Agosto 2006 • N° 126
FAPESP
IMAGENS
do cérebro
ftJNCIONAl
AENERGIA QUE VEM DO HIDROGÊNIO OSBLOGS PAUTAM AIMPRENSA
~1;1~···
ACIÊNCIA DO PAÍS FICOU VISÍVEL
Bush emperra avanço O presidente norte-americano, George W. Bush, vetou o projeto de lei que ampliava o financiamento federal a pesquisas com uso de células-tronco embrionárias humanas, menos de 24 horas após sua aprovação pelo Senado por 63 votos a favor e 37 contra. Bush reiterou sua opinião de que a medida "cruzava uma fronteira moral". O texto vetado previa que embriões descartados por clínicas de fertilização pudessem ser usados como fonte de células-tronco para pesquisas. O presidente anunciou a decisão rodeado por casais que aceitaram gerar embriões de proveta que seriam descartados pelas clín icas. Cientistas como o físico britânico Stephen Hawking classificaram Bush como "liderança reacionária" e exortaram os países europeus a investir nas pesquisas com células-tronco embrionárias.
PESQUISA fAPESP 126 • AGOSTO DE 2006 • 3
POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA
24 DIFUSÃO Com a marca inédita de 6 milhões de acessos mensais, biblioteca SciELO vai estudar o perfil de seus usuários
28 INDICADORES Produção científica cresce e Brasil já é responsável por 1,8% dos artigos publicados no mundo
CIÊNCIA
46 MEDICINA Chance de receber um fígado transplantado diminui a cada ano
48 NUTRIÇÃO Rede de laboratórios analisa a composição de 500 alimentos que integram o cardápio nacional
56
78
ASTROFÍSICA
ENGENHARIA DE MATERIAIS
Luz e ondas de choque aquecem nuvens que concentram a maior parte da matéria formada por prótons e nêutrons
TECNOLOGIA
66 ENERGIA Vários setores estão mobilizados para suprir de hidrogênio os futuros veículos e geradores
29
O Brasil entra no mapa das universidades Harvard e Yale, que recrutam estudantes no país
86 LITERATURA Os 125 anos de nascimento de Stefan Zweig relembram os 65 anos de Brasil, país do futuro
90 Eventos e livros mostram preocupação crescente no entendimento da concepção visual das artes gráficas no Brasil
Controle da emissão de poluentes poupa vidas em São Paulo
INTERCÂMBIO
HUMANIDADES
ARTES VISUAIS
POLÍTICAS PÚBLICAS
30
Novo material substitui com vantagens granito, mármore e aço inox
52 GENÉTICA Manipulação de genes que controlam açúcares pode aprimorar o café brasileiro
32 DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA José Hamilton Ribeiro ganha prêmio de jornalismo da Universidade de Colúmbia
4 • AGOSTO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 126
SEÇÕES
74 ENGENHARIA AERONÁUTICA Como prever limite de resistência da fuselagem dos aviões a choques com objetos estranhos
77 TELEVISÃO Depois da escolha do modelo japonês, agora é a vez das inovações na TV digital brasileira
3 CARTAS ..... . .......... .. .. . 6 CARTA DA EDITORA .. . ........ 7 MEMÓRIA .... . ...... . . . . . . .. 8 ESTRATÉGIAS ..... •.. ... . .. . 18 LABORATÓRIO ...... . ... ... . 34 SCIELO NOTÍCIAS ..... .. . ... 60 LINHA DE PRODUÇÃO ..... . . . 62 RESENHA ....... ....... . . .. 94 LIVROS .. . .... . . . . . • .•... . . 95 FICÇÃO .. . ... . ........• .. . . 96 CLASSIFICADOS . . . . . ........ 98 IMAGEM DO MÊS . .. ...... .. . .
Capa : Hélio de Almeida-Mayumi Okuyama sobre reprodução do livro Leonardo da Vinci - on the Human Body
ww w.revi s ta pesquisa. fa p es p. b r
A cirurgiã Angelita Habr-Gama, pioneira em muitas frentes, fala sobre o desenvolvimento e os avanços da coloproctologia no Brasil
38 ) CAPA Pesquisa com ressonância magnética funcional faz avançar conhecimento sobre o cérebro no país
80 COMUNICAÇÃO 8/ogs desmitificam jornalismo e pautam noticiários
Leite Lopes e Lattes
Peiijüisa FAPESP
As reportagens de Pesquisa FAPESP retratam a construção do conhecimento que será fundamental para o desenvolvimento do país. Acompanhe essa evolução.
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6 • AGOSTO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 126
cotação modesta: 0,5. Já Lev Landau apareceu no topo, com 2,5': O autor Tenho recebido Pesquisa FAPESP comete, nestas palavras, uma grave inhá bastante tempo. Ultimamente a justiça com Landau. Segundo E.M. revista melhorou muito e cada vez Lifshitz, amigo e colaborador de lontem os mais diversos assuntos disga data de Lev Landau, a escala de postos de maneira excelente. Na ediLandau funciona em ordem inversa ção 125, de julho, tive a grata satisfa(parecida, nesse sentido, com a classição de encontrar uma foto antiga do ficação de pesquisadores do CNPq): César Lattes acompanhado de José quanto menor o valor numérico da Leite Lopes. Não classificação, melhor esqueço do fato de o classificado! (Essa EMPRESA QUE APÓIA ter ajudado o César informação consta A PESQUISA BRASILEIRA numa experiência no prefácio que o em que ele queria próprio Lifshitz esporque queria vericreveu para a edição ficar a existência de alemã do livro Física NOVARTIS alguma partícula, teórica vol. I: mecâpor fotografia! Foi nica, de autoria de Trcp Net.org interessante, certaLandau e Lifshitz). mente não deve ter Landau colocou, enajudado em nada, tão, Einstein no toou não. Não tem importância. Foi o po, e não a si mesmo. Mais especificagosto de estar com ele. Parabéns. mente, a diferença de 2,5 - 0,5 = 2,0 em uma escala logarítmica significa THOMAS FARKAS que Landau se colocou 102 = 10 x 10 São Paulo, SP = 100 níveis abaixo de Einstein. Assim, ele fez exatamente o contrário de sugeCesárea rir um critério talhado para fazer reluzir o próprio currículo: Landau, que Li a reportagem sobre os riscos foi um dos grandes físicos do século das cesarianas em Pesquisa FAPESP. 20, merecendo uma classificação mui(edição 124) e gostaria de cumpri to melhor que os 2,5 que modestamentá-los pela oportunidade do tema mente atribuiu a si mesmo, fez reluzir e pela qualidade do texto. Parabéns! o currículo de Einstein, não o próprio! MAGDA CARNEIRO-SAMPAIO
Departamento de Pediatria da FMUSP São Paulo, SP
KLAUS CAPELLE
Instituto de Física de São Carlos/USP São Carlos, SP
Lev Landau
Correção
Gostaria de corrigir um erro na reportagem "Publicar não é tudo" (edição 124). O autor encerra o texto com as frases: "Parece brincadeira, mas já houve pesquisadores que sugeriram critérios de avaliação talhados para fazer reluzir os próprios currículos. O famoso físico russo Lev Landau (1908-1968) certa vez propôs um logaritmo para ranquear os pesquisadores de seu campo de conhecimento. Albert Einstein recebeu uma
O autor do artigo "Einstein e a cidade: criações mútuas" (edição 124), Luiz Roberto Alves, é também professor da Universidade Metodista de São Paulo, além da Universidade de São Paulo. Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br, pelo fax 3838·4181 ou para a rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP, CEP 05468-901. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.
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• Pesqu1sa
A arte de ver o que era invisível
fAPESP CARLOS VOGT PRESIDENTE MARCOS MACARI V ICE-PRESIDENTE
MARILUCE MOURA- DIRETORA DE REDAÇÃO
CONSELHO SUPERIOR CARLOS VOGT, CELSO LAFER, HERMANN WEVER, HORÁCIO LAFER PIVA, JOSÊ AR ANA VARELA. MARCOS MACARI, NILSON DIAS VIEIRA JUNIOR. SEDI HIRANO, SUELY VILELA SAMPAIO, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO
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RICARDO RENZO BRENTANI, WAGNER DO AMARAL, WALTER COLU DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA EDITOR CHEfE NELDSON MARCOLIN EDITORA Sf:NIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS EDITORES EXECUTIVOS CARLOS FIORAVANTI (CI(NCIA), CARLOS HAAG (HUMANIDADES), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOlOGIA) EDITORES ESPECIAIS FABRiCIO MARQUES, MARCOS PIVETTA (EDIÇÃO OH-UNE), RICARDO ZORZETTO EDITORA ASSISTENTE DINORAH ERENO REVISÃO MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGO NEGRO EDITORA DE ARTE MAYUMI OKUYAMA CHEFE DE ARTE JOSt ROBERTO MEDDA DIAGRAMADORA MARIA CECILIA FELLI CONSULTORIA DE ARTE HtUO DE ALMEIDA FOTÓGRAFOS EDUARDO CESAR. MIGUEL BOYAYAN SECRETARIA DA REDAÇÃO ANDRESSA MATIAS fEL: (11) J8J8·4201 COLABORADORES ANA LIMA, ANDRt SERRADAS (BANCO DE DADOS), DANJELLE MACIEL (ESTAGIÁRIA), EDUARDO GERAOUE (ON-LINE), FERNANDO DE ALMEIDA, FRANCISCO BICUDO. GONÇALO JÚNIOR. IRACEMA CABRAL MONTEIRO, LAURA TEIXEIRA, LAURABEATRIZ, MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÓ NEGRO, MARIA GUIMARÃES, NEGREIROS, PEDRO MATIELLO (ESTAGIÁRIO), SANDRO CASTELLI, StRGIO RODRIGUES, SIRIO J. B. CANÇADO, THIAGO ROMERO (ON-UNE) E YURI VASCONCELOS. COORDENAÇÃO DE MARKETING E PROJETOS ESPECIAIS CLAUDIA IZIOUE (COORDENADORA) TEL. (11) 3838-4272 PAULA IUADIS (ASSISTENTE) TEL: (11) 3838-4008 e·mail.publicidadeQIIfapesp.br ASSINATURAS TELETARGET TE L. (11) 3038-1434- FAX: (11) 3038·1418 e-mail: fapesp~teletarget.com.br IMPRESSÃO PLURAL EDITORA E GRÁFICA TIRAGEM: 35.700 EXEMPLARES DISTRIBUIÇÃO DINAP CIRCULAÇÃO E ATENDIMENTO AO JORNALEIRO LM&X (11) 3865-4949 F"APESP RUA PIO XI, NO1.500, CEP 05468-901 ALTO DA LAPA· SÃO PAULO· SP
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reportagem de capa desta edição de Pesquisa FAPESP, que teve o concurso de muita gente, começou a nascer, por insólito que isso pareça, na recente visita do dalai-lama ao Brasil, em 28 de abril. A Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e a Associação Palas Athenas haviam organizado para a manhã e a tarde desse dia um denso debate sobre ciência e espiritualidade, com o título geral "Compaixão e sabedoria na construção da saúde individual e coletiva". Ele seria aberto pela palestra do dalai-lama e comentado por quase uma dezena de respeitados pesquisadores da universidade, a maior parte dos quais ligada às áreas de psiquiatria e neurologia. Examinadas, de variados ângulos, as oposições, proximidades e articulações possíveis entre ciência e espiritualidade, o que logo pôs em alerta meu impressionável espírito jornalístico foi a fala de José Roberto Leite, professor adjunto do Departamento de Psicobiologia, sobre as pesquisas que vinha conduzindo havia cerca de oito anos no campo da meditação. Conversei logo depois da visita com o pró-reitor de graduação da Unifesp, o neurocientista Luiz Eugênio Mello, que é membro do conselho editorial de Pesquisa. FAPESP. Ante meu interesse relativamente à meditação e a outras pesquisas com imagens do cérebro, ele me deu dicas preciosas sobre quem tinha bons trabalhos nessa área no Brasil. Algum tempo depois entrevistei o professor José Roberto, que me falou de resultados muito interessantes de seus estudos. Mas eu queria, da mesma forma como já se produzira nos Estados Unidos, claras imagens do cérebro que mostrassem o que se passa de diferente quando alguém está meditando. E resolvi esperar por essas imagens, que em breve podem chegar às mãos do pesquisador. Nesse meio tempo, uma conversa com o diretor do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa (IIEP) do Hospital Albert Einstein, Carlos Alberto Moreira, ofereceu-me uma boa visão panorâmica sobre os múltiplos projetos de pesquisa que naquela instituição têm o cérebro como objeto e que se estruturam sobre as várias tecnologias
A
de obtenção de imagens cerebrais. Muitas conversas com os pesquisadores do IIEP depois, e norteada também pelas propostas do programa CinAPCe (veja a edição 124 de nossa revista), que certamente vai incrementar muito e em múltiplas direções a pesquisa do cérebro com base nas tecnologias da imagem, consegui me concentrar em projetos de pesquisa que se valem das imagens obtidas por ressonância magnética funcional para analisar funções que de algum modo se fazem visíveis no córtex. O resultado está na reportagem que começa na página 38. Nesta edição tratamos de um outro tipo de rede que, bem examinadas as coisas, parece guardar alguma analogia com as redes neurais. Estamos falando do fenômeno dos blogs, que se multiplicam na internet a uma velocidade atordoante e, a essa altura, já constituem uma nova instância da comunicação- que os especialistas vêm chamando de blogosfera. Menos em oposição e mais em articulação com a midiasfera, os blogs, como mostra o texto primorosamente construído do editor de humanidades, Carlos Haag, a partir da página 80, desmitificam um tanto o jornalismo e pautam cada vez mais os noticiários de diferentes meios de comunicação. Vale um destaque especial aqui também para a bem fundamentada antevisão do editor de tecnologia, Marcos de Oliveira, a respeito de uma grande mudança energética que deve ter início na próxima década. A partir da página 66, ele relata como e por que o hidrogênio deverá então se tornar um importante combustível para gerar energia elétrica e movimentar veículos, substituindo, aos poucos, o diesel e a gasolina, entre outros produtos. É imperdível. E, por fim, vale a pena ver na reportagem do editor especial Fabrício Marques, a partir da página 24, de que maneira a biblioteca SciELO, com a marca de nada menos que 6 milhões de acessos mensais, vai tornando a produção científica brasileira cada vez mais visível e conhecida. De uma certa maneira, esta edição fala devariados processos de visibilização propostos no âmbito da ciência. Boa leitura! PE SQUISA FAPESP 126 • AGOSTO DE 2006 • 7
Filantrop e ciência Lar dos Velhinhos de Piracicaba completa cem anos cuidando de idosos com ajuda da universidade NELDSON MARCOLIN
envelhecimento da população brasileira e a Previdência Social sempre em crise projetam dificuldades para o país manter seus idosos nas próximas décadas. As pessoas com 60 anos ou mais, que eram 16,7 milhões em 2005, serão 27 milhões em 2020, de acordo com estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Parte dessa população passará a fase final da vida em casas de apoio projetadas para ela. Um desses lugares, o Lar dos Velhinhos de Piracicaba, no interior de São Paulo,
tornou-se conhecido pelo modelo de abrigo de idosos e por sua tradição - neste mês a casa completa cem anos. A ciência deu sua parcela de contribuição para o sucesso da instituição, que hoje tem cerca de 400 abrigados. "Sem preparo técnico-científico para cuidar do velho nada vai para frente", diz Jairo Ribeiro de Mattos, presidente do Lar dos Velhinhos. "Abrigos comuns oferecem cama,
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comida e nada mais." Mattos tem 75 anos, é professor aposentado da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo (USP), e preside a organização pela quarta vez. Na primeira gestão, em 1971, ele propôs mudanças no Lar que o levaram a ficar conhecido como a Primeira Cidade Geriátrica do Brasil. Até aquele ano, a instituição era como tantas outras,
destinada a receber pessoas a partir de 60 anos, em regime de internato, que tinha o apoio filantrópico de algumas pessoas da cidade e da Congregação das Irmãs Franciscanas do Coração de Maria. "Chamei gente da Esalq para me ajudar a criar um modelo que permitisse ao Lar se auto-sustentar", conta Mattos. O Lar dos Velhinhos foi fundado pelo empresário Pedro Alexandrino de
emona
Almeida em 26 de agosto de 1906. Com 156 mil metros quadrados de área, até 1971 tinha quatro pavilhões com quartos para até seis pessoas. Mattos começou a construir casas que pudessem ser utilizadas por idosos capazes de se manter sem ajuda foram feitas 130 delas. O sistema funciona assim: o idoso contribui pelo imóvel entre R$ 35 mil e R$ 60 mil, dependendo do tamanho da casa, que pode ter até 80 metros quadrados. Também contribui com pequena taxa, que garante sua manutenção no local e sustento em caso de perda de bens. Se ficar inválido, ele é transferido para um dos pavilhões a fim de ser tratado. Depois da morte,
o bem não é herdado pelos filhos, mas repassado outra vez ou cedido para outros idosos. "Essa é uma fonte de receita que nos deixa um pouco menos dependentes da ajuda externa", diz Mattos. Uma nova estratégia que ajudará o Lar a se tornar auto-sustentável é a construção de 46 flats que serão usados para moradia ou por famílias que precisarem deixar idosos durante algumas semanas ou, ainda, em esquema de creche, para passar o dia. Os idosos com pouco ou nenhum recurso moram gratuitamente em quartos distribuídos nos pavilhões e são atendidos por equipes de enfermagem e pelas religiosas franciscanas.
Acima, o primeiro pavilhão do Lar, anterior a 1906. Ao lado, uma das casas construídas a partir de 1971
Se desejarem, todos podem realizar trabalhos dentro do Lar. A universidade entrou para melhorar a qualidade de vida da população da instituição. A Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep) tem um convênio com o Lar desde 1979. "Fazemos um trabalho de fisioterapia com fitoterapia para aliviar problemas reumáticos e de escaras, por exemplo", diz Jorge Daister, professor da Unimep.
A Esalq tem uma pesquisa sobre o efeito da utilização de um complemento alimentar em idosos, de 1999. "Sugerimos mudar a alimentação, tirar as carnes gordurosas e introduzir um suplemento de cereais, leguminosas e oleaginosas", conta Jocelem Mastrodi Salgado, professora e pesquisadora da Esalq. Aceitas as recomendações, houve redução significativa do gasto com medicamentos.
PESQUISA FAPESP 126 ■ AGOSTO DE 2006 ■ 9
Vitória em campo minado NELDSON MARCOLIN
A
médica Angelita Habr-Gama tem três traços de personalidade comuns em profissio™ nais de sucesso: perseverança, grande capacidade de trabalho e um otimismo contagiante. Juntar a essas qualidades um enorme talento na sua especialidade, a cirurgia do aparelho digestivo, é o suficiente para descolar Angelita do rol de pessoas bem-sucedidas e colocá-la num patamar superior, entre as que criam e fazem escola. Para chegar a tanto foi preciso alguma ousadia: ela foi a primeira mulher residente em cirurgia geral do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), em 1958, numa época em que esse era um reduto exclusivo dos homens. Esse pioneirismo foi só o primeiro de muitos. Ela também foi a primeira mulher a estagiar nessa especialidade médica no conservador e tradicional Saint Mark's Hospital, da Inglaterra, em 1961, a primeira professora titular em cirurgia do Departamento de Gastroenterologia (FMUSP) e a responsável por tornar a coloproctologia uma disciplina própria, em 1995, em vez de deixá-la como uma subespecialização das cirurgias do aparelho digestivo. Angelita aprimorou técnicas cirúrgicas e foi importante na estruturação, de-
senvolvimento e avanço da coloproctologia no Brasil. Foi ela, por exemplo, quem organizou o primeiro curso prático e teórico de colonoscopia, o exame do interior do cólon. Não descuida da clínica que tem com o marido, o cirurgião Joaquim José Gama Rodrigues, professor titular em cirurgia da FMUSP, com quem está casada desde 1964. Também mantém um pé na pesquisa. É participante de primeira hora dos projetos Genoma - seu laboratório trabalhou no seqüenciamento da bactéria Xylella fastidiosa e ela continua atuando no do Genoma Humano do Câncer. Nos últimos anos tem dado ênfase especial à prevenção do câncer de intestino. Criou até uma organização para isso, a Associação Brasileira de Prevenção do Câncer de Intestino, que promove eventos no Brasil inteiro. Filha de imigrantes libaneses, nascida na Ilha de Marajó, no Pará, a cirurgia recebeu em abril deste ano sua mais recente honraria em Zurique, na Suíça. Foi a primeira especialista latino-americana e a primeira mulher a ganhar o título de membro honorário da Associação Européia de Cirurgia pela carreira médica, prêmio só dado até hoje a 17 médicos no mundo. Angelita atribui boa parte da repercussão de seu trabalho à condição feminina. "Ainda hoje causa estranheza uma mulher ser
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tao bem-sucedida em uma especialidade dominada por homens", diz ela. ■ O que a levou a escolher a cirurgia numa época em que tão poucas mulheres faziam o curso de medicina e praticamente nenhuma optava por essa especialidade? — Rodei por vários setores da ciência médica e minha idéia inicial era chegar à clínica. Comecei a fazer o rodízio do internato da Faculdade de Medicina, onde os alunos passam por várias especialidades. É importante ver tipos diferentes de doenças, de doentes, de médicos e de professores. O aluno vai sentindo qual é sua verdadeira vocação dentro da medicina. Tudo o influencia porque até o quinto ano ele não sabe exatamente o que quer fazer, se pediatria, dermatologia, ortopedia. Quando tinha aula de técnica cirúrgica eu não me interessava muito. Achava que nunca iria fazer cirurgia porque naquela época isso não era especialidade para mulher. Era clínica ou ginecologia, no máximo. Naquele tempo era permitido aos alunos estagiar na Casa Maternal de São Paulo. Fui para lá como acadêmica e comecei na obstetrícia. Mas entrei na sala de operação e me deram agulha para fechar uma parede abdominal. Naquele momento senti que o ato de operar era natural para mim. ■ Simples assim? — Foi. Senti imediatamente que eu poderia me desenvolver naquilo porque tenho um espírito prático, combativo. Os resultados dos tratamentos daquela época eram meio precários. Na cardiologia os medicamentos que existiam na época eram poucos, principalmente a digitoxina. Os doentes cardiopatas evoluíam mal, viviam com falta de ar. Na gastroclínica as doenças eram de longa duração, não se resolviam facilmente. Tenho temperamento de cirurgião, que gosta de tratar e ver o resultado. Você vê um doente mal, opera e ele, em geral, fica ótimo. É fantástico. ■ A senhora nasceu na Ilha de Marajó, no Pará, e veio para São Paulo aos 7 anos. Foi difícil conseguir chegar à FMUSP? — Eu tinha estudado alguma coisa lá, mas não sabia quase nada. Em São Paulo cursei apenas escolas públicas, que eram excepcionais naquele tempo. Quando fazia o científico [ um dos cursos 12 ■ AGOSTO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 126
do período, em paralelo ao clássico, atual ensino médio], eu estava sem rumo. Sabia que tinha facilidade para estudar e que minha vocação seria na área biológica. Terminei influenciada pelo meu grupo de voleibol. Coincidentemente, aquelas pessoas queriam fazer medicina porque tinham médico na família. Eu não conhecia médicos, meus pais eram imigrantes libaneses com posses limitadas. Eu era um pé-rapado na vida. Mas isso não foi problema porque sou otimista. Cirurgião precisa ser otimista. Nunca digo para um doente que ele vai mal, que está mal. Acho que vai dar tudo certo. Faço todo o possível para dar certo e sempre acredito que vai dar. ■ Às vezes, não dá. — Realmente, às vezes não dá. A gente convive com uma realidade, muitas vezes penosa, em que o médico precisa ser otimista. ■ Imagino que esse seu espírito tenha contribuído para a senhora enfrentar algumas adversidades dentro da universidade. — Muito. Quando entrei na faculdade tinha apenas mais uma colega que se especializou em cirurgia plástica, mas foi para o interior e não tive mais notícias dela. Na faculdade e depois, já como cirurgia, eu tinha um empuxo danado, trabalhava violentamente. Para demonstrar que tinha capacidade de vencer como cirurgia sempre trabalhei mais do que a média dos que trabalhavam bem. Eu me mantenho entre os melhores do meu setor porque continuo trabalhando muito. Não foi fácil aqui no Brasil e foi ainda mais difícil no exterior. Na Inglaterra, o Saint Mark's Hospital levou dois anos para me aceitar, em 1961. Eles diziam para mim que aquilo era um hospital de homens. Mas consegui convencê-los e fui a primeira mulher a estagiar lá. Eles não estavam acostumados, eu iria quebrar toda a rotina do Saint Mark's. Lembro muito bem, na hora do almoço, sentavam todos os assistentes e o mais velho era quem servia a mesa. Eles me chamavam de "big mofher", ou seja, faz de conta que é a mãe e nos sirva. O hospital era muito famoso e muito convencional. De repente eu, mulher, cirurgia, chegava lá e não tinha nem vestiário para trocar a roupa. Aliás, isso também ocorria no Brasil.
■ E como fazia? — Usava o vestiário das enfermeiras. Elas passaram logo a me aceitar, viraram minhas amigas e clientes. Aos poucos, consegui reverter a situação. Os doentes me viam e perguntavam "cadê o médico?". Anos depois, quando ia às reuniões do Colégio Americano de Cirurgiões, ou na Europa, era a única mulher. Hoje não, está cheio. ■ A senhora ocupa postos de liderança há muitos anos. Sempre houve médicas epesquisadoras de excelente nível que têm dificuldades em alcançar cargos de direção. Há perspectiva de mudança? — Aos poucos essa situação vem mudando. Na Faculdade de Medicina há várias titulares. A de moléstias infecciosas, de reumatologia, de endocrinologia. É algo recente, talvez de cinco ou dez anos para cá. Aquele era um mundo masculino, na Congregação da Faculdade não tinha mulher. Fui a primeira chefe de Departamento na Gastroenterologia, antes de ser titular, e a primeira titular em carreira cirúrgica. É preciso dizer que a faculdade sempre teve também um outro problema: existe uma concorrência enorme para ser titular, quando deveria ter número maior de vagas para titulares. No meu discurso de posse na Congregação pleiteei que o título de professor titular deveria ser aberto. O professor associado que está produzindo, fazendo escola, ensinando, deveria ter direito de concorrer à vaga de titular e não esperar alguém se aposentar ou morrer. Chegar ao final da carreira é fato ainda excepcional, não importa a boa qualidade dos docentes. Fiz o doutorado em 1966, a livre-docência em 1972 e virei titular em 1998. Você vê o gap*. E já tinha prestígio, todo mundo sabia que eu tinha condições de ser professora titular. Mas não abria vaga. Deveria ser possível chegar ao final por méritos e não esperar eternamente por vagas. ■ Há possibilidade de isso vir a acontecer? — Acho que sim, porque já há alguns departamentos com um maior número de vagas para titulares. É uma tendência da universidade, em países como o nosso, para facilitar a progressão da carreira. Não confunda com vulgarizar a carreira. Deve-se permitir que os que têm valor alcancem o final da carreira. O meu sucesso, na vida profissional, bem
como nas sociedades as quais pertenço, não é porque eu sou titular, mas porque trabalhei a vida inteira. Ensinei muitos residentes, alunos de pós-graduação, estagiários da América Latina inteira. Muitos dos médicos que ajudaram a mudar a coloproctologia na América Latina estagiaram comigo. Também pesquiso e escrevo trabalhos científicos. Nos últimos anos, talvez eu tenha adquirido um prestígio maior à custa de um trabalho pioneiro que comecei em 1991, sobre câncer de reto. ■ Do que se trata? — Dediquei muito da minha vida profissional ao câncer de reto. Minha tese de 1972, de livre-docente, já foi sobre uma técnica de conservação do ânus para câncer de reto. Naquela época era raro fazer esse tipo de operação. Eu achava que muitos doentes que tinham esse tipo de câncer não precisavam fazer a colostomia definitiva, após a retirada de todo o reto, ânus e esfincteres. Evito ao máximo a colostomia. ■ Por que o trabalho com esse tipo de câncer foi pioneiro? — Um cirurgião americano, Norman D. Nigro, introduziu em 1974 o conceito de que câncer de ânus pode ser tratado, de início, com um programa combinado de rádio e quimioterapia. Em uma boa parte dos casos o tumor desaparece e não é preciso operar. Pensei: se é possível curar o câncer de ânus, por que não o de reto baixo? Começamos a tratar o doente com radioquimioterapia antes da cirurgia. E diferentemente do que fazem outros cirurgiões, passei a não operar de imediato quando o tumor desaparecia. Outros médicos, europeus, sul e norte-americanos indicam sempre a cirurgia após o tratamento, mesmo quando há regressão total do tumor. Eu não. Tenho casuística [registros minuciosos de casos clínicos] que inclui 360 doentes com câncer de reto baixo. O reto tem 15 centímetros. Quando o câncer é no reto alto, não é preciso, em geral, fazer radioquimioterapia. Operamos de imediato. Agora, quando o câncer é bem perto do esfíncter, para curar o doente, se não fizer radioquimioterapia, tem de amputar o reto e os esfincteres e fazer a colostomia definitiva. Quando se faz radioquimioterapia, em cerca de 25% a 30% das vezes o tumor desaparece.
■ Sem operar? — Sem operar. No caso de câncer de ânus, 70% desaparece; de reto baixo, 30%. Operei alguns desses doentes com regressão completa e na peça cirúrgica não tinha tumor. Aí decidi: não vou mais operar doente se não tiver tumor. Como saber se o tumor desapareceu? Examinamos com toque e endoscopia na avaliação feita oito semanas depois do tratamento e fazemos uma tomografia. Como o doente também não quer amputar o reto, criamos uma parceria: o paciente e eu. Sigo esses doentes muito de perto. Eles voltam sempre para consulta porque sabem que só opero quando permanece lesão residual após o tratamento. Deixo claro que o tumor pode voltar e até piorar. Aviso: "Se voltar, teremos que operar". De um grupo de 360 doentes, estou com 99 doentes que não operei e estou seguindo. Claro que já tive várias recidivas, os doentes foram operados e alguns fizeram colostomia. Nos 260 doentes em que o tumor não desapareceu, mas diminuiu muito depois da radioquimioterapia, muitas vezes em vez de amputar o reto, fazemos uma cirurgia de conservação esfincteriana protegendo a sutura com uma estomia [abertura feita cirurgicamente no abdome] temporária. Quando comecei a apresentar nossos trabalhos, a partir de 1991, tive dificuldades na sua aceitação. ■ Por quê? — Havia muita resistência por parte dos médicos, que achavam que não operar de imediato não era ético porque o tumor poderia voltar. Eu argumentava o seguinte: o que é ético para o doente? Seria operar quem clinicamente não tinha mais tumor, fazer uma colostomia definitiva e na peça cirúrgica que foi remo-
vida não encontrar tumor? Nossa equipe conversa claramente com o doente e diz: "Amigo, hoje o tumor desapareceu, mas a qualquer momento pode voltar. Se isso não acontecer, ficamos satisfeitos e você também. Mas, se voltar, teremos de operar". Já operamos vários por causa de recidiva, mas na grande maioria o tumor não voltou. Agora, nossos trabalhos sobre esta estratégia de tratamento têm sido publicados em boas revistas. Em países como os Estados Unidos é diferente, os cirurgiões não têm o mesmo tipo de relacionamento com os doentes como aqui. Além disso, os processos médicos são muito freqüentes. ■ Essa foi uma contribuição importante para sua área? — Foi, a meu ver, uma boa contribuição demonstrar que alguns doentes com câncer de reto baixo com indicação inicial para fazer colostomia podem ser poupados de uma operação quando submetidos à radioquimioterapia. Não todos, uma minoria. Mas não importa. O doente que não foi operado ganhou muito com isso. Continuamos com as pesquisas nessa área. Mais recentemente temos aumentado a dose da radioquimioterapia e obtido maior número de resposta completa, isto é, a regressão do tumor. ■ Onde esse trabalho efeito? — No Hospital das Clínicas. Hoje a radioquimioterapia para câncer do reto baixo é consenso. Nossa conduta, de não operar, é que não é aceita em consenso nem mesmo no Brasil. É reservada para centros de pesquisa. Porque, claro, se não houver disponibilidade de serviço especializado de radioquimioterapia e se o médico responsável pelo PESQUISA FAPESP 126 ■ AGOSTO DE 2006 ■ 13
tratamento não seguir o doente com rigor poderá ser um grande problema.
• A senhora trabalha também no sentido de reconstruir o esfincter, não é? - Sempre fui entusiasta da conservação da função esfincteriana. Minha tese de docência foi sobre isto. Já utilizei todas as técnicas descritas e melhorei algumas delas. Mas é raro fazer alguma coisa realmente nova. Quanto à incontinência fecal, há pessoas com defeitos congênitos, outras que têm seqüelas do parto ou de traumatismos etc. Nós conduzimos no HC uma pesquisa sobre implante de um esfíncter artificial. É um sistema simples: consiste em uma fita que envolve o canal anal e de um receptor no escroto ou no interior da vagina, e de uma bomba implantada na região pubiana. O conjunto funciona como um sistema de tubos comunicantes e o próprio indivíduo manipula quando precisa ir ao banheiro.
• Do que éfeito esse material? - De silicone. Mas é caro e só conseguimos fazer a pesquisa porque houve apoio da FAPESP. Custa atualmente cerca de US$ 7 mil. Há também outra técnica para restaurar incontinência, que é a neuroestimulação. É um sistema como um marca-passo. Para quem tem incontinência sem lesão grave esfincteriana funciona muito bem. Implantamos dois no HC porque a firma que produz a sutura nos forneceu. Já no exterior a experiência está se acumulando. A FAPESP é grande patrocinadora de nossas pesquisas.
• A senhora participou do Projeto Genoma Humano do Câncer? - Participo do projeto genoma desde o primeiro deles, o da bactéria Xylella fastidiosa. Entrei junto com o José Eduardo Krieger, da cardiologia. Posteriormente a FAPESP iniciou o Projeto Genoma Humano do Câncer, do qual também participamos conjuntamente com os demais grupos da Gastroenterologia do HC-FMUSP. Temos coletado material de 450 peças de tumor no intestino. Acho que não há ninguém que tenha esse material no mundo. Aguardamos continuidade do patrocínio da FAPESP para avaliação dos genes.
• Qual o peso da genética no tumor de intestino? 14 • AGOSTO DE 2006
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- Muito grande. Hoje nós sabemos que, primeiro, todo câncer tem uma origem genética, mas o câncer de cólon tem uma influência genética importantíssima. Desde 1976, pertenço a um grupo de prevenção de câncer que atua nos Estados Unidos. Isso me entusiasmou a trabalhar aqui no Brasil. Nosso grupo criou, em maio de 2004, em parceria com diversas associações que lidam com câncer digestivo, a Associação Brasileira de Prevenção do Câncer de Intestino, a Abrapreci. Redigimos o material educativo para distribuição e construímos um modelo reproduzindo o intestino, de 30 metros. No interior da peça estão representadas patologias como hemorróidas, pólipos, divertículos e câncer. Expusemos o intestino gigante durante um congresso internacional no Recife e diversos colegas americanos e europeus responsáveis por programas de prevençãode câncer estiveram presentes e visitaram o intestino gigante. Eles gostaram tanto que pediram para a associação levar a Montreal, no Canadá, durante o congresso mundial de gastroenterologia, no ano passado. Durante um mês a peça circulou por várias cidades canadenses.
