Amazônia

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VENDA PROIBIDA

ASSINANTE

Nº 156 ■

EXEMPLAR DE

Fevereiro 2009

Fevereiro 2009 Nº 156 ■

Lincoln cogitou deportar negros para o Brasil

PESQUISA FAPESP

Antidepressivos reduzem defesas do corpo

Amazônia O experimento que secou a floresta capa pesquisa assinatura-156.indd 1

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EXPEDIÇÃO DESERTO DE CRISTAL/UFRGS

IMAGEM DO MÊS

No deserto de

cristal Foram 44 dias sob temperaturas que variaram entre -25º e -40ºC. Oito pesquisadores brasileiros, liderados pelo glaciologista Jefferson Cardia Simões, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), passaram o Natal e o Ano-Novo na Antártida para coletar amostras de gelo em colunas escavadas a até 95 metros de profundidade, que poderão ajudar a entender o impacto que a ação do homem gerou na atmosfera nos últimos 250 anos. Batizada de Deserto de Cristal, a expedição foi a primeira organizada no Brasil que avançou continente adentro – as anteriores permaneceram nas ilhas e na costa. Os pesquisadores montaram um acampamento a mais de 2 mil quilômetros da estação brasileira Comandante Ferraz. Parte do material foi enviada para análise na Universidade do Maine, nos Estados Unidos. Outra parte irá para o Instituto de Geociências da UFRGS.

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MARCOS GARUTI

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ARQUIVO PESSOAL

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> CAPA

CAPA

> POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

16 Redução de chuvas

elimina árvores de grande porte e diminui capacidade de absorção de carbono na Amazônia > ENTREVISTA 10 Zeev Maoz, professor

da Universidade da Califórnia, revisita as raízes do conflito árabe-israelense

LUIZ CLAUDIO MARIGO

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28 FINANCIAMENTO

Reino Unido divulga mega-avaliação que norteará distribuição de recursos para as universidades 32 CIENCIOMETRIA

Método criado por professor da Unesp movimenta o debate sobre avaliação da produção acadêmica

35 PARCERIA

Convênio FAPESP-Fapemig aprova seus primeiros projetos de pesquisa sobre bioenergia 36 DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA

Um milhão de brasileiros deve participar dos eventos do Ano Internacional da Astronomia

39 AMBIENTE

Instituto vai mensurar os prejuízos financeiros ligados à saúde causados pela poluição do ar

> CIÊNCIA 44 GENÉTICA

Brasileiros dominam técnica para transformar células adultas em embrionárias

> SEÇÕES 3 IMAGEM DO MÊS 6 CARTAS 7 CARTA DA EDITORA 8 MEMÓRIA 22 ESTRATÉGIAS 40 LABORATÓRIO 64 SCIELO NOTÍCIAS ..........................

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> POLÍTICA C&T

> CIÊNCIA

> TECNOLOGIA

> HUMANIDADES

WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR

ARTHUR GÜTH/USP

> EDITORIAS

MIGUEL BOYAYAN

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REPRODUÇÃO

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48 FISIOLOGIA

Remédios para tratar distúrbios mentais podem afetar resistência a vírus, bactérias e tumores 52 Ácido graxo encontrado

em carnes vermelhas causa a morte de neurônios que controlam o apetite

56 ECOLOGIA

Pecuaristas e biólogos conciliam seus interesses no Sul do país 58 OCEANOGRAFIA

Fauna antártica do fundo do mar tem recursos para se manter ativa mesmo no inverno 60 ASTROFÍSICA

54 SAÚDE

Estudo identifica fatores que prejudicam a sexualidade feminina após a menopausa

Experimento capta um forte sinal de micro-ondas de origem inexplicada no Universo

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70 ENERGIA

HUMANIDADES

80 DIPLOMACIA

Novas células solares de baixo custo mimetizam sistema de fotossíntese das plantas 74 QUÍMICA

Documentos mostram proposta de deportar negros norte-americanos para a Amazônia 86 ARQUEOLOGIA

Empresa cria processo que elimina solventes na fabricação de fibras acrílicas 78 ODONTOLOGIA

A busca pelo Camargo, um dos muitos navios negreiros dos EUA que vieram ao Brasil 90 SOCIOLOGIA

