Alzheimer

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VENDA PROIBIDA

ASSINANTE

Nº 153 ■

EXEMPLAR DE

Novembro 2008

Novembro 2008 Nº 153

PESQUISA FAPESP

Alzheimer BRASILEIROS IDENTIFICAM ÁREA DO CÉREBRO ONDE SURGEM AS PRIMEIRAS LESÕES DA DOENÇA >> ESPECIAL EXPOSIÇÃO

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IMAGEM DO MÊS

Línguas

de fogo

NASA

Uma das duas sondas gêmeas Stereo (sigla em inglês para Observatório das Relações Sol-Terra), da Nasa, registrou no dia 29 de setembro uma espetacular descarga de plasma erguendo-se na superfície do Sol. O gás ionizado formou durante várias horas uma estrutura, controlada por forças magnéticas, que tinha tamanho várias vezes superior ao da Terra. Curiosamente, a temperatura dos jatos de plasma, na casa dos 60 mil graus Celsius, era relativamente fria para os padrões do Sol, cuja coroa atinge 2 milhões de graus Celsius.

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EDUARDO CESAR

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> CAPA

CAPA

> ENTREVISTA

NICOLAS ROUGIER

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> POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

16 Equipe de brasileiros

e alemães identifica região cerebral em que surgem as primeiras lesões da doença de Alzheimer

10 Não haverá solução

enquanto a sociedade for condescendente com as ações contra o meio ambiente, diz o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso > ESPECIAL I 53 EINSTEIN

O Universo além da física

28 NOBEL

Os laureados de 2008 do maior prêmio da ciência e o brasileiro que ganhou o Ig Nobel

34 DIFUSÃO

Com apoio, equipes brasileiras ganham mais medalhas nas olimpíadas científicas internacionais

> CIÊNCIA 32 FOMENTO

FAPs de sete estados se articulam para criar rede de pesquisa sobre a malária 33 UNIVERSIDADES

São Paulo investe em universidade virtual para garantir formação a professores

42 GENÉTICA

Linhagem brasileira de células-tronco embrionárias humanas abre caminho para novas pesquisas em busca de terapia contra doenças

> SEÇÕES 3 IMAGEM DO MÊS 6 CARTAS 7 CARTA DO EDITOR 8 MEMÓRIA 22 ESTRATÉGIAS 38 LABORATÓRIO 78 SCIELO NOTÍCIAS .............................

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> POLÍTICA C&T

> CIÊNCIA

> TECNOLOGIA

> HUMANIDADES

WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR

REPRODUÇÃO

> EDITORIAS

MARTELLI FILHO

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REPRODUÇÃO

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48 BIOLOGIA CELULAR

Agente causador da malária se desenvolve na pele antes de invadir células sangüíneas 69 IMUNOLOGIA

Grupo brasileiro obtém primeiro soro contra veneno de abelhas 72 AMBIENTE

Trechos isolados de Mata Atlântica abrigam menos espécies de plantas e de animais

76 FÍSICA

Simulações em computador explicam como nanotubos detectam gases tóxicos em baixíssimas concentrações

> TECNOLOGIA 84 SEMICONDUTORES

Centro de Materiais Cerâmicos vai desenvolver memórias ferroelétricas para fábrica de chips em São Carlos

88 BIOENERGIA

Diesel de cana vai ser produzido por meio de transformações genéticas em leveduras 90 Novos catalisadores

podem tornar a produção de biodiesel mais eficiente e limpa 92 NANOTECNOLOGIA

Orbys cria composto de borracha natural e argila para uso industrial

......................... 80 LINHA DE PRODUÇÃO 110 RESENHA 111 LIVROS 112 FICÇÃO 114 CLASSIFICADOS

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> HUMANIDADES 96 CIÊNCIA POLÍTICA

Estudo mede o grau de confiança dos brasileiros nas instituições democráticas 102 ARTE

O mestre Aleijadinho, se é que existiu, serviu a muitas ideologias 106 SOCIOLOGIA

José de Souza Martins mostra como a fotografia é um recurso menosprezado por cientistas sociais

CAPA MAYUMI OKUYAMA ILUSTRAÇÃO © IMAGES.COM/CORBIS

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CARTAS cartas@fapesp.br

As reportagens de Pesquisa FAPESP mostram a construção do conhecimento essencial ao desenvolvimento do país. Acompanhe essa evolução. ■

Para anunciar Ligue para: (11) 3838-4008

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Edições anteriores

Greice Munhoz São Paulo, SP

Site da revista

Célula-tronco

No endereço eletrônico www.revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP na íntegra e um arquivo com todas as edições da revista, incluindo os suplementos especiais. No site também estão disponíveis asreportagens em inglês e espanhol.

Gostaria de parabenizar e agradecer o esforço de Lygia da Veiga Pereira e sua equipe (“Células-tronco made in Brazil”, edição 152). Certamente trará inúmeros benefícios para inúmeras pessoas. No meu caso, que tenho câncer de pele, fiquei feliz em saber da possibilidade da produção desse tecido.

Opiniões ou sugestões

MIGUEL BOYAYAN ■

De fato, até no Twitter, ferramenta de microblog que já conquistou milhares de pessoas na internet, o Large Hadron Collider (LHC) foi motivo de piadas e dos mais variados comentários no dia do primeiro experimento (“O LHC é pop”, edição 152). O “fim do mundo” foi o mote mais presente nas conversas quase infinitas entre “twitteiros” de plantão. E se isso incomoda os cientistas, fico com a opinião do físico Roberto Salmeron sobre a necessidade de aproximação entre a academia e os leigos, já que o Cern é de interesse de toda a sociedade, ainda que a maioria desconheça os detalhes de seu desenvolvimento nessas quase duas décadas. Parabéns à revista Pesquisa FAPESP por fazer a contraposição dessas duas realidades.

Preço atual de capa da revista acrescido do valor de postagem. Envie e-mail para rute@fapesp.br ou ligue (11) 3838-4304

Envie cartas para a redação de Pesquisa FAPESP Rua Pio XI, 1.500 São Paulo, SP 05468-901 pelo fax (11) 3838-4181 ou pelo e-mail: cartas@fapesp.br

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LHC

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Rosely Gomes Costa CPqD Campinas, SP

Natureza A relação que existe na transição da água do meio ambiente e as plantas reflete sua importância na manutenção da umidade local e preservação de organismos microscópicos que por sua vez, dentro de um contexto ecológico dinâmico, inicializam processos de ciclagem de diferentes materiais que provocarão alterações importantes

melhorando a qualidade de vida de diferentes espécies regionais (“Pelas folhas e raízes”, edição 151). Essas informações específicas sobre a estrutura de funcionamento hídrico das plantas estimulam projetos de preservação de matas em diferentes áreas do Brasil e do mundo, onde se buscam parcerias com donos de terras que recebem incentivos financeiros para preservarem áreas de matas em suas propriedades com o intuito de melhorar a qualidade de vida da região e preservação das águas de altitude, por exemplo. Marte Ferreira da Silva Atibaia, SP

Fogões menos poluidores Me formei recentemente em engenharia agronômica na Escola Superior de Agricultura Luiz Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq/USP) e sou um leitor assíduo de Pesquisa FAPESP. Na edição 151, fiquei muito interessado ao ler a reportagem “Fogo limpo” e ver as tecnologias de mecanismo de desenvolvimento limpo (MDL) assim como no trabalho que o brasileiro Eduardo Ferreira vem desenvolvendo em comunidades pobres do Sudeste da Ásia. Matheus Bayer Gonçalves Piracicaba, SP

Correção O professor Antônio José Felix de Carvalho, da Universidade Federal de São Carlos, é também um dos coordenadores, com o professor Luiz Antônio Pessan, nas pesquisas que resultaram em duas patentes noticiadas na nota “Patentes nanométricas”, da seção Linha de Produção (edição 152).

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br, pelo fax (11) 3838-4181 ou para a rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP, CEP 05468-901. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

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CARTA DO EDITOR FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CELSO LAFER

PRESIDENTE

Por dentro do cérebro

JOSÉ ARANA VARELA

VICE-PRESIDENTE CONSELHO SUPERIOR CELSO LAFER, EDUARDO MOACYR KRIEGER, HORÁCIO LAFER PIVA, JACOBUS CORNELIS VOORWALD, JOSÉ ARANA VARELA, JOSÉ DE SOUZA MARTINS, JOSÉ TADEU JORGE, LUIZ GONZAGA BELLUZZO, SEDI HIRANO, SUELY VILELA SAMPAIO, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO

Luiz Henrique Lopes dos Santos Diretor de Redação em exercício

CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO RICARDO RENZO BRENTANI

DIRETOR PRESIDENTE CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ

DIRETOR CIENTÍFICO

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JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER

DIRETOR ADMINISTRATIVO

ISSN 1519-8774

CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADOR CIENTÍFICO), CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTONIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, MÁRIO JOSÉ ABDALLA SAAD, PAULA MONTERO, RICARDO RENZO BRENTANI, WAGNER DO AMARAL, WALTER COLLI DIRETOR EM EXERCÍCIO LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS

EDITOR CHEFE NELDSON MARCOLIN EDITORA SÊNIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS EDITORES EXECUTIVOS CARLOS HAAG (HUMANIDADES), FABRÍCIO MARQUES (POLÍTICA), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA), RICARDO ZORZETTO (CIÊNCIA) EDITORES ESPECIAIS CARLOS FIORAVANTI, MARCOS PIVETTA (EDIÇÃO ON-LINE) EDITORAS ASSISTENTES DINORAH ERENO, MARIA GUIMARÃES REVISÃO MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO EDITORA DE ARTE MAYUMI OKUYAMA ARTE JÚLIA CHEREM RODRIGUES, LAURA DAVIÑA, MARIA CECILIA FELLI FOTÓGRAFOS EDUARDO CESAR, MIGUEL BOYAYAN SECRETARIA DA REDAÇÃO ANDRESSA MATIAS TEL: (11) 3838-4201 COLABORADORES ANA LIMA, ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS), DANIELLE MACIEL, FLÁVIO ULHOA COELHO, GEISON MUNHOZ, GONÇALO JUNIOR, LAURABEATRIZ, MARIANA ZANETTI, NEGREIROS E YURI VASCONCELOS

OS ARTIGOS ASSINADOS NÃO REFLETEM NECESSARIAMENTE A OPINIÃO DA FAPESP É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

PARA ANUNCIAR (11) 3838-4008 PARA ASSINAR FAPESP@TELETARGET.COM.BR (11) 3038-1434 FAX: (11) 3038-1418 GERÊNCIA DE OPERAÇÕES PAULA ILIADIS TEL: (11) 3838-4008 e-mail: publicidade@fapesp.br GERÊNCIA DE CIRCULAÇÃO RUTE ROLLO ARAUJO TEL. (11) 3838-4304 e-mail: rute@fapesp.br IMPRESSÃO PLURAL EDITORA E GRÁFICA TIRAGEM: 35.800 EXEMPLARES DISTRIBUIÇÃO DINAP GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP FAPESP RUA PIO XI, Nº 1.500, CEP 05468-901 ALTO DA LAPA – SÃO PAULO – SP SECRETARIA DO ENSINO SUPERIOR GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

INSTITUTO VERIFICADOR DE CIRCULAÇÃO

editor especial Marcos Pivetta trabalhava em uma reportagem relativamente simples quando deparou com uma informação com jeito de ser algo mais do que uma matéria interna de Pesquisa FAPESP. Ao tentar obter alguns dados sobre o banco de encéfalos humanos da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo ficou sabendo que uma equipe de pesquisadores brasileiros e alemães publicaria um artigo com a identificação de uma nova região cerebral onde surgem as primeiras lesões que provocam o mal de Alzheimer. Em vez de no córtex, como se pensava, as lesões ocorrem primeiro no núcleo dorsal da rafe, no tronco cerebral. A conclusão ocorreu depois da autópsia de 118 pessoas com idade média de 75 anos. Essa é a doença neurodegenerativa mais comum entre idosos e a descoberta pode levar essa região do sistema nervoso à condição de alvo preferencial da ação de novas terapias. Daí a concluir que a reportagem merecia a capa da revista foi um passo (página 16). A primeira linhagem de células-tronco embrionárias era a nossa outra opção para a capa. O anúncio ocorreu quando a edição passada estava a caminho da gráfica e não nos deu tempo de publicar nada mais que uma nota na seção Laboratório. Nos propusemos, então, a explicar detalhadamente como ocorreu o domínio dessa tecnologia e qual o seu significado para a pesquisa no Brasil. A editora assistente de ciência, Maria Guimarães, deu conta da tarefa com sobras (página 42). Na editoria de tecnologia há outros avanços dignos de nota. São Carlos foi a cidade escolhida para a instalação de uma nova fábrica de chips, em 2009. Não de qualquer chip, mas o de memória eletrônica utilizado em bilhetes de transporte público, celulares, TV digital e transações bancárias. O melhor é que não se trata apenas de produção. Um dos 11 Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid)

financiados pela FAPESP, o Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos (CMDMC), será parceiro na empreitada da empresa norte-americana que fará o investimento. O centro terá participação ativa no estudo e desenvolvimento de novas memórias, chamadas de ferroelétricas. O modelo que se busca é dos mais desejáveis: a produção industrial movida por novas tecnologias alimentadas, por sua vez, pela pesquisa básica. Para colocar o empreendimento de pé a empresa terá a colaboração do CMDMC, que já ajudou a formar 25 doutores e 17 mestres em materiais ferroelétricos (matéria-prima da memória eletrônica) desde 2000. Em humanidades, o editor Carlos Haag apresenta um grande estudo que mediu o grau de confiança dos brasileiros nas instituições democráticas do país. Os dados são interessantes: a valorização da democracia cresceu 21% entre 1989, a primeira eleição direta, e 2006, a mais recente eleição presidencial (de 43,6% para 64,8%). Mas, ao mesmo tempo, caiu em mais de 13% (de 38,6% para 25,5%) o número de cidadãos incapazes de definir o que é democracia. Mais dados: segundo o estudo, cerca de 30% dos eleitores acreditam que a democracia pode funcionar perfeitamente sem o Congresso ou os partidos políticos, um sinal inquietante para as legendas e o Legislativo. Por fim, há a entrevista com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Dessa vez ele nada fala de política; o foco é o meio ambiente, algo familiar para quem conheceu alguns dos principais personagens que influenciaram a visão que se tem do tema hoje. Ele também teve participação ativa nas longas discussões sobre o Protocolo de Kyoto entre 1997 e 1999, que estabeleceu metas de redução da emissão de gases do efeito estufa. Vale a pena conhecer as histórias e a opinião do ex-presidente sobre um assunto tão discutido hoje. PESQUISA FAPESP 153

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() MEMÓRIA

Plataforma ainda no Rio, em 1968, já pronta para seguir para o Nordeste

Avanço sob o mar Há 40 anos era construída a P-1, a primeira plataforma móvel de perfuração brasileira Neldson Marcolin

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ma viagem de 25 dias pelo mar, cheia de acidentes, com cabos partidos, peças quebradas, parafusos e porcas perdidas, levou os engenheiros a temerem pela estrutura da primeira plataforma móvel brasileira de perfuração para extração de petróleo no subsolo marinho, construída no Brasil há 40 anos. Batizada de Petrobras-I (P-1), foi transportada por três rebocadores da Marinha do Rio de Janeiro a Maceió (AL), onde sofreu reparos e ajustes e fez, sem sucesso, várias tentativas de posicionamento no instável terreno local. Em conseqüência, foi autorizada a seguir para a costa ao sul de Aracaju (SE). Nas águas rasas da costa sergipana, a 80 metros de profundidade, a P-1 realizou sua primeira perfuração e confirmou a existência, em 1969, do primeiro campo de petróleo na plataforma continental brasileira, o de Guaricema, que produz até hoje e tem boa reserva de óleo leve e gás. Antes desse período, a Petrobras alugava plataformas de franceses e norte-americanos para operar em alto-mar (off shore). Mas em 1966 o Conselho de Administração da empresa decidiu construir sua própria plataforma de perfuração. O objetivo era não apenas reduzir gastos em moeda forte e economizar

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alojamento para 40 pessoas que se revezavam em turnos de 15 dias nos trabalhos de perfuração. Custou cerca de US$ 30 milhões e foi construída pelas empresas Mecânica Pesada, de Taubaté (SP), e Estaleiro Mauá, de Niterói (RJ). “Parte dos equipamentos usados na plataforma

e é uma das responsáveis pelo sucesso do Brasil na extração de óleo e gás do mar territorial do país. Posteriormente, José Marques tornou-se diretor da Petrobras e conseguiu com que outras três plataformas fossem construídas aqui. “Uma delas ficou no país e as outras foram vendidas para operar na Índia”, diz. Depois dessas, os projetos de construção tiveram fim. “Os preços e as condições deixaram de ser competitivos com os do exterior.” No mês passado, porém, houve nova reviravolta. Foi batizada a P-51, a primeira plataforma semi-submersível construída integralmente no Brasil, programada para operar na bacia de Campos (RJ).

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P-1 em fase de construção (acima) e já operando na costa de Sergipe nos anos 1970 (abaixo)

FOTOS BANCO DE IMAGENS DA PETROBRAS

divisas, mas também treinar e qualificar pessoal, desenvolver a indústria nacional, depender menos de técnicos estrangeiros e adquirir conhecimento para avançar tanto na exploração de águas rasas (até 150 metros) como nas profundas (a partir de 700 metros) e ultraprofundas (acima de 2 mil metros). Para levar o plano adiante foi projetada e construída uma plataforma de pequeno porte, auto-elevatória, que permitisse seu acoplamento em plataformas fixas de produção através das quais seriam perfurados os poços em águas rasas. Entregue em julho de 1968, ela podia operar, com segurança, em águas de 60 metros de profundidade e perfurar sedimentos em poços de até 4 mil metros – hoje as plataformas operam acima de lâminas d’água de 2 mil metros. A P-1 também possuía

era importada, mas a tecnologia de construção foi 100% nacional”, conta o engenheiro José Marques Neto, à época gerente-geral da Região de Produção do Nordeste, que englobava Alagoas, Sergipe, Rio Grande do Norte e Ceará. Quando a P-1 chegou a Alagoas e encontrou problemas, Marques sugeriu à Petrobras que ela fosse deslocada para Sergipe e tentasse confirmar uma prospecção exploratória que se revelara positiva feita por outra unidade, contratada no exterior em 1968. Sugestão aceita, em 1969 a P-1 fez as cinco perfurações que levaram à descoberta do campo de Guaricema. A plataforma foi aposentada como unidade de prospecção depois de 26 anos e passou a servir de unidade de apoio a outras plataformas, ou seja, como hotel flutuante – hoje na costa do Rio Grande do Norte. No total, a P-1 perfurou 242.367 metros em toda plataforma continental

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ENTREVISTA

Fernando Henrique Cardoso Sem indulgência com o desmatamento Para o ex-presidente, enquanto a sociedade for condescendente com as ações contra o meio ambiente, não haverá solução Fabrício Marques e Neldson Marcolin

FOTOS EDUARDO CESAR

O

ex-presidente Fernando Henrique Cardoso acompanha o debate sobre meio ambiente há pelo menos quatro décadas. E, desde que saiu da Presidência da República, divide seu tempo entre aulas e cursos especiais em universidades dos Estados Unidos e as atividades de seu instituto (iFHC), onde há seminários sobre temas de interesse para a sociedade, como democracia, desenvolvimento, instituições políticas, mídia, federalismo – e, em especial, ciência e meio ambiente. Sua ligação com a questão vem das décadas de 1960 e 1970. Com as perseguições políticas em razão do golpe militar de 1964, o então professor e pesquisador passou por universidades do Chile, da França e dos Estados Unidos sempre dando aulas na sua especialidade, a sociologia. No exterior conviveu com alguns dos principais personagens que tiveram participação importante no debate ambientalista muito antes de ele se tornar obrigatório, como Ignacy Sachs, Johan Galtung e Marc Nerfin. Era o presidente brasileiro durante a reunião Rio+5 e a conferência de Kyoto, ambas em 1997, quando tratou das negociações com outros chefes de Estado que resultaram no famoso protocolo. O documento estabelecia datas em que os países signatários se comprometiam a reduzir a emissão de gases do efeito estufa entre 2008 e 2012. Em agosto deste ano Fernando Henrique abriu a cerimônia de lançamento

do Programa FAPESP de Pesquisa em Mudanças Climáticas Globais, o maior e mais articulado esforço multidisciplinar feito no Brasil para ampliar o conhecimento a respeito da questão, e falou de como, progressivamente, a sociedade foi se dando conta da importância da preservação do meio ambiente. A pedido do diretor científico da Fundação, Carlos Henrique de Brito Cruz, entregou uma cópia do programa ao ex-presidente chileno Ricardo Lagos, atual assessor do secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Ban Ki-moon. Nesta entrevista o ex-presidente fala da evolução – e aceitação – das questões ambientais no Brasil e no mundo.

do – o ar e os mares estariam sempre disponíveis, sem problemas. Não havia noção de limite. Um dos primeiros a ter essa noção foi o Ignacy Sachs, professor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, da França. Ele sempre teve uma preocupação muito grande com a questão ambiental. Embora, talvez até antes dele, o norueguês Johan Galtung já tratasse desse assunto. Ele era professor na Flacso [Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais], no Chile. Fui professor lá também, nos anos 1960, e o via entrando na sala de aula tocando flauta. Ele tinha sido assistente do Paul Lazarsfeld, estudioso das ciências sociais.

A primeira iniciativa de pessoas com expressão na sociedade para tentar mudar algo a favor do meio ambiente foi a criação do Clube de Roma, que reuniu personalidades e acadêmicos para discutir assuntos diversos, com destaque para a ecologia, em 1968? Como o senhor vê aquela época? — Que eu me lembre, sim. A idéia do Clube de Roma era de crescimento zero. Isso criou uma incompatibilidade com os países em desenvolvimento. Naturalmente, a esquerda brasileira era contra. E eu também, claro. A idéia naquele tempo era o desenvolvimento como algo central. O Clube de Roma queria crescimento zero por acreditar que há bens que são limitados. Mas a sensação comum era de que tudo seria ilimita-

Lazarsfeld era de onde? — Foi professor de Colúmbia, nos Estados Unidos. O Galtung tinha trabalhado com ele lá e estava up to date, sabia tudo. Certa vez participei de uma reunião na Suécia, nos anos 1970, e discutimos como é que se juntava desenvolvimento com preservação do meio ambiente. O conceito de ecodesenvolvimento me parece ter sido inventado pelo Sachs. Depois, outro amigo, Marc Nerfin, um suíço que foi o principal articulador da Conferência de Estocolmo, em 1972, criou a Fundação Internacional para Desenvolvimento Alternativo numa cidade ao lado de Genebra. Fui do board dessa fundação. Nessa época o senhor estava na França? — Não, estava no Brasil. Já tínhamos ■

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O senhor não ganhou um prêmio da ONU por causa desse índice? — Ganhei em 2002. Fui o primeiro a ganhar o prêmio de desenvolvimento humano porque o Brasil produziu melhoras nos anos 1990 nessas áreas. Se não houvesse o IDH nós não teríamos a possibilidade de mensurar o avanço do que não fosse do PIB. É um índice simples que mede o aumento da renda per capita, o grau de alfabetização e a esperança de vida. Foi o que permitiu a difusão da prática de avaliação. Aqui no Brasil adaptamos para a Fundação João Pinheiro, de Minas Gerais, que fez o IDH de município por município. Isso teve origem nesse tipo de debate que parece que não vai dar em nada. Houve uma reunião na África em que o Nelson Mandela e eu participamos, ligada a meio ambiente, na qual propusemos – o José Goldemberg deu a idéia e eu encampei – uma meta de todos os países terem 10% de energia limpa produzida, pelo menos. Bom, não se consegue exatamente isso, mas se avança. Na preservação de floresta o Brasil avançou bastante. Na prática derrubam a mata, invadem, mas aumentou muito a área de floresta preservada. No fundo, isso é conseqüência dessas conferências. Mas, de fato, as ações são sempre muito mais lentas do que a gente gostaria. ■

feito o Cebrap [Centro Brasileiro de Análise e Planejamento], mas não tínhamos meios de sobrevivência. Então passava um período estudando na França. Fui professor regular no final dos anos 1960 lá, depois dei cursos na Escola de Altos Estudos. Nos anos 1970 eu ia e voltava. Em meados da década de 1970 fui professor em Cambridge e passei uma temporada em Princeton, nos Estados Unidos. Às vezes ia para a Suécia.

■ Essas megaconferências que vieram depois viraram algo meio... — ... fantasmagóricas!

É. Elas não parecem ao senhor uma gigantesca ferramenta de marketing com pouca eficácia? Ou pelo menos com uma eficácia muito demorada? — A máquina governamental é muito lenta, sempre. ■

Em todos os lugares? — Em todos os lugares. A intergovernamental é pior ainda. No fundo, todos esses temas de atualização, de pensamento político, social e econômico, estiveram ligados a essas conferências. Por exemplo, a ONU fez a conferência sobre racismo em Durban, na África. Não dá em nada, digamos assim, mas se coloca o tema. Foram feitas conferências sobre mulher. E sobre hábitat, sobre cidades. Criou-se um secretariado. Quer dizer, embora seja difícil traduzir isso para políticas públicas, porque depende do governo de cada país, cria-se um ambiente intelectual que permite certo contágio de idéias. E nesse sentido acho que é positivo. Uma dessas iniciativas da ONU deu resultados práticos. Foi feita pelo Amartya Sen, economista indiano, Prêmio Nobel de 1998, casado com Emma Rothschild, que foi muito amiga da Ruth [Ruth Cardoso, mulher de Fernando Henrique, morta em junho deste ano]. O Amartya e o Mahbub ul Haq, paquistanês que foi presidente do Banco Central do Paquistão nos anos 1970, criaram o Índice de Desenvolvimento Humano, o IDH. ■

■ Sua aproximação com o tema veio desses

encontros? — Veio das influências desse pessoal. Lembro de uma reunião no Canadá, onde tem uma fundação parecida com a FAPESP. Lá houve um encontro sobre a questão de desenvolvimento e meio ambiente cuja estrela foi o Sachs. Ele teve uma influência grande sobre muita gente aqui no Brasil. Sachs é polonês e morou muitos anos no Brasil, tem casa aqui e na França. Trabalhou com Michal Kalecki, o grande economista polonês, um desses renovadores importantes. ■ O conceito de desenvolvimento sustentá-

vel começou a nascer dessas discussões? — A expressão, naturalmente, veio depois, é mais recente. Mas a preocupação com o desenvolvimento respeitador do meio ambiente surgiu após a Conferência de Estocolmo, na verdade. O ponto de mudança foi Estocolmo e, depois, a Conferência do Rio, em 1992. Foi no Rio que se deu realmente espaço para manifestação maior dos governos. 12

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O senhor era contra as queimadas, mas continuaram queimando. Por que a vontade do presidente é tão difícil de ser respeitada? — Porque ela tem que passar por canais mais burocráticos do que políticos, na verdade, para chegar lá. Para ficar no exemplo das queimadas. Sou muito amigo do Fábio Feldman [ambientalista, ex-deputado federal]. Nós criamos um conselho sobre aquecimento global. Foi o primeiro país que fez isso no meu tempo. ■

No primeiro ou segundo mandato? — No segundo. Eu era o presidente e o Fábio o secretário executivo do conselho. Fizemos algumas reuniões para esclarecer ministros, secretários, governadores etc. sobre a questão. E o Fábio, sobre as queimadas, me deixava maluco. Sempre me procurava para reclamar, “Está queimando mais do que dizem...”. Nós conseguimos construir, naquela ocasião, um satélite com a China que foi o primeiro a fazer fotos sobre a Amazônia por várias vezes. Isso foi no primeiro mandato. Então já se conseguia saber o que estava queimando. Agora, isso só aumenta a angústia, porque você sabe o que está queimando e não tem os meios ■

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para brecar. Aquela região é imensa, os interesses locais são muito fortes, não tem policiamento efetivo... Hoje, pelo menos, mudou bastante a mentalidade dos governadores da região. ■ Em quais estados a preservação é maior na região amazônica? — A Amazônia e Amapá são preservados. No sul do Acre não. A floresta é atacada pelo sul porque a população pressiona. Ali há pressões muito fortes. Primeiro dos madeireiros, que compram os índios para derrubarem e venderem a madeira. Depois tem pressão dos governos locais, que tiram vantagem com a exportação da madeira. E há a pressão do pequeno agricultor, na medida em que se tem deslocamento populacional. Estava lendo nos jornais recentemente que é o Incra que fez os assentamentos por lá. No tempo dos militares, só grandes empresas, as multinacionais, entravam para valer e derrubavam floresta. E o governo dava incentivo para derrubar.

Para avançar país adentro. — Eles queriam plantações e pasto na Amazônia. Eu tenho um livro sobre a região daquela época, Amazônia: expansão do capitalismo [Brasiliense/Cebrap], de 1977. Fui para lá com o Juarez Brandão Lopes, um professor da USP, para fazer uma pesquisa ocupacional na Amazônia. O livro não foi escrito com ele, mas com o Geraldo Müller, que era meu assessor, e com a ajuda da Tetê [Teresa Marta], irmã da Marta Suplicy. O Severo Gomes [empresário, ex-senador e ex-ministro, morto em 1992] era meu amigo e tinha uma fazenda no sul do Pará. Quando fomos, estranhei porque pediram documentos, justificativas e tinha soldados. O Severo nos recebeu e, à noite, vieram jantar conosco o bispo da região, que se chamava Cardoso, um mineiro dominicano, e uma irmã superior de um convento que tinha lá. De noite, ao conversar com eles, descobrimos que tinha guerrilha no país. E nós não sabíamos. ■

Mesmo com todas as articulações que o senhor tinha com a esquerda, não sabia da Guerrilha do Araguaia? — Não, ninguém sabia no Brasil. Isso foi em 1975. E eu, o Severo e o Juarez tínhamos andado por aquela região toda... Depois, quando voltei, havia soldados feridos no avião. Mas essa história é só um detalhe. Fui lá para fazer pesquisa. Chamávamos o pessoal da região para conversar. Era a penetração do capitalismo lá. ■

Havia um “gato” – como era conhecido o aliciador de mão-de-obra – que achou que eu queria comprar terras. Me disse, “O senhor não se preocupe, compra a terra porque aqui a gente cuida de tudo. Aqui tem um sistema: o pessoal derruba a mata e fica 15 dias lá. Aí voltam para a cidade, passam três ou quatro dias e retornam para a mata. Não podem levar arma, mulher, não podem beber. Se fizer uma dessas coisas, damos uma injeção de álcool e eles nunca mais fazem”. Ele se referia aos peões aliciados principalmente no Maranhão. Fui a uma vila chamada Redenção. Hoje tem, sei lá, 100 mil habitantes, é uma cidade. Tinha prostíbulos e farmácia para atrair o pessoal. Essa era a idéia da época. Tudo com incentivo fiscal? — Lógico. Tinha a fazenda da Volkswagen e de outras multinacionais. E claro que aquilo ali ia virar deserto. Corta árvore, tem pisoteio do gado, não vira nada. Esse tipo de ação estatal favorecendo o desmatamento acabou. Agora, a capacidade fatal de controlar o desmatamento ainda é pequena. Como se mede? Pelo satélite. Temos o Inpe [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais], que faz esse trabalho. Depois há os que analisam os dados. Sempre havia uma discrepância a respeito do número verdadeiro e do número oficial. Uma vez fui jantar na ■

casa do Ronaldo Sardenberg, meu último ministro da Ciência e Tecnologia. Jantei lá com o Fábio, com uma moça amiga dele, que sabia tudo sobre Amazônia, e com o responsável pelo trabalho de satélite e análises para ver se a gente conseguia apurar qual era o número correto de queimadas e desmatamento. É muito difícil. Mesmo sendo presidente, mesmo querendo as coisas, não há um instrumental seguro. E não adianta ser o governo a solucionar tudo; tem que ser a sociedade. Enquanto a sociedade for indulgente com essas questões, não tem solução. Hoje vemos que o desmatamento continua avançando. Minha posição é pelo desmatamento zero. Mas sempre há algumas iniciativas interessantes. Fizemos duas reuniões na Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo, e fiquei positivamente impressionado pelo esforço de empresários brasileiros de cimento e siderurgia. Todos estão tratando de controlar a emissão de CO2. A nossa responsabilidade na questão do aquecimento global é a queimada. A outra são as fezes dos animais, de gado, que também produz gás metano. Mas o grosso não é industrial. O problema é queimar floresta. E não há o que justifique isso. ■ Aquele capitalismo da época que o senhor

escreveu Amazônia, comparando com o de hoje, era muito mais selvagem, correto? — Eu acho. Como controlar esse processo? — Capitalismo mais avançado tem de sobra. Mas, agora mesmo, estamos assistindo a essa queima de todas as bolsas de valores... O capitalismo sempre teve um componente de irracionalidade, é verdade. Mas não essa irracionalidade de que falamos antes. Aquela é a selvagem. Como, aliás, a que tem na China hoje. Se a sociedade não tem consciência, não pressiona e não tem governo, as fontes de interesse privado destroem tudo. Tem que ter um instrumento de contrapeso e regulação. O pior é quando o Estado tem incentivos contra a natureza, como era no tempo dos militares. Não se tinha consciência; agora tem. No Amazonas teve um governador, o Gilberto Mestrinho, com horror à questão de preservação da natureza. Eu o conheci no Senado. Ele acreditava na força do progresso sem limites. Hoje mudou de atitude. ■

Se a sociedade não tem consciência, não pressiona e não tem governo, as fontes de interesse privado destroem tudo

Mudou? — Mudou. O Amazonino Mendes, outro governador daquele estado, também ■

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mudou. O atual, Eduardo Braga, é uma pessoa absolutamente preocupada com a questão. Pelo menos de palavra, não sei o que está fazendo. Eu o apresentei ao Al Gore quando esteve aqui. O João Alberto Capiberibe, do Amapá, também é uma pessoa preocupada. Hoje o Estado tem muito mais consciência da necessidade de se fazer um contrapeso às forças mais selvagens. ■ As questões intergovernamentais parecem

ser uma dificuldade a mais, como o senhor já disse. A Reunião de Bali, de 2007, mostrou que o desafio atual é tentar juntar os interesses dos países pobres com os dos ricos. — Não tem solução fácil. Mas a delegação do Brasil lá, pelo que sei, chegou a uma solução razoável na discussão sobre preservação de florestas. Acho que nós deveríamos insistir muito no valor da floresta em pé e, mesmo, da floresta plantada. Isso nunca foi levado em consideração no início, quando discutimos o Protocolo de Kyoto. Acho que Kyoto se tornou insuficiente. A idéia do protocolo era a de responsabilidade compartida e desigual. Ali foi feito um arranjo que diz: os países desenvolvidos podem continuar poluindo se pagarem pela não poluição dos

outros. Isso é um pouco arcaico, pensar que podemos aceitar que ninguém tem o direito de poluir sem tentar compensar. Lembro sempre do [Mikhail] Gorbatchev porque fiquei muito impressionado com a posição dele nos anos 1980. ■ Qual era? — Ele era líder de um Estado comunista, uma potência mundial baseada na produção atômica. E dizia, “Olha, não dá pra continuar assim”. Acho que isso é, teoricamente, muito interessante. Na teoria marxista não se pode falar de Humanidade sem uma mistificação: tudo indica que só haverá Humanidade no dia em que houver uma classe universal. Quando os trabalhadores dominarem o mundo, todos serão iguais. Aí sim teremos Humanidade. Fora disso, temos classes sociais. A Humanidade é uma mistificação e o que existe de concreto são classes que se opõem. Essas idéias são de [Karl] Marx. Ou, sobretudo, dos discípulos de Marx – Marx era sempre mais inteligente do que os discípulos. Gorbatchev disse o contrário: “Não dá para continuar assim. O terror atômico não resolve, ter bomba atômica fere não só o outro, mas vai para a atmosfera e vem para mim também. Temos de pensar que

é um processo que afeta a Humanidade”. Acho que isso, no final dos anos 1980, foi uma mudança tremenda. É muito interessante essa evolução, porque na tradição do pensamento da esquerda isso não existe. A noção do progresso vem do século XVIII. É a crença de que o progresso é ilimitado e não tem que pensar nos limites impostos pela natureza. O homem sempre descobriria uma tecnologia nova que resolveria tudo. É uma confiança cega no progresso tecnológico. Veio o Gorbatchev e disse, “Olha, pensa bem, cuidado que esse progresso pode destruir”. Então nós temos que ter outros valores, inclusive o respeito ao meio ambiente. Gorbatchev tinha consciência desse conceito? — Estive com ele muitas vezes. Ele tem uma relativa consciência disso. Mas é difícil saber porque ele não fala inglês, só russo. É muito falante, muito simpático. E tem uma filha, bonita, que traduz bem, além do tradutor oficial. Mas mesmo assim é complicado interagir. Talvez ele não tenha tanta consciência da importância, digamos, conceitual do que ele disse e fez. E não é uma pessoa de raciocínio tão abstrato. Sei que fez essa mudança de conceito. Hoje temos a volta do tema da ética na ciência — a ciência ficou menos arrogante. Ela vai resolver todos os problemas do mundo? Não vai. ■

Recentemente assistimos a grandes debates sobre transgênicos e células-tronco embrionárias. — Foi bom, não foi? Claro que tem que fazer pesquisa, mas também há limites. Assim é com a questão do desenvolvimento, do meio ambiente. Acho que houve um avanço na consciência social. Vejo que a juventude tem muita sensibilidade ambiental. O Brasil sempre teve, pelo menos retoricamente, posições avançadas em matéria de meio ambiente. Ultimamente isso foi um pouco reduzido. De novo nós voltamos a um momento do tipo “o que vale é crescer”. Houve certo desleixo na preocupação ambiental em razão da ambição de crescimento. ■

O senhor sempre foi crítico da matriz nuclear. Não seria uma boa solução hoje? — O problema é o que fazer com o lixo atômico. Mas, diante das circunstâncias atuais, temos de repensar. Fiquei muito impressionado com uma conversa que tive com um pessoal da Alcoa. Eles estão injetando gases nos buracos onde antes havia petróleo. Em vez de jogar para o ■

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espaço, mandam para debaixo da terra. Algo assim terá que ser inventado para a questão dos detritos nucleares. A França tem mais de 60% da matriz energética na energia atômica. A Alemanha e a Espanha podem se dar ao luxo de não querer ter porque eles importam energia dos franceses. Aí é fácil.

O Brasil separou-se um pouco da China na reunião de Bali, em 2007, mas precisa se separar mais porque não temos de pagar pelos erros deles

■ Entrevistamos o professor José Goldem-

berg há alguns meses e ele criticou a postura atual da diplomacia brasileira. Disse que o Brasil está fazendo o jogo da China e podia ter uma posição muito mais próativa. Como é que o senhor vê isso? — Concordo com ele. De fato a postura diplomática brasileira foi muito marcada, compreensivelmente, pelos anos do boom econômico dos anos 1970, que foi uma visão do Brasil potente. Na questão do meio ambiente eu mesmo forcei bastante a discussão a favor do Protocolo de Kyoto. Conversei com o Bill Clinton – ele me chamou mais de uma vez em negociação –, com o Sardenberg – quando ele estava na Holanda negociando as questões – e com a nossa diplomacia... Bem, a diplomacia obedece mais ou menos à política, quando é conveniente. Como agora, no caso do Lula. Ele tem menos preocupações ambientais e mais com crescimento e a diplomacia voltou um pouco a sua atitude originária de luta dos pobres contra os ricos. Eles não são terceiro-mundistas, estou exagerando, mas, enfim, tem algo disso. A China é Terceiro Mundo, os Estados Unidos e a Europa são Primeiro Mundo; então estamos com a China, não estamos com o Primeiro Mundo. Ora, acho isso uma simplificação. E eles também acham. Por exemplo, o embaixador que sempre lidou com isso, o Everton Vieira Vargas, é muito bom. Tem vários assim no Itamaraty. Mas há outros que pensam diferente. Se a China prefere o mundo do lado de cá, então se aliam à China. Acho que não temos que ter relações incondicionais com ninguém. Temos que ver o nosso interesse e o interesse da Humanidade com os lucros. A China vai ter que tomar medidas, porque sabe que não dá para continuar do jeito que está. O Brasil separou-se um pouco dela em Bali, mas precisa se separar mais porque não temos de pagar pelos erros deles. A China resolveu crescer e tem um problema, eu entendo, um bilhão de pessoas precisa comer. Mas agora que já estão comendo, prestem mais atenção ao modo como as coisas são feitas. E o Brasil não é a China. Nós teríamos que entender esses processos. De qualquer maneira, avançamos razoavelmente nessas matérias.