• Quem bolou isso? - Eu tinha visto um modelo pequeno, nos Estados Unidos. E, aqui, já tinha gente jovem com excelentes idéias. Fizemos o primeiro modelo e depois um segundo, maior, de 30 metros, desmontável, para facilitar o transporte. Já foram levados para o Rio de Janeiro, Maceió, Goiânia, Belo Horizonte, Vitória, São José dos Campos, São Bernardo do Campo e Fortaleza. Essa ação de conscientização é importante porque, se há um câncer cuja prevenção deve ser enfatizada, este é o câncer de intestino.
• Porquê? - Nos demais tipos de câncer, na mama, no pulmão, no pâncreas, por exemplo, quando se faz campanha de prevenção, na realidade o que se faz é o diagnóstico precoce. No caso da campanha contra o câncer de mama, por exemplo, quando se faz a mamografia, pode-se detectar um tumor. Se for pequenino, dá para tratar bem. No câncer de intestino, quando se faz uma colonoscopia preventiva e se encontra um pólipo, basta tirá-lo para prevenir o câncer. Diferentemente de câncer de mama ou de pulmão, sabe-se que o de intestino começa com uma pequena lesão benigna, que é o pólipo. E é tão camarada que leva 10 anos, 12 anos para crescer e virar um tumor. É altamente curável. A parte ruim da história é que a incidência de câncer de intestino aumenta no mundo inteiro.
• Como saber se os pólipos existem, se não há sintomas? - Quem tem 50 anos de idade e não tiver nenhum antecedente na família deve fazer uma colonoscopia, mesmo que não tenha sintomas. Agora, se tiver na família pai, mãe, irmão, avô ou avó com câncer de intestino, deve fazer o exame aos 40 anos porque a influência, da genética é muito importante. Se tiver pólipo aos 40 anos, dá para detectar. Se fizer aos 50 anos, é muito possível que já tenha um câncer.
• Por que a incidência cresce no mundo? - Se você pegar as estatísticas, o Sul do Brasil é o segundo colocado, só perdendo, no caso da mulher, para o câncer de mama. O problema é a qualidade de vida da gente. Comemos mal, com muita gordura. A maioria dos alimentos que consumimos atualmente têm de ser con-
servados e, para isso, exigem aditivos, conservantes e corantes. Os embutidos - salame, mortadela - causam um belo estrago. Eu comia e achava delicioso, mas não como mais. É preciso ensinar a população a se alimentar melhor e isso faz parte do programa da Abrapreci, que abrange principalmente a juventude. Quando montamos o intestino gigante no parque do Ibirapuera, em São Paulo, numerosas escolas levaram seus alunos para visitar a peça e ouvir instruções de enfermeiros, nutricionistas e médicos.
• Sabe-se que a saúde da mulher não foi tão estudada quanto a do homem, historicamente, o que ocorre em especial na área cardiológica. Isso vale para a gastroenterologia? - Não. Na nossa área as doenças são igualmente estudadas. Em operações como a do reto, por exemplo, a mortalidade no sexo feminino é menor. Quando eu disse que queria fazer cirurgia para meu estimado professor Alípio Correa Neto, ele pensou um pouco e disse: "Menina, acho que você pode fazer cirurgia sim, e vai ter muita sorte. No começo da sua carreira só vai operar mulher, os homens não vão querer ser operados por você. Mas como mulher não morre, mulher é resistente, você quase não vai ter óbito':
• Um conselho estimulante. - E muito engraçado também. Minha carreira foi logo bem-sucedida. Opero igualmente homens e mulheres. Talvez até mais homens do que mulheres.
• A senhora é otimista com relação ao uso futuro das células-tronco? - Acho que esse é o caminho até chegar a ponto de fazer novos órgãos a partir de células-tronco. A tecnologia proporciona coisas incríveis, com cirurgias minimamente invasivas. Hoje já há projetos de salas de operação totalmente virtuais, como um lugar sem médicos ou enfermeiras, só o paciente com robôs que farão toda a cirurgia. Daqui a 15, 20 anos, muito do que se faz hoje será substituído por robôs. Cápsulas endoscópicas, que percorrem o tubo digestivo, por exemplo. O doente vai para casa e a cápsula percorre seu interior captando informações. Operações feitas sem abrir a barriga e outras coisas inacreditáveis. Vi coisas incríveis em um con-
gresso de tecnologia avançada virtual, recentemente nos Estados Unidos.
• A senhora não fica um pouco frustrada pela possibilidade de vir a ser substituída por máquinas? - Eu gostaria de ter nascido de novo agora, isso sim. A cada dia vemos algo diferente que achamos absurdo para, dali a pouco, ficar provado que não é absurdo. Mas às vezes penso se foi bom ter trabalhado numa época em que a cirurgia era só arte, em que fazíamos suturas pontinho por pontinho. Agora fazemos muita sutura com aparelhos por grampeamento. O que diferenciava um cirurgião do outro, basicamente, era a habilidade em fazer suturas. Hoje é a habilidade em utilizar um equipamento. O cirurgião acaba tendo que estudar bioengenharia. Vejo ainda a cirurgia como uma arte. Mas tudo muda depressa: já existe programa de computador em que são colocados os dados do doente e realizadas todas as hipóteses para chegar ao diagnóstico e até a receita. Vi um desses programas nos Estados Unidos.
um concurso para oito vagas. Havia esse medo de eu ganhar uma vaga, casar, ter filhos e largar a cirurgia. De fato, naquela época acontecia de a mulher se formar e largar quase tudo para cuidar da família. Hoje mulher tem filho e continua a carreira. Porque tem assistência e o marido moderno é diferente do antigo. Os meus sobrinhos cuidam dos filhos tanto quanto as mulheres. Eles trocam fralda, dão banho, levam na escola, ao médico, dão comida, sabem até cozinhar. Antigamente não era assim. Então passei no concurso em primeiro lugar e quando casei eu e meu marido concordamos em não ter filhos.
• Se fosse hoje a senhora teria filhos? - Talvez. Com toda a assistência e mudança de costumes, acho que até poderia ter. Família é essencial. Tenho muitos sobrinhos, sobrinhos-netos e uma vida familiar muito boa. Meu marido é excepcional, no mesmo nível acadêmico que o meu. Senão também não teria dado certo.
• Por quê? • Não é perigoso acreditar que o programa tomará a decisão correta? - Acho perigoso. Para quem está acostumado a ser médico de verdade é difícil aceitar. Entretanto, quando vi a primeira cirurgia laparoscópica de vesícula, alguns anos atrás, disse para outros colegas, "que absurdo, tirar a vesícula por meio de laparoscopia" Logo depois tivemos de aprender a técnica.
• Quantas cirurgias a senhora faz por semanas - Em média oito. Muitas são operações de grande porte. Há dias em que me dedico inteiramente a operar.
- Não há ciúme nem inveja entre nós. Ele é cirurgião do aparelho digestivo, dos melhores que tem no Brasil. Também é professor titular. Mas, como ele, há vários cirurgiões do mesmo gabarito. Como eu, do meu gabarito, da minha faixa, sendo mulher, só tinha eu. Meu trabalho alcançou. muita repercussão. Trabalhei muito e minha glória parece muito maior do que dos meus pares igualmente capazes. Mas não sou melhor do que meus pares nem melhor que meu marido. O que acontece é que o meu trabalho aparece mais.
• A que credita esse reconhecimento?
- Faço com meus colaboradores que são competentes e dedicados. Mesmo aqui no meu instituto sempre há acadêmicos trabalhando.
- Muito ao fato de ser mulher. O pessoal diz: "Foi mulher quem fez esse negócio? Como é que essa mulher foi pensar nisso? Como é que ela opera tão bem?': Eu, modéstia à parte, opero bem e tenho excelentes resultados.
• A senhora optou por não ter filhos para investir na carreira. Como foi essadecisão?
• A senhora nunca diz sua idade. Ela não pesa?
-
- Quando perguntam, digo: "Não sei, é desconhecida': Não sei mesmo. Porque o tempo passou e não senti. Posso operar o dia inteiro e ser capaz de à noite ir ao cinema, ao restaurante, a uma festa e, mesmo, dançar. •
• E consegue tempo para fazer pesquisa?
Quando decidi pela cirurgia, diziam seguinte na faculdade: "Para quê? Ela vai ocupar uma vaga de residente para depois abandonar e não trabalhar mais?': Dos 80 médicos que se formavam, acho que metade queria ser cirurgião. Tinha O
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O POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA
rticuiaçao muçulmana ■ Prisioneiro de consciência Jornais ligados ao governo do Irã anunciaram que o professor de filosofia Ramin Jahanbegloo, preso desde maio em Teerã, teria confessado participação num plano para derrubar o governo do país com ajuda dos Estados Unidos e do Canadá. A notícia foi recebida com ceticismo pela Anistia Internacional, União Européia e pelo governo canadense, que pressionavam o Irã a libertar o acadêmico. Antes da confissão, a prisão era justificada oficialmente pelo contato de Jahanbegloo com estrangeiros, o que não é crime no Irã. "Como precisavam dar respaldo à prisão, produziram essa confissão", disse Karim Sadjadpour, analista do grupo de defesa dos direitos humanos International Crisis Group. Segundo a revista Science, o professor está confinado numa cadeia notória pela prática de tortura. Especula-se que o verdadeiro motivo da prisão seja uma entrevista que Ramin Jahanbegloo concedeu a um jornal espanhol criticando as declarações do presidente iraniano Mahmoud Ahmadi-
Um centro de pesquisas com sede em Islamabad, no Paquistão, vai ajudar os países muçulmanos a criar políticas científicas efetivas e sistemas nacionais de inovação. Inaugurado no dia 12 de julho graças a um investimento de US$ 8 milhões, o centro é coordenado pelo comitê de cooperação científica da Organização da Conferência Islâmica (OIC), que con-
nejad que colocavam em dúvida a existência do Holocausto. Jahanbegloo, de 45 anos, doutorou-se em filosofia na Universidade Sorbonne, fez pós-doutoramento na Universidade Harvard e foi professor da Universidade de Toronto. •
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Atta-ur-Rahman, ministro paquistanês para a educação superior e coordenador geral do comitê, diz que a iniciativa busca preencher uma velha lacuna. Segundo ele, entre os membros da OIC, apenas alguns poucos países, como Egito, Irã, Malásia e Turquia, têm academias de ciência capazes de dar aconselhamento aos governos. "É hora de o
■ A Lua tem que esperar O fracasso do lançamento do maior satélite de comunicações desenvolvido pela índia deve adiar os planos do país de enviar no ano que vem uma missão não tripulada à
ndo muçulmano; dar para a importância da ciência e da tecnologia na promoção do desenvolvimento socioeconômico", disse o ministro ao jornal indiano Urdu Times. O centro vai abrigar economistas especializados em política científica, que promoverão cursos de treinamento para estudantes, autoridades e formuladores de políticas públicas. •
Lua. O foguete GSLV-F02, que carregava o satélite Insat-4C, explodiu logo após o lançamento, no dia 10 de julho, produzindo uma chuva de destroços na baía de Bengala. Como a segurança da tecnologia do foguete é vital para o sucesso da missão Chandrayaan-I à Lua, já se fala num adiamento da viagem, prevista para o ano que vem. O principal objetivo da missão é pesquisar a distribuição local dos minerais e dos elementos químicos, além de produzir mapas tridimensionais da superfície lunar. O astronauta indiano Rakesh Sharma admitiu à agência EFE que "o programa espacial sofrerá um atraso". Mas
se disse convencido de que a experiência trará aprendizado e que seu país terá sucesso. •
não teremos como recuperar esse atraso e avançar", disse Fuentes. •
■ Para recuperar o atraso
■ Incentivo ao jornalismo
A Universidade Nacional Autônoma de México (Unam) é a maior universidade da América Latina, com cerca de 200 mil alunos, e está entre as 100 melhores do mundo, à frente das brasileiras. Mas seu reitor, Juan Ramón de Ia Fuente, não está satisfeito. Em uma conferência realizada no dia 17 julho no Instituto das Américas, em La Jolla, Califórnia, Fuente queixava-se de que ainda é muito restrito o acesso ao ensino superior, relata Carlos Fioravanti, editor de ciência de Pesquisa FAPESP. Mesmo que o México esteja um pouco acima da média na América Latina (20%), apenas 22% dos jovens de 18 a 24 anos chegam à universidade. No Brasil, o índice é de 14%. "Na melhor das hipóteses, os países latinos oferecem metade do recomendado para se manter competitivo na educação superior", comentou. Segundo ele, duplicar o acesso à universidade seria uma forma de satisfazer apenas um dos elementos necessários à inovação - a formação de mãode-obra qualificada. "Sem uma política mais vigorosa de acesso ao ensino superior,
O Ministério da Educação, Ciência e Tecnologia da Argentina lançou um programa nacional de capacitação em jornalismo científico e criou um prêmio para as melhores produções na área. "É preciso muita tenacidade para ter espaço permanente na imprensa argentina", disse, em entrevista coletiva, o ministro Daniel Filmus. Segundo o portal Universia Argentina, o programa de capacitação terá cursos que viajarão por diversas províncias. O prêmio de jornalismo terá cinco categorias (jornal, televisão, rádio, web e trabalhos inéditos em qualquer veículo). Os vencedores ganharão uma viagem a um centro internacional de pesquisas da Europa ou dos Estados Unidos à sua escolha. •
■ Sinal de alerta no Uruguai O contingente de pesquisadores e técnicos envolvidos com atividades de inovação na indústria uruguaia diminuiu 43% em 2003, em comparação com o final dos anos 1990. Os dados fazem parte da II Pesquisa de Atividades de Inovação na Indústria (2000-2003), elaborada pelo
governo uruguaio. Foram contabilizados apenas 434 profissionais dedicados à Pesquisa e Desenvolvimento, o equivalente a 0,5% do total de empregados. Já no triênio anterior, a indústria uruguaia
abrigava 766 cientistas e técnicos envolvidos nessas tarefas. "A baixa quantidade de pesquisadores na indústria é um tema-chave para o país", disse à agência de notícias SciDev.net Amilcar Davyt, titular da Direção de Inovação, Ciência e Tecnologia (Dicyt), do governo uruguaio. A pesquisa mostra que apenas 36% das indústrias realizaram alguma atividade de inovação, mas a grande maioria delas foi a compra de máquinas e a capacitação do pessoal, não projetos de pesquisa e desenvolvimento. •
Redo
gara
A Academia Nacional de Ciências da Hungria é acusada de discriminar pesquisadores da área médica que trabalham fora do país. Para conceder o grau de doutor em ciência, necessário para pesquisadores atuarem em universidades e institutos de pesquisa húngaros, a divisão médica da academia adota um critério polêmico ao avaliar os currículos dos candidatos: artigos divulgados em revistas científicas húngaras têm um peso duas vezes maior do que os publicados no exterior. "As regras excluem es-
trangeiros da competição com cientistas médicos da Hungria", disse à revista Nature Gábor Vajta, embriologista húngaro radicado em Tjele, Dinamarca. Vajta não tem intenção de voltar a seu país natal. "Mas, se quisesse, teria de recomeçar a carreira do zero", diz. O governo húngaro, que busca fortalecer a ciência no país mas não tem poder direto sobre a academia, também está preocupado. "A academia é dominada por pesquisadores dos tempos do totalitarismo", diz János Kóka, ministro da Ciência da Hungria. •
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Estratégias
Brasil
■ Em busca da liderança O governo federal produziu o esboço de um plano estratégico no campo da biotecnologia que, caso seja implementado, poderá movimentar até R$ 7 bilhões em investimentos nos próximos dez anos. O objetivo é levar o país à liderança mundial em áreas específicas de saúde humana, industrial e agropecuária até o ano de 2020. Batizado de Estratégia Nacional de Biotecnologia, o documento cita áreas-chave como a produção de etanol e biodiesel, produção de plásticos biodegradáveis, transformação de biomassa em energia elétrica, vacinas, hemoderivados, próteses e kit diagnósticos, além de tecnologias que ampliem produtividade do agro-
negócio, entre outras. Os recursos devem vir dos fundos setoriais, da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e da própria indústria. O plano, assinado pelos ministros da Saúde, da Ciência e Tecnologia, do Desenvolvimento e Comércio Exterior e da Agricultura, foi encaminhado à Presidência da República no início de julho. •
Acre, capital de Gana. Sua missão é compartilhar conhecimentos científicos e tecnológicos com o todo continente africano, de modo a combater a fome na região e contribuir para o seu desenvolvimento sustentável. Um memorando de entendi-
■ Escritório em Gana O presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou no dia 10 de julho a instalação do primeiro escritório no continente africano da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). O escritório será instalado em
Éden, de Jon McCormack
Arte cibernética Segue até o dia 24 de setembro em São Paulo a terceira edição da Bienal Internacional de Arte e Tecnologia, promovida pelo Itaú Cultural. A exposição, que neste ano Art.fiáal 3,0 - Interface Cibernética, traz 13 obras criadas por 18 artistas de países como Alemanha, Bélgica, Canadá, Estados Unidos, França e Noruega. Como muitas são interativas, até crianças po-
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mento entre a Embrapa e o Conselho para Pesquisa Científica e Industrial (CSIR) de Gana estabelece áreas para cooperação: uso sustentável de recursos naturais, sistemas produtivos e proteção sanitária de plantas e animais, fruticultura e horti-
dem estabelecer contato com elas, vendo letrinhas dançando na máquina de escrever ou bolhas crescendo conforme o tom de voz do visitante. Autômatos interagem entre si e o ambiente na obra Éden, de Jon McCor-
Universidade de Monash, em Melbourne. O Itaú Cultural fica na avenida Paulista, 149. A entrada é gratuita.
■Bi
cultura tropical, zoneamento agrícola, biotecnologia e troca de material genético, entre outros. •
■ Saúde humana e animal Duas seleções públicas foram lançadas pela FAPESP vinculadas ao desenvolvimento de projetos nas áreas de saúde humana e animal. Em acordo firmado com o Instituto Nacional de Saúde e da Pesquisa Médica (Inserm), da França, será apoiada a cooperação entre grupos de pesquisa do estado de São Paulo com os da instituição francesa. O apoio pode ser concedido na forma de viagens e estágios para o desenvolvimento de projetos de pesquisa conjunta por um período de dois anos. Os estágios terão a duração de até três meses. A apresentação de propostas deverá ser realizada até o dia 30 de setembro. O formulário eletrônico está disponível no link www.ourofino.com/web/br. A segunda chamada, resultado da cooperação entre o Programa Parceria para Inovação Tecnológica (Pite) e o Grupo Ouro Fino, está aberta a projetos que englobem pesquisa e desenvolvimento com aplicação na área farmacêutica veterinária. A íntegra da chamada pode ser obtida no link www.fapesp.br/ourofino. •
■ Fiocruz recruta pesquisadores A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) vai selecionar 106 pesquisadores visitantes para suas unidades e laboratórios em Belo Horizonte, Curitiba, Recife, Rio de Janeiro e
cular, bioquímica, ciência da informação, ciências, ciências ambientais, ciências da saúde, ciências sociais, comunicação, economia, engenharia ambiental, engenharias biomédica, química ou sanitária, entomologia, epidemiologia, estatística, entre outras. As inscrições estarão abertas até 18 de agosto. •
■ Como evolui a inovação
ií\^> Salvador. São oferecidas dez vagas para pesquisadores que concluíram doutorado há mais de cinco anos (bolsa de R$ 4 mil) e 96 vagas para pesquisadores juniores, que se doutoraram há menos de cinco anos (bolsa de R$ 3,3 mil). Há oportunidades para doutores em áreas como bioestatística, biologia mole-
A terceira edição da Pesquisa Industrial de Inovação Tecnológica (Pintec) já começou a ser preparada. Realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com apoio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), a pesquisa é responsável por fornecer dados que apontam o número de empresas implementando inovações e características das atividades inovativas. A edição de 2003 registrou uma queda no número de empresas brasileiras que fazem pesquisa e desenvolvimento de forma contínua - eram 2.432 em 2003 ante 3.178 na pesquisa de 2000. Segundo a Finep, a Pintec será ampliada e irá contemplar, além das empresas industriais, também as da área de serviços com alta intensidade tecnológica. O levantamento, que antes compreendia um período de três anos, a partir de agora será bianual. •
para apoiar a pesquisa Até 28 de agosto, a FAPESP recebe propostas para um programa de pesquisa em museus e cenÍtros de ciências. Podem apresentar projetos pesquisadores associados a »museus ou centros de ciências em instituições paulistas. O programa se viabilizou graças a uma parceria entre a FAPESP e a Fundação Vitae, que está encerrando suas atividades. "Esta é uma bela oportunidade que foi trazida à FAPESP pela Fundação Vitae, que teve um programa de resultados muito bons para o apoio de centros de ciências", diz o diretor científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz. "Com o encerramento da atividades da Vitae no Brasil, surgiu a oportunidade de uma parceria para apoiar pesquisa sobre centros de ciências. Temos a expectativa de estimular a pesquisa e, com isso, o aperfeiçoamento da operação de centros de ciência em São Paulo", afirmou Brito Cruz. Mais informações no endereço www.fapesp.br/vitae. •
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DIFUSÃO
O conhecimento
socializado Com a marca inédita de 6 milhões de acessos mensais, biblioteca SciELO vai estudar o perfil de seus usuários FABRíCIO MARQUES
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biblioteca eletrônica SciELO Brasil alcançou um patamar inédito de visibilidade: a cada mês, são realizados por meio da internet 6 milhões de consultas a artigos de revistas científicas brasileiras abrigadas em sua base de dados. A multiplicação dos acessos se dá num ritmo veloz - há três anos, contavam-se não mais do que 200 mil downloads de artigos por mês. Para compreender o fenômeno, o Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (Bireme), res^^^^^^^™ ponsável pela operação da biblioteca, vai esquadrinhar cada um dos acessos nos próximos meses. "Calculamos que entre 400 e 600 mil acessos mensais provêm de outras bases acadêmicas", diz Abel Packer, diretor da Bireme e coordenador operacional da SciELO, cuja sigla em inglês significa Biblioteca Científica Eletrônica On-line. "Ainda temos pouca informação sobre a origem da maioria dos acessos", afirma. A expansão da popularidade da biblioteca virtual, criada em 1997 e que hoje reúne 158 publicações científicas brasileiras com conteúdo totalmente aberto e gratuito, está relacionada ao sucesso de sites de busca na internet como o Google, que remetem facilmente os internautas aos artigos. Hoje a coleção SciELO tornou-se uma das dez fontes de informação mais acessadas por usuários do Google Scholar, ferramenta do Google especializada em pesquisa acadêmica. Mas se sabe que uma parte dos acessos vindos dos buscadores da internet, além do Google Scholar, não tem origem nobre. Algumas palavraschave de interesse de quem busca pornografia na rede, como "clitóris", por exemplo, geram um número significativo de pesquisas. Outros termos, como "futebol", também geram uma
profusão de consultas. É possível que parte desses acessos seja acidental e não se traduza na leitura dos artigos. O levantamento que irá mapear a origem dos acessos deve ficar pronto até o final do ano. Mas, desde já, é possível observar que a biblioteca, criada com o objetivo de tornar visível a pesquisa acadêmica feita e publicada no país, está conquistando um perfil e uma importância maiores do que os concebidos por seus criadores: surgiu graças a uma parceria celebrada em 1997 entre a Bireme, que é vinculada à Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e à Organização Mundial da Saúde (OMS), e a FAPESP. E conta também com a parceria e apoio do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) desde 2002. De um lado, há que se destacar o desempenho impressionante para uma base de dados que reúne majoritariamente artigos em língua portuguesa. "Aquela preocupação que temos desde os primórdios da internet, de que havia pouca informação em língua portuguesa na rede, começa a ser resolvida de forma sistemática", diz Abel Packer. "O melhor da produção científica em português está ali." Dados de 2005 da organização União Latina mostram que quase 2%
do conteúdo da internet está em português, ante 45% em inglês. Em segundo lugar, deve-se ponderar que, embora muitos acessos não tenham finalidade acadêmica, os internautas estão consultando informação de qualidade - para ingressar na SciELO, uma revista científica deve cumprir uma série de requisitos alcançáveis só pelas publicações de primeira linha, em relação à qualidade de conteúdo, à originalidade das pesquisas, à regularidade da publicação, entre outras. "Instrumento de educação" - "Embora não seja sua função original, a SciELO está se tornando uma grande universidade pública virtual, um instrumento de educação que fornece informação para todo mundo que precisa", diz o astrônomo João Steiner, diretor do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo (USP) e editor da revista Estudos Avançados, uma das mais visitadas da base SciELO. A trajetória dessa revista é reveladora da evolução da biblioteca. A publicação ingressou na base em março de 2004. Desde então, o IEA mobilizou-se para digitalizar todos os números anteriores, desde a criação da revista em dezembro de
1987, e colocá-los integralmente na SciELO. Apesar do ingresso recente, está em 18° lugar entre os títulos mais consultados da história da SciELO. Quando se analisam os dados mensais, a publicação mostra um desempenho crescente. Foi a terceira revista mais acessada em maio, com 233.533 consultas, e alcançou o segundo lugar em junho, com 230.899 consultas. Os temas "realidade brasileira", "Brasil" e "Amazônia" são os mais acessados nas buscas dos internautas. O perfil dos três textos mais lidos dá uma medida do que é popular na internet. O primeiro é o artigo "Clonagem e células-tronco", publicado em meados de 2004, de autoria da professora de genética da USP Mayana Zatz. O segundo é o ensaio "Globalização: novo paradigma das ciências sociais", assinado pelo sociólogo Octávio Ianni (1926-2004) e publicado em meados de 1994.0 terceiro, "A trajetória do negro na literatura brasileira", foi escrito pelo professor da Universidade Federal Fluminense Domício Proença Jr. e publicado no início de 2004. "Todos são grandes artigos, sinal de que os usuários buscam conteúdo de qualidade", diz Steiner. "Mas é preciso ser cuidadoso na interpretação dos daPESOUISA FAPESP 126 ■ AGOSTO DE 2006 ■ 25
dos, pois o número de consultas não é um indicador adequado de impacto ou de qualidade", afirma. O desempenho da publicação mais acessada de toda a biblioteca, os Cadernos de Saúde Pública, da Fundação Oswaldo Cruz, mostra que fatores extra-acadêmicos influenciam a popularidade dos artigos. O primeiro e o terceiro artigos mais consultados são de uma mesma autora, Maria Cecília Mynaio: "Violência social sob a perspectiva da saúde pública" (1994) e "Quantitativo-qualitativo: oposição ou complementaridade?" (1993). São ensaios tidos como fundamentais para quem trabalha com saúde pública. Mas os editores da revista acham plausível afirmar que o segundo artigo mais acessado, "Musculação, uso de esteróides anabolizantes e percepção de risco entre jovens fisiculturistas de um bairro popular de Salvador, Bahia", de Jorge Iriart e Tarcísio de Andrade, seja muito procurado porque o tema é popular na internet. "Pessoas interessadas em musculação podem estar reforçando a procura pelo artigo", diz Reinaldo Souza dos Santos, editor-associado dos Cadernos de Saúde Pública. Há categorias de revistas mais acessadas que outras, como as do campo da saúde pública. Os números acumula26 ■ AGOSTO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 126
dos de nove anos de SciELO mostram que, depois dos Cadernos de Saúde Pública da Fiocruz, com 3,3 milhões de consultas, vem a Revista de Saúde Pública, da Faculdade de Saúde Pública da USP, com 3,2 milhões de downloads. Publicações da área de educação, como Educação e Sociedade, da Faculdade de Educação da USP, a 7a do ranking, também são muito procuradas. "Quem movimenta esses números são comunidades de pesquisadores e profissionais carentes de informação", diz Packer. Ciência perdida - Essa produção acadêmica encaixa-se, de certa forma, na tese de W. Wayt Gibbs, que em 1995, num artigo na revista Scientific American, pontificou sobre a existência de uma "ciência perdida do Terceiro Mundo", não indexada em bases de dados internacionais, mas de grande interesse regional. Referia-se à produção em áreas como saúde pública, agronomia e educação. Com o advento da SciELO, que oferece o conteúdo das melhores revistas brasileiras com acesso aberto, a ciência perdida deixou de ser invisível. O modelo vem sendo seguido por outros países. Logo após o lançamento da SciELO Brasil em 1997, o Chile
(atualmente com 56 títulos) adotou a metodologia e deu início à expansão da Rede SciELO nos países ibero-americanos, que conta com coleções nacionais certificadas na Espanha (26 títulos), Cuba (19 títulos) e Venezuela (16 títulos). Outros países, como Argentina, Colômbia, Costa Rica, México, Peru, Portugal e Uruguai, estão em processo avançado de desenvolvimento das suas coleções. A SciELO também opera coleções temáticas internacionais como nas áreas de saúde pública e ciências sociais. A revista Química Nova, publicação da Sociedade Brasileira de Química, é um exemplo peculiar. Em 3o lugar no ranking geral da SciELO, com mais de 2 milhões de acessos, a revista tem sua popularidade associada a um conjunto de fatores. O mais importante deles, segundo a editora Susana Torresi, professora do Instituto de Química da USP, é o prestígio da publicação - classificada como Internacional A pela Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior (Capes). "Mas desde que a revista entrou na base SciELO aumentou a procura de pesquisadores de áreas afins, como geoquímica, alimentos e engenharia agrícola, para publicar artigos na Química Nova", afirma.
Os editores também observaram que um número maior de pessoas, entre estudantes e pesquisadores de outras áreas, passou a consultar a revista. Não por acaso, os artigos de revisão, que atualizam a literatura internacional sobre certos assuntos, são os mais populares. A Química Nova tem uma particularidade que também explica a procura: é a única grande revista nacional de química
cujos artigos são escritos em português. "Mas se trata de uma revista acadêmica, que dificilmente vai inspirar interesse de público leigo", diz Susana. Números temáticos costumam ser mais consultados do que uma edição comum, pois têm repercussão mais duradoura. A revista São Paulo em Perspectiva, da Fundação Seade, ocupa o 19° lugar no ranking das mais acessadas,
0 céu é o limite Número de acessos por mês a artigos da Biblioteca SciELO Brasil 7.000.000
Mar/98 Mai/99 Mai/00 Mai/01 Mai/02 Mai/03 Nov/03 Mai/04 Mai/05 Set/05 Mai/06 Fonte: SciELO Brasil
•Indexação no Google "Indexação no Google Scholar
com mais de 930 mil consultas desde 1997. Mas exibe um desempenho mais impressionante em outro ranking, o dos fascículos de cada publicação mais procurados. A revista é uma publicação temática. Cada número reúne artigos de profundidade de um determinado assunto. "As edições não perdem a atualidade. Só publicamos artigos estruturantes, sem análises conjunturais", diz Aurílio Sérgio Caiado, editor da publicação. O fascículo mais visitado da base SciELO, com quase 150 mil acessos, é a edição de junho de 2000 da revista da Fundação Seade. Trata-se da coletânea Educação: cultura e sociedade. No estudo que a Bireme fará sobre os acessos à SciELO, será avaliado se o crescimento recente do número de acessos por meio da internet fez as revistas serem mais citadas em outras publicações científicas. Ainda não há indícios de que isso esteja acontecendo de forma sustentável. "Mas há relatos de casos de publicações que melhoraram seu fator de impacto depois de disponibilizarem seu conteúdo gratuitamente na internet", afirma Rogério Meneghini, professor aposentado do Instituto de Química da Universidade de São Paulo e coordenador científico da SciELO. • PESQUISA FAPESP126 ■ AGOSTO DE 2006 ■ 27
O POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA INDICADORES
Mais um degrau Produção científica cresce e Brasil já é responsável por 1,8% dos artigos publicados no mundo
Os líderes de 2005 produção científica brasileira alcançou um patamar inédito em 2005: foi responsável por 1,8% de todos os artigos publicados em periódicos científicos indexados na base de dados do ISI (Instituto de Informação Científica), índice que mede a atividade de pesquisa no mundo. Em dados absolutos, a quantidade de artigos publicados em 2005 chegou a 15.777, diante de 13.313 em 2004, quando atingiu 1,7% da produção mundial. Apesar do crescimento, o Brasil manteve a 17a posição do ano anterior. Acontece que outros países à frente do Brasil também cresceram, como China (29%) e índia (21%). "O Brasil avançou 49% nos últimos cinco anos, o que significa que em três anos poderá pular para a 15a posição, ultrapassando dois grandes países à nossa frente, a Suíça e a Suécia", disse Jorge de Almeida Guimarães, presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Um destaque nos dados de 2005 é a contribuição dos pesquisadores da área médica. Em 2005 alcançaram 19,7% da produção nacional e tiraram pela primeira vez o primeiro lugar dos pesquisadores da área de física, com 15% do total. A produção brasileira avança de maneira consistente desde os anos 1980. Recentemente, o Brasil deixou para trás 28 ■ AGOSTO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 126
Artigos científicos publicados em 2005 em publicações científicas da base ISI 1o Estados Unidos 2o Japão 3o Alemanha 4o Reino Unido 5o China 6o França 7o Canadá 8o Itália 9o Espanha 10° Austrália 17° Brasil
288.714 75.328 73.734 64.913 59.361 52.236 41.957 39.112 29.038 26.170 15.777
nações como Bélgica e Áustria, mas o crescimento não tem acompanhado a evolução de países como China e índia. Os chineses publicaram 59.361 artigos, 29% mais que em 2004. No topo do ranking estão os Estados Unidos, com 32,7% da produção científica mundial. Calcanhar-de-aquiles - O desempenho em alta é atribuído a uma mudança de cultura: os pesquisadores brasileiros estão cada vez mais conscientes da importância de divulgar sua produção científica. Mas persiste um calcanharde-aquiles na aplicação tecnológica do conhecimento. O Brasil segue estagnado na 27a posição entre os países que mais registram patentes.
