Ciência eTecnologia
Setembro 2006 • N° 127
FAPESP
PESQUISAS ELEITORAIS
DANCADE NÚMEROS TEM BASE SOLIDA
OPOBRE E RICO MAR BRASILEIRO ENTREVISTA
FERNANDO BIRRI . OCINEMA ALÉM DO CINEMA
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A guerra tinge o mar Os bombardeios israelenses a Beirute provocaram um derramamento de óleo no litoral libanês em meados de julho. Como as hostilidades seguiram-se por semanas, os esforços para limpar o mar demoraram a começar. As imagens do satélite lkonos mostram um mesmo ponto da costa de Beirute em dois momentos: em dezembro de 2001 (alto), em que se viam pedaços de mar azul, e em agosto de 2006 (embaixo), com a água enegrecida pelo óleo.
PESQUISA FAPESP 127 • SETEMBRO DE 2006 • 3
POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA
26 PÓS-GRADUAÇÃO Crescem os cursos interdisciplinares, em que disciplinas dialoqam em busca de soluções para novos dilemas
29 IMPRENSA Pesquisa FAPESP qanha prêmios de jornalismo e estréia nova versão de seu site
30
44 IMUNOLOGIA Equipe de Minas Gerais apresenta novas perspectivas para uma vacina contra esquistossomose
46 ACIDENTES DOMÉSTICOS Poucas mães sabem como evitar que seus filhos sofram quedas, cortes e queimaduras em casa
48 SAÚDE PÚBLICA
66 TELECOMUNICAÇÕES Telefonia empresarial qanha sistema de conexão com aparelhos liqados à automação de prédios
68
ENGENHARIA DE MATERIAIS Películas aplicadas em vidros controla'm mudanças de luz no ambiente
40 ASTROFÍSICA
Astrônomos brasileiros propõem outra forma de explicar a expansão do Universo
Parceria entre instituições de pesquisa e Petrobras resulta em R$ 1 bilhão para redes temáticas
HUMANIDADES
84 ECONOMIA Crise da Variq revela a situação precária da avia ção civil bra sileira
88 SOCIOLOGIA Embora o machismo ainda seja dominante, conquistas das mulheres intimidam cada vez mais os homens
92 LITERATURA O Brasil perde um intelectual de verdade, à moda antiqa : João Alexandre Barbosa
70
CIÊNCIA
COSMOLOGIA
INDÚSTRIA PETROLÍFERA
Pesquisadores criam dispositivo para futuros computadores moleculares
Finep distribui R$ 12,8 milhões para recuperar as redes de meteoroloqia e antever fenômenos climáticos extremos
42
62
QUÍMICA
METEOROLOGIA
Plutão é rebaixado e sistema solar passa a ter oito planetas
TECNOLOGIA
Vírus e bactérias se propaqam li vremente na fronteira entre os Estados Unidos e o México
54 FISIOLOGIA Enerqético disfarça alquns efeitos das bebidas alcoólicas e amplifica outros
73
SEÇÕES
IMAGEM DO MÊS .. . ....... . .. 3 CARTAS ............. . .. .. . .. 6 CARTA DA EDITORA ........ . .. 9 MEMÓRIA . .. ...... . . . .. ... . 10
FARMACOLOGIA
ESTRATÉGIAS .... . . .. . ...... 20
Sílica associada a vacina ajuda orqanismo a produzir mais anticorpos
LABORATÓRIO . . . .. . ... . . . .. 32
76 ZOOTECN IA Empresa desenvol ve porcos de pequena estatura e baixo peso para pesquisa científica
SCIELO NOTÍCIAS .. .. . . . .... 56 LINHA DE PRODU ÇÃO ..... .. . 58 RESENHA ....... . ....... .. . 94
96 CLASSIFICADOS ....... . . .... 98
FICÇÃO ....... . .. . ...... . ..
Capa: May um i Okuyama Il ustração: Fern ando Vilela
4 • SETEMBRO DE 2006 • PESQU ISA FAPE SP 127
ww w. revista pesquisa . fa pe s p. b r
ENTREVISTA
12
O cineasta argentino Fernando Birri, 81 anos, fala sobre a transição do cinema atual para uma nova "imageria" mais ampla, com o suporte de avançadas tecnologias
36 MAR Estudo mostra que a pesca nacional pode crescer apenas no plano qualitativo, não em quantidade
78 CAPA O mistério saboroso das pesquisas eleitorais, que fazem milhares de eleitores falar por milhões
c a r ta s@f a pes p. b r
Angelita Gama Sou leitor assíduo da Pesquisa FAPESP. Na edição 126 vocês foram ex-
Peiiiüisa FAPESP
As reportagens de Pesquisa FAPESP retra t am a construção do conhecimento que será fundamental para o desenvolvimento do país. Acompanhe essa evo lução.
• Números atrasados Preço atual de capa da revista acrescido do valor de pastagem. Tel. (11) 3038-1438
• Assinaturas, renovação e mudança de endereço Ligue: (11) 3038-1434 Mande um fax: (11) 3038-1418 Ou envie um e-mai l: fapesp @teletarqet.com.br
tremamente felizes ao dar divulgação a uma das maiores figuras da história da medicina no continente americano e seguramente o maior destaque feminino da cirurgia brasileira. Angelita Habr-Gama é o perfeito equilíbrio entre o saber, o fazer e o ser. Jamais notei qualquer atitude soberba de sua parte (e motivos não lh e faltam). Sempre solícita e generosa, pronta para atender pacientes e ajudar na formação de tantos quantos lhe batam à porta para estágios, residência ou pós-graduação. Sua vida é uma lição para todos que buscam seus ideais. Angelita e Joaquim GamaRodrigues materializam elegância e competência e têm admiração e estima da comunidade docente-assistencial da medicina brasileira. Parabéns pela reportagem. JORGE ALBERTO L ANGBECK ÜHANA
Professor de cirurgia da UFPA Belém, Pará
• Opiniões ou sugestões Envie car tas para a redação de Pesquisa FAP ESP Rua Pio XI, 1.500 São Paulo, SP 05468-901 pelo fax (11) 3838-4181 ou pelo e-mail: cartas@fapesp.br
• Site da revista No endereço eletrônico www.revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP na íntegra e um arquivo com todas as edições da revista, incluindo os suplementos especiais. No site também estão disponíveis as reportagens em inglês e espanhol.
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6 • SETEMBRO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 127
Idosos O Lar dos Velhinhos recebeu Pesquisa FAPESP com a reportagem "Filantropia e ciência" (edição 126), cuja felicidade do assunto abordado alegrou todos desta casa de benemerência. Felicito a revista pela correta divulgação desta entidade aos leitores dessa renomada publicação. JAIRO RIB EIRO DE MATTOS
Presidente do Lar dos Velhinhos Piracicaba, SP
Harvard e Vale A reportagem "Procuram-se alunos" (edição 126), de Fabrício Marques, é, no mínimo, polêmica. Sempre fui um entusiasta do intercâmbio internacional, mesmo em nível de gra-
duação. Entretanto, há uma enorme diferença entre o intercâmbio, que pressupõe reciprocidade nas relações, e a internacionalização de instituições de ensino, que pressupõe uma visão mercantil do ensino como negócio. Nos convênios de intercâmbio de alunos de graduação em engenharia que a Unicamp iniciou com o INSA de Lyon, na França, em 1986, a simetria nas relações, com a ida de brasileiros ao INSA e a vinda de franceses à Unicamp, sempre foi uma componente essencial. No projeto Brafitec que coordeno, por exemplo, recebemos mais franceses do que enviamos alunos da Unicamp. Esses intercâmbios levaram ao programa de dupla diplomação, no qual a si metria nos direitos e deveres dos dois parceiros é respeitada. O que me pareceu mais estranho é que o esforço da Universidade Harvard para atrair brasileiros é financiado com doação do empresário Jorge Paulo Lemann, da Ambev. Com muito esforço e o apoio decisivo da FAPESP, no caso de São Paulo, construímos universidades que adquirem prestígio crescente no cenário internacional. Queremos, si m, aumentar o intercâmbio com universidades em todo o mundo, mas não simplesmente exportar alunos e fortalecer universidades estrangeiras que querem se internacionalizar. Queremos intercâmbios onde haja reciprocidade e reconhecimento de nossa qualidade de ensino e pesquisa. Queremos que nossos empresários façam doações às nossas universidades, não a Harvard. Queremos que nossos melhores talentos se formem aqui e participem de intercâmbios lhes abram a mente e o espírito para o multiculturalismo. JOSÉ R OBERTO DE FRANÇA ARRUDA
Facu ldade de Engenharia Mecânica/Unicamp Campinas, SP Muito interessante a reportagem "Procuram-se alun os". Parabéns ao
editor Fabrício Marques e à organização da revista Pesquisa FAPESP. E VA LDO M ARCHI
Jundiaí, SP
Emílio Moran Gostaria de parabenizá-los pela entrevista com Emilio Moran na edição 125. O tema abordado é bastante pertinente e mexe com as mais profu ndas bases da nossa sociedade. Creio que toda essa mudança de mentalidade e de comportamento, citada na entrevista, só provém com uma educação diferenciada, desde a fundamental até o nível superior. Porém, infelizmente, quando o assunto é investimento em educação, o Brasil deixa a desejar.
que ocorrem cada vez mais 'em qualquer lugar do mundo'. Moran acentua nesta entrevista que em mil anos acabaram as florestas da Europa. Também acabaram as florestas dos Estados Unidos, da América Central e da América do Sul. O Brasil já perdeu a Mata Atlântica e está ameaçado de perder a Floresta Arnazônica com o atual desmatamento. Não é possível deixar em silêncio o seguinte trecho da entrevista: 'Se não fizermos nada, uma grande parte da Antártida va i derreter. O nível do mar vai sub ir, a metade da Flórida vai ficar embaixo d'água'. Tem mais: 'Se em 40 anos não mudarmos
Pesquisa Brasil Adorei mais esta iniciativa da revista em disponibilizar o conteúdo do programa de rádio Pesquisa Brasil por e-mail. Quero também elogiar a ótim a reportagem "Agulha no palheiro" (edição 122). AL EXANDRE B ASÍ LI O R ODR IGUES
Centro de Pesquisas do Cacau Ilhéus, BA Muito obrigado pelo programa de rádio Pesquisa Brasil. Sugiro que seja transformado também em podcast, permitindo assim uma assinatura e carregamento automático de futuras edições. STEFAN ] OHANSSON
Santos, SP EMPRESA QUE APÓIA A PESQUISA BRASILEIRA
Álcool
D AV I D M . L APOLA
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (lnpe) Cachoeira Paulista, SP Comunicamos o registro feito pelo conselheiro Luís Henrique Dias Tavares na 22a sessão plenária do Con selho Estadual de Cultura, cujo teor abaixo transcrevemos: "Lembro aos estimados confrades e amigos que tenho apresentado a este plenário a revista Pesquisa FAPESP. Venho hoje destacar o n° 125. Para ser mais exato: vou destacar a entrevista concedida pelo antropólogo norte-americano Emilio Moran aos jornalistas Fabrício Marques e Mariluce Moura sobre a inquietante questão das mudanças ambientais globais e suas conseqüências sobre o ser humano e todos os demais seres vivos que habitam o planeta Terra. Moran é diretor do centro antropológico para treinamento e pesquisa em mudanças ambientais globais da Universidade de Indiana. Conhece o Brasil e sempre o visita em novos estudos. Por isso sofre com os desmatamentos na Amazônia. O seu tema permanente são as mudanças de clima
Gostaria de dar os parabéns à revista pela reportagem "Revolução no canavial" (edição 122). Esse texto despertou o meu interesse sobre o trabalho devocês. Agora sou um novo assinante.
(b NOVARTIS TropiNet.org
nada, existe uma grande possibilidade de que o padrão de mistura de água fria e quente nos oceanos( ...) seja quebrado ( ...) esfriando algumas partes do mundo e esquentando outras'. Pesquisa FAPESP é assim: sensível e eficiente com as questões que preocupam os cientistas. Uma dessas é o desmatamento do Amazonas".
DI VINO DE
0.
COSTA
Rio de Janeiro, RJ
Correções A revista Educação & Sociedade é publicada pelo Centro de Estudos Educação e Sociedade (Cedes), com apoio da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e não da Universidade de São Paulo (USP), como publicado na reportagem "O conhecimento socializado" (edição 126). A pesquisadora Izabel Boock de Garcia é ecóloga, e não bióloga, como consta na reportagem "No frontda notícia" (edição 126).
E usTORG IO L IMA CAVALCA T I
Secretário-geral do Conselho Estadual de Cultura da Secretaria da Cultura e Turismo da Bahia Salvador, BA
Cartas pa ra esta revis ta devem ser enviadas para o e· mai l cartas@fapesp.br. pelo fax 3838·4181 ou para a rua Pio XI. 1.500. São Pa ulo. SP. CE P 05468·901. As car tas poderão ser resumidas por mot ivo de espaço e clareza.
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Onze anos de conteúdo integral da revista Pesquisa FAPESP Áudio do programa semanal de rádio Pesquisa Brasil Notas sobre os principais artigos publicados nas revistas Nature e Science Chamadas para as matérias da Agência FAPESP
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Ciência, cinema e celebrações
CARLOS VOGT PRESIDENTE MARCOS MACARI VICE-PRESIDENTE
MARILUCE MOURA
CONSELHO SUPERIOR
- DIRETORA DE REDAçãO
CARLOS VOGT, CELSO LAFER. GIOVANNI GUÍDO CERRI, HERMANN WEVER, HORÁCIO LAFER PIVA, JOSÉ ARANA VARELA, JOSÉ TADEU JORGE, MARCOS MACARI, SEDI HIRANO, SUELY VILELA SAMPAIO, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO CONSELHO TECN1CO-ADMINISTRATIVO RICARDO RENZO BRENTANI DIRETOR PRESIDENTE CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ DIRETOR CIENTÍFICO JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER DIRETOR ADMINISTRATIVO PESQUISA FAPESP CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADOR CIENTÍFICO), CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTÔNIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, LUIZ EUGÊNIO ARAÚJO DE MORAES MELLO, PAULA MONTERO, RICARDO RENZO BRENTANI, WAGNER DO AMARAL, WALTER COLLI DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA EDITOR CHEFE NELDSON MARCOLIN EDITORA SÊNIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS EDITORES EXECUTIVOS CARLOS FIORAVANTI (CIÊNCIA), CARLOS HAAG (HUMANIDADES). MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA) EDITORES ESPECIAIS FABRÍCIO MARQUES, MARCOS PIVETTA (EDIÇÃO ON-LINE), RICARDO ZORZETTO EDITORA ASSISTENTE DINORAH ERENO REVISÃO MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÒ NEGRO EDITORA DE ARTE MAYUMI OKUYAMA CHEFE DE ARTE JOSÉ ROBERTO MEDDA DIAGRAMADORES ARTUR VOLTOLINI, MARIA CECÍLIA FELLI CONSULTORIA DE ARTE HÉLIO DE ALMESDA FOTÓGRAFOS EDUARDO CÉSAR, MIGUEL BOYAYAN SECRETARIA DA REDAÇÃO ANDRESSAMATIASTEL: (11)3838-4201 COLABORADORES ANA LIMA, ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS), ANTÔNIO PRATA, DANIEL BUENO, DANIEL COHN (ESTAGIÁRIO). DANIELLE MACIEL (ESTAGIÁRIA), EDUARDO GERAOUE (ON-LINE), FERNANDO VILELA, GONÇALO JÚNIOR, HÉLIO DE ALMEIDA, IRACEMA CABRAL MONTEIRO, LAURABEATRIZ. MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO, NEGREIROS, PEDRO MATIELLO (ESTAGIÁRIO), SÍRIO J. B. CANÇADO. THIAGO ROMERO (ON-LINE) E YURI VASCONCELOS. COORDENAÇÃO DE MARKETING E PROJETOS ESPECIAIS CLAUDIA IZIQUE (COORDENADORA) TEL. (11) 3838-4272 PAULA ILIADIS (ASSISTENTE) TEL (11) 3838-4008 e-mail: publicidade-3-fapesp.br ASSINATURAS TELETARGET TEL. (11) 3038-1434 - FAX: (11) 3038-1418 e-mail: fapesp@teletarget.com.br IMPRESSÃO PLURAL EDITORA E GRÁFICA TIRAGEM; 35.700 EXEMPLARES DISTRIBUIÇÃO DINAP CIRCULAÇÃO E ATENDIMENTO AO JORNALEIRO LMSX (11) 3865-4949 FAPESP RUA PIO XI, N° 1.500. CEP 05468-901 ALTO DA LAPA - SÃO PAULO - SP
Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAPESP É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO
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E comum, a cada campanha, uma certa controvérsia sobre as pesquisas eleitorais e o desempenho dos institutos que as realizam. Dá para confiar nessas pesquisas? Seus resultados influenciam a mídia? Criam tendências no eleitorado? E o que os cientistas políticos e outros estudiosos atentos das chamadas humanidades têm a dizer sobre essas sondagens, com sólida base estatística, que entraram de vez no processo político brasileiro, desde a redemocratização nos anos 1980? Foi isso exatamente que o editor de humanidades, Carlos Haag, tratou de investigar, consultando estudos acadêmicos e ouvindo seus autores, para oferecer aos leitores de Pesquisa FAPESP uma visão densa e abrangente sobre o que são as pesquisas para o presente da política, como e por que elas funcionam, sem esquecer uma breve passada de olhos por seu histórico. Vale a pena conferir, deslizando pelo texto fluente a partir da página 78, o que sustenta essa saltitante dança de números que a mídia nos apresenta a intervalos de tempo cada vez menores ao longo da campanha, até as vésperas da eleição. Em um campo transitório das ciências humanas para as biológicas, quero destacar a reportagem reveladora do editor especial Marcos Pivetta, a partir da página 36, sobre um megaestudo do potencial pesqueiro da costa brasileira, patrocinado pelo governo federal, e cujos resultados estão em uma publicação lançada por esses dias. A notícia não muito animadora que ele traz é que há pouco peixe no litoral nacional, dadas suas águas quentes e pobres em alimentos para esses animais. Mas, em contrapartida à escassez dos recursos, parte deles é valiosa e, dessa forma, a pesca nacional pode crescer em termos qualitativos. Nessa mesma zona fronteiriça humanas/biológicas merece registro aqui o sensível relato, a partir da página 48, do editor de ciência, Carlos Fioravanti, junto com Mariana Martinez Estens, jornalista do diário Frontera, de Tijuana, México, sobre a propagação em larga escala de vírus e bactérias na grande fronteira que separa o México dos Estados Unidos e a conseqüen-
te explosão de doenças de todo tipo facilitada por condições de sobrevivência na região de uma atordoante dramaticidade, tenha ela caráter temporário ou permanente. Em tecnologia, o editor Marcos de Oliveira detalha, a partir da página 62, o começo das atividades de uma das mais expressivas parcerias já firmadas neste país entre instituições científicas e uma empresa - no caso, a Petrobras. Nada menos que 76 instituições em 17 estados brasileiros vão receber o total de R$1 bilhão, no período de três anos, para desenvolver projetos de pesquisa cujo foco é o aumento da produção brasileira de petróleo e gás e o desenvolvimento de um grande número de novas formas de energia. Destacar dentro do trabalho coletivo uma pequena peça assinada exatamente por quem está fazendo a avaliação geral desse trabalho pode ser constrangedor. Mas no caso da entrevista que Fernando Birri me concedeu, vale a pena vencer o constrangimento por conta de suas palavras, de sua fantástica visão de futuro aos 80 anos, e do tamanho de sua obra na construção do cinema na América Latina, seja fazendo filmes, plantando escolas de cinema ou examinando teoricamente, com grande argúcia e originalidade, os caminhos dessa expressão cultural tão insistente e persistente em nosso continente. E, assim, recomendo a leitura da entrevista a partir da página 12. E, finalmente, o registro que era o que mais queria fazer desde o começo dessa carta: Pesquisa FAPESP, concorrendo com muitos dos grandes veículos nacionais, conquistou o primeiro e o segundo lugares do Prêmio de Reportagem sobre a Biodiversidade da Mata Atlântica, na categoria jornalismo impresso. As reportagens vencedoras foram de Alessandra Pereira e Carlos Fioravanti. Todos os detalhes da premiação estão na página 29. Elas são completadas com outras notícias que podem sugerir que estamos entoando loas a nós mesmos. Mas não se trata disso. Trata-se de celebrar boas notícias e o reconhecimento de que temos cometido acertos num trabalho que esta equipe se empenha em fazer bem porque adora fazê-lo. Tim-tim! PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 9
1907: a inauguração do Canal 1, em Santos (no alto), e uma das pontes de concreto
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I a segunda metade do século XIX até 1910, o porto de Santos, no litoral paulista, era considerado pelos europeus I como "maldito". Motivos não faltavam. I■ A cidade plana, encharcada, quente, I V poluída e com unia população crescente ■ de imigrantes - em razão da exportação de café - colecionava epidemias: febre amarela, malária, peste bubônica, varíola e tuberculose. Para salvar a saúde dos moradores santistas e a economia local só restava sanear a cidade a qualquer custo. Para a tarefa foi escolhido o engenheiro fluminense Francisco Saturnino Rodrigues de Brito, na Comissão de Saneamento, e o médico paulista Guilherme Álvaro, na Comissão Sanitária. Uma técnica de construção já utilizada no exterior, mas praticamente inédita no Brasil, o concreto armado, de grande resistência, teve participação importante na restauração da salubridade de Santos. Até onde os estudos dos especialistas em engenharia e história alcançam, as primeiras obras conhecidas feitas com essa técnica foram canais, galerias e pontes que cortam Santos, projetados e construídos por Saturnino de Brito. Ele imaginava que os canais drenariam a água das chuvas e recolheriam a que vem dos morros. Um sistema de comportas regularia a entrada e a saída
1910: ponte de 28 metros em Socorro sobre o ribeirão dos Machados
Há cem anos o concreto armado começava a ser usado no Brasil
Criação no concreto NELDSON MARCOLIN
da água para o mar. Além disso, o regime das marés agiria sobre os canais impedindo que a água ficasse parada e evitando mosquitos. O Canal 1, feito sobre o traçado do ribeirão dos Soldados, foi inaugurado em 1907. No total, Brito projetou oito deles, aos quais foi acrescentado um, posteriormente. A obra foi fundamental para o saneamento e tornou-se marca registrada da cidade junto com os extensos jardins da orla marítima. No próximo ano serão comemorados os cem anos dos canais, a cargo de uma comissão de organização, da qual faz parte a Fundação Arquivo e Memória de Santos (www.fundasantos.org.br). O concreto armado é uma massa formada por
cimento, areia, água e pedras, que envolve a ferragem e adquire a forma que se queira. Surgiu na França com loseph Louis Lambot, em 1850. No Brasil, a primeira referência que há sobre a técnica veio do professor Antônio de Paula Freitas, da Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Em trabalho de 1904, Freitas menciona a execução de seis prédios projetados pelo engenheiro Carlos Poma, que também teria construído um reservatório de água em Petrópolis, no Rio. Ocorre que hoje não há sinal de onde essas construções foram erguidas nem se conhecem seus vestígios. "Também não se pode afirmar que elas eram o que hoje se define como concreto armado",
diz Augusto Carlos de Vasconcelos, engenheiro e professor aposentado da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e da Universidade Mackenzie, autor do estudo "Grandes obras de concreto armado", que consta do livro 500 anos de engenharia no Brasil (Edusp, 384 páginas). Depois dos canais de Santos, Vasconcelos acredita que a ponte sobre o ribeirão dos Machados, em Socorro (SP), é a obra mais antiga conhecida no Brasil a usar a técnica, em 1910. "O concreto armado provocou uma revolução na engenharia brasileira porque apenas com estruturas metálicas não haveria condições de fazer tantas grandes obras", explica o engenheiro. "O aço era importado, caro e não havia
uma indústria montada para produzi-lo aqui." Outro fator contribuiu para sua disseminação: operários sem qualificação aprendem facilmente a fazer a massa no chão da obra e aplicá-la às ferragens. Esse ambiente ideal encontrou em Oscar Niemeyer seu melhor arquiteto. "Não é exagero dizer que Niemeyer não seria Niemeyer sem o concreto armado", diz. A propósito de seu trabalho com a técnica, o arquiteto carioca já disse o seguinte: "Na arquitetura debrucei-me por toda a vida. Foi o meu hobby, uma das minhas alegrias, procurar a forma nova e criadora que o concreto armado sugere. Descobri-la, multiplicá-la, inseri-la na técnica mais avançada, criar o espetáculo arquitetura!".
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Um construtor de utopias MARILUCE MOURA
i
palavra cinema já me soa conservadora. A imagem audiovisual tem outras formas possíveis além do cinema. Estou IH falando de uma nova maquifl B naria de imagens, de novas ■^B fantasmagorias, novas e insus■ H peitadas sombras eletrônicas, ou melhor, luzes eletrônicas que por enquanto apenas entrevemos." No palco da imensa sala 1 do Memorial da América Latina, bem iluminado só em uma pequena área destinada ao personagem em cena, Fernando Birri, 81 anos, mirava assim o futuro, em sua aula magna no final da manhã de 14 de julho, logo após ser apresentado à platéia pelo presidente do Memorial, Fernando Leça. Na verdade, a maioria das pessoas reunidas ali para ouvi-lo, faixa etária amplíssima, entre menos de 20 e mais de 80 anos, sabia muito bem quem era aquela figura venerável de longas barbas brancas, a lembrar um profeta nordestino, na visão de alguns, ou Leon Tolstoi, no olhar de outros. Porque para aficionados do cinema produzido fora do mainstream, como era o caso de quase todos ali, o nome de Birri, cineasta argentino e cidadão do mundo, é nada menos que uma metáfora da capacidade de resistência e de múltiplos renascimentos do cinema latino-americano, em mais de cinco décadas. Com certa freqüência a ele se atribui a paternidade do Novo Cinema Latino-Americano. A aula magna fazia parte do Io Festival de Cinema Latino-Americano, promovido pelo Memorial e pela Secretaria Estadual de Cultura de São Paulo, que coincidentemente tem à
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frente nesse momento o cineasta João Batista de Andrade. O evento fora aberto na noite do domingo, 9, com o mais recente filme de Fernando Birri, o documentário Za-2005. Lo viejo y lo nuevo, um megaclipe, como ele mesmo define, uma colagem de cenas tiradas de algumas das melhores produções do continente em diferentes épocas. Nele, trechos de clássicos como Memórias do subdesenvolvimento, do cubano Tomás Gutiérrez Álea, Vidas secas, do brasileiro Nelson Pereira dos Santos, e Tire Dié, do próprio Birri, considerado uma obra-prima fundadora, dialogam com cenas de trabalhos cinematográficos recentes de alunos da Escola Internacional de Cinema e Televisão de San Antônio de Los Banos, em Cuba (EICTV). Como disse em O Estado de S. Paulo o crítico Luiz Zanin Oricchio, o filme "é a perfeita imagem do seu autor - fala do sonho de um cinema latino-americano que se impõe por seu rigor, por sua força e qualidade, e cresce à margem da grande indústria mundial do entretenimento". Fernando Birri, casado há 46 anos com Carmen, é, registre-se logo, bem mais que um cineasta: é um teórico do cinema, professor e educador que plantou múltiplas experiências de ensino de cinema e televisão, entre as quais a escola de Cuba é sem dúvida a mais reluzente e avançada. É pintor, escritor, poeta. É um visionário, um libertário - e bela amostra de tudo isso junto está no texto denso e vigoroso de "Acta de Nacimiento de Ia Escuela Internacional de Cine y TV", que integra o livro El alquimista democrático, cuja edição brasileira deverá ser publicada em breve, graças ao empenho de Sérgio Muniz, documentarista bra-
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sileiro, primeiro diretor docente da EICTV. Birri é, finalmente e acima de tudo, alguém que jamais abriu mão de seu direito de construir coisas baseadas em seus sonhos mais utópicos, com método e rigor. A seguir, os principais trechos da entrevista que ele concedeu a Pesquisa FAPESP (no site da revista há uma versão sem cortes). ■ Gostaria de começar pelo final de sua aula: você disse que há algo novo que emerge no panorama da imagem, que iria muito além de um novo cinema. Como é isso? — Ainda o vejo muito nublado, a bola de cristal ainda está empanada, em brumas, não sabemos inteiramente, porque o que tem que vir nunca se sabe acertadamente até que vem, tautologicamente. Mas sinto, intuo que há algo, que se entrevê mais que se vê. Esse festival, muito sério, muito bonito, serviu muito para essa percepção. De outro lado, o Brasil sempre foi um ambiente de buscas, inquietudes e preocupações, capaz de sinalizar rumos. Aqui a elaboração teórica do cinema alcançou um nível muito alto, comparado a outros países da América Latina. ■ Nas universidades? — Sim, nas universidades, na crítica, mesmo entre cineastas como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Roberto Santos, Leon Hirzman e tantos outros, não? Teria que fazer uma lista de nomes, com Joaquim Pedro de Andrade, Caca Diegues, Õzualdo Candeias, Geraldo Sarno, enfim, todos cineastas que fizeram acompanhar sua obra de elaborações teóricas sumamente importantes. Esse aporte de material teórico caracteriza o cinema novo brasileiro. ■ Este "novo" que você agora entrevê tem a ver mais com técnicas de filmagem, com a estética ou com a reflexão teórica? — A verdade é que eu jamais seria capaz de separar todas essas coisas. Acho que elas só se separam como objeto de estudo, por exemplo, quando Leonardo da Vinci secciona um corpo e analisa um pequeno músculo que corre para que um dedo se mova. Mas há que se analisar o próprio homem, e creio que são imprescindíveis um e outra, o pequeno tendão do dedo da unha e a alma do homem que move o dedo. Nesse sentido o que está se passando agora é que há coisas que estão vindo com respeito a todo um material, um background que o novo cinema latino-americano elaborou em quase meio século de vida. E, sim, o que acontece, com sinceridade, é que muitas das coisas que foram elaboradas já não são válidas, ou melhor, são válidas para ajudar a 14 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 127
pensar, mas nas circunstâncias já não bastam. Por exemplo, há duas coisas que surgem desse encontro que me parecem muito importantes. A primeira é que aqui se está lançando com muita insistência não o novo, mas os novos cinemas latino-americanos, meio século depois. Existe uma pluralidade nesse movimento e isso é absolutamente novo. Num poema que escrevi nos anos 80 para um grande encontro na Alemanha chamado Horizontes, um prólogo para um enorme catálogo, fiz esse "Poema em forma de ficha filmográfica" em que dizia que somos um na diversidade e diversos em nossa unidade. Dizia que havia que manter sempre essa característica, esse tao, essa dialética, que em definitivo enriqueceu esse momento antidogmático por excelência. Quero dizer que agora essa diversidade assume muito mais força, mais evidência, e numa explicação simplista podemos dizer que há muito mais cinemas. Há 50 anos, falar de cinema na América Latina era falar quase exclusivamente dos cinemas argentino, brasileiro e mexicano. Depois, nos anos 60 aparece a cinematografia cubana com grande força. Mas hoje não há país latinoamericano que não tenha produção de cinema. E eu não limitaria a palavra produção ao ser cinematográfico, mas a usaria como produção de sentidos cinematográficos, estendendo-a assim para a produção de revistas, de crítica, de análises... ■ E de televisão? — ...E aí vem o ponto crítico, e é justamente que a palavra cinema já não basta. ■ Foi isso o mais instigante de sua fala: como assim a palavra cinema não basta, o que é preciso criar em seu lugar para ampliar o próprio sentido do que ela nomeia? — Há que inventar uma palavra que antecipe a invenção real do meio. Por ora podemos nos conformar em amarrar algumas que existem para isso, como por exemplo "imageria" audiovisual, que me agrada muito. Ou imago, imagem, que tem um prestígio muito grande, quase fantasmagórico. É como um fantasma audiovisual, quiçá possamos dizer mesmo como um ectoplasma, uma nebulosa que se está completando de diversas formas e da qual o cinema é uma só uma expressão... ■ Para além do cinema, você contempla algo que se apresenta por vários meios... — Claro, mas não vamos exagerar, vamos ficar um pouquinho mais próximos, è para começar podemos nos deter em todas essas formas que já existem de fato, não de modo antecipatório. E nesse sentido há o que Pasolini chamava contaminatio: a contami-
nação de gêneros. Assim, mesmo no cinema visto na tela normal é por vezes muito difícil separar as coisas, o que é documentário, o que é ficcional... E desde já em muitos filmes existe uma intersecção, uma inter-influência dos gêneros tradicionais com coisas que não conhecemos ainda. ■ Daí a idéia do "docfic". — Claro, docfic é isso, é uma reformulação proposta por Orlando Senna na Escola de Cinema de Cuba em princípio dos anos 1990, a que eu adiro porque me parece realmente que ele atinge uma intuição que de alguma maneira define uma coisa que também já está sendo. Mas deixe-me concluir o que queria dizer: onde me parece que realmente aponta tudo isso, como ponto extremo, como uma newfrontier, uma nova fronteira à qual alguns já chegaram e a estão ocupando para depois partir para outros territórios incógnitos, é cine virtual, é a imagem virtual. O que para a maioria de um público de espectadores, de fruidores, ainda permanece algo secreto e proibido, existe para uma minoria superespecífica, por exemplo, no Massachusetts Institute of Technology (MIT), lugar onde se pratica faz décadas... é um cinema muito especial, que se pode tocar verdadeiramente, e umas tantas coisas que seguem de alguma maneira enquanto se fazem as novas tecnologias. E aqui temos uma questão que você me propunha antes: é que as novas tecnologias, as novas expressões, as novas críticas, seguem juntas, não são coisas que apontam umas para um lado e outras para um outro. É possível, sim, separá-las com a finalidade de vivissecção, de estudo, a exemplo da anatomia, mas para que o corpo caminhe, viva, respire e ame tem que estar completo. ■ Estamos falando entre outras coisas, aqui, das experiências do Medialab, do MIT? — Sim, claro, eles têm um dos laboratórios mais avançados no aspecto da imagem virtual e, por suposto, de todas as antecipações que de alguma maneira derrubam as classificações atuais ou que julgamos atuais e que são velhas do cinema. ■ O que você vislumbra de novo de alguma forma se vincula ao trabalho de meio século de ensino de cinema no continente, que começa com a escola de Santa Fé? Como se juntam essas pontas em sua reflexão? — Lamentavelmente, por ora não se juntam. Ainda não estamos em um momento de síntese. Se me permite dizer, como você ainda estou tentando entender, não há resposta pré-fabricada para essa questão. Pensemos juntos todos nesse sentido... de alguma maneira, contudo, talvez o que nos ajude
realmente a pensar um pouco a produção dos fenômenos culturais da América Latina seja um dos mais reveladores e mais ilustrativos deles, ou seja, o fenômeno religioso, quase diria antropológico-religioso - me refiro concretamente ao sincretismo. ■ Mas você não se refere aos novos movimentos religiosos, o neopentecostalismo... — Vou um pouco mais atrás, digamos assim. O conceito é o seguinte: isto que estamos usando, a imagem de alguma maneira, na realidade é nessa perspectiva que estamos tentando entrever, é ainda uma apreciação sincrética do fenômeno, é um momento prévio ao momento analítico e muito anterior ainda ao momento sintético, que acredito que é aquele em que se produzirá finalmente a eclosão do fenômeno como um fenômeno social, coletivo. ■ Ou seja, estamos no momento de florescimento de variadas coisas, muito antes que se chegue a uma nova forma para o velho cinema, que, entretanto, não sabemos qual é. — Sim. Creio que a virtude e os riscos desse momento é que ele é um momento antecipatório. E ante todo momento no qual o novo se apresenta de alguma forma, se intui, o espírito humano tem diversas atitudes, mas há duas fundamentais: a primeira é ousar, atirar-se num duplo salto mortal sem rede no vazio... e voar. Aí pode ocorrer tudo. A segunda é voltar para trás. ■ E o que é, no caso, voltar para trás? — Prosseguir falando de cinema ■ Mas corremos esse risco? — Sim, claro. Não apenas corremos, mas hoje ainda o praticamos concretamente. ■ Em Za-2005 a preocupação era mostrar um pouco essa possibilidade de colagens, de sincretismo, da América Latina? Qual é a relação entre o filme e tudo que você entrevê como panorama da imageria contemporânea? — São duas perguntas em uma. A primeira resposta é: busco nesse filme o que quero em todos, mas um pouco mais, porque tento abarcar um período histórico enfrentando algumas seqüências dos filmes fundadores do cinema latino-americano e filmes de teses produzidos pelos estudantes da escola [de Cuba] nesses 20 anos. Então, isso me dá motivo para pôr umas ante as outras como espelhos, em primeiro lugar para ver se uma produção reflete a outra ou, pelo contrário, se não se olham, se rechaçam, se quebram por inteiro, ou, a última alternativa, se indiferentemente dão de ombros uma para a outra e, em vez de espelhos, são simplesmente superfícies de vidro e