Pode-se esperar alguma receptividade dessas instituições? — Receptividade sim, dinheiro não. É mais para divulgar o programa. Nós temos recursos no Brasil. Então, o problema é interessar as pessoas, mostrar o que pode ser feito. ■

■ O senhor continua um crítico do desper-

dício de energia? — Acho fundamental não desperdiçar. Podemos ganhar muito mais. É um trauma da época do apagão? — Não, não é trauma não. É ver o que aconteceu e como foi possível manejar. Ganhamos capacidade e aprendemos a poupar energia. Os níveis de consumo só recentemente voltaram a ser o que eram antes. Há muito que fazer, tem muita sobra. ■

O senhor entregou a cópia do Programa FAPESP de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas Globais para o ex-presidente chileno Ricardo Lagos. Qual o objetivo? — Ele é assessor do secretário-geral da ONU para o meio ambiente. Eu era presidente do Clube de Madrid, uma associação de antigos presidentes fundada pelo Gorbatchev, e o Clinton era o presidente de honra. Fizemos um encontro importante sobre como compatibilizar o combate ao terrorismo mantendo regras democráticas. Quando o Ricardo deixou o governo do Chile passei para ele duas funções que eram minhas: a presidência do Clube de Madrid e o cargo de chairman da Inter-american Dialogue, nos Estados Unidos. E ele, por sua vez, fez uma reunião sobre meio ambiente. Dei o programa da FAPESP para ser levado à ONU e ao próprio Clube de Madrid. ■

Como fica a questão ambiental diante da grande crise econômica atual? — A crise vai ter um efeito positivo no meio ambiente porque diminuirá o crescimento e a poluição. Mas não necessariamente haverá uma busca maior para entender a natureza do problema. Ela vai diminuir a proporção do drama. Vai se gastar menos, consumir menos petróleo... Nos Estados Unidos houve um avanço grande, também no nível da consciência social. Na Califórnia e em outros estados e cidades, por exemplo. O Brasil funciona um pouco dessa maneira também. Nós não somos um país centralizado. Temos estados e municípios, uma sociedade mais ativa, como nos Estados Unidos. O governo federal lá não tem o poder de brecar o governador da Califórnia. Acho que o Brasil tem condições para fazer o mesmo. Fiquei bem impressionado com uma reunião do WRI [World Resources Institute], instituto do qual faço parte junto com o Al Gore. Houve um relato sobre o que estava acontecendo com as empresas americanas. Elas são muito mais avançadas do que o governo americano. E algumas das nossas também. Fale com o pessoal da Votorantim para ver. Eles estão propondo mudar o tipo de alto-forno para poder reduzir a emissão de gases de efeito estufa. ■

O senhor é cobrado a tratar do tema em seu instituto? O site do iFHC mostra vários seminários sobre a questão. — Muita gente pede. No começo era difícil. Fui presidente da República e sou presidente de honra do PSDB. Então achavam que o instituto ia ser um disfarce de político. Mas não é. Até hoje tenho dificuldades com isso. Não estou informado sobre o dia-a-dia da política, mas não acreditam. Acham que é disfarce, que estou manobrando – quer dizer, de vez em quando, sim. Mas não tenho mais paciência e interesse pessoal para esse tipo de coisa. Aqui no instituto procuramos debater com a sociedade. E, se possível, com os partidos também. Nos nossos seminários fazemos certo esforço para ter o pessoal da universidade, das empresas, jornalistas e políticos. O difícil é encontrar os políticos que tenham interesse pelos temas. ■ ■

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reprodução do quadro Tudo te é falso e inútil iv, de iberê camargo. 1992

capa


Na raiz do Alzheimer Equipe de São Paulo e da Alemanha identifica região cerebral em que surgem as primeiras lesões da doença neurodegenerativa mais comum entre os idosos Marcos Pivet ta

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escobrir precocemente alterações no cérebro que podem indicar o início do mal de Alzheimer, a principal causa de demência entre idosos, é um dos desafios da neurologia do envelhecimento. Pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) acreditam ter identificado a primeira região cerebral a apresentar uma das lesões mais características da doença, os chamados emaranhados neurofibrilares. O Alzheimer começa no tronco cerebral, mais especificamente numa área denominada núcleo dorsal da rafe, e não no córtex, que é o centro do processamento de informações e armazenamento da memória, como tradicionalmente a medicina postula. Essa idéia é defendida pelos cientistas brasileiros, em parceria com colegas de três universidades alemãs, num artigo a ser publicado nos próximos dias na revista científica Neuropathology and Applied Neurobiology. A conclusão do trabalho se baseia na autópsia do cérebro de 118 pessoas, que tinham idade média de 75 anos no momento de sua morte. Os pesquisadores constataram a existência de lesões no núcleo dorsal da rafe em oito idosos que não apresentavam emaranhados em nenhuma outra parte do cérebro e em todos os 80 indivíduos que já tinham ao menos um emaranhado no córtex transentorrinal, a região classicamente apontada como a primeira a ser afetada pelo Alzheimer. Os 88 indivíduos que tinham marcas anatômicas no cérebro associadas a esse tipo de demência apresentavam graus variados de manifestação clínica da doença e alguns podiam ser até assintomáticos. O trabalho dos brasileiros e europeus contou com múltiplas fontes de financiamento: dinheiro de instituições alemãs, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein, de São Paulo, e da FAPESP, que financia uma linha de estudos do neurologista Ricardo Nitrini, da FMUSP, sobre a incidência de demências na população brasileira. Responsável por conectar o córtex à medula espinhal, o tronco, a rigor, não faz parte do cérebro, mas sim do encéfalo, que abrange o cérebro, o cerebelo e o tronco. De forma simplista, recorrendo à metonímia, figura de lingua-

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gem em que se pode usar a parte para designar o todo, os leigos utilizam a palavra cérebro quase como sinônimo de encéfalo, embora tecnicamente ela não o seja. Definições técnicas à parte, o tronco cerebral é uma importante estrutura do sistema nervoso: controla funções involuntárias cruciais para a sobrevivência, como a respiração, os movimentos cardíacos, a pressão sangüínea, o sono e até os sonhos. Se confirmado por novos estudos, o achado de que a doença de Alzheimer se inicia no tronco cerebral, a menor das três grandes partes do encéfalo, e daí se espalha para áreas interconectadas do córtex é uma informação importante na busca de terapias para frear o desenvolvimento da doença em seu estágio inicial. O dado pode levar essa região do sistema nervoso à condição de alvo preferencial da ação de novas drogas e terapias contra a doença. “Precisamos saber onde as lesões iniciais aparecem para tentarmos descobrir formas eficientes de retardar o desenvolvimento do Alzheimer ainda nos seus primórdios”, diz a patologista Lea Grinberg, coordenadora do banco de encéfalos humanos da FMUSP, fonte das amostras de cérebros para o estudo e primeira autora do artigo. “Nosso estudo confirma que o tronco cerebral é obviamente a primeira região vulnerável ao Alzheimer e ponto de disseminação dessa doença devastadora”, afirma Helmut Heinsen, do Instituto de Psiquiatria da Universidade

>

O Projeto Diagnóstico nosológico de demência em população brasileira

modalidade

Linha Regular de Auxílio à Pesquisa Co­or­de­na­dor

Ricardo Nitrini – FMUSP investimento

R$ 125.595,45 (FAPESP)

de Würzburg, um dos pesquisadores alemães que dividem a autoria do trabalho com os brasileiros. “Esperamos que esses resultados obtidos com modelos humanos dêem um novo ímpeto ao desenvolvimento de estratégias de prevenção e tratamento do Alzheimer.” Injeções de células-tronco, transplantes de células cerebrais reprogramadas, imunoterapia guiada por imagens – todas essas técnicas ainda em gestação talvez um dia possam ser testadas no núcleo dorsal da rafe como candidatas a terapias. Os emaranhados neurofibrilares aparecem devido a uma alteração química na estrutura da proteína tau, responsável pela formação de microtúbulos que transportam nutrientes e informações dos prolongamentos dos neurônios ao seu corpo celular e

Tomografia de um cérebro com Alzheimer (à esquerda) e outro normal 18

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vice-versa. Modificada, a proteína desestabiliza os microtúbulos, levando ao colapso desse sistema e à morte de neurônios. Ao lado do surgimento de placas extracelulares decorrentes do acúmulo anormal da proteína betaamilóide, um segundo tipo de lesão também intimamente associada à ocorrência do Alzheimer, a presença dos emaranhados é uma marca registrada no cérebro da progressão da doença. Não há consenso entre os especialistas sobre qual das duas alterações anatômicas, os emaranhados ou as placas, é mais importante para o desenvolvimento dessa forma de demência. “Mas há evidências de que a progressão dos emaranhados é mais crucial do que o das placas da proteína betaamilóide para determinar a gravidade clínica do Alzheimer”, afirma Lea. Região esquecida - Não é nova a

constatação de que o núcleo dorsal da rafe apresenta emaranhados neurofibrilares no Alzheimer. No entanto, a ciência acreditava que as lesões nesse ponto do tronco cerebral surgiam depois, e não antes, de setores do córtex terem sido acometidos pelas alterações típicas da doença. Na verdade, não se dava muita importância a essa parte do cérebro nos exames patológicos que buscavam alterações anatômicas associadas a demências. “Até esse novo trabalho dos brasileiros e alemães ninguém que trabalhava com Alzheimer olhava para o tronco cerebral”, comenta o bioquímico Sérgio Teixeira Ferreira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), estudioso da doença. “Ter jogado luz sobre essa região é o grande mérito do estudo.” No chamado sistema Braak e Braak, que classifica em seis estágios as lesões do Alzheimer em função da área cerebral tomada pelos emaranhados, todo o foco está sobre áreas do córtex, intimamente ligado à questão da memória. Alterações de grau 1, o mais baixo da escala, são aquelas que se restringem ao córtex transentorrinal, o ponto cerebral usualmente descrito como o local onde tem início o Alzheimer. Por esse sistema, não se leva em conta a existência de lesão no tronco cerebral – nem mesmo no núcleo dorsal da rafe, que dista mais ou menos três centímetros do córtex transentorrinal – para atri-


fotos nih

Dois tipos de lesão associados ao Alzheimer: emaranhados neurofibrilares (abaixo) e placas da proteína betaamilóide

buir o eventual grau de extensão do Alzheimer. “Propomos incluir as lesões nessa região do tronco cerebral como um estágio neuropatológico anterior ao atual estágio 1 do sistema Braak e Braak”, escrevem os autores do artigo científico na Neuropathology and Applied Neurobiology. “Realmente o achado [do artigo] é uma novidade em seu campo e está muito bem fundamentado”, comenta o neurocientista Iván Izquierdo, da Pontíficia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), uma das autoridades mundiais no estudo dos mecanismos de formação e extinção da memória. “Os autores do estudo estão de parabéns.” Doença neurodegenerativa de origem ainda misteriosa e sem cura, cujas lesões cerebrais levam à morte progressiva de neurônios e à perda crescente da memória e posteriormente de outras funções cognitivas, até o ponto de comprometer a execução de tarefas triviais, como atravessar a rua, reconhecer um parente ou escovar os dentes, o Alzheimer afeta preferencialmente pessoas com mais de 60 anos. O envelhecimento da população mundial – tendência também verificada no Brasil, onde a quantidade de idosos, hoje na casa dos 19 milhões de pessoas, deverá dobrar nas próximas duas décadas – fez com que a doença seja atualmente vista como uma das prioridades da pesquisa médica. É difícil a luta contra o Alzheimer, visto que sua progressão pode ser silenciosa. Do momento em que surgem as lesões iniciais no cérebro até o aparecimento dos primeiros sintomas clínicos de perda de cognição, mais de uma década pode ter transcorrido. Só há uma forma de diagnosticar sem erro a doença: fazendo uma autópsia do cérebro para procurar as alterações anatômicas típicas da doença. Clinicamente, antes da realização da autópsia, PESQUISA FAPESP 153

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é impossível ter 100% de certeza de que um idoso sofre de Alzheimer, sobretudo se ele estiver no início do processo de perda de cognição. Afinal, nem todos os que se esquecem das coisas, sejam idosos ou não, estão, necessariamente, com Alzheimer ou algum outro tipo de demência. Buscar a cura da doença de Alzheimer é uma ambição mais do que válida para a pesquisa médica. Mas, no curto prazo, talvez seja mais realista pensar em formas de retardar a progressão das lesões cerebrais que levam ao Alzheimer e de postergar o máximo possível o aparecimento dos problemas cognitivos que, aos poucos, reduzem a qualidade de vida dos pacientes. Dessa forma, a medicina reduziria o período de morbidade da doença. “Se conseguirmos atrasar em dez anos o aparecimento dos sintomas clínicos da doença de Alzheimer, isso equivalerá a praticamente não ter a doença para muitos idosos”, explica o neurologista Ricardo Nitrini, da FMUSP, outro autor do estudo. Único no país, o banco de encéfalos humanos da FMUSP começou a ser montado em 2004, basicamente com recursos da própria Faculdade de

Medicina, do Ministério da Saúde e do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein. Hoje seu acervo conta com cerca de 2 mil amostras de tecido nervoso de pessoas que tinham ao menos 50 anos quando morreram de causa natural e, por isso, foram autopsiadas pelo Serviço de Verificação de Óbito (SVO) da cidade de São Paulo, ligado à FMUSP. Anualmente, o SVO realiza cerca de 13 mil autópsias. São usados em estudos científicos apenas os cérebros que os familiares dos mortos concordam em doar para a pesquisa. Além de autorizar a cessão dos encéfalos, os parentes têm que consentir em responder a questões destinadas a aferir se o familiar falecido apresentava alguma perda de cognição ou manifestação clínica que pudesse ser associada a algum quadro de demência. “A boa receptividade das pessoas aos nossos estudos foi surpreendente”, comenta Lea, que passa a maior parte do ano na Alemanha, onde faz pós-doutorado na Universidade de Würzburg, com bolsa da Fundação Humboldt. De posse dos dados passados pelos familiares, os pesquisadores confrontam o diagnóstico clínico do doador com os resultados de

Onde começa o Alzheimer córtex cerebral cerebelo

nih

núcleo dorsal da rafe

tronco cerebral

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exames histopatológicos realizados em seu cérebro. Assim fecham um veredicto final sobre a condição do doador: se era normal ou se tinha alguma forma de demência, apenas com sintomas clínicos ou também com lesões anatômicas. À medida que foi crescendo e se estruturando, o acervo de encéfalos, que faz parte do Projeto Envelhecimento Cerebral da FMUSP, passou a fornecer amostras de tecido nervoso para vários grupos de pesquisa, da própria universidade e de outras instituições. Um dos primeiros trabalhos feitos com esse material é justamente o que pode ter descoberto onde as lesões do Alzheimer surgem no cérebro humano. Mas há outros estudos em curso, alguns já com resultados palpáveis, outros ainda em estágio inicial. O DNA de cérebros foi extraído e enviado ao Centro de Estudos do Genoma Humano da USP, que vai tentar encontrar genes ligados à ocorrência de demências. Helena Brentani, do Hospital do Câncer A.C. Camargo, estuda a expressão da molécula RNA nos cérebros de pacientes com Alzheimer. Numa outra linha de pesquisa, visando avaliar as alterações cerebrais decorrentes do envelhecimento, a equipe de Roberto Lent, da UFRJ, realizou um trabalho interessante com amostras fornecidas pela USP. “O banco de cérebros é exemplar e muito bem organizado”, diz Lent. Com auxílio de uma metodologia própria, os pesquisadores cariocas estimaram a quantidade de neurônios e de outros tipos de células em cérebros de indivíduos saudáveis do ponto de vista cognitivo. Alguns resultados são surpreendentes (ver quadro ao lado). Demência mais comum - Com uma rica amostra de tecidos nervosos à sua disposição, os próprios pesquisadores do Projeto Envelhecimento Cerebral estão tendo a chance de confirmar, agora com o auxílio de exames modernos e precisos, informações epidemiológicas sobre a incidência de demências na população brasileira. Por terem um acervo muito grande de cérebros, representando tanto indivíduos que eram sadios em termos de doenças cognitivas quanto pessoas que tinham variados tipos de problemas neurológicos, eles podem desenhar estudos com as mais diversas


> Artigo científico GRINBERG, L.T. et al.The dorsal raphe nucleus shows phospho-tau neurofibrillary changes before the transentorhinal region in AD. A precocious onset? Neuropathology and Applied Neurobiology, a ser publicado on-line.

A geografia das células nervosas Três de cada quatro neurônios humanos estão no cerebelo, e não no córtex, diz trabalho de brasileiros Entre os animais, o cérebro humano é o mais complexo porque tem mais neurônios no córtex, certo? Os neurocientistas Suzana Herculano Houzel e Roberto Lent, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que acabam de concluir a contagem de neurônios em amostras de cérebros humanos cedidos pelo banco de encéfalos da Universidade de São Paulo (USP), não concordam com esse dogma da ciência. Para eles, que devem publicar em breve um estudo sobre o tema, o grande diferencial do Homo sapiens está na quantidade de células nervosas do cerebelo. Responsável por manter o equilíbrio e a coordenação motora, essa parte do cérebro representa pouco mais de 10% do tamanho do encéfalo, mas, segundo os cálculos dos pesquisadores, abriga aproximadamente 75% de todos os neurônios humanos. “O córtex não tem mais do que 20% dos nossos neurônios”, diz Lent. No entanto, seu peso equivale a 70% do encéfalo. “Sob essa ótica, o cerebelo, e não o córtex, representaria o pináculo da evolução humana.” O resto dos neurônios humanos está distribuído por estruturas menores, como o bulbo. Para os neurocientistas, a descoberta não foi totalmente inesperada. Ao contrário. A dupla da UFRJ, que desenvolveu um método próprio de contar neurônios, publicou trabalhos científicos nos últimos três anos mostrando que em 13 espécies distintas de mamíferos (seis roedores, seis primatas e um tupaia) a quantidade de neurônios no cerebelo aumenta em função do tamanho do cérebro, enquanto o número de células nervosas do córtex varia, proporcionalmente, bem menos em relação à dimensão do encéfalo. Nos roedores o córtex tinha em média apenas 18% do total de neurônios e o grosso das células nervosas estava no cerebelo.

nicolas rougier

finalidades. Dados preliminares desses trabalhos confirmam que o Alzheimer é realmente a doença cognitiva mais comum entre os idosos, respondendo por cerca de 60% dos casos, índice semelhante ao normalmente apregoado pelos estudos clínicos. Em seguida vieram as demências vasculares (25%), a doença do corpúsculo de Lewy (10%) e outras desordens cognitivas. “Essas outras demências são em geral subdiagnosticadas do ponto de vista clínico”, explica Lea. Hipertensão e diabetes são doenças associadas fundamentalmente aos problemas do coração. Mas também deveriam ser mais freqüentemente vistas como fatores de risco para demência. Numa amostra de cérebros com algum comprometimento cognitivo, o grupo da USP constatou a existência de alterações microvasculares em metade deles – um índice alto. “Essas alterações têm impacto direto na piora da cognição, tendo a pessoa Alzheimer ou não”, comenta Nitrini. Outro dado intrigante que surge desses estudos: cerca de 40 pessoas com mais de 80 anos que, do ponto de vista neuropatológico, apresentavam lesões típicas do Alzheimer no cérebro não tinham, segundo o relato de seus familiares, nenhuma manifestação clínica de demência. Isso pode indicar que esses indivíduos tinham algo que neutralizava os efeitos deletérios das lesões, talvez algum fator de proteção, com provável implicação no tratamento da doença. “Estamos tentando entender por que essas pes­soas não ficaram doentes”, explica Wilson Jacob-Filho, professor de geriatria da FMUSP e gerente-geral do Laboratório de Fisiopatologia no Envelhecimento. “Isso pode ter ocorrido devido a alguma característica genética ou a determinantes comportamentais e ambientais no transcorrer de sua vida.” Como se vê, mistérios a ser desvendados em torno n do Alzheimer não faltam.

Representação de neurônio

Nos primatas não-humanos a porcentagem de neurônios presentes no córtex variou entre 19% (galago) e 42% (macaco-de-cheiro) do total, índices sempre menores do que os encontrados no cerebelo. De acordo com o trabalho dos pesquisadores, a quantidade total de neurônios no cérebro humano não é muito diferente do que se preconiza normalmente. Eles contabilizaram cerca de 90 bilhões de células nervosas. O número clássico diz que o encéfalo de nossa espécie abriga cerca de 100 bilhões de neurônios. A pequena diferença talvez se deva à particularidade de eles terem contado os neurônios de indivíduos idosos, que podem ter perdido uma parte de suas células nervosas com o passar do tempo. Se a quantidade total de neurônios se manteve dentro do esperado, o mesmo não se pode dizer do número de células gliais, que servem de suporte e nutrição aos neurônios: a equipe da UFRJ encontrou cerca de 90 bilhões de células gliais, mais ou menos uma para cada neurônio. “Os livros científicos dizem que há dez células gliais para cada neurônio”, comenta Lent. “Mas achamos uma quantidade muito menor.”

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> O filantropo

FLAGRANTES DE PLÁGIO

Um grupo de pesquisadores da Universidade do Sudoeste do Texas, em Dallas, criou um programa de computador que identifica plágios em artigos científicos ao fazer o cruzamento de milhares de textos publicados em revistas especializadas. Com base no monitoramento realizado pelo software, a equipe texana, liderada por Harold Garner, criou uma base de dados sugestivamente batizada de Déjà Vu, que reúne 75 mil resumos listados na base Medline em que há evidências de cópia de outros textos. Em entrevista à revista Nature, Garner disse que 181 artigos são rematadas cópias de outros textos – em um quarto deles a similaridade beira os 100%. Tanto as publicações que reproduziram os textos clonados quanto os pesquisadores vitimados pelo plágio são alertados depois que o software faz o seu trabalho. O biogerontologista francês Eric Le Bourg ficou surpreso ao ver um artigo que publicou no jornal Experimental Gerontology ser integralmente reproduzido no Korean Journal of Biological Sciences, mas com a assinatura de Hak-Ryul Kim, da Universidade de Seul. “Era puro copy e paste. Até os gráficos eram copiados”, disse. Pelo menos 22 plagiadores de 12 países são reincidentes, diz Garner, que se queixa da relutância de certas publicações em denunciar o plágio. Segundo ele, seus alertas não surtiram nenhum efeito em 50% dos casos e, mesmo quando há retratação, ela nem sempre é comunicada à PubMed, a consagrada base de dados de resumos. LAURABEATRIZ

está de volta O físico e empresário Fred Kavli, de 81 anos, tornou-se conhecido por utilizar uma parte de sua fortuna, avaliada em US$ 600 milhões, para patrocinar 15 institutos que levam seu nome e fazem pesquisa em neurociência, nanociência e astrofísica, além de premiar com US$ 1 milhão cientistas dessas áreas. O sucesso da empreitada filantrópica levou Kavli, nascido na Noruega e radicado nos Estados Unidos, a anunciar uma nova rodada de doações aos institutos. Cada um deles, que havia recebido US$ 7,5 milhões para começar a funcionar, agora terá mais US$ 5 milhões. Kavli explicou à revista Nature que a dotação é condicionada à capacidade do instituto de obter dinheiro de outras fontes para compor um total de US$ 20 milhões. Kavli enriqueceu ao criar uma empresa que se tornou líder em sensores automotivos e aeronáuticos.

> Equador diz “não”

STIG ANDERSEN/NORDISK FILM

ESTRATÉGIAS MUNDO

Fred Kavli: doações

e sementes transgênicas”, embora admita que, em caso de interesse nacional, os poderes Executivo e Legislativo poderão abrir exceções. Julio César Delgado, diretor-geral do Instituto Nacional Autônomo de Pesquisas Agropecuárias, disse ao jornal Hoy que o artigo impedirá o desenvolvimento da biotecnologia no país.

WILDLIFE CONSERVATION SOCIETY

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aos transgênicos A nova Constituição do Equador, chancelada por um referendo popular no final de setembro, proibiu o cultivo de plantas transgênicas e impôs limites à biotecnologia. O artigo 401 da Carta Magna declara o Equador “livre de cultivos 22

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Ave morta na Mongólia:

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Beterraba, não “Nós sabemos que o HIV causa a Aids”, afirmou em meados de outubro Barbara Hogan, militante histórica do Congresso Nacional Africano, duas semanas depois de assumir o Ministério da Saúde da África do Sul. A declaração, embora expresse um consenso científico de mais de duas décadas, marca uma notável mudança de rumo na política de combate à Aids no país, que tem estimados 5,4 milhões de pessoas contaminadas. A antecessora de Barbara, Manto Tshabalala-Msimang, passou nove anos à frente

A missão européia ExoMars, cuja ambição é procurar sinais de vida em Marte, teve seu lançamento adiado de 2013 para 2016 devido aos custos elevados do projeto. A Agência Espacial Européia (ESA) foi convocada por seus países membros a reduzir o orçamento da missão não-tripulada, estimado em € 1,2 bilhão. A ESA tentará agora atrair o apoio dos Estados Unidos e da Rússia para o projeto. “Isso permitiria manter os objetivos do programa sem reduzir sua capacidade científica”, disse o porta-voz da ESA, Franco Bonacina, à agência BBC. Aprovada em 2005, a missão foi orçada inicialmente em € 650 milhões. Mas, enquanto o projeto era deVeículo da ExoMars: custos elevados senvolvido, a ESA ampliou o leque de instrumentos científicos. Com isso o custo dobrou. A Itália, que da pasta afirmando que lidera o programa e aceitara a ampliação do orçamento, a Aids não é causada pelo voltou atrás e anunciou que não colocaria mais dinheiro do HIV e que, em vez dos que o previsto. Como as missões ao planeta vermelho só são caros remédios contra a enviadas quando há um alinhamento favorável entre a Terra síndrome, o ideal era tratar e Marte, o lançamento programado para novembro de 2013 terá de esperar até janeiro ou fevereiro de 2016. a doença comendo beterrabas

MARTE PODE ESPERAR

> Remédios, sim.

ESA

María de Lourdes Torres, doutora em biologia molecular da Universidade San Francisco de Quito (USFQ), também lamentou a proibição. “Os transgênicos deveriam ser objeto de uma lei ordinária, nunca de um artigo constitucional”, criticou, de acordo com a agência SciDev.Net.

e alho. A nova ministra anunciou a expansão do programa de distribuição de medicamentos anti-retrovirais, que hoje já atinge 550 mil pessoas no país. “Também vamos

Especialistas da entidade ambientalista Wildlife Conservation Society divulgaram um relatório que lista 12 patógenos com alto potencial de propagação como conseqüência das mudanças na temperatura e na precipitação vinculadas ao aquecimento global. A lista traz doenças como a gripe aviária, o ebola, a cólera, a tuberculose, a bactéria Yersinia pestis, a febre do Rift Valley, a doença do sono, a febre amarela, a babesiose e a doença de Lyme, além de um espectro de males causados por parasitas intestinais. Como muitas dessas moléstias são zoonoses, a melhor defesa, segundo o relatório, é ampliar as estratégias de monitoramento de animais selvagens a fim de detectar como tais doenças estão se espalhando. “A saúde dos animais está ligada intimamente aos ecossistemas em que vivem e ao clima que os cerca. Até mesmo pequenas variações neste equilíbrio podem ter conseqüências perversas”, disse Steven Sanderson, presidente da Wildlife Conservation Society.

PATÓGENOS EMERGENTES

monitoramento de doenças

reforçar a prevenção da transmissão da doença entre mães e seus bebês”, disse a ministra, segundo a agência de notícias Associated Press.

> O apagar das luzes O uso de lâmpadas incandescentes será proibido nos países da União Européia (UE) a partir de 2010. Os ministros de Energia dos países da UE decidiram incluir as lâmpadas de baixo rendimento no rol de produtos proibidos pela legislação, a exemplo do que já havia sido feito com tecnologias usadas em lavadoras e fornos elétricos. Segundo a agência EFE, os ministros determinaram que seja apresentado nos próximos meses um projeto de regulamento com as estratégias para iniciar a substituição gradual de lâmpadas incandescentes e de baixo rendimento.

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ESTRATÉGIAS MUNDO

DOIS MIL BILHETES AZUIS

Cerca de 2 mil pesquisadores italianos deverão perder seus cargos públicos graças a uma lei que deve entrar em vigor neste final de ano. Proposta pelo premiê Silvio Berlusconi para racionalizar o serviço público, a nova legislação cancela um dispositivo aprovado pelo governo anterior, de orientação centro-esquerdista, que autorizou a efetivação de funcionários públicos contratados temporariamente por um longo período, desde que fossem considerados quaLaboratório de física de Gran Sasso, na Itália: temporários na rua lificados. Muitos cientistas que haviam sido selecionados para permanecer SciDev.Net que o centro > O desempenho – 2 mil num universo de 4,5 mil temporários – agora terão dos islâmicos de abandonar seus cargos, pois a lei proíbe a prorrogação irá revelar a real densidade da produção científica dos contratos por um período superior a três anos. O minisA Organização da dos países muçulmanos. tro da Administração Pública, Renato Brunetta, enfureceu Conferência Islâmica a comunidade acadêmica ao taxar de “indolentes” os ser“A idéia é permitir que (OIC) anunciou a criação os formuladores de políticas vidores públicos atingidos pelo corte. Os cientistas na Itália de um centro encarregado públicas disponham pertencem ao quadro do funcionalismo público e o número de de analisar o desempenho cargos é determinado pelo governo central. “Como na última de dados fidedignos sobre, acadêmico de seus 57 países por exemplo, o número década não foram abertas novas vagas efetivas, passamos membros e propor medidas de artigos e de patentes a ter números exagerados de pesquisadores com contratos para ampliar o impacto por pesquisador”, afirmou. precários”, disse à revista Nature Luciano Maiani, presidente de sua produção científica. do Conselho Nacional de Pesquisa da Itália. “Os índices de citações

Entre os objetivos da entidade, destacam-se a criação de um índice para ranquear as publicações científicas das nações muçulmanas, a introdução de medidas quantitativas e qualitativas para avaliar seus periódicos e a produção de relatórios sobre o status das universidades, instituições de pesquisa e centros tecnológicos. Mamadou Goita, do Instituto de Economia Rural do Mali, disse à agência 24

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internacionais ignoram a produção dos países islâmicos.” O centro, baseado no Irã, deverá começar a funcionar em 2009.

> Adeus, laboratório A Universidade do Havaí anunciou a desativação de um de seus dois laboratórios de biologia marinha. Instalado há 35 anos próximo à praia de Waikiki,

o Kewalo Marine Laboratory será demolido e cederá lugar a um parque à beira-mar. A direção da universidade alega restrições orçamentárias. “Não temos dinheiro para bancar dois laboratórios marinhos ao mesmo tempo”, disse o vice-reitor Gary Ostrander. Com a devolução do imóvel ao governo do Havaí, a universidade receberá um terreno onde planeja

GRAN SASSO NATIONAL LABORATORIES

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construir um centro de pesquisa sobre o câncer. A decisão gerou protestos da comunidade acadêmica. “O Havaí é um dos dois únicos estados norte-americanos com capacidade para estudar a biologia dos corais”, disse ao jornal Star Bulletin, de Honolulu, o pesquisador Michael Hadfield. “Se a Flórida tem 22 laboratórios marinhos, por que o Havaí não pode ter dois?”

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mil publicações acadêmicas. A Universidade de São Paulo foi responsável por 10,5 milhões de acessos em 2007, o equivalente a 18,5% do total. Em 2º e em 3º lugares aparecem a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com 6,89%, e a Universidade Estadual Paulista (Unesp), com 5,93%. Em seguida despontam as federais do Rio Grande do Sul (UFGRS), com 5,08%, e do Rio de Janeiro (UFRJ), com 3,44%.

> Para entender o cérebro O programa Cooperação Interinstitucional de Apoio a Pesquisas sobre o Cérebro (CInAPCe), da FAPESP, pôs em operação mais um dos seus equipamentos de ressonância magnética de grande porte. O aparelho foi instalado no Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). De acordo com Giovanni Cerri, diretor da Divisão de Diagnóstico por Imagem

do HC, o aparelho é o mais avançado na área: não se limita à ressonância anatômica, mas abrange também a funcional. “Com as informações funcionais, podemos estudar melhor os mecanismos das doenças neurológicas”, disse. O CInAPCe reúne

pesquisadores de seis instituições num articulado esforço para compreender o funcionamento do cérebro. A USP já dispõe de um outro aparelho instalado em seu campus de Ribeirão Preto e, a partir deste mês, deve começar a operar o equipamento da Unicamp. O Hospital Albert Einstein, parceiro privado do programa, já está operando seu aparelho. Outro centro, na USP de São Carlos, terá um sistema de ressonância magnética para estudos em modelos animais, em colaboração com a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). As imagens obtidas no atendimento a pacientes abastecerão um grande estudo sobre os mecanismos das doenças neurológicas, em especial a epilepsia.

> Em defesa da Fapergs Membros da Academia Brasileira de Ciências enviaram uma carta à governadora do Rio Grande

do Sul, Yeda Crusius, pedindo providências em relação à crise aguda pela qual passa a Fapergs, fundação de amparo à pesquisa gaúcha. O impasse da Fapergs envolve falta de comando e de recursos. Desde o início do ano, o Conselho Superior da fundação já enviou duas vezes uma lista tríplice para a escolha do novo diretor presidente da fundação, mas até outubro nenhum dos nomes havia sido chancelado pela governadora. E os repasses à fundação, que por lei deveriam equivaler a 1,5% da renda líquida de impostos (o equivalente, em 2008, a R$ 156 milhões), neste ano foram apenas R$ 8 milhões. “A permanecer o status quo, boa parte dos recursos federais propostos para a pesquisa em nosso estado não mais será recebida, pois é exigida uma contrapartida, mesmo que simbólica, da Fapergs”, diz a carta, assinada pelo geneticista Francisco Salzano, que é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

ILUSTRAÇÕES LAURABEATRIZ

O presidente da FAPESP, Celso Lafer, recebeu no dia 8 de outubro representantes da indústria e de universidades da Alemanha. O objetivo da delegação foi ter contato com as áreas do conhecimento apoiadas pela FAPESP para verificar possibilidades de parcerias com a Fundação e a comunidade de pesquisadores e empresários do estado de São Paulo. “Estamos à procura de parceiros brasileiros em pesquisa científica, tecnológica e desenvolvimento de projetos, que possam trabalhar de forma bilateral e trazer benefícios para ambos os países”, disse à Agência FAPESP Helmut Kergel, um dos membros da delegação. “Nossa conversa foi muito positiva”, afirmou. Celso Lafer destacou que os representantes alemães são ligados à área de pesquisa no setor produtivo, com forte vínculo com a pesquisa básica e aplicada. “Essa aproximação mostra a importância do tema da internacionalização para as universidades brasileiras e para a FAPESP”, disse Lafer.

PARCERIAS COM A ALEMANHA

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POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

NOBEL

O coro dos excluídos Fabrício Marques

O

s virologistas Luc Montagnier, então no Instituto Pasteur de Paris, e Robert Gallo, do Instituto Nacional do Câncer (INC) dos Estados Unidos, disputaram nos anos 1980 a primazia (e os direitos sobre royalties) da descoberta do vírus causador da Aids, feito anunciado quase simultaneamente por ambos, em 1984. Três anos mais tarde, soube-se que as amostras de vírus de Gallo derivavam das de Montagnier – os dois haviam trocado material enquanto tentavam identificar o vírus da misteriosa e letal doença que destruía o sistema imunológico de suas vítimas. Gallo afirmou que suas amostras haviam sido inadvertidamente “contaminadas” pelas do colega, que, por sua vez, não só aceitou a desculpa como jamais se furtou a participar de debates e de conferências ao lado do ex-rival. A disputa foi encerrada de forma diplomática, com a partilha dos méritos e dos royalties entre os dois. Pois essa disputa foi relembrada em grande estilo 21 anos depois de seu desfecho quando foram anunciados os vencedores do Prêmio Nobel de Medicina ou Fisiologia de 2008: Luc Montagnier e sua colega Françoise Barré-Sinoussi, com quem isolou o vírus da Aids um quarto de século atrás, e o alemão Harald zur Hausen, que descobriu a relação entre o papilomavírus (HPV) e o câncer do colo de útero. Para Robert Gallo, nada. “Não há dúvida sobre quem fez as descobertas fundamentais”, afirmou Maria Masucci, integrante do Comitê Nobel. Montagnier e Barré-Sinoussi, magnânimos, deram crédito a Gallo. “É um conflito para esquecer. Também é verdade que equipes norte-americanas foram importantes na descoberta do vírus e isso deve ser reconhecido”, disse Barré-Sinoussi.

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Gallo divulgou uma nota sem ressentimentos. “Fico satisfeito que meu velho amigo e colega, o doutor Luc Montagnier, assim como sua colega Françoise Barré-Sinoussi, tenham recebido esta honraria”, disse. “Fico gratificado por ler a gentil declaração do doutor Montagnier hoje de manhã manifestando que eu era igualmente merecedor.” Já John Niederhuber, diretor do Instituto Nacional do Câncer, lembrou que Gallo e Montagnier receberam crédito conjunto pela descoberta. “Estou extremamente desapontado por o INC e todos os recursos que ele angariou para a descoberta do vírus da Aids – junto com a tecnologia para tornar os bancos de sangue seguros e as drogas que fizeram da Aids uma doença crônica – não terem sido reconhecidos”, afirmou. Processo sigiloso - As queixas de in-

justiçados pelo Nobel são tão antigas quanto o próprio prêmio, criado em 1901 por força do testamento de Alfred Nobel, o inventor da dinamite. Mas, como é sigiloso o processo de seleção realizado pela Academia Real de Ciências da Suécia e pelo Instituto Karolinska, é difícil avaliar as razões que levaram à escolha de um pesquisador em detrimento de outro. Uma análise das exclusões mostra que elas estão relacionadas ao número restrito de premiações (no máximo três por categoria), a dificuldades de identificar quem fez a contribuição mais importante de uma determinada pesquisa e à falta de experiência ou reputação de um pesquisador dentro de sua comunidade. Robert Gallo está em honrosas companhias na lista dos barrados pelo Nobel. A física austríaca Lise Meitner (1878-1968) é um exemplo. Em 1944, ela foi ignorada pelo Nobel, que

laureou Otto Hahn com o prêmio de Química por sua pesquisa em fissão nuclear. Meitner e Hahn haviam trabalhado juntos durante 30 anos no Instituto Kaiser Wilhelm, de Berlim. Separaram-se em 1938 quando a judia Meitner transferiu-se para a Suécia para fugir do nazismo. Os dois seguiram trocando cartas sobre suas experiências e chegaram a encontrar-se secretamente em Copenhague, em1938. As cartas indicam que Meitner guiou Hahn nas pesquisas que levaram à descoberta da fissão nuclear, como mostrou o livro Lise Meitner: a life in physics, de Ruth Lewin Sime. Em 1939, Hahn publicou as evidências da fissão nuclear, mas não deu crédito da descoberta à colega, fato explicado pelo clima de perseguição do nazismo. Atribui-se a esse lapso a injustiça cometida pelo Nobel. Albert Schatz (1922-2005) travou uma disputa jurídica contra o microbiologista Selman Waksman, de quem era aluno na Universidade Rutgers. Atribui-se ao jovem Schatz, então com 23 anos, a descoberta de um antibiótico, a estreptomicina. Waksman e Schatz publicaram juntos o achado, mas, na hora de patenteá-lo, o professor obteve para si a maior parte dos royalties. Schatz conseguiu que a Justiça o declarasse co-autor da descoberta e detentor da metade dos royalties. Ainda assim, o Comitê Nobel concedeu o prêmio de Medicina ou Fisiologia de 1952 apenas a Waksman. Outro caso famoso em que a juventude do candidato pesou negativamente foi o de Jocelyn Bell Burnell, excluída do Nobel de Física de 1974, que reconheceu a descoberta dos pulsares. Ela era estudante de graduação da Universidade de Cambridge quando detectou o primeiro pulsar. Em 1968 publicou na revista Nature seus resulta-

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AFP

Ao laurear Luc Montagnier e ignorar Robert Gallo, a organização do Nobel acrescenta um nome na galeria dos que se julgam injustiçados pelo prêmio

INSTITUTO PASTEUR

DKFZ

Gallo e Montagnier: disputa relembrada pelo Nobel

Harald zur Hausen: HPV

Françoise: HIV

dos em co-autoria com o professor Antony Hewish, coordenador da pesquisa. Em 1974, o comitê Nobel a excluiu do prêmio de Física concedido a Hewish e a seu colega Martin Ryle. A lista dos excluídos tem um brasileiro célebre. O físico César Lattes (1924-2005), embora tenha sido o responsável pela experiência e fosse o primeiro autor do artigo da Nature que descreveu uma nova partícula atômica, batizada de méson-pi, foi excluído do prêmio de Física de 1950 que reconheceu a descoberta. O laureado foi o chefe do laboratório em que Lattes trabalhava na Universidade de Bristol, Cecil Powell (1903-1969). Numa entrevista concedida ao Jornal da Unicamp, em 2001, Lattes deu uma explicação pragmática para sua exclusão. Disse que Powell tinha mais renome devido a seu trabalho sobre a produção de pósitrons e levou o Nobel de 1950 não só pela descoberta do méson, mas também por fotografar os núcleos atômicos. Em tempo: na premiação do Nobel de 2008, o coro dos injustiçados não se restringiu aos colegas de Robert Gallo. Amigos do físico italiano Nicola Cabibbo reivindicaram sua participação inspiradora na pesquisa dos japoneses Makoto Kobayashi e Toshihide Maskawa, dois dos laureados com o Nobel de Física. E dois dos ganhadores do Nobel de Química, Roger Tsien e Martin Chalfie, declararam que não teriam feito seu trabalho sem a colaboração de Douglas Prasher. Foi ele quem clonou o gene da proteína fluorescente que rendeu o prêmio. Prasher, de 57 anos, vive numa cidade do estado do Alabama, trabalhando como motorista. Depressivo, desinteressou-se da vida acadêmica depois que o governo norte-americano lhe negou financiamento para estudar a proteína fluorescente. ■ PESQUISA FAPESP 153

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LLOYD DEGRANE

OSAMU SHIMOMURA J.SASSIER-GALLIMARD

Aequorea victoria: proteína fluorescente Yoichiro Nambu: simetria na física

Le Clézio: mais de 40 livros

A safra de 2008 Prêmios científicos são divididos por pesquisadores dos Estados Unidos, França, Alemanha e Japão

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DENISE APPLEWHITE/PRINCETON UNIVERSITY

O prêmio de Física foi concedido a dois japoneses, Makoto Kobayashi, 64 anos, da Organização de Pesquisa do Acelerador de Alta Energia, em Tsukuba, e Toshihide Maskawa, 68 anos, da Universidade de Kioto, e a um japonês

HELKAMA

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premiação do Nobel de 2008 foi marcada por duas peculiaridades: os favoritos nas bolsas de apostas foram desprezados e houve um relativo equilíbrio entre as potências científicas, com prêmios concedidos a cientistas da França, dos Estados Unidos, da Alemanha e do Japão. Os americanos tiveram sua melhor performance no prêmio de Química. Osamu Shimomura, 80 anos, da Universidade de Boston, Martin Chalfie, 61 anos, da Universidade de Colúmbia, e Roger Tsien, 56 anos, da Universidade da Califórnia em San Diego, foram agraciados pela descoberta e por estudos feitos para o uso da proteína verde fluorescente. Também conhecida pela sigla em inglês GFP, a proteína foi observada pela primeira vez por Shimomura em uma água-viva encontrada na América do Norte, a Aequorea victoria, em 1962. Com a ajuda da GFP, pesquisadores desenvolveram técnicas para observar processos que anteriormente não podiam ser vistos, como o desenvolvimento de células nervosas no cérebro ou como o câncer se espalha pelo corpo.

naturalizado americano, Yoichiro Nambu, 87 anos, da Universidade de Chicago, responsáveis por contribuições na área de física de partículas. Nambu descreveu a quebra de simetria na física subatômica enquanto Kobayashi e Maskawa ajudaram a explicar como ocorre a violação de um tipo de simetria. O prêmio de Medicina ou Fisiologia foi concedido a dois franceses que descobriram o vírus da Aids e a um alemão responsável pela identificação do vírus que provoca o câncer do colo de útero (leia reportagem na página 28). A força dos Estados Unidos no Nobel foi posta em dúvida antes da divulgação da safra de prêmios, mas graças a uma polêmica acerca do Nobel de Literatura

Martti Ahtisaari: paz em Kosovo

Paul Krugman: globalização

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História familiar - O vencedor foi o

francês Jean-Marie Gustave Le Clézio, 68 anos, um escritor popular em seu país e razoavelmente conhecido fora dele. Autor de bibliografia extensa, com mais de 40 livros, segundo o comitê do Nobel Le Clézio teve seu grande salto com Désert (1980). Recentemente, os trabalhos do escritor se direcionaram para a sua história familiar, como A quarentena (1995) e O africano (2004), publicados no Brasil. O ganhador do Nobel da Paz foi o ex-presidente da Finlândia Martti Ahtisaari, de 71 anos, que atuou em vários continentes em prol da resolução de conflitos internacionais, como em Kosovo em 1999 e em 20052007 na Indonésia. Paul Krugman, 55 anos, professor de economia da Universidade de Princeton e colunista do jornal The New York Times, foi o vencedor do Nobel de Economia. “Padrões de comércio e de regionalização sempre foram assuntos fundamentais no debate econômico. Quais são os efeitos do comércio livre e da globalização? Quais são as forças por trás da urbanização mundial? Paul Krugman formulou uma nova teoria para responder a essas questões”, destacou o comitê do Nobel. Krugman é um crítico da administração do presidente americano George W. Bush, a quem atribui a responsabilidade da atual crise financeira mundial – circunstância que pode ter sido decisiva na escolha do Nobel de Economia em meio à maior crise do capitalismo desde 1929. ■

Nosso primeiro Ig Nobel Estudo de arqueólogo da USP sobre impacto de tatus em escavações leva o prêmio que “primeiro faz rir e depois pensar”

Dois pesquisadores brasileiros venceram a categoria Arqueologia do Ig Nobel 2008, prêmio famoso por reconhecer pesquisas que “primeiro fazem a pessoa rir e depois pensar”, conforme propõe a organizadora da honraria, a revista Annals of Improbable Research. O estudo divulgado em 2003 pelos arqueólogos Astolfo Mello Araújo, professor da Universidade de São Paulo (USP), e José Carlos Marcelino, do Departamento do Patrimônio Histórico do Município de São Paulo, demonstrou que os tatus, hábeis em escavar terrenos, podem embaralhar a posição de fragmentos de peças arqueológicas e atrapalhar o trabalho dos pesquisadores. O estudo de Astolfo e Marcelino mostra que os tatus conseguem misturar camadas separadas por até 20 centímetros. “Se uma camada dessas separar 2 mil anos de história, podemos encontrar misturados pela ação dos tatus o fragmento de uma espada romana e uma bateria de celular”, afirma Astolfo. Os arqueólogos enterraram fragmentos de peças pintados com cores diferentes

em camadas superpostas numa região habitada por tatus. Tempos depois, foram avaliar o que aconteceu com elas. “Não é novidade que os tatus fazem isso, mas ninguém antes mediu o impacto dessa ação”, diz Astolfo. Publicado no periódico Geoarchaeology: An International Journal, o estudo chamou a atenção dos organizadores do Ig Nobel, que enviaram a Astolfo perguntas sobre o estudo. “Quando descobri que se tratava do Ig Nobel, fiquei dividido. Mas depois que me informei sobre a natureza do prêmio me tranqüilizei”, diz Astolfo, que deu seu aval para a premiação. “Eles só avaliam pesquisas publicadas em revistas sérias, com avaliação por pares. Se uma pesquisa brasileira está sendo lida em Harvard, mesmo que por algo pitoresco relacionado a ela, creio que há motivo para comemorar”, afirma. Aos 43 anos, o arqueólogo tornou-se docente em 2007 da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP, também conhecida como USP Leste. Mas está se transferindo para o Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, depois de passar num concurso.

ARQUIVO PESSOAL

deflagrada por Horace Engdahl, secretário permanente da Academia Sueca. Dias antes do anúncio da premiação, Engdahl disse à agência Associated Press que faltava consistência aos Estados Unidos para desafiar a Europa como centro do mundo literário. “Os Estados Unidos são muito isolados, insulares. Não traduzem o suficiente e de fato não participam do grande diálogo da literatura. Essa ignorância é muito limitante”, afirmou. A National Book Foundation, que elege o melhor da literatura americana no prêmio National Book Award, respondeu a Engdahl: “Vamos enviar-lhe uma lista de leituras”. David Remnick, diretor da revista New Yorker, aproveitou para lembrar que a Academia Sueca não premiou Joyce, Proust e Nabokov.

