes cobertas pela Mata Atlântica.

■ O discurso do governo brasileiro hoje é de que não existe nenhum tipo de incentivo oficial para a ocupação da Amazônia. E de fato, como política de governo, nada é igual ao que havia na época do regime militar. No entanto, o desmatamento continua, às vezes em ritmo acelerado, às vezes um pouco mais lento, mas o que se diz é que há ali um movimento de expansão econômica que funciona naturalmente, sem nenhum tipo de incentivo, e não se consegue detê-lo. Parece-lhe que é assim mesmo, não há como segurar? — Penso que nessa questão ainda há alguma influência daquela ideologia do governo militar. Vejam, ela fez um apelo à nacionalidade, à noção de que essa área grande do Brasil pertencia e tinha que continuar pertencendo ao país. E existe um compromisso de assegurar que toda essa área da Amazônia seja garantida para os brasileiros. Nesse ponto, a ideologia continua como um fator que influi na política de todos os governantes do Brasil e de todos os seus setores sociais e políticos. Agora, é verdade que já há atores com poder e dinheiro para atuar independentemente do governo até. As madeireiras da Malásia estão interessadas naquela área e elas têm ligações e dinheiro para influenciar a política que lhes afeta. Igualmente, os empresários de São Paulo podem influenciar a política de crédito para a Amazônia. Diz-se que a maioria do investimento ali é para a agricultura, mas está indo para a pecuária. Então isso já tem uma vida própria, o desmatamento continua, e a presença do governo... infelizmente, continua uma ausência. Só tem presença maior quando ocorre um desastre como o assassinato da Irmã Dorothy Stang. Aí chegam 20 mil soldados, ficam por um mês ou dois, depois vão embora. As coisas vão prosseguir assim até a sociedade civil ficar mais consciente de que a riqueza da Amazônia seria mais aproveitável no futuro do que no presente, por exemplo, com a exploração farmacológica de sua biodiversi-

■ Hoje há uma compreensão limitada do verdadeiro potencial desses recursos. — Claro, e como isso pode mudar? Através de políticas que valorizem uma visão a longo prazo. Só que os governos mudam a cada quatro, cinco, seis anos, é curta a visão do político, talvez mais que a de grandes empresários fixados só no agora. ■ Como manter, ante os problemas anunciados, uma visão não-apocalíptica do futuro em relação às mudanças climáticas globais no planeta e aqui no Brasil em particular? — Eu não sou pessimista porque acho que dá para ver mudanças na maneira como lidamos com os problemas. Em relação à propriedade, por exemplo, já mostrei em meus trabalhos que o colono aprende em 20 anos a proteger a floresta, a deixar uma boa mancha de floresta em cada propriedade e até a deixar voltar a floresta sobre áreas menos produtivas. O problema é que se continua a abrir estradas. O programa "Avança, Brasil" [do segundo governo FHC] foi um exemplo de proposta muito semelhante à dos anos 1970. Naquela época se falava da Perimetral Norte (uma estrada ao longo da fronteira brasileira para facilitar o movimento militar e proteger o Brasil das invasões de países vizinhos), que foi abandonada por causa da crise do petróleo de 1973. No "Avança, Brasil" eu vi a Perimetral Norte de novo, só que ainda mais extensa. Por isso acho que continua a mesma ideologia, ou seja, a idéia de que para proteger a Amazônia tem que se fazer essa estrada. Mas, ao fazer isso, cria-se uma abertura entre a população que está sem recursos, sem terra, e os especuladores também. E o maior problema da estrada não é deixar as pessoas entrarem, mas deixar o recurso sair. Recursos que não ficam com as pessoas ali, que vão para fora e se perdem. Então, quem se beneficia desse investimento do governo? Essa é uma das grandes perguntas. Quem se beneficia não é o povo: através dos anos que temos pesquisado na Amazônia, nunca observamos, nem no chão nem no espaço, via satélite, mais de 4% da área voltada para agricultura alimentar na Amazônia. PESQUISA FAPESP 125 ■ JULHO DE 2006 ■ 17


A maior parte da área está em pasto com menos de uma vaca por hectare. Às vezes, menos até. Esse é um bom aproveitamento, tomar 1 hectare de terra, que tinha 280 espécies vegetais - uma quantidade inimaginável de recursos farmacêuticos e de recursos de alimentação para as pessoas -, destruir tudo e colocar uma vaca? Uma vaca magra, aliás, porque na Amazônia elas são magras, com carne que não é de boa qualidade. É isso que na maior parte da Amazônia se está conseguindo. ■ Em sua palestra na FAPESP, você abordou alguns mitos ligados à questão ambiental. Um deles seria "crescimento populacional resulta em intensificação agrícola", coisa que a realidade, segundo sua análise, desmente. Eu gostaria que você falasse um pouco disso. — Em nível global a correlação é possível, mas em nível local não. Porque tem outros fatores que influenciam mais a intensificação agrícola. O quê? Por exemplo, políticas do governo com concessão de crédito que facilita a intensificação. Ninguém intensifica agricultura a menos que seja obrigado pela fome ou seja incentivado a substituir a lavoura do braço pela lavoura da tecnologia. E isso está faltando à Amazônia, onde o crédito vai para o pecuarista. Quase todo o crédito rural para o pequeno produtor na Amazônia vai para o desmatamento, coisa que já mostrei em várias áreas de estudo. Não existe uma forma, até agora, de prover tecnologia que facilite o uso mais intensivo da terra para reduzir os desmatamentos. É mais fácil desmatar uma grande área, botar gado nela, esperar que suba o preço da terra... porque o problema é que a terra é de graça na fronteira, e só com o tempo vai ganhando valor. O pequeno produtor investe na lavoura e daqui a 10, 20 anos, ele vende sua propriedade ao grande produtor, porque já colocou uma pastagem, que é o que este quer. ■ Mas insistindo nos mitos... — Olha, sobre a questão da população é preciso considerar o seguinte: quando a população aumenta em área rural, se não há outra opção, a única saída é a tecnologia de intensificação da agricultura para produzir a comida necessária. Mas em muitos casos o que ocorre é outra coisa. Ou seja, se existe a opção de migração da área rural para a área urbana porque tem emprego na cidade, esvazia-se o campo, e aí tem dois caminhos: intensifica-se o extensivo ou intensifica-se com tecnologia, que é o que está ocorrendo muito mais no mundo. Ocorreu nos Estados Unidos, está 18 ■ JULHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 125

ocorrendo no Brasil também. O campo se esvazia, as pessoas vendem a terra, entra o capital, e há possibilidade de produção de soja, arroz, para o mercado mundial. A questão é até que ponto existe emprego na área urbana. Muitas vezes as pessoas da área rural vão para uma cidade pequena por perto. Essas cidades crescem e se dá um processo de concentração urbana. Mas falta desenvolvimento industrial nas cidades pequenas e até nas grandes. ■ Há fatores influentes das mudanças globais em curso que passam ao largo das florestas e têm a ver com a produção de areossóis, gases etc. nas cidades, nas áreas de densidade acentuada. Eu queria aproveitar para perguntar o seguinte: como pesquisar essas mudanças sem ficar preso somente aos dados do clima, da extinção das espécies, às aborrecidas projeções cheias de números, e introduzindo aí com força e clareza questões relativas a mudanças populacionais, a mudanças sociais? Enfim, como tornar essa pesquisa das mudanças globais tema legítimo de antropólogos, sociólogos, cientistas políticos, filósofos etc, que de fato é? — Olha, temos que criar perguntas integradas, que tenham a ver com a interação entre população e fatores climáticos. Por exemplo: como a sociedade age em termos de uso de energia? Tomemos o caso dos hotéis, no Brasil e em outras partes do mundo, que já instalaram em todos os corredores sensores de movimento. As luzes ficam apagadas, e quando uma pessoa sai de um quarto aparece só um ponto de luz bem em cima do lugar em que ela se encontra. Ou, se a pessoa caminha pela direita, as luzes começam a ser acesas do lado direito e em seguida são desligadas. Bem, não foi feito um estudo sobre se dá lucro ou não instalar esses sensores, sobre o custo/benefício dessa tecnologia... Enfim, falo aí de comportamento, de mudanças culturais, de economia. Nesse caso, comportamento em relação à luz, à energia, fator importantíssimo nas emissões de gases aquecedores, porque essa energia vem de onde? Do uso de combustíveis fósseis. ■ Aqui no Brasil a matriz é meio diferente. — Eu sei. Metade da energia vem de hidrelétrica. Mas é a mesma coisa. Pense no custo de uma hidrelétrica, no investimento, no custo enorme da biodiversidade, nas imensas áreas perdidas... Alguma coisa tem que botar esse sistema para funcionar: aí queimam-se combustíveis fósseis. A questão é sempre conservar energia o mais possível. Vejamos o caso do uso do carro: há que se pensar num desenho urbano em

que a pessoa de novo possa ir caminhando fazer suas compras, em vez de ir com um carro enorme até o Carrefour. Isso muda também o padrão de emprego. A loja pequena perto do bairro da pessoa cria mais emprego do que aquela loja enorme... ■ Na verdade, você está falando de toda uma mudança de mentalidade. — E de comportamento. ■ Mas insisto no seguinte: como fazer, em termos práticos, para que nos estudos científicos sobre mudanças globais haja uma abordagem integrada dessas questões ligadas a comportamento, mentalidade etc, com aquelas vinculadas a física, química e biologia que as pesquisas ambientais e climatológicas sempre envolvem? — Penso que já hoje, na Europa, nos Estados Unidos, por exemplo, existe uma aceitação no âmbito das ciências ambientais de que é preciso incluir a parte socioeconômica, a parte humana, na pesquisa de clima e mudança global. Há programas apoiados pela NSF [Fundação Nacional de Ciência, dos Estados Unidos] que já faz dez anos seguem essa orientação. Nós, por exemplo, num projeto específico, escolhíamos três ecossistemas, em 12 países, para comparar esse relacionamento de população e floresta. E era um projeto que recebeu muito recurso para pesquisa. Essa pesquisa de acompanhamento integrado prossegue e os programas têm aumentado. ■ Você podia falar um pouco de sua participação nesses estudos pioneiros que integraram ciências exatas, biológicas e sociais. — Na verdade, foram os cientistas de clima que vieram às ciências sociais, em 1988, dentro de um movimento internacional com base em Estocolmo. O convite partiu deles porque se deram conta de que os modelos globais de clima estavam bonitinhos, mas só que não dava para saber como mudar o comportamento que estava por trás dessa mudança climática. Eles sabiam que a mudança era antropogênica, antrópica, como se diz mais no Brasil. ■ Em termos institucionais, de quem foi a iniciativa em 1988? — Foi do Programa Internacional da Geosfera-Biosfera Atmosfera, comitê de coordenação científica de que agora [o pesquisador brasileiro] Carlos Nobre é o chairman. Os cientistas sociais convidados eram de uma organização baseada em Paris. Eles sugeriram a outros grupos que se movimentassem para aproveitar a oportunidade de interagir com climatólogos,


■ Como ser otimista nesse sentido quando o país que mais produz emissões nocivas se mantém numa posição extremamente conservadora, sem admitir de nenhuma forma entrar nos protocolos globais de redução das emissões? E estamos falando do país que detém a liderança da economia mundial. — Sou um grande crítico dessa posição dos Estados Unidos. Isso é ligado a um governo. Seria diferente se o presidente fosse Al Gore. E tudo pode mudar daqui a dois, três anos. Existe um movimento forte conservacionista nos Estados Unidos também.

Temos intere; como espécie do planeta, er sobreviver. Er temos de pen de forma cria como mudar e onde mudar

geólogos etc. Começaram programas em vários países e se criou o Programa Internacional de Dimensões Humanas. Que foi baseado na Suíça, em Genebra, e depois mudou para Bonn, Alemanha. ■ Ainda nesse âmbito das mudanças sociais versus mudanças climáticas, você falou em sua palestra sobre futuras adaptações, mudanças de cultivos, por exemplo, que certamente deverão ocorrer pelo mundo afora. Trata-se de convencer empresários, agricultores a substituir suas plantações por questão da mudança climática? — Sim, é uma coisa inevitável. Se determinada cultura não cresce em dadas condições de chuva e temperatura, não se pode plantar isso. E, se quiser plantar, vai ter que ir mais ao sul, comprar a terra do outro. Mas chega um ponto em que já se atingiu a fronteira, tem o Uruguai, no Sul do Brasil, e aí? Há um problema econômico e um problema político muito sério. ■ E você vê isso ocorrendo em escala mundial. — Sim, há um modelo climático nos Estados Unidos que já mostra que a fronteira do milho vai ter que mudar uns 3 graus de latitude em direção ao norte. mEa ciência deve ajudar com algumas modelagens que dêem suporte para os planejadores de política. Mas você dizia que aqui temos problemas com os modelos para as áreas tropicais. — Em parte, mais para a Amazônia. Em São Paulo é ótima a informação sobre o clima. Já na Amazônia, em centenas de quilômetros não tem uma estação meteorológica. Mas a ciência pode ajudar muito mais. Pode sugerir que em dado regime de chuva, de temperatura, a melhor opção agronômica é x ou y. E aí entra a Embrapa. Agora, isso tem mercado? Aí entra o economista. Na verdade, a maior parte da alimentação é muito restrita ainda em termos de espécies, e tem um monte de

outras coisas já pesquisadas, comidas boas para o futuro da humanidade que ainda estão só nos livros de ciência. ■ Você enxerga efetivamente o mundo em processo de mudança: do clima, dageopolítica, do comportamento, da dieta... — Lógico. Porque se ele não muda com a mudança climática, então quando vai mudar esse comportamento? Acho que quem não muda não se adapta às mudanças, desaparece. Tem muitos ecólogos radicais, que falam "eu não me preocupo, porque o mundo vai continuar". Às vezes acrescentam "sem a humanidade". Porque se ela não se adapta às mudanças, se não reconhece com antecedência essa situação, não vai sobreviver. Ora, mas temos interesse, como uma espécie desse planeta, em sobreviver, não é? Então temos que pensar de forma criativa como mudar, onde mudar. Temos uma característica de não mudar mais que o necessário. E já fizemos um investimento tão grande em cultura, em economia, em infra-estrutura, que não queremos mudar além do necessário. O que se quer saber com alguma certeza é qual mudança é necessária. Aí está o problema, no momento. Há divergências ainda na pesquisa... Mas temos de agir. ■ Como você vê a questão proposta por Carlos Nobre, durante sua palestra na FAPESP, de que o futuro da humanidade é incompatível com o hábito de comer carne, de andar de automóvel... isso não soa como um exagero? — Talvez, mas acho um ponto importante colocar isso. Vivemos bem sem o carro antes - por que agora é tão essencial o carro? Porque temos criado sistemas de assentamento urbano que dificultam o transporte. Podemos criar situações que favoreçam usar os pés também. Ou bicicleta... Na Dinamarca, Suécia, todo mundo usa, até velhinhos de 80 anos. E têm preferência esse modo de transporte nas cidades. Muitas coisas são possíveis.

■ Voltemos à mudança de modelo econômico, modelo social, mudança na cultura contemporânea que você vislumbra. —Veja, o comportamento atual não é sustentável e vai acabar com o planeta, com certeza. Então, temos que criar opções... Por exemplo, a índia está num momento fundamental. Será o país mais populoso do mundo daqui a 30 anos. Vai passar a China. A índia tem culturas tradicionais, não consumistas, muito conservadoras. Mas também tem um movimento rapidíssimo, hoje em dia, de consumo louco, descontrolado. Então esse é um momento de luta cultural na Índia entre as culturas tradicionais, que muitos diriam atrasadas, e a nova classe média, que quer consumir tudo o que não teve até agora. Se a Índia for pelo modelo americano, e a China também, aí acabou o planeta. Ninguém sabe o que vai ocorrer com o triplo do CO2 que temos hoje. Temos modelos para o dobro, o que vai ocorrer com certeza. O triplo é provável, pela falta de atenção de grandes países, como Japão e Estados Unidos, em mudar o comportamento. ■ Que cenário isso projeta? — Se não fizermos nada, uma grande parte da Antártida vai derreter. O nível do mar vai subir, a metade da Flórida vai ficar embaixo d'água, o que, em termos econômicos, é uma coisa enorme. Londres você esquece. Manhattan também vai ser inundada. Seria um desastre econômico, porque a maior parte da riqueza do mundo, em todos os países, está na costa. Se o comportamento não mudar, será esse o futuro. Se em 40 anos não mudarmos nada, existe uma grande possibilidade de que o padrão de mistura de água fria e quente nos oceanos, que mantém a temperatura mundial, seja quebrado, como já aconteceu há milhares de anos, esfriando algumas partes do mundo e esquentando outras. Esse tipo de mudança pode ocorrer de novo. Temos que começar a mudar já. Já deveríamos ter começado. • PESQUISA FAPESP 125 ■ JULHO DE 2006 ■ 19


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POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

Ganha cada vez mais adeptos o recurso de dar recompensas financeiras a pesquisadores que publicam artigos de impacto. O governo da Coréia do Sul acaba de instituir um prêmio de US$ 3 mil para quem emplacar um estudo em revistas de primeira grandeza. "O objetivo é aumentar o moral dos nossos cientistas", disse à revista Nature Young Nam Lim, do Ministério da Ciência e Tecnologia do país. Na China, o prêmio varia de acordo com a instituição. A Uni-

■ Correndo atrás da bomba Dois laboratórios nacionais norte-americanos, o Lawrence Livermore, em San Francisco, e o de Los Alamos, no Novo México, disputam a primazia de criar uma nova arma nuclear para o país, a primeira desde a Guerra Fria. Um comitê federal avaliará os projetos e apontará o vencedor. "Tenho gente trabalhando nisso até nos finais de semana", disse à agência Associated Press Joseph Martz, chefe da equipe de Los Alamos. Defensores do projeto dizem que

os Estados Unidos perderão sua capacidade de "dissuasão estratégica" em 15 anos, a menos que substituam o arsenal de 6 mil bombas velhas por

20 ■ JULHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 125

versidade Agrícola Chinesa, em Pequim, chega a pagar US$ 50 mil por artigo de prestígio. Um pesquisador do Paquistão pode receber um bônus anual de US$ 1 mil a US$ 20 mil, segundo uma equação que avalia a importância dos seus artigos publicados no ano anterior. Críticos desse expediente advertem que mais produção não significa melhor desempenho. "Tentase publicar a qualquer custo e o que se vê são artigos repetitivos e até mal embasados", diz o físico paquista-

ogivas mais confiáveis. Críticos dizem que o plano pode minar os esforços para impedir a proliferação de armas atômicas em outros países.

nês Pervez Hoodbhoy. Outros dizem que o dinheiro diminui os feitos científicos. "Bons artigos são produto de suor, alegrias e tristezas. Os bônus apequenam o esforço" diz o biólogo sulcoreano Sunyoung Kim. Peter Cotgreave, diretor do grupo Campanha para as Ciências e Engenharias no Reino Unido, lembra que o crivo das publicações é rigoroso e não há risco de manipulação. "Só ganha bônus quem é bom o bastante para entrar numa Nature ou numa Science." •

■ Unidos pelos pólos Reunidos em Edimburgo, na Escócia, cientistas e autoridades de 45 países prometeram dar apoio político e financeiro ao mais ambicioso estudo das regiões polares nos últimos 50 anos, durante o Ano Polar Internacional, previsto para o período 2007-2008. Os participantes da Reunião Consultiva do Tratado Antártico disseram que as pesquisas que ocorrerão durante o ano "aumentarão o conhecimento sobre a Antártida e fornecerão uma melhor compreensão dos principais sistemas terres-


três, oceânicos e atmosféricos que controlam o planeta". O Ano Polar já foi realizado em 1882-83,1932-33 e 1957-58, é uma iniciativa da Organização Meteorológica Mundial e do Conselho Internacional de Ciência. •

■ Das castas às cotas

das Nações Unidas, lembrou que desde os anos 1970 houve esforços para criar barreiras florestais, mas a maioria se deu em pequena escala. A búlgara Svetla Rousseva, especialista em erosão, diz que o projeto será um bom ponto de parti-

A idéia de ampliar a política de cotas que busca resgatar as castas marginalizadas da índia causou um grande racha numa comissão instituída para

da. "O segredo é ser uma iniciativa de longo percurso amparada em políticas sobre o uso do solo", afirmou à agência de notícias SciDev.Net. •

estimular o desenvolvimento do país. Desde 1950 os chamados intocáveis - grupos sociais tão marginalizados que só eram autorizados a ocupar

trabalhos insalubres - conquistaram uma reserva de 22,5% de cargos públicos e de vagas nas escolas. Nos anos 1990, um segundo grupo de castas discriminadas, embora não submetidas ao ostracismo, foi beneficiado por outra

■ De volta ao cinturão verde Um grupo de 23 nações africanas lançaram em Trípoli, na Líbia, um programa para formar redes de pesquisa nas áreas de desertificação e agricultura. As delegações também aprovaram planos para implementar o Projeto Cinturão Verde do Norte da África, que busca deter a desertificação por meio do plantio de árvores numa faixa de 5 quilômetros da Mauritânia, no oeste, até Djibouti, a leste. Michel Malagnoux, especialista

cota de 27% das mesmas vagas. Em maio, o ministro do Desenvolvimento dos Recursos Humanos, Arjun Singh, anunciou a criação de cotas nos postos de trabalho no setor privado e em universidades. Singh delegou à Comissão Nacional do Conhecimento a tarefa de estabelecer meios para alcançar a meta. Dos oito membros da comissão, seis reprovaram a idéia. Anant Koppar, presidente da Câmara de Comércio e Indústria de Bangalore, disse ao jornal Ásia Times que o sistema de cotas minaria a produtividade das empresas. "Simplesmente deixaríamos de ser competitivos", diz. •

PESQUISA FAPESP 125 ■ JULHO DE 2006 ■ 21


Estratégias

Mundo

Mercosul da ciência

Ministros e autoridades da área de ciência e tecnologia de países sul-americanos decidiram, no dia 30 de maio, lançar um programa de integração em ciência, tecnologia e inovação para o período de 2006 a 2010. Batizado de Declaração de Buenos Aires, o compromisso foi firmado na capital argentina pelos representantes do Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) e os cinco Estados associados (Venezuela, Chile, Peru, Colômbia e Equador). "O conhecimento científico e tecnológico deve ser utilizado apropriadamente como recurso para alcançar as melhores soluções sociais e desenvolver uma produção com maior valor agregado", diz a declaração. Os signatários acertaram um prazo de 90 dias para elaborar as linhas gerais do programa, incluindo-se as necessidades de financiamento e as prioridades estratégicas. Um dos objetivos é fortalecer centros de excelência regionais e formar redes que contribuam para elevar o nível das pesqui-

sas em biotecnologia, nanotecnologia, novos materiais, energia, tecnologia de informação, desenvolvimento sustentável e infra-estrutura. •

■ Europa aposta em células-t ronco Pesquisas com células-tronco embrionárias poderão ser financiadas com verbas da União Européia. A decisão foi tomada pelo Parlamento europeu no dia 15 de junho, apesar da oposição de deputados verdes e democratascristãos. O orçamento para o período de 2007 a 2013 prevê gastos de € 50 milhões para projetos com células-tronco. O dinheiro não poderá ser usado em clonagem de embriões humanos para fins reprodutivos. O deputado alemão social-democrata Norbert Glante comemorou a decisão. "A pesquisa com células-tronco extraídas de embriões é um pressuposto para a cura de doenças degenerativas", disse ao serviço de notícias Deutsche Welle. •

22 ■ JULHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 125

dup.esrin.esa.int/ionia/wfa/index.asp Imagens de satélites atualizadas a cada seis horas mostram um mapa de incêndios na superfície do planeta.


Projetos sobre política externa O Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) e o Ministério das Relações Exteriores (MRE) lançaram um edital no valor de R$ 4 milhões para apoiar projetos no âmbito do Programa Renato Archer de Apoio à Pesquisa em Relações Internacionais. Os temas são Paz e Segurança Interna-

cional; Estudos sobre Pólos de Poder; América do Sul; Desenvolvimento, Ciência e Inovação; Normatividade e Governança Internacional. Os projetos deverão ser liderados por pesquisadores vinculados a cursos de pós-graduação em Relações Internacionais avaliados pela Capes. Redes de

pesquisa poderão ser formadas com a participação de pesquisadores de outras áreas. As propostas deverão ser submetidas ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) até o dia 14 de agosto, no endereço http://efomento.cnpq. br/efomento. •

■ Mobilização no Rio de Janeiro Um polêmico projeto de lei movimenta a comunidade científica do Rio de Janeiro. O texto, que proíbe o uso de animais em pesquisas, foi aprovado em março pela Câmara Municipal, mas vetado no mês seguinte pelo prefeito César Maia. A proposta, de autoria do vereador Cláudio Cavalcanti, está de volta à Câmara, onde os vereadores deverão decidir nas próximas semanas se derrubam o veto. A proposta prevê uma multa a quem descumprir a lei em R$ 2 mil por animal. Reincidências podem levar à perda de alvará de funcionamento dos laboratórios. O impasse deixou em alerta representantes de instituições de pesquisa como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e as universidades Federal e Estadual do Rio de Janeiro. A Fiocruz divulgou uma carta aberta afirmando que, "se experiências com animais fossem proibidas, todos os esforços para descobrir vacinas para a dengue, a Aids, a malária, a leishmaniose e mais uma série de pesquisas que

visam controlar outras doenças seriam jogados no lixo". A fundação convidou os vereadores para visitar sua sede e ver de que forma é feita a experimentação animal. O secretário estadual de Ciência, Tecnologia e Inovação do Rio, Wanderley Souza, pesquisador da UFRJ, foi categórico: "Se a lei entrar em vigor, a ciência médica no município vai parar". •

■ Os destaques da comunicação O Prêmio Luiz Beltrão de Ciências da Comunicação, concedido anualmente pela Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom), anunciou os vencedores da edição de 2006. Na categoria Maturidade Acadêmica, a laureada foi Adísia Sá, pioneira do ensino

e da pesquisa em Comunicação no Ceará. Como Liderança Emergente, o vencedor foi Elias Machado, presidente da Sociedade Brasileira dos Pesquisadores em Jornalismo. O Programa Cadernos de Comunicação, da Secretaria Especial de Comunicação da Prefeitura do Rio de Janeiro, foi premiado como Grupo Inovador. Na categoria Instituição Paradigmática, houve dois ganhadores: a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e a Faculdade de Comunicação da PUC-Minas. Em 2005, o vencedor nesta categoria foi a FAPESP, em reconhecimento aos esforços para disseminar os resultados das pesquisas científicas. A entrega dos diplomas será realizada na noite de 7 de setembro, em Brasília. •

PESQUISA FAPESP 125 ■ JULHO DE 2006 ■ 23


Resgate das doenças esquecidas

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■ Mais dois anos no Cern Os estudos brasileiros realizados no Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (Cern) estão garantidos por mais dois anos, graças a uma dotação de R$ 2,4 milhões liberada pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). O laboratório na Suíça é o maior do mundo na área de física de altas energias. "O apoio não cobre todas as necessidades, mas dará conforto aos pesquisadores e consolidará a posição do Brasil no cenário internacional", disse Carlos Alberto Aragão de Carvalho, diretor de desenvolvimento científico e tecnológico da Finep. A física de altas energias é uma área multidisciplinar que

O Ministério da Saúde vai destinar R$ 20 milhões para a pesquisa das chamadas doenças negligenciadas, como a dengue, a doença de Chagas, a hanseníase, as leishmanioses, a malária e a tuberculose, que atingem sobretudo os países pobres e, por isso, raramente são alvo da curiosidade e dos

requer o desenvolvimento de sistemas complexos de aceleração e detecção de partículas. "Hoje a única maneira de o país participar de pesquisas de ponta é por meio de colaborações", disse Carvalho. Os pesquisadores beneficiados são das universidades Federal (UFRJ) e Estadual (UERJ) do Rio de Janeiro e do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF/MCT).

investimentos dos laboratórios farmacêuticos. O edital foi lançado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e as inscrições podem ser feitas até 16 de julho. Serão contemplados projetos de pesquisa relacionados às doenças, que abordem temas como ten-

■ FAPESP tem novo conselheiro José Tadeu Jorge, reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é o novo integrante do Conselho Superior da FAPESP para um mandato de seis anos. A nomeação, assinada pelo governador de São Paulo, Cláudio Lembo, foi publicada pelo Diário Oficial do Estado no

dências epidemiológicas, bioinformática, estruturação de bancos de dados, vacinas e mobilização social. Podem concorrer grupos de universidades ou instituições de pesquisa públicas ou privadas. Mais informações no site www.cnpq.br/ servicos/editais/ct/2006/ edital_0252006.htm. •

dia 22 de junho. Ele substituiu Nilson Dias Vieira Júnior, cujo mandato terminou dia 28 de junho. O reitor integrava a lista tríplice resultante da eleição a partir da indicação dos candidatos dos institutos de pesquisa e das instituições de ensino superior do Estado de São Paulo. Engenheiro de alimentos, professor titular da Faculdade de Engenharia Agrícola da Unicamp (Fea-

Espécies que habitam o Parque Marinho dos Abrolhos, na costa da Bahia: biodiversidade única no Atlântico Sul

24 ■ JULHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 125


■ Vitamina para a pós-graduação

gri), Tadeu Jorge foi vice-reitor, pró-reitor de desenvolvimento universitário, diretor da Feagri, diretor executivo da Fundação de Desenvolvimento da Unicamp e diretor técnico da Fundação de Desenvolvimento Tecnológico. •

■ Estudos sobre a Amazônia Estão abertas até o dia 25 de agosto as inscrições para o Prêmio Professor Samuel Benchimol, voltado para estudos sobre a Amazônia. Podem concorrer autores de estudos e pesquisas sobre as perspectivas econômicas, tecnológicas, ambientais e sociais para o desenvolvimento sustentável da região amazô-

nica, com prêmios de R$ 65 mil em cada uma dessas quatro áreas. O prêmio foi instituído pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (Mdic) em 2004, em parceria com a Con-

federação Nacional da Indústria (CNI) e o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). As inscrições podem ser feitas no endereço www.amazonia.desenvolvimento.gov.br. •

