Os genes e a química do cheiro

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Nº 155 ■

EXEMPLAR DE

Janeiro 2009

Janeiro 2009 Nº 155 ■

NEURÔNIOS TRANSPORTAM REMÉDIOS CONTRA A DOR AVIÕES MAIS SILENCIOSOS

PESQUISA FAPESP

BRASILEIROS EM BUSCA DE PROUST

Os

genes ea química

doscheiros

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՞ >> ESPECIAL EXPOSIÇÃO

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C. MOSS/ATE

IMAGEM DO MÊS

O peso do

cativeiro Elefantes criados na natureza vivem bem mais do que os cativos em zoológicos. Pesquisadores da Inglaterra, do Canadá e do Quênia traduziram esta constatação em números num estudo publicado na revista Science. Animais da espécie Loxodonta africana que habitam um parque ecológico no Quênia (foto) vivem em média 56 anos, ante apenas 16,9 anos entre os abrigados em zoos europeus. No caso de elefantes asiáticos da espécie Elephas maximus, o tempo médio de vida em cativeiro é de 18,9 anos — numa reserva ambiental em Mianmar a longevidade é de 41,7 anos. O estresse, a obesidade e a infertilidade tornam pouco sustentável a vida dos elefantes em zoológicos, segundo o estudo.

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NOAO/NSF

MIGUEL BOYAYAN

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LAURA DAVIÑA

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CAPA

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> CAPA 16 Brasileira ajuda

a desvendar as bases neurológicas e genéticas do olfato > ENTREVISTA

> ESPECIAL III 57 EINSTEIN

O Universo além da física

> POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

10 Maria Immacolata

Vassallo de Lopes examina por que a telenovela é uma privilegiada narrativa popular

28 INOVAÇÃO

OCDE reconhece trabalho da agência Inova Unicamp na promoção de parcerias com empresas, governo e sociedade

32 ASTROFÍSICA

Brasileira ganha prêmio concedido pelo presidente dos EUA a futuros líderes de pesquisa 34 DESMATAMENTO

Pela primeira vez, o governo aceita estipular limites para controlar a devastação da Amazônia

> CIÊNCIA 40 FARMACOLOGIA

Neurônios podem transportar remédios contra dor e inflamação 44 SAÚDE

Capivaras e cães ajudam a disseminar a febre maculosa no Brasil 47 GENÉTICA

Doença que provoca deformações nos pés e nas mãos é identificada no Rio Grande do Norte

> SEÇÕES 3 IMAGEM DO MÊS 6 CARTAS 7 CARTA DA EDITORA 8 MEMÓRIA 22 ESTRATÉGIAS 36 LABORATÓRIO 74 SCIELO NOTÍCIAS ...........................

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> POLÍTICA C&T

> CIÊNCIA

> TECNOLOGIA

> HUMANIDADES

WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR

JEAN-BAPTISTE DEBRET

> EDITORIAS

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REPRODUÇÃO

86

48 ECOLOGIA

Poluição e redução da fauna estimulam ataques de tubarões a banhistas 52 AMBIENTE

Rios da Amazônia liberam 1% do gás carbônico emitido pelas atividades humanas no planeta

55 DEMOGRAFIA

Nova abordagem explica o crescimento populacional das cidades

Sistema desenvolvido por empresa para controle do gado ganha mercado no Brasil e no exterior

Projeto liderado pela Embraer pretende reduzir ruídos gerados pelos aviões

92 HISTÓRIA

A política sutil de uma disputa musical dos tempos de dom João 98 LITERATURA

Projeto temático decifra cahiers de Proust

90 ENGENHARIA DE MATERIAIS

Embalagens descartadas servem para rótulos e livros

84 QUÍMICA

Patentes geram produtos para tratamento de efluentes industriais

........................... 76 LINHA DE PRODUÇÃO 110 RESENHA 111 LIVROS 112 FICÇÃO 114 CLASSIFICADOS

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> HUMANIDADES

86 ENGENHARIA ELETRÔNICA

> TECNOLOGIA 80 ENGENHARIA AERONÁUTICA

106

102 MÍDIA

O inusitado caráter político da contracultura brasileira 106 ARTE

Hélio de Almeida lança livro com seleção de seus melhores trabalhos

CAPA MAYUMI OKUYAMA FOTO BRANDX PICTURES/LATINSTOCK

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CARTAS cartas@fapesp.br FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CELSO LAFER

PRESIDENTE JOSÉ ARANA VARELA

VICE-PRESIDENTE CONSELHO SUPERIOR CELSO LAFER, EDUARDO MOACYR KRIEGER, HORÁCIO LAFER PIVA, JACOBUS CORNELIS VOORWALD, JOSÉ ARANA VARELA, JOSÉ DE SOUZA MARTINS, JOSÉ TADEU JORGE, LUIZ GONZAGA BELLUZZO, SEDI HIRANO, SUELY VILELA SAMPAIO, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO RICARDO RENZO BRENTANI

DIRETOR PRESIDENTE CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ

DIRETOR CIENTÍFICO JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER

DIRETOR ADMINISTRATIVO

ISSN 1519-8774

CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADOR CIENTÍFICO), CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTONIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, MÁRIO JOSÉ ABDALLA SAAD, PAULA MONTERO, RICARDO RENZO BRENTANI, WAGNER DO AMARAL, WALTER COLLI DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA

Babaçu

EDITOR CHEFE NELDSON MARCOLIN EDITORES EXECUTIVOS CARLOS HAAG (HUMANIDADES), FABRÍCIO MARQUES (POLÍTICA), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA), RICARDO ZORZETTO (CIÊNCIA) EDITORES ESPECIAIS CARLOS FIORAVANTI, MARCOS PIVETTA (EDIÇÃO ON-LINE) EDITORAS ASSISTENTES DINORAH ERENO, MARIA GUIMARÃES REVISÃO MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO EDITORA DE ARTE MAYUMI OKUYAMA ARTE JÚLIA CHEREM RODRIGUES, LAURA DAVIÑA, MARIA CECILIA FELLI FOTÓGRAFOS EDUARDO CESAR, MIGUEL BOYAYAN SECRETARIA DA REDAÇÃO ANDRESSA MATIAS TEL: (11) 3838-4201 COLABORADORES ANA LIMA, ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS), DANIEL DAS NEVES, CHICO LOPES, DANIELLE MACIEL, EVANILDO DA SILVEIRA, GEISON MUNHOZ, GONÇALO JUNIOR, LAURABEATRIZ, MARCOS GARUTI E YURI VASCONCELOS

OS ARTIGOS ASSINADOS NÃO REFLETEM NECESSARIAMENTE A OPINIÃO DA FAPESP É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

PARA ANUNCIAR (11) 3838-4008 PARA ASSINAR FAPESP@TELETARGET.COM.BR (11) 3038-1434 FAX: (11) 3038-1418 GERÊNCIA DE OPERAÇÕES PAULA ILIADIS TEL: (11) 3838-4008 e-mail: publicidade@fapesp.br GERÊNCIA DE CIRCULAÇÃO RUTE ROLLO ARAUJO TEL. (11) 3838-4304 e-mail: rute@fapesp.br IMPRESSÃO PLURAL EDITORA E GRÁFICA

A exemplo de reportagem da revista Pesquisa FAPESP “Aproveitamento total” (edição 154), gostaria de sugerir como tema as pesquisas sobre o coco babaçu, palmeira que é natural nas áreas do Maranhão a Minas Gerais, que sabidamente produzem óleos vegetais, farinhas, carvão para siderurgia e adubo, enquanto não são devastadas para criação de gado. Estimulado pela reportagem, lembrei-me das grandes riquezas florestais do país: castanhais, babaçuais e juçarais que estão sendo destruídos por razões meramente econômicas. Os frutos dessas árvores rendem muito mais quando tratados e distribuídos aos grandes centros. Celso Smith Rio de Janeiro, RJ

Olimpíadas

TIRAGEM: 35.800 EXEMPLARES DISTRIBUIÇÃO DINAP GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP FAPESP RUA PIO XI, Nº 1.500, CEP 05468-901 ALTO DA LAPA – SÃO PAULO – SP

SECRETARIA DO ENSINO SUPERIOR GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

INSTITUTO VERIFICADOR DE CIRCULAÇÃO

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Sobre a reportagem de Fabrício Marques, “Medalhas na bagagem” (edição 153), tenho a comentar que no Brasil não há políticas que apoiem a participação de estudantes em certames internacionais. E isso não seria importante somente nas áreas de ciências físicas e biológicas ou de computação. Em 2007 um grupo de quatro estudantes do segundo ano de administração da

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) participou da oitava edição do Peak Time – uma das mais prestigiadas competições de administração da Europa, promovida anualmente pela Universidade de Estocolmo. Nenhuma equipe brasileira havia participado até então. E, no ano passado, 114 equipes do mundo inteiro estavam concorrendo. Destas, 22 foram classificadas para a rodada final que ocorreu em maio em Riga, capital da Letônia. Apesar dos esforços dos estudantes e seus pais, somente uma passagem aérea foi conseguida na UFRGS. Todo o restante do custo foi assumido pelas famílias. A equipe brasileira, destacada também pelos estudantes terem apenas 19 anos de idade, abaixo da média de idade dos participantes, ficou colocada em quinto lugar. Ana Beatriz Costa Czermainski Pesquisadora/Embrapa Uva e Vinho Bento Gonçalves, RS

Banco de cérebros Li com bastante atenção a reportagem “Na raiz do Alzheimer” (edição 153) sobre o banco de encéfalos da USP. Parabéns pelo artigo. Lamentavelmente há nele uma informação que não é verdadeira. O banco da USP não é o único no país. Há um segundo banco de encéfalos humanos em São Paulo, que iniciou suas atividades em 1997 e é dirigido por mim. O banco está instalado na Unifesp e conta com pouco mais de duas centenas de encéfalos. A finalidade do banco, que tem financiamento da FAPESP, também é estudar o envelhecimento e processos neurodegenerativos, como o Alzheimer e o Parkinson. João C. B. Villares Departamento de Psicobiologia/Unifesp São Paulo, SP

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br, pelo fax (11) 3838-4181 ou para a rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP, CEP 05468-901. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

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CARTA DA EDITORA

As sutilezas do olfato Mariluce Moura - Diretora de Redação

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primeira Pesquisa FAPESP de 2009 talvez devesse ter se impregnado do cheiro delicioso dos jasmins. Ou do cheiro delicado e inesquecível dos manacás. Ou seria mais apropriado, quem sabe, trazer às páginas inaugurais do novo ano o cheiro das rosas – daquelas que ainda conservam um perfume sutil, depois de tantas transformações nas remotas e singelas rosas originais, as rosas selvagens, introduzidas no cultivo pelo melhoramento genético e outras técnicas de transgenia, aplicadas há muito tempo para lhes dotar de maior resistência, menos espinhos e beleza esplêndida. É certo que as tecnologias de impressão hoje permitem embeber as páginas de uma revista de qualquer aroma que se deseje. Ou quase. Entretanto, a impressão da revista ficaria muito mais cara e dificilmente haveria um consenso sobre a adequação do cheiro que escolhêssemos ao verdadeiro espírito de Pesquisa FAPESP. Assim, melhor deixar à liberdade e à imaginação de cada leitor a escolha dos cheiros que lhe virão da memória enquanto estiver lendo a reportagem de capa desta edição que trata de um valioso – e inspirador – trabalho de decifração de uma espécie de código dos cheiros, digamos assim. Em termos bem sintéticos, a pesquisa em questão levou a uma nova compreensão da interação entre as moléculas de odor e os neurônios localizados no nariz, encarregados de mandar informações ao cérebro – o real responsável por sua interpretação e por distinguir, com maior ou menor acuidade, um entre milhares de cheiros que integram o repertório olfativo humano. Há quem diga que podemos reconhecer 10 mil diferentes cheiros e há quem aposte que esse número atinge a altura estratosférica dos 400 mil, ninguém tem um número certo. Mas não importa, a conclusão de fato importan-

te do estudo coordenado pela bioquímica Bettina Malnic, da USP, relatado em reportagem da editora assistente de ciência, Maria Guimarães, a partir da página 16, é que o sistema nervoso reconhece cada molécula de cheiro, não por um receptor, mas pelo conjunto de receptores específicos em que ela se encaixa na superfície dos neurônios do fundo do nariz. É um passo e tanto para decifrar um código instigante. Aliás, por um acaso instigante, justamente nesta edição que tem por tema de capa uma pesquisa sobre cheiros, Marcel Proust é personagem de uma das reportagens da seção de humanidades, que detalha a participação brasileira em um estudo internacional sobre o processo da escrita do famoso francês no Em busca do tempo perdido. Associação indelével, é hoje impossível ligar cheiros e literatura sem pensar imediatamente em Proust, em No caminho de Swann e nas madeleines, um nome atravessado pelo perfume doce e afetivo que ativa o fluxo intenso da memória do narrador/personagem. É o cheiro que traz um clima particular, um retalho da memória em sua integridade, cada vida em sua dinâmica singular. Curioso é que na reportagem do editor Carlos Haag, a partir da página 98, uma citação do narrador de O caminho de Guermantes remete ao Brasil e, indiretamente, aos cheiros: “Subitamente lembrei-me: aquele mesmo olhar eu já vira nos olhos de um médico brasileiro que pretendeu curar minhas crises de asma com inalações, absurdas, de essência de plantas”. Seria um médico cearense, especialista em botânica médica, que tratou do jovem Proust em Paris, e vale a pena conferir mais detalhes na reportagem em questão. Mas, voltando à ciência, os neurônios se mostram insistentes e recorrentes nesta edição. E nos domínios do jornalismo e da divulgação científicos

é sempre bom lhes conceder espaço quando merecem, dado o fascínio que todas as intrincadas questões propostas pelo funcionamento do cérebro, o humano em particular, despertam – e o fascínio ajuda a construir pontes sólidas para a relação ciência/sociedade. Aqui se trata de um belo achado, relatado a partir da página 40 pelo editor de ciência, Ricardo Zorzetto, sobre a interação de analgésicos e anti-inflamatórios com os neurônios nociceptivos, que inervam praticamente o corpo todo e funcionam como a porta de entrada da dor. Ao constatarem que determinados compostos capazes de combater direta ou indiretamente a dor podem percorrer relativamente grandes distâncias, sem perder a eficácia, no interior desses neurônios – que no corpo humano podem ultrapassar um metro de comprimento –, o conhecido pesquisador Sérgio Henrique Ferreira e a equipe de Berenice Lorenzetti avançaram em ciência básica e ainda começaram a abrir caminho para novas terapias contra a dor. Lidamos com muitos sentidos humanos nesta edição. E chegamos na audição pela editoria de tecnologia, mais precisamente com a reportagem elaborada pelo jornalista Yuri Vasconcelos (página 80) sobre um projeto liderado pela Embraer para reduzir os ruídos produzidos pelos aviões. Nossos ouvidos, dentro e fora dos voos e, neste caso, especialmente os de quem mora nos arredores dos aeroportos, penhorados irão agradecer a esse esforço. O silêncio às vezes é pura música. A todos os nossos leitores, desejamos um belo 2009, leve e intensamente criativo. PS – A partir desta edição, Pesquisa FAPESP passa a adotar o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. PESQUISA FAPESP 155

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() MEMÓRIA

Cinema

exibido Há 107 anos era feito o primeiro filme de ficção científica conhecido Neldson Marcolin

O Acima, uma das mais conhecidas cenas do cinema. Abaixo, outras partes do filme, repleto de inovações

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s filmes de ficção científica tiveram sua origem com um cineasta francês para quem a expressão “a primeira vez” foi usada muitas vezes. Em 1902, George Méliès fez o que é considerado o primeiro filme desse gênero que, por vezes, prevê e até inspira novas tecnologias. A viagem à Lua (Le voyage dans la Lune), de 14 minutos, foi baseado em dois livros de escritores que adoravam criar histórias com elementos científicos – Da Terra à Lua, de Júlio Verne, e O primeiro homem na Lua, de H.G. Wells. O filme conta a saga de cinco astrônomos que constroem uma cápsula espacial para viajar até o satélite terrestre. A nave é disparada por um canhão e chega atabalhoadamente na Lua, onde os cientistas encontram selenitas e por eles são perseguidos, mas conseguem voltar para a Terra. “A viagem à Lua foi um dos primeiros filmes de ficção científica”, diz Ismail Xavier, crítico cinematográfico e professor da Escola de Comunicações e Artes

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REPRODUÇÕES DO FILME A VIAGEM À LUA

da Universidade de São Paulo. “Só não dá para dizer que foi o primeiro porque havia muita gente produzindo no começo do século e não temos o registro de tudo.” O certo é que Méliès foi o primeiro cineasta associado à ideia de futuro e de tecnologia. Sua empatia e o desejo de trabalhar com a imagem em movimento foram instantâneos e nasceram junto com o cinema. George Méliès (1861-1938) era um ilusionista, dono do teatro Robert Houdin, em Paris, onde apresentava números de mágica. No final de 1895 ele foi um dos cem convidados de Louis e Auguste Lumière para assistir à primeira sessão de cinema em uma pequena sala no subsolo do Grand Café, no centro da cidade. Os irmãos Lumière tinham inventado o cinematógrafo, máquina que capturava imagens em

fotogramas e as projetava de modo acelerado, dando a ilusão de movimento. Méliès percebeu o potencial da invenção para seus shows de mágica e tentou comprar o equipamento, sem sucesso. O mágico construiu então sua própria câmera e começou a fazer filmes em 1896. No início ele filmava só eventos isolados – como

George Méliès: mágica na tela

cenas de rua – para depois exibir em seu teatro. Tanto a dramatização de histórias quanto a continuidade de cenas não eram importantes nos primórdios do cinema, entre 1895 e 1908, de acordo com Ismail Xavier. “Era um cinema de atração ou cinema de truques, algo como em um circo em que há quadros e situações apresentados de modo independente”, diz. A cenografia aparecia e os efeitos não eram sutis, mas feitos para ser notados. Os truques eram o grande chamariz. “Era um cinema que gostava de se exibir e encantava pela técnica e novas tecnologias utilizadas. A narrativa e o drama se consolidaram apenas a partir de 1910.” A viagem à Lua foi uma exceção daqueles tempos porque havia uma narrativa, com muitos efeitos especiais e cenários. A cena da nave enfiada no olho da Lua está entre

as mais conhecidas da história do cinema. Méliès foi um dos primeiros a usar efeitos especiais e a caracterizar seres alienígenas. Também teria sido o primeiro a utilizar o recurso da exposição múltipla de negativos, do processo de pintura sobre a película para conseguir filmes “coloridos”, a criar as técnicas de fade in (quando a imagem surge do preto) e do fade out (quando a imagem vai desaparecendo), e a produzir esquetes e story boards, entre outras inovações. O primeiro estúdio da Europa foi construído por ele. Financeiramente de nada adiantou tanto pioneirismo – em 1912 Méliès estava falido. Em 1926 foi redescoberto vendendo brinquedos em um quiosque de Paris por Leon Druhot, editor de uma revista sobre cinema. Ele escreveu sua história e alguns dos mais de 500 filmes que Méliès fez foram restaurados. Em 1931 o cineasta recebeu a Legião de Honra da França. Embora não sirva como consolo pela miséria em que morreu, Méliès recebeu também elogios públicos de dois outros gênios do cinema. “Devo tudo a ele”, disse D.W. Griffith. Charlie Chaplin o considerava “o alquimista da luz”.

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ENTREVISTA

Maria Immacolata Vassallo de Lopes

Telenovela, a narrativa brasileira Mariluce Moura

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nos dias que correm, porque a tevê é hoje um universo muito mais complexo e diversificado, ao qual se soma a poderosa face audiovisual da mídia digital, com a internet. Dentro desse panorama, uma novela com o desempenho de A favorita é, sim, um tremendo sucesso. Vendo televisão de dentro da casa de algumas famílias, na segunda metade dos anos 1990, Immacolata compreendeu um pouco mais por que tamanho sucesso. E isso foi relatado em Vivendo com a telenovela: mediações, recepção, teleficcionalidade, um livro de 2002 (Summus Editorial), em que ela é autora juntamente com as pesquisadoras Silvia Helena Simões Borelli, da PUCSP, e Vera da Rocha Resende, da UNESP. Quando o livro saiu, Immacolata, depois de uma viagem para estudos da ficção televisiva à Itália, já estava às voltas com o projeto do Observatório Ibero-Americano da Ficção Televisiva, o Obitel, que finalmente foi criado em 2005 com a participação de nove países, envolvendo não só instituições acadêmicas como braços ligados ao mundo da pesquisa de robustas empresas de comunicação, a exemplo da Globo e da mexicana Televisa. Em cada país uma instituição acadêmica é responsável pelo Obitel – no Brasil não poderia deixar de ser o Centro de Estudos de Telenovela da ECA-USP, coordenado por Immacolata. Essa entrevista visava em grande parte o Obitel, que, além de desenvolver um banco de dados quantitativos sobre a ficção televisiva de todos os países que participam da iniciativa, faz e publica uma análise anual da produção, da audiência e da repercussão sociocultural de toda a ficção televisiva produzida na América Latina e na península Ibérica. No entanto, ante a vertiginosa paixão de Immacolata pela telenovela, um tema realmente absorvente para qualquer brasileiro interessado na comunicação de massa, o Obitel ficou meio

na sombra, enquanto a grande narrativa ficcional brasileira contemporânea ganhava a cena, nessa conversa, da qual publicamos os principais trechos a seguir: ■ Você é uma pioneira nos estudos acadêmicos

da telenovela aqui no Brasil. Eu queria ouvila, primeiro, sobre o começo: como a telenovela se tornou seu objeto central de pesquisa? — No começo dos anos 1990 José Marques de Melo, então diretor da ECA, organizou um programa de estudos de ponta, cobrindo vários temas pouco usuais como objeto de pesquisa. Um deles era a telenovela, outro eram os quadrinhos etc. E aí se formou um grupo, um núcleo inicialmente liderado pela Ana Maria Fadul. A questão passava a ser organizar essa equipe, porque estávamos com um produto importantíssimo para o país, em termos culturais e em termos de comunicação, mas a legitimação e o reconhecimento de um novo objeto de estudo na academia são sempre difíceis. Aos poucos, foram se gestando os projetos de pesquisa dos professores e dos estudantes, nossos orientandos de mestrado e doutorado. Já hoje temos certamente um número fantástico de trabalhos de conclusão de curso na graduação sobre a ficção na televisão, o que inclui telenovelas, minisséries, séries etc. Isso começou por qual departamento da ECA? — Pelo CCA, o Departamento de Comunicações e Artes, ligado à teoria da comunicação. Havia uma intenção de interdisciplinaridade na abordagem da telenovela. Importava a questão mesmo da telenovela no Brasil, quer dizer, esse produto que vem da televisão e o que é a televisão dentro da sociedade brasileira. Quando a coordenação do núcleo já estava com Maria Aparecida Baccega, entramos em 1995 com um projeto temático na FAPESP, que resultou em nove subprojetos. Coube a mim, dentro ■

FOTOS MIGUEL BOYAYAN

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emorou até que a telenovela fosse reconhecida como objeto legítimo e fascinante de estudos acadêmicos no Brasil. De forma mais consistente, foi só na década de 1990 que na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) formou-se um grupo de pesquisa disposto a estudar profundamente esse gênero melodramático, agora tão brasileiro, sob múltiplos aspectos e pontos de visão. Dessa turma fazia parte Maria Immacolata Vassallo de Lopes, hoje professora titular da ECA e coordenadora do Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação (PPGCOM). Immacolata resolveu encarar a sério a questão da recepção, tão polêmica dentro das teorias da comunicação, acreditando que a partir do olhar de quem assiste tevê poderia desvendar algumas das razões que transformaram a telenovela brasileira num fulgurante fenômeno da comunicação de massa, além de produto de exportação. Um produto, observe-se, que teve várias vezes sua morte anunciada desde os anos 1980 e que, neste começo de 2009, continua emitindo sinais inequívocos de vigor – a novela A favorita, da Rede Globo, depois de uma virada fantástica e audaciosa na trajetória da aparente mocinha da trama, dá sinais claros de vitalidade, batendo na casa dos 50 pontos do Ibope, depois de uma fase em que mal passava dos 35. É claro que isso nem de longe se compara a performances lendárias como a de Roque Santeiro, que, diz-se, no último capítulo deu 100 pontos de share, ou seja, todo mundo que estava com a televisão ligada no país naquele momento estava na Globo para ver como terminava o brilhante folhetim eletrônico de Dias Gomes e Aguinaldo Silva. Se é verdade mesmo, ninguém sabe. A comparação direta, entretanto, não faz muito sentido PESQUISA FAPESP 155

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disso, fazer um estudo de recepção da telenovela [“Recepção da telenovela brasileira: uma exploração metodológica”]. Mas havia uma colega, Solange Couceiro, que estudava a questão das relações raciais na telenovela, outra, a questão do consumo, a Renata Pallottini, a questão da escrita, a Lurdinha, Maria de Lourdes Motter – infelizmente falecida precocemente –, estudava a relação entre realidade e ficção etc. Tudo isso gerou livros e todo um processo muito interessante para a vitalidade desse núcleo. Havia um outro aspecto de nosso trabalho que era a interface com os produtores e com o mercado, e a maioria das teses e dissertações, nesse caso, incidia sobre produtos da Globo. Natural, porque foi ela que tornou a telenovela um produto profissionalmente rentável, com qualidade estética, qualidade técnica. Mas o fato é que o grupo precisava fazer gestões de relações com o mercado, porque, se a telenovela provocava desconfiança na academia, nossos estudos provocavam uma desconfiança dos produtores, que imaginavam que íamos começar a falar de uma forma frankfurtiana em alienação, algo na base do “é manipulação o que vocês fazem”, essas coisas. Mas as coisas começaram a andar desse outro lado graças aos seminários para os quais convidávamos os produtores, principalmente os autores de telenovela, entre eles Lauro César Muniz, Silvio de Abreu, Maria Adelaide Amaral e Glória Perez. Eles se misturavam aos acadêmicos e disso resultavam trabalhos muito interessantes. ■ Especificamente em seu estudo de recepção da telenovela, quais foram os achados principais? — Bem, havia um desafio teórico-metodológico, mas fundamentalmente metodológico no estudo, ligado à questão da teoria das mediações. Esse é um tema de larga influência na área de comunicação através de Jesús Martín-Barbero. Tínhamos então que fazer a pesquisa tomando como marco teórico a questão das mediações e definir como trabalhar essa teoria em termos metodológicos. Não era simples e por isso eu insistia tanto junto à FAPESP que o projeto era realmente uma experiência metodológica numa pesquisa empírica.

Em termos mais práticos, quem você entrevistou? Como definiu sua amostra? — Nas Humanas é frequente o estudo de caso, e a ideia era essa, pesquisar a recepção da telenovela no âmbito de um estudo de caso. Mas chegamos a um universo, nem tão pequeno assim, de quatro famílias de condições sociais diferentes, desde uma que vivia numa favela até uma de classe média alta de um condomínio do Morumbi. As outras duas eram uma família de periferia e uma de classe média. Íamos acompanhá-las assistindo a uma mesma novela... ■

Qual novela? — A indomada, que estava no ar naquele momento. A estratégia envolvia estar oito meses na casa das famílias, fazendo observação etnográfica e, ao mesmo tempo, estudando o acompanhamento da novela, ou seja, a recepção do produto. E is■

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so envolveu um protocolo metodológico ambicioso, porque o trabalho tinha que ser feito por uma equipe multidisciplinar, com pessoal sênior de psicologia, de antropologia, de comunicação, de sociologia, e mais um grupo de orientandos e até estudantes na iniciação científica – 14 pessoas no momento de mais intensidade do trabalho. Foram três anos de pesquisa, um ano só para afinar a equipe, coisa essencial porque íamos entrar na casa das pessoas, em média, duas vezes por semana. Ficamos oito meses com essas famílias, do começo ao final da novela. Nosso compromisso explícito era sair a qualquer momento, se estivéssemos atrapalhando a vida da família. E nenhuma das quatro propôs isso. Em termos práticos, como vocês faziam? — Chegava uma dupla principalmente no horário da novela, mas não só. Porque, como dentro da pesquisa era importante observar o que chamamos de cultura da família, precisávamos ver como as coisas funcionavam na parte da manhã, à tarde, como a televisão era ligada, quando, o que faziam, enfim, toda essa questão do cenário porque a televisão é um aparelho familiar e tudo isso faz parte daquilo que chamamos de observação etnográfica. Interessava essas pessoas, suas histórias de vida, como começou o interesse por telenovela etc. E tudo isso permitiu ver ■

A telenovela não é só vista, é falada. Está no jornal, nas conversas, nos blogs, nos sites, e seus capítulos são antecipados nos jornais do fim de semana

na prática que a telenovela é mesmo uma narrativa popular, com as marcas de reconhecimento, mais do que de identificação, como dizem Jesús Martín-Barbero e outros. Em outros termos, as pessoas se reconhecem naquela narrativa popular. Tem que ser um melodrama para ser recebida como telenovela, mas, de fato, ela passou a falar também sobre a realidade brasileira. ■ Esse reconhecimento é algo visível ou men-

surável? — É observável e, na medida em que a telenovela é uma narrativa da família, e não dos indivíduos, é mais consequente fazer da família a unidade da investigação. A telenovela busca sempre os temas privados, as paixões, o ódio, a origem das pessoas, sempre ambientados nas famílias. Esse é o cenário, o paradigma. E quem assiste em casa é uma família real que se reconhece em parte nas famílias da ficção. ■ A família como ambiente é a manutenção

do padrão tradicionalíssimo do folhetim. Por que na ficção televisiva se mantém esse mesmo padrão de séculos? — Porque é a matriz do melodrama, a mesma que o folhetim pegou. O que é essa matriz? Trata-se da centralidade da pessoa na família, esse espaço privado onde as coisas mais inacreditáveis que se possa imaginar têm chance de acontecer. A telenovela vai para a política, para outras instâncias da realidade, mas é o comportamento, são as questões morais que, mesmo aí, mais chamam a atenção, e tudo isso está investido dessa matriz. E o reconhecimento acontece porque todo mundo se vê numa família. Até que os estruturalistas mostraram isso muito bem, quer dizer, como é que essas famílias vão entrar em conflito ou em associação e todas as tramas daí decorrentes, com suas muitas interações. Há autores melhores e piores nesse cruzamento das tramas. Para você, quem é o mestre? — Acho Manoel Carlos fabuloso nesse sentido. Sabe por quê? Pela quantidade de tramas com que ele é capaz de lidar simultaneamente, e várias assumindo tal importância, como em Mulheres apaixonadas [Rede Globo, 17/02 a 10/10/2003], que se torna difícil definir quem é o protagonista. Às vezes, uma trama inicialmente pensada como secundária assoma à posição principal, e vice-versa. ■

■ Mas isso decorre da interação com o públi-

co, não? Já que se trata de uma narrativa na qual nos reconhecemos, o público vai mostrando, no movimento mesmo da recepção, 12

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em que grupo se reconhece, com que personagens tem mais empatia etc. — Sim, os produtores têm “n” maneiras de medir, de captar isso, desde sua própria sensibilidade até as enquetes. E o interessante é que o público termina se alfabetizando nisso que chamamos a gramática dessa narrativa. Já não vemos só o making-of dos filmes de Hollywood, mas de toda a produção da televisão brasileira. Os bastidores não só são escancarados pela mídia, mas os próprios autores revelam a sua maneira de trabalhar. Então, o Manoel Carlos conta: “Vou ao jornaleiro, vou à pizzaria e vou no meu bar e começo a ouvir etc...”. E aí as pessoas já sabem: “Lá vem o Manoel Carlos, olha, seu Manoel, ontem à noite, aquela cena foi fantástica etc.”. Essa interação já se estabeleceu. O último que inovou nisso foi o Aguinaldo Silva, ao criar um blog enquanto estava escrevendo Duas caras [Rede Globo, 01/10/2007 a 31/05/2008]. Tiago Santiago também resolveu fazer isso em relação à novela da Record, Os mutantes: caminhos do coração. ■ Aliás, só para pegar algo bem atual da dramaturgia televisiva, como você avalia na novela A favorita a grande virada que transformou a personagem de Patrícia Pilar numa vilã monstruosa? — Em meu entendimento, A favorita combinou traços do dramalhão clássico – vingança, ciúme, segredo – com inovações, por exemplo, revelar no segundo ou terceiro mês da história quem era a malvada e quem era a boazinha, invertendo completamente o que o público tinha sido levado a pensar até então. Roteiro ousado esse do João Emanuel Carneiro. Funcionou às mil maravilhas, tornando o tipo meigo e confiável de Patrícia Pilar em mais que uma vilã tradicional, em uma verdadeira serial killer, chegando ao paroxismo do ódio à própria filha etc. Aliás, se você reparar bem, essa novela é uma grande história sobre “as aparências enganam”: ninguém, ou quase ninguém, é o que parece. O público respondeu bem e a novela está numa audiência ascendente, de quase 50 pontos.

Durante a pesquisa tornava-se mais perceptível que o sentimento de reconhecer-se, por parte do receptor da novela, tem o poder de influenciar de alguma forma o desdobramento da história. — Não era isso o mais importante a observar ali. Sem dúvida alguma o público receptor influencia, e isso aparece nas mais variadas ordens, desde a mídia falando da telenovela, fala a que os produtores estão muito atentos, aos grupos qualitativos que a própria emissora organiza, enfim, existe ■

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REPRODUÇÕES DO LIVRO VIVENDO COM A TELENOVELA

Sequência de cenas de A indomada: acompanhamento científico por oito meses

toda uma sistemática, toda uma metodologia para captar os humores do público em relação à telenovela. Mas a coisa mais importante para nossos estudos, creio, é a espontaneidade que se verifica, é alguém no Congresso Nacional, por exemplo, ao falar de algo significativo, se referir de repente a uma novela, aí se percebe sua dimensão cultural, vê-se o lugar que ocupa. E agora, com a internet, com os blogs, com os grupos para matar uma personagem e enaltecer outra, “odeio o autor xis” ou “adoro o autor xis”, parece que se reocupa de uma outra forma os velhos clubes de fãs ou fã-clubes. E isso nos permite dizer que, em termos sociais, continuamos com uma relação extremamente vital com a telenovela. Queria justamente falar um pouco sobre como hoje nós estamos focalizando o receptor, a recepção nos estudos de comunicação. E como é isso? — Já não o vemos como um ponto final num processo de comunicação que começa com a emissão. E de tal modo isso se transformou que há quem diga que é com a recepção que o processo começa, porque lá vão se criar novos sentidos. Ou, como dizemos, há uma ressignificação. Todos não assistem da mesma maneira, recortam-se conteúdos. Você pode ver uma família na favela assistindo o mesmo produto da classe média alta, mas a primeira coisa é que não é a mesma recepção. A beleza da coisa é que possamos dizer: “Está dando audiência, sim, mas os significados, os motivos são os mais variados”. E quase todos os motivos estão implicados na experiência das pessoas, na vida, no cotidiano, na cultura das pessoas. Que são diferenciadas numa sociedade tão desigual como a brasileira. ■

■ Então, longe de ser simples, este é um produto

sujeito a muitas leituras e ressignificações. — Pronto, é isso. Muitas leituras, infinitas leituras. Portanto, quando se cruza esse caráter com a questão das marcas do reconhecimento – porque se trata de uma narrativa

popular, no sentido de que não é hermética, não é a de um romance –, torna-se clara a literacidade da novela. Quer dizer, a gramática passa a ser aprendida, inclusive vem a crítica, “essa cena está malfeita”, “a maneira de falar de fulano está errada” etc. Uma crítica referida à estética. — Estética, técnica... às vezes críticas realmente surpreendentes, em especial quando se vai descendo na escala social. Uma curiosidade: das quatro famílias com que trabalhamos, aquela que mais se aproximava de um tipo ideal de família não era a da favela, nem a que classificamos na classe média tradicional, nem a da classe média alta, mas a da periferia. Poderíamos dizer que era uma família de classe média baixa. Tinha determinados equipamentos dentro de casa, os filhos estudavam, diferentemente do que acontecia com a primeira família, cujas filhas adolescentes vendiam produtos nos semáforos... o pai nessa família da periferia tinha sido vendedor de peixe na feira e no momento era vendedor ambulante de guloseimas. A mulher fazia um trabalho social na igreja, e também por isso era muito crítica do que via na telenovela. ■

O que é esse tipo ideal? — Falo do ideal do Weber. Quando se tem tipos ideais, já não se está na ordem da realidade. Quando Weber fala, por exemplo, do capitalismo, está pensando principalmente no tipo ideal da racionalidade capitalista. Vêse claramente que o corpo do capitalismo é o da administração, é o da empresa. Nele, portanto, tudo está controlado em termos de meios e fins. Mas indo às famílias, nas quatro com que trabalhamos, que, é claro, não têm nenhuma representação estatística, víamos em todas elementos que são propriamente de um modo de vida de classe média. No entanto, em relação a esse reconhecer-se na narrativa e em termos da ressignificação, categorias que tomamos nos estudos de recepção (que hoje alguns chamam de ativa, para afastar a ideia de passividade total ante ■

a televisão), esse reconhecimento realmente se corporificava, se realizava muito mais, na segunda família, a da periferia. Ou seja, essa família era a que tinha a relação mais direta, mais afetiva – no sentido amplo de afetivo – e mais interativa com o que se passava lá na tela. A ponto de “falar” para as personagens o que deviam fazer. — É isso mesmo. E veja, nós pensamos nessas famílias sem muitas restrições prévias. Queríamos apenas que se assistisse telenovela naquela família e que houvesse disponibilidade de nos receber. Ah, outra coisa: que não tivesse criança pequena. Não tínhamos condições de incluir essa categoria. Adolescente, sim, a partir do momento em que pudesse falar se sabendo adolescente ou jovem. E foi essa a única pré-condição em termos da composição familiar. Se a família tivesse à frente uma mulher viúva, estava bem. E encontramos uma assim. No diagrama do arranjo familiar, na da favela, o marido não estava, tinha abandonado a casa. E a mulher tinha, enfim, sua própria novela, que era a vida dela. Nesses termos, a família da periferia era a mais do tipo ideal, sabe, pai, mãe, filho. ■

■ Estavam todos os elementos da composição

da família nuclear. — Sim, tudo bem composto. E tinha o lado da mulher, era bem interessante lidar com ela ao assistir a telenovela, porque ali tinha uma personagem feminina forte. Que idade tinham os chefes das famílias escolhidas? — Quase 50. Na família de classe média, ambos estavam no segundo casamento. Não havia filhos em casa, porque os filhos dele do primeiro casamento estavam com a mãe, e o casal ainda não tivera filhos. No casal da classe média alta, a mulher era até bastante noveleira, mas o marido, um empresário, entrava, dizia “boa noite” e ia embora assistir o vídeo dele em outro lugar. Nunca quis sentar. Ela assistia sozinha. Dos filhos, o ■

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rapaz fazia pós-graduação e as filhas faziam cursinho. Em termos de estudos de recepção, era muito instigante tentar ver como a telenovela entrava naquela casa. As duas filhas, porque faziam cursinho à noite, assistiam só nos fins de semana e a mãe contava para elas o que acontecera nos demais dias. Também era muito interessante o desafio de estabelecermos eticamente até onde podíamos ir, até onde podíamos atender às demandas para comentar certas coisas, como, por exemplo, a questão da sexualidade dentro da novela, o que fazia alguma delas começar a falar de suas próprias experiências. Quero dizer que, se pensarmos nas pesquisas antropológicas, quando você fica na tribo tem que se tornar um nativo, obter a confiança de todos. Mas estávamos lá para falar de telenovela. E em relação à questão do reconhecimento, da ressignificação e das diversas leituras, me chamou muito a atenção que a novela criasse, para além de todas as diferenças entre os receptores, coisas em comum, que é aquilo que comecei a chamar de repertório compartilhado. Ou seja, na sociedade brasileira você tem, de fato, algum repertório compartilhado de alto a baixo dos estratos sociais. — Isso mesmo. Por exemplo, como a família enfrenta a questão da virgindade e sexualidade das suas filhas. Que era tratada numa cena de A indomada como uma relação tipo Romeu e Julieta. Essa novela do Aguinaldo Silva teve de tudo, do grande drama até a comédia mais escrachada. E quando eu digo desse repertório comum, lembro uma cena em que a personagem da Luíza Tomé, a mulher do prefeito, representado por Paulo Betti, fala com a filha a respeito do primeiro ato sexual que ela vai ter. É fantástico. ■

■ Você

viu, na recepção nas diferentes famílias, uma disposição favorável a essa forma? — Sim, favorável. Não só a esta forma, mas à ideia de que a telenovela devia abordar esse tipo de coisa, porque é algo que todo mundo passa, porque sempre tem essa coisa dentro da família. A personagem estava também falando do cuidado, de se ter sexo também com um envolvimento amoroso. Dizia: “Você sabe o que vocês estão fazendo? Vocês estão preparados?”. Aí ela fala de hormônios, nada de uma coisa do arco-davelha, não, um texto muito contemporâneo. Outro repertório compartilhado era tratar da questão da política. De novo, recorrendo a Martín-Barbero: uma pessoa do povo nunca vai entender o que é a guerra – a guerra é um lugar onde um tio morreu. A cidade é um lugar onde a prima se deu bem. Assim, as categorias mentais mais complicadas chegam às pessoas via afeto. Quer dizer, há aí 14

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uma coisa de cognição que passa claramente por um sentido emocional. Então, emoção e razão... A telenovela faz esse duplo movimento para as coisas chegarem às pessoas: o privado se torna público e o público se torna privado. E tem que haver isso. Tomemos a violência, por exemplo. Tem que acontecer dentro de uma família e daí, numa novela de Manoel Carlos, que provocou até aquela onda de reação da violência no Rio, havia uma moça que estava observando algo e é morta por uma bala perdida. No Leblon. Era uma personagem importante, e aí era a inserção de todo aquele drama das balas perdidas na ficção. O que está no mundo de fora e não me mobilizava de repente passa a ter significado pela via do afeto. Relaciono-me com a violência objetiva pela via do afeto, facilitada por esses trabalhos midiáticos. — Exatamente. E você pode dizer até por dispositivos da narrativa. E aí passamos a falar da narrativa televisiva que foi se abrasileirando, da telenovela, que se torna, para mim, um gênero típico, um gênero, portanto, da televisão, nacional. E cheguei a essa conclusão através de meus envolvimentos teóricos, metodológicos, até epistemológicos, e via recepção. ■

■ A partir de quando ela se torna um produto

cultural genuinamente brasileiro? — O marco para todos os estudiosos da história da telenovela é Beto Rockfeller, da TV Tupi, escrita por Bráulio Pedroso e levada ao ar em 1968. Mas temos um processo de abrasileiramento, de naturalização até do próprio ator, do modo de interpretar e da história. Quer dizer, ela se torna cada vez mais realista. E não porque o autor perde de vista que está fazendo uma telenovela, portanto gênero meio dramático, aquela coisa toda, mas por exigência do público. Dou um exemplo: num núcleo que se passa numa redação de jornal, os jornalistas começam a dizer “mas aquilo ali de forma nenhuma acontece, é um equívoco”. ■ Como também reclamam médicos, nutri-

cionistas e todas as categorias profissionais. — É uma coisa incrível essa capacidade de mobilização da telenovela e o enraizamento que foi acontecendo. A isso exatamente me refiro quando falo de abrasileiramento do gênero. A questão é de que ele foi se apropriando para se constituir assim. A cultura brasileira absorvera fotonovela, radionovela, a maneira de o cinema tratar o país, então, a telenovela não se realizou nesse sentido de uma forma isolada, fez uma reapropriação do que já vinha acontecendo há décadas na cultura. Quando pensamos

sobre isso vamos necessariamente ao rádio na forma como foi utilizado por Getúlio Vargas nos anos 1940 e depois entrando pelos 50. Vamos aos meios de comunicação na sociedade brasileira, perguntar pelos seus efeitos, pela sua importância, pela manipulação ou pelo uso de tudo isso. A televisão, que herdou muita gente do rádio, era muito cara no começo, inclusive os aparelhos, então havia a experiência do “televizinho”, ou seja, ela se punha dentro da rede da comunidade mais próxima. E a telenovela surge primeiro pela Tupi, sem dúvida alguma, passa pela Record, pela breve experiência da Excelsior. Já é longa essa história que chega aos bons autores que eram dramaturgos, Dias Gomes, Jorge de Andrade... E os anos 1970 trazem as novelas fantásticas que ficaram na cabeça de todo mundo. E nessa longa vivência a recepção vai se tornando ativa e crítica, com as pessoas chamando a atenção para determinadas características e dispositivos, adiante podendo explicar “olha, aquele episódio estava malfeito porque a produção teve que correr, fulano não conseguiu fazer o capítulo de ontem” etc. E a novela passa a ser o tempo todo um work in progress... — É, exatamente. Aliás, o meu projeto atual de pesquisa chama-se “a telenovela como narrativa da nação”. Mas acho que é importante notar que a profissionalização da Globo, toda sua capacidade de produção, se realizou em cima desse gênero. É ela o marco, claro que isso depois se torna muito complexo. ■