O arqueólogo Astolfo Araújo: peças embaralhadas

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FOMENTO

Estados unidos Sete fundações de amparo à pesquisa se articulam para criar uma rede de investigação sobre a malária

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undações de Amparo à Pesquisa (FAPs) de sete estados brasileiros articulam uma parceria inédita a fim de buscar respostas para enfrentar a malária, doença que atinge 500 mil brasileiros e mata mil deles anualmente, quase todos na região amazônica. No dia 17 de novembro acontece em Brasília uma reunião com representantes das FAPs do Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Rio de Janeiro e São Paulo para discutir um documento que propõe a criação da Rede de Malária. A expectativa de Odenildo Sena, presidente do Conselho Nacional das FAPs (Confap), é de que sejam lançados editais em cada estado nos próximos meses. “Seria bom formalizarmos a rede ainda neste ano para garantir recursos orçamentários em 2009”, afirma Sena, que também é presidente da fundação do Amazonas (Fapeam). O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e o Ministério da Saúde já manifestaram interesse de patrocinar a Rede de Malária. Segundo Odenildo Sena, cada estado deverá aplicar entre R$ 1 milhão e R$ 1,5 milhão em pesquisas, mas o valor de cada edital deverá chegar a pelo menos R$ 3 milhões, pois incluirá uma contrapartida do CNPq e, possivelmente, do Ministério da Saúde. Os participantes da rede definirão os temas a serem investigados conjuntamente. “A idéia é que todos se esforcem para resolver problemas cruciais, como a busca de uma vacina contra a doença ou o desenvolvimento de remédios a partir de plantas, e não que cada um se dedique a questões específicas, sem se articular com os demais”, diz Sena. Como vários estados da região amazônica não dispõem de FAPs organizadas, a rede poderá envolver pesquisadores desses locais

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utilizando recursos do governo federal. É o caso, por exemplo, de Rondônia, que não tem uma fundação, mas abriga o Instituto de Pesquisa em Patologias Tropicais (Ipepatro), centro de referência em moléstias parasitárias comandado pelo renomado parasitologista Luiz Hildebrando Pereira da Silva. É a primeira vez que tantas FAPs se organizam para atuar conjuntamente. A Rede de Malária começou a ser concebida há poucos meses, quando a Fapeam decidiu lançar um edital para fomentar pesquisas sobre malária e apresentou propostas de parceria para a FAPESP e a fundação do Pará. Como a receptividade foi boa, dirigentes de fundações de outros estados foram contatados e aceitaram incorporar-se à iniciativa. “Temos no Amazonas um laboratório a céu aberto e os outros estados detêm expertises próprias em pesquisas sobre a doença”, diz Odenildo Sena. “Quem está na vanguarda da pesquisa em determinadas áreas poderá contribuir com estados com maior dificuldade. A troca de experiência é importante para o desenvolvimento da pesquisa no país.” A participação do CNPq foi acertada numa reunião realizada em Brasília no final de setembro entre os representantes das FAPs e Marco Antônio Zago, presidente do órgão. No dia 3 de outubro, outra reunião selou o interesse do Ministério da Saúde em aderir ao programa. “O Brasil já tem bons investimentos em pesquisa sobre malária e é importante potencializar as capacidades dos estados para eliminar a doença”, disse Suzanne Jacob Serruya, da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde. ■

Fabrício Marques Mais informações sobre malária na página 48.

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UNIVERSIDADES

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Reforço no ensino público São Paulo investe em educação a distância para garantir formação universitária a professores

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meio de uma parceria com a Secretaria Estadual da Educação, 110 mil docentes deverão ingressar no ano que vem em 16 cursos de pós-graduação. O programa terá outros dois módulos. Um deles contempla a oferta de vários cursos de licenciatura como Matemática, Física, Química, Biologia e Língua Portuguesa. O segundo oferecerá cursos para professores que já tenham um curso superior completo e desejam seu aperfeiçoamento profissional. Estão programados cursos de especialização em docência no ensino fundamental e médio e em gestão escolar. O acompanhamento dos estudos e das atividades pedagógicas será feito tanto de forma presencial, em 70 pólos de apoio instalados nas universidades e outras instituições participantes, como pela internet ou por uma linha do telefone 0800. As aulas laboratoriais e as avaliações serão realizadas nos pólos, onde o aluno receberá apoio pedagógico. Um conjunto de tutores estará continuamente disponível para atender os alunos via internet. A partir de fevereiro, o canal digital da TV Cultura transmitirá durante as 24 horas do dia os programas-aula. A principal justificativa do programa é a persistência da formação escassa dos docentes paulistas: 36% dos professores de educação infantil e 27% dos de 1ª a 4ª séries não possuem diploma universitário, de acordo com dados de um censo realizado pelo Ministério da Educação (MEC) em 2005. No total, chegam a 60 mil os professores sem formação universitária em atividade. O Univesp vai se somar a um programa lançado no mês passado pelo MEC e pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), que promete investir R$ 1 bilhão na formação de professores tanto na forma presencial, com a abertura de vagas

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de Professores do Magistério promete investir R$ 1 bilhão na iniciativa. Parte do dinheiro será destinada a instituições superiores federais, estaduais e municipais para custear a abertura de novas vagas; outra será utilizada no pagamento de bolsas para os professores universitários que assumirem mais turmas de licenciatura; e outra parte para bolsas para os docentes do ensino básico. A expectativa é de que cerca de 600 mil professores – sem graduação ou sem formação específica na disciplina em que lecionam – sejam qualificados nos próximos três anos. “Nosso objetivo é oferecer uma formação continuada, qualificando o professor e adequando o que ele aprende na universidade ao que encontra na realidade, no chão da escola”, afirmou o ministro da Educação, Fernando Haddad. ■ PESQUISA FAPESP 153

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oi oficializada pelo governador de São Paulo, José Serra, a criação do Programa de Expansão do Ensino Superior Paulista Universidade Virtual do Estado de São Paulo, também conhecido como Univesp. Trata-se de um plano de ensino a distância que vai envolver as universidades de São Paulo (USP), Estadual Paulista (Unesp) e Estadual de Campinas (Unicamp) para dar formação superior a um público-alvo de 35 mil professores utilizando ambientes virtuais de aprendizagem. “O programa promoverá a expansão do conhecimento levando em conta três princípios básicos: acesso, eqüidade de oportunidades ao ensino superior e a busca obsessiva pela qualidade”, afirmou Carlos Vogt, secretário estadual de Ensino Superior e coordenador do programa. O Univesp terá investimento de R$ 152 milhões, sendo R$ 52 milhões da Secretaria Estadual da Educação e R$ 100 milhões provenientes da Secretaria Estadual de Ensino Superior, que criou o programa com apoio da TV Cultura (Fundação Padre Anchieta) e da Fundação para o Desenvolvimento Administrativo Paulista (Fundap). “As universidades vão caprichar porque são as três melhores do país e não darão aula sem qualidade”, disse o governador José Serra na cerimônia de lançamento do programa. “É um instrumento novo, com um potencial grande, e nós temos que aprender, cada vez mais, a aproveitá-lo”, afirmou. A idéia é oferecer já no ano que vem 6,6 mil vagas gratuitas a professores, divididas em 5 mil vagas no curso de pedagogia, 700 de licenciatura em biologia e 900 de licenciatura em ciências. Serão desenvolvidos, ainda, cursos de especialização voltados a professores da rede estadual de ensino, da 5a série ao ensino médio. Por

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DIFUSÃO

Medalhas

na bagagem Com mais apoio, equipes brasileiras colhem resultados nas olimpíadas científicas internacionais

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“Nunca antes havíamos tido um desempenho tão consistente por equipe, embora ocasionalmente já tivéssemos conseguido medalhas de ouro”, diz o professor Edmilson Motta, do Colégio Etapa de São Paulo, um dos responsáveis pelo treinamento do grupo nacional. O país também teve sua melhor performance na Olimpíada Internacional de Informática desde que começou a participar da competição, em 1999. Todos os quatro estudantes da equipe brasileira presentes em sua 20ª edição, realizada de 16 a 23 de agosto, no Cairo, capital do Egito, ganharam medalhas de bronze. “Não é comum que todos os alunos enviados por um país ganhem medalhas”, diz Ricardo Anido, professor do Instituto de Computação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e responsável pelo treinamento da equipe brasileira. Os estudantes brasileiros que participaram da 40ª Olimpíada Internacional de Química, realizada em julho, em Budapeste, na Hungria, trouxeram quatro medalhas (uma de prata e três de bronze) e alcançaram seu melhor desempenho histórico na competição, superando países como Estados Unidos, França, Japão e Dinamarca. Com o resultado, o Brasil subiu 11 posições na classificação geral em relação à olimpíada anterior, realizada na Rússia. Os bons resultados de 2008 não foram acidentais. Um dado importante é que vem crescendo o apoio à organização de olimpíadas científicas brasileiras, de onde saem os representantes para os torneios internacionais. Um exemplo é a Fundação Carlos Chagas, que desde 2006 assumiu o patrocínio da Olimpíada Brasileira de Informática, o que permitiu dobrar o público de participantes nos últimos anos – neste ano, foram 12 mil concorrentes, diante de 7 mil em 2007. Desde 2005, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) passou a lançar um edital anual específico para apoiar tais iniciativas. Embora o dinheiro – cerca de R$ 1 milhão em 2007 – seja compartilhado por várias iniciativas, é fato que se criou uma regularidade no apoio às olimpíadas. “O resultado é que as competições vêm se sofisticando e ganhando mais visibilidade”, diz Angela

ILUSTRAÇÕES DE LAURA DAVIÑA SOBRE PICTOGRAMAS DE OTL AICHER

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desempenho dos estudantes do Brasil em várias olimpíadas científicas internacionais deu um salto de qualidade em 2008. Na contramão da má performance do país em rankings internacionais de aprendizagem de ciências, matemática e leitura, um grupo de adolescentes brasileiros, na imensa maioria oriundos de escolas particulares, conquistou medalhas inéditas em competições no exterior. Tome-se o exemplo da 39ª Olimpíada Internacional de Física, realizada em Hanói, no Vietnã, entre 21 e 29 de julho. O Brasil obteve sua primeira medalha de prata, conquistada por Guilherme Victal Alves da Costa, de 16 anos, aluno do terceiro ano do ensino médio num colégio privado de São Paulo. O paranaense Alex Atsushi Takeda levou bronze. Participaram da olimpíada 400 alunos do ensino médio de 90 países. A medalha de ouro foi entregue a 46 estudantes. Quarenta e sete ganharam prata e 78, bronze. “Ficamos em pé de igualdade com países como a Espanha, a Bélgica, e a Suíça, e abaixo dos Estados Unidos e de alguns países do Leste Europeu”, disse Euclydes Marega Júnior, professor do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP), que coordenou a preparação dos estudantes. O Brasil teve bons resultados também na 49ª Olimpíada Internacional de Matemática, realizada em julho, na Espanha. Conquistou seis medalhas, sendo cinco de prata e uma de bronze, e ficou na 16ª posição no ranking mundial entre 103 países participantes, representados por 549 jovens de todo o mundo.

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Cunico, coordenadora de ciências humanas e sociais do CNPq e responsável pelo edital. “Nos preocupamos em apoiar olimpíadas que tenham caráter nacional e que estimulem o aperfeiçoamento dos estudantes e também de seus professores”, afirma. O objetivo dos organizadores das olimpíadas científicas brasileiras é identificar novos talentos, fazer com que o interesse pelas disciplinas desperte mais cedo e, é claro, promover as respectivas carreiras. Isso é especialmente importante para áreas que já não atraem tantos alunos como antigamente, como a ciência da computação. “Mas, se nem todos forem trabalhar na área de informática, não tem problema. Caso se tornem médicos ou engenheiros com conhecimento de computação, também é bom”, diz Ricardo Anido, professor da Unicamp. Com mais apoio, a organização de várias olimpíadas brasileiras vem conseguindo superar o voluntarismo para se profissionalizar. Montar um campeonato de âmbito nacional não é tarefa simples. Em geral realiza-se uma primeira fase em que milhares de alunos fazem uma prova em suas próprias escolas, aplicadas pelo próprio professor, e o material é enviado para a organização da olimpíada. Uma nota de corte seleciona os melhores, em geral algumas centenas, que se submetem a uma segunda fase. Isso acontece nos próprios estados, mas dessa vez a prova é aplicada pelos organizadores das olimpíadas. A

preparação da equipe que representou o Brasil na Olimpíada Internacional de Física mostra como a organização vem conseguindo avançar. Até o ano passado, os campeões brasileiros estavam automaticamente recrutados para representar o país nos torneios internacional e ibero-americano. Mas, a partir deste ano, foi implantada uma fase extra de preparação, na qual os 12 estudantes com notas mais altas na olimpíada nacional passaram seis dias no Instituto de Física de São Carlos (IFSC), na USP, fazendo um treinamento teórico e prático voltado para as competições no exterior. “Foi a primeira vez que fizemos isso e já houve um reflexo no desempenho da nossa equipe”, diz o professor Euclydes Marega Júnior. “Além do treinamento em si, há um fator psicológico importante. Os alunos passam quase uma semana longe de casa se preparando e não se ressentem tanto da pressão quando chegam ao ambiente competitivo, em geral num país estrangeiro, das olimpíadas internacionais”, diz Marega. Cinco níveis – Dos 12 que participam do

treinamento, apenas os cinco melhores são destacados para a olimpíada internacional. Os demais disputam as quatro vagas para representar o Brasil na Olimpíada Iberoamericana, que se realizou em Morélia, no México, de 28 de setembro a 3 de outubro. Pois a equipe brasileira obteve três medalhas de ouro e uma de prata, além da primeira posição na classificação geral. Pela primeira vez, o Brasil ganhou três medalhas de ouro nesse torneio, que teve a participação de 68 estudantes do ensino médio de 19 países. Os 80 melhores alunos da Olimpíada Brasileira de Informática também ganharam o direito a um treinamento de uma semana no Instituto de Computação da Unicamp. E os 20 melhores desse grupo participaram de um curso mais avançado de preparação para olimpíadas internacionais. Mas o desempenho crescente tem também outras razões. A seleção divide-se em cinco níveis de dificuldade e atrai estudantes a partir do sexto ano (antiga 5ª série) do ensino fundamental. Com isso, um aluno pode participar da olimpíada brasileira dos 11 aos 19 anos, galgando os níveis de dificuldade. Outro diferencial é o engajamento de ex-participantes de olimpíadas na elaboração das questões. “Temos vários alunos de doutorado que nos ajudam a formular as questões. E é comum que os egressos das olimpíadas saiam-se muito bem nas marato-

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nas de programação, eventos também organizados pela Sociedade Brasileira de Computação, mas dirigidos a universitários”, afirma Ricardo Anido. O treinamento intensivo dos estudantes para as olimpíadas internacional e ibero-americana de matemática foi reforçado recentemente. Professores que, quando eram adolescentes, participaram e ganharam medalhas em olimpíadas de matemática estão ajudando a nova geração de talentos. A seleção parte de um universo de mais de 100 mil participantes para chegar aos 50 premiados na olimpíada brasileira. Desses, são escolhidos os seis melhores para participar dos campeonatos internacionais. A preparação dos selecionados é feita em São Paulo no Colégio Etapa. “Os nossos representantes têm em média 16 anos, pois apenas alunos de ensino médio podem participar. Em outros países, onde há ensino de 12 anos, chega a haver concorrentes com 19 anos”, diz o professor Edmilson Motta. A Olimpíada Brasileira de Matemática é um projeto conjunto da Sociedade Brasileira de Matemática (SBM) e do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa). Se depender do esforço da SBM e do Impa, vai aumentar a participação de alunos de escolas públicas na olimpíada brasileira. As duas instituições, aliadas aos ministérios da Educação (MEC) e da Ciência e Tecnologia (MCT), passaram a organizar em

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2005 a Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (Obmep). Na 4ª edição do torneio, realizado neste ano, inscreveram-se 18 milhões de alunos dos ensinos fundamental e médio em 40.377 escolas. Segundo Ildeu Moreira, responsável pelo Departamento de Popularização e Difusão de Ciência e Tecnologia do MCT, um dos objetivos da Obmep é estimular a melhoria do ensino da disciplina e incentivar o surgimento de novos talentos. “O quanto a olimpíada está significando como estímulo só poderá ser avaliado no longo prazo. Mas logo ficará claro o quanto está atraindo jovens para as áreas de ciência e tecnologia”, disse. Além de ganhar medalhas, os alunos com melhor desempenho concorrem a 3 mil bolsas de Iniciação Científica Jr. no valor de R$ 100 mensais, para seguirem estudando matemática. Escolas de Fortaleza – Há um denominador comum no perfil dos alunos que se saem melhor em olimpíadas científicas. A imensa maioria vem de escolas privadas, ainda que alunos de escolas públicas participem em boa quantidade nas seletivas. A qualidade deficiente do ensino público brasileiro ajuda a explicar esse fenômeno, embora seja comum que alunos de escolas técnicas tenham destaque e que nem todas as escolas privadas emplaquem alunos. A experiência mostra que as

escolas que efetivamente se engajam na preparação de seus alunos para as olimpíadas, oferecendo aulas específicas fora da grade curricular, são as que obtêm os melhores resultados. O caso mais curioso é o da Olimpíada Brasileira de Biologia: 80% dos participantes e quase a totalidade dos selecionados para representar o Brasil em torneios internacionais saíram de duas escolas privadas de Fortaleza, o Ary de Sá Cavalcante e o Farias Brito, que se empenham em treinar os alunos para olimpíadas científicas de todo tipo. Da mesma forma, redes de ensino como o Objetivo e o Etapa mantêm programas de treinamento e oferecem bolsas para alunos que se saem bem nesses torneios. A rivalidade entre escolas privadas pode ser saudável, de acordo com os organizadores das olimpíadas, desde que suas estratégias não ultrapassem certos limites. “Há escolas que abonam faltas dos alunos para que eles se dediquem à preparação das olimpíadas. Acho isso impróprio”, diz Ricardo Anido, do Instituto de Computação da Unicamp. A dedicação aos torneios não costuma atrapalhar os alunos. “Eles quase sempre se saem muito bem no vestibular e não é raro que se destaquem na universidade. Além disso, uma medalha conquistada em olimpíadas costuma qualificá-los para vôos mais altos“, diz Euclydes Marega Júnior. A estudante Thaís Macêdo Bezerra Terceiro Jorge, de Fortaleza, conquistou em 2006 a medalha de ouro na Olimpíada Ibero-americana de Química e, no ano passado, a medalha de prata na Olimpíada Internacional de Química, em Moscou. Tais vitórias contaram pontos quando ela tentou ingressar no Massachusetts Institute of Techno-

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logy (MIT), nos Estados Unidos. Hoje é aluna do Departamento de Química do instituto. Uma boa notícia é que, a partir deste ano, o valor do edital do CNPq de apoio às olimpíadas está subindo de R$ 1 milhão para R$ 1,5 milhão. Com isso, além de competições tradicionais em matemática, física, química, astronomia, biologia e robótica, que disputaram o edital e foram contempladas, será realizada também a primeira Olimpíada de História do Brasil. Claudia de Moraes Russo, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e responsável pela organização da Olimpíada Brasileira de Biologia, comemora. “Vai ser possível melhorar a nossa divulgação e atrair mais estudantes”, afirma Claudia, referindo-se à 6ª edição de sua olimpíada, que será realizada em 2009. Embora sem a mesma tradição de outras olimpíadas, a de biologia também comemora feitos. Nas duas últimas olimpíadas ibero-americanas a equipe brasileira conseguiu um mesmo resultado: uma medalha de ouro, uma de prata e duas de bronze. E, na internacional, realizada em julho em Mumbai, na Índia, o estudante cearense Pedro Bessa obteve uma inédita medalha de bronze. A vitória teve um sabor especial porque no torneio de 2007, no Canadá, o Brasil não pôde mandar representante. Faltando uma semana para a olimpíada, os ministérios da Educação e da Ciência e Tecnologia, que haviam prometido passagens aéreas para a equipe de estudantes de biologia, voltaram atrás alegando que eles não eram estudantes da rede pública. Neste ano a organização obteve apoio de outras fontes para a viagem. ■

Fabrício Marques

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LABORATÓRIO MUNDO

> Separação Há quem adoeça quando se separa da pessoa amada. Quem ajuda a entender por que o fim de um relacionamento pode ser tão doloroso são os roedores monógamos da espécie Microtus ochrogaster, que dão pistas sobre os mecanismos fisiológicos associados à depressão da separação. Em artigo publicado em outubro na Neuropsychopharmacology, pesquisadores da Alemanha e dos Estados Unidos mostraram o que acontece ao separar casais de roedores que viviam juntos havia cinco dias. Quatro dias após a separação, os machos se limitaram a boiar quando postos para nadar num recipiente com água e ficaram passivos ao serem pendurados pela cauda – sinais típicos de depressão, não observados se quem partia era o irmão em vez da companheira. Os cientistas minimizaram a reação depressiva ao tratar os machos abandonados com um composto que inibe no cérebro os receptores do fator liberador de corticotropina – um fármaco promissor como antidepressivo para seres humanos. Os resultados revelam os efeitos fisiológicos ligados ao sentimento de perda que se segue ao fim de um relacionamento – e talvez ajudem a lidar com a situação. 38

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DAVID DUCROS/CNES

e dor

As estrelas produzem ondas ressonantes, como instrumentos musicais que vibram. E o satélite Corot (Convecção, rotação e trânsito planetário), lançado em 2006, é capaz de captá-las. Até recentemente só se conheciam as vibrações características do Sol. Agora o Corot detectou essas oscilações em três Corot: espiando a evolução do Universo estrelas situadas bem mais distantes que o nosso Sol. A > Quando falta detecção desse fenômeno, que pode ser chamado de "estenicotina lemoto", permitirá estudar a estrutura interna das estrelas. Os primeiros resultados da missão, da qual participam os asFumantes que tentam trônomos Eduardo Janot Pacheco, da Universidade de São Paulo, e José Renan de Medeiros, da Universidade Federal largar o cigarro não do Rio Grande do Norte, mostram que essas estrelas oscilam conseguem se concentrar com intensidade 1,5 vez maior que o Sol e têm granulação em tarefas comuns. Estudos até três vezes mais fina (Science). Essa granulação deve apresentados em setembro no congresso da Academia revelar as escalas de tempo e de distância do processo de Americana de Médicos de convecção de gases na superfície das estrelas, além de dar pistas sobre suas características magnéticas. Família mostraram que a

A MÚSICA DAS ESTRELAS

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nicotina causa alterações em áreas específicas do cérebro, limitando a capacidade de agir e pensar. Usando ressonância magnética funcional, que permite

observar o cérebro em ação, pesquisadores localizaram as áreas afetadas pela retirada da nicotina do cigarro.

Suplementos de nicotina podem ajudar a reverter o desequilíbrio causado pela abstinência (Eurekalert).

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PELO BEM DO GRUPO

LAURABEATRIZ

O psicólogo James Pennebaker, da Universidade do Texas, Estados Unidos, desenvolveu um método de análise psicológica baseada na contagem e classificação de palavras. A pedido do FBI, a polícia federal norte-americana, ele avaliou comunicações da Al Qaeda. Verificou que, ao longo dos anos, Osama bin Laden fez uso constante de pronomes

de primeira pessoa (eu, meu, minha). Já o segundo homem da organização, Ayman al-Zawahri, passou a usar essas palavras com mais freqüência. “Esse aumento sugere maior insegurança, sentimento de ameaça e talvez uma mudança na relação com Bin Laden”, escreveu Pennebaker em relatório publicado este ano. O psicólogo usa o mesmo enfoque para avaliar a recuperação de pessoas que sofreram trauma. Pessoas cuja saúde mental está melhorando usam menos pronomes de primeira pessoa e mais palavras que indicam causa e efeito – uma pista de que estão pensando sobre o que escrevem, não simplesmente relatando (New York Times).

> Petróleo sem segredos Uma nova técnica para avaliar o peso de moléculas agora permite a análise detalhada do petróleo e dá origem a uma nova

disciplina: a petroleômica, ou caracterização do petróleo em nível molecular. Com a técnica de nome complicado – espectrometria de massas com ressonância ciclotrônica de íons e transformada de Fourier – agora é possível distinguir e separar em categorias os componentes do petróleo segundo os elementos químicos que os constituem, as ligações entre esses elementos químicos e o número de átomos de carbono do composto. Essa caracterização deve tornar possível compreender, e quem sabe prever, as propriedades físicas e químicas do valioso óleo. A petroleômica surge num momento em que o preço do petróleo vem subindo constantemente e no qual o mercado recorre a petróleo mais pesado, mais ácido e com maior teor de enxofre, visto que os estoques de petróleo com menos enxofre estão se esgotando. Alan Marshall e Ryan Rodgers, da Universidade Estadual da Flórida, Estados Unidos, explicam as conquistas e os desafios dessa nova área em artigo publicado em outubro no site da revista PNAS.

PETROBRAS

TOM WENSELEERS

Nos dias de verão, a atividade é intensa em torno de um formigueiro da espécie Forelius pusillus, comum no interior de São Paulo. Mais de cem operárias de dois milímetros carregam para fora do ninho grãos de areia que depositam em torno da entrada. No fim do dia a abertura do ninho aos poucos diminui, assim como a movimentação dos insetos. Antes do pôr-do-sol a entrada está fechada Formigas Forelius pusillus: sacrifício pela colônia e o formigueiro protegido. Estudando essas formigas, o grupo de > Medindo Adam Tofilski, da Universidade Agrícola em Cracóvia, na Polôas palavras nia, fez uma descoberta curiosa: as operárias que depositam os últimos grãos de areia na abertura do ninho não têm como Quando organizações entrar. A cada noite entre uma e oito formigas ficam para fora terroristas divulgam vídeos e desaparecem – fogem de predadores ou são carregadas pelo ou cartas, seus integrantes vento. O artigo, na edição de novembro da American Naturanão imaginam que cada list, é um relato inédito de uma espécie em que o sacrifício pela defesa da colônia é rotineiro e preventivo. palavra será destrinchada.

Petroleômica: análise molecular do ouro negro

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LABORATÓRIO BRASIL

MAIS INUNDAÇÕES EM 2100

O que aconteceria com a Baixada Santista se em 2100 o nível médio do mar subisse 1,5 metro em razão das mudanças climáticas? Pesquisadores de hidráulica da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo construíram um modelo físico que reproduz os mil quilômetros quadrados dos estuários de Santos e São Vicente e de sua linha costeira e simularam os efeitos dessa alteração. Entre as conseqüências previstas pelo estudo, publicado em setembro na Environment Monitoring Assessment, destaca-se o provável isolamento, em razão de inundação, da região da Ponta da Praia, perto Santos: praias podem ficar submersas e parte da cidade isolada do porto de Santos, do resto da cidade. No Guarujá, em São Vicente e na Praia Grande, > Açougueiros na Historical Biology, parte das praias será submersa, afetando áreas densamente povoadas. O aumento de 1,5 metro no nível do mar no litoral é possível que fosse o do passado paulista não é um cenário absurdo. Em 2005 houve ondas de carniceiro que o nome três metros e elevação de 80 centímetros no nível das marés Os antepassados dos sugere, mas não se na baía de Santos durante uma forte tempestade. crocodilos não eram nada contentava só com carne:

os dentes com formato de molares indicam que sua dieta incluía vegetais. “Qualquer que fosse seu alimento, era de difícil digestão e necessitava ser mastigado antes de engolido”, explica Marco Brandalise de Andrade, que

ILUSTRAÇÃO: FELIPE ELIAS

parecidos com os de hoje, que passam boa parte do tempo parados dentro da água e rastejam quando se aventuram em terra firme. O Sphagesaurus montealtensis, ou réptil açougueiro de Monte Alto, vivia fora da água e caminhava com a barriga longe do chão. Segundo artigo publicado em junho

estudou os fósseis emprestados pelo Museu de Paleontologia de Monte Alto durante seu mestrado na Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Rio Claro. A espécie

RICARDO ZORZETTO

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S. montealtensis viveu entre 80 milhões e 65 milhões de anos atrás onde hoje é o interior de São Paulo e se soma a mais sete crocodilianos já descritos que habitavam a região nesse período, uma diversidade que sugere que havia mais crocodilianos do que dinossauros no Brasil.

Sphagesaurus: crocodilo terrestre que viveu entre 80 milhões e 65 milhões de anos atrás 40

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MIGUEL BOYAYAN

> A leishmaniose nas cidades

> Atenção à saúde mental Problemas mentais como depressão e esquizofrenia podem impedir as pessoas de trabalhar e desagregar famílias, além de estarem relacionados a suicídios e até homicídios. Nas últimas décadas, o Brasil optou por substituir os hospitais psiquiátricos pelos Centros de Apoio

Cães paulistanos: também infectados

Psicossocial (Caps), idealizados para atender distúrbios mentais complexos na comunidade com o mínimo de internações. É uma estratégia inovadora, mas implantada de modo tímido. Em 2006 havia 848 Caps, um para cada 200 mil habitantes, e 27 leitos psiquiátricos por 100 mil pessoas, bem menos que

o necessário, segundo diagnóstico liderado por Mário Mateus, da Universidade Federal de São Paulo. O total de psiquiatras e psicólogos também é pequeno: 6 mil e 18 mil, respectivamente. Serviços e recursos humanos estão concentrados nas áreas mais ricas do país (International Journal of Mental Health Systems).

fortificada Ferro e vitamina C na água potável podem ajudar a combater a anemia infantil, que afeta metade dos brasileiros com até 5 anos. A mistura foi desenvolvida por Joel Lamounier, Flávio Capanema e Daniela Rocha, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, e está sendo testada em 24 creches de Belo Horizonte. Os resultados até agora são promissores. O grupo detectou uma queda de 69% na prevalência de anemia entre as 321 crianças examinadas. Caíram também os índices de desnutrição e o déficit de crescimento. O teor de hemoglobina no sangue subiu (Minas Faz Ciência).

Quem vê o réptil amarelado serpenteando pelas trilhas do Cerrado pode temer uma mordida de cobra. Mas não deve se preocupar: não é venenoso, nem é cobra. Apesar de alongado e sem patas aparentes, Bachia oxyrhina é um lagarto. A espécie foi descoberta em janeiro deste ano na Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins numa expedição coordenada por Cristiano Nogueira, da ONG Conservação Internacional do Brasil. O lagarto deixa um rastro ondulante quando serpenteia na superfície do solo, mas prefere mesmo é enterrar-se com a ajuda do focinho achatado – em grego seu nome significa "nariz em forma de cunha". Encabeçada pelo zoólogo especialista em répteis Miguel Trefaut Rodrigues, da Universidade de São Paulo, a descrição do animal foi publicada em setembro na revista Zootaxa. Para ele, a descoberta é mais um indício da riqueza biológica que ainda está por ser descoberta no Cerrado. É a terceira espécie de lagarto sem patas do gênero Bachia que ele descreve desde 2007 no Cerrado do Tocantins.

ISTO NÃO É UMA COBRA

AGUSTÍN CAMACHO/USP (LAGARTO) E LUCIANO CANDISANI (PAISAGEM)

Entre os 427 cães atendidos na última década, em 117 o Serviço de Dermatologia do Hospital Veterinário (Hovet) da Universidade de São Paulo detectou anticorpos contra o protozoário que causa a leishmaniose visceral. Além de provocar lesões na pele, a doença afeta o fígado, o baço e a medula óssea – e pode matar. A leishmaniose já foi considerada enfermidade rural, transmitida por insetos do gênero Lutzomyia como o mosquito-palha, que vive em florestas. Mas nas últimas décadas vem se aproximando de grandes cidades (ver Pesquisa FAPESP nº 151). Segundo Carlos Larsson, chefe do Serviço de Dermatologia do Hovet, é pouco provável que os cães tenham contraído a doença na capital paulista. Alguns, porém, parecem ter sido infectados em municípios da Região Metropolitana de São Paulo, como Cotia e Embu (Agência USP de Notícias). A presença de animais doentes nas cidades eleva o risco de transmissão para pessoas.

> Água

Morro do Fumo: região da descoberta do lagarto sem patas PESQUISA FAPESP 153

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CIÊNCIA GENÉTICA

Construção DE UMA DESCOBERTA Linhagem brasileira de células-tronco embrionárias humanas abre caminho para novas pesquisas em busca de terapia contra doenças Maria Guimarães

FOTOS LABORATÓRIO LYGIA DA VEIGA PEREIRA/USP

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meçou a trabalhar com células-tronco s células-tronco extraídas de embriões humanos têm sido embrionárias importadas logo após a celebradas como a grande aprovação da Lei de Biossegurança, em esperança para curar muitas 2005, que regulamentou esse tipo de doenças contra as quais a mepesquisa. Em 2006 trouxe pesquisadicina hoje tem as mãos até dores estrangeiros, como Prithi Rajan, certo ponto atadas. É o caso do Instituto Burnham em San Diego, de determinados problemas cardíacos, nos Estados Unidos, para mostrar code anomalias de origem genética como mo fazer o cultivo das células. “Ela nos distrofia muscular e de doenças degeensinou as condições ideais de cultura nerativas do sistema nervoso como mal e mostrou como treinar o olho para de Parkinson. Freqüentadoras assíduas ver quando as células estão ‘felizes’”, das páginas de ciência e saúde de jorlembra. Mesmo assim, as primeiras nais e revistas, essas células, que podem linhagens morreram. “Tivemos que dar origem a qualquer tecido humano, alterar detalhes no meio de cultivo e ganharam ainda mais destaque desde o com isso mostramos que conseguimos dia 2 de outubro, quando a geneticista fazer sozinhos.” O cardiologista José Lygia da Veiga Pereira, da Universidade Eduardo Krieger, do Instituto do Code São Paulo (USP), anunciou ter obtiração (InCor) da USP, faz coro: “O mais do uma linhagem brasileira de célulasimportante é dominar a tecnologia. Só tronco embrionárias – a BR-1. assim podemos interferir ativamente A novidade foi recebida com festa em todo o processo de pesquisa com pelos colegas presentes no III Simpóterapia celular. Isso não tem preço.” O sio Internacional de Terapia Celular em presidente da Federação de Sociedades Curitiba, Paraná. Em seguida à aprede Biologia Experimental (Fesbe), Luiz sentação, alguns pesquisadores tinham Eugênio Mello, completa: “Em muitas sugestões de como testar a capacidade linhagens americanas é difícil saber se das células. “Mas o que queriam mesmo as células estão em boas condições de era saber quando as células estariam manutenção. É diferente quando se tem disponíveis”, conta Lygia. Mesmo quem um vizinho que pode informar 100% não entrou nessa fila afirma que a consobre as características do material com quista é importante e dá independência que você trabalha”. Outra vantagem é a agiaos pesquisadores brasileiros. Mais do que substituir a imlidade para se conseguir Colônia viva: amostras de células. Para portação desse tipo de célula, células-tronco a geneticista da USP celebra a a geneticista Mayana Zatz, embrionárias competência técnica que seu do Centro de Estudos do se multiplicam grupo demonstrou em obter Genoma Humano da USP, em placa com e manter a linhagem. Ela coo grande entrave para fazer meio artificial

pesquisa com células-tronco no Brasil é o tempo gasto para importar todo o material. “Demoramos meses para receber reagentes que um americano tem em mãos em menos de 48 horas”, conta. “Numa área competitiva como essa, fica quase impossível publicarmos em periódicos internacionais.” Apesar de celebrado, o investimento necessário para desenvolver uma linhagem de células-tronco embrionárias está sujeito a críticas por ser mais um avanço técnico do que científico. Lygia é a primeira a admitir: “Não tem inovação científica nesse resultado, é um trabalho inglório que alguém tinha de fazer”. A obtenção de células-tronco consiste em retirar por volta de 50 células de um embrião de cinco dias, quando ainda é uma massa de apenas 150 células, e fazer com que se mantenham vivas e se dividindo, mas sem se transformar em células de tecidos específicos, como pele, músculo ou sistema nervoso. Essa capacidade de originar tantas variedades de células – a pluripotência – faz das células-tronco embrionárias um coringa do organismo. Não é preciso instalações muito especiais para trabalhar com essas células: Lygia montou seu Laboratório de Genética Molecular com auxílio da FAPESP para projetos anteriores. Além do equipamento básico como reagentes e microscópios, basta ter uma área isolada para lidar com as células e uma incubadora para mantê-las numa temperatura confortável, a 37 graus Celsius. Parece simples, mas poucos laboratórios no PESQUISA FAPESP 153

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E Embrião de cinco dias d de onde são retiradas a as células pluripotentes

Brasil têm a receita para manter as células nessas condições. Mesmo assim o feito do grupo de Lygia não é novidade, porque já existem linhagens de célulastronco em vários países – o pioneiro foi o norte-americano James Thomson, da Universidade de Wisconsin, em 1998. Conhecimento transferido - Obter

uma linhagem de células-tronco embrionárias é sobretudo prova de paciência e muita persistência para encontrar a composição exata do líquido que nutre as células. Lygia conta para isso com uma equipe de estudantes – alguns deles com bolsa da FAPESP, embora o projeto específico que desembocou na BR-1 tenha sido financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pelo Ministério da Saúde. Para obrigar as células a permanecerem pluripotentes, o procedimento tradicional era cultiválas sobre uma camada de fibroblastos de camundongo. Essas células secretam uma combinação de substâncias que mantêm a cultura nesse estado versátil, mas os pesquisadores se preocupam porque elas também produzem compostos típicos de roedores que podem de certa maneira contaminar as células humanas, que se tornariam inadequadas para fins terapêuticos. Lygia tentou usar fibroblastos humanos, mas não teve sucesso. Finalmente, no ano passado, lançou mão de uma nova ferramenta: um meio de cultura artificial que tem tudo o que a célula precisa, como aminoácidos, vitaminas e fatores de crescimento. Com mais uns ajustes deu certo, e daí saiu a BR-1. 44

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Lygia preocupou-se em otimizar todo o processo antes de usar os minúsculos embriões que, como a lei brasileira exige, estavam havia mais de três anos nos congeladores das clínicas de reprodução assistida Fertility, em São Paulo, e Prof. Franco Junior, em Ribeirão Preto. Mesmo com a técnica dominada, a taxa de sucesso é baixa: dos 250 embriões descongelados inicialmente, a maior parte já não era viável e não poderia ser usada para fins reprodutivos. Só 35 se desenvolveram até o estágio de 150 células. Apenas as células de um desses embriões conseguiram fincar raízes no meio de cultura e começaram a se espalhar como se fosse um gramado em solo fértil. O produto de dois anos de trabalho está agora em dezenas de ampolas armazenadas no congelador do Laboratório de Genética Molecular da USP. E também na incubadora e nas bancadas do laboratório, onde a equipe testa as células para verificar se elas são mesmo pluripotentes. Até agora parece que sim. A equipe de Lygia demonstrou que a morfologia das células que se reproduzem nas placas de vidro é típica da de células-tronco. O grupo também analisou geneticamente as células e detectou a atividade de genes que só se expressam em células pluripotentes. O grande teste foi remover os freios que mantêm as células em estágio não diferenciado. “As células entram em diferenciação caótica”, explica a pesquisadora da USP, que viu surgirem neurônios e células de músculos, reconhecidas por suas características ao microscópio e também por anticorpos específicos. Faltam

ainda testes importantes para garantir que as células terão a versatilidade funcional que se espera delas: o primeiro será implantar algumas dessas células em camundongos e ver se causam teratomas, estruturas em que as células se multiplicam e se diferenciam em diferentes tecidos. “Forma uma massa com pele, músculo, cabelo, dente, as coisas mais variadas”, conta Lygia. Também será necessário fazer testes funcionais para saber se, por exemplo, as células com aparência de neurônios realmente produzem potenciais de ação em resposta a um estímulo elétrico, como fazem num organismo. Lygia e seus colaboradores pretendem produzir células suficientes para todos os grupos brasileiros interessados em fazer pesquisa com células-tronco. Para isso será preciso produzir células em ampla escala, tarefa em que vem se empenhando o neurocientista Stevens Rehen em seu laboratório na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Quantidade de células não deve ser o problema. Em parceria com Leda Castilho e os alunos de doutorado Aline Marie Fernandes e Paulo André Marinho, todos da UFRJ, Rehen desenvolveu uma técnica que permite obter 90 milhões de células em duas semanas, 70 vezes mais do que seria possível no cultivo tradicional, com uma série de vantagens além da eficiência. “Precisamos trocar menos vezes o meio de cultura, o que diminui o risco de contaminação e torna o processo três vezes mais barato”, diz o pesquisador do Rio, que adaptou, para multiplicar células em cultura, um método engenhoso já usado para produção de fármacos. Em vez de cultivá-las nas placas que parecem fôrmas de gelo – se cheias d’água, produziriam seis cilindros de gelo com cerca de 3,5 centímetros de diâmetro – ele transfere as células para um biorreator. Apesar do nome pomposo, Rehen descreve o biorreator como um enorme frasco de maionese com uma placa e uma haste magnetizadas que agitam o vidro e controlam totalmente seu conteúdo. Além disso, em vez de deixar que as células proliferem presas ao fundo da placa, ele acrescenta microesferas à mistura. Depois de um tempo de descanso as células aderem às esferas – é a hora de começar a agitar. Com as esferas em suspensão, aumenta

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muito a área que as células têm para ocupar. Além disso, a agitação deixa o ambiente mais oxigenado e propício para reações biológicas. A produtividade antecipada por Rehen mais do que daria conta da demanda brasileira, mesmo com o desperdício que deverá haver no início, até que os grupos de pesquisa aprendam a manter as células embrionárias humanas em meio de cultura – com ajuda de Lygia e Rehen, que se dispõem a treinar quem mostrar interesse em trabalhar com elas. Mas ainda é cedo para cantar vitória. O neurocientista carioca está otimista, afinal seu método deu certo com as células americanas. Mesmo assim será preciso ver se as células BR-1 mantêm sua capacidade pluripotente depois de multiplicadas em grande escala. Instrumento de pesquisa - Lygia pre-

tende ampliar a família das BR. “Não está claro quão idênticas as linhagens são entre si”, conta, “verificamos que cada uma delas é mais propensa a se diferenciar em um tipo de tecido ou outro”. Além disso, particularidades genéticas podem ser necessárias para cada linha de pesquisa. A própria Lygia, por exemplo, está interessada em entender como os dois cromossomos X, que juntos definem que um ser humano será mulher, interagem numa célula. Isso é importante porque em cada célula de uma mulher existe um mecanismo que inativa um dos cromossomos X – de outra maneira os genes localizados nesse cromossomo teriam presença duplicada nas mulheres em relação aos homens. Para entender como isso funciona, Lygia precisa de células femininas, o que não é o caso da BR-1, obtida a partir de um embrião masculino. À medida que se multiplicam, as células acumulam pequenas mudanças. Por isso linhagens antigas são mais diferentes do embrião original do que uma estabelecida mais recentemente. Comparar as propriedades de linhagens diferentes será justamente a missão do doutorado de Ana Maria Fraga, a aluna de Lygia que teve papel central em estabelecer a linhagem brasileira. Apesar do interesse que notícias sobre células-tronco despertam no público, as terapias com esse tipo de células ainda devem demorar para chegar à PESQUISA FAPESP 153

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realidade – pesquisadores nem mesmo arriscam uma previsão. Mayana Zatz não se cansa de repetir que as células em si não são um tratamento: “Não vamos injetar células-tronco embrionárias em ninguém”. Até agora, experimentos vêm mostrando que células-tronco indiferenciadas geram tumores quando injetadas em animais. Pesquisadores as vêem como um poderoso instrumento de pesquisa, não uma solução terapêutica mágica. Quando eles entenderem como as células-tronco embrionárias originam todos os tecidos humanos, poderão tentar interferir na atividade dos genes e nas características do ambiente que permitirão manipular células adultas. “Células embrionárias são as únicas que têm o hardware completo”, explica Krieger, do InCor, “precisamos conhecer o software e aprender a explorar esse software em outras células”. Nesse ponto talvez as células-tronco embrionárias até deixem de ser necessárias. Nesse espírito, o cardiologista tenta descobrir quais são os estímulos químicos que transformam as células-tronco embrionárias em diferentes componentes do sistema vascular, como músculo cardíaco ou vaso sangüíneo. As linhas de pesquisa que prometem resultado mais rápido são as que usam células-tronco adultas. Em seu laboratório, Krieger tem testes clínicos em andamento para averiguar a capacidade de células da

Anticorpos marcam células pluripotentes (as duas da esquerda), e transformadas em neurônios (núcleos em azul)

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medula óssea do próprio paciente para corrigir isquemias, quando o coração recebe menos sangue do que necessita. Se der certo, será possível substituir, ou pelo menos completar, a grande quantidade de cirurgias de pontes, em que se implanta um novo vaso sangüíneo para substituir um obstruído, e assim restituir o fluxo de sangue para o coração. Passo a passo - O entusiasmo maior de Krieger vai para um projeto que não envolve células-tronco – nem embrionárias nem adultas – e por isso mesmo mostra que talvez seja possível prescindir de células embrionárias depois de desvendado seu funcionamento. Trata-se da manipulação de células de pele ou de fibroblastos para que produzam uma substância chamada fator de crescimento vascular endotelial (VEGF). Injetadas no sistema vascular, essas células levam um recado às células do sistema circulatório no local onde há uma deficiência: produzam mais células. Em vez de implantar células-tronco que se transformarão em tecidos cardíacos ou vasculares, a estratégia é estimular a produção local. O trabalho fez parte do doutorado de Giovana Gonçalves, que defendeu sua tese este ano. “É uma idéia tão simples que as pessoas custam a aceitar”, se diverte o orientador. Por enquanto os resultados foram tão bons que o grupo de Krieger já começa a fazer