Proteção do tesouro Uma zona de amortecimento foi estabelecida em torno do Parque Nacional Marinho dos Abrolhos pelo Instituto Nacional do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama). A medida determina restrições a atividades, como a exploração de petróleo e gás natural e a anunciada instalação de grandes fazendas de camarão, que possam trazer impacto à ecologia da região. Com cerca de 56 mil

quilômetros quadrados na costa sul da Bahia, a região compreende um mosaico de ambientes marinhos e costeiros tangidos pela Mata Atlântica, incluindo recifes de coral, fundos de algas, manguezais, praias e restingas. Na área, há espécies como o coral-cérebro, além de crustáceos, moluscos, tartarugas e mamíferos marinhos ameaçados de extinção, como as baleias jubarte. A riqueza é pouco conhecida

pelos pesquisadores. Um inventário da biodiversidade de Abrolhos, que acaba de ser publicado pela ONG Conservation International, revela que os níveis de endemismo (proporção de espécies encontradas somente ali) chegam a ser até quatro vezes maiores do que no Caribe. A listagem da fauna e da flora de Abrolhos é resultado de uma expedição de 18 dias realizada em fevereiro de 2000. •

O Ministério da Educação anunciou a criação da Escola de Altos Estudos, voltada para estimular a presença brasileira no circuito acadêmico internacional. Gerenciada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), a nova instituição vai promover o intercâmbio de docentes e pesquisadores de alto nível com o objetivo de reforçar os programas de pós-graduação stricto sensu no Brasil. "Não se trata de uma escola física, mas da vinda ao país de grandes nomes da ciência internacional para fortalecer o intercâmbio educacional e científico brasileiro", disse o ministro da Educação, Fernando Haddad. A Escola vai organizar cursos de curta duração em parceria com programas de pós-graduação de instituições nacionais, que poderão oferecê-los a seus alunos, além de sugerir nomes de docentes e pesquisadores reconhecidos internacionalmente para ministrá-los. O Brasil já tem acordos de intercâmbio nessa área com mais de 30 países. "O fomento será complementado com essa ação e os programas de pósgraduação poderão matricular seus alunos nos cursos", diz Fernando Haddad. •

PESQUISA FAPESP 125 ■ JULHO DE 2006 ■ 25


A POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA BIOSSEGURANÇA

Embaraços e escaramuças Ação de ambientalistas e procuradores tumultua aCTNBioeabre crise com pesquisadores FABRíCIO MARQUES

ma guerra de nervos contaminou as reuniões mensais da nova Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), o órgão colegiado do governo federal incumbido de dar pareceres sobre a segurança dos organismos geneticamente modificados, os OGMs. De um lado, há um grupo de membros que anda bastante contrariado com o ritmo e a agenda da comissão. São pesquisadores escolhidos por notório saber científico, ligados a diversas instituições de pesquisa ou representam ministérios como o da Ciência e Tecnologia e o da Agricultura. Eles se queixam que as reuniões destinam tempo demais a assuntos burocráticos e filigranas jurídicas, além de discussões intermináveis acerca de temas secundários, e até agora nem 26 ■ JULHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 125

se passou perto de questões essenciais, como as autorizações para pesquisas de OGMs, que há anos esperam a vez na CTNBio. Do lado oposto, perfila-se um grupo de membros ligados aos ministérios do Meio Ambiente e do Desenvolvimento Agrário e a entidades de defesa dos consumidores. Embora minoritário, esse grupo está conseguindo controlar o trabalho da comissão, lançando mão nas reuniões de artifícios jurídicos e de questões de ordem. "A comissão deve ser rigorosa e restritiva. Ela existe para zelar pela biossegurança, não para promover a tecnologia, como fazem abertamente muitos membros. Eles é que não estão no fórum adequado", afirma Rubens Onofre Nodari, gerente de recursos genéticos do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e professor de fitotecnia da Universidade Federal de Santa Catarina. "A lei consagra o princípio de precaução e é isso que nós estamos defendendo. Se a legislação não for

cumprida, o trabalho da comissão pode ser contestado na Justiça", diz Nodari. "Risco zero" - O engenheiro agrônomo Edilson Paiva, que faz parte da cota de três especialistas da área vegetal com assento na comissão, contra-argumenta: "É claro que a comissão precisa ser rigorosa, mas não pode ser seu objetivo atrasar o desenvolvimento e a utilização da tecnologia exigindo certeza absoluta e risco zero, como alguns membros estão fazendo". Pesquisador da Embrapa Milho e Sorgo, unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária em Sete Lagoas (MG), Paiva considera despropositadas as discussões de temas técnicos já abordados pela comissão anteriormente que, com freqüência, são reconduzidos à pauta sem a justificativa de algum fato novo. Cita como exemplo o isolamento de milho transgênico em liberações controladas. Anteriormente, a CTNBio havia definido a opção de fazer o isola-


Ambientalistas protestam contra milho transgênico na Alemanha: opiniões polarizadas

mento temporal - não se poderia plantar no local por até 30 dias depois da germinação - ou então de espaço - nada ao redor num raio de 300 metros. Agora isso voltou à baila com a tese de que ambos os isolamentos devam ser adotados ao mesmo tempo. "Isso não traz segurança extra do ponto de vista de biossegurança e dificulta fisicamente a logística na hora de instalar experimentos no campo", afirma Paiva. Ao adotar esse procedimento, uma única planta de milho transgênico no campo estaria imobilizando uma área experimental de cerca de 30 hectares, ou 30 campos de futebol, por um período de seis meses. Isso inviabilizaria, do ponto de vista de disponibilidade de áreas, esse tipo de atividade na maioria das unidades de pesquisa que possuem programas de melhoramento genético de milho no Brasil. "Há mais de 200 pedidos de autorização para pesquisa à espera de definição", diz Paiva. "Quem será responsabilizado

pelo atraso tecnológico que isso está impondo ao país? Já fomos ultrapassados pela Argentina, China e índia na área de biotecnologia vegetal. Quem será responsabilizado pelo prejuízo causado aos agricultores e ao meio ambiente pelo fato de ter sido impedido o uso de uma tecnologia mais racional e segura?" questiona. Rubens Nodari já protocolou um recurso pedindo a destituição de Paiva da comissão, por suas declarações críticas acerca dos rumos da CTNBio. Para Geraldo Deffune Gonçalves de Oliveira, especialista em agricultura familiar com assento na comissão, as críticas dos pesquisadores são exageradas. "Não vejo por que colegas devam irritar-se se o que buscamos é sempre a solução dentro da legalidade. Não somos nós os sectários", diz. Uma das causas da crise da CTNBio é estrutural. Em sua nova configuração, a comissão tem 27 membros, 12 deles especialistas de notório saber científico,

três de cada uma destas áreas: saúde humana, animal, vegetal e ambiente. Também participam representantes de nove ministérios e outros seis especialistas nas áreas de defesa do consumidor, saúde, ambiente, biotecnologia, agricultura familiar e saúde do trabalhador. O problema é que, além dos 27 titulares com direito a voto, também há 27 suplentes com direito a voz. Isso conspira contra a produtividade das reuniões. "O resultado é uma espécie de assembléia com mais de 50 pessoas, com muitas delas querendo falar de todos os assuntos ou levantando questões de ordem", diz Carlos Augusto Pereira, pesquisador do Instituto Butantan. Em sua encarnação anterior, a CTNBio era bem mais enxuta. Tinha apenas 13 membros titulares. "O papel dos membros é fazer uma análise técnica dos projetos, mas se gasta muito tempo tratando de assuntos burocráticos, que poderiam ser resolvidos pela secretaria da comissão, ou de quesPESQUISAFAPESP125 ■ JULHO DE 2006 ■ 27


toes jurídicas que nós simplesmente não temos elementos para analisar", afirma Pereira. Segundo ele, já se avançou no sentido de dividir os grupos em subcomissões temáticas, cujos membros, embora só se reúnam uma vez por mês, já conseguem adiantar o trabalho e aparar arestas por e-mail. "Mas falta estabelecer uma sistemática que otimize o trabalho da CTNBio de modo a usar seus membros de forma mais produtiva. É frustrante gastar tempo para vir a Brasília e ver que o trabalho está aquém de nossa competência." Mareio de Castro Silva Filho, professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da USP, vê uma outra origem do dissenso. "O governo federal tem uma posição ambivalente em relação aos transgênicos e isso se revela na posição dos membros indicados por diferentes ministérios", afirma. "Entre os especialistas, não há posições fechadas em relação aos transgênicos, mas a polarização é muito mais visível entre os membros indicados pelo governo." A invasão de demandas jurídicas na comissão é a principal causa de contrariedade. O Ministério Público Federal (MPF) outorgou a si a função de órgão externo com poderes de fiscalização e controle da CTNBio. Em decisão inédita, a 4a Câmara de Meio Ambiente e Patrimônio Cultural do MPF determinou que uma procuradora, Maria Soares Cordioli, participasse das reuniões ordinárias mensais da CTNBio. A decisão é amparada pela Lei do Ministério Público, mas nunca, desde a criação da CTNBio, em 1995, havia sido levada à prática. A presença da procuradora causou reações dos pesquisadores, irritados com a interferência de alguém de fora da academia numa comissão que deveria ser eminentemente técnica. A decisão de indicar um promotor foi tomada no dia 15 de fevereiro, dia em que a CTNBio retomou suas atividades. O presidente do órgão, Walter Colli, foi eleito no dia 16. Mas a promotora só apareceu na reunião de maio, deflagrando um debate interno que paralisou os trabalhos. Diante da reação, Maria Cordioli explicou que não estava ali para "interferir, mas para contribuir" com a "transparência e a democracia" 28 ■ JULHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 125

da CTNBio. "A comissão nao está consciente de seu papel", disse Maria Cordioli ao jornal Valor Econômico. "Não é só dizer se um produto será autorizado cientificamente, mas também tem que avaliar o viés ambiental, trabalhista e dos direitos do consumidor." Um dos primeiros atos da procuradora foi exigir que os membros assinassem uma declaração de conflitos de interesses, sob pena de perderem os mandatos. É certo que esse assunto deveria ter sido tratado nas primeiras reuniões da nova CTNBio, mas acabou relegado diante de demandas mais importantes e do excesso de trabalho represado. Seguiu-se, então, um debate sobre o tipo de declaração que deveria ser assinado. ubens Nodari, o representante do Ministério do Meio Ambiente, exigia uma declaração leonina, em que os membros, de antemão, se declarassem incapazes de avaliar processos mesmo com relação distante com universidades, institutos de pesquisa ou empresas interessadas no assunto. Depois de muito debate, o caso foi à votação e acabou prevalecendo o modelo que funciona em agências de fomento, em que o membro se compromete a declarar, antes de avaliar um processo ou votar, se tem interesses vinculados ao caso. Falta de objetividade - A interferência do Ministério Público produziu uma baixa. No mês passado, o vice-presidente da CTNBio, Horácio Schneider, professor da Universidade Federal do Pará, demitiu-se. Schneider alegou motivos pessoais: as viagens mensais de Bragança, no Pará, até Brasília tomavam-lhe muito tempo e ele precisava preparar sua investidura como presidente da Sociedade Brasileira de Genética. Mas, em sua carta de demissão, Schneider se referiu às "tensas e intermináveis reuniões mensais, que não se esgotam". E criticou a falta de objetividade da comissão. O presidente da CTNBio, Walter Colli, que é professor do Instituto de Química da USP, não quis se pronunciar sobre os problemas, alegando que precisa manter a isenção. A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança foi criada em 1995 e teve suas

Soja, canola e algodão transgênicos: posição do governo brasileiro é ambivalente

atividades suspensas em 1998, por força de uma liminar judicial, concedida à entidade ambientalista Greenpeace e ao Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), que suspendia sua competência de emitir pareceres conclusivos. O pomo da discórdia foi a liberação para plantio da soja transgênica Roundup Ready, da Monsanto, considerada segura para o consumo e o plantio. Apesar da liminar, a soja transgênica conquistou espaço no Rio Grande do Sul, contrabandeada da Argentina, e não restou opção ao governo federal além de liberar o plantio por medida provisória ano a ano. Em 2004, antes mesmo da sanção da Lei de Biossegurança, a CTNBio recuperou na Justiça poderes para deliberar sobre transgênicos. Com isso, liberou o uso de sementes de algodão com até 1% de OGMs e o plantio e a comercialização da variedade Bollgard, de algodão resistente a insetos, da Monsanto, além da importação de 370 mil toneladas de milho transgênico da Argentina. Na esteira da nova Lei de Biossegurança, sancionada em 2005, a CTNBio foi recriada com uma nova configuração e começou a funcionar em fevereiro. Ta-


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refas não faltavam. A fila de espera, em fevereiro, tinha 398 processos: sete pedidos de liberação comercial de organismos geneticamente modificados, quatro novos projetos de pesquisa e outros 52 pedidos de liberação de pesquisa da casa de vegetação para o ambiente exterior e 41 solicitações de importações, entre outras solicitações ainda não analisadas. Mas, de lá para cá, os dois grupos dedicaram-se a medidas consensuais, como a concessão de certificado de qualidade em biossegurança (CQB) para pesquisas de baixíssimo risco, ou a tarefas preliminares, como reavaliar as instruções normativas que norteiam o trabalho da comissão. Uma dessas instruções busca determinar a classificação de organismos geneticamente modificados de baixo, médio e alto risco. O grupo ligado ao Ministério do Meio Ambiente e aos órgãos de defesa do consumidor havia preferido uma proposta segundo a qual, quando um gene de risco alto for instalado num organismo de risco baixíssimo, o produto deve ser classificado como de risco máximo. Já os pesquisadores, com conhecimento no assunto, afirmam que, se

isso passar, ninguém vai trabalhar com OGMs no país. Na reunião de 21 de junho, o impasse foi superado e houve consenso a favor da proposta mais flexível e racional. Os grupos também aproveitaram para medir forças, e ficou claro que os contrários aos transgênicos, embora em minoria, têm peso para bloquear propostas com as quais não concordem. Quando há disputa, o placar em geral é de 14 a 7, uma vez que o representante

do Ministério das Relações Exteriores ainda não foi indicado (embora conte para obtenção de quorum qualificado) e sempre há alguma ausência. Com esse placar, seria possível impedir a liberação de comercialização de transgênicos, uma vez que se exige maioria de dois terços, ou 18 votos, para a aprovação. Mas nenhum caso foi submetido até agora ao escrutínio da comissão. "O problema é que essas discussões não levam em conta o muito que se fez nos anos anteriores e se tenta reavaliar coisas que já estavam mais do que discutidas", afirma Edilson Paiva. Por exemplo: o MMA exige que seja rediscutida a aprovação do algodão Bollgard, aprovado por 12 votos contra 1 pela CTNBio em 2005. A consultoria jurídica do Ministério da Ciência e Tecnologia já emitiu dois pareceres afirmando que não é o caso de submeter novamente a voto, uma vez que não houve "mudança no conhecimento" no assunto, como reza a lei que criou a CTNBio. Equilíbrio - O debate pega fogo do lado de fora da comissão. Gabriel Fernandes, assessor técnico da Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (Aspta), atacou a CTNBio em artigo divulgado na internet. "Obscurantismo, na verdade, é acreditar por princípio que os transgênicos são inerentemente seguros e evitar, de todas as formas, que esses produtos sejam submetidos a testes rigorosos, independentes e de médio e longo prazos." Reginaldo Minaré, diretor jurídico da Associação Nacional de Biossegurança (Anbio), ressaltou, também em artigo, que não foi encontrada nenhuma falha no trabalho de avaliação de risco feito pela comissão que tenha provocado danos sanitários ou ambientais. "A batalha não é no sentido de melhorar a garantia da avaliação de risco dos OGMs, mas de criar dificuldades ao funcionamento da CTNBio para minar a motivação de vários de seus membros", afirma. Para Mareio de Castro Silva Filho, professor da Esalq, o desafio dos membros da CTNBio é manter o equilíbrio nas próximas reuniões e não permitir que a polarização paralise os trabalhos. "Temos de nos concentrar nas questões técnicas, investir no que é consensual e, quando for necessário resolver no voto, não perder a serenidade", diz. • PESQUISA FAPESP 125 ■ JULHO DE 2006 ■ 29


O POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA POLÍTICAS PUBLICAS

Uma equipe de pesquisadores paulistas criou um novo método para avaliar, prevenir e gerir os impactos causados pela visitação às unidades de conservação, como os parques estaduais, a partir de um tipo de monitoramento mais simples e de implementação gradual. O sistema é mais apropriado ao pessoal e à estrutura de campo do que os métodos mais usados no país e no mundo, como o Limite Aceitável de Câmbio (LAC), Capacidade de Carga (CC) e Manejo do Impacto do Visitante. O modelo inclui sete itens básicos, que devem ser observados ao longo das trilhas em que as pessoas caminham para ir de um lugar a outro. Entre os itens está a largura da própria trilha. Caso as medidas desse percurso se alarguem no decorrer do tempo, pode ser sinal de que há visitantes demais passando ali, por exemplo. O aparecimento de trilhas secundárias (não planejadas) também é sinal de impacto. Além desses, integram a lista a ocorrência de danos à vegetação, rochas ou construções; o simples aparecimento de lixo; a existência de plantas especiais; o nível de satisfação dos visitantes; e acidentes envolvendo pessoas e animais.

A coleta de dados varia de acordo com a informação buscada, com a área e época da medida, mas basicamente o fiscal observa o entorno e registra as informações em uma planilha. Em alguns casos, como na ocorrência de lixo, além de recolher o que encontrar, ele deve contabilizar tudo e analisar o material, para depois pesquisar por que os visitantes não estão usando as lixeiras, por exemplo. Toda a informação deve ir para um programa de computador desenvolvido durante o projeto, cuja finalidade é funcionar como um banco de dados. Segundo o coordenador da pesquisa, José Carlos Barbieri, professor da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, em comparação com os outros sistemas esse monitoramento é mais completo. "Ele avalia e gerencia o impacto, além de sugerir a sensibilização do visitante, diferentemente do Capacidade de Carga e do Limite Aceitável de Câmbio", explica. O novo sistema, para cada item a ser observado, permite reunir sugestões de ações que os administradores do parque devem implementar para minorar os problemas. Por exemplo, caso ocorra algum acidente envolvendo gente e bicho, o método determina que se estudem os riscos que culminaram no fato e se faça alguma mudança na infra-estrutura da unidade, a fim de prevenir novos acidentes. Além disso, o novo sistema é mais objetivo porque elimina critérios consi-

Passeio monitorado Novo sistema avalia e previne impacto ambiental em parques Parque da Cantareira: trilhas não planejadas é sinal de danos

derados secundários na hora de observar os impactos das visitas. O pH do solo e da água, por exemplo, é um tipo de informação pedido pelos sistemas LAC e Manejo do Impacto do Visitante que merece análise mais complexa, pois "o pH não está vinculado exclusivamente à visitação", afirma Barbieri. "O solo pode estar com o pH alterado por causa de uma fábrica poluidora nas proximidades do parque". Soluções rápidas - Outra dificuldade que o novo sistema pretende resolver diz respeito à sua implementação. Ele propõe que os próprios funcionários das unidades de conservação o utilizem para que os problemas sejam solucionados mais prontamente. Também ocorre, em outros casos, que os monitoramentos sejam muito complexos e exijam a contratação de pessoal externo especializado. Com um método já preestabelecido, isso muda. Além de tornar a


O PROJETO

avaliação mais cara, pode demorar até que o parque tenha os resultados, e ainda mais para reagir a eles. Além dos indicadores básicos, pode haver itens específicos de avaliação para cada parque, de acordo com o seu uso, o que pode aprimorar o monitoramento de cada unidade. No Parque Estadual Intervales, no sudoeste de São Paulo, os problemas de drenagem da água da chuva foram um desses itens. Ali chove durante um terço do ano e os visitantes, ao se desviarem das poças, podem alargar a trilha. Por outro lado, o grau de compactação do solo, que sinaliza maior ou menor impacto em áreas mais selvagens como o Intervales, é um critério que não serve para o Parque Estadual da Cantareira, a 10 quilômetros da cidade de São Paulo. Lá, em uma trilha específica, o público não se preocupa com o tipo de calçado usado nas caminhadas e há quem vá até de sandálias havaianas. Algumas trilhas do parque são inclusive asfaltadas. "Mais

Proposição de políticas públicas a partir de modelos de avaliação e gestão de impactos socioambientais da visitação pública nas unidades de conservação do estado de São Paulo MODALIDADE

Programa de Políticas Públicas COORDENADOR JOSé CARLOS BARBIERI

- Fundação

Getúlio Vargas INVESTIMENTO

R$ 95.423,19 (FAPESP)

compactação do solo que isso impossível", afirma Paul Dale, coordenador técnico do projeto e do Programa de Ecoturismo da Fundação Florestal, órgão ligado à Secretaria de Meio Ambiente do estado de São Paulo. A informação coletada com os visitantes é um dos principais itens para o

monitoramento, que busca saber se suas expectativas foram atendidas. Afinal, entre as funções das unidades de conservação está o seu uso público. A cobrança de ingresso é importante para a manutenção financeira das unidades. Assim, é normal que se queira incentivar o aumento da visitação. Mas, como os impactos sobre o local são uma característica inerente à visitação, entende-se que o monitoramento é fundamental. "Trata-se de garantir que as unidades continuem com o ambiente conservado, com os impactos em níveis adequados", diz Dale. Nas cinco unidades que integraram a pesquisa - além da Cantareira e Intervales, os parques estaduais de Campos do Jordão e da Ilha de Anchieta e a Estação Ecológica Juréia-Itatins - foram treinadas cerca de 120 pessoas. Em algumas delas, o método continua sendo usado, mesmo após o fim do projeto. O objetivo é transformá-lo no sistema de monitoramento de todos os parques de São Paulo. •

PESQUISA FAPESP 125 • JULHO DE 2006 ■ 31


CIÊNCIA

0 hormônio do vinho

■ Tênis novo causa infecções Contagiada pelos jogos da Copa, a rapaziada resolve estrear o tênis novo e tentar os mesmos espetáculos oferecidos por um Ronaldinho ou um Beckham. Além do risco da frustração por se manter distante dos ídolos - e das eventuais distensões musculares -, há outro perigo: as bolhas causadas pelo calçado novo podem gerar infecções graves. Um estudo publicado em junho no British Medicai Journal descreve dois casos de uma síndrome que surgiu em crianças depois de jogar futebol com tênis novos. As duas ficaram com bolhas na pele sobre o tendão de Aquiles, em razão da fricção do pé com o tênis. As bolhas continham bactérias Staphylococcus aureus, que, em um dos casos, expressou o gene da síndrome do choque tóxico (TSS1). Um dos jogadores, ou melhor, uma jogadora, de 13 anos, com bolhas sobre os dois tendões, foi hospitalizada depois de ter febre, vômitos, diarréia e queda de pressão arterial. Saiu do hospital com uma receita de antibióticos. No outro caso - um garoto de 11

As uvas usadas para fazer os tif \ desse estudo, publicado na % pos de vinho tinto de amplo Chemistry & Industry. Pensa- 1 consumo podem conter altos va-se até recentemente que a | níveis de melatonina, um melatonina era produzida so- s hormônio que induz ao mente pelos animais - até ser sono, de acordo com o tradescoberta em plantas, possibalho de uma equipe da ^^ velmente com propriedades Universidade de Milão, Itáantioxidantes. Marcello dislia. A descoberta da melatose ter encontrado melatoninina na casca da uva explica na na casca das uvas das vapor que tantos de nós relaxay riedades Nebbolo, Merlot, mos gradativamente depois ^H ^w Cabernet Sauvignon, Sangiode um gole, seguido por outro, ^^^j mf ^ vesse e Croatina. Richard Wurtman, neurologista do Instituto de por outro e por outro. Poderia w^^T também ajudar a regular o ritmo cirI Tecnologia de Massachusetts, Estados cadiano, que determina os padrões de Unidos, não está convencido. Para ele sono e vigília, do mesmo modo que a ainda é preciso saber se os composmelatonina produzida pela tos descobertos são mesmo glândula pineal, segundo Irimelatonina - ou algo muito ti Marcello, coordenador parecido.

anos - com uma bolha apenas no tendão direito, também apresentou febre, vômito, diarréia e erupções de pele. No hospital, seu estado piorou e sua pressão caiu. •

■ Respiração denuncia presa Quando os morcegos hematófagos entram voando em uma caverna ou percorrem um pasto à noite, como iden-

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tificam a fonte de alimento, que também pode estar em movimento? Pelo som da respiração, concluíram pesquisadores alemães, estudando morcegos da espécie Desmodus rotundus. Um experimento conduzido por Udo Groeger e Lutz Wiegrebe, da Universidade Ludwig-Maximilians, de Munique, Alemanha, mostrou que morcegosvampiros ou hematófagos, que se alimentam exclusiva-

mente de sangue, inclusive humano, reconhecem sons gravados da respiração humana muito melhor que as próprias pessoas. Os morcegosvampiros, que se alimentam da mesma presa por várias noites seguidas, devem usar os sons da respiração para identificar a presa do mesmo modo que os humanos usam a voz para se reconhecerem. •

■ Rapidez para ver imagens eróticas Em um estudo feito na Universidade de Washington, Estados Unidos, o cérebro das mulheres reagiu mais rapidamente diante de imagens eróticas do que de outros tipos de cenas. Diante de casais parcialmente vestidos em poses sensuais, o cérebro das 264 mulheres que participaram como voluntárias desse experimento era acionado em média em 160 milissegundos, uma resposta 20% mais


rápida do que quando viam cenas de esquiadores na água ou de uma pessoa penteando cachorros. As 55 imagens mudavam a intervalos de 12 a 18 segundos e cada uma permanecia na tela de um computador por seis segundos. "Acreditávamos que tanto as imagens prazerosas quanto

as incômodas acionariam uma resposta rápida, mas as cenas eróticas sempre disparavam respostas mais intensas", comentou Andrey Anokhin, coordenador desse trabalho, publicado na Brain Research. Outro pressuposto que dançou: as mulheres têm respostas tão intensas e rápidas quanto as que brotam no cérebro masculino diante de imagens eróticas (pensava-se que seriam mais lentas). Esse trabalho sugere que grupos distintos de neurônios podem estar envolvidos no processamento de imagens eróticas, além de ajudar a entender e a tratar distúrbios psiquiátricos e sexuais associados a um deficiente processamento de sinais visuais. •

■ Diversidade e resistência Ambientes contendo muitas espécies diferentes de plantas são não só mais produtivos, mas também resistem melhor e por mais tempo a variações extremas de clima e pestes, de acordo com um estudo - o primeiro a reunir dados experimentais para confirmar um debate de pelo menos 50 anos sobre o impacto da biodiversidade sobre a estabilidade dos ecossistemas. As conclusões,

publicadas em maio na Nature, resultam de 12 anos de experimentos realizados por

uma equipe coordenada por David Tilman, ecólogo da Universidade de Minnesota, Estados Unidos, em 168 áreas de uma das 26 reservas de vegetação natural mantidas pela National Science Foundation (NSF) no interior do Alasca. A pesquisa mostra que ecossistemas contendo muitas espécies diferentes de plantas são 240% mais produtivos que aqueles com uma única espécie. Segundo Tilman, a volta da biodiversidade pode ser a chave para nutrir a crescente população mundial do planeta e para recuperar ambientes degradados. •

Vulcão do Havaí: fumaça com água

Nem toda água do mar está no mar. As profundezas da Terra guardam o equivalente a 10% do 1,3 trilhão de quilômetros cúbicos da água dos oceanos, mares e baías, estimaram geólogos ingleses da Universidade de Manchester. Eles encontraram água do mar em amostras de gás vulcânico proveniente do manto, região abaixo da crosta, reforçando a teo-

ria de que a água do mar mergulha pelo interior do planeta (Nature, 11 de maio). Os resultados ajudam a explicar por que vulcões oceânicos como os do Havaí, que trazem material da região em que o manto encontra o núcleo terrestre, carregam uma quantidade de água maior que os vulcões dos quais emerge magma de áreas mais próximas à superfície. •

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Antigos ceramistas do Pará l-OQ

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■ Fonte ambulante de alergia Quem tem alergia começa logo a espirrar ou tossir assim que entra em um carro. Parece ter alergia ao próprio carro. Mas não. Quase metade dos automóveis é também depósito ambulante de proteína de ácaros ou de pêlos de cães e gatos que põem em ebulição os mecanismos de defesa do corpo humano. Resultados: espirros, nariz escorrendo, coceira no olho. Em uma palavra, alergia. O acúmulo dessas proteínas, chamadas alérgenos, revela um pouco dos hábitos dos proprietários dos carros, concluiu Ernesto Taketomi com sua equipe da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Minas Gerais. Munidos de um aspirador de pó portátil, os pesquisadores coletaram amostras de poeira do banco do motorista e do passageiro de 60 carros de passeio e de 60 táxis. A poeira dos táxis continha mais alérgenos de ácaros que os automóveis particulares. Em quatro de cada dez táxis havia proteínas de ácaros em concentrações elevadas o suficiente para causar alergia, problema observado em apenas 5% dos

Começou em 2000 o levantamento sobre o potencial arqueológico da serra do Sossego, no município paraense de Canaã dos Carajás, que seria atingido por um projeto de exploração de cobre da Companhia Vale do Rio Doce. Em seis anos os pesquisadores do Museu Paraense Emílio Goeldi coletaram 30 mil fragmentos cerâmicos - o mais antigo de 2 mil anos e o mais recente de cerca de 500 anos. A partir desses

carros de passeio, de acordo com o artigo publicado no Journal of Investigational Allergology and Clinicai Immunology. A razão dessa diferença é que em Uberlândia, como