Mas a teleficção, e a telenovela em particular, é o coração da máquina toda, em sua avaliação. — Sem dúvida. ■

Nos anos 1980, numa entrevista que fiz com Manoel Carlos para a revista Senhor, ele prognosticou o fim das longas telenovelas que seriam substituídas pelas minisséries. Entretanto, mais de 20 anos se passaram e a despeito das sentenças de morte seguimos vendo novela das sete, novela das nove, novela na Record etc. — Pois é, o horário de telenovela a rigor começa na Globo antes das seis, começa com Malhação e vai, com algumas interrupções para jornal e outros programas, até as 11 horas da noite ou mais. Uma das primeiras coisas que o Obitel está fazendo é estudar a grade da ficção que é própria, que tem a ver com capacidade produtiva da televisão de cada país. Nessa grade aqui no Brasil cabem telenovela, série, minissérie e até microssérie, que é a série de três ou quatro capítulos que ■

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no exterior ninguém conhece. O que se vê é que da matriz inicial da telenovela foram nascendo variadas experiências de ficção televisiva entre nós, em que convivem todas. Creio que Manoel Carlos assim como Lauro César falavam tanto no fim da novela, ou pelo menos de se afastarem da função de escrever novela, porque o trabalho era muito desgastante. Ainda é, mas um pouco menos porque os autores começaram a contar com colaboradores, o que não havia nos anos 1980. Glória Perez e Gilberto Braga começaram como colaboradores de Janete Clair. E isso é muito importante, a produção semanal de uma novela corresponde a fazer dois filmes e meio por semana! E o trabalho do autor é muito grande inclusive porque há dispositivos de naturalização inteiramente dados pelo texto. É como na cena da mãe falando para a filha sobre sexualidade a que me referi: o texto é o mecanismo de naturalização. Uma câmera só acompanha os atores, em plano fixo, transcorre uma conversa que dura o tempo que duraria no plano real. E, olha, há o tempo do telespectador do outro lado, e as barrigas, as redundâncias têm que ocorrer porque se assiste televisão, não só telenovela, com passarinho cantando, cachorro latindo, a filha chamando... Cadê a atenção que se dispensa a um filme no escuro do cinema? E então também esta relação, a recepção de maneira fragmentada, tem que ser pensada na telenovela. E até a possibilidade de se ficar dez dias sem assistir e depois ter capacidade de acompanhar a narrativa. É claro que tudo isso foi entrando na feição própria da telenovela. Com o tempo, foi se manejando essa arte, essa técnica, que continuamos a acompanhar. Mas é possível se ter informação sobre os desdobramentos da novela até no jornal, nos cadernos de tevê etc. — Pronto, aí está o ponto onde eu queria chegar: todos falam da telenovela. Ela não é só vista, é falada. E esse conjunto que eu chamo de semiose social é o que faz ela ser o que é. A telenovela está no jornal, nas conversas, nos blogs, nos sites, seus capítulos estão antecipados nos jornais do fim de semana. ■

■ Entretanto, você não tem mais a telenovela

dominando inteiramente a cena geral da televisão brasileira. Existe a oferta de programas muito diferentes nos canais da TV paga. Isso não diminui muito o alcance desse produto tão abrasileirado? — A audiência vem diminuindo em termos relativos faz tempo. A audiência usual da telenovela nos anos 1970 – não estou falando de share – era de mais de 60 pontos, quase 70 pontos do Ibope. E há o que se diz de Roque Santeiro, cujo último capítulo teria alcança-

No Obitel, o fundamental era construir um sistema de monitoramento de telenovela para que pudéssemos ir além dos estudos de caso

do 100% de share. Há, sim, o aumento da oferta, o aumento de canais, a diversificação, isso sem falar da internet. E hoje as pessoas deixam de assistir na televisão o que até gostariam porque são puxadas pela internet para trabalhar. O trabalho deixou de existir num só lugar, ele está também na casa normalmente à noite. Isso antes não existia. Portanto, temos que compreender também essa mudança no cotidiano. Mas, olhando em perspectiva, se o Ibope da telenovela que já foi quase 60 baixou para 50, para 40, tiver que ir para 30, ela continua hegemônica, em termos de programa assistido. Porque a hegemonia se dá, sim, pela audiência, sem dúvida, mas também por impor um padrão. ■ Nós não podemos terminar essa entrevista

sem falar do Obitel. Como ele começou? — Quando terminei o estudo da recepção, pedi uma bolsa à FAPESP para um pós-doc na Itália, onde há um observatório da Fiction, como eles dizem, coordenado por Milly Buonanno. Era uma coisa proposta já dentro do marco do audiovisual europeu, o Observatório Eurofiction. Fui lá fazer ver isso em 2001. Queria analisar a telenovela brasileira no cenário internacional. Não podemos nos fechar, temos que lidar com outras nações para entender nosso nacional. E, claro, sabemos que existe a marca da telenovela latino-americana, principalmente mexicana, da Televisa. E sabemos como ela entra nos Estados Unidos através

da comunidade hispânica. Quase todos os países têm o gênero de ficção na televisão. Quer dizer, todo mundo gosta de se ver nas histórias, nas narrativas, naquilo que fala de nós. Só que essa narrativa é também uma indústria cultural movida a capital, movida a mercado e, portanto, alguns dominam isto, vide o cinema norte-americano. Nós, aqui no Brasil, na Globo, mesmo em outras redes, das cinco e meia da tarde até as dez horas da noite, ou seja, no horário nobre, a produção que vemos é nacional. Isso significa mercado de trabalho para atores, para produtores, autores etc. Isso não é pouco e, se entendermos mais o que se passa, pode aumentar extraordinariamente. Estamos longe da era do “enlatado”. O prime time, o horário nobre está ocupado por histórias que falam de nós. E aí quais foram as suas percepções? — Eu decidi que tinha que precisávamos definir como nós faríamos um observatório de ficção, qual seria a logística, depois, qual metodologia para fazer isso. Um observatório tem que monitorar a produção, a audiência etc. com dados. Os dados seriam solicitados ao Ibope, mas nós próprios, dentro do Núcleo de Telenovela na ECA, teríamos que gerar outros. O fundamental era construir um sistema de monitoramento para poder realmente falar do que acontece e do que não acontece. Eu percebia com relação à telenovela que estávamos indo muito para os estudos de caso. Precisamos fazer macroanálises da ficção televisiva. E até coisas inéditas em termos de olhar a telenovela: olhar a produção, os dispositivos, a oferta, a coprodução, os formatos, a migração dos formatos... ■

E o observatório já está funcionando aqui no Brasil? — Sim, desde que voltei da Itália, ainda em 2001, ainda que o Obitel, com esse nome, tenha sido formalizado em 2005. Eu já tinha o suporte institucional e daí o desafio era, com uma equipe, ambientar, colocar o observatório no Núcleo de Pesquisa de Telenovela. Depois que passou a se chamar Obitel, fizemos o convênio com o Ibope, fomos aprendendo a fazer. Vimos que era possível já propor esse projeto para colegas da área de comunicação de outros países que vinham nessa trajetória. A idéia do Obitel é trabalhar com pesquisa de produção e circulação entre nós de telenovela, minissérie, série etc. Em síntese, das ficções televisivas. Mas não quero que o Obitel Brasil se resuma à equipe da ECA. Já consegui reunir 38 pesquisadores brasileiros de telenovela e quero que todos estejam no Obitel desenvolvendo projetos. ■ ■

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CAPA

do cheiro

Os mistérios

Brasileira ajuda a desvendar as bases neurológicas e genéticas do olfato

Maria Guimarães

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FOTOS EDUARDO CÉSAR | ILUSTRAÇÕES LAURA DAVIÑA | ORIGAMIS LETÍCIA KONISHI

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em é preciso estar diante do forno para saber qual a sobremesa do jantar. Da massa da torta se desprendem moléculas de odor que se espalham pelo ar, penetram nas narinas e atingem um grupo especial de células na porção mais interna do nariz, próximo à base do crânio, disparando mensagens químicas que permitem ao cérebro decifrar o sabor da torta: maçã, com um toque de canela. Sem olfato não há prazer em comer: o repertório da língua se limita a salgado, doce, amargo, azedo e umami – o sabor do monoglutamato de sódio, o aji-no-moto. A capacidade de perceber aromas é o que dá sentido aos temperos e ervas aromáticas e que permite distinguir entre um suco de laranja e um de abacaxi. Nos últimos anos começou-se a conhecer com mais detalhes como o sistema olfativo decifra os odores e permite, por exemplo, que se distinga, apenas pelo aroma, uma rosa de um jasmim ou um copo de leite bom de outro estragado. Parte dessas descobertas se deve ao trabalho da bioquímica Bettina Malnic, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP). Nos últimos anos Bettina decifrou o que se pode chamar de código dos cheiros, ou seja, como as diferentes moléculas de odor interagem com os neurônios e disparam as informações que serão interpretadas pelo cérebro, permitindo aos seres humanos distinguir um repertório com milhares de odores. Ela descobriu que cada molécula de odor se encaixa em mais de um tipo de proteína na superfície dos neurônios do fundo do nariz. É como se cada molécula de odor fosse uma minúscula estrela em que nem todas as pontas são iguais – e cada ponta diferente tem afinidade com um receptor. Cada receptor, por sua vez, pode receber estrelas com composições distintas, desde que ao menos uma das pontas tenha as características necessárias para se encaixar nele. PESQUISA FAPESP 155

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Essa constatação levou a pesquisadora a concluir que o sistema nervoso reconhece cada molécula pelo conjunto de receptores específicos em que ela se encaixa, e não por um único deles. O código por combinações aumenta em muito o repertório do faro humano. Se cada molécula se conectasse a um receptor apenas, só seríamos capazes de identificar cerca de 400 odores – o número aproximado de tipos de receptores distintos que existem no nariz humano. Com isso, ela abriu as portas para desvendar o código que rege a percepção dos cheiros e mostrou o que está por trás da rica percepção olfativa humana. Bettina começou a trabalhar nessa linha de pesquisa ainda nascente quase por acaso, quando em 1996 foi fazer um pós-doutorado no Centro Médico de Harvard, nos Estados Unidos. O plano inicial era dedicar-se a outro tema, mas se encantou com o trabalho da neurocientista Linda Buck, que cinco anos antes identificara os genes dos receptores olfativos e estimara que existiriam pouco mais de mil tipos diferentes desses receptores nos narizes de mamíferos. A importância da descoberta, feita enquanto Linda trabalhava no laboratório de Richard Axel na Universidade Columbia, em Nova York, foi oficialmente reconhecida em 2004 quando a dupla norte-americana recebeu o Prêmio Nobel de Medicina ou Fisiologia. Por sua contribuição ao que se sabe sobre como animais identificam odores, Bettina foi convidada por Linda a participar da cerimônia de entrega do prêmio.

Os neurônios olfativos ativam regiões do cérebro responsáveis por identificar odores, influenciar comportamentos, despertar emoções e memórias

de órfãos e descobrir que o cérebro reconhece combinações e não receptores específicos, Bettina confirmou que cada neurônio olfativo só produz receptores de um mesmo tipo. Milhares deles. O processo para chegar a essas descobertas era trabalhoso e lento. Em laboratório, ela expunha neurônios olfativos de camundongos a uma molécula de cheiro específica por vez. Em seguida contou com ajuda de um grupo de japoneses especialistas em detectar, com um corante cor-de-rosa, quais células eram ativadas pela molécula. No Japão, eles pinçavam cada um dos neurônios ativados e mandavam de volta aos Estados Unidos para que Bettina pudesse procurar o trecho de DNA com a receita para o receptor, que era assim identificado.

Orfanato molecular - Com 400 tipos

diferentes, os receptores olfativos constituem a maior família de proteínas do organismo humano. Mesmo assim, é pequena se comparada a mamíferos que dependem do olfato para sobreviver: esses 400 correspondem a um terço do acervo de camundongos e metade do que define o celebrado faro canino. Até o início do trabalho de Bettina nos Estados Unidos esses receptores eram ainda órfãos – o termo usado por especialistas para indicar que eles não têm parceiros conhecidos. Ao longo de quase quatro anos, ela identificou os odores que se encaixam em 14 desses receptores. Além de reduzir o número 18

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O PROJETO Receptores acoplados à proteína G e sensação química

MODALIDADE

Projeto Temático COORDENADORA

BETTINA MALNIC – IQ-USP INVESTIMENTO

R$ 367.190,09

Bettina é ainda a única especialista brasileira em funcionamento molecular de neurônios olfativos, além dos pesquisadores que ela mesma formou desde 2000, quando criou o Laboratório de Neurociência Molecular no IQ-USP. Mais recentemente ela desenvolveu um método mais eficiente para mapear a percepção dos cheiros com base numa proteína que identificou em 2005, com ajuda de Luiz Eduardo von Dannecker e Adriana Mercadante. É a Ric-8B, que praticamente só existe em neurônios olfativos – sempre associada aos receptores descobertos por Linda Buck. Depois de três anos investigando o funcionamento dessa proteína, o grupo da USP agora tem uma ideia melhor de como ela funciona. Os resultados mais recentes, publicados em julho de 2008 na Molecular and Cellular Neuroscience e parte da tese de doutorado de Daniel Kerr, mostram que a Ric-8B interage com diversas subunidades de outra proteína – a G olfativa (Golf) – até então considerada a principal responsável por ativar a cascata bioquímica que ativa os neurônios do olfato. “A Ric-8B amplifica a ação da Golf, tornando perceptível a ativação dos neurônios”, explica Bettina. Além de essencial para aumentar a sensibilidade a aromas sutis, essa amplificação também permite aos pesquisadores detectar atividade nos receptores olfativos no laboratório. Para melhorar a eficiência com que associa receptores e moléculas, ela está desenvolvendo um método engenhoso que apresentou em agosto passado no Congresso Brasileiro de Farmacologia e Terapêutica Experimental, em Águas de Lindoia, e será publicado em breve na revista Annals of the New York Academy of Sciences. Ela pretende distribuir células entre os 96 poços de uma bandeja plástica semelhante a uma forma de gelo em miniatura, onde poderá de uma só vez apresentar 96 tipos de moléculas de odor a células com um mesmo receptor ou testar a reação de receptores diferentes a um mesmo odor. Os pesquisadores adicionarão à receita uma proteína que produz uma substância fluorescente quando as células são ativadas. Bastará então pôr a placa num leitor de fluorescência para saber em que poços houve ativação. Esse método deve tornar mais rápido o trabalho

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antes muito lento que dificilmente poderia ser aplicado em ampla escala. Seria um experimento simples se fosse só isso. Como não é possível usar os próprios neurônios olfativos, nos quais não se sabe de antemão quais receptores estão presentes, Bettina teve de desenvolver uma técnica para fabricar as células experimentais: cultivar células renais humanas nas quais insere as instruções genéticas para produzir um determinado receptor olfativo. Ainda que já se tenha o conhecimento para manter e manipular essas células em laboratório, num primeiro momento foi difícil fazer com que funcionassem como neurônios. “O receptor ficava dentro da célula e não ia para a membrana, onde precisa estar para ter contato com os odores no ar”, explica a bioquímica.

Quem resolveu o problema foi o japonês Hiroaki Matsunami, contemporâneo de Bettina no laboratório de Linda Buck e hoje radicado na Universidade Duke, nos Estados Unidos. Assim como a brasileira, ele apresentou resultados recentes de seu trabalho em julho na cidade norteamericana de São Francisco, durante o Simpósio Internacional de Olfação e Paladar (cujo maior patrocinador é a Ajinomoto). Independentemente de Bettina, ele descobriu outra proteína essencial na percepção dos odores. É a proteína transportadora de receptor (RTP), que ajuda a conduzir o receptor da região em que é produzido no interior do neurônio para a superfície da célula. Em artigo publicado em agosto na revista Nature Protocols, Matsunami mostrou que basta implantá-la em

células junto com o gene que codifica um receptor para que ele migre até a superfície da célula. Bettina inseriu a RTP nas células renais. Mas, sem acrescentar a Ric-8B, que amplifica a ativação, não conseguia detectar a reação da célula experimental a moléculas de cheiro. Com o sistema completo, ela acredita que no próximo ano ajudará a tirar da orfandade parte dos receptores olfativos. “Temos a sequência genética de todos os receptores no banco de dados do Projeto Genoma Humano”, conta a pesquisadora, que pretende iniciar essa nova fase de experimentos avaliando os receptores humanos que não existem em camundongos ou cães – cerca de 20 – para ver quais substâncias eles reconhecem. Agora que já se sabe como a Ric8B funciona em células in vitro, um

Anatomia do olfato 1. Moléculas de cheiro se desprendem da flor e penetram no nariz; 2. Essas moléculas aderem às ramificações dos neurônios olfativos, que forram o fundo da cavidade nasal; 3. Cada neurônio manda uma projeção para o bulbo olfativo (em amarelo).

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Resta agora descobrir como a informação vai do bulbo a diferentes regiões do cérebro que interpretam os cheiros.

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dos próximos passos é investigar a sua função em camundongos vivos. Para isso, Bettina contratou os serviços do Centro de Desenvolvimento de Modelos Experimentais para Medicina e Biologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que deverá produzir camundongos com alteração no gene responsável por produzir a Ric-8B e verificar se, sem a proteína amplificadora, os animais mantêm a sensibilidade olfativa intacta. Faro em evolução - Identificar as mo-

léculas de odor que se encaixam em cada receptor e entender como funcionam as vias olfativas pode ajudar a esclarecer um mistério que intriga os pesquisadores da área: como a capacidade de detectar aromas se alterou ao longo da evolução das espécies. Um artigo de revisão encabeçado por Masatoshi Nei, renomado especialista em teoria evolutiva da Universidade Estadual da Pensilvânia, nos Estados Unidos, e publicado em 2008 na Nature Reviews Genetics, analisa a influência do acaso e da necessidade na evolução dos receptores de olfato e paladar. Nei mostra que seres humanos e chimpanzés têm repertórios olfativos de tamanho semelhante, que encolheram ao

longo da evolução: ambas as espécies têm cerca de 800 genes para produzir receptores olfativos, mas menos de metade deles é funcional. A outra metade perdeu a função original – são os chamados pseudogenes. Comparados ao homem, camundongos têm três vezes mais genes ativos, por volta de 1.200, além de cerca de 400 que deixaram de funcionar ao longo da evolução. Os pesquisadores que estudam a evolução do olfato acreditam que as espécies que dependem menos do faro ao longo do tempo acumularam mutações e perderam a função de certos genes. É o caso de homens e chimpanzés, que contam, para enfrentar os desafios cotidianos, com uma visão nítida, em cores e que permite enxergar em profundidade. A bióloga norte-americana Barbara Trask, do Centro Fred Hutchinson de Pesquisa sobre o Câncer, em Seattle, encontrou pistas para explicar como surgem variações na sensibilidade aos odores. Seu grupo varreu o genoma humano em busca de alterações no conjunto de genes relacionados aos receptores olfativos. Encontrou grande variação em número de cópias, que surge quando partes do material genético são duplicadas e permanecem no genoma. O gene para um determinado

receptor olfativo pode ser copiado inúmeras vezes e cada cópia sofrer modificações. O processo pode permitir que se criem novos receptores ou, ao contrário, causar tantas mudanças que o gene se torne inviável. Em artigo publicado em agosto no American Journal of Human Genetics, o grupo de Barbara conta que encontrou um número de cópias variável em 16 dos genes funcionais para receptores olfativos. Em casos extremos, as mutações em genes de receptores olfativos podem tornar pessoas insensíveis a certos odores – uma condição conhecida como anosmia. Mas quando causa mudanças menos drásticas essa variação gera diferenças em como as pessoas percebem cheiros. Desse modo os estudos genéticos talvez consigam revelar se duas pessoas que aspiram o aroma de uma mesma xícara de café ou comem um mesmo pedaço de bolo têm sensações idênticas. Como diz Bettina no livro O cheiro das coisas, publicado em 2008 pela editora Vieira & Lent, duas pessoas podem ser diferentes na maneira como cheiram o mundo. Do DNA ao cérebro - A bioquímica da USP também está interessada em mistérios genômicos. Ela tenta entender o que regula a atividade dos genes

O código dos aromas As moléculas de odor são como estrelas de pontas coloridas. Cada extremidade se conecta apenas a um receptor olfativo específico — amarelo com amarelo, vermelho com vermelho — no fundo do nariz. Estrelas multicoloridas podem, assim, se encaixar em diversos receptores, e em cada tipo de receptor podem aportar estrelas distintas, desde que pelo menos uma das pontas seja da cor adequada.

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que produzem os receptores de cheiros. Todos os neurônios olfativos têm o mesmo conjunto de genes dentro de seus núcleos, mas cada um deles só produz um tipo de receptor – em seres humanos, uma escolha de um entre 400 opções. Como cada célula escolhe qual receptor apresentar ao nariz é ainda um mistério, mas em artigo publicado em 2006 na Genome Research Bettina indica onde começar a procurar a resposta. Com os doutorandos Jussara Michaloski e Pedro Galante, ela analisou 198 genes de receptores olfativos de camundongos e mostrou que todos contêm trechos de DNA semelhantes. Para a pesquisadora, as características e a localização desses segmentos indicam que eles funcionam como alvos para as moléculas responsáveis por ligar ou desligar cada gene. Assim como interruptores para acender luzes devem ter características semelhantes para que um visitante reconheça sua função, os interruptores genéticos também precisam ter elementos em comum. Há muito mais do que genes e receptores para se chegar a um mapa completo dos cheiros no cérebro. O trabalho de Linda Buck e Richard Axel mostrou que as projeções de neurônios olfativos com receptores iguais se reúnem em nervos antes de chegar ao bulbo olfativo, uma estrutura alongada na parte anterior do cérebro. O bulbo humano, portanto, se divide em cerca de 400 regiões – os glomérulos –, cada

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uma delas ativada por um único tipo de receptor de odor. O pôster produzido pela Fundação Nobel em 2004 traz a ilustração de uma cabeça em que se vê o sistema nervoso olfativo, mostrando como as inúmeras projeções que formam um carpete no nariz se unem em nervos antes de chegar ao bulbo olfativo. Mas a imagem não mostra o que acontece depois do bulbo, como se o trajeto acabasse ali. “Para descobrir como a informação chega ao cérebro seria necessário acompanhar uma substância que passe de um neurônio para outro, mas não há ainda um método bom para fazer isso”, conta Bettina. A ganhadora do Prêmio Nobel, agora radicada no Centro Fred Hutchinson de Pesquisa sobre o Câncer, está justamente trabalhando em desenvolver essa técnica. O que se sabe é que os neurônios olfativos acabam ativando regiões diferentes do cérebro como o córtex olfativo, responsável por identificar os odores, o hipotálamo, que influencia comportamentos como apetite e impulso sexual, a amígdala, envolvida em emoções, e o hipocampo, importante para a formação de memórias olfativas. É essa anatomia complexa que faz com que um perfume desperte lembranças da infância, que o aroma de um bolo saindo do forno atice o apetite e que mulheres que vivem juntas passem a apresentar ciclos menstruais sincronizados sem que se deem conta dos cheiros hormonais que povoam o ar. ■

> Artigos científicos 1. KERR, D.S. et al. Ric-8B interacts with Gαolf and Gγ13 and co-localizes with Gαolf, Gβ1 and Gγ13 in the cilia of olfactory sensory neurons. Molecular and Cellular Neuroscience. v. 38, n. 3, p. 341-348. jul. 2008. 2. VON DANNECKER, L.E.C.et al. Ric-8B promotes functional expression of odorant receptors. PNAS. v. 103, n. 24, p. 9.3109.314. jun. 2006. 3. MALNIC, B. Searching for the ligands of odorant receptors. Molecular Neurobiology. v. 35, n. 2, p. 175-181. abr. 2007. 4. MALNIC, B. et al. Combinatorial receptor codes for odors. Cell. v. 96, n. 5, p. 713-723. mar. 1999.

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ESTRATÉGIAS MUNDO

Pesquisadores de países do Oriente Médio e do Norte da África poderão estreitar colaborações com redes científicas da Europa graças a um novo canal de comunicação de alta capacidade inaugurado no mês passado. O projeto Eumedconnect2 custou US$ 10 milhões, divididos entre a Comissão Europeia e um consórcio de países que incluem Argélia, Egito, Jordânia, Marrocos, Síria e Tunísia. O objetivo da iniciativa é tornar mais veloz a infraestrutura digital das comunidades das áreas médica e científica desses países, conectando os pesquisadores árabes à Rede de Comunicação Pan-Europeia de Pesquisa e Educação (Geant2). O sistema promete criar aplicações em diversos campos, como a educação a distância; a pesquisa ambiental, oferecendo, por exemplo, acesso remoto a bancos de dados de observação do clima; e projetos na área da saúde, com a possibilidade de intercâmbio de informações sobre pacientes através da telemedicina. “Esperamos acelerar processos de transferência de tecnologia para o nosso país”, disse ao jornal The Jordan Times o ministro da Educação Superior da Jordânia, Omar Shdeifat.

ATRAVÉS DO MEDITERRÂNEO

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> Mais espaço para a vida humana? O comitê consultivo dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), dos Estados Unidos, mergulhou numa polêmica ao analisar uma nova norma para apresentação de projetos – as propostas de estudos que envolvam vidas humanas poderiam ter até 18 páginas, uma exceção ao limite de 12 páginas estabelecido no ano passado. “Há um pedido eloquente dos nossos avaliadores para abrir espaço a informações adicionais, principalmente nos projetos que envolvem estudos clínicos”, disse à revista Nature Raynard Kington, diretor dos institutos. Segundo ele, projetos envolvendo seres humanos merecem um 22

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espaço maior para que os pesquisadores possam expor estratégias e riscos, além de esmiuçar a metodologia escolhida. Está nas mãos de Kington decidir a mudança, mas a proposta teve a oposição de boa parte do comitê consultivo – um dos temores é que a pesquisa básica saia prejudicada. “É uma péssima ideia”, disse Thomas Kelly, diretor do Sloan-Kettering Institute, em Nova York. “Trata-se de um convite para trapacear. Basta dizer que a pesquisa envolve pessoas para ganhar mais 50% de espaço.” A geneticista Mary-Claire King, da Universidade de Washington, em Seattle, argumentou que projetos envolvendo pessoas não requerem mais espaço do que aqueles sobre “moscas, vermes, ratos, bactérias ou leveduras”.

> Depois dos escândalos Universidades e instituições de auxílio à pesquisa da Áustria lançaram a Agência para a Integridade Científica, em resposta a uma onda de escândalos envolvendo condutas impróprias de pesquisadores no país. As denúncias, feitas em caráter confidencial, serão avaliadas por um comitê composto

por seis cientistas estrangeiros e um assessor jurídico austríaco. Segundo a revista Nature, a decisão de recorrer a estrangeiros deve-se ao tamanho restrito da comunidade científica da Áustria e ao fato de a maioria dos pesquisadores trabalhar em rede, o que dificultaria a isenção do julgamento. Os escândalos recentes envolveram um médico da Universidade de Vienna, que fabricou dados

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ILIUSTRAÇÕES LAURABEATRIZ

em um artigo científico sobre danos ao DNA causados pelos campos magnéticos de telefones celulares, e outro da Universidade de Innsbruck, que fez uma pesquisa sobre o uso de células-tronco contra a incontinência urinária sem sequer avisar as cobaias humanas sobre a natureza do trabalho. A agência deve começar a funcionar no início de 2009.

> Um Nobel na equipe de Obama O presidente eleito dos Estados Unidos, Barack Obama, designou o cientista Steven Chu, ganhador do Nobel de Física de 1997, para o cargo de secretário de Energia. Chu, de 60 anos, é filho de imigrantes chineses, estudou na Universidade Stanford e ganhou o Nobel por seu trabalho sobre “os métodos de esfriamento e captura de átomos com laser”. Um defensor do controle das emissões de gases estufa, dirige desde 2004 o Laboratório Nacional Lawrence Berkeley, na Califórnia, que trabalha no desenvolvimento de tecnologias na área dos biocombustíveis e da energia solar. Chu será o responsável pela manutenção das armas nucleares e a modernização do sistema de distribuição de energia elétrica. Também terá um papel central na definição da pauta de pesquisa e desenvolvimento de energias alternativas. “Para controlar seu destino, os Estados Unidos devem desenvolver novas formas de energia e novas maneiras de consumir essa energia”, disse Obama, ao anunciar o nome de Chu.

A Fundação Sales, entidade fiMODELO DE lantrópica que apoia a pesquisa FILANTROPIA contra o câncer na Argentina, comemora o sucesso de um modelo de arrecadação de recursos baseado em pequenas doações obtidas de cidadãos comuns. No mês passado, a fundação, que tem 35 anos, atingiu a inédita marca de 50 mil doadores, segundo reportagem do jornal La Nación. A ideia de arrecadar somas modestas cobradas no cartão de crédito foi concebida há 17 anos do cientista argentino César Milstein, vencedor do Nobel de Medicina de 1984, que durante muito tempo foi um dos principais divulgadores da iniciativa. A maioria dos doadores oferece quantias que não ultrapassam 10 pesos. Mesmo assim, a fundação já arrecadou US$ 7 milhões desde 1991, investidos em bolsas de estudo, compra de equipamentos de pesquisa, despesas com patentes e custeio de viagens a congressos científicos. Entre as pesquisas financiadas pela fundação, destacam-se o desenvolvimento de uma vacina contra o melanoma, que já foi testada em seres humanos e agora será avaliada numa população maior, e uma investigação sobre câncer de mama em mulheres depois da menopausa.

> O genocídio estimado Um estudo feito por pesquisadores da Escola de Saúde Pública da Universidade Harvard estimou a perda de vidas humanas na África do Sul gerada pela estratégia do ex-presidente Thabo Mbeki de negar a epidemia de Aids e de privar as pessoas contaminadas de tratamento adequado. Usando modelos matemáticos abastecidos com dados clínicos, os pesquisadores compararam o número de pessoas

e de mulheres grávidas que receberam antirretrovirais entre 2000 e 2005 com o contingente que deveria ter tido assistência no mesmo período. O artigo foi publicado no Journal of Acquired Immune Deficiency Syndromes. A conclusão é que 330 mil pessoas morreram por não tomarem remédio. E que 35 mil bebês herdaram o vírus de suas mães, embora isso pudesse ser evitado. Empossado em setembro, o novo presidente da África do Sul, Kgalema Motlanthe, promete ampliar o acesso a medicamentos.

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E-ELT

> Canadá recruta Stephen Hawking Às vésperas de se aposentar do posto de professor lucasiano de matemática da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, o astrofísico Stephen Hawking, 67 anos, aceitou o posto de pesquisador visitante do Perimeter Institute for Theoretical Physics, na cidade canadense de Waterloo. Segundo o jornal The New York Times, o convite partiu de Neil Turok, atual diretor do instituto, que foi colega de Hawking em Cambridge. Vítima de paralisia causada por esclerose lateral amiotrófica, Hawking, autor do best-seller Uma breve história do tempo, manterá o posto de professor emérito em Cambridge e fará viagens regulares ao Canadá a partir de meados de 2009. Hawking ocupava desde 1979 a cátedra de professor lucasiano, criada em 1663 por Henry Lucas, membro

O European Extremely Large Telescope: custo de € 1 bilhão

do Parlamento britânico, e ocupada por Isaac Newton entre 1669 e 1702. O Perimeter Institute foi fundado em 1999 graças a uma dotação de US$ 100 milhões feita por Mike Lazaridis, criador do celular multifuncional BlackBerry.

GEORGE WASHINGTON UNIVERSITY

> Floresta de PowerPoints Os PowerPoints de milhares de palestras de cientistas de várias nacionalidades, entre elas as de sete vencedores do Nobel, foram disponibilizados pela Biblioteca Alexandrina, no Egito. O objetivo do projeto Supercourse (www. bibalex.org/supercourse) é ampliar o acesso à

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O projeto Astronet, criado em A LISTA DE 2005 para articular as estratégias PRIORIDADES e os investimentos em astronomia dos países europeus, divulgou seu roteiro de prioridades para os próximos 20 anos. Segundo o documento, a próxima geração de telescópios indispensável para fazer avançar o conhecimento exigirá recursos 20% superiores aos previstos hoje. O roteiro, feito por cientistas e entidades de 28 países, recomenda que € 2 bilhões sejam investidos nas próximas duas décadas e estabelece projetos prioritários. O primeiro da lista é o European Extremely Large Telescope (EELT), um telescópio com um espelho de 42 metros capaz de observar o Universo com uma qualidade de imagem superior até a do Hubble. Em segundo lugar vem o Square Kilometre Array (SKA), o maior radiotelescópio do mundo – uma floresta de numerosas antenas de 15 metros de diâmetro distribuída numa área de um quilômetro quadrado. “Assegurar os fundos será a parte mais difícil do nosso trabalho”, disse à revista Nature Jean-Marie Hameury, coordenador do projeto.

informação científica em países em desenvolvimento. O repositório de palestras abrange quatro campos do conhecimento – medicina, engenharia, meio ambiente e agricultura – e é alimentado

por uma comunidade de 55 mil cientistas de 174 países. Atualmente a coleção dispõe de 3,5 mil PowerPoints. A intenção é elevar o número de palestras para 100 mil em um ano.

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ESTRATÉGIAS BRASIL

para a Faperj A Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (Faperj) poderá financiar pesquisas com células-tronco embrionárias, o que era vedado, por uma lei estadual, havia seis anos. A Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro aprovou um projeto mudando a redação da lei de 2002, que dispõe sobre as áreas de atuação da Faperj. Um dos dispositivos proibia a fundação de “financiar pesquisas ou estudos de qualquer natureza que tenha o embrião humano vivo como objeto de experiência, bem como a clonagem de tecido humano”. A restrição foi derrubada e acrescentou-se uma emenda que inclui, no rol das atribuições, o fomento à pesquisa em prol da manutenção da vida humana. O projeto foi uma iniciativa do governador Sérgio Cabral, na esteira da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que julgou constitucional o uso de embriões descartados em clínicas de fertilização em estudos sobre o potencial de células-tronco.

(IPG), um prêmio para reconhecer as melhores teses de doutorado em física feitas no país. A primeira edição do Prêmio PG Capes de Física será entregue em junho de 2009, contemplando as teses desenvolvidas em 2008. Os trabalhos serão julgados com base nos critérios do prêmio Capes de teses, que todos os anos seleciona as melhores teses em três grandes áreas do conhecimento. O valor da premiação será de R$ 15 mil. O regulamento será divulgado pela Capes e pelo Instituto Paulo Gontijo, uma entidade de promoção e divulgação da ciência.

Ilustrado com reproduções de 21 obras de Lasar Segall, um dos grandes nomes da arte moderna brasileira, o Relatório de atividades 2007 da FAPESP foi publicado no início de dezembro. O documento reúne os principais números que representam a atuação da Fundação no fomento a pesquisa. As reproduções utilizadas no relatório foram reunidas numa exposição na sede da FAPESP, que esteve aberta entre os dias 9 e 29 de dezembro. De acordo com o livro, a FAPESP registrou em 2007, ano em que completou 45 anos, mais um recorde na contratação de novos projetos de pesquisa – 10.587 – e no desembolso com pesquisa, R$ 549,5 milhões. Nos últimos dois exercícios a expansão do número de novos projetos contratados foi de 28,4%. Esse desempenho resultou, mais uma vez, do crescimento da receita tributária do estado de São Paulo e, consequentemente, do repasse de 1% feito à Fundação, conforme estabelecido na Constituição estadual. O repasse totalizou R$ 519,75 milhões, 12,14% acima do verificado em 2006, e respondeu por 82,18% da receita da FAPESP no exercício.

SEGALL ILUSTRA RELATÓRIO

> Sinal verde

REPRODUÇÃO DO QUADRO ETERNOS CAMINHANTES, DE LASAR SEGALL, 1919

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> Capes cria prêmio para teses de física A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) criou, em parceria com o Instituto Paulo Gontijo PESQUISA FAPESP 155

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O Instituto Butantan vai iniciar os testes clínicos no país de uma vacina contra a leishmaniose, doença que afeta dois milhões de pessoas por ano em todo o mundo e é transmitida para seres humanos principalmente por insetos que picam cães infectados. O primeiro ensaio será feito em cães, com uma vacina produzida nos Estados Unidos pelo Infectious Disease Research Institute (Idri), parceiro do Butantan na iniciativa. Financiados pelo BNDES, pela FAPESP e pelo Ministério da Saúde, os testes serão realizados em áreas endêmicas da A sede do Butantan: nova fábrica doença, incluindo regiões de São Paulo, e devem estar concluídos dentro de um ano. “A ideia é avaliar metodologias mais modernas para a imunizaas liberações comerciais ção de cães. A vacina deverá ter eficácia acima de 70%”, disconcedidas no Brasil até se o professor Isaias Raw, presidente da Fundação Butantan. agora envolviam produtos O imunizante deverá ser produzido numa nova fábrica que em uso em outros países há o Instituto Butantan irá construir em São Paulo, num investimais de dez anos. “A partir de 2009 a comissão passa mento que deve chegar a R$ 18 milhões. A ideia é aproveitar a receber solicitações de as campanhas de vacinação contra a raiva para imunizar 30 milhões de cães também contra a leishmaniose. organismos que ainda não

TATIANA VILLA

VACINA CONTRA LEISHMANIOSE

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> Desafios da CTNBio Responsável por avaliar pedidos de pesquisas e de comercialização de transgênicos, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) terá novos desafios em 2009. De acordo com Walter Colli, presidente da comissão,

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foram analisados. Isso vai exigir muito mais atenção e precaução nos trabalhos”, disse Colli. Em 2008 a comissão aprovou oito pedidos de liberação comercial, diante de três em 2007. Também foram aprovados 122 pedidos de pesquisas, ante oito autorizações de 2007. O tempo médio de análise dos pedidos de sementes está diminuindo: de nove para dois anos. Já o prazo para pedidos para liberação de vacinas variou de 13 a 8 meses. “A polêmica é menor quando se trata desse tipo de medicamento”, afirmou Colli.

> Edifício sustentável A Universidade de São Paulo (USP) começa a construir um prédio em seu campus da Cidade Universitária que abrigará pesquisas multidisciplinares relacionadas às mudanças climáticas globais. Resultado de uma parceria entre o Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) e a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), o Centro de Estudos de Clima

e Ambientes Sustentáveis (Cecas) acolherá a Rede Temática sobre Mudanças Globais, o Centro de Ciências da Terra e do Ambiente e o Laboratório de Modelos para a Sustentabilidade das Construções. Uma curiosidade é que o prédio, com três pavimentos e 6 mil metros quadrados, será ambientalmente sustentável: estão previstas, entre outras tecnologias, o controle da radiação solar, geração de energia elétrica por células fotovoltaicas e o uso da água da chuva.

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ILUSTRAÇÕES LAURABEATRIZ

de Recursos Humanos foi para o Instituto Terra, do fotógrafo Sebastião Salgado. A Escola Municipal de Ensino Fundamental 25 de Julho, em Campo Bom (RS), foi a ganhadora na categoria Meio Ambiente nas Escolas.

> A reinvenção do horto

lançamento O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) iniciou os testes mecânicos em modelos dos dois futuros satélites sino-brasileiros de recursos terrestres (Cbers), que devem ser lançados, respectivamente, em 2010 e 2013. Os testes contemplam a simulação com ensaios vibratórios e acústicos das condições impostas à estrutura do satélite durante seu lançamento. O projeto, fabricação e testes da estrutura mecânica dos satélites é de responsabilidade do Brasil, que divide igualmente com a China o desenvolvimento dos Cbers-3 e 4. Os dois satélites disporão de quatro câmeras com desempenhos superiores aos dos três antecessores: os satélites Cbers-1, 2 e 2B.

e prêmio de R$ 20 mil. O vencedor na categoria Negócios em Conservação foi o Programa de Adequação Ambiental de Propriedades Rurais, do Laboratório de Ecologia e Restauração Florestal (Lerf), da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/USP). Um dos responsáveis pelo Lerf é o professor Ricardo Ribeiro Rodrigues, coordenador do Programa Biota-FAPESP. A vencedora na categoria Conquista Individual foi a antropóloga Mary Allegretti, pela formulação do conceito de reservas extrativistas. A categoria Ciência e Formação

Foi reinaugurado em Piracicaba no dia 14 de novembro um horto com 200 espécies de plantas que tem um significado histórico para a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo (USP). Criado em 1991 para dar suporte a pesquisas pelo professor Walter Radamés Accorsi (1915-2006) e abandonado havia dez anos, o local foi rebatizado em sua homenagem como Horto de Plantas Medicinais e Aromáticas Dr. Walter Radamés Accorsi. No auge de sua atividade, disponibilizava material para vários professores e forneceu mudas para escolas,

ESALQ

> Simulação do

instituições e feiras. Além da reabertura do horto, também foi lançada uma cartilha educativa sobre cem espécies plantadas lá, entre nativas (Mata Atlântica, Cerrado, Amazônia e Caatinga, entre outras) e exóticas (européias, asiáticas, africanas, centro e norte-americanas). Mestre de várias gerações de agrônomos da Esalq e um entusiasta da fitoterapia, Accorsi entrou na instituição como aluno, nos anos 1920, e continuou frequentando a instituição até o fim da vida, mesmo depois da aposentadoria em 1982. A reforma do horto foi iniciativa do Grupo de Estudos Walter Accorsi, criado pelo aluno Maurício Meira Guimarães e coordenado pelo professor Lindolpho Capellari Júnior, que conta com 18 participantes de quatro cursos da Esalq. O grupo trabalha no levantamento florístico de espécies medicinais da Mata Atlântica. As atividades do horto não se limitarão à pesquisa. No início de 2009 será lançado o projeto que prevê a instalação de hortos em escolas do ensino fundamental.