^L ■ A virtude e os riscos desse momento decorrem de ei ser antecipatório. E daí pode-se voar ou retroceder j \ mercúrio que não refletem nada. Essa é a preocupação do filme, uma verificação de algo que se tenta compreender. E cada um que assuma sua posição, tire suas próprias conclusões. Nesse sentido, o filme não tem a pretensão de impor nada, tenta propor. A segunda questão: o que tem a ver esse filme com o que falávamos antes? Muito, tudo. Porque, ao fazer essa espécie de balanço, de alguma maneira também estamos fechando uma janela e abrindo uma porta, o que significa dizer, isto é de um jeito, vamos para outro. Ciclos culturais começam e chegam a sua conclusão, terminam. Julgo que nesse sentido o filme também propicia esse tipo de preocupação que tenho no momento e, como digo no começo, trata-se de compartilhar tudo isso com uma espécie de megaclipe didático e coletivo para tentar entender algo - veja, não para ensinar, mas para tentar aprender algo, coletivamente. Como nada nasce de nada, esteve muito presente a parte de Zavattini, não em seqüências, mas o nome e o espírito. Está também muito presente um outro diretor italiano que nos últimos anos de sua vida trabalhou muito nesse sentido, que foi Rossellini. O grande diretor de Roma cidade aberta, de Paisá, de belos filmes, nos últimos anos de sua vida se dedicou à televisão (1970), fazendo filmes de uma hora cada um, como Sócrates, como Atti degli apostoli, como La toma dei poder por Luis XIV... Eram filmes de uma hora, muito simples, destinados a difundir a vida, o paradigma, a referência em que se constituíram grandes personagens da humanidade. E muito abertos, pouco acadêmicos em sua maneira de contar a história. ■ Com toda a repressão que as expressões culturais sofreram na América Latina, como é
possível entrever esse novo, no âmbito da imagem, surgindo com tanto vigor? Quais são as raízes dessa força? — É uma pergunta ao mesmo tempo muito difícil e muito fácil. Muito difícil se aplicamos o close-up. Mas se a tomo com teleobjetiva torna-se um pouco mais fácil ou pelo menos mais gratificante respondê-la, porque assim falo de 500 anos de história e um pouco mais para trás. Então, vendo a América Latina nessa perspectiva inversa, digamos assim, fica mais fácil compreender que nesses 500 e tantos anos de história, incluindo a fase pré-colombina, de uma riqueza impressionante, este continente fisiologicamente se mostra destinado a ser aquilo que está sendo, ou seja, a elaborar a química do novo. Porque é isso. ■ Como começou sua experiência de ensino na área de cinema? — Começou porque eu justamente queria aprender a fazer cinema na Argentina, ali perto dos anos 1950 e não havia onde fazêlo. Então, a única maneira possível era ir a um estúdio, trabalhar com alguém que fazia filmes e aprender na prática ao lado dessa pessoa. Mas quando tentei fazer isso em Buenos Aires, por todos os meios possíveis e impossíveis - me ofereci inclusive para trabalhar varrendo o estúdio -, não consegui. Isso não funcionava, não era habitual. ■ Havia estúdios de cinema em Buenos Aires? — Claro, vários estúdios importantes. Ali estavam Argentina Sonofilm, San Miguel, Lumiton, que faziam parte da indústria tradicional. Eu me dei conta, refletindo depois sobre isso, que em geral todas as coisas que terão um destino nascem de uma carência. O fogo, por exemplo, nasceu da escuridão. PESQUISA FAPESP 127 • SETEMBRO DE 2006 ■ 15
Depois, bom, serviu para cozinhar também, mas nasceu da necessidade de derrotar a escuridão. Então o ser humano, ante uma carência, inventa coisas com sua capacidade imaginativa. Portanto, na Argentina não conseguia estudar, e esse momento coincidia com uma situação política muito tensa... ■ Era o primeiro período do peronismo. — Sim, para mim um momento muito difícil, mas não falo especificamente do peronismo, falo especificamente da situação do cinema durante o peronismo. O primeiro é um conceito político muito mais complexo e teria que articulá-lo de outra maneira. Estou me referindo especificamente ao cinema e à necessidade que tinha uma pessoa, um rapaz anônimo, sem nenhum antecedente, de aprender a fazer cinema nesse país. ■ Você de alguma maneira já convivia com o cinema? Como surgiu seu interesse? — Veja, eu era de uma família de artistas, meus tios, todos, de alguma maneira estavam ligados a arte, música, pintura... Meu pai era professor de ciências políticas e sociais, mas esta na verdade era uma carreira que sobreveio e sufocou, de outro lado, sua verdadeira vocação que era de pintor. Eu cresci nesse ambiente, e o cinema foi um pouco um sucedâneo da minha infância, da atividade que dominou minha vida, que era um teatro de títeres. Depois eu escrevia poesias, pintava desde jovenzinho. Também comecei uma carreira de advogado, mas isso me criou um problema terrível, uma crise, afinal mandei ao diabo essa carreira. Sabe que quando o diabo se apresentou a Lutero ele lhe atirou a Bíblia para que a lesse, não? Em meu caso não o fiz com a Bíblia, mas com um livraço de capa vermelha, A economia política, de Gide, um economista francês. No momento mais alto da minha crise, eu lia, lia, lia e não entendia páparos, então o atirei contra a parede, como Lutero contra o diabo, e decidi ali que não ia ser advogado, mas um diretor de cinema. ■ Quantos anos você tinha então? — Penso que um pouco menos de 20 anos, 17 anos. Bem, eu já havia fundado o primeiro teatro experimental da Universidade Nacional do Litoral, em Santa Fé, já havia fundado também o cineclube Santa Fé, quer dizer, já tinha um vínculo com o cinema, havia uma predisposição, mas... ■ Então o mundo perdeu um advogado... — Teve a sorte... (recíproca) ■ Buenos Aires não o aceitava... — Não, o que não me aceitava era o cinema em Buenos Aires. A cidade era fascinante, en16 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 127
contrei muita gente, amigos, estavam Ernesto Sabato, Xul Solar, Mario Trejo, outros, muita gente, todo um clima muito simpático, e trabalhei também como ator numa obra surrealista de Garcia Lorca que se chamava Assim que passem cinco anos. Mas com o cinema se deu essa dificuldade, e além do mais tudo isso coincidiu com um fenômeno histórico muito importante que era o neo-realismo italiano. Estávamos nos anos em que chegavam à Argentina os primeiros filmes italianos, aliás, digo-lhe que na Argentina havia uma cultura cinematográfica... Por exemplo, [Sergei] Eisenstein eu conheci antes por lê-lo do que por vê-lo, porque haviam traduzido do russo O sentido do cinema, um livro determinante, e isso e mais o realismo italiano foram grandes impulsos para eu seguir. Então me decidi a ir para a Itália, e foi um primeiro exílio, digamos assim. ■ O exílio dos anos 1950. — Exato. Saí disposto a experimentar a cinematografia e estudei no Centro Experimental num momento em que já chegavam outros estudantes da América Latina atraídos pelo neo-realismo, dos quais os dois primeiros foram este que lhe fala e um compatriota seu de quem gosto muito, Rudá de Andrade, uma pessoa adorável. ■ Quem eram seus professores em Roma? — Nesse momento havia no Centro professores fixos, como o crítico Mario Verdone, por exemplo, um grande historiador do cinema italiano, mas de outro lado vinham nos dar aula os grandes diretores como Vittorio de Sica, Luchino Visconti ou mesmo Roberto Rossellini... Também Renoir... Era um ensino muito sério, de muita formação. ■ E então os doisjovenzinhos da América Latina receberam sua formação de cinema dos grandes mestres italianos. — Exato. E depois vieram outros latinoamericanos, veio Garcia Márquez, veio Tomás Gutiérrez Aléa, de Cuba, mesmo Glauber Rocha passou pelo Centro Experimental, e tanta gente mais... Tarik Souki, da Venezuela, Júlio Garcia Espinosa, também de Cuba... uma grande quantidade de companheiros. ■ E quanto tempo você terminou ficando nesse período em Roma? — Terminei meus estudos no Centro Experimental, que foram dois anos, me graduei, e ao mesmo tempo comecei a trabalhar no cinema italiano, em várias coisas. Trabalhei como ator, no primeiro filme de Francesco Maselli, Gli sbandati, con Lúcia Bose e outras pessoas, depois trabalhei como assistente de direção de Cario Lizzani, um grande
cineasta que depois foi também diretor do Festival de Veneza, trabalhei como assistente de Vittorio de Sica e de Cesare Zavattini no filme // tetto. Zavattini foi meu grande amigo, foi a pessoa com quem tive o diálogo mais sério, mais profundo e mais determinante em minha futura carreira, porque era um vulcão, numa erupção de idéias permanente, um grande inovador, um precursor de muitas coisas, do que depois vai ser o cinema novo, o nuevo cine, o free cinema, o cinema democrático, o vídeo democrático de que se fala tanto agora. Ele foi o primeiro homem que lançou os famosos cinegiornali liberi, os cine-diários livres, que eram como noticiários, mas absolutamente antioficiais, contra a retórica da cultura oficial, muito provocadores, nessa época mais forte, mais florescente e produtiva do neo-realismo. A Zavattini, e justamente por isso, dedico Za2005. Lo viejo y Io nuevo um megaclipe didático e coletivo em homenagem aos 20 anos da EICTV, que se completam agora. ■ E, afinal, quantos anos você ficou nesse tempo de estudos e trabalhos italianos? — Fiquei até 1955, passei portanto seis anos, contados desde 1950. E depois voltei, porque parecia que a Argentina ia tomar outro rumo, havia interesse em minha experiência e eu cria que já sabia fazer um filme. Já tinha feito vários documentários, havia feito Immagini popolari siciliane, Selinunte, Alfabeto notturno, também já tinha trabalhado como assistente em vários filmes de ficção. Dessa forma decidi que era chegado o momento de voltar à Argentina, voltei já com um projeto de filme que era Los inundados, e já havia lido, amadurecido e escrito uma espécie de primeiro treatment. ■ Você efetivamente fez esse filme. — Sim, foi meu primeiro filme de ficção, de longa metragem. Mas tampouco encontrei a possibilidade de a indústria cinematográfica se interessar por fazê-lo em Buenos Aires, e então decidi queimar os navios, romper com tudo o que era instituição, o aparatschnik oficial, e voltei a Santa Fé para começar desde o chão. Então fiz um seminário onde tive quase cem alunos que nunca haviam feito cinema. Havia de tudo: donas-de-casa, pintores, bombeiros, estudantes universitários... Enchemos uma sala e aí fizemos praticamente os primeiros fotodocumentários, que era a maneira mais simples de fazer um projeto de filme, com fotos e com papéis, com epígrafes, saindo para falar com as pessoas, perguntar de seus problemas, suas aspirações, suas raivas, seus desejos suas esperanças, seus sonhos... e ao final, depois de dois anos de trabalho, já nos havíamos organizado como grupo na uni-
te isso é o que dá sentido às coisas, pelo menos a mim assim parece. ■ Quanto durou a experiência de Santa Fé? — Para mim durou até 1963 mais ou menos, um pouco antes, talvez, digamos princípio dos anos 1960. Porque então a situação política se pôs outra vez muito feia na Argentina, o vírus fascista e ditatorial voltou a impregnar toda a sociedade argentina. Houve um período mais ou menos democrático do presidente Arturo Frondisi, mas os militares voltam uma outra vez a sacar suas asquerosas botas, voltam a pisotear todos e a acabar com tudo. E então, para preservar um pouco a escola cujo nome oficial era Instituto de Cinematografia da Universidade Nacional do Litoral, mas que passou a história do cinema com o nome de Escola Documental de Santa Fé, decidi que não me restava outra opção senão ir-me... versidade, através de um Instituto de Sociologia que era muito progressista. Aí praticamente nasceu Tire Dié, que é a primeira encuesta, a primeira pesquisa social que se filma na América Latina. É um filme muito polêmico, que dividiu a Argentina em a favor e contra, teve enormes detratores e teve muita gente que o apoiou. Ele tem a ver diretamente com o tema sobre o qual você está me perguntando, o do ensino. Por quê? Primeiro, porque há um paradoxo, dado que vou à Argentina para fazer um filme de ficção e, ante a impossibilidade de fazê-lo, volto à estaca zero e faço um documentário como uma espécie de exploração de campo que depois se vai traduzir na base do filme de ficção que faço mais adiante, Los inundados. Então, entre Tire Dié- que começa a ser feito em 1955, no qual se trabalha durante todo o ano de 1956 mais 1957, e tem a primeira cópia pronta em 1958 - e Los inundados há um ar de família total, digamos. Mas agora vem o que nisso se vincula diretamente com algo que estamos falando: é que Tire Dié é um filme-escola. É minha maneira de fazer escola. Faz tempo que sei que cinema se aprende fazendo cinema. As especulações teóricas são fundamentais e imprescindíveis na medida em que tenham sua contrapartida da práxis. Teoria e prática andam juntas, e então enfrenta-se uma fórmula que é mais ou menos inclusive a européia, na qual se privilegiava muito a teoria. Eu faço um pouco ao revés: parto de uma práxis e nela analiso a teoria em que a sustento. É isso que se passa com Tire Dié, por isso é um filme-escola, um filme feito para que as quase cem pessoas que o fazem aprendam a fazer cinema. Façam cinema pela primeira vez em sua vida. Por isso, ao lado de ser um filme-escola, é também um
filme coletivo. E essa é outra das minhas idéias fixas, de minhas obsessões - o cinema como arte coletiva. ■ Mas você é o diretor. Como o filme, sendo uma obra sua, é uma obra coletiva? — É porque não fui nunca um diretor no sentido tradicional da palavra. ■ Você nunca teve uma visão autoral? — Sim, claro, o autor de todos os meus filmes são o coletivo, somos todos diretores. E o que eu faço sobre todos, e nesse sentido Tire Dié foi determinante, é uma função de estímulo, como uma pessoa que provoca, suscita... Visão autoral sim, mas autoritária não. ■ As raízes dessa abordagem, dessa sua forma de fazer as coisas, em seu caso estão lançadas numa formação marxista? — Sim, é uma parte das coisas, mas não só isso. Porque sou marxista, mas sou também tântrico, sou zen... rechaço os pequenos rótulos, porque sou cronópio, sou fama... Mas é verdade que há raízes marxistas, essa concepção parte de uma visão comunitária da vida, ou da vida como um projeto comunitário e utópico, dois conceitos que animaram todo o meu trabalho, e espero poder tirar Ia pata, como dizem, ou respirar meu último respiro (viva Bunuel!) vivendo dentro disso que lhe digo. ■ É bom pensar a vida como um projeto comunitário e utópico? — Se não fosse assim, que graça teria? Não teria me divertido (e sofrido) como tenho feito tanto nesta vida, com todos os dramas e as tragédias das quais participei, fui parte e sigo participando e compartilhando, ao mesmo tempo sabendo que definitivamen-
■ Os documentários que foram feitos enquanto você estava à frente da escola de Santa Fé estão todos preservados? — Alguns sim, outros não. E ao final, já na época mais dura da ditadura, nos anos 1970, terminaram por fechar a escola. Fecharamna e os militares pegaram todas as coisas, as câmeras, as moviolas... chegaram numa noite com dois grandes caminhões, com dois toldos, lonas, puseram tudo lá dentro e... desapareceu a escola. Mas tudo isso não é uma história trágica, senão o contrário, porque agora a escola existe outra vez. Há três ou quatro anos foi reaberta e tem inclusive um statusjá reconhecido oficialmente, chamase Instituto de Meios Audiovisuais. E no país uma nova escola vai ser inaugurada na Universidade San Martin, na província de Buenos Aires. É uma universidade muito nova, avançada e progressista, que funda uma escola de cinema documental. ■ Você então partiu mais uma vez no começo dos anos 60. Dessa vez para onde? — Para o único lugar onde pensava que de alguma maneira poderia ter portas e janelas abertas. Falei com um amigo em São Paulo, lhe disse que estávamos em uma situação insustentável, tínhamos que sair da Argentina, e queria saber se havia alguma possibilidade de virmos ao Brasil. E então esse amigo, que era o querido Vlado [Vladimir Herzog], me disse simplesmente "venham, estamos esperando". Era 1963 e o Brasil vivia uma abertura democrática incrível. A Argentina... bem, em poucas palavras: deixamos para trás a escola, éramos quatro companheiros, homens e mulheres: Edgardo Pallero, sua companheira Dolly Pussi, Manuel Horácio Gimenez e minha companheira Carmen. Em São Paulo nos PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 17
organizaram uma palestra na cinemateca, onde estava Paulo Emílio [Salles Gomes]. Quem organiza é Rudá de Andrade, e junto com ele está Vlado e também Sérgio Muniz, está toda a turma com a qual, quando termina a palestra nesta mesma noite, saímos todos com um entusiasmo único, falando há que se fazer filmes, e isso e aquilo — havíamos apresentado Tire Dié e outros documentários da escola - e então se aproxima um senhor, jovem ainda, porém um pouquinho mais velho do que nós, que diz "que bom... tenho uma casa de fotografia que tem aparelhos"... e esse senhor... ■ Thomaz Farkas! — Sim, grande Thomaz Farkas! Nasce aí o movimento documentarista paulistano. Thomaz decide levar adiante essa empresa, a assume economicamente, produz os documentários. Ficamos uns meses mais, depois vamos ao Rio porque eu já vinha preparando um projeto com Ferreira Gullar, que era João Boa Morte.Trabalho com ele, e aí se produz aquela coisa incrível, quando as terras são dadas aos camponeses. Esses também são os meses em que estréiam Vidas secas e Deus e o diabo na terra do sol. ■ Nossas duas obras-primas... — Sim. Há toda uma efervescência bonita mesmo, um momento único. Lembro da comemoração do que deveria ser o princípio do fim do latifúndio. Os camponeses iam enchendo a praça, chegavam com os tratores, as foices, feixes de trigo - me fazia pensar en La tierra, o filme de Dovsenko, dos começos da cinematografia soviética uma coisa incrível, impressionante... Era o começo de uma era, e justamente por isso uma semana depois se trunca e já vem o contragolpe, e pelo qual os próprios companheiros brasileiros me aconselham deixar o Brasil, somos uma complicação também para eles porque já neste momento não há mais garantia de segurança para ninguém. Assim é, tenho que ir-me outra vez. ■ Estamos em 1964 e você volta à Itália. — Passo primeiro por Cuba, e lá também não posso fazer nada porque a cinematografia desse país está num momento economicamente muito difícil. Então vou à Itália e aí começa um período que continua de certa forma até este momento em que estou falando. Foi um período dolorosamente frustrante no início, muito ativo depois, no qual tenho que me tornar um cidadão do mundo. E há uma frase muito desgarradora de um cineasta argentino, que foi morto pela ditadura em Paris, Jorge Cedrón, que desde então passa a ser meu lema: "Minha pátria são meus sapatos". A vida me obri18 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 127
gou a isso, então eu o assumo, assumo bem, e com sonhos de futuro. Ponto e basta. ■ Quando você retornou à Itália, voltou a trabalhar com os diretores do neo-realismo? — Não, meu corpo voltou à Itália, mas não voltou a minha alma. Minha alma seguiu não sei onde, e começou um período muito duro, que alguns chamam de "exílio interior"... Bom, que seja, o exílio exterior, o exílio interior é tudo uma grande ausência e, em troca, eu o evoco num filme que me tomou dez anos de trabalho, que se chama Org. É um nome inventado (cuja raiz etimológica está na palavra orgasmo), e é um filme que dedico a Che Guevara, a Mèliès, o cineasta de Viaje a Ia luna, e a Wilhelm Reich, o autor da revolução sexual. Porque creio que são três figuras emblemáticas que ficam do final dos anos 60, quando o homem chega à lua, em 1969, e antes, em 1967, quando se produz a morte de Che, e quando a situação política explode, em 1968, no maio francês, no projeto de um novo mundo e de um mundo que se transforma. O filme trata de tudo isso, e é também um manifesto "por um cinema cósmico, delirante e lúmpen". É um filme absolutamente demencial, mas que traduz as Utopias (positivas) e Distopias (negativas) desse momento de demência única. De certo modo é um filme que participa das tensões de A idade da terra, de Glauber. São dois filmes irmãos. ■ Desta vez, até quando você ficou na Itália? — Até que terminei Org, e voltei à América Latina pela Venezuela. No norte da Venezuela, em Mérida, havia um departamento de cinema de antigos companheiros meus em Roma. O diretor era Tarik Souki. Voltamos a nos encontrar e ele me levou à Universidade dos Andes, em Mérida, onde fundei no começo dos anos 80, outra escola, o Laboratório Ambulante de Poéticas Cinematográficas. Era alguma coisa muito simples, que dizíamos que estava feita para fazer cinema, ler e pensar cinema. Aí trabalhei vários anos, terminei em 1983 meu filme Rafael Alberti,un retrato dei poeta por Fernando Birri e depois de vários anos de trabalho voltei à Itália, e daí à Nicarágua e a Cuba. ■ Por que era ambulante? — Porque estava em cima de meus sapatos. O laboratório ia onde eu ia, essa era a idéia. Esteve em muitas partes do mundo. Desde a Suécia a Angola e Moçambique, passando pela Alemanha, claro que viajou dentro da América Latina, na Nicarágua, México, Colômbia, Brasil, Argentina... meio mundo e um pouquinho mais. E era uma maneira de já ir difundindo, ir plantando as sementinhas do novo cinema latino-americano.
■ Você poderia fazer um breve resumo da fundação da escola de Cuba? — Eu quase lhe diria que ela nasce, em 1986, numa conseqüência lógica do movimento do cinema latino-americano, como projeto da Fundação do Novo Cinema LatinoAmericano, formada por todos nós, muitos brasileiros inclusive, como Cosme Alves Neto, determinante nesse processo, Geraldo Sarno, Silvio Tendler, agora também Wolney Oliveira, tantos companheiros.... É um projeto absolutamente autônomo, original, porque reconhece todas as experiências, mas não quer imitar nenhum modelo. Quando fui encaregado de elaborálo, entre as pessoas que chamei para colaborar estavam Sérgio Muniz e Orlando Senna, depois meu sucessor na escola. Ele introduz o conceito do docfic, uma tendência estética onde de alguma maneira se superam as velhas formas arterioesclerosadas da ficção, por um lado, e do documentário por outro. Mas, quando cheguei a Cuba, vi que já estava Garcia Márquez, que já havia confabulado com Espinosa, então presidente do Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográficos (ICAIC) e com Fidel Castro. A idéia era me encarregar da direção — mais que a direção, era realmente a fundação da escola de cinema. Imaginava o grande trabalho que íamos ter, o que ia significar não fazer uma coisa de já vu. Mas o trabalho seria coletivo. Convocamos companheiros de todos os países da América Latina. Sérgio Muniz veio como diretor docente, Tarik Souki como diretor de produção, Orlando Senna, como professor do staffde direção. E, para começar, o verdadeiro nome seria Escola dos Três Mundos: América Latina e Caribe, Ásia e África, para contrapor à idéia de Terceiro Mundo, uma denominação que eu sempre abominei, porque me parecia indigna... mas isso permaneceu como um sobrenome. Bem, a escola nasce com parâmetros muitos específicos e muito inovadores. Hoje, tem um grande e justo prestígio internacional, mantém-se a ligação entre prática e teoria, os alunos filmam como uns loucos, não há dia nem hora em que não estejam às voltas com câmeras e gravadores... Mas creio que é hora de expandir a área das tecnologias eletrônicas. ■ E assim voltamos ao princípio de nossa entrevista. Mirando o futuro. — Exatamente. É esse o sentido da coisa: estimular uma imageria e uma imaginação que de alguma maneira antecipem o futuro. Se o audiovisual, o velho cinema, já não servem para nada, se são obsoletos, se significam sonhar os velhos sonhos, todas as noites precisamos cerrar os olhos para sonhar os novos sonhos. •
O POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA
osso separa a produtie científica e a remuneração de homens e mulheres em áreas de pesquisa como as engenharias e a biologia. Já nas Ciências da Vida as diferenças de gênero quase não são observadas. Um grupo de pesquisadores norte-americanos decidiu debruçar-se sobre esse campo do conhecimento para investigar um aspecto específico do desempenho acadêmico: o número de patentes obtidas pelos dois sexos. Pois até nas Ciências da Vida a desvantagem das mulheres revelou-se grande. A pesquisa, publicada na revista Science, foi realizada com uma amostragem de 4.227 norte-americanos que obti-
Sí
veram seus títulos de doutor entre 1967 e 1995. Em média, as mulheres registraram 40% das patentes obtidas pelos homens. Os dados mostram que 5,65% das 903 mulheres analisadas tinham alguma patente em seu nome. Entre os 3.324 homens, a taxa foi de 13%. Os autores do trabalho, Waverly Ding, da Universidade da Califórnia, Fiona Murray, do Massachusetts Institute of Technology, e Toby Stuart, da Escola de Negócios de Harvard, fizeram entrevistas com grupos específicos para tentar entender o motivo do desequilíbrio. Conclusão: o hiato de gênero persiste devido às escassas ligações com o setor privado cultiva-
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das pelas mulheres e por sua visão tradicional sobre a carreira acadêmica. Elas não apenas se preocupam menos em patentear como também se dedicam pouco a outras atividades vinculadas ao "empreendedorismo acadêmico", como a prestação de consultoria a empresas. Mas isso está mudando. Segundo os autores, as pesquisadoras mais jovens têm a mesma cultura masculina de expandir suas ligações com empresas. "Se esse processo continuar assim nós vamos observar um declínio no tamanho do intervalo do registro de patentes, entre homens e mulheres, nos próximos anos", atestam os pesquisadores. •
■ Celebridade às avessas O matemático russo Grigory Perelman, de 40 anos, recusouse a receber no mês passado a Fields Medal, uma espécie de Nobel da área de matemática. Alegou que se sente isolado dentro da comunidade acadêmica e não tem interesse em aparecer como um de seus líderes. Em 2002, ele apresentou uma solução para a Conjectura Poincaré, considerada uma questão central da topologia, área da matemática que estuda as propriedades geométricas de objetos que não mudam quando são distorcidos, esticados ou encolhidos. Perelman colocou sua descoberta na internet em novembro de 2002 e, desde então, se recusa
■ Condenação e alívio
a dar entrevistas. "Matemática pura é um assunto tão esotérico que você faz por amor", disse o escritor Simon Singh à agência BBC. "Perelman nem se deu ao trabalho de publicar em uma revista científica. Porque, do ponto de vista dele, o problema foi resolvido e isso é o que interessa." •
mHermanos na ciência Aliados políticos, Cuba e Venezuela decidiram estabelecer estratégias científicas comuns. Numa reunião realizada em Caracas nos dias Io, 2 e 3 de agosto, cerca de 150 representantes dos dois países assentaram as bases para colaboração em 84 projetos de pesquisa e desenvolvimento. O diretor do Instituto Venezuelano de In-
programa Missão Ciência, plano venezuelano que propõe a criação de uma nova cultura científica e tecnológica no país e o financiamento de diversos programas regionais. A iniciativa conta com investimentos da ordem de US$ 440 milhões. As áreas consider-. adas prioritárias são saúde, segurança alimentar, energia, meio ambiente e tecnologias de informação. •
■ O mea-culpa uruguaio
Chávez e Fidel: parceria
vestigações Científicas (IVIC), Máximo Garcia Sucre, disse à Rádio Nacional da Venezuela que há tempos mantém parcerias com o país caribenho no campo do refiorestamento, do cultivo de arroz e na produção de vacinas. "Esses projetos funcionam muito bem e há espaço para ampliálos", afirmou Sucre. O encontro também serviu para discutir a participação cubana no
O governo do Uruguai apresentou ao Parlamento um projeto de lei em que identifica os calcanhares-de-aquiles do país em ciência e tecnologia. O texto tem como finalidade regulamentar a Agência Nacional de Inovação, cujo objetivo é combater tais deficiências. Segundo a agência de notícias Sci-Dev.Net, os problemas foram divididos em três órbitas. No Estado, destacamse a carência de líderes científicos, a falta de estímulo à inovação, a descoordenação de esforços entre os órgãos públicos e a descontinuidade de ações iniciadas. No setor privado, os problemas são o baixo investimento em inovação, a escassa contratação de pessoal capacitado e a débil vinculação com outros atores da área científica. No nível acadêmico, o projeto assinala o de-
senvolvimento desigual da pesquisa em áreas estratégicas e a concentração de universidades na capital do país. •
■ O acesso aberto avança Foi lançado no Reino Unido o Open Acess Central, portal que disponibiliza gratuitamente na internet o conteúdo de dezenas de revistas científicas. Segundo a agência Eurekalert, o novo espaço eletrônico é obra da equipe que faz o BioMed Central, um dos maiores portais de acesso aberto em biomedicina, com mais de 160 periódicos. No Open Acess Central estará presente, além do conteúdo do BioMed Central, o Chemistry Central, com cinco periódicos de química. Nos próximos meses um terceiro serviço será lançado com revistas de física e matemática. O portal está no endereço www. openaccesscentral.com. •
O físico russo Oskar Kaibyshev foi condenado a seis anos de prisão em regime de liberdade condicional, sob a acusação de exportar tecnologia militar para a Coréia do Sul. Em 2002, o instituto em que Kaibyshev trabalhava cedeu ligas de alumínio e um produto feito de titânio para uma companhia de pneus de Seul. O material permitiria melhorar a qualidade dos pneus, mas o Serviço de Segurança Federal da Rússia sugeriu que poderia ser usado na fabricação de mísseis. A prisão seguiu-se à apreensão de documentos da delegação de empresários sulcoreanos que negociou com Kaibyshev - ela incluía representantes do Instituto de Pesquisa Aeroespacial do país. "A defesa provou que Kaibyshev não revelou segredos de Estado", disse à revista Nature Eugene Chudnovsky, físico da Universidade da Cidade de Nova York. Desde o colapso da União Soviética, a ciência da Rússia sofre para conseguir financiamento. Parcerias internacionais permitiram a sobrevivência de vários institutos. As acusações de traição haviam causado tensão nos meios acadêmicos. Por isso, liberdade condicional de Kaibyshev foi recebida com alívio. •
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Estratégias
Mundo
Mais simples do que parece Enquanto milhões de pessoas continuam a ser infectadas com o vírus causador da Aids, sobretudo na África, um estudo identificou um conjunto de ações simples e baratas que reduzem o contágio entre adolescentes do Quênia, especialmente as garotas. No país da África Oriental, onde a miséria leva meninas a fazer sexo com homens em troca de dinheiro ou presentes, a prevalência de Aids é sete vezes maior entre adolescentes do sexo feminino do que do sexo masculino. Financiado pelo grupo Parceria para o Desenvolvimento Infantil, o estudo mostrou que, quando as garotas pobres recebiam uniformes escolares de graça em vez de ter de pagar US$ 6 por eles - ainda hoje a principal barreira para o acesso à educação no Quênia -, caía significativamente a chance de ficarem grávidas ou contraírem o HIV. Os pesquisadores constataram que debates
sidade Harvard. O estudo foi realizado durante três anos junto a 70 mil estudantes em 328 escolas do Quênia. •
■ Computares voluntários
Garota africana: proteção
em sala de aula sobre a importância dos preservativos levavam a um aumento no seu uso. "Relutei em me envolver nesta pesquisa, porque é um daqueles problemas em que nada parece funcionar. Fiquei feliz em ver as coisas funcionando", disse ao jornal The New York Times o economista Michael Kremer, da Univer-
Uma ferramenta capaz de ajudar no combate a alguns dos principais problemas de saúde costuma ser subutilizada. Trata-se do computador pessoal, presente em milhões de escritórios e casas. Partindo dessa premissa, a Organização Européia para Pesquisa Nuclear (Cern) desenvolveu o projeto Africa@home, com o objetivo de analisar dados de pesquisas ligadas às principais doenças que afetam a população do continente africano. A primeira ferramenta, o programa malariacontrol.net, foi criada por pesquisadores do Instituto Tropical Suíço e instalada em computadores de mais de 5 mil voluntários em
diversos países. A proposta é realizar simulações de como ocorre a proliferação da malária. O funcionamento é simples. Toda vez que o computador for ligado, mas não estiver sendo usado, o software entra em ação. Ao reunir o poder de processamento de milhares de máquinas ligadas na internet, o sistema processa dados que levariam anos se fossem feitos apenas nos computadores do instituto suíço. A lógica por trás do projeto, a computação voluntária, tornou-se conhecida com o seti@home, iniciativa do programa norte-americano Seti, de busca de inteligência extraterrestre. Mais de 5 milhões de voluntários instalaram o programa desde 1999, formando uma imensa rede de processamento de sinais de rádio colhidos por instrumentos como o radiotelescópio de Arecibo, em Porto Rico. Por enquanto, não encontrou nenhum sinal de ETs. •
Ciência na web Envie sua sugestão de site científico para cienweb@trieste.fapesp.br Um*k»l*.»(lt B-lMI)eMMM 1 itimum
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www.centrocelsofurtado.org.br 0 portal traz as atividades do Centro Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, criado por economistas de várias tendências.
22 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 127
www.unicamp.br/iel/monteirolobato O site sobre Monteiro Lobato e sua obra é resultado de um projeto temático sobre o escritor desenvolvido pela Unicamp.
http://157.86.8.37 A Fundação Oswaldo Cruz lançou um endereço eletrônico que reúne uma copiosa coleção de indicadores sobre a Aids no Brasil.