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vestígios, incluindo lâminas de machado de pedra, pingentes de pedra, pilões e urnas funerárias, os arqueólogos concluíram que essa região do sudeste do Pará fora habitada por horticultores da tradição ceramista tupi-guarani, de formas mais simples se comparadas com as marajoara e tapajônica. Os arqueólogos, cujo trabalho ajudou a salvar quatro sítios arqueológicos, trabalharam com os educadores, que criaram

em muitas cidades do interior, os taxistas estacionam seus carros à sombra com os vidros abertos para manter a temperatura interna amena, criando um ambiente favorá-

Nos bancos: proteínas de ácaros e de pêlos de animais

um projeto de educação patrimonial, com pesquisa sociocultural, exposições, oficina de artes, visitas e distribuição de livros. Deu tão certo que os moradores e artesãos locais, por meio de uma carta com 170 assinaturas, pediram a continuidade do trabalho. Já os artesãos do município vizinho de Parauapebas solicitaram que os pesquisadores do Museu Goeldi comecem a trabalhar também por lá. •

vel à proliferação dos ácaros. Já os donos dos veículos de passeio não se importam em parar o carro sob sol forte - o calor ajuda a eliminar os ácaros. O problema com os carros de uso privado é outro: em metade deles o nível de uma proteína encontrada no pêlo de cães era elevado a ponto de deixar alerta o sistema de defesa ou mesmo disparar uma crise alérgica. A contaminação do veículo, claro, está associada à presença de um animal de estimação em casa. Mesmo que o dono não o leve para passear de carro, como constatou a equipe de Taketomi em um estudo anterior. •


■ Intoxicações em alta escala No Mato Grosso do Sul os agrotóxicos estão eliminando mais do que as pragas agrícolas. Estão matando os trabalhadores rurais, segundo estudo publicado na Science of the Total Environment. Nesse trabalho Maria Celina Recena e Dario Pires, da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, e Eloisa Dutra Caldas, da Universidade de Brasília, analisaram 1.355 casos de envenenamento por defensivos agrícola registrados no estado de 1992 a 2002. Encontraram dados alarmantes: em 37% dos casos, a intoxicação foi intencional. Embora os casos de envenenamento no Mato Grosso do Sul representem só 2,4% das intoxicações por pesticidas no país, a proporção de mortes ali é de 13%, quatro vezes superior à média nacional. Os mais atingidos são os homens, com idade entre 20 e 50 anos. A taxa mais elevada de intoxicação foi encontrada na região da capital, Campo Grande, provavelmente porque ali o registro das intoxicações é mais preciso do que no restante do estado - estima-se que para cada caso de envenenamento registrado no país existam outros 50 não-identificados. A segunda região mais afetada é a de Dourados, pólo agrí-

cola e segunda maior produtora no Mato Grosso do Sul de algodão, cultura que consome quase 80% dos agrotóxicos usados no Brasil. O país é o terceiro maior consumidor de defensivos agrícolas do mundo. •

■ Células-tronco restauram fígado Radicado nos Estados Unidos desde 1962, o médico brasileiro Nelson Fausto conseguiu isolar uma linhagem estável de células-tronco de

fígados fetais humanos. Implantadas em camundongos com imunodeficiências e danos agudos no fígados, elas se diferenciaram em outros tipos de células, como hepatócitos e células ductais biliares, e restabeleceram parte do órgão que havia sido danificada. Mas ainda há muito a fazer em laboratório antes que essa técnica experimental possa ser adotada em procedimentos médicos com seres humanos, alerta Fausto, chefe do Departamento de Patologia da Universidade de Washington, em Seatle, e autor principal do estudo publicado na revista PNAS detalhando os resultados. •

As cicatrizes sociais do câncer Quem sobrevive a um câncer nem sempre está livre de marcas que podem ir além das cicatrizes de uma cirurgia. Os tumores, em especial os detectados em estágio avançado, podem afetar a vida econômica e social de quem superou a doença e dos que estão à sua volta, por incapacitar as pessoas para o trabalho e reduzir a renda familiar. A equipe de Luiz Paulo Kowalski, do Hospital do Câncer A. C. Camargo, em São Paulo, entrevistou 301 pessoas que haviam tido tumor de boca, faringe ou laringe e estavam livres do problema havia pelo menos dois anos. Um terço dos entrevistados se tornou inapto para o trabalho mesmo após superar esses tipos de tumor. A renda familiar caiu muito em 42% dos casos. O principal fator de risco associado à incapacitação para o trabalho

foi a baixa escolaridade: 80% dos entrevistados não haviam completado o ensino médio. Duas hipóteses ajudam a compreender esses resultados, detalhados nos Archives of Otolaryngology - Head and Neck Surgery. Pessoas com nível sociocultural mais elevado estariam mais bem preparadas para lidar com o câncer e suas seqüelas. Outra explicação: Sè**» as pessoas com menor escolaridade geralmente trabalham em atividades que exi-», gem força física, reduzida pela enfermidade. Para os autores desse estudo, os resultados podem mostrar quem precisaria passar por uma reabilitação mais intensiva para facilitar a volta ao trabalho. Se a reabilitação não desse certo, essas pessoas deveriam receber um suporte social mais abrangente. •

Cabeça de soldado, 1504-1505, obra inacabada de Leonardo da Vinci

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O CAPA FARMACOLOGIA

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cerebral Extraído da maconha, canabidiol age contra ansiedade e outros distúrbios mentais

CARLOS FIORAVANTI


m um laboratório excepcionalmente amplo do segundo andar de um casarão de estilo neoclássico pintado de ocre, de cujas janelas se pode apreciar o jardim repleto de árvores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto, novos estudos fundamentam os potenciais usos médicos do canabidiol, uma das substâncias mais abundantes de uma planta que desperta paixões, delírios doces ou tristes recordações, críticas enfurecidas e, nos últimos tempos, um crescente interesse científico: a maconha. Como demonstrado por meio de experimentos com animais realizados pela equipe de Francisco Guimarães, o canabidiol detém a ansiedade de modo equivalente a medicamentos sintéticos utilizados há décadas e, de acordo com os resultados preliminares de um dos estudos em andamento, pode também reduzir a depressão. Como outros estudos haviam indicado, o canabidiol pode funcionar também contra leucemia, epilepsia e doenças neurodegenerativas como o mal de Alzheimer. PESQUISA FAPESP 125 ■ JULHO DE 2006 ■ 37


Em outro laboratório da USP de Ribeirão Preto, no quarto andar do Hospital das Clínicas, atrás do casarão que já foi a sede de uma fazenda de café, Antônio Zuardi encontrou evidências de que esse composto pode funcionar também como antipsicótico e aplacar os sintomas mais graves da esquizofrenia, como os delírios e a dificuldade de reconhecer o próprio corpo. Zuardi deve começar neste mês os testes em portadores de transtorno bipolar do humor, antes chamado de psicose maníaco-depressiva, já que o canabidiol poderia atuar contra a intensa aceleração do pensamento e outros sintomas psicóticos que acompanham esse tipo de distúrbio mental. Em paralelo, pesquisas realizadas principalmente nos Estados Unidos, na Inglaterra e na Austrália mostram que o canabidiol pode proteger o sistema nervoso central, ampliando a sobrevida de neurônios, além de ajudar a deter inflamações e a controlar a pressão arterial. Há indicações de que o canabidiol possa ainda bloquear o crescimento de tumores no cérebro, abrindo perspectivas de que esse composto químico - que nada tem a ver com os efeitos típicos da maconha - possa ser utilizado sozinho ou em combinação com o mais estudado dos constituintes da famosa planta, o delta-9-tetraidrocanabinol ou, para encurtar, THC. Igualmente versátil, mas com alguns efeitos colaterais que poderiam ser amenizados pelo canabidiol, o THC já é a

base de dois medicamentos, um nos Estados Unidos e outro no Reino Unido, ambos indicados para conter a náusea e o vômito do tratamento quimioterápico contra o câncer. Os franceses, observando um dos fenômenos resultantes do consumo da Cannabis sativa — a fome intensa, chamada de larica por quem tem alguma familiaridade com a planta -, criaram uma categoria de medicamentos que bloqueia as moléculas de superfície nas quais o THC se liga, ajudando assim as pessoas a perder peso, de acordo com os testes já feitos. A GW Pharmaceuticals, sediada na Inglaterra, combinou o canabidiol e o THC em proporções iguais em um medicamento aprovado no Canadá em 2005 contra dores resultantes da esclerose múltipla. s artigos científicos que relatam os efeitos do canabidiol e do THC, fundamentando o desenvolvimento de novos medicamentos, inevitavelmente remetem às pesquisas pioneiras que começaram a ser feitas há 30 anos por uma equipe da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) coordenada pelo professor Elisaldo Carlini, da qual Zuardi fez parte. As descobertas têm aumentado o conhecimento sobre a planta também chamada de erva-dodiabo em razão de seu poder entorpecente: trata-se, afinal, da droga ilícita mais consumida no mundo. Segundo o Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), 6,9% da

população brasileira já utilizou a maconha pelo menos uma vez na vida - um resultado abaixo dos Estados Unidos (34,2%), do Reino Unido (25%) ou do Chile (19,7%). Seu impacto social, no entanto, pode não ser tão intenso quanto se imagina. De acordo com o Cebrid, o número de dependentes atingiria 1% da população do país, o equivalente a cerca de 450 mil pessoas. Das 55 mil internações hospitalares causadas por drogas registradas em 2005, apenas 1,3% estavam associadas à maconha e 90% ao álcool. Fibras nas caravelas - Originária da Ásia, de folhas alongadas e recortadas, a Cannabis sativa pode atingir 3 metros de altura. Seu caule fornecia uma fibra natural bastante resistente, o cânhamo, usado nas velas das embarcações portuguesas que chegaram a Salvador em 1500. Algumas décadas mais tarde chegariam as sementes de cânhamo, escondidas nas bonecas de pano amarradas nas pontas das tangas dos escravos negros, de acordo com o livro Cannabis sativa L. e substâncias canabinóides em medicina, editado pelo Cebrid. No início do século passado, o cânhamo deixou de ser usado à medida que suas equivalentes sintéticas começaram a ser produzidas. Mais tarde criouse uma associação entre o hábito de fumar as folhas e as flores dessa planta com as classes mais baixas da população e com a loucura. Essas relações hoje são vistas com restrições por pesquisadores como Franjo Grotnhermen, do Instituto

Os efeitos prejudiciais da Cannabis Evidentemente as potenciais indicações médicas da Cannabis sativa não justificam seu uso recreacional, marcado por uma série de efeitos deletérios sobre o organismo. Olhos avermelhados, boca seca e coração acelerado são só os primeiros sinais. O hábito de fumar maconha pode provocar nos homens uma diminuição da testosterona, hormônio que dá massa muscular, deixa a voz mais grossa e aciona a produção de espermatozóides; nas mulheres, as alterações hormonais podem até inibir a ovulação. A fumaça, por ser irritante, pode afetar os pulmões e gerar problemas respiratórios - o mais

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comum é a bronquite. Em paralelo à sensação de calma, relaxamento e vontade de rir, o uso contínuo pode provocar tremor, sudorese, angústia e medo de perder o controle mental - é a má viagem ou bad trip, como os usuários chamam. As perdas temporárias da capacidade de percepção do espaço, da memória de curto prazo e do pensamento abstrato podem prejudicar o desempenho de atividades que exigem atenção e concentração, como estudar ou dirigir. O uso contínuo pode ainda despertar ou agravar doenças psíquicas. Mais informações: Cebrid (www.unifesp.br/dpsicobio/cebrid).


A Cannabis sativa em um desenho de 1887 de Franz Eugen Kõhler: utilizada há 6 mil anos

Nova, da Alemanha, que demonstra quão inconsistentes elas são em um artigo publicado na edião de 15 de maio deste ano da revista médica Lancet. A imagem negativa da planta que se tornou um ícone da rebeldia começou a se desfazer há cerca de 40 anos com a identificação da estrutura química de seus componentes e a descoberta de como poderiam funcionar no organismo. As pesquisas sobre os efeitos da planta começou a ganhar legitimidade principalmente com a descoberta das moléculas da superfície das células nervosas, chamadas receptores CB1 e CB2, às quais o THC se ligaria. Surgiu então uma pergunta torturante: o sistema nervoso teria um mecanismo natural para lidar com o THC? A dúvida só se desfez quando Raphael Mechoulam, da Universidade de Jerusalém, em Israel, isolou uma molécula muito semelhante ao princípio ativo da maconha, que ganhou o nome de anandamida — em sânscrito, "ananda" significa bem-aventurança. Seria apenas o primeiro dos endocanabinóides, mensageiros químicos produzidos quando as células nervosas são estimuladas e consumidos em poucos segundos. Contra insetos - Além do THC, a maconha contém outras 65 substâncias chamadas canabinóides, que podem exercer algum efeito sobre os neurônios - a maioria delas foi muito pouco estudada. Algumas delas têm efeitos opostos entre si, como o próprio canabidiol, que inibe a ação do THC. Ambos apresentam uma estrutura química muito parecida e se formam nas pequenas glândulas que recobrem principalmente as folhas e as flores femininas da Cannabis. Quando essas frágeis glândulas se rompem, é liberada uma resina de alto poder entorpecente, conhecida como haxixe, que para a planta deve funcionar como defesa contra insetos. Responsável pelos efeitos mais conhecidos da maconha, como a sedação e a euforia, o THC tem tido amplas aplicações médicas: mostrou-se capaz de PESQUISA FAPESP 125 ■ JULHO DE 2006 ■ 39


aplacar dores, enjôos e processos inflamatórios, além de estimular o apetite. Tamanha versatilidade explica por que essa planta começou a ser cultivada e utilizada com finalidades médicas na China há cerca de 6 mil anos. Seu uso terapêutico atingiu um clímax no final do século 19, quando era fácil obter extratos de qualidade, até diminuir drasticamente nas primeiras décadas do século passado, "em grande parte pela dificuldade na obtenção de resultados consistentes de amostras da planta com diferentes potências", escreve Zuardi em um artigo a ser publicado na Revista Brasileira de Psiquiatria. Contra dores - Estudos feitos no Brasil, nos Estados Unidos e na Inglaterra indicam que o THC pode ajudar a amenizar problemas de saúde como Aids, dores da artrite, esclerose múltipla e insônia. "Não há mais justificativa ética para os médicos deixarem de receitar o THC", comenta Carlini, pioneiro no Brasil do estudo sobre os efeitos da maconha. Um dos trabalhos mais recentes, realizado por uma equipe do Imperial College London e publicado em maio na Anesthesiology, indica que o extrato da Cannabis — uma mistura de canabinóides, predominando o THC - ajuda a aliviar dores que surgem depois de cirurgias com efeitos colaterais mínimos em baixas doses; doses mais altas causaram náusea e taquicardia. O THC isolado apresenta outros efeitos indesejados, como o riso frouxo e as gargalhadas descontroladas, que podem durar duas ou três horas, de acordo com a descrição de uma edição de 1888 do Formulário eguia médico, de Pedro Luiz Napoleão Chernoviz, que Carlini retira da estante e lê com cuidado - ali estão também usos hoje pouco mencionados, como o tratamento de bronquite crônica e diferentes tipos de falta de ar ou dispnéia. Ele próprio, em um artigo de revisão publicado em 2004 na Toxicon, menciona outros riscos: o THC pode também reduzir a capacidade de discriminar intervalos de tempo e distâncias, a vigilância, a memória e a habilidade de trabalhos mentais e gerar pensamentos desconectados, ansiedade, reações de pânico, delírios ou alucina40 ■ JULHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 125

ções. Já o canabidiol até agora só apresentou um efeito colateral, a sedação, em doses muito altas. É por essas razões que o canabidiol poderá ser adotado em um primeiro momento para reduzir os efeitos indesejados do THC - uma possibilidade que fortalece o trabalho desenvolvido desde 1998 pela GW Pharmaceuticals com o Sativex, medicamento que combina os dois compostos em proporções iguais. A aliança entre as duas substâncias irmãs poderá ir além da esclerose múltipla, a doença para a qual o Sativex já foi aprovado para uso médico pelo governo canadense. Nos Estados Unidos, a Agência de Alimentos e Medicamentos (FDA, na sigla em inglês) o qualificou como nova droga sob investigação (IND), permitindo o início dos testes em busca de alternativas para reduzir a dor de pessoas com câncer. ara mostrar os mecanismos pelos quais a combinação de canabidiol e THC poderiam agir e evitar os efeitos indesejados do uso isolado do THC, em um artigo publicado em 2005 na revista Medicai Hypotheses, Ethan Russo, pesquisador da GW e das universidades de Washington e de Montana, ambas nos Estados Unidos, apóia-se na rica safra de trabalhos produzidos entre 1970 e 1985 no laboratório da Unifesp dirigido por Carlini e ainda hoje muito mencionados nos estudos exploratórios sobre a Cannabis sativa. Carlini e seu então aluno de doutorado Jomar Medeiros Cunha, hoje professor titular na Universidade Federal de Uberlândia, em Minas Gerais, haviam demonstrado que o canabidiol reduzia pela metade as con-

Participação do glutamato e do oxido nítrico na físiopatogenia de distúrbios psiquiátricos MODALIDADE Projeto Temático

COORDENADOR FRANCISCO SILVEIRA GUIMARãES

INVESTIMENTO R$ 501.016,74 (FAPESP)

- USP

vulsões de portadores de epilepsia. Foi também Carlini que mostrou em animais que o canabidiol às vezes ampliava e outras vezes bloqueava o efeito do THC. Somente em 1990 é que Guimarães, na USP de Ribeirão Preto, resolveu esse mistério demonstrando que os resultados conflitantes observados em modelos animais de ansiedade com o canabidiol poderiam ser explicados pela dose: doses baixas produzem efeitos ansiolíticos, enquanto doses altas, não. Ousadia - Quando passou pelo laboratório de Carlini, entre 1976 e 1980, para fazer seu doutorado sob a orientação de Isaac Karniol, Zuardi fez algo ousado: testou os dois compostos em oito voluntários saudáveis, que conheciam a maconha apenas de ouvir falar. A cada semana, eles recebiam placebo, canabidiol, THC, uma mistura de canabidiol com THC ou diazepam, um ansiolítico bastante conhecido, que servia como controle ativo. O THC, sozinho, produzia ansiedade e sintomas psicóticos como as intensas alterações de pensamento, que diminuíam bastante quando o participante do estudo recebia também canabidiol. "Foi a primeira indicação dos possíveis efeitos ansiolíticos e antipsicóticos do canabidiol", conta Zuardi. Há dois anos seu aluno José Alexandre Crippa coordenou um experimento que demonstrou por meio de imagens do sistema nervoso que o canabidiol ativa as regiões do encéfalo associadas à ansiedade, nas quais aumentou o fluxo sangüíneo. Também ajudando a aprofundar e explicar os estudos feitos há 25 anos, Leonardo Resstel, Fabrício Moreira e Sâmia Joca, no laboratório de Guimarães, em um trabalho aceito para publicação na Behavioral Brain Research, mostraram que o canabidiol pode funcionar tão bem quanto o diazepam para reduzir o medo condicionado em ratos. Os estudos com esquizofrenia estão menos maduros. Em 1995 Zuardi tratou uma mulher de 19 anos que padecia de sérios efeitos colaterais com o haloperidol e outros medicamentos indicados contra esquizofrenia. Nesse caso o canabidiol funcionou bem. Mas em outro teste, com três participantes resistentes ao tratamento convencional, o canabidiol trouxe apenas ganhos modestos, in-


Da ciência à produção: dos laboratórios da GW (acima) sai o Sativex, com THC e canabidiol, já aprovado no Canadá

dicando que as pessoas resistentes a outros medicamentos também não apresentam uma boa resposta a esse componente da Cannabis sativa. Mesmo assim há boas perspectivas. Um artigo de revisão publicado no início do ano no Brazilian Journal and Biological Research propõe que o canabidiol possa trazer benefícios a portadores de esquizofrenia que não apresentem resistência a outros medicamentos. Com uma vantagem: sem causar a rigidez muscular e os tremores que podem surgir com os antipsicóticos normalmente utilizados. "O haloperidol ativa duas regiões do sistema nervoso, as áreas límbicas e os núcleos da base, levando à manutenção de uma postura anormal",

observa Guimarães, "enquanto o canabidiol ativa apenas as áreas límbicas". Os resultados iniciais de um teste com dezenas de pessoas coordenado por Markus Leweke, da Universidade de Kõln, da Alemanha, indicam que o canabidiol pode atuar tão bem quanto a amisulprida, outro antipsicótico bastante empregado. "Oportunidade valiosa" - Se algumas portas se abrem, outras, porém, se fecham. A FDA soltou no final de abril uma declaração que proibia qualquer uso médico da maconha, reforçando a divisão entre o governo federal e os 11 estados norte-americanos que já haviam aprovado o uso da droga para aliviar do-

res. O comunicado gerou protestos ao argumentar que não havia evidências da segurança e eficácia do emprego medicinal da maconha, embora o próprio Instituto de Medicina dos Estados Unidos tivesse recomendado em 1999 que o uso da planta contra náusea, perda de apetite e ansiedade fosse estudado mais intensivamente, diante dos resultados positivos que já haviam sido obtidos. "Cientificamente", diz Guimarães, "não há como justificar essas restrições". Mas ele aposta: dessas pesquisas surgirão outros medicamentos. Em um estudo publicado em 2005 na Drugs of the Future, Leonora Long, Daniel Malone e David Taylor, da universidade australiana de Monash, sustentam que a exploração dos constituintes da maconha como o canabidiol representa "uma oportunidade clínica valiosa". Certamente as oportunidades de aproveitamento das pesquisas feitas no Brasil seriam mais claras se não houvesse um vácuo tão grande entre as universidades e as indústrias. Para os cientistas está começando um novo ciclo de uso dos derivados da Cannabis como medicamento. "Um uso mais consistente que no passado", assegura Zuardi. "As estruturas dos compostos químicos são agora conhecidas, os mecanismos de ação no sistema nervoso estão sendo elucidados e a efetividade e segurança do tratamento estão sendo cientificamente provadas." • PESQUISA FAPESP125 ■ JULHO DE 2006 ■ 41


Q CIÊNCIA

BIOLOGIA CELULAR

Herança

materna Mecanismo de transmissão de bactéria da mãe para a prole de insetos auxilia pesquisa de células-tronco e tratamento de doenças tropicais

42 ■ JULHO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 125

e uma pesquisa sobre uma bactéria que sob o microscópio se parece com um grão de arroz emergiram informações que ajudam a entender a propagação de infecções e explicam um pouco melhor o desenvolvimento das células-tronco, a esperança da medicina contemporânea por originarem outros tipos de células. Além disso, algumas conclusões podem ser úteis para combater doenças tropicais como a dengue e a elefantíase. As perspectivas que agora parecem tão amplas nasceram de uma pergunta puramente científica: Como a bactéria Wolbachia pode ter se tornado um dos microorganismos mais bem-sucedidos do planeta, a ponto de disseminar-se entre milhões de espécies de artrópodes, incluindo insetos, aranhas e crustáceos, além de vermes como a lombriga? A aranha que cai da cortina ou a mosca que entra pela janela provavelmente carregam milhares de bactérias do gênero Wolbachia. O biólogo brasileiro Horácio Frydman carregava essa dúvida em 2002 quando bateu à porta de um dos laboratórios da Universidade de Princeton, Estados Unidos, coordenado por Eric Wieschaus, um dos ganhadores do Prêmio Nobel de Medicina em 1995 por ter descoberto os genes e os mecanismos que controlam o desenvolvimento embrionário - ele trabalhara com a mosca-das-frutas, Drosophila melanogaster, mas esses princípios se aplicam também a organismos superiores, incluindo os seres humanos. Frydman contou-lhe que havia feito o mestrado no Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP) com Roberto Santelli e doutorado na Universidade Johns Hopkins com Allan Spradling, respeitado especialista em células-tronco, e que pretendia estudar a Wolbachia em Drosophila. Wieschaus nunca tinha ouvido falar em Wolbachia, mas gostou da proposta e deu-lhe um ano para mostrar resultados; se não conseguisse, Frydman teria de abandonar seu projeto próprio e começar a trabalhar em uma das linhas de pesquisa em andamento no laboratório. Frydman trabalhou avidamente - e conseguiu. Primeiramente, desenvolveu algumas técnicas de microscopia que lhe permitiram visualizar as bactérias no interior da Drosophila e, pouco a pouco, elucidar como elas se instalam no organismo hospedeiro e são depois transmitidas. Quando injetada no abdômen de uma mosca, essa bactéria demora 15 dias para atravessar membranas e tecidos musculares e chegar aos ovários do inseto, que têm o aspecto de um cacho de bananas. Mas por que os ovários, e não os intesti-


Modelo iluminado Após embasar os estudos em genética, a Drosophila melanogaster mostra que pode ensinar muito sobre a transmissão de parasitas e o desenvolvimento de células-tronco. Todas as células desta mosca têm uma proteína fluorescente verde, que facilita a identificação de tecidos transplantados.


nos, o coração ou o cérebro, como outros parasitas? Porque nos ovários - ou melhor, em um de seus compartimentos, o germário - é que estão as célulastronco somáticas, que originam a casca do ovo e outras estruturas que vão proteger o embrião, e as células-tronco germinativas, que originam as células sexuais ou gametas. As células-tronco, ao se dividirem, originam diferentes tipos de células, de acordo com o tecido em que se formam. as a bactéria não as infecta diretamente. Antes - e essa foi a descoberta mais notável -, a Wolbachia se acumula em um microambiente do germário chamado nicho, que fornece proteínas e estímulos essenciais à manutenção e à multiplicação das células-tronco. Como Frydman demonstrou produzindo e analisando imagens como as que ilustram esta reportagem, a Wolbachia também usufrui desse espaço, como se tivesse chegado à casa materna depois de uma longa viagem e pudesse finalmente estabelecer-se, alimentar-se e multiplicar-se. Só então sai e infecta as células somáticas e as germinativas. "Dezoito dias depois da infecção inicial", conta ele, "todas as células germinativas estão infectadas com Wolbachia". A partir do nicho, a bactéria pode se infiltrar nas células que formam o ovo e propagar-se nas gerações seguintes. Frydman demonstrou que a chamada transferência ou infecção vertical da mãe para os filhos - foi bem-sucedida quando coletou os ovos das moscas em que havia injetado bactérias e verificou que as gerações seguintes também estavam infectadas. Era uma prova de que a Drosophila - um inseto de 2 a 3 milímetros ao qual a maioria das pessoas não costuma dar nenhuma atenção, mas é considerado um dos melhores modelos de estudo para a genética por multiplicar-se rapidamente e apresentar cromossomos que podem ser manipulados com relativa facilidade também pode ensinar muito sobre a transmissão de parasitas. Publicado na na Nature de 25 de maio, esse trabalho é 44 ■ JULHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 125

a primeira demonstração do mecanismo de transmissão dessa bactéria de um organismo para outro e o primeiro relato de uma bactéria infectando especificamente o nicho da célula-tronco. Casa materna - Mas por que a Wolbachia conquista primeiramente o nicho? "É um artifício extremamente vantajoso, que explica como essa bactéria se tornou tão onipresente", diz o biólogo de 40 anos, que atualmente trabalha como pesquisador associado na Universidade de Princeton, mas deseja um dia retornar ao Brasil. "O nicho é uma estrutura permanente do ovário dos insetos, permitindo que a população de bactérias que o ocupam se renove, amplifique e espalhe. Curiosamente, é a mesma estratégia de que as células-tronco se valem ao formarem os tecidos." Spradling,

seu ex-orientador de doutorado, insistia há pelo menos seis anos na importância do nicho, um conceito emprestado da ecologia para designar uma região que, embora de localização e constituição ainda hoje imprecisas, definiria as características fundamentais das célulastronco. O nicho também controlaria a taxa de divisão e o processo de diferenciação em outros tipos de células. A identidade que as células-tronco pudessem assumir dependeria, portanto, do ambiente em que vivessem. No início essas idéias atraíram apenas olhares desconfiados. No entanto, uma série de pesquisas feitas nos últimos anos demonstrou que diversos tipos de células-tronco, de insetos a humanos, realmente dependem do nicho em que vivem. Uma reportagem publicada no ano passado na Nature mos-


trou como as idéias de Spradling e de outros pioneiros agora são aceitas - o nicho tornou-se objeto de intensa pesquisa. Hoje se sabe que células já diferenciadas podem regredir ao estágio de células-tronco se recolocadas no nicho, como se fossem adultos que voltassem a se comportar como crianças ao regressarem à casa materna. "A Wolbachia deve encontrar algo especial no nicho, que ainda não sabemos o que é", diz Frydman. Por essa razão ele acredita que essa bactéria poderia se tornar uma ferramenta para estudar o nicho e entender melhor o desenvolvimento e as potenciais aplicações médicas das células-tronco. Não seria a primeira vez que os biólogos se aliam com parasitas: muito do conhecimento sobre o esqueleto celular resultou do estudo da Listeria, outra bactéria que vive

no interior das células. Desta vez, porém, não seria nada trivial, já que cada órgão - fígado, ossos ou cérebro - deve abrigar nichos específicos e populações distintas de células-tronco. "Em muitos órgãos, por falta de marcadores específicos, é impossível diferenciar o nicho e as células-tronco das outras células", diz. Mesmo assim, o conhecimento sobre as estratégias de sobrevivência dessa bactéria pode ajudar a combater doenças tropicais transmitidas por insetos ou por vermes. Uma equipe da Universidade de Queensland, na Austrália, receberá US$ 10 milhões da Fundação Bill e Melinda Gates para deter a propagação do vírus da dengue na África intervindo nas populações de Wolbachia que se instalam nos mosquitos transmisso-

res. A pesquisa com Wolbachia também oferece novas perspectivas de tratamento para doenças como a elefantíase, enfermidade que atinge 120 milhões de pessoas em 80 países, caracterizada pelo entupimento dos vasos linfáticos e pelo inchaço descomunal das pernas ou dos órgãos genitais. Como se descobriu recentemente, as células germinativas dos vermes que a provocam estão repletas de Wolbachia. Portanto, os antibióticos, em associação com os vermífugos, podem ser bastante úteis. Os primeiros testes mostraram que os vermes se tornam estéreis e também morrem quando as bactérias são destruídas pelos antibióticos. • CARLOS FIORAVANTI PESQUISA FAPESP 125 ■ JULHO DE 2006 ■ 45