> Conservação ambiental A entidade ambientalista Conservação Internacional e a Ford anunciaram os ganhadores da 13ª edição do Prêmio Ford de Conservação Ambiental. Cada um recebeu um troféu

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POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

INOVAÇÃO

Esforço pioneiro Relatório internacional reconhece trabalho da agência Inova Unicamp na promoção de parcerias com empresas, governo e sociedade

Fabrício Marques | ilustrações Marcos Garuti

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m recente relatório da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que reúne 30 dos países mais industrializados do mundo, rendeu um reconhecimento insuspeito ao esforço da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) de levar à sociedade os avanços do conhecimento obtidos por seus pesquisadores. O relatório OECD Science, Technology and Industry Outlook 2008 analisou a situação da pesquisa, desenvolvimento e inovação em diversos países e, no capítulo sobre o Brasil, deu destaque ao trabalho da Agência de Inovação Inova Unicamp, por patentear um número crescente de invenções feitas na instituição e aumentar em 60% os contratos de licenciamentos de tecnologia para empresas, entre os anos de 2004 e 2005. Dados mais recentes mostram que houve uma média de oito licenciamentos para empresas ao ano entre 2004 e 2007. A agência é citada como exemplo do crescimento do número de patentes acadêmicas no país. “A menção nos dá um grande orgulho, porque evidencia o sucesso da inserção internacional de nossas atividades”, diz Roberto de Alencar Lotufo, diretor executivo da agência e professor da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação da Unicamp. A Inova Unicamp foi criada em 2003 com a ambição de se tornar o núcleo de inovação tecnológica da universidade. Seu objetivo é promover e apoiar parcerias da Unicamp com empresas, governos e entidades da sociedade. Sua principal vocação vincula-se à gestão da propriedade intelectual. Ela atua com os

pesquisadores da Unicamp, ajudando-os a identificar se produtos provenientes de suas descobertas científicas têm potencial comercial, além de orientá-los nos processos de patenteamento e licenciamento de inovações. A agência também mantém uma rede de relacionamentos com empresas e órgãos governamentais, por meio da qual mostra o potencial das patentes para exploração comercial. Esse é o aspecto da atuação da Inova Unicamp elogiado pela OCDE. Esse esforço, não por acaso, colocou a Unicamp no topo do ranking de patentes pedidas no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) entre os anos de 1999 e 2003 – atualmente acumula mais de 500 patentes vigentes depositadas. O dado, embora altamente positivo, revela uma inversão de papéis no Brasil – nos países desenvolvidos, o topo do ranking de patentes é ocupado por empresas, não por instituições acadêmicas (ver Pesquisa FAPESP nº 123). Nos últimos quatro anos, a Inova Unicamp celebrou 40 contratos de licenciamento para empresas, ante apenas 6 nos 15 anos que antecederam a criação da agência. Entre os casos de sucesso destaca-se, por exemplo, um teste para detectar em recém-nascidos a causa de surdez de origem genética. A tecnologia, desenvolvida no Laboratório de Genética Humana do Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética, foi licenciada em 2004 para a empresa de diagnósticos DLE e se consolidou no mercado no ano seguinte, atingindo a marca de 30 testes realizados ao mês. Outro exemplo é um medicamento fitoterápico que atenua os sintomas da menopausa, desenvolvido PESQUISA FAPESP 155

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a partir de isoflavonas, substâncias com estrutura semelhante à do estrogênio, extraídas da soja. Desenvolvido na Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA), desde o ano passado o remédio é comercializado sob licença pela Steviafarma, uma empresa farmacêutica nacional. Um novo exame parasitológico de fezes, o TF-Test, mais sensível que os existentes, foi licenciado para o laboratório Imunoassay. O kit foi desenvolvido por pesquisadores do Instituto de Computação, do Instituto de Biologia e da Faculdade de Ciências Médicas, em parceria com uma professora aposentada da Universidade de São Paulo (USP). E, até meados de 2009, vão chegar ao mercado produtos feitos com um material composto de borracha natural e argila para ser empregado em produtos de vários segmentos industriais. A tecnologia permite que a argila seja finamente dividida, chegando a uma espessura nanométrica, que equivale a 100 mil vezes menos a espessura de um fio de cabelo. A patente do produto é de autoria do pesquisador Fernando Galembeck, do Instituto de Química, e de sua equipe, e a titularidade é partilhada entre a Unicamp e a empresa Orbys Desenvolvimento de Tecnologia de Materiais, responsável pela produção. Inventores - Um exemplo da mudança de cultura é visível na Faculdade de Ciências Médicas. Antes da criação da Inova Unicamp, contavam-se na unidade quatro pesquisadores que se dedicavam a criar produtos inovadores, mas o trabalho deles não resultara em nenhum licenciamento. De 2003 até hoje o número de inventores chegou a 22 e os contratos de licenciamento 30

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de patentes já são quatro. “Em cada licenciamento fechado comemoramos a chance de ter mais um produto ou processo que será disponibilizado para a sociedade”, diz Roberto Lotufo. “Mas esse sistema é custoso e demorado. A empresa precisa investir por vários anos até que a inovação seja concretizada.” Em 2004, um ano após a criação da agência, foi aprovada pelo Congresso Nacional a Lei de Inovação, que, entre várias novidades, determinou que todas as instituições de ciência e tecnologia implantassem núcleos incumbidos de cuidar de suas políticas de inovação. A dianteira da Unicamp nesse campo tornou-a uma referência para outras instituições, notadamente as universidades federais. “Ao criar a agência, a direção da Unicamp teve a lucidez de perceber que aquele era o momento de estimular uma política acadêmica em prol da inovação guiada pela ciência. E isso a colocou numa posição pioneira”, diz Oswaldo Massambani, diretor da Agência de Inovação da USP, que, criada em 2005, já propiciou a obtenção de mais de 200 patentes em 2007 e 2008 – mais do que o número de patentes depositadas nos últimos dois anos pela Unicamp. Com os bons resultados, a Inova Unicamp foi contratada pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), agência do Ministério da Ciência e Tecnologia, para ministrar cursos de treinamento para outras universidades in-

teressadas em criar núcleos de inovação tecnológica, no âmbito do projeto Inova NIT. “Com base nos nossos resultados, montamos um treinamento para ajudar as instituições a criarem seus núcleos”, diz Patricia de Toledo, gerente do projeto. “Nossos cursos ajudam tanto a dar os primeiros passos como a melhorar competências”, afirmou. O projeto já capacitou mais de 700 profissionais de 177 instituições de ciência e tecnologia do país. O carro-chefe é o curso de estruturação de núcleos de inovação tecnológica (NIT), que já teve nove edições. Uma das metas agora é criar cursos em formato a distância, para ampliar o seu alcance. Para a execução deste programa de capacitação o Inova NIT estabeleceu uma parceria com o Fórum Nacional de Gestores de Inovação e Transferência de Tecnologia (Fortec). Em abril de 2009 a Unicamp sediará o terceiro encontro do fórum, cujo tema será os cinco anos da Lei de Inovação. A agência também articula parcerias com prefeituras, dentro do projeto Inova nos Municípios, oferecendo resultados de pesquisas acadêmicas realizadas na universidade, na forma de cursos, palestras ou consultoria. Uma das formas de fazer a ponte entre os pesquisadores e as cidades é o Caderno de Propostas para Projetos, um cadastro de propostas feitas por professores de todas as áreas da Unicamp, disponíveis para estabelecer convênios com municípios. O caderno reúne 110 propostas de pro-

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jetos em temas que vão do agronegócio, passando pela cultura, a educação, emprego e renda, entre outros. A escassez de profissionais capazes de realizar prospecções e de avaliar o mercado potencial de tecnologias desenvolvidas em universidades inspirou o Programa de Investigação Tecnológica, que capacitou 63 alunos e analisou 83 tecnologias desde 2005. A Inova Unicamp também dá suporte para que ideias de universitários e pós-graduandos na área de tecnologia se transformem em projetos de negócios. No projeto de pré-incubação da agência, alunos formam grupos de trabalho e submetem suas ideias a processos de escolha. Os selecionados contam com a orientação de mentores acadêmicos e mentores do mercado para se desenvolverem em planos de negócios. Por fim, a agência atualmente abriga a incubadora tecnológica da Unicamp, a Incamp, que graduou 17 empresas desde 2005.

Mas por que a Unicamp teve um sucesso pioneiro em relação a outras instituições na criação de um núcleo de inovação tecnológica? Contou a favor, é certo, a interação que a universidade estabeleceu desde seus primórdios com o setor privado, como a parceria com a Telebras, nos anos 1970. Remonta aos anos 1980 o esforço da universidade para alinhavar uma política de propriedade intelectual e buscar estratégias de transferência de tecnologia. A Unicamp foi uma das primeiras universidades do Brasil a criar uma estrutura de proteção de tecnologia. Foram criados a Comissão Permanente de Propriedade Industrial (CPPI), em 1984, em seguida o Escri-

Formação de alunos - Apesar do con-

junto de resultados favoráveis, Roberto Lotufo afirma que a Inova Unicamp ainda está em fase de aprendizagem. “Buscamos a consolidação das nossas atividades, mas não dá para dizer que já saibamos com certeza qual é o melhor caminho a seguir”, afirmou. De acordo com ele, o retorno financeiro das patentes e licenciamentos obtidos é um aspecto secundário no trabalho da agência. “O sentido de licenciar as tecnologias é colocá-las à disposição da sociedade e criar oportunidades para que a universidade faça pesquisas melhores, capazes de estimular os pesquisadores e reforçar a formação dos alunos. Queremos que nossos estudantes sejam treinados na fronteira do conhecimento e se familiarizem com os desafios da sociedade”, diz Lotufo. A ideia de que a universidade conseguirá financiar suas atividades com royalties de patentes não encontra respaldo na realidade, segundo o diretor da agência. A arrecadação anual da Unicamp com royalties de patentes licenciadas gira entre R$ 200 mil e R$ 300 mil – uma pequena porcentagem no orçamento da instituição. Mas a agência vem cumprindo a meta de arrecadar mais do que custa à Unicamp, tornando suas atividades sustentáveis.

O esforço para aproximar pesquisadores e empresas respeita o caráter acadêmico da universidade. As unidades com maior número de licenciamentos têm programas de pós-graduação bem avaliados pela Capes

tório de Transferência de Tecnologia (ETT), em 1990. Mais tarde, em 1998, veio o Escritório de Difusão e Serviços Tecnológicos (Edistec). Estes escritórios nasceram com o objetivo de estimular parcerias com empresas e órgãos do governo e buscar aplicações práticas para o conhecimento científico. Diversas unidades, principalmente o Instituto de Química, responsável por mais de 40% das patentes da Unicamp, ajudaram a consolidar essa tradição. “Além de concentrar pesquisadores de primeira linha, essas unidades têm uma visão muito sinérgica do relacionamento universidade-empresa”, afirma Roberto Lotufo. O diretor da agência arrisca outras causas para o sucesso. “O apoio decisivo de sucessivos reitores foi fundamental para a agência se consolidar. Não se consegue fazer esse tipo de trabalho sem apoio da organização da universidade”, afirma. Outro diferencial, segundo ele, é a existência de uma fundação única de apoio à pesquisa dentro da universidade, a Funcamp. “É comum que os esforços se dispersem quando existem várias fundações como essa dentro de uma universidade, o que acontece com frequência”, afirma. Lotufo ressalva que o esforço para aproximar a universidade da sociedade respeita o caráter acadêmico da universidade. “Tudo é feito com extremo cuidado, pois a qualidade da pesquisa acadêmica é a base de tudo. As unidades da Unicamp com maior número de licenciamentos têm as notas mais elevadas na avaliação da Capes”, afirmou. Uma das principais metas para 2009 é aumentar ainda mais a capacidade de proteção e comercialização de tecnologias. Para tanto, a Inova Unicamp acaba de lançar um projeto financiado pela Finep denominado Pró-NIT SP, que envolve sete instituições paulistas: as três universidades estaduais, as universidades federais de São Paulo (Unifesp) e de São Carlos (UFSCar), o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) e o Centro Técnico Aerospacial (CTA). O objetivo do projeto é definir uma metodologia de análise e de procedimentos padronizados para as três principais fases do processo de comercialização: a comunicação da invenção, o depósito da patente e sua negociação e licenciamento. ■ PESQUISA FAPESP 155

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> ASTROFÍSICA

O céu é o limite

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ma astrofísica brasileira radicada nos Estados Unidos foi um dos ganhadores do Presidential Early Career Award for Scientists and Engineers (Pecase), um disputado prêmio concedido a jovens pesquisadores nos Estados Unidos. A paulistana Merav Opher, de 38 anos, esteve na Casa Branca, sede do governo norte-americano, no dia 19 de dezembro, para receber o prêmio das mãos do presidente George W. Bush, ao lado de outros 11 pesquisadores de vários campos do conhecimento. Trata-se de um prêmio bastante competitivo, criado em 1996 pelo então presidente Bill Clinton para reconhecer e estimular cientistas e engenheiros com potencial de liderança em fronteiras do conhecimento científico. “Foi uma grande surpresa porque pouquíssimos pesquisadores de física espacial já ganharam esse prêmio”, disse Merav, que entre 1993 e 1998 fez doutorado em astronomia na Universidade de São Paulo (USP) como bolsista da FAPESP. A conquista também chama a atenção porque não há muitas mulheres trabalhando com esta área da física. A especialidade de Merav Opher é o cálculo do fluxo de partículas e dos campos magnéticos nas fronteiras do Sistema Solar. Professora assistente da Universidade George Mason, instituição pública no estado da Virgínia, ela se dedicou nos últimos anos a estudar a heliopausa, uma espécie de bolha que contém o Sol e os planetas do Sistema Solar e funciona como um escudo que impede a invasão de raios cósmicos galácticos (ver Pesquisa FAPESP nº 137). Milhões de quilômetros além de Plutão, a heliopausa choca-se contra uma gigantesca nuvem interestelar de gás e poeira em movimento que cruza seu caminho. Como resultado, esse choque faz a bolha assumir uma forma distorcida, semelhante à dos cometas que viajam contra o vento solar, com um nariz, à frente, seguido de uma longa cauda. Em parceria com Edward Stone, do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech), Merav

A Via Láctea, vista do Observatório Cerro Tololo, no Chile

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Brasileira ganha prêmio concedido pelo presidente dos EUA a futuros líderes de pesquisa

meus pais não sigam a religião, me colocaram numa escola religiosa para que eu aprendesse bem o hebraico”, afirma. Graduou-se em física na USP entre 1989 e 1992 e, logo em seguida, fez doutorado no IAG, orientada pelo próprio pai. Chegou a iniciar um pós-doutorado, mas concluiu que era a hora de deixar o país. “A formação que recebi no Brasil foi excelente, mas senti que precisava de mais contato com a observação e os Estados Unidos são o melhor lugar para fazer isso”, afirma. Foi ao Laboratório de Propulsão a Jato da agência espacial norteamericana (Nasa) e procurou a física Paulett Liewer, que é referência

GEORGE MASON UNIVERSITY CREATIVE SERVICES

Opher publicou em maio de 2007 na revista Science um mapa do nariz da heliopausa, analisando como o meio interestelar a distorce. No trabalho, ela usou modelos computacionais para explicar dados captados há quatro anos pelas sondas Voyager, lançadas nos anos 1970 pela Nasa e que hoje se encontram além da heliopausa. O modelo explicou que a bolha e a zona de choque eram amassadas pelo campo magnético fora do Sistema Solar. E que o hemisfério sul é puxado para dentro em relação ao hemisfério norte, graças a este campo magnético. Foi o estudo da Science que chamou a atenção da comunidade científica ao trabalho da astrofísica. No ano passado, ela já recebera uma bolsa no valor de US$ 950 mil da National Science Foundation (NSF), destinada a estimular a ligação da pesquisa e da educação sob a liderança de jovens pesquisadores. Desse programa saem os indicados para o Presidencial Award. A pesquisadora se interessou pela física espacial por influência do pai, o físico Reuven Opher, que é professor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG), da USP. E não foi a única da família a trilhar carreira acadêmica: sua irmã gêmea, Michal Lipson, hoje é professora da Universidade Cornell, nos Estados Unidos. Suas linhas de pesquisa envolvem as áreas de fotônica e nanotecnologia.

NOAO/NSF

Orientada pelo pai - Merav cursou

o ensino fundamental e médio numa tradicional escola religiosa judaica de São Paulo, o Colégio Iavne. “Embora

Merav: fronteiras do Sistema Solar

no estudo das interações dos ventos solares no meio interestelar. “Ela me contratou na hora”, recorda-se. Entre 2001 e 2004, fez pós-doutorado no Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech), ao qual o laboratório da Nasa é vinculado. Já interessada em usar ferramentas computacionais para explicar dados de observação, foi pedir ajuda a Tamas Gombosi, professor da Universidade de Michigan, que desenvolvera um programa capaz de simular em três dimensões a interação entre campos magnéticos e partículas eletricamente carregadas. O esforço lhe custou várias viagens da Califórnia, na costa sudoeste, até Michigan, na região dos Grandes Lagos, próxima ao Canadá, para se encontrar com Gombosi. Quando já havia aprendido a lidar com os códigos do programa, pediu para trabalhar com Edward Stone, do Caltech, que é o chefe da missão Voyager. Merav Opher não perdeu o contato com a comunidade acadêmica do Brasil. Na Universidade George Mason já trabalhou com duas bolsistas brasileiras, Aline Vidotto, do IAG-USP, e Cristiane Loesch de Souza Costa, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). “Foram colaborações muito boas. A formação dos brasileiros não deixa nada a desejar à de outros países e não entendo por que os nossos pesquisadores às vezes se sentem intimidados quando vêm trabalhar nos Estados Unidos”, afirma a astrofísica, que se diz aberta a receber novos bolsistas do país. ■

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uma decisão inédita, o governo brasileiro aceitou estipular metas para reduzir o desmatamento – que é responsável pela metade das emissões de gases de efeito estufa do país. Tomando como base a média anual de desmatamento na Amazônia entre os anos de 1996 e 2005, que foi de 19 mil quilômetros quadrados (km²), o Plano Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC) comprometeu-se com uma redução de 40% entre 2006 e 2009. Entre 2010 e 2013, a meta de redução é de 30% em relação ao quadriênio anterior. E, entre 2014 e 2017, a queda almejada é de outros 30% em relação à registrada nos quatro anos anteriores. Caso isso seja cumprido, o desmatamento cairá 72% até 2017, atingindo 5 mil km² por ano. Isso equivale a 4,8 bilhões de toneladas de dióxido de carbono (CO2) não lançados na atmosfera. “É mais do que o esforço de todos os países desenvolvidos. A Inglaterra, por exemplo, quer reduzir 80%, mas até 2050”, avaliou o ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc. “Temos metas que alguns podem até achar modestas. Mas há uma grande mudança, porque, até alguns meses atrás, o governo era contra estabelecer metas”, disse Minc. Para ambientalistas, as metas são, de fato, modestas. “Desmatamento ilegal deveria ser igual a zero sempre”, disse Sérgio Leitão, diretor de políticas públicas do Greenpeace, que também criticou uma cláusula do PNMC que condiciona o cumprimento das metas à obtenção de recursos internacionais para investir em conservação. “Num momento de crise internacional, essa condicionante deixa uma justificativa pronta para o governo descumprir as metas.” Também é possível fazer uma leitura otimista do plano do governo. O meteorologista Carlos Nobre, coordenador do Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais, afirma que o fato de o país se comprometer pela primeira vez com metas é altamente positivo. “Seria desejável que a meta fosse mais ambiciosa. Mas metas muito radicais são irrealistas”, disse. Nobre ressalta que não há uma justificativa econômica para continuar desmatando. “Já temos 700 mil km² desmatados na Amazônia, o que é três vezes a área coberta pela agricultura no estado de São Paulo. E o PIB agrícola de São Paulo é mais de dez vezes maior que o da Amazônia. Trata-se de um modelo econômico inviável”, diz o pesquisador. Mas cita um dado auspicioso: o governo vem conseguindo reduzir o desmatamento. Em 2004, a taxa de devastação da Amazônia chegou a 27 mil km², a segunda maior taxa desde que a floresta passou a ser monitorada pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Mas de 2004 para cá as taxas começaram a cair. Em 2005, foram 19 mil km². Em 2006, 14 mil km². Em 2007, 11.532 km². E em 2008, segundo dados preliminares, chegou a 11.968 km². Neste ano, observa Nobre, esperava-se um aumento significativo, pois houve uma explosão nos preços das commodities agrícolas e havia uma demanda reprimida dos últimos dois anos. Mas o crescimento foi muito pequeno. “Alguma coisa acon-

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teceu e os pesquisadores terão de se debruçar sobre o fenômeno para compreendê-lo. Isso pode significar outra dinâmica de desmatamento, num patamar menor. Isso gera confiança e mostra que as metas poderão ser alcançadas”, diz o pesquisador. Para o governo, a redução do desmatamento é o resultado direto das políticas de fiscalização lançadas em 2004. “As metas não são baseadas apenas numa intenção, mas em conquistas já obtidas nos últimos anos”, diz Mauro Pires, diretor de políticas para o controle do desmatamento do Ministério do Meio Ambiente. Bois piratas - O demógrafo Ro-

berto Luiz do Carmo, professor do Departamento de Demografia e pesquisador do Núcleo de Estudos de População, ambos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), afirma que o aumento da fiscalização, de fato, teve um papel na contenção das queimadas. Sustenta, no entanto, que as condições determinantes da devastação da floresta permanecem inalteradas. Segundo ele, há uma série de processos que pressionam a devastação da Amazônia: a expansão da soja, impulsionada por grandes produtores; a pecuária, adotada por pequenos produtores que veem nas cabeças de gado uma espécie de “poupança” e também por grandes criadores, que espalham os “bois piratas” por áreas desmatadas; e os garimpos, responsáveis pelo surgimento de grandes “bolhas demográficas” na região, que explodem quando a extração mineral se esgota. “A Amazônia está inserida num contexto internacional. Quando o preço da soja aumenta, os grandes produtores se capitalizam e buscam novas áreas para plantar. O Brasil é o maior exportador de soja do mundo e um dos maiores exportadores

As metas do Brasil

DESMATAMENTO

Pela primeira vez, o governo aceita estipular limites para controlar a devastação da Amazônia

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JF DIORIO/AE

de carne. A Amazônia acaba sofrendo impacto da dinâmica mundial”, afirma. Carmo não crê que a crise internacional vá conter o desmatamento. “A redução das exportações poderá ser compensada pela valorização do dólar, fazendo com que produtores ganhem mais em reais”, diz. Um fator a ser considerado na redução do desmatamento, segundo o demógrafo, é que está acabando o estoque de terras em áreas de relevo favorável. “Entre o norte de Mato Grosso e o sul do Pará, o relevo é acidentado e se presta mais para a pecuária do que para a soja”, afirma. Não significa, contudo, que o relevo seja barreira intransponível. Carmo observa que a região de Santarém, no Pará, está sendo ocupada por plantações de soja, contrariando a ideia de que a pluviosidade da região seria incompatível com o cultivo do grão. “A grande questão é criar uma alternativa econômica para a população”, diz o pesquisador. Segundo ele, a Amazônia abriga imigrantes que buscam inserção econômica e estão acostumados a ver a natureza como um obstáculo a ser vencido e não como uma potencial aliada. “Até agora as experiências de exploração da floresta sem devastá-la são muito pequenas. Cortar árvore para vender madeira rende lucro imediato”, afirma. A iniciativa de estipular metas de desmatamento fortaleceu a posição do Brasil na 14ª Conferência do Clima das Nações Unidas (COP-14), realizada em Poznan, na Polônia, no mês passado. Os negociadores brasileiros engrossaram o coro em oposição à proposta do novo presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, de reduzir as emissões do país aos níveis de 1990 apenas em 2020. “É uma proposta fraca, inferior à estabelecida no Protocolo de Kyoto. E muitos países desenvolvidos acenam com metas distantes, para 2040, 2050. Queremos metas intermediárias, para 2020, 2030”, afirmou o ministro Carlos Minc. A COP-14 foi convocada a fim de preparar terreno para a Conferência do Clima em Copenhague, no final de 2009, que fará a revisão do Protocolo de Kyoto, que expira em 2012. ■

Fabrício Marques

Lavoura de soja e floresta em Sinop (MT): relevo favorável

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LABORATÓRIO MUNDO

Longe de ser unicamente uma experiência individual, a felicidade de cada um depende da felicidade de outras pessoas com quem se está conectado. Depende também de proximidade para se espalhar, concluíram pesquisadores da Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD), Estados Unidos, após acompanharem de 1971 a 2003 a situação de saúde e a qualidade de vida em geral de 5.124 adultos com idade entre 21 e 70 anos. Eles verificaram que os participantes desse estudo mantinham 53.228 laços sociais com parentes ou amigos próximos. Depois avaliaram como as redes sociais contribuem para a felicidade individual: parceiros que se tornam felizes aumentam em 8% a probabilidade de o outro parceiro tornar-se também feliz, gêmeos próximos entre si podem ampliar a felicidade um do outro em 14% e os vizinhos em 34%; colegas de trabalho não alteraram os níveis de felicidade dos participantes desse estudo, publicado em 12 de dezembro no British Medical Journal. Outra conclusão é que a proximidade física é essencial para a felicidade se espalhar. A probabilidade de uma pessoa ser feliz aumenta 42% se um amigo que mora a menos de um quilômetro torna-se feliz; apenas 22% se o amigo mora até três quilômetros de distância; e muito pouco a distâncias maiores.

LAURABEATRIZ

FELICIDADE CONTAGIANTE

perigosas Muitas vezes espécies diferentes de borboletas tóxicas são fisicamente parecidas: apresentam asas com desenhos e cores semelhantes. Não é apenas coincidência. Essa semelhança é resultado de uma estratégia evolutiva conhecida como mimetismo mülleriano, em que espécies distintas se beneficiam de uma característica em comum: um animal que se envenene ao tentar almoçar uma borboleta tóxica passará a evitar todas com aquele padrão de desenhos e cores. Para entender como surgem asas semelhantes, a francesa Marianne Elias, da Universidade de Edimburgo, no Reino Unido, analisou 58 espécies de borboletas amazônicas. Achou a resposta ao associar conceitos de ecologia e biologia evolutiva: mais do que o parentesco, 36

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asas semelhantes entre espécies diferentes são resultado de uma cooperação ecológica que se mantém ao longo do tempo. O trabalho, publicado na revista PLoS Biology, sugere que o mimetismo surge em espécies que compartilham um mesmo hábitat. Com o tempo, essas espécies vão se tornando cada vez mais semelhantes ecologicamente, ampliando os benefícios de serem parecidas.

> Um software

Para os autores, os resultados mostram a importância de incluir o parentesco entre as espécies em estudos ecológicos e apresentam o mimetismo como uma força evolutiva importante no aparecimento de novas espécies.

para ler a mente

MARIANNE ELIAS/UNIVERSIDADE DE EDIMBURGO

> Belas e

Numerada: estudo monitora borboletas

Os japoneses avançaram rumo ao computador que lê a mente. Uma equipe do Instituto Nacional de Informação e Tecnologias de Comunicação, de Quioto, Japão, em colaboração com outros centros de pesquisa, conseguiu reconstruir as imagens que uma pessoa via ao analisar os sinais do cérebro por meio de ressonância magnética funcional. Esse estudo, noticiado em dezembro na revista Neuron, mostra que ler a mente não se limita a imagens previamente conhecidas, como uma equipe de pesquisadores norte-americanos havia

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ESPERANÇA CONTRA A MALÁRIA

olhasse uma seleção de imagens feitas de quadrados brancos e pretos enquanto analisava o cérebro dela com o aparelho de ressonância. Um programa de computador encontrou padrões na atividade cerebral que correspondiam aos pontos escuros ou claros e depois ajudou a identificar o que via. As imagens ainda são rudimentares, mas o importante é que o princípio do experimento, a chamada prova de conceito, funcionou, de acordo com Kamitani. Ele acredita ser possível melhorar a definição das imagens que se obtêm. O próximo passo é tentar traduzir em imagens o que as pessoas pensam ou sonham.

> Um ano um pouco mais longo O ano que passou foi o ano bissexto mais longo desde 1992. Durou um segundo a mais, o tempo de um suspiro ou uma piscada de olho mais longa. O Serviço Internacional de Rotação da Terra e Sistemas de Referência (IERS, na sigla em inglês) acrescentou um segundo a mais ao último minuto de 2008 para ajustar a medição de tempo feita por relógios atômicos ao sutil aumento na duração dos dias causado pela diminuição da velocidade com que a Terra gira ao redor de seu próprio eixo.

A rotação do planeta pode sofrer pequenas variações em consequência da relação entre a atração gravitacional exercida pelo Sol e pela Lua e a movimentação das camadas mais internas da Terra. A correção do tempo é importante, por exemplo, para coordenar sistemas de orientação como o GPS. Foi a 24ª vez que se corrigiram os relógios desde 1972.

SMITHSONIAN NATIONAL ZOOLOGICAL PARK

WHO/TDR/CRUMP

É a fêmea Bonnie, que tem 30 anos e vive no Jardim Zoológico Nacional do Smithsonian em Washington, a capital norte-americana. Ela aprendeu a assobiar por conta própria, ao ver um tratador produzir os sons. É o primeiro registro de um primata imitando um som de outra espécie sem treino específico, e por isso abre caminhos para o estudo da evolução da linguagem. O caso, relatado pelo primatólogo Serge Wich na revista Primates, indica uma flexibilidade auditiva e sonora maior do que se acreditava para grandes primatas, e contraria a ideia de que orangotangos não têm controle sobre suas vocalizações. Bonnie parece assobiar pelo simples gosto de produzir o som, sem um contexto definido. Mas costuma atender quando alguém lhe pede que assobie, mostrando que sabe o que faz. “Isso é importante porque fornece um mecanismo para explicar a variação de sons documentada entre populações de orangotangos silvestres”, acrescenta Wich.

No editorial da edição de 11 de dezembro da revista The New England Journal of Medicine, William Collins e John Barnwell, pesquisadores do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, chamaram de “começo esperançoso” a nova vacina experimental contra a malária, para a qual não surge qualquer medicamento novo há 70 anos. Essa vacina (identificada pela sigla RTS,S) foi testada com diferentes medicamentos adjuvantes em crianças de duas faixas de idade. No primeiro teste, com 894 Tanzânia: vacinas em teste crianças de 1 a 4 anos do Quênia, a vacina apresentou uma eficácia de 40%, demonstrado meses antes, indicando que poderia ter uma eficácia de 30% contra a e pode incluir algo que doença já instalada e de 40% contra casos novos. No outro uma pessoa esteja lendo, teste, com 340 crianças de 5 a 17 meses da Tanzânia, a sem que os pesquisadores RTS,S reduziu em 60% os casos de infecção causada pelo tenham conhecimento protozoário Plasmodium falciparum. Desenvolvidas pela prévio do que deveria ser. GlaxoSmithKline em conjunto com a Organização Mundial da Saúde (OMS), essas duas formulações são as primeiras O coordenador do trabalho japonês, Yukiyasu Kamitani, a seguirem adiante e poderem ser avaliadas em um número pediu que uma pessoa maior de pessoas, possivelmente no próximo ano.

> Ela também assobia Quem não consegue assobiar pode se sentir humilhado: até um orangotango consegue.

Bonnie: repertório vocal

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LABORATÓRIO BRASIL

SUSY GOUVEIA

> O passado de Noronha

Mata seca: vegetação típica das ilhas

de que mudanças climáticas não foram decisivas em moldar a flora atual, talvez porque o oceano Atlântico proteja as ilhas de grandes oscilações. O manguezal do Sueste pode ter sido mais afetado por mudanças do que outras zonas, de acordo com areia rica em conchas que indica alterações no nível do mar no final do Holoceno, por volta

A chegada das populações tupi-guaranis à costa brasileira pode ter recuado quase mil anos, para cerca de 3 mil anos antes dos dias atuais. Análises de carbono haviam revelado sinais da ocupação humana há quase 1.800 anos no atual município de Araruama, sudeste do Rio de Janeiro. No entanto, esses povos nativos podem ter vivido nessa região há muito mais tempo. Geólogos, físicos e antropólogos da Universidade Federal Fluminense (UFF) dataram o carbono de amostras de carvão remanescentes de duas fogueiras, uma funerária e outra usada possivelmente para queimar cerâmica. Uma havia sido acesa há provavelmente 2.900 anos, outra há 2.600 anos. Essas conclusões, apresentadas na edição de dezembro dos Anais da Academia Brasileira de Ciências, podem levar a ajustes nas teorias sobre a origem e a dispersão dos povos nativos a partir da Amazônia: algumas linhas de pesquisa já sugeriam que poderiam ter partido de lá há bem mais de 2 mil anos. Os europeus os encontraram somente em 1500.

LITORAL DO RIO, HÁ 3 MIL ANOS

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de 4.200 anos atrás e, novamente, há cerca de 2 mil anos. Os achados estão nos Anais da Academia Brasileira de Ciências.

> Leite com fator de coagulação Está mais próxima da realidade uma forma mais segura e barata de tratar a hemofilia B, distúrbio de coagulação do sangue causado pela carência da proteína fator IX. As equipes de Elíbio Rech, da Embrapa Recursos

ANGELA BUARQUE

Não satisfeitos em apreciar a beleza natural de Fernando de Noronha, em Pernambuco, pesquisadores de várias instituições decidiram cavar mais fundo e averiguar a composição vegetal do arquipélago no passado. A equipe liderada por Luiz Carlos Pessenda, da Universidade de São Paulo em Piracicaba, analisou aspectos físico-químicos do solo e de sedimentos e identificou grãos de pólen fossilizados em vários ambientes das paradisíacas ilhas. Descobriram que nos últimos 7.400 anos a vegetação não mudou muito – tem gramíneas em áreas de ventos intensos, cactos nas regiões mais secas e formações de arbustos e árvores –, sinal

Genéticos e Biotecnologia, e de João Bosco Pesquero, da Universidade Federal de São Paulo, comprovaram que o fator IX extraído do leite de camundongos transgênicos melhora a coagulação em portadores de hemofilia B (Biotechnology Letters). Há cerca de quatro anos o grupo de Pesquero desenvolveu camundongos geneticamente modificados para produzir o fator IX humano. A bióloga molecular Sharon Lisauskas, da Universidade de Brasília, analisou o leite das roedoras e constatou que, de fato, continha o fator IX, que testou em portadores de hemofilia B. “Com auxílio da FAPESP, queremos repetir o procedimento com coelhos, para produzir em maior escala o fator IX”, diz Pesquero. A produção de fator IX no leite de animais transgênicos pode se tornar um tratamento alternativo contra hemofilia. Calcula-se que os Estados Unidos gastem por ano US$ 190 milhões no tratamento da hemofilia B.

Tigelas: cerâmica guarda história tupi-guarani

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de ouro Há alguns anos foi achado no Poço Azul, em plena Chapada Diamantina, na Bahia, um esqueleto quase completo de uma preguiça terrestre de 3 metros de comprimento que vivera ali 11 mil anos antes. Depois de estudar os ossos do animal extinto, Cástor Cartelle, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas), concluiu se tratar de um novo gênero, que batizou de Ahytherium aureum – “preguiça de ouro”. A referência dourada se deve ao meio século de existência que a PUC mineira comemora neste

ano. “É o primeiro esqueleto completo de uma preguiça do Pleistoceno da família dos megaloniquídeos, animais com grandes garras que viviam na América do Sul”, comenta Cartelle. A descrição da espécie está na edição de agosto da revista Comptes Rendus Paleovol.

MARTA CARNEIRO

> A preguiça

aguda, o câncer infantil mais comum – parecia até recentemente ser provocada por mutações no gene supressor de tumores PTEN, frequentes em outros tipos de câncer. Cópias alteradas do gene levariam à formação de proteínas defeituosas, incapazes de contrabalançar a atividade de outra proteína – a PI3K.

Ossada completa revela nova espécie extinta

FERNANDO BRANDÃO PILATI

DNA DE CARNE DE PEIXE

Nem sempre é fácil convencer pescadores que é mero o peixe que eles dizem que não é mero (Epinephelus itajara), uma das maiores espécies de peixe, com até 2,7 metros de comprimento e 400 quilos, sob sério risco de extinção. Uma equipe da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) concluiu em dezembro um teste genético para diferenciar a carne de mero da de outras 11 espécies de garoupas e badejos que vivem ao longo do litoral brasileiro. O teste ainda não está à mão, mas a base genética elaborada pela equipe do biólogo Rodrigo Torres permitiu distinguir Sob vigilância: testes permitem identificar pesca ilegal o mero de outras espécies, comparando três regiões do DNA mitocondrial. “Estamos melhorando a acurácia do teste a fim de identificar o mero > Outra origem da vendido ilegalmente e saber a origem geográfica da carne”, leucemia infantil comenta Torres. No ano passado a equipe da UFPE ajudou a mostrar que os meros no Pacífico, próximo à costa do Panamá, A leucemia infantil marcada pertenciam a uma espécie diferente dos meros do Atlântico. pela proliferação de formas “Ressuscitamos uma espécie considerada extinta naquela imaturas do linfócito T – região que é anatomicamente muito parecida com os nossos responsável por 15% dos meros do Atlântico”, diz ele. casos de leucemia linfoide

do mero

Sem esse controle, as células passariam a proliferar indefinidamente. A explicação surgira após a análise de células de leucemia mantidas in vitro. Mas agora uma equipe internacional que inclui pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e do Centro Infantil Boldrini, também em Campinas, demonstrou que na maior parte dos casos a origem do problema não está no gene da proteína PTEN. José Andrés Yunes e Patrícia Jotta, do Centro Boldrini, e Alexandre Nowill, da Unicamp, analisaram linfócitos de 30 pacientes e constataram que em nove de cada dez casos o problema está numa terceira proteína, a CK2, que, produzida em excesso, inibe a ação da PTEN (Journal of Clinical Investigation). “Essa descoberta abre caminho para testar novas drogas contra essa forma de câncer”, diz Yunes.

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CIÊNCIA

FARMACOLOGIA

Ação inesperada

à distância

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Neurônios podem transportar remédios contra dor e inflamação Ricard o Zorzet to

Federal do Paraná, que determinados compostos capazes de combater direta ou indiretamente a dor podem percorrer distâncias relativamente grandes no interior desses neurônios – no ser humano eles podem passar de um metro de comprimento – sem perder suas propriedades analgésicas ou anti-inflamatórias características. O transporte de medicamentos por essas células permite explicar, por exemplo, por que a injeção de um analgésico como o diclofenaco ou a morfina nas proximidades de um ferimento profundo na perna age muito além do local da aplicação e ainda pode ser tão eficiente no bloqueio da dor quanto se tivesse sido administrado na região lombar da coluna vertebral – área a partir da qual facilmente alcança o fluido que banha a medula espinhal e outros órgãos do sistema nervoso central. Possibilidades – Conhecer essa forma

de transporte abre também a possibilidade de desenvolvimento no futuro de novas estratégias de administração de analgésicos e anti-inflamatórios, com menos efeitos colaterais. Dores intensas como as provocadas por algumas formas de câncer avançado ou grandes cirurgias são amenizadas hoje com a aplicação de analgésicos e anti-inflamatórios perto da medula espinhal, prática que geralmente exige acompa-

nhamento médico, pois os fármacos podem atingir os nervos e centros cerebrais que controlam a respiração e, em certas situações, levar à morte. “Talvez um dia esses casos possam ser tratados de maneira menos agressiva, com injeções musculares, uma vez que os músculos são inervados por esses neurônios”, imagina Ferreira. Se essa alternativa de tratamento der certo, será como fechar a porta pela qual a dor tem acesso ao organismo. Ferreira explica o raciocínio comparando o corpo a um edifício. “Se não se deixa o cachorro passar pelo térreo, ele não chegará ao décimo andar”, diz. “A compreensão de como bloquear a entrada do prédio pode permitir o controle das dores que não têm origem no sistema nervoso central.” “Mas antes será preciso realizar testes para ver se, de fato, essa estratégia funciona”, diz o farmacologista, que iniciou sua carreira científica há quase cinco décadas como assistente de um dos maiores pesquisadores brasileiros – o médico carioca Maurício da Rocha e Silva, morto em 1983, descobridor da bradicinina, peptídeo das células sanguíneas humanas que é liberado por enzimas do veneno da jararaca e controla a pressão arterial. Foram necessários quase 15 anos de trabalho até que Ferreira e sua equipe compreendessem o que os experimen-

REPRODUÇÃO DO LIVRO O DIÁRIO DE FRIDA KAHLO

S

érgio Henrique Ferreira sempre foi curioso e perseverante. É assim na cozinha de sua casa, onde costuma surpreender familiares e amigos com exóticas combinações de ingredientes, e também em seu laboratório na Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto, onde há 36 anos investiga como agem os compostos capazes de bloquear uma das características mais incômodas da inflamação, a dor. A combinação dessas qualidades levou-o a descobrir em 1972 como o ácido acetilsalicílico, o princípio ativo da aspirina, previne a inflamação e ameniza a dor e, anos mais tarde, a demonstrar que a morfina, o mais antigo e potente analgésico conhecido, suprime a dor por atuar diretamente sobre os nervos responsáveis pela sensibilidade de órgãos e tecidos do corpo – e não apenas por sua ação sobre o cérebro e outros órgãos do sistema nervoso central, como se acreditava. Agora do laboratório desse farmacologista nascido em Franca, no interior paulista, emerge uma descoberta inesperada: como se dá a interação de analgésicos e anti-inflamatórios com um grupo especial de células, os neurônios nociceptivos. Esses neurônios, que inervam a pele, os músculos, os ossos, os vasos sanguíneos e as vísceras, funcionam como a porta de entrada da dor no organismo. São chamados de nociceptivos por detectarem estímulos ambientais nocivos ao corpo, como o calor da chama de um palito de fósforo, e os conduzirem ao sistema nervoso central, onde são interpretados como dor. Ferreira constatou, trabalhando em parceria com a equipe da farmacologista Berenice Lorenzetti, da Universidade PESQUISA FAPESP 155

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rentes, sinal de que elas haviam se tornado tão sensíveis ao toque quanto um dedo depois de uma martelada. Diante desse resultado que não conseguia explicar, Ferreira decidiu buscar mais evidências de que era um efeito real e deixar algumas ideias sobre esse fenômeno descansando na gaveta, para amadurecer. Enquanto isso, as farmacologistas Mani Funez, da equipe de Berenice, e Djane Duarte, pósgraduanda no laboratório de Ferreira, foram ver o que ocorria se, ao mesmo tempo, os animais recebessem uma dose de analgésico na pata, bem distante da injeção do fármaco sensibilizante. Em uma segunda rodada de testes, elas

NATIONAL LIBRARY OF MEDICINE

tos mostravam. As primeiras pistas de que alguns fármacos poderiam viajar pelos neurônios surgiram em meados da década de 1990, quando ele e Berenice aplicaram no líquido (líquor) que banha a medula espinhal de ratos compostos que excitam os neurônios nociceptivos e os tornam mais sensíveis aos estímulos dolorosos. Não se esperava que a aplicação do composto no líquor afetasse regiões do corpo tão distantes como as patas, ainda que a medula espinhal abrigue prolongamentos dos neurônios que as inervam. Depois da injeção, porém, os ratos passaram a retirar a pata ante uma pressão a que antes eram indife-

inverteram o local de aplicação e constataram que, mesmo injetado longe do composto sensibilizante, o analgésico eliminava a dor. Numa terceira fase adicionaram aos experimentos um terceiro composto – chamado antagônico, por inibir a ação do analgésico –, aplicado junto com o sensibilizante. Ou seja, quando davam analgésico na pata, injetavam o sensibilizante e o antagônico no líquor, e vice-versa. Depois compararam os resultados obtidos com o de um grupo de animais que receberam os dois compostos de ação antagônica (um analgésico e outro que inibe seu efeito) simultaneamente no mesmo lugar – apenas nas patas ou apenas na medula. Os fármacos de ação contrária aplicados em regiões distantes não deveriam interagir, um anulando o efeito do outro, caso não fossem transportados ao longo dos neurônios. Ou seja, sem essa interação, o antagônico não deveria eliminar a analgesia induzida pela morfina, injetada na pata ou no líquor. Não foi o que elas observaram. Teleantagonismo – Quando os com-

Tabulae anatomicae (1741), de Pietro Berrettini da Cortona

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postos de ação contrária foram aplicados em áreas do corpo distantes entre si alguns centímetros – simultaneamente na pata e na medula –, seus efeitos se anularam mutuamente, de modo semelhante ao que se observou nos testes em que eram ambos injetados na pata ou na medula. A essa interação entre compostos aplicados em pontos distantes, Ferreira deu o nome de teleantagonismo, um fenômeno que não se imaginava que ocorresse em neurônios. Até então só se conheciam algumas pequenas moléculas que eram transportadas muito lentamente no interior dessas células. Era uma interação tão inesperada que custou aos pesquisadores reconhecer que se tratava de um novo fenômeno. “No início não acreditávamos nos resultados”, conta Mani, primeira autora do artigo que descreve o fenômeno na edição de 9 de dezembro dos Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS). “Imaginávamos que ao administrar o analgésico na pata sua ação se restringisse ao local da injeção.” Aparentemente essa interação não ocorre com todos os medicamentos que atuam sobre os neurônios. Mani e Djane observaram o teleantagonismo,

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Compostos de ação contrária aplicados em pontos distantes interagem e um anula o efeito do outro consequência do transporte de substâncias no neurônio, em duas classes de fármacos: os analgésicos da família da morfina e os anti-inflamatórios do grupo da aspirina. Os primeiros bloqueiam as reações químicas associadas à transmissão da mensagem de dor no interior dos neurônios. O grupo da aspirina, o medicamento mais consumido no mundo, atua em diferentes células, inclusive neurônios, impedindo a produção de compostos que as deixam sensíveis aos estímulos dolorosos. “Passamos dez anos fazendo experimentos, pensando e repensando os resultados. Chegamos até mesmo a imaginar que pudesse haver algum erro metodológico”, afirma Ferreira, que descreve a descoberta como um caso de serendipity – palavra inglesa de difícil tradução, que significa algo como um golpe de sorte de quem encontra por acaso algo valioso que não procurava. “Acreditamos que chegou o momento de abrir o jogo e ver o que outros pesquisadores dizem a respeito desse fenômeno”, diz o farmacologista, que coordenou os trabalhos que resultaram no artigo da revista PNAS. A descrição do teleantagonismo, porém, resolve apenas parte das dúvidas.