Participação da produção científica mundial (em %)
■■■■ 8,5 ■■■■ 8,4 ■■■■ 7,4 ■■16,7 ■■5,9
■ 3,0 ■ 1,8
Para o diretor científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz, o crescimento da produção científica demonstra o acerto de uma política do Estado nacional, que nos últimos 50 anos tem apoiado a pós-graduação e a pesquisa acadêmica. Ele ressalta que a complementaridade entre os apoios federal e estadual tem sido fundamental. "O estado de São Paulo responde por mais da metade dessa produção, graças ao apoio continuado do contribuinte paulista a três excelentes universidades estaduais, a USP, a Unicamp e a Unesp, a 20 institutos de pesquisa estaduais e à FAPESP, ao lado de expressivo apoio por agências federais e de atividades de instituições de pesquisa federais no estado", diz. •
O POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA POLÍTICAS PUBLICAS
A metrópole começa a respirar Controle da emissão de poluentes poupa vidas em São Paulo
pesar do aumento de 60% na frota de veículos em 20 anos, os níveis de poluição por monóxido de carbono, hidrocarbonetos e oxido de nitrogênio na Região Metropolitana de São Paulo reduziram-se significativamente. A melhora da qualidade do ar decorre da migração das indústrias e da expansão do setor de serviços. Mas é também resultado do Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores (Proconve) que, desde 1986, estabelece limites máximos para emissão de gases poluentes. As novas tecnologias incorporadas pelas montadoras reduziram as emissões de poluentes em mais de 90% nos automóveis e em 80% nos caminhões. Isso foi possível por meio da troca dos carburadores por injetores que controlam eletronicamente a alimentação de combustível, melhorando a combustão e o consumo, bem como a implantação de sistemas de controle de emissões, como o conversor catalítico. Esses investimentos, além de impulsionar o desenvolvimento tecnológico da indústria automotiva, retiraram da atmosfera partículas que propiciam o desenvolvimento de doenças como infarto do miocárdio, derrame, bronquite, asma e enfisema pulmonar. Os efeitos da redução da poluição sobre a saúde da
Melhor qualidade do ar, apesar do aumento de 60% na frota de veículos população são impressionantes. O Laboratório de Poluição Atmosférica Experimental (LPAE), da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), avaliou o impacto dessas medidas na Região Metropolitana de São Paulo nos últimos dez anos e concluiu que foram poupadas 15 mil vidas, conforme afirma Paulo Saldiva, pesquisador do LPAE. O custo social dessas mortes teria sido de US$ 1,5 bilhão. O ganho em saúde deveria ser o principal argumento para justificar os investimentos em novas tecnologias. "Para construir uma usina hidrelétrica, são exigidos estudos de impacto ambiental. O mesmo não ocorre quando as ações resultam em poluição do ar", afirma Saldiva. São Paulo, ele exemplifica, licencia 20 mil novos veículos por mês. "A cada três meses, esses veículos produzem um volume de emissões equivalente ao de uma termelétrica a gás, que é altamente poluidora."
Novas metas - O Proconve completou 20 anos com sucesso, mas agora tem que estabelecer novas metas para atender os novos padrões preconizados pela Organização Mundial da Saúde (OMS). A OMS, ele exemplifica, está propondo um limite máximo de 20 micrômetros (milionésima parte do metro) para as partículas inaláveis finas, provenientes das emissões de diesel. "São Paulo tem partículas com 40 micrômetros", ele afirma. Esta diferença, de acordo com a pesquisa da USP, resulta em nove mortes por dia e num custo social de US$ 300 milhões por ano. No caso das partículas emitidas pelo diesel, os maiores vilões da história são os velhos ônibus e caminhões - a frota tem uma idade média de 15 anos - que ainda circulam sem utilizar filtros e catalisadores adequados. A solução está na inspeção obrigatória de veículos, medida adotada apenas no estado do Rio de Janeiro. "Já existe tecnologia para isso", sublinha Saldiva. • PESQUISA FAPESP 126 ■ AGOSTO DE 2006 ■ 29
POLÍTICA CIENTíFICA
E TECNOLÓGICA
INTERCÂMBIO
Procuram-se alunos o Brasil entra
no mapa das universidades Harvard e Yale, que recrutam estudantes no país
Universidade Harvard, com 370 anos de existência e um legado de 40 prêmios Nobel, ocupa o 1° lugar no ranking das melhores universidades do mundo feito pelo jornal britânico The Times. A Universidade Yale, 305 anos e 19 prêmios Nobel, está em 8° lugar no mesmo ranking. Pois estas duas instituições norte-americanas estão interessadas em recrutar alunos brasileiros e em expandir sua influência acadêmica no país. Primeiro foi Yale, que em junho enviou ao Brasil um de seus diretores de assuntos internacionais, o moçambicano João Aleixo, para estabelecer contatos com instituições nacionais e iniciar a organização da Yale Week, evento que trará ao país no ano que vem os diretores de Yale encarregados da admissão de alunos de graduação e de pós-graduação. "Queremos os melhores estudantes do mundo e o Brasil, como a China e a Índia, é um dos nossos focos", disse Aleixo. A investida faz parte da estratégia, traçada no terceiro centenário de Yale, de torná-Ia uma "universidade global". Agora é a vez de Harvard, que a partir de agosto põe em funcionamento um escritório em São Paulo, o 43° da instituição no exterior e o 2° da América do Sul (o primeiro funciona em Santiago, no Chile). A meta de Harvard é mais ambiciosa e articulada. O escritório, dirigido pelo executivo Iason Dyett, foi instalado na avenida Paulista e irá servir como ponto de atração de estudantes brasileiros e também como base de 30 • AGOSTO DE 2006
• PESQUISA FAPESP 126
apoio para pesquisas e atividades de professores e alunos de Harvard no Brasil. As iniciativas são uma tentativa de ampliar a presença, ainda modesta, de brasileiros nos quadros das duas instituições. "O interesse dessas universidades é bastante positivo. É ínfimo o número de brasileiros que fazem graduação no exterior e mesmo na pós-graduação o intercâmbio é muito menor do que em outros países das dimensões do Brasil", diz o ex-ministro da Educação Paulo Renato Souza. "A educação superior no país ainda é muito fechada para o exterior. Isso fazia sentido quando a estratégia era criar um sistema de pósgraduação forte, mas já temos isso hoje", afirma Souza. O presidente da FAPESP, Carlos Vogt, destaca a questão mercadológica presente neste tipo dezecrutamento. "É uma estrafégia de expansão de mercado acadêrnido, bem na linha do perfil dessas instituições", afirma. Harvard abriga atualmente 64 estudantes brasileiros. O número de chineses na instituição é cinco vezes maior. Em Yale, o quadro se repete: há 35 brasileiros diante de 307 chineses. "O Brasil é o sexto maior país do mundo, mas está sub-representado em Yale", afirmou K. David Iackson, diretor de estudos de graduação de português em Yale. "Na América Latina, que às vezes é vista como um bloco, o Brasil não tem o peso que merece, mas tende a ganhar ênfase e destaque por seu tamanho e importância", disse Iason Dyett, diretor do escritório de Harvard, ao jornal Fo-
lha de s. Paulo. Não é intenção das duas instituições criar cursos no Brasil. Em reuniões realizadas na Universidade de São Paulo
(USP), João Aleixo, diretor de Yale, discutiu a possibilidade de professores norte-americanos passarem temporadas e participarem de eventos no Brasil. Ambas as instituições criarão formas de recrutar estudantes de graduação e pósgraduação e prometem bolsas para alunos que não possam pagar - a anualidade de um curso de graduação em Harvard não sai por menos do que US$ 45 mil (o equivalente a R$ 100 mil). Em Yale, a média é de US$ 40 mil (o equivalente a R$ 88 mil). "Ainda não há número definido de bolsas, mas elas serão anuais, nas áreas de educação, saúde pública e governo. Quem conseguir entrar não deixará de ir por falta de dinheiro", afirmou Dyett. O escritório ajudará a implementar um novo programa de bolsas de estudo e de auxílio à pesquisa que permitirá à Harvard recrutar estudantes brasileiros para a graduação assim como para os programas de pós-graduação da School of Education, School of Public Health e Kennedy School of Government, independentemente da condição financeira do aluno, segundo Dyett. Doação - A instalação do escritório de Harvard em São Paulo é o desdobramento de uma parceria que começou em 1999, graças a uma doação feita ao Centro David Rockefeller para Estudos Latino-Americanos de Harvard pelo empresário Jorge Paulo Lemann, um dos donos da cervejaria Ambev e das Lojas Americanas, graduado em 1961 na instituição. Doações desse tipo, ainda raras no Brasil, são corriqueiras nas universidades norte-americanas. Ex-alunos que enriquecem freqüentemente deixam parte de sua fortuna para a univer-
Formando em Harvard: doação de empresário brasileiro deu origem a programa de bolsas de estudo
sidade que os formou. Graças à doação de Lernann, o centro já recebeu dezenas de bolsistas e professores visitantes do Brasil. No primeiro semestre de 2005, o centro patrocinou o Semestre Brasileiro de Harvard, com seminários, workshops e conferências. "O apoio de Lemann foi fundamental para colocar o Brasil no mapa mental de Harvard", definiu Iohn Coatsworth, diretor do Centro David Rockefeller. Agora uma nova doação de US$ 5 milhões feita por Lemann viabilizou a instalação do escritório em São Paulo, além de novas bolsas para estudantes brasileiros em Harvard e estudantes de Harvard no Brasil nas áreas de educação, saúde e administração pública. No ano passado, 19 alunos de Harvard receberam bolsas para estudar e participar de projetos de pesquisa no Brasil. Entre eles havia desde um estudante de física desenvolvendo tecnologia de fogões ecológicos numa empresa de Belo Horizonte, a Ecofogão, até estudantes de doutorado pesquisando o impacto de políticas de ação afirmativa nos índices de desigualdade em cidades como Brasília, Curitiba, Salvador e Rio de Janeiro. "Os Estados Unidos, assim como Harvard, nunca prestaram atenção suficiente ao que acontece no Brasil", disse o brasilianista Kenneth Maxwell, professor visitante do Centro David Rockefeller. Maxwell disse que irá trabalhar em parceria com o diretor do escritório paulistano da universidade para "garantir que combinemos tanto iniciativas de Harvard no Brasil como iniciativas do Brasil em Harvard". • FABRÍCIO
MARQUES
PESQUISA FAPESP 126 • AGOSTO DE 2006
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O POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA DIVULGAÇÃO CIENTIFICA
No front
da notícia
José Hamilton Ribeiro ganha prestigiado prêmio de jornalismo da Universidade de Colúmbia
uma carreira em que o acúmulo de experiência cos■Ml tuma afastar os !■ profissionais das I V ruas e empurrá■ los para cargos burocráticos, o jornalista José Hamilton, de 71 anos de idade e mais de 50 de profissão, segue no front da reportagem. Há 25 anos, de microfone em punho, produz matérias especiais para o programa Globo Rural, que vai ao ar às 8h da manhã de domingo na Rede Globo, voltado para os interesses do homem do campo. José Hamilton, que acaba de conquistar o prestigioso prêmio internacional de jornalismo Maria Moors Cabot, concedido pela Universidade de Colúmbia, iniciou a carreira em 1954, como repórter de jornal permaneceu por seis anos na Folha de S. Paulo. Depois ajudou a criar revistas como Quatro Rodas e a extinta Realidade. Foi em Realidade, na segunda metade da década de 1960, que uma experiência dramática marcou a vida de José Hamilton e ganhou espaço na história do jornalismo brasileiro. Correspondente na Guerra do Vietnã, ele perdeu uma perna na explosão de uma mina em 1968 - seu relato em forma de diário sobre a guerra virou livro, O gosto da guerra, relançado recentemente pela Editora Objetiva. Um lado menos notório de sua trajetória é o de divulgador da ciência. Dos V
32 ■ AGOSTO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 126
sete prêmios Esso de Jornalismo que recebeu, quatro foram conferidos a reportagens de informação científica, sobre temas como transplantes de órgãos, ecologia e as mazelas que matam os brasileiros. "Meu interesse pela ciência começou ainda na escola, quando fiz um ensaio para participar de um concurso sobre o solo. Fui conversar com um professor para poder escrever sobre o assunto e ele me deu uma aula sobre nutrição das plantas", lembra José Hamilton. "Fiquei encantado com aquela conversa e o mundo que ela revelava. Repito essa sensação até hoje, sempre que vou entrevistar pesquisadores", afirma. Em 1999, José Hamilton foi agraciado com o Prêmio José Reis de Divulgação Científica, modalidade Jornalismo Científico, concedido pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O recém-conquistado prêmio da Universidade de Colúmbia é concedido há 68 anos a profissionais de imprensa que demonstram compromisso com a liberdade de imprensa e compreensão das relações interamericanas na abordagem de assuntos da América Latina. Além dele, levaram o prêmio o escritor peruano Mario Vargas Llosa, Ginger Thompson, chefe da sucursal da Cidade do México do jornal The New York Times, e Matt Moffett, correspondente da América do Sul do The Wall Street Journal. Cada um receberá uma medalha e
US$ 5 mil, numa cerimônia no mês de outubro. Curiosamente, José Hamilton sequer teve o trabalho de se inscrever. Seu genro, o jornalista Sérgio Dávila, correspondente da Folha de S. Paulo nos Estados Unidos, tomou a iniciativa de apresentar a candidatura do veterano jornalista, ao constatar que sua biografia encaixava-se no escopo do prêmio. Cupinzeiro - Numa homenagem prestada a José Hamilton Ribeiro num recente congresso de jornalismo, o ombudsman da Folha de S. Paulo, Marcelo Beraba, arriscou uma definição do veterano jornalista: "Suas reportagens despertam para o prazer do texto, de acompanhar uma história bem contada e provam que um jornalismo bem-feito não tem que ser chato, pedante ou hermético". Contador de histórias incansável, é o próprio José Hamilton Ribeiro quem garimpa os assuntos que se transformarão nas suas reportagens do Globo Rural. "Uma pauta alimenta a outra. A gente sai para fazer uma reportagem e acaba esbarrando em outros temas interessantes", diz ele, que passa pelo menos 15 dias por mês viajando pelo Brasil. Pesquisadores são personagens freqüentes de suas matérias. Uma das reportagens de que ele mais gostou de fazer, exibida há cerca de três anos, mostrava
O repórter em ação: com Juscelino Kubitschek em Brasília, no campo e no Pantanal
■■
o estranho fenômeno dos cupinzeiros que brilhavam à noite no interior do Mato Grosso do Sul. "Foi difícil conseguir registrar as imagens à noite, porque a luz era fraca e as câmeras não tinham sensibilidade para captá-las", diz José Hamilton. "A matéria foi ao ar, mas estou pensando em repeti-la porque soube que a tecnologia das câmeras vem melhorando. Isso, se não desmaiarem tudo e destruírem os cupinzeiros até lá." O professor Etelvino Bechara, da Universidade de São Paulo, ajudou o repórter a explicar o evento: larvas de vaga-lumes instalavam-se nos cupinzeiros e produziam o efeito luminoso quando capturavam para comer cupins em revoada. Em outra reportagem memorável, mergulhou num rio do Pantanal Matogrossense para mostrar como a pesca seletiva de espécies como o dourado (Salminus brasiliensis), o piraputanga (Brycon hilarii) e o curimbatá (Prochilodus lineatus) estavam afetando os ciclos
vitais dessas espécies, um resultado da pesca abusiva. O fenômeno foi revelado por pesquisas como a da jovem bióloga Izabel Corrêa Boock Garcia, do Programa de Pós-Graduação em Ecologia e Conservação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). "Alma humana" - Comparando dados das décadas de 1970 a 1990 e os anos de 2000 a 2005, Izabel constatou que o dourado se reproduz atualmente com tamanho 40% menor. Já o curimbatá teve perda de 18,5%. O efeito seria uma tentativa dessas espécies de repor mais rapidamente os cardumes desfalcados pela pesca. "O Globo Rural não é um programa agrotécnico. Ele cobre o mundo de quem vive na roça, mas sua dimensão é a da alma humana", diz José Hamilton. Anos atrás, José Hamilton Ribeiro foi convidado para candidatar-se à presidência da Associação Brasileira de Jornalismo Científico, que passava por um momento de dificuldade, com pou-
cos sócios e risco de extinção. Sua passagem de dois anos pelo comando da entidade foi marcado pela organização do 6o Congresso Brasileiro de Jornalismo Científico, realizado em Florianópolis em 2000. "Acho que cumpri minha missão. Quando terminou meu mandato, surgiram dois postulantes para o cargo, num sinal de vitalidade da associação", diz. O jornalista transportou sua vivência no mundo rural para livros de ficção, como Pantanal, Amor baguá e Vingança do índio cavaleiro (1997), e escreveu outros calcados em sua experiência de repórter, como Gota de sol (1992), sobre a trajetória da laranja na agricultura, e Senhor-Jequitibá (1979), no qual estabelece um diálogo com o jequitibá-rosa que ornava o Paço Municipal de Campinas. Em breve lançará dois títulos: uma coletânea de reportagens e um livro sobre as 260 maiores modas de música caipira dos últimos tempos. • FABRICIO MARQUES PESQUISA FAPESP 126 ■ AGOSTO DE 2006 ■ 33
Laboratório
Mundo
Aranhas que voam Pesquisadores ingleses descobriram como as aranhas, mesmo sem asas, voam - ou melhor, viajam pelo ar. Elas apenas se aproveitam do que melhor sabem fazer: tecer fios de seda. Com uns poucos miligramas, aranhas como a Erigone atra escalam uma folha de grama, posicionam a parte posterior do corpo para o alto e lançam um fio de seda. A brisa a transporta por alguns metros e, às vezes, centenas de quilômetros, explicando como colonizam ilhas oceânicas. Tá se
Menos nicotina, maior adesão Há muita fumaça em torno do adjetivo light que qualifica os cigarros com teor de alcatrão e nicotina inferior ao dos cigarros comuns. Estudos recentes derrubaram o mito de que os cigarros light fariam menos mal à saúde que os cigarros normais. Agora uma pesquisa com 12 mil fumantes norteamericanos mostra que os consumidores de cigarros light são menos propensos a abandonar o hábito das tragadas diárias: a probabilidade de largar o cigarro é 50% menor entre os fumantes de cigarros light que entre os consumidores de cigarros comuns. Em geral quem acende um cigarro light atrás do outro ainda crê que o fu-
conhecia essa aplicação do fio de seda. Mas não se conseguia explicar como ocorria. A equipe de Dave Bohan, do Rothamsted Research, na Inglaterra, viu que o problema era o modelo matemático, que tratava o fio de seda como sendo rígido. Revendo as equações, Bohan criou um modelo que considera o fio maleável, capaz de se adequar às correntes de ar {Biology Letters). Bohan pretende testar seu modelo levando algumas aranhas para um túnel de vento. •
mo com menos alcatrão e nicotina não é tão nocivo à saúde. "Ainda há muita confusão a respeito da palavra lighte a indústria se aproveita disso", afirma Hilary Tindle, da Universidade de Pittsburgh, autora do estudo, publicado no American Journal of Public Health. •
y 'IjpH
Pronta para decolar: aranha Erigone lança fio de seda ao ar
■ Olho vivo nas estradas Na próxima vez em que for viajar, antes de entrar no carro pergunte ao motorista se no último ano ele dirigiu alguma vez enquanto se sentia sonolento. Dependendo da resposta, mude a data da via-
Imprudência: motoristas sequem viagem apesar do sono
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gem ou assuma o volante. Estudo conduzido pela equipe de Emmanuel Lagarde e Mireille Chiron, do Instituto Nacional da Saúde e da Pesquisa Médica da França, com 13.299 motoristas franceses indica que o condutor do veículo reconhece com bastante precisão se já dirigiu com sono. O trabalho, publicado no British Medicai Journal, também mostra que, apesar da sonolência, em geral os motoristas não agem como deveriam: em vez de encostar o carro para uma breve caminhada ou um cochilo de alguns minutos, eles optam por seguir viagem. A razão da insistência é que subestimam o efeito do sono sobre a capacidade de continuar dirigindo ou superestimam sua própria habilidade de resistir ao sono. A conseqüência
não podia ser outra. Os entrevistados que afirmaram ter dirigido com sono alguma vez no ano anterior corriam risco maior de sofrer um acidente grave na estrada. A probabilidade de acidente aumentou de acordo com a freqüência que os motoristas disseram ter dirigido com sono - esse índice variou de raramente a uma vez por mês ou mais do que isso. De acordo com os pesquisadores, cerca de 20% da população estudada dirige com sono. Um estudo de 2005 indica que nos Estados Unidos essa proporção é de seis em cada dez motoristas. •
■ O odor que os insetos odeiam Na praia ou na fazenda os pernilongos sempre escolhem alguém para fornecer seu suprimento diário de sangue, enquanto as outras pessoas escapam incólumes de suas picadas. Os pesquisadores acreditavam que as vítimas preferidas dos pernilongos exalavam em seu
odor natural algum composto químico que atraía os insetos. Em um seminário no início de julho na Royal Society, em Londres, uma equipe da Universidade de Aberdeen, na Escócia, e da Rothamsted Research que havia identificado moléculas do odor humano que atraem insetos agora isolou componentes que os repelem - o grupo já entrou com pedido de patente dessas moléculas, pois planeja desenvolver repelentes. "As pessoas que não são picadas por pernilongos produzem em seu odor substâncias químicas que não são atraentes para os insetos e mascaram o cheiro daquelas que os atraem", explicou John Pickett, coordenador da pesquisa. Pickett identificou as moléculas do odor humano atraentes para os insetos usando duas técnicas a cromatografia, que permite separar os componentes de um gás, e a eletroantenografia, que registra sinais elétricos na antena dos insetos. Os pesquisadores só revelarão os nomes dos componentes após a publicação em periódico científico. •
■ Vida mais longa na Europa A expectativa de vida ao nascer aumentou nos 14 países da União Européia entre 1995 e 2003. Segundo relatório recente da Unidade de Monitoramento de Saúde da Europa (EHEMU), nesse período os homens ganharam aproximadamente três meses a mais de vida a cada ano e as mulheres, dois meses. Itália e França são hoje os países em que as mulheres vivem mais - em geral pouco mais de 83 anos. Já a expectativa de vida masculina é
maior na Suécia - ali os homens nascidos no último ano deverão, em média, completar 78 anos de idade. O país da Europa com menor longevidade é Portugal, onde as mulheres costumam chegar aos 80 anos, enquanto os portugueses
morrem mais cedo, com cerca de 74. "Atualmente a questão crucial é conhecer se as pessoas vivem esses anos a mais com boa saúde", afirma Carol Jagger, da Universidade de Leicester, na Inglaterra, uma das coordenadoras da EHEMU. •
Pontos próximos: acordes agradáveis
A geometria da música Uma nova forma de visualizar a progressão dos acordes pode ajudar a compreender por que uma fuga de Bach pode soar tão bem quanto acordes de rock. Dmitri Tymoczko, da Universidade Princeton, Estados Unidos, criou mapas musicais em que cada acorde corresponde a um ponto e cada nota do acorde a uma dimensão do espaço (Science). Segundo Tymoczko, o mapa deve ajudar na compreensão de como evoluiu a música ocidental, que se tornou mais complexa. As obras do barroco, por exem-
plo, tinham harmonias mais simples e acordes com menos notas que as composições modernas. O mapa é feito de modo que pontos representando as notas dó e sol de um acorde fiquem próximos dos que indicam notas meio tom mais altas. Quanto menor a distância entre os pontos dos acordes, mais agradável a transição. A distância entre os pontos dos acordes é pequena em intervalos musicais comuns no Ocidente e também pode ser curta em intervalos menos convencionais da música moderna. •
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Maria-leque, maria-lecre ou pavãozinho
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Anta, tapir ou batuvira
■ Remédios mais baratos Quando chegaram ao mercado há seis anos os medicamentos genéricos criaram a expectativa de diminuir o preço dos remédios. Na tentativa de verificar se essa promessa se concretizou, as pesquisadoras Paola Zuchi e Fabíola Vieira, do Centro Paulista de Economia da Saúde da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), acompanharam o preço de 135 medicamentos genéricos e seus respectivos medicamentos de referência - os remédios de marca que os originaram - entre janeiro de 2000 e junho de 2004. Elas viram que, em geral, os genéricos chegam às farmácias custando 40% menos que os de marca, diferença que aumentou com o tempo: alguns genéricos custavam 47% menos que o medicamento de referência quatro anos depois de seu lançamento. Apesar do barateamento dos genéricos, a concorrência que estimularam ainda não foi suficiente para forçar a queda de preço dos medicamentos de marca, escreveram as autoras em um
Baiacu ou sapo-do-mar
artigo publicado na Revista de Saúde Pública de julho. Dois fatos explicam o resultado: os genéricos ainda ocupam fração pequena do mercado (5%) e os fabricantes de medicamentos de referência também passaram a produzir versões genéricas de seus próprios remédios. •
■ Rastreando a Cannabis Isótopos estáveis de dois elementos químicos - carbono e nitrogênio - encontrados nas plantas podem indicar a origem geográfica de vários produtos agrícolas. Um deles é a maconha (Cannabis sativa),
cuja região de cultivo pode ser atestada com bom grau de confiabilidade por essa técnica. Com esse método, pesquisadores do Centro de Energia Nuclear na Agricultura da USP e de outros três institutos determinaram a proveniência de 76 amostras de maconha apreendidas na ei-
A medicina remota do Piauí Os seres humanos que viveram há 8 mil anos no Nordeste do país já conheciam as propriedades medicinais de algumas plantas, que usavam para tratar problemas de saúde causados por parasitas intestinais. A análise de cinco amostras de fezes humanas fossilizadas achadas na Toca do Boqueirão da Pedra Furada - um dos 900 sítios arqueológicos do Parque Nacional Serra da Capivara, no Piauí - indica que os antigos habitantes da região usavam plantas de pelo menos três gêneros - Anacardium, Borreria e
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Terminalia - para contornar diarréias e outros distúrbios do trato digestivo. Com idade estimada entre 7 mil e 8.500 anos, os coprólitos, nome técnico dos excrementos petrificados, continham pólen de plantas desses gêneros, entre elas o caju, e são uma possível evidência das práticas medicinais dos primeiros ocupantes do Nordeste. Como há vestígios arqueológicos de que essa população de Pedra Fu Caju: combate a disenteria há 8 mil anos
rada estava infestada de vermes intestinais, a tese sobre o uso teraupêutico dos vegetais contra disenterias ganha mais força, segundo os autores do estudo, Sérgio Chaves, da Fiocruz, do Rio, e Karl Reinhard, da Universidade de NebraskaLincoln, Estados Unidos. •
Todos os nomes dos bichos
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Acure, antaxuré, batuvira, pororoca. Diferentes fenômenos da natureza? Nada disso. São nomes populares que um mesmo animal, a anta (Tapirus terrestris), recebe nas diferentes regiões do Brasil. Não é um caso exclusivo. Investigando cerca
Preguiça, aígue ou cabeluda
possuíam cinco. Mas isso não lhes garantia renda maior nem mais comida. Os que usavam fundo de pasto consumiam mais carne por ano: 53 quilos por pessoa, ante 43 quilos. É que eles em geral têm mais cabritos, animal resistente à seca. "Nas condições locais, em que já existe a cultura de uso coletivo da terra, o fundo de pasto foi mais eficiente", diz Toni, que apresentou os resultados este ano em Nova Délhi, índia. •
dade de São Paulo. De acordo com as análises, a maior parte da droga foi cultivada em área úmida, provavelmente o Mato Grosso do Sul. A quantidade de Cannabis oriunda do polígono da maconha, no Nordeste, foi pequena, segundo artigo da Forensic Science International •
■ Quando a tradição funciona No sertão nordestino, onde chove pouco e o sol castiga as plantações o ano todo, é comum os pequenos sitiantes soltarem seus animais - cabras, ovelhas e umas poucas vacas - para pastarem em terrenos coletivos ao lado de suas propriedades. Há quem ache atrasado e economicamente inviável esse modelo de produção conhecido como fundo de pasto, comum em Pernambuco, Bahia, Ceará e Paraíba. O agrônomo Fabiano Toni, da Universidade de Brasília, analisou esse sistema e constatou que o fundo de pasto tem lá suas vantagens. Em um estudo com Evandro Holanda Júnior, da Embrapa, e Evanildo Lima, da Comis-
de 6 mil documentos, como livros e artigos científicos datados desde o século 16, os zoólogos Nelson Papavero e Dante Teixeira identificaram aproximadamente 38 mil nomes populares pelos quais são conhecidos entre 6 mil e 10 mil espécies de animais. Com essa coleção, Papavero, do Museu de Zoologia da USP, e Teixeira, do Museu Nacional da UFRJ, estão produ-
■ Ansiedade na periferia
são Pastoral da Terra de Senhor do Bonfim, na Bahia, ele entrevistou 549 pequenos proprietários de doze municípios do semi-árido baiano: 441 criavam animais no sistema de fundo de pasto e 108 em propriedades privadas. Quem usava propriedade privada tinha área de pastagem maior - em média 10 hectares, ante 4 - e um boi a mais que os outros criadores, que
Pais e professores deveriam prestar mais atenção ao comportamento das crianças e dos adolescentes, em especial nas regiões de baixa renda. O garoto que vive brigando ou a adolescente retraída demais podem ter mais do que um problema de indisciplina ou timidez. Podem precisar de atendimento psiquiátrico ou psicológico. Cristiane Silvestre de Paula e Isabel Bordin, da Unifesp, avaliaram 479 meninos e meninas com idade entre 6 e 17 anos moradores do Embu, na Grande São
zindo um novo dicionário de nomes comuns dos animais que deve ser composto por dois volumes, com quase 2 mil páginas cada um. Essa compilação atualizará a principal referência nessa área: o Dicionário de Animais do Brasil, de Rodolpho von Ihering, publicado em 1940, com 6 mil verbetes. O primeiro dos dois volumes deve ser publicado no próximo ano. •
Paulo, uma das cidades mais violentas do país. Resultado: 25% das crianças e dos adolescentes apresentavam sintomas de ansiedade, depressão ou outros problemas de saúde mental - proporção elevada, mas semelhante à de outras regiões de baixa renda da América Latina. Em 7,3% dos casos os sinais eram intensos o suficiente para afetar a vida na escola, a relação com os familiares ou outras atividades. Projetada para a população de todo o Embu, essa proporção corresponde a 3.830 garotos e meninas que necessitariam de tratamento psicológico ou psiquiátrico. Como previsto, os problemas de saúde mental foram mais freqüentes entre as meninas, com predomínio de sinais de ansiedade e depressão. Inesperadamente, o nível de agressividade entre elas foi tão alto quanto entre os meninos. No Embu a rede pública de saúde com atendimento em saúde mental levaria sete anos para atender esses casos. "Essa situação provavelmente é semelhante à da periferia dos grandes centros brasileiros", diz Cristiane. •
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Cientistas esquadrinham o córtex em busca dos sinais de emoção, sentimentos e julgamento moral
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moral e a faculdade humana de fazer julgamentos morais ou emitir juízos de valor historicamente têm sido consideradas temas próprios dos filósofos, a ponto de terem constituído desde a Ética a Nicômaco, de Aristóteles, um campo quase autônomo da filosofia. Foi mais ou menos isso que um jovem neurocientista brasileiro ouviu dos revisores de uma respeitada publicação científica internacional quando tentou emplacar seu primeiro artigo com resultados sugestivos, constatados por ressonância magnética funcional, de que os córtex frontopolar e temporal anterior do cérebro eram ativados enquanto voluntários saudáveis desenvolviam determinada tarefa que envolvia julgamento moral. Recomendaram-lhe que melhor seria deixar a neurociência fora desses complicados meandros da ética para os quais só os filósofos demonstraram sempre a mais inequívoca aptidão. Àquela altura beirando os 30 anos e confiante no que fazia, o jovem pesquisador não seguiu, claro, a sugestão. Em vez disso, reencaminhou o artigo cuja autoria dividia com um colega brasileiro e um norte-americano para o respeitado periódico Arquivos de Neuropsiquiatria, editado no Brasil, mas com circulação internacional garantida através da SciELO, a Scientific Electronic Library Online. E foi assim que as conclusões do estudo conduzido por Jorge Moll - é este o nome de nosso personagem -, apresentadas pioneiramente em 2000 na Sociedade Americana de Neurociência, apareceram nos Arquivos em um artigo assinado por ele, mais Paul J. Eslinger e Ricardo de Oliveira-Souza, sob o título "Frontopolar and anterior temporal cortex activation in a moral judgmente task", em julho de 2001. Coincidentemente, a publicação ocorria no mesmo mês em que saía pela revista internacional que ele originalmente procurara o artigo de um grupo da Princeton University liderado pelo filósofo Joshua Greene, sobre o envolvimento direto das emoções nas decisões que implicam grandes dilemas morais. flB I H ^^M 1 H
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A estratégia de Moll de não postergar a publicação do artigo ligado a um tema que sabia que tinha muito appeal, e encaminhá-lo logo para um periódico teoricamente de menor alcance, mostrou-se acertada para inseri-lo formalmente e sem mais delongas na cena internacional de seu campo de pesquisa: em 2000 ele via publicado na Neurology o primeiro trabalho no qual, entre 1997 e 1999, utilizara mais a fundo imagens do cérebro obtidas por meio da ressonância magnética funcional, técnica que, em termos simples e sintéticos, flagra imagens do cérebro em atividade. Vários outros se seguiram em diferentes publicações, como a Neurolmage e The Journal of Neuroscience, até o importante artigo de revisão dos fundamentos neurológicos do julgamento moral," The neural basis ofhuman moral cognition\ assinado por ele e mais Roland Zahn, Ricardo de Oliveira-Souza, Frank Krueger e Jordan Grafman, na Nature Reviews Neuroscience em outubro do ano passado. Cérebro moral - Nesses poucos anos de afirmação consistente de seu trabalho de pesquisador sempre a partir das neuroimagens funcionais, Moll chegou a várias conclusões com grande potencial para produzir polêmicas. Por exemplo, a de que o lobo frontal do cérebro, sede por excelência das funções executivas segundo as mais respeitadas teorias vigentes, e que o manteriam firmemente engajado na solução de problemas difíceis e complexos por meio do raciocínio lógico, está também envolvido nas tarefas mais simples e rotineiras. "E aquilo que nesse lobo pode ser identificado como nosso cérebro moral é na verdade um sensor ativo o tempo inteiro, incansável, envolvido com as escolhas mais comezinhas, como, por exemplo, decidir se vou dormir mais um pouquinho ou não, e não somente com o julgamento de grandes questões, como o lançamento de uma bomba atômica sobre Hiroshima", diz. Aliás, a capacidade de armazenar um grande repertório de situações e percebê-las em suas múltiplas interconexões permitiria a esse cérebro moral, entre outras coisas, antecipar que caminhos tomar muito antes de agir.