O CIÊNCIA VIROLOGIA

Homens na berlinda Mais atenção à saúde sexual masculina pode ajudar a conter disseminação de vírus ligado ao câncer de útero

FRANCISCO BICUDO ILUSTRAçõES HéLIO DE ALMEIDA

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Instituto Nacional do Câncer (Inca) estima que 19.260 brasileiras serão afetadas em 2006 pelo câncer de colo de útero, o mais comum entre as mulheres depois do câncer de mama. No mundo todo a doença, mais freqüente entre os 35 e os 45 anos, atinge cerca de 470 mil mulheres por ano - e mata metade delas. "No Brasil provoca mais mortes na população feminina do que a Aids", alerta a bióloga Luisa Lina Villa, do Instituto Ludwig de Pesquisas sobre o Câncer. A melhor forma de combater o problema é incentivar a realização de exames ginecológicos preventivos, já que esse tumor é provocado por alguns tipos do papilomavírus humano, o HPV. Transmitidos quase sempre por via sexual, esses vírus se instalam na vagina e nos tecidos da entrada do útero, onde desencadeiam lesões. Ainda este ano a possibilidade de controle do câncer de colo de útero deve se ampliar com a chegada de uma vacina preventiva ao mercado internacional. É um avanço significativo que reforça as estratégias de combate ao vírus focadas nas mulheres. Mas as vacinas não serão suficientes. Para o controle mais eficiente da disseminação do HPV é preciso levar em consideração um ator que apenas recentemente passa

a ser percebido com a devida atenção: o homem, a um só tempo vítima e responsável pela transmissão do HPV. "Se não incluirmos os parceiros nesse processo, é possível que a mesma mulher, depois de ter eliminado o vírus, volte a se infectar", avisa Luisa. Ela participou de um estudo coordenado pela Universidade de Caxias do Sul, publicado em fevereiro no Brazilian Journal of Medicai and Biological Research, que analisou a relação entre o HPV e a população masculina. Os resultados mostram que, dos 99 homens avaliados, todos parceiros de mulheres com câncer de colo de útero, 54 apresentavam material genético do vírus - destes, apenas 28% haviam desenvolvido lesões evidentes, como verrugas no pênis. Ainda não é possível saber o caminho original da contaminação, se do homem para a mulher ou o oposto, mas o trabalho indica uma situação perigosa, já que eles não têm o hábito de fazer exames para detectar a infecção. Em

geral o médico só é procurado depois que surgem as verrugas, chamadas cristas de galo, encontradas em 3% a 5% dos homens. O estudo confirma ainda que o sexo masculino, embora em menor escala, pode sofrer as conseqüências da infecção pelo vírus - às vezes bem graves. No limite, é possível que lesões leves se transformem em câncer de pênis. É verdade que esse tipo de tumor atinge apenas dois de cada 100 mil homens anualmente. "Mas é um fantasma que precisa ser conhecido com mais detalhes", reconhece Luisa, responsável pela coordenação no Brasil dos estudos que resultaram na primeira vacina de prevenção contra o HPV a chegar ao mercado. Chamada de quadrivalente, essa vacina foi aprovada no início de junho pela Food and Drug Administration (FDA), agência norte-americana que controla a liberação de medicamentos. Ela protege contra quatro tipos de HPV -o 16eo 18, responsáveis por pelo menos 70% dos casos de câncer de colo de útero, além do 6 e do 11, relacionados a 90% das verrugas genitais nos homens e nas mulheres. "São conhecidos mais de 100 tipos de HPV, capazes de provocar problemas simples, como as verrugas genitais, e outros gravíssimos, como os cânceres invasivos", explica Luisa. Até o final deste ano, uma segunda vacina preventiva deve chegar ao mercado europeu - a bivalente, que leva esse nome por atuar exclusivamente contra os tipos 16 e 18 do vírus. Garantidos para as mulheres, os benefícios das duas vacinas para a população masculina ainda precisam ser confirmados. Enquanto os resultados não emergem, a saída é buscar estratégias de combate ao HPV que incluam esse grupo, uma tarefa nada fácil. Primeiro, seria preciso superar um tabu cultural: admitir que o órgão sexual masculino, símbolo de virilidade, não é invulnerável. "Os homens ficam sempre repetindo 'não é comigo, não tenho nada, para que fazer exames?'", diz Luisa. A tarefa seguinte: encontrar alternativas ao exame de peniscopia, que usa uma lente de aumento para detectar sinais deixados pelo vírus em quem já foi infectado. "Dependendo da região do pênis de onde é retirado o material para análise, o resultado dá negativo. Mas o HPV pode estar em outro ponto do órgão genital", explica Cecília Maria Roteli-Martins, médica dos hospitais Nove de Julho e Leonor Mendes de Barras, ambos em São Paulo, e uma das participantes dos estudos feitos no Brasil sobre a vacina bivalente. Outro problema é que a peniscopia pode indicar contaminação por HPV quando, de fato, ela não PESQUISA FAPESP 125 ■ JULHO DE 2006 ■ 47


ocorreu - resultado conhecido como falso-positivo, que pode levar à realização desnecessária de exames como a biópsia, em que se retira uma pequena amostra de tecido do pênis. Na opinião de Cecília, o fundamental é educar os homens para usarem preservativos, além de ampliar estudos sobre a população masculina. "É uma tendência que começa a se manifestar", comemora Cecília. Atenta a essa necessidade, Luisa iniciou, em parceria com equipes dos Estados Unidos e do México, um trabalho que envolve 3 mil homens com idade entre 18 e 45 anos para avaliar os impactos do HPV sobre a população masculina. Os primeiros resultados deverão ser conhecidos até o final do ano. Se no caso dos homens a trajetória está apenas começando, a caminhada em relação ao segmento feminino chega a um momento especial. Os testes clínicos mostram que a vacina quadrivalente protege tanto contra o desenvolvimento de verrugas como o do câncer de colo de útero, sem efeitos colaterais importantes. A proteção pode se estender por um período de cinco anos. Os estudos envolveram cerca de 18 mil mulheres, com idade entre 16 e 25 anos, em 33 países - dentre eles Brasil, Estados Unidos, Alemanha e Canadá. Os resultados foram divulgados em abril, em Paris, durante o congresso da European Research Organization on Genital Infection and Neoplasia (Eurogin). No Brasil, a expectativa é de que o produto, produzido pelo laboratório norte-americano MerckSharp & Dhome, seja liberado até dezembro pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Cinturão anti-HPV - Também chamada de partícula semelhante a vírus (VLP, na sigla em inglês), a vacina estimula e engana o organismo humano. A estratégia é simples: insere-se em um vetor o gene LI, responsável pela produção da principal proteína da cápsula do HPV. Esse vetor, em geral um vírus, infecta a levedura de cerveja, Saccharomyces cerevisae, e se apropria dos sistemas de multiplicação do material genético. Graças à engenharia genética é possível extrair da levedura cópias do gene LI sem o material genético do vetor viral, ou seja, um vírus vazio e inofensivo. Eis a vacina, aplicada nas mulheres em três doses ao longo de seis meses. "Como ela imita o HPV, o corpo entende que é hora de combater o invasor", explica Luisa. Mulheres que recebem a vacina chegam a produzir 50 vezes mais anticorpos que as não-vacinadas. Quando o HPV penetra no corpo, em geral próximo à entrada do útero, aumenta a concentração de anticorpos nessa região, formando um cinturão que evita a instalação do vírus e as infecções. A vacina bivalente segue a mesma lógica de atuação. Mas sua produção usa um vetor diferente: um baculovírus, vírus que infecta insetos. Nesse caso, os estudos, financiados pelo laboratório GlaxoSmithKline, sediado na Bélgica, envolveram cerca de 18 mil mulheres, em mais de 25 países. Eles indicam que a 48 ■ JULHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 125

proteção, a exemplo do verificado com a quadrivalente, é de 100% e sem efeitos colaterais - melhor ainda, pode se estender por dez anos. O pedido de comercialização da vacina bivalente foi feito em março à European Agency for the Evaluation of Medicinal Products (Emea), órgão similar ao FDA. Diante de um cenário onde duas vacinas se apresentam como garantia de prevenção, Cecília trabalha com a idéia de complementaridade. "Serão duas alternativas eficazes e teremos a prerrogativa de fazer opções, seguindo as especifícidades de cada população e os tipos de vírus mais encontrados", avalia. chegada dessas vacinas ao mercado intensifica o debate sobre qual faixa etária deverá ser alvo de campanhas de vacinação. Nos Estados Unidos a vacina foi aprovada para mulheres de 9 a 26 anos. Para as pesquisadoras brasileiras, o ideal é que seja atingida a população feminina que ainda não iniciou a vida sexual - e não se deixou contaminar pelo HPV. "Acredito que esse procedimento deva envolver préadolescentes e adolescentes, na faixa dos 10 aos 15 anos", imagina Luisa. O Censo 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estima que existam aproximadamente 9 milhões de brasileiras nessa faixa etária. Mas há um obstáculo: o custo das vacinas, que pode torná-las inacessíveis à maioria das brasileiras para se ter uma idéia, as três doses da vacina quadrivalente devem sair nos Estados Unidos por US$ 360. "A vacina é uma alternativa de prevenção promissora, que pode fracassar por causa dos custos elevados", admite Luisa. "Meu desafio é incentivar negociações entre governo e iniciativa privada com o objetivo de tornar viável a incorporação das vacinas às políticas públicas de combate ao HPV", afirma a bióloga que há 25 anos investiga formas de detectar e combater o vírus. Na opinião de Luisa, o governo teria de tomar uma decisão política e transformar o combate ao câncer de colo de útero em prioridade, a exemplo do que aconteceu nos anos 1990 com o tratamento da Aids. "Estamos falando de investimentos em saúde pública", reforça. Mesmo assim se questiona se esse investimento não seria elevado em relação à população potencialmente beneficiada, já que a vacina teria efeitos apenas para as mulheres ainda não infectadas por HPV. "É importante, mas teria ação específica e não cobriria toda a população", diz Marcos André Félix da Silva, da Divisão de Atenção Oncológica do Inca. Luisa insiste: "Continuamos gastando com tratamento ou canalizamos esses recursos para prevenção?". Afinal, mesmo para as mulheres que já iniciaram a vida sexual, a vacina quadrivalente pode trazer benefícios, segundo Luisa. Se a mulher tiver apenas um dos tipos do vírus - o 6, por exemplo - e receber a vacina, ficará protegida contra os outros três (11,16 e 18). Ainda que ela já tenha sido infectada pelos quatro tipos, há indícios de que terá 30% menos chance de desenvolver lesões precursoras do câncer.


"É uma vacina universal", define a pesquisadora do Ludwig. E possivelmente também funcione para os homens. A expectativa é de que testes em andamento confirmem até 2007 a eficácia da vacina para proteger também os homens da infecção por HPV. Mas o xeque-mate virá - se vier - com uma vacina curativa, capaz de destruir tumores já desenvolvidos. Luisa trabalha no desenvolvimento dessa vacina em parceria com pesquisadores da Universidade do Colorado, Estados Unidos, com financiamento da Fundação Bill e Melinda Gates. A idéia é desativar as proteínas E6 e E7 do vírus, com maior potencial cancerígeno, e provocar uma reação intensa do sistema de defesa que elimine as células cancerosas. Ainda em fase inicial, os experimentos com animais de laboratório vêm mostrando resultados animadores. Prevenção e tratamento - Enquanto aguardam a liberação das vacinas preventivas no país, as especialistas reforçam a necessidade de intensificar o combate ao HPV por meio do acompanhamento ginecologia) preventivo e da realização de exames como o papanicolau, que indica a presença de lesões e pode ser feito pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Dependendo do diagnóstico, por exemplo, suspeita de câncer, a mulher é encaminhada para um segundo teste chamado colposcopia para confirmar o local e a extensão da lesão antes de definir o tratamento - nos casos mais graves, uma cirurgia para extração do útero. Em 2005, o Ministério da Saúde realizou 11,5 milhões de exames de papanicolau e 1 milhão de colposcopias. "São procedimentos eficientes para a detecção precoce de verrugas e tumores", afirma Félix da Silva. "Mas a cobertura é muito baixa. Calcula-se que apenas 15% das brasileiras façam a prevenção regularmente", diz Luisa. A aversão das brasileiras àquilo que deveria ser rotina é explicada, em parte, pela desinformação e pelo desconforto causado pelo exame da região genital. Também há casos de pacientes que procuram os postos de saúde, fazem a coleta de material para análise e nunca retornam para buscar os resultados. "Mulheres que vivem nas cidades são contempladas, o que não acontece no meio rural", completa Cecília. Estudo do Hospital das Clínicas (HC) de São Paulo divulgado em maio contesta a eficácia desse procedimento padrão - papanicolau, seguido de colposcopia - em determinadas situações. Em um primeiro momento, 90% das 60 jovens grávidas com idade entre 12 e 18 anos não tinham o HPV. Mas a realização de um exame mais sensível, conhecido como a captura híbrida, revelou que 51% delas apresentavam o DNA do vírus. "Por causa dos custos", observa o médico Waldemir Rezende, da Divisão de Obstetrícia do Instituto Central do HC e orientador da pesquisa, "a captura não pode ser incorporada à rede pública como rotina". Na opinião de Luisa, esse teste não deveria ser usado de modo indiscriminado, pois detecta muitas infecções não associadas ao câncer de útero. •


O CIÊNCIA NUTRIÇÃO

Dieta na ponta dos dedos Análise de unhas mostra como a alimentação pode variar

MARIA GUIMARãES

uando você corta as unhas, nem imagina que está jogando fora um registro do que comeu há uns seis meses. E se tem cabelos compridos... cada fio conta os últimos anos da sua vida. Essa história pode ser desvendada com ajuda dos isótopos estáveis. É o que fazem pesquisadores como Gabriela Bielefeld Nardoto e Luiz Antônio Martinelli, do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena) da Universidade de São Paulo (USP) em Piracicaba, que utilizam essa técnica para descrever aspectos diversos da vida das pessoas e outros seres vivos. Os pesquisadores estavam curiosos em investigar como a "cultura de supermercado" alterou os hábitos alimentares de populações urbanas. Para isso, recolheram pedacinhos de unhas pelo mundo afora: Estados Unidos, Europa, Amazônia e Região Sudeste do Brasil. Os resultados estão em artigo que será publicado no American Journal ofPhysical Anthropology em setembro, mas já está disponível na edição eletrônica do periódico. Sua expectativa era encontrar uma dieta homogênea entre áreas distantes, como resultado da globalização alimentar. Mas não é isso que se vê. As análises feitas pelo grupo de Piracicaba mostram que a partir da informação contida nos fragmentos de unhas é possível distinguir o que a pessoa andou comendo e onde: no Sudeste brasileiro, em pequenas comunidades amazônicas, nos Estados Unidos ou na Europa. Além 50 ■ JULHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 125


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disso, Gabriela se surpreendeu em encontrar diferenças marcantes dentro da região amazônica: "A população de Santarém já tem uma dieta completamente modificada em relação à região". Os dados mostram que, com freqüência, os alimentos vendidos em Santarém são inclusive produzidos no Sudeste. segredo contido nas unhas está nos isótopos estáveis, elementos químicos iguais em número de prótons, mas com quantidades diferentes de nêutrons. Isso faz com que o mesmo elemento - como oxigênio, hidrogênio, carbono ou nitrogênio - possa ser mais leve ou mais pesado, conforme o número de nêutrons em seus átomos. Os isótopos estáveis, ao contrário dos radioativos, mantêm a mesma constituição ao longo do tempo. Para o nitrogênio, por exemplo, o isótopo mais comum é o 14 N, que se lê "nitrogênio-14". Mas na natureza existe também sua forma mais pesada, o 15N. "Diferenças no sinal isotópico do carbono e do nitrogênio presente nas unhas de pessoas vivendo em diferentes regiões persistem apesar da cultura de supermercado", explica Gabriela. A pesquisadora acrescenta que grande parte da diferença em isótopos de nitrogênio observada entre partes mais e menos desenvolvidas da América se deve ao uso de fertilizante, que é seis vezes maior nos Estados Unidos em relação ao Brasil. "Você é o que você come, mais três partes por mil" é o lema dos especialistas em ecologia isotópica. Ou seja, se um animal herbívoro tem uma proporção de 7%o (partes por mil) de 15N em relação a 14N, seu predador terá 10%o. As proporções entre isótopos mais e menos comuns, para diversos elementos químicos, formam a "assinatura isotópica" de um indivíduo num dado momento. Variação regional - "O nitrogênio varia conforme o nível trófico e o uso de fertilizantes; já o carbono reflete o tipo de planta consumida, C3 ou C4", explica a pesquisadora. Plantas C4 são as da fa52 ■ JULHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 125

mília das gramíneas, como milho e cana-de-açúcar; as demais são chamadas C3, de acordo com o tipo de fotossíntese que realizam. A população do Sudeste brasileiro tem mais 13C (carbono-13) em suas unhas devido ao maior consumo de plantas C4. Segundo a pesquisadora, esse resultado reflete a alimentação do gado, que no Brasil tem mais acesso a pasto. A pecuária em confinamento, disseminada nos Estados Unidos, produz carne com uma proporção menor de 13C. Em ambos os países, vegetarianos apresentam valores mais baixos para os dois elementos, em relação aos onívoros da mesma região. Além disso, outra surpresa foi verificar que os brasileiros não comem mais carne do que os norte-americanos. As diferenças em relação à dieta européia são também marcantes. "Eles apresentam uma assinatura de carbono-13 ainda mais baixa do que os norte-americanos", diz Gabriela. Segundo ela, isso ocorre porque o consumo direto de milho não faz parte da cultura eu-

ropéia, e o açúcar é feito de beterraba em vez de cana. Amazônia - Como parte de outro projeto de pesquisa, Gabriela fez trabalho de campo na região de Santarém, no Pará, onde a convivência lhe deu a possibilidade de recolher fragmentos de unhas de habitantes desta cidade e de pequenas comunidades a cerca de 80 quilômetros dali. Para conseguir que a população cedesse amostras, a pesquisadora teve antes que conquistar sua confiança. Em outras áreas amazônicas ela não teve a mesma recepção. "As pessoas achavam que era bruxaria, ou que eu iria extrair DNA e encontrar seus filhos espalhados pelo mundo", conta. A alteração na dieta dos santarenos é marcante. Apesar de viverem perto da confluência dos rios Amazonas e Tapajós, eles consomem pouco peixe. Sua proteína tem origem sobretudo em frango, mais barato que carne bovina. As proporções de isótopos em suas unhas são iguais às de habitantes do


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Redesenhando os hábitos alimentares a partir dos teores de isótopos das unhas: moradores de Santarém, no Pará, comem hoje menos peixe e mais frango, como no Sudeste

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^H^ Sudeste brasileiro, o que mostra que a cultura de supermercado teve impacto importante em padronizar sua dieta com outras áreas urbanas do país. Já fora da cidade a situação é diferente. Gabriela colheu amostras de três comunidades: São Jorge, na floresta; Jamaraquá, perto do rio Tapajós; e Socorro, às margens do Lago Grande. Nesses vilarejos, a alimentação dos habitantes depende de suas plantações - milho, mandioca e arroz - e de caça ou pesca. Periodicamente, um representante vai à cidade buscar necessidades básicas, como feijão e açúcar. Os isótopos indicam que somente a população ribeirinha tem o hábito de comer peixe. Os habitantes de Socorro também pescam, além de caçar. Já a comunidade de São Jorge, a alguns quilômetros da água, não inclui peixe em sua dieta. Outros usos - Isótopos de carbono e nitrogênio são utilizados para inferir dietas antigas, tanto animais como humanas. É possível, por exemplo, conferir o

conteúdo isotópico de ossos de múmias ou fósseis, e daí ter uma idéia do que comiam. Gabriela conta que são poucos os estudos feitos em humanos contemporâneos. No entanto, eles são essenciais como referência para interpretar dados históricos. Os pesquisadores de Piracicaba usaram questionários para avaliar a dieta das pessoas que cederam suas amostras de unha. Por comparação dos dados, viram que a análise de isótopos estáveis é confiável. Múmias não respondem a questionários, mas o trabalho de Gabriela mostra que é possível inferir sua dieta a partir de análise dos isótopos estáveis. A aplicação mais disseminada da análise de isótopos estáveis se dá em vários ramos da ecologia. Suas proporções em vários tecidos - penas, sangue, músculo - de aves migratórias permitem inferir a rota percorrida pelos animais e os alimentos consumidos em cada local. Os isótopos integrados nas penas dizem respeito aos nutrientes disponíveis quando elas foram produzidas. Já o

sangue traz informações imediatas. Assim, os pesquisadores têm acesso a histórias de espécies que não têm outra forma de contá-las. Espécies pouco eloqüentes são também as plantas. Rafael Oliveira, outro integrante do Cena, quer saber como as plantas da Mata Atlântica bebem água pelas raízes ou pelas folhas. Em regiões de altitude há muita água disponível na forma de neblina, que de acordo com pesquisa recente pode ser absorvida pelas folhas. É possível distinguir essa água da que vem do solo, pois as gotículas que formam a neblina têm uma proporção maior de isótopos leves de oxigênio. Neste caso, proporções isotópicas podem ajudar a revelar uma forma pouco conhecida de absorção de água por plantas. À medida que a tecnologia avança, mais e mais informações são extraídas dos isótopos estáveis presentes nos mais diversos recantos da natureza. Agora você sabe que da próxima vez que cortar as unhas estará jogando fora parte do registro de sua história. • PESQUISA FAPESP 125 ■ JULHO DE 2006 ■ 53


CIÊNCIA

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ECOLOGIA

Comunidades invisíveis A superfície de uma única folha pode abrigar mais de 600 espécies de bactérias

s folhagens das árvores formam um reservatório imenso, desconhecido e extremamente diversificado de microorganismos. Uma equipe da Universidade de São Paulo (USP) chegou a essa conclusão após verificar que na superfície de uma simples folha de uma árvore da Mata Atlântica podem viver centenas de espécies de bactérias organizadas em comunidades. Uma projeção preliminar sugere que uma árvore toda pode abrigar um número de espécies de bactérias milhões de vezes maior que o organismo humano: no intestino vivem milhões de bactérias que representam de 300 a mil espécies. Uma estimativa feita a partir desse estudo sugere que possa ser algo entre 2 milhões e 13 milhões o total de novas espécies de bactérias vivendo na superfície das folhas das cerca de 20 mil espécies de plantas da Mata Atlântica, sem considerar as raízes, caules e outras partes do vegetal. Conhecer com precisão essa diversidade seria um avanço e tanto para os estudos sobre esse grupo de organismos, por si o maior e mais diversificado de todos, já que 1 tonelada de solo pode conter 4 milhões de espécies, enquanto nos oceanos vivem outros 2 milhões. Mas esse trabalho, publicado em 30 de junho na Science, não só delineia a dimensão de uma categoria de organismos que não era levada em conta nos levantamentos sobre a riqueza biológica de um ambiente - normalmente se consideram apenas animais e vegetais. O estudo coordenado por Márcio Lambais, com a participação de Juliano Cury, Ricardo Büll e Ricardo Rodrigues, todos da Escola Superior de Agronomia Luiz de Queiroz (Esalq) da USP, além de David Crowley, da Universidade da Califórnia, Estados Unidos, chama a atenção também para a perspectiva de interação entre as plantas e as comunidades de bactérias - comunidade é um conjunto de populações de organismos quaisquer que interagem entre si e com o ambiente. "Vários atributos da planta podem na verdade ser uma conseqüência da interação com os microorganismos", diz Rodrigues. Em termos mais simples: um composto químico que ajuda a planta a se defender do ataque de pragas pode ser o resultado dessa convivência com os milhões de hóspedes invisíveis a olho nu. Já se sabia que as folhas abrigavam uma variedade elevada de microorganismos, mas os pesquisadores não imaginavam que 54 ■ JULHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 125


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encontrariam valores tão surpreendentes quando começaram a estudar a diversidade microbiana da superfície das folhas de nove espécies de árvores da Estação Ecológica de Caetetus, em Gália, interior paulista. Feito o panorama da diversidade, por meio de análises moleculares, aprofundaram os resultados comparando três espécies de plantas: a catuaba ou catiguá (Trichilia catigua), de cuja casca se extrai uma tintura usada como afrodisíaco e contra reumatismo, o catiguá-vermelho {Trichilia clausenii) e a gabiroba (Campomanesia xanthocarpa). Foi quando constataram que em cada folha pode viver um mínimo de 95 e um máximo de 671 espécies de bactérias. Outro dado que impressiona: quase não havia espécies em comum entre as plantas. "Aparentemente existem comunidades de bactérias típicas para cada espécie de árvore", comenta Lambais. A partir desse levantamento, desenvolvido no projeto Parcelas Permanentes, vinculado ao programa Biota-FAPESP, abriu-se uma nova e imensa frente de estudos. Os pesquisadores agora se lançam perguntas sobre como plantas e bactérias podem interagir, que tipos de benefícios mútuos poderiam surgir dessa interação e se uma mesma espécie de planta, em ambientes ou localidades diferentes, pode abrigar as mesmas comunidades de bactérias. As respostas devem tomar mais alguns bons anos de trabalho. • CARLOS FIORAVANTI PESQUISA FAPESP 125 ■ JULHO DE 2006 ■ 55


O CIÊNCIA ZOOLOGIA

A vida selvagem na

metrópole A

s milhares de ruas da cidade de São Paulo guardam muito mais vida selvagem do que as pombas brancas, negras ou cinzentas que descansam nos fios dos postes e disputam migalhas de ^^^^^^™ pão nas calçadas, atrapalhando os pedestres apressados. As pombas são apenas uma das 433 espécies de animais silvestres que se espalham pelo pouco de verde da metrópole, segundo o mais recente levantamento da fauna do município, divulgado no início de junho pela Secretaria Municipal do Verde e Meio Ambiente (SVMA). Ao longo de 12 anos a equipe coordenada pela bióloga Anelisa de Almeida Magalhães, da divisão de fauna da SVMA, encontrou 258 espécies de aves, 58 de mamíferos, 37 de répteis, 2 de crustáceos, 2 de aranhas e 40 de anfíbios nas 48 áreas verdes que resistem entre o concreto e o asfalto da cidade. É provável que a maioria dos paulistanos não saiba diferenciar o pombo doméstico de outro tipo de pombo, a juriti, nem tenha notado nos jardins dos prédios os sabiás-laranjeira, de peito avermelhado e canto pausado e triste. Mas quem se interessa em apreciar a fauna silvestre paulistana não precisa sair da cidade. No Parque do Ibirapuera, o mais conhecido e um dos maiores da capital, há 142 espécies de aves, das mais facilmente identificáveis como a garça-brancagrande (Ardea alba) e o barulhento quero-quero (Vanellus chilensis) às mais raras como o pica-pau-de-cabeça-amarela (Celeus flavescens) ou o cardeal [Paroaria coronata), com seu garboso topete vermelho. Entre as 134 espécies que habitam o Parque do Carmo, na Zona Leste da capital, vive a maria-faceira (Syrigma sibilatrix), de face azulada e dorso 56 ■ JULHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 125

acinzentado, o marreco irerê {Dendrocygna viduata) e a coruja-orelhuda (Rhinoptynx clamator), além de outras 114 espécies de aves. Com um pouco de sorte, o visitante pode até deparar com o caxinguelê (Sciurus ingrami), a versão nacional dos esquilos do hemisfério Norte, ou ainda um veado-catingueiro {Mazama gouazoubira), hoje ameaçado de extinção. No extremo sul da metrópole, onde os prédios e as casas ainda não se impuseram completamente à vegetação natural, a equipe de Anelisa encontrou rastros de um mamífero bem maior: a temida suçuarana ou onça-parda {Puma conco-

lor capricornensis), também sob risco de desaparecer da natureza. Não é por acaso que as aves são o grupo mais abundante, encontrado mesmo onde a concentração de prédios é elevada e o verde não passa de suaves pinceladas no cenário. Uma comparação entre as aves de dez parques da capital aponta uma explicação. As espécies predominantes nessas áreas são as menos exigentes com relação ao tipo de alimento disponível: elas se alimentam tanto de frutos e sementes como de insetos. "Nesses dez parques, 60% das espécies têm uma dieta bastante variada, fato que pode favorecer a adaptação deAo centro, a coruja-orelhuda, raridade das matas paulistanas

Sabiá-laranjeira, voando pelas ruas da cidade, e o esquilo caxinguelê, escondido nas áreas verdes mais distantes


Cidade de São Paulo abriga 433 espécies de animais silvestres, de sabiás a bugios

Socó-grande, comum nos lagos dos pargues

Ias ao ambiente modificado pela presença humana", diz a bióloga Marina Somenzari, autora do estudo. Mais do que guiar o olhar dos paulistanos entre as alamedas dos bosques da capital o levantamento da fauna silvestre do município deve auxiliar o trabalho dos biólogos e veterinários da SVMA. Afinal, é a secretaria que administra o principal pronto-socorro da fauna silvestre de São Paulo: o Viveiro Manequinho Lopes, protegido em uma área de acesso restrito do Parque do Ibirapuera, onde a bugio Binha e outros 23 companheiros de pelagem castanhoavermelhada passam uma temporada

enquanto não chega o momento de retornar para a natureza. "Esse inventário é fundamental para orientar a reintrodução desses animais em seu ambiente natural", afirma Vilma Geraldi, diretora da divisão de fauna da secretaria, que administra o viveiro cujo nome homenageia o funcionário público Manuel Lopes de Oliveira, que na década de 1920 plantou centenas de eucaliptos no Ibirapuera para drenar o terreno pantanoso e permitir a criação do parque. Ali todos os meses chegam cerca de 170 animais - bugios, sagüis, canários, tartarugas, entre outros - trazidos pela população, por bombeiros ou resgatados por agentes da polícia florestal em operações de combate ao tráfico de animais silvestres. Só no estado de São Paulo foram apreendidos no ano passado 30 mil animais silvestres, uma população dez vezes maior que a do zoológico paulistano, o maior da América Latina. "Para devolver esses animais ao ambiente a que pertencem era necessário primeiro conhecer como as diferentes espécies se distribuem pelas áreas verdes de São Paulo", explica Anelisa, que há 12 anos trabalha na identificação da fauna silvestre do município, tarefa que não se encerra com a publicação do inventário. • RICARDO ZORZETTO