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O PROJETO Reação inflamatória: mediadores envolvidos na gênese da dor, migração e ativação de leucócitos e septicemia

MODALIDADE

Projeto Temático COORDENADOR

SÉRGIO HENRIQUE FERREIRA – USP-RP INVESTIMENTO

R$ 2.535.897,80 (FAPESP)

Ainda não se sabe, por exemplo, como esses compostos são transportados no interior dos neurônios – são carregados por proteínas, consumindo energia? Ou se espalham passivamente por difusão, como as moléculas do sal de cozinha em um copo com água? A injeção de um fármaco com ação contrária à da morfina marcado com material radiativo permitiu registrar seu tempo de viagem no interior do neurônio nociceptivo. Aplicado em uma das patas, percorreu em 90 minutos toda a extensão do neurônio até a medula espinhal. “O que se conhece da fisiologia dos neurônios e do transporte de moléculas não permite explicar a distribuição de compostos com tal rapidez”, conta Mani. Outra via – Ferreira aposta em uma

terceira explicação para o transporte dos fármacos. Eles poderiam ser conduzidos por uma intrincada rede de tubos de dimensão nanométrica – os microtúbulos – que compõe o esqueleto interno da célula. “Será que nessa escala a velocidade de transporte não fugiria aos parâmetros a que estamos acostumados?”, pergunta Ferreira. “Essa é uma hipótese que pode ser testada. Do ponto de vista mecânico, é possível construir microtúbulos e medir a velocidade de transporte no seu interior e na superfície externa.” Com a gaveta das ideias reaberta, Ferreira começa a compor uma visão mais ampla e integrada de como atuam no organismo certos grupos de analgésicos e anti-inflamatórios – e a compreender melhor a ação da morfina sobre os neurônios nociceptivos identificada por ele e Meire Nakamura em 1979. A chave para explicar por que esses fármacos aplicados no músculo conseguem inibir a dor em uma região mais ampla do corpo não estaria só no transporte desses fármacos no neurônio. Estaria relacionada também à região da célula em que agem.

Ferreira acredita que as reações químicas de bloqueio da dor ocorram numa área do neurônio conhecida como corpo celular – e não nos seus prolongamentos, os axônios –, que abriga o material genético e a maquinaria que mantém a célula viva. Uma característica anatômica permitiria ao corpo celular do neurônio funcionar como uma espécie de ponte farmacológica entre a periferia do corpo e o sistema nervoso central, afirmam os pesquisadores no artigo de dezembro. É que os corpos celulares dos neurônios que inervam braços, pernas e vísceras – enfim, o corpo todo – se agrupam nos gânglios, espessamentos dos nervos situados a poucos centímetros da medula espinhal. E os gânglios estão em contato com o fluido que banha o sistema nervoso central. “Essa característica permite integrar os efeitos farmacológicos observados no sistema nervoso periférico com os do sistema nervoso central”, diz Ferreira. Ante essa nova compreensão de como os fármacos interagem com os neurônios, Mani ousa imaginar possíveis desdobramentos para o combate à dor. “Quem sabe um dia não se desenhem compostos que possam ser injetados no músculo para agir diretamente em pontos de interesse terapêutico do sistema nervoso central, sem causar os efeitos indesejados observados quando esses fármacos são administrados por via oral ou endovenosa?” Antes, porém, será preciso confirmar se o fenômeno descrito em roedores ocorre nos seres humanos. Como Ferreira diz a seus alunos, sem curiosidade – e certa dose de ousadia – não se faz ciência. ■

> Artigos científicos 1. FUNEZ, M.I., et al. Teleantagonism: a pharmacodynamic property of the primary nociceptive neuron. PNAS. v. 105, n. 49, p. 190.38-19.043, 9 dez. 2008.

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SAÚDE

Nas margens dos rios Capivaras e cães disseminam a febre maculosa no Brasil

Maria Guimarães

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beira do rio Pinheiros, que cruza a cidade de São Paulo e é tão poluído que mal merece ser chamado de rio, uma família de capivaras descansava num final de tarde de dezembro. Eram quatro adultos e três filhotes, separados por uma mureta do tráfego intenso de carros e caminhões na marginal. A presença de capivaras ali pode ser resultado do aumento da população desses roedores, os maiores do mundo, que, segundo Marcelo Labruna, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (USP), estão por trás do reaparecimento no estado de São Paulo da febre maculosa, causada pela bactéria Rickettsia rickettsii. Foi essa doença que em dezembro matou o sul-africano William Charles Erasmus, no Rio de Janeiro, sem que médicos tivessem descoberto o que estava causando febre, dor de cabeça, dor no corpo e prostração no paciente. A bactéria do gênero Rickettsia, provavelmente adquirida ainda na África, só foi identificada após sua morte por análise genética feita no Instituto Oswaldo Cruz. Segundo Labruna, os laboratórios clínicos brasileiros não estão equipados para detectar a bactéria, que além disso nunca é a primeira suspeita dos médicos. No Brasil, a principal espécie de bactéria por trás da febre maculosa é a Rickettsia rickettsii, a mais agressiva do tipo, que chega a causar a morte de 40% das pessoas infectadas. Só não é um problema mais sério de saúde pública porque a doença é relativamente rara, mas o aumento do número de casos preocupa. Depois de relatos da doença entre os anos 1920 e 1940, em que a letalidade atingiu 80% em São Paulo e Minas Gerais, se passaram três décadas em que a doença quase desapareceu. Mas entre 1988 e 1997 foram confirmados 25 casos em seis municípios de São Paulo, e entre 1998 e 2007 esse número aumentou dez vezes, chegando a 255 casos em 54 municípios. Esse crescimento se explica em parte porque em 2001 a Secretaria da Saúde tornou obrigatória a notificação de diagnósticos de febre maculosa, mas, para o veterinário da USP, mudanças ambientais têm grande peso para a disseminação da doença. Entre as alterações, as mais importantes são as que propiciam o crescimento da população de capivaras (Hydrochoerus hydrochaeris), que nos anos 1950 eram vistas como ameaçadas de extinção no estado de São Paulo e hoje são cada vez mais abundantes. O reservatório principal da bactéria é o carrapato-estrela, Amblyomma cajennense, muito comum em áreas de vegetação pouco densa, como o Cerrado e florestas de galeria, ao longo de rios. É o carrapato que mais ataca pessoas no Sudeste brasileiro. No caso do micuim, o estágio inicial de vida do carrapato, até centenas deles se espalham como uma nuvem de poeira pelo corpo de quem tiver o azar de esbarrar numa folha repleta desses animais. As picadas causam uma coceira terrível, mas raramente transmitem a doença, embora carrapatos já nasçam com a bactéria se a mãe estiver infectada. “Sempre que vamos a campo somos picados, e até agora ninguém pegou a doença”, conta Labruna. Isso porque o carrapato-estrela não é muito suscetível à bactéria, e como carrapatos infectados vivem e se reproduzem menos, ela só se mantém

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O PROJETO Avaliação do papel das capivaras, gambás e cães domésticos na epidemiologia da febre maculosa brasileira

MODALIDADE

Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa COORDENADOR

MARCELO BAHIA LABRUNA – FMVZUSP INVESTIMENTO

R$ 135.809,00 (FAPESP)

de contágio muito mais alto do que o observado em outros estudos. A explosão populacional das capivaras, segundo Labruna, se deve sobretudo ao reflorestamento das matas que margeiam os cursos d’água e à expansão do cultivo de cana-de-açúcar no estado, além das restrições à caça. “Elas se abrigam na mata, que é também o

hábitat dos carrapatos, e se alimentam da cana”, explica. Como nessa região não tem predadores – onças, sucuris e jacarés –, não é à toa que junto aos extensos canaviais que ocupam o interior de São Paulo a densidade populacional de capivaras é 60 vezes maior do que no ambiente natural do grande roedor, como o Pantanal. Churrascos de capivara, no entanto, não seriam a saída mais adequada – e legal – para controlar a disseminação da febre maculosa. “Como outros roedores, capivaras se reproduzem enquanto o ambiente tiver capacidade de sustentálas”, explica Labruna. Assim, se alguém matar metade de uma população, as fêmeas simplesmente terão mais filhotes. Um prato cheio para a febre maculosa, pois os filhotes não têm defesas contra a bactéria. Para o pesquisador, a única maneira imediata de reduzir o risco de transmissão da doença seria limitar o acesso das capivaras à comida, por exemplo erguendo cercas entre os canaviais e a mata ciliar, o que impediria o acesso à farta plantação. Além de a

FABIO COLOMBINI

no ambiente se houver animais maiores que sirvam como hospedeiros. Em artigo a ser publicado na revista Annals of the New York Academy of Sciences, Labruna expõe os quesitos para que um vertebrado sirva como amplificador da população de Rickettsia: viver no mesmo ambiente que a bactéria, atrair carrapatos, ser suscetível à infecção, mantê-la por tempo suficiente para infectar carrapatos e se reproduzir bastante para que haja sempre animais sem imunidade. E quem reúne todas essas características são as capivaras: em colaboração com pesquisadores da Superintendência de Controle de Endemias (Sucen), o grupo de Labruna mostra, em artigo aceito para publicação na Veterinary Parasitology, que a infecção pela bactéria da febre maculosa em capivaras dura por volta de dez dias. Um experimento com quatro capivaras infectadas em laboratório mostrou que, durante esse período, elas podem transmitir a bactéria a entre 20% e 35% dos carrapatos que se alimentam de seu sangue, um nível

Sociáveis e aquáticas: modo de vida propicia trasmissão de doenças por carrapatos

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MARCELO LABRUNA/USP

Carrapato-estrela: desde o micuim, número 1 da moeda, até a forma alimentada

população permanecer pequena com menos alimento, limites à circulação reduziriam as chances de pessoas serem infectadas. Labruna mostrou também, em artigo disponível no site da Vector-Borne and Zoonotic Diseases, que um animal mais comum em áreas urbanas – o gambá Didelphis aurita – também é hospedeiro amplificador da bactéria. Em um experimento, sua equipe viu que os gambás ficam doentes por um tempo mais longo do que as outras espécies que desenvolvem a doença – entre três e quatro semanas – e infectaram entre 5% e 20% dos carrapatos durante esse período. Em casa - Mesmo que uma pessoa não

chegue perto de uma capivara ou de um gambá, pode ser indiretamente infectada por eles se encontrar um carrapato portador da bactéria. E nem é preciso passear no mato. “Pessoas de idade que nunca saem de casa podem pegar a doença se tiverem um cachorro que passeie pelo mato e volte com carrapatos”, conta Labruna. Daí a importância de evitar infestações de carrapatos nos cães que, segundo artigo que será publicado na Emerging Infectious Diseases, também desenvolvem febre maculosa. Os sintomas são febre, falta de apetite e prostração, os mesmos causados pela bactéria Ehrlichia canis, que os carrapatos transmitem mais frequentemente aos cachorros. Os dois cães com febre maculosa diagnosticada na USP foram levados a um veterinário na região dos 46

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Jardins, bairro de classe média alta de São Paulo, para retirar os carrapatos – lembrança de uma viagem a Itu, no interior do estado. Quando a febre começou, o veterinário, que se formara na USP, desconfiou e mandou amostras de sangue para Labruna, conhecido na Faculdade de Veterinária como “Marcelo dos carrapatos”. Era Rickettsia. “É possível que a doença seja mais comum em cães do que se supõe”, pondera o pesquisador, “e seja confundida com a erliquiose, já que os laboratórios não têm como detectar”. A descoberta tem ainda mais peso diante de outro achado de Labruna: o carrapato-amarelo-do-cão (Amblyomma aureolatum), frequente em cachorros, é na verdade mais suscetível a contrair Rickettsia do que o carrapato-estrela. Em experimento descrito em novembro no Journal of Medical Entomology, o grupo da USP grudou pequenas câmaras cheias de carrapatos em cobaias infectadas com febre maculosa e verificou que, enquanto entre 10% e 60% dos carrapatos-estrela contraíram a bactéria, de 80% a 100% dos carrapatos-amarelos foram infectados. “Na Região Metropolitana de São Paulo, os carrapatos-amarelos são os maiores responsáveis por transmitir a doença a seres humanos.” Só não é mais grave porque esses carrapatos não têm grande apreço por pessoas. Além disso, no Brasil o carrapato Rhipicephalus sanguineus, também comum em cães, pode estar no mapa da

epidemiologia da febre maculosa. O risco seria grande, porque o ciclo de vida desses carrapatos é mais próximo das pessoas: passam a vida toda em cachorros e, na fase livre, podem aparecer andando pelas paredes e cercas das casas. Os resultados estão em artigo no site da Vector-Borne and Zoonotic Diseases. Em 2005, o grupo coletou 481 carrapatos de cachorros da comunidade Recreio da Borda do Campo no município de Santo André, Região Metropolitana de São Paulo, e verificou que 1,3% deles continha R. rickettsii, o mesmo nível de infecção que outros estudos tinham encontrado no carrapato-estrela. Os veterinários da USP têm ampliado também a busca por outros agentes da doença. A bactéria Rickettsia parkeri, por exemplo, causa uma versão mais branda de febre maculosa e é possível que escape ao diagnóstico. Com análises genéticas, recentemente descobriram outra espécie de Rickettsia, que apresentaram em setembro na Conferência Internacional sobre Carrapatos e Patógenos Transmitidos por Carrapatos, na Argentina. É Rickettsia monteiroi, batizada em homenagem a José Lemos Monteiro, pesquisador do Instituto Butantan que morreu de febre maculosa quando trabalhava no desenvolvimento de uma vacina contra a doença em 1935. Na última década, relatos da doença vêm de todos os estados da Região Sudeste. Em Santa Catarina também parece haver febre maculosa, mas uma versão mais branda, que não leva à morte – provavelmente outra espécie de Rickettsia. Para Labruna, é preciso entender melhor a ecologia da bactéria para fazer frente à doença. Enquanto isso, o jeito é catar carrapatos depois de passeios silvestres e não economizar nos carrapaticidas para cães. ■ > Artigos científicos 1. LABRUNA, M.B. Ecology of Rickettsia in South America. Annals of the New York Academy of Sciences. No prelo. 2. SOUZA, C.E. et al. Experimental infection of capybaras by Rickettsia rickettsii and evaluation of the transmission of the infection to ticks Amblyomma cajennense. Veterinary Parasitology. No prelo. 3. Vector-Borne and Zoonotic Diseases: http://www.liebertonline.com/vbz

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GENÉTICA

Uma síndrome recém-descoberta Doença identificada no Rio Grande do Norte causa deformações nos pés e nas mãos Marcos Pivet ta

Perna sem a fíbula e mão com seis dedos: alguns dos defeitos provocados pela síndrome

Outras doenças degenerativas chegam a causar alguns dos defeitos provocados pela síndrome de Riacho de Santana, mas não todos em suas vítimas. Por essa peculiaridade, a condição clínica identificada na localidade potiguar, também de 4.300 habitantes, foi reconhecida como uma nova patologia. Seu nome técnico é agenesia/hipoplasia de fíbula associada a oligodactilia e outros defeitos. “Ela difere de outras doenças por minúcias”, diz o médico e geneticista Paulo Otto, do Instituto de Biociências (IB) da USP, responsável pela descrição clínica da síndrome e um dos autores do artigo. “Mas imediatamente desconfiamos de que era algo novo.” Os efeitos da síndrome não alteram a capacidade de cognição dos afetados. “Desse ponto de vista, eles são normais”, diz Silvana, atualmente na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), em Campina Grande. Apesar dos defeitos físicos, os doentes levam uma vida relativamente normal e estão adaptados às limitações. Embora em Riacho de Santana se mantenha a tradição de casamentos consanguíneos, não se conhece a forma de transmissão hereditária da síndrome, nem se ela estaria associada à consanguinidade. As malformações são causadas por um defeito genético simples, provavelmente uma mutação num

FOTOS PAULO OTTO E SILVANA SANTOS

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m 2004 a bióloga paulista Silvana Santos, então iniciando o pós-doutoramento no Centro de Estudos do Genoma Humano na Universidade de São Paulo (USP), fez uma série de viagens ao interior do Rio Grande do Norte e foi a principal responsável pela descoberta de uma nova doença neurodegenerativa, a Spoan, em Serrinha dos Pintos, cidade de 4.300 habitantes do interior potiguar (ver Pesquisa FAPESP nº 113). Agora, quatro anos depois, a pesquisadora encontrou mais uma doença genética não descrita pela literatura médica em outro pequeno município do mesmo estado, Riacho de Santana, distante 60 quilômetros de Serrinha. Trata-se de uma nova síndrome, identificada em seis membros de uma família, caracterizada por malformações congênitas. A ausência da fíbula (perônio), osso longo localizado na face lateral da perna, e uma atrofia do fêmur fazem com que os doentes tenham baixa estatura, no máximo 1,50 metro. As mãos e os pés se mostram retorcidos, podem apresentar dedos a mais ou a menos e pequenos defeitos nas unhas. A descrição da doença saiu na edição de 15 de dezembro da revista científica American Journal of Medical Genetics.

único gene, que se disseminou entre os membros da família afetada (são quatro irmãos e um primo, além do filho de um dos irmãos). A hipótese mais plausível, segundo Otto, é de que seja uma doença autossômica dominante. Se for esse o caso, basta herdar dos pais uma cópia do gene com a mutação para manifestar a síndrome. “A doença deve ser rara, senão já teria sido encontrada em outro lugar”, afirma Silvana. Com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e auxílio de colegas de outras universidades, a pesquisadora percorreu cidades do Nordeste onde há número elevado de deficientes físicos e de casamentos consanguíneos a fim de estudar a incidência de problemas genéticos. ■

> Artigo científico 1. SANTOS, S.C. et al. A previously undescribed syndrome combining fibular agenesis/hypoplasia, oligodactylous clubfeet, anonychia/ungual hypoplasia and other defects. American Journal of Medical Genetics. v. 146A, n. 24, p. 3.126-3.131. 2008.

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ECOLOGIA

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o contrário do que se viu em Tubarão (Jaws), filme de 1975 do cineasta norte-americano Steven Spielberg, o temível peixe de dentes afiados não costuma expor a barbatana fora d’água para anunciar o ataque. Ele chega totalmente submerso, sem se fazer notar. Foi assim, sorrateiro, que numa tarde chuvosa de maio de 1999 um tubarão cabeça-chata (Carcharhinus leucas) abocanhou a perna do surfista pernambucano Charles Barbosa Pires e o puxou para o fundo, sacudindo seu corpo embaixo d’água. Charles tentava se defender dando socos no bicho quando seus amigos, que haviam saído do mar e chamado os bombeiros, começaram a gritar para que nadasse. “Ouvi aquilo e fui em frente. Nadei até não aguentar mais e desmaiei”, conta. Quando acordou no hospital estava com os dois braços enfaixados e não tinha mais as mãos. Hoje com 31 anos, Charles voltou a surfar depois de superar o medo de outro ataque e luta contra as sequelas físicas e psicológicas das mordidas – atualmente busca ajuda para conseguir duas próteses de mão, que custam cerca de R$ 100 mil. Ele é um dos 32 sobreviventes dos 51 acidentes com tubarões registrados entre 1992 e 2006 – houve 19 mortes – na costa da capital de Pernambuco, o estado brasileiro que soma o maior número de casos do tipo. Em nível mundial, o Brasil é o sétimo colocado em ataques – em primeiro estão os Estados Unidos onde se registraram 836 acidentes em 330 anos, seguidos da Austrália com 329 ataques em 300 anos, segundo a lista do Arquivo Internacional de Ataque de Tubarão (Isaf), do Museu de História Natural da Flórida. Apesar de haver menos acidentes por aqui, proporcionalmente mais pessoas morrem em decorrência da gravidade dos ferimentos. “No Brasil são os tubarões cabeça-chata adultos,

Poluição e redução da fauna estimulam ataques de tubarões a banhistas Verônica Falcão

Perigo no mar 48

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capazes de causar lesões maiores e mais profundas, que em geral atacam”, explica o engenheiro de pesca Fábio Hazin, pesquisador da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Nos últimos anos Hazin e pesquisadores dos Estados Unidos vêm analisando os ataques de tubarão na costa pernambucana em busca de explicações para esses acidentes. E agora chegaram a algumas conclusões. Ao menos no litoral de Pernambuco os ataques dos tubarões a quem se aventura a pegar uma onda ou a se refrescar no mar estão associados a dois fatores: as alterações no ambiente provocadas pelos seres humanos e a certo abuso das pessoas que insistem em nadar próximo às áreas frequentadas por esses peixes. Entre o final da década de 1970 e o início da de 1980, a construção do Porto de Suape cerca de 40 quilômetros ao sul de Recife exigiu o desmatamento de uma vasta área de manguezal. A substituição da vegetação de mangue pelo concreto parece ter afetado as populações de peixes e crustáceos que ali se reproduzem, interferindo na cadeia alimentar marinha. Mais recentemente, Hazin, George Burgess, do Isaf, e Felipe Carvalho, da Universidade da Flórida, constataram que o lançamento de restos de matéria orgânica dos lixões e de esgoto doméstico sem tratamento, além do uso de fertilizantes e defensivos agrícolas, está poluindo o estuário de rios usados para reprodução pelos tubarões cabeça-chata, aparentemente o que mais faz vítimas nas praias da Grande Recife – dos oito casos em que foi possível identificar a partir das marcas da mordida a espécie de tubarão que atacou, sete eram cabeça-chata. Esses poluentes contribuem para a diminuição dos peixes nos estuários dos rios e

ALBERT KOK/WIKIMEDIA

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Cabeça-chata: associado à maior parte dos acidentes na costa brasileira

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Também vítima: alterações na foz dos rios afetam reprodução do cabeça-chata

atraem tubarões mais agressivos, como o próprio cabeça-chata e o tubarãotigre (Galeocerdo cuvier). Um dos berçários do cabeça-chata que está na lista dos mais poluídos é o rio Jaboatão, que deságua entre as praias de Boa Viagem e Paiva, na capital pernambucana. A comparação de um levantamento feito em 1996 com outro conduzido no ano passado por pesquisadores dos departamentos de Zootecnia e Pesca e aquicultura da UFRPE sugere que as populações de peixes, caranguejos, camarões, siris e ostras no estuário do Jaboatão caíram até 90%. Em 1996 encontravam-se 120 siris por metro quadrado. “Agora são apenas 12 por metro quadrado”, diz Fernando Porto, coordenador do trabalho. Além dos resíduos orgânicos, originários do esgoto doméstico sem tratamento, o rio Jaboatão está contaminado com metais pesados, de acordo com o estudo, que avaliou 79 parâmetros de qualidade da água. Só para ter uma ideia, o teor de cádmio, elemento químico usado na indústria de baterias e de tinta, era 2.800 vezes superior ao permitido pela legislação. “É um metal pesado cancerígeno”, afirma Porto. 50

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Associada à poluição, a derrubada das matas às margens dos rios eleva a quantidade de sedimentos que chegam às águas, deixando-as mais turvas. E águas menos limpas aumentam a probabilidade de ataque. É que, com visibilidade menor, os tubarões enfrentam mais dificuldade de identificar suas presas habituais, segundo estudo publicado em março de 2008 no Bulletin of Marine Science. Para os especialistas, os esportistas – surfistas e body-boarders – lideram as estatísticas das vítimas porque costumam se arriscar mais no mar do que os banhistas e também podem ser mais facilmente confundidos com presas. Vista de dentro d’água, a perna de uma pessoa sentada sobre uma prancha pode ser confundida com um peixe em dificuldades, nadando desorientadamente próximo à superfície. No caminho da fera - Mas se há polui-

ção por toda parte, por que os ataques são mais frequentes em Pernambuco? A resposta pode estar no comportamento de algumas espécies de tubarão. O litoral pernambucano faz parte da rota migratória do tubarão-tigre, uma das 500 espécies conhecidas no mundo.

Durante o mês de julho deste ano Hazin conseguiu rastrear, com ajuda de satélite, o deslocamento de um exemplar jovem de tubarão-tigre, que media 1,5 metro de comprimento. Nesse período o tubarão percorreu mais de 200 quilômetros ao longo da costa, do Recife, em Pernambuco, até perto de Natal, no Rio Grande do Norte, fazendo uma trajetória em ziguezague. “Esse comportamento sugere que o animal acompanha a corrente marítima, que se desloca do Sul para o Norte ao longo da costa nordeste do Brasil”, diz Hazin. Segundo o pesquisador da UFRPE, o movimento diário de aproximação e afastamento do litoral se deve à variação do nível do mar. “Durante a maré baixa ele se afasta da costa, enquanto na alta se aproxima”, esclarece Hazin. Nesse longo deslocamento, o tubarão-tigre também mergulha, alcançando profundidades de até 212 metros. Já se sabia que o cabeça-chata, peixe de hábito solitário que pode atingir quatro metros de comprimento e pesar meia tonelada, se aproxima da costa porque usa os estuários dos rios para reproduzir e criar os filhotes. Faltava explicar a presença constante de tubarões-

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Danos da pesca - Na tentativa de redu-

zir o número de acidentes com tubarões o governo do estado de Pernambuco instalou placas nas praias alertando para o risco de ataques e em 2004 criou o Comitê Estadual de Monitoramento de Incidentes com Tubarões (Cemit). Nos últimos anos o Cemit já capturou nove exemplares de cabeça-chata e 31 de tubarão-tigre com o objetivo de estudar o comportamento dessas espécies. O programa de monitoramento ficou paralisado durante 15 meses por falta de verbas entre 2004 e janeiro deste ano. “Nesse período ocorreram dez ataques, enquanto nos 41 meses restantes apenas um foi registrado”, diz Hazin, que preside o Cemit. Desde 2007 os tubarões capturados passaram a ser levados para longe da costa, onde são marcados e recebem aparelhos de monitoração por satélite, antes de serem soltos. Com essa estratégia, Hazin pretende compreender melhor os hábitos dessas espécies. Nos últimos tempos, os pesquisadores da UFRPE também vêm recomendando que a pesca de camarão com redes de arrasto, que coletam crustáceos e peixes no fundo do mar e danificam os recifes de corais, seja realizada apenas a partir de cinco milhas náuticas de distância da costa – uma milha náutica equivale a 1,8 quilômetro. É que os peixes capturados e descartados pelas embarcações camaroneiras atraem tubarões, aumentando os riscos de ataque. Estima-se que, para cada quilo de camarão capturado, outros 50 de peixes, moluscos e crustáceos são lançados de volta ao mar, porque são pequenos demais para o consumo ou não têm interesse comercial. “Na maioria são peixes jovens, que nunca se reproduziram e já estão morrendo”, diz o engenheiro de pesca Paulo Oliveira, da

UFRPE. Um estudo piloto realizado por Oliveira em Brasília Teimosa, na Zona Sul de Recife, indica que nove espécies de peixe – todas de interesse comercial e uma protegida por lei por estar ameaçada de extinção – estão entre o material descartado pelos barcos que pescam camarões. “Há linguados, galos, anchovas, sardinhas, manjubas e carapebas. São peixes comestíveis, que poderiam ser comercializados se tivessem crescido mais”, diz Oliveira. Entre os peixes descartados havia inclusive exemplares de mero, espécie que integra a lista vermelha de espécies ameaçadas de extinção e alcança três metros, cuja pesca foi proibida durante cinco anos pelo Instituto Nacional do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

De acordo com um técnico do próprio Ibama, essa restrição prejudicaria os pescadores. É que o camarão vive em regiões lamacentas próximas aos estuários dos rios. “Após cinco milhas não tem mais camarão. Proibir a pesca nessa área significa acabar com a subsistência de centenas de famílias”, afirma o engenheiro de pesca Euclides Dourado, do Ibama. A pesca com rede de arrasto é proibida a uma milha náutica da costa em Pernambuco e Alagoas, a duas em Sergipe e a três na Bahia. ■ > Artigo científico 1. HAZIN, F.H.V. et al. A shark attack outbreak off Recife, Pernambuco, Brazil: 1992-2006. Bulletin of Marine Science. v. 82, n. 2. mar. 2008.

MARCOS MICHAEL/JC IMAGEM

-tigre, que vivem em grupo. “Agora sabemos que se trata de um comportamento migratório”, afirma Hazin, que ainda não sabe o motivo do deslocamento. “Acreditamos que não seja um hábito reprodutivo, porque o animal que monitoramos é jovem. Pode ser uma migração sazonal”, diz o pesquisador. Diretor do Departamento de Pesca e aquicultura da UFRPE, Hazin afirma que será preciso monitorar alguns outros exemplares de tubarão-tigre para determinar a rota migratória da espécie e as causas desse deslocamento.

Alerta nas praias: placas informam sobre o risco de acidentes

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AMBIENTE

As águas eo

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Rios da Amazônia liberam 1% do gás carbônico emitido pelas atividades humanas no planeta Evanild o da Silveira

P

or muito tempo se acreditou que a Floresta Amazônica fosse o pulmão do mundo e um imenso sumidouro de gás carbônico, associado ao aumento da temperatura do planeta. Estudos recentes, porém, indicam que a vegetação amazônica consome sim mais carbono do que emite, mas não na proporção que se imaginava. Pesquisas do Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia (LBA), projeto internacional que envolve mais de 300 pesquisadores da América Latina, dos Estados Unidos e da Europa sob a liderança brasileira, demonstraram que ela absorve por ano apenas duas toneladas de carbono por hectare a mais do que libera para o ar (ver Pesquisa FAPESP nº 72). E esse valor pode ser ainda menor – ou até mesmo zero. É que nele não está computado o gás carbônico liberado pelos rios da Amazônia, que concentram 20% das reservas de água doce do mundo. Nos últimos anos a equipe do engenheiro agrônomo Reynaldo Victoria, da Universidade de São Paulo (USP) em Piracicaba, vem analisando em detalhes a quantidade de carbono liberada por rios e áreas alagadas de floresta – em especial na forma de gás carbônico (CO2), o principal gás associado ao aquecimento global. Refeitas as contas, os pesquisadores constataram que os ambientes aquáticos da Amazônia emitem para a atmosfera cerca de 470 milhões de toneladas de carbono por ano, o correspondente a 1% do total (49 bilhões de toneladas) de gases estufa emitidos pelas atividades humanas em 2004 no mundo. Divididos pela área coberta por água na região, esses 470 milhões de toneladas equivalem a 1,2 tonelada por hectare, detalhou o grupo de Piracicaba em dois artigos publicados recente-

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mente – um em 2002 na Nature e outro em 2008 no Earth Interactions Journal. Esses dados devem contribuir para que, no futuro, se conheça com precisão a diferença entre o que é absorvido e emitido por toda a Amazônia. O primeiro desses estudos, resultado de uma parceria do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena), da USP, com a equipe de Jeffrey Richey, da Universidade de Washington, nos Estados Unidos, sugere que a origem provável da maior parte desse carbono seja a matéria orgânica (plantas e animais) transportada pelas chuvas das terras mais

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FABIO COLOMBINI

Áreas alagadas da floresta: fonte de 470 milhões de toneladas de gases estufa por ano

altas, não-inundáveis, e de áreas de floresta que permanecem embaixo d’água parte do ano para os rios e riachos. Apenas uma pequena parte (cerca de 10%) do gás carbônico dissolvido na água chega ao oceano Atlântico, segundo a bióloga Maria Victoria Ballester, pesquisadora do Cena e coautora dos artigos. “A partir dessas descobertas, sugerimos que, somada a emissão dos ambientes terrestres e aquáticos, o balanço global de carbono das florestas

tropicais parece próximo de um equilíbrio”, explica. No artigo do Earth Interactions Journal de junho de 2008, a bioquímica Maria de Fátima Rasera, também do Cena, estimou a parcela de gás carbônico emitida pelos rios de pequeno porte, com até 100 metros de uma margem à outra, que compõem 92% da malha hidrográfica da Amazônia. Como a extensão da bacia Amazônica tornaria impossível o trabalho de

medir a emissão de cada rio, Maria de Fátima fez os cálculos iniciais para 28 rios da bacia do Ji-Paraná, em Rondônia. Depois extrapolou os dados para o restante da Amazônia. Seus números indicam que os rios de pequeno porte liberam anualmente para a atmosfera 170 milhões de toneladas de carbono na forma de gás carbônico (CO2). “Esse trabalho salienta a importância dos pequenos rios nessa troca gasosa”, afirma Maria de Fátima. PESQUISA FAPESP 155

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O PROJETO O papel dos sistemas fluviais amazônicos no balanço regional e global de carbono: evasão de CO2 e interações entre os ambientes terrestres e aquáticos

MODALIDADE

Projeto Temático COORDENADOR

REYNALDO LUIZ VICTORIA – Cena/USP INVESTIMENTO

R$ 1.080.118,96 (FAPESP)

vezes superior à que vai para o oceano”, comenta Reynaldo Victoria. Inicialmente os pesquisadores avaliaram a concentração de CO2 dissolvido no rio Amazonas, em seus principais afluentes e em algumas regiões alagadas que totalizavam uma área de 1,8 milhão de quilômetros quadrados, o equivalente a um terço da Amazônia brasileira. “Informações de sensoriamento remoto permitiram quantificar a cobertura de água em períodos representativos de alagamento e de seca”, explica Maria Victoria. “Com esses dados, foi possível computar o fluxo de gás carbônico da água para o ar em diferentes ambientes.”

Esses resultados preenchem uma lacuna no conhecimento sobre o ciclo do carbono nas regiões tropicais e sua influência no mundo todo, que não é pequena. Maria Victoria explica: “Com um quinto da água doce do planeta, a bacia amazônica emite para a atmosfera aproximadamente o dobro da quantidade de carbono liberada pelo desmatamento e pela queima da floresta”. “Esses resultados permitem uma avaliação mais precisa da influência dos sistemas aquáticos da Amazônia na emissão de carbono e, consequentemente, na alteração do clima do planeta”, comenta o limnologista e especialista em ecologia José Galizia Tundisi, presidente do Instituto Internacional de Ecologia de São Carlos. Segundo Tundisi, o trabalho do grupo de Piracicaba também ajuda a compreender melhor a extração de carbono da atmosfera pelas algas e pela vegetação terrestre. ■

> Artigos científicos 1. RASERA, M.F. et al. Estimating the surface area of small rivers in the southwestern Amazon and their role in CO2 outgassing. Earth Interactions. v. 12, n. 6, p. 1-16. 2008. 2. RICHEY, J. E. et al. Outgassing from Amazonian rivers and wetlands as a large tropical source of atmospheric CO2. Nature. v. 416, p. 617-620. 2002. CBERS/INPE

Em quase duas décadas de investigação do papel dos rios amazônicos no ciclo do carbono – da retirada desse elemento químico da atmosfera na forma de gás carbônico e sua incorporação pelas plantas ao retorno aos ares – a equipe do Cena publicou 120 artigos científicos. “Queríamos entender os processos de transporte e de transformação do carbono na calha principal do rio Amazonas e em seus principais afluentes”, explica Reynaldo Victoria. “Em dez anos de trabalho determinamos com precisão a quantidade de carbono que deixa a bacia amazônica e segue para o oceano a cada ano. São 36 milhões de toneladas de carbono orgânico e 35 milhões de toneladas de inorgânico.” Além da importância do ambiente aquático na troca de gases com a atmosfera, o trabalho do Cena revelou outro comportamento curioso da floresta. Imaginava-se que quase todo o carbono absorvido do ar fosse incorporado pelas plantas e utilizado em seu crescimento. A equipe de Reynaldo Victoria descobriu que não é bem assim. “Aparentemente a floresta absorve pouco carbono e, mesmo assim, libera parte para os ecossistemas aquáticos”, conta o pesquisador. Dos rios, esse carbono retorna para a atmosfera e uma pequena fração segue para o Atlântico. “O trabalho de 2002 mostrou que a porção de carbono que volta para a atmosfera é 13

Rio Negro: águas devolvem ao ar parte do carbono captado pela floresta

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A expansão das cidades

DEMOGRAFIA

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m estudo internacional liderado por físicos dos Estados Unidos resultou em novos conceitos e fórmulas matemáticas que explicam como as cidades crescem. Realizado por um grupo do qual participa um físico brasileiro, José Soares de Andrade Jr., da Universidade Federal do Ceará, esse trabalho indicou que, em média, as cidades pequenas e médias crescem proporcionalmente mais e de forma mais rápida que as grandes e ainda apresentam maiores variações de crescimento entre si: duas cidades médias semelhantes, com a mesma população, podem ter destinos bem diferentes décadas depois, uma tendo ganhado mais gente e espaço e outra sem ter saído da estagnação. As grandes crescem de modo mais uniforme, com menos flutuações em torno da média de crescimento. Esses resultados contrariam uma lei sobre a expansão demográfica urbana, conhecida como lei de Gibrat, segundo a qual todas as cidades cresceriam igualmente, não importando o tamanho. E podem ter implicações

Avenida São João, em São Paulo, 1955: metrópole em expansão

Para físicos, centros urbanos médios crescem de forma mais rápida Carlos Fioravanti

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equipe coordenada por Hernán Makse, da Universidade de Nova York, criou um método próprio de estudar o crescimento das cidades. Inicialmente os físicos aplicaram malhas quadradas com unidades – ou células – de tamanhos variáveis sobre três áreas bastante diferentes entre si. A primeira área foi a Grã-Bretanha, com quase 200 mil quilômetros quadrados (km2) e 60 milhões de pessoas, coberta por uma malha com 5,7 milhões de células de 200 metros quadrados (m2). A segunda área escolhida foi o território contínuo dos Estados Unidos, de 7,4 milhões de km2, onde vivem 303 milhões de pessoas, dividido em 59,4 milhões de células de 2 km2. A terceira era ainda mais ampla: 53 países da África, com 30 milhões de km2 e 933 milhões de pessoas, cortados por 500 mil células de 7,4 km2. Os físicos aplicaram a malha sobre dois momentos – o início da década de 1980 e de 90, no caso da Grã-Bretanha, por exemplo – e deixaram o computador calcular as variações de população em cada célula por meio de uma técnica numérica chamada algoritmo de agrupamento de cidades (CCA, na sigla em inglês). Esse algoritmo, que eles próprios criaram, fornece a taxa de crescimento populacional e os movimentos de expansão, agregação ou divisão das cidades. “A média do crescimento das cidades decresce à medida que as cidades crescem”, diz Andrade, que voltou para Fortaleza no mês passado, depois de trabalhar sete meses na Escola Politécnica Federal (ETH) em Zurique, na Suíça. O fato de não haver um valor típico para o crescimento das cidades caracteriza o que os físicos chamam de lei de potência, sem regularidades e variações claras como a altura das pessoas, que têm em média 1,65 metro,

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com 20 cm a mais ou a menos. Uma das consequências das leis de potência reveladas no estudo são as correlações de longo alcance: o crescimento das cidades de qualquer tamanho pode influenciar o crescimento de cidades bem distantes. “A cidade e a expansão urbana podem ser analisadas por esse tipo de abordagem tipicamente positivista?”, questiona o demógrafo Roberto Luiz do Carmo, pesquisador do Núcleo de Estudos da População (Nepo) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Tenho a impressão de que não necessariamente. Será que as cidades da África podem ser tratadas da mesma maneira que as cidades dos Estados Unidos?” As cidades, lembra ele, refletem histórias e processos sociais de ocupação de espaço próprios. “O crescimento das cidades médias acompanhou o processo de constituição das grandes metrópoles brasileiras, mas apresentando aspectos típicos da urbanização brasileira, como a ocupação de espaços descontinuados em relação ao centro urbano com a finalidade específica de valorização dos espaços vazios.”

O

estudo dos físicos chega em um momento em que o fenômeno da urbanização no Brasil e em outros países assume novos padrões demográficos e morfológicos, dando espaço para aglomerações urbanas mais dispersas, observa a geógrafa Maria Encarnação Sposito, professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Presidente Prudente. “A urbanização difusa pode ser uma explicação para as cidades menores crescerem mais”, diz Maria Encarnação, coordenadora da Rede de Pesquisadores sobre Cidades Médias (ReCiMe), com representantes de 14 universidades no Brasil, duas na Argentina e uma no Chile. “O que caracteriza a urbanização atualmente, do ponto de vista morfológico, é muito mais o conjunto de fluxos do que as continuidades territoriais”, diz ela, lembrando que na cidade de São Paulo, por exemplo, há mais ônibus para Campinas, a 100 km da capital, do que para bairros periféricos como o Jardim Ângela. ■

ILUSTRAÇÕES JAN ECKSCHMIDT/REPRODUÇÕES DO LIVRO SÃO PAULO NO LIMIAR DO SEU QUINTO SÉCULO

sociopolíticas, acredita Andrade, um dos autores do estudo que detalha esses achados na edição de 2 de dezembro na revista PNAS. “Por causa dessas variações sobre o crescimento da população, muito maiores nas cidades menores”, diz ele, “o estudo sugere que um plano de investimento em cidades pequenas estaria sujeito a mais riscos do que em uma cidade grande”.

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ESPECIAL EINSTEIN 1II

O UNIVERSO ALÉM DA FÍSICA 59

Einsten, a luz e a matéria

Luiz Davidovich 61

Einstein, o físico e o filósofo

Michel Paty 64

Como Einstein e Picasso inventaram o século XX

Arthur Miller 66

Albert Einstein e Mário Schenberg nas fronteiras da ciência no século XX

José Luiz Goldfarb 68

O discreto charme das partículas elementares

Maria Cristina Abdalla 69

Quando Einstein falhou: a luta contra os moinhos de vento quânticos

Yurij Castelfranchi 71

O tempo na história

Edgar de Decca 72

O tempo no cinema

Rubens Machado Júnior 73

Os gostos e desgostos de Einstein

Cássio Leite Vieira

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DIÁLOGO

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Quando Eduard, filho caçula de Albert Einstein, perguntou ao pai por que era tão famoso, ele respondeu do modo mais simples e objetivo possível. “Quando um besouro cego anda sobre a superfície de um galho curvo, ele não percebe que o caminho percorrido é uma curva”, disse. “Eu tive a sorte de perceber o que o besouro não percebeu.” Einstein usou uma imagem clara para descrever sua grande descoberta de que a gravidade era a curvatura no tecido do espaço-tempo. O relato consta da mais recente biografia do alemão escrita por Walter Isaacson e lançada no final de 2007. A simplicidade da explicação contrasta com a dificuldade que os leigos em física e matemática têm em entender na plenitude a teoria da relatividade, seu mais famoso trabalho. Foi essa a razão que levou Pesquisa FAPESP e o Instituto Sangari a pedir aos palestrantes da programação cultural paralela à exposição Einstein para se espelhar no próprio homenageado e se esforçar em se fazer entender por pessoas sem conhecimento específico de física. Pela reação favorável do público durante as palestras, fomos bem-sucedidos. O objetivo da programação foi estender esse entendimento da física de Einstein para as outras influências que ele teve sobre todo o século XX. Entre outubro e dezembro do ano passado 27 especialistas de outras áreas do conhecimento se revezaram para falar sobre biologia, como Martín Cammarota, UNIVERSAL história da física, como Roberto de Andrade Martins e Alfredo Tolmasquim, história em geral, como Edgar de Decca, filosofia, como Michel Paty e Pablo Mariconda, teatro e cinema, como Sérgio de Carvalho e Rubens Machado Jr., antropologia, como Mauro Almeida, e arte, como Arthur Miller. Como pacifista radical e ativista em prol de uma ciência internacionalista, sem nenhuma barreira a bloquear o conhecimento, foi muito combatido. Não importava se estivesse na Alemanha durante a Primeira Grande Guerra, quando se recusou a endossar um manifesto a favor do Kaiser, ou nos Estados Unidos, quando era visto com desconfiança por órgãos do governo por pensar e agir sempre de modo independente, com objetivos baseados na sua visão humanista do mundo. Essas atitudes marcaram época e influenciaram gerações. Na filosofia, bebeu nas boas fontes, mas é preciso levar em conta a observação de Michel Paty: o cientista e o filósofo conviveram em Einstein, já que as respostas da ciência têm implicações filosóficas. “Einstein era consciente disso”, lembrou Paty. O mesmo princípio vale para a arte. Era de esperar que dois movimentos revolucionários, que eclodiram na mesma época, se cruzassem. No caso, as teorias de Einstein e os quadros de Pablo Picasso. Ambos romperam padrões, trouxeram novos conceitos para suas áreas e se influenciaram mutuamente. Como pode se notar pelos textos que Pesquisa FAPESP vem publicando desde novembro – esta edição é última da série –, as contribuições do cientista alemão estão presentes em muitos setores com variados graus de importância. Explicitar essa influência foi ao que se propôs a programação cultural que ocorreu nas tardes de sábados e manhãs de domingo, ao longo de 18 finais de semana. Quem não esteve lá ou quiser rever as apresentações pode acessar trechos das palestras em vídeo e o texto integral em www.revistapesquisa.fapesp.br.