De volta à Estação
■ O potencial da inovação Quatro instituições científicas paulistas uniram-se para avaliar o potencial de mercado das tecnologias inovadoras que produzem. O Programa de Investigação Tecnológica (PIT) é resultado de uma parceria entre as universidades Estadual de Campinas (Unicamp) e de São Paulo (USP), além dos institutos de Pesquisas Tecnológicas (IPT) e de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), com financiamento da FAPESP e da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). Nos próximos dois anos, cada uma das instituições selecionará projetos de inovação tecnológica em andamento nos seus laboratórios. A expectativa é que 120 tecnologias sejam estudadas. Todo o processo, que será conduzido com o apoio de estudantes-bolsistas, será baseado na primeira experiência do PIT, realizada em Campinas em 2004, com 60 tecnologias. Depois de treinados, os alunos começarão a investigar as tecnologias por meio de entrevistas com pesquisadores. A idéia inicial é mapear os diferenciais e as limitações de ca-
à ISS, o astronauta Mar Pontes levou oito experimentos de microgravidade, área de interesse de disciplinas como biotecnologia, medicina, materiais e fármacos. A decisão brasileira de investir nessas pesquisas vem no mesmo momento em que a Nasa discute a interrupção por um ou dois anos de suas experiências na ISS, a fim de canalizar recursos para uma outra prioridade: a exploração humana do espaço. Há pesquisadores que consideram as experiências em microgravidade importantíssimas, enquanto outros afirmam que elas não têm valor", diz Raimundo Mussi. "A verdade provavelmente está no meio." •
(j Brasil vouou a negociar com a Nasa o fornecimento de peças para a Estação Espacial Internacional (ISS, na sigla em inglês). Segundo os entendimentos, a Agência Espacial Brasileira (AEB) deverá fornecer peças no valor de US$ 5 a 6 milhões para ter o direito de enviar experimentos científicos de microgravidade a bordo dos ônibus espaciais norte-americanos. O acordo não prevê a ida de outro astronauta brasileiro à ISS. "Queremos prosseguir com nossas pesquisas de microgravidade e a Nasa exige o fornecimento de peças como contrapartida", diz Raimundo Mussi, assessor técnico-científico da AEB. Na viagem que fez
da projeto. As próximas fases do estudo serão formadas pela prova de conceito da tecnologia e pela análise de mercado. No final, ainda será feita a pesquisa de viabilidade econômica das iniciativas selecionadas. Todos os projetos considerados com bom potencial poderão ser transferidos para a sociedade por dois caminhos: a geração de pequenas
empresas nascidas nas próprias instituições de pesquisa ou licenciamentos para grupos privados. •
■ Brasil, 500 anos de engenhos A Editora da Universidade de São Paulo (Edusp) e a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo lançaram o livro
A engenharia em 23 capítulos
500 anos de engenharia no Brasil. Organizada por José Carlos Teixeira de Barros Moraes, professor da Escola Politécnica da USP, a obra é dividida em 23 capítulos, todos escritos por professores da USP. Alguns textos promovem uma visão global da engenharia no país desde o seu descobrimento, enquanto outros trazem discussões atuais em áreas específicas, como a construção civil, a mineração, a siderurgia, a metalurgia, a construção de estradas de rodagem, a mecatrônica, entre vários outros temas igualmente relevantes e importantes. Repleto de fotos e ilustrações, o livro é o 12° da Coleção Uspiana - Brasil 500 anos, lançada em meio às comemorações dos cinco séculos do descobrimento do país. •
PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 23
O quorum da CTNBio na berlinda missão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) definirão a postura do governo em relação ao quorum para deliberações do órgão, incumbido, entre outras tarefas, da análise da liberação comercial de produtos geneticamente modificados. Em reunião com 11 ministros realizada no início de agosto, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva discutiu medidas para agilizar o trâmite dos processos, emperrados devido a problemas burocráticos a disputas entre repre-
sentantes de ministérios que defendem posições antagônicas. Caso os trabalhos não deslanchem, o governo poderá reduzir o quorum de deliberação de dois terços para maioria simples. "Como o quorum atual foi definido por uma portaria do presidente, ele vai esperar os resultados das próximas reuniões para tomar uma decisão", diz o ministro da Agricultura, Luiz Carlos Guedes Pinto. A última reunião da comissão não abordou assuntos polêmicos, mas limpou os 92 itens de sua pauta. •
Estratégias
Brasil
■ Inclusão no Mercosul Estão abertas até o dia 8 de dezembro as inscrições para o Prêmio Mercosul de Ciência e Tecnologia 2006, destinado aos melhores trabalhos de estudantes e pesquisadores de países do bloco econômico na área de Tecnologias para Inclusão Social. O prêmio se divide em três categorias: iniciação científica, para estudantes do ensino médio (prêmio de
US$ 2 mil); jovem pesquisador, para candidatos com no máximo 35 anos (US$ 5 mil); e integração, dirigida a equipes, sem limite de idade (US$ 10 mil). O prêmio é promovido pela Reunião Especializada de Ciência e Tecnologia (RECyT), vinculada ao Mercosul, e pela Unesco, braço da Organização das Nações Unidas para a educação e a cultura, com patrocínio da Petrobras. O regulamento está disponível nos sites da RECyT
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(www.recyt.org/premiomercosul) e da Unesco (www.unesco.org.br/premiomercosul/). •
■ Radiografia na internet O Ministério da Saúde lançou na internet o Atlas de saúde do Brasil, com informações produzidas de 2000 a 2006 sobre mortalidade, morbidade e imunizações. Os dados são distribuídos por estados e municípios. "A idéia é dar visibi-
lidade ao painel da saúde no país. Um mapa facilita a compreensão dos dados", diz o secretário de Vigilância em Saúde, Jarbas Barbosa. O Atlas eletrônico é direcionado a estudantes, profissionais de saúde e gestores públicos. É fruto de parceria do Ministério da Saúde com instituições como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que forneceu dados populacionais. Está disponível no site www.saude.gov.br/svs/atlas. •
■ Melhores da saúde pública Os congressos mundiais de saúde pública, que acontecem a cada três anos, sempre elegem uma liderança sanitária e uma instituição por sua contribuição à saúde coletiva mundial. Na edição deste ano do congresso, que reuniu 10 mil participantes no Rio de Janeiro, os escolhidos como melhores do mundo foram a Fiocruz, na categoria institucional, e seu presidente, Paulo Buss, na premiação individual. Os prêmios são concedidos pela Federação Mundial das Associações de Saúde Pública, que representa 70 associações nacionais. Buss também foi eleito novo presidente da federação. •
■ Importação ampliada O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) ampliou o acesso de pesquisadores ao Ciência Importa Fácil, programa que facilita a compra
no exterior de bens e matériasprimas destinados a estudos científicos. Agora, além dos pesquisadores com bolsas de produtividade em pesquisa (PQ) do CNPq, também os que possuem bolsas de produtividade em desenvolvimento tecnológico e extensão inovadora (DT) estão habilitados a se credenciar. Criado em 2004, o Ciência Importa Fácil estendeu aos pesquisadores, como pessoas físicas, benefícios tributários e administrativos para aquisição de equipamentos e insumos, como a isenção de impostos de importação e sobre circulação de mercadorias. Até então, isso era primazia de universidades e de institutos de pesquisa. •
■ Pesquisa em educação A Liber Livro Editora Ltda. lançou mais um livro da Série Pesquisa. É o 15" livro da coleção coordenada por Bernadete
Angelina Gatti, diretora da Divisão de Pesquisa em Educação da Fundação Carlos Chagas. A série tem como objetivo oferecer instrumentos teóricos e metodológicos para alunos de mestrado e doutorado nas áreas de ciências humanas e educação. Neste livro, intitulado Etnopesquisa crítica, etnopesquisa-formação, Roberto Sidnei Macedo, doutor em ciências da educação e professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), analisa a relação do pesquisador e os sujeitos do estudo. •
Segredos do sangue Três hemocentros brasileiros vão participar de um grande levantamento epidemiológico relacionado à doação de sangue, em parceria com instituições dos Estados Unidos. Trata-se do Retrovirus Epidemiology Donor Study II, estudo patrocinado pelo Instituto Nacional de Coração, Pulmão e Sangue dos Estados Unidos. "No mundo globalizado, os vírus circulam com velocidade e os Estados Unidos têm interesse em pesquisar o que acontece em outros países", diz Ester Sabino, da Fundação Pró-Sangue, líder do projeto no Brasil. Os bancos de sangue bra-
sileiros participantes a Fundação Pró-Sangue/ Hemocentro de São Paulo, Hemocentro de Minas Gerais (Hemominas) e Hemocentro de Pernambuco (Hemope). A Universidade de São Paulo (USP) e a Federal de Minas Gerais (UFMG) também integram o projeto, que terá duração de quatro anos e receberá R$ 3 milhões. Mais de 2 milhões de doadores de sangue serão avaliados. Três projetos estão programados: um sobre o risco residual de transmissão do vírus da Aids, outro sobre a triagem de doadores e um terceiro sobre doença de Chagas. •
-c*. PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 25
POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA PÓS-GRADUAÇÃO
A hora do diálogo
Crescem os cursos interdisciplinares, em que disciplinas distintas interagem em busca de soluções para novos dilemas
FABRíCIO MARQUES
t
campo que mais se expande na pós-graduação brasileira é o interdisciplinar, aquele que soma o conhecimento de áreas diversas para propor a construção de um novo saber ou de soluções para dilemas emergentes. Hoje os programas de mestrado e doutorado interdisciplinares compõem a maior área da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), agência do Ministério da Educação incumbida de autorizar a criação dos programas de pós-graduação stricto sensu no país e avaliá-los. Ao todo, já são 177 desses cursos, num universo de quase 3,6 mil. "O crescimento tem sido explosivo e mostra que está avançando na pós-graduação brasileira a visão de que alguns problemas podem ser abordados de maneira mais eficiente por meio da integração de várias disciplinas", diz Carlos Nobre, coordenador do comitê dessa área da Capes e pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Entre 1996 e 2004 o número de mestrados interdisciplinares passou de 25 para 130. No mesmo período, os cursos de doutorado aumentaram de 7 para 32.
Em julho passado, a Capes autorizou a criação de 147 novos cursos de pós-graduação no Brasil. A área com maior número de programas aprovados foi a Multidisciplinar com 18 projetos, seguida pela Engenharia II (que engloba as engenharias de materiais, metalúrgica, de minas, nuclear e química) com 8, Medicina também com 8 e Saúde Coletiva com 7. Entre os projetos que ganharam sinal verde há, por exemplo, o primeiro mestrado profissional do país em Poder Judiciário, oferecido pela Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas (FGV), cujas disciplinas serão ministradas por especialistas em administração, economia e ciências sociais. O objetivo do curso é formar profissionais que ajudem a reduzir a lentidão da Justiça e a aumentar a eficiência dos tribunais. Outro exemplo é o mestrado em defesa e segurança civil da Universidade Federal Fluminense (UFF), que contará com pesquisadores de diversas unidades da instituição, como a Escola de Engenharia e os institutos de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional, de Geociências, de Química e de Saúde da Comunidade. A lista ainda contém, entre outros contemplados, os mestrados em divulgação científica e cultural, da UniverPESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 27
sidade Estadual de Campinas (Unicamp), em lazer, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em nanociências, do Centro Universitário Franciscano, em Santa Maria (RS). Dois motores que funcionam paralelamente dão fôlego à interdisciplinaridade na pós-graduação. Um deles tem a ver com as novas necessidades do mercado de trabalho e está vinculado aos cursos de mestrado profissional, aqueles voltados para quem não segue carreira acadêmica mas busca um aperfeiçoamento para trabalhar em empresas. Mas o principal motor é mesmo a necessidade de apelar a várias ciências para enfrentar dilemas emergentes e complexos. Um exemplo são os mestrados em gerontologia, que abrangem o campo da enfermagem, da medicina, da farmácia, da assistência social e da antropologia. "Há alguns anos recebemos uma proposta de curso interdisciplinar na área de segurança pública que já introduzia a questão do crime organizado no sistema prisional e recorria a diversos campos de pesquisa, como a sociologia, o direito e a ciência política", diz Carlos Nobre. A prática interdisciplinar na Universidade de São Paulo (USP) não é nova - há tempos a instituição mantém uma dezena de cursos de mestrado e doutorado interdisciplinares, em campos como a bioengenharia e a bioinformática. Mas a interdisciplinaridade vem avançando até mesmo dentro dos programas tradicionais. Na área de física, o mestrado e o doutorado em física médica têm cooperação com a Faculdade de Medicina. "Também há colaborações entre professores de matemática e de finanças na Faculdade de Economia, e das áreas de engenharia e educação física na pesquisa de sistemas biomotores, para citar dois exemplos", diz o pró-reitor de pós-graduação da USP, Armando Corbani Ferraz. "É uma tendência salutar, porque aproveita competências em projetos conjuntos. É bom que uma área ajude a outra. A pesquisa não pode ter limites", afirma. Muitos programas de pós-graduação interdisciplinares estão vinculados às ciências ambientais. E não por coincidência. De um lado há uma tendência internacional iniciada no final dos 28 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 127
anos 1980 de integrar a pesquisa sobre as mudanças globais recorrendo não apenas aos climatologistas e ecólogos, mas também a especialistas capazes de abordar toda a complexidade do assunto, como os geólogos, os cientistas sociais, os demógrafos e os antropólogos. "Dessa interação vai surgir um novo tipo de profissional, capaz de entender as questões ambientais em todos os seus aspectos", diz Carlos Nobre. Um exemplo é o Programa de Pós-Graduação Interunidades (mestrado e doutorado) em Ecologia Aplicada, iniciado em 2001 pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) e pelo Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena), ambos no campus da USP em Piracicaba. Suas linhas de pesquisa agrupam professores de áreas diversas, da ecologia à genética, da biotecnologia às ciências humanas, da microbiologia à entomologia, em busca de soluções para a conservação da biodiversidade em agroecossistemas agrícolas neotropicais. o ano passado começou a funcionar na Amazônia um programa de mestrado em ciências ambientais vinculado a três instituições: a Universidade Federal do Pará, o Museu Paraense Emílio Goeldi e a Embrapa Amazônia Oriental. A iniciativa foi inspirada na experiência de um grande projeto de pesquisa, o Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia (LBA, na sigla em inglês), que reuniu pesquisadores de diversas formações para melhorar os modelos climáticos de previsão e fazer projeções sobre como será o uso da terra na Amazônia, conforme o objetivo do programa Geoma, do Ministério da Ciência e Tecnologia. "O Pará é um laboratório a céu aberto de experiências ambientais", diz o coordenador do curso, Leonardo Sá, pesquisador do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC), vinculado ao Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), e do Museu Goeldi. O curso de mestrado, que já recebeu graduados em áreas como a física, a oceanografia, a matemática, a meteorologia, a agronomia, a biologia e até a sociologia, busca formar pesquisadores capazes de estudar a dinâmica dos ecossistemas amazônicos e aperfeiçoar o conhecimento sobre os
fenômenos climáticos e as mudanças no uso da terra na região da floresta. Cerca de 20% de todas as propostas de cursos que chegam à Capes são interdisciplinares. Mas a maioria é reprovada pela agência. Ocorre que boa parte deles provém de instituições públicas e privadas de pequeno porte ou de regiões remotas do país que, por falta de massa crítica para fazer programas em áreas convencionais, promovem consórcios de professores com formações variadas e tentam induzir a criação de um curso multidisciplinar. "Dá logo para ver que falta um foco à proposta e que se trata, na verdade, de vários microprogramas justapostos", afirma Renato Janine Ribeiro, professor de filosofia da USP e diretor de avaliação da Capes. Conforto - De todo modo, o crescimento dos cursos pode ser visto como um sinal de vigor da pós-graduação. É que criar um programa deste tipo dá muito mais trabalho do que construir um outro, de figurino tradicional. "Demora muito mais tempo para montar uma pesquisa interdisciplinar. Como fazer que certas pesquisas terminem em dois anos e meio, que é o tempo do mestrado?", indagou Arlindo Philippi Júnior, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP, num debate realizado na última reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em Florianópolis (SC). Segundo ele, a prática da interdisciplinaridade exige um esforço de se abandonar o conforto no qual o pesquisador tem o domínio do "saber fazer". "Mas precisamos pensar de que maneira enfrentaremos a disputa de espaço com os colegas de outras disciplinas", disse Philippi. Não se trata de um problema trivial. A Capes, a agência responsável pela avaliação dos programas, está preocupada com alguns entraves que esses novos cursos enfrentam. "É difícil avaliar um curso de pós-graduação interdisciplinar", diz Janine Ribeiro. "Sempre existe o perigo de que, na hora de distribuir recursos, os avaliadores sejam mais sensíveis com suas áreas de origem e não dêem o valor adequado para a inovação dos programas interdisciplinares. Esse é um problema que combatemos de todas as maneiras, sob o risco de produzirmos pesquisas que apenas repetem experiências já conhecidas", afirma. •
O POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA IMPRENSA
Mês de boas notícias Pesquisa FAPESP ganha prêmios de jornalismo e estréia nova versão do site rrêmodeKeportagemsobrea DiocWr^adedaMataAtUca Impresso Z006" L.m reconhecimento à
Diploma de primeiro lugar e o novo rosto do site: em prol do leitor
'Revista Tesquisa Japesp por seu importante papel na difusão da informação ambienta! e pela publicação de
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pesar da fama de mês agourento, agosto foi excelente para Pesquisa FAPESP. Duas reportagens da revista foram premiadas, o site ganhou novo desenho e seções e um dos jornalistas da redação teve dois artigos científicos aceitos para publicação, em colaboração com outros pesquisadores, em periódicos indexados. A primeira dessas boas-novas estreou no dia 7 de agosto: o site da revista (www.revistapesquisa.fapesp.br) foi totalmente redesenhado para permitir uma navegação mais fácil e agora tem um sistema de busca mais eficiente. A página eletrônica traz o conteúdo integral de todas as edições da revista, do número 1 ao atual. Além de poder consultar sem restrição os textos publicados na versão impressa de Pesquisa FAPESP, o internauta encontra no site seções especialmente produzidas para o meio virtual. Uma delas é "O melhor das revistas", que traz um resumo dos principais artigos publicados nos periódicos científicos Nature e Science. Todas as segundas-feiras à tarde, o site disponibiliza também um arquivo de áudio, para ser ouvido no computador ou num tocador de música digital, com a íntegra do programa de rádio Pesquisa Brasil do fim de semana anterior. O programa, que traz notícias sobre
"JA vida entre foChas sea reportagem eanbadora do iYXYt\£\YO
ÍIC
ciência e tecnologia, com ênfase na produção nacional, é uma parceria da revista com a emissora Eldorado AM de São Paulo (700 kHz). Em breve, o site passará a publicar novas seções on-line, com conteúdo feito exclusivamente para o meio eletrônico, além de fornecer traduções das reportagens de Pesquisa FAPESP para o inglês e o espanhol. Sem acaso - Também em agosto a repórter e colaboradora da revista Alessandra Pereira e o editor de ciência, Carlos Fioravanti, ganharam o primeiro e segundo lugares do Prêmio de Reportagem sobre Biodiversidade da Mata Atlântica, categoria veículo impresso, concedido pela organização não-governamental Conservação Internacional Brasil. As reportagens premiadas foram "A vida entre folhas secas", de Alessandra, e "Por que as florestas são diferentes", de Fioravanti. O reconhecimento pelos trabalhos publicados não foi por acaso.
Pesquisa FAPESP sempre deu a importância que os temas ambientais merecem. Prova disso é que o concurso está na sexta edição e esta é a quinta vez em que os textos da revista são premiados. Por fim, o editor especial Ricardo Zorzetto, jornalista e mestrando em ciências da saúde da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), participou como autor secundário da redação do artigo "Mental health and psychiatry research in Brazil: scientific produetion from 1999 to 2003", publicado em agosto em um suplemento especial da Revista de Saúde Pública. Foi o primeiro autor de artigo aceito para publicação no Brazilian Journal of Medicai and Biological Research, ainda sem data para sair. O provável título é"The scientific produetion in health and biological sciences of the top 20 Brazilian universities". Todas essas novidades mostram o esforço que Pesquisa FAPESPfaz para tornar-se melhor para seus leitores. • PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 29
O POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA
METEOROLOGIA
mpo de prever Finep vai distribuir R$ 12,8 milhões para recuperar as redes estaduais de meteorologia e antever fenômenos climáticos extremos
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Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) vai investir R$ 12,8 milhões em programas voltados para manter vivas as redes de meteorologia dos estados brasileiros e para promover pesquisas sobre a previsão de fenômenos climáticos extremos no território brasileiro e nas faixas tropical e sul do oceano Atlântico. Os recursos estão divididos em duas chamadas públicas. A primeira irá distribuir R$ 6,8 milhões oriundos dos fundos setoriais de Recursos Hídricos (CT-Hidro) e de Energia (CT-Energ). A meta é apoiar as redes de meteorologia estaduais, ajudando-as na melhora de seu sistema de coleta, interpretação e distribuição de dados. Cada rede poderá receber entre R$ 200 mil e R$ 400 mil. Existem no Brasil 24 Centros Estaduais de Meteorologia, Climatologia e Recursos Hídricos, que são organizados por meio de redes e complementam o sistema nacional de previsão climática, cujos braços federais são o Instituto Nacional de Meteorologia (InMet) e o Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). A qualidade da previsão do clima depende de uma boa distribuição geográfica das estações de coleta de informações climáticas, como precipitação e temperatura, e da existência de séries históricas destes parâmetros. Em alguns estados, como São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, as redes funcionam bem. Em outros, principalmente os da Amazônia, seu trabalho é irregular. "Em muitas unidades da federação as redes de previsão meteorológica enfrentam dificuldades e seriam necessários pelo menos R$ 20 milhões para começar a convertê-las num sistema moderno, com bancos de dados acessíveis para
todos os cidadãos", diz Ricardo Gattass, superintendente da Área de Universidades e Instituições de Pesquisa da Finep. "Esses R$ 6,8 milhões são um passo inicial no sentido de mantê-las vivas para, mais adiante, criar um sistema de previsão integrado e abastecido por informações com o mesmo nível de qualidade", afirma. A Finep pretende lançar editais semelhantes nos próximos anos para dar seqüência ao investimento. Conforme exige a legislação dos fundos setoriais, 30% dos recursos serão destinados a propostas nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. "Neste caso, isso é especialmente importante, porque os estados do Sul e do Sudeste, que reúnem mais massa crítica, já têm as melhores redes", diz Gattass. Impacto - A segunda chamada pública vai distribuir R$ 6 milhões vindos dos fundos setoriais do Agronegócio (CTAgro) e de Recursos Hídricos (CT-Hidro). Neste edital o dinheiro será menos pulverizado. A intenção é apoiar entre quatro e dez redes de pesquisa multidisciplinares que ampliem a capacidade de observação, previsão e alerta de eventos meteorológicos e climatológicos extremos no Brasil e no oceano Atlântico
Seca na Amazônia e devastação causada por ciclone em Santa Catarina: fenômenos mais intensos
Tropical e Sul. No rol desses eventos, incluem-se as enchentes e secas catastróficas, os ciclones e os furacões, que têm grande impacto na defesa civil, no gerenciamento do agronegócio e na geração de energia. "A chamada pretende induzir uma ação coordenada para a construção de um sistema articulado de previsão que informe e prepare a população para a ocorrência de fenômenos extremos, salvando vidas e diminuindo o impacto desses fenômenos nos setores mais vulneráveis. Esta ação terá um retorno considerável em relação aos investimentos, dada a demanda por informações meteorológicas nas áreas de agricultura, pecuária, energia, recursos hídricos, transportes aéreos, marítimos e terrestres, saúde pública e defesa civil", diz Ricardo Gattass. "Hoje há pouquíssimos estados brasileiros com sistemas de alerta adequados, voltados principalmente para a prevenção de deslizamentos de terra", afirma. O principal motivo para estudar mais e conseguir antever os eventos cli-
máticos extremos são os indícios de que, na esteira do aquecimento global, tais fenômenos tendem a despontar com intensidade maior. "Há um conjunto de evidências que aponta nesta direção", diz o botânico Carlos Joly, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e membro da coordenação do programa Biota-FAPESP. Recentemente, a FAPESP patrocinou dois workshops sobre mudança climática para analisar as pesquisas feitas em São Paulo no tema. "Fenômenos brasileiros como o ciclone Catarina, que atingiu o Sul do país em 2004, e a intensa seca que a região amazônica viveu no ano passado podem fazer parte de um conjunto de ocorrências extraordinárias sem vinculação com o aquecimento global. Mas quando olhamos o que está acontecendo em outras regiões do globo vemos que o número de desastres naturais subiu de 260 em 1990 para 337 em 2003, e o número de pessoas atingidas por estes desastres cresceu exponencialmente", afirmou Joly. Em ambas as chamadas, a data final para envio de propostas é o dia 29 de setembro. O prazo de execução dos projetos será de 24 meses. • FABRíCIO MARQUES PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 31
CIÊNCIA
Pôr-do-sol sobre o olho de um furacão: turbulências atmosféricas são muito barulhentas
O mundo é muito mais barulhento do que imaginamos. Só não conseguimos ouvir. Mas uma rede global de detectores está mostrando a riqueza de fontes de sons nas freqüências abaixo dos limites da audição humana, que capta os sons com
freqüências entre 20 e 20 mil hertz. Os ultra-sons, acima desse limite, se esvaem com facilidade, mas os infra-sons, abaixo dele, podem viajar milhares de quilômetros, como demonstrou em 1883 a erupção do vulcão Krakatoa, registrada a quase 5 mil qui-
lômetros de distância. Animais como elefantes, rinocerontes e baleias se valem de sons nessa freqüência para se comunicar a quilômetros de distância, mas as fontes mais abundantes de infra-sons é a própria Terra, que gera vibrações nessa freqüência nas
erupções vulcânic dos, avalanches, terremotos, meteoros e turbulências atmosféricas. Os infra-sor também vêm diretamente de interior sólido da Terra, produzindo uma vibração constante - um murmúrio - com uma freqüência de poucos mili-hertz, de acordo com os resultados obtidos por meio de uma malha de barômetros com fibras ópticas, criados pela equipe de Mark Zumberge e Jon Berger, da Universidade da Califórnia em San Diego, Estados Unidos {Physics World). Sons nessa freqüência podem também produzir ansiedade ou apreensão. Em 2003, pesquisadores britânicos descobriram que poderiam induzir sensações de tristeza e ansiedade em um grupo de pessoas submetendo-as a vibrações acústicas com uma freqüência de 17 hertz em uma sala de concertos. •
Laboratório
Mundo
■ Os médicos e os erros médicos Médicos dos Estados Unidos e do Canadá aceitam a idéia de expor aos pacientes os erros que cometeram, mas divergem sobre quando e como os contariam. Thomas Gallagher, da Universidade de Washington, com base em entrevistas feitas com 1.233 médicos dos Estados Unidos e 1.404 do Canadá, verificou que a maioria dos pacientes quer informações detalhadas sobre os erros por que passaram, uma declaração explícita de que algo indesejado ocorreu, um pedido de desculpas
e uma explicação do que será feito para evitar outras falhas. Porém só chegam aos pacientes os relatos de menos da metade dos erros médicos (Archives of Internai Medicine). A equipe de Gallagher apresen-
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tava aos médicos erros mais evidentes, como deixar uma esponja no corpo do paciente, e outros menos, como um dano interno causado pela pouca habilidade em lidar com um instrumento cirúr-
gico, e depois perguntava se e como contariam ao paciente. Resultados: 65% realmente contariam os erros, 29% provavelmente contariam, 4% só contariam se o paciente pedisse e 1% não diria nada; 42% usariam a palavra erro, 56% algo mais ameno, como efeito adverso, em vez de erro, 50% dariam detalhes e 13% não dariam maiores explicações. Os canadenses exibiram maior disposição em falar sobre os erros e em conversar com o paciente. Para a maioria (66%), comunicar os erros pode aumentar a confiança dos pacientes e reduzir o risco de processos judiciais. •
A Vila do Deserto do Norte: ambiente árido mantém as pessoas isoladas, enquanto o verde as apro..
■ O valor da soneca Temos boas razões para invejar a vida dos bebês: ganham comida quando choram, têm amor incondicional e dor-
mem o quanto querem. Agora um estudo mostra que os cochilos ao longo do dia aprimoram a capacidade de abstração. Em um estudo publicado na Psychological Science, Rebecca Gomez, Richard Bootzin e Lynn Nadei, da Universidade do Arizona, Estados Unidos, repetiam a 48 bebês de 15 meses frases de três palavras de uma linguagem artificial, como pel - wadim -jic, até os bebês se familiarizarem com elas. Embora sem sentido, as frases seguiam a estrutura gramatical de sujeito, verbo e predicado. Antes do teste, alguns bebês já tinham tirado a soneca habitual e outros ain-
da não. De volta ao laboratório, ouviam as frases em outra ordem. Gomez avaliava o nível de atenção de cada um deles observando como ouviam as antigas e as novas combinações de palavras. Os dois grupos reconheciam as palavras que haviam aprendido, mas só os bebês que tinham dormido generalizavam o conhecimento das relações possíveis entre as palavras nas frases novas. Para Gomez, esse resultado indica que os cochilos favorecem a aprendizagem abstrata - a habilidade de detectar um padrão geral em uma nova informação e prever outras possibilidades de combinação. •
■ Anestésico com som e imagem Assistir à televisão funcionou como um anestésico para crianças, de acordo com um estudo da Archives ofDisea-
se in Childhood. Uma equipe da Universidade de Siena, Itália, acompanhou 69 crianças com 7 a 12 anos de idade, divididas em três grupos. Ao primeiro não era dada nenhuma distração enquanto se tirava uma amostra de sangue. As crianças do segundo grupo eram acompanhadas pelas mães, que as distraíam enquanto se tirava sangue, e as do terceiro grupo podiam assistir a desenhos na televisão durante o mesmo procedimento. Depois todas as crianças e suas mães davam uma nota para a intensidade da dor que sentiram. As do primeiro grupo foram aquelas que deram as notas mais altas - três vezes mais altas que as das que assistiam televisão. As notas médias vieram das crianças acompanhadas pelas mães. Mesmo assim, as notas das mães eram maiores que as dos próprios filhos. •
Efeitos da paisagem Famílias de estudantes que moram em grupos de casas entre arbustos passam as horas de folga juntas enquanto as crianças brincam nas ruas da Universidade Estadual do Arizona (ASU), Estados Unidos. Ali perto, outro grupo de famílias, cujas casas se situam no deserto sem disfarces, mal se conhece. Não é por acaso. O ambiente pode interferir na interação social, favorecendo-a, como no primeiro caso, ou barrando-a, como no segundo. Cientistas sociais e ecólogos da Universidade do Oeste de Illinois (WSU)e da ASU modificaram quatro de cinco grupos de seis casas, deixando-os com plantas mais altas ou mais baixas, mais ou menos dependentes de água. Os resultados mostraram que mesmo as pessoas habituadas ao deserto preferem viver em meio a uma vegetação abundante, que promova o lazer e a integração social.