Dentifrício com menos flúor e pH baixo diminui a incidência de manchas nos dentes de crianças

............................ 66 LINHA DE PRODUÇÃO 94 FICÇÃO 96 RESENHA 98 LIVROS 99 CLASSIFICADOS

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TECNOLOGIA

Mestre de capoeira mistura luta baiana e globalização em Nova York

CAPA MAYUMI OKUYAMA

FOTO FABIO COLOMBINI

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CARTAS cartas@fapesp.br

Alkharest Recentemente assinei Pesquisa FAPESP por saber que é uma revista de qualidade e que faz um ótimo serviço de divulgação científica da produção nacional. Entretanto, o primeiro exemplar que recebi estampa em sua capa uma matéria sobre a “sobrevivência da alquimia face à química moderna” (edição 154), o que me incomodou bastante, pela sugestão de obscurantismo na chamada. Por um lado, as historiadoras da ciência que investigaram a permanência de concepções alquímicas no século XVII fizeram um achado interessante e instigante; por outro, Pesquisa FAPESP dá a entender que essas concepções invalidam a química moderna e que revelariam uma “face oculta”, “negligenciada” (ou “desprezada”) pelo “saber cartesiano e racionalista” moderno (ou qualquer uma das infinitas variações dessas tolices irracionalistas e anticientíficas que grassam pelo Ocidente desde que a ciência se constituiu no século... XVII). A alquimia ainda existia no século XVII? No século XVIII? Talvez até no século XIX? E daí? O que isso quer dizer? Isso é para supor que ela é uma teoria científica válida? Aliás: válida, mas que foi “rejeitada” ou “oprimida” pela nascente ciência? Não: a alquimia foi deixada de lado simplesmente porque ela se mostrou incapaz exatamente de resolver os problemas que ela mesma propunha – ao contrário, aliás, da química. Os alquímicos dos séculos XVII a XIX assumiram um papel cada vez mais marginal na prática científica simplesmente porque a alquimia não é ciência, mas simples transição entre a teologia medieval e a química moderna, esta sim científica. Aliás, cabe notar que a “sobrevivência” das teorias pré-científicas não invalida a ciência madura delas resultante, nem que tal situação é impossível: basta verificarmos a estridência com que os criacionistas afirmam a validade de sua “teoria” nos dias que correm, contra as provas da teoria da evolução de origem darwiniana. Refletir sobre a ciência, suas perspectivas, a visão de mundo que ela sugere, as questões filosóficas que ela responde e as que ela suscita: tudo isso é necessário, é importante e é interessante, 6

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mas a reportagem de Pesquisa FAPESP não faz nada disso ao sugerir no artigo um obscurantismo irracionalista.

A revista está sensacional, como sempre. Muito interessante os textos sobre Einstein, o gênio ilimitado.

Gustavo Biscaia de Lacerda Cientista político e sociólogo Curitiba, PR

Rynaldo Papoy Guarulhos, SP

Resposta: O leitor está equivocado. Sua versão do conteúdo da reportagem é incorreta, assim como o que cita como tendo sido sua chamada. O que se lê na reportagem, enquanto relato da pesquisa em pauta, é simplesmente que os documentos descobertos “reforçam a ligação entre a alquimia e a química moderna”, ao mostrarem que muitos cientistas importantes fizeram experimentos químicos na fronteira com a alquimia; e que “a alquimia sobreviveu à revolução científica moderna”, já que continuou a ser praticada, inclusive por cientistas, depois de desencadeada a revolução científica. Trata-se de achados históricos, não de juízos de valor. A responsabilidade pela inferência de tais juízos é inteiramente do missivista.