Outra conclusão do pesquisador, cujo artigo científico correlato está em fase de publicação, indica que uma mesmíssima área do sistema mesolímbico frontal é ativada quando uma pessoa toma uma decisão visando só sua recompensa financeira ou visando uma recompensa moral ainda que à custa de prejuízo financeiro. No estudo que produziu esse resultado, feito com apoio de imagens funcionais de altíssimo campo e no qual pessoas sadias tinham que tomar decisões reais com ganho ou perda de dinheiro real (até US$ 128), os voluntários recebiam uma lista de organizações filantrópicas de todos os matizes ideológicos, entre as quais estavam algumas em que tanto a organização escolhida quanto o aplicador ganhavam alguma coisa, outras em que só o aplicador ganhava e outras em que, caso aplicasse ali o seu dinheiro, ele perderia o valor correspondente. O exemplo de Moll, hoje com 35 anos e pesquisador vinculado à Unidade de Neurociência Cognitiva e Comportamental da Rede D'Or, instituição privada do Rio de Janeiro - mas no momento baseado nos Estados Unidos, onde faz um pós-doc nos National Institutes of Neurological Disorders and Stroke, ligado aos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) -, é altamente ilustrativo do que vem ocorrendo no país no âmbito dos estudos de neurociência fundados nas tecnologias da neuroimagem, em especial aquelas produzidas pela ressonância magnética funcional. Com auxílio destas imagens que fornecem algumas indicações temporais muito precisas do cérebro em funcionamento, pesquisadores buscam encontrar, entre outros achados, pari passu com seus colegas dos países mais desenvolvidos, a correspondência fisiológica nos neurônios de atos de linguagem, movimentos, julgamentos morais, emoções, sentimentos, comportamentos sociais etc, levados a efeito por pessoas saudáveis. E certamente têm contribuído para fazer avançar o conhecimento atual sobre o cérebro, ao mesmo tempo que indiretamente propõem novas vias para as abordagens clínicas de importantes doenças neurológicas. No entanto, em terreno tão vasto e pantanoso quanto é a expressividade do
propriamente humano em cada homem ou mulher, há críticas, óbvio, ao que seriam os estreitos limites e o caráter bastante relativo das informações e conclusões que visam elucidá-la baseadas nas neuroimagens funcionais. E essas críticas começam no próprio meio dos neurocientistas para só depois estender-se a estudiosos das humanidades de variados matizes. "Essa maneira elegante, porque não invasiva, de tentar flagrar o funcionamento do cérebro tem alguns problemas, e tudo começa porque ela se passa ao modo de blocos de castelos", diz o neurologista Fernando Cendes, chefe do Laboratório de Neuroimagem da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). "Há sempre uma condição on e uma condição off", prossegue Cendes, "que são investigadas com o indivíduo dentro da máquina de ressonância magnética, e depois subtrai-se uma situação da outra para verificar o que a mais foi ativado no cérebro na situação on." Ou seja, a tarefa de mexer os dedos das mãos seria uma situação on e, em seguida, ficar parado, seria a situação off. "Ora, quanto mais fino e complexo o que se quer investigar, por exemplo, o processo cognitivo ou o processo do pensamento, tanto mais difícil é propor a condição off. Não é possível propor seriamente a um voluntário, por exemplo, que ele não pense", comenta. Um outro problema é que normalmente o voluntário dentro do tubo de ressonância magnética não pode falar (ele responde usualmente sim ou não manejando um joystick) e quase não pode se mover para além dos limitados movimentos que é instruído a fazer. Atividade redundante - Cendes, um estudioso das epilepsias, observa também que há muita redundância na atividade cerebral, daí que determinado processo, o cognitivo, por exemplo, ativa áreas de modo muito semelhante a um outro, como o da atenção. E é precisamente por conta dessa redundância que, em determinadas circunstâncias patológicas, pode-se tirar grandes áreas do lobo frontal sem muitas seqüelas, porque outra área assume as funções ligadas àquelas que foram perdidas. PESQUISA FAPESP126 ■ AGOSTO DE 2006 • 41
"Constatar aquilo que é ativado durante a execução de uma tarefa está ok, mas não se pode assegurar que é só e exclusivamente aquela área que está ativada nesse momento", observa. Por isso há que se tomar todos os estudos baseados em ressonância funcional com certa cautela, porque, diz, ante o cérebro "ainda se está frente a um quebra-cabeça cheio de desafios, no qual nada é tão simples quanto pode parecer." De qualquer sorte, as pesquisas baseadas em imagens funcionais têm, sim, vantagens, ele acrescenta. "São interessantes, importantes e têm acrescentado conhecimento ao funcionamento do cérebro." Atlas cerebral - Uma contribuição nesse sentido vem sendo oferecida por um grupo de pesquisadores originários de diferentes instituições e agora reunidos no Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein (IIEP), sob a direção de Carlos Alberto Moreira Filho. Vale lembrar aqui que o IIEP, vinculado ao Hospital Israelita Albert Einstein, é o parceiro privado de duas universidades estaduais e uma federal sediadas no estado - a Universidade de São Paulo (USP), a Unicamp e a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) - no programa CinAPCe, sigla que, fazendo uma alusão às sinapses cerebrais, nomeia a Cooperação Insterinstitucional de Apoio à Pesquisa sobre o Cérebro. Essa iniciativa, que tem o suporte da FAPESP e deve entrar efetivamente em funcionamento até o começo de 2007 (veja Pesquisa FAPESP, edição 124), pode impulsionar os avanços nessa área de pesquisa que nos últimos anos vem claramente se constituindo com uma certa força no país. A essa altura o IIEP, por conta de sua participação no CinAPCe, já adquiriu com recursos próprios um dos quatro equipamentos de ressonância magnética de alto campo com que essa rede de pesquisa do cérebro, cujo primeiro foco de investigação são as epilepsias, vai contar. São aparelhos com campo magnético de 3 Teslas, que permitem obter imagens cerebrais com definição e resolução espacial muito maiores do que as oferecidas pelas máquinas hoje em uso, de até 1,5 Tesla, e em menos tempo do que os pacientes teriam de gastar nas máquinas atuais. 42 ■ AGOSTO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 126
Mas, antes mesmo que a nova máquina seja instalada, o IIEP vem trabalhando com os equipamentos disponíveis em uma série de projetos de pesquisa que se valem tanto da ressonância funcional quanto de sua combinação com outras técnicas de obtenção de imagens cerebrais. E, em alguns casos, há até uma estreita articulação do interesse da pesquisa com objetivos clínicos imediatos. Um exemplo é a obtenção de imagens que permitem reduzir o risco de atingir áreas ligadas a funções nobres durante uma cirurgia para a ressecção de tumores cerebrais. "Em breve as equipes do IIEP e do Hospital Albert Einstein iniciarão um protocolo em que a imagem da ressonância funcional será integrada a com um navegador no campo cirúrgico, permitindo assim a realização de cirurgias de altíssima precisão", diz Moreira. O sonho é livre e ilimitado, mas, para ficar em terreno mais concreto, um dos projetos relevantes do IIEP baseados em ressonância funcional é a montagem de um banco de dados visando à criação de uma espécie de atlas cerebral
Saber fundado na doença A pesquisa com neuroimagens tomou corpo no começo dos anos 1990. Mas quando se inclui entre as tecnologias fundamentais para o avanço recente do conhecimento do cérebro a tomografia por emissão de pósitrons (PET) pode-se recuar seu marco inicial para a década anterior. Vale a pena, no entanto, ir ainda mais longe, chegar ali pelos anos 20 do século passado, para perceber como na verdade os estudos do cérebro saudável, com o suporte de técnicas como a ressonância magnética funcional, se enraízam na pesquisa de lesões e, especialmente, no conhecimento gerado durante as cirurgias que tentavam domar formas mais ou menos graves de epilepsia.
da população que procura o hospital, uma base normativa funcional que permita um sem-número de estudos comparativos da condição cerebral saudável com condições patológicas. Para começar esse banco, que deve ser compatível com os de vários países, até o momento 50 voluntários saudáveis, homens e mulheres com idades entre 18 e 54 anos, previamente submetidos a uma bateria de questionários psicológicos, se dispuseram a ficar por quase uma hora no equipamento de ressonância magnética realizando tarefas simples capazes de ativar áreas do cérebro ligadas a atividades motora, visual, de fluência verbal, sensibilidade táctil e linguagem específica (rimas, semântica, entre outras). Dado que cada tarefa realizada no aparelho gera quase 3 mil imagens, como explicam o coordenador desse banco de imagens, o radiologista Edson Amaro Júnior, professor da Faculdade de Medicina da USP e pesquisador do IIEP, e a biomédica Maria Ângela Bar-
reiros, que trabalha com ele, com os 50 voluntários que se apresentaram até aqui o banco já tem um total de 750 mil imagens obtidas por ressonância magnética funcional, que permitiram produzir 720 mapas de função cerebral. sso significa um material abundante para ser trabalhado na chamada pós-imagem, fase em que se refinam com ferramentas computacionais as informações muito borradas, digamos assim, captadas no equipamento de ressonância magnética e baseadas na diferença de oxigenação das áreas cerebrais sob exame antes de uma tarefa e durante ela - aquela história do offe do on. Nesse âmbito há um trabalho importante desenvolvido no IIEP sob a coordenação da cientista da computação Griselda Jara Garrido, que em diferentes projetos atua no desenvolvimento de metodologias que permitam a interpretação mais precisa das imagens cerebrais, para as articulações entre bancos de dados e outras fontes de informação.
Um desses projetos é a montagem de um laboratório de neuroinformática com uma estratégia de gerenciamento de conhecimento baseada na web e na computação de alta performance. "Estamos aproveitando a disponibilidade de ferramentas free (de uso livre) para montar um laboratório que, até o final de 2007, terá um cluster de 8 nós para processamento paralelo de imagens", diz Griselda. Em termos simples, ela explica que todo o esforço da parte em que trabalha destina-se a explicitar o que diz a imagem gerada pelo equipamento de ressonância para que esse dados possa ser interpretado pelos neurologistas. Digamos que se trata de um meio de campo fundamental entre o radiologista e o neurologista. A jovem pesquisadora participa com colegas da Universidade de Western Austrália de um estudo que demonstra que há efeitos estruturais sensíveis no cérebro decorrentes do uso continuado de cigarro, trabalho enviado para publicação na Neurobiology ofAging. Com o suporte da bolsa de jovem pesquisador concedida pela FAPESP, é também uma
Juando ia para uma cirurgia de epilepsia o paciente tinha o cérebro estimulado por uma corrente elétrica de baixa amperagem porque era preciso verificar qual área estava ligada à fala, ao movimento etc. Era uma situação em que esse estímulo era absolutamente necessário, já que o cirurgião ia retirar uma grande área do cérebro e procurava preservar suas funções mais nobres", diz Fernando Cendes, chefe do Laboratório de Neurologia da Unicamp e um respeitado especialista em epilepsia. Décadas de experiências com essa circunstância complicada terminaram produzindo um mapeamento cerebral extremamente confiável. E ainda hoje, numa cirurgia, ou numa colocação de uma placa de eletrodos, a estimulação elétrica é o meio mais seguro para essa necessária preservação de funções. Uma outra via, mais adiante, que conduziu ao maior conhecimento do cérebro foi a observação das seqüelas de
intarto ou acidente vascular cerebral (AVC, o conhecido derrame) e as correlações estabelecidas entre os déficits funcionais que o paciente apresentava e aquilo que se percebia nas imagens, observa Cendes. O pesquisador não tem dúvida, contudo, que foi a investigação da epilepsia, uma condição que pode ser causada por um número enorme de diferentes fatores, de um AVC a causas genéticas, passando por tumores, a maior responsável pelo avanço da pesquisa de cérebro no Brasil. "E não é só no país. Isso é tradicional no mundo todo: os centros que lidam com epilepsia sempre têm gente muito boa trabalhando também com funções cognitivas, porque pela necessidade clínica vai se esbarrando, no melhor sentido, com o avanço da pesquisa." Fernando Cendes observa que o Brasil é um país avançado, está no estado da arte, como se diz no meio, relati-
vãmente aos grupos de ciru^ epilepsia. "Sem falsa modéstia, temos uma boa inserção em termos internacionais e não devemos nada aos países mais desenvolvidos", diz. As condições tecnocientíficas dos vários grupos de pesquisa de cérebro também são muito boas. Mas, como em quase tudo no país, a contrapartida disso é um enorme despreparo dos médicos no sistema de saúde e problemas dramáticos como a incidência de doenças altamente evitáveis, como a neurocisticercose. "Temos limitações que chegam a ser éticas, do gênero como fazer para usar um equipamento para os estudos, se ele é o mesmo para o diagnóstico dos pacientes? E aí o pesquisador trabalha no fim de semana, à noite." Mesmo assim, o diagnóstico é: a área de neurociência é forte no país e tende a avançar bastante com programas como o CInAPCe.
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0 cérebro em ação As respostas podem variar entre as pessoas
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Brincando com as palavras... Ver se pão e pedra rimam ativa áreas concentradas do córtex (acima à esq.); criar palavras a partir de uma letra qualquer aciona áreas mais dispersas
das autoras de um estudo sobre comportamento anti-social em desenvolvimento na Unidade de Neurociência Cognitiva e Comportamental (UNCC) do Labs-Hospitais D'Or, sob coordenação de Jorge Moll. Griselda observa que os chamados comportamentos anti-sociais só merecem atenção médica e psicológica quando se tornam recorrentes, crônicos, "e causam problemas em múltiplas esferas da vida". E é aí que se aplica a expressão "desordem de comportamento anti-social", ou ASBD. O estudo de que ela participou acompanhou 15 pessoas com ASBD, com um grupo de controle de pessoas saudáveis da mesma faixa etária, gênero e grau de instrução, e valeu-se de um método que permite obter medidas de densidade e volume de substância cinzenta (morfometria baseada em voxel). Claro que as análises por região de interesse, fundamentadas na ressonância funcional, também foram utilizadas. E o que se achou, segundo Griselda, foi que "os resultados corroboraram a hipótese de que uma rede de regiões cerebrais envolvidas nos mecanismos de cognição moral e emoções morais está intimamente relacionada à gênese dos comportamentos 44 ■ AGOSTO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 126
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... e com os movimentos Mexer os dedos das mãos esquerda e direita mobiliza os neurônios de diferentes áreas do córtex cerebral
anti-sociais na personalidade psicopática". Imagens tridimensionais de cérebros mostram que houve ativação coincidente dessas áreas. Instituto do Cérebro do IIEP é na verdade, a despeito de seu ainda curto tempo de vida (foi criado em 2003), sede de vários outros projetos de pesquisa, envolvendo combinações variadas de técnicas de obtenção de imagens cerebrais. Se há uma preocupação em criar uma base normativa referencial de pessoas saudáveis, por outro lado cânceres, mal de Parkinson, Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC) são algumas doenças no foco de pesquisadores do instituto. E se a ressonância funcional é uma ferramenta importante, a ressonância magnética estrutural, o eletroencefalograma, a combinação entre essas técnicas, e coisas novíssimas como diffusion tensor imaging, também têm um grande peso nos esforços do IIEP para ser incluído entre os centros de referência de pesquisa avançada de cérebro no país nos próximos anos. Ainda que São Paulo seja o centro mais avançado dos estudos de cérebro no país e tenha a melhor infra-estrutura para esse tipo de pesquisa -"há mais
ressonância magnética na avenida Paulista e arredores do que no conjunto dos países da América Latina", como diz Fernando Cendes -, núcleos de pesquisa consistentes nesse campo distribuemse por Porto Alegre, Curitiba e Rio de Janeiro, embora a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) não tenha uma só máquina de ressonância magnética apropriada para pesquisa. Mesmo com tamanha limitação, é em laboratórios dessa universidade, mais precisamente no Departamento de Neurobiologia do Instituto de Biofísica, onde é professora adjunta, que Claudia Vargas trabalha com mapas de atividade cerebral, valendo-se da ressonância magnética funcional, de eletroencefalogramas e de estimulação magnética transcraniana. Interessam-lhe muito as pequenas variações de excitabilidade dos neurônios do córtex cerebral, conseguidas aplicando-se um campo magnético breve no escalpo de voluntários. E o que ela quer verificar com isso? Com a aplicação desses pulsos magnéticos no chamado córtex motor primário, região do cérebro que atua no controle dos movimentos corporais, Claudia consegue mapear alterações no nível de atividade cerebral associadas ao movimento de determinados músculos e identificar nesses mapas mudanças
provocadas por problemas como amputações de membros. "Há uma representação dos movimentos dos membros no córtex motor. E se uma pessoa perde a mão, por exemplo, a representação do braço se expande para ocupar aquele espaço que era da mão", explica. Plasticidade neuronal - O que parece extraordinário é que, quando ocorre um transplante de mão, os músculos do doador progressivamente ganham uma representação no córtex motor. Claudia pôde verificar isso trabalhando desde 2002 com um grupo de pesquisa de Lyon, França, coordenado por Ângela Sirigu, que acompanhou os dois transplantes de mão realizados no Hospital Edouard Harriot sob o comando do cirurgião Jean Michel Dubernard. Os resultados obtidos por ressonância funcional por esse grupo de pesquisadores no primeiro paciente transplantado foram publicados em 2001 na Nature Neuroscience. "Fiz vários testes com os pacientes, e o que pensamos é que as reorganizações observadas no córtex cerebral após o transplante são possivelmente derivadas da mudança da atividade elétrica dos neurônios. Essa mudança, por sua vez, ocorre graças à reconexão dos nervos periféricos e ao uso do novo membro, resultados que reforçam a idéia de que existe plasticidade no cérebro adulto", comenta Claudia, depois de informar que o grupo está fechando o artigo sobre essa parte da experiência. No mesmo departamento da UFRJ, a professora adjunta Eliane Volchan vem trabalhando numa linha de pesquisa batizada de regulação da emoção, em que se tenta verificar quando e como conseguimos controlar nossas emoções. De novo, é a ressonância funcional que é a ferramenta básica para os estudos, portanto, cuida-se de verificar a ativação de determinadas áreas no córtex. Nos experimentos que mais recentemente ela realizou em colaboração com Jorge Moll, Letícia de Oliveira, da Universidade Federal Fluminense, e Luiz Pessoa, atualmente na Brown University, Estados Unidos, voluntários dentro do tubo de ressonância magnética desempenhavam a tarefa simplíssima de responder se duas barrinhas brancas sobre fundo
preto na tela do computador tinham a mesma orientação ou não, o mais rapidamente possível. Simultaneamente, ora fotografias neutras, ora fotografias com conteúdo emocional forte (pessoas com o corpo danificado) eram mostradas rapidamente enquanto os voluntários desempenhavam a tarefa das barrinhas, e a instrução era para que cuidassem dessa tarefa, sem se importar com as fotos. Quando a foto aversiva aparecia, os voluntários demoravam mais para identificar a orientação das barras, uma indicação de que a emoção interfere no desempenho da tarefa. Em uma situação de controle, explicou-se que as fotos de mutilação eram resultado do trabalho de maquiagem em cinema. "Verificou-se que a interferência da emoção na realização da tarefa desaparecia quando as pessoas eram informadas de que as fotos aversivas eram fictícias", conta Eliane. Em suas pesquisas Eliane tem trabalhado também com outros parâmetros, com as pessoas sendo experimentadas fora da máquina de ressonância. Indicativos de pressão, batimento cardíaco etc. são usados de forma complementar às imagens. Os estudos com ressonância funcional têm sido feitos, até aqui, sempre com indivíduos saudáveis, no entanto eles parecem poder dizer alguma coisa sobre determinadas doenças também. E é importante ressaltar, ao mesmo tempo, que a primeira base para os estudos com indivíduos saudáveis foi fornecida pela pesquisa das doenças, em especial a epilepsia (veja quadro na página 43). "Quando trabalhamos com a diferença entre julgamentos factuais e julgamentos morais, vimos que duas regiões do lobo temporal, uma anterior e outra posterior, a chamada STS, famosas nos estudos com macacos e relacionadas nos humanos aos estímulos perceptuais complexos, estavam ativadas. Ora, essa região está envolvida de forma hipoativa em doenças como o autismo, em que a pessoa lida com os outros como objeto", pondera Moll. Tudo bem, interações possíveis entre saúde e doença, senso moral e emoção à parte, o que parece improvável é que algum dia os filósofos acreditem que a noção de certo ou errado está fisiologicamente inscrita no cérebro humano. •
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Cérebro e nervos cranianos Leonardo da Vinci (1490 -1500)
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O CIÊNCIA ma equação demonstra que se torna mais difícil a cada ano um candidato a transplante de fígado receber de fato o órgão que poderá prolongar sua vida. Mantido o ritmo atual de atendimento, a linha que representa a lista de espera se distancia mais e mais da que eqüivale ao número de transplantes realizados, de acordo com o modelo matemático elaborado por Eduardo Massad, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), com base na lista de espera de transplantes de fígado do estado de São Paulo, que responde por metade dos transplantes feitos todo ano no país. "É uma fórmula angelicalmente simples", comenta Massad, médico graduado também em física que nos últimos anos se habituou a elaborar equações mais refinadas para explicar o ritmo de progressão de doenças como dengue ou febre amarela. Dessa vez, trabalhando com outro médico da USP, Eleazar Chaib, ele pôs em linguagem matemática o raciocínio: a lista de espera de cada ano é o resultado da soma dos casos antigos, não atendidos no ano anterior, acrescida dos casos novos, correspondentes às pessoas que ingressam na lista. Chega-se ao valor final subtraindo o número de mortes e o de pessoas que passaram pelo transplante. Descrita em um artigo da Transplantation Proceedings de dezembro de
2005, essa fórmula demonstra em um gráfico que a linha correspondente à lista de espera afasta-se em ritmo crescente da que representa o total de transplantes, indicados para quem tem hepatite C, cirrose ou alguns tipos de câncer. Esse fenômeno pode ser explicado historicamente: nos últimos anos há mais pessoas entrando na lista do que recebendo um fígado, um dos maiores órgãos do corpo humano. De 1998 a 2004 o número de transplantes cresceu 1,84 vez, enquanto o de pessoas na lista de espera aumentou 2,73 vezes e o de mortes, 2,09 vezes. Em 2005, das 2 mil pessoas cadastradas no país para receber um fígado, 168 passaram pelo transplante e 608 morreram enquanto aguardavam. "Essas mortes de pessoas que estavam na lista de espera são inaceitáveis", escreveram Massad e Chaib na Transplantation. Segundo eles, a perda de vidas pode ser resultado, inicialmente, da quantidade insuficiente de doadores, que cresce lentamente. Luiz Augusto Pereira, coordenador da Central de Transplantes do Estado de São Paulo, diz que há de fato uma defasagem entre o número de receptores e o de doadores de fígado. "Aumentar o número de doadores é um enorme desafio", comenta. "Atender a todos é impossível." Em uma apresentação em julho na Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo, Jordi Vilardell i Bergadà, consultor do serviço de Coordenação de Transplantes da Espanha, mostrou como seu país conseguiu zerar a lista de espera e começar cada ano apenas com casos novos. Considerada um êxito nes-
A longa espera Chance de receber um fígado transplantado diminui a cada ano CARLOS FIORAVANTI
sa área, a Espanha adotou ações coordenadas, com base em uma legislação favorável à doação de órgãos e uma rede de coordenadores de transplantes que trabalham em estreita colaboração com as equipes médicas. Segundo Vilardell, são igualmente importantes a formação incessante dos profissionais da saúde e a educação contínua da população, ressaltando a doação de órgãos como um gesto solidário e altruísta. Outra possível explicação levantada por Massad e Chaib para a situação brasileira é o subaproveitamento dos centros médicos e das equipes credenciadas para o transplante de fígado. A retirada desse órgão vermelho-vivo de um pessoa com morte cerebral recente e sua instalação em outra, por interferir em quase todas as outras funções do organismo, é considerada um dos procedimentos mais complexos da cirurgia moderna. Seu sucesso depende de equipes com 20 a 30 profissionais especializados - enfermeiros, médicos, psicólogos e assistentes sociais - e de uma logística sofisticada. Rede de notificação - Em linhas gerais, hospitais de quase todo o país informam à Central de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos de seu respectivo estado quando encontram um potencial doador, enquanto uma equipe mantém seus órgãos funcionando, confirma a morte encefálica e acompanha os exames para detectar compatibilidade sangüínea ou doenças infecciosas, além de procurar a família para autorizar a doação de órgãos. As centrais estaduais escolhem o receptor seguindo as orientações do Sistema Nacional de Transplantes (SNT), que pode participar da logística nos casos em que o fígado de um doador de um estado é retirado em outro estado. Sérgio Mies, médico do Hospital Israelita Albert Einstein, um dos centros credenciados para o transplante de fígado na cidade de São Paulo, aponta distorções nessa estrutura de atendimento. Primeiramente, cinco estados Acre, Amapá, Rondônia, Roraima, Tocantins - não têm centrais de captação de órgãos. Além disso, a capital paulista abriga pouco mais da metade das 48 equipes autorizadas a realizar transplantes de fígado, enquanto há regiões
sem nenhuma. Segundo Mies, a concentração populacional dificilmente justificaria essa situação, porque a Região Sudeste abriga 45% dos brasileiros, mas responde por 63% dos transplantes. Mesmo assim o estado de São Paulo, com 10,4 transplantes de fígado para cada milhão de habitantes por ano, encontra-se atrás do Rio Grande do Sul, o estado que mais faz transplantes de fígado por ano no Brasil, e abaixo do valor internacional recomendável - de 20 transplantes por milhão de habitantes por ano - para que a lista de espera de um ano fosse inteiramente atendida. "O transplante de fígado no Brasil é vítima do próprio sucesso", observa Mies. Desde setembro de 1985, quando uma equipe do Hospital das Clínicas da USP trocou o fígado de uma estudante de 20 anos, até dezembro de 2005 foram feitos 5.823 transplantes desse órgão no Brasil. Mas nos últimos anos as indicações para transplante têm crescido continuamente: só no estado de São Paulo a lista de espera ganha 150 novos nomes por mês. Criou-se assim uma situação em que menos de 10% dos interessados passam pelo transplante e o risco de morrer na fila de espera é três vezes maior que o de ser atendido. As projeções sobre a evolução dos casos de hepatite C nos próximos anos indicam que esse quadro pode piorar. Roberto Schlindwein, coordenador do SNT do Ministério da Saúde, acredita que parte dessas distorções começará a ser resolvida com a implantação do novo critério de organização das filas de espera, que entrou em vigor em julho: não mais por ordem de chegada, mas por gravidade. "O atendimento por ordem cronológica atendia às indicações precoces para realização de transplante, mas era cruel com os pacientes em estado mais grave, que agora serão priorizados", diz ele. Maria Cecília Corrêa, coordenadora de ciência e tecnologia e insumos estratégicos para a saúde da Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo, acrescenta: "O que vamos saber em algum tempo é se esse novo critério de espera é realmente melhor, tendo em vista a sobrevida dos receptores de fígado". Será também uma forma de rever os critérios de inclusão na lista de espera, que atualmente dependem dos médicos. • PESQUISA FAPESP 126 ■ AGOSTO DE 2006 ■ 47
m CIÊNCIA NUTP.ÇÀO
Mesa a bra sileir Rede de laboratórios analisa a composição de 500 alimentos que integram o cardápio nacional
MARIA GUIMARãES FOTOS MIGUEL BOYAYAN
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nanica... que brasileiro não conhece essas variedades, não tem suas favorida melhor, com a publicação da Tabela Brasileira de Composição de Alimentos (Taco) pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação (Nepa) da Universidade Estadual de Campinas. A Taco traz a composição em nutrientes de 500 alimentos, entre produtos naturais e industrializados. Dentre as seis bananas que integram a tabela, a da terra é a que tem mais calorias, enquanto a nanica é mais rica em potássio. A banana-maçã deixa a desejar em ferro, comalgumas preparações de comidas típicas brasileiras, como acarajé e baião-de-dois. "A iniciativa é única na América Latina", diz Jaime Amaya-Farfán, do Nepa. Nutricionistas latino-americanos costumam usar a tabela dos Estados Unidos, da Europa ou uma combinação de ambas, explica. A Taco é mais adequada para uso local, pois foi elaborada a partir da análise de alimentos brasileiros. Os mesmos produtos podem ter composições nutricionais diferentes conforme a origem, sobretudo em termos de minerais e vitaminas. Além disso, a tabela brasileira contém alimentos típicos de nossa região, como cupuaçu, caju, jiló e acerola, que têm dez vezes mais vitamina C do que o mesmo peso em laranja. Sem falar nas seis bananas - a tabela norte-americana traz somente um tipo. Múltiplas utilidades - A Taco tem financiamento dos ministérios do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e da Saúde (MS). Será distribuída a profissionais da saúde - sobretudo nutricionistas, médicos e educadores. Lílian Cuppari, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), explica que a tabela é essencial para diversas ações de saúde pública. Ela permite estudos de consumo alimentar no país, a partir dos quais se podem avaliar
situações de desnutrição. Também possibilita realizar estudos epidemiológicos e planejamento de alimentação. Na área clínica, o conhecimento detalhado da composição dos alimentos é essencial para a elaboração de dietas em casos de doenças que exijam modificação alimentar. Amaya-Farfán explica que a tabela atende a uma reivindicação de nutricionistas brasileiros, que até agora não tinham como elaborar dietas equilibradas de forma precisa. Isso é importante para medidas com amplo impacto no país inteiro, como o planejamento de merendas escolares. A indústria alimentícia também leva em conta a composição dos alimentos na preparação de seus produtos. Por essa razão, os setores de pesquisa e desenvolvimento dos produtores de alimentos necessitam ter à mão um banco de dados que corresponda à realidade local. Conhecer os valores nutricionais de alimentos nãoprocessados pode também orientar o plantio agrícola. A avaliação do estado nutricional da população e da composição dos alimentos plantados fornece informações relevantes sobre o valor social da produção agrícola que poderiam ser levadas em consideração por agrônomos. Uma plantação de feijão, por exemplo, pode se adaptar às necessidades das pessoas de uma determinada região caso se escolha um cultivar com propriedades mais nutritivas a Taco traz sete variedades de feijão. Mas esse trabalho de aconselhamento agrícola, possível com a divulgação da tabela, fica a cargo de iniciativas independentes. "É o grau de consciência social do agricultor que determinará o sucesso dessa iniciativa", alerta Amaya-Farfán. Para o lançamento oficial em 30 de junho foram impressos somente 300 exemplares de uma versão preliminar da Taco. Segundo Amaya-Farfán, o compromisso inicial da equipe era entregar a tabela completa em janeiro deste ano, mas faltaram dados de 45 alimentos e a tiragem definitiva foi adiada. Esse atraso deve prejudicar a distribuição da versão impressa da tabela integral, proibida durante o período eleitoral por trazer a logomarca do governo federal. Num primeiro momento, portanto, a Taco ficará disponível somente no portal do Ministério da Saúde na internet (http://www.saude.gov.br/nutricao/taco.php).
A Taco não é a única do gênero. A Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP), em parceria com a Rede Brasileira de Dados de Composição de Alimentos (Brasilfoods), lançou em 1998 a sua Tabela Brasileira de Composição de Alimentos: a TBCAUSP, que se encontra em sua segunda versão, de 2004. O que torna a Taco uma iniciativa ímpar são a ampla amostragem e o método de análise unificado e rigoroso. Enquanto a TBCA-USP é alimentada por dados enviados por pesquisadores independentes, o grupo do Nepa utilizou uma metodologia padronizada e selecionou os laboratórios qualificados a participar da elaboração da Taco por meio de Estudos Interlaboratoriais Cooperativos (E1C). "Poucos laboratórios estavam preparados, por isso foi preciso muito tempo de planejamento", explica Amaya-Farfán. Iniciado em 1996, o projeto consumiu três anos para esboçar um plano de ação completo, da coleta à análise, e alcançar o entendimento entre laboratórios. Os EICs consistiram na análise feita por diversos laboratórios selecionados de materiais certificados e padronizados. Foi necessário um grande investimento, pois essas matrizes com composição uniforme assegurada têm de ser importadas de institutos especializados nos Estados Unidos e na Europa. De acordo com AmayaFarfán, alguns laboratórios apresentaram bom desempenho na análise de certos componentes mas não de outros. Inicialmente foram testados 16 laboratórios, nenhum dos quais foi capaz de executar bem todas as análises. Após um segundo EIC, somente seis laboratórios foram selecionados para participar do projeto - cada um somente para aqueles nutrientes que quantificaram com maior precisão. Todo esse rigor garante a confiabilidade dos dados publicados na tabela. Foram analisados alimentos industrializados de nove grandes cidades das cinco regiões do país. Para cada tipo de alimento, os pesquisadores selecionaram de três a cinco das marcas mais consumidas. As amostras foram então homogeneizadas e examinadas em conjunto, de forma que os valores que aparecem na Taco representam valores médios. A equipe coletou amostras de produtos de origem vegetal e animal em grandes distribuidores de alimentos localizados nos estados de São Paulo e Santa Catarina. Os pesquisadores esperavam assim obter alimentos consumidos em outras regiões, apesar de adquiridos em grandes centros. Atualmente está em curso a quinta fase da produção da tabela, que pretende analisar um novo lote de outros cem alimentos. Também serão avaliados o conteúdo de vitami-
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na A de frutas e verduras já incluídas porém, o orçamento só permitirá trabalhar com os laboratórios já selecionados. A partir da sexta fase, o plano é sondar um maior número de parceiros. Para isso o projeto conta com a ajuda da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que abriu em seu site um espaço para cadastro de novos laboratórios. ma deficiência da versão atual da Taco é não incluir alimentos orgânicos. "Avaliações leitas por outras equipes apontam que esse tipo de alimento tem um maior conteúdo de nutrientes", a análise dos alimentos orgânicos não é prioridade atualmente, pois sua produção ainda é limitada. "No momento a tecnologia de campo não permite a produção de orgânicos com a mesma eficiência dos alimentos convencionais", explica. A produção de uma mesma quantidade de verduras e legumes orgânicos exige uma área plantada de 30% a 60% maior que a usada na agricultura convencional. Por isso um aumento de produção é, por enquanto, inviável e geraria um impacto importante na biodiversidade brasileira. "Seriam necessárias mais pesquisas na área de alimentos orgânicos para alcançar uma produtividade maior", conclui. A grande limitação brasileira, de acordo com AmayaFarfán, é a inexistência de grandes laboratórios capazes de analisar todos os nutrientes dos alimentos, como acontece nos Estados Unidos. Ele explica que o governo norte-americano investe US$ 10 milhões a cada quatro anos na elaboração de sua tabela, que já conta com 4 mil alimentos. Amaya-Farfán calcula que nos últimos dez anos o governo brasileiro tenha investido por volta de R$ 3,5 milhões na Taco, suficientes apenas para cobrir as despesas. "Precisamos de investimento cm infra-estrutura", afirma. No Brasil os laboratórios participantes da produção da Taco pertencem a entidades públicas, sobretudo universidades, nas quais os pesquisadores precisam apresentar altas taxas de publicação em perió4"" dicos científicos. "Trabalhos de levantamento, caracterização e análise de alimentos não interessam às revistas científicas", diz Amaya-Farfán. Por isso essa tarefa não atrai pesquisadores universitários,
o que emperra seu avanço, "listamos fazendo uma campanha de conscientização supraministerial no governo federa] para a criação do programa da Taco", conta o pesquisador. Segundo ele, já lotam sensibilizados o Ministério da Saúde, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, a Anvisa e a Financiadora de Estudos e Projetos. Ainda não é o suficiente para que se crie um programa permanente de avaliação de alimentos. As próximas metas da Taco são aumentar o número de alimentos e preparações regionais, além do número de nutrientes analisados. A amostra de carnes, por exemplo, toi feita apenas em grandes frigoríficos dos estados de São Paulo e Santa Catarina, selecionados por seu alcance disseminado no território nacional. No entanto, a equipe
da Taco pretende aumentar a representação geopoliticã, para que seja o mais abrangente possível. Para atingir outras regiões, será necessário credenciar laboratórios loIocais. O ideal é analisar separadamente os alimentos de cada região. "A farinha de mandioca de Santa Catarina pode ter um teor de minerais diferente da produzida na Bahia", exemplifica o especialista do Nepa. O momento é oportuno devido à pandemia atual de obesidade e as conseqüências que deve acarretar para a saúde. Amaya-Farfán afirma que jamais a população esteve tão consciente da relação entre dieta e saúde. "Má um desejo generalizado de educação alimentar", diz. "Por isso. saúde dos brasileiros."