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Venenos de machos e de fêmeas da mesma espécie de cobra podem ser diferentes e levar a reações distintas no organismo, concluiu uma equipe do Instituto Butantan que examinou exemplares de jararaca (Bothrops jararaca), abundante no Brasil. Já se sabia que machos e fêmeas eram morfologicamente diferentes: as fêmeas crescem mais e chegam a 1,2 metro, enquanto os machos raramente passam de 80 centímetros. Os estudos coordenados por Maria de Fátima Furtado e Solange Serrano, publicados na revista Toxicon, mostraram que a composição e as propriedades
■ Criando células musculares Aquela gordurinha que insiste em se acumular nos quadris ou em deixar a cintura mais saliente que o desejável pode ser útil. É que o tecido adiposo apresenta uma concentração elevada de células-tronco adul-
biológicas dos venenos de machos e de fêmeas também variam bastante. O veneno da jararaca fêmea causa uma hemorragia mais intensa e é mais letal, enquanto o dos machos é mais forte para promover a coagulação do sangue e para degradar músculos esqueléticos. Maria de Fátima reconhece que não é simples explicar as razões dessas diferenças, embora alguns benefícios, especialmente para as fêmeas, estejam mais claros. Enquanto os machos adultos mantêm o mesmo veneno e a mesma dieta de quando eram jovens, à base de lacraias, anfíbios e lagartixas, as fêmeas
tas - um tipo de célula versátil, capaz de originar vários tecidos do corpo. Trabalhando com células-tronco de gordura extraída em cirurgias de lipoaspiração, a equipe da geneticista Mayana Zatz, do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo (USP), produziu em la-
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adultas, com um veneno mais poderoso, alimentamse de presas maiores como roedores. Podem assim crescer mais e, sendo mais corpulentas, podem manter um número maior de embriões dentro do corpo e produzir grandes ninhadas. Uma conclusão bastante prática, obtida a partir da análise dos registros de pessoas picadas por jararaca atendidas no hospital do Butantan: os acidentes mais graves são causados por fêmeas; os machos causam apenas lesões leves ou moderadas. Detalhe: as fêmeas produzem cinco vezes mais veneno que os machos. •
boratório células maduras de músculo esquelético. "O mais importante é que essas células musculares fabricam a proteína distrofina, essencial para manter a integridade dos músculos", observa Mayana. Sem essa proteína as células musculares se degeneram e morrem, provocando fraque-
za muscular e perda progressiva dos movimentos, característica da distrofia muscular de Duchenne. Natássia Vieira, da equipe de Mayana, obteve células produtoras de distrofina por meio de duas estratégias aparentemente simples. Na primeira, Natássia colocou células-tronco extraídas da gordura com células musculares imaturas de portadores da distrofia de Duchenne. Os dois tipos de células se fundiram e originaram células musculares maduras. Na segunda, as células-tronco ficaram lado a lado com células musculares já desenvolvidas. "Neste caso ainda não sabemos se as célulastronco se fundiram com as células musculares ou se se transformaram em novas células musculares", afirma Natássia. "Mas em ambos os experimentos as células passaram a fabricar níveis normais de distrofina", afirma a bióloga, que deve publicar em breve os resultados desse trabalho, feito em parceria com a médica Vanessa Brandalise. A expectativa é de que essas células musculares também produzam outras proteínas ausentes em outras formas de distrofia
muscular. Apesar dos resultados promissores, ainda são necessários anos de pesquisa para verificar se é viável o uso de células-tronco para amenizar o sofrimento dos portadores de distrofia muscular. •
■ As mulheres diante do sexo As crenças das mulheres sobre como homens e mulheres devem agir na primeira relação sexual com um novo parceiro as deixam vulneráveis à coerção, de acordo com um estudo de Ann Moore, do Instituto Guttmacher, de Nova York, Estados Unidos. A análise das entrevistas realizadas em Recife e em Belo Horizonte com grupos de 24 mulheres mostra que elas sentem que têm de ser passivas porque - mesmo sugerindo o uso de métodos anticoncepcionais -, caso contrário, seu parceiro pode acusá-las de já ter tido experiência sexual. De acordo com esse estudo, publicado na revista International Family Planning Perspectives, as mulheres também acreditam que têm de se comportar de modo a não parecer que estão à procura de sexo. As entrevistadas, que pertenciam a duas faixas de idade, de 18 a 21 e de 30 a 39 anos, comentaram que os homens têm uma necessidade urgente de sexo que, se não for satisfeita, pode fazer com que eles as abandonem ou se enfureçam. Comentário de uma das mulheres entrevistadas: "Se eu disser não, ele ficará aborrecido, porque há muitas mulheres que têm medo de perder o cara de que gostam. Se eu disser não, ele me deixará, então eu faço o que ele quer". Para Ann Moore, programas e políticas públicas que reduzam a freqüência do sexo indesejado deveriam focar as expectativas
tanto das mulheres quanto dos homens e promover modelos de comportamento sexual mais equilibrado. •
■ Mais calor e menos água Não só a Amazônia, a gigantesca floresta que cobre metade do território nacional e rege o clima a milhares de quilômetros de distância, mas também os 13 milhões de moradores da Região Norte mostram-se ainda mais sensíveis aos efeitos diretos das mudanças climáticas, de acordo com dois estudos recentes. Um deles, conduzido por uma equipe do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e por outra do Escritório de Meteorologia de Exeter, Inglater-
ra, indica que secas brutais como a de 2005 - a mais severa dos últimos 103 anos, que esvaziou os gordos rios da região e deixou pelo menos 250 mil pessoas isoladas e sem trabalho nos estados do Amazonas e do Pará - podem se tornar constantes nas próximas décadas. Em outro estudo, um grupo da Universidade de Bristol, também da Inglaterra, prevê mais incêndios florestais, secas e inundações em conseqüência do aquecimento global da temperatura. De acordo com o trabalho publicado no PNAS, que reuniu cerca de 50 modelos climáticos, mesmo que cessassem as emissões dos gases que acentuam o efeito estufa e ajudam a elevar a temperatura do planeta, podem desaparecer 30% das florestas
Amazônia em chamas: perspectiva de mais seca e incêndios
da Amazônia, do leste da China, do Canadá e da América Central se a temperatura subir 2°C ou 60% se subir 3°C, com impactos profundos sobre a vida das populações locais, na medida em que o calor aumentar e faltar água. •
■ Vírus agressivo em Salvador O principal agente causador do surto de diarréia em Salvador - cerca de 8 mil casos registrados em junho e julho - é um norovírus, não um rotavírus, como se pensou inicialmente. Virologistas da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da Fiocruz desfizeram o equívoco comparando os tipos de vírus encontrados nas 946 amostras de fezes de adultos e crianças. Encontrados em 55% das amostras, os norovírus apresentam RNA (ácido ribonucléico) linear e simples, enquanto o do rotavírus, ao qual se atribuiu 20% dos casos, especialmente em crianças, é segmentado. Outra diferença é que os norovírus são mais agressivos e causam diarréias, vômitos, dor de cabeça e febre mais intensos. Transmitido pelo ar ou por alimentos e objetos contaminados, o norovírus aparece pela primeira vez em Salvador. Antes, só havia sido registrado no Rio de Janeiro, em 2002. •
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om uma faixa litorânea que se estende por pouco mais de 3 mil quilômetros, o Peru retira anualmente cerca de 8 milhões de toneladas de pescado marinho, 16 vezes mais do que oficialmente captura o Brasil, dono de uma linha costeira três vezes mais longa. Por que o país nãc consegue ultrapassar a cifra de 500 mil toneladas anuais de peixes, crustáceos e moluscos de água salgada? Faltaria apoio a essa atividade econômica? Haveria ineficiência na indústria pesqueira nacional? Ou o brasileiro não seria mesmo muito afeito a lançar rede e anzol no oceano? Segundo o recém-lançado relatório final de um mega-estudo patrocinado pelo governo federal sobre o potencial pesqueiro na costa brasileira, a explicação central para a aparente timidez do setor não se deve a nenhuma das hipóteses anteriores. Em relação às grandes nações pesqueiras, como o Peru ou a China, situadas em zonas de mar frio e rico em nutrientes, aqui se pega pouco peixe no mar simplesmente porque há pouco peixe na porção tropical do Atlântico que banha o litoral nacional. "Nossas águas são quentes na maior parte da costa e pobres em alimento para os peixes", afirma Carmen Wongtschowski, do Instituto Ocea-1BRODE2006 ■ PESQUISA FAPESP 127
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nográfico da Universidade de São Paulo (IO/USP), que participou da elaboração do relatório final. "São condições desfavoráveis à ocorrência de grandes cardumes." Na maior parte da costa, a temperatura média anual das águas superficiais ultrapassa os 20°C, criando um ambiente inóspito à ocorrência de enormes concentrações de vida marinha (veja mapa na página ao lado). Não há, portanto, como dobrar ou triplicar o volume de pescado marinho capturado, como previam algumas extrapolações do passado. Essa constatação não é novidade para os especialistas, que, ao contrário dos leigos no assunto, não associam a grande extensão do litoral brasileiro à abundância de seres vivos em suas águas. O relatório é uma síntese de uma década de trabalhos multidisciplinares feitos por mais de 300 pesquisadores de 60 instituições e universidades nacionais para o Programa de Avaliação do Potencial Sustentável de Recursos Vivos na Zona Econômica Exclusiva, o Revizee, iniciativa na qual foram investidos R$ 32 milhões. O mérito do Revizee é fornecer uma radiografia atualizada do status das principais espécies de importância comercial para a pesca marinha no Brasil. Esse setor emprega cerca de 800 mil pessoas e mobiliza quase 60 mil embarcações no país, metade delas de caráter artesanal, como as que aparecem na foto de abertura desta reportagem, retirada do recém-lançado livro Mar de homens (editora Terra Virgem, 180 páginas), do fotógrafo Roberto Linsker. "Temos recursos marinhos valiosos, mas escassos", afirma o oceanógrafo Agnaldo Silva Martins, da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), que integrou o grupo de pesquisadores que estudou a região entre o cabo de São Tome, no norte do Rio de Janeiro, e a cidade de Salvador. "Precisamos disciplinar melhor o acesso a eles." Ao longo de uma década, os pesquisadores do Revizee realizaram vários estudos de norte a sul no país e participaram de capturas experimentais, a maioria em águas profundas, centenas de metros abaixo da superfície do oceano, às vezes longe da costa e da plataforma continental, para tentar determinar o eventual potencial pesqueiro de novas 38 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 127
ou antigas espécies marinhas. De quebra, durante o programa, os pesquisadores descobriram seis novas espécies de peixes e 55 de bentos (seres que vivem no fundo do mar) no litoral brasileiro. Em vigor desde 1994, a Zona Econômica Exclusiva (ZEE) é um conceito internacional que regulamenta o uso dos recursos oceânicos numa faixa que se inicia onde acaba o mar territorial de um país - a 12 milhas náuticas da costa (22 quilômetros) - e se estende por mais 188 milhas náuticas (cerca de 350 quilômetros) mar adentro. No Brasil, a ZEE abrange 3,5 milhões de quilômetros quadrados. ara a maioria das espécies de valor econômico, sobretudo as que ocorrem mais perto da costa, não há como aumentar de forma responsável a quantidade de exemplares hoje já retirados do Atlântico, segundo os resultados finais do Revizee. Elas estão no limite máximo de exploração ou já passaram dele e o tamanho de suas populações encolheu consideravelmente. Isso não quer dizer que não possa haver pequenos e pontuais incrementos nas capturas de determinados peixes, em especial daqueles que vivem em águas profundas, e dos chamados camarões e caranguejos de profundidade, ainda não explorados em sua plenitude. "Pode haver ganhos mais qualitativos que quantitativos se adotarmos uma gestão mais eficiente da pesca nacional", afirma o biólogo Silvio Jablonski, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), um dos autores do relatório final. Apenas uma espécie, até agora praticamente não explorada comercialmente em águas brasileiras, pode representar um aumento não desprezível no volume de pescado capturado no mar: a anchoíta. As demais não devem alterar substancialmente as estatísticas pesqueiras nacionais, embora algumas, apesar de seus estoques reduzidos, tenham excelente valor comercial. Parente da sardinha, com tamanho em sua fase adulta que varia de 4 a 17 centímetros, a Engraulis anchoita, nome científico da espécie, apresenta um potencial estimado de captura sustentada, sem colocar em risco os estoques desse recurso, da ordem de 100 mil toneladas por ano, em
especial no Sul do país e em menor escala no Sudeste. O peixe costuma ocorrer na plataforma continental, que pode ser descrita como uma planície submersa com ângulo de inclinação em torno dos 5 graus e no máximo 200 metros de profundidade. No entanto há limitações para exploração desse recurso. A anchoíta, que pode ser utilizada como isca para pegar outros peixes ou processada para virar alimento, é de difícil conservação a bordo de navios e não há demanda do mercado por esse produto. Outro recurso que também pode ser alvo de algum incremento de captura é o calamar-argentino (Illex argentinus), uma lula que, como seu nome indica, ocorre preferencialmente nas águas geladas da região patagônica, em profundidades superiores a 100 metros, mas que pode ser encontrada na porção meridional do Brasil no inverno, quando a temperatura do mar no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina se torna mais baixa. "O calamar-argentino é um recurso compartilhado, que passa a maior parte do ano na Argentina e migra sazonalmente para cá", explica Carmen. "Sua exploração comercial, que já começou a ser feita por alguns barcos, tem de ser muito cuidadosa porque a quantidade de exemplares dessa espécie varia muito de ano para ano nas águas nacionais." Um dos temores dos pesquisadores é que a exploração do calamar-argentino se intensifique e repita a história do peixe-sapo (Lophiusgastrophysus), uma espécie de águas profundas que começou a ser capturada por grandes barcos há cerca de cinco anos, quando o Revizee estava no meio dos seus trabalhos, e hoje já parece estar com seu estoque de reposição bastante comprometido. Um caso clássico de recurso que foi explorado além da conta é o da sardinha-verdadeira {Sardinella brasiliensis). No auge de sua captura na costa do Sudeste, durante os anos 1970, a sardinha-verdadeira chegou a fornecer cerca de 200 mil toneladas anuais de pescado. O número caiu para menos de 20 mil em 2001 e, aos poucos, parece voltar a crescer. Em 2004 foram capturadas 40 mil toneladas de sardinha, segundo dados oficiais, mas ainda é cedo para dizer se o estoque da espécie está se recompondo. Mesmo nas zonas com águas marinhas bastante quentes há nichos específicos que, se explorados de forma
criteriosa e cuidadosa, podem render alguns dividendos à pesca nacional. No Nordeste peixes como o guarujuba (Carangoides bartholomei), a sapuruna (Haemulon aurolineatum) e o saramunete (Pseudupeneus maculatus), este último muito apreciado na França onde é chamado de rouget, se encaixam nessa situação. Os cientistas, no entanto, advertem que o status da pesca na região deve se manter basicamente artesanal, sem a abertura do mar nordestino a embarcações de grande porte que capturem diversas espécies a cada ida ao mar. "A pesca aqui deve continuar artesanal não porque seja mais atrasada do que, por exemplo, a praticada no Sul e Sudeste do país", explica a oceanógrafa Rosângela Lessa, da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). "Mas porque a quantidade de recursos não comporta a pesca industrial." Há grande diversidade de espécies no mar do Nordeste, mas a presença de cardumes expressivos é rara. Por isso, para conservar a biodiversidade local e, ao mesmo tempo, não pressionar os pequenos estoques de cada espécie, as capturas marinhas, segundo Rosângela, devem permanecer nos padrões atuais de exploração. No Norte também existem oportunidades setorizadas para aparentemente investir em peixes e crustáceos até agora subexplorados. "A captura comercial das espécies costeiras mais tradicionais, como o pargo, a serra e a pescada-amarela, está no limite máximo", afirma a engenheira de pesca Flavia Lucena, da Universidade Federal do Pará (UFPA). Nas sondagens feitas pela equipe do Revizee, os recursos que, em tese, poderiam ser alvo de algum incremento de pesca seriam o camarão-carabineiro (Aristeopsis edwardsiana) e o camarão-alistado [Aristeus antillensis). Ambas as espécies, que já são alvo de pescarias no Sudeste e Sul, ocorrem em áreas muito localizadas, a profundidades entre 700 e 800 metros. Outro recurso que chamou a atenção foi a presença em grande quantidade do camurimdo-olho-verde (Parasudis truculenta) no litoral do Amapá, a profundidades entre 350 e 700 metros. "O problema é que ainda não sabemos exatamente quanto se poderia capturar dessas espécies sem colocar em risco os seus estoques", pondera Flavia. •
Poucas, mas boas opções Não há grandes cardumes nas águas quentes e pobres em nutrientes da costa nacional. Mas algumas espécies, como as destacadas abaixo, ainda não são totalmente exploradas
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Camarões-alistado (alto) e carabineiro: recursos encontrados em grandes profundidades no Norte
Pseudupeneus maculatus: este peixe vermelho do Nordeste, o saramunete, é apreciado na França
 Temperatura anual média, em °C, das águas superficiais 20 25
Anchoíta: potencial para pesca de 100 mil toneladas por ano na costa do Sul-Sudeste
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Calamar-argentino: presente no Sul, lula é recurso compartilhado com o país vizinho
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O CIÊNCIA
ASTROFÍSICA
Éramos nove 0 pequeno e gélido Plutão é rebaixado de status e o sistema solar volta a ter oito planetas
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oi a correção pública de um erro histórico, que há mais de sete décadas incomodava a maioria dos astrofísicos. Plutão perdeu o status de planeta e nosso sistema voltou a ter apenas oito membros, de acordo com uma resolução aprovada em 24 de agosto passado, depois de acaloradas discussões, inclusive de ordem semântica, pela 26a assembléia geral da União Astronômica Internacional, reunida em Praga. "Não havia mais argumentos científicos para defender a manutenção de Plutão como planeta", afirma o astrofísico Enos Picazzio, da Universidade de São Paulo (USP). Gelado e distante, o diminuto Plutão sempre foi um estranho na família solar e nunca deveria ter sido alçado à condição de planeta. Não era da linhagem dos chamados planetas terrestres (Mercúrio, Vênus, Terra, Marte), tampouco da estirpe dos mundos gigantes gasosos (Júpiter, Saturno, Urano e Netuno). E ainda tinha uma órbita muito diferente da exibida pelos outros planetas. O mal-estar agora acabou - e livros escolares e enciclopédias terão de reescrever seu capítulo sobre o sistema solar. O encontro na capital tcheca, que reuniu cerca de 2.500 astrônomos de 75 países, alterou o conceito de planeta e criou duas novas categorias para astros do sistema solar: a dos "planetas anões", onde, por ora, se acomodaram o rebaixado Plutão, o asteróide Ceres e Xena (apelido do objeto gelado e longínquo 2003 UB313, que até recentemente figurava como forte candidato a décimo planeta solar); e a dos "pequenos corpos do sistema solar", que engloba todos os demais objetos, com exceção dos satélites. Pelos novos parâmetros, um corpo celeste tem
de preencher três condições para merecer o título de planeta: estar em órbita ao redor do Sol, apresentar equilíbrio hidroestático (em bom português, ter forma praticamente esférica) e possuir dimensão suficiente para dominar sua órbita, tendo varrido de seu caminho objetos menores. Apenas oito corpos satisfazem essa trinca de requisitos. Plutão foi barrado pelo terceiro item, visto que sua trajetória cruza com a do gigante Netuno. Por isso, é um planeta anão. Com exceção de algumas vozes dissonantes, em especial de pesquisadores norte-americanos que alegavam razões mais históricas que científicas para se conservar o antigo status de Plutão, a decisão da União Astronômica Internacional (UAI) de reclassificar esse pequeno objeto gelado foi bem recebida. Até por-
que a proposta anterior, derrotada e reformada pelos participantes da assembléia, ameaçava banalizar o termo planeta e abria a porteira para que dezenas de astros galgassem essa condição. Se aprovada, provocaria, enfim, um caos nos livros didáticos. A nova resolução acertou ao reduzir a classificação de Plutão no sistema solar, mas não é perfeita. Para alguns astrofísicos, a definição de planeta aprovada no encontro de Praga é falha ao não fazer referências claras a quais parâmetros físicos (massa, elementos químicos etc.) caracterizam esse tipo de corpo celeste. Mais polêmicas ainda seriam as recém-criadas categorias de astros, a dos "planetas anões", que parece ser um prêmio de consolação para os fãs de Plutão, e a dos "pequenos corpos do sistema so-
lar", expressão guarda-chuva. "A definição do que é um planeta anão vai dar muito pano para a manga", comenta Picazzio. O astrofísico Sylvio Ferraz Mello, também do IAG/USP, num artigo publicado no site de seu instituto logo após a reclassificação de Plutão, resumiu bem o espírito com que as decisões vindas de Praga devem ser encaradas. "A adoção de uma definição não significa que a discussão acabou! A União Astronômica Internacional não tem poder legal para impor uma definição", escreveu Mello. "Mas é de todo conveniente acatar a orientação (...) aprovada pela UAI para que um padrão comum seja adotado pelos livros didáticos e transmitido aos mais jovens." • MARCOS PIVETTA PESQUISA FAPESP 127 • SETEMBRO DE 2006 ■ 41
CIÊNCIA COSMOLOI
A ousadia de desafiar
Einstein Astrônomos brasileiros propõem outra forma de explicar a expansão do Universo Referência universal: supernova 1987A (em rosa), tipo de estrela usada para calcular a taxa de crescimento do Cosmos
RICARDO ZORZETTO
uem olha para o céu estrelado raramente imagina que os bilhões de estrelas e galáxias, incluindo as que não podem ser vistas, estejam se afastando umas das outras a velocidades cada vez mais altas. Elas apenas parecem condenadas a permanecer onde estão por causa da tremenda distância que as separa. Nâo foi fácil provar o contrário. Só no início do século passado o astrônomo norte-americano Edwin Hubble comprovou que outras galáxias estavam se distanciando da Via Láctea, onde estamos. Há seis anos outros astrônomos ajustaram essa visão e constataram que as galáxias estavam se distanciando a velocidades crescentes. Era um claro sinal de que o Universo todo se expande mais e mais rapidamente, como um bolo crescendo com excesso de fermento. Acreditava-se que essa expansão acelerada pudesse durar para sempre. Mas um grupo de astrônomos brasileiros propõe agora um cenário em que o destino do Universo pode ser bem diferente. Se estiverem corretas as previsões de um grupo de São Paulo, do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Norte, a atual fase de expansão acelerada, iniciada há 7 bilhões de anos, só deverá durar mais 6,5 bilhões de anos. "O Cosmos continuará se expandindo indefinidamente, mas de modo desacelerado", afirma José Ademir Sales de Lima, professor da Universidade de São Paulo (USP) e um dos autores de um modelo matemático apresentado em 25 de agosto da Physical Review Letters. Desse trabalho, participaram Jailson e Raimundo Silva Júnior, da Universidade do Estado do Rio Cirande do Norte. nada deve mudar o cotidiano da maioria das pessoas planeta devem desaparecer muito antes, em 5 bilhões de anos, quando o Sol explodir. Mas a nova teoria tranpectiva de um Universo em expansão eternamente acelerada. De acordo com a Teoria da Relatividade Geral, formulada por Albert Einstein, em 15 bilhões de anos poderia surgir uma fronteira no extremo do Universo a partir da qual nada se pode observar. Embora o Cosmos seja infinito, a luz originada além dessa fronteira - uma espécie de bolha gigantesca envolvendo bilhões e bilhões de galáxias - jamais alcançaria o sistema solar. O brilho de uma estrela além desse limite teórico do Universo levaria um tempo infinito para chegar à Terra, iá que a distância aumentaria sempre a velodo a constantes 300 mil quilômetros por segundo. "Nesse estágio o Universo passaria a se comportar como um buraco negro às avessas", diz Lima. Essa bora, ao passo que um buraco negro absorve toda a teria ao seu redor, até mesmo a luz.
A dificuldade de predizer os fenômenos além dessa fronteira perturbava em especial os físicos da Teoria de Cordas, que busca unir as forças fundamentais da natureza para explicar todos os fenômenos físicos, do comportamento de partículas atômicas à formação de galáxias. "Esse limite impediria a reconstrução de uma história completa do Cosmos", comenta Lima, astrônomo potiguar que por 15 anos se dedicou à cosmologia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte antes de se transferir para a USP em 2003. O problema da expansão acelerada, claro, não está no Universo, mas nos modelos teóricos que o descrevem. Segundo uma das abordagens mais aceitas, o Universo estaria em expansão acelerada em resposta a uma força repulsiva associada a uma forma desconhecida de energia, a energia escura. Correspondente a 70% da energia do Cosmos, a energia escura contrabalançaria a gravidade, uma força essencialmente atrativa. Numa época em que ainda não se falava em aceleração do Universo, Einstein adaptou as equações da Relatividade, acrescentando um valor fixo chamado constante cosmológica, para que o Universob a ação da gravidade. Mais tarde os físicos começaram a tratar a constante cosmológica como se fosse a própria energia escura. O quinto elemento - Lima, Silva, Alcaniz e Carvalho sugerem que a origem da força que faz as galáxias se afastarem cada vez mais rapidamente pode ser outra: uma substância que o físico Paul Steinhardt chamou de quintessência, alusão ao elemento imponderável que os filósofos gregos acreditavam ser um dos componentes essenciais do Cosmos, além da terra, da água, do fogo e do ar. Os físicos também a chamam de campo escalar primordial. "As propriedades tísicas do campo escalar não sâo homogêneas e variam em função do tempo, diferentemente daquelas da constante cosmológica", afirma Alcaniz, "e, como conseqüência, o campo escalar pode desacelerar o Universo". Os pesquisadores brasileiros chegaram a esse modelo de evolução do Universo acrescentando um termo a uma equação formulada em 1988 pelos físicos Philip Peebles, da Universidade de Princeton, e Bharat Ratra, da Universidade Estadual de Kansas. A partir daí, calcularam que em 6,5 bilhões de anos o Universo deve passar a se expandir infinitamente de forma desacelerada. Não será a primeira vez. Desde o Big Bang, a hipotética explosão que originou o Cosmos, o Universo alternou períodos de expansão acelerada com outros de expansão desacelerada. O trabalho não acabou, "lemos agora de provar que o modelo está correto e haverá, de fato, uma desaceleração", diz Lima, que analisa com sua equipe ciauos ua explosão cie estrelas supernovas em busca de evidências que confirmem suas previsões. Em paralelo, a publicação do artigo na Physical Review Letters permitirá a outros físicos apreciarem ou criticarem essa nova proposta sobre o futuro do Universo. < PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 201
©CIÊNCIA IMUNOLOGIA
Contra a barriqa-d'água Equipe de Minas apresenta novas perspectivas para uma vacina contra a esquistossomose
fm 1986, ao voltar ao Brasil com o título de doutor pela Universidade John Hopkins, Estados Unidos, Rodrigo Correa-Oliveira poderia ter preferido viver entocado em um dos laboratórios da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Belo Horizonte. Mas não. O biólogo mineiro que pode agora estar na pista de uma vacina contra uma doença que aflige o mundo subdesenvolvido tirou então a botina e o chapéu do fundo do armário, pegou o ônibus e dois dias depois desceu no Vale do Jequitinhonha, uma das regiões mais pobres de Minas Gerais. Durante semanas, disposto a entender melhor os mecanismos de transmissão da esquistossomose, percorreu as estradas poeirentas de Padre Paraíso, de Itaobim e de outros municípios que mal aparecem no mapa. Conversou com os moradores das comunidades rurais e revirou com uma pá emprestada o matagal das margens de córregos e lagos em busca de caramujos transmissores do verme Schistosoma mansoni, o causador da doença também chamada de barriga-d'água por causar um inchaço descomunal do fígado e do baço. Comum 44 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 127
no norte de Minas, a esquistossomose acomete aproximadamente 12 milhões de pessoas no Brasil - no mundo todo cerca de 200 milhões de pessoas sofrem dessa enfermidade típica dos países menos desenvolvidos. Vinte anos mais tarde, ainda com o hábito de viajar ao menos uma vez por mês para o Vale do Jequitinhonha ou para o Vale do Mucuri, Oliveira e pesquisadores da Austrália e dos Estados Unidos demonstraram que duas proteínas da superfície do Schistosoma mansoni acionaram os mecanismos de defesa do organismo de camundongos contra o verme. Se em testes com seres humanos também surgirem resultados positivos, essas proteínas - chamadas transpaninas - podem se tornar candidatas a uma vacina contra a esquistossomose, a ser adotada em conjunto com outras medidas de combate à doença, principalmente a ampliação da rede de esgotos e de água tratada, já que o verme de até 12 milímetros de comprimento por 0,4 de diâmetro se espalha por meio de fezes humanas contaminadas. Segundo Oliveira, uma vacina se justifica porque a doença já se espalhou por vastas áreas do país, dificultando campanhas de eliminação de seus transmissores, os caramujos do gênero Biomphala-
ria. Além disso, o Schistosoma começa a mostrar resistência aos dois vermífugos mais usados, a oxamniquina e o praziquantel. Outro problema: "O tratamento por si só", diz ele, "não é suficiente para evitar a reinfecção, principalmente em crianças". Com abordagens distintas, grupos da Universidade de São Paulo (USP) e do Instituto Butantan trabalham em outras alternativas. Resistência natural - Esse novo caminho rumo a uma vacina surgiu de uma hipótese que Oliveira formulou em 1985 depois de ler um estudo sobre pessoas cujo organismo apresentava mecanismos naturais de defesa contra a filariose, outra doença típica dos países pobres que faz as pernas incharem tremendamente. Como tanto a elefantíase quanto a esquistossomose são causadas por vermes do grupo dos helmintos, ele imaginou que o corpo humano poderia pôr em ação formas naturais de escapar também ao Schistosoma. O biólogo que começou a estudar imunologia em 1978, ainda nos tempos de graduação, saiu então pelos confins de Minas à procura de pessoas que tivessem entrado em contato com esse verme mas não apresentassem nenhum sintoma da doença. E as encontrou.
Em laboratório, depois de analisar os tipos e quantidades de anticorpos do sangue dessas pessoas, Oliveira descobriu que as respostas que apresentavam eram bastante diferentes das registradas após o tratamento com os medicamentos que matavam os vermes. Como ele descreve em 1989 na revista Transactions of the Royal Society of Tropical Medicine and Hygiene, o organismo das pessoas resistentes à esquistossomose combatia o verme por meio de uma intensa - e quase exclusiva - produção de anticorpos, acionados por moléculas de comunicação como as imunoglobulinas E e o interferon gama. Foi também em 1989 que Oliveira encontrou uma das proteínas capazes de acionar a fenomenal produção de anticorpos nas pessoas que viviam entre caramujos contaminados. Elas também se contaminavam, mas sem saber conseguiam se livrar do verme. Mas essa proteína, a paramiosina, não era lá muito amigável em laboratório, e os pesquisadores não conseguiram avançar. Correram anos até que o biólogo de Minas propôs a Alex Loukas, do Instituto de Pesquisa Médica Queensland, da Austrália, que trabalhassem em conjunto para saber se outras proteínas, as transpaninas, poderiam intensificar a produ-
No Brasil, taxas elevadas de esquistossomose: desatenção com águas contaminadas
ção de anticorpos. Desta vez deu certo. De acordo com o estudo publicado em 18 de junho na Nature Medicine, do qual também participou Jeffrey Bethony, da Universidade George Washington, Estados Unidos, em indivíduos naturalmente resistentes a transpanina 2 (TSP-2) é facilmente reconhecida pelas imunoglobulinas. Nada acontece, porém, em pessoas nas quais a infestação progride. Em camundongos, a TSP-2 disparou uma série de respostas que levaram a uma redução de até 64% na quantidade de vermes; com outra transpanina, a TSP1, caiu à metade a quantidade de ovos de Schistosoma. Outra informação animadora é que as duas transpaninas são recombinantes: podem ser produzidas em quantidades elevadas por meio de bactérias e depois purificadas. Contra o amarelão - Oliveira e toda a equipe com que trabalhou sabem que é só o começo. Ainda é preciso mostrar, por meio de testes que devem ser feitos ainda este ano diretamente em sangue
de seres humanos, que esses resultados podem ser repetidos - ou mesmo melhorados - e que vale a pena investir dinheiro e tempo nessa linha de pesquisa. Depois vem a etapa tecnológica, começando com o chamado escalonamento, por meio da qual se tenta ampliar em centenas de vezes a produção da potencial vacina. Essa não é, porém, uma estrada nova para Oliveira, que ganhou experiência dedicando-se ao desenvolvimento de outra vacina - contra a ancilostomose ou amarelão, outra doença de países onde ainda vivem pessoas que andam descalças em ambientes sujos. Vencida a etapa laboratorial, a equipe da Fiocruz de Minas trabalha atualmente com grupos do Sabin Vaccine Institute, da Universidade George Washington e do Instituto Butantan na preparação de lotes experimentais de uma proteína que deverá em seguida ser testada em seres humanos com o propósito de eliminar os vermes Necator americanus e Ancylostoma duodenale. Esses parasitas causam anemias profundas em cerca de 800 milhões de pessoas no mundo por danificarem a parede do intestino e provocarem uma perda de até um copo de sangue por dia. • CARLOS FIORAVANTI PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 45
QCIÊNCIA ACIDENTES DOMÉSTICOS
arando C.CK0
seus filhos soframy^^| quedas, cortes e queimaduras em casa
ustina Nagato viveu uma saia-justa quando participava de uma pesquisa no último ano do curso de psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ela estava em um sobrado em reformas no bairro de Icaraí, em Niterói, cidade vizinha ao Rio, entrevistando uma mulher sobre acidentes domésticos com crianças enquanto os dois filhos dela subiam e desciam de uma escada em caracol, sem grade ou corrimão. A mãe dos garotos estava tranqüila, mas Justina se afligia: deveria avisar que eles poderiam se quebrar ou se cortar caindo de lá? Só após terminar a entrevista é que Justina perguntou se não seria um tanto perigoso os garotos brincarem na escada. A outra mulher disse que não tinha pensado antes nos riscos que os meninos corriam, imediatamente interrompeu a brincadeira e em seguida agradeceu o alerta da entrevistadora. Justina e outras sete estudantes de psicologia visitaram 96 mulheres de toda a Região Metropolitana do Rio. Mostravam seis desenhos - de quarto, sala, banheiro, cozinha, escada e quintal - e perguntavam às mães que tipo de acidente poderia surgir nesses espaços. As conclusões talvez deixem as mães de cabelo em pé. De acordo com esse trabalho, publicado na revista Social Science & Medicine, as mães têm dificuldade em imaginar que uma criança possa se cortar ao pegar uma faca esquecida à beira de uma mesa ou se queimar ao tocar um ferro de passar. Três em cada cinco das mães entrevistadas identificaram os perigos apresentados nas ilustrações, mas somente uma em cada quatro deu soluções. "Os pais tendem a acreditar que os perigos estão fora de casa, não dentro", diz Rodolfo de Castro Ribas Jr., professor do Instituto de Psicologia da UFRJ e um dos autores da pesquisa. "Porém, para uma criança pequena, os riscos de acidentes em casa são maiores que os da violência da rua." Ribas conta que nem ele nem seus colaboradores mais próximos nesse estudo - Alexander Tymchuk, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, Estados Unidos, e Adriana Ribas, da Universidade Estácio de Sá, do Rio - tinham idéia da dimensão da freqüência e da gravidade dos acidentes domésticos. Até que as histórias começaram a surgir. Uma delas veio de uma pesquisadora da própria UFRJ, que teve de faltar a uma prova porque um
dos filhos se queimara em casa com o óleo que havia caído de uma frigideira. Diante das estatísticas as mães talvez pensem duas vezes antes de deixar os filhos correrem tantos riscos ao chegarem perto do fogão. Mundialmente, os acidentes domésticos respondem por 40% das mortes de crianças de 1 a 14 anos. No Brasil, de 1997 a 2002 ferimentos acidentais tiraram a vida de 35 mil crianças brasileiras de 1 a 14 anos. Outras 30 mil eram vítimas de queimaduras por acidentes com álcool líquido a cada ano, até que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) passou a permitir apenas a venda do álcool em gel - os acidentes caíram à metade já nos primeiros meses seguintes. Às vezes os danos podem ser bastante graves: 3% das pessoas internadas por queimaduras no Brasil acabam morrendo em conseqüência das lesões que o acidente provocou no organismo. Na Inglaterra, também é de 3% o total de crianças que passaram pelos prontossocorros e permaneceram com uma incapacidade física permanente. "Não fal-
tam estudos epidemiológicos", diz Ribas, "mas poucos estão estudando por que realmente ocorrem tantos acidentes que poderiam ser evitados". Mães conscientes - Uma hipótese que o grupo pretende testar nas próximas pesquisas é que a freqüência ou a gravidade dos cortes, das quedas e das queimaduras em um espaço aparentemente tão seguro quanto o lar pode estar associada à maturidade emocional das mães. "Se as mães acreditam que o papel delas é importante para os filhos", comenta Ribas, "tendem a buscar mais informação e arrumar a casa de modo a evitar acidentes". Segundo ele, as mulheres sentem uma pressão social intensa para que promovam a educação e garantam a saúde e a segurança dos filhos, mas geralmente não recebem apoio e têm de aprender a se virar sozinhas. Agora não tão sozinhas. Ribas e sua equipe recomeçam neste mês a circular pelo Rio, desta vez se reunindo em escolas com professores e mães. "Não queremos gerar estresse ou alimentar o senti-
mento de culpa das mães, mas alertar sobre como gerenciar os riscos de acidentes em casa", diz ele. No berço, por exemplo, é bom evitar os travesseiros, principalmente os muito macios, sobre os quais o bebê pode se sufocar. É bom também deixar o chão do quarto sempre livre de brinquedos e objetos pequenos que as crianças possam engolir. Muitos conselhos são os mesmos das mães que os filhos chamariam de neuróticas: guardar bem produtos de limpeza e remédios; manter fósforos, objetos cortantes em gavetas ou em lugares altos e livros e outros objetos pesados em lugares baixos; manter as crianças fora da cozinha quando estiver cozinhando; e no banheiro nunca deixar crianças sozinhas em banheiras. Como nem todo o peso do mundo cabe às mulheres, a próxima etapa das pesquisas é entrevistar também os pais. Diz Ribas: stam 3$ muito curiosos para conhec :r o com portamento dos home: is em i ei ação abi perigos domésticos".
J
CARLO
FIOR
CIÊNCIA SAÚDE PUBLICA
Através do muro Vírus e bactérias se propagam livremente na fronteira entre Estados Unidos e México CARLOS FIORAVANTI, DE LA JOLLA, E MARIANA MARTINEZ ESTENS, DE TIJUANA*
Âli está a fronteira entre os Estados Unidos e o México: uma cerca de placas metálicas verdes com 4 metros de altura e extensa a perder de vista. Duas viaturas de polícia se movem sem parar ao longo desta barreira - imponente, mas insuficiente para manter a separação efetiva entre dois mundos muito diferentes à beira do Pacífico. De um lado, na Califórnia, um dos estados mais ricos dos Estados Unidos, espalha-se a cidade de La Jolla com suas ruas largas e assépticas e um shopping a céu aberto um outlet - colado a esta barreira. Os compradores entram e saem das amplas lojas de roupas, perfumes e calçados. Andam com suas sacolas sob o sol forte de julho como se não vissem nem a cerca, quanto mais o que se esconde do outro lado: as ruas estreitas e as casas miúdas que cobrem os morros da cidade vizinha de Tijuana, uma das maiores do México.