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LUIZ DAVIDOVICH Físico descreve os conflitos de Einstein com a física quântica, que ele ajudou a criar

Einstein hesitante O físico inglês Thomas Young já havia estudado bastante a luz e a caracterizado como fenômeno ondulatório em um dos experimentos que fez em 1800: a luz passava por fendas e formava regiões claras e escuras sobre uma superfície colocada depois das fendas, mas essas interferências desapareciam quando ele cobria uma das fendas. “Essa

FOTOS MARCIA MINILLO

Além de ter formulado a teoria da relatividade, Albert Einstein investigou durante muitos anos as propriedades da luz. A conclusão a que chegou, de que a luz poderia se comportar como se fosse um corpúsculo, ajudou a embasar a então nascente física quântica, mas contrariava os pressupostos da física clássica, segundo a qual a luz era tão-somente onda. Isso o incomodava profundamente. “Havia vários conflitos de Einstein com a teoria que ele ajudou a criar”, disse o físico Luiz Davidovich, professor do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na palestra do dia 7 de dezembro, “Einstein, a luz e a matéria”. Davidovich apresentou inicialmente Pierre Laplace (1749-1827), matemático francês que reforçou o determinismo da física clássica com raciocínios como este: “Uma inteligência que em determinado instante pudesse conhecer todas as forças que governam o mundo natural, que pudesse conhecer as posições respectivas das entidades que o compõem e que fosse capaz de analisar todas essas informações teria como abranger em uma única fórmula os movimentos dos maiores corpos do Universo e dos seus menores átomos. Para essa inteligência, nada seria incerto. Tanto o passado quanto o futuro estariam presentes aos seus olhos”. Como o futuro poderia ser conhecido desde que o passado fosse conhecido, não havia espaço para incertezas que logo começariam a brotar. Até o início do século XX as partículas atômicas eram caracterizadas por sua posição e velocidade, e a luz era apenas onda, com propriedades já bem estabelecidas. As leis

do eletromagnetismo criadas pelo físico escocês James Clerk Maxwell relacionavam a frequência de oscilação – a cor da luz – com a velocidade da luz e o comprimento de onda. “A luz que atinge nossos olhos, se vibra muito, transmite a cor violeta; se vibra menos, transmite o vermelho”, exemplificou Davidovich. Também já era conhecido, ele lembrou, o fenômeno de interferência de ondas como as provocadas por duas pedras atiradas em um lago. “Quando o máximo de uma onda encontra o mínimo de outra, as ondas se anulam; quando dois máximos ou dois mínimos se encontram, se reforçam.” O resultado dessas afirmações é que no final do século XIX os cientistas pensavam que não haveria mais nada a fazer na física; tudo parecia resolvido. Davidovich lembrou de um comentário do físico irlandês William Thomson (1824-1907), mais tarde conhecido como Lord Kelvin: “A física é um céu azul com pequenas nuvens no horizonte”. As pequenas nuvens representavam os problemas ainda abertos, que talvez pudessem ser resolvidos com técnicas matemáticas mais refinadas. “Mas de repente as pequenas nuvens no horizonte se juntaram e formaram uma imensa tempestade”, disse Davidovich. Os dois principais causadores dessa tempestade foram o físico alemão Max Planck, que publicou um estudo em 1900 mostrando que a produção de luz por um corpo aquecido, como um forno de uma siderúrgica, se dava através de pacotes de energia, e Einstein, que afirmou em um artigo de 1905 que a luz poderia se comportar como se fosse constituída de corpúsculos chamados fótons.

Davidovich: a luz no horizonte

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experiência explica a reticência de Einstein em dizer que a luz era constituída de corpúsculos”, comentou Davidovich. Mesmo hesitante, Einstein estudou intensamente a luz nos anos seguintes e em 1909 publicou um artigo em que mostrava, com base em argumentos estatísticos, que as flutuações de energia de radiação tinham um caráter ambíguo, exibindo características de partícula e de onda. “Notem a visão de longo alcance de Einstein, que disse que deveria haver uma teoria que juntasse esses dois aspectos da luz como onda e partícula”, ressaltou. Em 1911, no I Congresso de Solvay, que reuniu os principais físicos do mundo em Bruxelas, na Bélgica, Einstein, o mais jovem dos participantes, insistiu no conceito provisório do conceito de quanta, que apresentava a luz como pacotes de energia, emitida em pequenas quantidades a cada vez, e colidia com “as consequências experimentalmente verificadas da teoria ondulatória”, nas palavras do próprio físico alemão. Mesmo resistente à teoria quântica que começava a emergir, Einstein continuou a estudar a absorção e a emissão da luz. Por fim, em um trabalho publicado em 1919, demonstrou teoricamente que havia duas maneiras distintas de um átomo passar de um estado com maior energia para um de menor energia emitindo radiação: ele pode emitir um fóton espontaneamente ou então, se estimulado por um fóton, emitir outro fóton idêntico ao que estimulou a emissão. “Nesse caso, da emissão estimulada, chega um fóton e saem dois fótons idênticos”, sintetizou Davidovich. “Os físicos estavam tão obcecados em entender a natureza que não viam aplicação nessa descoberta.” Só em 1960, 43 anos depois, valendo-se desse conceito sobre a emissão de radiação, o físico norteamericano Theodore Maiman construiu o primeiro aparelho emissor de raios laser. A luz, uma probabilidade Einstein continuava resistente às suas próprias conclusões de que, no processo de emissão espontânea, seria impossível determinar o instante e a direção em que o átomo liberaria o fóton. Em uma carta que enviou em 1920 a um amigo, o físico dinamarquês Niels Bohr, Einstein declarou que “ficaria muito infeliz se tivesse que renunciar à causalidade completa”. “Os resultados entravam em choque com o determinismo da física clássica”, observou Davidovich. Poucos anos depois outro físico, o francês Louis de Broglie, propôs que não só a luz, mas também partículas elementares da matéria como elétrons e prótons poderiam comportar-se como ondas. Aos poucos o determinismo de Laplace era enfraquecido e a ideia de que átomos e fótons pudessem se comportar como onda ou partículas ganhava força. “Onda não é mais um ente físico, como uma onda de água, mas um ente abstrato, que descreve uma probabilidade”, disse o físico da UFRJ. “Se essa ideia é difícil para nós hoje, imaginem naquela época.” Einstein não se conformava e, em outra carta a um amigo, o físico alemão Max Born, reconheceu

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que a mecânica quântica se impunha, embora, para ele, não fosse a última palavra. Seu argumento: “Deus não joga dados”. Pouco depois, em 1927, o físico alemão Werner Heisenberg anunciou o que se tornaria conhecido como princípio da incerteza de Heisenberg, que reforçava o desconforto de Einstein: era impossível conhecer com precisão a velocidade e a posição de uma partícula ao mesmo tempo: aumentar a precisão de uma variável implica reduzir a de outra. A determinação precisa da posição ou do momento envolve experimentos diferentes e complementares. Da mesma forma, a luz comporta-se como onda ou como partícula dependendo do experimento que a examina. “Heisenberg dizia que só havia sentido falar da posição de uma partícula dentro de um contexto experimental projetado para medir essa posição”, disse Davidovich. “Fora desse contexto, a posição não teria uma realidade física.” Em uma reportagem publicada em 3 de maio de 1935 o jornal norte-americano The New York Times destacou que Einstein atacava a teoria quântica, chamando-a de “incompleta, embora correta”, em um artigo que seria publicado duas semanas depois na revista Physical Review com outros dois físicos, o russo Boris Podolsky e o norte-americano Nathan Rosen. Os três examinavam um fenômeno do mundo quântico conhecido como emaranhamento, considerando duas partículas que se separam após uma colisão e para as quais, segundo a física quântica, é possível conhecer apenas a soma de suas velocidades e a diferença de posição entre elas, mas nem a velocidade nem a posição de cada uma individualmente. “Em um estado emaranhado, o conhecimento global não implica conhecimento individual das partículas”, disse Davidovich para a plateia, que tranquilizou em seguida: “Se não entendem, podem ficar tranquilos. Estão em excelente companhia. Ninguém entende direito”. “Einstein, Podolski e Rosen argumentaram que, medindo a posição ou a velocidade de uma das partículas, poderíamos inferir a posição ou velocidade da outra, mesmo estando distante, a partir do conhecimento da soma das velocidades e da diferença de posições”, comentou o físico do Rio. “Assim, a posição e a velocidade dessa outra partícula deveriam ter uma realidade física, pois essas quantidades poderiam ser determinadas sem interagir diretamente com essa partícula. Desenvolvimentos posteriores da física quântica mostraram, no entanto, que de fato

Conhecimento global não implica conhecimento individual das partículas. Se não entendem, podem ficar tranquilos. Ninguém entende

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não se pode atribuir uma realidade física simultaneamente à posição e à velocidade de uma partícula.” Einstein dedicou-se também ao estudo da matéria. Seus trabalhos nessa área, publicados entre 1907 e 1911, mostraram novas propriedades térmicas dos sólidos. Em 1925 Einstein caracterizou teoricamente um novo estado da matéria, o chamado condensado Bose-Einstein, em que todos os átomos estão no estado de mais baixa energia. Esses trabalhos permitiram a construção de lasers de átomos, análogos ao laser de luz criado por Maimam. “A física quântica, apesar de seus aspectos contraintuitivos, teve um profundo impacto em nosso quotidiano”, ressaltou Davidovich. O laser, lembrou ele, é usado como base para tratamentos de pele, correção de visão e CDs. A ressonância magnética nuclear, outra aplicação da física quântica, facilita a observação do cérebro humano em funcionamento. Outras aplicações incluem os transistores, que deram origem aos computadores modernos, e os relógios atômicos, com uma precisão de um segundo em 10 milhões de anos.

Hoje a física quântica, que Einstein morreu sem aceitar, cobre fenômenos envolvendo distâncias que diferem de 60 ordens de grandeza (cada ordem de grandeza equivale a um fator 10). Serve para estudar fenômenos que vão de uma escala de 10-35 metros, como as supercordas, estruturas elementares hipotéticas do Universo, até 1.026 metros, como o mapa de flutuações da radiação térmica de micro-ondas do Universo. Para dizer que em boa parte a física quântica ainda é misteriosa, Davidovich valeu-se de um comentário de Niels Bohr: “Quem não fica chocado com a física quântica não a entendeu”. O físico da UFRJ encerrou a apresentação com o seguinte comentário: “Parece estranho e parece estranho e parece muito estranho; mas de repente não parece mais estranho, e não conseguimos entender o que fez parecer tão estranho para começar”. Dessa vez a frase não era de um cientista, mas da escritora norte-americana Gertrude Stein sobre a arte moderna do início do século XX.

MICHEL PATY

muito tempo e, recentemente, foi publicado no Brasil, pela Estação Liberdade, um trabalho de 1997, Einstein (traduzido por Mário Laranjeira, do original francês Einstein, ou, la création scientifique du monde), em que ele aborda a personagem nessa dupla dimensão. Registre-se, aliás, que o próprio Paty, cujo currículo inclui uma já longa colaboração com o Brasil, da qual faz parte a condição de professor visitante da Universidade de São Paulo (USP) em algumas ocasiões, a mais recente delas de 2004 a 2006, é filósofo e físico. Doutorou-se em ambos os campos e circula à vontade entre eles. Michel Paty começou por investir contra as fantasias mais recorrentes sobre Einstein, incapazes todas de traduzir para o público o significado da obra desse homem-chave do século XX, sejam elas “a de um demiurgo que teria

Einstein foi um cientista com estilo, dono de uma singularidade poderosa que, nos primeiros anos do século XX, lhe permitiu fazer dialogar dialeticamente três campos teóricos aparentemente inconciliáveis da física – mecânica, termodinâmica e eletromagnetismo –, para sobre isso criar suas próprias e novas teorias. Einstein foi também um consciente, arguto e bem preparado pensador da ciência até o fim da vida, e não um ingênuo que se aventurava a filosofar sem base sólida quando refletia sobre seu fazer científico. Foi a força dessa dupla face do mais importante físico do século passado que emergiu da densa palestra do filósofo francês Michel Paty, diretor de pesquisa emérito do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), no domingo 14 de dezembro, no Parque do Ibirapuera. Ao situar o lugar especial de Einstein na construção humana de mundos pela via do conhecimento, a fala de Paty encerrou com grande propriedade o ciclo de palestras sobre o físico alemão organizado por Pesquisa FAPESP, paralelamente à exposição científica trazida ao Brasil pelo Instituto Sangari e aqui coordenada por Marcelo Knobel, professor de física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Na verdade, o tema proposto por Paty – “Einstein, o físico e o filósofo” – é um de seus objetos de estudo há

MARCIA MINILLO

Análise da obra de Einstein revela sua dimensão filosófica mesmo quando o cientista pensava nas teorias da física

• Carlos Fioravanti

Michel Paty: filósofo e físico

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pelos passos decisivos que conseguiu no conhecimento da matéria elementar (átomos, radiação, física quântica)”. Acrescentou que esses avanços decisivos relativos à matéria nas suas várias escalas ergueram “as colunas da física e da cosmologia contemporânea”, de tal forma que mudou de forma fundamental conceitos pelos quais se pensa o mundo, “tais como o espaço, o tempo, a massa, a energia, o campo etc.”. Como essas transformações e ideias inovadoras vieram à luz através do pensamento humano, neste caso particular, através de Einstein? Foi procurando responder a essa interrogação que Michel Paty enfatizou o que é, para ele, o “estilo” próprio de Einstein em sua maneira de pesquisar, “diretamente ligado com seu pensamento a respeito da matéria, do mundo e da capacidade do intelecto em aproximar-se, por suas representações conceituais e teóricas, desta realidade, e de torná-la inteligível”. De certa maneira, observou, apesar de seu caráter singular e excepcional, o processo de pensamento do cientista Einstein nos permite relacionar “ao vivo” três aspectos muito diferentes, raramente considerados de forma conjunta, mas indissociáveis, da possibilidade da ciência e da sua invenção: “a realidade material exterior ao pensamento, o pensamento simbólico e Diálogos impensáveis criativo guiado pela exigência racional de inteligibilidade e Michel Paty ofereceu ao público um resumo de Einstein a filosofia como perspectiva de conjunto e como momento como o grande físico, dos maiores do século XX, que rereflexivo da apreensão intelectual do mundo”. volucionou sua ciência “pela teoria da relatividade geral Para fornecer indícios daquilo que denominou o estilo ou teoria relativista da gravitação, pelas perspectivas oferede Einstein, Paty destacou que “se deve a ele a reunião cidas pela possibilidade de pensar uma cosmologia física, dos conceitos de massa e de energia no conceito único de massa-energia, assim como avanços do mesmo porte no conhecimento da matéria que carrega essa massa-energia, tais como o caráter discreto (quântico) da energia da radiação, a ligação da massa-energia com o campo da gravitação e a relação deste último à estrutura do espaço-tempo”. Ou seja, as contribuições de Einstein tornaram clara a dependência mútua desses conceitos físicos antes concebidos separadamente, ao mesmo tempo em que indicaram dificuldades fundamentais para se considerar conjuntamente esses conceitos e as teorias físicas correspondentes. Dessa forma, destacou Paty, “o pensamento físico de Einstein se revela simultaneamente construtivo e crítico. E se inscreve, de fato, num pensamento da matéria que é tanto científico – físico – quanto filosófico”. Einstein mobiliza essas duas dimensões, tomando-as como distintas que são, para fazer o mundo inteligível, segundo a visão de Michel Paty. A partir dessa interpretação foi que o filósofo, na sessão de encerramento do ciclo de palestras, procurou caracterizar o estilo Paty: Einstein usava a filosofia para refletir sobre a ciência do trabalho de pesquisa do cientista, vincuMARCIA MINILLO

aberto as portas do mundo do futuro, desconhecido e inquietante”, a de um cientista extravagante, “longe da vida cotidiana e da maneira comum do pensar”, ou ainda a de alguém apartado do mundo do pensamento, mais vinculado a uma ciência que é só “prosaica transformação de formas materiais, longe do mundo das ideias”. Para ele, o que permite “compreender, captar alguma coisa de essencial, encontrar um sentido profundo na obra realizada, sem que seja necessário dominá-la inteiramente nem, é claro, reinventá-la”, é seguir o pensamento do cientista em seu trabalho de pesquisa. “Mesmo parcial e limitado, esse apanhado de sua obra participa da intelecção do mundo que esta realiza”, disse. Se o mais incompreensível é, como mais ou menos dizia Einstein, que o mundo seja inteligível, para Paty, vê-se que ele realmente o é, quando se avança nos caminhos do conhecimento, pelas pegadas do grande físico, e admira-se o mundo a se abrir pelo trabalho do pensamento. “Dois aspectos aqui são notáveis: trata-se de trabalho do pensamento, e este cria, por assim dizer, formas novas de representação (dos fenômenos, do mundo) que atravessam a escuridão e nos fazem ver mais claramente, mais longe, mais profundamente”, ressaltou.

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lado a seu pensamento propriamente físico, vinculado à matéria, e, em seguida, relembrar as concepções mais gerais de Einstein sobre o conhecimento da matéria, em diálogo com outras ciências, a biologia em especial. Nessa segunda parte, Einstein realizou, segundo Paty, “uma reflexão sobre a relação entre as ciências e desenvolveu um pensamento filosófico em seu sentido próprio sobre a matéria e sobre o conhecimento”. A reforma da mecânica No esforço para caracterizar o estilo de trabalho do cientista, o palestrante observou que as primeiras contribuições de Einstein à física ocorreram quando se debatiam intensamente, nos primeiros anos do século XX, os méritos das várias abordagens teóricas e conceituais da matéria – as da mecânica clássica, originada no século XVII, da termodinâmica, que se constituíra com vigor na metade do século XIX, e do eletromagnetismo, mais recente. Einstein, longe da tentação tão comum na época de reduzir a descrição do conjunto dos fenômenos físicos a uma só das teorias disponíveis, considerando uma delas mais fundamental que as demais, partia da constatação, em suas pesquisas, exatamente dessa pluralidade teórica que lhe permitia tomar cada uma e ir se virando, avançando na perspectiva de uma teoria unificada, dado que a matéria é una na perspectiva da física, “mas sem tentar obrigar as várias teorias a serem uma antes do tempo”. Michel Paty falou sobre o que Einstein tomou de cada teoria. E a respeito da mecânica, por exemplo, ciência do movimento dos corpos, disse que ele a aceitava, primeiro, por sua possibilidade de ser expressada com o uso do cálculo diferencial integral, ou seja, por sua possibilidade analítica, algo fundamental para todos os físicos e, em segundo lugar, por ter identificado um princípio de relatividade em relação aos movimentos da inércia, que irá depois generalizar e usar em todos os seus trabalhos. No texto escrito de sua palestra, que em muitos momentos abandonou, dada a premência do tempo, Paty observou que “a respeito da mecânica, Einstein foi devedor das lições críticas de Ernst Mach sobre os conceitos absolutos de espaço e tempo, que lhe serviram de premissa para a teoria da relatividade restrita, e também sobre a relação necessária entre a massa de inércia de um corpo (concebida como seu ‘coeficiente de aceleração’) e os outros corpos presentes no espaço, que ele batiza de princípio de Mach e que foi, alguns anos mais tarde, um dos pontos de partida de sua teoria da relatividade geral e de sua cosmologia física”. Tudo isso fundamenta a afirmação do filósofo francês de que “Einstein não abandonou a mecânica, ele a reformou”. Paty foi examinando de modo similar e com múltiplos exemplos como Einstein reformou também a termodinâmica e o eletromagnetismo, em sua busca por tornar o mundo inteligível dentro das representações da física. Uma busca, em seu entendimento, sempre construtora de

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teorias e sempre crítica, que torna inaceitável a ideia de um Einstein jovem, empirista, e um Einstein velho, crítico. Entre as muitas conclusões que apresentou ao público sobre o cientista e o filósofo que conviveram em Einstein, Paty afirmou que, “de maneira explícita, a filosofia é convocada por Einstein quando se trata, para ele, de refletir sobre sua ciência. Pois as respostas da ciência têm implicações filosóficas e informam as grandes questões da filosofia – Einstein era consciente disso”. Entretanto, a mais instigante de suas afirmações em relação ao lado filosófico do cientista foi observar que essa dimensão é óbvia no pensamento de Einstein “pelas raízes profundas de suas interrogações sobre a física, isto é, sobre a descrição, por representação conceitual e teórica, do mundo material”. Trata-se, assim, de uma filosofia na prática, “na atitude prática do físico como pensador”. Se a isso se juntar a afirmação de Paty, ainda quando falava sobre o estilo singular do cientista, a respeito de como Einstein tratava de assegurar o caráter físico mesmo dos conceitos, apertando sua inserção na teoria de tal maneira que eles terminassem sendo determinados pela estrutura dessa teoria, que por sua vez tinha que ser estreitamente adequada aos elementos do mundo físico que ele buscava representar, algo mais se entenderá sobre a originalidade de Einstein. O último credo filosófico de Einstein, que ele próprio referia à filosofia de Kant, disse Paty, é que o mundo real, exterior ao pensamento, existe, e o pensamento humano pode, por seu próprio exercício, a ele aceder, porque o mundo pode se tornar inteligível, mas sem a física e sem as ciências em geral isso não seria realizável. Einstein fala em criação científica e não vê paradoxo na expressão. “Ele indica que não há um caminho lógico que leve diretamente da experiência do mundo à sua representação e, sob esse aspecto, o pensamento é livre e, portanto, criador.”

O estilo de Einstein, em sua maneira de pesquisar, estava diretamente ligado com seu pensamento a respeito da matéria, do mundo e da capacidade do intelecto em aproximar-se, por suas representações conceituais e teóricas, desta realidade, e de torná-la inteligível

• Mariluce Moura

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ARTHUR MILLER Filósofo da ciência norte-americano traça paralelos entre a ciência de Einstein e a arte de Picasso

MARCIA MINILLO

À primeira vista parece difícil estabelecer paralelos entre Einstein e Picasso – não, entretanto, para Arthur Miller, autor entre outros livros de Einstein, Picasso: space, time and the beauty that causes havoc (Basic Books, 2001). Porque se para o senso comum nada faria convergir essas duas personagens, afora talvez o fato de terem ambos sido grandes faróis a iluminar a construção do conhecimento e da cultura no século XX, e mais a coincidência de terem vivido cada um o seu período de mais intensa criatividade entre 1902 e 1909, para Miller isso é apenas um ponto de partida que lhe permite relacionar estreitamente o percurso criativo daqueles que define como o cientista e o artista mais importantes do século passado. “Sempre achei intrigante esse fato de ambos terem produzido seus trabalhos mais importantes na mesma época: em 1905 Einstein descobriu a relatividade especial e em 1907 Picasso pintou Les demoiselles d’Avignon. Trata-se de uma coincidência ou o quê? Decidi que a melhor maneira de tratar isso seria escrevendo uma biografia paralela de ambos”, disse em sua palestra no Ibirapuera, na progra-

Miller: olhar arguto sobre os dois gênios

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mação paralela da exposição sobre Einstein, no domingo, 29 de novembro. O físico norte-americano que vive há muitos anos na Inglaterra e é professor emérito de história e filosofia da ciência no University College London encontra novos paralelos nas carreiras das duas brilhantes personagens examinando, entre outras vias, como esses homens tocados pelo tsunami intelectual que nos primeiros anos 1900 sacudia a Europa, à maneira de uma nova Renascença, valeram-se simultaneamente da geometria, da tecnologia, da ciência e da estética para realizar seu poderoso trabalho criativo e com ele produzir inflexões definitivas nos rumos da ciência e da arte contemporâneas. Segundo Miller, no clima de excitação intelectual daquele período, “questionavam-se os posicionamentos acadêmicos, as convenções burguesas, formas de arte – pintura, música, arquitetura, literatura – e conhecimentos científicos, especialmente em relação ao modo como eram vistos o espaço e o tempo”. E Einstein e Picasso, na faixa entre 20 e 30 anos, “razoavelmente desconhecidos, pobres e prontos para se meter em encrencas”, sofreram grandes influências dessas marcas dominantes do período. “Tanto Einstein quanto Picasso trabalharam com os mesmos problemas, o da natureza do espaço e do tempo e o da representação da simultaneidade – temporal, para o primeiro, espacial, para o segundo –, que resultaram na descoberta de uma nova estética minimalista para o cientista e na geometrização do desenho e da pintura para o artista.” E aos olhos de Miller isso comprova que todos os grandes trabalhos artísticos e científicos sempre convocam o conhecimento de disciplinas díspares e, mais ainda, permitem esfumar nos momentos mais intensamente criativos as fronteiras entre ciência e arte. “Pude notar isso estudando o trabalho de algumas pessoas, os de Einstein e Picasso em especial”, observou. Superioridade da concepção Os vários episódios da vida e da produção intelectual de cada uma de suas personagens, apresentados de forma intercalada na palestra, iam ajudando Miller a evidenciar para a plateia a sua tese de que os resultados brilhantes obtidos por Einstein e Picasso, cada um em seu campo, devem muito à ênfase que ambos davam à concepção daquilo que queriam fazer ou desvendar, em lugar de privilegiar a observação. Miller lembrou que nos anos vividos em Berna, de 1902 a 1905, Einstein tinha com amigos um pequeno grupo de estudos, a chamada Academia Olímpia, que era fonte permanente de estímulo intelectual. Como tantos físicos ligados a universidades, ele, em seu modesto trabalho no escritório de patentes da Suíça, também se preocupava com questões referentes à natureza da luz. “O que, então, separou Einstein dos outros físicos?”, interrogou. “Nada havia que indicasse o que ocorreria em 1905.” Em paralelo, Picasso, ao retornar a Paris em 1904, com o talento já

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Pablo Picasso, Les demoiselles d’Avignon, 1907

reconhecido por vanguardistas como André Salmon, Max Jacob e Guillaume Apollinaire, que diziam formar “A banda Picasso”, experimentou até 1909, baseado em seu pequeno ateliê em Montmartre, instalado no Bateau-Lavoir, um prédio caindo aos pedaços, “o período mais criativo de sua vida” – e bastante movimentado com amigos e amigas. Pergunta de Arthur Miller: “O que diferenciava Picasso dos outros artistas, em particular de André Derain, o melhor aluno de Matisse?”. E um comentário para completar: “Todos esperavam que seria Derain quem romperia os padrões e traria um conceito radicalmente novo à arte”. Com a questão sobre Picasso temporariamente posta a descansar, Miller propôs uma resposta à interrogação sobre a singularidade de Einstein ante outros físicos. “De março a junho de 1905, Einstein trouxe um novo conceito para a ciência, de certo modo influenciado por questões estéticas. Em oito semanas, escreveu seus três artigos que modificariam o rumo da ciência e das nações, um dos quais foi o artigo sobre a relatividade, no qual utilizou a mesma estética minimalista que experimentara no primeiro artigo da série”, resumiu. Neste, Einstein propôs que seria necessário em relação a certos fenômenos, em vez de adotar a distinção formal que a ciência estabelecia entre ondas e partículas, considerar apenas um elemento, neste caso, o quantum de luz.

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STUDY FOR WOMAN WITH JOINED HANDS: HEAD OF WOMAN, 1907

REPRODUÇÃO MOMA/NOVA YORK

Essa forma ou essa estética e, especialmente, suas considerações sobre dínamos elétricos iriam representar uma contribuição fundamental à teoria da relatividade. Nas palavras de Miller: “Todos sabiam que os dínamos funcionavam, eles estavam no coração da Revolução Industrial, mas ninguém realmente sabia por que funcionavam – essa não parecia uma questão importante, mas para Einstein era”. E ele valeu-se de sua intuição para expressar um problema complexo por meio de uma forma de pensar extremamente visual: em vez de considerar o problema de forma complicada – o movimento de rotação de um ímã em relação a um condutor –, “fez uma demonstração bastante simples do que chamamos de indução eletromagnética, a essência dos dínamos elétricos, ou seja, um processo que provoca a geração de energia elétrica em um condutor que está em movimento com relação a um ímã”. Ora, da forma como a teoria eletromagnética era interpretada em 1905, entendia-se que observadores próximos do ímã ou do condutor dariam explicações radicalmente diferentes para o fenômeno de geração de corrente. “Para Einstein isso era estranho, dado que se estava ante um único efeito – a corrente medida – que poderia ser relacionado a uma única causa: o movimento relativo. As duas explicações seriam redundantes.” Mais adiante ele descobriria ser impossível a existência de dois distintos pontos de vista, ideia que não seria estética. “Como podemos constatar logo no início do artigo sobre a relatividade, ele entendia que isso levava a assimetrias que não eram inerentes ao fenômeno em si. Em sua opinião, havia somente um ponto de vista e os observadores eram equivalentes uns aos outros. Ao revelar essa falta de simetria, Einstein descobriu uma lei universal da natureza e o princípio da relatividade.” Miller, depois de lembrar que se pensava equivocadamente que esse princípio não funcionaria para teorias eletromagnéticas, ainda que funcionasse muito bem para fenômenos mecânicos, observou que não devemos nos perguntar por que na verda-

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de funciona para todos os sistemas: “Einstein chegou a essa estética minimalista através da ênfase na concepção e não na observação”, ressaltou. De volta ao artista, Miller observou que Picasso, que acreditava não serem tão bons nem tão vanguardistas os seus trabalhos, “também estava caminhando para um novo estilo de pintura que enfatizava a concepção e não a observação. Também estava interessado em novas formas estéticas, especialmente as da pintura de André Derain, com sua nova concepção de arte, e as da obra Le bonheur de vivre, de Henri Matisse”. E vários elementos vão entrar nas reflexões de Picasso sobre o que fazer: por exemplo, esculturas ibéricas primitivas vistas no Museu do Louvre, nas quais o intrigou o fato de o artista representar o que sabia e não o que percebia. Movido por isso, o artista se afastou de Paris para Besòs, nos arredores de Barcelona, e “teve uma grande inspiração de uma nova forma de arte, que nascia da fusão da arte conceitual francesa com a arte ibérica primitiva”. Um tanto inspirado em Cèzanne, isolado, trabalhando em ritmo frenético, indiferente aos comentários de amigos, ele iniciou provavelmente em março de 1907 a série sobre bordéis e concluiu no fim deste ano a pintura mais famosa da série, Les demoiselles d’Avignon. Uma demoiselle com rosto egípcio, duas com traços ibéricos, uma quarta muito mais geométrica que as demais, representada simultaneamente de frente e de perfil, de muitas formas essa “é a fusão presente na arte de Picasso”. Arthur Miller disse acreditar que “ao entendermos a representação dos rostos nesse quadro veremos como Picasso descobriu uma nova estética, que é a da redução das representações a formas geométricas, o que se tornou a principal característica do cubismo”. Miller apresentou Henri Poincaré como um denominador comum entre Einstein e Picasso e especulou a respeito da influência do cientista francês sobre Einstein no trabalho

que levou à definição do tempo e da simultaneidade como grandezas relativas. “Todos os cientistas estavam confusos a respeito do modo como a luz se propaga no espaço e de como percebemos seus efeitos. Mas Einstein, deixando a percepção de lado e partindo para a concepção, afirmou que a luz se propaga no espaço em uma velocidade constante, ponto de vista que trouxe consequências enormes.”

JOSÉ LUIZ GOLDFARB

sidade de Princeton, nos Estados Unidos, durante um período de estudos do brasileiro em que Einstein teria ficado muito impressionado com Schenberg”, disse o professor José Luiz Goldfarb, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, no dia 29 de novembro, na palestra “Albert Einstein e Mário Schenberg nas fronteiras da ciência no século XX”. “Em determinado momento após essa visita, não sabemos exatamente quando, alguém pediu para Einstein fazer uma lista de dez pessoas, dez inteligências, e Schenberg estaria nessa lista. A partir daí surgiu essa história, essa lenda”, diz Goldfarb. “As salas de Einstein e de Schenberg eram próximas e às vezes eles se encontravam por ali”, lembrou Goldfarb, um estudioso da vida e obra do físico brasileiro, sobre quem publicou o livro Voar também é com os homens – O pensamento de Mário Schenberg” (Edusp, 1993).

Historiador conta a trajetória do físico brasileiro Mário Schenberg, admirado pelo cientista alemão

Entre as pessoas mais admiradas por Albert Einstein estava o físico brasileiro Mário Schenberg. Segundo uma possível lista elaborada pelo famoso pai da teoria da relatividade, ele foi considerado um dos dez cientistas mais representativos na ciência do século XX. “Nós não temos comprovação dessa lista, não há documentos, o que sabemos é que Schenberg não trabalhou com Einstein, eles se conheceram na Univer-

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Determinação e perseverança No jogo contínuo entre suas duas personagens, Miller observou em seguida que Picasso, trabalhando com Les demoiselles d’Avignon, tinha inquietações muito semelhantes às de cientistas trabalhando na fronteira do conhecimento. Ele estava no epicentro do debate sobre representação versus abstração e queria encontrar soluções estéticas novas. Todos os desenvolvimentos tecnológicos da época, o avião, o telégrafo, o automóvel, mudando a concepção de tempo e espaço, as “brincadeiras” dos fotógrafos, desenvolvimentos científicos como a radiografia que traziam mais à cena a ambiguidade da visão, os novos conceitos matemáticos e geométricos, como os poliedros complexos, os debates sobre as quatro dimensões, tudo entrava no caldo que Picasso cozinhava em busca de soluções estéticas e emerge com toda a força no quadro citado. Miller ainda discorreu longamente, com riqueza de exemplos, sobre sua ideia de quanto a concepção foi determinante nos passos de suas duas personagens. “O que é inspirador na história de Einstein e de Picasso”, disse ao final, “é sua determinação e perseverança. Eles chegaram a resultados intelectuais notáveis em condições que levariam outros ao desespero. Sem exageros, podemos dizer que a arte moderna é Picasso e a ciência moderna é Einstein”.

• Mariluce Moura

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Schenberg: físico, político e crítico de arte

Na sua trajetória científica, Schenberg interagiu com muitos pesquisadores que deram contribuições importantes para a física. Trabalhou, por exemplo, em Roma, na Itália, com Enrico Fermi, ganhador do Prêmio Nobel de Física de 1938, e com George Gamow, um russo naturalizado norte-americano, na Universidade de Washington, nos Estados Unidos, responsável pelos estudos que resultaram na teoria sobre a grande explosão da criação do Universo, o Big Bang. Atingir esse patamar representou um grande salto para esse pernambucano nascido no Recife, em 1914, que queria estudar na Europa, mas não conseguiu logo de início porque a situação financeira de seu pai não permitia. Ele foi para o Rio de Janeiro, mas em 1930 voltou para o Recife e entrou na Escola de Engenharia, devido à crise de 1929. Em 1934, ano da fundação da Universidade de São Paulo (USP), se transferiu para a Escola Politécnica da universidade paulista, onde se formou em 1935. Licenciouse em ciências matemáticas no ano seguinte e logo foi trabalhar na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, no Departamento de Física. Saiu do Brasil em 1938 para a Europa em uma viagem de estudos financiada pelo governo paulista que durou nove meses. Nos estudos com Fermi, em Roma, ele menciona a possível existência do neutrino, uma partícula subatômica. “O neutrino era absolutamente uma hipótese, uma partícula que apenas nos anos 1960 é que vai ser observada, mas ela fazia parte do contexto teórico pincelado por Schenberg na Europa”, diz Goldfarb. Naquele mesmo ano, muito intuitivo, ele volta rápido ao Brasil, por ser judeu, antes do início da Segunda Guerra Mundial que estava por começar. Aqui ele concorre e consegue uma bolsa da Fundação Guggenheim dos Estados Unidos para trabalhar na Universidade de Washington para onde se transfere em 1939. Lá trabalha

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PEDRO PALHARES FERNANDES

FOLHA IMAGEM

na equipe de Gamow, que havia conhecido em São Paulo. Schenberg começou então seus estudos sobre astrofísica, área em que acontece sua maior contribuição à ciência. É o efeito Urca, chamado erroneamente de Ultra Rapid Catastrophe em sites e enciclopédias. “Eles tinham dados empíricos sobre supernovas que eram observadas e que não batiam com a teoria existente sobre a constituição de estrelas. Schenberg, numa conversa com Gamow, disse que não se estava levando em conta a emissão de neutrinos. Gamow põe a mão na cabeça – essa é a descrição literal de Schenberg – e diz: ‘Essa é a solução’”, lembrou Goldfarb. A emissão de neutrinos esfria o centro da estrela e produz um colapso e uma expansão na parte mais externa do astro. “Eles elaboraram e recalcularam a teoria e esse efeito passou a fazer parte do estudo das estrelas até hoje.” Gamow chama o efeito de Urca porque ele e sua esposa encontraram Schenberg no Rio de Janeiro e depois seguiram para o então cassino da Urca. “Lá a esposa de Gamow só perdeu dinheiro e então ele brincou: ‘A energia some no interior da estrela por causa da emissão dos neutrinos igual ao dinheiro da minha mulher que sumia naquela roleta no cassino da Urca’. Daí o nome”, disse Goldfarb. No Brasil, entre o final dos anos de 1950 e começo da década de 1960, o brasileiro foi fundador e chefe do Departamento de Materiais e Mecânica do Instituto de Física da USP e teve um papel de incentivador da física do estado sólido, embora não fosse sua área. “Schenberg falava que a nova revolução viria da física dos materiais com silício, cristais, que posteriormente resultou nessa sociedade da informação, e não na física nuclear como muitos acreditavam”, disse Goldfarb. Schenberg participa de muitas contribuições à física do século XX. “Ele acha ou às vezes indica soluções.

Goldfarb: estudioso da vida e da obra de Schenberg

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O poeta Haroldo de Campos o chamava ‘Leonardesco’, em referência a Leonardo da Vinci, porque ele tinha uma característica semelhante à do artista italiano. Às vezes, achava que já resolvera o problema e passava a trabalhar em outra questão como Da Vinci fazia com pinturas que não terminara.” O aspecto multifacetado presente no italiano também foi marca registrada de Schenberg. Além da física, o pernambucano trilhou outros caminhos, como crítico de arte, área em que cultivou muitas amizades. “Ele dizia que não era crítico, mas acabou se tornando um estudioso e, nos estudos que fiz, acabei encontrando resenhas ao longo de 40 anos, de 1944 a 1984”, lembra Goldfarb. Aliado à física e às artes, Schenberg também tinha um profundo interesse por política e filosofia. Ele era filiado ao Partido Comunista Brasileiro – caminho de grande parte da intelectualidade das décadas de 1930 e 1940 que se engajavam no movimento social – e foi eleito duas vezes deputado estadual em São Paulo. “Política para ele

era a possibilidade de as pessoas se organizarem e terem uma direção, uma bandeira, para poderem realizar o que querem, desenvolvendo suas possibilidades. Com o golpe militar de 1964, ele foi cassado, preso e aposentado da USP pelo Ato Institucional nº 5, uma situação revertida em 1979, com a anistia. Segundo Goldfarb, ele era um comunista peculiar porque teve grandes desentendimentos com o líder do partido, Luís Carlos Prestes, além de, na arte, apoiar tendências completamente diferentes do realismo socialista da ex-União Soviética. Schenberg também era muito interessado por religião. “Ele dizia que a religião tem um fundo de coisas que não entendemos mas que ainda vamos entender”, lembra Goldfarb. “Ele ia à umbanda, à sinagoga, à igreja.” No final da vida aproximou-se do budismo. Schenberg morreu em São Paulo, em novembro de 1990, aos 76 anos de idade.

MARIA CRISTINA ABDALLA

da Suíça com a França, evento que teve ampla cobertura da imprensa mundial. Um assunto que ganhou importância também para o ensino médio no estado de São Paulo por estar, a partir de 2008, na grade do currículo escolar, como comentou a professora Maria Cristina Abdalla, do Instituto de Física Teórica (IFT) da Universidade Estadual Paulista (Unesp), no início da palestra “O discreto charme das partículas elementares”, no dia 29 de novembro. Ela falou da necessidade de atualização dos professores de física desse segmento educacional e de dois trabalhos de divulgação científica que ela desenvolveu e vem a calhar nesse momento de expansão das partículas como tema escolar e midiático. O primeiro foi o livro O discreto charme das partículas elementares lançado em 2006, que daria o nome e inspiração para um filme finalizado em 2008. “O livro foi produzido pela Editora Unesp em 2006 e teve financiamento da FAPESP e apoio da reitoria da universidade que foram fundamentais para a publicação e para a contratação de um cartunista profissional, o que se tornou um diferencial em termos editoriais”, disse Cristina. As ilustrações são de Sergio Kon, que fez desenhos para cada partícula, como elétrons, fótons, os mais conhecidos, e demais membros dos grupos dos quarks, dos léptons e dos bósons formadores do modelo padrão que explica a dinâmica e as características das partículas. “Foram horas e horas dizendo para o Kon: ‘Eu quero todos os léptons alados, porque eles são partículas leves’; ‘Eu quero o glúon com dois olhos grandes, porque um olho vai grudar com um quark e o outro vai grudar com outro quark”, diz Cristina. “Então, elas estão decodificadas nos desenhos com as características e propriedades de cada uma.” No livro, a pesquisadora descreve todas as partículas contando a história de cada uma. “Nosso objetivo é enten-

• Marcos de Oliveira

Física relata a produção de dois trabalhos de divulgação científica relacionados às partículas elementares

PEDRO PALHARES FERNANDES

As partículas elementares, também conhecidas como subatômicas, que participam da formação dos átomos e consequentemente de toda matéria do Universo, tornaram-se recentemente famosas com a inauguração, em setembro de 2007, do maior laboratório do planeta, o Large Hadron Collider (LHC), o acelerador de partículas do Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (Cern) instalado na fronteira

Maria Cristina: tema escolar e midiático

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Elétrons em torno de um próton e o fóton em forma de floco de luz

der a estrutura da matéria a partir de uma gota de água, chegando ao núcleo dos átomos e mostrando que o próton ou o nêutron não são partículas elementares porque existe uma estrutura por trás deles”, disse Cristina. Ela começa a descrever as partículas pelo elétron que foi identificado em 1897 e percorre 103 anos de história, até o ano 2000, quando a última partícula do modelo padrão foi identificada, que é o neutrino tau. “Conto também que o elétron foi descoberto pelo inglês John Joseph Thomson e, em 1906, ele ganhou o Prêmio Nobel pela descoberta.” O fóton foi a segunda partícula elementar a ser descoberta. Ela foi predita por Albert Einstein na sua teoria sobre o efeito fotoelétrico – na verdade ele ganhou o Prêmio Nobel por esse trabalho e não pela teoria da relatividade. No livro, o fóton é um floquinho de luz porque ele é um

YURIJ CASTELFRANCHI Jornalista explica a resistência do cientista alemão à mecânica quântica

A luta de Einstein contra a mecânica quântica, teoria científica que ele ajudou a construir, durou 30 anos. O jornalista científico Yurij Castelfranchi, físico com doutorado em sociologia, falou sobre esse aspecto que ele considera pouco conhecido na apresentação “Quando Einstein falhou: a luta contra os moinhos de vento quânticos”, no dia 6 de dezembro. O título da palestra foi tirado de uma carta enviada ao físico alemão pelo seu amigo Michele Besso, um engenheiro suíço-italiano, que dizia: “O senhor Einstein é como o cavaleiro Dom Quixote – o Cavaleiro Dom

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ILUSTRAÇÕES SERGIO KON

quantum (pacote) de energia luminosa. A verificação experimental do fóton foi dada em 1923 por Arthur Compton. Em 1927, ele também ganhou o Prêmio Nobel. “Foi o primeiro americano a ganhar um Nobel e depois disso eles tomaram o gosto pela coisa”, disse Cristina. O mesmo floquinho de luz representante do fóton também aparece no filme O discreto charme das partículas elementares, que teve o roteiro baseado no livro. Na história, ele contracena com um aluno do ensino médio chamado Rafael, que interage com partículas subatômicas como fótons, elétrons, bósons, glúons e neutrinos num mundo virtual, junto com a melhor amiga de sua classe e mais dois professores, além de um apresentador de TV, vivido pelo ator Marcelo Tas. O filme estreou na TV Cultura no dia 10 de novembro de 2008, Dia Internacional da Ciência para a Paz e o Desenvolvimento. Ele foi apresentado à plateia no Ibirapuera e pode ser assistido pela internet no site www. tvcultura.com.br/particulas. A proposta do filme partiu de produtores da TV Cultura, e a professora Cristina solicitou e recebeu apoio financeiro por meio de um Edital de Projetos de Divulgação Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) para a produção. Depois de muitas pesquisas e discussões sobre a forma do filme, que poderia ser um documentário, por exemplo, optou-se por uma proposta que atingisse a linguagem do público que iria começar a receber esse tipo de matéria na grade escolar do ensino médio. Tanto o filme como o livro servem para uma melhor compreensão das partículas subatômicas por esse público e principalmente para os professores.