Culinária experimental Na elaboração da Taco, os pesquisadores prepararam pratos como o baião-de-dois, típico da cozinha nordestina 1. Pese 2 kg de feijão-de-corda, 2 kg de arroz branco tipo 1, 250 g de toucinho em cubos. Pique quatro cebolas (400 g), 25 dentes de alho (50 g) e coentro fresco (50 g). Separe uma colher de sopa de sal refinado (35 g), três xícaras de chá de queijo coalho picado (300 g) e 10 litros de água 2. Coloque o toucinho em uma panela e acrescente a cebola, o alho, o sal e o feijãode-corda. Coloque toda a água e deixe cozinhar em fogo médio por 40 minutos. Mexa sempre, vagarosamente 3. Acrescente o arroz e mexa bem. Deixe cozinhar por mais 20 minutos ou até que
o arroz esteja ai dente. Adicione o queijo coalho e mexa delicadamente. Tampe a panela e deixar esfriar
Cada 100 gramas contêm: 69% de água, 136 kcal, 6 g de proteína, 4 mg de colesterol, 20 g de carboidrato, 5,1 g de fibra dietética, 1,1 g de cinzas, 33 mg de cálcio, 19 mg de magnésio, 0,3 g de manganês, 72 mg de fósforo, 0,6 mg de ferro, 93 mg de sódio, 157 mg de potássio, 0,08 mg de cobre, 0,6 mg de zinco, 0,04 mg de tiamina, 0,04 mg de piridoxina e 3 g de lipídios (0,6 g saturado, 1 g monoinsaturado e 1,5 g poliinsaturado)
O CIÊNCIA
aosseecionaaos Manipulação de genes que controlam açúcares pode aprimorar o café brasileiro FRANCISCO BICUDO FOTOS EDUARDO CéSAR
s tempos de glória e reinado absoluto da economia cafeeira ficaram para trás, mas o aroma que se espalha quando a água fervente banha o pó marrom permanece irresistível. No ano passado os brasileiros consumiram cerca de 15 milhões de sacas de café - foram superados apenas pelos norte-americanos, com 20 milhões de sacas. Um levantamento realizado pela Associação Brasileira da Indústria de Café (Abic) em 2005 confirma o apreço pela bebida: 93% dos 1.400 entrevistados de oito capitais consomem café. Desses, 90% tomam pelo menos quatro xícaras todos os dias. Pela manhã, a preferência é o coado, feito em casa. Depois do almoço, o mais solicitado é o expresso das lanchonetes e padarias. Cada vez mais se exige uma bebida de qualidade: 58% dos entrevistados tomam café por puro prazer e 47% pelo sabor que fica na boca. Quando vai ao supermercado, a maioria (89%) escolhe seu café em função da qualidade do produto, do sabor (84%) e do tipo do café (79%). O preço vem em sétimo lugar, citado por 70% dos entrevistados. Se depender das pesquisas científicas para o aprimoramento do café, a exemplo do Projeto Genoma recém-concluído, os consumidores podem ficar tranqüilos: a preocupação principal é garantir um produto de boa qualidade - encorpado, saboroso e com aroma agradável. "A ciência está sintonizada com essa demanda", afirma Paulo Mazzafera, pesquisador do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). "O genoma será usado para auxiliar o melhoramento da produção e da qualidade do café." Luiz Gonzaga Esteves Vieira, pesquisador do Instituto Agronômico do Paraná (Iapar), reforça: "O momento é excelente: há vários genes
em análise. Quando definirmos como se expressa cada um deles, poderemos selecionar e reproduzir as características positivas da planta e inibir as indesejadas". Iniciado em 2002, o Projeto Genoma Café recebeu um investimento de R$ 6 milhões - financiados pela FAPESP, pela Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia (Cenargen) e pelo Consórcio Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento do Café, que reúne 700 pesquisadores de 40 instituições. Foram identificados cerca de 30 mil genes responsáveis por determinar diferentes características do café. Os pesquisadores trabalharam com duas espécies: a arábica (Coffea arábica), associada a uma bebida saborosa, cultivada em regiões de altitudes mais elevadas e que representa 70% da produção nacional, e a conilon ou robusta {Coffea canephora), responsável por um café menos saboroso e mais encorpado, plantado em baixas altitudes. "Optamos por analisar genes de órgãos e tecidos diferentes como folhas, raízes, ramos e frutos. A partir da diversidade, selecionamos os genes mais adequados", explica Carlos Colombo, pesquisador do Instituto Agronômico de Campinas (IAC). "Saímos na frente e temos um banco de dados genuinamente nacional Mas a competição é grande e as informações precisam ser rapidamente usadas em novos trabalhos", alerta Vieira. Sem perder tempo, seis instituições que integram o consórcio começaram o Projeto Genoma Funcional do Cafeeiro (Genocafé), coordenado por Mirian Eira, da Embrapa, e financiado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, com um investimento inicial de R$ 3 milhões. Usando dados do genoma, as equipes da Unicamp, do Iapar e do Centre de Coopération International en Recherche Agronomique pour le Développement (Cirad) identificaram dois genes que controlam o teor de sacarose no fruto do café, descritos em um artigo que deve ser publicado em breve no Journal of Experimental Botany. É a PESQUISA FAPESP 126 ■ AGOSTO DE 2006 ■ 53
Padrão colombiano: frutos maduros originam bebida mais saborosa
quantidade desse açúcar no produto torrado que determina, em parte, a qualidade da bebida. Na Unicamp, Mazzafera e Geraldo Aclécio de Melo, seu aluno de doutorado, fizeram outra descoberta associada à qualidade do café: identificaram genes que definem arranjos estabelecidos entre isômeros - moléculas formadas pelos mesmos átomos, mas com estruturas espaciais distintas - do ácido clorogênico, associado à definição do sabor e do aroma da bebida. Mazzafera também organizou a edição especial do Brazilian Journal ofPlant Physiology, publicada em março, com 19 artigos de revisão sobre achados recentes envolvendo o café - os artigos abordam de citologia e biologia molecular da planta à qualidade da bebida. Um deles, escrito por uma equipe da Universidade Federal do Rio de Janeiro, analisa a relação entre a proporção de isômeros dos ácidos clorogênicos e o amargor do café. De acordo com Vieira, do Iapar, o trabalho é integrado e as linhas de pesquisa das equipes se complementam. No IAC, os pesquisadores tentam caracterizar genes relacionados à qualidade da bebida e à resistência aos nematóides - vermes microscópicos que atacam as raízes do cafeeiro, comprometendo seu 54 ■ AGOSTO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 126
desenvolvimento. Também se dedicam à análise de possíveis genes reguladores da floração, como a equipe da Universidade Federal de Lavras. Como o cafeeiro floresce várias vezes durante o ano e a colheita é feita em uma única oportunidade para baixar os custos de produção, geralmente se apanham frutos verdes, maduros e secos, mistura que prejudica a qualidade da bebida. idéia é selecionar genes que permitam reduzir o número ou a duração das floradas e concentrar a colheita em uma época. Pesquisadores da Universidade Federal de Viçosa (UFV), em conjunto com a equipe da Embrapa Café, procuram genes associados ao controle da ferrugem - causada pelo fungo Hemileia vastatrix, que deixa manchas parecidas com poeira nas folhas, que secam - e do bicho-mineiro {Leucoptera coffeella), lagarta que ataca as folhas, derrubando-as. Em paralelo ao Genoma, Clóvis Oliveira Silva e Marcos Buckeridge, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo, identificaram o gene da enzima alfa-galactosidase, que controla a quantidade do açúcar galactose em uma das fibras (manano) do café - o teor desse açúcar afeta a solubilidade do
manano, importante para o rendimento e a qualidade do pó. As sementes jovens contêm muita galactose, que é quebrada pela alfa-galactosidade no amadurecimento do grão. Conseqüência: a semente torna-se dura e gera um pó difícil de dissolver. "Se conseguirmos inibir a alfa-galactosidase, provavelmente conseguiremos alterar o corpo da bebida", diz Buckeridge. Mas o segredo da qualidade da bebida não está associado só à genética. Silva e Buckeridge compararam a composição de açúcares em frutos das espécies arábica e conilon colhidas segundo o padrão brasileiro, que mistura frutos verdes, maduros e secos. Verificaram que a quantidade de manano, açúcar complexo que forma fibras longas, era maior na arábica. Ao repetir a comparação - desta vez seguindo o modelo de colheita colombiano, que seleciona só frutos maduros -, notaram que a concentração de manano era praticamente a mesma nas duas espécies. "O sabor e o aroma do arábica serão sempre melhores porque outros fatores, além das fibras, influenciam essas características", admite Buckeridge. "Mas, controlando a maturidade do fruto, o sabor e o aroma da conilon podem melhorar." Os pesquisadores sabem que o brasileiro está descobrindo os prazeres de um bom café e que não é mais possível -
Na época, o instituto, fundado em 1887 por decreto do imperador Pedro II, já era a grande referência nacional em estudos sobre café. Calcula-se que 90% dos 6 bilhões de cafeeiros hoje espalhados pelo Brasil sejam descendentes de culturas produzidas pelo IAC, responsável por desenvolver mais de 60 variedades da espécie arábica - entre as principais, destacam-se a mundo novo (que gera bebida de excelente qualidade), a acaiá (de maturação mais precoce) e a icatu (sensível ao clima seco).
nem desejável - fechar os olhos para esse novo padrão de consumo. "Uma xícara de café deve ser apreciada da mesma forma como nos deliciamos com uma taça de vinho", sugere Buckeridge. Melhorar a qualidade do café nacional representa ainda a possibilidade de ocupar novos espaços no mercado internacional. É uma oportunidade nada desprezível para um país como o Brasil, maior produtor e exportador de café no mundo. Segundo estimativas do Ministério da Agricultura, o país deve colher na safra 2006/2007 cerca de 40 milhões de sacas de 60 quilos de café um crescimento de 23% em relação ao período 2005/2006 -, produzidos em Minas Gerais, Espírito Santo, São Paulo, Paraná e Bahia. Dados da Organização Internacional do Café mostram que em 2005/2006 o Brasil exportou 20,5 milhões de sacas de café, mais que o Vietnã (11,4 milhões), a Colômbia (10,3 milhões) e a Indonésia (4,6 milhões). Qualidade internacional - Não se pode ignorar a influência da atividade cafeeira na economia nacional. Segundo a Embrapa Café, há no país 2,7 milhões de hectares de pés de café, cultura que gera 8 milhões de empregos. "O café brasileiro tem sido valorizado em feiras internacionais por causa do cuidado
com a qualidade", afirma Luiz Carlos Fazuoli, pesquisador do IAC. "Competimos em condições de igualdade com o café colombiano, considerado o melhor do mundo", completa o especialista, discípulo de Alcides Carvalho, pioneiro nos estudos sobre melhoramento genético da planta. Para Fazuoli, a conclusão do genoma também beneficiará as pesquisas de melhoramento genético clássico do cafeeiro. Com os dados do genoma o melhorista poderá identificar nos cromossomos do café marcadores genéticos associados à manifestação de determinadas características da planta. O passo seguinte é aproveitar esses marcadores para selecionar plantas de interesse agronômico, por exemplo, adaptadas a climas secos ou capazes de gerar frutos de melhor qualidade. Mas é preciso ter paciência para ver os resultados. O cafeeiro só começa a produzir com um ano e meio e atinge a maturidade aos dez anos. "O objetivo é usar a seleção assistida por marcadores para reunir atributos de interesse agronômico em uma única espécie", diz Colombo. O melhoramento genético do cafeeiro começou no Brasil na década de 1930 com Alcides Carvalho, no IAC.
Três séculos de história - "Com as informações do genoma, passamos a trabalhar não mais com bandas do cromossomo, mas com genes específicos", explica Mirian Perez Maluf, pesquisadora do IAC e da Embrapa Café. "Os marcadores serão encontrados de forma mais rápida e precisa, diminuindo o tempo de experiências e minimizando a probabilidade de erro." O diálogo entre as pesquisas científicas e a produção cafeeira de qualidade inicia um capítulo especial de uma história que começou há quase três séculos, quando o oficial português Francisco de Mello Palheta trouxe da Guiana Francesa para Belém, no Pará, as primeiras mudas de café. Não tardou e a bebida caiu no gosto popular: no final do século 18, a planta, originária da Etiópia, já havia chegado ao Rio de Janeiro, de onde se espalhou para o Vale do Paraíba, tomando todo o estado de São Paulo. "Para a Mata Atlântica, a introdução dessa planta exótica significaria uma ameaça mais intensa que qualquer outro evento dos 300 anos anteriores", escreveu Warren Dean, no livro A ferro e fogo - A história da devastação da Mata Atlântica brasileira, referindo-se aos grandes latifúndios que substituíram a floresta. Do final do século 19 até meados do 20, o café se tornou o principal responsável pelo desenvolvimento nacional. Sua produção atraiu imigrantes. Sua comercialização permitiu a construção de ferrovias e promoveu a industrialização - em especial da Região Sudeste. Mas o chamado ouro negro, que ajudou a transformar a provinciana vila de São Paulo na cidade mais rica do país, deixou mais que o legado econômico: consolidou o tradicional cafezinho como marca da cultura brasileira. • PESQUISA FAPESP 126 ■ AGOSTO DE 2006 ■ 55
ASTROFÍSICA
Além das
estrelas Luz e ondas de choque aquecem nuvens que concentram matéria formada por prótons e nêutrons
RICARDO ZORZETTO
anha força, finalmente, uma idéia concebida há pouco mais de duas décadas por duas astrônomas - a brasileira Sueli Viegas e a italiana Marcella Contini - para explicar os fenômenos químicos e físicos observados nas entranhas de gigantescas nuvens de gás e poeira que permeiam as galáxias e concentram a maior parte da matéria bariônica do Universo, formada por prótons, nêutrons e elétrons. As evidências mais recentes de que Sueli e Marcella estão certas no que diz respeito ao comportamento da matéria nessas regiões obscuras do cosmos vêm da observação de um tipo peculiar de galáxia: as galáxias com núcleo ativo, assim conhecidas por concentrarem quase todo o seu brilho numa região central pequena, o núcleo. Em colaboração com o astrônomo Alberto Rodríguez Ardilla, do Laboratório Nacional de Astrofísica, em Minas Gerais, Sueli e Marcella analisaram a estrutura da nuvem de gás e poeira da galáxia com núcleo ativo Markarian 766, considerada relativamente próxima em termos cosmológicos: está a 150 milhões de anos-luz da Via Láctea - para se ter uma idéia dessa distância, a luz detectada hoje pelos astrônomos partiu dessa galáxia há 150 milhões de anos. Descoberta pelo astrônomo armênio Benik Markarian na déca56 ■ AGOSTO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 126
A galáxia NGC 3079, no alto, em que luz e ondas de choque aquecem o gás expulso do núcleo, e a Nebulosa de Caranguejo, em que o choque esquenta o hidrogênio (em verde)
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da de 1960, essa galáxia apresenta uma anatomia semelhante à da Via Láctea, onde está o Sistema Solar: tem uma região central em forma de globo muito luminosa, envolta por um fino disco de estrelas. No coração dessas galáxias um poderoso buraco negro, com uma massa milhões de vezes maior que a do Sol, engole a matéria ao redor e a transforma em energia, em parte regurgitada de volta ao espaço na forma de luz. Não muito longe do monstro devorador de matéria, um anel espesso de gás e poeira abriga estrelas recém-nascidas, que alimentam o interminável ciclo de vida e morte estelar. Sueli e Marcella conseguiram reconstituir o perfil completo da luz emitida pela região central da Markarian 766 - ou apenas Mrk 766 - a partir de dados obtidos pelo telescópio espacial Hubble e por Rodríguez, usando o telescópio do Observatório de Mauna Kea, no Havaí. Semelhante ao traçado de altos e baixos de um eletrocardiograma, esse perfil registra a quantidade de luz emitida pela galáxia e a nuvem que a envolve em diferentes faixas do espectro eletromagnético, das menos energéticas como as ondas de rádio às de energia mais alta como os raios X. "É uma espécie de assinatura de cores que permite saber a composição química da galáxia e da nuvem de gás e poeira", explica Sueli, que no final de 2005 encerrou uma carreira de 30 anos como astrônoma no Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (USP) e hoje vive nos Estados Unidos com o atual marido - o físico Gary Steigman, da Universidade Estadual de Ohio -, dedicandose à divulgação científica. No espectro de luz da Mrk 766 estavam as evidências de que Sueli e Marcella tanto buscavam para comprovar a explicação que haviam proposto bem antes para os fenômenos físicos observados nas nuvens extragalácticas de gás e poeira. Formadas essencialmente por gases de elementos químicos leves como o hidrogênio, composto apenas por um próton e um elétron, além de 58 ■ AGOSTO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 126
elementos mais pesados, como carbono e oxigênio, essas nuvens impedem que a luz do núcleo dessas galáxias chegue à Terra, assim como o nevoeiro de uma manhã fria atrapalha a visão de um motorista na es- M trada. Mas o bloqueio da luz não é tudo o que ocorre ali. Os ™ corpúsculos de luz (fótons) do ^^ núcleo da galáxia transferem parte de sua energia para o gás e as partículas de poeira, aquecendo a nuvem com a energia extra, os átomos de hidrogênio, silício e carbono, entre outros, tornam-se eletricamente carregados (íons) e emitem a luz detectada por telescópios no espaço e em Terra. Em geral astrônomos e astrofísicos atribuem a energia acumulada por essas nuvens apenas a esse fenômeno de transferência de energia chamado fotoionização. Sueli e Marcella, no entanto, pensam diferente.
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energia transferida à nuvem apenas pela fotoionização pode ser de dezenas a centenas de vezes menor V do que a que observamos", ^^ afirma Sueli. "Algo mais fornece energia para essas nuvens atingirem temperaturas de alguns milhões de graus." Há pelo menos 20 anos Sueli e Marcella, da Universidade de Tel-Aviv, em Israel, têm uma boa idéia do que pode ser esse algo mais. A astrônoma brasileira já desconfiava que a fotoionização fosse insuficiente para gerar toda a energia das nuvens extragalácticas quando Marcella, especialista em um fenômeno chamado choque, a procurou no início da década de 1980. Juntas desenvolveram um programa de computador que simula as con-
Cortina de fumaça: gás e poeira ocultam jovens estrelas na Nebulosa de Órion (à esquerda) e na DR6 (à direita); acima, ondas de choque na Nebulosa Olho de Gato
dições das nuvens de gás e poeira chamado SUMA - soma, em italiano, e também as iniciais de SUeli e MArcella -, que adiciona à fotoionização o efeito das ondas de choque. Numa época em que não existiam computadores pessoais e muito menos laptops, tiveram de se virar com o que havia de mais avançado na USP: um computador Burroughs, programado por meio de cartões de papel perfurados. "O SUMA era um programa tão extenso que tínhamos de colocá-lo em funcionamento apenas nos finais de semana, caso contrário a universidade pararia", lembra Sueli. Descrito em um artigo publicado em 1984 na Astronomy and Astrophysics, o SUMA funciona hoje até mesmo nos computadores mais simples, desses que se usam para acessar a internet. Como imaginaram que esses dois efeitos estivessem associados? Nada muito complicado. Sabiam que, em certo grau, a luz do núcleo dessas galáxias
contribuía para aquecer a nuvem de gás e poeira. Também sabiam que a nuvem não é homogênea — e sim um aglomerado de nuvens menores que se deslocam em um meio muito menos denso. "Essas características indicavam que a chance de ocorrer ondas de choque nessas regiões é muito grande", afirma Sueli. Só não imaginavam que a velocidade de deslocamento dessas nuvens 0 PROJE Evolução e r" de galáxias MODALIDADE
Projeto Temático COORDENADORA SUELI VIEGAS - US, INVESTIMENTO
R$ 2.247.008,35 (FAPESP)
fosse tão alta: no caso da galáxia Mrk 766, as nuvens se movem a velocidades entre 100 quilômetros por segundo e 500 quilômetros por segundo, como atestam Sueli, Marcella e Rodríguez em artigo da Monthly Notices of the Royal Astronomical Society de dezembro de 2005, uma das mais importantes revistas da área. "Na região da nuvem mais próxima do núcleo da Mrk 766 predomina o efeito da fotoionização, enquanto na mais distante o principal efeito é causado pelo choque", explica Sueli. Conhecer de modo mais preciso a energia total dessas nuvens é essencial para se calcularem propriedades físicas como temperatura, densidade e composição química do gás dessas regiões - dados que permitem estimar a evolução química das galáxias e, em última instância, do próprio Universo. A comprovação de que o choque e a fotoionização atuam em conjunto não se restringe ao caso da Mrk 766. Sueli, Marcella e Rodríguez notaram resultados semelhantes ao analisar outra galáxia com núcleo ativo, a Ark 564. Quem mais se aproximou desses resultados foi a equipe do astrônomo Michael Dopita, da Austrália, que criou um programa que só leva em conta o efeito do choque, mas deixa de lado o da fotoionização. Apesar de haver contestações à interpretação das duas astrônomas para os fenômenos observados nessas nuvens, Sueli segue confiante: "Com o aumento do número de observações mais precisas dessa região central das galáxias, a aceitação de nossa interpretação fica mais e mais próxima". • PESQUISA FAPESP 126 ■ AGOSTO DE 2006 ■ 59
Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org
Desde o mês passado, a Scientific Electronic Library On-line (SciELO) passou a oferecer aos editores das revistas científicas a possibilidade de disponibilizar, em escala piloto, artigos no prelo (aceitos para publicação antes da impressão em papel) ou ahead of print isto é, sem que tenham um número de fascículo associado, mas assegurando a persistência dos endereços on-line, assim como dos links a eles associados. Esse é mais um avanço que vai ao encontro de tendências atuais do sistema de publicação on-line. A publicação avançada dos artigos, prevista no projeto original da SciELO, tornou-se possível finalmente com a proposta e a cooperação da Revista Brasileira de Psiquiatria (RBP), que vê nesse recurso uma inovação estratégica para aperfeiçoar a revista e conseqüentemente manter e aumentar a capacidade de atrair bons trabalhos.
■ Nutrição
Agronomia
Combate à Xylella
Escalada saudável
Avaliar o comportamento de variedades e clones de laranjas afetados pela clorose variegada dos citros (CVC), uma grave doença registrada nos laranjais, é o objetivo do artigo "Reação de variedades e clones de laranjas a Xylella fastidiosa". Foram analisadas 59 variedades e clones de laranjas doces e duas de laranjas azedas introduzidas de bancos de germoplasma da França, Itália e Portugal. "As medidas usuais de controle a clorose variegada dos citros mostram-se pouco eficientes ou práticas, além de ter um alto custo. Dessa forma, o uso de variedades resistentes ou tolerantes desponta como a alternativa mais eficiente, razão pela qual se julgou oportuna a realização desse trabalho", justificam os autores Paulo Sérgio de Souza, da APTA Regional Nordeste Paulista, Antônio de Góes, Elena Paola Gonzáles Jaimes, Ester Wickert e Luiz Carlos Donadio, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Jaboticabal, Eduardo Sanches Stuchi, da Embrapa Mandioca e Fruticultura Tropical, e Simone Rodrigues da Silva, da Estação Experimental de Citricultura de Bebedouro. Para a avaliação da incidência da doença, causada pela bactéria X. fastidiosa, utilizaram-se dados qualitativos (positivos ou negativos), enquanto para a severidade empregou-se escala de notas, estabelecida com base nos sintomas da CVC, confirmados por meio de testes de PCR feitos no Laboratório de Bioquímica de Microorganismos e Plantas, da Unesp. Pelos resultados do experimento, pode-se concluir que as laranjeiras azedas Beja e Sr. Pinto e as laranjeiras doces Navelina ISA 315, Navelina SRA 332 e Newhall Navel SRA 343 não apresentaram sintomas de CVC em suas folhas decorridos 27 meses da inoculação. REVISTA BRASILEIRA DE FRUTICULTURA N°
- voi.. 28 -
1 - JABOTICABAL - ABRII. 2006
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010029452006000100040&lng=ptS,nrm=iso&tlng=pt
60 ■ AGOSTO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 126
Embora o número de pessoas que realmente vivem a mais de 3 mil metros de altura seja pequeno, milhares de indivíduos costumam viajar para locais de grandes altitudes, principalmente para atividades esportivas. A grande exposição às pressões barométricas reduzidas pode ter bastante influência sobre o desempenho físico desses indivíduos. O artigo "Nutrição para os praticantes de exercício em grandes altitudes", de Caroline Buss e Álvaro de Oliveira, pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), apresenta uma visão geral dos principais efeitos da altitude sobre o organismo e sobre o desempenho físico, além de sugerir uma orientação nutricional para o atleta na altitude. O estudo mostra que a exposição aguda à hipóxia (baixo teor de oxigênio na corrente sangüínea) pode provocar sonolência, náusea e fadiga mental e muscular. "Acredita-se que a hipóxia seja responsável pelo início de uma cascata de eventos sinalizadores que, ao final, levam à adaptação à altitude", explicam os autores da pesquisa. "Por isso, uma estratégia nutricional adequada é fundamental para que o organismo não sofra nenhum estresse adicional." O processo de aclimatação na altitude leva de duas a três semanas, resultando em adaptações sistêmicas que podem ser medidas como respostas fisiológicas. Além disso, quando os atletas ascendem a grandes altitudes, pode ocorrer perda de peso corporal de até 3% em oito dias, em uma elevação de 4.300 metros, ou de até 15% após um período de três meses em uma altitude de 5,3 mil a 8 mil metros. "Uma das causas do fenômeno é a redução do apetite e consumo alimentar. A altitude pode exercer um efeito negativo sobre o desempenho do organismo e trazer conseqüências secundárias, como consumo insuficiente de energia, balanço de nitrogênio negativo e perda de massa corporal", apontam os autores do estudo, Caroline Buss e Álvaro de Oliveira. REVISTA DE NUTRIçãO
- VOL. 19 - N° 1 - CAMPI-
NAS - JAN./FEV. 2006 www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141552732006000100008&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
■ Política
Falhas de planejamento O artigo "Desafios do planejamento em políticas públicas: diferentes visões e práticas" analisa os problemas de planejamento, particularmente com respeito a políticas públicas, nos chamados países em desenvolvimento. "No Brasil, esses problemas estão relacionados à ênfase dada ao tecnicismo, à burocracia de formulação e às previsões dos economistas. Isso tende a colocar sombra na parte mais importante do planejamento: o processo de decisão, que é uma construção política e social", descreve o autor José Antônio de Oliveira, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) de São Paulo. O professor mostra que o planejamento em políticas públicas tem de ser visto como um processo, e não como um produto técnico somente. "A importância do processo se dá principalmente na implementação, pois esta é que vai levar aos resultados finais das políticas, programas ou projetos", diz. O autor argumenta que o planejamento é um processo de decisão político-social que depende de informações precisas, transparência, ética, temperança, aceitação de visões diferentes e vontade de negociar e buscar soluções conjuntas que sejam aceitáveis para toda a sociedade, principalmente para as partes envolvidas, levando continuamente ao aprendizado. "Um dos motivos que levam a falhas nos resultados de políticas públicas é a dissociação que se faz entre elaboração e implementação no processo de planejamento, de acordo com algumas visões da prática ou escolas de pensamento", aponta o autor. Segundo ele, as políticas brasileiras costumam falhar porque o planejamento está relacionado à tentativa de controlar a economia e a sociedade, em vez de vê-lo como um processo de decisão que visa à construção de políticas com os diversos atores interessados e afetados pela decisão. REVISTA DE ADMINISTRAçãO PúBLICA Rio DE JANEIRO - MAR./ABRII. 2006
- VOL. 40 - N° 2 -
www. scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid = S003476122006000200006&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
■ Sociedade
Incertezas e desemprego O estudo "Desemprego: o custo da desinformação", de José Márcio Camargo, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), e Maurício Cortez Reis, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), mostra que a falta de informações de determinados grupos de trabalhadores, como os jovens e semiqualificados, contribui para o aumento do desemprego. "A quantidade e a qualidade dos dados disponíveis para os empregadores são muito limitadas", justificam os pesquisadores. Como o grupo dos semiqualificados é bastante heterogêneo, por exemplo, fica difícil saber as características produtivas reais desses trabalhadores apenas quando se tem a escolaridade co-
mo base. A maior proporção de jovens entre os desempregados acentua ainda mais o problema, na medida em que informações sobre as características produtivas do trabalhador costumam ser reveladas com a experiência no mercado de trabalho. "O desemprego neste modelo é gerado pela incerteza quanto à qualidade dos trabalhadores, e não pelo elevado custo de empregar os mesmos", sugerem os autores. Entre as propostas apresentadas pelo trabalho estão a simplificação da legislação trabalhista para permitir desenhos alternativos de contratos de trabalho e a melhor análise da qualidade dos alunos por meio de novos exames nacionais. REVISTA BRASILEIRA DE ECONOMIA DE JANEIRO - JUL./SET. 2005
- VOL. 59 - N° 3 - Rio
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S003471402005000300003&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
■ Saúde
AIDS na gravidez Compreender como o risco da transmissão durante a gravidez do HIV é apreendido e reconstruído pelas pessoas vivendo com HIV/Aids em suas decisões reprodutivas. Essa é a proposta do estudo "Aids e gravidez: os sentidos do risco e o desafio do cuidado", de Neide Kurokawa, do Serviço Ambulatorial Especializado em DST/Aids da Prefeitura de São Paulo e Augusta de Alvarenga e José Ricardo de Ayres, ambos da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). "A gravidez no contexto da infecção pelo HIV é um tema que, via de regra, gera discursos polêmicos entre profissionais da saúde, que justificam seus sentimentos de indignação ou de incompreensão quando uma mulher, sabidamente soropositiva, manifesta o desejo de engravidar ou chega grávida ao serviço de saúde", dizem as pesquisadoras. O estudo envolveu oito homens e oito mulheres de três serviços de saúde especializados em DST/Aids do município de São Paulo. "Mesmo considerando as restrições relacionadas à transmissão do HIV, as pessoas entrevistadas trouxeram argumentos que justificaram ou justificariam uma gravidez", contam as autoras do estudo. O risco da transmissão vertical é utilizado pelos profissionais da saúde tanto para desestimular quanto para orientar sobre a profilaxia da transmissão. REVISTA DE SAúDE PúBLICA
- VOL. 40 - N° 3 - SãO PAULO
- JUN.2006 www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S003489102006000300016&lng=ptS.nrm=iso&tlng=pt
PESQUISA FAPESP 126 ■ AGOSTO DE 2006 ■ 61
TECNOLOGIA
Roupas limpas com prata Uma máquina de lavar que deixa as roupas limpas sem necessidade de usar produtos alvejantes e elimina praticamente todas as bactérias presentes nos tecidos foi lançada no mercado canadense pela Samsung, a fabricante coreana de aparelhos eletrônicos e eletrodomésticos. O segredo do equipamento, batizado de Samsung SilverCare, é a injeção de íons de prata, metal conhecido por suas propriedades bactericidas, durante a operação de lavagem. A máquina funciona assim: dentro de um pequeno compartimento, ao lado do tubo de lavagem, correntes elétricas passam por duas chapas de prata, do tamanho de uma goma de mascar, gerando íons de prata, que são lançados na água durante os ciclos de limpeza. Testes realizados pela Samsung canadense mostraram que a injeção da prata remove 99,9% das bactérias presentes nas roupas e no próprio compartimento de lavagem, inclusive as causadoras de odor. Para garantir que os efeitos do equipamento sejam duradouros, cada unidade de Samsung SilverCare vem com prata suficiente para 3 mil lavagens ou dez anos de uso. •
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■ Sensores para os olhos Uma prótese eletrônica que consegue enviar sinais luminosos para o nervo óptico poderá futuramente devolver a visão aos portadores de retinite pigmentosa e degeneração macular, duas das causas mais comuns de cegueira. As pesquisas para o desenvolvimento da prótese, parecida com os sensores das máquinas fotográficas digitais, estão sendo realizadas na Universidade de Glasgow, na Escócia. Os sensores eletrônicos funcionarão como substitutos das células mortas por essas doenças que atingem a retina, responsável por transformar a luz em sinais elétricos. Enviados ao cérebro, esses sinais formam as imagens que vemos. No estágio atual de construção da prótese, os pesquisadores obtiveram sensores de 100 pixels, uma medida ainda bastante tímida quando comparada à capacidade dos sen-
sores naturais, que chegam a milhões de pixels. Mas os pesquisadores afirmam que uma prótese com 500 pixels permitirá que uma pessoa portadora de deficiência visual ande normalmente na rua e reconheça rostos. •
■ Nanogel orgânico Nanomateriais na forma de um gel orgânico, que podem ser usados para encapsular produtos farmacêuticos, cosméticos e alimentícios, foram criados no Instituto Politécnico Rensselaer, nos Estados
62 ■ AGOSTO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 126
Unidos. O novo material também poderá ser utilizado na construção de estruturas biológicas tridimensionais e biocompatíveis para a formação de tecidos humanos e membranas artificiais. Para chegar ao material, os pesquisadores usaram óleo de oliva e seis outros solventes e adicionaram uma enzima simples para transformar a solução líquida em um gel orgânico. Segundo os autores da pesquisa, publicada na edição de 17 de julho da revista Angewandte Chemie, o desenvolvimento de novos materiais quimicamente funcionais na escala nano-
métrica é de importância crítica para aplicações biológicas, como transporte de drogas no organismo humano. •
■ Por dentro dos objetos A tecnologia de raios X, até recentemente, era incapaz de produzir imagens de alta resolução de objetos em escala microscópica, principalmente quando o objeto analisado tinha características de baixa absorção de radiação. Entretanto, usando poderosos microscópios de raios X e realizando experimentos com várias técnicas de visualização de contraste, pesquisadores da Organização de Pesquisa Científica e Industrial da Comunidade das Nações Britânicas (CSIRO), da Austrália, conseguiram usar o poder penetrante dos raios X para gerar imagens de microestruturas internas e de objetos multicamadas mesmo opacos. Pela nova técnica é possível visualizar a parte interna de objetos como componentes microeletrônicos, materiais estruturais utilizados em aeronáutica, cerâmica, espumas metálicas e até mesmo minerais. Usando técnicas de visualização tomográfica, as quais envolvem imagens de vários ângulos para criar uma imagem tridimensional, é possível observar até minúsculos defeitos. •
■ Protegidos de acidentes Um carro que consegue prever um impacto lateral e mudar rapidamente de forma para proteger os passageiros está sendo desenvolvido pela empresa alemã Siemens. O projeto é financiado pela Comunidade Européia. Os pesquisadores de segurança veicular da empresa estão testando o sistema de detecção de impactos em veículos experimentais, que têm sensores de radar instalados na dianteira e na traseira e câmeras na janela traseira. As informações obtidas são repassadas a um computador embarcado, que calcula a possibilidade de impacto. Para proteger as pessoas que estão no carro, o computador ativará então uma corrente elétrica, que vai passar através de uma liga metálica instalada nas portas laterais, dotada de memória quanto ao seu formato. Em resposta ao calor, a liga altera seu formato e aumenta de volume, reforçando a ligação entre a porta e a carroceria do carro, que normalmente é um ponto fraco. A energia do impacto é então distribuída mais amplamente por todo o veículo, reduzindo o risco de que os passageiros se machuquem. Os testes reais de impacto estão previstos para serem feitos em 2008. •
Alimento garantido
Raízes e folhas maiores garantem mais nutrientes
Uma mandioca geneticamente modificada, com raízes maiores do que o normal, foi obtida por pesquisadores da Universidade de Ohio, nos Estados Unidos. Para isso, eles colocaram um gene de bactéria no genoma da mandioca, o que afeta sua produção de amido. As raízes da planta ficaram 2,6 vezes maiores do que as da convencional. Ao mesmo tempo, as folhas, ricas em nutrientes, também ficaram mais abundantes. A descoberta é importante porque a planta é uma fonte alimentar de cerca de 600 milhões de pessoas na América Latina, Ásia e África. Em outra linha de pesquisa no mesmo campo, pesquisadores da Universidade de
Tóquio, no Japão, fizeram com êxito alterações genéticas na planta herbácea Arabidopsis thaliana, da família da mostarda, tornando-a mais tolerante a baixos níveis de boro, nutriente importante para o crescimento vegetal, mas nem sempre presente em quantidade suficiente no solo. A atividade do gene BOR 1 da Arabidopsis foi aumentada e, como resultado, ela passou a produzir mais sementes e ficou mais pesada quando cultivada em solos com baixos teores de boro. Os pesquisadores acreditam que modificação semelhante possa ser feita em outras plantas, abrindo espaço para reduzir fertilizadores à base de boro, que podem causar poluição. •
PESQUISA FAPESP 126 ■ AGOSTO DE 2006 ■ 63
Feijão para o semi-árido Uma nova variedade de feijão-guandu, resistente à seca e com mais vitamina A, foi desenvolvida pela Embrapa Semi-Árido, unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) instalada em Petrolina, Pernambuco. Desde o final da década de 1980 o guandu-petrolina, nome do novo grão que está
Feijão-quandu da Embrapa com mais /Tf- vitamina A
vouras familiares do semi-árido nordestino, vem sendo avaliado em um campo experimental da instituição. O petrolina foi obtido a partir da variedade UW-10, enviada à Embrapa para estudos pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação (FAO).