Imagem do mês

Luiz Henrique Lopes dos Santos Coordenador científico da revista Pesquisa FAPESP

Einstein A segunda parte do Especial Einstein, de Pesquisa FAPESP (edição 154), é interessante, para não dizer impressionante. O texto sobre a palestra de Alfredo Tolmasquim diz, em determinado trecho: “O calor era grande, a sala estava superlotada e a janela teve de ser aberta (...) Einstein desenhou uma série de fórmulas no quadro. Depois escreveu no diário. ‘Compreensão impossível a começar pela acústica. Pouco sentido científico. Eu sou um tipo de elefante branco para os outros, eles para mim uns tolos’” (página 74). Todos os outros textos são espetaculares, como os de Martín Cammarota, sobre memória (página 74), e a da Carmen Prado (página 80), que discorreu sobre fractais e teoria do caos. Parabéns. Nelson Costa Brasília, DF

O texto “O peso do cativeiro” (edição 155) destaca que “elefantes criados na natureza vivem bem mais que os cativos em zoológicos” . É curioso observar que com os homens se dá o contrário: há dados que mostram que o homem casado vive bem mais do que o solteiro, o “soltinho” na natureza. Carlos H. W. Flechtmann Piracicaba, SP

Correções Silvia Helena Simões Borelli e Vera da Rocha Resende são professoras, respectivamente, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e da Universidade Estadual Paulista (Unesp), e não da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP), como consta na entrevista “Telenovela, a narrativa brasileira” (edição 155). A produção de trigo no Reino Unido é de 7,3 toneladas por hectare (2007), e não de 700 toneladas por hectare, como publicado na reportagem “A força da colaboração” (edição 154). A Mata Atlântica tem por volta de 65 milhões de anos, e não 35 milhões, como foi publicado na reportagem “A floresta inesperada” (edição 154). Na reportagem “Aproveitamento total” (edição 154), a legenda correta da página 96 é “Imagens em microscopia fotônica...”, e não “Imagens em microscopia eletrônica...”, como saiu publicado. Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br, pelo fax (11) 3838-4181 ou para a rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP, CEP 05468-901. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

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CARTA DA EDITORA FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CELSO LAFER

PRESIDENTE

Projetos quentes para a Amazônia

JOSÉ ARANA VARELA

VICE-PRESIDENTE CONSELHO SUPERIOR CELSO LAFER, EDUARDO MOACYR KRIEGER, HORÁCIO LAFER PIVA, JACOBUS CORNELIS VOORWALD, JOSÉ ARANA VARELA, JOSÉ DE SOUZA MARTINS, JOSÉ TADEU JORGE, LUIZ GONZAGA BELLUZZO, SEDI HIRANO, SUELY VILELA SAMPAIO, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO

Mariluce Moura - Diretora de Redação

CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO

U

RICARDO RENZO BRENTANI

DIRETOR PRESIDENTE CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ

DIRETOR CIENTÍFICO JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER

DIRETOR ADMINISTRATIVO

ISSN 1519-8774

CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADOR CIENTÍFICO), CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTONIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, MÁRIO JOSÉ ABDALLA SAAD, PAULA MONTERO, RICARDO RENZO BRENTANI, WAGNER DO AMARAL, WALTER COLLI DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA

EDITOR CHEFE NELDSON MARCOLIN EDITORA SÊNIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS EDITORES EXECUTIVOS CARLOS HAAG (HUMANIDADES), FABRÍCIO MARQUES (POLÍTICA), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA), RICARDO ZORZETTO (CIÊNCIA) EDITORES ESPECIAIS CARLOS FIORAVANTI, MARCOS PIVETTA (EDIÇÃO ON-LINE) EDITORAS ASSISTENTES DINORAH ERENO, MARIA GUIMARÃES REVISÃO MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO EDITORA DE ARTE MAYUMI OKUYAMA ARTE MARIA CECILIA FELLI JÚLIA CHEREM RODRIGUES FOTÓGRAFOS EDUARDO CESAR, MIGUEL BOYAYAN SECRETARIA DA REDAÇÃO ANDRESSA MATIAS TEL: (11) 3838-4201 COLABORADORES ANA LIMA, ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS), DANIEL DAS NEVES, DANIELLE MACIEL, GEISON MUNHOZ, GONÇALO JUNIOR, HÉLIO DE ALMEIDA, LAURABEATRIZ, LAURA TEIXEIRA, LUFE STEFFEN, MARCOS GARUTI E YURI VASCONCELOS

OS ARTIGOS ASSINADOS NÃO REFLETEM NECESSARIAMENTE A OPINIÃO DA FAPESP É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