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testes em porcos, cujo coração é muito mais parecido com o de seres humanos do que os ratos. E tem o privilégio de estar no InCor, com acesso a aparelhos de primeira linha – os mesmos usados para pacientes humanos – para monitorar o coração dos porcos. Células-tronco adultas são também a matéria-prima das geneticistas Maria Rita Passos-Bueno e Daniela Bueno, da USP, que retiram células de músculo e da polpa dos dentes para regenerar ossos. Seu objetivo, sobre o qual resultados promissores foram publicados recentemente no site da revista Tissue Engineering, é reparar defeitos cranianos congênitos, como lábio leporino e fenda palatina. “As células-tronco embrionárias são importantes, mas temos que nos lembrar que as células que naturalmente reconstituem o tecido quando danificado são as adultas”, afirma Maria Rita. Stevens Rehen, por sua vez, quer entender como os neurônios se diferenciam e como surgem alterações no número de cromossomos. Quando – e se – ele conseguir a receita para produzir um tipo específico de neurônios, os dopaminérgicos, terá uma boa arma contra o mal de Parkinson, uma doença que seu grupo estuda em um modelo em camundongos. No simpósio de terapia celular em Curitiba, o mesmo onde Lygia apresen-

tou a BR-1 à comunidade, Rehen mostrou resultados de uma segunda linha de pesquisa, feita em colaboração com o laboratório de Ana Maria Martinez, da UFRJ. O grupo provocou lesões na medula de camundongos, semelhantes às que podem causar paralisia depois de um acidente de carro. A compressão mata tanto células neuronais como as que formam a bainha de mielina em torno dos neurônios. Foram implantadas células-tronco embrionárias já direcionadas para o caminho neural, em que ainda têm flexibilidade para tornar-se neurônio ou outro tipo de célula do sistema nervoso, mas nunca outro tipo como pele ou músculo. Os resultados foram bons: ao longo de dois meses os camundongos recuperaram cerca de 60% da mobilidade. Se tivessem injetado células indiferenciadas, nesse mesmo tempo elas teriam dado origem a tumores – daí a necessidade de direcioná-las antes. “Seria como pôr uma criança de 8 anos na faculdade”, compara o neurocientista. “É melhor deixar a criança estudar, aprender e pôr na faculdade mais adiante.” Rehen vem usando células-tronco de camundongo, assim como células humanas importadas dos Estados Unidos. “Nesse ponto da nossa pesquisa não estou limitado pela falta de uma linhagem brasileira”, conta. O problema surgiria quando chegasse ao ponto de produ-

zir terapias com base nessas células: os acordos obrigariam os pesquisadores brasileiros a dividir quaisquer lucros com os Estados Unidos. “Com a BR-1 as patentes serão 100% brasileiras.” Mayana Zatz frisa que o que mais falta no Brasil é estrutura para pesquisa. “No exterior as universidades têm o que eles chamam de core facilities, que são centros que produzem os produtos necessários, como células-tronco, transgênicos ou reagentes”, conta. “Aqui, cada laboratório tem que saber fazer tudo por conta própria.” Mesmo assim, seu grupo tem conseguido projeção internacional com pesquisas sobre células-tronco para regenerar músculo e osso: em conjunto com Maria Rita Passos-Bueno, foram nove trabalhos publicados em revistas internacionais desde o ano passado. Apesar de defensora das pesquisas com célulastronco embrionárias, Mayana tem se concentrado mais em células-tronco adultas, nas quais ela espera resultados mais imediatos. “Fico feliz que a Lygia tenha disposição para trabalhar com as embrionárias e ajudar os outros pesquisadores a pular etapas. Valeu a pena batalhar para a liberação das pesquisas”, completa. Para ela, mesmo que tudo dê certo com a BR-1, a linhagem é ainda o começo de um longo caminho. “Temos tijolos brasileiros, agora temos que construir a casa do zero.” ■

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BIOLOGIA CELULAR

Um parasita versátil Ricard o Zorzet to, de Paris e São Paulo

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a manhã de 2 de abril mundo – em especial na África, na Ásia e na América deste ano o biomédiLatina – e mata quase 1 milhão, a maioria crianças com menos de 5 anos. co brasileiro Rogerio Amino atravessou a A novidade perseguida por Amino e parte da rua Dr. Roux e camiequipe de Ménard é que no organismo de camunnhou apressado rumo dongos – e possivelmente no humano – o parasita a um prédio de fachada malária não se desenvolve e amadurece exclusida moderna do 15º arrondissevamente nas células do fígado, onde, em dois dias, ment, um bairro de classe média cada protozoário gera milhares de cópias capazes de invadir as células vermelhas do sangue, causando os de Paris. Passou por uma porta calafrios, a febre alta e as dores musculares intensas de segurança e seguiu por um típicos da malária. Injetados na pele pela picada de labirinto de corredores antes de entrar na sala escura onde duas fêmeas de mosquitos do gênero Anopheles, alguns pesquisadoras operavam um exemplares do plasmódio permanecem ali, onde se microscópio confocal a laser, reproduzem e alcançam o estágio em que se tornam capazes de penetrar nas células sangüíneas. que permite observar e reconsApresentada em maio num seminário para pestruir imagens em três dimensões de tecidos vivos. Numa quisadores da comunidade européia no Pasteur e tela semelhante à de um comprestes a ser publicada em uma revista científica interputador, elas acompanhavam nacional, a descoberta está longe de representar a cura o movimento de pequenas bopara a malária, mal que possivelmente acompanha las verdes fluorescentes. Eram a espécie humana desde seu surgimento na África exemplares do parasita causa200 mil anos atrás. Mas a identificação dessa fase até dor da malária que se desenentão não imaginada do ciclo do protozoário deve contribuir para a busca de formas mais eficientes de volviam no interior de células da pele. Numa rápida conversa combatê-lo. É que os compostos usados para elimiAmino constatou que o experinar o plasmódio – a exemplo da cloroquina ou das mento seguia como planejado e artemisinas – agem apenas na fase sangüínea da involtou para seu laboratório, do festação, na qual um único protozoário gera dezenas outro lado da rua, a menos de de cópias a cada 24 horas no interior das hemácias, as 300 metros dali. Chefiado pelo células vermelhas do sangue. “Mesmo a primaquina, composto capaz de eliminar os parasitas no fígado, médico francês Robert Ménard, o grupo que o biomédico brasinão atingem os que se desenvolvem na pele”, explica Amino. Assim, o mesmo órgão que mantém os maleiro integra desde janeiro como míferos em contato com o ambiente e os protege de pesquisador contratado na Unidade de Biologia e Genética da contaminações pode funcionar como reservatório Malária do Instituto Pasteur, em de parasitas da malária. “É preciso encontrar uma Paris, trabalhava com atenção forma de atingi-los ali”, diz. redobrada, repetindo cada etapa E não são poucos os protozoários que se instalam do experimento. na pele, onde podem permanecer vivos por semanas. A equipe sabia estar Nos experimentos feitos no Pasteur, fêmeas do diante de uma descomosquito Anopheles stephensi, transmissor da Anopheles: berta importante sobre combatido malária humana na Ásia, alimentaram-se na o ciclo de vida do plas- no país há orelha de camundongos. Na picada, os insetos injetaram dezenas de parasitas marcados com módio, organismo de quase um uma só célula que infec- século, uma proteína verde fluorescente na pele dos ta por ano cerca de 250 sobrevive animais. Cerca de 10% dos protozoários da esmilhões de pessoas no na Amazônia pécie Plasmodium berghei, que causa a doença PESQUISA FAPESP 153

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Além do fígado, protozoário causador da malária também se desenvolve na pele antes de invadir células sangüíneas

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ARQUIVO ROSTAM SOARES, CASA DE OSWALDO CRUZ/FIOCRUZ

químico Louis Pasteur e pelo médico Pierre Émile Roux 120 anos atrás. Durante o período anterior em que trabalhara no Pasteur, Amino e o parasitologista alemão Friedrich Frischknecht haviam descoberto que o mosquito não injetava os protozoários diretamente no interior dos vasos sangüíneos, como se acreditava. Em vez disso, algumas dezenas de parasitas eram depositadas numa camada profunda da pele de onde prosseguiam em movimentos circulares como o de um saca-rolhas até o vaso sangüíneo mais próximo, descreveram em 2006 num artigo da Nature Medicine (ver Pesquisa FAPESP nº 120). “As pessoas tomam o não-dito pelo dito. É muito fácil extrapolar uma idéia que faz sentido do ponto de vista lógico para a qual não há prova experimental nem evidência direta”, afirma Amino. Hepatócito-de-tróia - Naquele mes-

Drenagem: obra para eliminar criadouros do mosquito nos anos 1940

em roedores, alojaram-se a poucos milímetros da picada – uma parte migrou para os folículos pilosos, estrutura que envolve os pêlos, sem resposta imune ativa. “Há poucos lugares tão privilegiados para um parasita sobreviver no organismo de mamíferos”, diz Amino. Esses protozoários continuaram nos folículos por ao menos duas semanas – não se sabe se dormentes ou em crescimento lento. Extraídos dos folículos, foram capazes de infectar células de pele in vitro e atingir o estágio em que invadem os glóbulos vermelhos. Quando os pesquisadores os injetaram em camundongos saudáveis, os roedores adoeceram. Agora o grupo tenta repetir os testes com camundongos que receberam implante de pele humana, o que 50

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permitiria trabalhar com espécies do protozoário que contaminam as pessoas – e ver se o desenvolvimento na pele é comum em seres humanos. Antes desses experimentos não se prestava muita atenção ao que acontecia na pele. Acreditava-se que as formas do protozoário inoculadas na picada do mosquito atingissem a corrente sangüínea e migrassem até o fígado, onde amadureciam antes de retornar ao sangue. Trabalhando nos últimos anos na equipe de Ménard, Amino vem mostrando que não é tão simples assim. Esse, aliás, não é o primeiro dogma sobre a biologia do plasmódio que o grupo do Pasteur quebra nos últimos quatro anos, mantendo uma tradição de pioneirismo da instituição criada pelo

mo ano, Amino e Ménard, em parceria com alemães do Instituto de Medicina Tropical Bernhard Nocht, revelaram detalhes do amadurecimento do plasmódio nas células do fígado (hepatócitos) que ajudavam a compreender por que o organismo tem dificuldade em identificar o plasmódio como invasor e eliminá-lo. Imaginava-se que, instalado nos hepatócitos alguns dias após a picada, o protozoário se multiplicava gerando milhares de cópias até que a célula hospedeira explodisse, liberando os parasitas para o sangue. Os experimentos com os roedores revelaram uma estratégia muito mais sutil e eficaz. À medida que se multiplicavam e amadureciam, os parasitas eram eliminados aos poucos dos hepatócitos no interior de vesículas formadas pelo revestimento da célula do próprio hospedeiro. Em artigo na Science, os pesquisadores apelidaram a estratégia de hepatócito-de-tróia, em referência à artimanha que teria sido usada pelos gregos na Guerra de Tróia. Nessa fuga sorrateira, os parasitas também evitavam que o hepatócito em agonia sinalizasse para o sistema de defesa que era hora de entrar em ação. “Essa proteção permite entender por que os parasitas escapavam às células do sistema imune no fígado”, explica Amino. Não é só do Pasteur que surgem novidades. Em centros de investigação

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OS PROJETOS 1. Diversidade genética, estrutura populacional e dinâmica de transmissão de Plasmodium vivax na Amazônia rural brasileira 2. Bases moleculares da transdução de sinal do ciclo celular de parasitas de malária

é mais fácil matar os parasitas quando eles amadurecem fora de sincronia: uma dose menor do medicamento cloroquina – cujo mecanismo de ação contra o parasita Celia e Gazarini explicaram recentemente – torna-se tão eficaz quanto as normalmente prescritas no tratamento da malária. Novos alvos - Analisando o genoma

MODALIDADE

1. Linha Regular de Auxílio à Pesquisa 2. Projeto Temático COORDENADORES

1. MARCELO URBANO FERREIRA – ICBUSP 2. CELIA REGINA GARCIA – IBUSP INVESTIMENTO

1. R$ 197.040,00 (FAPESP) 2. R$ 1.082.371,51 (FAPESP)

Cell Biology. Em 2005 o biólogo Flavio Beraldo e Celia descobriram como a melatonina regula o desenvolvimento coordenado dos parasitas: o hormônio aciona uma cadeia de mensageiros celulares que controlam os genes ligados à multiplicação do plasmódio. Além de curiosidade, esse amadurecimento orquestrado desperta interesse clínico. Em estudo a ser publicado no Open Parasitology Journal, Piero Bagnaresi, da equipe do IBUSP, mostra que

do Plasmodium falciparum, a forma mais letal do protozoário, responsável por 30% dos casos de malária no Brasil, Celia e Luciana Madeira identificaram os genes que codificam quatro proteínas da superfície do Plasmodium às quais aparentemente se ligam compostos como a melatonina, a serotonina e outras moléculas derivadas do aminoácido triptofano, essenciais para o parasita, e que podem se tornar alvo de compostos contra a malária. Enquanto os novos medicamentos não surgem e não se chega a uma formulação de vacina eficiente, a saída continua a ser a eliminação do principal transmissor da malária: no Brasil, o mosquito Anopheles darlingi, que a cada ano contamina – com o Plasmodium falciparum, o mais letal, ou o Plasmodium vivax, o mais comum – 500 mil pessoas, quase todas na Amazônia. Segundo especialistas, foram as campanhas de combate ao Anopheles com obras de engenharia (drenagem de

ARQUIVO FUNDAÇÃO ROCKEFELLER, CASA DE OSWALDO CRUZ/FIOCRUZ

brasileiros espalhados por São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Acre e outros estados, os pesquisadores também trabalham para desvendar o ciclo de vida do plasmódio e o comportamento dos insetos que o transmitem. No Instituto de Biociências (IB) da Universidade de São Paulo (USP), a equipe da bioquímica Celia Garcia investiga o que acontece com o plasmódio depois que ele se instala nas células vermelhas do sangue. Celia e seus colaboradores identificaram na última década pelo menos quatro importantes mecanismos que explicam como o parasita sobrevive e amadurece no interior das hemácias, um ambiente que lhe deveria ser extremamente inóspito. A concentração de cálcio nas hemácias é 10 mil vezes menor do que no plasma, o meio em que estão diluídas. A carência desse elemento químico regulador de diferentes funções celulares – entre elas a morte programada – deveria impedir o protozoário de se abrigar nas hemácias. Mas não impede. Celia e Marcos Gazarini observaram que o segredo da sobrevivência nesse ambiente é o modo de invasão das hemácias. Em vez de abrir um pequeno buraco na membrana da célula sangüínea, o parasita empurra a membrana formando uma bolsa ao seu redor. No interior dessa bolsa o teor de cálcio é o mesmo do plasma sangüíneo. Em colaboração com a farmacologista Regina Markus, também da USP, Celia conseguiu desvendar outro comportamento curioso do plasmódio. Uma vez no interior da hemácia, o parasita se multiplica e passa por três fases distintas de desenvolvimento. Ao final desse período de transformações, que dura cerca de 48 horas, milhares de cópias do plasmódio atingem simultaneamente o mesmo grau de maturidade e rompem a hemácia, partindo para a invasão de outras células sadias. Celia, Regina e o bioquímico Carlos Hotta comprovaram que o ritmo de amadurecimento do protozoário é regulado por um hormônio produzido pelo organismo do hospedeiro – a melatonina, fabricada por uma glândula na base do cérebro e responsável pelo ajuste de ritmos biológicos como o sono e a vigília. Sem melatonina, os parasitas deixam de evoluir ao mesmo tempo, segundo artigo publicado em 2000 na Nature

Problema nacional: aspersão de inseticida em domicílio no Ceará

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pântanos e mangues) quisadores e as pese o uso de inseticidas soas que trabalham no que proporcionaram controle da doença. uma redução impor“Há um fosso entre a produção de tante da malária no conhecimento sobre país e no mundo no último século. malária e a aplicação No Brasil, o númedesse conhecimento”, ro de infecções baixou diz o parasitologista da USP. “Quem faz de 4 milhões por ano nas décadas de 1930 e pesquisa nem sempre 1940 para aproximaproduz informação damente 50 mil nos relevante para a preanos 1960. Mas volvenção e o controle; e quem trabalha em tou a subir na década seguinte com o início prevenção e controle da ocupação da Amamuitas vezes não vê o Na floresta: distribuição de cloroquina no Pará nos anos 1950 zônia, estabilizando-se que os pesquisadores na faixa dos 500 mil. fazem”, diz Ferreira, “Houve um sucesso que em outubro partirazoável, praticamente se extinguiu a Nunes, da USP, e Pascoal Muniz, da cipou de reunião na qual os dois grupos malária fora da Amazônia, mas há muito Universidade Federal do Acre, obserse encontraram. Sem diálogo, é provável que a malária continue um entrave a ser feito”, comenta o parasitologista varam também que o risco de contrair Marcelo Urbano Ferreira, do Instituto malária é mais elevado entre as pessoas ao desenvolvimento, como pensava o de Ciências Biomédicas (ICB) da USP. que vivem em casas próximas à floresta médico Carlos Chagas. ■ e trabalham em atividades que exigem O homem e o verde - Essa situação incursões na mata, como descrevem em pode não melhorar se nada for feito a artigo recente no American Journal of > Artigos científicos respeito da forma de ocupação das terTropical Medicine and Hygiene. ras onde cresce a Floresta Amazônica. Em Acrelândia, Mônica constatou 1. AMINO, R. et al. Quantitative imaging of Anos atrás a geógrafa Márcia Caldas ainda que quase metade dos casos de Plasmodium transmission from mosquito to mammal. Nature Medicine. v. 12. p. de Castro, pesquisadora da Universidamalária concentrava-se em apenas 20% 220-224. 2006. de de Princeton, nos Estados Unidos, das casas, num claro sinal de que o con2. SILVA-NUNES, M. et al. Malaria on the avaliou o padrão de disseminação da trole da transmissão é possível caso se Amazonian frontier: transmission, dynaadotem as medidas adequadas. malária em um assentamento de colomics, risk factors, spatial distribution and O que falta para reduzir os casos de nos em Machadinho, em Rondônia, e prospects for control. American Journal of constatou que a transmissão da doença malária no país? Na opinião de Ferreira, Tropical Medicine and Hygiene. v. 79. p. 624-635. 2008. é muito mais elevada no início do asrestabelecer a comunicação entre pessentamento, quando se começa a derrubar a floresta. À medida que a terra se desnuda, os casos diminuem. No artigo em que descrevem os resultados em 2005 nos Proceedings of the National Academy of Sciences, Castro e seus colaboradores apresentam uma proposta polêmica para reduzir o surto inicial de transmissão: selecionar apenas terras adequadas à agricultura para a instalação dos colonos e oferecer-lhes as condições necessárias para derrubar a floresta o mais rápido possível. “Em uma fase inicial, o desmatamento favorece a transmissão, mas depois contribui para impedi-la”, explica Ferreira. Acompanhando a dinâmica de transmissão da malária em outro assentamento – no município de Acrelândia, no Acre, perto da divisa com Rondônia Controle rígido: aplicação de larvicida em focos do Anopheles –, Ferreira, a médica Mônica da Silva PESQUISA FAPESP 153

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O difícil legado de Einstein

Carlos Escobar Mudando o modo de ver o mundo: indivíduos e Zeitkontext ou como o movimento browniano modificou o modo de fazer ciência

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Einstein inventor

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Espaço, tempo e éter na teoria da relatividade

Roberto de Andrade Martins

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A preparação de Einstein para seu ano miraculoso

Carlos Alberto dos Santos

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Este é o primeiro de uma série de três encartes com a síntese das palestras apresentadas ao longo da exposição Einstein, em cartaz no pavilhão Armando Arruda Pereira, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, até o dia 14 de dezembro. Organizadas pela revista Pesquisa FAPESP em parceria com o Instituto Sangari, as palestras mostram como o cientista alemão Albert Einstein não se envolveu apenas com a física, mas também em atividades sociais e políticas, construindo um perfil próprio de cientista, interessado em múltiplos temas de numerosas áreas. Alguns conceitos que ele criou, como o de tempo e espaço dinâmicos e flexíveis, abriram novas perspectivas de análise da realidade também para áreas aparentemente distantes da física, como antropologia, biologia, filosofia e cinema. Tanto quanto o espaço e o tempo de Einstein, as palestras representam uma experiência bem-sucedida de flexibilidade, assim como já havia ocorrido em programação cultural similar, paralela à exposição Revolução genômica, que esteve em cartaz FACES DE UM FÍSICO no mesmo local de março a julho deste ano. Especialistas nas mais diversas áreas da pesquisa acadêmica aceitaram o desafio de expor suas idéias e opiniões para um público diferente do que estão acostumados na universidade ou nas conferências pelo mundo afora. O resultado percebido até agora nas quatro primeiras apresentações foi o estabelecimento de um diálogo rico e cordial sempre nas tardes de sábado e nas manhãs de domingo. As apresentações de sábado reuniram um físico e um pesquisador em ciências humanas que falaram sobre as noções de tempo e de espaço em suas respectivas áreas de trabalho. As de domingo exibiram aspectos pouco conhecidos da vida e do trabalho de Einstein, sempre atento ao contexto histórico. As primeiras palestras, relatadas nas páginas a seguir, tiveram Carlos Escobar apresentando um Einstein socialista, defensor de uma sociedade mais justa; Peter Schulz mostrou como as crenças de uma época podem barrar o avanço de novas idéias; Nelson Studart contou do Einstein inventor, autor de patentes e idealizador de uma geladeira e de uma asa de um avião de combate; Roberto Martins tratou dos conceitos e de cientistas que embasaram o trabalho do físico alemão; e Carlos Alberto dos Santos descreveu a construção de seu pensamento, desde a infância até os estudos que propõem uma nova visão do Universo. O vídeo de cinco minutos com os melhores momentos da apresentação, a íntegra destas e das próximas palestras e os detalhes da programação do ciclo de palestras encontram-se no site da revista Pesquisa FAPESP (www.revistapesquisa.fapesp.br). Lá estão também os resumos, os vídeos e as íntegras das palestras complementares à exposição Revolução genômica, que representaram a primeira experiência da revista em ampliar o debate sobre a ciência no Brasil e no mundo.

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elétricos. Einstein, porém, percebeu que o eletromagnetismo, a força que explicava esses fenômenos, começava a mudar também os conceitos de espaço e de tempo, abalando profundamente o Universo mecânico de Newton. “Para Newton, não havia campos de força”, contou Escobar. Newton se sentia incomodado com essa limitação conceitual, mas não conseguiu avançar. Einstein seguiu adiante, entre outras razões, porque amava a liberdade, “a qualidade mais importante do ser humano”, dizia. Escobar mostrou uma foto de Einstein já cinqüentão e pediu para a platéia atenta e ampla, de cerca de 90 pessoas, observar o mesmo olhar amigo da liberdade que já expressava quando era menino e desde cedo incomodava alguns professores. Einstein selecionou da obra de Newton o que lhe servia. “Para Newton, o tempo fluía de modo igual para todos os observadores”, disse Escobar. “Einstein não gostava de tempo e espaço absolutos, ele os queira dinâmicos!” Com esse propósito, começou a trabalhar experiências mentais que se assemelhavam ao que Galileu já havia feito, ao imaginar um barco em movimento no mar tranqüilo. Ele se perguntava onde cairia uma pequena bola que um marujo soltasse do alto do mastro. Os pensadores antigos diriam que a bola cairia para trás do pé do mastro, em direção à popa, mas na verdade a bola cai ao pé do mastro, como se o barco estivesse parado. Quem primeiro chegou perto do conceito de relatividade, que explica esses fenômenos, porém, não foi Einstein, mas o físico e matemático francês Henri Poincaré. Poincaré lançou o conceito de relatividade no início do século XX, ao afirmar que o observador não é capaz de perceber se está em movimento sem olhar para fora. O caminho foi o

CARLOS ESCOBAR E PETER SCHULZ

Uma das características notáveis de Albert Einstein é a liberdade, ressaltou Carlos Escobar, físico e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) ao abrir a apresentação “O difícil legado de Einstein” e o ciclo de palestras promovido pela revista Pesquisa FAPESP em paralelo à exposição Einstein. As palestras dele e de Peter Schulz, também físico e professor da Unicamp, no dia 11 de outubro, contaram com a mediação do jornalista Marcelo Leite, que lançou o livro Ciência – Use com cuidado, segundo volume da coleção Meio de Cultura (Editora da Unicamp), após as apresentações. Mesmo pensando com liberdade, Einstein não chegou sozinho aos conceitos que criaram novos rumos para a física. Ele se apoiou na obra de outros cientistas, como o físico e matemático italiano Galileu Galilei, que Escobar chamou de “um dos pais da física”, por ter iniciado a construção do pensamento científico moderno. “O cientista de hoje se afastou do cuidado literário da apresentação das idéias”, alertou Escobar. Quatro séculos atrás, Galileu fez as primeiras observações das luas de Júpiter e das montanhas da Lua e as apresentou com esmero em um livro que pode ser lido com prazer ainda hoje, O mensageiro das estrelas. “Era óbvio que o que Galileu via não era o que os antigos pensavam”, observou Escobar. “Não era o perfeito.” Galileu é chamado de pai da ciência moderna e do método experimental justamente por “ter confrontado teorias com resultados experimentais e condições sob controle”. Foi Galileu quem detectou um princípio unificador das leis do Universo: as leis da natureza que valem nas imediações da Terra valem também em qualquer outro lugar. O físico inglês Isaac Newton, que também ajudaria a embasar o trabalho de Einstein, completou a revolução galileana ao propor novos métodos matemáticos que davam mais precisão aos conceitos de espaço e tempo. Depois o físico escocês James Clerk Maxwell unificou a eletricidade, o magnetismo e a óptica em uma só força, o eletromagnetismo. Maxwell morreu aos 48 anos e não pôde avançar nas implicações mais profundas das quatro equações que criou, mostrando como cargas elétricas produzem campos elétricos, como a corrente elétrica produz campo magnético e como variações de campo magnético formam campos

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Os dois físicos mostram como Einstein construiu seus conceitos e como crenças de uma época barram idéias novas

Schulz e Escobar: revendo a história da física

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NASA

Lentes gravitacionais: legado de Einstein

mesmo de Galileu: as experiências de pensamento ou, em alemão, Gedankenexperimente. “Einstein era um mestre das experiências mentais, que mostravam as contradições com os quadros teóricos, que aos poucos ele abandonava. A primeira ele fez aos 16 anos, perseguindo um feixe de luz, como um surfista seguindo uma onda.” De acordo com os conceitos tradicionais da época, ele veria fenômenos – ondas eletromagnéticas – que oscilam no tempo, mas não no espaço, em contradição com os conceitos de Maxwell sobre eletromagnetismo. “Maxwell afirmava que, se um campo eletromagnético varia no tempo, deveria variar também no espaço.” Como resultado, em 1905 Einstein apresentou a teoria da relatividade especial, mostrando o que Poincaré e o físico holandês Hendrik Lorenz não haviam visto: a simultaneidade – o próprio tempo – depende do observador. “Einstein disse então que estava pronto para atacar a segunda coisa de que não gostava na teoria de Newton, o espaço absoluto, sobre o qual não se podia atuar”, contou Escobar. A empreitada lhe consumiu muita energia e muito tempo, mais do que qualquer outra anterior. O matemático lituano Hermann Minkowski também contribuiu, não só ensinando matemática a Einstein na Escola Politécnica de Zurique, como também oferecendo conceitos novos sobre espaço. Depois de estudar e pensar muito, Einstein uniu duas entidades físicas antes tratadas separadamente, o espaço e o tempo, em uma só, o espaçotempo. “Em 1907, ele contou que teve o pensamento mais feliz da sua vida, imaginando-se em queda livre do teto da casa e soltando chaves e bolinhas que tinha no bolso e ficavam ao lado dele. Assim, ele conseguia anular o campo gravitacional”, disse Escobar. “A geometria do espaçotempo, ele concluiu, deveria ser local, curva e capaz de anular o campo gravitacional.” Essa era a resposta a perguntas que ele

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havia feito 17 anos antes e lhe custara, como disse Escobar, “longos momentos de desespero”. Einstein, porém, não acalentou apenas a angústia – e de 1907 a 1915 escreveu 67 trabalhos científicos. Em 1913, um amigo e colega de Einstein, o matemático Marcel Grossmann, recomendou a ele que estudasse o trabalho de livre-docência de outro matemático alemão, Georg Riemann, sobre espaços em dimensões generalizadas. “Riemann já dizia, 70 anos antes, que geometria é física, e física é geometria”, lembrou Escobar. “Einstein concluiu então que matéria e energia dizem ao espaçotempo como se curvar e o espaçotempo diz à matéria e à luz como se propagar.” Esse raciocínio implicava que não havia gravidade, mas espaçotempo, que determina a massa. Era uma forma de explicar o desvio da luz por corpos de massa elevada, como os buracos negros e galáxias massivas. “Os corpos massivos curvam o espaçotempo, forçando a luz a seguir uma trajetória curva”, disse Escobar. Segundo ele, esse fenômeno, conhecido como lentes gravitacionais, é hoje uma ferramenta indispensável para estudar objetos celestes, por permitirem análise da curvatura da trajetória da luz. “É notável em Einstein o pensamento intuitivo, o uso de imagens, os experimentos mentais e a simplicidade baseada na matemática”, comentou Escobar. “Os trabalhos que ele publicou em 1905 podem e devem ser lidos por qualquer estudante de graduação em física.” Escobar ressaltou a dimensão moral de Einstein citando o poeta grego Yannis Ritsos, que dizia: “A verdadeira estatura do homem é medida com o metro da liberdade”. Mesmo antes de se tornar uma celebridade mundial em 1919, quando um eclipse observado em Sobral, no Ceará, confirmou a teoria da relatividade geral, Einstein não se escondeu, lembrou Escobar. Einstein logo percebeu que poderia usar seu prestígio científico contra injustiças sociais, como em manifesto contra a guerra, que ele assinou em 1917. Mais tarde, em 1954, em uma palestra ao receber um prêmio sobre direitos humanos em Chicago, comentou que “os direitos humanos não estavam escritos nas estrelas, cabe aos homens construí-los”. “Nenhuma biografia lembra que Einstein era socialista”, observou Escobar, que mostrou a página inicial de um artigo publicado em maio de 1949 da revista norteamericana Monthly Review em que Einstein, o autor desse trabalho, defendia o socialismo. Em outro artigo, chamou o racismo de “a doença mais profunda da sociedade dos Estados Unidos”. Escobar lembrou que hoje ainda existe discriminação racial não só nos Estados Unidos, mas em todo o mundo. Teoria dos germes Peter Schulz seguiu por outro caminho. Logo ao abrir a apresentação “Mudando o modo de ver o mundo: indivíduos e Zeitkontext ou como o movimento browniano modificou o modo de fazer ciência”, ele observou que o

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uso de um termo em alemão seria, como disse, “uma pequena pedanteria”, embora útil para valorizar o contexto de uma época e não só o de um indivíduo. Schulz, um físico que se considera historiador amador, contou em seguida de um comerciante e cientista holandês, Anton van Leeuwenhoek, que construiu um microscópio e foi o primeiro ser humano a observar microorganismos. Foi também Leeuwenhoek que descobriu, na segunda metade do século XVII, a impressionante diversidade de seres microscópicos que viviam no interior da boca de uma pessoa qualquer. Esses minúsculos seres, porém, como ele também notou, desapareciam após alguns goles de café quente. “Por que, apesar dessas evidências, a teoria dos germes só veio com Pasteur, dois séculos mais tarde?”, indagou Schulz. “No século XVII, as coisas que não podiam ser vistas não mereciam ser estudadas.” Esse desdém partia não de fanáticos, ele destacou, mas da própria comunidade científica. Foi também com um microscópio que o botânico escocês Robert Brown observou partículas de pólen dançando. Ele escreveu um estudo de 25 páginas, A brief account of microscopical observation, mas esse novo problema científi-

REPRODUÇÃO

Um químico alemão, colega de Einstein, assegurava que jamais seria possível comprovar a existência dos átomos. Depois ele mudou de idéia

Sem abdicar da liberdade: olhar de menino

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co recebeu pouca atenção por 80 anos, embora outros cientistas, como o químico escocês Thomas Graham, tivessem notado o mesmo fenômeno. Foi Graham quem cunhou o termo colóide para designar as misturas heterogêneas formadas por partículas em agitação contínua mais ou menos intensa, como no café, na geléia ou na atmosfera. Não foi o bastante, porém, para despertar o interesse de outros pensadores. Einstein, lembrou Schulz, retomou um tema próximo ao movimento browniano, o tamanho de uma molécula, em sua tese de doutorado; mais tarde ele construiu uma teoria para o movimento browniano, publicada em 1905. Meias de náilon No início do século XX nem todos os cientistas aceitavam o conceito de átomos. Alguns até o rejeitavam, como o químico alemão Wolfgang Ostwald, colega de Einstein, que afirmou: “Jamais poderemos, por definição, comprovar a existência de átomos”. Schulz contou que em 1901 o pai de Ostwald recusou um emprego a Einstein por discordar de suas idéias. “Essa antipatia”, disse Schulz, “mostra que mesmo mentes audaciosas podem ser obstruídas por preconceitos filosóficos”. Mais tarde, um físico francês, Jean Perrin, por meio de observações no microscópio, comprovou as idéias de Einstein sobre o tamanho das partículas e a agitação das moléculas. Perrin desenhou em papel quadriculado a trajetória de uma partícula de poeira e demonstrou a existência de átomos. O antes dogmático Wolfgang Ostwald mudou de idéia e em 1915 acreditava em átomos a ponto de escrever um livro intitulado O mundo das dimensões esquecidas. Surgia assim, finalmente, a ciência dos colóides, que em poucos anos levou a descobertas reconhecidas com três prêmios Nobel. A nova ciência motivou também pesquisas interdisciplinares em busca de aplicações dos colóides na medicina ou na biologia. Não avançou muito, porém, porque a indústria dos polímeros atropelou a incipiente indústria dos colóides. “Durante a Segunda Guerra Mundial, meias de náilon como estas”, disse Schulz mostrando a foto de uma mulher sentada em uma calçada arrumando as meias de náilon, “era o sonho de consumo”. O contexto favorável à interdisciplinaridade só viria na segunda metade do século XX. Um físico norte-americano, Philip Warren Anderson, ajudou a construir uma nova perspectiva para os colóides não só por meio de seus estudos sobre sistemas físicos desordenados, como também ao apresentar uma idéia que Schulz retomou: “O todo é mais do que a soma das partes. É diferente”. Schulz mostrou em seguida uma pintura com frutas e legumes formando um rosto, de autoria de um artista do Renascimento italiano, Giuseppe Archimboldo. “Não é natureza-morta, é um retrato”, acentuou o físico da Unicamp. Anderson ajudou a criar um contexto de época favorável – um Zeitkontext – e a mostrar que os chamados problemas emergentes da ciência não poderiam ser expli-

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cados apenas pelas leis fundamentais da física: a biologia, por exemplo, não seria apenas uma aplicação da física, mas um campo de pesquisa com regras próprias. Nos anos 1970, ele disse, as partículas coloidais ganham o nome de nanopartículas e começam a ser estudadas por grupos de pesquisadores de áreas diferentes, que procuram resolver grandes problemas. Uma trajetória análoga marcou a mecânica quântica, que, lembrou Schulz, só avançou na década de 1920 na Alemanha “porque o pessoal estava cansado do determinismo clássico e probabilístico” – de outro modo, de um mundo sem surpresas. Schulz comentou que é o imperativo cultural, a seu ver, que explica “certas coisas que as pessoas querem que aconteçam”. Em um cartão-postal do início do século passado, no exemplo que ele mostrou, as pessoas já se imaginavam conversando enquanto viam as imagens delas próprias em uma tela, como hoje no Skype. “Aposto muito no diálogo entre arte e ciência”, disse, mostrando As senhoritas de Avig-

non, um quadro do pintor espanhol Pablo Picasso que permite leituras variadas, de acordo com a perspectiva espacial adotada. “Arthur Miller [físico norte-americano e um dos próximos palestrantes] diz que arte e ciência modificam a visão de espaço e de tempo”, lembrou Schulz. Durante os debates com a platéia, Escobar lembrou que uma das armadilhas de Einstein é a ênfase em experimentos mentais, mas, ressaltou, “não podemos nos distanciar tanto dos dados experimentais”. Schulz detalhou o que havia exposto lembrando que muitas vezes à deficiência de equipamentos se somam as crenças e expectativas para atrasar o avanço de novas idéias. Os estudos sobre colóides avançaram mais livremente depois da Segunda Guerra Mundial, quando os microscópios eletrônicos começaram a ser usados e com a construção de uma idéia mais clara de interdisciplinaridade.

NELSON STUDART

O ambiente familiar certamente ajudou. Seu pai, Hermann, e o tio Jakob eram sócios em uma indústria de equipamentos para instalações hidráulicas e de gás, e em 1885 fundaram a Elektrotechnische Fabrik Jakob Einstein und Cie, empresa na área de engenharia elétrica que fabricava lâmpadas, medidores de eletricidade e geradores para eletrificação urbana. A fábrica prosperava e poderia ter se tornado um gigante da indústria elétrica alemã não fosse um revés. Em 1893 os irmãos Einstein investiram pesadamente em uma concorrência para a eletrificação do centro de Munique – e perderam. Sem o contrato, faliram e partiram em busca de projetos menos lucrativos na Itália. No ano seguinte abriram em Pávia com um engenheiro italiano de sobrenome Garrone a Officine Elettromeccaniche Nazionali Einstein Garrone. Aos 15 anos Albert abandonou a escola antes de concluir o segundo grau e foi para Pávia, onde acompanhou por um tempo as atividades na fábrica da família, inclusive solucionando problemas técnicos. Certa vez seu tio disse a um assistente: “Veja você, enquanto eu e meus engenheirosassistentes quebramos a cabeça por dias, este jovem chega e resolve o negócio todo em um mero quarto de hora. Isso é muito fantástico para meu sobrinho. Ele ainda vai longe”. Infelizmente não se sabe qual o problema ele sanou. As experiências que Albert Einstein viveria na Suíça a partir de 1896 seriam determinantes para sua carreira de cientista e inventor. Reprovado no exame de línguas para ingresso na Escola Politécnica de Zurique, Einstein foi aconselhado pelo diretor da instituição a concluir o segundo grau em uma escola suíça, o que lhe daria acesso à universidade. Avesso à rigidez do sistema de ensino alemão,

Pesquisador de São Carlos apresenta detalhes pouco conhecidos da atividade do físico como inventor

Todo mundo já ouviu falar que o trabalho teórico de Albert Einstein mudou radicalmente a compreensão do Universo. Mas poucos sabem que o pesquisador alemão, ícone da ciência no século XX, também se interessava por tecnologia. E que nem sempre se saía tão bem nessa área. O físico Nelson Studart, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), falou desse e de outros aspectos pouco conhecidos da vida do criador da teoria da relatividade na palestra “Einstein inventor”, no domingo 12 de outubro no pavilhão Armando de Arruda Pereira, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo. “Passa-se a imagem de Einstein apenas como uma pessoa genial, que mudou a concepção de espaço e tempo e deu outras importantes contribuições à física”, disse Studart. “Mas ele era absolutamente normal e gostava de outras coisas, inclusive ligadas à tecnologia.” Einstein foi também inventor, projetista, perito judicial e consultor de empresas. Entre 1928 e 1934 registrou em sete países (Alemanha, Áustria, França, Grã-Bretanha, Hungria, Estados Unidos e Suíça) 21 pedidos de patentes de aparelhos que havia ao menos em parte projetado.

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adaptou-se bem ao ambiente liberal da escola em Aarau, seguidora do modelo de ensino do educador suíço Johann Heinrich Pestalozzi, que valorizava a imaginação visual. “Essa habilidade foi importante na carreira de Einstein no escritório de patentes e nos seus pensamentos abstratos, como ele reconheceria mais tarde”, contou Studart. Foi o período estudantil de que Einstein mais gostou, segundo o físico da UFSCar. “Pudera. Ele morava na casa de um dos professores, cuja filha namorava”, disse. Einstein teve seu primeiro contato direto com invenções no período em que trabalhou no Escritório Federal Suíço de Patentes, em Berna, de 1902 a 1909. “Foi uma verdadeira bênção para mim trabalhar na formulação final de patentes tecnológicas. Isso me forçou a pensar em muitas facetas e me estimulou de modo significativo o pensamento físico”, deixaria registrado. “Na verdade, os experimentos mentais que seriam sua abordagem preferida na formulação de teorias físicas não eram tão distantes da análise intelectual de uma invenção”, disse Studart. Quase nada se sabe sobre as invenções que avaliou em Berna, uma vez que os registros eram destruídos 18 anos após a concessão das patentes. Só um foi preservado – o pedido de patente de um coletor de corrente alternada depositado pela companhia berlinense Allgemeine ElektrizitatsGesellshaft (AEG) – porque o projeto se tornou motivo de disputa judicial. “Apesar da carência de informações, os biógrafos de Einstein acreditam que o físico trabalhasse com patentes de tecnologia elétrica”, disse Studart. A maquininha Foi nessa área, aliás, que fez sua primeira e única tentativa de projetar um equipamento para testar uma explicação teórica que havia proposto. O aparelho que chamou de maschinchen – maquininha, em alemão – era um equipamento de indução eletrostática destinado a amplificar quantidades pequenas de cargas elétricas e tornar possível avaliá-las. Com a maquininha, esperava medir o chamado movimento browniano de cargas elétricas, deslocamento aleatório de partículas em um fluido, observado pela primeira vez em 1827, em grãos de pólen, pelo botânico escocês Robert Brown. Como não sabia como construir a maquininha, cujo princípio de funcionamento descreveu em um artigo de 1908 na Physikalische Zeitschrift, Einstein pediu para os irmãos Paul e Conrad Habitch que a desenvolvessem. O projeto foi patenteado e poucas unidades produzidas. Mas o invento não obteve sucesso comercial, uma vez que era menos eficiente do que outros equipamentos semelhantes. “Einstein solicitou que seu nome não fosse incluído no pedido de patente”, disse Studart. “Hoje restam apenas três exemplares desse aparelho em museus.” No papel de inventor e consultor Einstein viveu uma das passagens mais obscuras de sua carreira, pouco conhecida até mesmo dos físicos. Antes de revelar ao mundo seu caráter pacifista, participou de um projeto militar

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Entre 1928 e 1934 o físico alemão registrou 21 patentes em sete países

Studart: diante de um outro Einstein

para auxiliar o governo alemão durante a Primeira Guerra Mundial. Segundo o biógrafo Albrecht Fölsing, um antigo assistente de Einstein na Universidade de Zurique, Ludwig Hopf, teria feito o físico alemão se interessar por questões relacionadas à física do vôo. Outro biógrafo, Carl Seelig, afirmou que Einstein foi um dos poucos acadêmicos que atendeu ao convite da Sociedade de Transportes Aéreos (Luftverkehrsgesellschaft ou LVG) para contribuir no aperfeiçoamento técnico da força aérea alemã. Em 1916 Einstein publicou um artigo sobre a teoria elementar das ondas da água e do vôo, em que apresentava interpretação hoje considerada incorreta para explicar a sustentação da asa de avião. A partir daquele ano o governo alemão convidou cientistas a participarem de projetos que pudessem ajudar o país a vencer a Primeira Guerra Mundial. Possivelmente por considerar bom para a publicidade dos negócios, Arthur Müller, fundador da LVG, contratou Einstein como consultor da empresa. “A partir de seu artigo pode-se inferir que o conhecimento de Einstein sobre aerodinâmica era equivalente ao dos membros da Sociedade Aeronáutica da Grã-Bretanha nos anos 1870”, afirmou Studart. Ainda assim o físico alemão projetou uma asa que ficou conhecida como corcunda de gato, pela semelhança que tinha com o dorso curvado para cima de um felino que se espreguiça. Nos testes práticos, a corcunda de gato se revelou um fracasso – só se saiu melhor do que um dos 99 modelos de asa testados no período. Esse projeto só se tornaria conhecido 40 anos mais tarde com a publicação da carta que o piloto Paul Ehrhardt, chefe do departamento experimental de projetos da LVG, escreveu em 1954 para Albert Einstein, relatando detalhes do teste. Como Einstein, à época da Primeira Guerra já um cientista conhecido que se manifestava contra o combate entre os povos, conseguiu trabalhar em um projeto militar?