A produtividade média, de 550 quilos por hectare (kg/ha), chega a atingir 900 kg/ha em ano de chuvas abundantes. No Nordeste, o guandu é cultivado tradicionalmente em áreas de altitude da Bahia, de Pernambuco e do Ceará, onde as chuvas têm melhor distribuição. O material genético utilizado, introduzido no país no período colonial, é pouco tolerante à seca, tem ciclo longo e porte semi-arbóreo. O petrolina, que atinge no máximo 60 centímetros, tem vafáceis de serem colhidas, pode ser cultivado com baixos índices de chuva e em condições de solo pouco férteis.
Linha de Produção ■ Ultravioleta nas ostras Um sistema de depuração com capacidade para tratar 7 mil ostras por semana, desenvolvido pela empresa Ostravitta, de Recife, em Pernambuco, já está atendendo o mercado local de bares e restaurantes. Confinadas durante 24 horas em tanques por onde circula água do mar tratada com raios ultravioleta, as ostras saem prontas para o consumo, livres de coliformes e bactérias, conforme atestam laudos da Companhia Pernambucana de Abastecimento, que analisa a água usada na depuração. "Quando começa o processo, há muita contaminação. Depois da depuração, está tudo limpo", diz a arquiteta Karla Grimaldi, uma das
sócias da Ostravitta, empresa abrigada desde março de 2005 na Incubadora de Base Tecnológica em Agronegócio (Incubatec Rural), da Universidade Federal Rural de Pernambuco. O outro sócio é o engenheiro de pesca e também ar-
Robô concebido para combater incêndio agora aplica pesticida
quiteto Frederico Cardoso Aires. Como o cultivo de ostras em Pernambuco ainda é incipiente, a Ostravitta fez um arranjo produtivo local com os criadores de camarão para a criação consorciada, já que tanto o crustáceo como o mo-
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S.A.C.I
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64 ■ AGOSTO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 126
BOMBEIROS cs
lusco se alimentam com o mesmo tipo de ração. Três fazendas de criação de camarão aderiram à proposta de parceria com a empresa. •
■ Robô Saci para irrigação O robô nacional Saci, sigla de Sistema de Apoio ao Combate a Incidentes, desenvolvido pela empresa Armtec, de Fortaleza, no Ceará, está em sua terceira versão. Concebido originalmente para combater incêndios, o robô lançado recentemente, batizado de Saci 2.0, tem autonomia mínima de três horas ininterruptas de funcionamento e destina-se a projetos de irrigação, principalmente para aplicação de pesticidas em locais de difícil acesso e que representem ris-
ni conseguiu capital estrangeiro para o seu projeto, que culminou com a criação da empresa Sabertec, com sede no Texas, Estados Unidos, e representação comercial em São Paulo. •
■ Tijolo feito com garrafa
co para a ação do homem. O modelo brasileiro de combate a incêndios apresenta vantagens em relação aos similares existentes no mercado mundial. Além de lançar jatos com até 4.200 litros de água por minuto, o que representa potência 21 vezes maior do que os outros, ele suporta 100°C a mais nos circuitos eletrônicos e pode girar em 360 graus. O robô Saci 2.0 foi o vencedor no ano passado do Prêmio Finep de Inovação Tecnológica na etapa Nordeste, concedido pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), do Ministério da Ciência e Tecnologia. •
■ Filtro diminui poluição do ar Após seis anos de pesquisas, o engenheiro paulista Sérgio Verkala Sangiovani prepara-se para ver seu invento chegar ao mercado dentro de alguns meses. Ele criou o Filtro de Impacto para Particulados Diesel (IDPF, na sigla em inglês) que será usado para barrar, logo após a emissão feita pelos motores a diesel, as chamadas partículas inaláveis finas, que medem menos de 2,5 micrômetros (milionésima parte do metro). Existe um consenso entre os médicos de
que esse poluente, emitido pela queima dos derivados de petróleo, é um dos mais nocivos para a saúde humana. O dispositivo poderá ser instalado em ônibus, caminhões e geradores. Ele está regulado para aceitar a alta quantidade de enxofre que existe no diesel produzido no Brasil. Os testes já feitos no equipamento, em ônibus convencionais dentro do Autódromo de Interlagos, em São Paulo, mostraram que a redução de poluentes poderá chegar aos 40%. Para viabilizar a produção em escala comercial do invento, que já está sendo usado pela frota de ônibus em Diadema (SP), cidade onde o equipamento é produzido, Sérgio Sangiova-
Toneladas de garrafas plásticas produzidas de poli (tereftalato de etileno), ou PET, foram retiradas nos últimos cinco anos dos igarapés que cortam a cidade de Manaus e deságuam no rio Negro. Incomodados com essa situação, alunos do curso de graduação de engenharia civil da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra) de Manaus, sob a coordenação do professor Newton Lima, desenvolveram um tijolo composto de argamassa e garrafa PET de 2 litros descartada. Cimento e areia de quartzo são a base da argamassa que envolve inteiramente a garrafa. "Os testes de resistência mecânica apontaram que, se a garrafa estiver com a tampa, o tijolo agüenta esforços enormes sem se romper", diz Lima. O tijolo é moldado em fôrma de madeira com dobradiças laterais. Em cerca de sete dias já pode ser
usado na construção civil. Ensaios realizados mostraram que o tijolo com PET promove o isolamento térmico em casas populares. O próximo passo do projeto é repassar o conhecimento para os interessados. Para que isso ocorra, está em fase final de produção uma cartilha, que ensina de forma simples e direta como fabricar os tijolos. Também está sendo construído um módulo na universidade para orientar as pessoas como colocar a fiação elétrica e a parte hidráulica nas casas sem comprometimento da estrutura. São necessários cerca de 1.500 tijolos para construir 25 metros quadrados. •
■ Safra agrícola controlada Um programa que fornece informações mais precisas para previsão de colheitas, desenvolvido pelo Instituto Agronômico do Paraná (Iapar), foi lançado no mês de julho. Utilizado em caráter experimental nas duas últimas safras de soja no Paraná por instituições como a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), o PrevSafras monitora as culturas agrícolas e estima a produtividade com base nas condições climáticas e de umidade do solo das regiões produtoras. Com possibilidade de aplicação em culturas anuais e perenes, a tecnologia armazena e organiza dados, calcula a produtividade e a produção das culturas e apresenta resultados em forma de gráficos, tabelas e mapas. •
ma de madeira isada para moldar tijolo feito de PET, cimento e areia
PESQUISA FAPESP 126 • AGOSTO DE 2006 ■ 65
iv
^
7% Cilindro de hidrogênio, baterias e célula a combustível instalados em um veículo, o Vega II, montado na Unicamp
o
TECNOLOGIA ENERGIA
Reforma energética As alternativas para suprir de hidrogênio os futuros veículos e os geradores de energia elétrica MARCOS DE OLIVEIRA
ma grande mudança energética está programada para ser iniciada na próxima década, quando o hidrogênio deverá se tornar um importante combustível para gerar energia elétrica e movimentar veículos, substituindo, aos poucos, o diesel e a gasolina, por exemplo. A preparação desse novo cenário envolve vários institutos de pesquisa, todas as montadoras da indústria automobilística, as empresas petrolíferas e energéticas de todo o planeta. Motivos para o uso do hidrogênio não faltam: os preços do barril de petróleo atingiram a marca de US$ 78 em julho, enquanto não passaram de US$ 40 no ano 2000, e a necessidade de diminuição da poluição atmosférica. O uso desse gás formado por dois átomos (H2) ajuda a diminuir a presença de outro gás, o carbônico (C02), produzido pela queima dos combustíveis oriundos do petróleo, também chamado de dióxido de carbono, o principal causador do efeito estufa, fenômeno que pode aumentar a temperatura planetária e promover diversos problemas ambientais e de saúde pública. Com o avanço das células a combustível, que, de forma semelhante a uma bateria, produzem energia elétrica a partir do hidrogênio e podem ser instaladas num automóvel ou num gerador estacionário, essa nova opção energética ganha terreno em centenas de projetos tecnológicos. No Brasil, uma das linhas de pesquisa visa desenvolver um equipamento, chamado reformador, para aproveitar a produção do etanol (CH3CH2OH) da cana-de-açúcar, o álcool encontrado nos postos de combustível. Do etanol é possível extrair o hidrogênio, que não é encontrado na natureza de forma isolada, em PESQUISA FAPESP 126 ■ AGOSTO DE 2006 ■ 67
grandes quantidades, embora seja o elemento mais presente no Universo, das estrelas à água (H20). O aparelho supre a dificuldade de obtenção de hidrogênio. O primeiro grupo de pesquisa a finalizar um reformador está no Laboratório de Hidrogênio (LH2) do Instituto de Física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ligado ao Centro Nacional de Referência em Energia do Hidrogênio (Ceneh). Os reformadores desenvolvidos pelo LH2, também existentes em versões que extraem hidrogênio do gás natural (CH4), começam a ser instalados em comunidades isoladas na Amazônia, em Mato Grosso, no Hospital das Clínicas da Unicamp e em experimentos com empresas produtoras de energia elétrica como a Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL). Os objetivos são diferentes, mas a intenção final é avaliar o custo-benefício do novo sistema. "Com a CPFL-Piratininga nós trabalharemos na integração de um reformador com uma célula a combustível produzida por um fabricante brasileiro, a UniTech, empresa da cidade paulista
As células a combustível funcionam como uma bateria ou uma pilha. Transformam energia química em energia elétrica, quebrando as moléculas de hidrogênio (H2). Raro na natureza, ele precisa ser extraído de outras fontes. As mais promissoras são a água, o etanol e o gás natural. Na eletrólise, o hidrogênio segue puro para a célula. De outros combustíveis, é preciso extraí-lo por meio de um reformador. Ele pode ser estocado em cilindros, no caso dos automóveis, ou produzido ao lado da célula. Na célula, o hidrogênio entra pelo lado anodo, é quebrado em íons (H+), que passam pelo eletrólito, enquanto os elétrons (e-) são barrados e levados a produzir eletricidade. Os íons que passam encontram o oxigênio do ar no outro lado e formam a água.
de Cajobi (veja Pesquisa FAPESP n°s 70 e 103), com 2 quilowatts (kW) de potência a ser instalada em uma residência ainda não definida", conta o professor Ennio Peres da Silva, coordenador do LH2 e secretário executivo do Ceneh. Nesse caso, o reformador será de gás natural igual a outro que será instalado na comunidade de Arixi, na cidade de Anamã, no estado do Amazonas. comunidade de 600 habitantes possui energia elétrica produzida por um gerador a diesel, combustível que chega ao município via barco pelo rio Amazonas. O gás natural, que vai fornecer hidrogênio para uma célula a combustível importada, virá de uma conexão com o gasoduto da Petrobras que passa perto dali. O projeto faz parte do Programa Produção de Energia Alternativa a partir de Células a Combustível e Gás Natural do Estado do Amazonas (Celcomb) e é financiado pelo Ministério de Minas e Energia e pelo Fundo Setorial de Energia (CT-Energ), no valor de R$ 500 mil, e tem coordenação do professor Carlos Alberto Figuei-
H2 Eletrólise da água
Gás natural
68 ■ AGOSTO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 126
redo, da Faculdade de Tecnologia da Universidade Federal do Amazonas. Em Mato Grosso, num projeto com a empresa Centrais Elétricas do Norte do Brasil (Eletronorte) e a Universidade Federal de Mato Grosso, o LH2 vai instalar, no início de 2007, um reformador de etanol e uma célula a combustível em uma comunidade próxima a Cuiabá. A empreitada terá álcool fornecido pelo Sindicato das Indústrias Sucroalcooleiras do Estado de Mato Grosso (Sindialcool). Em outro projeto com a CPFL, o LH2 vai instalar uma célula a combustível no hospital da Unicamp para testes comparativos com outros sistemas de geração de energia elétrica baseados em gás natural (microturbinas e painéis fotovoltaicos abastecidos por energia solar). "Nesses três projetos estamos importando as células porque as empresas que produzem esses equipamentos no Brasil ainda estão em fase de protótipo e com preços mais altos que os importados." Além da Unitech, no país existem a Electrocell (veja Pesquisa FAPESP n°s 92 e 104), de São Paulo, e a NovoCell, na cidade de Americana. Peres já havia comprado uma célula importada para equipar a van Vega II finalizada em 2004,
montada sobre o chassi de uma Kombi, e alimentar 20 baterias, suficientes para acionar o motor elétrico do veículo. Se os pesquisadores estão importando células, pelo menos por enquanto, quando as empresas nacionais se preparam para fornecer, num futuro próximo, geradores de energia elétrica a hidrogênio para residências e indústrias, o caminho inverso também está sendo realizado no caso dos reformadores. "Um reformador de etanol foi vendido para o Instituto Nacional de Técnica Aeroespacial (Inta) do Ministério da Defesa da Espanha, que também pesquisa esse mesmo assunto", conta Peres. Para tornar o protótipo do reformador, que teve financiamento de um projeto temático da FAPESP, viável comercialmente e fornecer o equipamento para os projetos do LH2 foi criada a empresa Hytron, com alunos vinculados ao laboratório. "A empresa tem o objetivo de dar uma roupagem de produto ao reformador, além de dar garantias e oferecer assistência técnica", diz Peres. O produto, que segue para a Espanha no final do ano, custou R$ 150 mil aos espanhóis. "Na Hytron são 12 pessoas, sendo três doutores, seis mestres e quatro mestran-
dos, que também prestam consultoria na área energética", diz Paulo Fabrício Palhavan Ferreira, um dos sócios da Hytron, empresa instalada na incubadora de empresas da Companhia de Desenvolvimento do Pólo de Alta Tecnologia de Campinas (Ciatec). Custo da eletricidade - A Hytron, que recebe financiamento do Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe), também está desenvolvendo projetos de eletrolisadores, equipamentos para produção de hidrogênio a partir da água. Chamado de eletrólise, esse processo é a maneira mais fácil de produzir hidrogênio, quebrando, por meio de uma corrente elétrica, as moléculas da água. O problema é o custo alto desse procedimento, que usa energia elétrica para produzir a eletrólise, resultando na mesma energia elétrica na outra ponta do sistema. Os reformadores, ao contrário, não gastam energia elétrica para funcionar. Eles são formados por reatores em que a reação química do combustível (etanol, gás natural, gasolina etc.) com o ar libera calor e ativa a reforma. Também no reator o mesmo combustível reage com
a água para produzir hidrogênio. Sai uma mistura de gases que precisam ser purificados e separados. Esses equipamentos devem ter uma função importante na futura economia do hidrogênio. "A idéia é que eles sejam instalados nos postos, transformando qualquer tipo de combustível fóssil (gasolina, diesel, gás natural) ou de biocombustíveis (etanol, biodiesel) em hidrogênio para abastecer os veículos", explica o professor Peres. Ele se baseia no fato de que as células a combustível certamente deverão equipar os carros no lugar dos motores a combustão atuais. A japonesa Honda, por exemplo, lançou o FCX (FC de Fuel Cell, o nome da célula a combustível em inglês) no Japão e nos Estados Unidos e o disponibilizou por meio de aluguel para prefeituras e até para ser o carro de uma família (marido, esposa e duas filhas), em 2005, na cidade de Los Angeles, no estado da Califórnia, onde existe um posto para reabastecimento de hidrogênio da montadora, além de outros já instalados ou em instalação. Por enquanto é um carro de demonstração, como o Classe A, da Mercedes-Benz, produzido na Alemanha, que já possui 60 unidades
Trajetória do hidrogênio Esquema de funcionamento da célula a combustível
r Célula a combustível
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Energia elétrica
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Residênc as
H2 Célula a combustível
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PESQUISA FAPESP 126 ■ AGOSTO DE 2006 ■ 69
movidas a hidrogênio e em testes até 2007, na Europa, na América do Norte e na Ásia. A General Motors, com veículos Zafira, a Ford, com o Focus, além da Hyundai, da Fiat, da Renault e da Toyota, também testam veículos movidos a hidrogênio. Outra vantagem das células automotivas é que esses equipamentos silenciosos possuem o dobro de eficiência energética comparado com a energia gasta pelos atuais engenhos. Se o mesmo litro de gasolina usado por um motor atual for suficiente para rodar 10 quüômetros (km), com a célula o trecho percorrido seria de 20 km. "Com os reformadores e os carros gastando menos fica mais fácil para a indústria do petróleo contribuir para a diminuição dos gases estufa, melhorando a situação do ar", diz Peres. O hidrogênio é assim uma boa alternativa ao Protocolo de Kyoto, acordo mundial que estabelece regras para a redução dos gases de efeito estufa, principalmente o C02, em todo o planeta. Pesam para esse cenário os estudos da Agência Internacional de Energia (IEA
na sigla em inglês) que indicam a diminuição a partir de 2010 dos estoques de petróleo dos países produtores, mas que não pertencem à Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), como Estados Unidos, Rússia e Noruega. as décadas seguintes as reservas da Opep também devem começar a cair. Se não forem descobertas novas jazidas, a tendência é a produção diminuir e começar a escassear, resultando em mais aumento de preços. Isso somado às previsões de aumento no consumo devido ao crescimento econômico dos países em desenvolvimento, principalmente a China. Estudos de análise e previsão sobre veículos movidos a hidrogênio, inclusive da AIE, indicam que eles deverão entrar definitivamente no mercado em 2025 e em 2050 deverão ocupar 30% do mercado mundial, estimado em 700 milhões de veículos. Assim, nesse contexto global, produzir hidrogênio é fundamental. Atualmente, ele só é usado industrialmente para a produção de amônia, matéria-prima na fabricação
de fertilizantes, na produção do diesel e na indústria alimentícia na preparação da gordura vegetal hidrogenada, utilizada no preparo, sobretudo, de margarinas, biscoitos e chocolates. O uso energético do hidrogênio inclui a diminuição dos gases de efeito estufa, mesmo com o uso de um reformador que, por meio de uma reação química dentro de seu reator, quebra as moléculas do gás natural ou ainda do metanol (produzido do petróleo ou da madeira), liberando C02. Com um reformador fixo, num posto de combustível ou ao lado de um gerador de uma indústria, por exemplo, esse gás pode ser recuperado ao passar por transformações químicas, como acidificação, ou processos de adsorção (retenção de moléculas de uma substância na superfície de um sólido), sendo depois colocado em tubulações para ser levado, comprimido, num buraco no solo, em vez de ser jogado na atmosfera. A pesquisa de reformadores de combustíveis no Brasil é importante porque eles tanto poderão ser instalados em postos como em geradores estacionários. Com um ponto de gás natural é possível ter energia elétrica para uma casa, por
Ônibus brasileiro com H No final de 2007 um ônibus movido a hidrogênio deverá circular na linha que liga os bairros paulistanos de São Mateus e Jabaquara, um trajeto de 33 quilômetros que também passa pelos municípios de Diadema, São Bernardo do Campo, Mauá e Santo André. O ônibus será montado no Brasil por um consórcio de empresas nacionais e estrangeiras e deverá ser anunciado neste mês de agosto. Sob a coordenação da Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos (EMTU), da Secretaria Estadual de Transportes, o projeto vai contar com financiamento do Global Environment Facility (GEF), do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), no valor de US$ 12,5 milhões. A contraparte brasileira e a organização do consórcio são do Ministério de Minas e Energia (MME),
70 ■ AGOSTO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 126
dos e Projetos (Finep), vai investir mais US$ 3,5 milhões. A primeira versão desse projeto era para ser implementada em 2002 com ônibus que viriam da Europa. "Agora nós vamos montar o ônibus e toda a infra-estrutura para produzir hidrogênio via eletrólise da água, além de adquirir conhecimento na montagem, custo, operação, manutenção e segurança desse tipo de veículo", diz Márcio Schettino, gerente de desenvolvimento da EMTU. "A idéia é montar o primeiro, e, em 2008, montar mais quatro ônibus." No Rio de Janeiro, outro ônibus a hidrogênio está em construção. O projeto é uma iniciativa da Coordenação dos Programas de Pós-graduação de Engenharia (Coppe), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Petrobras e Finep. "Será um ônibus híbri-
io que vai funcionar somente cor célula a combustível ou com um motor elétrico por meio de um conjunto de baterias recarregadas pela célula", explica o professor Paulo Emílio de Miranda, coordenador do projeto. O hidrogênio será obtido a partir do gás natural da Petrobras. O projeto conta também com a empresa de carrocerias Buscar, da cidade de Joinville, em Santa Catarina, e da Eletra, empresa de São Bernardo do Campo, que produz ônibus com tração elétrica (Veja Pesquisa FAPESP n" 92). Experimentos semelhantes já foram realizados na Europa e nos Estados Unidos. "O europeu durou dois anos e terminou neste ano com 30 ônibus em dez cidades européias. E os resultados foram muito bons, sem nenhum problema em termos operacionais e de segurança", diz Schettino.
Primeiro carro
Ultracapacitor (armazena carga / elétrica)
Honda FCX, primeiro veículo com célula a combustível aprovado nos Estados Unidos e Japão. Por enquanto, a fábrica só aluga. Ele atinge 150 km/h e tem autonomia de 430 quilômetros
Radiador do sistema de célula a combustível
nidade umificadora da célula
exemplo, com um gerador de célula a combustível do tamanho, hoje, de uma máquina de lavar roupa. Assim os reformadores estão na pauta de desenvolvimento de outros grupos de pesquisa no Brasil, como dois da Coordenação dos Programas de Pós-graduação de Engenharia (Coppe), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). "Nós desenvolvemos um processo capaz de melhorar e tornar mais eficiente a reforma do gás natural e do etanol", diz Paulo Emílio de Miranda, coordenador do Laboratório de Hidrogênio da Coppe. O grupo desenvolveu e depositou patente de um reator usado em reformadores que funcionam à base da pirólise a plasma, um sistema que não usa vapor d'água nem catalisadores (substâncias que aceleram a reação química), como nos métodos tradicionais, e sim um gás ionizado, onde coexistem íons positivos e elétrons. A temperatura elevada dissocia as moléculas do combustível usado. "Nesse sistema não se produzem os gases C02 nem o monóxido de carbono (CO). O carbono existente nesses combustíveis se transforma num
de hidrogênio
Caixa de sistemas eletrônicos
Motor elétrico Radiador do sistema de câmbio
■NTanques
Bomba de ar
Unidade de controle elétrico
resíduo sólido chamado negro-de-fumo, que é uma das matérias-primas do pneu", diz Miranda. Também na Coppe, o professor Martin Schmal e seu grupo desenvolveram catalisadores e reatores para reformadores de gás natural e de etanol. "Nossa intenção é produzir o máximo de hidrogênio com o mínimo possível de C02 e de CO", diz Schmal. "Já depositamos patentes de catalisadores que são bem eficientes e hoje são objeto de desejo de países como a China." Para Schmal, os reformadores para células a combustível ainda não têm uma solução pronta em nível mundial. Várias pesquisas estão sendo realizadas para se encontrar um caminho mais eficiente e menos custoso. Rede local - O Rio de Janeiro possui outro centro de desenvolvimento de tecnologia para a energia do hidrogênio que fica no Instituto Nacional de Tecnologia (INT), ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). O grupo coordenado pelo pesquisador Fábio Bellot Noronha trabalha em vários pro-
jetos de desenvolvimento de reformadores de etanol com a Coppe e em parceria com o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), do MCT, e o Centro de Pesquisas de Energia Elétrica (Cepel), que comprou recentemente uma célula da empresa paulistana Electrocell. "Desenvolvemos tecnologia para produção de hidrogênio a partir do gás natural, num trabalho financiado pela Petrobras que rendeu uma patente", diz Noronha. A chamada "economia do hidrogênio", que está sendo esquematizada em todo o planeta, vai trazer alguns aspectos inusitados até o momento, como a possibilidade de descentralização energética. Uma das alternativas é manter, dentro de uma residência, uma célula a combustível gerando energia elétrica a partir do gás natural. Em horários de pouco gasto na casa, à noite ou em viagens do proprietário, será possível fornecer eletricidade para a rede local. Assim, cada casa poderia, além de ser um consumidor, gerar eletricidade e vendêla para a companhia de luz local, que, por sua vez, dependeria menos de enerPESOUISA FAPESP126 ■ AGOSTO DE 2006 ■ 71
Roteiro até 2030 Em 2010 o Brasil deverá iniciar a geração comercial de hidrogênio a partir da reforma de gás natural e em 2020 será a vez do etanol. Essas duas previsões estão presentes na versão beta (ainda não definitiva) do "Roteiro para a estruturação da economia do hidrogênio no Brasil", que recebeu a colaboração de 115 profissionais, entre pesquisadores de instituições científicas e tecnológicas e de empresas. A coordenação geral do roteiro é do Ministério de Minas e Energia (MME) e a integração técnica do Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT). Esse roteiro vai levar, provavelmente em 2007, a um programa nacional de produção e uso do hidrogênio. "Estamos definindo as rotas que interessam ao Brasil e que possam gerar benefícios sociais e econômicos, além de estudar as tecnologias relacionadas", diz Maurício Pereira Cantão, pesquisador do Instituto de Tecnologia para o Desenvolvimento (Lactec), de Curitiba, Paraná, e consultor do roteiro. "É provável que em 2030 o hidrogênio tenha uma boa participação na matriz energética do país", diz Adriano Duarte Filho, coordenador-geral de tecnologias setoriais do MCT. "Nossa intenção agora é gerar fontes de conhecimento, fazer patentes e não apenas importar modelos prontos", diz Duarte Filho. O MCT, desde 2002, mantém o Programa Brasileiro de Sistemas Células a Combustível. Recentemente ele sofreu modificações, foi ampliado e agora recebe o nome de Programa de Ciência, Tecnologia e Inovação para a Economia do Hidrogênio. Neste ano o programa já implementou três redes de pesquisa envolvendo, num prazo de três anos, 34 laboratórios e 20 universidades e um valor de R$ 29 milhões.