PARA ANUNCIAR (11) 3838-4008 PARA ASSINAR FAPESP@TELETARGET.COM.BR (11) 3038-1434 FAX: (11) 3038-1418 GERÊNCIA DE OPERAÇÕES PAULA ILIADIS TEL: (11) 3838-4008 e-mail: publicidade@fapesp.br GERÊNCIA DE CIRCULAÇÃO RUTE ROLLO ARAUJO TEL. (11) 3838-4304 e-mail: rute@fapesp.br IMPRESSÃO PLURAL EDITORA E GRÁFICA TIRAGEM: 35.800 EXEMPLARES DISTRIBUIÇÃO DINAP GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP FAPESP RUA PIO XI, Nº 1.500, CEP 05468-901 ALTO DA LAPA – SÃO PAULO – SP SECRETARIA DO ENSINO SUPERIOR GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

INSTITUTO VERIFICADOR DE CIRCULAÇÃO

m ano antes de proclamada a emancipação dos escravos nos Estados Unidos, o presidente Abraham Lincoln manifestou oficialmente, algumas vezes, sua disposição de deportar negros livres para algum lugar fora das fronteiras norte-americanas, de preferência, para a América Central. Mais: em meio à complicada Guerra Civil, Lincoln pediu ao Congresso a liberação de recursos para esse fim. A propósito, em agosto de 1862, um editorial do The New York Times comentava que “o plano oficialmente proposto pelo presidente Lincoln e sancionado pelo Congresso, para dar início à tarefa de colonizar fora dos EUA os negros libertos ou em vias de serem libertados no decorrer da guerra, está em vias de se concretizar no máximo em cinco semanas”. Acrescentava que eles seriam “transportados à custa do governo e mantidos durante a primeira estação à custa do estado e para tal uma verba foi aprovada pelo Congresso”. Tudo isso e mais os detalhes de como o Brasil entrou nessa história estão contados na bela reportagem assinada pelo editor de humanidades, Carlos Haag, na página 80, construída a partir de uma fascinante pesquisa que recuperou dezenas de documentos sobre a proposta norte-americana de deportar negros para a Amazônia. O texto nos leva, por exemplo, a maio de 1862, quando o ministro plenipotenciário e representante oficial do governo dos EUA, James Watson Webb – para quem “a raça negra” era caracterizada por inferioridade mental e uma ignorância degradante –, submeteu ao governo brasileiro a proposta de constituição de uma empresa binacional de colonização da Amazônia com negros americanos livres ou a serem libertados no decorrer da guerra. Trata-se de trabalho de extremo interesse histórico num momento em que os Estados Unidos acabam de empossar seu primeiro presidente negro, Barack Obama, e trazem de volta à cena Lincoln, cujo bicentenário de nascimento celebra-se neste 14 de fevereiro. Claro que essa espantosa Amazônia cogitada como colônia de ex-escravos norte- americanos foi forte candidata à capa desta edição de Pesquisa FAPESP, mas foi uma outra Ama-

zônia que terminou se impondo ao espaço mais nobre: a dos experimentos fundamentais para uma compreensão mais profunda das mudanças climáticas globais que estão bem diante de nós. Num texto vigoroso, o editor de ciência, Ricardo Zorzetto, fala, a partir da página 16, de uma floresta em que as árvores mais altas e imponentes perderam boa parte de suas folhas, outras revelam-se mortas, enquanto o material seco depositado sobre o solo é uma ameaça de irrupção de fogo a qualquer momento. Ainda bem, como está dito na reportagem, que este cenário restringe-se a uma pequena área que, na última década, vem servindo de laboratório natural para pesquisadores brasileiros e norte-americanos interessados em descobrir o que pode acontecer com a maior floresta tropical do mundo se a temperatura do planeta continuar a subir e as chuvas diminuírem drasticamente na região. Em outras palavras, é justamente desse experimento a céu aberto que a reportagem trata. E de algumas conclusões a que ele já levou. Por exemplo, menos chuvas na Floresta Amazônica poderão significar redução de sua capacidade de absorver carbono, o que com certeza não é uma boa notícia. Ainda na ciência, gostaria de chamar a atenção para a reportagem do editor Carlos Fioravanti sobre experiências que estabelecem uma ligação entre medicamentos usados para tratar distúrbios mentais e menor resistência a vírus, bactérias e tumores (página 48). Já na seção de política científica e tecnológica, vale a pena ler a reportagem do editor Fabrício Marques, que compara o sistema de avaliação da qualidade da pesquisa nas universidades do Reino Unido, baseado em peer review, com o sistema da Capes no Brasil (página 28). Como aqui, lá os resultados da avaliação orientam a distribuição de verbas públicas para a pesquisa acadêmica, mas os dois sistemas são muito diferentes. E por fim, em tecnologia, atenção à reportagem da editora assistente, Dinorah Ereno, a partir da página 70, sobre as novas células solares de baixo custo, desenvolvidas no país, que fazem uma espécie de fotossíntese, ou seja, reproduzem o processo vegetal de transformação da luz. PESQUISA FAPESP 156