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Bússola giroscópica: fundamental para a orientação de navios e aviões

Studart buscou a resposta a essa pergunta nos escritos de biógrafos do físico alemão, que recebia parte de seu salário do banqueiro alemão Leopold Koppel, criador em 1916 da Fundação Kaiser Wilhelm para as Ciências da Engenharia Militar. “Einstein não encontrou problemas de consciência em lidar com essa dicotomia. Segundo Fölsing, ele encarava essas contradições sorridente ou as ignorava”, afirmou Studart. A asa de avião não foi o único projeto de cunho militar em que Einstein esteve envolvido. Em 1915, o físico foi intimado a testemunhar em uma disputa judicial entre o norte-americano Elmer Sperry e o alemão Hermann Hubertus Anschütz-Kaempfe. Anos antes, Anschütz-Kaempfe havia projetado a primeira bússola giroscópica, uma espécie de pião que roda a velocidades muito altas no centro de um conjunto de argolas articuladas e interconectadas. Calibrada com o pólo Norte geográfico da Terra – e não com o pólo magnético como as bússolas antigas –, a bússola giroscópica se tornaria fundamental para orientação de navios e aeronaves. Atento a essas aplicações, Sperry aperfeiçoou a bússola giroscópica com auxílio da marinha norte-americana para usá-la em navios, que passavam a apresentar uma gigantesca estrutura metálica, comprometendo o funcionamento das bússolas magnéticas. De bússola a câmera fotográfica No tribunal Einstein depôs a favor de Anschütz-Kaempfe, de cuja empresa mais tarde se tornaria consultor. O físico alemão se tornou um especialista em tecnologia de bússolas giroscópicas e chegou inclusive a contribuir para uma das patentes de Anschütz-Kaempfe – a patente 394.667, de 22 de fevereiro de 1922, pela qual recebeu royalties até 1938. Einstein projetou uma armadura no interior da qual um meio eletromagnético fazia a bússola giroscópica funcionar sem atrito. “Esse sistema equipou navios e submarinos de muitas esquadras, exceto a inglesa”, explicou Studart.

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Em 1920 Einstein encontrou um brilhante físico húngaro, estudante de doutorado na Universidade de Berlim: Leo Szilard, mais tarde conhecido por convencer em 1939 seu amigo e professor a escrever para o presidente norteamericano Franklin Roosevelt, alertando sobre a possibilidade de os alemães construírem a bomba atômica. Com Szilard, Einstein produziu várias patentes de refrigeradores domésticos, as geladeiras, pouco comuns no início do século XX. “Há muita especulação sobre como a colaboração começou”, disse Studart. Alguns biógrafos dizem que eles tiveram a idéia de criar um sistema de refrigeração que não envolvesse partes mecânicas móveis depois de lerem a notícia da morte de uma família por envenenamento por gases tóxicos que haviam vazado por falhas na vedação. Mas há quem diga que estavam preocupados com o barulho que o refrigerador europeu fazia. Nos refrigeradores, o compressor submete o gás refrigerante à pressão, tornando-o líquido e liberando calor para o ambiente. Quando esse líquido se expande, torna-se mais frio e pode absorver o calor do gabinete. Einstein e Szilard usaram um conceito diferente – mas não original, segundo Studart – para criar um sistema de refrigeração em que a chama de um gás provoca a absorção e liberação da substância refrigerante a partir de uma solução química. Em dezembro de 1927 a fabricante de refrigeradores Platen-Munters, uma divisão da Electrolux, comprou a patente dos físicos por US$ 750. “Ambas as partes consideraram um bom negócio”, disse Studart. “Mas nos arquivos da Electrolux consta que foi muito barato.” A empresa nunca produziu o tal refrigerador, que foi montado experimentalmente em 1978 por Andrew Delano durante seu doutorado no Instituto de Tecnologia da Geórgia, nos Estados Unidos, e aparentemente funcionou. A dupla projetou ainda uma bomba eletromagnética para substituir o compressor dos refrigeradores. Sob ação de um campo magnético, um metal líquido se move e

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funciona como pistão para comprimir o gás refrigerante. Em 1928 a AEG construiu um protótipo, exibido em uma feira em Leipzig. Mas a geladeira era barulhenta e era preciso desenvolver estratégias para lidar com a oxidação dos metais. A substituição dos gases refrigerantes tóxicos por um gás não-tóxico, o freon, levou os refrigeradores com compressor mecânico a dominar o mercado. A última patente registrada por Einstein foi uma câmera fotográfica auto-ajustável à intensidade da luz, projetada em parceria com o médico Gustav Bucky. A câmera funcionava com base no efeito fotoelétrico – a capacidade da luz de arrancar partículas de carga negativa (elétrons) de um material –, explicado por Einstein em 1905 e que lhe rendeu o Nobel em 1921. Não se sabe se foi construída. Se Einstein teve uma produção considerável de inventos, por que se ouve falar tão pouco deles? Segundo Studart, por duas razões. A primeira é que a qualidade de suas invenções esteve infinitamente aquém da de suas realizações teóricas na física. O segundo motivo, em especial no que diz respeito aos projetos militares, é que após a morte do físico em 1955 Helen Dukas, sua secretária no Instituto de Estudos Avançados de Princeton, nos Estados Unidos, e os curadores de seu espólio ajudaram a formar uma carcaça de proteção em torno da personalidade de Einstein.

Refrigerador de Einstein-Szilard: sem partes mecânicas móveis

• Ricardo Zorzetto ROBERTO DE ANDRADE MARTINS Historiador mostra como cientista alemão renegou para depois admitir a importância do éter para a física

Algum tempo antes de publicar seu artigo sobre a teoria da relatividade especial, em 1905, Albert Einstein adotou uma postura diferente da maioria dos cientistas de sua época. Os físicos acreditavam na existência do éter, uma substância invisível e desconhecida, que preencheria todos os espaços onde não houvesse matéria. Essa hipótese era importante para explicar fenômenos físicos. Einstein, no entanto, preferiu seguir a posição filosófica segundo a qual não se deveria utilizar na ciência nada que não pudesse ser observado ou medido – ele rejeita, assim, a hipótese da existência do éter. Depois de publicar, em 1915, sua teoria da relatividade geral em que usou o conceito de espaçotem-

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po, ele é questionado por um colega: não seria o espaçotempo o mesmo que éter? “Em uma conferência famosa, cinco anos depois, Einstein admite, sem rodeios, que um espaço sem éter é impensável”, explicou o físico, historiador e filósofo da ciência Roberto de Andrade Martins, do Instituto de Física Gleb Wataghin da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Martins falou no ciclo de palestras dentro da exposição Einstein, no pavilhão Armando Arruda Pereira, no Parque do Ibirapuera, no dia 18 de outubro. Seu tema foi “Espaço, tempo e éter na teoria da relatividade”. Antes de chegar a Einstein e seus trabalhos mais célebres, o historiador explicou que os conceitos de espaço e tempo – diferente do espaçotempo usado na relatividade geral – são discutidos desde a Antiguidade. No século XVII eles ganharam especial importância graças ao físico e matemático inglês Isaac Newton (1643-1727), que defendeu a existência de espaço e tempos absolutos – essa última palavra significando alguma coisa que não depende de nenhuma outra. “Dentro da concepção de Newton, se o Universo fosse congelado o tempo continuaria a existir”, disse Martins. É algo que flui, que está passando, e que não depende de nenhuma outra coisa e, por isso, o tempo não pararia junto

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os planetas, entre as estrelas, em todo lugar onde parecia que não havia matéria haveria éter”, disse Martins. O éter já havia sido proposto na Antiguidade – Aristóteles defendeu sua existência. No século XIX, porém, ele se tornou um conceito físico importante, usado para explicar as forças eletromagnéticas e a propagação da luz pelo espaço. A idéia que predominou, a partir de 1820, é que a luz era uma forma de onda transmitida pelo éter. “Se a luz é uma onda, ela tem de ser uma onda de alguma coisa que está vibrando, oscilando e transmitindo ondas. Isso seria o éter”, explicou. O mesmo valia para as forças eletromagnéticas. Michael Faraday (1791-1867), grande estudioso desses fenômenos, acreditava que uma carga elétrica ou um ímã não exerceriam forças diretamente sobre outro ímã quando distantes. Se há dois ímãs separados, eles não podem saber da existência um do Martins: explicação de conceitos que construíram a física outro porque não têm sentidos. Faraday desenvolveu a idéia de que havia alguma coisa física prendendo com o congelamento do Universo. É o tempo absoluto. O os ímãs, que também seria uma forma de éter. Uma carga mesmo valeria para o espaço absoluto, que não se moveria magnética ou um ímã provocariam em volta de si uma perjamais. As coisas sim, se moveriam pelo espaço, o palco turbação do éter, que se espalharia e atingiria outro corpo, produzindo forças nele. “Essa é uma idéia que soa estranha onde tudo aconteceria. “Mesmo se pudéssemos retirar tudo o que existe no Universo, esse espaço continuaria a porque não foi conservada na física que aprendemos hoje”, existir para Newton.” Para o inglês também existiria um lembrou Martins. Mas os grandes físicos do século XIX, tempo relativo e um espaço relativo. O primeiro depencomo James Maxwell (1831-1879), tinham certeza de que deria dos acontecimentos e se poderia medir por meio o éter existia e era parte importante da teoria desenvolvida de movimentos, seja os que ocorrem no relógio, seja o por eles. “Atualmente falamos de campo elétrico e campo movimento celeste, como a variação entre dia e noite. Já magnético como algo abstrato, mas para Maxwell o campo o espaço relativo seria determinado pelas relações entre elétrico é uma modificação do éter, produzido por cargas elétricas que agem sobre outras cargas elétricas.” os objetos. Martins lembrou que esses são conceitos metafísicos, Novas idéias ou seja, algo que não pode ser observado. Outros cientistas e filósofos, como o alemão Gottfried Leibniz (1646-1716), Para a mecânica newtoniana seria impossível detectar discordaram profundamente de Newton e propuseram movimentos como o de translação ou o de deslocamento outras idéias. “Independentemente das discussões mais em linha reta com velocidade constante através do espaço filosóficas, Newton achava importante essa conceituação absoluto. Martins afirmou que isso continuava válido no de espaço e tempo absolutos como algo fundamental para século XIX, mas a crença na existência de um éter mudou poder construir e pensar a física, a mecânica, a astronomia”, a situação. Ora, o espaço não estava mais vazio, ele tinha afirmou o historiador da Unicamp. A maioria dos físicos algo físico. Que tal tentar medir os efeitos do movimento aceitou esses conceitos. da Terra ou de outros objetos através do éter? Aparentemente poderia ser feito. Se a Terra estivesse se deslocando No decorrer do século XIX continuou-se a aceitar a concepção de Newton, mas foi adicionada a ela outra em meio ao éter, deveria ser possível medir esse deslohipótese. Trata-se do conceito de éter. “Uma substância camento de alguma forma, com instrumentos. Alguns material preencheria o espaço, inclusive o espaço entre físicos tentaram fazer isso – inclusive Maxwell –, mas não

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obtiveram sucesso. “Depois de algum tempo, no final do século XIX começou-se a suspeitar que seria impossível fazer essa medição”, contou o historiador. No início do século XX o francês Henri Poincaré (1854-1912) trouxe outras idéias. Disse que existe um princípio da relatividade – ele usa esse nome – que nos impede de observar uma velocidade que não seja entre corpos materiais. Isto é, não podemos observar movimentos em relação ao éter. Esse novo conceito trouxe sérios problemas para os físicos da época, que tentavam encaixar todas as idéias físicas em equações matemáticas. “Na última década do século XIX, Poincaré, o holandês Hendrik Lorentz (1853-1928), o irlandês Joseph Larmor (1857-1942) e o alemão Woldemar Voigt (1850-1919), entre outros, estavam procurando um modo de conciliar o eletromagnetismo com o princípio da relatividade, essa impossibilidade de se medir a velocidade em relação ao éter”, disse Martins. “É isso que vai dar origem ao que chamamos de teoria da relatividade especial, que não tinha esse nome no início.” O historiador chama a atenção para o fato de a teoria ser um trabalho coletivo, embora o nome de Einstein esteja mais associado a ela depois da publicação de seu estudo, em 1905. “Se por acaso Einstein tivesse morrido e não publicado o artigo sobre a relatividade especial, ainda assim ela teria surgido porque havia várias outras pessoas trabalhando na mesma direção, seria apenas uma questão de tempo.” As equações básicas dessa teoria, por exemplo, são as chamadas “transformações de Lorentz”, feitas antes de Einstein publicar seu artigo. A conclusão de todos os pesquisadores que contribuíram para a relatividade especial é de que não se podia medir a velocidade de nenhum corpo em relação ao éter. No entanto, isso não significava a negação da existência do éter. Segundo escreveu Poincaré, na verdade não interessava se o éter realmente existia; o importante é que tudo aconteceria como se ele existisse e essa hipótese era adequada para a explicação dos fenômenos. “Do grupo de cientistas que desenvolveram a teoria da relatividade especial, Einstein tinha uma posição diferente”, relatou Martins. Ele seguia basicamente a posição filosófica do austríaco Ernst Mach (1838-1916), segundo a qual não se deveria utilizar na ciência nada que não pudesse ser observado ou medido. Mach já havia atacado diretamente o espaço e o tempo absolutos de Newton porque não

preenchiam esses requisitos. Einstein adere à crítica do austríaco ao éter e rejeita seu uso na física porque não se poderiam medir suas propriedades. “Essa atitude não quis dizer que Einstein provou que o éter não existe”, alertou Martins. “Ele utilizou um princípio filosófico, empirista, para afirmar apenas que não devemos usar o conceito de éter na ciência.” A rigor, ninguém poderia provar que o éter não existe. Anos depois, quando Einstein começou a trabalhar na teoria da relatividade geral – e não da relatividade especial, tratada até aqui –, ele utilizou o conceito de espaçotempo (como se fosse uma só palavra, diferente do espaço e tempo de Newton) criado pelo matemático lituano Hermann Minkowski (1864-1909), que havia sido seu professor. O espaçotempo de Minkowski era principalmente uma ferramenta matemática. Ele mostrou que era possível trabalhar matematicamente o tempo como sendo uma quarta dimensão análoga às três dimensões do espaço e que isso determinava relações matemáticas entre eles. “Na abordagem de Minkowski, as transformações de Lorentz – que são na verdade as equações mais importantes da rela-

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SMITHSONIAN INSTITUTION LIBRARIES

A teoria da relatividade especial foi um trabalho coletivo, embora Einstein esteja mais associado a ela depois da publicação do artigo de 1905

Poincaré: autor do princípio da relatividade

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a Ehrenfest em uma conferência na Holanda, em 1920, que se tornou famosa, publicada na forma de um livro com o título Éter e teoria da relatividade. Nela Einstein diz: “De acordo com a teoria da relatividade geral, um espaço sem éter é impensável; porque em um espaço assim não haveria propagação da luz, nem possibilidade de padrões de espaço e de tempo (réguas e relógios), nem intervalos de espaçotempo, no sentido físico”. A desconfiança de Ehrenfest era real. Basicamente, Einstein mudou. Ele disse que o éter que havia rejeitado – o de Lorentz – é um pouco diferente daquele que ele estava aceitando. “Penso que podemos dizer que o éter da teoria da relatividade geral é o resultado do éter de Lorentz, relativizado”, afirmou o físico alemão. “Embora Einstein tenha assumido isso, a maior parte dos físicos atuais diz que não há éter porque Einstein negou o éter em anos anteriores”, disse Martins. “Essa parte da história não costuma ser contada.”

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tividade especial – saem dessa interpretação de que o espaço e o tempo são partes de uma entidade mais complicada, que é o espaçotempo”, explicou o professor da Unicamp. É com essa ferramenta, o espaçotempo, que Einstein construiu a teoria da relatividade geral, que serve para estudar fenômenos gravitacionais de sistemas acelerados, que estão Éter e a relatividade, de 1920 sendo empurrados com alguma aceleração ou que estão girando. Mas, antes de erguer sua nova teoria, o físico alemão teve de aprender mais matemática. Max Abraham (1875-1922), um matemático alemão importante, começou a introduzir no estudo da relatividade o cálculo diferencial absoluto, ou cálculo tensorial, que permite trabalhar as relações entre espaço e tempo para qualquer referencial. Einstein, que não gostou desse ferramental por considerá-lo excessivamente complicado, pediu ajuda para seu velho amigo Marcel Grossman (1878-1936) para aprender a usar os cálculos de Abraham. “É interessante vermos alguém tão famoso admitir suas fraquezas. Ele precisou de ajuda para entender a matemática que utilizou depois para desenvolver a teoria da relatividade geral”, observou Martins. Espaço curvo Quando Einstein tratou da relatividade especial, o espaço era plano, chato, como na geometria euclidiana. Mas na relatividade geral o espaçotempo se encurva e isso produz efeitos importantes: ele passa a ter propriedades matemáticas e físicas especiais por ser curvo. Essas curvaturas são produzidas pela presença ou proximidade de matéria e energia que geram deformações. “Nessa teoria, o Sol não atrai os planetas, ele produz uma deformação no espaçotempo e os planetas, ao se moverem nesse espaçotempo curvo, são obrigados a seguir trajetórias especiais”, explicou Martins. Eles, os planetas, sentem a deformação do espaçotempo, não a atração do Sol. “Há aí uma grande semelhança entre o modo como a relatividade geral se relaciona com a gravitação e o éter do eletromagnetismo.” Um amigo de Einstein, Paul Ehrenfest (1880-1933), que tinha cidadania holandesa, viu algo familiar na relatividade geral e escreveu uma carta para ele em 1918 com uma questão intrigante. Na teoria da relatividade especial Einstein decidiu ignorar o conceito de éter. Mas na relatividade geral ele traz o éter com um novo nome – o espaçotempo seria esse novo éter. Einstein dá uma resposta

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FOTO DE PAUL EHRENFEST, MUSEUM BOERHAAVE

• Neldson Marcolin

Einstein e Lorentz na Holanda: reconhecimento

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chegou a hora de aprender na escola, ele viu que o teorema de Pitágoras era aquilo que ele tinha pensado quando viu o livrinho que o tio havia dado”, afirma o professor. Aos 17 anos fez uma pergunta que desconcertou um professor da escola que freqüentava em Aarau, na Suíça: o que aconteceria se ele caminhasse do lado de uma onda eletromagnética com a velocidade próxima da velocidade da luz. “Aquilo não era coisa que se tratasse no ensino médio. O pobre do professor, obviamente, não soube dizer nada. Esse problema ele resolveu dez anos mais tarde com o artigo da relatividade”, disse Santos. Outro mito, esse bastante disseminado, reza que Einstein foi um mau aluno. Decerto, diz Carlos Alberto dos Santos, o jovem Einstein não se encaixava no estereótipo do aluno aplicado. Exasperavam-no a rigidez escolar e a sensação de que poderia aprender mais com os livros do que nas salas de aula, afirmou o professor. “Mas, quando queria, ele sabia ser um aluno brilhante”, diz Santos. Einstein detestava tanto a escola de ensino médio que freqüentava na Alemanha que simplesmente a abandonou. “No meio do ano, foi para casa sem terminar o segundo grau. Tinha 15 para 16 anos. Ele conseguiu que um médico amigo da família desse um atestado dizendo que estava com estafa e precisava descansar. Assim ele justificou a saída dele lá para o diretor do colégio. Ao mesmo tempo conseguiu que um professor de matemática – e vejam como esse sujeito premeditava as coisas – assinasse uma carta dizendo que ele era uma criança prodígio, que sabia muita matemática. E o professor deu. Havia professores que odiavam Einstein porque ele tinha um jeito arrogante. E tinha professores que gostavam dele. Poucos, mas tinha”, diz Carlos Alberto dos Santos. Em casa começou a se preparar para se sub-

CARLOS ALBERTO DOS SANTOS

Albert Einstein eletrizou o mundo acadêmico ao publicar quatro artigos científicos revolucionários no ano de 1905, quando tinha apenas 26 anos de idade. Explicou o efeito fotoelétrico, que lhe renderia o Nobel de Física de 1921, e o movimento browniano, que constitui uma evidência experimental da existência dos átomos. Detalhou o conceito de relatividade restrita, estabelecendo uma relação entre os conceitos de tempo e distância; e deduziu a famosa equação relacionando massa e energia E = mc2. As atividades do cientista nos anos que antecederam a publicação dos artigos e os mitos criados sobre os primórdios de sua vida acadêmica foram o mote da palestra “A preparação de Einstein para seu ano miraculoso”, proferida por Carlos Alberto dos Santos, professor aposentado do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), colunista da revista Ciência Hoje e autor da ficção O plágio de Einstein (editora WS). A apresentação de Santos foi realizada na manhã do dia 19 de outubro, no pavilhão Armando de Arruda Pereira, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo. Com base em informações obtidas de fontes primárias, como notas autobiográficas, cadernos escolares, cartas para ´ e para o amigo Michele Besso, a mulher, Mileva Maric, textos e anotações reunidos em 29 volumes publicados pela Universidade de Princeton, além de fontes secundárias, como duas biografias de Einstein, Santos desmontou um conjunto de falsas idéias que, vez por outra, aparecem associadas ao gênio da física. Uma delas reza que Einstein talvez não tenha sido assim um “einstein” e que suas teorias revolucionárias acabariam propostas por outros pesquisadores da época se ele não tivesse existido. Santos mostrou, ao contrário, que Einstein exibia na infância e na adolescência sinais de um brilhantismo incomum para crianças ou jovens de sua época e seu meio. Aos 5 anos recebeu do pai uma bússola de bolso e inferiu que a agulha apontava sempre para um mesmo lugar porque havia alguma força exterior a atrair a agulha. “Uma pessoa com 4 ou 5 anos imaginar que existe uma ação externa é algo extraordinário”, disse Santos. Na idade adulta, descreveria a “impressão profunda e duradoura” desta experiência. Aos 10 anos, ganhou de um tio engenheiro um livro de geometria e deduziu sozinho o teorema de Pitágoras. “Quando

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Professor da Federal do Rio Grande do Sul desmonta mitos criados sobre o ganhador do Nobel

Santos: os caminhos do gênio até 1905

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penho de Einstein nos exames de física levou um professor da disciplina na uni95/96 96/97 versidade, Heinrich Friedrich Weber, a convidar o jovem estudante a freqüentar suas aulas como aluno ouvinte, privilégio proibido pela instituição. A banca sugeriu que ele tentasse de novo no exame seguinte – quando efetivamente ingressou na escola – e que, nesse meio tempo, concluísse o ensino médio que, entediado, Einstein havia abandonado. Matriculado na escola de Aarau, finalmente se sentiu estimulado e viveu um período tranqüilo de estudos. Também colaborou com o mito do mau aluno o boletim de Einstein em Aarau. No ano letivo de 1895 a 1896, suas notas são quase todas muito baixas, ao contrário do ano letivo seguinte, de 1896 a 1897, quando alcançam o teto máximo em várias disciplinas. Santos explicou que os biógrafos de Einstein foram enganados pelos números. As notas são díspares porque, no primeiro ano, a escala vai de 6 (nota mínima) a 1 (nota máxima), invertendo-se a regra no ano seguinte. Boletim: como a escala se inverteu, notas parecem baixas O que parecia um desempenho sofrível era, na verdade, um resultado altamente satisfatório. “A maior prova disso é a meter aos exames de ingresso numa faculdade – não era nota de Einstein nas aulas de violino, que tocava muito necessário ter o ensino médio completo, mas, nesse caso, bem. Foi de 1 a 2 no primeiro ano e de 5 a 6 no segundo”, afirma. O desempenho de Einstein na ETH foi irregular. exigia-se que o candidato fizesse uma série de provas. “PaNão gostava de anotar as aulas e pedia emprestado os cara se aquecer, ele escreveu seu primeiro artigo científico, sobre investigação do estado do éter no campo magnético. dernos do colega Marcel Grossmann – que se tornaria um Havia um monte de erros, mas o fato importante é que ele cosmólogo famoso – antes de fazer as provas. “Einstein já pensava nesse tipo de problema aos 15 anos. E tinha o achava os professores muito atrasados. Ele detestava, por peito de escrever”, disse o professor Santos. exemplo, que eles dessem a aula lendo livros. Além disso, nenhum professor tratava da literatura contemporânea e Biógrafos enganados ele já a conhecia na época. Ele abandonava as aulas e ia A idéia de que Einstein era mau aluno também é fomentada para o laboratório. Ou ficava lendo os conteúdos que os professores não davam. Praticamente toda a física que ele pelo fato de ele ter sido reprovado no exame de ingresso da Escola Politécnica de Zurique, a Eidgenössische Technische aprendeu na ETH vem dessas anotações e das leituras pesHochschule (ETH). De fato, ele fracassou em sua primeira soais que ele fez”, diz Santos. “É falsa a idéia de que Einstein tentativa de entrar na instituição, mas Carlos Alberto dos fosse um mau aluno. Mas relapso e arrogante ele era.” Santos chama a atenção para um conjunto de circunstânA arrogância custaria caro ao futuro gênio da física. cias que marcaram o malogro. Aos 16 anos, Einstein nem Ele teve grande dificuldade em arranjar um professor pasequer tinha idade suficiente para participar do exame. Só ra assinar como orientador a sua tese de doutoramento conseguiu abrir um precedente ao apresentar a carta do na ETH. Aquele professor Weber que o convidara para professor de matemática que o tratava como superdotado, assistir suas aulas como ouvinte pegou birra de Einstein. além de um pedido de um influente amigo de sua família, “Naquela época, os professores exigiam que os alunos sócio de um banco em Zurique. Há várias versões sobre lhes chamassem de Herr professor. Mas Einstein, não sei seu mau desempenho: alguns biógrafos dizem que ele foi se por ingenuidade ou por maldade, chamava-o apenas muito mal no exame oral de francês, que conhecia apenas Herr Weber. Isso era insuportável para o professor”, diz sofrivelmente, outros afirmam que o problema foi a prova Santos. A rixa entre aluno e professor chegou a tal ponto de biologia ou de interpretação lingüística. Mas o desemque Einstein passou a enxergar a mão invisível de Weber

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em todos os nãos que recebeu quando procurava emprego ao final do curso. “Einstein era uma pessoa completamente desconhecida, o que pode explicar sua dificuldade de conseguir emprego. Mas ele achava que era Weber quem desaconselhava os potenciais contratantes e atrapalhava a vida dele. Em cartas para a mulher Mileva ele declara a intenção de se vingar de Weber. Imagine ele, com 20 e poucos anos, dizendo isso de um professor que era o chefe do departamento”, disse Santos. Aos 70 anos, quando escreve suas Notas autobiográficas e relembra os tempos de ETH, Einstein cita vários professores, mas não reserva uma menção sequer a Heinrich Friedrich Weber. “Ele deletou o nome do Weber de sua história”, afirmou o palestrante.

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• Fabrício Marques REPRODUÇÃO

Outsider Einstein vez por outra também é citado como um plagiador, por copiar em seus primeiros trabalhos informações de outros autores sem dar o necessário crédito. Carlos Alberto dos Santos diz que isso, de fato, aconteceu, mas explica por que Einstein às vezes não dava referência. “Ele não citava porque ele não teve orientação para fazer isso. Era quase um menino quando escrevia aquilo. Um menino genial que não tinha orientação. Ele era meio um outsider mesmo”, afirma. “Fazia tudo sozinho e seu trabalho não tem um padrão acadêmico como a gente conhece hoje. Ele escreveu coisas que [Hendrick] Lorentz já tinha dito, que [Jules Henri] Poincaré já tinha dito. Ele fez sua tese sozinho e depois teve dificuldade em arrumar um supervisor para assinar a tese. Mas a ciência é assim, a gente faz ciência em cima de coisas já feitas. Quem faz ciência sabe disso”, afirma. Um quarto mito propõe que Einstein, em 1905, teve uma tempestade criativa, razão pela qual saiu escrevendo os artigos que mudaram os rumos da física. “Isso é muito ruim do ponto de vista pedagógico, didático, porque passa a idéia para as crianças de que você não precisa estudar. Se você for bom, do dia para a noite parece que tudo caiu do céu para o Einstein”, afirma o professor. Carlos Alberto dos Santos mostrou que o jovem pesquisador já vinha trabalhando nos temas dos artigos desde muito tempo antes e que eles já aparecem em alguns dos cinco trabalhos que Einstein publicou em anos anteriores. Em dezembro de 1901, por exemplo, ele escreveu uma carta à colega de universidade e futura mulher, Mileva, dizendo: “Estou muito ocupado com uma teoria eletrodinâmica dos corpos em movimento, que promete ser um trabalho de importância capital”. Era o embrião do artigo sobre relatividade restrita (ou especial). “Ele deve ter se engasgado por conta da matemática e a coisa se arrastou. Por isso, só publicou em 1905”, diz o professor Santos. Nessa fase, Einstein foi morar em Berna e enfrentou as dificuldades de arrumar emprego. “Ele dava aula particular ali, ia dois meses para uma escola, depois dois meses para outra. Passou uma vida dificílima. Um amigo dos tempos de adolescência que o visitou em 1902 escreveu que estava muito impressionado, porque achava que Eins-

tein ia morrer de fome. Alguns biógrafos acreditam que os problemas estomacais de que Einstein sofreria bem mais tarde resultam do período que ele passou em Berna. Ele se alimentava de café com salsicha”, disse o professor. A sorte muda em junho de 1902, quando Einstein consegue um emprego no escritório de patentes de Berna e se reúne com a mulher, Mileva, e seus principais amigos, Michele Besso e Conrad Habicht. “Como estão todos juntos, cessam as cartas nesse período. Claro que ele mentiu para arrumar o emprego. Era preciso ter noções de engenharia para analisar as patentes e ele disse que sabia. Na verdade, não sabia, mas aprendia rápido. Chegava ao escritório e fazia tudo rapidinho e no resto do dia trabalhava nas contas dele. E conseguiu emprego para Michele Besso porque o queria por perto. O Michele o ajudava a fazer os cálculos”, diz Santos. De acordo com o professor, a preparação para o ano miraculoso foi uma grande caminhada. “Não foi obra de uma divindade. Einstein preparou-se desde os 16 anos para escrever aquilo. Podia ter abandonado a física porque não tinha emprego, mas seguiu em frente. Não era de se submeter a regras, mas trabalhava como um touro. Assim chegou a seu ano miraculoso”, afirma. “Se os mitos sobre Einstein fossem reais, os trabalhos de 1905 provavelmente não teriam existido”, completa o professor Carlos Alberto dos Santos.

O adolescente Einstein, quando vivia na Itália

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Ciclo de Palestras Novembro Dia 1º sábado | 15h De Galileu a Einstein: do tempo da física ao tempo vivido Pablo Mariconda, filósofo e professor da usp É possível produzir um Einstein? Algumas reflexões sobre Einstein e a educação Antônio Augusto Videira, professor da uerj Dia 8 sábado | 15h As contribuições e críticas de Einstein à física quântica Silvio Chibeni, físico e professor de filosofia da unicamp O tempo no teatro Sérgio de Carvalho, diretor teatral e professor da usp Dia 9 domingo | 11h Um cientista nos trópicos: a viagem de Einstein à América do Sul Alfredo Tomalsquim, físico e diretor do Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast) do Rio de Janeiro Dia 15 sábado | 15h O tempo e a memória Martín Cammarota, biólogo e professor da puc-rs Impactos da obra de Einstein no campo da física médica Roberto Covolan, físico e professor da unicamp

Dia 16 domingo | 11h O mistério do Universo em aceleração Gary Steigman, professor da Ohio State University, Estados Unidos Dia 22 sábado | 15h Piaget, Einstein e a noção de tempo na criança Lino de Macedo, professor da usp Movimento browniano, Caos e fractais Carmem Prado, física e professora da usp Dia 23 domingo | 11h Buracos negros: rompendo os limites da ficção George Matsas, físico e professor da unesp Dia 29 sábado | 15h Albert Einstein e Mario Schemberg nas fronteiras da ciência no século XX José Luiz Goldfarb, físico, historiador da ciência e professor da puc-sp O tempo na história Edgar de Decca, professor da unicamp Dia 30 domingo | 11h Como Einstein e Picasso inventaram o século XX Arthur Miller, professor emérito de história e filosofia da ciência do University College, Londres

Dezembro Dia 6 sábado | 15h Quando Einstein falhou: a luta contra os moinhos de vento quântico Yurij Castelfranchi, físico e pesquisador da unicamp Os gostos e desgostos de Einstein Cássio Leite Vieira, físico e jornalista (RJ) Dia 7 domingo | 11h Einstein e a matéria Luiz Davidovich, físico e professor da ufrj Dia 13 sábado | 15h Espaço e tempo no cinema Rubens Machado Jr., professor da usp O discreto charme das partículas elementares [com exibição comentada do filme homônimo] Maria Cristina Abdalla, física e professora da unesp Dia 14 domingo | 11h Einstein, o cientista e o filósofo Michel Paty, diretor de pesquisa emérito no Centre National de la Recherche Scientifique, França Participe Todos são bem-vindos Entrada gratuita

pavilhão armando de arruda pereira (antigo prédio da prodam), parque do ibirapuera, portão 10 mais informações: www.revistapesquisa.fapesp.br e www.einsteinbrasil.com.br

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IMUNOLOGIA

Enxame de morte Grupo brasileiro obtém primeiro soro contra veneno de abelhas Maria Guimarães | fotos Martelli Filho

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expressão “mexer num ninho de vespas” indica encrenca séria. O mesmo vale para as abelhas. São insetos sociais que trabalham em equipe inclusive quando o assunto é se defender de inimigos. Por isso quem esbarra num desses ninhos tem grandes chances de acabar no hospital com centenas de ferrões cravados na pele. E com toxinas na corrente sangüínea que por dias produzem danos principalmente no fígado, nos rins e no coração, dissolvendo a matriz que une as células e causando problemas crônicos. “Só agora entendemos como o veneno desses insetos funciona”, conta o bioquímico Mário Palma, do Centro de Estudos de Insetos Sociais (Ceis) da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro. Ele buscou reforços na Universidade de São Paulo (USP) e no Instituto Butantan, formando uma equipe que conseguiu um feito inédito: desenvolver um soro contra ferroadas de abelhas. De acordo com Palma, a dificuldade em produzir um soro específico contra a ferroada de insetos estava justamente no pouco que se sabia sobre a composição dessas substâncias. “Ao contrário do que acontece em serpentes, cujo veneno se baseia em proteínas complexas, 70% dos venenos de abelhas e vespas são compostos por peptídeos”, explica, se referindo a moléculas aparentadas às proteínas, porém pequenas. Ele partiu da observação de que esses venenos funcionam de maneira diferente. Uma vítima de picada de cobra – sobretudo as que viram refeição, como roedores – morre rapidamente. É, afinal, uma estratégia de caça. Já abelhas e vespas usam o veneno como defesa: os frágeis ferrões, que só conseguem penetrar a pele macia do rosto de um macaco em busca de mel, de uma ave com gosto por insetos ou de uma pessoa incauta, deixam uma lembrança bem dolorida que marca o local a se evitar. Este ano, o Ministério da Saúde prevê que ocorrerão entre 10 mil e 15 mil acidentes com abelhas e vespas – número provavelmente muito subestimado, porque pessoas que tomam uma única ferroada e não têm reação alérgica forte não procuram atendimento

A vespa cassununga (Agelaia pallipes)

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Abelha africanizada (Apis mellifera)

médico. Ao contrário do que acontece em encontros com serpentes (mais de 20 mil mordidas por ano no país), a maior parte dos pacientes sobrevive. Mas as pequenas moléculas do veneno dos insetos se espalham com facilidade pelo organismo. Por isso, 98% das vítimas de múltiplas ferroadas têm seqüelas como problemas crônicos nos rins e no fígado. Até recentemente o método para encontrar soros e vacinas se baseava em tentativa e erro: produzia-se o soro e se testava seu efeito. “Cada vez que não funciona, perde-se um paciente”, diz o pesquisador da Unesp. É um resultado que se deve evitar mesmo quando são testes em camundongos de laboratório, mas até agora ninguém tinha conseguido desenvolver testes in vitro para avaliar a eficácia de soros. A estratégia de Palma foi montar um laboratório de ponta para análise de proteínas, com ajuda de um projeto de bioprospecção financiado pela FAPESP. O resultado é marcante: em quatro anos, sua aluna de doutorado Keity Souza Santos, co-orientada por Fábio Castro, encontrou no veneno das abelhas cerca de 200 compostos além das cinco proteínas já conhecidas. Como não basta saber a composição, os pesquisadores partiram para investigar seu efeito no organismo. Foi fundamental nesse ponto a colaboração com a equipe do Hospital das Clínicas (HC) da USP, liderada pelo imunologista Jorge Kalil e pelo alergologista Fábio Castro. Ao atender pessoas ferroadas por abelhas ou vespas, os médicos compilaram uma lista com cerca de 50 sintomas que 70

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incluem dor, vermelhidão, inchaço, coceira, visão escurecida, falta de consciência, cansaço nas pernas e falta de memória. Ao cruzar esses dados com a lista de peptídeos e proteínas do veneno, a equipe pôde avaliar como cada composto age no organismo humano. Produção - Em seguida Palma juntou

esforços com o Instituto Butantan, produtor de 80% de todos os soros e vacinas consumidos no Brasil, que injetou veneno de abelhas em seus cavalos e extraíram os anticorpos produzidos em resposta. Em seguida, no laboratório em Rio Claro, Palma desenvolveu testes in vitro para verificar se o soro extraído dos cavalos neutralizava todos os elementos tóxicos do veneno e aos poucos acrescentou as defesas que faltavam. “Até onde sabemos, nunca no mundo se tinha feito esse processo de procurar o anticorpo contra cada proteína”, afirma. Para chegar à formulação final, o soro teve também que passar pelo crivo do farmacologista Marco Antonio

Stephano, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP, especialista em controle de qualidade. “Foram quatro anos de trabalho em que tivemos que manter segredo total”, conta Palma, “até depositarmos a patente”. Com a receita pronta, uma equipe do Instituto Butantan liderada por Hisako Higashi está agora produzindo os lotes de soro que serão testados no Hospital Vital Brazil, do próprio Butantan, centro de referência nacional em atendimento a acidentes com animais venenosos. A previsão da pesquisadora é que o soro esteja pronto para testes clínicos em cerca de seis meses. Para Hisako, além das análises de proteínas, a parceria com a Unesp é fonte de grandes quantidades de veneno de abelha para produção de soro. A universidade mantém uma fazenda de abelhas sob responsabilidade do biólogo Osmar Malaspina, também do Ceis. Ele põe uma placa de vidro coberta com uma grade eletrificada na entrada das colméias. Quando as abelhas pousam, tomam um choque ao qual reagem ferroando o vidro. Não chegam a perder o ferrão e deixam uma gotícula de veneno. Com o método automatizado, de gota em gota Malaspina consegue veneno suficiente para produzir o soro. Depois de aprovado, o produto deverá ser distribuído por toda a rede pública. Palma ressalta que se trata de um empreendimento do governo, pois foi financiado pelas agências nacionais de fomento à pesquisa – FAPESP, CNPq e Finep – e produzido pelo Instituto Butantan, vinculado à Secretaria da Saúde de São Paulo.

Vespa-tatu (Synoeca cyanea)

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O pesquisador da Unesp considera ter dado o primeiro passo bem-sucedido que lhe dá ímpeto para continuar. O soro que desenvolveu funciona contra abelhas brasileiras, mas ele já recebeu amostras de veneno de abelhas de outros lugares do mundo para testar se funciona contra outras subespécies de Apis mellifera, que existe em 75% do planeta. Se funcionar, Palma já imagina o Brasil como o maior produtor e exportador mundial de soro contra ferroada de abelhas. O grupo não esquece que as abelhas levam a culpa por muitas ferroadas de vespas, que têm um veneno diferente e que não é neutralizado pelo soro contra abelhas. Com a colaboração de Malaspina, Palma selecionou as 12 espécies de vespas responsáveis por boa parte dos acidentes. O grupo de Rio Claro já está desmembrando o veneno das vespas em seus peptídeos e proteínas e busca produzir um soro que seja eficaz contra a ferroada de todas, tão nociva quanto a das abelhas. Alergia - Além de dolorida e tóxica,

a ferroada de uma única abelha pode causar uma reação alérgica capaz de matar de um minuto para o outro. Isso acontece porque o sistema imunológico responde ao veneno produzindo anticorpos chamados imunoglobulina E, ou IgE. Quando travam grandes batalhas contra uma dose de veneno, as IgE causam inchaço, coceira e, em algumas pessoas, até choque anafilático, que as impede de respirar e causa um desmaio súbito. Contra essa reação o soro não tem efeito. Para combater um processo alérgico, é preciso identificar com exatidão a sua causa. Como na maior parte das vezes não se pode exigir observações científicas rigorosas de quem sofre o ataque, os postos de atendimento precisam de testes que identifiquem os alérgenos presentes no sangue do paciente. Já existem testes para detectar alérgenos de algumas vespas norte-americanas e européias, mas não são as mesmas espécies que há por aqui. Além disso, só as 51 espécies de vespas que existem no campus de Rio Claro já somam mais do que a biodiversidade européia e a norte-americana juntas. São cerca de 500 espécies no Brasil todo diante de cerca de 20 nos Estados Unidos e outras 20 na Europa.

Vespa Polybia ignobilis, sem nome popular

O grupo coordenado por Palma pretende desenvolver testes que reconheçam pelo menos as espécies que mais causam acidentes no Brasil e disseminar o treinamento para reconhecer e tratar alergias a venenos de insetos. “Hoje a maioria dos que têm formação para isso passaram por treinamento conosco”, diz o imunologista e alergologista Fábio Castro, que está disposto a treinar mais profissionais Brasil afora. Ele e Palma já começaram a ampliar fronteiras: montaram o Grupo de Estudos de Novos Alérgenos Regionais (Genar), que pretende sistematizar uma rede de pesquisadores e

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profissionais da saúde para investigar e tratar alergias raras, como a alimentos regionais, sobre as quais se sabe muito pouco. O sucesso do projeto é um exemplo de como a tecnologia científica – no caso a que permite examinar proteínas e peptídeos – rende resultados surpreendentes quando associada ao conhecimento da natureza. “As toxinas dos animais são verdadeiras fontes de inspiração”, diz Palma, que parte do comportamento dos insetos e das aranhas e da função das substâncias químicas na natureza para entender como agem e para que podem ser usadas. ■

O PROJETO

Marimbondocavalo (Polistes lanio)

Bioprospecção da fauna de artrópodes do estado de São Paulo para desenvolvimento de novos fármacos e pesticidas seletivos MODALIDADE

Programa Biota COORDENADOR

MARIO SERGIO PALMA – Unesp INVESTIMENTO

R$ 1.646.290,60 (FAPESP) R$ 1.530.000 (CNPq e Finep)

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AMBIENTE

Ilhas de floresta

Usina Serra Grande: 9 mil hectares de Mata Atlântica preservados em meio à cana-de-açúcar

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Trechos isolados de Mata Atlântica abrigam menos espécies de plantas e de animais

ADRIANO GAMBARINI

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o norte de Alagoas, já na divisa com Pernambuco, o pequeno município de São José da Laje abriga uma centenária usina de açúcar e álcool que nos últimos anos tem funcionado como um importante laboratório natural. É a Usina Serra Grande, que ocupa uma área de 20 mil hectares nos quais diversos trechos de Mata Atlântica encontram-se imersos na paisagem dominada pela cana. Nessa propriedade a equipe do ecólogo Marcelo Tabarelli, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), encontrou o lugar ideal para investigar como a transformação de uma vasta área contínua de mata em trechos isolados de floresta – efeito chamado pelos ecólogos de fragmentação – afeta diferentes espécies de plantas e animais. Nos 9 mil hectares de Mata Atlântica preservados pela usina a equipe de Tabarelli selecionou para analisar 109 trechos de diversos tamanhos – o maior e mais bem preservado deles é a floresta Coimbra, com 3,5 mil hectares contínuos de Mata Atlântica original. Ao longo de oito anos, os pesquisadores tomaram nota das características biológicas de todas as árvores com mais de dez centímetros de diâmetro encontradas em quatro tipos de ambiente: faixas de cem metros de largura na parte mais externa de Coimbra; trechos no interior dessa floresta; clareiras em que a mata se recuperou; e ilhas de floresta com tamanho entre 3 e 80 hectares inteiramente cercadas pela cana-de-açúcar. Publicados este ano na revista Biological Conservation, os resultados mostram claramente que a composição de árvores de um trecho de mata cercado por mais mata é muito diferente da composição de árvores de um fragmento inicialmente idêntico mas cercado por uma cultura agrícola como a cana.

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FOTOS ARIADNA LOPES/UFPE

Espécies raras: flor de ingá, polinizada por morcegos, e...