• Marcos de Oliveira Quixote de La Einstein – que está começando uma batalha contra os malvados quanta”. A participação do físico alemão na construção da mecânica quântica é inegável. “Ele foi um dos primeiros a dizer que a luz, além de ser uma onda, também era feita de partículas, os fótons”, disse Castelfranchi. “Foi uma contribuição importante e revolucionária, que lhe deu o Prêmio Nobel em 1921.” Então por que Einstein dedicou a segunda metade da vida, depois de já ser famoso mundialmente pelas teorias da relatividade especial e geral, a lutar contra uma parte da física que ele ajudou a construir? “O problema estava na interpretação que os grandes físicos contemporâneos a ele davam ao funcionamento do mundo atômico e subatômico”, explicou. Um experimento da física clássica conhecido como dupla fenda, adaptado para a então chamada física quântica, deu início a discussões e contestações de ambas as partes na década de 1920. Nesse experimento acontecia algo surpreendente: os elétrons pareciam comportar-se

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como partículas – com uma trajetória definida – quando sua posição era observada e medida por meio de instrumentos. Mas pareciam comportar-se como ondas, passando ao mesmo tempo por uma fenda e por outra, quando se media apenas a posição final onde apareciam numa tela. O ponto central da discórdia entre os físicos era o comportamento de partículas como elétrons. “Einstein podia aceitar que elas se comportavam como ondas e que então as coisas se misturavam, mas ele não podia acreditar que os átomos tinham que ser imaginados como algo sem forma, sem trajetória e que só podiam ser tratados como nuvens de probabilidade”, disse Castelfranchi. Foram muitos os adversários de Einstein nessa luta. Um deles é o físico alemão Werner Heisenberg, que criou o princípio da indeterminação, ou seja, que é impossível conhecer simultaneamente, com absoluta precisão, os movimentos e a posição de uma partícula. O outro é o físico dinamarquês Niels Bohr, um dos fundadores da teoria atômica e amigo de Einstein, mas a vida inteira um oponente intelectual. Einstein defendia a ideia de que devia existir uma maneira de investigar e detalhar o comportamento das partículas. Bohr, ao contrário, argumentava que não tinha sentido atribuir uma trajetória aos quanta, os fótons de luz, porque nesses experimentos eles não se comportavam como partículas.

Os físicos Heisenberg e Niels Bohr foram os principais oponentes intelectuais de Einstein nas discussões sobre a mecânica quântica

Em 1930, mais uma vez o Congresso de Solvay foi palco dos embates entre os dois físicos. O cientista alemão lançou um novo desafio para Bohr, complicadíssimo, que consistia em saber quanto tempo um fóton de luz demorava a sair de uma caixa que tinha dentro um relógio. Pelo experimento mental de Einstein, parecia que a teoria quântica era absolutamente incoerente. Uma testemunha que estava no congresso relatou: “Bohr não encontrou a solução na hora e passou a tarde inteira extremamente infeliz, indo de um lado para o outro conversar com todos os jovens físicos, tentando convencê-los de que Einstein estava errado, mas ele não sabia demonstrar como”, contou Castelfranchi. Após uma noite insone, Bohr conseguiu uma resposta utilizando a própria teoria da relatividade geral formulada por Einstein: “Esse seu relógio e sua caixa não vão funcionar, porque na hora em que a luz sair a caixa vai se mover e o tempo vai passar um pouquinho mais devagar. Fazendo todas as contas, você vai ver que é exatamente como nós, físicos quânticos, dizemos”. Essas brigas intelectuais são alguns exemplos da luta de Einstein sobre os fundamentos do que é a ciência, porque para ele a ciência não podia lidar só com probabilidades. Hoje a física que se estuda é a da relatividade de um lado e a quântica de outro. As críticas que o cientista alemão fez não conseguiram modificar substancialmente a teoria da física atômica. Einstein não conseguiu explicar o mundo microscópico coerentemente com a teoria da relatividade, assim como a física quântica também não explicou a curvatura do espaço-tempo com uma teoria coerente e unitária. “Einstein não perdeu de todo”, concluiu Castelfranchi.

• Dinorah Ereno

Castelfranchi: brigas intelectuais

Experimento mental O teatro mais famoso dessas brigas era o Congresso de Solvay, um dos encontros mais importantes de física, realizado desde 1911. No de 1927, em Bruxelas, na Bélgica, Einstein recusou-se a falar da física atômica e manteve-se calado durante o congresso. Mas no café da manhã ele sempre lançava desafios aos físicos mais novos, interessados em mecânica quântica, dizendo que tinha inventado um novo experimento mental. “Ele conseguia levar a teoria dos físicos quânticos a paradoxos absurdos”, disse Castelfranchi. Bohr ficava calado, mas prestava atenção e se desesperava porque percebia que as objeções de Einstein eram pertinentes. Durante o dia inteiro ele pensava sobre o experimento. No jantar, o dinamarquês dizia: “Pensei sobre as objeções de Einstein, que pareciam realmente seriíssimas, mas ele estava errado”.

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Historiador comenta as noções de tempo que prevaleceram da Antiguidade até hoje

Até a época do cientista inglês Isaac Newton (1643-1727), os filósofos situavam a noção de tempo como uma dimensão da natureza, algo objetivo, pertencente ao Universo. Posteriormente, surgiram concepções que o definiam em termos menos ligados ao mundo natural. Ao longo de grande parte da história, o tempo foi, portanto, ora encarado como uma definição objetiva, ora como uma criação amparada em conceitos mais subjetivos. Hoje, com o surgimento de teorias formuladas após o impacto dos trabalhos revolucionários de Albert Einstein sobre os conceitos de espaço e tempo, a questão é vista por outro prisma, uma espécie de terceira via. “Acredita-se que o tempo não é objetivo, nem subjetivo. O homem e a natureza estão mais integrados do que dissociados”, disse Edgar de Decca, historiador da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “O tempo é uma experiência social, resultado do desenvolvimento da linguagem, que é uma capacidade exclusivamente humana e permite criar representações das coisas.” O pesquisador fez uma apresentação sobre o tema “O tempo na história” no dia 13 de dezembro. Por meio da linguagem, o homem (e não a natureza) produz sistemas de medida e de representação do tempo, como o calendário. “O tempo se torna abstrato, de difícil percepção, e é sempre definido em função da comparação de uma coisa com outra”, explicou o historiador. A palavra amanhã, por exemplo, é carregada de sentido temporal, que pode ser captado apenas pelos seres humanos. Qualquer pessoa sabe que amanhã é o dia que vai surgir depois que a noite de hoje se dissipar. Depois de explicitar a noção corrente de tempo, De Decca falou das diversas formas como certas sociedades do passado encararam a questão. Deuses e mortais Na antiga Grécia coexistiam duas noções de tempo. Havia o tempo da natureza, visto como circular e permeado da ideia do eterno retorno. O homem nascia, crescia, vivia e morria – antes de voltar à Terra e repetir o ciclo. Imortais, os deuses também tinham um tempo circular, mas eterno, absoluto, sem princípio, meio e fim. As divindidades eram eternas porque nunca eram esquecidas. Não é à toa que Mnemosine, a deusa da memória, ocupava lugar de destaque no Panteão. O tempo absoluto era o tempo da memória. No século V a.C, com o advento da história nas cidades gregas, os seres não-divinos também adqui-

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riram a capacidade de serem sempre lembrados e, portanto, eternos. “O homem passou a ter memória”, comentou. Na Idade Média, dois conceitos de tempo, um profano e outro sagrado, se impunham em ambientes distintos. Nas cidades, o ritmo da vida era ditado pelo tempo do comércio, da acumulação de riqueza. No meio urbano, tempo era dinheiro. “O burguês aproveitou bem o tempo se acordou com uma moeda e foi dormir com dez”, disse o historiador. A Igreja condenava o tempo das cidades. Nos mosteiros reinava a noção do tempo religioso, quase parado. Era o tempo das rezas, dos terços, das homilias. A despeito da crítica dos religiosos, os habitantes do Ocidente moderno começaram a organizar o tempo em função das tarefas a serem feitas. Medir as horas necessárias para desempenhar uma tarefa tornou-se uma necessidade. O controle do tempo de trabalho dos operários se estabeleceu e surgiram as primeiras greves. Com o advento do relógio mecânico, o homem separou definitivamente o conceito de tempo da natureza. “Passamos a ser homens do tempo”, disse. Outra consequência foi a total laicização do tempo e a perda de influência da Igreja sobre essa questão. A eclosão de revoluções, como a francesa (1789) e, mais tarde, a russa (1917), sedimentou a ideia de que as sociedades eram resultado do tempo histórico vivido e também de expectativas futuras. Afinal, uma revolução pode ser entendida, no mundo moderno, como uma aceleração FOTOS MARCIA MINILLO

EDGAR DE DECCA

De Decca: o tempo hoje é uma experiência social

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do tempo da história. Alterações que demorariam muito a ocorrer ganham forma mais rapidamente em períodos revolucionários. O surgimento de filosofias do progresso, como o marxismo e o positivismo, no final do século XIX se encaixa nesse contexto, em que o homem acredita ser o senhor do tempo. “O homem toma o tempo em sua mão e a história passa a ser também a capacidade de construir o futuro”, afirmou De Decca. “Ele acredita que pode fazer a história acelerar, e não apenas viver a sua aceleração.” O ritmo inexorável do tempo do progresso humano, que conduziria à sociedade perfeita, pode ser ilustrado por

slogans, como o célebre “tudo que é sólido se desmancha no ar”, cunhado por Karl Marx no Manifesto comunista. O historiador não fez um balanço do positivo de toda essa aceleração do tempo na sociedade moderna. Disse que, no estertor do século XX, utopias pregavam o fim da história e o progresso havia produzido catástrofes (como o aquecimento global) e miséria no planeta. “Vamos dar um tempo para fugir de toda essa loucura?”, perguntou De Decca no encerramento da palestra.

RUBENS MACHADO JÚNIOR

Muitos cineastas e teóricos contribuíram para a formação da linguagem cinematográfica. Diretor do longa-metragem racista O nascimento de uma nação, D.W. Griffith foi um dos pais da gramática do cinema já na década de 1910. Criou a montagem paralela, técnica que cria a sensação de suspense ao explorar a noção de simultaneidade entre dois eventos que ocorrem em locais diferentes. Nos anos 1920, o russo Serguei Eisenstein, autor do famoso filme O encouraçado Potemkin, criou a chamada montagem dialética. O recurso era usado para estabelecer o conflito entre imagens antagônicas mostradas em sequência. Contemporâneo de Eisenstein, o cineasta russo Dziga Vertov, propositor do cinema-olho (em que a câmera é pensada como extensão do corpo humano), passou a defender a ideia de que a linguagem do cinema deveria se libertar da influência das outras artes. Em 1929, Vertov lançou a fita experimental Um homem com uma câmera em que mostra a vida urbana nas cidades da então nova União Soviética. O cinema pode trabalhar a questão do tempo de maneiras muito distintas. Para exemplificar algumas dessas possibilidades, Machado falou de dois movimentos importantes na história dessa arte. Citou os filmes que exploraram o cotidiano das grandes cidades, mais ou menos na linha de Um homem com uma câmera. No documentário Berlim, sinfonia de uma cidade (1927), de Walter Ruttmann, as situações típicas da metrópole alemã são mostradas ao longo de um dia, desde o amanhecer até o anoitecer. A fita, que serviu de inspiração para produções semelhantes rodadas em parte do globo (inclusive em São Paulo), é editada de forma a criar a sensação de que o ritmo da cidade oscila com o passar das horas. “No final da tarde tudo fica mais dinâmico no filme”, afirmou Machado. Antes de terminar o expediente de trabalho, a intensa mobilidade urbana cria a sensação de vertigem. O turbilhão humano e das máquinas na cidade em movimento culmina com o suicídio de uma pessoa que se joga de uma ponte.

Professor de história do cinema explica como os filmes exploram a questão do tempo

FOTOS MARCIA MINILLO

Inventado em 1895, o cinema entrou no século XX recorrendo à noção de tempo de artes mais antigas, como a música e o teatro. Aos poucos, ao longo dos últimos cem anos, criou sua própria linguagem e tornou-se capaz de expressar diferentes pontos de vista. Ao dominar as técnicas de edição das imagens em movimento, a sétima arte adquiriu meios de fazer o espectador viajar no tempo e no espaço. “Os filmes são um material rico para estudar a história das cidades do século XX”, disse Rubens Machado Júnior, professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), na palestra “O tempo no cinema”, feita no dia 13 de dezembro passado.

Machado Júnior: filmes para estudar as cidades

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• Marcos Pivetta

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A segunda corrente cinematográfica mencionada pelo professor da USP foi o neorrealismo, surgido após a Segunda Guerra Mundial. Em filmes italianos como Roma, cidade aberta (1945) e Stromboli (1950), ambos de Roberto Rossellini, ou A noite (1961), de Michelangelo Antonioni, o tempo começa a se tornar arrastado, parado, em razão de os diretores usarem poucos cortes e planos longos em

suas narrativas. “Esse cinema não explica muito o que ocorre na frente das câmeras”, comentou Machado. “Há mais dificuldade de fruição e se desenvolve certa ambiguidade nesses filmes.” O professor da USP disse que a escola realista voltou a ganhar força nos últimos 20 anos.

CÁSSIO LEITE VIEIRA

quando o movimento nazista começava a sua ascensão, físicos que haviam aderido ao nazismo criticavam em jornais a física de Einstein, em parte por ser muito inovadora e em parte porque ele era judeu”, disse. Quando via essas críticas, ele rasgava e jogava o jornal no chão. Um desses ataques, presenciado por um físico famoso, amigo e colaborador, ocorreu em meados da década de 1930, ao receber a resposta de uma revista científica para publicação de um artigo que havia escrito sobre ondas gravitacionais. “Nunca, até aquele momento, um trabalho de Einstein havia passado pelo chamado parecer técnico por pares”, explicou Vieira. A resposta da revista, de que seria necessário a revisão de alguns pontos, foi recebida com palavrões. Einstein, inconformado, rasgou o trabalho e jogou os pedaços na lata do lixo. “O pior de tudo é que o amigo dizia que o parecer técnico sobre o artigo tinha fundamento, porque realmente havia pontos falhos”, completou Vieira. Einstein adorava crianças, que lhe escreviam muitas cartas. Em uma delas, uma criança diz: “Eu e meu pai vamos construir um foguete para ir a Marte ou Vênus. Queremos que o senhor vá porque precisamos de um bom cientista, que saiba guiar o foguete”. Em outra, uma sugestão: “Tenho 6 anos, vi sua foto e quem sabe o senhor não ficaria melhor com um corte de cabelos?”.

Aversão ao militarismo e paixão pela música são alguns traços da personalidade de Einstein

A grande dificuldade de Einstein para aprender idiomas, como francês e grego, apesar de ser um excelente aluno em outras disciplinas, a aversão demonstrada precocemente pelo militarismo alemão e suas manifestações, o apego pela irmã mais nova, Maja, e o carinho com que tratava as crianças são traços da personalidade do físico alemão. O físico e jornalista da revista Ciência Hoje, Cássio Leite Vieira, falou sobre “Os gostos e desgostos de Einstein” na apresentação do dia 6 de dezembro e traçou um painel da vida do físico alemão, iniciado com a famosa imagem em que ele mostra a língua. A pose irreverente foi uma resposta a um pedido de um fotógrafo feito em 1951, no dia do seu aniversário de 72 anos. Einstein gostou tanto da fotografia que pediu cópias para o autor e passou a mandá-las autografadas para os amigos. Vieira mostrou imagens de várias fases da vida do físico contrapondo gostos e desgostos, entre elas a fotografia mais antiga conhecida do cientista, ainda criança ao lado de sua irmã, Maja, dois anos mais nova. “Segundo a irmã, que depois escreveu uma biografia muito interessante sobre ele, sua brincadeira preferida era construir castelos de cartas.” Dos pais, herdou o gosto pelos cálculos e pela música. O pai gostava muito de matemática e a mãe tocava piano. Desde criança ela o incentivou a tocar violino, instrumento pelo qual teve grande paixão durante toda a vida, assim como por Mozart, seu compositor preferido. Também precocemente, Einstein demonstrou não gostar de militares. Durante um desfile, disse: “Como é que alguém pode crescer e virar uma pessoa assim, mecânica, sem alma?”. Além de construir castelos de cartas, observar os bichinhos e as plantas do jardim, ele também tinha grandes explosões de raiva. “Sua irmã dizia que nessas ocasiões ele ficava com a bochecha muito vermelha e o nariz amarelo”, relatou Vieira. Quando adulto, essas explosões se repetiram em pelo menos duas circunstâncias. “Em 1920, em Berlim,

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• Marcos Pivetta

• Dinorah Ereno

Leite: gostos e desgostos do cientista

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Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org

Notícias ■

Economia

sobre a carcinogênese colorretal até as pesquisas mais recentes sobre proteômica. O trabalho demonstra o constante fluxo de grandes avanços que possibilitam uma previsão realista a curto ou médio prazo da disponibilização de recursos de amplo impacto, com potencial para alterar de forma relevante os resultados do tratamento dessa importante doença.

Informalidade do mercado

Economia Aplicada – v. 12 – nº 3 – Ribeirão Preto – jul./set. 2008

Coloproctologia

Revolução silenciosa Embora os estudos sobre biologia molecular permaneçam como a principal expectativa para o surgimento de novos conceitos e recursos para o tratamento do câncer colorretal, a ausência de resultados de real impacto do ponto de vista clínico nos últimos anos pode ser frustrante, especialmente para quem não esteja acompanhando de perto a evolução das pesquisas nesta área. Assim sendo, o texto “Biologia molecular do câncer colorretal: uma revolução silenciosa em andamento”, de Mauro de Souza Leite Pinho, da Universidade da Região de Joinville (Univille), Santa Catarina, apresenta uma breve revisão do caminho percorrido até o momento desde os trabalhos pioneiros

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Revista Brasileira de Coloproctologia – v. 28 – nº 3 – Rio de Janeiro – jul./set. 2008 THE DAILY PRINCETONIAN

O artigo “A informalidade no mercado de trabalho e o impacto das instituições: uma análise sob a ótica da teoria dos jogos”, de Fernando B. Meneguin, consultor legislativo do Senado Federal, e Maurício S. Bugarin, do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (IBMEC de São Paulo), analisa o tema como um jogo dinâmico infinito entre empregador e empregados. Nele, a Justiça Trabalhista é representada por parâmetros. Duas classes de equilíbrios perfeitos em subjogos – criadas pelo matemático John Nash (foto), ganhador do Prêmio Nobel de Economia – são encontradas. Na primeira classe, a relação informal prevalece durante um determinado tempo, com posterior formalização do trabalhador, sendo que, quanto mais efetiva for a Justiça, mais rapidamente serão registrados os empregados. Na segunda classe, a informalidade se torna perene, associada a uma alta rotatividade no mercado de trabalho. Novamente, quanto mais efetivo o Judiciário, menor a probabilidade de esse último equilíbrio existir.

Neuropsiquiatria

Diagnóstico para dom Pedro II Evidenciar a síndrome de apneia do sono tipo obstrutivo (Saso) como provável causa da sonolência diurna excessiva de dom Pedro II foi o objetivo do estudo “Sonolência diurna excessiva de dom Pedro II do Brasil devida provavelmente à síndrome de apneia do sono”, de Rubens Reimão, da Universidade de São Paulo, e Marleide da Mota Gomes e Péricles Maranhão-Filho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O trabalho foi realizado com documentos históricos e bibliografia. A sonolência diurna excessiva de dom Pedro II (1825-1891) era bem conhecida e criticada enfaticamente pela imprensa oposicionista e reconhecida também pelos seus pares. Era comum o imperador adormecer em lugares públicos, como no teatro e ao assistir aulas. Quando jovem, ele tinha compleição normal, mas ganhou peso na meia-idade. A possibilidade do diagnóstico dos autores é particularmente relevante nesse caso porque aponta para uma razão orgânica para a sonolência excessiva. Seus cochilos podem se dever à Saso e não a um simples “desinteresse”, como se pensava e comentava na época. Arquivos de Neuro-Psiquiatria – v. 66 – nº 3b – São Paulo – 2008

Relações internacionais

Desarmamento nuclear O artigo “Treze passos para o juízo final: a nova era do desarmamento nuclear dos Estados Unidos e da Rússia”, de Diego Santos Vieira de Jesus, do Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, procura explicar por que os líderes dos Estados

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Unidos e da Rússia não implementaram efetivamente o plano de ação de 13 pontos práticos para o desarmamento nuclear, estabelecido na Conferência de Revisão do Tratado de Não-Proliferação Nuclear em 2000. As decisões relacionadas aos 13 pontos, tomadas pelos membros dos Executivos das duas maiores potências nucleares, são vistas como resultado da conciliação de imperativos internos e externos por aqueles indivíduos, que enfrentam dilemas estratégicos nos âmbitos doméstico e internacional. Foram consideradas as escolhas políticas de membros do Executivo, Legislativo e principais grupos de interesse dos dois países, bem como a distribuição de poder sobre a formulação da decisão nacional, estabelecida pelas instituições políticas domésticas. As hipóteses indicam que os integrantes dos Executivos desses países – apoiados por grande parte pelos membros dos Legislativos e dos principais grupos de interesse envolvidos, como as Forças Armadas – procuraram garantir autonomia para definir a estrutura e a composição de forças estratégicas e táticas, modernizar arsenais atômicos e operar uma força capaz de lidar com contingências que envolvam não apenas potências nucleares tradicionais, mas principalmente novos estados detentores de armas de destruição em massa e organizações terroristas.

América Latina O artigo “A América Latina nos modelos geopolíticos modernos: da marginalização à preocupação com sua autonomia”, de Heriberto Cairo, da Universidad Complutense de Madrid, campus de Somosaguas, procura entender as transformações nas formas de inserção da América Latina no contexto de eras geopolíticas. A ideia é explicar suas causas e, sobretudo, suas consequências no contexto da nova geopolítica contemporânea, em que a região se desloca de uma posição marginal ou passiva para assumir contornos próprios de autonomia, às vezes marcados como zonas de perigo. A análise ultrapassa a simples posição da região na geopolítica ocidental e baseia-se num exercício de uma geopolítica do conhecimento. Para tanto, o autor resgata as principais contribuições da literatura sobre processos de continuidade de ordens geopolíticas permeadas de mutações, identificando as sucessivas eras geopolíticas de John Agnew que se correlacionam com as ordens geopolíticas existentes: a geopolítica naturalizadora, do início do século XX; a era pós-Segunda Guerra Mundial, da geopolítica ideológica; e a formação de uma nova era geopolítica com o fim da Guerra Fria.

Contexto Internacional – v. 30 – nº 2 – Rio de Janeiro – maio/ago. 2008

Geopolítica

Caderno CRH – v. 21 – nº 53 – Salvador – maio/ ago. 2008

Saúde pública ■

Imperialismo moral

Cadernos de Saúde Pública – v. 24 – nº 10 – Rio de Janeiro – out. 2008

Telégrafos do Brasil

REPRODUÇÃO

Imperialismo moral é a intenção de impor padrões morais de determinadas culturas, regiões geopolíticas e países a outras culturas, regiões ou países. O imperialismo moral direto pode ser exemplificado com diversos episódios recorrentes de ensaios clínicos multicêntricos promovidos por países desenvolvidos (centrais) em países pobres e em desenvolvimento (periféricos), especialmente projetos relacionados com a teoria do double standard de pesquisas. Com a recusa da Assembleia Geral da Associação Médica Mundial em alterar a Declaração de Helsinque, que significaria o reconhecimento moral da referida teoria, os Estados Unidos abandonaram a declaração, passando a promover seminários regionais em países periféricos com objetivo de “treinar” investigadores nas visões éticas dos interesses norte-americanos. Estes passam a ser duplicadores das ideias centrais, em diferentes instâncias das nações periféricas, caracterizando uma forma de imperialismo moral indireto. O estudo “Imperialismo moral e ensaios clínicos multicêntricos em países periféricos”, de Volnei Garrafa, da Universidade de Brasília, e Claudio Lorenzo, da Universidade Federal da Bahia, propõe a construção de sistemas de regulação e de controle social para os ensaios clínicos a serem implementados nos países periféricos, por meio da formulação de normas éticas adequadas às características contextuais destes países, conjuntamente com a criação e validação de documentos normativos nacionais próprios.

História

As atividades de construção de infraestrutura de comunicações realizadas pela Comissão Rondon (1900-1930) notabilizaram-se por seus contatos com sociedades indígenas. Pouco conhecidas são as pesquisas científicas feitas por seus membros indissociáveis dos objetivos de modernização, ocupação e integração do interior do país por parte do então recém-instaurado regime republicano. O artigo “Telégrafos e inventário do território no Brasil: as atividades científicas da Comissão Rondon (1907-1915)”, de Dominichi Miranda de Sá, Magali Romero Sá e Nísia Trindade Lima, da Fundação Oswaldo Cruz, analisa o impacto das atividades científicas da comissão liderada por Cândido Rondon (foto) em áreas como botânica, geologia e zoologia, assim como o inédito campo de trabalho que elas ofereceram para pesquisadores e naturalistas brasileiros crescentemente incorporados às suas diferentes viagens de exploração. História, Ciências, Saúde-Manguinhos – v. 15 – nº 3 – Rio de Janeiro jul./set. 2008

> O link para a íntegra dos artigos citados nestas páginas estão disponíveis no site de Pesquisa FAPESP, www.revistapesquisa.fapesp.br

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LINHA DE PRODUÇÃO MUNDO

> Biodiesel de

INOVAÇÕES EM CINCO ANOS

As previsões para um novo ano sempre atraem a atenção, melhor ainda quando são feitas para os próximos cinco anos. É o que fez a IBM ao lançar uma lista de cinco inovações que podem ser implementadas nesse período. Elas são baseadas em tecnologias emergentes dos laboratórios da empresa e também em tendências de mercado. A primeira é a energia solar que poderá ser captada do asfalto, de revestimentos de paredes, pisos e janelas cobertos por filmes finos poliméricos absorvedores da luz solar. Eles devem ser mais baratos que as atuais células produzidas de silício. Depois vem a disseminação de mapas genéticos individuais capazes de influenciar tanto as Energia solar captada até por asfalto e pisos consultas médicas como a indústria farmacêutica na produção de medicamentos mais eficazes. A interação maior da voz com a internet é outra com dimensões de previsão. Será possível eliminar os teclados e conversar com nanômetros (1 milímetro o computador. A quarta previsão são os provadores digitais dividido por 1 milhão) instalados dentro das lojas. Com eles será possível escolher montados e se comunicando roupas e acessórios com a própria imagem em uma tela. A num mesmo chip de silício. última previsão se refere à memória eletrônica ampliada em O trabalho combina dois que dispositivos portáteis vão armazenar, analisar e lembrar o emergentes campos da usuário de informações e compromissos captados e enviados pesquisa tecnológica, por câmeras, microfones e telefones e disponibilizá-los em a nanofotônica e a forma de lembretes eletrônicos. nanomecânica. A energia da

> Circuitos com a força da luz A força da luz pode ser aproveitada na operação de mecanismos com dimensões nanométricas. Um experimento que demonstrou essa possibilidade foi realizado 76

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por pequisadores da Faculdade de Engenharia e Ciências Aplicadas da Universidade Yale, nos Estados Unidos. O trabalho abre perspectivas para uma nova classe de dispositivos semicondutores com vários circuitos ópticos

luz é muito fraca para movimentar algo no mundo macroscópico, mas concentrada em diminutos circuitos ópticos de tamanho nanométrico torna-se muito forte. Outra vantagem da luz é que os dispositivos ópticos vão gastar muito menos energia que os atuais circuitos que utilizam o elétron.

IBM

pó de café O pó de café jogado no lixo caseiro e principalmente as grandes quantidades descartadas em bares e restaurantes poderá se transformar em uma nova opção de matéria-prima para a produção de biodiesel, segundo um estudo de pesquisadores da Universidade de Nevada, nos Estados Unidos. De acordo com cálculos do Departamento de Agricultura norte-americano, o USDA, são cerca de 8 bilhões de quilos por ano no mundo de pó de café jogado no lixo, o que seria suficiente para a produção de 1,2 bilhão de litros de biodiesel. No trabalho publicado na edição on-line do Journal of Agricultural and Food Chemistry, os autores Narasimharao Kondamudi, Susanta Mohapatra e Mano Misra informam que o café descartado possui até 15% de óleo que pode ser convertido em biodiesel, pelo processo tradicional de produção desse biocombustível chamado de transesterificação, que usa um álcool no preparo, normalmente o metanol. O índice de óleo é bom se comparado com outros vegetais como colza, 37% a 50% de óleo, dendê, 20%, e soja, 20%. O pó de café, segundo os pesquisadores, tem grande chance de se tornar importante para a produção de biodiesel porque teria baixo custo e não seriam necessárias plantações exclusivas para a fabricação do óleo.

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> Tecidos inteligentes Daqui a alguns anos, as pessoas poderão contar com um item inusitado para

monitorar sua saúde: roupas inteligentes (e confortáveis), dotadas de biossensores, vão fornecer informações instantâneas sobre os principais sinais vitais

EDUARDO CESAR

FLORES TURBINADAS

Com ajuda da engenharia genética, cientistas da Universidade Hebraica de Jerusalém, Israel, dizem ter conseguido aumentar em dez vezes a quantidade de aromas desprendidos pelas flores, um feito que pode dar um novo estímulo à produção e ao comércio de plantas ornamentais e também de alimentos. As flores modificadas passaram a liberar seus perfumes característicos de forma contínua, tanto de dia quanto Perfume em maior quantidade de noite, independentemente dos fatores naturais que normalmente levam à produção de aromas. Segundo o pesquisador Alexander Vainstein, chefe da equipe que criou e patenteou o método para turbinar a fragrância das flores, a técnica também pode ser utilizada para transferir o cheiro típico de um vegetal para outro. Dessa forma, seria possível criar uma margarida com aroma de rosa – e vice-versa. O trabalho dos israelenses, cuja técnica de engenharia genética também é capaz de alterar a cor e a forma das flores, foi publicado na revista científica Plant Biotechnology Journal.

e transferido para outras espécies

de seus usuários. Pelo menos essa é a ideia que move a equipe do engenheiro químico Nicholas Kotov, da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, que desenvolveu um tecido feito com fios de algodão revestidos com nanotubos de carbono, peças formadas por folhas de carbono com espessura de um átomo, e polímeros condutores de eletricidade. Segundo seus criadores, que publicaram um artigo na edição on-line da revista científica Nano Letters

descrevendo o trabalho, o biossensor pode ser programado para desempenhar várias funções. No artigo, os pesquisadores descrevem os fios de algodão cobertos com nanotubos que podem, inclusive, emitir luz por meio de um LED, diodo emissor de luz, e detectar sangue humano. Não se trata do primeiro tecido desse tipo. Sua vantagem, diz Kotov, é ser leve e não enferrujar, um diferencial em relação a outras roupas feitas com fios metálicos.

Reduzir drasticamente a temperatura de órgãos em perigo, como o coração num ataque cardíaco ou o cérebro num derrame, diminui a demanda por oxigênio e ajuda a preservá-los. Pesquisadores do Laboratório Nacional Argonne, de Departamento de Energia dos Estados Unidos, criaram uma forma muito eficaz de realizar esse procedimento. Desenvolveram uma pasta líquida resfriada, totalmente compatível com o corpo humano, que reduz a temperatura de um órgão a 5°C em apenas cinco minutos. Formas externas de resfriamento precisam de duas horas para atingir o mesmo efeito. A pasta foi patenteada e pode ser facilmente administrada, com o auxílio de um pequeno cateter intravenoso, diretamente na corrente sanguínea do paciente.

Líquida e resfriada, pasta é aplicada com cateter

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LABORATÓRIO NACIONAL ARGONNE

PASTA RESFRIA ÓRGÃOS A 5°C

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LINHA DE PRODUÇÃO BRASIL

> Máquinas em vez de machados Se os planos correrem como anunciado em novembro, o governo do Maranhão deve iniciar este ano o financiamento à instalação de quase mil agroindústrias de beneficiamento do babaçu, uma das bases da economia do estado. Essa possibilidade se apoia no trabalho desenvolvido desde 2004 pela Fundação Mussambê. Sediada 78

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em Juazeiro do Norte, Ceará, essa instituição criou tecnologias de processamento do babaçu, reconhecidas em 2006 com o Prêmio Finep

de babaçu no Maranhão, depois de ter colocado outras três para funcionar no Ceará. Segundo Daniel Walker Junior, coordenador do núcleo, cada fábrica beneficia de 15 a 20 famílias. Quem vive do babaçu

trocou o machado com que antes quebrava os cocos de babaçu pelas máquinas projetadas pelo químico industrial Gilberto Batista Barros. Essas máquinas cortam os cocos, retiram as amêndoas e extraem óleo e torta para ração animal. A produtividade saltou de mil cocos quebrados por dia pelo método artesanal para 30 mil e a produção de óleo, de 20 litros por semana para 100 litros em oito horas. LAURABEATRIZ

Um óleo extraído das algas marinhas, rico em ácidos graxos como ômega-3 e 6, poderá ser usado para enriquecer a ração de peixes nobres criados em cativeiro, como salmão, truta e bacalhau. Atualmente, esses peixes nobres são alimentados com óleo e farinha de sardinha, manjuba e outras espécies de baixo valor comercial. Como são ricas em nutrientes, essas espécies têm sido pescadas de forma predatória nos oceanos. Cinco espécies de algas estão sendo pesquisadas pela Fundação Óleo rico em nutrientes extraído de algas marinhas Universidade Federal de Rio Grande, do Rio Grande do Sul, em parceria com a Imcopa, empresa de moagem de grãos de soja de Araucária, de Inovação e em 2008 na Região Metropolitana de Curitiba, no Paraná, para producom o Prêmio Von Martius de Sustentabilidade. ção de óleo. Na atual fase do projeto, que tem financiamento de R$ 9 milhões da Financiadora de Estudos e Projetos (FiCom apoio da Petrobras nep), os pesquisadores estão criando condições para trabalhar e do Ministério do Meio Ambiente, o núcleo com a alimentação, a ambientação e o manuseio das algas. Quando a pesquisa estiver concluída, os ácidos graxos retirade tecnologia social dessa dos desses organismos vegetais serão adicionados ao farelo fundação instalou três fábricas de beneficiamento e ao óleo de soja para compor a ração dos peixes.

FABIO RIESEMBERG

ALGAS PARA PEIXES

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Uma nova maneira de medir o índice de doçura de alimentos e sucos foi desenvolvida na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A técnica utiliza o espalhamento de raios X associada à quimiometria, uma aplicação de métodos estatísticos e matemáticos para a realização de medidas em um sistema ou processo químico. Com ele é possível classificar e determinar o poder adoçante determinado pelo índice de doçura encontrado em amostras sólidas ou líquidas que contenham açúRaios X para identificar açúcares em alimentos cares, sejam doces, sucos ou os próprios açúcares. O conjunto de respostas > Carvão sem obtidas é a resposta sensorial, normalmente realizada por profumaça fissionais treinados nas indústrias. O trabalho resultou num depósito de patente e já faz parte da carteira de tecnologias da Agência de Inovação Inova da universidade. A coordenação Um sistema para eliminar dos trabalhos foi da professora Maria Izabel Maretti Bueno, do a fumaça dos fornos que produzem artesanalmente Departamento de Química Analítica do Instituto de Química da Unicamp. A nova metodologia poderá ser implementada carvão vegetal, composta de grande quantidade de gases em indústrias de qualquer porte, desde que sejam feitos os poluentes e particulados, modelos de calibração do produto a ser analisado. Ela tem a vantagem ainda de não gerar resíduos e não utilizar reagentes foi desenvolvido pelo pesquisador Jerônimo químicos, além de ser rápida e simples de usar.

dos Santos Travelho, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Com formato semelhante ao forno utilizado pelos carvoeiros, ele é composto por dois mecanismos: um para queimar os gases emitidos na produção do carvão e outro para retirar o material particulado resultante do processo. O projeto foi elaborado a pedido da prefeitura de Salesópolis (SP), que abriga nascentes como a do rio Tietê e conta com milhares de famílias que dependem da produção de carvão vegetal. O forno projetado é feito de tijolos e usa como combustível gás ou

a própria madeira que sobra da produção de carvão. A Universidade de Mogi das Cruzes, parceira do projeto, ficará responsável pela construção do protótipo,

previsto para ficar pronto até a metade de 2009. A tecnologia para construção do forno, que deverá custar cerca de R$ 2 mil, será repassada aos carvoeiros.

Forno projetado para queimar gases e retirar material particulado

INPE

O Centro Internacional de Tecnologia de Software (Cits) foi a instituição ganhadora na categoria Instituição de Ciência e Tecnologia da 11ª edição do Prêmio Finep de Inovação de 2008. O Cits é de Curitiba (PR) e desenvolve produtos para a área de educação como a mesa E-blocks utilizada em 24 países. Na categoria Pequena Empresa, a vencedora é a Engineering Simulation Scientific Software (ESSS), de Florianópolis (SC), especializada em softwares para a indústria de petróleo. A ganhadora na categoria média empresa foi a Scitech, de Goiânia (GO), que produz stents para manter desobstruídas as artérias. O Instituto Palmas de Desenvolvimento e Socioeconomia Solidária, de Fortaleza (CE), venceu na categoria Tecnologia Social pelo sistema de concessão de microcrédito comunitário. Nessas categorias, os vencedores podem ter acesso a recursos de R$ 500 mil a R$ 1 milhão da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). Na categoria Grande Empresa, a paulistana Brasilata ganhou o prêmio. Ela produz embalagens de aço que conservam o produto por mais tempo. A última categoria é a do Inventor Inovador, vencida pelo professor Jaírton Dupont, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, com uma linha de pesquisa dedicada a solventes ambientalmente corretos para uso industrial.

A MEDIDA DA DOÇURA

inovadores

MIGUEL BOYAYAN

> Prêmio para

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TECNOLOGIA

ENGENHARIA AERONÁUTICA

Aeronaves mais

silenciosas Projeto liderado pela Embraer pretende reduzir ruídos gerados pelos aviões

MIGUEL BOYAYAN

Yuri Vasconcelos

O

tráfego aéreo mundial tem crescido de maneira contínua nas últimas décadas e deve continuar nessa trajetória nos próximos anos. Estimativas da Associação Internacional do Transporte Aéreo (Iata) indicam que o movimento de passageiros atingirá a marca de 2,75 bilhões de viagens em 2011 – ante 2,13 bilhões no início de 2007. Um dos desafios enfrentados pela indústria aeronáutica para continuar evoluindo sem prejudicar a qualidade de vida nas cidades é projetar e desenvolver aviões mais silenciosos que possam operar nos aeroportos sem causar incômodo para as pessoas que vivem no seu entorno. Essa necessidade ainda é mais urgente em função de um novo requisito estipulado pela Federal Aviation Administration (FAA), órgão regulador do setor aéreo dos Estados Unidos, previsto para entrar em vigor a partir de 2015, que restringe ainda mais a emissão de ruídos pelas aeronaves nos aeroportos. Para se adequar a essa determinação e continuar competitiva no mercado global, a Embraer, terceira fabricante de aviões do mundo, deu início recentemente a um amplo projeto, batizado de Aeronave silenciosa: uma investigação em aeroacústica, com o objetivo de identificar e avaliar os ruídos gerados e propagados por seus modelos. A partir desses dados, ela planeja implementar soluções de engenharia para torná-los mais silenciosos. “Nas grandes cidades, o barulho das aeronaves só perde para o dos carros”, afirma o engenheiro Micael Gianini Valle do Carmo, responsável pelo projeto na Embraer. “A iniciativa de estudar o ruído externo de nossos aviões surgiu há alguns anos com os projetos da família de jatos Embraer 170/190, aeronaves muito maiores do que as que já havíamos fabricado antes.” O foco do programa, que tem apoio financeiro da FAPESP, por meio do programa Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite), são os chamados ruídos de airframe (ou aerodinâmicos), gerados pelo fluxo de ar passando ao redor da asa e pela fuselagem do avião. Juntas, FAPESP e Embraer irão destinar R$ 11 milhões ao programa, que terá três anos de duração. Nos últimos anos, avanços tecnológicos transformaram os motores dos aviões em equipamentos mais silenciosos, o que levou os ruídos aerodinâmicos a se destacarem. Durante o pouso, entre 75% e 80% do ruído produzido pelos aviões é de origem aerodinâmica, enquanto o restante é causado pelo motor. Na decolagem, quando a aeronave precisa de mais potência para alçar voo, essa relação se inverte. “As principais fontes de ruídos aerodinâmicos durante o pouso e a decolagem são o trem de pouso e as superfícies hiperPESQUISA FAPESP 155

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EMBRAER

A região das asas e o trem de pouso são os principais responsáveis pelo barulho dos aviões

sustentadoras, nome dado ao conjunto formado pela asa e pelos flaps e slats, dispositivos móveis localizados nas asas dos aviões com a função de aumentar a área de superfície e elevar a sustentação da aeronave. O ruído é causado pelo turbilhonamento de ar e pelas flutuações de pressão nesses pontos”, explica o engenheiro Julio Romano Meneghini, professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador-geral do projeto.