Ali vivem temporariamente - ainda que por muitos anos - os imigrantes expulsos dos Estados Unidos que não têm dinheiro para voltar à terra de origem, além dos que alimentam a esperança de entrar no país mais rico do mundo. Quem não quiser correr o risco de morrer atravessando esta versão moderada do Muro de Berlim pode ir de um país a outro apresentando seus documentos em algum dos 20 postos de fronteira, distribuídos ao longo dos 3 mil quilômetros de barreiras que cortam áreas urbanas, rios e desertos. O fluxo é intenso. Por ano, 350 milhões de pessoas - 1 milhão de pessoas por dia, em média atravessam os postos de um lado a outro, com autorização, para trabalhar, deixar os filhos na escola e ir às compras, ao médico ou ao cinema. É uma das fronteiras mais movimentadas do mundo, mesmo sem contar os imigrantes ilegais - aproximadamente 1 milhão por ano -, que tentam passar escondidos em carros ou cavando túneis sob a cerca para desa-
fiar a sorte nos Estados Unidos. Quando conseguem, como os personagens da novela América., exibida no ano passado pela Globo, alguns imigrantes se espalham por regiões mais distantes, outros ficam por ali. Só na Califórnia, um dos estados norte-americanos que fazem fronteira com o México, devem viver 9 milhões de moradores estrangeiros, dos quais 1,5 milhão de modo ilegal. É por essas mesmas brechas que vírus e bactérias se propagam abertamente na região. A faixa de 100 quilômetros ao norte e ao sul da fronteira exibe muito mais casos novos de doenças infecciosas do que no interior de cada um dos dois países. Timothy Doyle e Ralph Bryan, pesquisadores dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês), chegaram a conclusões impressionantes comparando a incidência de 22 doenças infecciosas de notificação obrigatória em três áreas distintas dos Estados Unidos. A primeira é a região mais próxima à fronteira,
Carlos Fioravanti esteve em La Jolla a convite do Instituto das Américas. Mariana M. Estens é jornalista do diário Frontera, de Tijuana. 48 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 127
Entre dois mundos: moradores de Tijuana como este garoto aind ~" tĂŞm esperanças de vencer os limites da pobreza e viver no paĂs mais rico do mundo
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onde atualmente vivem 9,8 milhões de pessoas; a segunda consiste de uma faixa que atravessa o interior dos Estados Unidos e abriga cerca de 45 milhões de pessoas; a terceira é a mais distante, ocupada por outros 203 milhões. A porção oeste das três faixas inclui as terras que um dia pertenceram ao México - por meio de acordos ou de guerras, os Estados Unidos apossaram-se de 2 milhões de quüômetros quadrados do país vizinho, o equivalente a um quarto do território brasileiro. Os contrastes de saúde são mais acentuados entre a região mais próxima da fronteira com o México e a mais distante, que reúne principalmente os estados vizinhos a outro país, o Canadá. No território norte-americano mais próximo do México é oito vezes maior a taxa de pessoas com brucelose, doença bacteriana causada por carne ou leite contaminados, e sete vezes maior a de botulismo, outra enfermidade de origem bacteriana, transmitida por meio de alimentos industrializados estragados ou consumidos depois da data de validade. O número de doentes com hanseníase é cinco ve50 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP127
zes mais alto, o de sarampo quatro vezes e o de hepatite A 3,8 vezes. Dessas comparações entre os habitantes de duas regiões fronteiriças dos Estados Unidos emerge a face menos glamourosa do país mais rico do mundo, a pobreza: 5 das 14 regiões administrativas (ou counties, como são chamadas em inglês) mais carentes dos Estados Unidos encontram-se na região fronteiriça do Texas com o México. As diferenças nos índices de doenças persistiram mesmo quando se adotou a etnicidade como critério de análise. As taxas de hepatite A, por exemplo, são duas vezes mais altas entre os moradores de origem latina do que entre os não-latinos. Para esse resultado contribuem não só as condições socioeconômicas diferenciadas, mas também os hábitos culturais: os latinos são muito mais afeitos a beijos e abraços enfim, à proximidade física - que os norte-americanos típicos. Os altos índices de doenças infecciosas na fronteira dos Estados Unidos com o México denunciam a falta de profissionais de saúde, de hospitais e de atendimento médico adequado, já que muitas
dessas enfermidades poderiam ser evitadas: a ocorrência de doenças que podem ser prevenidas por meio de vacinas, como sarampo, difteria e tétano, é duas vezes mais elevada nas áreas mais próximas do México do que nas mais distantes. Em segundo lugar, o quadro que emerge desse estudo, publicado em setembro de 2000 no Journal oflnfectious Diseases e um dos mais abrangentes já feitos, expõe as falhas de saneamento básico. Não há água encanada nem rede de esgotos nos 2.500 assentamentos informais estabelecidos ao longo da fronteira, conhecidos como colônias, que reúnem aproximadamente 500 mil pessoas. A água subterrânea que circula de um país a outro está contaminada com bactérias causadoras de doenças infecciosas. As duas irmãs - "Embora esteja partida por uma fronteira, esta região é uma só, do ponto de vista biológico, ecológico e geológico", comenta Exequiel Ezcurra, diretor do Museu de História Natural de San Diego, enquanto aprecia um grupo de crianças desmontando e montando maquetes de dinossauros que viveram
! Atrás do sonho: cidadãos mexicanos aguardam uma oportunidade para cruzar a fronteira, mesmo sabendo que todo ano milhares são interceptados e enviados de volta
por aqui há milhões de anos. Tijuana e San Diego, a metrópole regional da Califórnia à qual La Jolla se fundiu, são hoje cidades-irmãs e formam uma mancha urbana de quase 10 milhões de habitantes. É a maior área metropolitana binacional na América do Norte, marcada por contrastes econômicos: a renda média anual dos moradores de San Diego é de quase US$ 30 mil, cinco vezes maior que a dos vizinhos de Tijuana. an Diego constitui a região mais próspera ao longo da fronteira. É um centro de indústrias ligadas às telecomunicações, agricultura e biotecnologia, além de pólo turístico, com belas praias, apesar da água quase sempre gelada - e nem sempre limpa - do Pacífico. Principalmente depois das chuvas intensas de final de ano, o rio Tijuana, que banha o norte do México e uma parte da Califórnia, despeja no mar uma carga acima do normal de esgotos resi-
denciais e resíduos industrias, escurecendo as águas que chegam às praias da vizinha californiana. O planejamento urbano, que poderia deter a poluição, torna-se mais difícil por causa das peculiaridades de Tijuana. De seus quase 4 milhões de habitantes, pelo menos 1 milhão são temporários porque ainda sonham em cruzar a fronteira, porque não conseguiram ou ainda porque já foram deportados. Quem vive em Tijuana não cria raízes - ou parece não querer criar - porque não se sente ligado à cidade mesmo depois de 20 ou 30 anos. A taxa de desemprego é zero, mas a maioria dos moradores trabalha em montadoras que se beneficiam da mãode-obra abundante para pagar salários baixos. Apesar das precárias condições de trabalho, os moradores temporários que trabalham nas centenas de montadoras de equipamentos eletrônicos ou médicos instaladas na região do norte do México conhecida como Baixa Califórnia se arriscam a ser dispensados se ousarem se filiar a sindicatos. Tijuana pode ser angustiante, triste, violenta, mas nunca tediosa. A cidade de
poucos prédios e muitas lojas de fachadas coloridas torna-se ainda mais viva com os festivais anuais de música e sushi. É para lá que vão os norte-americanos em busca de bebidas mais baratas, permitidas nos bares mexicanos para quem tem mais de 18 anos; nos Estados Unidos o limite mínimo é 21 anos. A maioria dos bares abre as portas também para menores de idade, ainda que sob o risco de receber pesadas multas. Outra motivação para ir a Tijuana é comprar drogas ou remédios ou mesmo passar por cirurgias que nos Estados Unidos seriam bem mais caras: a remoção de um tumor custaria US$ 7 mil na Califórnia, mas menos de US$ 3 mil em Tijuana. De compra em compra, os visitantes norte-americanos deixam por lá cerca de US$ 800 milhões por ano. Os homens da fronteira - Como a maioria das cidades de fronteira, Tijuana abriga uma população predominantemente masculina. Os imigrantes chegam sozinhos e se envolvem em sexo de risco com mulheres ou com outros homens. Resultado: as doenças sexualmente transmissíveis, especialmente Aids, esPES0UISAFAPESP127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 51
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palham-se livremente. De acordo com um estudo coordenado por Kimberly Brouwer, da Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD), publicado em março deste ano no Journal of Urban Health, um em cada 125 moradores de Tijuana com idade entre 15 e 49 anos é portador do HIV, o vírus causador da Aids. A maioria (70%) são homens que fazem sexo com homens, seguidos pelos usuários de drogas injetáveis. A médica epidemiologista Maria Luisa Zúniga, da UCSD, coordenou uma equipe que entrevistou 354 homens portadores do HIV que admitiam fazer sexo com outros homens. A primeira constatação, que atrapalha as campanhas de prevenção da Aids, é que eles não se consideram homossexuais, mas héteros. "Para eles, homossexualidade é um estilo de vida, com o qual não se identificam", comentou Maria Luisa em julho durante uma das conferências do programa de jornalismo científico Jack Ealy, organizado pelo Instituto das Américas em La Jolla. "O comporta52 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 127
mento sexual pode ser diferente da identidade sexual", disse. Essa distinção pode ajudar os médicos a entender e a deter a doença na região fronteiriça. De acordo com esse levantamento, quase metade desses homens vai para San Diego ou para Tijuana uma ou duas vezes por mês, diluindo-se na multidão de aproximadamente 42 mil pessoas que cruzam a fronteira diariamente. omo os imigrantes são os moradores de Tijuana que apresentam maior risco de contrair o HIV, o governo mexicano iniciou uma campanha de rádio para promover os testes gratuitos de HIV, com o propósito de identificar as pessoas infectadas e iniciar o tratamento o mais cedo possível. A campanha enfatiza La prueba dei VIH es para gente que piensa que no Ia necesita (o teste de HIV é para quem pensa que não precisa). Mas não tem sido fácil avançar. Qualquer um que desconfie que possa ser um portador do vírus sabe que, se o tiver realmente, poderá perder o emprego, os amigos e tal-
vez a própria família. Nas cidades mexicanas próximas aos Estados Unidos há outra razão para adiar o teste: "Quando as pessoas descobrem que têm o vírus, elas podem perder a permissão para cruzar a fronteira", diz Maria Luisa, uma das coodenadoras de um projeto que procura ampliar o acesso das pessoas com HIV e Aids aos serviços de saúde em San Diego e em Tijuana. Mesmo nos Estados Unidos, 40% de todos os infectados não sabem que estão com o vírus. Outro problema é que os moradores temporários de Tijuana, por não terem o hábito de usar preservativo, podem contaminar as esposas com o HIV quando voltam para casa. O vírus se espalha acobertado pelo silêncio e pela negação da possibilidade de ter contraído a doença, normalmente apresentada ou confundida com anemia. A saída mais comum é esconder a doença até o último minuto, quando a contaminação de muitas outras pessoas já pode ter ocorrido. Pelo ar corre outro perigo: as bactérias causadoras da tuberculose, que se alastra no mundo inteiro na esteira da Aids e da pobreza. É uma doença endêmica
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Passagem permitida: o posto de fronteira San Ysidro, em San Diego, um dos mais movimentados do mundo, registra a cada ano 65 milhões de travessias legais Mi fi
em Tijuana por causa do clima muito úmido e dos numerosos e vastos assentamentos, que abrigam os moradores temporários. Além disso, os migrantes têm muitas dificuldades até chegarem a um médico do Seguro Social, a estrutura de atendimento médico oferecida pelo governo mexicano, quando vêm de outro estado sem um documento de identidade oficial. Enquanto os Estados Unidos registram apenas 5 casos de tuberculose para cada 100 mil pessoas, a região da Baixa Califórnia apresenta de 50 a 60 para cada grupo de 100 mil habitantes. É quase o dobro da atual média mexicana, que havia caído na década de 1990 e voltou a crescer nos últimos anos, à medida que se deu menos atenção às campanhas de prevenção e de tratamento. "A tuberculose não perdoa", comenta o médico pneumologista Rafael LaniadoLaborín, da Universidade Autônoma da Baixa Califórnia, em Tijuana. Em um estudo publicado em maio deste ano na revista Infection Control and Hospital Epidetniology, Laniado-Laborín e Maria Noemi Cabrales-Vargas relatam 18 casos de tuberculose entre os médicos e enfermeiros
que trabalharam durante cinco anos em um hospital de 140 leitos em Tijuana. O resultado representa uma incidência 11 vezes maior que na população e é preocupante por se tratar de um lugar de intensa circulação de pessoas doentes, mais propensas a contrair outras infecções. Segundo Laniado-Laborín, o hospital adotou algumas medidas administrativas sugeridas, mas depois as deixou de lado. No mesmo hospital surgiram mais 17 novos casos entre os profissionais de saúde de novembro de 2005 a junho de 2006. Ações conjuntas - Do outro lado da fronteira a tuberculose também preocupa. Um levantamento feito há dois anos com 571 imigrantes e refugiados que haviam se intalado havia pouco tempo em San Diego mostrou que, embora só 7% deles apresentassem a forma ativa da tuberculose, 76% tinham a forma latente e eram potenciais transmissores do bacilo causador da doença. É possível conter essa doença quando as pessoas contaminadas tomam os medicamentos rigorosamente durante seis meses; ocorre que geralmente se interrompe o trata-
mento tão logo os sintomas desaparecem. É quando surgem as formas mais agressivas da doença, causadas por variedades de bactérias para as quais os medicamentos se tornaram inócuos. Três profissionais de saúde que trabalhavam no hospital de Tijuana, por sinal, estavam infectados com uma variedade de M. tuberculosis multirresistente. A resistência aos dois fármacos mais adotados contra a tuberculose foi detectada em laboratório em 1% das variedades do bacilo que circulam em San Diego e em 17% das variedades isoladas de pacientes da Baixa Califórnia. Os especialistas em saúde insistem: tanto a tuberculose quanto outras doenças infecciosas só podem ser detidas por meio de ações dos dois países que facilitem o diagnóstico e o tratamento. Mas não basta treinar médicos para atender os mexicanos que vivem na Califórnia ou dar mais atenção aos moradores de Tijuana. É preciso respeitar as realidades locais, alerta Laniado-Laborín. "Não podemos simplesmente aplicar o que vem de outros países", diz ele, "porque as situações e as culturas são distintas". • PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 53
CIÊNCIA FISIOLOGIA
Máscara da embriag Energético disfarça alguns efeitos das bebidas alcoólicas e amplifica outros
Duas doses de uísque e uma lata de bebida energética deixam o mais tímido freqüentador de bares e danceterias eufórico e falante para curtir a noite como um boêmio de carteirinha. O problema é a hora de voltar para casa. Quem bebe energético à base de cafeína e taurina na esperança de cortar o efeito do álcool pode até se sentir em condições de pegar na direção, quando, na realidade, não está - e, assim, correr o mesmo risco de causar um acidente de quem consumiu apenas uísque ou cerveja durante a balada. Experimentos feitos na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) comprovam que os energéticos produzem um efeito duplo sobre o sistema nervoso central: por um lado aumentam a sensação de prazer proporcionada pelo álcool, por outro diminuem a percepção sobre o estado de embriaguez. Por essa razão, imagina-se que o consumo freqüente de energéticos com bebidas alcoólicas pode aumentar o risco do uso abusivo e eventual dependência do álcool, que atinge 12 milhões de adultos no país. Interessado em conhecer como e por que as pessoas consomem energéticos bebida criada em 1987 pelo austríaco Dietrich Mateschitz a partir de compostos populares na Ásia -, Sionaldo Eduar54 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP127
do Ferreira, da Unifesp, teve de esticar o horário de trabalho alguns dias e procurar os usuários da mistura de energético e bebida alcoólica onde eles geralmente se encontram: em bares, danceterias e academias de ginástica, além de, claro, na própria universidade. Em 2000 Ferreira entrevistou 136 homens e mulheres que haviam consumido ao menos uma vez energéticos associados com uísque, vodca, cerveja ou outro tipo de bebida alcoólica. Em geral, as pessoas tomavam energéticos por achar que reduziam a sonolência e o cansaço causados pelo álcool, efeito chamado depressão psicomotora. Um em cada quatro entrevistados afirmou que o energético adicionado à bebida alcoólica melhorava o vigor físico, em comparação com o consumo exclusivo de álcool. Na opinião de 40%, o energético os deixava mais alegres, enquanto 30% disseram que aumentava a euforia e 27% a desinibição. Só 14% falaram que o energético não modificava os efeitos do álcool. De volta ao laboratório, Ferreira encontrou resultados diferentes. Ele e outros integrantes da equipe de Maria Lúcia Formigoni convidaram 26 jovens adultos para três baterias de testes com energéticos e bebidas alcoólicas, com o objetivo de verificar se os energéticos modificavam de fato os efeitos do álcool, como muitos acreditam. Antes de cada bateria de teste, os voluntários receberam
doses de vodca com um corante amarelado que imita o sabor do energético, de energético puro ou de energético e vodca - em nenhuma das vezes eles sabiam o que estavam tomando. A avaliação feita com o bafômetro mostrou que o nível de álcool no sangue depois de beber álcool e energético foi semelhante ao observado após o consumo de álcool. "Esse é um sinal de que o energético não interfere na metabolização do álcool", explica Maria Lúcia. Exames de sangue detectaram níveis semelhantes de açúcar (glicose) e de diversos hormônios no organismo após a ingestão de bebida alcoólica ou da mistura de álcool e energético. Testes de atenção também comprovaram que a reação visual e a coordenação motora ficaram igualmente comprometidas em ambos os casos. O desempenho na atividade física em bicicleta ergométrica foi praticamente o mesmo, como atesta estudo publicado em abril deste ano na Alcoolism, Clinicai and Experimental Research. "A única diferença importante", conta Maria Lúcia, "foi observada no dia em que as pessoas beberam energético com álcool: elas tinham a sensação
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subjetiva de manter boa coordenação motora e de menor embriaguez". Essa falsa noção de sobriedade associada ao consumo de energéticos havia sido identificada em 1996 por uma equipe alemã. Em artigo publicado na Bhitalkohol, o grupo relatou que a combinação de álcool e energéticos poderia levar os jovens a uma avaliação errada de sua habilidade para dirigir. "Por não ter noção de seu estado de embriaguez, é bem possível que o usuário beba muito mais", comenta Ferreira. Além disso, o energético disfarça o gosto nem sempre agradável das bebidas destiladas, tornando-as mais palatáveis. É cedo para afirmar que os energéticos induzem a um consumo maior de álcool. Mas Ferreira tem indícios de que isso pode ocorrer. Como não seria ético submeter voluntários ao consumo de doses mais elevadas de álcool e por pepara testes com roedores. Durante
três semanas Ferreira deu álcool diariamente a camundongos, antes de testálos em caixas acrílicas com células fotossensíveis, que registram a movimentação dos animais. Na primeira vez em que os roedores receberam álcool, metade ficou inicialmente agitada e logo se tornou sonolenta, enquanto a outra metade permaneceu inquieta por mais tempo. Nas outras vezes em que repetiu o experimento, Ferreira observou que três de
das", diz Maria Lúcia. "É justamente esse efeito que a maioria busca nas drogas de abuso." A equipe da Unifesp imagina que a sensibilidade causada pelo consumo contínuo de álcool - e aumentada pelo energético - pode influenciar o desencadeamento de seu uso abusivo. Talvez não seja por acaso que nas casas noturnas visitadas por Ferreira a mistura de álcool e energético já constava dos cardápios. "Os administradores desses estabeleci-
efeito estimulante do álcool de forma bastante acentuada. Quando misturou energético à bebida, porém, todos os roedores ficaram agitados, caminhando rapidamente de um lado a outro da caixa. "Se esse resultado for válido para os seres humanos, uma pessoa que inicialmente fica pouco estimulada ao tomar uma bebida alcoólica
te que bebe a mistura consome mais álcool durante a noite", avalia Maria Lúcia. Atualmente Gabriela Naomi Fujisaka, aluna de ciências biomédicas na Unifesp e integrante da equipe de Maria Lúcia, analisa como agem separadamente no organismo os componentes dos energéticos. Enquanto não se conhecem melhor os efeitos desses componentes, essas bebidas continuam a ser vendidas sob a vaga classificação de composto líquido pronto para o consumo. •
seu efeito estimulante, apresentando euforia e agitação mais intensas e prolonga-
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Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org
A iniciativa de adequação do sistema Stanalyst, do Instituto de Informação Científica e Técnica/Centro Nacional de Pesquisa Científica, da França, para operar com a biblioteca SciELO continua com seu desenvolvimento também com bases no modelo de cooperação técnica da Bireme/OPAS/OMS. Com o intuito de finalizar a primeira versão do sistema Stanalyst para plataforma Linux e concluir a ferramenta de conversão de bases de dados SciELO para o Stanalyst, foi realizada uma reunião de trabalho entre os desenvolvedores do projeto, em Buenos Aires, Arqentina, entre os dias 17 e 23 de julho de 2006. O objetivo final do projeto é tornar compatível o banco de análises Stanalyst com as bases biblioqráficas da SciELO, permitindo o compartilhamento das fontes de informação científicas e técnicas. O sistema Stanalyst se refere a uma cadeia de tratamento da informação composto de um conjunto de módulos aplicativos relativo à pesquisa de informação em base de dados documentais.
■ Petróleo
Saúde
A gênese da obesidade Estudos prospectivos mostram que, além da prevalência da obesidade aumentar em todos os lugares, em 2025 o Brasil será o quinto país do mundo a apresentar problemas de peso em sua população. "A etiologia da obesidade não é de fácil identificação. Essa é uma doença multifatorial, que conta com fatores genéticos, psicológicos, metabólicos e ambientais", aponta o artigo "O papel dos hormônios leptina e grelina na gênese da obesidade", escrito por Carla Eduarda Romero e Angelina Zanesco, pesquisadoras do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista (Unesp). A obesidade pode ser classificada em dois caminhos: por determinação genética ou fatores endócrinos e metabólicos ou, então, influenciada por fatores externos, sejam eles de origem dietética, comportamental ou ambiental. "Acredita-se que os fatores externos são mais relevantes na incidência de obesidade do que os fatores genéticos", sugerem as pesquisadoras. O estudo mostra que os adipócitos são capazes de sintetizar várias substâncias e, diferentemente do que se supunha anteriormente, eles não são apenas um sítio de armazenamento de triglicérides. "Dentre as diversas substâncias sintetizadas pelo adipócito destacam-se a adiponectina, a angiotensina e a leptina", afirmam. A leptina é um peptídeo que desempenha importante papel na regulação da ingestão alimentar e no gasto energético, gerando um aumento na queima de energia e diminuindo a ingestão alimentar. "Os achados sobre a descoberta da leptina, produzida pelo adipócito, e da grelina, produzida pelo estômago, abrem novos campos de estudo para o controle da obesidade, principalmente nas áreas de nutrição e metabolismo." REVISTA DE NUTRIçãO - VOL. CAMPINAS - JAN./FEV. 2006
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Desempenho organizacional Embora alguns especialistas questionem o fato de as tecnologias de informação e comunicação (TIC) poderem ser consideradas uma fonte de vantagem competitiva, há consenso quanto à necessidade do seu alinhamento às estratégias das empresas. O assunto é amplamente discutido no artigo "Assegurando o alinhamento estratégico da tecnologia de informação e comunicação: o caso das unidades de refino da Petrobras", de Marcos Villas e Diana Macedo-Soares, ambos da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), e Marcus Fonseca, gerente de TI da Petrobras. O estudo mostra que assegurar este alinhamento, ou seja, promover a consistência da estratégia das TIC com a da empresa, tendo como objetivo aumentar a efetividade, tornou-se particularmente importante com o acirramento da competição no setor de petróleo, em decorrência da abertura deste mercado no Brasil a partir de 2002. Segundo o estudo, o cenário competitivo no qual a Petrobras se insere estabelece precondições para que se utilize a TIC de forma estratégica. "A identificação dos fatores que inibem a promoção do alinhamento estratégico na organização permite que sejam elaborados novos planos de ação", afirmam os pesquisadores no trabalho publicado. Entre as ações mais importantes, destacam-se a necessidade de conscientizar a gerência da empresa a respeito da importância estratégica da TIC e seu potencial tecnológico de auxiliar a organização a conquistar maior vantagem competitiva. Além de compartilhar os resultados de um estudo de caso nas unidades de negócios da Petrobras, o estudo apresenta uma proposta de modelo conceituai para auxiliar a gestão da TIC no sentido de garantir o alinhamento de suas ações com as estratégias do negócio, com o objetivo de potencializar a contribuição desse tipo de tecnologia para um melhor desempenho organizacional dessas unidades. REVISTA DE ADMINISTRAçãO PúBLICA - VOL. N° 1 - Rio DE JANEIRO - JAN./FEV. 2006
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www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-
52732006000100009&lng=pt&nrm=isoStlng=pt
76122006000100007&lng=pt&nrm=isoStlng=pt
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■ Esporte
Objetivo único O esporte é um fenômeno de grande abrangência social, tanto do ponto de vista do espetáculo como da atividade profissional e comercial. Diante das necessidades impostas aos atletas de alto rendimento, a superação tornou-se um princípio e um termo recorrente entre aqueles que conseguiram chegar entre os vencedores. Kátia Rubio, professora da Escola de Educação Física e do Esporte da Universidade de São Paulo (USP), discute o tema no artigo "O imaginário da derrota no esporte contemporâneo". "Na estrutura do esporte observa-se a reprodução do modelo liberal que privilegia a vitória, embora sejam premiados os três primeiros colocados em disputas olímpicas. Isso leva muitas vezes o ganhador da medalha de prata e de bronze a se sentir derrotado, negando um feito digno de registro histórico", explica a pesquisadora. Segundo ela, os desdobramentos da derrota não são suficientemente estudados, o que contribui para uma atitude de negação em relação a essa situação, tanto por parte de atletas como de profissionais que atuam no universo esportivo. Por isso, o estudo apresenta uma discussão sobre o imaginário da derrota e como esse evento se dá entre atletas brasileiros ganhadores de medalhas olímpicas. "Causa estranheza a dificuldade em se encontrar referencial teórico sobre uma reflexão sobre a derrota e sua representação social", diz Kátia, que consultou bases de dados como livrarias e bibliotecas virtuais. "Curiosamente, quando o tema se apresentava por meio de palavras-chave, as obras que surgiram foram quase todas elas na linha da superação da derrota, ou em como se tornar um vencedor com base em técnicas de autoajuda." O tema derrota emergiu quando a procura se concentrou apenas nos aspectos éticos e morais da competição. PSICOLOGIA & SOCIEDADE ALEGRE - JAN./ABR. 2006
VOL.
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www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010271822006000100012&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
■ História
Fronteira tênue Analisar as relações entre história e ciências sociais, investigando os embates e as reciprocidades conceituais e institucionais entre ambas. Essa é a proposta do artigo "História e ciências sociais: zonas de fronteira", de Fernando Teixeira da Silva, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Segundo o autor, a confrontação entre a história e as ciências sociais sempre
foi o espaço de um debate difícil, "e que ainda hoje permanece inteiramente aberto". Trata-se de esboçar um debate que encontra seu ápice de tensão na antropologia estruturalista. "O impulso estruturalista na década de 1960 e início da de 1970 foi uma tentativa de tirar as ciências sociais da sombra da história. Mas os historiadores resistiram a essas investidas, sem que deixassem de sair em defesa da abertura da história para as ameaçadoras disciplinas vizinhas", descreve Silva. Nas últimas décadas, a aproximação entre história e antropologia atualizou o debate, culminando nas atuais reflexões sobre a identidade do ofício do historiador diante da abertura da história em relação às demais ciências humanas. "As relações da história com as ciências sociais remontam ao momento em que ambas passaram a disputar posições no interior do establishment acadêmico por meio de embates conceituais que visavam definir um estatuto de cientificidade para o conjunto de sua produção." HISTóRIA (SãO PAULO)
- VOL. 24 - N° 1 - FRANCA 2005
www.se ielo.br/scielo.php?script=sci_arttext& pid=S010190742005000100006&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
■ Educação
Avaliação distante O artigo "A avaliação vista sob o aspecto da educação a distância", de Marcus Maltempi e Maurício Rosa, ambos da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Rio Claro, reflete sobre a avaliação como um aspecto bastante relevante para a educação em geral, que também deve ser pensado e discutido ante a educação a distância. Tendo por contexto um curso realizado a distância, o estudo analisa algumas interações ocorridas ao longo das aulas, que foram desenvolvidas tendo como norte a teoria construcionista. A abordagem construcionista vai além de atividades hands-on ao deixar para o aluno mais controle sobre a definição e resolução de problemas. A idéia é criar um ambiente no qual o aluno esteja conscientemente engajado em construir um artefato público e de interesse pessoal (head-in). O curso teve a construção de jogos eletrônicos do tipo RPG como proposta pedagógica, além de discutir questões relativas à sociedade do conhecimento e a teorias de aprendizagem. O estudo trabalha esse aspecto a partir de dados coletados no curso que indicam a avaliação como processo formativo, próprio à educação. "No entanto, fazemos inferências à concepção, equivocada em nossa opinião, de avaliação como quantificação, como ideologia de medição de conhecimento, ou seja, como exigência realizada pelo sistema educacional que incita uma atribuição de valores ou conceitos ao que o aluno 'sabe' ou 'aprende'", dizem os autores. ENSAIO: AVALIAçãO E POLíTICAS PUBLICAS EM EDUCAçãO
- VOL. 14 - N° 50 - Rio DE JANEIRO - JAN./MAR. 2006 www.scielo.br/scielo.php7sc ri pt=sci_arttext&pid = S010440362006000100005&lng=ptSnrm=iso&tlng=pt
PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 57
TECNOLOGIA
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Mercado da nanotecnologia ■ Silenciosa e não poluente Uma pequena motocicleta de baixa cilindrada, silenciosa e que não emite fumaça foi desenvolvida na Universidade de Tecnologia de Delft, na Holanda, pelo estudante de desenho industrial Crijn Bouman. Nos testes realizados com um protótipo da motoneta, batizada de Fhybrid, ela atingiu 65 quilômetros por hora e teve um desempenho tão bom quanto o do modelo movido a gasolina. Na aceleração mostrou ser superior ao modelo padrão. A moto é movida por um mecanismo elétrico alimentado por baterias. Um sistema compacto de célula a combustível, equipamento que funciona com hidrogênio estocado em um tanque e oxigênio do ar para gerar eletricidade, carrega a bateria. Além disso, a energia gerada pelos freios, que normalmente é transformada em calor, é utilizada para gerar eletricidade e suprir as baterias de carga adicional.
Em 2005, empresas, governos e investidores de capital de risco investiram cerca de US$ 10 bilhões em materiais e produtos com dimensões nanométricas, medidas equivalentes a 1 milímetro dividido por 1 milhão de vezes. A expectativa é que esse mercado atinja US$ 2,6 trilhões em 2015. A previsão é da empresa de consultoria norte-americana Lux Research,
Dependendo do tráfego, um sistema chamado de frenagem regenerativa reduz o consumo de hidrogênio em 10% a 20%. Com um tanque cheio de hidrogênio será possível percorrer 200 quilômetros. •
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especializada em nanotecnologia, segundo a agência Ásia Online. Os aparelhos e dispositivos eletrônicos nanotecnológicos são os principais produtos comercializados. São semicondutores com tamanhos abaixo de 90 nanômetros, novas formas de memórias digitais, sistemas nanoeletrônicos de armazenagem de dados e nanotubos de carbono que estão entre
■ Oscilações do transgênico Um estudo recém-divulgado por pesquisadores da Universidade Cornell, nos Estados Unidos, mostrou que o uso de
os principais produtos com dimensões nanométricas. Apenas o mercado para dispositivos eletrônicos representou US$ 250 milhões em 2005, excluindo os rendimentos com licenças e patentes. A maior parte desse valor foi dedicado a materiais para a produção de circuitos integrados, vindo a seguir revestimento de dispositivos e nanotubos. •
algodão transgênico resistente às chamadas larvas Bt (Bacillus thuringiensis) pode não apresentar os benefícios esperados pelos produtores. O trabalho, que tomou como base a produção de 481 fazendas situadas nas cinco maiores províncias produtoras de algodão Bt na China, mostrou que, entre 2001 e 2003, o algodão transgênico ajudou a reduzir o uso de pesticidas em 70% e proporcionou lucro 36% maior, quando comparado às plantações convencionais. Mas, em 2004, o resultado se inverteu.
O uso de agrotóxicos ficou equilibrado nas duas culturas e a receita entre os produtores de transgênicos foi 8% menor em função do alto custo das sementes geneticamente modificadas. Esse mau resultado, afirmam os pesquisadores, deveu-se ao ataque de outros tipos de praga. Mas o estudo foi contestado pelo diretor do Centro para Políticas Agrícolas da China, para quem o mau resultado da safra de 2004 deveu-se ao fato de os meses de verão daquele ano terem sido mais frios e úmidos, o que levou à eclosão de pragas nas plantações. O algodão Bt responde por cerca de 60% da cultura chinesa. •
ploradores é que poderão vasculhar locais inacessíveis para os atuais veículos-robôs da Nasa, como túneis subterrâneos, onde podem existir indícios de que, no passado, já houve água em solo marciano. •
■ Escrita portátil em braile Um aparelho portátil para escrever em braile, com dispositivos mecânicos e que dispensa componentes eletrônicos,
foi criado por um grupo de alunos de engenharia da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos. O aparelho é muito simples de usar e possui apenas seis botões, que podem ser pressionados para produzir qualquer um dos padrões que compõem letras, números e sinais do sistema braile. Ele tem pontas metálicas que possibilitam fazer seis marcas de uma vez, aumentando a velocidade da escrita. O protótipo foi testado por representantes da Federação Nacional do Cego, dos Estados Unidos, que conta com 50 mil associados. Caso seja produzido em série, o equipamento deverá custar cerca de US$ 10,00. •
■ Minissondas marcianas Dentro de uma década, Marte será invadido por milhares de minissondas espaciais que irão esquadrinhar todos os seus recantos. Essa é a aposta de um grupo de engenheiros do Instituto de Tecnologia Massachusets (MIT), que desenvolveu engenhosos artefatos do tamanho de uma bola de beisebol pesando cerca de 100 gramas. Os minirrobôs, construídos com material resistente para suportar o intenso frio marciano, serão dotados de câmeras e sensores ambientais. Movidos a células a combustível, equipamento que gera energia com hidrogênio, e dotados de músculos artificiais, eles se moverão em saltos de 1,5 metro com capacidade de dar seis pulos por hora. Os pesquisadores acreditam que, em um mês, um enxame de mil minissondas poderá cobrir uma área de 129 quilômetros quadrados. Elas usarão uma rede local para se comunicar e enviar seus dados a uma base. A vantagem dos miniex-
Energia marinha Um novo sistema para gerar ondas do mar foi desenvolvido por pesquisadores da Universidade de Oregon, nos Estados Unidos. A novidade é que ele funciona com bóias posicionadas a cerca de 3 quilômetros da costa, produzindo energia a partir das ondulações superficiais
do mar - e não propriamente da arrebentação das ondas, como é mais comum. A bóia possui em seu interior uma bobina elétrica e um eixo magnético fixo, que é preso ao fundo do mar (veja desenho acima). Com a ondulação do mar, a bobina baixo, gerando eletricidade.
Os pesquisadores, liderados pelos engenheiros Annette von Jouanne e Alan Wallace, estimam que cada bóia teria potencial para 250 quilowatts de energia. Uma rede de 200 bóias trabalhando em conjunto poderia gerar energia para abastecer o centro financeiro de uma cidade de médio porte.
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O óleo do farelo de arroz pode ser uma alternativa para a produção do biodiesel. Enquanto a atual produção e as pesquisas com biodiesel utilizam girassol, mamona, palma, babaçu, soja, amendoim e pinhão-manso, a Faculdade de Química da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) aposta na produção de biodiesel a partir do óleo do farelo de arroz e conta com o apoio financeiro da Associação dos Arrozeiros de Uruguaiana. Os produtores dessa cidade estão interessados em novas possibilidades para o uso desse subproduto do arroz. O projeto iniciado
em agosto de 2005 é coordenado pela professora Jeane Dullius com a participação da mestranda Tatiana Magalhães da Silva e da aluna de graduação Cleidi Perciuncula. O trabalho delas recebeu o Io lugar na categoria Química Industrial do Prêmio da Associação Brasileira de Química deste ano. Combustível derivado de fontes renováveis, o biodiesel ganha importância pela substituição total ou parcial do óleo diesel de petróleo em motores de caminhões, tratores, automóveis, entre outros. • Valor energético para subproduto do arroz
Linha de Produção
Brasil
■ Parceria para revestimento A multinacional de origem francesa Saint-Gobain assinou um convênio com a Universidade Estadual Paulista (Unesp) para desenvolvimento de revestimento polimérico à base de óleos vegetais para recobrir vidros de janelas e policarbonatos, um ligante polimérico para proteção de superfícies. O revestimento serve como proteção contra a corrosão provocada por produtos químicos. "Nos testes realizados o revestimento produzido com óleos vegetais demonstrou ser durável e resistente", diz o professor Younès Messadeq, coordenador do Laboratório de Materiais Fotônicos do Instituto de Química da Unesp de Araraquara. A principal van-
tagem desse material em relação a revestimentos similares encontrados no mercado é o preço, bem mais baixo por conta da matéria-prima utilizada. O convênio é o primeiro trabalho de cooperação da empresa com pesquisadores brasileiros, que vai investir R$ 165 mil na pesquisa. •
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■ Vendas feitas pelo celular Um sistema para envio de pedidos de venda via telefone celular, chamado de Pwap e desenvolvido pela empresa True Systems, do Rio de Janeiro, foi um dos ganhadores do Wireless Emerging Tecnologies
Awards na feira de tecnologia sem fio CTIA Wireless 2006, realizada em Las Vegas, nos Estados Unidos. Os vendedores podem passar os pedidos para as empresas por meio de qualquer dispositivo móvel que possua conexão com a internet. Além do telefone celular, pode ser utilizado com computadores portáteis e comuns. "O vendedor manda o pedido online pelo telefone, diretamente da base de dados do cliente", diz Luiz Sérgio Oehler, diretor da empresa. Uma das três empresas brasileiras que adotaram o Pwap é a AlfaParf, fabricante de produtos para cabeleireiros, que tem uma equipe de vendas própria com 80 pessoas. As bases de dados das empresas, como cadastros de clientes, produtos, condições comerciais e pedidos, po-
■ Citricultura em detalhes
dem ser acessadas on-line pelo sistema. A comercialização do Pwap é feita por assinatura, com pagamento mensal, proporcional ao número de usuários. "Pretendemos agora exportar o produto para a América Latina", diz Oehler. •
■ Televisão avançada A Universidade Estadual Paulista (Unesp) está na era da TV digital. Concedido pelo Ministério das Comunicações, o canal vai transmitir do campus de Bauru, sede do Centro de Rádio e Televisão Cultural e Educativa da Unesp, com objetivo de difundir conteúdo educacional, abrangendo desde a pré-escola até o ensino superior, além de servir para a formação de mão-de-obra especializada. A emissora será
Uma obra de fôlego com 929 páginas e o curtíssimo título Citros reúne informações minuciosas sobre a citricultura brasileira, que movimenta cerca de US$ 3,2 bilhões por ano. Organizado em seis áreas temáticas (história, genética, produção, fitossanidade, resíduos e pesquisa e desenvolvimento) divididas em 31 capítulos, o livro tem como objetivo levar a todos os envolvidos nesse ramo o que há de mais novo em conhecimento e tecnologia. Para essa tarefa contou com 82 especialistas. A coordenação, organização e edição do livro ficaram a cargo do Centro Apta Citros Sylvio Moreira, do Instituto Agronômico (IAC), em Cordeirópolis, interior de São Paulo. •
Lançamentos tratam de gestão e agricultura
■ Sistemas de informação As aplicações e tendências dos sistemas e tecnologias de informação aplicados à gestão em organizações são a temática do livro Por que Gesiti?, organizado pelo professor Antônio José Balloni, do Centro de Pesquisas Renato Archer (Cenpra), unidade do Ministério da Ciência e Tecnologia instalada em Campinas (SP). Dividido
em sete capítulos, o livro inicia com um panorama geral do tema proposto: "Por que Gestão dos Sistemas e Tecnologias de Informação (Gesiti)?". Os capítulos restantes tratam de assuntos como tendências globais nas transações comerciais feitas por meio eletrônico, aproveitamento da tecnologia de informação para melhorar o desempenho da cadeia de suprimentos e das áreas de transporte e logística. •
Perda menor na colheit
implantada em um ano e meio ao custo de R$ 22 milhões. Ela também deverá incorporar algumas das tecnologias, como softwares e sistemas de interação, desenvolvidas pelo consórcio de pesquisadores brasileiros para o Sistema Brasileiro de TV Digital (veja Pesquisa FAPESP n° 120). .