Sagüi-de-tufo-preto, sob risco de extinção, e lavadeira-mascarada, restrita aos pargues

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O CIÊNCIA PALEONTOLOGIA

0 SUPERPRNTRNHL SUL-AMERICANO Há 10 milhões de anos planícies alagáveis ocuparam um terço da América do Sul

RICARDO ZORZETTO

ILUSTRAÇÕES SANDRO CASTELLI

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istas do alto, as copas das árvores se fundem e tornam a paisagem da Amazônia um amplo tapete verde que acolhe a maior variedade de plantas e animais do mundo. Mas as centenas de milhares - talvez milhões — de espécies de insetos, peixes, aves e outros seres que hoje vivem ali são apenas o que restou de uma fauna que já foi muito mais rica e dominou entre 13 milhões e 6 milhões de anos atrás uma área da América do Sul que vai da Venezuela, no norte, ao Uruguai e à Argentina, no sul. Naquele tempo, os continentes já haviam assumido a forma e a posição atuais e o cenário sul-americano era bem diferente: rios suntuosos de águas calmas cortavam uma planície de quase mil quilômetros de largura que se alongava por 6 mil quilômetros em direção ao sul, pontuada por lagos, pântanos e campos de capim, além de esparsas florestas. Essa área que corresponde a um terço da América do Sul - ou mesmo a toda a Europa - era um imenso pantanal, possivelmente 20 vezes maior que o mato-grossense, hoje a maior área alagável do planeta. "Vivia por ali uma variedade espetacular de espécies de animais, provavelmente extintos por causa de alterações no clima e no relevo do continente nos últimos 5 milhões de PESQUISA FAPESP 125 ■ JULHO DE 2006 ■ 59


anos", afirma o paleontólogo Mario Alberto Cozzuol, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Nos próximos meses sai no Journal of South American Earth Sciences um artigo de Cozzuol com uma das mais abrangentes reconstituições do cenário e de parte da fauna sulamericana do final do período geológico Mioceno, entre 13 milhões e 6 milhões de anos atrás. É impressionante a variedade de formas que os animais exibiam em meio àqueles lagos, pântanos e florestas. Fósseis de jacarés e crocodilos encontrados no Brasil, na Venezuela, na Colômbia, no Peru e na Argentina dão uma idéia dessa diversidade. Só na região do atual Acre devem ter convivido 17 espécies desses répteis de pele espessa coberta de placas duras - hoje existem apenas quatro por ali. Nos rios e lagos do pantanal sul-americano havia jacarés como Caiman brevirostris, espécie extinta de quase 2 metros de comprimento e um crânio largo e achatado de 30 centímetros. Por ali também caçavam predadores muito maiores, a exemplo do Purusaurus brasiliensis, um jacaré de quase 15 metros de comprimento que, com mandíbulas de mais de 1 metro repleta de dentes afiados, podia abocanhar de uma só vez uma capivara que distraída bebia água.

ma família em especial chama a atenção por sua aparência e comportamento: a Nettosuchidae, com crocodilos de crânio achatado, dentes frágeis e focinho longo. Eles se diferenciavam dos demais por se alimentar de modo passivo: em vez de perseguir peixes, tartarugas ou mesmo pequenos mamíferos, os crocodilos dessa família como Mourasuchus amazonensis, descoberto em 1964 pelo paleontólogo gaúcho Llewellyn Ivor Price - abriam a bocarra de quase 1 metro e enchiam de água um papo semelhante ao de um pelicano. Em seguida cerravam os dentes e expeliam a água, retendo moluscos, crustáceos e pequenos peixes. "As três espécies conhecidas de Mourasuchus viveram exclusivamente na América do Sul, entre 15 milhões e 6 milhões de anos atrás", diz Cozzuol. Tamanha variedade de predadores, segundo o paleontólogo, só sobreviveria em um ambiente com fartura de alimento - e comida aparentemente não faltou no pantanal sul-americano. Nas duas últimas décadas paleontólogos trabalhando no sudoeste da Amazônia brasileira, na Venezuela, no Peru, na

Colômbia e na Argentina identificaram quase 200 gêneros de répteis, aves e mamíferos que viveram entre 15 milhões e 5 milhões de anos atrás. Como em taxonomia, a ciência da classificação dos seres vivos, gênero é o nível de organização que agrupa espécies com características em comum, os 200 gêneros da fauna do Mioceno sul-americano indicam a existência de uma variedade ainda maior. "Essa diversidade", explica Cozzuol, "sugere que esse pantanal foi um ambiente estável por muito tempo, capaz de produzir alimento suficiente para manter essa fauna por milhões de anos". Roedor gigante - A fauna terrestre da região era complexa, com grupos de animais de todos os níveis da cadeia alimentar, dos que comem apenas vegetais aos que se alimentam de outros animais, e as mais variadas formas e dimensões. Entre os mamíferos, havia carnívoros do gênero Cyonasua, parentes distantes dos quatis de longos dentes afiados, e roedores pequenos como os coelhos ou verdadeiros ratões, cujo exemplo máximo é o Phoberomys pattersoni. Parente extinto das pacas e pacaranas encontradas na Amazônia, o Phoberomys foi o maior roedor do mundo: tinha 700 quilos e era duas vezes maior que a anta, o maior mamífero terrestre sul-americano.

Mourasuchus amazonensis: água filtrada com os dentes

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Nesse período houve uma grande diversificação dos primatas no mundo todo, inclusive o surgimento dos primeiros ancestrais dos seres humanos. Na América do Sul, Cozzuol e o antropólogo norte-americano Richard Kay, da Universidade Duke, identificaram duas novas espécies de primatas: o macaco Solimoea acrensis, de pouco mais de meio metro de altura e semelhante ao macaco-aranha, e o Acrecebus fraileyi, parente distante do macaco-prego. O que explica a convivência de animais tão diferentes entre si é a heterogeneidade da paisagem de rios e lagos intercalados por campos e florestas. "Só esse cenário variado permitiria o surgimento de espécies tão distintas", afirma Cozzuol. "Essa paisagem deve ter permanecido estável por alguns milhares de anos, tempo suficiente para a diversificação das espécies", explica. Até uns 13 milhões de anos atrás a área sobre a qual se assentou o pantanal sul-americano era uma imensa planície que se esparramava por parte da Venezuela, da Amazônia brasileira, da Colômbia, do Peru, da Bolívia, do Uruguai e da Argentina, com um sistema hidrográfico bem distinto do atual. Naquele tempo o rio Amazonas ainda não havia se formado e terrenos mais elevados a oeste de Manaus, próximo ao curso do rio Purus, formavam uma barreira natural e impediam o es-

coamento das águas das chuvas e da cordilheira dos Andes para leste. A água embaciada nessa planície corria para o oceano por apenas dois caminhos estreitos. Pela bacia hidrográfica que originaria o rio Orenoco, as águas do pantanal sul-americano escapavam para o norte e chegavam à baía de Maracaibo, no litoral venezuelano. Ao sul, alcançavam o oceano Atlântico por meio da rede hidrográfica que originaria o rio da Prata milhões de anos mais tarde. Montanhas em crescimento - Essa rede de rios e lagos começou a se modificar há 11 milhões de anos, quando a cordilheira dos Andes começou a crescer no leste da Colômbia. Quase ao mesmo tempo o oceano Atlântico, que se estendia do atual rio da Prata ao sul da Bolívia, ocupando o centro-sul do Brasil, recuou. Os sedimentos das cadeias de montanhas colombianas e peruana nutriram a vegetação da planície e ajudaram a alterar o curso dos rios e lagos, que em poucas dezenas de anos se transformavam em pântanos. Os pântanos, por sua vez, pouco a pouco viravam terrenos secos nos quais germinavam campos e cresciam florestas. "Essa deposição contínua de sedimentos impedia que os rios se encaixassem num canal estável e que se formassem grandes florestas", explica Cozzuol. Ao mesmo tempo essa rede hidrográfica

Gyrinodon: herbívoro do porte de um rinoceronte

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em constante mutação manteve a conexão entre o norte e o sul do continente. Aperfeiçoado em cooperação com o geólogo Edgardo Latrubesse, da Universidade Federal de Goiás, esse cenário começou a ser montado há 20 anos, quando Cozzuol estudava na Universidade Nacional de La Plata os mamíferos aquáticos que viveram no norte da Argentina entre 9 milhões e 6 milhões de anos atrás. Foi quando esse paleontólogo argentino, que há dez anos trocou sua terra natal pelo Brasil, encontrou exemplares de botos e golfinhos distintos dos que haviam sido achados não muito longe dali, na Patagônia. Já se imaginava que esses animais poderiam ter migrado do norte da América do Sul, não se sabia que essas duas regiões haviam sido conectadas por rios e lagos. "Faltava conhecer a fauna que havia vivido no norte da América do Sul durante o Mioceno, entre 13 milhões e 6 milhões de anos atrás", diz Cozzuol. A oportunidade de ouro surgiu com o anúncio de uma vaga para pesquisador na Universidade Federal de Rondônia em 1995. De lá para cá Cozzuol percorreu o interior do Acre durante o período em que os rios baixam. Por um motivo óbvio: é quando ficam expostas em suas barrancas montanhas de sedimentos que preservam os fósseis do Mioceno sob a floresta. Também visitou sítios paleontológicos na Venezuela e no Peru e analisou fósseis guardados nos museus Bernardino Rivadávia e La Plata, na Argentina, e na coleção paleontológica da Universidade Federal do Acre, reunida por Alceu Ranzi, Jean Boquentin-Villanueva e Jonas de Souza Filho. A comparação entre os exemplares encontrados nesses países revelou que a fauna que viveu no Acre no Mioceno, da qual se conhecem uns 40 gêneros, é muito semelhante à da Argentina, da qual há 130 gêneros identificados. "A fauna encontrada no Acre apenas parece ser mais pobre", diz Cozzuol. "A busca de mais fósseis deve mostrar que essa fauna é até mais diversa que a argentina."


Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org

A Coleção SciELO Brasil ganhou mais dez periódicos científicos brasileiros. Os títulos aprovados são: Summa Phytopathologica, Revista Brasileira de Coloproctologia, Revista Brasileira de Fisioterapia, Revista Brasileira de Terapia Intensiva, Revista Matéria, Estudos Econômicos (São Paulo), Perspectivas em Ciência da Informação, Psicologia Clínica, Revista Brasileira de Educação Médica, Sociedade e Estado. Além desses, outros sete periódicos da área de ciências humanas foram selecionados pelos membros em reuniões anteriores e estão sendo preparados para serem publicados no site SciELO Brasil: Nova Economia, Revista de Administração Pública, Revista Brasileira de Educação Especial, Revista Brasileira de Estudos de População e Revista do Departamento de Psicologia - L/FE.

■ Medicina

■ Biologia

Fotografia dermatológica

Borboletas do Planalto Central

A tecnologia digital promoveu a popularização do registro fotográfico em diversas áreas médicas. A dermatologia, por ser uma especialidade com importante componente visual, vem absorvendo os benefícios dessa ferramenta na prática clínica e na pesquisa. É o que mostra o artigo "Fundamentos da fotografia digital em dermatologia", escrito por Hélio Miot, professor da Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Maurício Paixão, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), e Francisco Paschoal, da Faculdade de Medicina do ABC. Além de orientar os profissionais não familiarizados com essa tecnologia, oferecendo noções para o melhor uso do equipamento de fotografia digital, o artigo mostra que a fotografia dermatológica, ao contrário da fotografia artística, valoriza elementos de realidade e verossimilhança, ou seja, que permitam o reconhecimento das lesões documentadas com fidelidade. "A tecnologia digital veio para reduzir custos, aumentar a versatilidade e a produtividade e proporcionar a popularização do uso de fotografia nas especialidades médicas", relatam os autores. O estudo mostra também que a popularização da fotografia digital favoreceu o aumento do número de documentações na prática dermatológica. Na seção de fotografia do Departamento de Dermatologia da Unesp, por exemplo, a adoção da tecnologia digital proporcionou um incremento de mais de 80% no número de fotografias anuais de pacientes. "Há o entendimento de que a imagem da lesão do paciente documentada durante a consulta, por representar informação clínica real, compõe parte do seu prontuário médico. Seu registro, uso, modificação ou exposição devem ser autorizados pelo paciente ou responsável legal", diz. A fotografia digital tornou-se uma ferramenta importante na quantificação de variáveis em pesquisa aplicada.

Os pesquisadores Eduardo de Oliveira Emery e Carlos Pinheiro, do Instituto de Biologia da Universidade de Brasília (UnB), e Keith Brown Tr., do Museu de História Natural da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), apresentam em "As borboletas (Lepidoptera, Papilionoidea) do Distrito Federal, Brasil" uma listagem atualizada com 504 espécies e 506 subespécies de borboletas Papilionoidea observadas nas últimas quatro décadas. "O Distrito Federal vem passando por um intenso processo de urbanização, pela implantação de atividades agrícolas e outras econômicas que levam inexoravelmente à destruição do hábitat natural", justificam. "A necessidade de uma lista atualizada de espécies é fundamental para a avaliação e o monitoramento da perda em biodiversidade de borboletas." São apresentados dados da bibliografia, de coletas pessoais e de outras coleções entomológicas. Aspectos relacionados à ocorrência de espécies ameaçadas e à conservação da fauna de borboletas no Distrito Federal são também discutidos. O estudo mostra ainda que o fato de ocorrer em áreas protegidas, por si só, não garante que determinada espécie esteja protegida. Com a urbanização, muitas das unidades de conservação vêm sendo transformadas em "ilhas de vegetação", geograficamente isoladas de outras unidades. Os efeitos do isolamento sobre as populações locais, como a interrupção do fluxo gênico, pode ser fatal para a maioria das espécies. "Entretanto, o grande número de Papilionoidea demonstra claramente a riqueza de espécies desta região dos cerrados brasileiros."

ANAIS BRASILEIROS DE DERMATOLOGIA - VOL. N° 2 - Rio DE JANEIRO - MAR./ABRIL 2006

REVISTA BRASILEIRA DE ENTOMOLOGIA N° 1 - SãO PAULO - JAN./MAR. 2006

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www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S036505962006000200010&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

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www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0085 56262006000100013&lng=ptS,nrm=isoStlng=pt


■ Economia

■ Nutrição

Transferência de renda

Condutas da alimentação

Fazer uma estimativa dos aspectos distributivos da Previdência brasileira, tendo como base as contribuições efetuadas e os benefícios recebidos pelos indivíduos. Este é o objetivo do artigo "Uma estimativa dos aspectos distributivos da Previdência Social no Brasil", de Luís Eduardo Afonso, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), e Reynaldo Fernandes, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA), da Universidade de São Paulo (USP). O trabalho, que tem como base cálculos das Taxas Internas de Retorno (TIRs) proporcionadas pelas contribuições e benefícios previdenciários, computou todos os benefícios e contribuições no período 1976-1999. "Nos últimos anos, de forma similar ao que ocorreu em países como Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha e Argentina, a Previdência Social ganhou relevância na agenda políticoeconômica do Brasil", garantem os autores. "Tornou-se consensual a visão do equacionamento adequado da questão previdenciária como um dos pilares para a organização das contas públicas." Duas questões fundamentais sobre as características e as funções da Previdência Social brasileira são tratadas no artigo. A primeira é quanto ao valor dos benefícios: serão eles de fato tão reduzidos quanto concebido usualmente? A segunda é quanto ao caráter distributivo: seria a Previdência injusta com seus segurados? Para responder a essas questões, duas hipóteses são analisadas. A primeira é que o sistema previdenciário brasileiro não paga benefícios tão baixos quanto se costuma apregoar. E a segunda é que a existência das organizações previdenciárias pode ser vantajosa para alguns grupos, particularmente aqueles com renda mais baixa. De modo oposto, para as faixas de renda mais elevadas, os ganhos parecem ser menores. Os grupos com menor nível de educação apresentam taxas de retorno mais elevadas. Essas taxas também são diferentes conforme as regiões do país. Além disso, como indivíduos de nível educacional mais baixo devem ter rendimentos inferiores em relação aos demais, há evidências de que os grupos mais pobres estão obtendo uma remuneração mais elevada por suas contribuições previdenciárias. Para todos os níveis educacionais, os retornos obtidos pelos moradores da Região Nordeste são claramente mais elevados que os das demais regiões. As taxas da Região Sudeste são, em geral, as mais baixas e as das Regiões Sul, Norte e Centro-Oeste estão em um nível intermediário. "Se considerarmos que a Região Nordeste apresenta a menor renda per capita do país, então o sistema previdenciário brasileiro funciona como um mecanismo de transferência de renda das regiões mais ricas para as mais pobres."

Conhecer pensamentos, sentimentos e comportamentos em relação à dieta de mulheres portadoras de diabetes tipo 2 foi a meta de Denise Péres e Laércio Franco, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (USP), e Manoel dos Santos, da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto (USP). "O comportamento alimentar da mulher portadora de diabetes tipo 2 é bastante complexo e precisa ser compreendido à luz dos aspectos psicológicos, biológicos, sociais, culturais, psicológicos e econômicos para maior eficácia das intervenções educativas", apontam. Cumprir a dieta adequada é parte fundamental no tratamento do diabetes e vários estudos têm apontado um baixo seguimento dos pacientes à dieta recomendada. Os pesquisadores realizaram um estudo descritivo exploratório, de natureza qualitativa, onde foram entrevistadas oito mulheres portadoras de diabetes tipo 2 em uma Unidade Básica de Saúde do município de Ribeirão Preto, interior de São Paulo. Os resultados, descritos no artigo "Comportamento alimentar em mulheres portadoras de diabetes tipo 2", evidenciaram dificuldade no seguimento da dieta prescrita, em função dos diversos significados associados, tais como a perda do prazer de comer e beber, da autonomia e da liberdade para se alimentar. "Seguir a dieta adquire caráter extremamente aversivo e cerceador, tendo representação de que realizá-la traz prejuízos à saúde", aponta os autores. A freqüente ausência de sintomas foi citada como um dos aspectos que dificultam o seguimento da dieta. Outra dificuldade foi tocar, olhar e manipular os alimentos durante o seu preparo e não poder ingeri-los. Os alimentos doces despontaram como algo extremamente desejado. "Transgressão e desejo alimentar estão igualmente presentes na vida das pessoas entrevistadas. Seguir o padrão dietético recomendado implica tristeza, e o ato de comer, muitas vezes, vem acompanhado de medo, culpa e revolta", afirmam. Os dados revelaram que o ato de comer está diretamente relacionado aos aspectos emocionais. Por conta disso, os pesquisadores acreditam que apenas oferecer informações não é estratégia suficiente para a instalação de mudanças nos hábitos alimentares. "O enfoque da abordagem educativa não deve se restringir apenas à transmissão de conhecimentos, é importante englobar também os aspectos subjetivos", recomendam.

REVISTA BRASILEIRA DE ECONOMIA - VOL. DE JANEIRO - JUL./SET. 2005

- ABRIL - 2006

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REVISTA DE SAüDE PUBLICA

- VOL. 40 - N° 2 - SãO PAULO

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www.scielosp.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-

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TECNOLOGIA

Robô para testar nadadeiras i(D2 O"

■ Dessalinização com nanotubos Pesquisadores do Laboratório Nacional Lawrence Livermore (LNLL), dos Estados Unidos, criaram uma membrana feita com nanotubos de carbono e silício que poderá, entre outras coisas, ser empregada de forma mais eficiente para fazer a dessalinização da água do mar. A descoberta é importante porque menos de 1% das reservas de água do planeta está disponível para consumo humano. A dessalinização, acreditam os pesquisadores, é uma das rotas mais promissoras. Bilhões de nanotubos, tubos ocos formados por folhas com a espessura de átomos de carbono, transformam-se nos poros das membranas. De tão finos, eles permitem a passagem simultânea de apenas seis moléculas de água, bloqueando partículas maiores. Atualmente, a retirada do sal da água do mar é feita pelo processo de

Na época dos dinossauros, répteis gigantes chamados plesiossauros se deslocavam no mar usando quatro nadadeiras. O tempo passou, eles foram extintos, e os animais que tomaram o lugar deles, como tartarugas, pingüins e focas, utilizam apenas dois dos quatro membros como propulsores durante o nado. Para compreender a locomoção de animais vivos e extintos, pesquisadores da Universidade Vassar, nos Estados Unidos, junto Madeleine em testes no fundo de uma piscina com a empresa Nekton Research, desenvolveram um robô subaquático chamado Madeleine. As simulações revelaram que a velocidade não aumentou quando as quatro nadadeiras foram acionadas. Aparentemente, os propulsores dianteiros criam uma turbulência que interfere na eficiência dos traseiros. O gasto energético também foi maior quando todos os membros funcionaram. • Plesiossauro usava quatro nadadeiras

osmose reversa, que utiliza membranas menos permeáveis a altas pressões. Estimase que o novo método, ainda

sem data para chegar ao mercado, possa reduzir os custos de energia no processo de dessalinização em até 75%. •

Moléculas no interior de um nanotubo

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■ Laser sem luz e com ultra-som Criado há pouco mais de 40 anos, o laser, sigla para Light Amplification by Stimulated Emission of Radiation (ou amplificação de luz por emissão estimulada de radiação), foi responsável por importantes avanços tecnológicos e hoje está integrado ao nosso cotidiano com aplicações que vão dos consultórios dentários aos sistemas de comunicação por fibra óptica. A novidade agora, anunciada por cientistas da Universidade de Illinois e da Universidade de Michigan,


ambas nos Estados Unidos, é a criação do uaser, um aparelho similar ao laser, mas que, em vez de emitir feixes de luz, produz ondas de ultra-som. O novo equipamento poderá ser utilizado para estudar a dinâmica do laser e para detectar alterações delicadas em novos materiais ou em películas e materiais supercondutores. Por enquanto o uaser lembra mais um "laser aleatório", mas, segundo os inventores, nada impede que, no futuro, o aparelho possa gerar um feixe estreito e direcional como os lasers atuais. •

■ Energia solar para 8 mil casas A maior central de energia solar do mundo está sendo construída na cidade de Ser-

lançados na atmosfera. A tecnologia utilizada é a Power Track, da PowerLight, em que os painéis solares acompanham automaticamente a posição do Sol ao longo do dia, tornando o sistema mais eficiente. Atualmente, a maior central de energia solar está situada na Alemanha e tem potência de 5 megawatts (veja Pesquisa FAPESP n° 109). • pa, em Portugal, localizada a 200 quilômetros da capital Lisboa. Quando ficar pronta no início de 2007, ela terá 11 megawatts de potência, o suficiente para suprir 8 mil casas de energia elétrica. Serão 52 mil módulos fotovoltaicos de captação de energia solar instalados num campo de 60 hectares (1 hectare é igual a 10 mil metros quadrados, medi-

da próxima à de um campo de futebol oficial, de 12 mil m2). Produzida numa parceria entre as norte-americanas GE Energy e PowerLight e a portuguesa Catavento, a central vai custar US$ 75 milhões e evitará que 30 mil toneladas anuais de emissões de gases nocivos originários da queima de combustíveis fósseis como carvão e diesel sejam

Carro com cinco combustíveis Os brasileiros já estão acostumados com os veículos bicombustíveis que possibilitam encher o tanque com gasolina ou álcool (etanol), ou ainda os dois ao mesmo tempo, em diferentes proporções. Mas isso talvez possa ser apenas o começo. Em junho, em Paris, na França, a Volvo apresentou uma perua, da série V70, que funciona com cinco combustíveis: gasolina, etanol, com 85% de eta-

nol e 15% de gasolina, gás metano, oriundo da decomposição do lixo ou do esgoto também chamado de biogás, gás natural veicular e um combustível chamado de hythane (desenvolvido pela empresa norte-americana Hidrogen), composto de 10% de hidrogênio e 90% de metano. O veículo apresentado como protótipo foi uma das atrações da edição 2006 da Michelin Challenge Bibendum

(nome do boneco símbolo dessa fabricante de pneus), uma mostra de veículos em que são apresentadas soluções tecnológicas alternativas de combustíveis. Outras montadoras, como Ford, Fiat, General Motors, Peugeot, Honda, Toyota e Renault, também apresentaram modelos híbridos ou não de propulsão elétrica, com baterias recarregáveis, etanol e células a combustível, que funcionam com hidrogênio. •

■ Hidrogênio do doce e do sensor O uso do hidrogênio como combustível ganhou mais dois avanços tecnológicos que podem acelerar a adoção desse gás em geradores de energia e nos automóveis. Pesquisadores da Universidade de Birmingham, na Inglaterra, conseguiram gerar, em laboratório, hidrogênio a partir de resíduos da fabricação de doces e confeitos. Bactérias colocadas num reator junto com essa biomassa consumiram o açúcar presente nela e produziram hidrogênio em forma de gás. O outro avanço saiu dos laboratórios da Universidade da Flórida, nos Estados Unidos, onde pesquisadores desenvolveram um sensor para detectar vazamentos de hidrogênio, um gás invisível, inodoro e explosivo em altas concentrações. A novidade do sensor é que ele produz sua própria energia a partir de pequenas vibrações do local onde está instalado. Isso significa que futuras versões do sensor poderão funcionar ininterruptamente sem uso de baterias quando afixadas em carros, geladeiras e qualquer equipamento que produza uma vibração mínima. O próximo passo é testar o sensor nos laboratórios da agência espacial norte-americana (Nasa), que financia as pesquisas. •

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MO 00.