72 ■ AGOSTO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 126
Em Washington, Estados Unidos, posto de abastecimento de hidrogênio
gia elétrica vinda de longe, das hidrelétricas ou das termelétricas. Em outros casos, as indústrias e as próprias companhias hidrelétricas teriam outras vantagens. "Uma indústria de laticínios que estamos estudando produz em seus efluentes 67% de metano (CH4), gás que também compõe o gás natural, e de 3 a 8% de ácido sulfídrico (H2S). "Ao retirar esse ácido com um filtro de carvão ativado ou um filtro de hidróxido de ferro, que está sendo desenvolvido por nós, o gás restante poderia ser usado em um sistema de reforma para produzir hidrogênio e energia elétrica para a própria indústria", conta o professor José Luz Silveira, coordenador do Grupo de Otimização de Sistemas Energéticos (Gose) da Faculdade de Engenharia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Guaratinguetá. Silveira também desenvolve pesquisas com reformadores. No início de julho entregou um protótipo para a Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig), em um projeto financiado pela própria companhia e supervisionado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
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Outras duas grandes companhias brasileiras também estudam o uso energético do hidrogênio. Uma é a Petrobras, que está investindo US$ 1 milhão por ano desde o ano 2000 em pesquisa e desenvolvimento tanto no seu Centro de Pesquisas da Petrobras (Cenpes) como em parcerias com institutos de pesquisa. "O hidrogênio desponta como energia alternativa viável para o país e nós, como uma companhia de petróleo, que se transformou em uma companhia energética, desenvolvemos estudos para avaliar todas as oportunidades de futuros negócios para a empresa", diz Maria Helena Troise Frank, consultora da gerência de gás e energia da Petrobras. A companhia estuda alternativas para produção, armazenamento, postos de abastecimento, logística de distribuição, usos e aplicações de hidrogênio, mesmo porque a empresa já possui conhecimento nessa área ao produzir 500 toneladas de hidrogênio por dia, a partir de gás efluente das refinarias, usadas para a produção de diesel e de amônia. "Estamos pesquisando e analisando todas as possibilidades de célula a com-
No LH2, na Unicamp, reformador extrai hidrogênio de gás natural ou de etanol
bustível tanto do ponto de vista automotivo como da produção de sistemas para geração de energia elétrica", diz Paulo Fernando Isabel dos Reis, coordenador da área de célula a combustível da Petrobras. A empresa também aposta na produção de hidrogênio por meio de biomassa, que é a gaseificação, por
processos termoquímicos, de bagaço de cana, briquetes de madeira e outros compostos orgânicos de rejeitos industriais, por exemplo. "O Brasil tem vocação para isso, somos a Arábia Saudita da biomassa", diz Reis. Outra grande empresa que estuda o uso energético do hidrogênio é a Itaipu \
/ OS PROJETOS Análise técnica, econômi :a e ambiental do uso da cana-de-açúcar para a geração sustentável de energia ei étrica Subprojeto: reformador c e etanol MODALIDADE
MODALIDADE
Projeto Temático COORDENADORES Geral: JOSé GOLDEMBERG - USP Subprojeto: ENNIO PERES DA SILVA
Unicamp INVESTIMENTO
R$ 1.092.212,30 (Total FAPESP) R$ 125.700,00 (Subprojeto)
Desenv olvimento e otimiza ção de unidade integra da de reforme 3 de etanol para produç ao de hidrogênio
Programa Inovação Tecnológica em Peguenas Empresas (Pipe) -
COORDENADOR JOãO CARLOS CAMARGO
- Hytron
INVESTIMENTO
R$ 42.980,00 e US$ 7.100,00 (FAPESP)
Binacional. Conforme a época do ano, no período das cheias dos seus reservatórios, a empresa produz 3 mil megawatts, energia suficiente para dezenas de pequenas cidades, que não é aproveitada por falta de linhas de transmissão ou por não haver demanda. Uma das idéias é produzir hidrogênio por meio de eletrólise e a um custo baixo ao lado da Usina de Itaipu, no Paraná. Esse hidrogênio inicialmente poderia ser para uso industrial e mais tarde, por meio de tubulações específicas, chegar aos postos de combustível para abastecer os futuros veículos a hidrogênio. Coração da célula - A eletrólise também é a opção para a produção de hidrogênio em que se baseia a equipe dos professores Roberto Fernando de Souza e Jaírton Dupont, do Instituto de Química da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Eles desenvolveram com o apoio financeiro da Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE) do Rio Grande do Sul um novo sistema de eletrólise que separa o hidrogênio da água utilizando um líquido iônico, uma substância orgânica condutora de eletricidade chamada de sais de imidazol. "Além da eletrólise comum, esse líquido pode ser usado no lugar do coração da célula a combustível", diz Souza. Ele se refere aos eletrólitos da célula que colocam em contato os eletrodos em que o hidrogênio e o oxigênio reagem gerando eletricidade. Atualmente existem dois tipos de célula mais pesquisados para uso comercial: um que usa uma membrana de polímero, as chamadas células PEM, sigla em inglês para Membrana de Troca de Prótons, e as células de oxido sólido, ou Sofc (da sigla em inglês de Solid Oxide Fuel Cell), de eletrólito formado por vários tipos de material cerâmico. "Depositamos uma patente cobrindo o uso de líquidos iônicos para eletrólise da água e outra para uso do mesmo material fluido em células a combustível. Temos a convicção de que a eletrólise é o melhor caminho para não continuarmos poluindo o planeta", diz Souza. "A eletrólise da água é a maneira mais fácil de obter hidrogênio com alta pureza tanto a partir de energias renováveis como das hidrelétricas à noite, quando o consumo cai, e também por meio da energia eólica ou solar." • PESQUISA FAPESP 126 ■ AGOSTO DE 2006 ■ 73
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TECNOLOGIA ENGENHARIA AERONÁUTICA
IMPACTO em vôo Estudo ajuda a prever limite de resistência da fuselagem dos aviões a choques com objetos estranhos YURI VASCONCELOS
m 2005, o Ministério da Aeronáutica contabilizou 480 incidentes envolvendo a colisão de aves com aviões no país, principalmente durante o pouso ou a decolagem. O problema, aliás, atinge todo o planeta, até porque aumentou a população de aves em muitos países conforme demonstram alguns estudos - um fator positivo para o ambiente, mas que traz preocupações para os fabricantes, como é o caso da brasileira Embraer. A empresa acaba de adotar um avançado sistema de análise de estruturas de aeronaves desenvolvido nos laboratórios da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP). O sistema é composto por um modelo matemático que verifica o limite de resistência dos materiais utilizados na fabricação da fuselagem e das asas dos jatos, além de prever quando ocorrerá ruptura em razão do choque com objetos estranhos. Impactos indesejáveis marcaram um dos mais célebres aviões de todos os tempos, o legendário supersônico anglo-francês Concorde, que teve um fim melancólico. No dia 25 de julho de 2000, segundos depois de decolar do aeroporto RoissyCharles de Gaulle, nos arredores de Paris, incendiou-se e desabou do céu, matando todos os 109 passageiros e tripulantes a bordo e mais quatro pessoas em terra. O acidente abreviou a carreira da aeronave, que acabou aposentada três anos depois. A tragédia foi causada por uma série de acontecimentos fatais. Na hora da decolagem, o pneu do avião se rompeu ao passar sobre uma 74 ■ AGOSTO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 126
peça metálica solta na pista, que havia se desprendido de outro avião. Pedaços de borracha do pneu foram lançados contra a asa, perfuraram o tanque de combustível e levaram à explosão do jato. Embora nem todos os acidentes provocados pela colisão de objetos estranhos, como pedaços de metal, borracha, pedras, granizo ou aves, resultem na queda da aeronave, como aconteceu com o Concorde, esses eventos sempre trazem perigo e são mais comuns do que se possa pensar. "A ruptura desses materiais é muito difícil de ser prevista pela complexidade do fenômeno, já que ele envolve muitas variáveis, como as propriedades do material usado na fabricação do avião, o tamanho e o formato do objeto impactante, a velocidade e o ângulo da colisão, entre outros", explica o engenheiro mecânico Marcílio Alves, professor da USP, que esteve à frente do projeto. "As informações fornecidas por nosso modelo matemático serão essenciais na melhoria do desenvolvimento dos aviões da fabricante brasileira, uma vez que revelarão dados sobre a resistência dos materiais utilizados em suas aeronaves", afirma Alves, que também é coordenador do Grupo de Mecânica dos Sólidos e Impacto em Estruturas do Departamentooe Engenharia Mecatrônica e de Sistemas Mecânicos da Poli. O modelo matemático foi transformado num código computacional e acoplado a um programa comercial de análise estrutural utilizado pela fabricante. A expectativa é que ele comece a ser usado ainda este ano. A idéia de desenvolver a ferramenta partiu da própria Embraer. "Nosso primeiro contato com a empresa aconteceu em 2000. Dois anos depois,
Teste na USP: impacto de esfera metálica contra placa de alumínio aeronáutico
Sistema simula colisões de esfera de metal na estrutura da aeronave
iniciamos o trabalho e, para isso, contamos com financiamento da FAPESP por meio do programa Parceria para Inovação em Ciência e Tecnologia Aeroespacial (Picta)", revela o pesquisador. O Picta é destinado a projetos do setor aeroespacial e faz parte do programa Parceria para Inovação Tecnológica (Pite), destinado ao financiamento de projetos conjuntos entre universidades, institutos de pesquisa e empresas. Segundo Alves, a Embraer já contava com um processo de análise de falha por impacto, porém mais simples e limitado. "Quando nos procurou, uma das preocupações da companhia era reduzir o número de testes experimentais de impactos de aves (aves de criação de tamanho e peso semelhantes a urubus, por exemplo) e materiais rígidos em seus aviões, substituindo-os por simulações numéricas. Com a nossa ferramenta, será possível eliminar alguns ensaios, principalmente os da fase de desenvolvimento de novas aeronaves." Esses testes de impacto são uma exigência de órgãos certificadores de aeronaves. Um aspecto importante do projeto foi o trabalho de caracterização das ligas de alumínio empregadas na fabricação da fuselagem e das asas dos aviões. O material foi ensaiado em condições estáticas e dinâmicas, quando são medidos o comportamento da fuselagem em situações de impacto em vôo ou sob temperaturas que variaram de 70 graus Celsius negativos a 150 positivos. Os testes dinâmicos submetem os materiais a rápidas mudanças de formato que ocorrem de forma similar, com durações de micros76 ■ AGOSTO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 126
segundos, nos pequenos choques aéreos. Essa caracterização é importante porque revela informações sobre a resistência dos materiais e dá indícios sobre seus parâmetros de deformação e ruptura. "O conhecimento das propriedades dinâmicas do material é fundamental para a análise de estruturas sob cargas de impacto", ressalta o engenheiro. Para a realização desses ensaios, os pesquisadores precisaram desenvolver equipamentos específicos para testes dinâmicos, sem similares no Brasil. Canhão para testes - Outro aparelho projetado e construído durante o programa foi um lançador de projéteis, também conhecido como canhão de gás (do inglês gasgun). Sua função é lançar pequenos objetos, como esferas de aço e pedaços de borracha, a velocidades compatíveis com a de um avião em siO PROJETO Comportamento de materiais e estruturas aeronáuticas sujeitas a impacto MODALIDADE
Parceria para Inovaçãoem Ciência e Tecnologia Aeroespaabl (Picta) e Parceria para Inovação Tecnológica (Pite) COORDENADOR MARCíLIO ALVES
■ USP
INVESTIMENTO
R$ 367.896,00 (FAPESP) e R$ 210.000,00 (Embraer)
tuações de impacto com aves - entre 100 e 600 quilômetros por hora (km/h) contra estruturas aeronáuticas, como chapas metálicas da fuselagem, simulando a colisão do avião com um objeto. O aparelho é formado por um cilindro de gás comprimido, um tubo de 6 metros de extensão e largura de 50 a 100 milímetros e um dispositivo de fixação para colocação do material que será impactado pelo projétil. Medidores infravermelhos de velocidade e de microdeslocamentos a laser mensuram a velocidade do objeto lançado e a deformação sofrida pela estrutura. "Esses testes são importantes para validar o nosso modelo matemático. Com eles fazemos uma comparação da teoria com a prática", explica Alves. Nos três anos que durou o projeto, encerrado em julho, a equipe, formada também pelos professores Larissa Driemeier e Sérgio Proença, da Escola de Engenharia de São Carlos da USP, e o doutorando Giancarlo Barbosa Micheli, da Poli, além do engenheiro Carlos Eduardo Chaves, da Embraer, contou com a colaboração de pesquisadores estrangeiros do Instituto de Mecânica da Academia de Ciências da Bulgária, do Centro de Pesquisas em Impacto da Universidade de Liverpool, da Inglaterra, e da Universidade de Dortmund, na Alemanha. "A cooperação internacional foi essencial para a realização do projeto", diz Alves. "Além disso, com o conhecimento adquirido pelo grupo da Poli nos últimos dez anos, oferecemos treinamento para 25 engenheiros da Embraer sobre impactos em estruturas aeronáuticas." •
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TECNOLOGIA TV DIGITAL _
Imagem robusta Depois da escolha do modelo japonês, agora é a vez das inovações epois de anos de negociações, o sistema de transmissão de televisão digital japonês superou os padrões europeu e americano e será adotado no Brasil. O decreto presidencial n° 5.820 decidiu pelo nipônico Integrated System Digital Broadcasting (ISDB) e fornece as diretrizes para implantação do Sistema Brasileiro de TV Digital Terrestre (SBTVD-T). No início, o sinal digital só será captado por quem adquirir um pequeno aparelho, chamado de terminal de acesso. Mais tarde estarão disponíveis as TVs preparadas com a nova tecnologia, além de celulares ou computadores com chips especiais de recepção de sinal de TV. Nos testes com os três padrões realizados em São Paulo, desde 1998, pelo Laboratório de TV Digital da Universidade Presbiteriana Mackenzie, o sistema japonês se mostrou o mais robusto para a televisão brasileira, majoritariamente captada por antenas, além de ser menos receptivo a interferências e apto à mobilidade (Veja Pesquisa FAPESP n° 120). A questão agora, num período de quase um ano e meio, quando os primeiros sinais da TV digital brasileira deverão estar no ar, são os estudos para incorporação de parte das tecnologias desenvolvidas por cerca de 1.200 pesquisadores brasileiros de 75 instituições de pesquisa e empresas e quase R$ 40 milhões investidos. O sistema de modu-
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Detalhe da tela (acima) e imagens para testes da TV digital
lação é japonês, mas outros subsistemas importantes para a funcionalidade da TV digital serão acoplados ao SBTVD. A partir deste mês de agosto pesquisadores e técnicos dos dois países começam a se encontrar e decidir as novidades para a TV brasileira. "Será um sistema híbrido com inovações", afirma André Barbosa Filho, membro do comitê de desenvolvimento do SBTVD e assessor da ministra da Casa Civil, Duma Rousseff. Entre as inovações deve estar o middleware, sistema que codifica e decodifica o fluxo de bits e identifica o que é som, vídeo e dados de interatividade. Vários grupos desenvolveram midâlewares. Entre eles estão pesquisadores da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O sistema de compressão de vídeo deverá ser um dos mais avançados do mundo com a adoção do sistema MPEG-4, sigla de Moving Picture Experts Group, criado por um grupo de
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especialistas mundiais que decidem a padronização de mídias. Essa versão é mais avançada que a MPEG-2 utilizada pelos japoneses e pela maioria das TVs européias. A pesquisa com o MPEG-4 foi realizada pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul. Haverá espaço ainda para softwares que agreguem características próprias da cultura brasileira e facilitem a inclusão digital. "Também estamos empenhados num programa especial para o terminal de acesso. Não queremos apenas um sinal de vídeo melhorado, queremos aplicativos que garantam até baixar informações veiculadas pelas emissoras", diz Barbosa Filho. Isso será importante principalmente em canais e programas educativos que devem ser veiculados nos quatro canais públicos a serem criados no SBTVD. "Iniciamos um esforço para integrar o conhecimento gerado em outras universidades. Estamos consolidando e harmonizando o desenvolvimento do terminal", diz Marcelo Knõrich Zuffo, professor do Laboratório de Sistemas Integráveis (LSI) da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), coordenador do grupo que desenvolveu o terminal. Desses estudos também participam as empresas de eletroeletrônicos e as emissoras de TV. "Precisamos trabalhar em conjunto, sem diminuir ou isolar o papel das universidades no proveito apenas da pressão econômica em colocar rapidamente os terminais no mercado", diz Zuffo. • MARCOS DE OLIVEIRA PESQUISA FAPESP 126 ■ AGOSTO DE 2006 ■ 77
O TECNOLOGIA ENGENHARIA DE MATERIAIS
Bonito, liso e
imoermeá e
Empresa paulistana desenvolve novo material que substitui com vantagens o granito» o mármore e o aço inox YURI VASCONCELOS
78 ■ AGOSTO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 126
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uem não é do ramo da construção civil, arquitetura, decoração ou design de interiores provavelmente nunca ouviu falar de um produto conhecido como superfície sólida mineral, com a sigla SSM, emprega^^fl do na fabricação de cubas para pias e lavatórios, balcões, tampos e bancadas para cozinhas, banheiros, hospitais, clínicas ou laboratórios químicos e farmacêuticos. Trata-se de um material bonito, agradável ao tato e que pode ser usado no lugar do granito, do mármore, do aço inoxidável e da fórmica. Até há pouco tempo ele não era produzido no país. Mas uma conjunção de acasos e uma pitada de ousadia fizeram a empresa paulistana Perc Engenharia investir no desenvolvimento do produto e se tornar o seu primeiro fabricante nacional. Tudo começou em meados dos anos 1990, conforme explica o engenheiro Paulo Carlos Galin, sócio-diretor da Perc. "Ao fazer um orçamento para construção de uma loja,
conheci um novo material vendido na forma de chapas pela Du Pont (multinacional da área química), batizado de Corian. Era um tipo de SSM, cujo processamento, percebi, era muito similar ao da madeira. Aprendemos a trabalhar com esse produto e iniciamos uma nova atividade na empresa", recorda-se Galin. A "descoberta" do material foi o primeiro acaso. O segundo surgiu a partir das preocupações ambientais de Galin. Inconformado com as sobras geradas na hora do corte das chapas de Corian um tipo de serragem no formato de pétalas de flor -, ele procurou os pesquisadores do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) para tentar desenvolver uma técnica para reciclar o resíduo. "O projeto, no entanto, não se mostrou viável. Naquela mesma época tomei conhecimento da existência do Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe) e pensei: 'Por que, então, não tentamos desenvolver um produto nacional similar ao Corian?'. E foi isso que fizemos", conta o engenheiro. Com suporte financeiro da FAPESP, os técnicos da Perc e do Ipen atingiram a formulação ideal do produto. Em seguida, desenvolveram o processo para fabricação de chapas e cubas de pias. De quebra, também criaram um adesivo feito do mesmo material só que em estado líquido -, usado para unir as cubas de pias às bancadas. Conhecida no exterior como solid surface, a superfície sólida mineral é um composto obtido a partir de resinas acrílicas especiais e cargas, termo técnico que designa certos materiais inorgânicos particulados, minerais, principalmente a alumina, um derivado do alumínio. É um material impermeável e, por não ser poroso como madeira, granito ou mármore, não absorve nenhum tipo de líquido e torna-se mais higiênico. Ao mesmo tempo, manchas e pequenos riscos podem ser removidos com limpadores abrasivos comuns e uma esponja de aço. "Além disso, suas emendas são imperceptíveis, já que as peças são coladas com o adesivo num processo de fusão a frio", destaca Galin. O detalhe das emendas é importante e, em certos casos, significa uma van-
tagem e tanto. "Para a fabricação de uma grande bancada em um hospital ou laboratório farmacêutico, por exemplo, as chapas de aço inoxidável são coladas com silicone e as emendas podem tornar-se pontos de alojamento de bactérias. Como as emendas de SSM são imperceptíveis, elas diminuem os riscos", explica o dono da Perc. Mercado de chapas - Embora domine o processo de fabricação tanto das chapas quanto das cubas de SSM, a Perc, por enquanto, está produzindo apenas as cubas. Trata-se de uma estratégia comercial. "Para fabricar as chapas, com dimensão padrão de 76 centímetros por 3,86 metros e 12,5 milímetros de espessura, é preciso fazer um importante investimento na linha de produção. Além disso, o volume de venda tem que ser grande, da ordem de mil peças por mês, para que haja economia de escala. Esse número é difícil de ser atingido, já que o mercado de SSM não é grande no Brasil", afirma Galin. Talvez por ser um material mais caro. Por isso, a Perc optou por fabricar apenas as cubas, que são moldadas a partir da mesma solução polimérica usada para fazer as chapas e o adesivo. Os principais clientes da empresa são multinacionais que trabalham com materiais similares importados, como o Corian da Dupont, o Surrei da Pertech e o HiMacs da LG Electronics. Para fabricação das cubas, a Perc precisou montar um laboratório químico. 0 PROJETO Desenvolvimento de compostos a partir de resíduos cerâmicos como substitutos de granito, madeira ou outros revestimentos nobres MODALIDADE
Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe)
COORDENADOR PAULO CARLOS GALIN
- Perc
INVESTIMENTO
R$ 273.934,00 (FAPESP)
O processo de produção começa com a aquisição da resina acrílica, obtida a partir de polimetilmetacrilato (PMMA), e de outras matérias-primas, como aditivos, pigmentos e cargas. "Fazemos uma mistura dentro de um reator e geramos uma solução composta polimérica, viscosa como mel. Em seguida essa solução é colocada num molde, num processo conhecido como casting, para fabricação da cuba", afirma Marcos Sobral Ribeiro, um dos dois químicos do Departamento de Desenvolvimento da Perc, junto com Jaime Valério Ferreira. A cura da cuba se dá em temperatura ambiente e a reação ocorre em torno de uma hora e meia. "Depois de muitas tentativas, conseguimos refinar a fabricação sem necessidade de recorrer a elevadas temperaturas. Isso simplificou o processo e reduziu o custo de produção", ressalta Ribeiro. A última etapa da fabricação consiste em colocar a peça moldada numa estufa, a cerca de 90 graus Celsius, para uma pós-cura, com a finalidade de eliminar monômeros livres (resíduos da resina acrílica) que não sofreram reação. A diferença entre a fabricação das cubas e do adesivo está na concentração de cargas minerais e alguns aditivos. Segundo Paulo Galin, a solução composta polimérica utilizada para fazer as cubas também pode ser empregada para a moldagem de outras peças. A Perc, inclusive, já recebeu encomenda para fornecer tampas para lixeiras e cinzeiros distribuídos nas áreas comuns de um shopping paulistano. A meta inicial da Perc é comercializar 100 cubas por mês. O produto está disponível em seis diferentes modelos, com formatos e cores diferentes, e é fabricado com materiais que lhe conferem ação antibactericida. Um dos primeiros contratos foi firmado com o governo paulista, para quem a firma vai fornecer 16 cubas, que serão instaladas no berçário de um centro hospitalar atualmente em construção. Confiante no sucesso do produto, a empresa já esboça planos de exportar o produto para outros países, como Estados Unidos, Japão e Europa, onde materiais feitos à base de SSM são mais conhecidos. • PESQUISA FAPESP 126 ■ AGOSTO DE 2006 ■ 79
Q HUMANIDADES COMUNICAÇÃO
Quem tem poder sobre o
quarto poder? Blogs desmitificam jornalismo e pautam noticiários CARLOS HAAG
80 ■ AGOSTO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 126
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omeçou com um programador de computadores chamado John Barger que, entediado com o trabalho, mas excessivamente autoconfiante em suas opiniões, resolveu "postar" na internet umas notinhas em seu website em que comentava, de forma personalíssima, o andamento do conflito israelo-palestino. Aos poucos, foi falando sobre tudo e, ganhando gosto pela coisa, passou a atualizar diariamente a sua "coluna" pessoal. Batizou-a de "weblog" ou "diário de bordo da rede". O termo pegou e, logo, outro colega, brincando com a sonoridade da palavra (escreviaa como "wee-blog"), acabou cunhando o termo: blog. Uma década mais tarde, o deputado Roberto Jefferson, no meio de seu depoimento ao Conselho de Ética da Câmara, nervoso, reinventou a palavra ao gritar "Blig do Noblat! Bomba!" após ler um papel que passaram a ele. O polêmico parlamentar se referia
ao blog político do jornalista Ricardo Noblat, que antecipava a entrevista da secretária do então desconhecido Marcos Valério à IstoÉ Dinheiro. A falta do que fazer arrogante de Barger criara um mecanismo poderoso. CPIs eram interrompidas por parlamentares que retransmitiam informações obtidas em blogs políticos. "A internet deu vida à cobertura da crise do mensalão. Hoje todo mundo trabalha com o computador ligado. Foi uma crise em tempo real", analisa o jornalista Nelson de Sá, responsável pela coluna Toda Mídia da Folha de S.Paulo. A expressão "todo mundo" não é apenas retórica. Segundo pesquisa recente do site especializado Technorati, existem na rede mais de 38 milhões de blogs e esse número dobra a cada seis meses: na média, um novo weblog é criado a cada segundo do dia. O volume atual é 60 vezes maior do que o de há três anos. O novo universo ganhou o apelido ousado de "blogosfera". "Essa estrutura traz diferenças fundamentais para o processo comunicativo", observa Alessandra Aldé, pesquisadora do Iuperj e profesPES0UISAFAPESP126 ■ AGOSTO DE 2006 ■ 81
sora da Uerj, uma das poucas acadêmicas a se debruçar sobre o fenômeno dos blogs, em especial os de opinião. "Trata-se de uma emissão dispersa e capilarizada, fundamentalmente nãohierárquica, em que emissores alternativos e atores políticos marginais podem tentar produzir eventos noticiáveis, procurando atrair a atenção do público, seja do especializado, como os jornalistas, seja do curioso ou interessado. Seu uso como fonte torna a rede um novo campo de disputa política." Literalmente falando. O secretário de relações internacionais do PT, Valter Pomar, divulgou recentemente um texto para os militantes do partido, convocando-os a "acompanhar os sites, blogs e comunidades de relacionamento, fornecendo informações", para, palavras suas, "combater a 'guerra suja' que ocorrerá na internet nessa eleição". Ainda assim, marqueteiros e políticos ainda não são unânimes na avaliação da importância crescente da rede como fonte de decisão política. Há, porém, muitos exemplos, aqui e no exterior, que podem mudar esse quadro. "A internet alcança uma 'Bélgica' de internautas e constitui o motor de disseminação de opiniões na sociedade brasileira e que se dá por meio da capacidade desse segmento de influenciar a agenda e os enfoques
que a grande mídia, sobretudo a TV, imprimem na base. A 'batalha da Bélgica' na internet vai definir a eleição deste ano", avalia o sociólogo Antônio Lavareda. Nos Estados Unidos e na Europa batalhas desse tipo já causaram baixas importantes. Em 2002, o líder republicano do Senado, Trent Lott, fez observações racistas numa festa de aniversário. A grande mídia ignorou o fato, acostumada aos comentários impróprios do senador. A blogosfera, porém, não perdoou e denunciou Lott na rede, de forma tão vigorosa que, passada uma semana da fatídica festinha, a imprensa viu-se obrigada a retomar o tema e o republicano caiu em desgraça. Ano passado, o ministro do Interior da França, Nicolas Sarkozy, concedeu entrevista ao blogueiro Louis Le Meur, atacando os imigrantes. A fala correu a net e foi responsável pela onda de violência nos subúrbios de Paris. Atores - "Comparado com os grandes atores da vida política (grupos de interesse, comitês políticos, a mídia), os blogs, se você os olhar de perto, parecem pouco poderosos ou mesmo pouco visíveis, ainda mais em sociedades com alto índice de exclusão digital. Pode até existir um grande volume deles, mas a experiência mostra que apenas 'uma elite' é catalisadora de informação na blogosfera. Ainda assim, quem hoje pode se dar ao luxo de desprezar o seu papel, fundamental, no fórum político, movimentando a
vida política de grandes nações?", pergunta-se Daniel Drezer, da Universidade de Chicago, autor de Thepower andpolitics of blogs. No Brasil esses efeitos têm um potencial ainda desconhecido, mas, com certeza, nada desprezível. "Os brasileiros, depois das grandes mobilizações pela redemocratização dos anos 1980, se decepcionaram com a política, que lhes parece algo distante para ser deixada a especialistas", afirma Alessandra Aldé. Ainda assim, acredita a pesquisadora, a necessidade de justificarem, mesmo que para si mesmos, as suas opiniões sobre o universo político, faz com que os brasileiros estejam atentos a discursos legitimadores que simplifiquem a complexidade da política. "A mídia surge aí como uma estrada sinalizada que propõe uma organização autorizada dos eventos. Em boa parte, a televisão traz um repertório de fácil acesso e grande credibilidade, mas existe uma demanda latente, que não é atendida, por informação e participação na vida pública. Nesse caso, não interessam critérios de audiência, mas sim critérios políticos, de coerência com a norma democrática que se escolheu", explica. Segundo ela, a rede pode atender essa demanda, por ser um veículo mais democrático que os meios de massa tradicionais. "Blogueiros são falantes e escritores de sua própria invenção, em geral na esfera pública. Eles estão participando do grande jogo de influência da opi-
nião pública e estão desenvolvendo nesse movimento, em geral fruto de um trabalho de paixão sem remuneração, um instrumento de mídia dos mais democráticos", concorda Jay Rosen, professor de jornalismo da New York University. "O jornalismo tradicional frustra e tem sua importância de ser pela mesma razão: é uma instituição com todo um maquinário para checar, editar e distribuir informações. Para manter isso funcionando por tanto tempo, criou-se o rótulo da 'confiança, credibilidade, visibilidade', difícil de ser superado", analisa. Para Rosen, no entanto, essa rigidez acabou por revelar a falácia que é a virtude da grande imprensa: a imparcialidade. "Da forma em que está construída hoje, essa objetividade faz com que a mídia seja facilmente manipulada por um braço executivo que controla a mensagem e produz uma ortodoxia rígida, excluindo qualquer voz que não seja a convencional." Muitos riram de Nelson Rodrigues quando ele criticou a chegada no jornalismo do "idiota da objetividade". O "reacionário" viu mais cedo e mais longe? "O Império Romano que era a mídia está desmoronando e estamos entrando num período quase feudal, em que haverá muito mais centros de poder e influência", avalia Orville Schell, professor de jornalismo da Universidade da
Califórnia. "Por anos, a mídia desperdiçou grandes profissionais, acreditando que isso não mudaria em nada o negócio. Muitos deles viraram blogueiros e estimularam antigos leitores a fazer o mesmo. Agora a hegemonia do jornalismo como o guardião das notícias está ameaçada, não por novas tecnologias ou por rivais, como se imaginava até então, mas, potencialmente, pelo público a que ele deveria servir: o leitor, transformado em escritor, jornalista e editor", fala Rosen. próprio Ricardo Noblat, um dos blogueiros mais influentes e acessados da rede, é prova desse engano das redações. Em 2004 ele era autor de uma página de política dominical no jornal O Dia. Quando suas notícias eram publicadas já haviam passado da validade. Noblat, apesar de pouco saber de tecnologia e computação, aceitou fazer um blog para não perder suas notas e, quando a coluna foi extinta, viu que o público prestigiava de forma crescente, com comentários e informações, o seu jornalismo eletrônico. No auge da crise política, sua página chegou a ser acessada por mais de 700 mil internautas. Mais: os políticos se pautavam pelas opiniões de seu blog. E não só eles, mas, acima de tudo, a própria imprensa. "O meio favorece esse encontro. A blogosfera é um meio barato para o blogueiro
expressar suas idéias e ainda mais em conta para terceiros usarem as informações que eles colocam nos blogs. A mídia tradicional, chamada pelos blogueiros de 'midiaesfera', nesse movimento acaba funcionando como uma corrente de transmissão entre a blogosfera e os atores políticos poderosos. Os blogs afetam o debate político na medida em que afetam o conteúdo das reportagens da mídia convencional e seus comentários sobre política", analisa Drezner. "Portanto, além de ser um importante meio de comunicação direta, para acesso de uma elite cognitiva qualificada pelo acesso aos meios de comunicação de massa, a internet contribui para o acesso especializado de divulgadores como os jornalistas, que monitoram conteúdos em busca de histórias e eventos noticiáveis, contribuindo para que o imaginário tecnológico que envolve a rede vá muito além de seus usuários diretos", avalia Alessandra. A pesquisadora lembra o exemplo chinês, em que há um investimento governamental num sistema de persuasão virtual, com uma força-tarefa de comentaristas on-line cuja missão é influenciar anonimamente a opinião dos usuários da internet, nos fóruns de discussão, com relação a temas políticos controversos, num universo de 100 milhões de internautas. Nem sempre, porém, essa demo-
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cratizaçao e manipulada. "Em termos de debate público, essa transformação tende a horizontalizar e pluralizar as relações de conhecimento e autoridade presentes na construção das opiniões e atitudes políticas dos cidadãos. Os blogs, pessoais ou de jornalistas, alçam os leitores a contribuintes nesse ciberespaço privilegiado de construção da opinião pública", observa. "Se a mídia tradicional constrói pontos focais pelos quais os atores políticos operam, a blogosfera é capaz de fazer o mesmo com a forma pela qual a mídia opera. Os blogs são lidos como um barômetro de interesse num dado tema. Se os leitores-escritores do blog se concentram em algo, isso, com certeza, interessará à mídia, que será afetada pelo consenso, da mesma forma que a opinião pública é afetada pela mídia", avisa Drezner. A equação "aconteceu, virou manchete" se transforma em "se tantos estão interessados, vamos fazer uma manchete". A função do jornalista é desmitificada. "Há uma mudança na relação entre jornalista e leitor, já que este é convidado a participar. Um blog que 84 ■ AGOSTO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 126
não suscite reações por parte dos leitores não é bem-sucedido. Rompe-se, assim, a expectativa do jornalista como um intermediário autorizado que processa para o leitor as informações e as torna inteligíveis para eles, situados que estariam num degrau menor privilegiado na escala do conhecimento", nota Alessandra. "No blog, a posição do jornalista, ao contrário, é humilde e subjetiva, pois depende do retorno dos leitores", completa. Informalidade e subjetividade são a tônica dos blogs jornalísticos. Erros são cometidos num post e corrigidos no próximo; reputações são dissecadas numa nota e retomadas na seguinte. A "cozinha" da notícia está aberta para visitações. "Ao contrário da edição de um diário, cujas matérias vão sendo modificadas ao longo do dia, sendo mesmo descartadas antes de chegar ao leitor, no jornalismo on-line o processo de apuração, reportagem e checagem dos fatos acontece em tempo real e é acompanhado pelos leitores que têm acesso a uma variedade maior de informações fragmentadas e fontes alternativas", lembra Alessandra. A blogosfera, sem as restrições de espaço dos meios tradicionais,
transforma-se numa rara combinação de conhecimentos compartilhados, reação coletiva às notícias, barômetro de opinião pública (capaz de pautar as redações se uma notícia deve receber mais ou menos atenção pelos meios convencionais) e rapidez na informação. Jornal Nacional - Quem quiser saber o resultado de uma pesquisa eleitoral recente não precisa esperar até o fim do Jornal Nacional para conhecê-lo. Os blogs políticos adiantam e comentam antes mesmo da antes veloz televisão e muito adiante dos jornais do dia seguinte. Qual o preço disso? Um bom exemplo foi a eleição de 2002, a primeira no Brasil em que a internet desempenhou um papel político relevante, usada estrategicamente pelos candidatos para provocar notícias em tempo real que acabaram amplificadas pela mídia, reforçando ataques que, de outra forma, não teriam tido tanta visibilidade. Vários candidatos usaram suas páginas na rede para divulgar informações duvidosas, jingles maldosos, partir para confrontos diretos, confundir a cabeça dos eleitores sobre a agenda de um rival etc, material combustível que não
ficava na net mais do que algumas horas, mas acabava repercutindo amplamente nas páginas dos jornais ou nos noticiários da televisão. Esse marketing político permitia ampliar a audiênciaalvo e diminuir custos de campanha, ao mesmo tempo evitando a reação direta da Justiça Eleitoral, mais alerta ao que se passa nos meios convencionais de veiculação eleitoral. "O acompanhamento dos fatos em tempo real condiciona uma cobertura contínua em que os leitores participam do desenrolar da reportagem. Se for escandalosa ou novelesca, com desmentidos e repercussões a cada momento, mais chances de fazer o leitor ficar ligado ao boletim eletrônico, o último segundo", diz Alessandra. Assim, aproveitando o "efeito viral" (a notícia colocada na net e repassada por uma corrente de e-mails de progressão geométrica) da rede ou a amplificação do pequeno boato pela mídia, os políticos aprenderam a manipular a blogosfera. De certa forma, deram o pontapé para a chegada dos blogs da crise do mensalão, que devem sempre ser lidos com cuidado. Afinal, neles não existe o preceito do "ouvir o outro lado", embora se deva louvar seu for-
mato que privilegia o convívio com o "diferente". "Ao contrário de meios como a televisão que, para atingir públicos mais universais, se vêem forçados a encontrar denominadores comuns, o público dos blogs é confrontado com as diferenças, com conteúdos produzidos não necessariamente para ele, de forma que o emissor confia na possibilidade de o seu conteúdo informacional despertar interesse em determinada audiência, ainda que restrita ou longínqua", explica Alessandra. Polêmica - A pesquisadora ressalta que os blogs prezam pela polêmica e valorizam a discordância de opiniões e publicizam o fato de se exporem ali sem se preocupar com as preferências alheias, demandando mesmo que os leitores-escritores-editores se expressem. Um blog ideologicamente editorializado corre o risco de ficar com um grupo restrito de leitores, o que significa, em termos de blogosfera, uma morte em vida. Um problema enfrentado, por exemplo, pelos blogueiros americanos é a sua "transformação em mainstream". Vários blogs independentes foram adotados por jornais ou
veículos de ^^B mídia tradicional e, hoje, seus blogueiros perderam a rebeldia, o caráter contestador e inovador, integrados na política convencional, acabando por fazer parte das instituições que deveriam criticar. No Brasil, todos os blogs importantes estão ligados a instituições de mídia. Não se deve, no entanto, jogar a água da banheira junto com o bebê, mesmo que a criança não seja sempre das mais confiáveis. "Quando um blogueiro entrevista um autor sobre seu livro, isso é jornalismo. Quando um colunista de opinião manipula fatos para criar uma impressão errada, não é jornalismo. Quando um blogueiro escarafuncha fatos e descobre que a afirmação de uma figura pública é falsa, isso é jornalismo. Quando um repórter repete as mesmas afirmações sem se dar ao trabalho de checar se são verdadeiras, não é jornalismo", diz Rosen. Gore Vidal já avisava: "Metade dos americanos não tem senso crítico ao ler notícias. Metade dos americanos não vota para presidente. Esperemos que seja a mesma metade". • PESQUISA FAPESP126 ■ AGOSTO DE 2006 ■ 85
O HUMANIDADES LITERATURA
A sombra do passado Os 125 anos de nascimento de Stefan Zweig fazem um bom momento para relembrar os 65 anos de Brasil, país do futuro
rasil, país do futuro: o título do livro escrito há 65 anos por Stefan Zweig (1881-1942) transformou-se, no imaginário nacional, quase como se fosse uma maldição que, após ser conjurada pelo pobre escritor austríaco, nos tivesse deixado presos num limbo de eterno "vir a ser", sem nunca chegar lá. No aniversário da polêmica publicação do livro (visto por muitos intelectuais da época como uma barganha mefistofélica feita entre Zweig e Vargas), dos 125 anos de nascimento do autor de O jogador de xadrez e dos exatos 70 anos de sua primeira visita ao Brasil, Zweig, que gostava tanto do passado, merece ser revisitado. "País do futuro pode ser lido como uma elegia ao potencial humano e econômico do país, mas também entendido como um canto ao Nunca, o paraíso, como todos inviável. O livro de Zweig não foi aceito pelos empedernidos conhecedores da conjuntura, mas pelo ínfimo preço de um visto de residência concedido àquele refugiado angustiado; o Brasil teve o melhor e mais simples projeto nacional: uma sociedade harmoniosa, pacífica, natural", observa o jornalista Alberto Dines, autor de Morte no paraíso. Ele é um dos palestrantes do colóquio O País do Futuro 65 Anos Depois, fórum especial, composto por dois painéis, que ocorrerá no Rio, no dia 21 de setembro, organizado pelo Instituto Nacional de Altos Estudos no BNDES, com a direção geral do professor e exministro do Planejamento João Paulo dos Reis Velloso. Além de Dines, participarão: Boris Fausto, Rubens Ricupero, Regis Bonelli, Bresser Pereira, Wan86 ■ AGOSTO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 126
derley Guilherme dos Santos, Ricardo Neves. No painel II, O Futuro Agora (Idéias para uma agenda do novo governo), estarão presentes: Antônio Barros de Castro, Roberto Cavalcanti de Albuquerque, Sônia Rocha e representantes dos candidatos à Presidência da República. Também está prevista a exposição Stefan Zweig no país do futuro, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (entre agosto ou setembro), que trará toda a documentação referente à obra de Zweig (alguns objetos pessoais, primeiras edições internacionais, cartas, contratos, resenhas, recortes e fotos), com curadoria de Dines. Há a possibilidade de levar a mostra a Berlim, onde seria acompanhada por um colóquio teuto-brasileiro. A exposição deve render um livro, Stefan Zweig no país do futuro, 1939-1942, primeiro volume de uma série de três com o acervo da Biblioteca Nacional e da Casa Stefan Zweig. "Além disso, País do futuro sairá agora, dia 19, com nova tradução e prefácio meu, sendo lançado pela LP&M em formato pocket na Bienal do Livro em Petrópolis", conta o jornalista. Além de todos esses eventos, Dines é também o responsável pela retomada de um antigo projeto: transformar em museu a casa onde o escritor viveu seus últimos anos e se matou ao lado da mulher, Lotte, em Petrópolis. "Desde a morte de Zweig se fala nisso. O jornalista Raul Azevedo foi um dos primeiros a lançar a idéia, que, em 1944, o diplomata Pascoal Carlos Magno tentou executar", conta. Reunindo objetos pessoais do intelectual austríaco, o museu abrirá as portas em 2007 e será um memorial a todos os refugiados que vieram ao Brasil. Descaracterizado por várias reformas, com fama de mal-assombrado, o imóvel da rua Gonçalves
Dias será recuperado em sua forma original, que, de certa forma, readquiria algo da casa do escritor em Salzburgo, que ele foi obrigado a deixar para fugir da perseguição nazista, por ser judeu e pensador. A editora L&PM pretende também reeditar Brasil, país do futuro e dois volumes com as principais novelas escritas por Zweig. Na Europa sairá, em setembro, Drei Leben, de Oliver Matuschek, nova biografia do autor, por ocasião dos seus 125 anos. weig veio ao Brasil em 1936, para uma série de palestras, e se encantou com o país. Num paradoxo aparente, viu na terra quente e subdesenvolvida um sucedâneo da sua amada Viena e do Mundo de ontem (título de sua autobiografia), perdido com a modernidade. Segundo Dines, a curiosa justaposição teria raízes na visão de Viena como "um jardim". "Jardim como território idílico e harmonioso, onde o homem submete a natureza sem destruí-la. Território da utopia. Reconstituição edênica sem pecados", analisa. Com povos díspares obrigados a conviver juntos, um monarca respeitável de barbas brancas, como o nosso Pedro II, Áustria e Brasil pareceram a Zweig equações análogas, em especial no momento em que seu mundo ideal se partia em pedaços e a barbárie iniciava a sua escalada na Europa. "Quem visita o Brasil não gosta de o deixar. De toda a parte deseja voltar para ele. Beleza é coisa rara e beleza perfeita é quase um sonho. O Rio, essa cidade soberba, torna-o realidade nas horas mais tristes", escreveu o escritor na introdução de seu País do futuro. "A América ibérica, visualizada por Zweig como sucessora da Europa, descambou tomando como modelo apenas sua Idade Média. Humanismo e bonomia, tão decantados, resultaram nas décadas de 1960 e 70 num banho de sangue e mentiras iguais aos do período da colonização. Ainda não experimentou o Iluminismo e pena por isso", analisa Dines. Para o autor de Morte no paraíso, desprovido de malícia política, machucado pela tragédia mundial, Stefan procurava um refúgio para sua devoção ao "sim" e sua vocação elegíaca. "Queria 88 ■ AGOSTO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 126
tão-somente descobrir a contestação do inferno que Hitler desvendara. Nas rodas intelectuais brasileiras isso era incompreensível. O jardim vienense, idílico e sereno, transferido com toda a paixão para a mata luxuriante, não fora negociado com o Estado Novo. Pintara o Brasil com palheta sublime, empurrado por uma ansiosa crença na humanidade, réstia de otimismo", avalia. Mas, completa, essa distorção ótica foi vista pelos colegas brasileiros de métier como um business, arrivismo da celebridade internacional em decadência. Logo após ser lançado, País do futuro recebeu críticas de todos os lados, considerado por intelectuais do porte de Carlos Drummond de Andrade e Jorge Amado (que se arrependeu depois da maldade) como um acordo feito entre o escritor e o ditador em troca de um visto de residência. Hipótese não de todo descartável, como observa Dines.