cana-de-açúcar para a colheita mecanizada, desenvolvido no Instituto Agronômico (IAC) de Campinas, no interior de São Paulo, conseguiu reduzir as perdas da matéria-prima no campo. "O sistema é composto de lâminas serrilhadas, acopladas de forma inclinada aos discos de corte de base utilizados nas máquinas usadas para colher a cana", diz o pesquisador Roberto da Cunha Mello, do Centro de Engenharia Agrícola do IAC, responsável pela inovação. As colhedeiras existentes no mercado trabalham com sistema de corte de base por impacto. Essas máquinas cortam abaixo da superfície do solo, aumentando o des-
Lâmina serrilhada não toca o solo gaste das lâminas. O processo também causa perdas e danos às raízes e, com isso, uma rebrota menos vigorosa. O novo sistema utiliza o corte por deslizamento com lâminas, evitando assim o contato do instrumento com o solo. O resultado é a diminuição nas perdas de cana e
nos danos às raízes, o que favorece a rebrota e reduz o desgaste das lâminas. A moldagem dos instrumentos foi feita em parceria com a empresa Duraface, que licenciou a patente da invenção do IAC. A previsão é de que até abril do ano que vem o produto esteja no mercado. •
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TECNOLOGIA INDUSTRIA PETROLÍFERA
Energia
ampliada Redes temáticas reúnem Petrobras e 76 instituições de pesquisa em projetos que vão receber R$ 1 bilhão MARCOS DE OLIVEIRA
ma das mais expressivas parcerias entre instituições científicas e uma empresa, no caso a Petrobras, está H H iniciando suas atividades com a participação de 76 ^^^V instituições de pesquisa em ^^^ 17 estados brasileiros. As redes temáticas terão à disposição R$ 1 bilhão num período de três anos. Esse valor é equivalente a 0,5% da produção de petróleo da empresa em campos de alta produtividade que deve ser destinado, por lei federal e cláusula contratual, às parcerias com instituições brasileiras. Mais 0,5% está garantido para aplicação no Centro de Pesquisa da Petrobras (Cenpes), onde existem 923 profissionais com nível superior. O valor financeiro dessa parceria é uma estimativa e deverá sofrer oscilações porque depende do nível da produção e do valor do barril de petróleo durante todo o período. São cerca de 700 pesquisadores subdivididos em 38 redes, cada uma com um tema e com a participação de no mínimo cinco instituições. "Entre os macroobjetivos dessas redes e do Cenpes estão aumentar cada vez mais a produção de petróleo e de gás natural, refinar o máximo possível (resultando em combustíveis e demais derivados), além de desenvolvermos novas fontes de energia, como biomassa, biodiesel, álcool, biogás e hidrogênio", diz Carlos Soligo Ca-
merini, gerente-geral da gestão tecnológica da Petrobras. Esse tipo de parceria vem sendo realizado mais efetivamente desde o final dos anos 1980 e já trouxe muitos benefícios para o atual estágio de produção petrolífera da empresa estatal que atingiu a auto-suficiência em abril deste ano. "Dificilmente desenvolvemos uma tecnologia que não tenha a participação das universidades", diz Camerini. São tecnologias para a prospecção de petróleo no fundo do mar, dutos para transporte de óleo e de combustíveis, além de estudos geológicos, produção de softwares específicos para o setor e pesquisa em energia alternativa e renovável. As redes devem mudar para melhor esse cenário até aqui moldado por projetos pontuais realizados entre um laboratório de uma universidade e o Cenpes, embora esse tipo de parceria também deva continuar, agora em menor escala. O novo formato estabelece uma relação mais institucional que envolve reitores, pró-reitores e gerentes da empresa. Cada rede possui um gestor, que será o representante da Petrobras, e um comitê técnico-científico, formado por professores das instituições relacionadas ao tema. "Cada comitê vai analisar e acompanhar os projetos da rede", explica o professor Celso Pupo Pesce, da Escola Politécnica (Poli), representante da Universidade de São Paulo (USP) na Rede de Estruturas Submarinas, uma das 21 redes em que a universidade terá pesquisadores. Ela será responsável PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 63
Tanque oceânico da UFRJ: pesquisa com maquetes de plataformas e de navios
por elaborar projetos relacionados ao desenvolvimento de metodologias de cálculo estrutural, experimentos e qualificação de dutos, conectores e risers, que são as tubulações de perfuração e produção que ligam as plataformas, na superfície, ao solo marinho. Dessa rede também vão participar pesquisadores das universidades Estadual de Campinas (Unicamp), Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do Centro Federal de Educação Tecnológica de Campos, no Rio de Janeiro. Profunda dedicação - Celso Pesce é um exemplo da trajetória de pesquisa das parcerias entre universidade e Petrobras. "Comecei como estagiário em engenharia, no Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), em 1977, em projetos de prospecção de petróleo em profundidades de 50 a 200 metros. Hoje trabalhamos em projetos de cabos e tubos visando profundidades de 3 mil metros", diz. Outra rede com a participação da USP é a de Computação e Visualização Científica, que tem o professor Kazuo Nishimoto, também da Poli, como representante da universidade no comitê técnico-científico. Em seu laboratório chamado de Tanque de Provas Numéricas, ele desenvolve experimentos com um sofisticado sistema computacional, inclusive com visualização em três dimensões (3D), que analisa, de 64 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 127
forma virtual, os efeitos do vento, ondas e correntezas em navios e plataformas de extração de petróleo e gás no mar. Nessa rede, ele terá, no comitê, a companhia da UFRJ, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRio), do IPT, da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). "Já tínhamos algum tipo de interação com outras universidades, mas com as redes a interatividade será maior com projetos melhores e maiores", diz Roberto Lotufo, diretor executivo da Agência de Inovação (Inova) da Unicamp, que é o representante da universidade indicado pela reitoria para tratar das redes temáticas da Petrobras. "Estamos acostumados a fazer a gestão entre universidade e empresas", diz Lotufo, lembrando a experiência da agência em buscar, por exemplo, o licenciamento de patentes oriundas de pesquisas da universidade. A Unicamp está presente em 19 redes, dentre elas a de nanotecnologia aplicada à indústria de energia, que vai pesquisar o desenvolvimento de materiais nanoestruturados (no nível dos nanômetros, medidas equivalentes a 1 milímetro dividido por 1 milhão de vezes) a serem utilizados na produção de combustíveis e na produção de equipamentos e compósitos industriais. A universidade atua nas redes, principalmente com o Centro de Estudos de
Petróleo (Cepetro), fundado em 1987, e formado pelas faculdades de engenharias mecânica, elétrica, química e o Instituto de Geociências com atuação nas áreas de exploração e produção de petróleo. "Em 2004, o valor desembolsado das parcerias em projetos da empresa com a Unicamp atingiu R$ 5 milhões e tem aumentado, de forma consistente, nos últimos anos", diz Lotufo. Um dos fatores principais do sucesso dessas parcerias é a formação de profissionais para a indústria do petróleo que será continuada nas redes temáticas. "Desde a formação do Cepetro já foram mais de 250 alunos de pós-graduação que se tornaram funcionários da Petrobras", diz o professor Saul Suslick, diretor do centro. Um resultado que mostra o investimento e a necessidade da empresa nos últimos anos em aumentar a produção e o refino de petróleo até atingir a auto-suficiência. Formação de profissionais - O aproveitamento por parte da empresa de recém-formados também é exemplar na UFRGS. Criado em 1957, o curso de geologia da universidade formou cerca de mil geólogos até o ano passado. Desses, 255 foram para a Petrobras. "Em alguns anos, 50% dos formandos foram trabalhar na empresa ou para seus fornecedores", diz o professor José Carlos Frantz, diretor do Instituto de Geociên-
cias da UFRGS. A experiência acumulada leva essa universidade a participar de 17 redes como a de Estudos em Sedimentologia e Estratigrafia, que visa estudar e elaborar projetos para análise das camadas geológicas e verificação da idade das rochas com objetivo de localizar novas jazidas ou avaliar as existentes. "Detalhamos os campos petrolíferos, verificamos como eles se formam e analisamos as rochas dos reservatórios", diz Frantz. Para ele, as redes vão proporcionar a multiplicação de projetos de pesquisa, tornando-os mais rotineiros, além de dar maior entrosamento com outros centros de pesquisa. A maior interação entre as instituições de pesquisa também é destacada pela professora Ângela Uller, diretora-geral do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). "Teremos mais projetos voltados para desenvolvimentos futuros", diz Ângela. A Coppe está presente em 32 das 38 redes temáticas. Além de participar da rede Tecnologia de Construção Naval, área em que a instituição colaborou para um dos trunfos da empresa na prospecção em alto-mar - o aproveitamento de navios petroleiros adaptados como plataformas -, a Coppe participa também de 24 comitês científicos de outras redes. "Nossa primeira parceria formal com a Petrobras aconteceu em 1977, mas desde 1967 já tínhamos projetos menores e específicos. Até 2001 foram mil projetos realizados em parceria e, em 2006, atingimos 2 mil projetos", diz Ângela. Esse incremento em quatro anos é creditado principalmente a pesquisas financiadas pelo Fundo Setorial do Petróleo (CTPetro), gerenciado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), que obtém recursos de royalties da produção de petróleo e de gás. Um dos projetos mais significativos é o tanque oceânico, com 23 milhões de litros de água, 40 metros de comprimento por 30 metros de largura e profundidade de até 25 metros, capaz de produzir ondas e correntezas. Todo o trabalho de desenvolvimento da Coppe, que inclui robôs para operar em altas profundidades e dutos para transporte de petróleo, resultou em 72 paten-
tes depositadas no Brasil e 14 internacionais. São patentes em parceria também com a Petrobras e consideradas de categoria defensiva porque não são, em sua maioria, comercializadas ou licenciadas para terceiros. "Elas não geram benefícios à instituição de pesquisa", diz Ângela. "Hoje existe uma reivindicação das universidades no sentido de obtermos alguma participação financeira sobre a propriedade intelectual das tecnologias que desenvolvemos", diz Lotufo. Petrobras aceitou discutir o assunto e uma comissão com várias universidades e institutos de pesquisa apresentou propostas que estão sendo analisadas pela empresa. "As propostas estão na esfera jurídica com nossos advogados e consultorias. Acho que conseguiremos uma alternativa palatável aos dois lados", acredita Camerini, da Petrobras. A solução sobre as patentes deve ser resolvida até o final deste ano, período dedicado a montagem e aperfeiçoamento de laboratórios em todo o país. A fase de projetos de pesquisa começa em 2007. Na UFRJ, por exemplo, serão construídos prédios, revitalizados laboratórios e adquiridos equipamentos de ponta, tudo na área de 12 mil metros quadrados da Coppe. "Na Unicamp serão construídos prédios específicos para projetos da Petrobras", diz Lotufo. Mas as redes não são formadas apenas por instituições de pesquisa tradicionais ou por grandes estruturas, como demonstra a rede Monitoramento Ambiental Marinho - uma das que possuem maior número de participantes com 18 instituições -, que vai elaborar projetos de caracterização e monitoramento de ecossistemas costeiros e marinhos. Entre as participantes, além da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e o Museu Paraense Emílio Goeldi, estão a Fundação Pró-Tamar, de proteção às tartarugas marinhas, e a Fundação Baleia Jubarte. A grande novidade está em uma rede temática que não vai precisar construir prédios nem comprar equipamentos. Chamada de Tecnologias Convergentes, esta rede terá as idéias como matéria-prima. "Entendemos que algumas tecnologias, ao se encontrarem, como a biotecnologia, a nanotecnologia, a informática
e outras, podem provocar grandes mudanças em muitos setores e gerar produtos diferentes", diz Camerini. "Um exemplo é a união entre a engenharia e a medicina que criou equipamentos médicos e de diagnóstico como a ultra-sonografia e outros que mudaram o patamar da vida humana." A tendência dessa rede formada por cerca de 50 a 60 pesquisadores de áreas variadas é analisar tecnologias que estão em outras redes, mas não de forma tradicional, além de examinar outras de fora da área de energia. Estarão participando psicanalistas, médicos, engenheiros e pedagogos. "Vamos pensar o que nenhuma das outras 37 redes estão pensando", diz Lotufo, que também vai participar da rede. Outro objetivo é pensar como a Petrobras vai se preparar para os próximos 10, 20, 30 anos. A intenção da rede, que será formada inicialmente por pesquisadores da UFRJ, Unicamp, USP, UFRGS e ITA, também é gerar idéias que ultrapassem o âmbito da empresa. Um dos participantes, o médico Paulo Hilário Saldiva, professor da Faculdade de Medicina da USP, tem propostas para um novo perfil de escolha de combustíveis que contribuam para a saúde pública e social do Brasil e do planeta. "Poderíamos mudar a percepção atual dos biocombustíveis em ser apenas um produto alternativo. A menor toxicidade em relação aos combustíveis fósseis poderia defini-los como o principal combustível. E, no custo de produção, deveriam ser descontados os benefícios que ele proporciona ao ambiente", explica Saldiva. "Além disso, a produção de biocombustível poderá diminuir o fosso social. Imagine a Europa comprando álcool de países da África, por exemplo." As idéias podem ir mais longe, segundo Saldiva. "Imagine que uma linha de metrô poderia economizar por ano até 3 milhões de barris de petróleo (se um determinado número de pessoas trocasse o carro pelos vagões). Com os altos preços do barril e havendo a necessidade de economizar petróleo e garantir por mais tempo as reservas, por que a Petrobras não poderia entrar como sócia do metrô?" pergunta Saldiva. "Precisamos mudar o nível de consumo de combustíveis, diminuindo viagens urbanas que podem resultar em benefícios tanto para a companhia de petróleo como para a saúde pública." • PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 65
O TECNOLOGIA TELECOMUNICAÇÕES
Ramal inteligente um PABX de forma distribuída do mesmo modo que empresa paulistana Conceito dehavia feito com os sensores das balanças. senvolveu uma tecnologia, que vai O sistema convencional é composto de Central servir principalmente a telefonia empresarial, na distribuição de liTelefônica de Comutação Privada, que possui a sigla PABX, de Private Automatic Branch Exchange, e funnhas telefônicas em ramais que ciona de maneira centralizada. É a partir de um apaatuem de maneira independente uns dos outros, além de controlarelho central que ele administra os ramais da empresa, fazendo as ligações para a central telefônica pública rem sistemas de automação predial. por meio de, pelo menos, duas linhas-tronco e cinco São funções realizadas por meio de módulos de teleramais. A depender de seu interesse, a empresa pode fonia distribuídos no ambiente e conectados a cada comprar mais linhas-tronco e colocar mais ramais. O ramal. Dessa forma, além de agir como um PABX moproblema é que as micro e pequenas empresas acadular e distribuído, tal sistema privado de telefonia bam tendo ramais ociosos, enquanto as grandes preprevê a interação com qualquer aparelho que faz parcisam lidar com uma estrutura de conexões muito te do sistema de automação de prédios inteligentes. Assim, ao digitar teclas de um telefone, em qualquer complexa e com muitos fios. A simplicidade do sistema TMID está no seu núlugar dentro ou fora da empresa, é possível ligar o arcleo, chamado de módulo controlador, que possui um condicionado, abrir portas e janelas e, por meio de senmicroprocessador de informações denominado Neusores, até descobrir se existe alguém passeando por lá. ron Chip, desenvolvido pela empresa americana EcheO novo sistema foi batizado de Telefonia Modulon, além de um transceptor, dispositivo que tem a lar Inteligente Distribuída (TMID) e possui módulos função de garantir o acesso à rede de comunicação do que o fazem trabalhar de forma independente da coprédio. Por tratar-se de uma tecnologia modular, o mutação realizada pelo PABX. Para realizar todas as cliente pode adquirir os módulos na medida de seu funções, os ramais são conectados entre si e à rede Lointeresse e necessidade, sempre cal Operating Network (Lonconsiderando o custo do que Works), que realiza a automarealmente vai usar. ção predial, compartilhando o 0 PROJETO Partindo da tecnologia demesmo meio físico, como os pasenvolvida que está em forma de res de fios, por exemplo. A idéia Rede de controle de dispositivos com inteligência distribuída protótipo, portanto ainda não de desenvolver os "telefones inem interfaces de comunicação disponível comercialmente, a teligentes" surgiu enquanto o e automação empresa produziu e colocou no coordenador do projeto da emmercado o Logphone. Conecpresa financiado pelo Programa MODALIDADE tado ao telefone e a um comInovação Tecnológica em PePrograma Inovação Tecnológica putador, ele monitora todos os quenas Empresas (Pipe) da FAem Pequenas Empresas (Pipe) telefonemas recebidos, grava PESP, o físico Miguel dos Santos COORDENADOR conversas, registra a duração, inAlves Filho, desenvolvia sensoMIGUEL DOS SANTOS ALVES FILHO forma o número de quem ligou res com inteligência distribuída Conceito ou se o telefone estava ocupado. para balanças de caminhões, O aparelho é aplicado de maneiusadas nas estradas, em 1991. INVESTIMENTO ra independente em cada ramal Desde então, ele começou a perR$ 173.520,37 (FAPESP) e custa R$ 100 cada um. guntar se não conseguiria fazer A
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Telefonia empresarial ganha sistema avançado de automação
Módulos independentes para cada ramal
A empresa também está trabalhando para colocar no mercado o Módulo de Resposta Audível (MRA) que realiza o serviço de espera telefônica personalizada em cada ramal e o atendimento automático, normalmente utilizado por empresas de telemarketing. Esse trabalho pode ser realizado pelo PABX, mas depende de uma estrutura maior e mais dispendiosa: uma unidade de resposta audível para gravar e decodificar a conversa, além de um computador para armazenar as locuções programadas. Como o uso de um PABX é predominante no Brasil, o grupo está desenvolvendo o MRA. que terá entradas analógicas e digitais. "É uma maneira de entrar no mercado aos poucos", explica Alves Filho. O grupo também pretende produzir o Módulo Gate Keeper (MGK) para interligar os telefones e os computadores em rede, ampliando o sistema de comunicação. A diferença desse sistema em comparação com o Voice Over Internet Protocol (Voip), ou voz sobre protocolo internet, que possibilita ligações telefônicas na rede, é o envio de informação sincronizada e voz com boa qualidade. No Voip, as informações, ou "pacotes de voz", que transitam pela internet sofrem atraso e variação na ordem de emissão, resultando em uma comunicação deficitária. "O novo sistema elimina a perda de comunicação dos pacotes e melhora a qualidade da ligação via internet", explica. Para Alves Filho, o fato de entrar no mercado não é o suficiente para a nova tecnologia ser disseminada. Ele quer difundir o novo sistema no meio acadêmico. "É importante formar grupos de estudos sobre automação porque não adianta criar a tecnologia e colocar no mercado sem que existam profissionais capacitados para trabalhar com ela", diz. É por isso que o conhecimento produzido por Alves Filho também está em uso na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) pelo Virtual Network Center of Ecosystem Services (ViNCES), um consórcio de laboratórios que utiliza o controle a distância e a automação de aparelhos para coleta de dados em pesquisas na área de ecologia. • PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 67
O TECNOLOGIA QUÍMICA
Portões lógicos Pesquisadores desenvolvem dispositivo para futuros computadores moleculares
YURI VASCONCELOS
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sonho de computadores e outros equipamentos eletrônicos dotados de circuitos compostos por moléculas ganhou uma nova contribuição. Pesquisadores do Laboratório de Química Supramolecular e Nanotecnologia do Instituto de Química (IQ) da Universidade de São Paulo (USP) anunciaram em julho o desenvolvimento de células fotoeletroquímicas capazes de funcionar como portas lógicas, dispositivos responsáveis pelos bits que carregam a informação digital por meio do código básico binário empregado em computação identificado pelos sinais 1 e 0, equivalentes a "sim" e "não". A novidade do sistema é que essas células são construídas com moléculas capazes de responder a estímulos externos - como impulsos elétricos ou ópticos - gerando respostas eletrônicas. "O que fizemos agora é apenas um protótipo que, no futuro, poderá ser usado num computador molecular. É um avanço, mas não sabemos ainda como seria a cara' desse computador", diz o químico Henrique Eisi Toma, professor do IQ da USP. 68 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 127
As portas lógicas (PLs) são componentes fundamentais da eletrônica digital atual baseada na tecnologia do silício. A combinação de dois sinais de entrada (podem ser 1 ou 0) resulta em respostas que caracterizam os três tipos básicos de portas lógicas: NOT, AND e OR, sendo as demais (XOR, XNOR, INH, NOR etc.) obtidas pela combinação das três. Todos os processadores e equipamentos digitais existentes no mercado são operados por sistemas constituídos por combinações daquelas três PLs básicas de acordo com regras bem definidas, recebendo ou gerando sinais compatíveis com a linguagem binaria. "As respostas de cada PL são usadas como entradas de outras PLs e, quando combinadas, geram circuitos lógicos capazes de realizar operações simples. Elas são interconectadas para produzir dispositivos mais complexos e estão presentes em aparelhos como computadores e aparelhos celulares, entre outros", explica o professor Koiti Araki, que também participou do desenvolvimento. As PLs utilizadas atualmente operam com o mesmo princípio do primeiro transistor desenvolvido na década de 1940. Com o contínuo avanço
tecnológico e a incessante miniaturização de componentes eletrônicos - que hoje alcançam escala de 50 nanômetros (1 nanômetro eqüivale à milionésima parte do milímetro), essa tecnologia parece estar chegando ao seu limite, sendo necessário o desenvolvimento de novos dispositivos. "Uma possibilidade é a eletrônica molecular, e um exemplo da viabilidade desse tipo de tecnologia é o cérebro humano. Ele é um supercomputador úmido baseado em moléculas e sinais moleculares e que utiliza uma linguagem distinta da linguagem binaria dos supercomputadores construídos pelo homem", destaca Toma. Assim, a computação molecular se inspira no complexo funcionamento do cérebro para o desenvolvimento de seus componentes. Filme colorido - O dispositivo molecular criado pela equipe do Instituto de Química possui cerca de 1 centímetro quadrado, no formato de um "sanduíche" entre duas lâminas de vidro condutor. Uma delas possui um filme nanoestruturado de dióxido de titânio (Ti02) sensibilizado por um corante molecular, constituído por três íons
Atrás da lente, o dispositivo instalado entre duas lâminas de vidro recebe um feixe de luz e produz um impulso elétrico
(perda ou ganho de elétrons) de rutênio e moléculas contendo carbono, oxigênio e nitrogênio. A outra lâmina condutora tem em sua superfície um filme de nanopartículas de platina colocado sobre um filme de dióxido de estanho (Sn02). Quando um feixe de luz incide sobre o "sanduíche", é produzido um impulso elétrico. Uma particularidade importante é que, dependendo do comprimento de onda da luz, o composto de rutênio ganha ou perde elétrons. É essa a característica fundamental que transforma a cela fotoeletroquímica em uma porta lógica do tipo XOR (ou exclusiva) ou INH (inibidora) que geram os bits de informação ao longo de um circuito eletrônico. Dado o ineditismo da invenção, o grupo entrou com pedido de patente para o dispositivo. "Em princípio, nossa PL poderia ser miniaturizada até a escala nanométrica, porque seu funcionamento depende apenas da formação da junção entre o corante e as nanopartículas de dióxido de titânio que possuem, no dispositivo testado, 20 nanômetros de diâmetro. Assim, um número muito grande poderia ser construído sobre substratos adequados usando fotolito-
grafia (a impressão de um circuito de um dispositivo eletrônico por meio de luz)", afirma Araki. Não é de hoje que vários grupos de pesquisa no mundo estão tentando usar moléculas como matéria-prima para a construção de componentes eletrônicos, em substituição ou complementação aos atuais dispositivos sólidos feitos principalmente de silício. As primeiras portas lógicas moleculares surgiram nos anos 1980, mas seu princípio de funciona-
O PROJETO Desenvolvimento de supermoléculas, filmes e dispositivos em nanotecnologia supramolecular MODALIDADE
Projeto Temático COORDENADOR HENRIQUE EISI TOMA
- USP
INVESTIMENTO
R$ 289.743,66 e US$ 138.441,15 (FAPESP)
mento era rudimentar e dependia, em pelo menos uma de suas etapas, da renovação ou injeção de solução do composto molecular. A porta lógica desenvolvida pelos cientistas brasileiros é bem mais complexa e funciona de forma regenerativa, sem necessidade de renovação da substância ativa, que se encontra imobilizada no dispositivo. A inovação obteve boa repercussão na comunidade científica internacional e foi divulgada por publicações do setor químico e de novos materiais, como a Angewandte Chemie, revista de maior impacto na área química. Se, apenas no futuro, a inovação poderá ser empregada na construção de computadores moleculares, hoje ela já tem uma aplicação prática. Segundo Henrique Toma, a porta lógica molecular poderá ser utilizada como um dispositivo conversor de energia, transformando impulsos ópticos em sinais elétricos. Isso porque a PL desenvolvida na USP é similar a uma célula solar do tipo DSSC (de Dye Sensitized Solar Cells ou Células Solares Sensibilizadas por Corantes), produzida com baixos custos e que deverá se tornar no futuro próximo uma opção às células atuais de silício. • PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 69
O TECNOLOGIA ENGENHARIA DE MATERIAIS
Coloridos e sensíveis Películas aplicadas sobre vidros e espelhos controlam mudanças de luminosidade no ambiente
Um simples apertar de botão e o vidro da janela da casa ou do escritório pode ficar colorido em tons de rosa, azul, vermelho ou outras cores. Em um ambiente interno separado por vidros basta recorrer ao controle manual para não ser visto durante uma reunião, por exemplo. No caso de janelas externas, as condições de luminosidade ou climáticas podem também determinar os ajustes necessários, sem nenhuma intervenção. Em um dia nublado, o vidro fica mais claro, em um dia ensolarado, mais escuro, proporcionando maior conforto térmico e redução nos gastos de energia com sistemas de ar-condicionado e iluminação. O nível de transparência é determinado por filmes finos (películas) com propriedades eletrocrômicas, que mudam suas propriedades ópticas com a aplicação de um campo elétrico e retornam ao seu estado inicial pela simples reversão desse campo. São esses filmes que estão sendo desenvolvidos por pesquisadores do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) com novidades em relação aos mesmos materiais usados, até comercialmente, no exterior. Na USP, eles utilizam materiais cerâmicos, como o oxido de níquel, que apresentam efeito eletrocrômico. Na presença de um eletrólito, que é um condutor de elétrons e íons (átomos com perda de elétrons) e de um contra-eletrodo, responsável por fechar o circuito eletrônico, esses materiais sob ação de um campo elétrico apresentam reações de transferência de cargas elétricas, responsáveis pela mudança de cor dos vidros. Um fotossensor, ligado a uma bateria, controla o nível de luminosidade e a necessidade de mudar do claro para o escuro e vice-versa. 70 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 127
Os filmes finos podem ser aplicados também em espelhos retrovisores de automóveis para diminuir o reflexo de uma luz intensa no espelho à noite, como um farol alto. Esse tipo de espelho funciona em conjunto com um fotossensor que reconhece se a luz está forte ou fraca. Quando a fonte de luz se afasta do carro, o espelho volta à condição normal de reflexão. As janelas que mudam de cor já são produzidas fora do Brasil e usadas em projetos de arquitetura. Mas lá os filmes finos aplicados sobre o vidro são feitos com moléculas orgânicas, como corantes, que sofrem com a degradação provocada pela radiação ultravioleta do Sol, portanto um material pouco adequado ao clima tropical. "Com os materiais inorgânicos que usamos, como o oxido de níquel, a troca de janela pode demorar até dez anos", diz a professora Márcia Carvalho de Abreu Fantini, do Laboratório de Cristalografia do Instituto de Física da USP, uma das participantes do projeto temático financiado pela FAPESP que estuda a preparação e o desenvolvimento de nanomateriais (com tamanhos próximos a 1 milímetro dividido por 1 milhão de vezes) cerâmicos ou híbridos, coordenado pelo professor Celso Valentim Santilli, do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara. Nanopartículas controladas - Para obtenção dos vidros coloridos é preciso controlar o tamanho e a forma das nanopartículas metálicas inseridas nos materiais inorgânicos responsáveis pelas alterações das propriedades ópticas. Após várias tentativas, os pesquisadores conseguiram produzir materiais coloridos pelo processo de deposição a vácuo chamado de sputtering. É um método físico que usa o gás argônio ionizado para deposição das nanopartículas metálicas na
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Amostras de vidro em água recebem carga elétrica
matriz de oxido de níquel. Como o processo de obtenção dos filmes finos de oxido de níquel com propriedades eletrocrômicas já está dominado, os pesquisadores querem agora encontrar uma empresa que se interesse em produzir os vidros. Materiais similares usados nos filmes aplicados nas janelas também são úteis para baterias de celulares e outros aparelhos eletrônicos, como transmissores em miniatura, computadores portáteis e sensores remotos. Rotas químicas - A obtenção de filmes finos também é objeto de estudo do grupo de pesquisa da Unesp. Só que em vez de processos físicos como o sputtering, eles utilizam rotas químicas, como o método sol-gel, para a preparação das nanopartículas. Por esse processo, os pesquisadores produzem partículas dispersas em líquido (estado sol), que são imobilizadas por uma rede formada pela agregação ou polimerização controlada, resultando em um gel com características semelhantes às da gelatina comestível. Uma das aplicações estudadas é a proteção contra a corrosão e riscos de lentes utilizadas, por exemplo, em filmadoras e câmeras fotográficas especiais para captação de imagens sem luz visível, apenas com a emissão de calor (em infravermelho) de pessoas, animais e objetos. Enquanto os vidros de janelas e lentes tradicionais absorvem radiações eletromagnéticas tanto na faixa do ultra72 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 127
violeta como na do infravermelho, os componentes ópticos das câmeras fotográficas e filmadoras "noturnas" têm que possuir vidros especiais que são transparentes e não absorvedores dos raios infravermelhos emitidos pelos corpos. "Os vidros que existem no comércio com essa finalidade funcionam bem nessa região do espectro eletromagnético, mas muitos deles são feitos de materiais que gostam muito da umidade, como é o caso dos vidros à base de fluoreto de metais pesados, e por isso têm de ser protegidos", diz Santilli. Outra aplicação para os filmes é a cobertura de espelhos de banheiro, para que não fiquem embaçados. Nesse caso, o material tem como principal característica a super-hidrofilia, ou seja, é um
0 PROJETO Nanomateriais cerâmicos e híbridos preparados pelo processo sol-gel MODALIDADE
Projeto Temático COORDENADOR CELSO VALENTIM SANTILLI
- Unesp
INVESTIMENTO
R$ 414.568,00 e US$ 311.544,36 (FAPESP)
filme que gosta de água e não gosta de gordura. Por conta dessa característica, o filme forma milhões de gotinhas, menores que as formadas pelo vapor d'água, que espalham a luz. Dessa forma, mesmo com o chuveiro ligado no quente, o espelho não fica embaçado. O mesmo material pode ser usado para proteger lonas de estufa de plantas na agricultura e azulejos de prédios. Mesmo recobertos de poeira e de outros materiais indesejados voltam a ficar limpos com a chuva, porque a sujeira e a gordura não aderem ao filme. Controlar e entender a passagem do estado sol para gel é o grande interesse do grupo da Unesp para a obtenção de materiais em temperatura ambiente. Por essa rota, foi obtido um material inovador, produzido a partir de moldes formados pelo arranjo periódico de agregados cilíndricos de moléculas surfactantes, substâncias químicas que atuam como detergentes e são compostas por uma longa cadeia molecular. Reações químicas efetuadas no interior desses moldes permitem produzir em temperatura ambiente fibras cerâmicas longas. "O nosso processo produz fibras cerâmicas do mesmo tipo que as fabricadas hoje, mas que são obtidas geralmente por evaporação de metal acima de 1.000 graus Celsius, tornando mais caro o produto", diz Santilli. • DlNORAH ERENO
TECNOLOGIA
FARMACOLOGIA
Areia poderosa Sílica associada a vacina induz organismo a produzir mais anticorpos DlNORAH ERENO
ma prosaica substância encontrada na água do mar e nas rochas, a sílica, mostrou em testes ter potencial para auxiliar na indução dos mecanismos de defesa do orgaHHT nismo quando administrada em associação com vacinas. "Nos estudos com camundongos vimos que a sílica usada como meio de transporte das vacinas melhora a resposta de indivíduos que produzem pouco anticorpo, além de não ser tóxica", diz Osvaldo Augusto Sant'Anna, pesquisador do Laboratório de Imunoquímica e diretor científico do Centro de Toxinologia Aplicada do Instituto Butantan. Ele coordena o projeto Complexo Imunogênico desenvolvido em parceria com o Laboratório Cristália, empresa brasileira que apostou na novidade e está investindo R$ 250 mil nos testes que podem levar ao produto. PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 73
Arranjo de poros em forma de tubos longos Abaixo, estrutura da sílica lembra o favo de mel
Chamada de sílica nanoestruturada, ela é produzida a partir de moléculas como os surfactantes, compostos orgânicos utilizados na fabricação de detergentes e outros materiais, que funcionam como um molde. Sobre os surfactantes adiciona-se a sílica, também conhecida como dióxido de silício, composto por silício e oxigênio. "Os surfactantes são removidos depois por meio da exposição do material a altas temperaturas, em um processo conhecido como calcinação", diz o professor Jivaldo do Rosário Matos, do Laboratório de Análise Térmica do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), que, em parceria com a professora Lucildes Pita Mercuri, do Departamento de Química Analítica da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), participa do mesmo grupo de pesquisa. Eles são os responsáveis pelos estudos de síntese e caracterização físico-química das sílicas nanoestruturadas. Após o processo de calcinação, o material é preparado para aplicação. A sílica forma uma rede com estruturas em forma de tubos longos, dispostos hexagonalmente, em um arranjo de poros bastante organizado e uniforme, com diâmetro de cerca de 8 nanômetros, unidade de comprimento equivalente à bilionésima parte do metro. "A uniformidade do tamanho dos poros é muito importante para a obtenção dos resultados", diz Matos. Dependendo da disposição dos poros e do tamanho, o material pode ter várias aplicações tecnológicas, como catalisadores, nanos74 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 127
sensores e até servir como meio de imobilização de enzimas, fixação e liberação controlada de fármacos e adsorção (fixação de moléculas de uma substância na superfície de outra substância) de metais pesados e outros poluentes encontrados na água. Viagem promissora - O projeto de desenvolvimento da sílica nanoestruturada como auxiliar de antígenos, substâncias capazes de induzir a produção de anticorpos específicos contra uma toxina ou uma vacina quando injetadas no organismo, começou dentro de um ônibus no final de 2001. Numa das viagens diárias feitas entre Campinas e São Paulo, Osvaldo SanfAnna conversava com a professora Márcia Carvalho de Abreu Fantini, do Laboratório de Cristalografia do Instituto de Física da USP, quando ela lhe contou que havia feito raio X de uma sílica nanoestruturada, que era muito bonita esteticamente porque lembrava um favo de mel com seus he xágonos perfeitos. Imediatamente o pesquisador - que seguiu os passos do seu bisavô, o médico mineiro Vital Brazil, um dos pioneiros nas pesquisas com soros antiofídicos, fundador e primeiro diretor do Instituto Butantan - lembrou de um es-
tudo realizado pelo Laboratório de Imunogenética há 20 anos com outro tipo de sílica, a coloidal, de forma gelatinosa. Ao injetar a sílica em altas concentrações nos camundongos verificou-se que os macrófagos, células do sistema imunológico responsáveis por destruir corpos estranhos, tiveram sua atividade bloqueada. Isso facilitou a resposta de defesa do organismo. Assim, o projeto com a nova sílica começou a tomar forma. Em setembro de 2004, o estudo foi apresentado por Márcia Fantini, responsável pela parte de caracterização física (avaliação estrutural) dos materiais no projeto, no Congresso de Química do Estado Sólido, realizado em Praga, na República Tcheca, onde teve muito boa acolhida por se tratar do primeiro estudo com uma nanoestrutura com potencial para ser usada como veículo de vacinas. No início de 2005, esses estudos foram apresentados pelo professor Osvaldo SanfAnna em um workshop realizado no Instituto Butantan. Na platéia estava a professora Regina Scivoleto, farmacologista aposentada da USP, que gostou muito dos resultados e se encarregou de fazer a ponte entre o Butantan e a Cristália, empresa sediada em Itapira, no interior de São Paulo. A parceria foi selada com um pedido de patente de-
positado em setembro de 2005. Nos próximos três anos deverão ser realizados os testes necessários para determinar a viabilidade da sílica nanoestruturada como adjuvante, o nome dado a substâncias que auxiliam o transporte dos antígenos. Os resultados dos testes realizados até agora correspondem às expectativas dos pesquisadores e da empresa. Misturada a antígenos, a sílica nanoestruturada foi testada na imunização de camundongos e comparada com as respostas aos mesmos antígenos misturados a outros adjuvantes conhecidos e usados em vacinas para que a resposta do organismo ocorra de maneira mais eficaz. "Se for injetada só uma suspensão de vírus ou bactérias atenuadas que compõem a vacina, sem nenhum adjuvante, ela pode funcionar ou não, porque existe uma reação rápida de metabolização da substância pelo organismo que elimina a função protetora do medicamento", diz SanfAnna. Nos estudos comparativos foram usados, além da sílica, o hidróxido de alumínio, o único transportador aprovado para imunização em humanos, além de adju-
O PROJETO Complexo imunogênico formado por antígenos vacinais encapsulados por sílica mesoporosa nanoestruturada MODALIDADE
Centro de Toxinologia Aplicada Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) COORDENADOR OSVALDO AUGUSTO SANTANNA
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Instituto Butantan INVESTIMENTO
R$150 mil (FAPESP) R$ 250 mil (Laboratório Cristália)
vantes oleosos utilizados em vacinação de animais, que são extremamente potentes, mas causam inflamações locais que podem levar a granulomas (massa de tecido cronicamente inflamado) e resultar até em feridas. A sílica teve uma ótima resposta nesse quesito, porque não provocou nenhuma reação cutânea nos camundongos. "Pelo que observamos, após a inoculação por via intramuscular fica um pequeno ponto duro, que desaparece depois de 24 horas", diz Osvaldo SanfAnna. ntígenos como veneno de cobracoral, albumina bovina e outros foram utilizados nos testes com camundongos. Com todos, a sílica funcionou como um excelente meio de transporte. "Ela tem propriedades que melhoram a eficácia da vacina. Com isso acreditamos que poderemos produzir imunidade com quantidade menor de antígeno", diz o médico neurofisiologista Eduardo Pagani, gerente de pesquisa clínica da Cristália. Isso significa que será possível imunizar o dobro ou o triplo de pessoas com a mesma quantidade de antígeno. Novos ensaios serão feitos com a sílica misturada à vacina da hepatite A, comercializada pela Cristália, para avaliar as respostas imune e inflamatória. "A vacina da hepatite A foi escolhida como modelo porque ela é eficaz e segura", diz Pagani. "Se funcionar com ela pode funcionar para muitas outras." Se os testes confirmarem o que já foi observado, a sílica pode também substituir os adjuvantes oleosos na imunização de cavalos para a produção de soros antiofídico e antitetânico. Os estudos de toxicidade, como são padronizados e caros, ficam a cargo da empresa, que contrata um centro especializado em toxicologia para realizar os testes. Só depois de terminada essa fase tem início a pesquisa clínica, que consiste em administrar o novo fármaco em seres humanos e observar os efeitos que provoca. •
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TECNOLOGIA ZOOTECNIA
Miniporcos no laboratório Pesquisadores brasileiros já contam com suínos de pequena estatura e baixo peso para experimentos científicos
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Minipig filhote: aos 8 meses tem 16 quilos, enquanto o convencional possui 70 quilos aos 4 meses
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ÂH os 8 meses de idade, os W porquinhos têm aproximadamente 47 centímetros de altura, 88 centímetros de comprimento e pesam 16 quilos, enquanto um membro da mesma espécie criado em granjas para abate já possui 70 quilos com 4 meses de vida. Essa diferença de tamanho foi conquistada há cerca de dois anos pela empresa paulista Minipig Pesquisa e Desenvolvimento. Ela passou a produzir o primeiro suíno brasileiro, com o nome de Minipig Br 1, que é selecionado especialmente para ter dimensões adequadas para uso em experimentos científicos em instituições de pesquisa. Devido à semelhança fisiológica, morfológica e bioquímica entre o suíno e o ser humano, o uso de porcos em pesquisas científicas para testes de medicamentos, por exemplo, não é nenhuma novidade. Na obra do médico belga Andreas Versalius, De humani corporis fabrica, de 1540, já consta a ilustração do porco sendo utilizado em experimentação, uma prática também realizada cerca de mil anos antes pelo médico grego Galeano. Mais próximos do homem que alguns primatas, eles têm o aparelho diges-
tivo, os pulmões e olhos muito parecidos com os dos humanos. O coração também tem características morfológicas idênticas às do homem, assim como sua pele. Aliás, o porco é o único animal que, afora o homem, fica com a pele rosada depois de exposição solar intensa. No entanto, tão antiga quanto o uso do suíno em pesquiM sas científicas é a dificuldade de manipular o animal de granja, que atinge 1 ano de idade com 250 quilos. Assim, alguns experimentos tornam-se inviáveis. A primeira tentativa de produzir suínos menores por meio de cruzamento e seleção aconteceu em 1949, no Instituto Homel da Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos. Desde então, foram desenvolvidas várias linhagens de minipigs, entre elas a Minnesota, a Yucatan, proveniente do sul do México, a Kangaroo Island, do sul da Austrália, a Goettingen, da Dinamarca, e a também norte-americana Sinclair. Entre 1960 e 2004 foram publicados nada menos que 3.640 trabalhos científicos utilizando miniporcos como modelo experimental, nos Estados Unidos, na Europa e na Ásia. Sociedade familiar - Na década de 1960, por meio da revista Scientific American, o médico veterinário Mário Mariano, então professor do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (USP), tomou conhecimento do trabalho dos pesquisadores de Minnesota, que tentavam reduzir o tamanho do suíno para utilizá-lo como modelo experimental. Ele conta que seu interesse em fazer uma experiência semelhante no Brasil partiu dali, mas, depois de algumas tentativas frustradas de realizar o projeto na academia, a idéia esfriou. Foi só em 1999, quando uniu sua experiência científica com os conhecimentos de seu irmão José Roberto Mariano em administração de empresas e desenvolvimento de projetos, e com a colaboração da funcionária Maria Benedita de Albuquerque Pereira, responsável pela manutenção e progressão dos cruzamentos, é que ele conseguiu concretizar a idéia do minipig. Iniciou-se então a seleção de porcos com pequena esta-
tura para procriação em sua propriedade localizada no município de Campina do Monte Alegre, na região oeste do estado de São Paulo. Antes de abrir a empresa a dupla fez ainda uma pesquisa de mercado para verificar a viabilidade econômica do projeto. oi uma luta muito grande, uma experiência de erro e acerto até chegar à estabilização do tamanho adequado nos animais", recorda Mário, atualmente professor afiliado do Departamento de Microbiologia, Imunologia e Parasitologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Depois de cinco anos de tentativas sem obter resultados positivos, ele pensava em desistir. Foi quando conseguiram um animal na fazenda que aos 9 meses de idade tinha apenas 50 centímetros de altura, aproximadamente. Quatro anos depois, os irmãos já estavam com o minipigBrl pronto para comercialização. O preço atual de cada animal é de R$ 800,00, fora o frete. Nos Estados Unidos, animais semelhantes custam entre US$ 900,00 e US$ 1.200,00. O porquinho brasileiro possui índices compatíveis com os desenvolvidos nas colônias de minipigàe. outros países. Aos 11 meses de idade, os animais machos atingem o peso máximo de 35 quilos e as fêmeas, 30 quilos. Desde que o minipig passou a ser produzido no Brasil, há dois anos, foram usados 110 animais para pesquisas científicas e 144 já estão vendidos para os laboratórios. Uma das primeiras experiências com o minipig no Brasil foi realizada na Faculdade de Odontologia, na unidade da USP de Bauru, que resultou em publicações em periódicos internacionais e uma tese de mestrado. Esses animais também foram usados em vários trabalhos de mestrado e doutorado da Unifesp. Só o grupo de Endoscopia Digestiva daquela universidade já realizou quatro estudos na área com o uso do minipig. Todos foram chefiados pelo professor Ângelo Paulo Ferrari Júnior. Um deles foi o tema do mestrado de Rodrigo Azevedo, com o título Modelo experimental de manometria e efeito do midazolam e propofol no esfíncter de Oddi de Minipig Brl. "A praticidade do pequeno porte do animal e a similaridade com
a anatomia do tubo digestivo do ser humano são as grandes vantagens da utilização deste modelo em estudos experimentais", diz Azevedo. Pesquisadores de outros centros, como o Instituto do Coração (InCor) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, do Instituto de Ciências Avançadas em Otorrinolaringologia (Icao) e da Faculdade de Veterinária da USP já usam ou solicitaram a aquisição de animais. Pequenas mães - Na seleção que resultou no minipig, os irmãos Mariano selecionaram as matrizes com características de serem "boas mães", pequenas e com baixo índice de gordura. Todas as matrizes e reprodutores selecionados não chegam aos 40 quilos. Mário enfatiza que a criação desses animais não segue as técnicas de produção industrial de suínos, que costuma mantê-los em gaiolas, mas segue os critérios de bemestar animal da Organização Mundial da Saúde (OMS). As matrizes parem em baias com cama de capim e os leitões desmamados são transferidos para áreas com piso de 80 centímetros de maravalha de pinho que auxilia na higienização do ambiente. Quando adultos, eles vão para baias abertas com piquetes gramados para o pastoreio. Os animais são vacinados contra seis tipos de doença e vermifugados para o controle de parasitos. Os dejetos, após tratamento, são utilizados para adubação da pastagem. A manutenção do animal, o transporte para os laboratórios e toda assistência médica nas áreas de anestesiologia, raios X, ultra-sonografia e cirurgia geral também foram facilitados devido a convênios da empresa com hospitais veterinários. A empresa produz e oferece a ração apropriada para os animais e até assistência na elaboração de projetos de pesquisa. "É bom lembrar que nós só disponibilizamos porcos para projetos científicos aprovados por uma comissão de ética", enfatiza José Roberto. O uso do suíno para a pesquisa é direcionado para áreas de investigação, como transplante de órgãos, toxicologia, testes préclínicos e outras. "O minipig é também um modelo ideal para a realização de testes pré-clínicos com novos medicamentos e para substituir os cachorros nos experimentos." • PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 77
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CAPA CIÊNCIA POLÍTICA
Pesquisas eleitorais, o mistério saboroso das eleições que faz mil falar por milhões CARLOS HAAG
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Tão inteligente quanto esperto, Leonel Brizola, numa de suas inúmeras campanhas, saía pelas ruas perguntando a cada passante se ele já fora entrevistado para uma pesquisa de opinião eleitoral. "Eu também nunca fui", asseverava o gaúcho após ouvir, quase sempre, um "não" do seu interlocutor. No mês passado, o candidato à Presidência Geraldo Alckmin igualmente preferiu desprezar os números ao classificar de "piada" os resultados de uma pesquisa que não lhe era favorável. "Eu só falo de coisa séria e isso é uma piada. Você leva isso a sério?", perguntou aos jornalistas que o acompanhavam. "A cada eleição se repete a controvérsia sobre o desempenho dos institutos de pesquisa durante a campanha eleitoral, questiona-se se os números afetam o voto etc. Isso ocorre pela diferença de ethos que move políticos, jornalistas e coordenadores de pesquisas sobre elas. Candidatos, por exemplo, tendem a desprezá-las quando o resultado não é bom e vice-versa", explica o cientista político Alberto Almeida, coordenador da FGV Opinião e autor do livro Como são feitas as pesquisas eleitorais e de opinião (Editora FGV) e que lança agora o estudo Por que Lula?. Afinal, dá para confiar em pesquisas eleitorais? Elementar, meus caros Brizola e Alckmin, responderia Sherlock Holmes, que, em O signo dos quatro, revela o curioso mecanismo que movimenta as sondagens eleitorais.