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Calêndula

antas secas com qualidade

■ Gestão da água do Tietê Um estudo integrado dos sistemas aquático e terrestre do reservatório de Barra Bonita, no rio Tietê, um dos maiores do estado de São Paulo, apontou que no período de 1990 a 2002 houve degradação da qualidade da água devido a alterações no uso e cobertura da terra e ao aumento populacional de 29,06% decorrente de loteamentos implantados em áreas inadequadas. A bacia hidrográfica da região é constituída por parte das bacias dos rios Piracicaba-Capivari-Jundiaí e Tietê-Sorocaba, que correspondem a cerca de 19 mil quilômetros quadrados. Imagens de satélite, dados cartográficos, da produção agrícola municipal, de densidade demográfica, além de informações limnológicas (da água doce), pluviométricas e fluviométricas (altura das águas), foram utilizados na tese de doutorado de Rachel Bardy Prado na Escola de

Um secador de plantas com controle automático da temperatura foi desenvolvido na Universidade Federal de Viçosa (UFV) pelo grupo de pesquisa em Pré-Processamento de Plantas Medicinais, Aromáticas e Condimentares, coordenado pelo professor Evandro de Castro Melo. Com isso, não há necessidade da presença constante de um operador durante o processo de seca-

Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo. Foi realizado ainda um trabalho de verificação terrestre em 98 pontos da bacia. "Nesse estudo, bem como nas campa-

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gem, que pode levar de três a quatro horas. Basta colocar no painel a temperatura desejada para a secagem da planta que um sensor se encarrega dos ajustes necessários à variação da temperatura e da umidade relativa do ar que ocorrem durante o processo. Outra novidade do equipamento consiste de um sistema de reaproveitamento de ar quente. Em vez de ser jogado fora, o ar en-

nhas para coleta de água em setembro e dezembro de 2002, foi possível observar, nas proximidades do reservatório, fontes e indicativos de poluição da água, como culti-

tra novamente no circuito, resultando em economia de energia. O secador a gás, que trabalha com até 300 quilos de folhas verdes, foi desenvolvido como parte de um estudo que avaliou a influência da temperatura na qualidade das plantas medicinais. "A secagem é importante porque se o produto for transportado úmido perde o princípio ativo", diz Castro Melo. •

vo de cana-de-açúcar, locais de exploração de areia e áreas de pastagem", diz Rachel. Planejar a ocupação das terras, adotar técnicas de manejo adequado do solo e da água e


Camomila

recuperar matas ciliares são algumas das soluções propostas para o gerenciamento de recursos hídricos. •

■ Empresas de base tecnológica O livro "Gestão de pequenas e médias empresas de base tecnológica", de Antônio Valério Netto, sócio-fundador da empresa Cientistas Associados Desenvolvimento Tecnológico, de São Carlos (SP), mostra que esse segmento empresarial pode se tornar um agente de mudanças, capaz de introduzir inovações na estrutura industrial e agregar valor aos produtos a partir do conhecimento científico. O autor aponta que um dos principais fatores para o fortalecimento das em-

presas de base tecnológica é possuir mão-de-obra qualificada tanto na área técnica como na de negócios. Editado pela Manole em parceria com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), o livro sugere estratégias para que as empresas consigam desenvolver mais produtos e serviços. •

mo com todos esses fatores positivos, por que o Brasil não consegue ser uma potência tecnológica? Essa é uma das perguntas que o livro "Inovação, como vencer esse desafio empresarial", da Clio Editora, tenta responder e aprofundar. Os textos, sob coordenação do professor Roberto Sbragia, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo, contaram com a participação do Fórum de Líderes, organização empresarial com mais de mil representantes em todo o país. A redação foi baseada

contrário do que imagina o consumidor, ele não é estéril e pode estar contaminado pela bactéria Bacillus cereus, capaz de produzir toxinas responsáveis por infecções alimentares. Pesquisa conduzida na Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Jaboticabal, pelo professor Oswaldo Durival Rossi Júnior, financiada pela FAPESP, avaliou as características microbiológicas e físico-químicas do leite UAT ao longo do processo de produção e prazo de validade para descobrir as fontes

em 65 artigos publicados por empresários, acadêmicos, especialistas e realizada por consultores do Programa de Gestão Tecnológica da Fundação Instituto de Administração (PGT/ FIA). O texto realça a necessidade de inovar das empresas, destaca o papel do Estado na inovação e mostra como usar a infra-estrutura científica e tecnológica existente no país. •

de contaminação e possíveis alterações do produto. "A bactéria na embalagem longa-vida é a mesma que está no leite cru", diz Rossi Júnior. O processamento tecnológico com altas temperaturas não elimina o microorganismo patogênico. Por isso é essencial cuidar da qualidade do produto na fase inicial do processo, principalmente na obtenção. Quando o leite é consumido logo após ser aberto, a bactéria não causa nenhum problema, porque a quantidade encontrada por mililitro é pequena. Mas se ficar aberto, mesmo na geladeira, ela consegue se multiplicar e aí reside o perigo para o consumidor. •

■ Caminhos da inovação Um país que é a 14a potência econômica do mundo, possui a maior e mais diversificada indústria da América Latina, além de contar com uma infra-estrutura científica e tecnológica respeitável e um grande número de pesquisadores, doutores e engenheiros. Mes-

gestão de pequenas e médias

empresas

■ Bactéria resiste ao calor

Agentes de mudança

Reflexão e rumos

Um estudo feito com leite brasileiro produzido pelo processo de ultra alta-temperatura (UAT), mais conhecido como longa-vida, mostrou que, ao

PESQUISA FAPESP 125 ■ JULHO DE 2006 ■ 67


Q TECNOLOGIA GENÉTICA

Inteligência vegetal Cana geneticamente modificada tem propriedade inseticida apenas quando atacada por inseto

DlNORAH ERENO

ma das principais pragas que atacam a cultura da cana-deaçúcar é a broca-da-cana (Diatraea saccharalis), um inseto que penetra no interior da planta e cava galerias internas, causando grandes prejuízos aos produtores. Para controlar esse inimigo de forma efetiva, pesquisadores da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP), da cidade de Piracicaba, conseguiram, por meio de modificação genética, chegar a uma cana que libera proteínas com atividade inseticida apenas quando atacada pela broca-da-cana. O caminho para produzir uma planta com essas características começou com um detalhado estudo e uma caracterização de genes da cana-de-açúcar para saber quais eram ativados exclusivamente por insetos. Cumprida essa etapa, era preciso então descobrir a seqüência de DNA que ativava esses genes, os chamados promotores, que permitem a expressão do gene no momento em que há necessidade. "Um gene sem promotor é um gene inativo, um pseudogene", diz o professor Márcio de Castro Silva Filho, do Laboratório de Biologia Molecular 68 ■ JULHO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 125

de Plantas, do Departamento de Genética da Esalq, coordenador da pesquisa. Para expressar novos genes na cultura da cana, com potencial sobre a broca, os pesquisadores recorreram ao Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, que possui vários promotores patenteados. Em 1998, época do início da pesquisa, não existiam promotores de cana disponíveis no Brasil. Os pesquisadores brasileiros assinaram um termo em que se comprometiam a usar a seqüência de promotores apenas para pesquisa em laboratório. "Quando recebemos o material, começamos a fazer construções gênicas, ou seja, colocamos os promotores atrás dos genes responsáveis por aumentar as defesas da planta contra a broca, diz Silva Filho. Dessa forma, os pesquisadores conseguiram gerar plantas consideradas transgênicas que expressavam as proteínas de defesa. E com isso conseguiram provar que as plantas associadas aos promotores realmente possuíam uma resistência maior contra o ataque da broca, principal responsável, junto com outras pragas dos canaviais, por prejuízos de cerca de US$ 500 milhões por ano aos produtores brasileiros. Essa cana é considerada transgênica, embora os promotores sejam da própria espécie, porque foram isolados do genoma da planta e introduzidos nela posteriormente.


Cana transgênica testada na casa de vegetação

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O ciclo da broca no canavial começa com as mariposas, que colocam pequenos ovos na parte de baixo das folhas. Quando os ovos eclodem saem minúsculas larvas, de cerca de 1 a 2 milímetros, que caminham em direção à região próxima ao colmo (caule) da planta, onde penetram e se alimentam da polpa carnuda e doce. Dentro da cana, as larvas vão mudando de fase, até atingir cerca de 3 a 4 centímetros, quando saem da planta, transformam-se novamente em mariposas e dão início a um novo ciclo de vida do inseto. As galerias feitas por esses insetos mastigadores ocupam praticamente todo o interior da planta, provocando diminuição da massa vegetal e falhas na germinação, entre outros danos. Os furos abertos pelas brecas também são porta de entrada para fungos que causam a podridão vermelha, doença responsável pela diminuição na produção de sacarose. Quando a matéria-prima se destina à produção de álcool, o problema é ainda mais grave, pois os microorganismos invasores contaminam o caldo e concorrem com as leveduras na fermentação. Para combater a broca-da-cana as grandes usinas sucroalcooleiras produzem em seus laboratórios pequenas vespas (Cotesiaflavipes), liberadas no campo para parasitar as lagartas. Os pequenos produtores não têm como fazer o controle biológico porque não há produção suficiente de vespas em escala comercial, sem contar que elas têm de ser liberadas na plantação nas condições ideais de temperatura e quantidade para surtir efeito. E a partir do momento em que a broca penetra na cana as perdas são inevitáveis, porque nessa fase não dá mais para recorrer ao controle biológico nem ao químico, devido ao alto custo dos inseticidas e à baixa eficiência dos produtos, incapazes de atingir as lagartas no interior da planta. Promotores específicos - Após confirmar que as plantas com os promotores tinham a resistência aumentada contra a praga, os pesquisadores se viram diante de um novo desafio. Eles precisavam descobrir novas seqüências de DNA ainda não patenteadas que fizessem os genes expressarem a defesa con70 ■ JULHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 125

tra ataques de insetos. E, além disso, queriam promotores específicos, distintos daqueles descobertos pelos norteamericanos e cedidos para a pesquisa, chamados de promotores constitutivos, que se expressam o tempo todo ao longo do ciclo de vida da cana. "É esse tipo de promotor que vem sendo utilizado pelas empresas de biotecnologia nas plantas transgênicas com resistência a insetos", diz Silva Filho. pesquisa realizada na Esalq tinha, desde o início, o objetivo de identificar na cana promotores de genes que eram ativados apenas quando a planta fosse atacada pela lagarta. Depois de três anos de estudo, os pesquisadores conseguiram descobrir o promotor que controla a expressão de defesa do gene, batizado de sugarina. Na seqüência foi feito um trabalho de clonagem do promotor e depositado no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) um pedido de patente com o apoio da FAPESP, por meio do Programa de Apoio à Propriedade Intelectual (Papi). "O promotor da sugarina tem um grande potencial biotecnológico, porque acreditamos que ele funcione de maneira semelhante a outras plantas parentes da cana, como milho e arroz", diz Silva Filho. Se a planta não for atacada pelo inseto, ela é igual a uma planta convencional, que não passou por nenhuma modificação genética, de uma forma diferente das variedades de milho e algodão transgênicos resistentes a in-

setos, liberados para comercialização na Argentina, na China e nos Estados Unidos, que utilizam basicamente genes isolados de uma bactéria de solo chamada Bacillus thuringiensis (BT). Essas plantas produzem uma toxina, derivada de um gene bacteriano, durante todo o ciclo da planta, mesmo se não estiver sendo atacada. A diferença da cana da Esalq com outras plantas transgênicas foi comprovada em vários experimentos que avaliaram as situações em que o gene de defesa se expressava. Um deles consistia em fazer um ferimento na planta, como um rasgo na folha, por exemplo. "Normalmente, boa parte dos genes de defesa que são ativados por insetos também entra em ação quando ocorre um ferimento", diz Silva Filho. No caso da cana modificada com o promotor da sugarina, a planta responde apenas ao inseto. Os pesquisadores ainda não sabem com certeza como a planta consegue saber que a lesão é causada por um inseto e não por um ferimento. Eles ainda estão tentando caracterizar quais as moléculas envolvidas nessa resposta específica. Uma das hipóteses é que as substâncias presentes na saliva do inseto possam ativar a expressão dos genes. Para entender essa relação tão próxima entre planta e inseto herbívoro os pesquisadores iniciaram em 1998 uma extensa pesquisa, finalizada em 2002 e também financiada pela FAPESP, na modalidade Projeto Temático. "Começamos a fazer uma abordagem dos dois lados", diz Silva Filho. De um lado, a pesquisa buscava entender os mecanismos de defesa que a planta usa contra o

OS PROJETOS 1. Caracterização bioquímk 'a, entomológica e molécula r da interação entre inibidores de proteinases digestivas e insetos da ordem Lepidóptera

MODALIDl ,DE

2. Interação planta-inseto: um processo co-evolutivo

COORDENADOR MáRCIO DE CASTRO SILVA FILHO

adaptativas distintas 3. Patenteamento de um promotor de cana-de-açc car induzido por insetos herbívoros

1. Projf ?to Temático 2. Linh a Regular de Auxílio à Pe squisa 3. Prog rama de Aapoio à Prc jpriedade Intelectual (Papi) - USP

INVESTIMENTO

1. R$ 198.265,10 e US$ 139.201,90 (FAPESP) 2. R$ 108.250,00 e US$ 6.000,00 (FAPESP) 3. R$ 6.000,00 (FAPESP)


inseto para evitar que ele a utilize como alimento ou hospedeiro. E são muitos mecanismos, já que ela não pode sair do lugar para se defender. Por outro lado, os insetos também têm suas estratégias para enganar a defesa das plantas. As estratégias utilizadas por cada um dos oponentes são fundamentais para avançar nos métodos de obtenção de maior produtividade no campo. Afinal, tanto os insetos como as plantas estão em um processo de evolução conjunta que data de centenas de milhares de anos. Resposta tardia - A partir desse Projeto Temático, uma nova linha de pesquisa foi iniciada no laboratório da Esalq envolvendo a interação entre planta e inseto. E resultou no isolamento e caracterização do promotor da sugarina, trabalho que foi tese de doutorado de Patrícia Pompermayer, orientada por Silva Filho e uma das co-autoras da patente. Encerrada essa etapa, a pesquisa agora está na fase de detalhamento do mecanismo de atuação do promotor da cana, estudo que está sendo conduzido por Anne Hackbart de Medeiros, também sob orientação de Silva Filho e outra co-autora da patente. "Vimos nessa fase que o pico de ativação do gene é de cerca de 24 horas após o ataque da broca", diz Silva Filho. Algumas plantas respondem imediatamente, outras mais tardiamente, como é o caso da sugarina. Essa aparente demora na ativação do mecanismo de defesa está sendo estudada pelo grupo. Ao mesmo tempo em que os pesquisadores finalizam os estudos da sugarina, eles se preparam para solicitar à Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), órgão governamental que controla o plantio de transgênicos no país, autorização para levar os experimentos com as mudas que já estão preparadas na casa de vegetação para o campo, em uma área dentro da Esalq. Nessas condições, será possível saber se o promotor ativa a expressão de defesa da planta também quando ocorre o ataque da cigarrinha-da-raiz {Mahanarva fimbriola), um inseto sugador que teve seus índices de infestação aumentados em razão da colheita mecânica - no final do processo a máquina deixa no campo uma camada de palha, ideal para a proliferação dessa praga. • PESQUISA FAPESP 125 ■ JULHO DE 2006 ■ 71


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TECNOLOGIA *'■*>'--

METALURGIA

Conhecimento e oportunidade Pesquisadores criam empresa que usa pós metálicos para a produção de filtros industriais YURI VASCONCELOS

uem visita as acanhadas instalações da empresa Brats, estabelecida em uma casa de três pavimentos numa movimentada rua do bairro do Rio Pequeno, na zona Oeste de São Paulo, não vislumbra as inovações tecnológicas que são desenvolvidas ali dentro. A empresa está se transformando numa das principais fabricantes nacionais de filtros de aço inoxidável e de pós metálicos especiais, produtos inéditos no país ou com processo de fabricação dominado por poucas empresas. Criada há pouco mais de quatro anos, em abril de 2002, a Brats é um bom exemplo de como o elevado conhecimento científico de seus sócios, aliado ao senso de oportunidade, pode render frutos e se transformar num negócio lucrativo. A empresa foi fundada por cinco pesquisadores com formação em metalurgia do pó e elaboração de metais e ligas. Três deles fazem parte do quadro do Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo (IPT) e os outros dois são ex-pesquisadores do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) do Ministério da Ciência e Tecnologia. "Resolvemos nos juntar para criar uma empresa focada no desenvolvimento de novas tecnologias na área de metalurgia do pó. E, para isso, usamos todo o know-how adquirido em mais de duas décadas de pesquisas", conta o engenheiro metalurgista Lúcio Salgado, ex-pesquisador do IPT e doutorado pelo Ipen, um dos fundadores da Brats. O começo da empreitada não foi nada fácil. Com poucos recursos para investir, a saída encontrada foi instalar a Brats 72 ■ JULHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 125


Discos porosos são usados em vários equipamentos das indústrias químicas e siderúrqicas


numa pequena sala do Centro Incubador de Empresas Tecnológicas (Cietec), localizado no prédio do Ipen na Cidade Universitária em São Paulo, onde a empresa permaneceu por um ano e meio, até ser transferida para a sede atual. Segundo Salgado, também foi fundamental para o início e a sobrevivência do empreendimento ter obtido recursos da FAPESP, por meio do Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe), para o desenvolvimento de filtros sinterizados (processo de produzir um material por conformação de pós por compactação e aquecimento em altas temperaturas) de aço inoxidável de alto desempenho. Essas peças, até então não produzidas no Brasil, foram a primeira aposta da empresa, que, posteriormente, teve três outros projetos do Pipe aprovados pela FAPESP. iltros de aço inoxidável são elementos porosos feitos a partir da prensagem de pós metálicos. Eles são colocados numa matriz, no formato do filtro a ser produzido, e compacJtados numa prensa mecânica ou hidráulica. Em seguida, são aquecidos - ou sinterizados - em um forno a vácuo a uma temperatura próxima a 1.300°C (Celsius), equivalente a três quartos da temperatura de fusão da liga metálica. Esses filtros porosos são empregados na fabricação de sistemas de separação sólido-gás, sólido-líquido ou gás-líquido, como purgadores, difusores, atenuadores e borbulhadores. Seus principais usuários são indústrias químicas, petroquímicas, siderúrgicas, alimentícias, automotivas e mecânicas. O carro-chefe da Brats é um filtro cilíndrico tipo corta-chamas. Com cerca de 3 centímetros de altura, é uma peça fundamental em maçaricos de acetileno, usados para corte e soldagem de chapas metálicas. Responsável por 60% do faturamento da Brats, que no ano passado atingiu R$ 400 mil, a peça precisava ser importada dos Estados Unidos e Europa, já que por aqui eram fabricados filtros de bronze, que não atendiam às especificações necessárias para uso em maçaricos. O filtro funciona como um mecanismo 74 ■ JULHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 125

Filtros cilíndricos corta-chamas: uso em maçaricos de segurança, impedindo que o refluxo da chama para dentro do maçarico entre em contato com o acetileno, um gás inflamável, e provoque a explosão do cilindro. A demanda nacional por essa peça é de 10 mil unidades por mês e a Brats já conquistou metade do mercado. Ela fornece para seis pequenos fabricantes de maçaricos, além da Thermadyne, uma das maiores do setor e que antes comprava a peça de uma empresa norte-americana. "Nosso produto tem as mesmas especificações técnicas e é cerca de 10% mais barato que o importado. Além disso, como estamos no Brasil, prestamos assistência técnica imediata e podemos resolver problemas logísticos de nossos clientes com mais facilidade", diz Salgado. Pó de titânio - Outra inovação da Brats é a produção de pó de titânio obtido por um processo conhecido como hidretação-desidretação, que consiste basicamente na hidrogenação (adicionar hidrogênio), moagem e desidrogenação do material. A hidrogenação é feita para fragilizar as barras de titânio e assim poder transformá-las em pó na etapa de moagem. Em seguida, o pó é colocado num forno a vácuo e aqueci-

do a cerca de 900°C para retirada do hidrogênio. "Esse processo só é dominado no Brasil por institutos de pesquisa. Somos a primeira empresa a empregálo comercialmente", diz Salgado. As duas principais aplicações dos pós de titânio, segundo o pesquisador, são o revestimento de implantes ortopédicos ou dentários por plasma (um tipo de gás) - ainda em desenvolvimento - e o jateamento de superfícies de implantes dentários. Esse jateamento é necessário para tornar a peça mais rugosa e facilitar sua integração ao osso da boca. Desde o ano passado, o pó é vendido para fabricantes de implantes odontológicos. "Nossa inovação foi usar o pó de titânio, que é um elemento biocompatível, para desbastar implantes dentários, algo que ninguém tinha feito antes", destaca Salgado. A partir de janeiro do próximo ano, a empresa pretende ampliar sua linha de produtos dando início à comercialização dos chamados filtros metálicos do tipo cartucho, que são produzidos a partir de placas planas de aço inoxidável. Com o formato de um tubo em diferentes tamanhos, eles fazem parte da estrutura de catalisadores (uma espécie de filtro de gases) instalados dentro de


Pós metálicos: matéria-prima para filtros de aço reatores usados por indústrias petroquímicas e usinas de álcool. Hoje esses filtros, ainda em fase de desenvolvimento, não são fabricados no Brasil e seu valor agregado é muito alto. Quando a Brats começar a produzi-los, acredita Salgado, o faturamento da empresa deverá dar um grande salto. "Assim como os filtros cilíndricos para maçarico, esse produto também é inédito no país e representaOS PROJETOS 7. Produção de peças porosas em ligas de alto desempenho 2. Utilização de pós de titânio obtidos pela rota HDH MODALIDADE

Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe) COORDENADORES 1. FRANCISCO AMBROZIO FILHO Ipen/Brats 2. REJANE APARECIDA NOGUEIRA Ipen/Brats INVESTIMENTOS

1. R$ 306.088,50 e U$ 22.254,00 (FAPESP) 2. R$ 415.880,00 (FAPESP)

rá uma substituição de importação", afirma o engenheiro metalurgista Francisco Ambrozio Filho, ex-pesquisador do Ipen e outro sócio da Brats. Nova fábrica - O sucesso obtido pelos produtos lançados pela empresa fez com que seus donos decidissem ampliar suas instalações. Para isso, construíram uma nova sede, no município de Cajamar, prevista para ser inaugurada em setembro deste ano. Dos R$ 150 mil investidos na construção da fábrica, dois terços foram recursos da empresa e o restante veio do Programa de Apoio à Pesquisa em Empresas (Pappe), promovido pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), em parceria com a FAPESP. A Brats também recebeu US$ 150 mil do Pappe para a compra de um forno de sinterização. Desde sua criação, a empresa mantém parceria com o Ipen para utilizar a infra-estrutura do instituto. "Começamos numa sala de 25 metros quadrados no Cietec, passamos para o galpão atual, com 150 metros quadrados, e agora vamos para um espaço duas vezes maior", afirma Salgado. A amplidão espacial da nova sede é fundamental para os planos de expansão da Brats, que pretende iniciar a pro-

dução dos pós metálicos utilizados como matéria-prima de seus filtros. "Hoje precisamos importar o pó de aço inox, que custa em torno de US$ 20,00 o quilo, mas em Cajamar nós mesmos poderemos fabricá-lo", diz o pesquisador. Com isso, o custo de produção dos filtros de aço inoxidável poderá cair sensivelmente, dando condições para que os produtos da empresa tenham competitividade internacional. "Quando passarmos a produzir o pó metálico, seremos a única empresa do mundo a dominar todo o ciclo de produção de filtros de aço inoxidável. A verticalização da cadeia produtiva vai permitir que passemos a exportar nossos produtos. Esta é a nossa próxima meta, prevista para 2007", diz Ambrozio Filho. Os pós serão produzidos a partir de uma metodologia conhecida como atomização com uso de água, um processo semelhante à pulverização. "Já dominamos esse processo e faltam apenas ajustar pequenos detalhes para o início de produção em escala comercial", diz o pesquisador. O primeiro passo é fundir a matéria-prima à base de ferro e, em seguida, escorrer o metal por uma espécie de panela vazada. Com uso de um dispositivo chamado bocal de atomização, o filete líquido é bombardeado por um jato de água de alta pressão, levando à pulverização e à produção do pó. Para controlar o tamanho e a morfologia das partículas, basta ficar atento a parâmetros como pressão e vazão da água, temperatura do metal líquido e diâmetro do filete. A produção interna vai trazer outra vantagem à Brats, que é produzir pós com a granulometria desejada. A planta de Cajamar terá capacidade para produzir 7 toneladas de pós metálicos por mês, trabalhando em um único turno. Como atualmente a demanda interna da empresa é de apenas 1 tonelada por ano, a intenção dos executivos da Brats é diversificar a produção, fabricando também outros tipos de pós, como ligas de níquel, ferro e cobre, e passar a fornecer para empresas que consomem esses produtos, como indústrias químicas e fabricantes de eletrodos de solda. "Com a mudança para a nova sede em Cajamar e o início da produção de pós-metálicos, passaremos a ser auto-suficientes. Depois de quatro anos de batalha, iremos atingir a maturidade", diz Salgado. • PESQUISA FAPESP 125 ■ JULHO DE 2006 ■ 75


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TECNOLOGIA EDUCAÇÃO

Abordagem divertida Escolas e prefeituras adotam softwares para crianças com dificuldades de aprendizagem

rianças em idade escoLaura, que ensinam a fazer cálculos aritdesenvolvimento do projeto vimos que lar com dificuldades de o enfoque poderia ser ampliado para méticos com exercícios divididos em dois aprendizagem ocasiooutras crianças e começamos a trabamódulos, contar e calcular, e três níveis nadas por problemas lhar também com a rede pública e escode complexidade, além de trabalhar a neurológicos como hilas particulares", diz o médico Armando leitura e a escrita com exercícios que utiS^B peratividade, distúrbios Freitas da Rocha, sócio da Eina, coorlizam muitas imagens, associações e quevV de atenção, impulsividenador do Enscer e professor visitante bra-cabeça. E deu origem ainda a um dade e dislexia - disdo Departamento de Patologia da Faportal na internet (www.enscer.com.br), função que acarreta problemas de enculdade de Medicina da Universidade financiado pelo Conselho Nacional de tendimento da leitura e da escrita -, de São Paulo (USP). Desenvolvimento Científico e Tecnoquando não recebem o devido acomNessa ampliação o foco recaiu sológico (CNPq), que serve como instrupanhamento em sala de aula são candibre alunos com dificuldades de aprenmento de apoio para professores e prodatas a entrar no círculo vicioso de redizagem e distúrbios de comportamenfissionais envolvidos no projeto e conta petência e desistência. Como a escola é to. Para poder atender às necessidades com referências bibliográficas, softwares a primeira vivência de socialização da das crianças, foi desenvolvido um sistee informações sobre o programa. criança, essa etapa precisa ser trabalhama que engloba capacitação dos profesda adequadamente, como propõe o prosores, atendimento neuropedagógico Mapa cerebral - Pelo portal também é possível fazer diagnósticos de alunos jeto Ensinando o Cérebro (Enscer). A feito por médicos, psicólogos e fisiotepesquisa é o desdobramento de um esrapeutas e materiais de apoio, como com problemas de aprendizado. O protudo iniciado em 1997 que tinha como softwares, desenvolvidos pela equipe fessor preenche uma série de informafoco crianças portadoras de deficiência multidisciplinar. ções, que são analisadas pela equipe resmental, conduzido pela empresa Eina, O software original também evoluiu ponsável pelo projeto. A partir dessa de Jundiaí, um dos primeiros na modae resultou em uma série que tem como avaliação são indicadas atividades para lidade Programa Inovação Tecnológica protagonistas dois personagens, Jucá e as crianças fazerem com o auxílio dos softwares. "Esse é um em Pequenas Empre^ processo de refinasas (Pipe) financiados f OS PROJETOS pela FAPESP (veja Pesmento de caracterizaquisa FAPESP n° 61). ção da criança, para Enscer - Sistema Um est jdo sobre Testado e colocado podermos trabalhar os o deser wolvimento informatizado e integr ado em prática na Associaproblemas", diz Rocha. neuroc ignitivo das crianças para ensino e avaliaçã 0 ção dos Pais e Amigos Caso seja necessário do progresso pedagóg ico e matricL liadas no dos Excepcionais (Apae) fazer um diagnóstico ensino fundamental na cidade neural de crianças por tadoras do município, o esou avaliação mais dede deficiência mental de Mog i das Cruzes tudo resultou no lantalhados, os pesquisaMODALIDADE dores podem recorrer çamento de um CDMODALIDADE Programa Inovação Tecnológica Ensino Público ROM com recursos a mais uma ferramenem Pequenas Empresas (Pipe) audiovisuais em 2001. ta, um mapa cerebral COORDENADOR Os estudos também que aponta as áreas COORDENADOR ARMANDO FREITAS DA ROCHA ARMANDO FREITAS DA ROCHA foram transformados envolvidas na execuEina/USP Eina/USP em dois livros, O céreção de tarefas feitas no 4 bro, um breve relato da computador pelo aluINVESTIMENTO INVESTIMENTO sua função e O cérebro no, registradas por eleR$ 176.992,00 (FAPESP) R$ 164.389,77 (FAPESP) na escola. "Durante o trodos. As informações 76 ■ JULHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 125


são processadas por um sistema desenvolvido pelos pesquisadores durante o projeto dirigido para deficientes mentais. "Uma das primeiras escolas a adotar o projeto foi o Colégio Clip, de Guarulhos, para fazer a inclusão adequada das crianças portadoras de deficiências neurológicas", diz Rocha. Quando o projeto teve início, em 2002, o colégio era pequeno. Hoje, com o crescimento do número de alunos, foi criado no mesmo local um segundo colégio, onde são aplicadas as técnicas do Enscer e as crianças têm o acompanhamento de diversos outros profissionais. Dependendo do grau de deficiência neurológica da criança, ela consegue acompanhar a classe regular até um determinado ponto. Com o passar do tempo, a diferença de idade e de cognição (aquisição de conhecimento) cria uma defasagem entre os alunos regulares e os chamados especiais. "Quando chega essa fase, os especiais vão para o segundo colégio, mas continuam a fazer interações com o colégio original, porque a inclusão tem que ser feita com respeito, provendo a criança daquilo que ela precisa para se desenvolver", diz Rocha.

Existem também os casos de crianças que fazem o caminho inverso, como as portadoras de paralisia cerebral. Elas precisam ser preparadas para a inclusão, mas o principal problema delas não é cognitivo, e sim de ordem motora. Por isso esses alunos precisam desenvolver principalmente as habilidades motoras antes de ir para o colégio regular. O colégio que abriga o projeto Enscer trabalha também com crianças com deficiências de aprendizagem que precisam de um reforço extra. Na prática, os dois colégios operam em conjunto. Redes municipais - Além do Colégio Clip, o programa está sendo aplicado em escolas da rede municipal de Mogi das Cruzes e de Guarulhos. Em Mogi são duas escolas, situadas dentro de conjuntos habitacionais, que participam do Enscer desde 2003. Um desses conjuntos abriga pessoas que foram desalojadas de seis favelas e transferidas para uma região periférica da cidade, completamente isolada. "É uma comunidade que, além de todos os problemas de agressividade inerentes à própria condição em que vive, ainda se fecha", diz Rocha.