Os ecólogos pernambucanos verificaram que o número de espécies de árvores nas margens e nos fragmentos menores de floresta é metade daquele encontrado no interior de áreas de vegetação natural contínua, como Coimbra. Nas matas empobrecidas há quatro vezes mais espécies – e mais indivíduos – de árvores especializadas em colonizar áreas alteradas, como clareiras ou florestas em regeneração. São árvores mais resistentes às condições alteradas das zonas de transição entre a floresta e a plantação – as chamadas bordas –, que em geral são mais ensolaradas e quentes, menos úmidas e com ventos mais fortes. A mudança na composição das espécies de árvores não é a única alteração observada nesses trechos de floresta mais degradada. Ariadna Lopes, colega de Tabarelli na UFPE, mostrou que as comunidades de árvores perdem determinados tipos reprodutivos quando fragmentos de floresta são isolados uns dos outros. Nos fragmentos de mata não existem árvores polinizadas por aves, por mos74

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cas ou mamíferos terrestres, segundo artigo publicado em 2007 na PloS One. Sobrevivem apenas as árvores que dependem de morcegos e mariposas para a polinização, mas em quantidade menor – cerca de metade do esperado. Também são raras as árvores com flores maiores que dois centímetros.

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sses resultados deixam claro que os efeitos de borda eliminam – ao menos em parte – as árvores que necessitam de polinização especializada para se reproduzir. Essa influência pode se estender até 300 metros mata adentro. Nesses fragmentos passam a crescer apenas árvores de espécies mais generalistas, que, de acordo com Ariadna, podem ser polinizadas por diversos insetos pequenos e resistem melhor a condições de vida menos ideais. “Esse efeito faz os fragmentos menores se comportarem como se fossem inteiramente borda”, diz Ariadna. A redução de espécies de árvores gera um círculo vicioso: há empobrecimento das populações de animais, que, por sua vez, leva à redução ainda

maior da população de plantas. Sem as plantas, os animais que dependem do pólen, do néctar, dos frutos ou das folhas não têm como sobreviver nos fragmentos de mata, onde ficam ilhados, uma vez que não conseguem atravessar o canavial, onde não há alimento nem abrigo. Como as plantas também precisam dos animais para se reproduzir e se disseminar, elas seguem a fauna no empobrecimento. Os levantamentos da equipe do zoó logo Rossano Mendes Pontes, também da UFPE, confirmam entre os animais a mesma tendência observada com as espécies de árvores. O grupo espalhou armadilhas para a captura de mamíferos pelas matas da Usina Serra Grande e constatou que nenhum dos fragmentos abriga toda a diversidade de mamíferos. Assim como as plantas, só roedores mais generalistas conseguem sobreviver em boa parte das menores ilhas de mata. Nem sempre adianta ter asas para circular entre ilhas de floresta. Estudos realizados em trechos de Mata Atlântica na Região Sudeste do país vêm mos-

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trando que também as aves sofrem o impacto da fragmentação. Como parte de um projeto integrante do programa Biota/FAPESP e de uma colaboração com pesquisadores da Universidade de Friburgo, na Alemanha, a equipe do ecólogo Jean Paul Metzger, da Universidade de São Paulo, vem investigando o comportamento de diversas espécies de aves na reserva de Morro Grande, no planalto de Ibiúna, a 40 quilômetros da cidade de São Paulo. Os pesquisadores constataram que os tangarás-dançarinos (Chiroxiphia caudata) e os vira-folhas (Sclerurus scansor), por exemplo, evitam as bordas da floresta. O artigo, publicado este ano na Biological Conservation, calcula que fragmentos arredondados precisam ter pelo menos 23 hectares para que metade de sua área mantenha as características de miolo de floresta essenciais para a sobrevivência desses pássaros. Já os papa-taocas (Pyriglena leucoptera), que dentro da mata preferem zonas de vegetação mais densa, se dão bem no emaranhado de bambus e trepadeiras que caracteriza a borda. A maior parte das espécies de aves reside no abrigo da floresta. É o que mostrou o grupo da USP num levantamento que incluiu 62 espécies de aves e será publicado em breve na Biological Conservation. Eles verificaram que a conexão entre os fragmentos – seja por

faixas de mata ou descampados de até 30 metros separando um trecho de floresta de outro – é o fator mais importante para permitir o trânsito das aves, com exceção das onívoras e frugívoras que dependem de áreas maiores para conseguir alimento suficiente. Para Metzger, não há uma fórmula mágica para garantir o funcionamento ecológico da Mata Atlântica. Espécies diferentes têm necessidades distintas e é preciso lidar com a situação atual: uma floresta altamente fragmentada onde não há muitos trechos extensos de vegetação natural contínua. Diante disso, o ideal é preservar algumas áreas grandes para garantir a sobrevivência de animais altamente sensíveis a perturbações, que se intimidam até quando se vêem obrigados a atravessar – mesmo que voando – uma estrada de terra, e concentrar esforços em manter a ligação entre fragmentos menores.

A

s plantas também agradeceriam. “Se usarmos corredores para unir fragmentos de bom tamanho a outros, mesmo que menores, os animais vão atravessá-los, levando sementes e pólen”, comenta Ariadna. Ainda que os efeitos de borda afetem corredores e manchas de floresta, a pesquisadora explica que o trânsito de animais ajudaria a regenerar a floresta e torná-la menos homogênea. Pode ser

o caminho para recuperar e manter a diversidade biológica que encantou os europeus no século XVI e é ainda a riqueza maior da Mata Atlântica. Em fragmentos pequenos, porém, não adianta. Com base no trabalho de seu grupo e de outros que conduzem experimentos semelhantes na Amazônia, Tabarelli sintetiza suas descobertas: “A floresta madura, quando extremamente fragmentada, tende a se transformar em capoeira e permanecer como capoeira, uma mata jovem formada quase exclusivamente por espécies colonizadoras, com pouca diversidade biológica”. É, segundo ele, a primeira vez que se formula uma hipótese sintetizando e integrando os principais efeitos da fragmentação sobre a floresta. O alerta está no comentário que o ecólogo da UFPE escreveu, com Ariadna e Carlos Peres, da Universidade de East Anglia, na Inglaterra, a convite da revista Biotropica. Para Tabarelli, a única forma de preservar comunidades de plantas e animais com estrutura semelhante à de uma floresta madura é manter trechos de vegetação natural com no mínimo 10 mil hectares e grandes áreas livres dos efeitos de borda. Pode parecer muita terra, mas para grandes predadores não basta. “Fragmentos de floresta com 10 mil hectares provavelmente são insuficientes para manter populações viáveis de felinos como a onça-pintada ou a jaguatirica”, diz. Essa situação preocupa porque ao norte do rio São Francisco praticamente não restam mais trechos de Mata Atlântica com mais de 5 mil hectares. ■

Maria Guimarães

> Artigos científicos

... de jeniparana, achadas em menor número nos fragmentos de floresta

1. GIRÃO, L.C.; LOPES, A.V.; TABARELLI, M. & BRUNA, E.M. Changes in tree reproductive traits reduce functional diversity in a fragmented Atlantic forest landscape. PLoS One, v. 2(9), p. e908. 2007. 2. SANTOS, B.A. et al. Drastic erosion in functional attributes of tree assemblages in Atlantic forest fragments of northeastern Brazil. Biological Conservation, v. 141, p. 249-260. 2008. 3. TABARELLI, M.; LOPES, A.V. & PERES, C.A. Edge-effects drive tropical forest fragments towards an early-successional system. Biotropica. v. 40, n. 7. 2008. PESQUISA FAPESP 153

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FÍSICA

A IMPUREZAS

lguns anos atrás a equipe dos pesquisadores mexicanos Maurício e Humberto Terrones demonstrou que películas revestidas com nanotubos de carbono, cilindros microscópicos formados por milhares de átomos de carbono ordenados em hexágonos, podem funcionar como detectores de gases tóxicos. Em menos de meio segundo essas películas acusaram a presença no ar de concentrações muito baixas de vapor de amônia, óxido nítrico ou etanol, gases irritantes que podem causar danos aos pulmões e, em casos extremos, matar. Nos experimentos o grupo do México constatou também que os sensores mais eficientes não eram aqueles com nanotubos formados exclusivamente por carbono. Os mais sensíveis, capazes de detectar umas poucas moléculas de gás tóxico entre bilhões de outras moléculas, continham nanotubos com átomos do elemento químico nitrogênio em sua composição – quando os nanotubos apresentam outros elementos além do carbono, os físicos dizem que contêm impurezas. No artigo em que descreveram os resultados em 2004 na Chemical Physics Letters, os Terrones explicaram o bom funcionamento dos sensores com impurezas pela interação de moléculas dos gases tóxicos com os átomos de nitrogênio na parede dos nanotubos. Analisando esses resultados, físicos da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal do ABC (UFABC) demonstraram em dois artigos recentes que os mexicanos estavam apenas parcialmente certos. As moléculas de amônia, óxido nítrico e etanol de fato se conectam aos átomos de nitrogênio do nanotubo, mas, aparentemente, não como os Terrones haviam sugerido. A partir de simulações de computador, Mariana Rossi Carvalho, Antonio José Roque da Silva

BEM-VINDAS Simulações em computador explicam como nanotubos detectam gases tóxicos em baixíssimas concentrações

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Conexões voláteis: moléculas de amônia (esferas azuis e brancas) interagem com átomos de nitrogênio (esferas azuis) da parede dos nanotubos, alterando a transmissão de eletricidade

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IMAGENS ALEXANDRE ROCHA/UFABC

e Adalberto Fazzio observaram que as impurezas formadas por quatro átomos de nitrogênio que ocupam posições em torno do espaço deixado por dois átomos de carbono são mais estáveis do que aquele em que três átomos de nitrogênio se dispõem ao redor do vazio deixado por um carbono. Diferentemente dos brasileiros, os mexicanos acreditavam que as moléculas de amônia se ligavam às impurezas compostas por três nitrogênios. Em sua dissertação de mestrado, Mariana notou que, além de mais estáveis, a remoção de dois carbonos e a substituição de outros quatro por quatro nitrogênios também consomem menos energia, razão por que devem ocorrer em maior quantidade nos nanotubos. Era preciso, porém, verificar se as substituições de átomos previstas no modelo teórico explicariam as conseqüências observadas na prática – a substituição dos carbonos pelos nitrogênios altera o transporte de cargas elétricas pelos nanotubos. Com Fazzio e Da Silva, o físico Alexandre Rocha desenvolveu um programa de computador capaz de representar situações próximas às da realidade, em que milhares de impurezas se distribuem aleatoriamente ao longo de nanotubos formados por até 100 mil átomos de carbono. “É a primeira vez que se trata com cálculos rigorosos o transporte de carga em nanotubos formados por um número tão grande de átomos, com até 1.000 nanômetros de extensão [um nanômetro corresponde a um milionésimo de milímetro e é cerca de 100 mil vezes menor que a espessura de um fio de cabelo]”, afirma Fazzio, professor da USP e reitor da UFABC. Rocha simulou a interação de moléculas de amônia – compostas por um átomo de nitrogênio e três de hi-

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O PROJETO Simulação e modelagem de nanoestruturas e materiais complexos

MODALIDADE

Projeto Temático COORDENADOR

ADALBERTO FAZZIO – IF-USP INVESTIMENTO

R$ 692.178,08 (FAPESP)

drogênio (NH3) – com dois tipos de impurezas nos nanotubos: aquele em que três nitrogênios substituem um carbono e a impureza em que quatro nitrogênios ocupam o espaço deixado por dois carbonos. Constatou que, tanto no primeiro caso como no segundo, a molécula de amônia se quebra da mesma forma: um átomo de hidrogênio se conecta a dois nitrogênios da impureza, enquanto o nitrogênio e os outros dois hidrogênios restantes da amônia se ligam a um terceiro nitrogênio. A diferença está na energia consumida por essas interações. É preciso dez vezes mais energia para que a molécula de amônia se quebre e seus subprodutos se liguem à impureza formada por três nitrogênios do que à de quatro, segundo artigo publicado na Physical Review Letters de 2 de maio deste ano. Esse resultado indica que é muito mais provável que a amônia se ligue às impurezas formadas por quatro átomos de nitrogênio. Como nesse caso a energia de ligação é mais baixa, torna-se mais fácil reutilizar o sensor de gás formado

pelos nanotubos. “É possível remover a amônia do nanotubo com um jato de ar ou com o aumento da temperatura”, comenta Rocha. Faltava analisar o que acontecia depois de a amônia se ligar aos dois tipos de impurezas dos nanotubos. Ao rodar o programa centenas de vezes com níveis diferentes desse gás, os físicos observaram que cargas elétricas fluíam mais facilmente através dos nanotubos à medida que as moléculas de amônia se ligavam aos defeitos de três nitrogênios. No caso dos defeitos formados por quatro nitrogênios, ocorreu o contrário: quanto mais moléculas de amônia aderiam ao nanotubo, maior era a resistência ao transporte de carga, efeito semelhante ao registrado pelos mexicanos nos experimentos com os gases tóxicos. Era a prova de que a estrutura proposta pelos brasileiros explicava os resultados experimentais dos irmãos Terrones. “Esse resultado é importante para a fabricação de nanossensores de gás, porque indica que é viável produzir aparelhos muito sensíveis”, comenta Da Silva. “Observamos mudanças significativas na capacidade de transmitir cargas elétricas mesmo em baixas concentrações de amônia.” ■

Ricard o Zorzet to

> Artigos científicos 1. VILLALPANDO-PÁEZ, F. et al. Fabrication of vapor and gas sensor using films of aligned CNx nanotubs. Chemical Physics Letters. v. 386, p. 137-142. 6 fev. 2004. 2. ROCHA, A.R. et al. Designing real nanotube-based gas sensors. Physical Review Letters. v. 100. 2 mai. 2008.

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Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org

Notícias ■

Biotecnologia

anaeróbia e força, não têm sido encontradas alterações significativas. Mas para eventos prolongados parece haver uma interação entre a privação de sono e o exercício físico, o que sugere um mecanismo de proteção. Entretanto é importante considerar que uma das alterações mais importantes causadas pela privação do sono é o aumento na percepção subjetiva, que por si só já representa um fator para diminuição e comprometimento do desempenho físico. Pode representar também um elemento de “mascaramento” dos efeitos deletérios da privação. Assim, o objetivo da revisão “Privação de sono e exercício físico”, dos pesquisadores Hanna Karen M. Antunes, Monica L. Andersen, Sergio Tufik e Marco Tulio de Mello, da Universidade Federal de São Paulo, é o de discutir os diferentes aspectos da relação entre o exercício físico e a privação de sono, evidenciando seus efeitos e reflexos no desempenho físico.

A polêmica dos transgênicos No atual contexto da introdução dos transgênicos na cadeia alimentar brasileira, os pesquisadores Ariadne Chloë Furnival e Sônia Maria Pinheiro, da Universidade Federal de São Carlos, realizaram o estudo “A percepção pública da informação sobre os potenciais riscos dos transgênicos na cadeia alimentar”. A pesquisa empregou o método qualitativo de grupos focais para levantar as interpretações do público consumidor em relação à informação disponível sobre essa inovação biotecnológica. A utilização desse método permitiu gerar resultados que revelaram as relações construídas pelos participantes da pesquisa entre essa modalidade da biotecnologia, as mudanças no meio ambiente e a produção de alimentos em geral. Os resultados apontam particularmente para o modo como os participantes do trabalho identificaram a falta de informação compreensível, tanto na mídia de massa quanto nos rótulos, como principal fonte dos seus sentimentos de desconfiança em relação aos produtos modificados geneticamente.

Revista Brasileira de Medicina do Esporte – v. 14 – nº 1 – Niterói – jan./fev. 2008

Memória e fotografia

História, Ciência, Saúde-Manguinhos – v. 15 – nº 2 – Rio de Janeiro – abr./jun. 2008

Psicobiologia

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FABIANE RIBEIRO OLIVEIRA

Sono e exercício A privação do sono é a remoção ou supressão parcial do sono, condição que pode causar diversas alterações no organismo, como endócrinas, metabólicas, físicas, cognitivas, neurais, e modificações na arquitetura do sono. Em conjunto, há o comprometimento da saúde e da qualidade de vida do sujeito nessas condições. Já o exercício físico praticado regularmente promove benefícios como melhora do aparato cardiovascular, respiratório, endócrino, muscular e humoral; além disso, pode melhorar a qualidade do sono. Entretanto, a associação desses dois parâmetros ainda não tem sido bem explorada, em parte pela dificuldade de conseguir voluntários que se submetam a essa condição, principalmente sem nenhum tipo de compensação financeira. A maioria dos estudos que investigaram o binômio exercício físico e privação de sono focou os efeitos no desempenho aeróbio. Embora ainda existam controvérsias, os estudos apontam para pequena ou nenhuma alteração desse parâmetro quando as duas situações se fazem presentes. Em relação à potência

Sociedade

O estudo “A estética da delicadeza nas roças de Minas: sobre a memória e a fotografia como estratégia de pesquisa-intervenção”, de Denise Sampaio Gusmão e Solange Jobim Souza, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, relata um recorte de uma pesquisa-intervenção mais ampla realizada em um pequeno povoado situado na região leste de Minas Gerais, o Córrego dos Januários, comunidade onde vivem descendentes de Joaquim Januário de Souza, fundador da localidade. O objetivo do trabalho é mostrar a estratégia metodológica que, ao se beneficiar do uso da fotografia, traz à tona o tema da memória como dispositivo estratégico para a construção de uma educação estética do olhar, calcada no diálogo entre as diversas gerações. Psicologia & Sociedade – v. 20 – Porto Alegre – 2008

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História

O fim dos chalés O artigo “Chalés paulistanos”, de Eudes Campos, do Departamento do Patrimônio Histórico do Arquivo Histórico Municipal Washington Luís (São Paulo), estuda a origem, o desenvolvimento e a decadência no ambiente urbano paulistano de um tipo de construção denominado chalé. Fruto do Romantismo do século XIX e muito popular no último terço do oitocentismo, o chalé assumiu alto valor simbólico – embora de significado ambíguo –, por estar ligado tanto à noção de uma idealizada vida campestre quanto à de modernidade técnica, que então se introduzia em São Paulo. Popularizouse em razão da facilidade de importação de material de construção industrializado e expandiu-se durante a onda construtiva que atingiu a capital paulista a partir do ano de 1875. Em fins do Império, foi objeto de medidas restritivas municipais por ter sido considerada desregrada sua proliferação no espaço urbano da cidade. E, a partir do começo do século XX, a transformação do gosto, as reformas urbanísticas então feitas no Centro paulistano (1902-1914) e o desejo de construir um novo cenário urbano segundo o sistema de valores e os interesses das camadas hegemônicas contribuíram para o seu gradativo desaparecimento. Anais do Museu Paulista: Hitória e Cultura Material – v. 16 – nº 1 – São Paulo – jan./jun. 2008

Nutrição

Aids e sobrepeso O objetivo do estudo “Anormalidades metabólicas e sobrepeso em portadores de HIV/Aids em terapia com anti-retrovirais”, de Luísa Helena Maia Leite e Ana Beatriz de Mattos Marinho Sampaio, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é estimar a proporção de sobrepeso em pessoas com HIV e avaliar a associação do sobrepeso e do uso da terapia anti-retroviral de alta potência com a presença de anormalidades metabólicas. Foi conduzida uma pesquisa transversal entre pacientes ambulatoriais sob acompanhamento nutricional em um hospital universitário entre 2000-2006. A amostra incluiu 393 pacientes com HIV e já pacientes de Aids. Foram usados registros nutricionais e registros médicos como fonte de dados sobre informações pessoais, clínicas e bioquímicas. Entre os pacientes, 69% eram do gênero masculino, com idades entre 26 e 49 anos. Sobrepeso e obesidade foram identificados em 49% da população estudada. As complicações metabólicas mais

ACERVO DA DIVISÃO DE ICONOGRAFIA E MUSEUS, DEPARTAMENTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO, SÃO PAULO

importantes foram baixos níveis séricos de lipoproteína de alta densidade (70%), altos níveis de triglicerídeos (48%) e de colesterol (40%). Um valor maior de índice de massa corporal estava associado aos altos níveis lipídicos e às evidências de resistência insulínica. Esse estudo identificou uma importante proporção de sobrepeso e obesidade entre indivíduos com HIV e Aids. Os pesquisadores concluíram que os resultados indicam que as intervenções nutricionais e as mudanças do estilo de vida devem ser utilizadas como estratégias úteis para diminuir o risco cardiovascular na população em foco. Revista de Nutrição – v. 21 – nº 3 – Campinas – maio/ jun. 2008

Engenharia rural

Áreas degradadas O trabalho “Integração de técnicas de solo, plantas e animais para recuperar áreas degradadas”, de Brigite Regensburger e Jucinei José Comin, da Universidade Federal de Santa Catarina, e Juares José Aumond, da Universidade Regional de Blumenau, trata da recuperação de áreas degradadas pela mineração da fração argila em Doutor Pedrinho (SC). O estudo utilizou técnicas para integrar o solo, as plantas e os animais. Testaram-se dois níveis de topografia, regular e irregular, dois níveis de adubação, orgânica e química, e dois níveis de serapilheira. A espécie arbórea selecionada foi a leguminosa Mimosa scabrella (bracatinga). Poleiros artificiais foram instalados na área a fim de incrementar o número de sementes provenientes de áreas vizinhas pelos devidos dispersores. Aos nove meses de avaliação, a partir das análises químicas de solo, não foram verificados incrementos nutricionais. A bracatinga apresentou índice de sobrevivência superior a 92%, enquanto a cobertura do solo pela copa das árvores foi significativamente superior para os tratamentos que receberam serapilheira, com valores maiores de 67%. Apesar de a cobertura do solo pela revegetação natural não apresentar diferença, em geral, houve tendência de ela ser maior nos tratamentos com topografia regular. Os poleiros artificiais foram responsáveis pela vinda de 21 sementes pertencentes a seis morfoespécies distintas. Entre as 12 famílias botânicas de plantas espontâneas identificadas, a maior parte apresentou síndrome de polinização zoofílica, dispersão de sementes anemocórica e hábito herbáceo. Conclui-se que a bracatinga, a abdubação orgânica e/ou química, a serapilheira e os poleiros artificiais são indicados para utilização em programas de recuperação de áreas degradadas semelhantes ao deste estudo. Estudos complementares são necessários para avaliar a pertinência ou não do uso da topografia irregular em programas de recuperação de áreas degradadas. Ciência Rural – v. 38 – nº 6 – Santa Maria – set. 2008

> O link para a íntegra dos artigos citados nestas páginas estão disponíveis no site de Pesquisa FAPESP, www.revistapesquisa.fapesp.br

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LINHA DE PRODUÇÃO MUNDO

O sonho dos moradores das grandes cidades de ir e voltar ao trabalho driblando os congestionamentos pode se tornar realidade em breve. Um projeto conduzido pelos pesquisadores Hari Balakrishnan e Samuel Madden, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), usa uma rede de sensores móveis para analisar a situação de tráfego na cidade e sugerir, em tempo real, os melhores caminhos. A rede é formada por computadores do tamanho de um celular instalados nos carros, que enviam para um servidor web os dados relativos ao ambiente ao seu redor por meio de uma rede Wi-Fi. O rastreamento é feito pela medição da velocidade dos carros durante o percurso. O resultado fica disponível na internet ou no celular. Por enquanto, o sistema está funcionando experimentalmente numa frota de 50 veículos de Boston, nos Estados Unidos. Os resultados iniciais da pesquisa, que reduziram em 25% o tempo de deslocamento de Balakrishnan para a universidade, foram divulgados na revista MIT Tech.

SENSORES CONTRA O TRÂNSITO

Cada veículo monitora o congestionamento

de algas As cianobactérias, também chamadas de algas-azuis, são uma das matérias-primas de interesse comercial para produção de etanol. Uma pesquisa conduzida pelo professor Pengcheng Patrick Fu, do Departamento de Bioengenharia e Biociência Molecular da Universidade do Havaí, resultou na obtenção do combustível em um biofotorreator a partir de cianobactérias geneticamente modificadas, técnica já patenteada. Uma das modificações feitas pelo pesquisador no DNA desses organismos celulares refere-se a um gene que responde à luz e produz etanol. Nos testes foram utilizados fotorreatores em sistema fechado com luz solar e luz artificial para avaliar a produtividade das cianobactérias, que 80

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apresentam ao mesmo tempo características de bactérias e de algas e realizam fotossíntese como as plantas superiores. As melhores respostas foram obtidas com luz solar e dióxido de carbono, composto essencial para a realização da fotossíntese. Nos períodos sem insolação,

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nutrientes à base de açúcar foram acrescentados à água das cianobactérias. A separação do etanol é feita por uma membrana especialmente desenvolvida para o processo. A próxima etapa é preparar uma biofábrica experimental de algas na Universidade de Pequim, na China.

Sistema de produção de etanol com cianobactérias

> Criações atômicas Uma nova técnica, que reduz substancialmente o tempo necessário para a construção de estruturas atômicas complexas, foi criada por um grupo de pesquisadores internacionais, com a participação da Universidade Autônoma de Madri (Science, 17 de outubro). Baseado em um microscópio de força atômica, o método permite fazer um intercâmbio entre átomos em uma superfície.

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ILUSTRAÇÕES LAURABEATRIZ

> Nanodiamantes contra o câncer Uma tecnologia recémcriada nos laboratórios da Universidade de Northwestern, nos Estados Unidos, pode tornar mais eficaz os tratamentos de câncer

e reduzir substancialmente os desagradáveis efeitos colaterais de quem precisa se submeter à quimioterapia. Liderada pelo professor de engenharia biomédica e de materiais Dean Ho, uma equipe de pesquisadores desenvolveu um dispositivo biomédico capaz de levar drogas a órgãos e locais do corpo (seio, próstata, útero etc.) onde tumores cancerígenos foram removidos por cirurgia. O dispositivo, um microfilme flexível feito com nanodiamantes, se assemelha a um pequeno embrulho de plástico, que é implantado pelos médicos durante a cirurgia para a retirada do tumor. O dispositivo faz a liberação da droga de forma controlada e bem pontual na área afetada, atuando no combate a células remanescentes. Os nanodiamantes são minúsculos cristais de carbono também empregados experimentalmente como sensores biológicos em células (Nano Letters, 1º de outubro).

COMPUTAÇÃO DE PARTÍCULAS

Usando os átomos de uma espécie química diferente da dos átomos da superfície, como uma espécie de tinta, é possível escrever ou desenhar com o microscópio, repetindo o processo de intercâmbio em diferentes posições sobre a superfície, para formar estruturas complexas de maneira eficiente. O grupo “escreveu” o símbolo químico do silício (Si), que é a espécie química dos átomos usados como tinta, sobre uma superfície recoberta de átomos de estanho. A técnica pode ser usada em superfícies semicondutoras à temperatura ambiente, o que abre novas perspectivas em campos como ciência de materiais, nanotecnologia e eletrônica molecular. A combinação da capacidade do microscópio de força atômica de manipular átomos individuais em superfícies com a possibilidade de identificar a espécie química permitirá a construção de nanoestruturas com propriedades e funcionalidades específicas para melhorar o rendimento dos dispositivos eletrônicos.

Continuam acelerados os preparativos computacionais para a área de processamento de dados do recéminaugurado Large Hadron Collider (LHC), o acelerador de partículas do Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (Cern), com sede na Suíça. A partir de 2009, quando começar a colisão de partículas atômicas que vão gerar outras subatômicas em seu túnel subterrâneo de 27 quilômetros de circunferência, serão produzidos dados para preencher seis CDs por segundo, o equivalente a 3,6 gigabytes. Ao todo serão 15 milhões de gigabytes, ou 15 pentabytes, por ano. Para processar, analisar e guardar esses dados, já está formado o Worldwide LHC Computing Grid, que combina o poder de 140 centros de computação em 33 países. Os grids são aglomerados de computadores ligados em paralelo em cada centro e interligados com os demais e o Cern. Apenas nos Estados Unidos, país com mais grids, serão 15 universidades e três laboratórios nacionais. Os dados sairão por fibra óptica dedicada do Cern até 11 centros de camada 1 (Tiers-1), dois deles nos Estados Unidos, o Laboratório Nacional Brookhaven, em Nova York, e o Laboratório Nacional Acelerador Fermi (Fermilab), na cidade de Batavia, Illinois. Os outros nove serão na França, Taiwan, Dinamarca, Alemanha, Canadá, Espanha, Itália, Holanda e Inglaterra. Desses centros sairão mais dados para os centros Tiers-2, camada em que o Brasil vai participar (ver sobre a participação brasileira nas edições 116 e 148 de Pesquisa FAPESP).

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LINHA DE PRODUÇÃO BRASIL

DISPUTA AÉREA

Aeronaves projetadas e construídas por estudantes de 57 instituições de 15 estados brasileiros, além do México e da Venezuela, disputaram em outubro a décima edição da Competição SAE Brasil Aerodesign, em São José dos Campos, no interior paulista. A equipe Uai Sô Fly, da Universidade Federal de Minas Gerais, foi a campeã da Classe Regular ao transportar 12,20 quilos (kg) de carga, e a Keep Flying, da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), ficou com o segundo lugar. A EESC-USP Charlie, da Escola de Engenharia de São Carlos da USP, venceu pela terceira vez a Classe Aberta ao carregar 19,33 kg, e a Car-Kará Open, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, ficou em segundo. Na Categoria Regular, os aviões são monomotores, com cilindrada padronizada em 10cc. Na Aberta, não há restrição ao número de motores, desde que a soma das cilindradas não ultrapasse 14,9 cc. Participaram da disputa, organizada pela Sociedade de Engenheiros da Mobilidade (SAE), cerca de 800 estudantes de 72 equipes. Os dois primeiros colocados da Classe Regular e o primeiro da Aberta vão representar o Brasil na SAE Aerodesign East Competition, em 2009, nos Estados Unidos.

SÉRGIO FUJIKI/COMPANHIA DE IMPRENSA

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> Projetos ambientais

representar o Brasil em um encontro internacional de jovens embaixadores ambientais de 2 a 11 de novembro na Alemanha, com apoio da Bayer e do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) da ONU. Os outros três projetos são uma proposta baseada em parcerias público-privadas para geração de energia em aterros sanitários, de Érico Rocha, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, um estudo da comprovação da importância do ICMS Ecológico na preservação de biomas, instrumento econômico de proteção ambiental, de Lívia Maria

dos Santos, da Escola de Ciências Econômicas de Apucarana (PR), e uma pesquisa sobre degradação em sistema anaeróbio de um surfactante usado em detergentes e sabão em pó, de Rachel Costa, da Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo.

> Catálise automotiva Um novo material para uso em catalisadores automotivos, composto por metais da família de elementos químicos chamados lantanídeos, foi desenvolvido no Instituto de Química da ILUSTRAÇÕES LAURABEATRIZ

Um detergente biológico feito a partir do fungo Candida glabrata capaz de remover resíduos de petróleo

em escala laboratorial, desenvolvido por Carolina Buarque de Gusmão, da Universidade Federal de Pernambuco, foi um dos quatro projetos selecionados, entre 67 inscritos, para

EESC-USP Charlie (aeronave azul) ficou em primeiro na Classe Aberta e Car-Kará Open (vermelha e amarela) em segundo

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> Óxidos nanométricos Um equipamento de uso laboratorial para a obtenção de óxidos em escala nanométrica de alta pureza foi desenvolvido pela empresa Nanox Tecnologia, de São Carlos, no interior paulista. Matéria-prima utilizada para a produção de tintas e materiais cerâmicos e também de compostos para microeletrônica e catalisadores, além de várias outras aplicações industriais, os óxidos (composto de oxigênio) nanométricos estão dentro de uma escala de medida que vai de um a cem

Os CDs usados para armazenar dados ou músicas são a base de um sensor de baixo custo desenvolvido no Instituto de Química da Universidade de São Paulo, que consegue detectar rapidamente se uma amostra de leite foi ou não adulterada com peróxido de hidrogênio (água oxigenada). A pesquisa foi feita durante o projeto de pós-doutorado de Thiago Longo Cesar da Paixão, de desenvolvimento de língua eletrônica. “O leite foi escolhido pelos problemas enfrentados no ano passado”, diz. O peróxido de hidrogênio mata algumas bactérias e prolonga o tempo de vida útil do produto, mas o consumo pode causar distúrbios intestinais. Para a fabricação dos sensores, o pesquisador usou CDs importados com películas de ouro, expostas após a remoção das camadas poliméricas. No computador, é feito um desenho dos eletrodos necessários para o dispositivo, impressos em papel vegetal e transferidos para a camada de ouro do CD por aquecimento. A superfície dos eletrodos é recoberta com compostos inorgânicos e, com a aplicação de uma corrente elétrica, é possível analisar o leite pela comparação dos gráficos produzidos com outros padronizados.

SENSOR AVALIA LEITE

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Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O catalisador, peça de cerâmica que fica entre a saída dos gases do motor e o escapamento, converte os gases tóxicos que saem dos motores a combustão em outros não-tóxicos. A conversão é feita por um composto catalítico impregnado nos furos da peça cerâmica em forma de colméia. Nos modelos comerciais são usados materiais nobres como paládio, ródio e platina. O novo material, que teve um pedido de patente feito pela Agência de Inovação da Unicamp, a Inova, permite obter um produto com custo mais acessível e eficiente, como mostram os resultados da pesquisa feita durante o pós-doutorado do engenheiro químico Hubert Augusto Alvarez, com a colaboração do também engenheiro químico Raphael Suppino.

nanômetros. Batizado de Nanox Hidrocell, o equipamento funciona como um reator microcontrolado que pode ser usado para a preparação de diversos tipos de compostos. Para obtenção de óxidos de alta pureza, é utilizado um processo de síntese hidrotérmica, que se caracteriza pelo controle das variáveis de temperatura e pressão. Com tamanho reduzido, permite fazer ensaios com menor quantidade de reagentes.

> Tarefa simplificada Um robô desenvolvido por técnicos da Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL) simplificou a tarefa de colocar nas torres de transmissão e distribuição de energia as esferas de sinalização aérea, bolas na cor laranja que alertam helicópteros, aviões, balões e outros equipamentos de vôo para o risco de colisão com as redes. “Com os robôs as esferas podem ser

colocadas nas redes sem necessidade de desligar as linhas de transmissão e de interromper o tráfego nas rodovias”, explica Édino Tadeu Rios, técnico da empresa que participou do desenvolvimento em parceria com Luciano Martelo e Sílvio Cesar Borelli, especialistas em eletrônica de proteção. O robô com câmera é acoplado a um cabo acionado por motor e levado até o local de instalação das esferas de sinalização. Toda a operação é controlada por um técnico, que fica no solo operando a máquina através de um monitor de vídeo. Atualmente essa tarefa é feita por operadores que ficam pendurados a helicópteros por meio de cabos de aço. PESQUISA FAPESP 153

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TECNOLOGIA

SEMICONDUTORES

Memórias

de futuro Centro de cerâmicos vai desenvolver matéria-prima para nova fábrica de chips em São Carlos Dinorah Ereno

Discos de silício, Resinannn semicondutor utilizada en que é a base la fabricación de hilos do chip de memória y fibrnn de colchones

EDUARDO CESAR

U

ma memória eletrônica que guarda a informação mesmo desconectada de uma fonte de energia, utilizada em chips de cartões inteligentes (smart cards) em bilhetes de transporte público, celulares, TV digital e transações bancárias, será produzida em uma nova fábrica que começará a ser instalada em 2009 na cidade de São Carlos, no interior paulista. A presença na região do Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP que conta com a participação da Universidade Estadual Paulista (Unesp), de Araraquara, e da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), foi decisiva na escolha da cidade para sediar a fábrica de semicondutores ferroelétricos. Parceiro na empreitada, o centro de materiais cerâmicos já formou 25 doutores e 17 mestres em materiais ferroelétricos desde 2000, quando esse Cepid foi criado. Muitos desses profissionais ou formandos poderão trabalhar na fábrica brasileira. Inicialmente, a memória de acesso aleatória ferroelétrica, ou FeRAM, também conhecida como memória não-volátil, será produzida com tecnologia desenvolvida pela empresa norte-americana Symetrix, criada há 18 anos nos Estados Unidos pelo brasileiro Carlos Paz de Araújo, professor de engenharia elétrica na Universidade do Colorado. O centro também terá participação ativa no desenvolvimento de novas memórias ferroelétricas e de novos materiais. “Vamos direcionar a pesquisa em novas memórias ferroelétricas porque sabemos que ela pode ser aplicada, mas não vamos deixar de lado a pesquisa básica”, diz o físico José Arana Varela, professor do Instituto de Química de Araraquara e pró-reitor de Pesquisa da Unesp, além de ser o responsável pela divisão de inovação do Cepid. Um filme fino ferroelétrico – constituído de camadas muito finas de material semicondutor – desenvolvido pelo centro de cerâmicos por um novo método, relativamente simples e de baixo custo, é forte candidato a ser utilizado futuramente nos chips de memória que serão produzidos na fábrica de São Carlos. “Conseguimos obter novos materiais com capacidade de armazenamento até 250 vezes maior do que as memórias convencionais”, diz o químico Elson Longo, diretor-geral do Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos, conhecido pela sigla CMDMC. Esses novos materiais são feitos a PESQUISA FAPESP 153

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Chip de memória ferroelétrica pode ser lido a até seis metros

partir de uma solução orgânica obtida de ácidos cítricos, presentes em frutas como laranja e limão (ver Pesquisa FAPESP nº 52), misturada a bário, chumbo e titânio. “O composto é levado a um forno simples com temperatura de até 300º Celsius para retirar alguns elementos orgânicos, como o carbono”, explica Varela. Em seguida é feita a cristalização do material em um aparelho de microondas doméstico para a obtenção de um filme fino de titanato de bário e chumbo. “Inicialmente vamos usar o processo da empresa norte-americana. No futuro poderemos trabalhar com outros materiais além dos que já desenvolvemos para fabricar filmes (camadas muito finas de material semicondutor) menos espessos”, diz Varela. Quanto mais fino o filme, maior a integração que pode ser feita no sistema semicondutor e menor o custo final. Entre as vantagens do uso de filmes finos ferroelétricos na preparação dos dispositivos eletrônicos, em comparação com as cerâmicas magnéticas utilizadas para memória, estão menor tamanho, baixo peso, alta velocidade de escrita e leitura e baixa voltagem de operação. Os materiais ferroelétricos permitem a construção de memórias eletrônicas que não necessitam de nenhum tipo de energia para funcionar. “A capacidade de armazenar informações está ligada ao arranjo de seus átomos”, diz Longo. Cada célula de memória consiste de um único transistor de acesso conectado a um capacitor ferroelétrico, dispositivo que armazena energia num campo elétrico. O transistor atua co86

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mo um interruptor, permitindo que o circuito de controle leia ou escreva os sinais 0 e 1, do sistema binário, a serem armazenados no capacitor. O princípio utilizado é o mesmo dos semicondutores magnéticos empregados nos cartões de crédito comuns e bilhetes de transporte. “A diferença é que os cartões magnéticos precisam ser encostados a uma leitora para passar a informação, enquanto os cartões ferroelétricos podem ser lidos a uma distância de até seis metros”, explica Longo. A leitura é feita por radiofreqüência. O chip, de cerca de dois milímetros quadrados de tamanho e espessura, não é aparente. Embutido nos cartões ou em celulares, por exemplo, ele possui um sistema de proteção contra hackers. No Japão, onde a tecnologia desenvolvida por Araújo e sua equipe foi licenciada para a empresa Panasonic, ela é utilizada em cartões de metrô, trens e nas carteiras de habilitação. Também é possível pagar as compras usando o celular, sem necessidade de recorrer aos cartões de crédito ou débito. No Brasil, desde que foi feito o anúncio da instalação da fábrica, várias empresas já se interessaram pela tecnologia. Elas querem substituir os cartões magnéticos pelos ferroelétricos em diversas aplicações. “Um grande banco brasileiro, que não quer importar a tecnologia por questão de segurança, nos procurou para produzir cartões”, diz Varela, que não revela o nome da instituição financeira porque as negociações ainda estão em andamento. Para o setor automotivo, por exemplo, poderá ser

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O PROJETO Memórias ferroelétricas

MODALIDADE

Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) COORDENADOR

ELSON LONGO – Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos INVESTIMENTO

R$ 1.200.000,00 por ano para todo o CMDMC (FAPESP)

desenvolvido um sistema anticolisão, tecnologia patenteada pela Symetrix. “Com essa memória é possível instalar um sistema de segurança no carro com sensores na faixa do infravermelho, que funcionarão como câmeras de visão noturna para detectar a presença de pessoas, animais ou carros parados, numa faixa de 100 a 200 metros à frente do veículo”, explica. Controle integrado - Nos supermer-

cados, a utilização da memória ferroelétrica no lugar dos códigos de barras permitirá um controle integrado dos produtos. Informações como data de validade do produto, nome do fabricante, preço, estoque e quantidade comprada serão colocadas em um dispositivo do tamanho de uma pontinha de alfinete. “Não é apenas um código de barras, mas uma memória inteligente”, diz Longo. “Cada etiqueta com um chip embutido custará menos de R$ 0,01”, ressalta Varela. O consumidor que for às compras saberá antecipadamente quanto gastou ao passar a uma distância de três ou quatro metros de um painel. Caso concorde em finalizar a compra, antes de sair pela porta será feito o débito ou crédito do cartão que carrega no bolso. “Enquanto um cartão magnético (igual aos de crédito ou débito) dura de quatro a cinco anos, o ferroelétrico pode ser utilizado até 1 trilhão de vezes nas funções escrever e ler de forma magnética (a forma como as informações são gravadas na memória ferroelétrica), o que dá uma média de vida útil de 2 mil anos”, explica Varela. Uma das razões para esse menor tempo de vida útil dos cartões magnéticos é a necessidade do contato direto para a leitura. Desde 1992 que pesquisadores ligados ao grupo que deu origem ao CMDMC começaram a estudar os materiais ferroelétricos. O conhecimento originado desses estudos resultou na publicação de 112 artigos científicos em revistas nacionais e internacionais. “Começamos as pesquisas na mesma época que o Carlos Araújo, na Universidade do Colorado”, diz Longo. “Trabalhamos basicamente com os mesmos compostos desde então, mas ele patenteou o conhecimento gerado pela equipe dele e montou uma empresa.” Araújo, professor de engenharia elétrica, criou a Symetrix com recursos do Small

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Projeto alemão – O Brasil importa

por ano cerca de US$ 100 milhões em chips, mas nenhum deles com memória ferroelétrica. A participação brasileira representa cerca de 2% do mercado mundial, da ordem de US$ 52 bilhões. Os planos do consórcio são atender na

CMDMC

Business Innovation Research (SBIR), programa norte-americano de apoio às pequenas empresas inovadoras que inspirou a criação do programa Pesquisa Inovativa na Pequena e Microempresa (Pipe) da FAPESP. Hoje a empresa tem mais de 200 patentes internacionais. A parceria com os pesquisadores brasileiros teve início durante um congresso sobre materiais semicondutores ferroelétricos, em Portugal, no final de 2006. Na ocasião, Araújo disse a Varela que gostaria de vir ao Brasil para falar da sua experiência na área. Pouco tempo depois, os pesquisadores do centro de cerâmicos organizaram um simpósio em Natal, no Rio Grande do Norte, cidade onde Araújo nasceu e viveu até os 17 anos, antes de se mudar para os Estados Unidos no final da década de 1960, depois de participar de um programa de intercâmbio estudantil. “Foi a partir do encontro em Portugal que surgiu a idéia de trazer uma fábrica de semicondutores ferroelétricos para o Brasil”, conta Longo. Inicialmente, além de São Paulo, estavam no páreo os estados de Pernambuco e Rio de Janeiro. A escolha de São Carlos deu-se em razão do conhecimento obtido pelo grupo de Longo e Varela nesses anos de pesquisa na área. A Symetrix, que possui patentes licenciadas no Japão, Coréia do Sul, Europa e Estados Unidos, firmou no Brasil uma parceria comercial com o grupo brasileiro Emcalso-Damha, um conglomerado de empresas de construção pesada e empreendimentos imobiliários com mais de 40 anos de atuação em diversos segmentos. “O consórcio internacional viabiliza não só a produção para o mercado interno, como também a exportação”, diz Longo. A empresa de Araújo tem três divisões: a Symetrix Devices, responsável pelo desenvolvimento dos sistemas e das memórias, a Symetrix Systems, que cuida de cartões e etiquetas inteligentes, e a Symetrix Development, responsável pela área de pesquisa, desenvolvimento e inovação e pelo licenciamento das tecnologias da empresa.