"Embora o homem individual seja um enigma insolúvel, o agregado humano representa uma certeza matemática. Nunca se pode predizer, por exemplo, o que fará um homem, mas é possível prever as atitudes de um certo número deles. Os indivíduos variam, mas as porcentagens permanecem constantes", já entendia, no século XIX, o detetive. "Lembro, quando criança, de ter assistido a um comício do Jânio Quadros na eleição presidencial de 1960. Foi a última cena de campanha do Brasil rural. O país acordou do pesadelo militar, 29 anos depois, para eleição de 1989, urbano e telemaníaco. As campanhas deslocaram-se dos palanques para os estúdios de televisão, governadas pelas pesquisas eleitorais, que, em tese, expressariam os caprichos da opinião pública, um milagre estatístico que faz mil pessoas falar por milhões", observa o jornalista Maurício Dias. "Desde a democratização, as pesquisas indicam erros e acertos nas táticas de campanha, redirecionam estratégias, incentivam desistências, forçam alianças, fornecem elementos para programas de governo e alteram a agenda de candidatos", analisa o sociólogo Antônio Teixeira Mendes, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). "Por tudo isso, elas não podem mais ser vistas como figurantes no cenário eleitoral. Os candidatos sofrem o impacto direto da'dança dos números': bons resultados em pesquisa significam apoio político, contribuições financeiras da área empresarial, talvez mais espaço na mídia. O oposto pode representar perda de aliados, pressões intrapartidárias,
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apatia, crise e até mesmo desistência." Ou na definição algo crua do ex-presidente norte-americano Richard Nixon: "Os agentes do serviço secreto protegem os candidatos contra os psicopatas e os pesquisadores de opinião os protegem contra os eleitores". Apesar de todo esse poder, as pesquisas são um mistério para os eleitores e mesmo para muitos jornalistas que, muitas vezes, interpretam erradamente o gingado numérico. "Na verdade, não se acredita em pesquisa porque se sabe como ela funciona, mas simplesmente porque funciona", lembra Mendes. E que não se duvide disso. A média de acerto dos quatro grandes institutos brasileiros de pesquisa (Ibope, Datafolha, Vox Populi e Sensus) está em padrões internacionais: considerando os números referentes às eleições presidenciais a partir de 1989, a média de acerto é superior a 90%. A democracia agradece essa precisão. "Afinal, as pesquisas criam fatos políticos, na medida em que reduzem o custo da informação do que está ocorrendo politicamente no país. Ela virou um fenômeno importante para os cidadãos, ajudandoos a decidir, a refletir e a julgar aqueles que se apresentavam recomendando, desejando ou pedindo seu voto", observa o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos. "Esses tipos de fatos criados pelas pesquisas são bem-vindos, porque são um ingrediente indispensável para tornar a democracia não apenas um bem coletivo, mas um bem barato tanto quanto possa ser", assevera o pesquisador. Há, no entanto, quem considere o instrumento como uma"espetacularização"das eleições, transformadas em "corrida de cavalos" da qual se exclui a discussão política séria. "Mesmo que isso fosse verdade, te-
mos que ponderar que essa conversão da política em esporte faz com que o público fique mais atento para o pleito e, nesse contexto, acabe se inteirando mais sobre plataformas de candidatos etc. Os eleitores ganham informação política com a divulgação e discussão das pesquisas pela mídia", diz Lydia Miljan, da Windsor University, do Canadá. Informação é um bem precioso. em, se concordamos que o ingrediente é indispensável, é preciso entender de que forma ele é usado na "cozinha" eleitoral. O primeiro mistério que ronda as pesquisas é a amostragem. Como poucos podem falar por tantos e, no final, tudo dar certo? "Tamanho não é documento", responde Alberto Almeida. A mania por pesquisas iniciouse em 1916, nos Estados Unidos, quando a revista The Literary Digestpassou a enviar milhões de questionários para todos os eleitores que conseguiu listar (também de olho em futuros assinantes) e acertou, com precisão razoável, os resultados da eleição presidencial daquele ano em diante. Em 1936 repetiram (e aumentaram: enviaram 20 milhões de questionários) a dose, com um conceito de pesquisa que consistia em atingir o maior número de pessoas possível. Um ano antes, mais modesto, George Gallup fundou o American Institute of Public Opinion, onde desenvolveu um método mais científico de pesquisa, baseado em amostragem. Para conquistar os jornais prometeu prever o ganhador da eleição de 1936, em que concorriam Franklin Roosevelt e Alf Landon.
A Digest, que enviara 20 milhões de questionários, afirmou que o último venceria o páreo. Gallup espalhou entrevistadores pela América, falou com 3 mil pessoas e apostou em Roosevelt, que venceu o concorrente por uma margem de 19 pontos. O que houve? A Digest enviara seus questionários para todos os donos de carro e telefones, parcela importante mas nada representativa do país como um todo. "De nada adianta realizar milhões de entrevistas se os entrevistados não forem representativos da população. É melhor realizar poucas entrevistas representativas", explica Almeida. Como fez Gallup, baseado na chamada amostra por cotas, o método adotado ainda hoje pelos institutos brasileiros de pesquisa. Nele, divide-se a população em subgrupos (homem e mulher, negro e branco, jovem e idoso etc.) e calcula-se o tamanho proporcional de cada um desses conjuntos. A partir disso, define-se o total de entrevistas a serem feitas, as quais serão divididas de acordo com as proporções encontradas para cada subgrupo. Quanto mais variáveis forem controladas na definição das cotas, melhor a representatividade da pesquisa, ou seja, o seu grau de similaridade com a população. O tamanho da amostra independe da população pesquisada. Esse sistema é barato, rápido e funcional. No Brasil, opta-se por um universo que gira em torno de 2 mil pessoas. Mas e a tal margem de erro? Engana-se quem pensa que se trata de embromação dos pesquisadores, uma
forma de se safar caso uma previsão não se confirme nas urnas. "Existe sempre uma chance de aqueles que foram incluídos na amostra não serem perfeitamente representativos da população toda. Assim, as estimativas estão sujeitas a diferenças entre os dados obtidos por meio da amostra e os da população pesquisada. Se estas diferenças forem aleatórias, são chamadas de erros amostrais, que podem ser calculados e controlados", esclarece Márcia Cavallari, diretora do Ibope. A margem de erro diz o quão perto a estatística da amostra cai ou está em relação ao parâmetro da população. Entra em campo o segundo ethos da pesquisa, como observado por Alberto Almeida, o da mídia. "Para os jornalistas, nada mais frustrante do que uma campanha eleitoral em que os índices de intenção de voto dos candidatos não se alterem. A mudança é notícia e a continuidade não é. Muitas vezes, um candidato subiu de 30 para 32% em duas pesquisas com margem de erro de três pontos e, pela estatística, não houve alteração. Para o ethos do jornalista, isso é impossível de ser aceito e, provavelmente, a manchete do seu veículo será que o candidato X subiu 2% na corrida eleitoral. A mídia prefere correr o risco de ficar com uma hipótese errada do que perder uma notícia", avisa Almeida. Para o coordenador de pesquisas, no terceiro ethos em cena, dáse o inverso. Ele prefere não descobrir que houve uma mudança na tendência de votos a aceitar uma hipótese errada que colocaria sua confiabilidade em questão.
Mas não basta saber escolher, é preciso saber perguntar. "As perguntas de um questionário são o centro de um projeto de pesquisas", assegura Márcia, que preconiza que elas sejam breves, objetivas, claras e num vocabulário acessível a qualquer eleitor. Há mesmo uma piada sobre isso. Um jovem monge foi advertido severamente por seu superior quando perguntou se poderia fumar enquanto rezava. Faça a pergunta diferente, sugeriu um amigo. Pergunte se você pode rezar enquanto fuma. "A formulação do questionário afeta os resultados de uma pesquisa e por isso, muitas vezes, os resultados podem ser fabricados de maneira sutil. É comum que a mídia não apresente as perguntas como foram feitas, mas apenas o seu resumo. O cidadão precisa ter cuidado com isso e sempre buscar saber a íntegra das questões", adverte Almeida. "A pesquisa é um excelente instrumento de marketing, desde que se tenha consciência de seu poder e de seus limites", adverte a diretora do Ibope. Afinal, por melhor que seja a pergunta, ela será feita por um humano. E errar é... Opiniões - "De nada vale ter uma amostra perfeita e um questionário sem falhas se os entrevistadores erram ou fraudam os questionários. Eles estão apenas colhendo informações e isso não lhes dá o direito de expor suas idéias ou contrapor opiniões. Uma equipe de campo bem treinada e profissional é elemento-chave do sucesso de qualquer instituto de pesquisa", avalia o pesquisador. Há regras para conduzir as entrevistas que incluem instruções como
nunca entrevistar pessoas acompanhadas por terceiros (a tendência é responder o que o acompanhante gostaria de ouvir), não se entrevistar mais de uma pessoa de um grupo, não importando se o grupo é formado por duas ou mais pessoas etc. A vida de entrevistador não é nada fácil. "Em 1998 fizemos uma pesquisa no Rio de Janeiro. Na Zona Sul, por exemplo, foi preciso trazer entrevistadoras com a 'cara' para que os passantes evitassem segregá-las, como fizeram com profissionais de fenótipo mais popular. Já na favela da Rocinha, fomos abordados por homens armados e os entrevistados respondiam a questões de olho neles, assustados", lembra Almeida. A modalidade do trabalho de campo, aliás, diferencia os institutos brasileiros. O Datafolha, criado em 1983, como um departamento de pesquisas do Grupo Folha da Manhã para realizar sondagens de opinião com "rigor técnico e agilidade", prefere pesquisar nas ruas. "Temos no nosso DNA o espírito do jornalismo. Além disso, hoje é difícil o acesso a condomínios de luxo e só se entra nas favelas após um acordo com o tráfico", observa Mauro Paulino, há 20 diretor-geral do Datafolha, que, a partir, de 1995, foi transformado numa unidade de negócios. O Vox Populi, por sua vez, só faz entrevistas a domicílio. "Isso aumenta a possibilidade de controle de fluxos no campo. A pesquisa ideal é aquela que dá a mesma chance de um integrante de um determinado universo ser incluído na amostragem", acredita Marcos Coimbra, diretor do instituto. Apesar da crença no instrumento de seu trabalho, o pesquisador tem ressalvas sobre o limite real das pesquisas. "Uma intenção de voto é apenas uma intenção de voto. Ainda não temos um número grande de
eleições para entender o padrão de comportamento do eleitor brasileiro. Em 506 anos de história, essa é a quinta eleição direta seguida no Brasil", lembra. Daí a "juventude" dos institutos de pesquisa. O pioneiro dentre eles, o Ibope, foi criado em 1942 por Auricélio Penteado, contrariado dono da rádio Kosmos, de São Paulo, que, diziam pesquisas apócrifas da época, era a emissora menos ouvida. Usando as técnicas desenvolvidas por Gallup, Penteado logo descobriu que o seu futuro não estava nas ondas do rádio (efetivamente a Kosmos era um desastre), mas na crista das pesquisas. O primeiro teste do novo instituto foi dos mais inusitados: Ary Barroso, vereador carioca, disputava com Carlos Lacerda qual seria o melhor lugar para edificar o futuro Maracanã. O compositor defendia um terreno no Derby Club e o "Corvo", a restinga de Jacarepaguá. O criador da Aquarela do Brasil sugeriu que o Ibope fizesse falar a voz popular e venceu a parada com 88% dos cariocas a seu lado. "A ação de Barroso colocou em suspenso a idéia de representação parlamentar, indicando, ainda que indiretamente, o fato de os representantes da população não se interessarem em conhecer a vontade daqueles que os haviam elegido. A grande maioria dos representados, evocados em discursos, mantinha-se restrita ao papel de eleitor/consumidor, devendo escolher os produtos políticos elaborados pelos produtores políticos", nota o historiador Áureo Busetto, da Universidade Estadual Paulista (Unesp). A democracia nacional crescia com pesquisas. Em 1953 veio o teste maior do Ibope, capaz de prever a vitória, em São Paulo, de Jânio Quadros. Como o eleito, o sucesso da pesquisa reviraria o Brasil pelo avesso. "Embora não fosse percebido pela maioria do eleitorado, o comprometimento entre órgãos e profissionais da imprensa era conhecido por grupos políticos e pelas elites intelectuais. Assim, as prévias eleitorais dadas pela imprensa, antes do Ibope, eram meras peças de propaganda partidária ou de candidaturas", conta Busetto. "O prognóstico preciso do Ibope foi um passo importante para a redenção e a qualificação da pesquisa de opinião pública na seara po82 ■ SETEMBRO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 127
lítico-eleitoral." A reação veio com o jeitinho brasileiro. Se antes os jornais escancaravam "certezas" duvidosas e que se contradiziam nas suas capas ("Fulano tem tantos por cento do eleitorado e vai ganhar de barbada"), depois do Ibope, foi preciso maior cuidado para agradar ao leitor. Inventaram-se institutos de fachada, como o Epil ou o Ipê, que "garantiam" precisão científica de resultados, embora o método continuasse o mesmo: estava na frente quem pagasse mais ou cuja vitória interessasse ao jornal. fetuamos duas pesquisas básicas com a finalidade de estabelecer as 'áreas de conhecimento e ignorância' do fato pesquisado (as eleições) e o estudo da opinião pública diante dos problemas que carecem de solução e os homens que seriam capazes de resolvê-los." Esse era o "método" adotado pelo Ipê, nas palavras de seu diretor. Era só o começo dos problemas do Ibope. Em 1954, na eleição estadual paulista, estavam polarizados Jânio e Adhemar de Barros e todos queriam acertar o desenlace do pleito. Mesmo a Rádio Record arriscou o seu palpite: JQ. E, por uma coincidência infeliz, foi a única a acertar. O Ibope dera a vitória a Adhemar (que perdeu por apenas 1%) e caiu nas mandíbulas dos jornais. "Se nos fosse dado usar uma gíria, diríamos que o Ibope está avacalhado", atacou o Diário da Noite, de Assis Chateaubriand, que temia a concorrência científica do instituto de Auricélio. Chegou mesmo a fazer uma série de reportagens com um vidente armênio, Sana-Khan, que profetizava coisas como "há três estrelas jupiterianas no destino de Jânio", forma de açodar o Ibope e colocar em questão a pesquisa eleitoral por amostragem ao afirmar que o sobrenatural estava mais bem equipado do que ele. Foi difícil recuperar a credibilidade da estatística eleitoral junto aos brasileiros para, em 1984, sofrer outro baque, desta vez com o Instituto Gallup. Jânio estava novamente em cena, desta vez enfrentando Fernando Henrique Cardoso. Para o Gallup havia um empate técnico. "A vontade política da mídia era a vitória de FHC e ela perdeu a aposta. Eles endoidaram o eleitorado", observa Marcus Figueiredo, do Iuperj. Os institutos
de pesquisa perceberam que era preciso cuidado com o andor e ainda mais com a imprensa, fechando-se mais na profissionalização para garantir a competitividade por competência. Seja como for, as pesquisas tinham chegado para ficar. "Desde o início dos anos 1980, as pesquisas políticas na América Latina têm se constituído num evento central ao processo de redemocratização", afirma o cientista político Fabián Echegaray, da Market Analisys Brasil. Elas foram, observa, um veículo-chave para checar a limpeza do voto e desencorajar a fraude eleitoral, uma prática comum até então em vários países da América Latina. "Em casos como os da Argentina e Venezuela, a divulgação das pesquisas chegou mesmo a impedir tentativas de golpe; elas também desmistificaram o discurso ditatorial sobre o exagerado preço a pagar pela volta de um regime eleito e civil; e deram espaço para o povo, enfim, expressar seus desejos e vê-los respeitados", analisa. Reaqan - Nem sempre porém. Foi baseado em pesquisas cujos supostos dados indicavam o desejo popular de romper com a Constituição que, em 1992, Fujimori deu um golpe de Estado no Peru. Durante a administração Reagan houve, conta Echegaray, também uma onda de pesquisas eleitorais fraudadas, patrocinadas pelo governo norte-americano para consolidar os interesses dos Estados Unidos em várias regiões. "Uma conseqüência direta deste mau uso das pesquisas foi a representação incorreta da verdadeira agenda política e um pobre conhecimento sobre quais eram os assuntos prioritários." Daí a pergunta inevitável: as pesquisas afetam o voto? "Sim. É racional que o cidadão considere a escolha de uma opção com mais chances de vitória e a possibilidade de um segundo turno. O curioso é que a divisão em turnos foi feita justamente para incentivar as pessoas a expressarem suas preferências reais, ao menos no primeiro turno. No Brasil, por vezes, antecipa-se o voto útil para esta fase, sem dúvida alimentada pela valorização das pesquisas eleitorais", acredita Alessandra Aldé, do Iuperj. Há mesmo jargões para indicar esse movimento: os efeitos bandwagon (literalmente o carro abre-alas de um circo
e indicativo do candidato com maiores chances de vencer e, logo, atrativo para a maioria que prefere seguir o movimento geral e apostar no vencedor) e underdog (o "pária", o candidato C, "lanterninha", em quem se vota para alavancar o B, que se deseja, e forçar a definição de uma eleição num segundo turno com o A, que não se quer). As pesquisas, então, empurrariam o eleitor para um lado ou outro e deveriam, por esta razão, ser submetidas a controles, como a proibição de sua divulgação num período de tempo anterior ao pleito (em vários países, elas são totalmente proibidas ou devem ser interrompidas várias semanas antes de uma eleição). "Um eleitor é submetido a um grande volume de informações sobre os candidatos, denúncias, feitos etc, e formará a imagem de cada um deles. Essas informações todas serão filtradas de acordo com as preferências, visões de mundo e simpatias dos eleitores. Uma das informações que pode (ou não) chegar ao eleitor é a pesquisa. Notese: é uma dentre um vasto universo", avalia Almeida. "A influência direta das pesquisas não é algo a ser suposto, mas provado. Afinal, o eleitor pode saber das pesquisas e duvidar da veracidade delas ou simplesmente desconhecê-las. Não é óbvio que pesquisas influenciem o voto e até hoje não houve uma pesquisa científica que provasse essa hipótese. Podese dizer que candidatos bem colocados nas pesquisas têm mais recursos, animam seus partidários etc, mas só isso." Para Almeida, o mesmo vale para a suposta manipulação de pesquisas feitas por institutos sérios e conhecidos. "Quando se levanta essa questão, é preciso gerar um dado público que comprove isso. Caso contrário, é mera suspeita, sem base científica." Teixeira Mendes concorda com o pesquisador. "A avaliação do público e o confronto com os resultados finais tornam a manipulação um suicídio mercadológico." Ele igualmente não vê possibilidade na determinação precisa do grau em que uma pesquisa afete a decisão de um votante, embora reconheça que ela tenha impactos na eleição. "Basta um candidato subir nas pesquisas para sofrer um bombardeio dos outros, que cessa assim que ele despenca nas intenções de voto." No bom sentido, o preço da liberdade democrática é a eterna vigilância: entenda a "dança dos números", mas não se afogue neles. •
ECONOMIA
Asas do
desejo Crise da Varig revela situação precária da aviação civil brasileira
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fuma curiosa ironia, no ano em que se celebra o feito centenário do brasileiro que primeiro conseguiu, a custo, arrancar um avião do solo, os aeroportos nacionais estão coalhados de aeronaves as mais modernas, que sobem aos céus com grande facilidade, mas estão presas ao chão por problemas econômicos. A questão chegou mesmo a tocar os brios pátrios. O próprio presidente Lula, que se recusa a "colocar dinheiro público lá", reconheceu que a empresa era "uma paixão nacional". A menção do jingle natalino "Estrela brasileira no céu azul/ Iluminando de Norte a Sul", que se encerrava com o famoso "Varig, Varig, Varig" arranca, hoje, lágrimas. O que teria levado a primeira empresa aérea brasileira, que chegou a figurar entre as 20 maiores companhias do mundo, com 87 aviões, 40 mil funcionários e 44 destinos no exterior ao estado atual de penúria, brigando para manter seus balcões de atendimento nos aeroportos? "Já se cogitou mesmo estatizar a empresa para, depois, privatizá-la. Mas a
Varig já vem sendo gerida na prática como uma estatal, de forma pouco transparente: por uma fundação que, na prática, atua como uma autarquia, com um processo lento de decisões, uma estrutura inchada de pessoal e mostrando, há anos, aparente despreocupação com resultados econômicos", avalia o engenheiro de transportes da Poli-USP Antônio Henriques de Araújo. De 2000 até hoje, a companhia já teve nove presidentes, nenhum com autonomia para tomar decisões efetivas. "A Varig fragmentou as linhas de comando dentro da empresa e para comprar, seja uma caneta, seja uma turbina, era preciso o aval de um semnúmero de funcionários", observa o pesquisador. No final de 2003, segundo Araújo, o número de funcionários por aeronave da companhia era mais do que o dobro da TAM ou da Gol, enquanto a produtividade total dos fatores da Varig era 86% da produtividade da TAM e 95% da VASP. Cada assento em um vôo costumava custar 30% a mais do que na concorrência. Varig, Varig, Varig... Ainda assim, era vista como a empresa brasileira por excelência, embora tivesse nascido, em 1927, por obra de um imigrante alemão, Otto Meyer, que, em Porto Alegre, ganhou isenção fiscal para
• V +"* !IIÍ! tocar o seu negócio aéreo pioneiro. Meyer juntou-se com um consórcio alemão, trouxe o avião Atlântico para o país e reuniu 550 outros filhos de imigrantes para constituir a primeira empresa de aviação comercial brasileira, a Varig. Já em 1931 mostrou sua faceta mais característica: a relação com o poder político. Em crise, recebeu apoio intenso do governo gaúcho, iniciando a afirmação da empresa como "instituição" a ser preservada. Em 1944, com a guerra, o tedesco Meyer cede o posto ao brasileiro Ruben Berta. Então, a Varig dividia o espaço aéreo interno com a Vasp, empresa criada em 1933 por empresários paulistas e estatizada pelo estado de São Paulo, e com a Panair, nome abrasileirado que foi impingido ao ramo nacional da Pan American Airlines. Símbolo - "Mas a Varig foi hábil no sentido de construir junto à sociedade brasileira uma imagem de empresa ligada aos interesses do país, um símbolo de modernidade, desenvolvimento e integração nacional, das regiões entre si, e do Brasil com o mundo", observa Cristiano Monteiro, da Universidade Cândido Mendes, autor da tese de doutorado A dinâmica política das reformas para o mercado na aviação comercial brasileira.