O outro conjunto habitacional também abriga pessoas que moravam em favelas, mas está inserido em um bairro grande de Mogi, portanto, com perfil populacional distinto. Inicialmente, o trabalho consistiu em preparar os professores para evitar que as crianças oriundas da favela fossem marginalizadas dentro da escola. Cumprida essa etapa inicial, de inclusão do aluno na escola, a equipe do Enscer passou a fazer as avaliações dos alunos. Depois de feitos os diagnósticos, os profissionais do projeto trabalham junto com o professor. A prefeitura de Guarulhos também adotou desde 2003 o sistema Enscer em todas as escolas da rede que possuem laboratórios de informática. A partir de 2006 o projeto foi implementado em quatro escolas da rede pública que receberam laboratórios de informática com o apoio do programa Ensino Público, da FAPESP. Nesse projeto, a avaliação dos 400 alunos participantes conta com um amplo sistema de informações que engloba desde o período de gravidez da mãe, a composição da família até o desenvolvimento escolar. Todos esses dados são cruzados e avaliados por um software desenvolvido pelos pesquisadores do Enscer. Além de acompanhar os alunos via internet, a equipe também faz reuniões periódicas com os professores nas escolas. A medida que o projeto avança outros progressos têm sido obtidos nas escolas públicas de Guarulhos. Um deles é o acesso desses alunos a práticas esportivas em alguns clubes da cidade, que cederam horários para a prefeitura em troca de dívidas com os cofres públicos. • DlNORAH ERENO PESQUISA FAPESP 125 ■ JULHO DE 2006 ■ 77


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TECNOLOGIA QUÍMICA

Cápsula

Alimentação animal monitorada por substância química inerte traz benefícios para as criações

MARCOS DE OLIVEIRA

aber a quantidade de alimento ingerido por um animal de criação e o quanto ele absorve em termos de nutrientes é a promessa de um novo produto químico prestes a ser lançado no mercado. Com apenas uma cápsula diária de hidroxifenilpropano, que recebeu a marca comercial de Lipe, os animais poderão ter sua alimentação mais bem monitorada, desde as rações até aquela encontrada no pasto. Já aprovado em bovinos, suínos, carneiros, coelhos, aves, eqüinos e até em peixes, o produto também foi eficiente em ratos de laboratório. Esse resultado permite que, nos próximos meses, o Lipe possa ser testado em seres humanos. "Esse é o sonho de todo nutricionista e objeto de pesquisas em todo o mundo", diz a química Eloísa de Oliveira Simões Saliba, professora da Escola de Veterinária da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenadora da pesquisa. Os testes em humanos serão realizados com apoio do curso de Nutrição da universidade. A pesquisadora chegou à formulação final do Lipe depois de 16 anos de pesquisa que incluíram mestrado, doutorado e pós-doutorado. O estudo 78 ■ JULHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 125

começou com a lignina, uma molécula conhecida como polímero orgânico existente nas plantas. "A partir dela, nós produzimos uma lignina sintética, purificada e enriquecida com outros agrupamentos químicos", diz Eloísa. Com alguns testes positivos em mãos, ela encaminhou, por meio da UFMG, o depósito de patentes no Brasil e no exterior. Eloísa, para produzir o produto comercialmente, fundou uma empresa, a P2S2, na Inova, a incubadora de empresas da UFMG, junto com seus colegas de pesquisa, professores Norberto Mário Rodriguez, da Veterinária, e Dorila Pilo Veloso, do Departamento de Química da mesma universidade. "Por enquanto estamos fornecendo o Lipe apenas para pesquisadores em nutrição animal da Embrapa (a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), da Universidade Federal de Viçosa (UFV), da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), na Paraíba, da Universidade Federal do Ceará (UFC) e da Universidade Nacional do Sul e do Instituto Nacional de Tecnologia Animal, ambos da Argentina", diz Eloísa. Marcador biológico - Os pesquisadores estão testando o Lipe em outros animais como cães, gatos e búfalos. Em todos, a análise da digestão e da


Marcador biológico traz informações sobre a digestão e a guantidade de alimento consumido

quantidade de alimento ingerido se dá a partir das fezes. Em 24 horas depois de administrado, o produto passa a funcionar como um marcador biológico que não é absorvido pelo sistema digestivo e se mistura ao alimento. A análise dos resultados é feita por meio de espectroscopia de luz infravermelha. Essa técnica usa a emissão dessa radiação eletromagnética diretamente numa amostra de bolo fecal. A proporção da absorção de luz é variável para cada tipo de nutriente, como proteínas, vitaminas, matéria seca, carboidratos etc. Essa variação é analisada por um software que vai determinar e exibir o resultado da quantidade e da digestão de cada alimento, dependendo sempre da concentração do Lipe. Se existir um índice maior dessa substância no alimento, é possível que ele tenha sido mais bem digerido pelo animal. A análise é feita nos espectrômetros, que são aparelhos comuns em universidades e centros de pesquisa, usados normalmente para análise de substâncias orgânicas. A forma como isso vai ser fei-

to ainda está em estudo pela empresa. Outra vantagem do Lipe, segundo a pesquisadora, é que ele é totalmente inerte, não causando nenhum tipo de efeito colateral. "Um produto usado com a mesma finalidade em animais, no Brasil e no exterior, o oxido crômico, se mostrou cancerígeno e está sendo abandonado." Alternativos e baratos - Entre os objetivos do Lipe, segundo a pesquisadora, está o seu uso para ajudar na elaboração da alimentação de animais. "Será possível oferecer alimentos alternativos e determinar a digestibilidade e o consumo de sub-produtos industriais, como a torta de mamona, por exemplo, disponível de forma barata e em grande quantidade com a produção do biodiesel." Para ela, essa é uma forma de diminuir os gastos com a alimentação animal e, conseqüentemente, os custos de produção, além de até melhorar a nutrição dos animais. Cada grama do Lipe custa R$ 15,00, sendo que uma cápsula possui 0,5 gra-

ma e são necessárias apenas quatro cápsulas por animal testado. Eloísa prepara a P2S2, que possui dois funcionários, para a produção comercial a partir deste segundo semestre. O Lipe vai se tornar mais conhecido da comunidade científica a partir da próxima reunião anual da Sociedade Brasileira de Zootecnia, que ocorrerá entre 24 e 28 de julho em João Pessoa, na Paraíba, quando nove trabalhos científicos sobre o uso do produto, em várias espécies de animais, serão apresentados. Para montar a empresa e prosseguir nas pesquisas, a P2S2 recebeu financiamento do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), do Ministério de Ciência e Tecnologia. O próximo passo da empresa será o início dos testes em humanos. "Com o Lipe provavelmente será possível analisar a absorção de alimentos individualmente, em cada organismo, e ajudar na elaboração de cardápios e dietas", espera Eloísa. • PESQUISA FAPESP 125 ■ JULHO DE 2006 ■ 79


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HUMANIDADES CIÊNCIA

POLíTICA

Separados no nascimento Apesar do desejo de alguns, PT e PSDB parecem destinados a seguir caminhos distintos

CARLOS

HAAG

m "Cimos': conto de Primeiras estórias, de Guimarães Rosa, o mineiro narra o sofrimento do Menino entristecido pela doença da mãe. Certa manhã, ele vê, no jardim, um tucano, que volta todos os dias. A beleza emplumada, acredita o garoto, passava a ele fluidos positivos para a mãe que, um dia, melhora. O Menino acredita com o coração que o milagre fora feito por sua parceria com o pássaro. Ilusão bonita? "Há, na literatura especializada, duas certezas sobre o PSDB: sua criação, em 1988, teria ocorrido por motivos ideológicos, uma insatisfação de alguns parlamentares com a aliança que o PMDB (partido em que estavam) cultivava com a direita. A outra é que a aliança que o PSDB selou com o PFL, a partir da eleição de 1994, foi pragmática, o que teria descaracterizado sua orientação ideológica': explica Celso Roma, cientista político da USP e um dos poucos a estudar as estruturas do partido tucano. "Em verdade, o surgimento do PSDB da cisão com o PMDB teve mais relação com objetivos pragmáticos-eleitorais do que com questões ideológicas. Quanto à sua evolução, ao contrário, a aliança com o PFL pode ser explicada mais por motivos ideológicos do que pragmáticos", afirma. Numa eleição em que, pela terceira vez consecutiva, haverá uma polarização entre PT e PSDB e que muitos questionam algumas escolhas feitas pelos tucanos, é importante entender como funciona a dinâmica interna do PSDB, pois, como nota Roma, "muito de sua evolução e 80 • JULHO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 125


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funcionamento pode ser entendido a partir da análise de sua origem e estrutura organizacional" Se os especialistas, muitas vezes, se enganam em suas análises sobre o partido, o que se pode dizer dos eleitores? "Eles tenderiam a fazer uso dos partidos como atalho para reduzir o custo da decisão eleitoral, em especial em contextos multipartidários como o brasileiro", observa a cientista política da Universidade de São Paulo (USP) Maria D'Alva Kinzo, coordenadora do Projeto Temático Partidos

resultado de uma cisão coletiva de parlamentares do PMDB que se autodeno minavam a ala mais progressista e à esquerda da legenda. "Embora se intitulasse como social-democrata, ao contrário dos partidos social-democratas clássicos europeus, que se originaram articulados às massas trabalhadoras e aos sindicatos, o PSDB teve uma origem exclusivamente parlamentar, já tendo em sua composição políticos influentes no cenário nacional", lembra.

e representação política: o impacto dos partidos na estruturação da escolha eleitoral no Brasil, financia-

ara o cientista político, há uma valorização excessiva do aspecto ideológico como variável explicativa da fundação do partido tucano, em particular a que mostra o seu surgimento como resultado da discordância de suas lideranças sobre alianças com partidos de direita (como a candidatura de João Leiva para a prefeitura de São Paulo, dentro do PMDB, que postulava a ligação com políticos conservadores do PFL e Iânio Quadros) ou a rejeição da prorrogação do mandato presidencial (leia-se a distensão do grupo com o PMDB durante a Constituinte de 1988 que discutia a duração do mandato de José Sarney). "Mas, seis anos após sua fundação, o PSDB construiu uma aliança de centro-direita para chegar ao poder federal e dois anos mais tarde dobrou a duração do mandato presidencial. Assim, explicações ideológicas são inconsistentes, visto que o próprio PSDB adotou estratégias de ação que repudiava pouco tempo depois de seu nascimento", explica o pesquisador.

do pela FAPESP, que analisa como os partidos se organizam para buscar apoio nas urnas e como isso se constitui em balizamento para a escolha pelo voto. No entanto, os eleitores brasileiros têm dificuldade para identificar os partidos como atores políticos distintos. "Numa situação de intensa fragmentação e falta de nitidez do sistema partidário, em decorrência da prática de todo o tipo de alianças eleitorais, é difícil para o eleitor fixar a imagem dos partidos, distinguir seus líderes e propostas e estabelecer lealdade partidária", avisa. A pesquisadora revela que partidos como o PFL e o PSDB, que estiveram rio governo federal por um longo período, têm apresentado taxas insignificantes de lealdade partidária, ao contrário, por exemplo, do PT, que, ao lado do PMDB (em menor proporção), conseguiu fixar sua imagem e criar laços com uma porção significativa do eleitorado. "Foi surpreendente a pequena proporção de entrevistados que sabiam a que partido pertencia o então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso: apenas 29% responderam certo:' "O contraste entre PT e PSDB está marcado desde as suas origens. Assim, chama a atenção que, apesar de o sistema partidário atual reunir dezenas de legendas, apenas duas surjam como protagonistas desse pleito. Para conseguirem essa façanha, esses partidos percorreram caminhos bem diferentes': observa Roma. O PSDB surgiu em 1988, 82 • JULHO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 125

Sarney - Para Roma, o que valeu foi mesmo o pragmatismo: o governo Sarney concedera pouquíssimo espaço político aos futuros tucanos; eles foram excluídos do processo sucessório à Presidência da República; abria-se um mercado de eleitores de centro que estavam descontentes com os rumos tomados pelo governo. Como lembra o sociólogo da USP Brasílio Sallum [r., a Nova República acabou por se tornar um sistema instável de dominação política, em que não se articulavam bem

a dimensão institucional, a esfera sociopolítica e as condições econômicas. Tentando renovar a estratégia desenvolvimentista, o governo Sarney enfrentou condições externas adversas que drenavam o capital em vez de trazê-lo para o Brasil. "As dificuldades de estabilizar uma nova forma de Estado estimularam o crescimento na elite brasileira de um novo projeto político. Sentindo-se insegura com as iniciativas reformistas da Nova República, em particular as políticas heterodoxas de estabilização monetária, as idéias econômicas liberais passaram a se tornar relevantes para ela': analisa Sallum Jr. Segundo ele, embora o liberalismo econômico só tenha se tornado politicamente hegemônico nos anos 1990, essa hegemonia começou a ser socialmente construída na segunda metade da década de 1980 e rapidamente chegou ao eleitor mediano. Havia demanda. Cisão - "Dessa forma, a origem do PSDB pode ser explicada por sua orientação mais pragmática eleitoral. Tratou-se da cisão de um grupo de deputados federais e senadores que acreditavam somente ter possibilidade de conquistar cargos no governo federal, principalmente a Presidência, aproveitando-se do capital político acumulado pelo PMDB, mas por meio de outro partido", avalia Roma. Para o cientista político, a orientação programática liberal estava estabelecida desde a origem do partido e não se sustentaria o discurso apologético da "guinada à direita': abandonando o projeto socialdemocrata, como custo que o partido teve de pagar para chegar ao governo por meio da aliança com o PFL. Já no seu manifesto de 1988, havia a intenção declarada de romper com o caráter nacionalista e estatizante do Estado brasileiro e a negativa do recém-nascido partido em conduzir negociações de trabalhadores rurais e urbanos, bem como intervir em suas reivindicações, que deveriam ser deixadas livres entre patrões e empregados. Com relação aos problemas sociais, a suposição era que estes seriam resolvidos em decorrência da estabilidade monetária, da austeri-


dade fiscal, da descentralização da administração pública e do crescimento sustentável como panacéia. "A construção da identidade programática do PSDB revela um dilema ideológico entre se declarar social-democrata, de um lado, e apresentar um programa de governo orientado por teses liberais, de outro. O discurso socialdemocrata, porém, foi fundamental no processo de mobilização de filiados e militantes, o que conferiu um viés de esquerda na sua origem. A tônica liberal do seu programa de governo, por outro lado, predominou como concepção ideológica de seus membros dirigentes com cargos eletivos", diz Roma. O mesmo, afirma, valeu para a estratégia de alianças adotadas pelo PSDB que, em 1994, coligou-se com partidos de direita e ascendeu ao poder, traduzindo essa concepção em política concreta. "Tanto mais quando o ministro Sérgio Motta, no qual é difícil distinguir o lado sério do lado bufão, anunciou que o projeto político do PSDB é ficar 20 anos no poder", afirmou certa vez o falecido economista Roberto Campos. Para Sallum [r., o momento oferecia a fortuna, a situação da Nova República, bem aproveitada pela virtú de lideranças políticas. "A referência à fortuna e à virtú permite retomar cum grana salis a idéia de 'momento maquiaveliano', de Iohn Poccok, que enfatiza o papel da liderança na manipulação criativa das oportunidades legadas pela fortuna para fazer prevalecer os interesses da comunidade política ameaça da pela confrontação com interesses partícularistas, reconstruindo assim o Estado." União - Assim, como avalia Roma, a união com o PFL não representou uma ruptura no seu programa original nem uma descaracterização de sua essência ideológica. "Na verdade, é possível até mesmo perceber o contrário, ou seja, a mudança de posicionamento do PFL no governo FHC em relação às funções do Estado': Era impossível, desde o início, qualquer aliança com a esquerda, do PT ou PDT. ''A coligação do PSDB com partidos à direita seguiu muito mais critérios de afinidades programáticas do

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que critérios pragmáticos. Prevaleceu a visão das lideranças nacionais do PSDB na adoção dessa estratégia eleitoral e governamental", explica. Para tanto, foi fundamental o modelo adotado de organização interna, que permitiu a um pequeno grupo decidir o rumo que seria tomado pelo partido, apesar da existência de dissidências em seu interior. "No caso do PSDB, por causa de sua origem e pelas estratégias adotadas ao longo de sua evolução histórica, formou-se uma estrutura organizacional propícia a ações autônomas das lideranças." A primeira delas é a ausência de instâncias internas de veto efetivo para a ação da militância. Segundo Roma, o partido dá pouca atenção à estrutura interna e concentra o processo decisório nas mãos dos líderes, com os filiados tendo pouco ou nenhuma decisão. O pesquisador lembra que os partidos, em geral, se organizam para chegar ao poder. Os tucanos, ao contrário, chegaram ao poder e ainda estão tentando se organizar. Para ele, o PSDB acostumou-se, nesse processo pouco democrático interno, a ter decisões unânimes, a não ter vida interna no partido, como se fosse sempre possível haver unanimidade em tudo. Daí, observa, a celeuma provocada com a dicotomia Serra-Alckmim. "Não conseguem fazer com que haja um processo decisório, que as prévias sejam realizadas normalmente de modo que as disputas sejam resolvidas:' Roma nota que o PSDB é um partido com uma visão eminentemente consensual da política, que detesta conflito de qualquer origem, sendo sempre a favor de posições políticas que tenham base técnica, o que, reconhece o pesquisador, é muito difícil de ocorrer na prática. Sempre procurando dividir o custo do governo, consciente da fragilidade de sua estrutura partidária, adotada na sua fundação, o partido concentra a tomada de decisões em uma cúpula. Assim, ainda que o estatuto tucano preveja: divisão de poderes entre os escalões do partido; participação democrática de seus filiados, com poder de 84

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veto; punição de parlamentares indisciplinados; e núcleos de base municipal que deveriam viabilizar vínculos entre o partido e a sociedade e os movimentos sociais, "a organização interna efetiva é radicalmente distinta da prevista neste estatuto e, no plano empírico, não é possível observar nenhum dos pontos citados': nota o pesquisador. "Conseqüentemente, a entrada de filiados no PSDB está bastante associada à obtenção de vantagens geradas por pertencer a um partido que conquistou a Presidência da República e o governo dos principais estados da federação': pondera Roma. Isso pode, inclusive, ser verificado no desenvolvimento histórico da atuação do partido no Parlamento. cientista político delimita dois momentos claros e antagônicos. O primeiro, que se inicia com sua fundação e se encerra no impeachment de Collor, caracteriza-se pelo distanciamento do governo federal. "Durante os governos Sarney e Collor, o PSDB não apoiou o Executivo no Congresso Nacional. Os deputados federais peessedebistas votaram mais próximos aos partidos de esquerda, entre eles o PT:' No segundo momento, com participação no governo Itamar Franco e continuando no mandato de FHC, nota-se a ascensão dos tucanos a posições de poder e uma reviravolta em suas posturas parlamentares. "O partido alterou sua posição no Congresso Nacional de oposição a situação. Em outras palavras, o processo de parlamentarização do partido iniciou -se na primeira fase da gestão Itamar, na qual o partido aprovou 87,2% dos encaminhamentos do líder do governo e indicou seis partidários para ocuparem pastas ministeriais:' Para Roma, o pragmatismo que está na raiz do PSDB redundou numa estrutura organizacional com pouca democracia interna e concentração de poder nas mãos de um cardinalato, cujo poder absoluto permitiu que o partido pudesse passar por cima de obstáculos internos, mesmo quando os rumos seguidos iam de encontro ao seu espectro ideológico

pregado. "Isso significou a adoção de uma estratégia que combinasse os objetivos de chegar ao poder político e implementar o seu programa de governo. Dessa forma, sua estratégia de alianças, traçada a partir de 1994 do topo de sua direção, representou um alto grau de racionalidade de suas lideranças nacionais:' No entanto, conclui o pesquisador, essa fraca organização partidária favoreceu a tomada racional de decisões, produzindo maior eficiência eleitoral e capacidade governamental. "Mantendo fracos vínculos com a sociedade civil, demonstrada pela origem exclusivamente parlamentar e pela falta de articulação e organização dos interesses de associações representativas, suas lideranças podem atuar na arena governamental e na competição eleitoral com maior autonomia decisória." Delira quem imagina uma ligação entre PSDB e PT. "A organização petista surgiu fora do jogo eleitoral e parlamentar, a partir da articulação de interesses de setores organizados da sociedade civil, sobretudo sindicalistas, parte da Igreja Católica, intelectuais e parlamentares de esquerda, enquanto o PSDB foi criado dentro do Congresso Nacional para disputa da eleição presidencial de 1989': diz o cientista político. Ainda, o PT optou por uma organização interna que instituiu regras internas que incentivam a participação e a disciplina de seus filiados, já que abrem a eles a chance de participar do processo de tomada de decisão partidária, na contramão do PSDB, que preferiu uma estrutura mais descentralizada e com líderes dotados de grande autonomia de decisão, escolha feita para evitar o suposto "engessamento burocrático" partidário. Assim, os tucanos não enfrentam resistências intestinas, como os líderes petistas, na hora de indicarem candidatos ou firmarem coligações ou alianças. Disputa - Em termos programáticos, observa Roma, os dois travam uma disputa acirrada, mas que hoje sofreu alterações sutis. O PSDB volta-se para a ruptura do modelo nacionalista-desenvolvimentista, adotado no Brasil por Vargas a partir de 1930, e prefere afastar-se de conflitos entre capital e traba-


lho, bem como adotar políticas sociais mais universalistas, baseadas em resultados indiretos de políticas monetárias. Já o PT é mais intervencionista, acreditando que a solução dos problemas sociais estaria no desenvolvimento sustentado, e não, como os tucanos acreditam, na desregulamentação da economia, na reforma do Estado e na abertura da economia ao mercado internacional. Mas os opostos acabaram se encontrando num ponto: a doutrina petista agora inclui em seu programa o compromisso com a estabilidade da moeda e com o superávit primário, um sinal de moderação das antigas posturas radicais do partido. "Qualquer que seja o resultado, a democracia avança em qualidade quando suas eleições se balizam por partidos comprometidos com programas distintos, de modo que as preferências da maior parte do eleitorado estejam representadas no governo. Só assim os eleitores poderão estabelecer vínculos mais fortes e de longo prazo com suas legendas", diz Roma, ressaltando os resultados da pesquisa de Maria Kinzo. ''A coerência entre retórica e prática é fundamental para que os eleitores consolidem lealdades partidárias. O PT e o PSDB parecem estar na vanguarda desse movimento", avalia o pesquisador. Mais: ambos seriam os partidos brasileiros dotados do que o cientista político Iairo Nicolau, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), chama de "vocação presidencial': "Essa vocação foi desenvolvida em quatro disputas presidenciais e forçou esses dois partidos a formular propostas para o país, a criar redes mais orgânicas com o mundo intelectual e a criar processos decisórios no plano nacional", observa. "Por outro lado, PMDB e PFL, dois partidos com força nas eleições municipais e no Congresso, ao se recusarem a disputar efetivamente a Presidência, acabaram cada vez operando mais como uma confederação de lideranças estaduais (e, em cada estado, como confederação de lideranças locais)." Se foi a imaginação do Menino ou a força da ave emplumada que salvou a mãe doente, cabe aos eleitores decidir esse dilema rosiano nas urnas em outubro. • PESQUISA

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O HUMANIDADES

iSangue Estudar os antigos gladiadores ajuda a entender a sociedade atual


ai

ão e circo: esse é o imperador dos chavões, usado para atacar da Copa do Mundo ao presidente da República, um símbolo de um povo "idiotizado" e clientelista, que se deixa vender por pouco. Da direita à esquerda, a imagem, vinda dos tempos romanos, serve como forma de fustigar políticos, na maioria das vezes sem que o atacante se dê conta do menosprezo aos cidadãos, oculto na frase, roubada de seu contexto, uma das Sátiras do poeta Juvenal (67 d.C.-130 d.C). Para combater um clichê, nada melhor do que outro (com perdão do filósofo Santayana, o seu criador): "Aqueles que não lembram o passado estão condenados a repeti-lo". "Deslocado do seu contexto, a máxima de Juvenal nos remete à tentadora possibilidade de ver os romanos como desinteressados pelos acontecimentos políticos e amantes dos prazeres de acesso fácil", observa Renata Garraffoni, autora da tese de doutorado Técnica e destreza nas arenas romanas: uma leitura da gladiatura no apogeu do império, defendida na Unicamp. "Mais do que reforçar a idéia do gosto pelo pão e circo, sexo e violência, é necessário criar alternativas para a idéia predominante de uma massa manipulada pela elite e ressaltar as distintas formas de relações sociais na Roma antiga, que são criativas, únicas e surpreendentes", explica. Aqueles que não estudam direito o passado estão condenados a repetir a mesma besteira. "A idéia do pão e circo só valoriza um único aspecto dos munera (os jogos de gladiadores na arena), isto é, o de manipulação política. Falou-se de ociosidade, parasitismo do Estado, violência e prazeres, mas pouco se disse sobre o cotidiano dessas pessoas que combateram, o que nos leva a pensar nos limites dessas interpretações que aprisionam a diversidade dos sujeitos, impedindo que sejam agentes de sua história", avisa Renata. A pesquisadora, falando do passado, revela como os historiadores, com a visão moderna do sécu-

lo 19, mostram a população romana desmoralizada e decadente, o "povinho" que podia ser controlado ao bel-prazer do governante, pois preferia assistir a jogos do que trabalhar. Curiosamente, o mesmo preconceito permeia as críticas modernas, que tratam a população da mesma maneira "idiotizada". "No século 19, quando o historiador alemão Friedlãnder emprega o trecho de Juvenal sobre panem et circenses para analisar o aspecto cultural dessa sociedade, o faz a partir de sua experiência, ou seja, em um contexto de desenvolvimento capitalista em que se valoriza o trabalho ao máximo e apresenta-se o ócio como uma potencial ameaça à ordem estabelecida", explica. "No próprio texto, ele compara os marginalizados romanos com os modernos, revelando mais a preocupação moderna com o desemprego e a revolta que acometiam as cidades de seu momento do que o conceito romano em si." Para Renata, a expressão nasceu da análise de um texto antigo a partir da ótica burguesa, generalizando uma imagem satírica antiga e convertendo-a em uma categoria analítica que foi se cristalizando na historiografia como conceito. E, nas mentes de muitos, uma imagem eterna do povo como "massa abrutalhada". Arenas - Renata avalia que num momento histórico em que a violência é questionada e tida como algo a ser extirpado, em que a paz social é almejada e a proteção aos animais e à natureza criam novos estilos de vida, pensar que, numa época, centenas de homens e animais eram mortos nas arenas causa desconforto em nosso mundo contemporâneo. Paradoxalmente, o que nos enoja também pode servir como forma de identificação e estímulo. "Em geral, os perfis dos gladiadores não têm fundamento histórico, mas são inspirados em condutas morais da sociedade capitalista, em que predomina a universalização de valores contemporâneos como a vitória, a felicidade como conseqüência da realização profissional e sucesso financeiro, e estes são enviados ao passado para comprovar como, desde a AntiPESOUISAFAPESP125 • JULHO DE 2006 ■ 87


Mosaico com gladiadores de Pompéia, do século 1 d.C.

guidade, já estavam inerentes à índole do homem", lembra a historiadora. Quem eram eles? Os munera tinham a sua origem nos ritos de sacrifício para o espírito dos mortos para o que, acreditava-se, era preciso oferecer sangue. Foram introduzidos em Roma, de origem etrusca, em 264 a.C, quando os filhos de Junius Brutus honraram seu pai, morto, com três pares de gladiadores em combate. Em 65 a.C, César, para homenagear o pai, morto 20 anos antes, juntou 320 pares de lutadores em trajes de prata e só não trouxe mais deles porque o Senado condenou o excesso. Assim, durante a República, os jogos eram financiados por particulares e, aos poucos, o significado religioso deu lugar à exibição de riqueza e poder, o que suscitou um caráter abertamente político às lutas. Os imperadores, percebendo o potencial, logo tomaram para si a exclusividade na organização do munera, a ponto de o poeta Tertuliano ironizar que o evento "passou de homenagem aos mortos para glorificação dos vivos". En88 ■ JULHO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 125

tre os lutadores, havia de escravos criminosos a homens livres e mulheres, incluindo, muitas vezes, nobres patrícios, senadores e até imperadores. princípio não era a sangria deslavada, mas a exibição da virtus, do valor, da capacidade de um gladiador vencer, em condições de igualdade, seu oponente de forma justa. Tampouco todas as justas levavam à morte. A pesquisadora conta que, ao estudar lápides em Pompéia, descobriuse que muitos dentre eles morriam em idade avançada, já aposentados das arenas. "Ao contrário do que se vê em filmes, as lutas não se destinavam à mera diversão do povo, nem a luta era até a morte. Esses espetáculos foram importantes na afirmação da cidadania romana", revela o arqueólogo da USP Pedro Paulo Funari. "Era sempre a luta da civilização contra a barbárie, o humano contra o animal, o justo contra o injusto, um meio público de mostrar que a sociedade domina as forças da natureza e da perversão social." Ao final de um combate, o

perdedor tirava o capacete e oferecia o pescoço ao vencedor, que, no entanto, não tinha poder de morte sobre ele. "A decisão não estava, tampouco, nas mãos do imperador, mas na multidão, a testemunhar um ato de soberania popular que só teria equivalência, no mundo moderno, com os referendos ou plebiscitos, em que todos se manifestam. Se nas eleições as mulheres não podiam votar, na arena todos podiam dar a sua palavra, uma prerrogativa que a cidadania moderna só atingiria no século 20", observa Funari. Abaixar o polegar (que, ao contrário do senso comum, significava poupar o perdedor, num movimento que imitava o guardar da espada) ou levantá-lo (apontando para a garganta, indicando que se deveria matar o vencido) não eram meros caprichos, mas obedeciam a um senso de humanitas romano, para quem o principal quesito para poupar o perdedor era que ele tivesse mostrado grande valentia. "Em toda parte, em cidades grandes ou pequenas, no Mediterrâneo ou nas fronteiras, a arena representava um lugar de afirmação da cidadania e da justiça, em que a palavra final estava nas mãos daqueles


que ali se reuniam, homens e mulheres, ricos ou pobres", diz o historiador. O próprio Juvenal, apesar de contumaz hiperbólico em suas Sátiras, pensava o mesmo. Quando diz que "o povo concedia comando, honra, legiões" e "agora se limita e deseja ansioso duas coisas: pão e circo", em verdade o poeta está desenvolvendo um raciocínio crítico sobre aqueles que pedem coisas vãs aos deuses, quando seria melhor que desejassem virtude. "Nesse sentido, podemos supor que a imagem degradada da plebe se encontra em um contexto mais amplo para compor um texto ao mesmo tempo divertido e moral. Assim, acreditamos que a crítica de Juvenal não está no otium (o ócio), valor que era apreciado pela aristocracia da qual ele fazia parte, mas sim nos prazeres mundanos que, em excesso, impedem o cidadão de ter participação ativa em seu universo social", analisa Renata. O que o século 19 interpretou a seu modo, o 20 repetiu e o 21 papagueia, muitas vezes reunindo o ideal de que o cristianismo "salvou" o povo degenerado romano dessa vida profana, nefasta e violenta. Populares - No substrato de tudo está a posição elitista da visão negativa das camadas populares que ainda permanece viva entre nós. "A ênfase se dá naqueles que organizam o evento e, quando se desloca o olhar para essas camadas pobres, elas são interpretadas como um coro único de vozes. Mesmo que seja para contestar ou exigir os seus direitos, as camadas populares são retratadas de forma homogênea, sintetizada, quase sempre na oposição povo/governante. Comenta-se muito pouco a figura daqueles em que todos os olhares convergiam, os gladiadores", lembra a pesquisadora. Outro ponto importante de mau entendimento é o aspecto material dos jogos e lutas: a arena. A historiadora alerta que tomamos como parâmetro os anfiteatros que restaram, de pedra (eram, em geral, de madeira), em especial o Amphiteatrum Flavium, o Coliseu, construído apenas em 80 d.C, séculos depois do início da prática dos munem. A partir

do tamanho do prédio, avisa, tendemos a supervalorizar a grandiosidade dos espetáculos e a imaginar banhos de sangue igualmente colossais. "Cinco séculos separam o primeiro do último combate presenciado pelos romanos. Assim, eles são fenômenos históricos, construídos e reinterpretados de maneiras diferentes ao longo do período em que ocorreram", afirma. "Nem sempre o gladiador perecia e, mesmo que viesse a morrer em combate, as relações entre morte e sangue, nessa sociedade, divergem da nossa. Um estudo sobre os munem tem de levar em conta que estes se desenvolveram num ambiente escravocrata e altamente militarizado." Logo, os anfiteatros e suas extensões expressam e constituem cotidianamente estes valores. "Os espetáculos romanos podiam