Em seu livro, o jornalista narra uma conversa entre Zweig e um advogado vienense, que morava no Brasil e ficara indignado com a postura do escritor de não destacar, numa palestra feita no PEN Clube do Rio, a importância dos judeus na vida e na cultura de Viena. "Você não pode me compreender. Veja, fui obrigado a escrever um livro sobre o Brasil. O que eu sei sobre o Brasil?" Como austríaco de boa cepa, o advogado não questionou o escritor. Mas é impossível não sentir o desespero de Zweig em elogios a Vargas no seu livro: "Hoje que o governo é considerado uma ditadura, há aqui mais liberdade e mais satisfação individual do que na maior parte dos países europeus", entre outros rompantes encomiásticos ao Estado Novo. O ditador, porém, odiou as menções feitas por Zweig às prostitutas do Mangue, no Rio, entre outras observações. Que atire a primeira pedra quem
À esquerda, o escritor em Viena, na juventude, e, acima, com a mulher, Lotte, no Brasil
agiria diferente. "Um país em forma de harpa, como diz na introdução, não poderia enganá-lo. Foi sua última ilusão. Estudava o Brasil com olho no futuro, enquanto, intimamente, se preparava para compor suas memórias, relance sobre o passado. Nesse embate dos tempos, perdeu o pé, tropeçou no presente." Sonho - O biógrafo alerta para a armadilha do título. "De longe, com algum distanciamento crítico, embora tocado pela hospitalidade, falou do país do futuro, sonho, ilusão, quimera, terra do porvir, um país que ainda não é. País de futuro seria a prospecção de seu potencial. Macio e delicado, Stefan tomava posição: não saberia fazê-lo diferente." A idéia de uma terra do futuro era antiga, uma frase do diplomata austríaco conde Prokesch Osten, que, em 1868, escreveu ao colega francês, conde de Gobineau, para convencê-lo a aceitar o
posto de embaixador no Brasil. Um ideólogo do racismo, Gobineau não parecia disposto a se enfurnar nos trópicos e seu "clima macacal" (como diria mais tarde Zweig, em uma carta a amigos). Mas a percepção de uma terra do futuro o atraiu e ele veio para cá, travando com Pedro II uma amizade intensa. "País do futuro" também serviu de título para várias publicações antes do livro de Zweig. Mais importante é saber que ele não leu Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre, tampouco Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda (ainda que sua obra guarde aproximações com o homem cordial). "Stefan, em País do futuro, percebeu somente o jardim sertanejo, enquanto seus amargos críticos queriam que tivesse divisado a nação emergente, tilintando de novidades", observa Dines. Como SzVMorosus, o protagonista de A mulher silenciosa (peça de Zweig trans-
formada em ópera por Richard Strauss e censurada pelos nazistas por ter um libretista judeu), Zweig abominava o barulho e não resistiu ao ruído da história. Preferia repetições confirmadoras e revigorantes que mantivessem a sua ilusão de estar num paraíso tropical. "Depois de Zweig, brasilianista precursor, seguiram-se centenas de outros, todos apaixonados pelo objeto de seus estudos, pouco o entendendo, nenhum recebido com simpatia. O olho do' continua sendo mal olhado", alerta o jornalista, para quem o escritor não soube desenvolver de forma mais revolucionária o seu amor ao "sim", "preferindo acalentar-se em nostalgias e sua suavidade foi mal empregada". Pena? Talvez não. O livro mais notável de Zweig (o último que escreveu na Europa) chama-se justamente Cuidado com a piedade. • CARLOS HAAG PESQUISA FAPESP 126 ■ AGOSTO DE 2006 ■ 89
O HUMANIDADES uem diria, Alberto Santos Dumont (1873-1932) era, além de inventor do avião, um designer. Talvez o próprio se surpreendesse com esse termo da contemporaneidade. Mas foi o tratamento que ele recebeu na exposição Santos=Dumont Designer, que ficou em cartaz no Museu da Casa Brasileira, em São Paulo, até 31 de julho. O sucesso foi tamanho que o evento teve de ser prorrogado por um mês. No mesmo período, duas outras iniciativas semelhantes promovidas na capital paulista mostraram que o tema passa por uma valorização no Brasil. A 8a Bienal Brasileira de Design Gráfico, realizada na Galeria Marta Traba, no Memorial da América Latina, pretendeu apontar as tendências da produção nacional. Este ano, em vez de trabalhos por categoria - mais de 40 foram inscritos, entre publicações, embalagens, marcas, sites, cartazes, animações etc. -, a mostra foi dividida por núcleos de tendências, organizados por uma curadoria composta pelos designers André Stolarski, Bruno Porto, Fernanda Martins e Marco Aurélio Kato. No Pavilhão da Criatividade, também no Memorial da América Latina, fica em cartaz até 25 de agosto a Trienal Internacional de Ecoposters e Design Gráfico. Com organização e curadoria de Ruth Klotzel, reúne 80 cartazes, selecionados entre os trabalhos dos vencedores da Trienal Internacional de Eco-Posters, realizada na Ucrânia desde 1991. O principal objetivo é chamar a atenção da comunidade mundial para questões sociais e ecológicas. Conhecida também como 4th Block - nome do reator que explodiu na usina nuclear de Chernobyl em 1986 -, a deste ano tem como tema os 20 anos da tragédia ocorrida na Rússia. No mercado editorial, o interesse crescente por estudos sobre o tema pode ser visto nas coleções de duas editoras. A Rosari tem duas séries, com 17 volumes já publicados - as coleções Textos Design e Fundamentos do Design. Os ensaios são apresentados em volumes com capa dura e sobrecapa e foram escritos por alguns dos mais representativos especialistas da área. Como Adélia Borges - que teve uma coluna especializada no jornal Gazeta Mercantil e hoje dirige o Museu da Casa Brasileira -, Chico Homem de Melo, Cláudio Ferlauto, Heloísa Jahn, Lucrécia D'Alessio Ferrara, Sandra Ramalho e Oliveira, Alexandre Wollner e Rodolfo Fuentes, entre outros. A eles se junta a valorização de criadores históricos como
Sérgio Rodrigues, José Zanine Caldas (19192001) e Lina Bo Bardi (1914-1992). A Cosac Naify acaba de mandar para as livrarias o segundo livro de uma série - iniciada com O design brasileiro antes do design, organizado por Rafael Cardoso e premiado pelo Museu da Casa Brasileira como melhor publicação da área em 2005. O novo título é O design gráfico brasileiro anos 60, organizado por Chico Homem de Melo, com longos ensaios de João de Souza Leite, André Stolarski e Jorge Caê Rodrigues. O volume nasce como referência para o estudo da história do design no Brasil. Impresso em papel especial e em cores, interessa até mesmo a quem é leigo, mas curte artes visuais. Para esse público, permite um passeio de nostalgia por capas de livros e discos, cartazes de cinema e pelo mundo das revistas e jornais que modernizaram a imprensa. São 514 imagens que revelam a riqueza e a singularidade de uma época. Vertiginosas - Professor de programação visual da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), Homem de Melo destaca que a produção de design foi parte integrante de um processo de mudanças "vertiginosas" em todo o mundo. "Ao longo da década, os mestres modernistas continuaram seu percurso seguro, em particular na área de identidade corporativa", escreve ele. Ao mesmo tempo, várias frentes novas foram abertas e deu-se início a uma ruptura com os dogmas racionalistas. No Brasil, as conquistas da arte construtiva dos anos 1950 continuaram a render bons frutos para o design nos dez anos seguintes. Segundo ele, o livro permite uma reflexão sobre isso e apresenta a documentação do que se fez num período pouco analisado em suas diversas vertentes. "O design permanece escondido em algumas poucas bibliotecas públicas, em coleções particulares, ou perdido em revistas de época." Um dos méritos da obra é contextualizar o assunto num momento de grande turbulência cultural, política e comportamental no mundo todo. Ao observar as rupturas produzidas que marcaram a história das décadas seguintes Che Guevara, Beatles, Vietnã, ida do homem à Lua, ditaduras militares e movimento estudantil -, compreende-se as imagens emblemáticas que influenciaram significativamente a produção do design gráfico no Brasil. Os autores, assim, discutem o que pode ser considerado como o período de consolidação no país. Homem de Melo - que escreveu três capítulos - lembra que, até então, não existia a noção da profissão como se tem agora: "Algu-
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mas pessoas faziam livros, outras faziam identidade visual, e por aí afora". O fortalecimento da atividade do design gráfico nacional coincidiu com o surgimento das escolas de design, com a difusão mais ampla de imagens e com a transformação de vários ícones da ruptura cultural em símbolos gráficos.
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ímpar - A análise dos autores aprofunda a relação entre tipografia, ilustração e fotografia em duas revistas importantes, Senhor e ReaCopacabana filmes deus e o diabo | lidade, citadas como exemyona magalh na terra do sol plos de inovação. Enquancjeraldo d'el othon bast' to isso, Rogério Duarte se mauricio do valle produçàoMuiz a tornou uma figura ímpar, como diz Jorge Caê Rodrigues: ligado ao tropicalismo, criou projetos gráficos tão complexos e alegóricos quanto as mudanças propostas pelo movimento. Também contrapôs sua expressão psicodélica às 4«*£t* composições mais "ulmianas". O design das capas de livros é um dos pontos mais analisados, quando 4jf-resgata nomes importantes que exibiram soluções gráficas de grande inovaJf / ! ção, como Eugênio Hirsch, Marius Luaritzen Berne e Glauco Rodrigues. Em "A identidade visual toma corpo", André Stolarski fala da consolidação da identidade visual no Brasil. "Tanto pela qualidade dos trabalhos quanto pela atitude profissional, que aliava à elaboração estética uma visão de design ligada ao planejamento das aplicações e usos de uma marca." O autor trata das origens desse processo, que passou pela Bauhaus, construtivismo, Suíça e Escola de Ulm - e sua influência nos expoentes máximos dessa expressão no Brasil dos anos 1960: Alexandre Wollner, Ruben Martins, João Carlos Cauduro, Ludovico Martino e Aloísio Magalhães. A coordenação editorial e o projeto gráfico de O design gráfico brasileiro anos 60 couberam a Elaine Ramos, diretora de arte da Cosac Naify. Como o livro faz parte de uma coleção, ela teve que seguir algumas diretri zes do livro anterior. "A partir delas, ten
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tei dialogar com o que havia de recorrente no design da época, como o uso do tipo helvética e os títulos grandes, com o devido cuidado para não ficar uma imitação direta." Os autores, diz Elaine, talvez justamente por serem designers, confiaram no seu trabalho e interferiram pouco. Conceituar design, aliás, ainda é um problema para quem não faz parte do meio. Para Elaine, trata-se de uma arte aplicada, que tem a dimensão da criação, mas traz sempre um problema a ser resolvido - a relação com um determinado conteúdo, questões técnicas, o autor ou cliente, custos etc. "O objetivo é sempre comunicar. É muito diferente das artes plásticas, vejo um paralelo mais evidente com a arquitetura." André Stolarski afirma que design não é arte, embora possa ser entendido como tal em determinadas circunstâncias. "O que falta é reconhecer o design como design, com a contribuição específica que ele tem a dar para a cultura em geral e para a brasileira em particular. Não há preconceito, há falta de informação." O cenário é o inverso: o design é muito comentado e celebrado, mas nunca se sabe direito o que quer dizer a palavra. Assim, explica ele, o termo acaba por virar sinônimo de "luxo", "arte", "sofisticação", "que estão muito distantes de dar conta do que a atividade faz". Pelo seu conceito, trata-se do projeto de nossa existência no planeta e tudo o que isso envolve. Do ponto de vista histórico, afirma Stolarski, a modernização do design começou na verdade nos anos 1950. Como no caso de alguns movimentos descritos por ele no ensaio "A identidade visual toma corpo". "Creio, no entanto, que os outros ensaios do livro - e a própria apresentação - falam de uma ruptura mais profunda, vinculada à linguagem da televisão e da fotografia, plenamente inserida nos anos 1960." O designer, porém, não chamaria o processo de "modernização", mas apenas de "transformação". Uma mudança de 1950 que vai contribuir com 1960 foi o "fortalecimento da arte construtiva nas vertentes concreta e neoconcreta". As duas influências mais importantes no design brasileiro, então, foram a
Escola de Ulm e a produção visual norte-americana. A primeira, mais ligada à sistematização e à proposição racional do papel do design e do designer. A segunda, vinculada à pujança comercial da propaganda e da sedução do mercado. o que passou "batido" no Brasil e foi importante lá fora? Stolarski cita os movimentos de renovação e crítica do design moderno ocorridos desde a década de 1970 nos Estados Unidos e na Europa. Como a atividade do suíço Wolfgang Weingart e as experiências da escola norteamericana de Cranbrook, que demoraram muito para ganhar alguma força ou reconhecimento no Brasil - o que só começou a ocorrer no início da década de 1990. "Acho que o esforço para encontrar algo 'típico' ou original' entre 'artistas' e 'estilos' é vão nesse caso. Melhor seria dizer que a produção brasileira, embora vinculada em muitos aspectos aos movimentos internacionais, contribuiu com seu traço de originalidade, ajudando a construir a identidade do país." Considerado o decano dos designers brasileiros, Alexandre Wollner, aos 77 anos, define o design como projeto, conceito cultural, técnico e cientifico inovador e que tem a arte como parte do processo criativo. Principalmente a partir da arte concreta (Max Bill), como pensamento matemático, mas se desligou do processo de arte pela arte como nós a conhecemos desde o século retrasado. Apanhado - A estética, observa ele, faz parte do design, mas não é só estética. "Caso contrário, seria artesanato." Na sua opinião, o livro organizado por Chico Homem de Melo mostra em especial o quanto as artes gráficas brasileiras se modernizaram na década de 1960. A obra lhe parece um apanhado de artes gráficas, o que vem a ser bem diferente do design visual. "A gráfica brasileira não é de agora." Wollner observa que o design começou realmente no fim dos anos 1950. "Vamos dizer, desde o quarto centenário de São Paulo. Não antes. E se desenvolve atualmente com a evolução da tecnologia, da ciência, da cultura e das necessidades contemporâneas." Afirmar que o design existe por décadas, prosse-
gue ele, seria falta de conhecimento. "O design vem sendo estimulado desde que o homem era macaco (veja o filme de Stanley Kubrick, 2001 - Uma odisséia no espaço e aí você vai entender) e faz parte de um processo evolutivo das necessidades humanas dando valores a novos signos e funções. Falar em décadas é de interesse antropológico." Nesse processo, o Brasil sempre teve uma tendência de assimilar culturas alienígenas. "Somos colonizados desde 1500, não há interesse pelos brasileiros de sustentarem um desenvolvimento cultural próprio. Não há este estímulo nem pelas instituições governamentais, culturais, industrial e comercial, estamos sempre seguindo as tendências de fora, por exemplo, hoje estamos 'californicados' pela cultura visual americana." Assim mesmo, entretanto, alguns designers conseguiram fazer alguma coisa de qualidade reconhecida no mundo todo. Sobre as revistas Senhor e Realidade, Wollner diz que "tudo é esteticamente muito bonito, mas não há projeto estrutural de revista como hoje nós entendemos projeto". No segmento de capas de disco, tem-se a mesma função de capas de livros e de embalagens de sabão em pó: "São decorativas e seguem uma tendência de mercado bastante efêmero. Não é como as capas de jazz da (gravadora) Verve, com uma linguagem de identidade cultural visual, o comportamento da Verve é de design, se é que dá para entender". João de Souza Leite discute, no capítulo "De costas para o Brasil: o ensino de um design internacionalista", o exemplo emblemático da Escola Superior de Desenho Industrial (Esdi), que marcou o início da profissão como se conhece hoje. Segundo Wollner, percebe-se que a tendência é ainda cultivar as escolas de artes e ofícios, principalmente francesas do século passado, que regem as faculdades de arquitetura e de design do Brasil. E avalia, bem a seu estilo de sinceridade: "A escolha são de nossos doutores, que não deixam desenvolver o processo evolutivo da profissão de design em nível internacional. Criticam a cultura de design das escolas alemãs que é adotada pelas mais importantes escolas do mundo. É para voltar ao artesanato? Por quê? A FAU/USP atualmente está tentando um caminho, vamos ver". • PESQUISA FAPESP 126 ■ AGOSTO DE 2006 ■ 93
Resenha
Fermento para a pesquisa com células-tronco Livro revela os primeiros passos, ainda tímidos, da ciência brasileira nesse campo
CARLOS FIORAVANTI
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m um artigo publicado na revista Hipertensão, Marco Antônio Zago, professor de clínica médica da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do Centro de Terapia Celular de Ribeirão Preto, chama a atenção a participação ainda modesta da ciência brasileira no promissor campo de pesquisas com células-tronco: de 2000 a 2005, a comunidade científica nacional contribuiu com apenas 0,45% dos artigos científicos publicados sobre esse grupo de células que consegue se diferenciar em outros tipos de células e, por essa razão, tem se mostrado capaz de ajudar a resolver os mais variados problemas de saúde. Outro dado que dimensiona a situação brasileira nessa área: enquanto por aqui quase não há empresas privadas participando da pesquisa científica nessa área, no mundo todo mais de 400 já buscam as oportunidades em um campo que daqui a cinco anos, estima-se, deve movimentar US$ 80 bilhões por ano. O próprio Zago tratou de evitar que a defasagem se acentue: ele e Dimas Tadeu Covas, que também leciona na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, coordenam o livro Células-tronco: a nova fronteira da medicina (Editora Atheneu). Os 15 capítulos - escritos por um corpo de 27 especialistas, a maioria da própria USP - funcionam como um manual de laboratório (ou o que se deveria saber antes de entrar em um), mostrando como as célulastronco se formam, como se diferenciam entre si e em outros tipos de células e como podem ser identificadas e utilizadas. Há capítulos específicos sobre a caracterização e as propriedades dos
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Células-tronco: a nova fronteira da medicina
diversos tipos de células-tronco: Dimas Covas, por exemplo, descreve as mesenEditora Atheneu quimais, que podem 268 páginas ser retiradas de meR$ 97,00 dula óssea, de tecido adiposo e de vários tecidos fetais ou adultos e se diferenciam em células que vão formar os tecidos gordurosos, ossos ou músculos. O livro deixa claro um ponto muito importante. Apesar dos usos promissores no tratamento de diabetes ou de doenças cardíacas e do sistema nervoso central, tratadas em capítulos distintos, por enquanto a única aplicação médica segura é o transplante de células-tronco hematopoéticas, que originam as células do sangue e são utilizadas há décadas em transplante de medula óssea para tratar doenças como leucemia, linfoma e mieloma. A idéia que percorre o texto, tacitamente, é que à atual notoriedade das células-tronco se seguirá uma fase em que essa forma de terapia celular encontrará seus reais espaços de aplicação, fundamentados em métodos científicos, por meio da transferência de conhecimento do laboratório para a prática médica. Conhecimento, por sinal, que deverá ser construído por meio da ética, tema do capítulo final do livro. Gabriela Guz, professora de ética médica da Faculdade de Medicina da Universidade de Santo Amaro (Unisa), e Marco Segre, professor da Faculdade de Medicina da USP e da Unisa, comentam no epílogo sobre os limites mutáveis - da intervenção em seres humanos e apresentam algumas questões ainda sem respostas. Uma delas trata do momento sobre quando, afinal, começa a vida, já que os embriões podem ser vistos como uma fonte de células-tronco. Dimas Tadeu Covas e Marco Antônio Zago (orgs.)
Livros
Preso por trocadilho: a imprensa de narrativa irreverente paulistana 1900-1911
Em busca do refinamento: um estudo antropológico da prática da etiqueta Daniela Scridelli Pereira Annablume 140 páginas, R$ 25,00
Material de estudo não falta: para poder realizar seu estudo, a pesquisadora lançou mão de cursos de etiqueta oferecidos em São Paulo, nos anos 1990, de inúmeras publicações sobre o luxo e o elegante que encheram as prateleiras das livrarias e de programas de televisão. A partir disso, ela analisa os aspectos simbólicos que se ocultam no luxo. Annablume (11) 3812-6764 www.annablume.com.br
Reforma política: lições da história recente Gláucio Dillon Soares (org.) Editora FGV 360 páginas, R$ 32,00
Um dos temas mais discutidos nos últimos tempos, em especial por todos aqueles que acreditam ser a reforma política a panacéia para todos os males que afligem a nossa vida política, essa reforma é das mais polêmicas e, de forma alguma, é vista com unanimidade por todos os pesquisadores. Este livro reúne uma série de artigos, entre os quais: "Amnésia eleitoral", de Alberto Almeida; "Financiamento de campanhas eleitorais", de David Samuels; entre outros. Editora FGV (021) 2559-5543 www.editora.fgv.br
Tradução e adaptação Lauro Maia Amorim Editora Unesp 240 páginas, R$ 38,00
Paula Ester Janovitch Alameda / FAPESP 392 páginas, R$ 60,00
A São Paulo que crescia, no início do século 20, se queria séria e moderna, mas um grupo de artistas irreverentes não deixou passar em branco o que havia de ridículo na pompa recém-adquirida e no desejo de ser novo como os americanos e europeus. O espaço privilegiado dessa crítica foi a imprensa nanica, os pequenos jornais e revistas como O Pirralho. Alameda (11) 3862-0850 www.alamedaeditorial.com.br
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Por minha letra e sinal: documentos do ouro do século XVII Heitor Megale (org.) Ateliê Editorial / FAPESP 416 páginas, R$ 63,00
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O Projeto Filologia Bandeirante pesquisou por longos anos uma série .__ de documentos do século 18, quase esquecidos, com o duplo propósito de contar aos leitores modernos as histórias escondidas nesses alfarrábios e, tão importante quanto, preservar o estado da língua portuguesa como era usada naqueles tempos. O fruto mais recente desse trabalho é um livro fascinante, que é fundamental para os pesquisadores do período, mas que se lê igualmente com prazer de leigo. Ateliê Editorial (11) 4612-9666 www.atelie.com.br
Ética Fábio Konder Comparato Companhia das Letras 720 páginas, R$ 60,00
Tradutor, traidor. Essa é uma expressão que marca sempre qualquer tentativa de trazer um discurso escrito numa língua para a nossa. Mas hoje há um novo conceito a nortear esse trabalho, em geral mal remunerado, apesar de fundamental. Agora fala-se em reescritura e o pesquisador parte do trabalho feito sobre Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, e Kim, de Kipling, fazendo uma reflexão entre o ato de traduzir e o de adaptar uma obra literária.
Um estudo de fôlego escrito por um de nossos grandes juristas, doutorado pela Universidade de São Paulo. Nesse tratado, Konder Comparato propõe uma mundialização humanista, indo totalmente na direção oposta dos pessimistas que vêem um futuro em que ética e técnica se apartariam obrigatoriamente. Para o jurista, técnica e ética devem completar-se, impulsionando povos e civilizações à união, desde que sejam variáveis reconhecidas como patrimônio global.
Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br
Companhia das Letras (11) 3707-3500 www.companhiadasletras.com.br PESQUISA FAPESP 126 ■ AGOSTO DE 2006 ■ 95
Ficção
Tufos: Dez facínoras e uma bala "Mclntosh desviou os olhos da pilha de cadáveres e encarou o sol, que se punha vermelho no deserto. Sobrava uma bala.Tinha a vida inteira pela frente." (Will Toofalls)
SéRGIO RODRIGUES
ão há exagero em dizer que Tufos é hoje um mito internacional. Artista multimídia com trânsito e voz ativa nos mais fechados círculos do pós-conceitualismo europeu, nenhum outro brasileiro levou tão longe as investigações sobre o poder dos simulacros, a textura fugidia da identidade, a questão da representação como alicerce líquido do real. O que pouca gente sabe é que todos esses temas já estavam equacionados, embrionariamente, no início de sua trajetória. Pode-se afirmar que a obra-prima de Tufos é o próprio Tufos, como veremos. Seus tufos nem eram tão vastos assim. Faziam dele um sujeito a meio caminho entre o careca e o cabeludo, mas projetavam-se de vontade própria para todos os lados em ângulos tão improváveis e pontudos, como num cartum japonês, que ninguém ao conhecê-lo pensaria que seu nome pudesse soar esquisito. Nome artístico, nome social, nome mesmo: Tufos, sabe o Tufos? Grande Tufos! O apelido de batismo, F.R.P., ficou enterrado no monturo de mistérios do personagem. Era como se Tufos não tivesse certidão de nascimento, carteira de motorista ou de identidade. Tudo isso ele tinha, só que ninguém queria saber seu nome, ou melhor, Tufos era um nome irretocável, e aí inventavam aquela história de mistério. Quase tudo a seu respeito era inventado desde o início. Não pelo próprio Tufos, o que o tornaria um farsante total, mas pelos que o cercavam, artistas e "artistas" do ebuliente circuito alternativo do Rio de Janeiro naqueles anos 80 em que ele construiu um fulgurante prestígio como escritor e poeta performático. O tipo de cara para quem as menininhas bem-nascidas faziam questão de dar quando queriam parecer descoladas. O conviva sem o qual nenhuma festa de respeito jamais seria completa. É claro que tudo isso teve o incentivo das lacunas provi96 ■ AGOSTO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP126
denciais que o próprio Tufos pespegava em sua história, acabando por abranger a história quase inteira. Não era um farsante total, era um meio farsante. Poderia se defender perguntando quem não é. Tinha vindo de Marechal Hermes, isso se sabia, não conseguira apagar tão fundo. Mas apagara o suburbano de anedota que tinha sido em seu primeiro mês de Faculdade de Comunicação com bolsa integral na PUC: encabulado, feio, camisa social de manga curta, sandálias franciscanas. Ah, sim, virgem também. Filho único de uma tristonha família de classe média baixa afundante, o pai um modesto funcionário público cuja única atividade semelhante ao lazer era botar uma cadeira na calçada e passar os fins de semana tomando cerveja e lendo um faroeste de banca de jornal atrás do outro. Não surpreende que a mãe, dona-de-casa, sofresse de depressão crônica. Curiosamente, foram aqueles livrinhos baratos, que tinham nomes como Diligência para o inferno e Justiça se faz com chumbo, o primeiro trampolim de Tufos para a metamorfose que o campus cheio de árvores vetustas da Gávea, num piscar de olhos, viu acontecer. Em alguma coisa ele tinha que se apoiar. O bizarro apelido de infância dado por um primo e os faroestes do pai desempenharam esse papel. O resto de suas origens ele apagou literalmente, chegou a queimar fotos. Mais tarde, sua fama começando a se espalhar, os espaços vazios seriam preenchidos pelos boatos - todos descabelados - de que no caminho de Marechal Hermes para a Zona Sul ele tinha feito escala em Londres e ficado amigo de Joe Strummer, passado em Recife para tocar triângulo na primeira formação do Nação Zumbi, tomado porres fenomenais com Arrigo Barnabé na Lira Paulistana, posado nu para uma agressiva campanha contra a Aids que o governo engavetou porque era agressiva demais, enfim,
todas as lendas e histórias mal contadas que foram se grudando magicamente no garoto suburbano para transformá-lo em Tufos, personagem maior que a vida. Mas tudo começou com Dez facínoras e uma bala. Tufos também tinha lido nos fins de semana modorrentos do subúrbio a sua cota de Desfile de cadáveres, Profissão: matador, Desfiladeiro fatal, Poeira rubra de sangue. Os livrinhos estavam ali mesmo, depois de lê-los o pai já não lhes dava bola, largava-os em qualquer lugar, na cozinha, no banheiro. Assinavam as capas cartunescas nomes improváveis como Randy Dollars, Rip Comanche e Lucky Barr. O título e o pseudônimo surgiram em sua cabeça ao mesmo tempo: Dez facínoras e uma bala, de Will Toofalls. Escreveu a história ao longo daquele primeiro mês de sandálias franciscanas na PUC, arquitetando em segredo a borboleta — no sentido másculo, se é que ele existe — em que seu estado lagartíssimo de então se dissolveria. Era um faroeste de arcabouço clássico, com um herói errante, uma linda viúva que tem seu rancho cobiçado por bandidões diante da complacência de um velho xerife corrupto, um índio bom e todas aquelas Colts vomitando fogo sob o sol de rachar. Um faroeste tão clássico e tão bem amarrado, com pitadas adicionais de ultraviolência e sexo expressionista para melhorar a receita, que a editora, uma espelunca no Estácio, ficou feliz em publicá-lo de graça. Como poderia saber que Will Toofalls fizera da história texana um espelho da vida no campus de uma universidade carioca? A viúva, Mel Hopewell, era idêntica a Melanie, a presidente do Centro Acadêmico que a galera de uma certa "tendência" comunista mais barra-pesada tentava na época derrubar. O xerife pusilânime era o reitor. Funcionários, professores e alunos faziam pontas como personagens secundários. O índio era a única figura realmen-
te fictícia do livro, mas o herói, Ned Mclntosh, se confundia com o próprio Tufos. — Mr. Mclntosh, eu não sei como lhe agradecer — disse Mel Hopewell, dando um passo na direção de Ned. O herói solitário hesitou. Não estava acostumado com mulheres alvas e cheirosas, frescas de banho, tão diferentes das criaturas de pele e olhos endurecidos com quem cruzava feito bicho em suas andanças pelo Velho Oeste, antes de cada um seguir o seu caminho. Olhou fundo nos olhos verdes da viúva como se encarasse seu opositor num duelo ao sol. Nada disse. — Pelo menos — prosseguiu Mel Hopewell, abrindo um sorriso de dentes perfeitos e dando mais um passo — me mostre a arma abençoada que salvou a minha vida e o meu rancho, Mr. Mclntosh. — Pode me chamar de Ned. — Está bem, Ned. É de cano longo? Foi um furor. Em pouco tempo, os vinte exemplares que ele adquiriu com desconto na editora e distribuiu na universidade tinham circulado de mão em mão e virado itens de colecionador. As sandálias foram trocadas por um par de tênis roxos, a camisa social por camisetas do The Cure, os tufos começaram a crescer. Mais tarde é que viria o brinco de argola. Melanie gostou tanto da homenagem que fez com o autor a mesma coisa que Mel Hopewell fazia com Ned Mclntosh. Tufos perdeu a virgindade graças à literatura, e o resto é história.
44 anos, editor e colunista da revista eletrônica www.nominimo.com.br, é autor dos livros O homem que matou o escritor (contos) e What língua is esta? (crônicas). Seu primeiro romance, As sementes de Flowerville, sai este ano pela Editora Objetiva. SéRGIO RODRIGUES,
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