O pesquisador revela o trabalho de Berta em manter sempre em funcionamento a relação estreita do poder, pautada pelo clientelismo. "O Berta ajudou muito na campanha e eu gostaria que você olhasse com simpatia as pretensões da Varig, atendendo-a com boa vontade": foi nesse tom casual que Vargas pressionou seu ministro da Aeronáutica, Nero Moura, a ceder as rotas da América do Sul para a jovem companhia. Todos os presidentes, até FHC no seu segundo mandato, foram transportados pela Varig. Amigo de Goulart e Brizola, Berta não pensou duas vezes em se unir aos militares que tomavam o poder em 1964. Quando Costa e Silva decretou, por razões ainda obscuras, a falência da Panair, a Varig foi "convocada" a assumir as rotas internacionais dela, tornando-se a número um do país. "Para além de questões de eficiência e competitividade, a construção de empresa do país precisava sempre ser renovada simbolicamente", nota Monteiro. Daí o transporte das seleções de futebol, os favores aos políticos: em 1970 implementou-se uma linha entre Brasília e Porto Alegre, não por acaso com a presença do gaúcho Mediei e, durante o governo Collor, a criação de uma ligação
entre Maceió, terra do ex-presidente, e o Distrito Federal. "Esse é o reconhecimento extensivo ao nosso governo que, desde a salvadora Revolução de 1964, achava-se voltado para a inadiável obra de criar, no Brasil, condições para o desenvolvimento econômico acelerado", rezava o Relatório Anual de 1971 da companhia. Para o "Brasil Grande", uma "Varig Grande". "Se durante o período pré-64 vislumbravase a possibilidade de equiparar o transporte terrestre ao aéreo em termos de custos e propunha-se a oferecer preços populares, o paradigma da Varig pós-64 é outro", revela Monteiro. Os vôos feitos para Nova York tinham um Boeing 707 cuja metade de sua cabine era dedicada à primeira classe. O perfil do usuário desejável pela empresa era justamente o empresário rico, capaz de pagar bem por um serviço de luxo. Na relação com o poder, e isso não era privilégio da Varig apenas, incluía uma ligação direta entre as companhias privadas e o Ministério da Aeronáutica, baseada na Doutrina do Poder Aéreo Unificado. Economicamente, a aviação flutuava baseada em dois pilares concedidos pelo elo com a Aeronáutica: a "realidade tarifária" (ou seja, os passageiros devePESQUISAFAPESP127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 85
riam arcar com os custos do transporte, elitizando o setor) e a "competição controlada", que evitava a superposição de rotas e horários. Nesse contexto, a Varig saiu-se melhor do que as outras, pois ganhou o monopólio das linhas internacionais, prerrogativa perdida apenas no governo Collor. Com o anteparo militar, nem sequer tinham que se preocupar com as pressões trabalhistas, pois os líderes sindicais eram perseguidos pelo novo regime. Com a chegada da redemocratização, o mundo ideal da aviação comercial brasileira viu-se jogado na realidade. Aos poucos: num primeiro momento, as autoridades aeronáuticas viram-se esvaziadas de poder diante de seus colegas econômicos, para os quais o controle da inflação era uma prioridade e incluía um controle rígido sobre as tarifas aéreas. As turbulências maiores estavam por vir com a chegada ao Estado brasileiro das nuvens neoliberais, que preconizavam o fechamento dos mecanismos de interlocução entre atores estatais e não-estatais, fortalecendo um estilo "tecnocrático" de gestão da economia, como observa Mon-
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teiro. O primeiro impacto foi a privatização da Vasp e a entrada em campo de Wagner Canhedo, com um estilo agressivo de concorrência que assustou as concorrentes. Um ano depois, o empresário se veria enredado numa CPI, acusado de participar de um esquema de favorecimento com PC Farias. emia-se mesmo que se repetisse, no Brasil, a desregulamentação das companhias aéreas, efetivada nos Estados Unidos durante o governo Reagan. "No governo Collor, havia a retórica pró-mercado, que admitia o aumento da competição, mas, do ponto de vista prático, mantinha posturas conservadoras", lembra Monteiro. "Mas no primeiro mandato de FHC prevaleceu uma versão ortodoxa do estilo tecnocrático de gestão, não havendo espaço para mecanismos políticos formais de mediação entre agentes econômicos, sindicatos e Estado. Isso, infelizmente, num momento em que as empresas aéreas amadureciam e se esforçaram em criar vínculos fortes com seus trabalhadores, após anos de descaso", nota o pesquisador. Montei-
ro lembra que o setor foi objeto de pressão crescente do Executivo para diminuir suas tarifas sob pena de se abrir o mercado doméstico para empresas estrangeiras. Na "guerra de tarifas" houve benefícios: um aumento de 20% no fluxo de passageiros. "Mas eles duraram pouco, pois, a partir de 1999, como fim da paridade entre o real e o dólar, o setor entrou em crise profunda." Após décadas de relação com o poder, a Varig acreditava nele incondicionalmente. "A desvalorização da moeda afetou as finanças das empresas brasileiras e as receitas operacionais obtidas no período tiveram como contrapartida um aumento das despesas financeiras, gerando grandes prejuízos, já que recebiam em real, mas tinham dívidas (de leasing, juros de financiamento, pagamento de aviões e peças) em dólar", explica Araújo. Numa empresa bem administrada isso é um grande problema. O que se pode pensar no caso do "elefante branco" em que se transformara a Fundação Ruben Berta, inchada e ineficiente? "A Varig, nesse período, teve um crescimento de despesas financeiras de 642,2% diante de um aumento da receita operacional de 107,8% e dos custos operacionais de
139,2%." Ainda assim, a empresa seguiu montada num imaginário de crescimento, no espírito da "Varig grande". Mesmo sem a "realidade tarifária", política rompida com o congelamento de preços do Plano Cruzado, a empresa "tem que entrar com seu necessário gigantismo, que lhe exige crescimento constante, marca de líder latino-americana", como dizia um relatório interno da companhia. Novas aeronaves foram compradas, mesmo quando se tirou da empresa o monopólio das linhas internacionais. "A estrutura da empresa cresceu muito para um aumento de demanda que não se concretizou", avalia Monteiro. Smiles - O discurso muda e começam demissões e cortes. "Na busca de uma nova identidade, a Varig ainda preserva o lema da empresa a serviço do país', assumindo o lucro dos acionistas como prioridade em relação aos demais compromissos ufanistas com a nação, que ficam em último lugar." Mas a Nova Varig, integrada à Star Alliance e com um programa inovador de milhagens (o Smiles), embora tente se manter na linha de empresa global ligada ao mercado, não consegue manter os pés no chão
e continua a comprar novos aviões. Foram 39 entre 1997 e 1998, um investimento de US$ 2,7 bilhões, pouco antes da desvalorização drástica do real, que trouxe, de quebra, a diminuição da procura por viagens internacionais e a redução dos descontos nos vôos domésticos e redução geral do número de passageiros. "Curiosamente, os produtos voltados ao público de maior poder aquisitivo permaneceram, indo de encontro à lógica que, desde a década de 1970, animara a política de desregulamentação americana, qual seja, a popularização do transporte aéreo", avalia Monteiro. Nesse ínterim, chegam concorrentes que pensam com realismo, como a TAM, que optou pelas linhas domésticas, e, mais recentemente, a Gol. "Se persistir a situação atual de crise, pode-se prever, no curto prazo, a falência das companhias tradicionais brasileiras e deverão sobreviver apenas as de baixo custo, com o perfil da Gol." Para ele, seria melhor empregar os US$ 2,5 bilhões, que muitos exigem que o governo injete na Varig, na recuperação da malha viária e na eliminação dos gargalos portuários. "A solução para a empresa passa por soluções de mercado
e por uma reestruturação gerencial e operacional que possibilite a geração de lucros que possam ser reaplicados em programas de aumento de produtividade e eficiência. Uma coisa é certa: quem deve pagar por isso é a empresa e seus acionistas e não, mais uma vez, o contribuinte brasileiro." Sérgio Lazzarini, coordenador do Centro de Pesquisas em Estratégia do Instituto Brasileiro de Mercados de Capitais (Ibmec), concorda com Araújo. "Não há nada de estratégico no setor aéreo. Se uma rota é lucrativa, não há dúvida de que haverá gente interessada em investir no setor. Grandes empresas estrangeiras têm buscado oportunidades no Brasil, mas existem restrições para estrangeiros explorarem conexões e rotas domésticas." Heloísa Pires, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, lembra que somos um país continental com renda per capita baixa. "Dos 105 vôos do acordo entre Brasil e EUA, eles usam 93% da sua cota e nós, 47%. Não falta passageiro, mas avião. São empregos para outros países em prejuízo dos brasileiros." Se a praça é do povo, o céu precisa voltar a ser dos aviões. • CARLOS HAAG
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HUMANIDADES SOCIOLOGIA
Macho ensimesmado ? GONçALO JúNIOR
mulher urbana brasileira do século XXI fala de tudo: queixa-se do parceiro, reclama do direito ao prazer, de suas preferências sexuais e quer ter salário igual. E faz de tudo também: toma iniciativas no relacionamento, trabalha e sustenta sozinha sua família cada vez mais. Chega a dispensar pensão alimentícia, não se importa em dividir a conta do restaurante ou das despesas de casa - pelo contrário, exige isso às vezes. Tem sido assim em escala crescente nas últimas três décadas. Por outro lado, não abre mão da guarda dos filhos e de ser romântica - adora que lhe abra a porta, dêlhe a preferência no elevador etc. E o homem? Bom, este assiste ao avanço do sexo oposto com um nó na cabeça, em sua maioria. Ora parece intimidado, ora acuado. Admitir que é machista, jamais. Não são poucos os que partem para o confronto e tentam impor sua condição cultural de dominador. Falam alto, gritam, batem, matam. Faz tempo, são freqüentes violências física, sexual, psicológica ou moral. Ou, mais sutilmente, demarcam território, reivindicam seu papel de responsável pelo sustento da casa. Vive-se uma guerra não declarada dos sexos? Hoje não, sempre. A diferença talvez seja de que, pela primeira vez, os machos não sabem exatamente o que fazer, como se observa no dia-a-dia nos relacionamentos, no ambiente de trabalho, na cama. O problema está na dificuldade que ele tem para admitir que valores difundidos ao longo de mi88 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 127
lênios são cada vez mais questionados ou abandonados. Tão complexo quanto entender o surgimento de termos como metrossexual - homem vaidoso, com hábitos femininos - é conceituar o machismo ou dimensionar seu impacto negativo na vida social e econômica brasileira. O tema, por incrível que pareça, ainda é pouco estudado na universidade, embora as relações de desigualdade entre homens e mulheres tenham sido objeto de algumas teses de mestrado e doutorado na Universidade de São Paulo (USP), por exemplo. Rigor - Do ponto de vista histórico, o termo machismo está associado ao sistema social e familiar patriarcal ainda hoje difundido com rigor pela Bíblia, pelo Alcorão e por outros livros religiosos. Prega-se que, como vontade divina, o pai deve ser o líder da família sob todos os aspectos. Outro conceito comum é a crença de que os homens são superiores física e intelectualmente às mulheres. Alguns pesquisadores acham complicado falar em homens "acuados", uma vez que, no trabalho ou no lar, a violência contra a mulher não é novidade. Assim, a ascensão feminina não tem causado "reação" masculina ou um contra-ataque. "O conflito sempre existiu, a novidade, talvez, é que as mulheres vêm mais e mais conquistando e mantendo espaços em quantidade e qualidade", afirma Elizabeth Cardoso, que defendeu mestrado na Escola de Comunicações e Artes (ECA/ USP) sobre imprensa feminista brasileira pós-1975 e atualmente é doutoranda do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH/USP
- pesquisa as personagens femininas de Lúcio Cardoso. Para ela, no ambiente de trabalho, alguns homens continuam a usar "estratagemas torpes". Desde assédio sexual a desqualificação constante da mulher. A pesquisadora recomenda, porém, que não se caia em generalizações. "Sabemos que o ser humano é dotado de complexidade e que temos reações masculinas diversas perante a escalada feminina rumo à diretoria e à presidência das empresas e instituições." Mesmo assim, destaca como uma das principais mudanças motivadas pela ascensão da mulher no meio produtivo (fora do lar) a valorização do modo "feminino" de gerenciar, de administrar. "Fala-se muito da flexibilidade feminina, da capacidade de atuar em múltiplas tarefas simultaneamente, de diálogo, de lidar com o diferente, da humanidade que as mulheres imprimem em suas relações profissionais. Mas devemos frisar, até a exaustão, que todo esse discurso elogioso ao feminino não impede que as mulheres continuem tendo menores salários que os homens e que ocupem cargos de chefia com menos freqüência." Como observa Elizabeth, a independência econômica da mulher foi vista durante os anos 1970 e 1980 como o principal caminho para sua liberação social, sexual e cultural do controle masculino. Mas os séculos de poder patriarcal têm mostrado que suas raízes são profundas. Apesar disso, está forçando o homem a rever seus pontos de vista. "Talvez falte uma luta mais coletivizada, visto que as mulheres brigam em guerras individuais, cotidianas, silenciosas, conseqüência mesmo dos caminhos que o movimento feminista percorreu, mas
Embora o machismo ainda seja dominante, conquistas das mulheres intimidam cada vez mais os homens
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essas conquistas se sobrepõem e no acúmulo delas percebem-se melhoras para todas e todos". Maria de Fátima Cabral Barroso de Oliveira, em doutorado defendido na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), analisou as representações das mulheres em jornais canadenses na década de 1990. A hipótese central é que a mídia, através de um discurso que celebra a diversidade sexual, legitima e marginaliza identidades. Ela acredita que as "confusões" de sexos que apontam hoje têm a ver com papéis estabelecidos para os gêneros que às vezes contradizem a própria experiência do "ser" homem ou mulher. "Eu conheço homens que têm uma cabeça extremamente 'feminina' e vice-versa. E aí? O que acontece quando os homens não possuem aquelas qualidades tidas como 'masculinas', o mesmo ocorre com as mulheres?" O que ela percebeu foi que o mundo masculino é o "sério", "importante", o mundo dos negócios, da política. O das mulheres é mais "cor-de-rosa", sem muita importância. "A mídia solidifica a mulher como mãe, objeto sexual ou a profissional, que é mãe, esposa, jovem, magra e bela, ou seja, a supermulher, ou como a vítima, subordinada e subjugada ao mundo masculino. Assim, as homossexuais, as negras, as do Terceiro Mundo etc. são marginalizadas e/ou excluídas." O homem, no processo, é a norma, a regra, o modelo. "Acho que temos que escolher se vamos trabalhar dentro dos estereótipos estabelecidos, tais como mulher é feminina, mãe, a caça etc, valendo o mesmo para o homem; quais os atributos ou qualidades inerentes ao gênero 'masculino'?" Em seu doutorado na USP, Ellika Trindade investigou a perspectiva masculina dos temas paternidade, sexualidade e projetos de vida. Entrevistou somente homens. Apesar de eles não terem sido questionados quanto à ocupação crescente de espaço das mulheres, de modo geral, vêem a possibilidade de maior divisão de responsabilidades com elas, inclusive em questões financeiras, como algo benéfico e positivo para a relação e para eles mesmos, na medida em que as pressões também são divididas. Segundo ela, a crise que muitos homens 90 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 127
vivem na meia-idade não necessariamente tem relação com a "dominação econômica". Tem a ver mais com o lugar social ocupado pelos homens no trabalho e com o significado que este universo do trabalho tem para o sexo masculino. O ser macho - aquele que executa e comanda - pode ser vivido de modo crítico na medida em que a aposentadoria se aproxima e a consciência de que se está envelhecendo, com as perdas daí decorrentes, é pensada. "No universo dos entrevistados, a crise da meia-idade foi lembrada principalmente em relação ao contato com os filhos, com o perceber que estes estão ingressando no mundo adulto, e também ao universo do trabalho, a aproximação da aposentadoria." llika observa que, para alguns homens, conviver com mulheres no mundo do trabalho pode ser visto como motivo de temor ou de dificultador dos relacionamentos afetivos. No entanto, não se pode desconsiderar que a concorrência com outros homens, marca do mundo do trabalho, também pode ser motivo de temor. "O fato de as mulheres trabalharem fora pode ser visto como algo negativo se mantido o modo de pensar a educação como responsabilidade apenas da mãe." Outros atores sociais, porém, podem desempenhar esta função, inclusive o pai. O que ocorre então é que com a mulher que é mãe trabalhando faz-se necessário rever este modo de pensar e ampliar a perspectiva para outras pessoas que possam realizar a tarefa de educação dos filhos, desde membros da família até instituições educacionais. A evolução e as causas da participação feminina no mercado de trabalho brasileiro foram estudadas por Luiz Guilherme Scorzafave em seu doutorado na USP. Ele encontrou um "forte" aumento da participação feminina, principalmente daquelas com 1 a 11 anos de estudo, entre as cônjuges e as pertencentes de todos os grupos raciais. Observou também os principais determinantes da mulher e de sua evolução. Concluiu que a educação teve papel fundamental no crescimento das taxas de atividade feminina nos últimos anos no Brasil. Além deste fator, destacou a importância da
variável idade e da variável binaria associada a mulheres cônjuges. Scorzafave se concentrou na presença da mulher no comportamento da economia e menos nos aspectos comportamentais. Ele afirma que os estudos mais recentes demonstram que a diferença de salário entre homens e mulheres de mesma produtividade tem diminuído no Brasil. Um dos fatores que explicam isso - ainda não há consenso - seria a redução da discriminação contra o sexo feminino. Em especial nas gerações mais novas. Ele lembra que alguns teóricos argumentam que a contribuição maior da mulher na renda familiar aumenta seu poder de barganha na tomada de decisões dentro da família onde será gasto o dinheiro, quem vai trabalhar etc. Homens e mulheres vivem hoje transformações em todos os níveis sociais, mesmo que, num primeiro momento, não sejam percebidas de forma positiva. Ou boas para todos. Basta observar a posição de oprimidas das mulheres, dos negros e de outras minorias sociais durante séculos. É o que afirma Ana Maria Capitanio, autora da tese Mulher, gênero e esporte: a análise da autopercepção das desigualdades, da USP. Para a pesquisadora, com as conquistas femininas, a socialização dos homens tende a mudar também e a sensação de estranheza se torna evidente. Com o tempo, entretanto, as transformações tendem a se acomodar. E essa dinâmica não afeta um lado só. E os conceitos de masculino e feminino também sofrem mudanças. "Não pense que também não é (ou era?) estressante para o homem ter que corresponder às expectativas sociais como ser o provedor, ser o melhor, o mais forte, o mais competente, entre outros adjetivos exigidos pela sociedade ou até mesmo no contexto esportivo." Ana Maria diz que é tudo uma questão de socialização. Se as mulheres tomam iniciativas até mesmo de relacionamento, o que tradicionalmente foi um papel masculino, causará confusão na cabeça dos homens a depender de como ambos foram socializados. "O homem, grosso modo, pode 'achar' que mulheres mais independentes e que tomam a iniciativa são menos femininas, por exemplo. Dependerá de qual é o ideal de mulher que ele tem para si. E ela também terá que entender isso." Talvez, acrescen-
ta, ele se sinta ameaçado pelo fato de a mulher estar estudando mais, lutando pelos seus direitos, saindo de casa para trabalhar tanto para ganhar seu sustento e da família quanto por satisfação pessoal e tentando ter uma postura de igual com o homem. Um livro que poderia servir de contraponto para se compreender melhor o assunto no Brasil é Machismo invisível, da psicóloga mexicana Marina Castaneda, que acaba de ser lançado em português pela editora A Girafa. Basta ler algumas linhas, no entanto, para perceber que, apesar da opressão ser mais intensa contra as mexicanas, o problema ainda é grave entre os brasileiros. Por isso é uma obra que fascina e assusta. Em entrevista por telefone, Marina afirma que o machismo se manifesta de várias maneiras, nas situações mais triviais, sempre de forma sutil, o que dificulta sua percepção. "Não falo do que é evidente, mas das formas sutis que existem em todas as classes sociais."
Exemplos? Os maridos não impedem mais as esposas de trabalharem, só que exercem vigilância integral. Querem saber onde estão e cobram explicações o tempo todo. Observa ainda que a ira não é socialmente permitida à mulher, ao contrário do choro, do medo, do temor, da ternura. Se eles são corajosos, elas devem ser medrosas, numa relação de dependência estabelecida. No mercado de trabalho, não é diferente. "O machismo deixa as pessoas de ambos os sexos inaptas." Segundo ela, as mulheres avançaram sim em direitos, mas os homem não caminham em paralelo. Sexo - Marina identifica com clareza a gênese do machismo no cotidiano. Os homens passam toda a vida atendidos pelo sexo feminino e tendem a desenvolver uma personalidade infantilizada porque são cercados de devoção. Não aceitam críticas, não querem ser desobedecidos e acham que têm sempre razão. Na era da informática, todavia, a
força física não conta muito porque não há sentido dividir o trabalho assim. "As forças globais econômicas e sociais vão levar a um equilíbrio de papéis. Não creio que vão na direção do confronto de sexos, mas o machismo não é economicamente eficiente." A psicóloga lamenta que a sociedade tenda a reproduzir modelos estereotipados que não permitem aos homens demonstrarem sentimentos. Seria um problema de educação, de formação familiar. Meninos e meninas são orientados para serem completamente diferentes. Outra distorção aparece entre as mulheres que ascendem a postos de comando e se tornam machistas: como o homem, mostram-se autoritárias, despóticas. Justifica que essa é a forma de sobreviver. Ela acredita que os casais podem ser mais felizes com mais igualdades. "É muito melhor redistribuir papéis e serem aliados. Afinal, a vida já é tão difícil, por que não unir forças?" • PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 91
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HUMANIDADES LITERATURA
Tradição sem impasse Brasil perde um intelectual de verdade, à moda antiga: João Alexandre Barbosa
ransformou-se em lugar-comum chamar um professor universitário, seja ele ou ela quem for, de intelectual. A palavra perdeu o seu impacto e, em muitos casos, reduziu-se a sua literalidade léxica: alguém com intelecto, alguém que pensa sobre um assunto. Talvez, pela ausência de verdadeiros intelectuais, preferiu-se rebatizar os acadêmicos com o título, antes um privilégio de poucos e, hoje, de pouquíssimos. Pois acabamos de perder um desses "bichos em extinção": o professor João Alexandre Barbosa, morto no mês passado, aos 68 anos, em São Paulo, vítima de uma série de complicações renais que se seguiram a um AVC sofrido no início deste ano. "João Alexandre era intelectual de espécie bastante rara hoje. Estudioso da literatura, nunca se deixou deslumbrar pelas últimas teorias da moda. Em suas aulas e palestras assistia-se à transformação do conhecimento e da erudição em possibilidade de aprendizado e de apreciação de escritores", escreveu a professora de teoria literária Regina Zilberman, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. 92 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 127
Essa mágica é coisa de poucos magos. Como Antônio Cândido, por exemplo, seu orientador e responsável pela sua vinda para São Paulo, deixando Recife (onde nasceu em 1937), para ser assistente na Universidade de São Paulo (USP), logo após o golpe de 1964. Eis os intelectuais, de verdade, capazes de reler e redescobrir, sem alardes e modismos, o que se esconde por detrás das grandes obras literárias. Capazes de pensar o país e entender suas sutilezas. Capazes de pensar grande, mesmo que escrevendo de maneira humilde, acessível, gentil. João Alexandre começou como advogado, formado na Faculdade de Direito do Recife, mas não exerceu a profissão. Preferiu aventurar-se pelo jornalismo literário, escrevendo no Jornal do Commercio de Pernambuco. A paixão pelo texto levou-o a integrar a equipe docente fundadora do curso de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco. Lá, convidado por Luiz Beltrão, desenvolveu mais uma das virtudes de um intelectual de verdade: a capacidade de ensinar com prazer e amar o que fazia. Anos mais tarde, como contou num texto para a Folha de S.Paulo, já aposentado, foi procurado por um ex-aluno que lhe oferecia um posto numa universidade particular e um salário que era o
dobro da aposentadoria que recebia da USP. Rejeitou. "Eu não queria ser viciado num salário que não fosse resultante do trabalho que, durante mais de 30 anos, consumira minha vida física, intelectual, afetiva e emocional, pois não me aposentara para ganhar mais, e sim para poder aproveitar aquilo que, porventura, ainda me restava de vida intelectual útil, realizando algumas coisas que a agitação da vida de um professor tornava difícil ou mesmo impossível de cumprir." Ah, sim. Grandeza é outro atributo dos reais intelectuais. Não parou de lecionar por três décadas. Iniciou a carreira em 1963, em Recife, em 1965 estava na turma que formava a Universidade de Brasília. A coisa durou pouco. No mesmo ano, ao lado de 200 colegas, foi expulso da faculdade pelo regime militar. Daí a boa vontade com que aceitou o convite de Cândido para a USP, onde chegou em 1966. "Mas eu não era um orientando comum, não. Já era bem madurinho e sabia me virar", brincava ao lembrar de seu doutorado, concluído em 1970 (com bolsa da FAPESP, que também lhe concederia a oportunidade de um pós-doutoramento na Universidade Yale, nos Estados Unidos). Suas releituras sobre José Veríssimo, retomadas em 1975 em A tradição
do impasse, foram fundamentais para que se repensasse a visão da história da literatura brasileira. Um ano antes, assumiu a cadeira de teoria literária. Gostava de contar que a bolsa da FAPESP o ajudara a sustentar não apenas o intelecto, mas uma família de quatro pessoas. Em 1980 era professor titular de teoria literária e literatura comparada da USP, onde excerceu diversos cargos. O mais notável deles foi a presidência da Editora da Universidade de São Paulo (Edusp), de 1988 até sua aposentadoria, em 1993, aos 56 anos. Fez da Edusp um marco editorial. "Quando eu assumi, a Edusp era uma co-editora e se limitava a emprestar o selo e o prestígio da USP para editoras privadas ganharem dinheiro", contou numa entrevista. Democrata empedernido, só aceitou ser diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da universidade paulista após ser eleito pelos três corpos acadêmicos. Daí a sua negativa em se candidatar a reitor se não fosse por eleição direta, ainda que as pesquisas o indicassem como favorito. "Não tenho paciência para essas coisas", dizia. Preferia ações concretas à política dos gabinetes e saiu da FFLCH para assumir a pró-reitoria de Cultura e Extensão Universitária, onde criou projetos referen-
João Alexandre no escritório: um mestre das releituras
ciais como o Nascente, o Universidade Aberta à Terceira Idade e o Cinusp, bem como a reorganização da Comissão de Patrimônio Cultural da USP. O Nascente, o mais notável dentre eles, nasceu de sua vontade pessoal. Nascente - Procurado por Jucá Kfouri, da Editora Abril, que buscava um projeto para patrocinar, Barbosa reuniu a oferta com a demanda. Poucos dias antes de se encontrar com Kfouri, um aluno se queixara da dificuldade de encontrar espaços para apresentar seus talentos artísticos. A costura feita resultou no Nascente. Quando se aposentou, a Abril quis encerrar a parceria, mas a insistência de Barbosa manteve o projeto funcionando e revelando gente como Fernando Bonassi ou José Roberto Torero. A primeira edição do prêmio arrancou uma declaração forte de Chico Buarque: "Se houvesse projetos assim quando eu estava na FAU, jamais teria saído da faculdade". Depois de deixar a USP, escreveu ainda mais quatro livros: Biblioteca imaginária, Entrelivros, Alguma crítica e João Cabral de Melo Neto, da série Folha
Explica. O poeta, aliás, foi a grande descoberta e paixão de João Alexandre, desde a mocidade, quando todos preferiam a riqueza exuberante do texto de Gilberto Freyre à secura de João Cabral, que teve em Barbosa um dos seus maiores intérpretes. Deixou um livro inédito sobre outra de suas paixões, o francês Paul Valéry, que deve ser publicado pela Editora Iluminuras. "Ele fará falta para a literatura e a cultura brasileiras", diz Davi Arrigucci Jr., professor de teoria literária da USP. "Foi um pesquisador exemplar da teoria e da história da crítica literária do Brasil, assim como da poesia moderna e contemporânea: dedicou estudos de qualidade aos poetas modernistas, a João Cabral, aos concretistas, a Sebastião Uchoa Leite e a muitos outros mais. Foi ótimo professor de literatura, cujo estudo motivava com voz calorosa e entusiasmo; seus ensaios críticos dão a medida de suas leituras. Cuidou do livro como objeto cultural e estético; sua gestão na Edusp o comprova. Acima de tudo, porém, lamento a ausência do amigo, de quem sinto pessoalmente a falta." Com seu jeito manso, bem-humorado, sempre de cachimbo na boca, ensinando de modo fácil a literatura mais difícil, João Alexandre era um intelectual. Restam poucos. • PESQUISA FAPESP 127 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ 93
Resenha
Sutis atmosferas brasileiras MARILUCE MOURA
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á alguma coisa de profundamente tocante em todos os Brasis que o olhar fotográfico de Cristiano Mascaro, esse reconhecido fotógrafo/arquiteto, apresenta ao leitor - talvez melhor fosse dizer ao apreciador ou ao voyeur- em Cidades reveladas, seu belíssimo livro recém-lançado. Uma certa atmosfera, um clima cheio de delicadeza, parece propor uma viagem, uma passagem para um tempo muito anterior/interior, quem sabe um além do tempo estrito, ainda que todas as suas imagens tenham sido colhidas num período bem definido, entre os anos de 2000 e 2006. Nesse clima singular, transtemporal, de que as fotografias são investidas com as infinitas gradações entre o preto e o branco, ele é capaz de sugerir a mais íntima ligação entre uma minúscula casa precária, que parece traçada com a inteira pureza de linhas infantis, perdida no meio do mato em Gararu, Sergipe, e a paisagem urbana de um fim de tarde chuvoso (ou seria um amanhecer?) na Ladeira General Carneiro, no centro da maior cidade do país, São Paulo {foto ao lado). Pelo olhar de Cristiano Mascaro, o Brasil mais nitidamente urbano e industrial está fortemente aderido ao país singelo da arquitetura popular de formas muito simples; o país barroco e colonial cimenta-se às construções do Império e às audácias das construções modernistas. A força de arcos, a solidez de grossas colunas, ganham um halo poético insuspeitado. Assim ele transita por diferenças e contradições, ligando tudo com um fio sutil por meio do qual nos conduz para o que sabe que pode revelar-se de uma atitude verdadeiramente "drástica e intuitiva" na fotografia, em suas próprias palavras. Com essa unidade essencial, o livro está dividido em cinco partes: Forma, Composição, Luz e Sombra, Arquitetura, Cidades, cada uma delas aberta pelo texto de um artista plástico ou arquiteto, todos eles ligados como aluno ou professor, em algum momento passado ou ainda, à respeitada Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Assim, Renina Katz fala de forma, Maria Bonomi de composição, Sérgio Fingermann de luz e sombra, Benedito Lima de Toledo de arquitetura e Carlos Lemos de cidades. Há ainda no livro um pequeno e precioso
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Cidades reveladas Cristiano Mascaro
texto do arquiteto Paulo Mendes da Rocha, um artigo do diplomata e crítico André Corrêa do Lago e um texto do próprio autor, além da orelha assinada pelo poeta Ferreira Gullar. Cristiano Mascaro, fiel ainda às máquinas analógicas, explica nas páginas finais do livro que descobriu a fotografia e suas possibilidades estudando arquitetura. "Ao folhear alguns livros entre tantos outros existentes na biblioteca da faculdade, bati os olhos, casualmente, em Images à Ia sauvette, uma das primeiras edições do trabalho de Henri Cartier-Bresson." E daí emergiu um mais que justificado deslumbramento: "Jamais vou esquecer meu espanto diante daquelas imagens. (...) aquelas cenas eram tão bem estruturadas, captadas em momentos tão expressivos e todos seus elementos ocupavam lugares tão bem definidos nos espaços onde se encontravam, que eu imaginei que tudo aquilo tinha algo a ver com arquitetura" (pp. 175-176). Faz todo sentido: veja-se a junção extraordinária que disso ele realiza na foto do Museu de Arte Contemporânea de Niterói (p. 49), ou das ruínas da Igreja Matriz de São Matias, em Alcântara (p. 37). Veja-se a eloqüência magistral da relação homem/espaço, arquitetura/homem, em fotos de composição e iluminação deslumbrantes feitas em Porto Alegre, no Clube do Comércio, e em Belém, no Palácio dos Governadores (pp. 94-95 e 96-97). São apenas exemplos, porque é difícil dizer o que mais causa impacto, sacode nossa sensibilidade, nesse mar de imagens de infinita beleza. Ainda bem que Cristiano Mascaro declara sua fé na capacidade transfiguradora do olhar. E explica que fotografa as cidades brasileiras "certo de que elas são as mais relevantes testemunhas das transformações do país, o cenário mais amplo e diversificado por onde se manifesta o brasileiro. Enfim, o retrato mais fiel de nosso caráter" (p. 179). Nas palavras de saudação que dirige ao autor dentro do próprio livro, Paulo Mendes da Rocha diz: "A minha idéia é que a fotografia - a sua sempre - de modo muito comovente fixa para ver o invisível. Para dizer o indizível" (p. 181). É isso: há uma atmosfera das cidades brasileiras que continuaria invisível sem Cristiano Mascaro.
BE7 Editora 192 páginas R$ 120,00
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Ficção
ATA 387 ANTONIO PRATA
os três dias do mês de setembro de dois mil e seis, às vinte horas e trinta e dois minutos, na sala S-48, sede do Centro Acadêmico Dezoito ^^^* Brumário, da Faculdade de Ciências Sociais, de acordo com o disposto no artigo 8o do estatuto do regimento interno do órgão supracitado, os membros se reuniram extraordinariamente com a seguinte pauta: decidir o destino das verbas angariadas no evento intitulado "Chopada dos Bichos", no valor de mil e noventa e três reais e setenta e três centavos. Compareceram o diretor-geral do C.A., Augusto de Oliveira (Cabeleira), o diretor administrativo Robson S. Torres (Rob Marley), o diretor de comunicação Felipe Cuglioni (Lipão) e a diretora financeira Olívia Ramos (Lilica). Marcos Azambuja (Bujones), diretor de programação, não apareceu para o início da reunião. Havendo número regimental, o diretor-geral Cabeleira iniciou os trabalhos apresentando aos demais presentes a lista de possíveis investimentos para a verba arrecadada, elaborada na última reunião ordinária, no último dia trinta, a saber: 1) Uma mesa de pebolim para o CA. 2) Um novo computador para o CA. 3) Reforma do sofá do CA. O diretor-geral Cabeleira propôs o voto direto para decidir-se a questão. Neste ponto, o diretor administrativo Rob Marley pediu a palavra para um aparte. Aparte aceito, Rob Marley objetou que, não estando presente à reunião do dia trinta do mês último, quando foi elaborada a lista, não poderia reconhecê-la como legítima, sendo o pebolim, o computador e a reforma do sofá alternativas autoritariamente impostas de cima para baixo, reproduzindo o sistema opressor que eles mesmos diziam combater, qual seja: o oligopólio neoliberal escamoteado como democracia. A diretora financeira Lilica lembrou o diretor ad96 ■ SETEMBRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 127
ministrativo Rob Marley do regulamento seis, inciso quatro, do estatuto do Centro Acadêmico, que estabelecia que, mesmo na ausência de algum dos membros, havendo quorum de 75%, as votações eram válidas. Lembrouo ainda que, quando da votação, o diretor administrativo havia sido visto saindo do almoxarifado com uma primeiranista de psicologia, atitude que, embora não condenada pelo estatuto do Centro Acadêmico, merecia no mínimo uma admoestação verbal. O diretor administrativo Rob Marley argumentou que não tinha vergonha de seus atos e que bastava ler Reich ou Marcuse para saber que a revolução decorrerá de ações como as por ele praticadas no almoxarifado, não da burocracia cinzenta das altas esferas do poder, sendo aplaudido entusiasticamente pelo diretor de comunicação Lipão. A diretora financeira Lilica ameaçou sair da sala, mas foi dissuadida pelo diretor-geral Cabeleira, que insistiu na importância de sua presença, dada a natureza do tema serem exatamente as finanças. Acalmados os ânimos, foi pedido ao diretor de comunicação Lipão que preparasse as cédulas. Neste ínterim, o diretor administrativo Rob Marley pediu a palavra e levantou a questão do efeito estufa, do aquecimento global e do degelo das calotas, propondo que, a longo prazo, o CA. Dezoito Brumário se engajasse mais na questão ecológica. Sugeriu, porém, a curtíssimo prazo — tendo em vista a boa hidratação de todos os presentes - que se comprassem algumas cervejas. A proposta foi aceita por unanimidade. A diretora financeira Lilica disse que não iria ser ela a comprar as cervejas, posto que nas últimas duas reuniões havia sido encarregada de tal função. Sublinhou ainda que poderia haver sob tal insistência um fundo de machismo dos membros do CA. O diretor-geral Cabeleira ofereceu-se para buscar
as cervejas, mas lembrou-a de que de machismo ele não poderia ser acusado, sendo a prova cabal de sua idoneidade o tema de seu trabalho de iniciação científica: Margaret Mead e a questão do masculino e do feminino nas sociedades primitivas. A diretora financeira Lilica declarou nada saber a respeito da iniciação científica do colega e pediu mais informações, mas o diretor-geral Cabeleira disse que preferia ater-se à pauta do dia. Antes de sair, percebendo certa animosidade no recinto, sugeriu que o diretor administrativo Rob Marley preparasse um cigarro de maconha. Ficou acertado que o dinheiro para as cervejas seria abatido do total arrecadado, na qualidade de "custos adicionais", e que o diretor administrativo Rob Marley seria ressarcido do fumo ali consumido. Tendo o diretor-geral Cabeleira voltado com as cervejas e vendo que as cédulas estavam prontas, decidiu abrir a votação. O diretor de comunicação Lipão observou que o cigarro de maconha também estava pronto e que colocar o trabalho antes do lazer era uma imposição burguesa às classes trabalhadoras, citando um ou outro trecho de Foucault e propondo, destarte, que fumassem o baseado. Foi bastante aplaudido. Findos os trabalhos canabino-revolucionários, adentrou o recinto o diretor de programação Bujones, tocando ao violão a canção Viva a sociedade alternativa! (de autoria do músico baiano Raul Seixas), acompanhado por três intercambistas bolivianos, munidos de flautas de bambu. Após a execução da música, Bujones cumprimentou a todos os presentes e convocou-os para a cervejada do CA. de psicologia. O diretor administrativo Rob Marley defendeu a idéia com eloqüência e, citando Maquiavel, argumentou que a união dos C.As. era fundamental e que a separação entre eles era justamente o
projeto de dominação da reitoria. A diretora financeira Lilica afirmou saber exatamente o tipo de união que ele buscava no CA. de psicologia. O diretor de programação Bujones e os três bolivianos deram início à execução da canção Volver a los 17, de Violeta Parra. Projetando a voz, o diretor-geral Cabeleira propôs que se encerrassem os trabalhos. A diretora financeira Lilica fez o uso da palavra para protestar contra o que chamou de furdunço engajado e deixou claro que se o CA. Dezoito Brumário continuasse com tamanha propensão para a esbórnia, ela sairia da chapa. O diretor administrativo Rob Marley aproveitou a deixa para encorajar a colega a assim proceder, pois suas posturas pequeno-burguesas não condiziam com a postura revolucionária do grupo. Dada a agressividade do diretor administrativo, a diretora financeira decidiu responder à altura e, arrancando a flauta de bambu da mão de um dos intercambistas bolivianos, deu com a mesma na cabeça do diretor de administração, que, ao cair no chão, bateu com a cabeça na máquina de escrever e derramou no carpete considerável quantidade de sangue. Diante da conjuntura adversa, o diretor-geral Cabeleira achou por bem encerrar os trabalhos e dirigirem-se todos à Santa Casa de Misericórdia — sem votação. Tendo todos os membros deixado às pressas o recinto, às vinte e uma horas e quarenta e nove minutos da data mencionada anteriormente, encerrou-se, sem conclusão sobre a pauta, na sala S-48, a reunião de número 387 do Centro Acadêmico Dezoito Brumário. Sem mais, Buzunfa (estagiário).
é escritor, autor dos livros Douglas e outras histórias, As pernas da tia Corália e O inferno atrás da pia.
ANTôNIO PRATA
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