Camadas de filmes finos com diversas propriedades são criadas por rotas químicas

primeira fase toda a demanda do mercado interno. A tecnologia de memória da Symetrix compete com outros tipos de memória não-voláteis, como a Flash, usada principalmente em cartões de memória para câmeras fotográficas, pen-drives, tocadores MP3 e celulares. O investimento inicial para a instalação da fábrica, que começará a ser construída em 2009 e deverá ficar pronta em 2011, é de US$ 250 milhões. Atualmente, os sócios estão estruturando o plano de negócios. “Como já está definido o tamanho da fábrica, uma empresa alemã foi contratada para cuidar do projeto”, diz Varela. A fabricação dos chips com memória ferroelétrica necessita de um ambiente ultralimpo e de profissionais capazes de fazer a deposição de filmes finos. “Nós temos pessoal qualificado que sabe fazer a deposição química e o tratamento térmico necessário para a construção dos chips”, diz Varela. Os filmes finos podem ser feitos tanto por deposição física como química. A tecnologia patenteada pela Symetrix, licenciada para o Japão e que será empregada na produção em São Carlos utiliza uma rota química, que é mais barata porque dá para ser usada em grandes volumes de material. “A solução química

é depositada gota por gota sobre discos de silício, semicondutor que é a base do chip de memória”, explica Varela. “O tamanho do filme depende da viscosidade da gota.” Vários tipos de filmes com propriedades isolantes, ferroelétricas e condutoras, responsáveis pela funcionalidade do dispositivo, são depositados sobre os discos de silício, conhecidos como wafers. “Para cada tipo de utilização é criada uma arquitetura sob medida do material”, diz Longo. A comunicação entre os materiais que compõem o chip de memória é simultânea. “Quanto maior a condutividade do material, mais rápida ■ é a resposta”, explica.

> Artigos científicos 1. COSTA, C.E.F. et al. Influence of strontium concentration on the structural, morphological, and electrical properties of lead zirconate titanate thin films. Applied Physics A: Materials Science & Processing. v. 79, n. 3, p. 593-597 ago. 2004. 2. SIMÕES, A.Z. et al. Electromechanical properties of calcium bismuth titanate films: A potential candidate for lead-free thin-film piezoelectrics. Applied Physics Letters (published online). 17 fev. 2006.

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BIOENERGIA

Diesel de cana Combustível vai ser produzido por meio de transformações genéticas em leveduras

AMYRIS

Marcos de Oliveira

Saccharomyces cerevisiae, a levedura em forma de bastão, em imagem de microscopia, na fase de fermentação

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cana-de-açúcar já não precisa ser identificada apenas pelo nome do tradicional adoçante. Essa gramínea doce já pode ser chamada também de cana de etanol, cana de energia elétrica, com a queima do bagaço que gera eletricidade, e não se pode esquecer da cana da cachaça, a bebida típica nacional. Dentro em breve ela poderá ser reconhecida também como a cana do diesel. A novidade é da Amyris-Crystalsev, uma parceria no formato joint venture, entre a Amyris, empresa norte-americana de biotecnologia, e a Crystalsev, uma das maiores empresas de comercialização de etanol e açúcar do Brasil, que pertence ao mesmo grupo da Usina Santa Elisa, de Sertãozinho, no interior paulista. Também participa do empreendimento a Votorantim Novos Negócios, empresa de capital de risco que passou a investir na nova empresa. O feito tecnológico é da Amyris, que desenvolveu modificações genéticas em linhagens comerciais da levedura Saccharomyces cerevisiae, responsável por transformar o caldo de cana em etanol durante o processo de fermentação nas usinas. A transformação faz o microorganismo secretar uma substância chamada farneseno, em vez de etanol, que pode ser utilizado em qualquer motor diesel, principalmente em caminhões, ônibus e tratores. Para viabilizar a tecnologia em larga escala, a Amyris precisava de parceiros que tivessem muita matéria-prima barata como fonte de açúcar e carbono. “No Brasil estamos fazendo a otimização do processo para escala industrial”, diz Roel Collier, diretor-geral da Amyris-Crystalsev. “A pesquisa básica com o desenvolvimento do microorganismo e até uma planta piloto foram feitas nos Estados Unidos.” Para o biólogo Fernando Reinach, diretor-executivo da Votorantim Novos Negócios, a decisão

da Amyris em produzir diesel de cana no Brasil se deve também ao conhecimento em fermentação em grande escala dominada pelas usinas brasileiras, no caso a Crystalsev, além do clima e de a produção ser feita de uma fonte barata de sacarose e carbono. “A produção de biocombustíveis a partir da cana tem que ser aqui porque fica caro exportar e transformar a garapa em outro lugar”, diz Reinach, que passou, em outubro, a fazer parte do conselho de administração da Amyris nos Estados Unidos. Para o novo diesel ser competitivo, o preço do barril de petróleo deve estar próximo a US$ 60. O novo diesel não é biodiesel porque não passa pelos mesmos processos desse biocombustível. Reinach acredita que ele encontrará um bom mercado no exterior porque, além de ser uma commodity, o combustível é muito puro. “Ele é melhor que o melhor diesel existente hoje, principalmente porque não tem enxofre (um dos mais sérios responsáveis pela poluição do ar atmosférico) como o diesel do petróleo.” Essa característica tem um apelo ambiental forte, assim como o fato de o ciclo de dióxido de carbono (CO2) ser favorável à cana porque as plantações, para fazer fotossíntese e crescer, absorvem esse gás para produzir novamente a sacarose que resultará no diesel. A preparação do novo combustível exige poucas modificações no processo e no maquinário de produção tradicional de etanol. Ainda sem revelar todos os detalhes do processo, a Amyris-Crystalsev mostra em um esquema gráfico da produção que, depois da fermentação, quando o caldo de cana recebe o microorganismo modificado geneticamente pela Amyris, vem uma fase de separação, seguida de outra etapa de finalização química, quando o produto está pronto para ir ao mercado. São duas etapas que substituem as fases de destilação e desidratação do etanol. A tecnologia biotecnológica usada pela Amyris foi a da reengenharia de metabolismo. “É modificar os genes que codificam as enzimas responsáveis por transformar o açúcar não em etanol, mas em um outro produto”, diz Reinach. Para isso, o trabalho foi quase como o de uma reengenharia reversa, em que a partir de um produto conhecido descobre-se como ele é feito. A molécula farneseno, que forma um líquido inco-

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lor e é um componente do diesel fóssil, já era conhecida dos catálogos químicos e possui as mesmas propriedades do diesel, como em relação à combustão, embora seja um produto caro extraído de outras plantas como a citronela. Assim, as modificações genéticas foram direcionadas para a secreção de farneseno pela Saccharomyces. Os estudos começaram com os pesquisadores da empresa, que tem sede na cidade de Emeryville, no estado da Califórnia, fazendo o seqüenciamento do genoma da levedura. “Eles conheceram todos os genes da Saccharomyces que produzem etanol para entender também as diferenças que ela tinha com outras linhagens do mesmo microorganismo usadas em laboratório (a mesma levedura também é usada para produzir pão, cerveja e cachaça, por exemplo)”, diz Reinach. “Produzimos algumas ‘microcirurgias’ pontuais no material genético da levedura que modificou a rota metabólica do microorganismo”, diz Collier. “Foram introduzidas seqüências genéticas que incentivaram a produção de diesel em vez de etanol.” Cerca de 15 genes foram modificados. Os responsáveis pela novidade dizem

querosene de aviação, gasolina e avançar também no caminho da indústria petroquímica”, diz Reinach. Com microorganismos reengenheirados com biotecnologia e alimentados com açúcar, os dirigentes da empresa afirmam ser possível produzir todos esses combustíveis além de insumos para a indústria de plásticos. Todo esse processo tecnológico pela Amyris foi iniciado com pesquisa básica no Departamento de Engenharia Química e Bioengenharia da Universidade da Califórnia, em Berkeley, pelo professor Jay Keasling, sócio-fundador da empresa com outros três pesquisadores de pós-doutorado da mesma universidade, Neil Renninger, atual diretor de tecnologia, e Kinkead Reiling e Jack Newman, vice-presidentes. Keasling não participa do dia-a-dia da Amyris, mas está ligado ao conselho científico da empresa. Atualmente ele é o diretorexecutivo do Joint BioEnergy Institute (JBEI) – algo como instituto reunido de bioenergia, em português –, um novo centro científico norte-americano, também situado em Emeryville, que tem a missão de avançar no desenvolvimento de novos biocombustíveis. Formado em junho de 2007, o instituto foi criado pelo

que a Saccharomyces é um organismo geneticamente modificado, mas não divulgam a origem dos genes nem se são de outros organismos. Isso acontece porque o processo ainda se encontra na fase de elaboração de patentes. Campinas e Sertãozinho - Na atual

fase do projeto Amyris-Crystalsev, o momento é de engenharia da planta industrial que deverá ser instalada na Usina Santa Elisa, em Sertãozinho, em junho de 2010. Antes, uma planta piloto estará pronta em 2009 no centro de pesquisa da empresa no Technopark, em Campinas, no interior paulista. A produção começará com 10 milhões de litros de diesel por ano. Em 2011 passará para 50 a 60 milhões de litros na Santa Elisa. A partir daí, a joint venture pretende ofertar a tecnologia para outros grupos sucroalcooleiros. O consumo de diesel no Brasil deve atingir 45 bilhões de litros em 2008, mas a expectativa, segundo divulgou a própria empresa com base em analistas do setor, é de 80 bilhões em 2020. No entanto, a tecnologia da Amyris não deve se limitar ao novo diesel. “Já é possível afirmar que poderemos fazer

Diferenças da produção de açúcar, etanol e diesel A levedura modificada geneticamente atua na fase de fermentação

Açúcar Clarificação

Centrifugação

Cana-de-açúcar Tratamento do caldo Fermentação

Destilação

Desidratação

Etanol

Separação

Finalização química

Diesel

Tecnologia Amyris

Moagem Fermentação

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Departamento de Energia dos Estados Unidos em parceria com o Laboratório Nacional Lawrence Berkeley, o Laboratório Nacional Sandia e o Laboratório Nacional Lawrence Livermore, além da Universidade da Califórnia em Berkeley e em Davis. A Amyris Biotechnologies foi fundada em 2003 para desenvolver as plataformas tecnológicas vislumbradas pelo grupo. Além da recente participação da Votorantim Novos Negócios, a empresa já recebeu investimentos de mais quatro empresas de capital de risco, que somam no total mais de US$ 100 milhões, como a Kleiner Perkins Caufield & Byers, que participou do nascimento do Google, da Amazon e da America Online. Também recebeu investimentos da Khosla Ventures, TPG Ventures e da eDAG Ventures. O primeiro produto da empresa foi o desenvolvimento da síntese em laboratório da artemisinina, princípio ativo de um medicamento contra a malária muito usado na África e na Ásia. Até então ela era extraída da própria planta artemísia (Artemisia annua), num processo caro que exige grandes quantidades do vegetal. A equipe da Amyris conseguiu produzir a artemisinina por meio da reengenharia genética de uma bactéria muito usada em laboratório, a Escherichia coli. Novos genes, enzimas e açúcar num processo de fermentação fazem a bactéria modificada produzir o medicamento. Com isso o produto foi barateado em 90%, segundo a empresa. O projeto, iniciado em 2004, durou três anos e meio, foi realizado em parceria com a Universidade da Califórnia em Berkeley e teve um investimento de US$ 42,6 milhões do Instituto OneWorld Health, da Fundação Bill & Melinda Gates. A Amyris está transferindo a tecnologia de produção da artemisinina para a Sanofi-Aventis, indústria farmacêutica de origem francesa, que vai produzir o medicamento a partir de 2010. A Amyris na sua sede em Emeryville deverá atingir o número de 200 funcionários até o final de 2008. No Brasil, na empresa Amyris-Crystalsev, já são 20 pesquisadores, sendo 50% com doutorado. “Entre janeiro e março de 2009 nós vamos contratar mais pesquisadores para implementar a usina piloto e a futura usina industrial”, diz Collier, da Amyris-Crystalsev. ■ 90

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Menos desperdício Dois estudos resultam em catalisadores que podem tornar a produção de biodiesel mais eficiente e limpa

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roduto de origem vegetal fabricado com plantas oleaginosas, principalmente a soja, o biodiesel está presente em 3% do diesel vendido nas bombas de combustível do país e já coloca o Brasil na terceira posição mundial com uma produção de 557 mil metros cúbicos (m3) entre janeiro e julho deste ano, atrás da Alemanha e dos Estados Unidos. Mas o aumento da produção não vem acompanhado de uma evolução tecnológica. Mesmo no exterior o processo de produção de biodiesel ainda revela problemas para um biocombustível que teoricamente deveria apresentar uma produção mais limpa e eficiente. Dois desses problemas são o uso excessivo de água no processo e a utilização de catalisadores como soda cáustica (NaOH) ou hidróxido de potássio (KOH), substâncias usadas para acelerar a transformação do óleo vegetal em biocombustível. Os dois catalisadores são altamente contaminantes do solo e da água se não tiverem um adequado descarte. Problema que mereceu a atenção de dois estudos e, como solução, resultou em novos catalisadores. Eles podem se transformar numa alternativa tecnológica para esse processo, tornando a produção mais eficiente e sustentável do ponto vista ambiental. No Departamento de Física e Química da Universidade Federal de Itajubá (Unifei), o professor Alvaro Antonio Alencar de Queiroz e o aluno Rafael Silva Capaz, do curso de engenharia ambiental, desenvolveram um catalisador inorgânico nano-

estruturado alcalino chamado de CNK47. Com ele é possível fazer a catálise no processo de produção de biodiesel reutilizando a substância em até cinco sessões diferentes de produção até atingir a saturação. Ao contrário dos catalisadores convencionais chamados de homogêneos, o CNK47 é sólido e não se mistura ao produto. Ele pode ser reutilizado várias vezes e não é necessário lavar o biodiesel para a retirada de restos de catalisadores como acontece numa situação convencional. Com o uso de soda cáustica na produção de biodiesel é preciso gastar, por exemplo, 500 litros de água além dos mil litros produzidos de biodiesel para que o produto final fique totalmente limpo. Além do perigo da contaminação, qualquer remanescente de soda no biocombustível pode se tornar um forte corrosivo para os motores. Assim, a mudança de catalisador pode levar à economia de milhões de litros de água. “O CNK47 é formado por nanoesferas e nanoporos de sílica com

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elevado conteúdo de potássio disponibilizado na forma de um pó”, diz o professor Queiroz, do Instituto de Ciências Exatas da Unifei. O novo catalisador é instalado num reator com uma coluna impregnada com o CNK47, num sistema de fluxo contínuo em que o óleo já misturado ao álcool (no processo de transesterificação necessário para a produção de biodiesel), no caso o metanol, passa pelo catalisador, que não se dissolve, antes de se transformar em biodiesel e glicerina, um subproduto da fabricação do biodiesel (ver Pesquisa FAPESP nº 149). A nanoestrutura do produto, como qualquer outro material nanométrico – medida equivalente a um milímetro dividido por um milhão de vezes –, possui elevada área superficial porque grande parte das moléculas existentes nos nanoporos está em contato, no caso, com a mistura de óleo e álcool, facilitando a reação química. Escala industrial - “Os nossos estudos

IMAGENS UNIFEI

foram realizados em laboratório com óleo de soja e metanol (os ingredientes mais utilizados no país). O ideal agora é fazer o experimento em projetos piloto em escala industrial com quantidades maiores dos produtos, o que já está sendo realizado por uma empresa paulista.

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O PROJETO Processo catalítico baseado em peneiras moleculares para reações de transesterificação, úteis na produção de biodiesel

MODALIDADE

Programa de Apoio à Propriedade Intelectual (Papi) COORDENADOR

DÍLSON CARDOSO – UFSCar INVESTIMENTO

R$ 6.000,00 (FAPESP)

Eles estão realizando os testes desde setembro deste ano e, por contrato de sigilo, nós não podemos divulgar o nome da empresa”, diz Queiroz. Após a confirmação dos resultados em escala industrial será formulada uma patente pela Unifei e pela empresa com âmbito internacional. O trabalho ficou conhecido ao ganhar o primeiro lugar da 16ª Edição do Prêmio da Sociedade Mineira de Engenheiros de Ciência e Tecnologia de 2007. Um outro catalisador heterogêneo foi inventado por pesquisadores da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e da Universidade de Ribeirão Preto (Unaerp). Nele também existe a preocupação de tornar o processo mais limpo e diminuir etapas da produção de biodiesel, eliminando o uso de água. É formado por um compósito de silicatos, argilas, alumínio e zeólitas, um tipo de mineral poroso que serve de base para o catalisador. “As zeólitas possuem poros nanométricos como uma peneira molecular onde acontece a reação química”, diz o professor Dílson Cardoso, do Departamento de Engenharia Química da UFSCar. Ele trabalha há 28 anos com catálise principalmente ligada a processos industriais das áreas de combustíveis e química fina.

Nanoesferas e detalhe em microscopia eletrônica do catalisador CNK47 idealizado em Itajubá

“Há nove anos começamos a trabalhar com catalisadores para combustíveis líquidos e desenvolvemos um que aumenta a octanagem da gasolina, fator que melhora a qualidade desse combustível.” É um produto para ser utilizado nas refinarias, na obtenção de uma gasolina que melhora o desempenho do veículo. “Em 2006, com o início da produção de biodiesel no Brasil, resolvemos utilizar as zeólitas também na reação de transesterificação, necessária para a produção desse combustível porque possuíamos experiência no uso desse mineral e até uma patente de um catalisador com base nas peneiras zeolíticas voltado para as indústrias químicas e farmacêuticas. Desenvolvemos outro catalisador para a produção de biodiesel e já entramos com pedido de patente no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI)”, diz Cardoso, que possui como co-autores os alunos de doutorado Leandro Martins, com bolsa da FAPESP, e Demian Fabiano, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). “Agora trabalhamos na estabilidade do produto para que possa ser reutilizado várias vezes”, diz Cardoso. Os catalisadores heterogêneos formulados por Queiroz e Cardoso apresentam muitas vantagens em relação aos produtos convencionais, como não precisar usar água no processo e eliminar os efluentes danosos ao ambiente, mas também mostram algumas dificuldades a serem superadas. Entre as desvantagens, Queiroz aponta a necessidade de temperaturas elevadas para o processo desenvolvido na Unifei, que necessita de 80° Celsius (C) para funcionar, fator que exige gasto de energia elétrica ou de outras fontes. O catalisador de Cardoso funciona a 50°C. O processo de síntese dessas substâncias também exige altas temperaturas. O catalisador CNK47 foi sintetizado em 600°C por 24 horas. “Ainda é caro fazer isso no país principalmente em pequenas quantidades.” Mesmo com dificuldades, o futuro da produção de biodiesel é promissor e dependente de novas tecnologias e da evolução de pesquisas e inventos, como mostraram os estudos recentes desses dois grupos de pesquisadores ■ PESQUISA FAPESP 153

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NANOTECNOLOGIA

Borracha reforçada Empresa cria material nanoestruturado composto de polímero e argila para aplicação em vários segmentos industriais Yuri Vasconcelos

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expectativa é grande nos laboratórios da Orbys, empresa de pequeno porte fundada há quatro anos e atualmente abrigada no Centro Incubador de Empresas Tecnológicas (Cietec), localizado no campus da Cidade Universitária em São Paulo. Se tudo correr bem, ela começará, no próximo ano, a fabricação em escala comercial do Imbrik, um material composto de borracha natural e argila para ser empregado em produtos de vários segmentos industriais. Na indústria é comum a adição de argila à borracha na formulação, principalmente para reduzir o custo do composto. A novidade é a tecnolo-

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gia da Orbys permitir que a argila seja finamente dividida, chegando a uma espessura nanométrica, que equivale a 100 mil vezes menos a espessura de um fio de cabelo. A mistura de argila nanométrica e borracha, denominada de nanocompósito, traz algumas vantagens ao produto. Chamado de Imbrik, ele possui, segundo a empresa, vários níveis de resistência e maleabilidade, ocupando uma faixa entre as borrachas crua e a vulcanizada, como a utilizada nos pneus. Ele poderá ser utilizado na fabricação de uma série de itens que usam borracha como matéria-prima como calçados, artigos esportivos, brinquedos, pneus e autopeças. Os primeiros volumes do novo material

serão destinados ao mercado em 2009 e deverão ser utilizados na fabricação de bolas de tênis e solados de sapato. “As negociações com os fabricantes desses materiais estão bem adiantadas. Estamos confiantes que os dois produtos estarão à disposição dos consumidores no próximo ano”, espera o engenheiro naval Eduardo Figueiredo, proprietário da Orbys. O preço do Imbrik, segundo o empresário, será equivalente ou, em alguns casos, inferior quando comparado aos tipos de borracha industriais concorrentes. A história do Imbrik teve sua origem nos laboratórios do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi lá que o

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FOTOS MIGUEL BOYAYAN

Bolas de tênis com o novo material demoram mais a murchar

professor Fernando Galembeck e sua equipe começaram o desenvolvimento de uma nova substância ao mesclar borracha natural e argila. “O primeiro resultado experimental que levou a esse produto foi obtido pela pesquisadora Márcia Rippel, durante o seu trabalho de doutorado (finalizado em 2005). A parceria com a Orbys permitiu que percebêssemos algumas possibilidades de aplicação do nanocompósito e, ao mesmo tempo, nos ajudou a entender o que seria necessário para chegar aos produtos finais”, ressalta Galembeck. O pesquisador também destaca nesse trabalho outro aspecto positivo da pesquisa, que foi a descoberta da estabilização do Imbrik por adesão eletrostática, fenômeno físico no qual as partículas negativas da borracha natural e da argila formam um sanduíche com um “recheio” de íons positivos (átomos com perda de elétron) do líquido onde esses dois materiais são imersos. “A adesão eletrostática é um mecanismo que já foi discutido na literatura, há décadas, mas andava meio desacreditado. Mostramos que ele é fundamental para a estabilização do produto. O curioso é ela ter sido descoberta antes de percebermos que a sua formação se deve, em grande parte, a esse mecanismo de

adesão. Nesse caso, como em muitos outros, a tecnologia veio antes da teoria e dos modelos científicos”, destaca Galembeck. Essa descoberta gerou artigos publicados em revistas científicas como o Journal of Physical Chemistry, Chemistry of Materials e Polymer. A pesquisa foi bem-sucedida e resultou no depósito de duas patentes relativas ao processo de produção de nanocompósitos poliméricos com argilas esfoliadas, nome dado ao processo de separação das lâminas do mineral. Em dezembro de 2004, a Orbys adquiriu o direito exclusivo de exploração comercial da tecnologia. O contrato firmado com a Agência de Inovação (Inova) da Unicamp previa o pagamento de valores relativos ao direito de uso da patente e a royalties – as cifras são mantidas em sigilo pelas partes. Os royalties relativos a um porcentual das vendas do produto estavam previstos para começar a ser pagos dois anos depois do licenciamento, mas como aconteceu um atraso na finalização da tecnologia o pagamento foi postergado. Em julho deste ano, confiante no sucesso do produto, a Orbys solicitou a extensão da patente para outros países. No licenciamento, a empresa assinou com a Unicamp um Convênio de

Cooperação Técnica visando ao aprimoramento do processo de produção e ao desenvolvimento de aplicações industriais dos nanocompósitos. “Levamos dois anos e meio para conceber o Imbrik e tornar o processo industrialmente viável. Foram necessários mais seis meses para chegarmos ao protótipo da bolinha de tênis, que ficou pronto em janeiro deste ano”, destaca Figueiredo. Em 2005, a empresa iniciou um programa de desenvolvimento de materiais à base de nanocompósitos poliméricos para a indústria de calçados com apoio do Instituto Brasileiro de Tecnologia do Couro, Calçado e Artefatos (IBTeC) e da Unicamp. Desde o licenciamento, já foram investidos R$ 2,5 milhões no desenvolvimento do Imbrik, sendo que a maior parte dos recursos, de R$ 1,8 milhão, foi bancada pelo dono da Orbys. O restante corresponde a nove financiamentos obtidos em agências de fomento como FAPESP, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). Na FAPESP, a Orbys obteve a aprovação de quatro projetos do Programa Pesquisa Inovativa na Pequena e Micro PESQUISA FAPESP 153

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OS PROJETOS 1. Desenvolvimento de uma nova série de nanocompósitos de polímeros sintéticos e argilas do tipo montmorilonita, a partir dos látices de borracha nitrílica, nitrílica carboxilada e estirenobutadieno 2. Desenvolvimento de aplicações para os nanocompósitos polímero/ argila e seu processo de produção em escala industrial

MODALIDADE

1. Programa Pesquisa Inovativa na Pequena e Micro Empresa (Pipe) 2. Programa de Desenvolvimento de Recursos Humanos para Atividades Estratégicas em Apoio à Inovação Tecnológica (RHAE-Inovação) COORDENADORES

1. ARLETE TAVARES ALMEIDA – Orbys 2. EDUARDO FIGUEIREDO – Orbys INVESTIMENTO

1. R$ 350.678,00 (FAPESP) 2. R$ 96.000,00 (CNPq)

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Empresa (Pipe). Um deles encontrase mais avançado, na segunda fase de execução, e é destinado ao desenvolvimento de nanocompósitos a partir de borrachas sintéticas, similares ao Imbrik. O projeto prevê o repasse de recursos da ordem de R$ 300 mil que serão empregados em ensaios laboratoriais e na compra de equipamentos que viabilizem a planta piloto para escalonamento, com capacidade para produzir 1.300 quilos de nanocompósitos por mês. O auxílio do Sebrae foi usado para financiar ensaios do novo material no Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo (IPT), enquanto o CNPq concedeu duas bolsas para o desenvolvimento de blendas nanocompósitas formuladas a partir da mistura de dois ou mais polímeros ou borrachas com argila. Os recursos da Finep, por sua vez, foram empregados no fomento a pesquisas para a aplicação da nanotecnologia na produção de insumos para o setor calçadista e para a fabricação de adesivos a partir do nanocompósito polimérico e outros insumos para o setor calça-

dista. Essa última pesquisa não atingiu os resultados esperados no segmento de adesivos, porém ela foi importante para o desenvolvimento de solados e outras aplicações. Argila em lâminas - Nanocompósitos

poliméricos, como o Imbrik, são materiais formados pela combinação de um polímero (plástico ou borracha) e um composto inorgânico sintético ou natural, como a argila. Seu preparo pode ocorrer por mistura, adicionando argila ao látex natural ou sintético. O segredo do novo material, atóxico e fabricado com insumos naturais, está na melhoria de suas características físico-químicas. “Os grãos de argila são estruturados na forma de lâminas superpostas, que se assemelham a uma pilha de cartas de baralho. Essas lâminas, também chamadas de lamelas, são separadas numa dimensão nanométrica (equivalente a um milímetro dividido por um milhão de vezes) e misturadas ao látex. São essas lamelas que, ao aderir fortemente ao polímero, conferem a ele propriedades mecânicas superiores”, afirma a química

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O Imbrik granulado, ao centro, para moldar sola de sapato e, ao lado, anel para molas industriais

Arlete Tavares Almeida, gerente de Pesquisa e Desenvolvimento da Orbys. O Imbrik é um material translúcido e apresenta uma coloração que varia do bege-claro ao marrom. O insumo possui várias formas de apresentação, como emulsão (líquida), mantas, fardos e granulados. Suas propriedades mecânicas variam conforme as composições polímero-argila usadas na fabricação. Segundo a Orbys, entre as várias vantagens do nanocompósito polimérico vale ressaltar sua maior tensão de ruptura, maior estabilidade térmica – o que significa que suporta temperaturas mais elevadas sem degradar –, maior resistência à flexão e a esforços sem sofrer deformação. Ele também apresenta maior resistência química ante óleos e solventes e forma filmes mais perfeitos e menos porosos. Por fim, possui altas propriedades de barreira, o que significa redução da permeabilidade a gases em até 90%. Essa última característica chamou a atenção de um fabricante nacional de bolas de tênis, interessado em elevar a durabilidade e a resistência de seu produto, que é vendido a gra-

nel, sem a embalagem pressurizada que protege as bolas. “O Imbrik retém o gás no interior das bolas e aumenta sua vida útil”, explica a química Adriana De Donato, responsável pela área de produção industrial da Orbys. A perda do gás presente na bolinha é que faz com que ela murche e se torne inapropriada para o jogo. Uma empresa argentina também já demonstrou interesse pelo nanocompósito e está conduzindo testes com protótipos das bolinhas feitas com o material. O nanocompósito polimérico da Orbys, segundo Figueiredo, está sendo avaliado por cerca de 30 indústrias de oito diferentes segmentos de mercado, entre as quais cinco grandes fabricantes de calçados. “Nosso parceiro no setor calçadista é o IBTeC, de Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul. Já fizemos protótipos do solado com o Imbrik e agora as indústrias de calçado estão realizando testes”, diz o dono da Orbys. Um forte apelo do solado é seu caráter ambientalmente correto. “Por não ser vulcanizado – e, assim, não levar enxofre –, como boa parte

das borrachas usadas em sapatos, ele pode ser considerado um material reciclável e reprocessável. Essas, por sinal, são características do Imbrik de uma forma geral”, explica Arlete. Além do látex de borracha natural, a Orbys está desenvolvendo uma linha de produtos que inclui nanocompósitos obtidos a partir de borrachas sintéticas. A produção em larga escala do Imbrik não será feita pela Orbys, mas, sim, por uma indústria parceira. “A parte sensível do projeto, que consiste na esfoliação – ou separação em lâminas – da argila e preparação da suspensão, será realizada por nós. O restante do processo vai ser terceirizado. Já temos um memorando de intenções com um beneficiador de borracha no interior paulista”, afirma o dono da Orbys, ressaltando que prefere não divulgar o nome da empresa porque o contrato ainda não foi assinado. A produção inicial do produto está estimada em 25 toneladas mensais. Embora ainda não tenha fechado qualquer contrato de fornecimento, os planos para o futuro são ousados. “Em 2014 esperamos atingir a marca de 1.800 toneladas por ano, o que representará um faturamento de mais de R$ 25 milhões”, afirma Figueiredo, que, antes de montar a Orbys, trabalhou por duas décadas nas áreas de telecomunicações, na indústria petrolífera, de defesa e exportação de commodities agrícolas. ■

> Artigos científicos 1. VALADARES, L. F.; LINARES, E. M.; BRAGANÇA, F. C.; GALEMBECK, F. Electrostatic Adhesion of Nanosized Particles: The Cohesive Role of Water. Journal of Physical Chemistry C. v.112, (23): 8534-8544. 2008. 2. BRAGANÇA, F.C.; VALADARES, L.F.; LEITE, C.A.P.; GALEMBECK, F. Counterion Effect on the Morphological and Mechanical Properties of Polymer-Clay Nanocomposites Prepared in an Aqueous Medium. Chemistry of Materials. v. 19, (13): 3334-3342. 2007.

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HUMANIDADES

CIÊNCIA POLÍTICA

Com um olho no peixe...

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ão desconfie de um texto que se inicia com um clichê, pois, no caso da relação entre os brasileiros e a democracia, a melhor definição é uma surrada citação de Churchill: “Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito. Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos”. É cada vez mais raro encontrar quem suspire de saudades de um “governo militar forte”, mas é igualmente complexo achar quem confie em políticos, juízes, policiais e outros representantes do Estado. “A democracia brasileira está relativamente consolidada, mas ela enfrenta um paradoxo: apesar do apoio majoritário ao regime democrático, quase dois terços dos brasileiros não confiam em parlamentos, partidos, governos, tribunais de justiça, polícia e serviços de saúde e educação”, afirma o cientista político José Álvaro Moisés (USP), que, ao lado de Rachel Meneguello (Unicamp), é um dos coordenadores do Projeto Temático A desconfiança dos cidadãos nas instituições democráticas, apoiado pela FAPESP. “Dados históricos sugerem que os brasileiros aceitam o modelo de democracia de Churchill: uma preferência crescente pelo regime democrático é acompanhada por uma desconfiança das instituições representativas, o que leva a uma falta geral de interesse e a um engajamento reduzido na política convencional”, nota Rachel. Entre 1989, a primeira eleição direta, e 2006, a última, a valorização da democracia cresceu 21% (de 43,6% para 64,8%) entre a população, ao mesmo tempo que caiu em mais de 13% (de 38,6% para 25,5%) o número de cidadãos incapazes de

e outro no gato A desconfiança dos brasileiros nas instituições democráticas Carlos Haag | ilustrações Negreiros

definir o que é democracia. Ao mesmo tempo, a percepção negativa das instituições cresceu, atravessando todos os segmentos de renda, escolaridade e idade, influindo cada vez mais na disposição dos cidadãos para participar em processos de escolha de governos. “As pessoas aderem à democracia, mas não confiam, na prática, que suas instituições possam ou queiram mudar a vida delas. Podemos até ter nos convertido numa democracia eleitoral, já que os estudos mostram que a adesão democrática está fundada, sobretudo, na idéia de escolha política, voto e eleições. Mas estamos longe de ser uma democracia efetiva, em que predominam temas como lei, direitos civis e equilíbrio político”, nota Moisés. Erosão - “Na verdade, a erosão da confiança no

sistema representativo é um fenômeno que atinge as várias sociedades há pelo menos duas décadas. Embora a democracia mantenha o estatuto de melhor forma de regime existente, a perda de credibilidade no parlamento, nos partidos e nos políticos é uma tendência crescente”, observa a pesquisadora. Segundo Moisés, certa dose de desconfiança é aceitável e pode ser um sinal sadio de distanciamento dos cidadãos de uma dimensão da vida social sobre a qual eles têm pouco controle. “São os cidadãos críticos, ou seja, aqueles que, apesar da sua severa avaliação do desempenho das instituições da representação, não viraram suas costas para o regime democrático ou seus princípios. São séculos de aperfeiçoamento que criaram uma reserva de legitimidade que, nos períodos de crise das instituições, desencadeou um aprofundamento da democracia, e não seu falecimento.” A situação é diversa em países recentemente democratizados na América Latina, Ásia, Europa do Leste e África. “As instituições democráticas criadas para ocupar o lugar das autoritárias surgiram associadas com a expectativa de uma nova fase de vida das sociedades. Mas a cultura política tradicional, em vários casos, mudou mais devagar ou perdurou. Assim, diante desses déficits surgiram ondas de atitudes ambíguas, descrença e desconfiança.” Em países como o Brasil, essa desconfiança, em vez de gerar uma onda de maior participação e de pressão por reformas, produziu alienação, cinismo, desinteresse, baixa participação política e mesmo preferência por modelos de democracia sem partidos e sem Congresso. “A desconfiança em excesso, em especial associada à insatisfação com o desempenho do regime, pode significar que, tendo em vista suas expectativas e experiências, os cidadãos percebem as instiPESQUISA FAPESP 153 NOVEMBRO DE 2008 ■

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“Quando os índices de confiança interpessoal são baixos, como no Brasil e quase todos os países da América Latina, é difícil encontrar fundamentos para a existência de laços entre os cidadãos, autoridades e as próprias instituições. Pesquisas também mostram que quando as instituições funcionam bem isso pode estimular a confiança interpessoal. Ou seja, são dois fenômenos interativos e mutuamente influentes”, analisa. A confiança em instituições estaria baseada no fato de os cidadãos compartilharem uma perspectiva comum relativa ao seu pertencimento a uma comunidade política, uma circunstância implícita na justificação normativa das instituições. Afinal, a própria democracia moderna, nota, nasceu da desconfiança liberal de que quem tem poder não é confiável e que é preciso vigiá-lo para evitar abusos. Daí a adoção de regras, já que a democracia implica supervisão do exercício do poder. tuições como algo diferente daquilo para o qual se supõe que elas tenham sido criadas.” No limite, continua, indiferença ou ineficiência institucional diante de demandas sociais, corrupção, fraude ou desrespeito de direitos de cidadania geram suspeição, descrédito e desesperança, comprometendo a aquiescência, a obediência e a submissão dos cidadãos à lei e às estruturas que regulam a vida social. “A desconfiança generalizada e contínua pode causar dificuldades de funcionamento do regime democrático, comprometendo a capacidade de coordenação e de cooperação social de governos e do Estado. Há o risco de se criar um desapreço em relação a instituições fundamentais como parlamentos e partidos políticos.” Moisés adverte que o conhecimento sobre as conseqüências que esses fenômenos podem gerar ainda é limitado. “Levarão ao desejo de aperfeiçoar o sistema ou, ao contrário, servirão para formar uma base social potencialmente mobilizável em situações de risco por forças antidemocráticas? Não podemos responder ainda com segurança.” Uma linha de pesquisa que se mostrou produtiva para entender a desconfiança de instituições seria, segundo Moisés, a confiança interpessoal, isto é, a confiança dos indivíduos em relação aos demais cidadãos da comunidade. 98

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Regras - “A desconfiança precisa ser

‘institucionalizada’ pelas regras; porém, para que isso ocorra, é preciso que todos aceitem que as regras garantam o seu direito de controlar as circunstâncias que geram desconfiança. Ou seja, a institucionalização da desconfiança supõe a existência de uma cultura de confiança para funcionar.” No caso específico do Brasil, a história recente não ajudou muito nessa criação de uma “confiança básica”. “A democratização resultou de iniciativas de liberalização de dirigentes do antigo regime militar seguidas de negociações com as lideranças democráticas, mas o primeiro presidente civil foi escolhido pelo Congresso Nacional seguindo regras dos governos militares”, explica o pesquisador. A Constituição de 1988 trouxe ainda mais um complicador: o presidencialismo de coalizão, ou seja, a governabilidade dependeria da delegação de poder que o presidente recebe da maioria parlamentar integrante das coalizões governativas. “Basta que nos lembremos de eventos recentes, envolvendo trocas espúrias de favores, para perceber como isso pode afetar a percepção dos cidadãos sobre o sistema democrático, aprofundando o descrédito da opinião pública sobre partidos e Congresso, reforçando a tradição brasileira de personalização das

relações políticas, em que lideranças individuais se sobrepõem às instituições de representação.” Esse foi um processo gradual. “Após duas décadas de regime militar observa-se que a Nova República não foi capaz de redimensionar a relação dos cidadãos com a política representativa. Foi criada uma consciência de que o significado da democracia estava ligado à idéia de escolha eleitoral e a soluções para demandas sociais”, nota Rachel. “A retórica da transição privilegiou eleições diretas para presidente como a ferramenta central para redimir a democracia brasileira, ao mesmo tempo que empurrava para escanteio estruturas representativas, que passaram a ser vistas como mecanismos secundários.” Paralelamente, a democratização tinha que enfrentar sérias questões econômicas, que viraram referência do que seria um governo bem-sucedido, ou seja, aquele capaz de dar conta delas e dos problemas sociais. “Para o cidadão comum, o cotidiano, a atuação do governo, o sistema democrático e as instituições não tinham nenhuma ligação entre si.” Afinal, notam os pesquisadores, ter eleições é indispensável para o sistema, mas elas, por si sós, não garantem uma democracia funcionando em todo o seu potencial. “Democracias eleitorais não atendem necessariamente a todos os critérios segundo os quais um sistema político autoritário se transforma em democrático. É uma questão de qualidade da democracia”, observa Moisés, que chama a atenção para vários casos atuais de “falácia eleitoralista”, isto é, a tendência de privilegiar as eleições sobre outras dimensões da democracia. “Dados indicam que o processo democrático brasileiro parece limitado pelas suas formas de avanço: as eleições concentram seu capital de apoio e é o desempenho das lideranças eleitas e das bases institucionais que concentram a satisfação com o sistema”, nota Rachel. Dessa forma, mais do que uma identificação estreita com o sistema democrático e suas estruturas, esse abraçar a democracia surge como algo relacionado ao valor universal da escolha livre que gera uma dinâmica

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eleitoral apenas a cada dois anos. “Referências institucionais relacionadas ao sistema representativo não emergem em associação direta com a preferência pelo regime democrático ou com a avaliação de seu desempenho. A satisfação se revela em como se dá a percepção da eficiência do governo atual”, explica a autora. Segundo ela, a avaliação do desempenho da democracia é menos associada à dimensão institucional e à gestão do sistema. “A avaliação prioriza a percepção e a avaliação do governo federal escolhido. A significativa identidade com o governo Lula é um bom exemplo disso. Há para os cidadãos uma distinção clara entre a dimensão da adesão democrática e da satisfação com a democracia tal como ela funciona.” Os estudos feitos revelam uma particularidade nacional. “Os referenciais que para os cidadãos fazem a ‘ponte’ com a avaliação do sistema estão mais associados ao seu cotidiano e às experiências de sua relação com o Estado, os serviços públicos.” Mas, alertam os pesquisadores, há sutilezas no processo. Eficácia - Nos anos 1970 e 1980, a

passagem da desconfiança para a confiança era vista exclusivamente como função da boa performance econômica dos governos, como se apenas a eficácia instrumental contasse. “Isso, porém, ajudou pouco a explicar por que mesmo países com bom desenvolvimento econômico também convivem com a desconfiança nas instituições. Hoje sabemos, pelas pesquisas, que o desempenho econômico é importante, mas o universalismo, a impessoalidade, o sentido de justiça e a probidade com que as instituições tratam os cidadãos são fatores decisivos”, analisa Moisés. Assim, certos eventos políticos recentes foram fatores de mobilização democrática do público, como o Plano Real e as políticas sociais do atual governo. “São fatores que estimularam a adesão à democracia. É bastante provável que eventos dessa natureza resultem, a médio e longo prazos, em fatores favoráveis à diminuição da desconfiança.” Essas dimensões normativas (socioculturais) podem dar motivos para as pessoas confiarem ou não nas instituições e para se assegurarem que elas podem funcionar em seu benefício. PESQUISA FAPESP 153 NOVEMBRO DE 2008 ■

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Se isso não acontecer, os números podem trazer surpresas desagradáveis. Segundo o estudo, cerca de 30% dos eleitores acreditam que a democracia pode funcionar perfeitamente sem o Congresso ou os partidos políticos, o que, segundo Moisés, é um recado forte às legendas e ao Legislativo. No caso dos partidos, os índices de reprovação chegam a 80,6% em 2006; o Congresso ganhou um porcentual de crítica de 71,9%. Deputados e senadores receberam um lance de 59,7% dos entrevistados, que consideram seu desempenho ruim ou péssimo. Bombeiros - Segundo a pesquisa do

projeto, o cidadão médio brasileiro desconfia ativamente de quatro das mais importantes instituições políticas do regime democrático (partidos, Congresso, governo e presidente) e tampouco confia nas leis. Ao mesmo tempo, ele é cético em relação às outras três: polícia (só 8,7% confiam muito), Poder Judiciário (apenas 10,9%) e Exército (21,1%). Só há grande confiança nos bombeiros (53,2%), fato explicado pelo seu passado de eficiência e pela dissociação, no imaginário popular, do serviço com instituições democráticas. A TV gera expectativas 100

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díspares: 7,9% não confiam em nada que venha dela, enquanto 11,9% confiam muito na “telinha”. A satisfação total com a democracia só reúne minguados 2,7% dos pesquisados. Assim, no Brasil, nenhuma instituição política tem a confiança total e inequívoca de mais de um terço dos cidadãos (com exceção dos bombeiros, do Exército e de instituições privadas como a Igreja e a televisão). “Os brasileiros expressam uma confiança relativa no presidente, mas essa confiança é provavelmente confundida com o apoio pessoal a presidentes recentes como Fernando Henrique Cardoso e Lula, os mais bem avaliados desde o fim da ditadura”, afirma Moisés. “Logo, apesar de a democracia nacional ter mais de 20 anos, as instituições democráticas não alcançaram ainda um padrão de resposta satisfatória para as aspirações dos cidadãos”, continua. Mesmo modernizações e avanços recentes não afetaram isso: confiança em estranhos, por exemplo, continua a ser maior do que a fé em partidos e um pouco menor do que a confiança depositada no Congresso Nacional. Um dado curioso: ao contrário do que se verificou em países vizinhos, sexo e religião não têm nenhuma influência na confiança política. “Na contramão das previsões que afirmavam que o Brasil pertencia a uma categoria cultural baseada na hierarquia religiosa ibérica e nas tradições autoritárias, os brasileiros mostraram que tendem a definir suas atitudes de confiança baseados em suas experiências e no julgamento político que advém delas”, observa o pesquisador. Os resultados confirmam que os indivíduos misturam valorações racionais sobre o desempenho das instituições com valores políticos com os quais eles julgam suas experiências dentro do regime democrático existente. Quando as instituições provam ser dignas de sua confiança, os brasileiros não aceitam mais que é possível funcionar sem um Congresso. A desconfiança política, por sua vez, afeta negativamente os sentimentos de nacionalidade, a confiabilidade das eleições, a satisfação com o regime democrático e tanto a tendência a participar de pleitos como o sentimento de que a democracia pode funcionar sem partidos políticos. Outro ponto importante do estudo é que o