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() MEMÓRIA

Herança: página de uma das cadernetas a ser digitalizada

Páginas do tempo Inmet reúne 12 milhões de documentos com os mais antigos registros meteorológicos do Brasil Carlos Fioravanti

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A

memória do clima no Brasil começa a tomar forma, como resultado da recuperação do acervo da Biblioteca Nacional de Meteorologia. A primeira parte dessa recuperação, iniciada há três anos, foi relativamente fácil: restaurar e organizar quase 20 mil livros e publicações antigas, alguns da época do Império, agora acessíveis eletronicamente (www.inmet.gov.br). A segunda parte é mais desafiadora: digitalizar e tornar de uso amplo 11.736.387 documentos com as primeiras observações meteorológicas do Brasil. Esses registros das variações diárias de temperatura, chuva, vento, pressão, umidade,

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Amostras de boletins meteorológicos: o clima em Jequié, Bahia, em 1912 (ao lado) e no Rio de Janeiro de 1890 a 1938 (abaixo)

dar mais consistência e detalhar os atuais modelos de simulação do clima, que refletem o clima com razoável precisão apenas em escala global. Moura pretende iniciar a digitalização dos documentos ainda este ano, quando o instituto completa um século de fundação. Não será simples, porque, além de criar imagens digitais de cada página, será preciso conferir manualmente os dados numéricos sobre variações de temperatura, chuva e vento. Ele estima que o projeto de digitação dos documentos deve custar cerca de R$ 25 milhões e tomar pelo menos três anos de trabalho. “Se começarmos mesmo este ano”, diz ele, “em dois anos já teremos bons resultados, com possibilidade de consultas diretas, sem utilizar os documentos em forma física”.

O Inmet centraliza a produção e distribuição de informações sobre o comportamento do tempo e clima no Brasil desde que começou a funcionar, em 1909. Atualmente as informações são coletadas em 800 estações terrestres e enviadas automaticamente a cada hora pelo satélite Brasilsat para a sede do instituto e por 42 estações de altitude espalhadas pelo território nacional

e operadas conjuntamente com o Comando da Aeronáutica. A página do Inmet na internet (www.inmet.gov.br) mostra os movimentos das nuvens sobre o país e as variações das temperaturas máximas e mínimas, a pressão, a pluviosidade e a direção dos ventos ao longo do dia, além de previsões do tempo para até cinco dias, em centenas de municípios brasileiros.

FOTOS INMET

luminosidade em todo o país desde o início do século XIX (1813) ainda se encontram na forma de cadernos e livros e milhares de folhas com tabelas, gráficos e anotações, muitos em estado precário de conservação, em centenas de pastas de papéis na sede do instituto, em Brasília, e nas unidades de Manaus, Belém, Salvador, São Paulo e de outras cidades do país. Essa documentação inclui raridades como as descrições do clima do Brasil nos anos de 1813 e 1814, possivelmente as mais antigas do país, publicadas em Londres pela revista O Patriota, além de revelar observadores do tempo como Alberto Leal, delegado de terras e minas em Jequié, na Bahia (imagem ao lado). A coleta sistemática de dados começou em 1827, com a criação do Observatório do Rio de Janeiro, atual Observatório Nacional, que publicou os Anais meteorológicos desde 1851. “Esses dados constituem a verdade terrestre sobre o clima no Brasil e são fundamentais para dar respaldo realista aos estudos de simulações sobre as tendências do clima no Brasil”, diz Antonio Divino Moura, diretor do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). Segundo ele, os dados históricos são importantes também para