A

lém da Escola Politécnica, o programa é integrado por cinco centros de ensino e pesquisa nacionais e outros quatro estrangeiros: Escola de Engenharia de São Carlos da USP, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Universidade de Brasília (UnB), Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Universidade de Twente, na Holanda, Imperial College e Universidade de Southampton, ambos na Inglaterra, e o Centro Aeroespacial Germânico, DLR na sigla em alemão, na Alemanha. Os pesquisadores pretendem atacar o problema seguindo três abordagens distintas, mas com-

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plementares em aeroacústica: ensaios em voo e em túnel de vento, modelos analíticos e empíricos e aeroacústica computacional. Essa última abordagem estará concentrada no Núcleo de Dinâmica de Fluidos (NDF) da Escola Politécnica da USP, que receberá um supercomputador, com mais de 1.200 núcleos de unidades centrais de processamento (CPUs) e 2,5 terabytes de memória, adquirido com recursos do

>

O PROJETO Aeronave silenciosa: uma investigação em aeroacústica

MODALIDADE

Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite) COORDENADOR

JULIO ROMANO MENEGHINI – USP INVESTIMENTO

R$ 707.506,58 e US$ 1.709.305,41 (FAPESP) R$ 6.000.000,00 (Embraer)

projeto. “Vamos modelar e simular numericamente o escoamento de ar ao redor das superfícies hipersustentadora e o trem de pouso. Com a simulação do escoamento de ar conseguiremos obter as estruturas dos turbilhões (vórtices) que se formam e assim teremos uma estimativa do ruído gerado nessas superfícies”, afirma Meneghini. “Com a ajuda do supercomputador, um dos mais avançados do país, vamos conhecer concretamente o complexo fenômeno de geração de ruído aerodinâmico e, a partir daí, poderemos sugerir para a Embraer alterações na geometria desses elementos, como asas, flaps, trem de pouso etc.”, diz ele. A parte experimental do programa será realizada na pista de testes da unidade da Embraer localizada no município de Gavião Peixoto, no interior de São Paulo. Seu objetivo será identificar as fontes de ruído aerodinâmico e quantificá-las. Para obter essas informações, 256 microfones serão instalados numa área de 50 por 50 metros em uma das cabeceiras da pista com a função de captar o barulho gerado pelos aviões, que pousarão e decolarão inúmeras vezes. A necessidade de

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tantos microfones se justifica porque o ruído propagado pelas aeronaves é muito complexo. “A partir do processamento dos dados acústicos vamos saber que porcentual dos ruídos foi provocado pelos flaps, trem de pouso, slats e assim por diante”, destaca Meneghini. De acordo com o pesquisador, os resultados desses ensaios permitirão, entre outras coisas, o desenvolvimento de kits de redução de ruído aerodinâmico a serem aplicados em pontos específicos da aeronave. Essa parte do trabalho ficará a cargo da UFSC e da Escola de Engenharia de São Carlos. “Seremos responsáveis por desenvolver ferramentas experimentais e de diagnóstico das fontes de ruído sonoro nas aeronaves”, diz o professor César José Deschamps, do Departamento de Engenharia Mecânica da UFSC. “Também vamos realizar estudos para compreender o ruído aeronáutico sob um ponto de vista mais teórico e, com esse entendimento, usar as melhores metodologias para prevêlo. Dessa forma, poderemos propor alterações nos projetos dos aviões da Embraer”, afirma Deschamps. Outra vertente do projeto, a cargo da Universidade de Brasília (UnB), é o estudo dos ruídos gerados pelo fan do motor. O fan, um tipo de hélice com grande número de pás, é a segunda fonte de ruído dos sistemas propulsivos dos aviões, só perdendo para o próprio jato de ar quente expelido pela turbina. Embora não seja responsável pela fabricação dos motores dos seus aviões – esse componente é encomendado da empresa americana General Electric –, a Embraer tem interesse em estudar esse tipo de ruído porque ela fabrica a nacele, estrutura metálica onde o motor turbofan é montado. “A nacele é a primeira linha de combate aos ruídos do motor”, explica o professor Roberto Bobenrieth Miserda, do Instituto de Tecnologia da UnB. Segundo Julio Meneghini, as instituições estrangeiras envolvidas no programa desempenharão um papel importante. A Universidade de Twente, na Holanda, colocará à disposição do projeto um túnel de vento para realização de ensaios aeroacústicos, enquanto a Universidade de Southampton e o Imperial College, na Inglaterra, cederão suas competências na área de modelos analíticos simplificados e simuladores.

“Eles têm uma longa experiência nessa área e utilizarão esses modelos empíricos para calcular estimativas de ruídos”, diz Meneghini. Também está prevista a realização de intercâmbio de estudantes brasileiros com os da instituição holandesa e das instituições inglesas.

O

projeto Aeronave silenciosa, além do avanço teórico, do desenvolvimento de metodologias e da criação de ferramental para entender os fenômenos envolvidos na questão do ruído aeronáutico, terá também como finalidade a formação de recursos humanos especializados na área, porque existem poucos profissionais especializados em aeroacústica no país. Por isso, parte dos recursos destinados ao programa será usada para financiamento de bolsas de iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado para alunos envolvidos com pesquisas relativas aos temas do programa. “Queremos criar um núcleo de competência na área de acústica e, com isso, colocar à disposição da indústria aeronáutica nacional especialistas altamente qualificados”, destaca o engenheiro Deschamps, da UFSC. Atualmente parte do estudo e avaliação dos níveis de ruído externo dos aviões da Embraer é realizada por consultores externos internacionais, o que traz algumas dificuldades, como a lentidão de respostas para situações críticas. Além de uma equipe formada por cerca de 25 pesquisadores da Embraer e

das universidades, estima-se que cerca de 40 alunos participarão do projeto. Programas semelhantes a este financiado pela FAPESP e Embraer também estão sendo desenvolvidos por empresas e instituições de pesquisa do setor aeroespacial nos Estados Unidos e na Europa. A agência espacial norteamericana, Nasa, por exemplo, lidera o projeto Quiet Aircraft Technology (QAT), cuja finalidade é reduzir pela metade o ruído dos aviões dentro de dez anos e em 75% nos próximos 25 anos. Estima-se que as primeiras aeronaves incorporando alguns avanços propostos pela tecnologia QAT começarão a ser produzidas em 2010. Outro programa americano é o Advanced Subsonic Technology – também com a participação da Nasa, governo federal e setor privado –, que almeja desenvolver dispositivos de redução de ruído de 20 decibéis até 2020 em relação às tecnologias existentes em 1997. Essa é uma meta ousada, que, se cumprida, representa, por exemplo, uma diminuição de cerca de 20% dos ruídos gerados por um Boeing 777 durante o pouso, quando ele emite em torno de 100 decibéis. A Comunidade Europeia, por sua vez, patrocina o projeto temático Silence(R), que envolve 51 empresas de 14 países com orçamento de mais de €110 milhões. Seu objetivo é validar tecnologias de redução de ruído visando operações com aeronaves mais silenciosas em até seis decibéis. ■

Aposentadoria forçada Jato inglês foi tirado de circulação por causa do barulho de seus motores Um dos mais bem-sucedidos aviões britânicos de todos os tempos, o BAC 1-11 (One Eleven), teve que ser tirado de circulação por conta do barulho gerado por seus motores. Concebido pela Hunting Aircraft e fabricado pela British Aircraft Corporation (BAC), ele foi lançado no início dos anos 1960 e voou por cerca de 30 anos, até ser aposentado em razão de restrições de ruído. Outros aviões, como Boeing 737-200, Douglas DC-8 e Tupolev Tu-154, poderiam ter tido o mesmo destino

não fosse a invenção de um equipamento antirruído, batizado de hush kit, criado para amenizar o barulho dos antigos motores turbofan do tipo low-bypass – os modelos atuais (high-bypass) já são bem mais silenciosos. O hush kit consiste de uma espécie de exaustor, colocado no final da turbina, que serve para “abafar” o ruído provocado por aviões antigos. Outro benefício proporcionado pela tecnologia é a redução da quantidade de gases poluentes liberados pelo motor.

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> QUÍMICA

Sem resíduos

tóxicos

Patentes geram produtos para tratamento de efluentes industriais Dinorah Ereno

D

uas tecnologias de descontaminação ambiental, uma para tratamento de efluentes industriais e outra para eliminação de compostos tóxicos em solos, desenvolvidas por pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e licenciadas para a empresa Contech Produtos Biodegradáveis, de Valinhos, no interior paulista, estão prontas para serem colocadas no mercado. “Iniciamos com um balãozinho de 50 mililitros dentro do laboratório e hoje produzimos bateladas de 500 quilogramas”, diz o químico Odair Ferreira, que começou a trabalhar no desenvolvimento de uma substância para tratamento de efluentes têxteis em 1999, na sua dissertação de mestrado, e atualmente continua sua pesquisa como contratado da empresa. A base do produto para limpar efluentes criado no laboratório do Instituto de Química da universidade são nanopartículas de argila sintética que, colocadas em contato com os resíduos líquidos de processos de tingimento de tecido ou papel, funcionam como uma esponja que absorve os corantes. No final do processo, a água torna-se novamente limpa e pode ser descartada sem risco de contaminar lençóis freáticos e rios, podendo ainda ser reutilizada no processo industrial. “A partir da argila mineral é fabricada uma argila sintética nanoestruturada com propriedades específicas”, explica Ferreira. O tamanho reduzido das partículas, por volta de 100 nanômetros – para efeito de com-

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paração, a molécula de DNA, que armazena o material genético das células, mede dois nanômetros de espessura –, aumenta a área de contato do produto com o efluente e, consequentemente, a sua eficiência de remediação. A argila sintética, em forma de pó, é colocada em contato com o efluente colorido em um sistema de agitação. A dosagem varia de acordo com a natureza e a concentração das substâncias químicas presentes em cada efluente. “Nos processos de tingimento, para que os tecidos fiquem com uma cor acentuada, muitas vezes os fabricantes usam quantidades de corante superiores ao que a fibra consegue adsorver”, diz Ferreira. Adsorver e absorver são processos bem diferentes. Uma esponja absorve água, mas o líquido sai facilmente quando ela é espremida, enquanto na adsorção as moléculas ou íons ficam retidos na superfície de sólidos por interações químicas ou físicas. Os próprios fabricantes de corantes estão criando substâncias cada vez mais resistentes. “O corante azul reativo 19, bastante usado na indústria têxtil, quando despejado no rio permanece por até 50 anos”, exemplifica. O produto também pode ser usado no tratamento dos resíduos resultantes da produção de papéis coloridos e de celulose, de efluentes da indústria petroquímica e metalomecânica. “O carvão ativo, empregado nas mesmas condições, consegue eliminar apenas 50% da cor dos efluentes, em comparação com os 95% alcançados pela argila sintética”, diz o professor Oswaldo Luiz

Alves, coordenador do Laboratório de Química do Estado Sólido do Instituto de Química da Unicamp, orientador de Ferreira e da pesquisa, que em 2002 recebeu o Prêmio Unesco-Orcyt de Teses de Mestrado Defendidas em Instituições Acadêmicas do Mercosul Ampliado, na modalidade Química. Outra vantagem do material desenvolvido na universidade é que no final do processo ele pode ser reciclado e reutilizado em uma nova descoloração de efluentes. Esse reprocessamento pode ser feito pelo menos cinco vezes, o que significa menor consumo de matérias-primas. No final do ciclo útil da argila como adsorvente, ela ainda poderá ser utilizada como matéria-prima de outros processos industriais, em substituição a pigmentos e cargas minerais. Efluentes industriais - Desde março de

2005, quando o Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) promulgou a resolução 357, que estabelece padrões de lançamento para efluentes, entre os quais limites para a emissão de corantes em rios, as empresas começaram a procurar soluções para se adequar às novas diretrizes ambientais. Foi nessa época que a Contech foi consultada por um cliente que buscava um tratamento eficiente para seus efluentes industriais. O coordenador de pesquisa do Centro de Desenvolvimento e Tecnologia da empresa, Ricardo de Lima Barreto, que fez mestrado na Unicamp, sabia que uma patente da carteira da Inova, a Agência de Inovação da universidade, poderia resolver o problema do seu cliente e

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EDUARDO CESAR

ampliar a área de atuação da Contech. A empresa criada no Brasil na década de 1990, com atuação na Europa e na América do Sul, tem como foco principal o fornecimento de sistemas e produtos químicos aplicados principalmente no setor de papel e celulose. O licenciamento da tecnologia foi selado em setembro de 2007, dois anos após ter início o processo de negociação com a Unicamp. A fase piloto do projeto tem apoio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) dentro do Programa de Subvenção à Inovação de 2007 na área de nanotecnologia. Encerrada a fase piloto, a empresa começará a produzir em escala pré-industrial com alguns clientes e atualmente está lançando a tecnologia no mercado com a marca registrada Dept. Três meses depois desse licenciamento, em dezembro do mesmo ano, a Contech e a Unicamp assinaram uma outra transferência de tecnologia, desenvolvida no Laboratório de Química Ambiental do Instituto de Química pelo professor Wilson Jardim e com participação do pesquisador Juliano de Almeida Andrade. Dessa vez, além de um reagente químico destinado

Argila sintética elimina resíduo líquido de tingimento com corante têxtil azul

à remediação de áreas contaminadas, também foram licenciadas as marcas registradas Fentox e Fentox TPH. A diferença entre os dois produtos é que o Fentox é indicado para descontaminação de substâncias líquidas, enquanto o Fentox TPH age principalmente nos solos. “O produto aumenta o poder destrutivo do peróxido de hidrogênio, conhecido popularmente como água oxigenada, substância usada para a destruição de compostos tóxicos”, diz Barreto. A técnica chamada de processo oxidativo avançado consiste em colocar em contato o produto da reação formado pelo reagente químico e o peróxido de hidrogênio com os contaminantes da água e do solo, que são destruídos e transformados em água e gás carbônico. Entre esses contaminantes encontram-se os poluentes orgânicos persistentes, categoria em que se enquadram pesticidas como o DDT, compostos aromáticos como o benzeno e algumas classes de corantes.

“O levantamento mais recente da Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb) apontou quase 2.500 áreas contaminadas no estado de São Paulo”, diz Barreto. São principalmente vazamentos de postos de gasolina e de indústrias desativadas, que se infiltram no lençol freático, desembocam nos cursos d’água e prejudicam as populações que vivem nas áreas do entorno. No caso das contaminações por derivados de petróleo, o principal problema está nos vazamentos em tanques subterrâneos dos postos de gasolina. Quando muito antigos, os tanques sofrem corrosão e acabam por contaminar os aquíferos. A ideia de dar ao produto o nome de Fentox surgiu durante as pesquisas em laboratório como uma forma de homenagear o químico Henry John Horstman Fenton, autor dos primeiros trabalhos com tecnologias oxidantes em 1894 com o uso de peróxido de hidrogênio e catalisadas por ferro. Quase 90 anos depois, na década de 1980, suas fórmulas foram usadas para eliminação de compostos tóxicos na Europa, nos Estados Unidos e no Canadá. ■ PESQUISA FAPESP 155

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ENGENHARIA ELETRÔNICA

Identidade bovina Sistema desenvolvido por empresa de São Carlos para controle de animais ganha mercado no Brasil e no exterior Marcos de Oliveira

B

rincos amarelos de plástico dotados de um microchip em seu interior estão ornando as orelhas de milhares de bovinos em várias fazendas brasileiras. Sem nenhum objetivo estético, e sim para identificar e armazenar dados dos animais, os dispositivos eletrônicos são o resultado do desenvolvimento tecnológico da Korth, de São Carlos, no interior paulista. A empresa, conhecida nesse segmento como Animalltag, participa desde outubro de 2008 de um plano piloto para se tornar a fornecedora oficial do programa de rastreabilidade de bovinos e búfalos da Colômbia, numa disputa que envolve 14 outras empresas, sendo cinco do Canadá, duas dos Estados Unidos, duas da França, uma da Espanha e as quatro restantes de fusões entre empresas colombianas e de outros países. A disputa, que ocorre em duas fases, é dura. Na primeira, da qual passaram apenas quatro empresas, foram avaliados o desempenho do microchip, a resistência do material e a tecnologia apresentada por cada empresa. A segunda consiste em uma fase de homologação no campo. A Animalltag está fornecendo brincos eletrônicos inicialmente para 30 fazendas de gado do país vizinho e suas exportações já chegaram também a outros países como Uruguai, Chile, Peru, Venezuela, Argentina, Panamá e Paraguai. Em novembro, outro ganho internacional para a empresa. O projeto dos brincos está entre os 19 projetos brasileiros premiados no International Forum (IF) Product Design Award 2009, considerado o principal prêmio de design n europeu que resultará em uma mostra dos escolhidos em Hanover, na Alemanha, em 2009. O sistema de rastreabilidade da empresa é composto por dois brincos, um eletrônico e outro visual (com números impressos), um alicate aplicador e um leitor de microchip que identifica e armazena uma série de informações sobre o animal, como peso, medicamentos, vacina e diagnóstico de prenhez, que podem ser descarregadas depois em um computador. Elas são importantes para a gestão de um empreendimento pecuário tanto para a evolução do animal como mo para o controle de doenças. A Korth conseguiu

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MIGUEL BOYAYAN

uma boa aceitação do mercado depois que promoveu uma virada tecnológica a partir de 2004, quando os três sócios, hoje com idades entre 37 e 44 anos, resolveram desenvolver um sistema próprio e deixar de importar outras soluções semelhantes e caras para o consumidor final. O ponto inicial foi um projeto financiado pela FAPESP dentro do Programa Pesquisa Inovativa na Pequena e Micro Empresa (Pipe) realizado entre 2005 e 2008 para a formulação do brinco com um dispositivo eletrônico no seu interior. A peça é formada por um chip importado e um sistema com a tecnologia RFID, do inglês radio frequency identification, ou identificação por radiofrequência (IRF), que emite e capta dados por sinais específicos de rádio. O conjunto eletrônico instalado no brinco, também chamado de transponder, não possui fonte de alimentação, como uma pilha, para funcionar. É ativado pelo próprio campo magnético do equipamento portátil de leitura, semelhante a um rádio dotado de uma antena na forma de um bastão. Uma das inovações que foi objeto de uma das patentes do sistema – no total de três – é a incorporação de uma

substância cicatrizante no dispositivo. O brinco é composto por duas partes que são unidas na orelha do animal pelo alicate. No ato de juntar as partes, uma membrana no interior do brinco é rompida e um medicamento cicatrizante é liberado para o ferimento na orelha. A medida evita a miíase, doença comum nos bovinos que aparece principalmente em áreas chuvosas após o ato de furar a orelha. Mais conhecida como bicheira, a infecção é provocada por larvas de moscas. Uma outra patente está relacionada ao encapsulamento do chip e a terceira foi depositada em conjunto com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e se refere a um sistema de rastreabilidade para monitorar o trânsito dos animais. Pesquisadores da unidade Embrapa Pecuária Sudeste, instalada em São Carlos, e da empresa desenvolveram um equipamento semelhante ao sistema Sem Parar usado nos pedágios das rodovias para uso em caminhões e nas barreiras sanitárias existentes nas estradas. “Desenvolvemos um tag (transponder) que monitora o trânsito dos animais nas transferências de fazendas, por exemplo, ao identificar e registrar, pelo sinal dos brincos, os bois

Brinco eletrônico com chip embutido vai ser exposto em feira de design na Europa

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KORTH

Rebanho na Colômbia: brincos eletrônicos e tradicionais com número impresso

que sobem no caminhão de transporte”, diz o engenheiro mecânico Carlos Gustavo Machado, um dos sócios da Animalltag. Nas barreiras sanitárias um leitor eletromagnético faz a leitura dos registros do tag instalado no caminhão e o fiscal sabe que animais estão ali, de onde vieram e para onde vão. A importância de rastrear animais está em saber onde cada exemplar de um lote esteve e com quem, no caso outros animais, conviveu. Isso evita a disseminação de doenças. “Saber onde o animal de número 1 esteve, por exemplo na companhia dos animais 2, 3 e 4, facilita o controle sanitário em casos como a febre aftosa, que tem um período de incubação de até oito dias e pode devastar um rebanho”, explica Machado. O Brasil possui uma normativa de rastreabilidade para bovinos – que somam cerca de 180 milhões de cabeças no país – e búfalos para identificação de origem e identidade dos animais. É o Serviço de Rastreabilidade da Cadeia Produtiva de 88

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Bovinos e Bubalinos (Sisbov) que não é obrigatório para os pecuaristas e deixa aberto o tipo de identificação. Além dos brincos eletrônicos, bottons, tatuagens e marcas de fogo com números podem ser usados para garantir o rastreio e principalmente dar suporte de segurança para

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O PROJETO Desenvolvimento de um brinco eletrônico para identificação de bovinos

MODALIDADE

Pesquisa Inovativa na Pequena e Micro Empresa (Pipe) COORDENADOR

CARLOS GUSTAVO DE CAMARGO FERRAZ MACHADO – Korth INVESTIMENTO

R$ 323.481,94 (FAPESP)

o mercado externo. Para Machado, o valor da tonelada da carne quase duplica em mercados que têm a obrigatoriedade da existência da rastreabilidade eletrônica, como aconteceu com o Uruguai, onde a Animalltag tem uma filial. “Lá a tonelada da carne para exportação dobrou de preço depois de implantado o sistema”, conta Machado. Em novembro, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados aprovou um projeto que tornará obrigatória a adoção de rastreabilidade apenas com marca de fogo e tatuagem. Os defensores desses dois antigos sistemas alegam que eles são mais facilmente utilizados pelos pequenos produtores. Para muitos o preço do sistema eletrônico ainda é um impedimento. “O preço de um brinco eletrônico pode chegar a menos de R$ 4,00, dependendo da quantidade. Se considerarmos que o preço da arroba (15 quilos) do boi está em R$ 80,00 e ele é abatido em média com 18 arrobas, ao

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preço de R$ 1.440,00, é um custo baixo”, diz Machado. “Não há como duplicar um brinco e ele evita falhas no sistema.” O acompanhamento dos animais é um trabalho cansativo quando feito sem equipamentos eletrônicos e sujeito a muitos erros. Normalmente, o pecuarista usa uma caderneta de papel onde é anotado todo tipo de dados, principalmente peso e condições sanitárias e reprodutivas. “É comum erros na anotação de peso e até informações como ‘touro com bezerro ao pé’ (e não vaca) entre outros”, diz Machado. Para facilitar a tarefa para os tratadores e potencializar o uso da tecnologia pelos pecuaristas, a Animalltag criou a Tabela do Peão, uma espécie de tela de couro que comporta vários cartões eletrônicos que representam tarefas – como pesagem, inseminação, vacinas – e dados cadastrais do animal, como raça, sexo e idade. Para registrar o animal ou inserir qualquer informação à ficha eletrônica do boi ou da vaca, o peão aproxima a antena do leitor no brinco, que identificará o animal para o sistema, e depois em cada cartão eletrônico da tabela. A tarefa ou dado de cadastrado é automaticamente gravado na ficha do animal dentro da memória do leitor. Em alguns casos é necessário apertar as teclas sim ou não para complementar a informação inserida. A leitura é sempre feita no tronco, ambiente formado por um corredor de madeira onde o boi fica, em determinado momento, contido para a inspeção.

na Colômbia”, diz Machado. Essa operação comercial custou à empresa cerca de US$ 500 mil em homologação do equipamento, acompanhamento de testes e desenvolvimento local de software. “Fora esse valor, os investimentos da Korth, na nova fase, entre 2005 e 2008, somaram R$ 2 milhões e o faturamento anual atinge R$ 8,5 milhões”, revela Machado. Ele não deixa de reconhecer que o rápido sucesso da empresa não seria possível sem o investimento em pesquisa da FAPESP, no valor de R$ 323 mil, além de dois aportes da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) do Ministério da Ciência e Tecnologia. O primeiro é oriundo do Programa de Subvenção Econômica, no valor de R$ 622 mil para desenvolvimento da linha comercial e homologação do produto em vários países. O segundo foi em conjunto com a Embrapa Pecuária Sudeste com recursos do Fundo Verde Amarelo (CTAgro) no valor de R$ 148 mil. “Foram ajudas muito importantes”, diz Machado. Além do sistema Animalltag, a Korth utiliza a tecnologia RFID em equipamentos para o setor sucroalcooleiro. Um dos sistemas mais inovadores – existem outros mais tradicionais que fazem, por exemplo, o apontamento

da cana cortada que entra na usina – é o controle do diesel utilizado em caminhões e máquinas como forma de evitar roubos desse combustível. Uma antena é colocada no bico da bomba de abastecimento do chamado caminhão-comboio que vai ao campo abastecer os veículos. No tanque dos caminhões e das máquinas é instalado um tag que identifica o veículo e libera a bomba do comboio em contato com a antena. Assim fica impossível um abastecimento ser realizado em um veículo sem tag. Um leitor instalado no caminhão registra o abastecimento de cada veículo e quantos litros ele recebeu. Todas as informações podem ser repassadas posteriormente por cabo ou por sistema sem fio Bluetooth para os computadores da usina. Também para evitar furtos, no caso de pneus, a fabricante Goodyear contratou a Korth para desenvolver um sistema que utiliza um chip vulcanizado que, colocado no interior do pneu, emite a identificação para um leitor externo. “Isso acontece porque em transportadoras ocorrem muitas trocas de pneus novos por usados. Com o chip e um leitor externo é possível controlar a autenticidade dos pneus e também registrar o desgaste ao longo do tempo”, diz Machado. ■

Balança automática – O registro do peso

Microchip, em bege, dentro do brinco, e área, em azul, onde fica o medicamento cicatrizante para a orelha do boi

KORTH

do boi é outra inovação apresentada pela empresa. “Desenvolvemos uma balança eletrônica (instalada na contenção do tronco) totalmente integrada ao leitor. Basta o peão aproximar o bastão perto do cartão com o nome de ‘pesagem eletrônica’ que o sistema envia um comando para a balança e o peso é inserido automaticamente na ficha eletrônica do animal”, explica Machado. A empresa optou por fabricar tanto os brincos como o leitor e a balança, além dos softwares que acompanham os equipamentos. As instalações da Korth, em São Carlos, abrigam 56 funcionários, sendo quatro engenheiros no desenvolvimento dos produtos e três na elaboração de softwares. “Desde outubro estamos com quatro funcionários brasileiros morando

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SintĂŠtico com espessura e textura similares ao papel de celulose

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ENGENHARIA DE MATERIAIS

Papel de

plástico Embalagens descartadas servem para rótulos e livros

reciclado

MIGUEL BOYAYAN

U

m papel sintético fabricado com plástico descartado pós-consumo foi desenvolvido na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e testado em uma planta piloto da empresa Vitopel, fabricante de filmes flexíveis com fábrica em Votorantim, no interior paulista. Produzido em forma de filmes, o material produzido a partir de garrafas de água, potes de alimentos e embalagens de material de limpeza pode ser empregado em rótulos de garrafas, outdoors, tabuleiros de jogos, etiquetas, livros escolares e cédulas de dinheiro. “Ele é indicado para aplicações que necessitam de propriedades como barreira à umidade e água, além de ser bastante resistente”, diz a professora Sati Manrich, do Departamento de Engenharia de Materiais da universidade e coordenadora do projeto que teve financiamento da FAPESP para o desenvolvimento da pesquisa e o depósito de patente. O papel sintético comercializado atualmente é produzido com derivados de petróleo. “Existem várias patentes e produtos comercializados com matéria-prima virgem, mas não encontramos nenhuma patente ou papel sintético feito a partir de material plástico reciclado”, diz Sati. Os testes na planta piloto, também chamada de escala semi-industrial, foram conduzidos por Lorenzo Giacomazzi, coordenador de tecnologia de processos da Vitopel, que tem a cotitularidade da patente. “O grande diferencial desse processo é fabricar um papel sintético com material totalmente reciclado”, diz Giacomazzi. Foram usadas várias composições e misturas de plásticos da classe das poliolefinas. “O aspecto final é o mes-

mo do produto feito a partir da resina virgem, com a vantagem que se aproveita o material que iria para o aterro sanitário ou lixões.” A negociação da patente foi uma permuta entre as duas partes. Como a empresa precisava conhecer a composição do material para permitir o uso do equipamento, foi feita uma parceria. “Não pagamos nada para usar a máquina necessária para o experimento e, em troca, eles ficaram com um terço da propriedade intelectual”, explica Sati. Atualmente a empresa está à procura de fornecedores de material reciclado para continuar os testes em escala ampliada. No processo desenvolvido na universidade, os plásticos, depois de lim-

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OS PROJETOS 1. Estudos em filmes multicamadas de compósitos de termoplásticos virgens e reciclados para aplicações em escrita e impressão 2. Papel sintético e filmes ecológicos para escrita e impressão, composições, processos de orientação e uso dos mesmos

MODALIDADES

1. Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa 2. Programa de Apoio à Propriedade Intelectual COORDENADORA

SATI MANRICH - UFSCar INVESTIMENTO

R$ 69.518,53 (FAPESP) R$ 7.479,00 (FAPESP)

pos e moídos, recebem a adição de partículas minerais para obtenção de propriedades ópticas – como brilho, brancura, contraste, dispersão e absorção de luz – e resistência mecânica ao rasgamento, tração e dobras. A mistura é colocada em uma máquina extrusora a altas temperaturas, onde amolece e se funde. No final, o material transformase em uma folha grande fina, semelhante a um papel fabricado com celulose, que é enrolada e cortada de acordo com a aplicação. Os testes na planta piloto foram feitos com as composições de plásticos que apresentaram em laboratório as melhores propriedades para fabricação de papel sintético. Para efeito de comparação, foram avaliadas as propriedades ópticas e o resultado da impressão em papéis produzidos com matéria-prima virgem e com resíduos plásticos. “Nos testes feitos, as propriedades do papel sintético praticamente não se alteraram com o uso do material reciclado”, relata Sati. Apenas nos casos em que na composição entraram resíduos de plásticos escuros, com pigmentos incorporados, foi observada alteração na alvura do material. O interesse da pesquisadora pelo tema data de 1996, quando iniciou um projeto financiado pela FAPESP para a caracterização de poliolefinas provenientes de resíduos urbanos para a fabricação de papel sintético. Desde então, Sati orientou várias pesquisas que tinham como foco o reaproveitamento de embalagens descartadas pós-consumo. Duas delas resultaram em pedidos de patente para a fabricação de papel sintético, mas os processos e os materiais utilizados são diferentes. A primeira usa como matéria-prima as garrafas PET – sigla de poli (tereftalato de etileno) – e precisa de uma etapa adicional, que consiste de um tratamento químico, para produzir o filme. A segunda pesquisa, iniciada em 2002 e considerada um aperfeiçoamento da anterior, é a do papel sintético testado na Vitopel. ■

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HUMANIDADES

HISTÓRIA

Entre Amadeus e o batuque A política sutil de uma disputa musical dos tempos de dom João | Carlos Haag

A

JACOB HOEFNAGEL (1609)/CLAES JANSZ VISSCHER (1640)/WIKIMEDIA COMMONS

história até parece o roteiro do filme Amadeus: um pobre músico genial de talento nato, o padre mulato José Maurício Nunes Garcia (1767-1821), sofre horrores nas mãos do seu arrogante e invejoso rival, o lusitano Marcos Portugal (1762-1830), compositor favorito de d. João VI, chegado ao Brasil em 1809 para ser seu mestre-de-capela, supostamente um criador medíocre e intrigante palaciano. No terceiro eixo desse “drama” estaria o compositor, regente e organista austríaco Sigismund Neukomm (1778-1858), “o mais brilhante aluno de Haydn”, músico a serviço de Charles Talleyrand (1754-1838), um dos articuladores do Congresso de Viena, para o qual Neukomm foi convidado a compor um réquiem apresentado em grande estilo diante de todas as cabeças coroadas da Europa. Dono de um currículo notável, o austríaco chegou ao Brasil em 1816 e passou uma temporada de cinco anos no Rio, onde deu aulas para dom Pedro e dona Leopoldina, escreveu sinfonias, missas, transcreveu modinhas para piano e voz, mas, admirador fervoroso do padre José Maurício, acabou

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vítima da ira de Marcos Portugal, deixando o país em 1821. Não faltou mesmo o Réquiem de Mozart como pano de fundo: em 1819, o padre e seu colega europeu se reuniram para a estreia da peça no Brasil, com Neukomm completando a obra inacabada de Amadeus. “Essa visão da oposição entre o vilão luso, ligado à monarquia e a influências italianizantes, e o genial herói autodidata brasileiro causou distorções sobre a verdadeira natureza dos fatos. E a confusão só cresceu com a imagem romântica do mestre contemporâneo de Mozart, Neukomm, que teria vindo difundir a ‘grandiosa’ e ‘superior’ música germânica nos trópicos”, analisa o maestro e musicólogo Ricardo Bernardes. “Isso tudo foi bastante conveniente em momentos de autoafirmação nacional dos tempos republicanos (sendo usada por vezes até hoje), procurando validar a produção de José Maurício ligando àquela de Neukomm em uma antítese ao ‘decadente’ lusitano que tinha como modelos Marcos Portugal e, depois, Rossini.” Música

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Conforto - “Mesmo que o objetivo fos-

se a melhoria das condições materiais que permitisse à família real e aos nobres portugueses um pouco de conforto durante sua permanência no Brasil, as iniciativas de dom João VI lançaram as bases de um processo civilizatório que

culminou com a nossa independência política em 1822”, completa André Cardoso, autor de A música na corte de dom João VI, lançamento da Martins Editora. “A vinda de Neukomm e Marcos Portugal representou a continuidade de uma estilística europeia. José Maurício, o representante colonial, foi o vértice para onde convergiram as estilísticas ensaiadas pelos dois europeus. Nessa miscigenação cultural os músicos puderam contribuir para a construção de um gosto que se moldava, dentro e fora da corte, como uma das premissas para o processo de implementação de uma consciência de civilidade e nação”, observa Monteiro. “Há então nessa ideia de nação não a consciência que move o espírito da liberdade, mas um ideal de superioridade nos moldes dessa

pretendida civilização.” Tratava-se de uma “guerra sonora” que se ligava ao projeto maior que, catalisado pela invasão napoleônica, trouxe a corte ao Brasil: a recriação no Novo Mundo de um “império florescente”, como nota a historiadora Kirsten Schultz em seu Versalhes tropical. “Para os portugueses a transferência da corte era uma chance de restaurar a integridade moral e política da nação portuguesa, vista então como decadente e corrompida, fazendo a monarquia portuguesa mais formidável do que nunca.” Daí, continua a autora, a criação, já em 1808, de uma Capela Real, para a produção e manutenção da música religiosa, pelo príncipe regente, bem ao lado de seu palácio, uma maneira de “reafirmar uma velha tradição do patronato histórico da coroa

JEAN-BAPTISTE DEBRET, MARIMBA – REUNIÃO DE DOMINGO À TARDE. IEB/USP

como assunto de Estado? “A música, durante a permanência da família real no Brasil, foi parte de um processo maior, um dispositivo a mais nas relações de colonização. É possível pensar nas práticas musicais do período joanino a partir do ponto de vista de uma ‘construção do gosto’ e as diretrizes tomadas pelo monarca deram novo sentido à vida cultural do país, a propor mudanças e sugerir cruzamentos entre as diversas maneiras de interpretar e ouvir os sons do mundo, daquele que se modificava”, analisa o historiador Maurício Monteiro, autor de A construção do gosto: música e sociedade na corte do Rio de Janeiro 1808-1821, doutoramento agora transformado em livro pela Ateliê Editorial.

Acima, grupos de negros com instrumentos típicos da cultura africana; ao lado, Viena em 1609

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JOHANN MORITZ RUGENDAS, FESTA DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO. IEB/USP.

As festas dos séculos XVIII e XIX: celebrações religiosas conviviam com miscigenação das ruas

à música sacra” e prover a monarquia com uma visão de progresso, ordem e civilização, necessários para se alcançar o novo status lusitano. Milagre - Não sem razão, Neukomm,

ao chegar ao Brasil integrando uma comitiva do duque de Luxemburgo, cujo objetivo era reatar relações diplomáticas entre França e Portugal, foi recebido pelo conde da Barca, ex-embaixador português entre os franceses, com um convite para ficar uma temporada no país e presenciar o “milagre”: “Nós temos a esperança de fundar um Novo Império neste Novo Mundo e será interessante para você ser testemunha desse período de desenvolvimento”. Embora acostumado aos ambientes políticos europeus, o austríaco não imaginava que sua música ia de encontro ao que dom João VI preconizava como a ideologia por trás da trilha sonora de seu Novo Império. “Neukomm era um caso isolado de tradição instrumental num meio musical que valorizava, sobretudo, a música sacra e sua relação com a ópera. Antes e depois dele, a pouca música instrumental consistia de aberturas de 94

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óperas ou para cerimônias festivas, em especial religiosas. Música originalmente composta no Brasil era de igreja e de teatro”, lembra Bernardes. A Europa do mesmo século vivia seu momento de criação e proliferação de sinfonias, das formas musicais puramente instrumentais. “Se a forma sinfônica era, naquele momento da sociedade europeia, mais importante do que a missa, na organização colonial e católica do Brasil ainda predominavam as práticas religiosas”, observa Monteiro. Dessa forma, uma disputa entre músicos, aparentemente inócua e estética, pode ser reveladora de ideologias políticas: a necessidade de construir um império florescente, sem os vícios da nação portuguesa do tempo, exigia o retorno aos “bons tempos”. Ou seja, ao tempo de dona Maria I. “Foi no tempo da rainha que houve um aumento nas práticas operísticas e uma contumácia nos barroquismos religiosos. A representação da ópera era, antes de tudo, uma demonstração da pompa e do poder que cercam os reis. A ópera, com seus heróis, era a personificação do próprio rei e conferia a ele, simultaneamente, poder e glória, benevolência e

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Sigismund Neukomm

música brilhante e operística que foi combatida pela geração romântica como concessão aos modismos e gosto frívolo de uma época submissa à ópera italiana”, observa Bernardes. “É preciso entender que, com a chegada da família real, houve adaptações de estilo a uma linguagem teatral, ao gosto do monarca, num Brasil colonial em que a celebração litúrgica era o grande evento social.” Gosto - Daí, portanto, a mudança de

Maurício. Aqui Apolo teve de sucumbir a Dionísio: se o primeiro foi soberano quando se fazia música europeia, o ambiente era do segundo”, diverte-se Monteiro. O mesmo se dava no confronto entre estéticas. O meio musical carioca era difícil e dependia muito do gosto pessoal do rei sobre a música adequada ao Novo Império que, para ele, como no tempo de dona Maria I, ligava a música sacra com a música de teatro, distante do paradigma romântico da superioridade da música “pura” dos mestres Haydn e Mozart. “Era uma sutil limiaridade entre o sacro e o profano muitas vezes pouco compreensível às audiências modernas, que esperam mais ‘solenidade’ em obras sacras. Há nelas grande teatralidade e o uso de elementos profanos. Era uma

estilo observada nas obras de José Maurício com a chegada do rei. “A mudança talvez resida em muito no gosto musical de dom João VI, que, não satisfeito com o repertório da antiga Sé, manda vir músicos da Capela Real de Lisboa e reorganiza o arquivo com obras originais. Essas obras, que deveriam atender ao estilo que era praticado em Lisboa, haviam avançado para a linguagem operística de Marcos Portugal. Esse era o padrão musical para dom João VI e os músicos portugueses, que o celebravam como compositor de estilo moderno”, avalia Bernardes. Longe de apenas “vítima” do “terrível” Marcos Portugal (um grande compositor, infelizmente, ainda hoje jogado ao limbo por causa da

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JACOB HOEFNAGEL (1609)/CLAES JANSZ VISSCHER (1640)/WIKIMEDIA COMMONS

justiça”, nota Monteiro. Isso nos ajuda a compreender, entre outras coisas, o empenho de dom João VI em trazer para o Brasil, a peso de ouro, castratti, figuras em decadência na Europa moderna. Para “recriar” o novo era preciso restaurar, à altura, o velho. Música era, nesse ponto, um assunto sério para dom João. “O rei tem uma sofreguidão na música que se canta na Capela, que até não quer emprestar para outras festas que se fazem por fora, não indo ele assistir. Quando soube que haviam cantado em Lisboa o Réquiem escrito por Marcos para as exéquias da rainha, o rei foi pelos ares, prometendo mandar para Angola quem repetisse isso”, escreveu, em 1819, o músico da Capela Imperial. Igualmente, preocupou-se em “limpar” a música dos mestiços que, até sua chegada, dominavam o cenário musical. “Havia no Brasil uma quase total inexistência da figura do mecenas, seja a Igreja, seja o nobre. Aqui predominou o fato profissional corporativo, as irmandades, as congregações de leigos, os profissionais liberais que se reuniam em torno de determinada devoção”, explica Cardoso. “Predominava o pensamento de que a atividade musical, por ser um trabalho ‘braçal’, uma atividade ‘mecânica’, não era função digna de brancos. Não se pensava no músico como artista. Até a vinda de dom João VI, cerca de 90% dos músicos eram mestiços e estavam ligados às irmandades, sob a égide de seu santo protetor, como o padre José Maurício”, completa Monteiro. No período joanino, a situação muda radicalmente: 72,6% dos músicos eram de origem europeia e, no plano social, houve uma predominância paulatina dos músicos brancos sobre os músicos mestiços. Mas a realidade nacional era implacável com o projeto ideal do império renovado nos trópicos. “Imagino os cantores castrados saindo de uma bela execução de uma ópera ou de uma missa de Neukomm ou Marcos Portugal na Câmara e Capela reais e depois, ao colocar os pés na rua Direita, serem absorvidos pelos sons diversos de lundus e batuques que eram o universo de José

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guardadas as proporções, repetiram-se essas práticas”, afirma Monteiro. E quanto a Neukomm? Foi no Brasil que criou mais da metade de sua produção sinfônica e camerística; aliás, atribui-se a ele o mérito de ter trazido esse gênero para o país, que praticava com frequência na casa do embaixador da Rússia, Langsdorff. Igualmente, nota Bernardes, é uma virtude sua ter composto a quase totalidade das obras puramente instrumentais criadas no Brasil colonial. Mozart - Apesar disso, não há registros

de execuções de suas sinfonias e muito poucas referências à apresentação de suas missas, cujo estilo era muito diverso do “sacro-operístico” em voga. Para a festa da Irmandade de Santa Cecília, em 1819, ele ajudou José Maurício a executar o Réquiem de Mozart, para o qual escreveu um Libera me domine, que concluía a obra inacabada. Em matéria escrita no Allgemeine Musikalische Zeitung, em 1820, Neukomm elogiou efusivamente o talento do padre: “O concerto não deixou nada a desejar. Todos os talentos se conjugaram para receber, com dignidade, o estrangeiro Mozart neste novo mundo”. Ele não teve o mesmo sucesso. “O discípulo pre-

JEAN-BAPTISTE DEBRET, ORICONGO – ORFEU AFRICANO. IEB/USP

O berimbau foi muito utilizado no Rio de Janeiro joanino

disputa em que era “antipatriótico não falar mal dele”), José Maurício pegou para si o melhor dos dois mundos, de Portugal e de Neukomm, continuando a se agarrar, nota o pesquisador, ao fundamento da ópera italiana e da música vocal: a beleza do canto que deveria arrebatar o ouvinte, sem medo de ligar teatro e igreja. Aquela, afinal, era disputa de “gente graúda”. “Mandovos uma missa cantada de Neukomm que, como súdito austríaco e discípulo de Haydn, merecerá suas graças. O meu marido é compositor, também, e faz-vos presente de uma Sinfonia e um Te Deum, compostos por ele. Na verdade são um pouco teatrais, o que é por culpa do seu professor (Marcos Portugal), mas ele os compôs sem o auxílio de ninguém”, escreveu, em 1821, Leopoldina, mulher do futuro dom Pedro I, ao seu pai, o imperador austríaco Francisco I. Era a tradição germânica em confronto com o italianismo. Mas de pouco adiantava o descontentamento da consorte, pois a música necessária era a dos tempos do grande Portugal. “A época da transmigração da corte para o Brasil foi também o período de transferência dos comportamentos da nobreza cortesã, das funções e linguagens. No Brasil,

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A. P. D. G., FESTIVAL DE NOSSA SENHORA D’ATALAYA. REPRODUÇÃO DO COMPACT DISC MODINHAS E LUNDUS DOS SÉCULOS XVIII E XIX