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nível educacional pode ser relevante na participação política, mas não é garantia de maior apoio às instituições representativas. “Os que têm maior nível educacional são mais participantes, mas muito mais críticos, desvalorizam os partidos porque avaliam negativamente o papel que eles estão efetivamente desempenhando. Mas, nesse caso, essa visão crítica, antes de solapar a legitimidade do sistema democrático, representa uma demanda de seu aperfeiçoamento”, avalia o autor. Na mesma categoria de “cidadãos críticos” estão os indivíduos que se autoposicionam à esquerda. Eles também são desconfiados com as instituições democráticas. Ao mesmo tempo, observa Moisés, é interessante notar que no Brasil a probabilidade de apoio a uma democracia sem partidos políticos e sem Congresso Nacional é maior do que na América Latina como um todo. “Em outras palavras, os resultados da insatisfação com a democracia e a desconfiança do modo de funcionamento das instituições afetam, no caso dos brasileiros, as suas percepções e convicções a respeito do regime democrático”, avalia o pesquisador. O modelo resultante da pesquisa mostrou que apenas colombianos, equatorianos, panamenhos, paraguaios e venezuelanos têm maior razão de probabilidade de optar pelo modelo de “democracia sem Congresso”, enquanto a escolha de uma “democracia sem partidos” é maior entre bolivianos, colombianos, equatorianos, guatemaltecos, panamenhos e paraguaios. “O caso do Brasil indica que há maior probabilidade de os brasileiros se definirem como ambivalentes, ou seja, há mais riscos de que seus cidadãos escolham alternativas de regimes que excluam o parlamento e os partidos políticos.” Isso seria mais uma evidência, nota o pesquisador, de que nem o desempenho dos governos, nem o das instituições parece capaz de assegurar aos cidadãos que suas expectativas quanto ao regime são realizáveis. As elites políticas parecem ter dificuldades para perceber a gravidade da situação ou não se sentem encorajadas a resolver os problemas para que a oferta democrática satisfaça a demanda da cidadania. “Ao contrário de certo consenso que se estabeleceu na ciência política, no caso brasileiro, a questão remete para a

atualidade da reforma política.” Segundo o cientista político, há na América Latina uma onda de neopopulismo, ou seja, governos com apoio das massas e que, ao mesmo tempo, tendem a dar pouca importância para as instituições da democracia representativa, o caso de países como Venezuela, Bolívia e Equador. Nesses casos, analisa, governos personalistas ampliam sua legitimidade não apenas com políticas públicas populares, mas com ataques diretos contra partidos, o parlamento e as cortes supremas. “Isso representa um claro perigo para a democracia, porque, em vez de ‘empoderar’ os cidadãos, tornam-nos dependentes de lideranças carismáticas e plebiscitárias; exacerba o poder destas e impede a distribuição do poder entre os cidadãos.” Igualdade - Seja como for, os dados

confirmam que as experiências dos cidadãos influenciam a questão da confiança política, sugerindo que ela está associada com a vivência de regras, normas e procedimentos que decorrem do princípio de igualdade de todos perante a lei. “Mas os dados também sugerem que essa atitude depende do impacto do funcionamento concreto tanto das instituições como de governos”, lembra Moisés. Não se trata de um comportamento gratuito ou irracional, mas pautado em como o cidadão se sente tratado pelas instituições que podem levá-lo a valorizálas ou desprezá-las. Nenhum brasileiro gosta de desrespeitar as leis e regras se sentir que seus interesses são levados em conta no processo político. “A atmosfera de desconfiança, de descrédito é que compromete a aquiescência dos indivíduos às leis.” Há, porém, dois pontos fundamentais extraídos dessa pesquisa sobre a desconfiança nacional. “A síndrome da desconfiança está mais associada com a indiferença em face das alternativas a respeito do regime político e, com menos intensidade, com a preferência pelo autoritarismo. Ou seja, a desconfiança e a insatisfação geram distanciamento, cinismo e alienação em relação ao regime”, aponta Moisés. “Mas esses cidadãos desconfiados e, ao mesmo tempo, insatisfeitos com o funcionamento da democracia são aqueles que, colocados diante de alternativas antiinstitucionais,

preferem um regime democrático para o qual os partidos e o parlamento têm pouca importância.” Para o cientista político é como se os pesquisados confirmassem a permanência de aspectos notórios da tradição política latino-americana, como o populismo. “A medição das instituições tipicamente democráticas é pouco valorizada. As novas democracias latino-americanas misturam ingredientes democráticos com traços de sobrevivência autoritária”, nota. “É uma natureza ‘delegativa’, associada à hipervalorização do Executivo e das lideranças personalistas e carismáticas, das quais os eleitores esperam quase tudo, em detrimento da sua expectativa sobre o papel das instituições cuja função é permitir que eles se representem e falem com voz própria na vida pública. Acontecimentos recentes em vários países do continente parecem confirmar essas conclusões”, recorda o cientista político. O lado bom é que o Brasil, para os pesquisadores, não se enquadra inteiramente nesse cenário. “No nosso caso, a corrupção é o exemplo mais claro do funcionamento deficitário dos mecanismos de accountability. O meu diagnóstico é que isso afeta a qualidade da democracia brasileira, como também o precário desempenho do parlamento.” Para Moisés, embora o horizonte nacional não indique a presença de ventos autoritários, é preciso cautela e, reforçando, uma reforma política. Segundo ele, a fidelidade partidária e o financiamento de campanhas seriam medidas que ajudariam a diminuir os riscos desses índices de desconfiança. “A experiência de práticas de corrupção envolvendo governos, partidos políticos e membros do Congresso Nacional, sem que os meios institucionais de controle sejam considerados efetivos, ajuda a explicar a escolha que tantos fazem de modelos de democracia ‘sem partidos e sem parlamento’.” Para o pesquisador, resta saber se esse processo de progressiva deslegitimação das instituições básicas da democracia representativa poderá ser usado, a médio ou longo prazos, para alimentar alternativas antidemocráticas. Cabe entender a frase de Bernard Shaw, “a democracia é um sistema que faz com que nunca tenhamos um governo melhor do que merecemos”, em sua devida e justa proporção. ■ PESQUISA FAPESP 153 NOVEMBRO DE 2008 ■

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Paranóia Paranóia ou

mistificação? mistifi cação? Aleijadinho, se é que existiu, serviu a muitas ideologias

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REPRODUÇÕES DO LIVRO O ALEIJADINHO E SUA OFICINA

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o mercado milionário da arte, críticos ditradições nacionais e regionais do Instituto Histórico gladiam-se para provar que uma obra seria e Geográfico Brasileiro (IHGB), tutelado por Pedro ou não de Aleijadinho. Afinal, obras de arte, II; ao modernismo paulista que reinventa a figura como as ações, só valem na medida em que se do Aleijadinho como um “herói alquímico, que teria vindo para realizar, mulato genial, a unidade imposacredita nelas. Nos dois casos há riscos e mais de uma “verdade”. No caso do Aleijadinho, sível das raças brasileiras, a redescoberta das raízes da ele já serviu a muitas delas: para Mário de cultura nacional”; ao projeto autoritário do regime de Andrade e o modernismo ele foi o grande “precursor Vargas que desejava fazer do catolicismo tradicional e do culto dos símbolos e dos líderes da pátria a base nativista” da identidade brasileira feita pela mistura de mítica de um Estado nacional forte e poderoso. “Na raças; para Gilberto Freyre ele foi o “mestre da caricaverdade, não há nenhum documento que se refira a tura nacional, produzindo menos por devoção do que Francisco Lisboa como ‘o Aleijadinho’. O que temos por sua raiva por ser mulato e doente, por sua revolta contra os dominadores brancos da colônia”. Houve são depoimentos de viajantes, como Saint-Hilaire mesmo quem, como o arquiufanista conde Affonso ou Richard Francis Burton, entre outros, baseados Celso, que, em 1901, afirmou que “Aleijadinho apaapenas na memória popular; ou, então, referências relhou um instrumento semelhante a um aeroplano, a documentos que hoje estariam desaparecidos, se é com o qual conseguiu, antecessor do glorioso Santos que existiram”, nota a pesquisadora. “Os únicos reDumont, desprender-se da terra e cavalgar a inconsisgistros documentais reais que levariam a supor que o tência do espaço”, qual um Da Vinci mineiro. artista era enfermo são os pagamentos feitos a pessoas “A idealização e a mistificação dele começam cerca (“pretos”) que o teriam carregado para ele rever suas obras, por razão não especificada.” de 50 anos após sua morte, tornaram-no um herói naO primeiro texto a falar sobre um escultor “Aleicional, tópica de diferentes programas de construção de uma ‘identidade cultural brasileira’. Aleijadinho é jadinho”, fonte de praticamente todos os textos seuma imagem que foi reinventada para adequar-se aos guintes que se ocuparam da questão, é o de Rodrigo objetivos políticos de cada época”, avalia a historiadora José Bretas, sócio do IHGB, publicado em 1858 no Guiomar de Grammont, autora do doutoramento Correio Oficial de Minas. Bretas fazia parte atuante da Aleijadinho e o aeroplano, defendido em 2002 na USP ala “romântica e nacionalista” do instituto que precoe que acaba de ser lançado em livro pela Civilização nizava uma leitura da história como “mestra da vida”. “A preocupação central era a integração de grupos, Brasileira. “A pessoa de Antônio Francisco Lisboa, associada ao chamado Aleijadinho, se não existiu, foi como os indígenas, e da história regional num projeto inventada já no século XIX. O mais provável é que o de construção nacional, reafirmando a ligação orgâni‘Aleijadinho’ seja uma construção mental dos discurca entre as regiões e o centro do Império. Um aspecto sos que repercutem na história sobre o qual fizeram importante eram as chamadas ‘notas biográficas sobre coincidir a figura do artífice Antônio Francelebridades regionais’ que serviriam para o cisco Lisboa.” Mais do que a Igreja, ele servirá IHGB erigir um panteão de heróis nacionais.” São João O mito de um gênio mineiro e disforme era a muitos outros patrões, mesmo após a sua Evangelista (ao lado) morte: ao projeto ideológico de invenções de perfeito. Bretas, como o imperador, gostava PESQUISA FAPESP 153

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de Victor Hugo e inspirou-se no corcunda de Notre-Dame para moldar o personagem na sua “biografia”. “A partir de 1838, os usos do passado colonial foram afirmativos da unidade, da originalidade, identidade e autenticidade tropical da elite branca, latifundiária e católica. Mais tarde, serviriam ao ufanismo positivista do Estado republicano e também ao patriotismo e civismo do Estado Novo e da ditadura militar de 1964”, analisa João Adolfo Hansen, orientador da tese. O retrato de Bretas, “pecado original” do mito, não apenas servirá à invenção romântica do artista como o gênio monstruoso que a doença teria tornado solitário e taciturno, mas também gerará leituras da obra do “monstro” como retrato expressivo de sua personalidade atormentada. “É comum se aplicarem às suas obras conceitos ‘psicologizantes’, totalmente estranhos ao universo dos artífices do século XVIII, em que questões como ‘autenticidade’, ‘autoria’ e ‘originalidade’ não se colocavam”, observa Guiomar. Seria, então, mais coerente falar de um “estilo Aleijadinho” do que do estilo do Aleijadinho. “Essa figura, se existiu, não é pensada como um dos artífices que resultaram de um costume artístico que se iniciara em Pernambuco e na Bahia, no século XVI e no século XVII, e que continuaria no XVIII.” Singular - Era preciso cultivar o gê-

nio singular, autodidata por completo, cujo talento teria “brotado do nada”. “Mesmo a doença é uma contrapartida dos dons extraordinários que teria recebido das mãos de Deus, o herói típico, cujas virtudes sempre vêm acompanhadas por uma fatalidade que caracteriza a sua humanidade e permite à coletividade identificar-se com ele”, observa. Infelizmente, toda a discussão sobre a existência empírica ou não da figura do Aleijadinho encontra-se tão fundamentada no mito quanto os textos que simplesmente reforçam a versão de Bretas sem questioná-la. A tudo isso ainda se juntou, com perfeição, a construção histórica do “herói cultural barroco”, desenvolvida em países da América espanhola e que chegaram ao Brasil, que transforma o conceito de barroco numa “arte da contraconquista”, uma cultura 104

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de resistência que enfrenta o imperialismo de culturas hegemônicas. “Ele seria o herói adâmico capaz de promover o cruzamento entre o Mundo Antigo e o Mundo Novo, o humilde demiurgo que irá recriar, em arte, um mundo híbrido, formado dos elementos contraditórios da Europa e das Américas”, explica a autora. “O Aleijadinho foi figura ideal formada nesse imaginário do herói genial: por ser mulato é justamente o produto do cruzamento das raças formadoras do país, aspecto que o Modernismo de 1922 levou ao paroxismo. A doença arremata a sua tragicidade.” Para criar o mito, vale tudo: o gênio isolado e que surge sem nenhuma formação em meio a tenebrosas dificuldades, um aparecimento mágico numa sociedade escravista em que não havia lugar para a suposta “autonomia artística” tão profunda que se lhe atribui. “A devastação da doença é amplificada e o trabalho coletivo se torna um fundo desfocado sobre o qual emerge a figura do Aleijadinho como o detentor desse poder de criação dos deuses.” Não há, porém, nada que comprove minimamente essa mítica. “Não há mesmo nenhuma prova documental de que Antônio Francisco Lisboa realizou as plantas das igrejas de São Francisco, Ouro Preto e São João Del Rei. Não há, inclusive, nenhum documento que afirme que ele tenha trabalhado algum dia em São João Del Rei. Há apenas inferências sem qualquer base”, afirma. Ironicamente, essas igrejas, hoje, são vistas no Brasil e no exterior como símbolos do país como a floresta tropical, o futebol e o samba. Outro ponto importante é a contradição entre os estatutos sociais de “artesão” e “artista”, que na época eram formas antagônicas de produção, que nos alertam para o perigo da aceitação, para a produção da época, de valores contemporâneos ou noções românticas de “gênio” e “originalidade”, estranhas aos sujeitos históricos envolvidos. A arte era produção de um coletivo quase anônimo, de oficinas. “Em Minas era possível que um mestre da oficina não fosse o mais dotado dos membros do grupo de sua oficina ou, mesmo, quem sabe, nessa sociedade em que o trabalho é naturalmente anônimo, pode ser que houvesse mes-

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tres que fossem apenas arrematadores de obras que iam a leilão para delegá-las a auxiliares ou terceirizar os serviços.” Poderia ter sido esse o caso de Antônio Francisco Lisboa? “Há a possibilidade de que o entalhador tivesse sob suas ordens um ou mais escravos engenhosíssimos e peritos, cuja ‘autoria’ teria desaparecido no curso da história. Quem sabe os ‘autores’ das obras mais interessantes atribuídas a Francisco Lisboa não teriam sido seus escravos?” Os modernistas, na construção do ‘seu Aleijadinho’, optaram por outra visão. “A figura idealizada do artista caberá como uma luva na imagem personalista do artista nacional advinda do modelo do sincretismo cultural nascente. Esse é o Aleijadinho que surge da viagem dos modernistas a Minas Gerais, a partir de 1917, em busca das chamadas raízes da arte brasileira, que enfatizava miscigenação racial e cultural. Em boa parte, essa visão também era uma reação a um olhar externo muita vez depreciativo a tudo isso e à interiorização desse olhar por parte dos brasileiros”, analisa. Era preciso “salvar o Brasil” em viagens pelas “cidades velhas de Minas” para dar mais sentido a uma “consciência criadora nacioportuguês, o estilo Aleijadinho não é nal”. “É interessante observar como iluminista, nem clássico, nem barroco, o Aleijadinho de Mário de Andrade, mas patético, feito como emulação de paradigma da mestiçagem, é diferente autoridades artísticas que chegavam a do Aleijadinho de Bretas, paradigma Minas por meio de gravuras e da prática do artista solitário, trágico, miserável, artística de escultores cultos, como o embora fidalgo, no sentido de ‘filho de sutil Francisco Xavier de Brito”, acrealgo’, ou alguém, branco e honrado.” dita Hansen. Seja como for, observa a O artista idealizado, como o “barroco”, pesquisadora, ao contrário da hipótese que justificaria a sua existência, nota romântica de que os artífices das Minas a pesquisadora, é uma representação tenham sido diretamente “influenciaque se origina das preocupações de dos” por gravuras européias, das quais cada contexto em que é proposta. “Por teriam se apropriado, antropofagicamais que pareça haver um Aleijadinho mente, com “extrema originalidade”, o real ao qual todos esses textos se refeque se percebe é uma filiação estreita riram, uma leitura menos apressada ao que se fazia em Portugal. “O que porevela quanto são diferentes as diverdemos afirmar com certeza sobre toda sas figuras do artífice que se sucedem essa questão Aleijadinho é que havia umas às outras na história.” uma intensa circulação de técnicas e Assim, deixando-se de lado a quespropostas, sugerindo uma efervescêntão bizantina da existência de um Aleicia maior ainda que a conhecida em jadinho, como se poderia entender esse nossos dias. Longe de estarem fechaestilo que tantos críticos de ardas pelo monopólio colonial, te se esforçam em reconhecer, as colônias ibero-americanas Santa valorizando algumas obras revelam uma extrema vitaliMadalena em milhões e outras em poudade criativa propiciada pela (acima); cos reais? “Integrado ao corcirculação de conhecimentos São Manuel po místico da Igreja e Império tão ou mais dinâmica que a (ao lado)

troca de riquezas materiais”, afirma Guiomar. Num mundo de privilégios e hierarquias, a arte servia à ostentação e, assim, os saberes técnico-artísticos eram uma das mercadorias mais procuradas e valorizadas. A Pirelli do Brasil, em 2006, descobriu o alto custo desse risco ao ser surpreendida pela suspeita de falsificação na doação ao Masp de uma imagem de São Francisco de Paula, atribuída ao Aleijadinho. A empresa comproua por US$ 350 mil em 1985. Quando decidiu doá-la, avaliou a peça em R$ 2 milhões, valor que pediria como compensação ao Imposto de Renda, usando os benefícios da Lei Rouanet. Uma avaliação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), solicitada pelo Ministério da Cultura, questionou a autenticidade da obra. Não reconhecida como de Aleijadinho, a peça passou a valer R$ 120 mil, menos da metade do preço de aquisição e 16 vezes abaixo da cotação pretendida na doação ao museu. ■

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SOCIOLOGIA

Instantâneos

do conhecimento

Autor mostra fotografia como recurso adicional nas ciências sociais, mal usado e não raro menosprezado por pesquisadores Gonçalo Junior | fotos José de Souza Martins

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homem nunca mais foi o mesmo depois da fotografia. “Essa invenção moderna possibilitou a produção industrial de imagens reprodutíveis a partir do final do século XIX, o que não acontecia com a pintura e o retrato. E disseminou uma concepção do ser humano como duplo, sua imagem divorciada de sua pessoa, a representação fotográfica dotada de múltiplos sentidos e, mesmo, manipulável”, afirma José de Souza Martins, que está lançando o livro Sociologia da fotografia e da imagem, que acaba de chegar às lojas pela editora Contexto. Martins observa que seu estudo trata a fotografia como um recurso adicional na sociologia, “mal usado e não raro menosprezado por sociólogos e historiadores”. A originalidade de sua análise está, segundo ele mesmo, em considerar que a fotografia é uma modalidade de conhecimento enquanto só tem utilidade na sociologia se analisada na perspectiva de uma sociologia do conhecimento visual, um ramo da sociologia do conhecimento. Professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), Martins se diz muito mais preocupado com a fotografia vernacular e casual, a fotografia popular, do que com a espetacular, de fatos supostamente espetaculares, de dimensões imensas. “Uma das grandes mistificações no uso da fotografia pelos sociólogos e pelos historiadores está justamente no seu emprego, na espetacularização dos fenômenos de massa para dar a certos eventos a monumentalidade que supostamente têm”, observa. Segundo o professor e fotógrafo, o espetáculo da chamada Marcha da Família com Deus pela Liberdade, lembrado por ele como exemplo, promovida pela Igreja Católica e pelas elites de São Paulo, foi real. “Deu, sem dúvida, legitimidade ao golpe em preparo. Mas muita gente que participou da marcha foi depois

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vitimada pela ditadura e passou a se opor a ela e acabou participando de outras demonstrações de massa, como as da campanha das Diretas Já!”, comenta. É na perspectiva dessa desilusão que aquelas fotografias do episódio de 1964 têm sentido e podem ser apropriadamente analisadas. “No desfecho e nas conseqüências sociais e políticas daquele ato que as esquerdas equivocadamente ironizaram e depreciaram é que está a chave da leitura possível do espetáculo registrado por essas fotografias.” É evidente, em sua opinião, que os responsáveis pelo golpe não precisavam da marcha para legitimá-lo. “Mas a marcha ajudou. A fala do presidente Lyndon Johnson na conversa com altos dirigentes do Departamento de Estado, hoje disponível na internet, não deixa nenhuma dúvida quanto ao andamento do golpe, com apoio do governo norte-americano, que é o que de fato poderia decidi-lo.” Segundo Martins, para o sociólogo, qualquer fotografia pode ser riquíssimo documento em informações sociológicas. “Mesmo a fotografia de um amador que casualmente, na rua, fotografe Thomas Farkas fotografando. Mas o aproveitamento sociológico da fotografia como documento depende da competência do sociólogo, de seu preparo para ‘ler’ e interpretar apropriadamente uma fotografia, um grupo de fotografias ou a diversidade de fotografias de um mesmo objeto ou de um mesmo tema.” Como também acontece com os historiadores, a maioria dos sociólogos não se preocupa com isso, de acordo com o especialista. “Assim, quando usam fotografia num texto, fazem-no para ilustrá-lo, imaginando, desse modo, incorporá-la à sua análise. Raramente conseguem incorporá-la como parte da própria narrativa, como linguagem dotada de legitimidade própria.” O autor diz ainda que, em relação à metodologia do uso da fotografia, história e sociologia têm utilizado a fotografia equivocadamente. Portanto, prossegue ele, o uso da fotografia por sociólogos e historiadores, e tam-

As fotos desta reportagem estão no livro Sociologia da fotografia e da imagem e fazem parte da exposição Carandiru, a presença do ausente

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bém por antropólogos, precisa de muito mais do que um método de leitura da imagem fotográfica para que a fotografia tenha todas as suas informações devidamente reconhecidas e interpretadas. Os teóricos da fotografia, acredita Martins, há muito alertam para o fato de que a imagem fotográfica é polissêmica. “Ela envolve o fotografado, sem dúvida, mas também o fotógrafo, quem quer que seja ele, profissional ou leigo, como produtor de imagem. Envolve ainda o espectador da fotografia, que nela quase sempre ‘vê’ o que o fotógrafo não viu e o fotografado nem sabe, como nas fotos da Marcha da Família.” Portanto, ressalta o professor, uma fotografia é um conjunto de imagens imaginadas, superpostas. “O que foi fotografado não é o ‘real’, mas o real proposto por seus indícios visuais.” Nesse contexto, Martins explica que a realidade social é constituída do que se vê e até se sabe e do que não se vê e, muitas vezes, nem se sabe. “Se sociólogos, historiadores e antropólogos não estiverem preparados para conhecer a sociedade nessa perspectiva, de 108

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fato a fotografia (e também o vídeo e o filme) lhes será completamente inútil.” Nesse sentido, afirma ele, um dos grandes temas do uso sociológico da fotografia não é o que ela mostra, e sim o que ela oculta.

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retrato fotográfico, como a pintura, tem a função de mascarar, ocultar, deformar, destaca o autor. “Por isso ninguém gosta de ser fotografado maltrapilho, nem mesmo o mendigo, que não tem alternativa para sua apresentação pessoal. Os cientistas sociais, no geral, equivocam-se no uso da fotografia porque a tomam como evidência do que ela supostamente mostra, quando o que mostra só tem sentido na mediação do que não mostra, do que ela é como documento visual de ocultação.” A chamada fotografia pessoal ou familiar fascina muito mais pela nostalgia, pelas lembranças, pela saudade, que permite visitar o próprio passado. Martins trata em seu livro esse tema do ponto de vista da sociologia. “A disseminação do retrato como representação

da pessoa tem tido funções diversas ao longo da história social.” Para ele, nem sempre o homem se viu e se conheceu através do retrato. “Creio que se pode dizer que a fotografia constitui um momento da história da representação visual da pessoa, na cultura do retrato em que a pessoa é apresentada como ser separado das alegorias de natureza religiosa. Com o florescimento do capitalismo, difundiram-se os retratos não só como figuração de atributos morais, mas também de atributos materiais.” Para o autor, a sociedade começou a se tornar teatral, sobretudo com a difusão do protestantismo e a concepção de que o retrato é o que a pessoa quer que pensem que ela seja. “A individualidade é constituída tanto pela visibilidade quanto pela alteridade. A imagem pessoal num certo sentido liberta-se da sua função de apresentação para se tornar, propriamente, representação e identidade. É nesse tipo de imagem que as pessoas se representam como resultado e artífices da trama social, o que a faz, portanto, documento sociológico por excelência.”

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No seu estudo, Martins propõe aprimorar o uso da imagem fotográfica por meio de uma nova “sociologia do conhecimento visual”. Ou seja, pelas palavras do autor, a sociologia visual, com esse nome proposto pelo reputado sociólogo, fotógrafo e músico americano Howard Becker, tradutor de Antonio Candido para o inglês, ficou muito ligada ao objetivismo factual da antropologia visual, numa perspectiva predominantemente positivista. “O que, surpreendentemente, a distancia da própria sociologia de Becker. Até para diferençá-la da antropologia visual, muito marcada pelo uso da fotografia como extensão da descrição etnográfica, penso que na sociologia só é possível incorporar a imagem como documento, particularmente a imagem fotográfica, se a tratarmos como modalidade de conhecimento.”

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esse sentido, destaca Martins, o propriamente sociológico está em interrogá-la como expressão do imaginário de quem fotografa, de quem é fotografado e de quem vê a fotografia. “O importante, então, não é a imagem como coisa, e sim a imagem como interpretação e fabulação.” Nesse caso, explica ele, é possível tratar a fotografia tanto como conhecimento visual quanto como objeto da sociologia do conhecimento, e não, simplesmente, como meio de documentação de fatos objetivos. “Tomemos as famosas fotografias de documentos, de carteiras de identidade, de carteiras de motorista e dos passaportes. Nesses retratos não somos o que pensamos ser, mas o que a polícia e o Estado querem que sejamos, sujeitos potenciais da criminalidade, passíveis de identificação se transgredirmos a ordem.” O lançamento de Sociologia da fotografia e da imagem incluiu a exposição fotográfica Carandiru – A presença do ausente. O pesquisador explica que o ensaio fotográfico realizado nos prédios da

Casa de Detenção, que seriam demolidos em seguida, foi feito em 2000 e é um dentre vários ensaios fotográficos que ele realizou nos últimos dez anos. Três deles constituem o seu primeiro livro de fotografias, que a Edusp lança em novembro, na coleção Artistas da USP. Três fotos desse livro estão participando de outra exposição, a coletiva Artes na Edusp, no Instituto de Estudos Brasileiros, na Cidade Universitária, que começou em outubro e vai até o fim do ano. O ensaio sobre a Detenção foi feito em duas visitas que o professor e fotógrafo fez com seus alunos para uma aula de rua, em conexão com outra aula no mesmo formato, em Paranapiacaba, vila operária concebida segundo a lógica do pan-óptico de Benjamin Bentham: “O local de trabalho como prisão sem muros, em que o capataz de cada operário é o próprio medo de ser visto, medo por ele interiorizado”. Uma segunda visita foi feita com o gru-

po Phora-de-phoco, formado por fotógrafos amadores, do qual Martins fez parte, constituído de alunos, ex-alunos e visitantes da USP – grupo que não existe mais. “O ensaio entrou no livro como texto visual e discurso sociológico por meio de imagens.”

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artins conta que fotografa desde a adolescência. Sobretudo durante sua ampla pesquisa sobre os conflitos na Amazônia, em que fotografou muito, “mas muito menos do que deveria e poderia. Foi quando resolveu levar a fotografia a sério. “Uma fotografia feita ao acaso ou malfeita custa o mesmo que uma boa fotografia”, concluiu. Fez vários cursos, a começar pelo que havia no cursinho do Grêmio da Escola Politécnica. “Comecei a adquirir câmeras usadas, pois cada tipo serve para um tipo de fotografia.” Hoje tem dez. No começo dos anos de 1980 ele escreveu artigos sobre o tema no jornal Folha de S. Paulo e na revista Fotóptica. Em várias ocasiões fez conferências e publicou estudos sobre fotografia. Um deles, em forma de ensaio sobre a fotografia de Sebastião Salgado, saiu no livro de Lilia Schwarcz e Lorenzo Mammi, Oito vezes fotografia, publicado pela Companhia das Letras. Martins escreveu recentemente outro texto sobre Aurélio Beccherini, que fotografou a transformação do centro de São Paulo entre 1909 e 1929 – o texto faz parte do livro que será publicado em novembro pela Editora Cosac Naify. “É um estudo sobre as revelações históricas e sociológicas do detalhe nas fotografias de rua.” Sociologia da fotografia e da imagem nasceu de duas conferências que ele fez na Inglaterra: uma no Ashmolean Museum, na Universidade de Oxford, sobre a obra de quatro fotógrafos brasileiros; e outra na Universidade de Cambridge, sobre o imaginário conformista presente nas esculturas de barro do Mestre Vitalino. ■

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.. .. RESENHA

Memórias póstumas de Machado de Assis Biografia clássica de Magalhães Júnior é relançada Carlos Haag

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u não quero dar pasto à crítica do futuro”, afirmou uma de suas maiores criações, Brás Cubas. Como Machado de Assis (1839-1908) não teve a mesma “sorte” de seu personagem, ou seja, escrever uma “autobiografia póstuma”, seus estudiosos puderam se refestelar, cada um a sua maneira e à maneira de seu tempo, com imensas pastagens biográficas. Um dos mais empenhados em vistoriar cada mínimo movimento do “bruxo” foi o cearense Raimundo Magalhães Júnior (19071981), jornalista e imortal como seu ídolo, autor de Vida e obra de Machado de Assis (1981), biografia exaustiva em quatro volumes que acaba de ser relançada pela Record. Apesar de sua estrutura problemática, é uma referência obrigatória, fruto de um trabalho hercúleo de pesquisa minuciosa. “Escravo das datas, Magalhães Júnior acompanha, ano a ano, a aventura produtiva de Machado e vai construindo para si a imagem de ‘superleitor’ da obra machadiana, aquele que tem a maior quilometragem sobre os escritos de Machado”, escreve Maria Helena Werneck em O homem encadernado, obra fundamental para entender a gênese das biografias sobre o autor de Dom Casmurro e que será relançado em dezembro pela Editora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). O cearense não entrou na briga biográfica para perder, mas para explicitar o que considerava cada mínima incorreção nos estudos anteriores, como os de Lúcia Miguel-Pereira, Augusto Meyer (cujo Machado de Assis: 1935-1958 também acaba de ganhar nova edição pela José Olympio) e do francês Jean-Michel Massa. Magalhães Júnior só é menos cruel com Páginas de saudade (1908), de Mário de Alencar, filho do romancista

Vida e obra de Machado de Assis (4 vols.) Raimundo Magalhães Júnior Editora Record Preço médio/ volume: R$ 45,00

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José de Alencar, que mantinha com o “bruxo” uma relação quase filial e cuja correspondência deu a chave biográfica para o Memorial de Aires. A partir desse pecado, dos mais originais, vida e obra se uniriam para tentar explicar ou evitar explicações sobre Machado. O interregno foi o Machado de Assis, de Alfredo Pujol, de 1917, um longo rosário de elogios e loas ao escritor que serviram mais para dar brilho ao biógrafo do que ao biografado. A verdadeira revolução ocorreu nos anos 1930, em que a obra machadiana passa a ser dissecada pelo seu viés psicológico em que a suposta vida sofrida do mulato epilético serviria para explicar seus romances. O ápice desse movimento foi a biografia “romantizada” de Lúcia MiguelPereira, que tenta acompanhar o processo de formação do escritor mais como um exercício para o seu projeto de criação de uma “literatura de formação” brasileira do que dotar a biografia de um rigor documental. Depois dela, Augusto Meyer implorou aos críticos que se esquecessem do “homem” Machado para se concentrar no que interessava: o escritor. Como bom editor que era, sugeriu que todos se esforçassem em levantar textos desconhecidos do mestre. O resultado indesejável de seu pedido foi uma corrida aos arquivos para desencavar toda e qualquer criação machadiana, que serviria como material para a escrita de uma biografia “séria” e “científica”, nos moldes positivistas. “Abertas as coleções de periódicos, o espectro do molequinho do morro do Livramento dá lugar à figura do intelectual e do artista em formação, que semeia escritos”, nota Maria Helena. Não era mais preciso atormentar herdeiros para obter cartas e originais: bastava ir à Biblioteca Nacional. Foi o que fizeram Massa e Magalhães Júnior, ambos em busca de um arquivo perfeito capaz de desmitologizar o escritor e corrigir as imagens de Machado que foram se repetindo com as biografias dos anos 1930. Vida e obra de Machado de Assis pretendeu ser a redenção de erros passados, embora acumulando material em excesso a ponto de deixar de lado qualquer análise dos romances. Na sua versão da biografia machadiana, Magalhães Júnior evita a visão “psicologizante” para se concentrar no Machado jornalista e cronista, formas em que, afirma, se poderia “tocar o corpo do escritor”. Nisso era preciso ir atrás de qualquer vestígio. “Não há porções desdenháveis em sua obra para quem a deseje estudar”, escreveu. No fim, como notou o crítico Alexandre Eulálio, acabou escrevendo um “mapa arquitetônico preciso dos trabalhos e dias do ‘seo’ Machado”, mas uma história com “h” minúsculo.

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.. .. LIVROS

Biografismo: reflexões sobre as escritas da vida

História, Ciências, Saúde: Manguinhos

Sergio Vilas Boas Editora Unesp 258 páginas, R$ 39,00

Suplemento Junho 2008, v. 15 Fiocruz, Garamond Universitária, Faperj 312 páginas, R$ 25,00

As obras biográficas, que encontram muitos leitores no Brasil, acabam de ganhar um livro que discute as referências conceituais e metodológicas sobre este gênero. Sergio Vilas Boas analisa as biografias de JK, Nelson Rodrigues, Garrincha, Chatô, Mauá, Stefan Zweig e Fidel Castro amparado em seis tópicos: descendência, fatalismo, extraordinariedade, verdade, transparência e tempo.

A revista trimestral da Casa Oswaldo Cruz/ Fiocruz lança o suplemento especial Gênero e Ciências que traz, entre vários temas, dois artigos sobre a institucionalização das ciências e a profissionalização científica no Brasil. O volume levanta inúmeras questões como: o pensamento científico é masculino ou feminino? As diferenças biológicas entre homens e mulheres influenciam as habilidades cognitivas em alguns ramos da ciência?

Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br

Fiocruz (21) 2209-4111 www.coc.fiocruz.br/hscience

A retórica de Rousseau Bento Prado Jr. Cosac Naify 462 páginas, R$ 69,00

O livro reúne oito ensaios de Bento Prado Jr. publicados em jornais e revistas sobre a obra do pensador Rousseau (1712-1778), além de um ensaio inédito escrito durante o exílio do autor na França. Com estilo tão literário quanto filosófico, ele parte de Foucault e propõe uma estratégia retórica que pressupõe a linguagem como parte de uma situação concreta, em que existe um reconhecimento mútuo entre aquele que fala e aqueles para quem se fala. Cosac Naify (11) 3218-1444 www.cosacnaify.com.br

FOTOS EDUARDO CESAR

Cultura militar e de violência no mundo antigo: Israel, Assíria, Babilônia, Pérsia e Grécia

Boleiros do Cerrado: índios xavantes e o futebol Fernando de Luiz Brito Vianna Annablume Editora / FAPESP 336 páginas, R$ 40,00

O livro nos apresenta xavantes em cuja vida social o futebol é presença cotidiana, motivo para encontros interaldeias, foco de divertimento e de disputas, via de conexão com as cidades brasileiras – pela força de atração, entre outras coisas, da profissão de jogador. Fernando Vianna conta sobre os sentidos do futebol para uma parte do povo xavante, habitante do Cerrado do Mato Grosso, cruzando várias antropologias. Annablume Editora (11) 3812-6764 www.annablume.com.br

Política: palavra feminina

Luiz Alexandre Solano Rossi Annablume / FAPESP 116 páginas, R$ 25,00

Raquel Paiva Mauad X Editora 240 páginas, R$ 36,00

Por muito tempo a história foi um conjunto de narrativas sobre reis e generais e seus fatos decisivos acabavam por coincidir com as grandes batalhas. No entanto, Luiz Alexandre Rossi nos apresenta em seu livro o aspecto quase sempre ocultado desta disciplina. Sua abordagem concentra-se na violência como fenômeno humano de todas as épocas e espécies e procura analisar os porquês das guerras.

Política: palavra feminina traz pela primeira vez uma pesquisa sobre a crescente participação feminina nas candidaturas a postos legislativos e executivos. Raquel Paiva indica que a participação das mulheres no processo eleitoral tende a superar, na prática, os privilégios decorrentes da separação entre masculino e feminino dentro da estrutura de uma ordem social de dominância patriarcal.

Annablume Editora (11) 3812-6764 www.annablume.com.br

Mauad X (21) 3479-7422 www.mauad.com.br

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... FICÇÃO

O Ponto de Euclides

Flávio Ulhoa Coelho

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uando eu lhe disse, naquela já longínqua noite de sextafeira, e naquele bar da moda, que já tínhamos nos encontrado em algum lugar, senti o seu sorriso irônico frente àquela supostamente mal feita cantada. Mas não era uma cantada, não era, eu realmente quis dizer aquilo e, quem diria, deu certo, cantada ou não, passamos a noite inteira juntos. E agora, tantas sextas-feiras depois, quando conseguimos nos olhar frente a frente sabemos que estamos nos enganando nesta cidade, neste apartamento, ficando surdos com o constante barulho dos automóveis passando à altura de nossos ouvidos. Mas naquele dia, tanto tempo já, você ainda tentou acompanhar a minha suposta cantada, estávamos muito animados naquela noite. Você, imaginando então nossas vidas passadas, concordou que sim, que já tínhamos nos encontrado antes, sim, éramos príncipe e princesa vivendo em um castelo no vale do Loire, você provocou com este seu sorrizinho, ou talvez fôssemos dois camponeses chineses, é uma possibilidade mais real, eu emendei esticando a brincadeira em uma direção diferente da planejada... seguramente mais real, mas quem gostaria de se imaginar como mais um camponês chinês?, você emendou irônica sorvendo sua marguerita. Questão de probabilidade, querida, pensei, mas por que estragar nossos sonhos mais profundos? Concedi afinal com o meio-termo de burgueses meio ricos e esnobes vivendo no início do século passado em Nova York. Talvez fôssemos duas amebas, você propôs, ainda descontente com as minhas propostas, dois esquilos na selva amazônica e, sei lá por que o meu pensamento nesta hora se desviou da conversa, imaginar dois esquilos na selva amazônica, quem diria, já tínhamos bebido demais! Pelo que me lembro, a noite acabou de forma desastrosa, ainda bem que estávamos tão bêbados que nunca nos lembramos direito o que aconteceu. Felizmente decidimos, uma semana depois, nos darmos uma nova chance e cá estamos nós dois discutindo inúmeras teorias sobre o cotidiano e sobre o caos, assistindo TV e nos enganando nesta cidade maluca. Mas o que eu nunca contei a você nestes anos todos de convivência foi o que eu realmente quis dizer em minha

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suposta cantada daquela primeira noite. E agora parece tarde para tudo isto, irremediavelmente tarde, nossas teorias malucas já não nos divertem tanto quanto antigamente, mas vá lá, conto assim mesmo. Sim, já estivemos juntos em outro momento, e não menciono nenhuma real possibilidade de termos roçado nossos ombros em uma destas tantas multidões desta cidade maluca, não. Mas sim, porque, se é que houve de fato o tal do tão falado Big Bang, aquela explosão de onde tudo se criou, naquele momento inicial estávamos todos juntos, você, eu, nosso amor, nossas mal dormidas noites, nosso ultimamente sexo apressado, nossas mágoas mútuas, os carros passando à altura de nossos ouvidos, o bar da esquina, aliás todos os bares de todas as esquinas desta cidade, que esquina é o que não falta nela, todos e tudo juntos e espremidos naquele apertado caldo primordial. Caldo é modo de dizer, querida, era aquele algo indefinido e confuso que ninguém explica direito, estava mais para um mero ponto, lembra? Um ponto ínfimo onde, espremidos, estávamos juntos tudo o que se conhece ou que ainda iremos conhecer: você, eu, este conto, nosso neto que nem nascerá por falta de pais, tudo, sem exceção. E ele e ela também, espremidos que estavam entre nós dois naquele caldo primordial, incomodando-nos e antecipando de certa maneira os problemas que iriam florescer em nosso convívio neste pequeno apartamento de trinta metros quadrados. Problemas que, a bem da verdade, também deveriam estar lá conosco naquele momento, se é que esta tal teoria do Big Bang não é também um delírio de conversa de bar num final de noite de sexta-feira. Quando você, ano passado, aproveitando-se de que eu tinha viajado, resolveu remexer as minhas gavetas e de lá tirou todas as suas conclusões, nosso destino já tinha se selado. As gavetas, as cartas, as conclusões e tudo o mais que se seguiu, as lágrimas, os gritos, a injustiça, a usual chantagem emocional, já estava tudo lá nos primórdios, no tal caldo, naquela primeira vez que nos encontramos e que depois, naquela confusão toda que se seguiu ao Big Bang, nos separamos e eu lhe perdi de vista. E voltaríamos a nos

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MARIANA ZANETTI

encontrar tanto tempo depois, naquele bar, naquela sexta, se é que já não tínhamos nos encontrado antes, quem sabe como pingüins no Pólo Norte (pingüins no Pólo Norte, que idéia!). Se é que faz algum sentido esta tal teoria de Big Bang, ele também estava lá, junto a nós. A propósito, você se lembra se pelo menos trocamos algum olhar naquela expansão toda? Foi tudo tão rápido e barulhento, pelo que me lembro, e não me lembro tão bem assim, tanto tempo já, mas acho até que na correria toda nem tivemos a oportunidade de nos olharmos direito, estávamos todos muito preocupados onde iríamos parar afinal, parecia até uma mudança decidida de última hora, aquela expansão toda que ainda segue, e segue pelo que me consta... Mas assim como ela estava lá, ele também nos acompanhou naqueles primórdios, ele com quem você iria se encontrar em seu flat perto da Paulista só para se vingar de mim, vingança boba, querida, estamos nos enganando nesta cidade. Poeticamente muito mais interessante do que qualquer outra, esta teoria da explosão inicial a partir de um quase nada, ela me permite imaginar tudo que hoje vejo ao meu redor espremido em um incômodo, promíscuo e apertadíssimo ponto. Como seria possível então separar a sua raiva e a sua decepção da minha insegurança, sua mágoa de minhas manias, as cartas de sua vingança, tão grudadas elas estavam naquele momento? Como me separar de você e dela? Como imaginar seus pensamentos longes dos meus, em qual momento da expansão nos separamos afinal de forma definitiva? Nos separamos sim e, sim, de forma definitiva, isto é incontestável. E agora você, deitada com sua cabeça no meu colo, parece sonhar enquanto eu lhe cafuneio um pouco, meus dedos de uma mão se enroscando em seus longos cabelos tingidos de castanho enquanto que a outra mão me serve automaticamente um sanduíche de queijo. E eu tento entender o porquê desta história toda, parece loucura imaginar tudo isto, coisas, pessoas e sentimentos espremidos em um ponto, que por definição é indivisível, como se coubesse

tudo lá, como se fosse possível nos imaginarmos dividindo nossos sonhos e cabelos tingidos com nossas decepções e ciúmes à espera de uma explosão. Fico imaginando que foi naquele momento de separação que tudo foi decidido, nosso futuro, nossa conversa naquele bar naquela sextafeira, a sua ironia cotidiana comigo, a pior das mortes, a televisão que irá lhe irradiar um câncer definitivo tanto que você a vê, tudo lá! No outro dia, li no jornal que uns japoneses, sempre eles, tinham inventado uma pecinha (que, na foto, se perdia no dedo indicador de uma japonesa sorridente) onde se poderia colocar não sei quantos sigazetabytes de informação. O otimista e empolgado apresentador anunciava que logo seria possível armazenar toda a informação que o mundo contém em uma pecinha daquela. Imagina você? Toda a informação do mundo concentrada... só de pensar, dá para perder o rumo. Que tal então se armazenássemos lá todos os nossos sentimentos, nossos fantasmas, nossas esperanças e inseguranças e tudo o mais que temos de nós? Os carros, o apartamento, a surdez crescente, a irradiação que trará o câncer, tudo... ele, ela, as gavetas, minhas viagens, o rancor, minha insegurança, as malditas cartas e o flat na Paulista. E talvez, com isto, poderíamos então, seguros de que tudo isto estaria finalmente a são e salvo e, principalmente, distantes, voltarmos a sermos o que deveríamos ter sido desde o início. Estaríamos voltando aos primórdios, tudo concentrado em um ponto e talvez, neste dia, voltaríamos a nos encontrar de novo, uma nova expansão, o tal Universo em expansão... e quem sabe até nos entendermos afinal. Ah! Os japoneses e suas pecinhas maravilhosas também estavam lá com a gente no começo de tudo... Haja espaço naquele ponto! Flávio Ulhoa Coelho é professor titular do IME-USP e escritor. Publicou os livros de contos: Contos que conto (1991) Ledos enganos, meras referências (1996) e Gambiarra e outros paliativos emocionais (2007) PESQUISA FAPESP 153

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