Elmo de um lutador, do século 1 d.C, encontrado em Pompéia

ser analisados como uma espécie de comunicação entre os indivíduos que proporciona o sentimento de participar da construção da ordem do mundo." Havia até mesmo a "briga de torcidas", que revelavam, no conflito entre os espectadores dos jogos, as próprias contradições sociais da sociedade romana. Nada mais longe do que a suposta passividade do pão e circo. Apesar de ter lá seus críticos, em particular nas classes mais intelectualizadas, as lutas eram valorizadas também por cabeças pensantes por seu resultado na psique do povo romano. "Ao assistirem publicamente às punições na arena, os cidadãos se sentiam assegurados de que a ordem social fora restaurada. Assim, os jogos reafirmavam a ordem moral e política das coisas e a morte de criminosos e animais era o restabelecimento real e simbólico de uma sociedade sob ameaça. Na arena, a civilização triunfava sobre a barbárie", explica a historiadora alemã Cordelia Ewigleben, autora do livro Gladiators and Caesars. "O gladiador demonstrava o poder de superar a morte e inspirava no público as virtudes de coragem e disciplina. Aquele que não sabia lutar e morrer com coragem desonrava a sociedade que tentava redimi-lo e redimir-se. Daí a pouca simpatia pelos lutadores que valorizavam demais a sua vida", conta. Nesse contexto, ao testemunhar como homens enfrentavam a necessidade de morte, ao ver o que mais temiam, os romanos confrontavam a sua própria mortalidade e triunfavam. A ordem das coisas se equilibrava e a morte era vencida; afinal, ao lutar bravamente e com argúcia, o gladiador poderia demonstrar valor suficiente para ganhar sua salvação. Ao morrer sem protestar, ele igualmente a adquiria. Numa sociedade em que três entre cada cinco pessoas morriam antes de completar 20 anos e em que as chances de um gladiador profissional ser morto eram de uma em dez, isso não era pouca coisa. Com ou sem pão. • CARLOS HAAG PESQUISA FAPESP 125 ■ JULHO DE 2006 ■ 89


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HUMANIDADES ECONOMIA

Negócios

da China País asiático pode tomar lugar que o Brasil guardava para si no mundo globalizado GONçALO JúNIOR

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Desfile de moda à chinesa: país antes miserável começa a cobrar sua parte no bolo

chamado "bonde da história" para o século 21 já partiu da China faz tempo, com escala na índia. E viaja em alta velocidade. O Brasil, ao que parece, está próximo de perdê-lo se não correr rumo a alguma estação. Com essas palavras faz o alerta o ex-embaixador Amaury Porto de Oliveira, membro do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional (Gacint) da Universidade de São Paulo (USP) e considerado uma das maiores autoridades em China no país. Conferencista e autor de dezenas de artigos sobre o tema, Oliveira acredita que o extraordinário crescimento da economia chinesa nos últimos 25 anos, numa média de 9% a 10% ao ano, não é um fenômeno passageiro e deve ser uma preocupação tanto para potências como Estados Unidos e União Européia quanto para os emergentes - Brasil e América Latina. Parece fundamental, na sua opinião, levantar a questão e tentar compreendê-la imediatamente para o Brasil não ficar distante do processo. Segundo o embaixador, o mundo vive hoje um problema de civilização, um momento dos mais relevantes de transformação tanto econômica quanto geopolítica. Se, no século passado, enquanto o Ocidente - Estados Unidos e Europa - progrediu e dominou a economia mundial, países como China e índia que ficaram para trás, com uma massa rural miserável, agora começam a cobrar sua parte no bolo. Assim, o que o mundo passa hoje vai direcionar toda a economia nos próximos cem anos. PESQUISA FAPESP 125 ■ JULHO DE 2006 ■ 91


Oliveira aposta que três países apenas vão sobressair na segunda metade do século: Estados Unidos, China e índia. E será uma realidade bem diferente daquela do século 20. Principalmente para as potências ocidentais. "A questão é que precisa haver um equilíbrio planetário, não dá para todos chegarem ao nível de consumo dos Estados Unidos, a não ser que colonizemos o mais rápido possível Marte e Júpiter", diz. Como isso não é possível, alguém vai ter de ceder e pagar parte da conta. "Não adianta orquestrar embargos contra os asiáticos, pois eles vão entrar com contrabando", ressalta Oliveira. A confusão que os emergentes asiáticos têm causado em analistas e economistas internacionais e o posicionamento do Brasil no contexto da economia internacional são assuntos que começam a se transformar numa preocupação para os acadêmicos brasileiros. O volume de teses ainda é pequeno, mas a movimentação se mostra expressiva. Uma tese de doutorado, defendida na USP, por exemplo, acaba de ser editada em livro: China - Infra-estruturas e crescimento econômico (Editora Anita Garibaldi), de Elias Jabbor, professor colaborador do Núcleo de Estudos Asiáticos do Departamento de Geociências do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (CFCH-UFSC). A obra tem apresentação de Armen Mamigonian e prefácio de Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo. Em 2004, Luciana Acioly da Silva defendeu na Universidade de Campinas o doutorado em economia Brasil, China e índia: o investimento direto externo nos anos 90, com orientação de Belluzzo. Além de vários artigos publicados sobre a China, Belluzzo, que é professor titular aposentado da Unicamp, orientou informalmente a tese de Jabbor. Belluzzo entende que China e índia seguem dois estilos diferentes de crescimento. A primeira, com uma trajetória mais recente, mudou-se para a economia de mercado, com reformas experimentais e originais, porém numa transição muito lenta. A índia tem a política mais fechada, com fluxo de investimento internacional em sua indústria ainda muito es-

casso. Os indianos têm vantagens, como contar com elites científica e intelectual muito sofisticadas, acumuladas ao longo de décadas. Enquanto a índia concentrou sua integração com serviços, a China tornou-se um centro manufatureiro global. Os chineses, explica Belluzzo, modernizaram suas empresas estatais por meio de investimentos em infra-estrutura, o que lhes dá melhorias relativas nas áreas de energia e transportes - suas rodovias e ferrovias são bastante modernas. Ao mesmo tempo, usam vantagens da mão-de-obra barata, gestão de balanço de pagamentos muito estrita e controle da entrada e saída de capitais. Sua gestão macroeconômica também se destaca, uma vez que é executada pela burocracia do partido comunista. "Essa combinação esdrúxula deixa os economistas perplexos." m aspecto apontado por ele para esse sucesso foi que os chineses se mostraram implacáveis na acumulação de reserva de capitais - aproxima-se de US$ 1 trilhão -, o que dá mais flexibilidade e espaço para fazer ajustes, mesmo no caso de uma desaceleração da economia americana. Ajudaria nesse aspecto a integração que a China desenvolve com outros países asiáticos - para onde os americanos transferiram boa parte de sua produção manufatureira -, região em que sua economia pode se mover. Senso comum - Elias Jabbor tira da China a lição de que há a necessidade, para qualquer país, de um Estado nacional - e com visão estratégica - forte para a condução dos seus destinos. Ele ressalta que os chineses não acreditam na eficiência estática do mercado e na dinâmica da "mão invisível" do mercado. Muito pelo contrário. Enfrentam os desafios da globalização com concepções, métodos e objetivos que desmentem o senso comum do final do ciclo do Estado-nação e de políticas indutoras de desenvolvimento. "Aliás, este é o principal fator de confusão de economistas e 'especialistas' em China, pois a maioria é educada para estranhar e desmoralizar qualquer experiência de poder centrada na presença de um Estado nacional pla-

nificador e detentor dos elementos cruciais do processo de acumulação." O pesquisador conclui ainda que, a partir de dados comparativos, é possível demonstrar o desastre que foi o Consenso de Washington para países como o Brasil: entre 1998 e 2005, a China investiu US$ 800 bilhões em infra-estrutura. O maior país da América Latina, com estrangulamentos no setor datados do início da década de 1980, não passou no mesmo período dos US$ 18 bilhões, ou 2,2% do montante chinês. "Sem falar que, para o caso brasileiro, as condições para o enfrentamento do nó infra-estrutural já estavam dadas no final da década de 1970 com a implantação no governo Geisel de uma indústria mecânica pesada." Tal enfrentamento foi inviabilizado, de acordo com ele, por sucessivas políticas de "estabilização" financeira dos últimos governos, de "combate à inflação" pela via da compressão de demanda, pela abertura comercial e pelo abortamento de um capitalismo financeiro brasileiro. "A China fez exatamente o oposto, e os números estão à disposição para comprovar e confundir ainda mais os economistas e 'especialistas'", afirma. O pesquisador é otimista quanto ao novo ordenamento econômico mundial encabeçado pela China, que vai direcionar não somente as forças econômicas, mas também políticas. A rapidez com que a China se industrializa pode beneficiar toda a economia mundial, principalmente a dos países periféricos. De um lado, o crescimento chinês cria demanda efetiva para esses. De outro, serve de amortecimento, no âmbito de cada nação, de políticas e de idéias do tipo neoliberal. "Afinal, o formato chinês é um contraponto concreto a este modelo importado do centro à periferia. Este movimento já está ocorrendo na África Subsaariana, na América Latina (vide exemplos de Cuba, Bolívia e Venezuela) e na Ásia." Por esse raciocínio, Jabbor argumenta que a China planifica seu comércio exterior de forma que mantém déficits comerciais com toda a periferia do sistema e superávits com o centro. Tanto que, no ano passado, baixou a zero as alíquotas de importação dos 35 países mais pobres do mundo. "Isto é um movimento puramente político que vai alterar substancialmente a cor-

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relação de forças no âmbito mundial no futuro." Ao entrelaçar política, economia, filosofia, história e geografia, "a ascensão chinesa é algo natural, pois, por séculos, a China foi o país mais desenvolvido do mundo, possui uma civilização milenar, tem um território com mais de 9 milhões de quilômetros quadrados, um poder estatal consolidado e uma sociedade mediada por filosofias (taoísmo e confucionismo) de cunho civilizatório e tolerante para com outros povos". Brasil - Nesse cenário, resta ao Brasil trabalhar duro para não ficar atrás. Por enquanto, diz Amaury Oliveira, assim como Austrália e África, a América Latina tem sido im. portante para alimentar a fome V de matéria-prima da indústria chinesa. Principalmente minerais (minério de ferro) e vegetais (soja). "A idéia de que o Brasil poderia melhorar sua presença no mercado externo com produtos de valor mais agregado infelizmente não está se concretizando", lamenta. "Estamos fora do mundo, parados, enquanto tudo muda numa velocidade espantosa." Para Belluzzo, o país tem, desde a década de 1980, promovido um ajustamento inadequado de sua economia às mudanças internacionais. Como resultado, teve desempenho "desastroso" do ponto de vista da manufatura. O quadro, afirma ele, é de estagnação e quase regressão, pois o Brasil não cresceu em tecnologia e os investimentos na indústria foram pífios. "Não há projeto para esse segmento, tanto nos anos 1990 quanto agora não compreendemos que a sustentação da taxa de dólar competitiva é fundamental. A verdade é que tivemos duas desvalorizações catastróficas, a taxa de câmbio valorizada desestimula a exportação e os que competem internamente com o que vem de fora." Assim,

Guaraná made in China: 'Estamos fora do mundo", diz Amaury Oliveira

mesmo num quadro de recuperação, o país ainda deve sentir por muito tempo essas conseqüências. lias Jabbor observa que é comum colocar a culpa do fracasso brasileiro nos chineses, com assertivas de "mão-deobra escrava" e outras. Nada mais superficial, na sua opinião. A primeira questão a ser levantada é histórica. Há mais de 3 mil anos a China assentou em seu território as chamadas bases para uma divisão social do trabalho. Isso fez do comércio algo normal para os chineses há milênios. "Temos de ter clareza de que não estamos lidando com 'aprendizes de feiticeiro', como se diz, e, sim, com pessoas qualificadas, de altíssimo nível e que aprenderam com Sun Tzu que uma guerra pode ser ganha sem neces-

sitar dar um único tiro. Ou compreendemos a história milenar chinesa, ou não conseguimos sair da superfície." Ao mesmo tempo, é preciso refletir se é possível fazer comércio com uma nação milenar a partir de opções internas brasileiras, como liberdade, fluxo de capitais, câmbio flutuante e outras aberrações. Jabbor questiona se será possível ter uma parceria estratégica com um país agressivo comercialmente como a China, sem que o Brasil tenha a mínima capacidade de planejar seu comércio exterior e de financiar exportações ou exportar capitais. "É bom que se diga que existe um verdadeiro descompasso entre a política externa brasileira e a política econômica adotada, e o superávit comercial chinês para com o Brasil verificado no primeiro trimestre deste ano US$ 90 milhões de déficit com a China - é a expressão disso." Idealismo - Na sua opinião, é idealismo acreditar que o país possa ter uma política externa soberana e independente sem que o Estado tenha condições de transformar essa política em ações concretas de fato. Dentre essas medidas, ele destaca planificação do comércio exterior, financiamento de exportações, planejamento de déficits comerciais com os países vizinhos, exportações de capitais, um câmbio que iniba importações predatórias e otimize exportações etc. "Logo, o erro central está na opção em matéria de política econômica que nos foi imposta na década de 1990, que levou uma nação como a nossa, que construiu o metrô mais moderno do mundo [de São Paulo] com equipamentos fabricados no Brasil, a importar trilhos, vagões e locomotivas da China, da Coréia, da Espanha." O pesquisador sugere que uma parceria estratégica com a China deva ser um verdadeiro casamento de projetos nacionais e que, além do comércio, possa dar grandes contribuições no equilíbrio de forças no mundo. "Infelizmente, o Brasil - com todos os avanços verificados no atual governo - não tem se mostrado à altura do desafio que o mundo lhe impõe." Para que uma idéia se transforme em força material, acrescenta, é necessário que tal idéia seja totalmente absorvida pelo conjunto da população brasileira. Enquanto isso, o tempo urge. • PESQUISA FAPESP 125 ■ JULHO DE 2006 ■ 93


Resenha

O gigante anão Pesquisa questiona o mito do Estado brasileiro inchado

O ex-Leviatã brasileiro: do voto disperso ao clienteiismo concentrado

sucessor da era Vargas, putativamente extinta. Engana-se também, avisa Santos, quem atribui as mazelas nacionais em é preciso ter um ao excesso de funcionários grande projeto políWanderley Guilherme públicos, vistos, há muito, tico. Para angariar dos Santos como modelos de mediocrivotos basta falar, raidade. "A participação do funvosamente, do tamanho Civilização Brasileira 278 páginas cionalismo público brasileiro imenso do Estado brasileiR$ 38,90 no emprego total continua ro, de sua ineficiência e de significativamente baixa, mescomo tudo seria melhor se mo quando se tomam todos as instituições de mercado os níveis de governo. No caso tivessem a liberdade desebrasileiro, o federal, estadual e municipal", observa o jada. Mas a retórica nem sempre vem acompanhada cientista político. Para os que pregam o clienteiismo de fatos e números concretos. Desconfiado, o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos escarapolítico, Santos retruca com dados. "O excesso de pessoal na administração pública, particularmente no que funchou dados e seu último livro, O ex-Leviatã brasiconcerne ao governo central, se localiza nas ocupações leiro, traz revelações capazes de abalar as crenças de mais modestas: pessoal de limpeza, vigias, ascensorisum neoliberal com o mínimo de senso crítico. Partindo do pressuposto de que o Estado nacional foi montas, porteiros. Se os funcionários públicos devessem suas posições à troca por votos e, inversamente, se os tado por Vargas (daí o entusiasmo liberal em decretar eleitores só escolhessem candidatos em retorno de fao fim do legado varguista na última década), Santos vores recebidos, seria difícil a interpretação de resultarevela a importância do aparato legado por Getúlio no dos da pesquisa recente", pondera. Santos até admite o desenvolvimento econômico e social do país e, pasclienteiismo brasileiro, mas ressalva que ele se enconmem, mostra que somos não apenas um Estado menor em números relativos e absolutos do que boa partra confinado à periferia do sistema eleitoral, com escassa eficácia causai sobre o desempenho da máquina te de seus "colegas", mas com uma rara eficiência. do governo. A troca, então, teria sido duvidosa e o en"Desde 1984 que insuspeitos relatórios de agências intusiasmo pelo enterrro da herança varguista um engoternacionais produzem dados comprovando que o do? "Para evitar o Leviatã hobbesiano, despudorado Brasil possui um Estado mais para sovina do que para ou franco, ou o clienteiismo distributivo, o risco conperdulário", escreve. Para Santos, o pseudogigantismo temporâneo está embebido na possibilidade de que, estatal é uma névoa que distorce a questão essencial: o sob disfarce de uma poliarquia frugal, consolidem-se Estado brasileiro estava onde não devia ao preço de as algemas de cristal de um Leviatã disfarçado mantenão estar ali onde a responsabilidade social de um Esnedor da ordem de um clienteiismo concentrado. O tado moderno comandaria. "O ex-Leviatã (leia-se, o trajeto foi memorável." Sem dúvida. E cruel. Segundo Estado varguista) operou preferencialmente segundo o pesquisador, injetou-se na sociedade uma ânsia pelo uma lógica privada e oligarquizante em benefício de surgimento de forças organizadas, alheias ao poder poucos. Muito concretamente, isso quer dizer que a formal, como forma de colocar obstáculos no suposnatureza das políticas governamentais obedece ao moto caminho expansionista do Estado. O problema, delo em que seus custos são genericamente distribuílembra ele, é que essas instituições já chegam "viciados (toda a população paga por ele), enquanto os bedas" na privatização, na predação do Estado. "Os grunefícios são consumidos por uma minoria." É dessa pos de interesse do Brasil ambicionariam barrar a tenmaneira que se desmontou a obra de Vargas. "É na dência à monopolização decisória do Estado, não para percepção do Estado como anão socialmente precontorná-lo plural, democrático e acessível à diversidade ceituoso e impotente, antes do que como gigante, que dos grupos sociais, fortes ou fracos, mas para substiestá a origem da sonegação do conflito", avisa Santos. tuir o monopólio do poder estatal pela oligarquia de O que nos restou, segundo ele, seria um Estado reguum sistema fechado de poderosos grupos de interesse. lar, antes que produtor, um novo Leviatã, um Leviatã O sorriso do velhinho está cada vez mais cínico. disfarçado, um malicioso Leviatã contemporâneo, CARLOS HAAG

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Livros

Esquerda brasileira e tradição republicana

As revoluções do poder Eunice Ostrensky Alameda 344 páginas, R$ 44,00

Estudos de conjuntura sobre a era FHC-Lula Luiz Werneck Vianna Editora Revan 232 páginas, R$ 38,00

Reunindo artigos e entrevistas, o pesquisador do Iuperj traça um painel dos últimos 12 anos da política brasileira, dos anos de Fernando Henrique Cardoso até a posse de Lula. O livro discute as mudanças, tão celebradas, que se observaram dentro do PT e do PSDB no cenário atual. Editora Revan (21) 2502-7495 www.revan.com.br

30

História da psicanálise São Paulo (1920-1969)

No princípio do pensamento político moderno estava a Revolução de 1640, rf&L u,?C?? na Inglaterra, e é a partir desse evento, fundamental para a criação de novos parâmetros filosóficos, que Eunice Ostrensky nos mostra que a teoria política nasce não do trabalho de gabinete de poucos filósofos, mas da linguagem ordinária, das idéias populares. Vendo a filosofia política como um combate, a autora parte do princípio de que ela, mais do que tentativa de representar o real, é um discurso. Alameda (11) 3862-0850 www.alamedaeditorial.com.br St

Inventando carnavais

"

Carmen Valladares de Oliveira Editora Escuta/FAPESP 364 páginas, R$ 40,00

VENTANDO CAUNAVAIS

O surgimento do Carnaval carioca no século XIX e outras questões carnavalescas Felipe Ferreira Editora UFRJ 360 páginas, R$ 48,00

Com prefácio da psicanalista Élisabeth Roudinesco, esse estudo, lançado ■ MTCJB_.JB em pleno aniversário de 150 anos de Freud, é inovador pela sua análise histórica do desenvolvimento da psicanálise na maior metrópole brasileira, desde os anos 1920 até o seu apogeu, em finais dos anos 1960. Estão em jogo duas vertentes que se opunham, a médica, dos primeiros momentos, e a terapêutica, que acabou prevalecendo nos anos mais recentes. O livro traz um bom trabalho de pesquisa em arquivos e muitas entrevistas com analistas.

| O Carnaval pode ter um longa história, remontando aos tempos da Antigüidade, mas a sua forma atual foi definida mais recentemente, no século 19, a partir de influências as mais díspares. O autor elenca, entre elas: a Paris tão ostentória, que os brasileiros adoravam imitar; Nice com sua força magnética de atrair turistas; e, por fim, o Rio de Janeiro com sua ambivalente liberalidade social. A junção desses elementos formou o que hoje conhecemos.

Escuta (11) 3865-8950 www.editoraescuta.com.br

Editora UFRJ (21) 2542-7646 www.editora.ufrj.br

Moradores de rua: uma questão social?

J0MK

Electronic samba_ A música brasileira no contexto das tendências internacionais

Camila Giorgetti Editora PUC-SP/FAPESP 292 páginas, R$ 40,50

Adonay Ariza Annablume/ FAPESP 364 páginas, R$ 48,00

Originada da tese de doutorado "Entre o higienismo e a cidadania", essa análise revela o dualismo com que se trata a questão dos moradores de rua. Por um lado, tem-se o preconceito positivo e o negativo sobre eles e, por outro, de que forma institucional, a partir desses dois tipos de preconceito, a sociedade trata desse problema muito sério nos dias atuais nas grandes cidades, comparando Paris e São Paulo.

Essa é uma análise de misturas as mais modernas. Em especial, de como se dão os processos musicais de mistura, os fluxos de influência entre jazz, samba, bossa nova, tropicália, manifestações regionais das mais diferentes e música eletrônica. Esse amálgama de estilos diversos, embalados em formas técnicas da modernidade, é, segundo o autor, a característica mais central da música de nossos tempos no Brasil.

Editora PUC (11) 3670-8085 www.pucsp.br/educ

Annablume (11) 3812-6764 www.annablume.com.br PESQUISA FAPESP 125 ■ JULHO DE 2006 ■ 95


Ficção

Disputa acadêmica ERNANE GUIMARãES NETO

ma mulher caminha contemplando a decadente sociedade de seu tempo. Cesária, que no passado plantara lavouras, imerge em investigação e lembranças, falando a si sem pausas: - Decadente porque aqui embaixo ninguém nem mesmo tenta usar a razão; porque as torres em que meus antigos concorrentes se empoleiram têm um chão instável e ficam todas deformadas com o passar dos anos; porque essas duas formas de existência, a do comerciante do rés-do-chão e a daqueles que só descem para cultivar sua lavoura e passam a maior parte do tempo a olhar de cima de suas corroídas e mal-acabadas construções, não convivem senão como sátira uma da outra, senão como negociações em que um quer prejudicar o outro, senão como classes inimigas. Quando estudávamos o cultivo e tínhamos o objetivo de formar criaturas, eu e minha maior adversária acirrávamos nossas divergências e tivemos eu uma filha, ela um filho. Minha cria nasceu deficiente e minha incapacidade de produzir alimento que ela absorvesse determinou sua morte. Desisti do estudo e da criação; tornei-me uma comerciante. Mas o mundo não se resume a isso; ainda há muitas outras coisas a fazer. O comércio leva a mulher a um reencontro inesperado, porém previsível: sua antiga adversária ainda cultiva, mas agora também negocia. A comerciante visita uma pequena torre, ladeada por campos verdes de arbustos e uma estufa que reluz ao reflexo do sol. Bate à porta da torrezinha com seus documentos de comerciante e ensaia sua verve profissional habitual. Saudada com brevidade pela interlocutora, ela entra. — Pois minha velha colega também negocia? — Mesmo assim não abandonei a criação. Cesária e Nemésia tratam de produtos humanos que nada têm a ver com a arte do cultivo. — Se tu levasses a sério o estudo a que te dedicas, não comprarias meus produtos. Nisso ao menos não tento uma falsa aparência de purismo. 96 ■ JULHO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 125

— Bem sabes que tanto o cultivo despreocupado quanto caprichos ainda mais nobres que sempre almejamos não existem senão mediante concessão dessa sociedade que outrora tanto atacamos. Sobe comigo. Do andar superior da torre, as adversárias contemplam a plantação de Nemésia. — Vês? Apesar de toda a contaminação do solo no entorno, consigo cultivar. Oxalá meu labor atinja um florescimento comparável ao dos venerados mestres antigos. Que tal o jovem musculoso que agora trabalha com a enxada? É meu filho. — Não vou tentar argumentar contra a visível consistência de tua obra. — Vem comigo à estufa; lá negociaremos. Na iluminada estufa, cujo brilho Cesária nunca alcançara em seu tempo de estudos, as mulheres tratam não de qualidades intrínsecas distintivas dos produtos ou de sua funcionalidade, mas de preço. O negócio tem uma pausa com a chegada do espadaúdo filho de Nemésia, que precisa de auxílio técnico da mãe. — Meu filho, tu deves continuar teu trabalho placidamente. Tens plantado raízes fortes, difíceis de arrancar; isso é bom. Essa enxada que fiz para ti tem resistido a muito trabalho, não? — Sim, mãe, cuidaste bem de minhas ferramentas e de minhas mãos, especialmente no começo, quando eu ainda não sabia trabalhar e tinha bolhas. — As mãos de teu filho são fortes e íntegras, a lida não as parece ter danificado. Atrevo-me a dizer que são belas. — Belas?! — estranhou Nemésia. Argumentando a necessidade de uma visita posterior para concluir a negociação, a visitante acompanha o rapaz estufa afora. — Não negarei a mim mesma a oportunidade de ver a criatura de minha adversária trabalhando — pensa a mulher, que se demora a deixar a propriedade, ocupada em observar a lida do rapaz.


O reflexo dos braços nus do rapagão, em ritmados e eficientes movimentos com suas ferramentas, nela suscita uma experiência estética. — Não devo confiar em minhas sensações. Não me posso permitir mais que investigar a funcionalidade dessa criatura. Quando retoma sua rotina, Cesária emprega tempo em buscar falhas na criação daquele homem, sem chegar a conclusão. — Ele sorriu para mim, que sou inimiga do sistema de sua própria mãe! — lembra-se enquanto se dirige à nova visita. Ao chegar à propriedade da antiga opositora, sua cogitação é interrompida pela praxe. Antes de qualquer comércio, no entanto, e enquanto procura pelo brilho da bem-cuidada lâmina da enxada do moço lavrador, a mulher é surpreendida pela ordem: — Quero que venhas comer meu filho. — Cabe notar que "comer", de acordo com a prática lingüística estabelecida nesta região, assume dois significados: ingerir ou possuir sexualmente. A que fazes referência? — Descobre. Passando da postura de conferência a uma paralisia contemplativa, Cesária faz como nos velhos tempos: preocupa-se da questão teórica antes de considerar sua própria existência e seu interesse no caso. Cesária revisa lentamente a torre e dá pouca relevância às rachaduras das escuras paredes internas da construção enquanto caminha seguida pela adversária, que tão-somente orienta: — À estufa. — Esta pequena torre não parecia tão escura na última ocasião. Meu julgamento me trai? — considera mudamente. Tenta inferir o que encontrará: — Nenhuma mãe deve gostar de ver seu filho envolvido com seus adversários. Matar o próprio filho, no entanto, parece ainda menos provável. Ele é forte, talvez ela queira que me violente. Há de ser alguma armadilha.

Um perfume adocicado torna mais atraente a dúvida. — Estou certa de que terei de lutar com todas as minhas forças contra esta que me guia e sua cria, que me parecera tão estimável. Tentarei usá-lo em meu favor, contra sua própria mãe. Ao ar livre, ela exclama à interlocutora, que porta grave semblante: — Mas a estufa ainda brilha! — e não obtém resposta. O perfume adocicado, mais intenso dentro da estufa, não é o de flores, mas o de carne humana sofisticadamente preparada para o consumo e posta à mesa. I

Desmembrada, a cria tem suas virtudes expostas com magnificência pela criadora. Apresentado em pratos didaticamente dispostos, o sistema revela suas funcionalidades. — Contempla a força destas fibras musculares. — Parecem-me consistentes. — Gostaria de ver negares a pureza destes pés em que sempre se sustentou minha obra mais bem-acabada. —Tua cria deu passos seguros e equilibrados, bem o vejo. — Experimenta este coração: eis um sabor "belo", se é que te atreves a perscrutar tão profundamente o problema. — Não temo um adversário que me ensina. Depois de uma pausa analítica, Cesária continua: — Como pode um cadáver cheirar tão bem? — Para mim, o odor é horrendo. Esta carne tem gosto podre. — Por que mataste teu filho? — Porque trocáveis sorrisos, aproximando-vos. Contrariada, resolvi abortar. Come. Não recusa o banquete. Vai embora se sentindo fortalecida, enquanto sua adversária a considera envenenada.

ERNANE GUIMARãES NETO fez graduação e iniciação científica em Filosofia na FFLCH-USP. Autor de Caprichos de dores (Massao Ohno Editor, 1998), mantém o site www.geocities.com/alegorista. PESQUISA FAPESP 125 ■ JULHO DE 2006 ■ 97


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