A mistura da cultura musical branca com a realidade escravista

ferido de Haydn, Neukomm, achava-se então como diretor da Capela do Paço. Para suas missas, porém, compostas inteiramente no estilo dos mais célebres mestres alemães, ainda não estava de todo madura a cultura musical do povo”, observaram os naturalistas Spix e Martius em Viagem pelo Brasil. O austríaco partiu, então, para novos desafios. “Neukomm criou a primeira obra de música séria a empregar no Brasil (e, talvez, no mundo) temas da música popular do país. É assim que nasce de sua pena um capricho para piano baseado num lundu brasileiro, uma dança de escravos particularmente sensual e, por isso, proibida pelas autoridades. Ele também transcreveu e harmonizou 20 modinhas de Joaquim Manoel da Câmara, um poeta-músico negro que nunca estudou música. É graças a Neukomm que podemos ter acesso à sua música”, conta a musicóloga Luciane Beduschi, que acaba de defender seu doutoramento sobre o compositor

na Sorbonne, de cuja banca faz parte a pesquisadora brasileira Helena Iank. Ela também é responsável pela recuperação de Cânone enigmático a oito vozes escrito por Neukomm pouco antes de partir do Brasil e dedicado ao Rio de Janeiro. “O enigma do Cânone ilustra um documento pessoal em que o músico revela o estado de espírito em que ele se encontrava quando deixou o país em 1821.” Neukomm volta para a Europa apenas dez dias após a partida de dom João VI, segundo a pesquisadora, temeroso do clima de tensão instalado no país. “O texto do Cânone é um diálogo sobre música sacra entre dois rivais, no qual Neukomm é um dos personagens e os outros simbolizam os que se opunham à sua escola. No final, ele afirma que, se para ser reconhecido precisasse se adaptar a um estilo que repudiava, preferia deixar o Brasil”, observa Luciane. “O que é que soa tão alegremente no templo, como se hoje fosse a festa de Baco? Com estes tão alegres encantos para os ouvidos a gente resiste bem horas e horas. Se vós cantais de maneira tão alegre a morte, como soa então o vosso canto de júbilo?”, pergunta Neukomm na peça. “O que

quer esse imbecil? Nós, que cantamos tão alegremente, oh, isto faz com que sejamos venerados pelos nobres e pelos pobres. E nos dá a glória e o dinheiro e todos os que resistem à nossa maneira empobrecem e apodrecem por aqui”, replicam os rivais. “Então eu pego a minha mala e vou-me embora”, desabafa o austríaco. O Cânone é construído todo sobre a letra C.a.ca.p.r.i.pri capricornia, carioca, corcovado: vado, addio”. “Não seria demasiado imaginar que a palavra ‘C.a.ca.’ com que ele inicia o Cânone fosse mais do que uma simples repetição da primeira sílaba de capricornia”, nota a pesquisadora. Um mau humor justo, mas uma mágoa desnecessária, pois, se seu projeto “germânico” não vingou, tampouco o sonho joanino de retomada de um império lusitano nos trópicos, ao som das velhas e boas “óperas sacras e profanas” dos tempos de dom João V e dona Maria I, foi bem-sucedido. “O nosso mélange musical foi também uma demonstração sonora de nossa diversidade cultural, onde violinos europeus soavam junto aos tambores afro-americanos e aos chocalhos ameríndios”, nota Monteiro. Amadeus misturou-se ao batuque. ■ PESQUISA FAPESP 155

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LITERATURA

IMAGENS DO LIVRO EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO/EDITORA ZAHAR

À sombra dos

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manuscritos em flor Projeto temático decifra cahiers de Proust

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oi o próprio Marcel Proust (1871-1922) quem lançou o desafio aos críticos literários da posteridade ao afirmar, em O tempo redescoberto: “Um livro é um grande cemitério onde, sobre a maioria dos túmulos, não se podem mais ler os nomes apagados”. O escritor, claro, não poderia imaginar que seus preciosos manuscritos, os famosos cahiers proustianos, usados para esboçar as 4.300 páginas dos sete volumes de Em busca do tempo perdido, obra que tomou 15 anos da sua vida, fossem um dia ser matéria de análise da chamada crítica genética, empenhada em decifrar o “DNA literário” do mais emblemático “romance-rio” de todos os tempos, a fim de compreender como Proust trabalhou (e “retrabalhou”) sua obra. “Tenta-se detectar o processo de criação dos escritores, de como eles passaram de uma frase a outra. Cada rascunho proustiano é um microcosmo da própria obra, no plano da escritura, da narrativa, mas, acima de tudo, no plano dos motivos que se esboçam, dos temas que se respondem e vão encontrar seu eco em outros contextos em que se disseminarão”, explica Philippe Willemart, crítico literário da USP e coordenador do Projeto Temático Brépols brasileiro, apoiado pela FAPESP, que visa decifrar e publicar parte dos 75 cadernos de manuscritos do autor. Esses, desde 1962, estão na Biblioteca Nacional da França e a partir de 2003 começaram a ser decifrados pela Equipe Proust do Institut de Textes et Manuscrits Modernes, o Item, para publicação. “Nós fazemos parte desse projeto internacional de publicação dos cadernos pela editora belga Brépols. A equipe brasileira é responsável pelos cadernos 8, 15, 16, 17, 20, 21, 28 e 38, uma parte do 44 e do 53. O que se pretende é deixar esses manuscritos facilmente legíveis e acessíveis a qualquer pesquisador”, observa Willemart. “Não queremos extrair textos inéditos, mas tentar reconstituir uma maneira de escrever o percurso de um escritor. Os cadernos guardam o enorme trabalho de Proust com os manuscritos,

que corrigia ao infinito, chegando a colar folhas nas laterais, os paperoles, com acréscimos e revisões”, completa Bernard Brun, pesquisadorchefe da Equipe Proust francesa. Se, como dizia Anatole France, as frases do autor, no romance impresso, “eram intermináveis o bastante para deixar o leitor tísico”, imagine-se enfrentar o universo “caótico” dos manuscritos com suas inúmeras rasuras e correções. “Ele, ao reler os rascunhos, acrescentava folhas avulsas, já que os espaços dos cadernos já estavam repletos de textos, nos rodapés ou nos cabeçalhos das folhas dos cadernos. As folhas eram coladas nesses locais e, inúmeras vezes, Proust colava mais folhas avulsas às já existentes”, conta Carla Cavalcanti Silva, integrante da equipe brasileira. Além do trabalho de decifrar a letra do autor, os manuscritos não apresentam qualquer ordem cronológica comparável ao romance publicado. “Raramente encontramos uma continuidade de desenvolvimento

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de um episódio ou de uma descrição nas páginas dos cadernos. Ele não dava sequência aos episódios trabalhados numa dada página e usava a frente dos fólios para desenvolver temas e o verso para acréscimos ou considerações, num diálogo entre o verso do fólio anterior com a frente do fólio posterior.” Ainda assim havia uma lógica inexorável nesse “caos”. Papel - “Existe uma impressão de pura desordem, no sentido de que os textos surgem no verso ou mesmo na mesma página sem nenhuma ligação evidente com o que está à vista ou com o que o precede. Mas Proust não escrevia de qualquer jeito, ou melhor, o scriptor proustiano punha as palavras no papel com um desígnio preciso, embora com frequência não

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sabida, mas não ao acaso, como uma primeira leitura poderia fazer pensar”, analisa Willemart. Não sem razão, o escritor compara seu projeto literário à construção de uma catedral ou, mais prosaicamente, à confecção de um vestido. “Essa metáfora caberia para ilustrar o próprio fazer literário em Proust. O vestido, mesmo possuindo um desenho anterior, só será concretizado na adição de diversas camadas e fragmentos de tecidos que deverão ser amarrados, costurados entre si. O processo escritural proustiano não foge desse procedimento, pois os diversos textos serão costurados, colados e montados”, avalia Carla. Haveria, em todos os cadernos, uma coerência, ou, nas palavras do escritor, uma “aliança de palavras” que, nota Willemart, “iria além da razão cartesiana e da inteli-

gência racional”. A “mania” de escrever em fragmentos, usando folhas de papel as mais variadas, difíceis de serem datadas e aparentemente sem nenhuma conexão, acompanhou Proust desde o seu romance inacabado de juventude, Jean Santeuil (1899). Em 1908, após vários ensaios, artigos e traduções, o escritor decidiu se dedicar a “um trabalho de fôlego”, o ensaio Contre Sainte-Beuve, contra o crítico literário homônimo, de cuja opinião sobre a relação estreita entre vida e obra dos autores discordava radicalmente. No meio do processo, porém, Proust inseriu uma situação romanesca e o ensaio sobre estética ganhou feições de ficção que acabaram levando o autor a repensar o projeto e começar a retrabalhá-lo no que seria Em busca do tempo perdido, inicialmente batizado de “As intermitências do coração”. A ideia original era um romance em três volumes e, em 1912, ele entregou, para sua secretária datilografar, as primeiras 700 páginas do primeiro livro. Após ser rejeitado por três editores, entre os quais André Gide (que passaria o resto da vida se desculpando pelo lapso), Proust optou por editar a novela à sua custa pela Grasset. No caminho de Swann foi para as lojas em novembro de 1913 e o segundo volume estava programado para o ano seguinte, quando estourou a Primeira Guerra Mundial e o papel para impressão passou a ser racionado. Os quatro anos do conflito deram ao autor a chance de repensar a estrutura original do seu “romance-rio”, adicionando mais quatro volumes. Aquela seria a obra de sua vida e, a partir de 1909, raramente deixou o seu apartamento, prisioneiro da asma e de uma série de males reais e imaginários. Forrou as paredes de seu apartamento com

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cortiça em busca de isolamento. Em 1922, enquanto ainda corrigia as provas de A prisioneira, morreu. Seu irmão, Robert Proust, com a ajuda de editores, demorou cinco anos para fabricar um texto satisfatório do último volume, publicado apenas em 1927, vinte anos após o seu início. Após sua morte, em 1935, a filha de Robert doou, em 1962, os cadernos e manuscritos para a Biblioteca Nacional da França. Infinito - “Pode-se dizer que, desde

1909, o romance já estava condenado a se desenvolver ao infinito, ou seja, permanecer inacabado. E a consequência mais importante da crítica genética, nesse caso, é justamente libertar a ideia de inacabado. Por definição, o manuscrito não é ‘acabado’ porque seu destino é ser substituído por um outro estado do projeto, do canteiro de obras do escritor. Mas como fica a situação se a versão impressa não é, igualmente, a última?”, pergunta-se Brun. “Cada versão daquilo que não foi utilizado pelo escritor contém, em si, fios narrativos, romances que nunca existirão.” Em busca do tempo perdido é, então, no melhor sentido da palavra, uma obra inacabada, o que só reforça a importância da análise de seus manuscritos e o trabalho de reconstituição dos caminhos tomados pelo escritor, sua arte de escrever, que, para Proust, era vista como “tratar 20 vezes, sob luzes diferentes, do mesmo tema, tendo a sensação de fazer algo profundo, sutil, poderoso, original como as 50 catedrais ou os 40 nenúfares de Monet”. A rasura ganha um novo status. “Ela marca o momento em que o escritor deixa a sua intenção primitiva de escrever e escuta a tradição literária, uma música, um ou uma amante, uma tragédia. Quando ele rasura, ele se deixa levar tanto pelos terceiros quanto pela linguagem, que é um fator importante na construção de uma obra”, nota Willemart. “Há uma lógica da criação proustiana, evidenciada pela problematização das situações, que nos permite entender o movimento de sua escrita. Não é uma mera repetição de episódios, mas uma tentativa constante de remodelá-los para transfomar esses mesmos episódios em algo mais denso e problemático”, observa Carla. Tudo passa por uma exaustiva

construção, até mesmo os episódios de memória involuntária. “Ele é a nossa Sherazade. Lemos Proust porque ele sabe muito sobre os elos entre a angústia infantil e a paixão adulta. Lemos Proust porque ele despreza as avaliações racionais e sabe que apenas o conhecimento retorcido que o sofrimento traz nos serve realmente. Lemos Proust porque sabemos que no estágio terminal da paixão não amamos mais o amado e o objeto de nosso amor foi encoberto pelo próprio amor. Ele foi o primeiro escritor do século XX, pois foi o primeiro a descrever a permanente instabilidade dos nossos tempos”, escreveu o crítico Edmund White em seu perfil do escritor. Essa liberdade de reescrever foi um privilégio do seu século, pois, até o século XVIII, o papel, precioso e caro, não permitia aos escritores hesitações no texto final. A Revolução Industrial, que popularizou o papel, trouxe essa chance ao romancista de ousar e fixar seus pensamentos mais rapidamente e há cada vez menos espaço para o “texto fechado” que não se transforma, com começo, meio e fim. Mesmo a temática homossexual de seu grande romance é fruto da oportunidade que teve de romper fronteiras temáticas a partir da constante revisão de seus manuscritos e da obsessão pela problematização. Ironicamente, Proust odiava a ideia de ter seus rascunhos dissecados. “Não é um pensamento agradável que alguém possa acessar meus manuscritos e os comparar ao texto definitivo, a induzir suposições que serão sempre falsas sobre a minha maneira de trabalhar, sobre a evolução de meu pensamento”, escreveu em julho de 1922. Por sorte, não ficou preso nos manuscritos o brasileiro que aparece citado em O caminho de Guermantes. “Subitamente lembrei-me: aquele mesmo olhar eu já vira nos olhos de um médico brasileiro que pretendeu curar minhas crises de asma com inalações, absurdas, de essência de plantas”, diz o narrador do romance. O historiador Hermenegildo Cavalcante acredita que o médico seria o cearense Domingos José Nogueira Jaguaribe, especialista em botânica médica que, após doutorar-se, foi para Paris, onde tratou o jovem Proust, então com 22 anos. De início, o escritor se encantou com o exotismo da cura oferecida pelo brasileiro, mas, como com as outras

drogas que consumia para atenuar sua asma (perfumes e a ingestão de grandes quantidades de álcool), cansou-se da panaceia tropical. O amigo Anatole France, que esteve no Brasil em 1909, falou com Proust sobre o país e o escritor conheceu a família do Conde d’Eu, marido da princesa Isabel. Sua obra literalmente aterrissou no Brasil em 1919, trazida por aviadores comerciais franceses que traziam livros para matar o tempo enquanto esperavam pelo abastecimento de suas aeronaves. O escritor Jorge de Lima, então um jovem médico, sabia disso e vivia “atormentando” os aviadores em busca de novidades para ler. De um deles ganhou uma “obra sonífera”, como a definiu o piloto: À sombra das raparigas em flor. Foi dele o primeiro artigo sobre Proust no Brasil, em 1923. Antes, os modernistas de 1922 preferiram desprezá-lo, vendo em sua literatura apenas o dândi deslumbrado dos salões. Em 1930, José Lins do Rego devorou o que pôde do escritor, que o influenciou em sua literatura dos engenhos, desejoso de ser o Proust dos canaviais. A primeira obra proustiana a ser traduzida no Brasil foi O caminho de Swann, em 1948, por Mário Quintana. Hoje, ao lado dos franceses, estamos redescobrindo todo esse tempo perdido. ■

Carlos Haag

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MÍDIA

Liberdade cabeluda O inusitado caráter político da contracultura brasileira |

Gonçalo Junior

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ouve uma vez um verão. Era o verão do desbunde, quando milhares de hippies de todo o país migraram a pé, de carona ou de carro como romaria para a pequena praia de Arembepe, no litoral baiano, em dezembro de 1970. Como se ali fosse meca e houvesse a necessidade de estar lá como uma forma de batismo para aquele novo estilo de encarar a vida e o mundo. Eram os hippies que se disseminavam pelo país, a contragosto da ditadura e da moral vigente. Por causa disso, muitos não conseguiram chegar. Foram presos em cidades como Salvador, onde a repressão aos cabeludos era uma prioridade para a polícia local, que os considerava meros vagabundos, segundo registraram jornais da época. Para a esquerda e demais envolvidos na luta contra o regime, essas moças e rapazes que não se preocupavam em tomar banho, pregavam o sexo livre e o consumo de maconha não passavam de “alienados”. E eram mesmo? Essa visão teria ajudado a academia a manter no limbo o rico movimento que ficou conhecido como contracultura ou underground – “udigrudi”, em bom português –, enquanto se dedicou exaustivamente a estudar o movimento estudantil e a luta armada? É provável que sim. Doutor em história social pela USP, Marcos Alexandre Capellari diz que se pode aventar, inicialmente, algumas razões para o pouco interesse da universidade pelo assunto. A primeira, explica ele, tem a ver com o fato de que se trata de fenômeno recente em que muitas de suas feridas (decepções, mal-entendidos etc.) ainda não cicatrizaram. “Não é confortável lidar com um movimento cujos personagens envolvidos, em sua grande maioria, estão vivos e atuantes, e cujo ideário ainda repercute culturalmente, dividindo opiniões, observa o historiador, que defendeu recentemente a tese O discurso da contracultura no Brasil: o underground através de Luiz Carlos Maciel, com orientação de Raquel Glezer. Outra explicação diz respeito às tradições de pesquisa nas universidades, no interior das quais determinados temas são ou não considerados legítimos objetos de estudo. Capellari concentrou sua pesquisa na repressão imposta pelo regime militar, sobretudo a partir do AI-5, de dezembro de 1968, para investigar o ideário libertário da contracultura propagado pelo jornalista Luiz Carlos Maciel na coluna Underground, do semanário O Pasquim, lançado em junho de 1969. Maciel seria apelidado de “guru da contracultura” pela importância que teve em difundir suas ideias PESQUISA FAPESP 155

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PATRÍCIA SANTOS/FOLHA IMAGEM

nal e politicamente engajada, simbolizada pelas propostas do CPC (Centro Popular de Cultura), e tropicalistas abertos às vanguardas estéticas nacionais e internacionais. “Entendo que não interessava ao regime militar a introdução de elementos culturais alienígenas quando eles tivessem alguma conotação subversiva, e realmente houve repressão a eles; creio, contudo, que a contracultura também encontrou obstáculos para a sua difusão na própria conjuntura brasileira do período.” Capellari acredita que até 1968 a juventude engajada tinha como norte comum a derrubada da ditadura, e outras preocupações, relacionadas à subjetividade, em geral ficavam em segundo plano. “Quando, porém, o ‘sinal se fechou’ com o AI-5, a juventude se ‘trifurcou’ (como disse Alfredo Syrkis), e uma parte dela aderiu à luta armada, outra à sociedade de consumo e uma terceira, já aberta para as influências culturais internacionais e desconfiada em relação à luta política tradicional, ‘desbundou’.” Maciel, acredita ele, ajudou e muito na difusão da contracultura no Brasil. “O Pasquim foi muito lido pela juventude da época, vendendo mais de 200 mil exemplares semanalmente e a coluna Underground, de sua responsabilidade, além de divulgar o que se passava no universo contracultural, discutia de forma sintética ideias que permeavam o imaginário dos envolvidos, em maior ou menor grau. Mas é claro que a contracultura chegou de uma forma mais ampla por intermédio do rock e da indústria cultural como um todo.” E também de publicações semelhantes, porém de menor repercussão, como A pausa, Rolling Stone, o tablóide paulistano O Bondinho e a revista Grilo, ambos editados por um grupo de jornalistas oriundos da revista Realidade. O desbunde brasileiro tinha motivações internacionais como a recusa em relação ao modelo ocidental de cultura, entendido pelos envolvidos como opressivo. Capellari observa que o “não” à família burguesa e à contenção sexual,

no país. A análise de Capellari tenta identificar as motivações do movimento contracultural internacional e sua introdução no Brasil em um período marcado por fortes rivalidades políticas e ideológicas. A partir do discurso do jornalista, ele questiona se a concepção de liberdade proposta pelo movimento foi, como defende a crítica, mera expressão de escapismo hedonista ou efetivamente revolucionária. O trabalho procura também apontar suas origens históricas. Para elaborar o projeto do doutorado, Capellari leu de forma mais sistemática desde obras de divulgação sobre o tema até O rebelde hoje: Luiz Carlos Maciel teóricos evocados pelo movimento, como Theodore Roszak, Wilhelm Reich, Herbert Marcuse, David Cooper, entre vários outros. de época, de outro, foram utilizadas “Com a ajuda de minha orientadora, como meio de impedir a liberação dos avaliei possíveis rumos da pesquisa e costumes. “Creio que não só o regime, mas sobretudo a cultura conservadora surgiu a decisão de abordar a coluna de Luiz Carlos Maciel.” Ao lidar com essa que ele representava foi vencedora, mas documentação, o historiador notou que não apenas no Brasil.” Acontece que, prossegue Capellari, do ponto de vista era possível, analisando os elementos de seu discurso, compor uma interpretação de grande parte dos que se envolveram não apenas da difusão, nesse período na contracultura, ficou a sensação de (1969-1972), do ideário contracultural que os ideais libertários que acompano Brasil, como também do seu conteúnhavam a liberação dos costumes mindo, composto por elementos oriundos de guaram à medida que, no seu lugar, a diversas tradições do saber. Nesse conindústria cultural transformava as bandeiras do movimento em mercadoria, texto, a ditadura, de alguma forma, ao reprimir a liberdade sexual e outras maesvaziando-as de suas conotações políticas e filosóficas. nifestações como o movimento hippie, tentou conter a chegada da contracultura no Brasil. Nesse sentido, o autor observa Juventude - Há, sobre esse aspecto, que, além dos aspectos políticos e econôafirma o pesquisador, uma outra consideração a ser feita e que se relaciona micos envolvidos no conceito, o termo “ditadura” pode ser considerado, para o com as disputas que ocorriam no Brasil no âmbito político e cultural. De um período, como representação sintética do conservadorismo na esfera dos coslado, ao contrário dos EUA, vivia-se no tumes. “Não resta dúvida de que ela se país um regime de exceção, contra o opôs de forma contundente ao ingresso qual parte da juventude estudantil e de da contracultura no cenário nacional, ao outros segmentos sociais se manifestou considerá-la um elemento subversivo a até dezembro de 1968, quando veio a mais a ser combatido.” repressão pelo AI-5. De outro lado, na Para isso, a censura, de um lado, e arena cultural, havia uma forte disputa a repressão, atestada por testemunhos entre defensores de uma cultura nacio104

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Repressão - Para o pesquisador, trata-

se, portanto, de uma questão complexa, que ele discute na tese. “No caso do Brasil, como já disse, a sua introdução se deu em uma conjuntura marcada pela repressão de extrema direita de um lado e, de outro, por uma oposição que acabou se dividindo não só na esfera política (o caso das diversas frentes de esquerda), como também no âmbito cultural. Nesse caso havia, por parte de uma das vertentes, nacional-popular, uma certa desconfiança em relação ao movimento contracultural.” Por essa razão a contracultura sofreu a oposição no Brasil tanto da direita quanto da esquerda tradicional, que a considerava uma forma de escapismo. A concepção de liberdade contracultural foi o objeto de análise de Capellari. Ele observa que sobre isso há autores que entendem não passar de uma forma de escapismo, uma vez que é uma liberdade que aponta apenas para a própria subjetividade. “Haveria então, como defende Luciano Martins, uma espécie de negação da condição de sujeito histórico por parte dos envolvidos. Muito embora sua análise seja pertinente sob o ângulo sociológico, creio que o ideal de liberdade na contracultura é um pouco mais refinado do que isso, pois ele aponta sim para uma ruptura no universo social, mas por um caminho diferente, aí sim a partir da subjetividade.” Em vez da ação positiva, nos moldes convencionais de política, explica o autor, a contracultura defende o rompimento a partir de dentro, do núcleo no interior do qual a rede cultural se fecha sobre o sujeito, a sua subjetividade, pois é ela que conserva, como um nó, a rede como um todo. “Se há o rompimento de um ponto, a rede tende a se esgarçar, sendo essa então a própria ruptura na esfera social. Trata-se, pois, de um ideal de liberdade que reclama, em primeiro lugar, a libertação do sujeito para que

dela surja a libertação social como um todo. Daí o apelo exercido pelas drogas psicodélicas, por algumas vertentes da psicanálise e pelas correntes filosóficoreligiosas orientais.” O Brasil, nesse período, afirma Capellari, passava por um processo de modernização autoritária. A sociedade se urbanizava e, em virtude da expansão dos meios de comunicação de massa, tornava-se permeável às transformações que vinham ocorrendo “lá fora” na esfera dos costumes, dos comportamentos etc. “Era inevitável que a contracultura se introduzisse no país. E ao se introduzir sofreu a repressão do regime devido ao seu caráter sub-

versivo, mas não só. Sofreu também a oposição de setores políticos e culturais de esquerda, para quem a contracultura era considerada uma forma de escapismo introduzido junto com outros elementos alienantes produzidos pelo imperialismo cultural.” O pesquisador dedica boa parte do primeiro capítulo da tese na discussão dessa e de outras questões. Ele confronta testemunhos e opiniões favoráveis e desfavoráveis em relação à introdução da contracultura no Brasil. “Para além da esfera nacional, discuti em profundidade a ideia de liberdade contracultural no segundo capítulo da tese, dedicada à análise de artigos da coluna Underground.” Nesse capítulo analisa certas vertentes da psicanálise (Reich, Marcuse, Brown etc.) e conceitos oriundos do universo filosófico e religioso oriental. E compõe um quadro que pode esclarecer certos comportamentos contraculturais. ■

ARQUIVO/AE

ao serviço militar, ao trabalho e à acumulação, à religião institucionalizada e aos seus dogmas, ao conhecimento “legítimo” ministrado nas escolas, entre outros, aludia com clareza a um outro “não”. “Isto é, ao processo civilizador que caracteriza a modernidade ocidental, sobretudo desde a revolução científica do século XVII, o Iluminismo e, é claro, o capitalismo industrial.”

Turma do Pasquim reunida: Jaguar, de óculos, e Tarso de Castro, ao centro

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IMAGENS DO LIVRO HÉLIO DE ALMEIDA, ARTISTA GRÁFICO/EDITORA IPSIS

Cartazes para teatro e filmes e luminárias em forma de escultura (abaixo e ao lado)

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ARTE

Formas

orgânicas Hélio de Almeida lança livro com seleção de seus melhores trabalhos gráficos e plásticos Mariluce Moura

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élio de Almeida, um dos mais respeitados artistas gráficos do país, reconhecido entre outros talentos pela criação de capas memoráveis de revistas e livros publicados por grandes editoras brasileiras, começou a desenvolver o projeto gráfico de Pesquisa FAPESP muito antes de essa revista existir como tal. Enquanto eu discutia com a diretoria da Fundação e em especial com o então diretor científico, José Fernando Perez, os detalhes do projeto editorial destinado a transformar o boletim Notícias FAPESP numa revista, Hélio de Almeida começara a gestar o projeto gráfico que faria dela, além de importante, uma belíssima revista de divulgação científica. E fazia isso também em termos muito práticos: bolou a capa já do boletim número 39, de janeiro/fevereiro de 1999, e daí em diante não parou mais. Ou melhor, parou só em agosto de 2006, quando deixou o cargo de diretor de arte da revista para ir atrás de novos desafios (mas continua de vez em quando em nossas páginas, com suas extraordinárias ilustrações). Dou-me conta agora de uma curiosa coincidência: a primeira capa que ele fez foi sobre um desenho de Leonardo da Vinci (o Homem vitruviano), e a primeira de sua substituta, Mayumi Okuyama, ele ainda consultor de arte, em agosto de 2006, também foi (desenho do cérebro do livro Human body). Seguimos assim sob as bênçãos do grande artista do Renascimento que tanto entendia de ciência e tecnologia. Em nossa alentada edição número 100 contei um pouco sobre essa parceria com Hélio de Almeida que se estabeleceu desde o momento em que, às voltas com os problemas para aperfeiçoar o Notícias FAPESP, fui procurá-lo em seu escritório de design, em fins de 1998. Mas toda essa memória vem agora a propósito do lançamento pela Ipsis, no começo de dezembro, de Hélio de Almeida: artista gráfico. O livro, uma belíssima produção, com curtos e inspirados textos de Geraldo Galvão Ferraz e Ruy Castro, não traz só uma amostra alentada do artista gráfico. O refinado artista plástico que Hélio é também se apresenta, com suas esculturas, suas caixas e seus desenhos. ■ PESQUISA FAPESP 155

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Capas de revistas, caixa decorada e o desenho de um cachorro: paixões

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Logomarcas criadas para FAPESP

Ilustrações e desenhos com temática variada

Capas de livros: uso de múltiplos recursos gráficos

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.. .. RESENHA

Capitalismo à brasileira Obra referencial de Sedi Hirano é reeditada após 20 anos Ricardo Musse

O

s bons livros podem até permanecer ignorados durante certo tempo, mas dificilmente são esquecidos. Vinte anos depois, temos finalmente uma reedição da hoje clássica tese de Sedi Hirano, com apenas uma alteração: o retorno ao nome original, desfazendo a inversão da primeira edição que tornou o subtítulo título e vice-versa. Formação do Brasil colonial – Précapitalismo e capitalismo configura uma espécie de balanço e fecho de uma série de livros que ao longo de três décadas alimentaram um dos filões mais produtivos e inventivos do pensamento social entre nós: a discussão sobre a especificidade do capitalismo no Brasil. O primeiro capítulo apresenta um minucioso exame dessa produção desde o Iseb, detendo-se na escola sociológica paulista e chegando aos trabalhos contemporâneos dos historiadores. Hirano adota como critério de avaliação as considerações que permitem a cada autor atribuir à Colônia um determinado modo de produção, caracterização obrigatória em investigações que se inserem na linhagem do marxismo. A ressalva que Hirano aplica, com precisão, a essa série de obras constitui um verdadeiro ovo de Colombo. Ele recorda que em O capital Marx estabelece duas condições necessárias para suscitar a dinâmica capitalista: a produção e circulação de mercadorias e a existência da figura histórica do trabalhador livre (único capaz de produzir excedentes sob a forma de mais-valia). A prevalência do escravismo na Colônia impede que sua produção seja caracterizada como capitalista; sua inserção no mercado mundial e a circulação de seus excedentes sob a forma

Formação do Brasil colonial – Pré-capitalismo e capitalismo Sedi Hirano 2ª edição São Paulo: Edusp, 2008 292 páginas R$ 44,00

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mercantil tampouco permitem que seja apresentada como extensão do feudalismo europeu. Para resolver esse dilema, Hirano percorre a obra de Marx, destacando as passagens que permitem elucidar a questão. Além dos três livros de O capital, incorpora também textos até então pouco estudados no Brasil, como os manuscritos do Capítulo VI e dos Gundrisse. A determinação da Colônia como forma econômica pré-capitalista, organizada a partir da “acumulação originária” do capital, adquire assim uma densidade conceitual que torna a tese proposta em Formação do Brasil colonial um ponto incontornável para as futuras investigações sobre o estatuto da Colônia. Embora a caracterização da formação social se configure decisiva para o andamento da investigação, a preocupação central do livro vai além, procurando estabelecer as determinações primordiais das relações sociais durante o período colonial. Com isso, o livro desvincula-se das vertentes do marxismo, predominantes no Brasil, marcadas tanto pelo economicismo como pelo determinismo. Em parte, esse deslocamento pode ser atribuído ao diálogo de Hirano com seus mestres e predecessores da escola paulista de sociologia: Florestan Fernandes, Octávio Ianni e Fernando Henrique Cardoso. Mas talvez derive em maior parte de uma releitura de Marx a partir de questões colocadas por Weber, uma perspectiva que Merleau-Ponty, em seu estudo sobre História e consciência de classe, denominou de “marxismo weberiano”. O terceiro e último capítulo do livro promove assim uma espécie de giro metodológico. Não se trata de ressaltar apenas as forças produtivas ou mesmo o processo de produção e circulação, nem tampouco de se ater às estruturas jurídicas e políticas ou às representações mentais. Hirano articula tudo isso numa totalidade precisamente por concentrar-se num ponto preciso, as relações sociais de produção. A distinção teórica entre castas, estamentos e classes sociais (esmiuçada em seu mestrado) possibilita a determinação da especificidade social da Colônia como “estamento”. A contraprova dessa asserção assenta-se tanto na exegese de abundantes relatos de época como numa elucidativa comparação entre as relações sociais vigentes na Colônia, em Portugal e na Inglaterra. Ricardo Musse é professor do Departamento de Sociologia da USP.

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.. .. LIVROS

O laboratório de Gramsci: filosofia, história e política

Esboço de uma sociologia do campo acadêmico

Alvaro Bianchi Alameda Casa Editorial 320 páginas, R$ 42,00

Ana Paula Hey EdUFSCar 177 páginas, R$ 24,00

O trabalho de Bianchi realiza uma reflexão sobre a íntima relação que há entre filosofia e política nos Cadernos do Cárcere, famosos escritos de Gramsci. Voltado para pensadores e outros leitores, sobretudo da América Latina, este livro permite uma reconstrução contextualizada dos principais conceitos do pensador italiano, pois traz também uma sintética apresentação dos intelectuais com quem ele dialogava teoricamente.

O espaço de produção acadêmica em educação superior no Brasil, no período de 1977 a 2002, é o objeto deste estudo. Com base nos conceitos do sociólogo Bordieu, os jogos de poder e as práticas sociais que envolvem os agentes específicos são aqui tematizados pela autora, que busca compreender as tomadas de posição dos pesquisadores em conformidade às múltiplas condicionantes que permeiam tal campo.

Alameda Casa Editorial (11) 3862-0850 www.alamedaeditorial.com.br

EdUFSCar (16) 3351-8137 www.editora.ufscar.br

A São Paulo de Menotti del Picchia

Família e coronelismo no Brasil: uma história de poder

Ana Claudia Veiga de Castro Alameda Casa Editorial 298 páginas, R$ 39,00

André Heráclio do Rêgo A Girafa Editora 380 páginas, R$ 48,00

O modernista Menotti del Picchia, através de suas crônicas publicadas no popular jornal Correio Paulistano, refletiu uma São Paulo que começava a tornar-se metrópole. Ana Claudia de Castro reúne estas histórias paulistanas em seu livro com o intuito de discutir o modernismo e o processo de modernização brasileiro por meio da arquitetura, arte, literatura e história.

O autor realiza uma investigação sobre um fenômeno político até hoje atuante no cenário nacional: o coronelismo. As relações entre famílias e poderes locais são aqui abordadas a partir de uma série de documentos, como folhetos de cordel, bibliografia de grandes sociólogos e historiadores, além de serem enriquecidas pela análise que Heráclio do Rêgo faz da própria família, personagem conhecida na história política pernambucana.

Alameda Casa Editorial (11) 3862-0850 www.alamedaeditorial.com.br

A arte do ator entre os séculos XVI e XVIII

FOTOS EDUARDO CESAR

Ana Portich Editora Perspectiva 184 páginas, R$ 30,00

Ana Portich analisa os principais conceitos que nortearam a arte do ator da baixa Renascença ao Iluminismo abordando desde a commedia dell’arte até o paradoxo sobre o comediante. O trabalho da autora possibilita uma incursão pela origem da concepção do espetáculo teatral, pensando a figura moderna e atual do sujeito em suas faces estética, ética, cognitiva e política. Editora Perspectiva (11) 3885-8388 www.editoraperspectiva.com.br

A Girafa Editora (11) 3258-8878 www.agirafa.com.br

O suplício do Papai Noel Claude Lévi-Strauss Cosac Naify 54 páginas, R$ 25,00

A partir de um episódio real, a queima do boneco de Papai Noel por crianças francesas, em 1951, reação geral contra a americanização dos costumes, o antropólogo Claude Lévi-Strauss, que acaba de celebrar seu centenário, discute as dimensões culturais ocultas do Natal e da figura do bom velhinho. Livro inédito no Brasil. Cosac Naify (11) 3218-1444 www.cosacnaify.com.br

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... FICÇÃO

A lâmpada

Pesquisa FAPESP republica aqui o conto da edição anterior. Por um erro de montagem do texto e revisão foi acrescido ao original um primeiro parágrafo que não existia.

S

e perguntada por Cido Curiango (que fazia questão de chamar pelo verdadeiro nome: Aparecido Claudino), dona Raulina, mãe adotiva, mais dois filhos naturais, balançava a cabeça e dizia: “Sei lá, no meio do mundo, sumido...” – e a seguir contava que fora assim, de repente, nada de ir mais à escola, o ano abandonado, pé na rua, umas poucas reaparições em casa e, por fim, invisível. Não suspeitava que, de vez em quando, os olhos do moleque paravam ali, à sua janela, e olhavam para dentro, ansiosos, avaliadores. Numa noite ele até chegara a entrar e apanhar, silencioso, um pouco de comida na cozinha. Subira no telhado e ali ficara comendo, lambendo os dedos com o arroz e abobrinha que só ela fazia tão bem. Depois, era voltar para a busca de vala, bueiro, sucata de carro, para dormir. Aplicava toda a sua perícia em não fazer ruído para descer. Não podia arriscar-se a ser ouvido e chamado de volta – precisava de outra vida, assanhado pela noite desde pequenino – dona Raulina o salvara, uma vez, de jogar-se, extasiado, contra os faróis de um carro. Aos treze anos se fizera adepto das ruas, da cidade ilimitada, que gostava de percorrer sozinho – sua associação aos grupos era fugaz, não se deixava seduzir por rotinas, esquivando-se sempre para mais para frente, para os horizontes de néon e grandes prédios escuros além dos quais reinava um horizonte ainda mais escuro. Morrer? Caíra de uma altura de três metros ao não encontrar uma escada no fim de uma laje molhada, na fuga de uns tiros, e não quebrara nada; roubara pedra para vender a preço seu e não fora eliminado, resistira em ziguezague a balas que lhe zuniam no pé da orelha, a cortes de canivete, curados com mertiolate e band-aids pegos em passagens velozes por farmácias; fazia parceiros ocasionais para entrar em casas, postos, restaurantes e, na hora de dormir, sempre um ninho imprevisto, não revelado a ninguém. Ria ao parar diante de algum bar onde, em televisão, rolassem as aventuras do Pica-Pau: sim, com ele ninguém

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Chico Lopes

podia, do nada surgia a banana de dinamite, o charuto explosivo, o canhão, voo incontrolável, bico ativo, travessura, punição, revide. Coçava os bagos, contente, e aplaudia. Mas achava que andava sendo muito notado, que ultimamente dera para cruzar com mais viaturas em marcha lenta, que as esquinas lhe davam, de abrupto, tipos para os quais precisava baixar a cabeça. Por isso encompridara a sua fuga, se embrenhara em distâncias novas e inóspitas, bairros cujos nomes só Deus sabia, ruas após ruas de bares, supermercados, salões de forró, de bilhar, terrenos baldios com fundações surgindo. A suspeita de que o acertariam, de que um cano de revólver ou um porrete o acordaria numa dessas manhãs o fazia dormir pouco, mal, pensando muito, engolindo bebida roubada para se aturdir. Estivera numa fila de putos que, pelo desempenho, receberiam duzentos reais, no salão de um cabeleireiro que, possuído por três, com o quarto brigara, e este – grandão de pouco rir – não gostara e o estrangulara com o fio do secador, jurando caixão para quem contasse. No dia seguinte, nos jornais, ele vira a fotografia do assassinado, tipo conhecido, lera as manchetes, cabisbaixo. Assim, de esconderijo a esconderijo, fora parar num terreno com um barracão sobre brita para o qual só voltava à noite. E havia ali uma espécie de cabine da qual podia ver tudo ao redor. Vigiava, dormia. Parecia seguro, ao menos por uns tempos. O que o atraía era uma janela bem em frente, num pequeno prédio baixo e pichado em todas as direções. Era uma escola, o que fora uma escola, a julgar pela ruína de um playground com um brinquedo giratório de patos de madeira quebrados. Do letreiro no muro só haviam sobrado algumas letras que nada formavam, sujas de excrementos. Todo começo de noite, uma mulher aparecia – baixinha, de óculos, pasta sob o braço, chegando da rua devagar, abria um portão quebrado, com um rangido nada discreto, olhando para todos os lados; depois entrava e acendia uma lâmpada.

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MARCOS GARUTI

A sala não era muito espaçosa e, pela janela de pequenos retângulos de vidro só uns poucos intactos, ele a via com a nitidez permitida pelos sessenta watts. Ela erguia-se um pouco para acendê-la, girando com suavidade o pino do soquete, fazendo a luz, animando-se a arrumar carteiras. A seguir, risos e vozes, e um grupo, jovens, adultos, mesmo três idosos, passava devagar pelo portão aberto. Via todos juntos, talvez oito pessoas, com a parcialidade que seus olhos não iam vencer, movendo-se lá dentro, na sala, e a mulher diante de um quadro-negro, explicando pontos iniciais do alfabeto. A voz, que no início lhe parecera muito aguda, acalmava-o, ele estendia as pernas, punha as mãos sobre a barriga, descansava, ouvia. A música daquelas sílabas, a lição repetida, coisas que já sabia, mas era delicioso de novo saber, lhe dava vontade de anotar. No dia seguinte, ao passar por uma papelaria com promoção de cadernos, não teve dificuldade em apanhar um deles e duas canetas e enfiar sob a camisa, com um assovio. Esperou pela noite. A lembrança do fio do secador dando voltas naquele pescoço e fazendo emergir uma língua daquela boca que gritava, da advertência do grandão, das notícias do jornal – que tiveram continuidade com a captura de dois dos três da fila – o deixavam lépido e alarmado, ninguém na rua ia surpreendê-lo, um vão de fuga em cada palmo do visível. Noites, noites a fio anotando, gostando de sua letra, de sabê-la ainda bonita, arredondada, e assim, devagar, a expectativa da chegada da mulher, de sua entrada cautelosa, a lâmpada acesa, os alunos se acomodando, deixava-o orgulhoso, como se vivesse uma situação de luxo, de prazer, sem ser visto. Era tudo quanto precisava. Achava o bairro particularmente escuro, mas a janela iluminada como que o sorvia, não podia olhar senão para lá. Sentia o gesto da lâmpada segura por aquela mão delicada, o pino do soquete girado, como algo voluptuoso e feliz. Era o que lhe permitia desfrutar, à distância, de um mundo tranquilo, embalado por uma voz que tecia com vogais e consoantes objetos, alusões,

rostos, nenhum lhe parecendo hostil. E, numa noite em que dormira depois de ter ocupado muitas páginas do caderno, despertou com a tranquilidade toda varada por zunidos, sirenes, gritos, sons de coisas se espatifando. Olhou para a janela e pensou, não sem gratidão a algo obscuro, que ao menos a mulher e seus alunos não estavam na escola, na hora morta, em meio ao tumulto. Na manhã seguinte, foi simples entrar – o ermo era completo – e ver o que restara do que já eram restos de janelas e portas – cacos sobre um tanque, um banheiro em cujo chão era impensável pisar. Entrou na sala, viu a lâmpada quebrada, estilhaços pendurados no soquete. Lembrou-se de imediato de um supermercado, por onde passava diariamente, e do ponto não distante do caixa onde se testavam lâmpadas compradas. Rumou para lá e, quando a mulher retornou à noite, prostrada, balançando a cabeça, ao entrar, acendeu-a, com ele sorrindo do outro lado, caderno em punho, olhos atentos. Deteve-se nesse bairro, não pretende continuar na fuga para o horizonte de breu e pedrarias, acha que encontrou algo vagamente semelhante a uma casa. Todos os dias, não há mais nada a esperar senão pela hora em que, depois que se acomodou no observatório, a mulher chega, abre o portão rangente, olha para os lados, ciente dos perigos e espreitas e, caminhando entre escombros, abre a sala e acende a lâmpada. Ele incumbiu-se de trocá-la a cada vez que for quebrada, para que a luz e a calma o inundem, para que aquela voz lhe cante o que terá que anotar. Nunca o verão talvez, ela e o grupo que a ouve, mas ele estará lá, a postos, sua nuca sob a mira de algo, mas seus olhos presos à janela, à claridade que, mesmo entre ruínas, se difunde. Chico Lopes é jornalista e escritor, autor dos livros Nós de sombras e Dobras da noite. PESQUISA FAPESP 155

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