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ENTREVISTA

Zeev Maoz

A razão dos outros Professor da Universidade da Califórnia revisita raízes do conflito árabe-israelense Carlos Haag

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o afirmar que “a guerra é a continuação da política por outros meios”, Clausewitz não imaginou que seria possível inverter-se a ordem dos fatores para fazer da guerra uma forma de política. Para o cientista político Zeev Maoz, diretor do Programa de Relações Internacionais da Universidade da Califórnia, Davis, e autor de Defending the holy land: a critical analysis of Israel’s security and foreign policy, essa tem sido a forma como Israel vem conduzindo a sua política externa. “Israel não tem uma política de paz, apenas uma política militar. Isso vale tanto para as negociações com os Estados Árabes (ou seja, a total falta de resposta às iniciativas sauditas e às resoluções da Liga Árabe de 2002 e 2007) como em suas relações com os palestinos. Mas o fato de ser um Estado militarista não impede que Israel seja, também, uma democracia, uma sociedade civil altamente desenvolvida. Uma coisa não invalida a outra”, explica Maoz. Tendo servido como soldado e oficial em várias guerras israelenses, inclusive as do Yom Kippur e a do Líbano, o professor pesquisa a fundo, e sem preconceitos, o que chama de tratamento “acrítico” de muitos em Israel sobre as bases da doutrina de segurança nacional do país e de como essa, ao apresentar muitos equívocos, precisaria ser reavaliada. Maoz faz parte do grupo de novos historiadores israelenses que desafiam tradições historiográficas consolidadas como o papel de Israel no êxodo palestino em 1948 e contestam a existência de uma falta de vontade política árabe de discutir a paz com os judeus. O movimento reúne pesquisadores como Benny Morris, Ilan Pappé, Avi Shlaim, entre outros, que trabalham a partir de fontes documentais saídas dos arquivos governamentais, há pouco liberadas à pesquisa, já que as instituições árabes, em sua maioria, não possuem arquivos abertos (daí que sua pesquisa se concentre em Israel). “Eu acredito que estudos sérios desse tipo terão

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um efeito positivo no longo prazo, pois o conhecimento é base para a mudança pensada e estruturada. Embora os israelenses sejam um povo, em geral, crítico, existe um consenso em muitos pontos fundamentais das políticas externa e de segurança, o que é uma coisa boa quando baseada em princípios e hipóteses corretos. Meu temor é de que os fundamentos da doutrina israelense de segurança se transformaram em princípios religiosos em vez de concepções que precisam ser testadas diante dos dados empíricos”, avalia. Para ele, Israel precisaria aprender a pensar antes de atirar. “Uma política militar não pode ser um substituto permanente para a diplomacia, e subjugá-la continuamente a considerações de segurança leva ao erro tanto da política militar quanto da externa. Opções políticas e diplomáticas devem preceder as militares: a força é serva da diplomacia e não o contrário.” Segundo Maoz, a diplomacia israelense teria uma série de oportunidades perdidas. “Ao longo do tempo, Israel foi tão responsável pela falta de paz com os árabes quanto eles próprios.” Para o pesquisador, as concepções de segurança nacional teriam sido estabelecidas, nos anos 1950, por David Ben-Gurion, e muitos estrategistas ainda as consideram válidas e atuais. A política de

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segurança seria baseada numa série de premissas entre as quais: o mundo árabe é hostil em relação a Israel e vai tentar destruir o Estado se tiver a oportunidade; assim, a única forma de impedir isso é fazê-los perceber a futilidade de sua missão ao tomarem conhecimento do preço alto a pagar por isso, a chamada “Muralha de Ferro”, conceito criado pelo sionista Zeev Jabotinsky em 1923; além disso, a comunidade internacional, com exceções, não seria uma aliada confiável, o que deixaria Israel isolado em sua defesa e, por sua geografia, uma alvo para seus inimigos. Disso, continua Maoz, decorreriam fatores importantes: Israel precisaria investir na qualidade, militar e não-militar, para dar conta das vantagens quantitativas dos árabes; logo, seria preciso manter a “nação em armas”, uma sociedade mobilizada em tempos de crise e pronta a defender sua sobrevivência; a opção por guerras curtas, rapidamente decididas, tanto por razões estratégicas como econômicas, já que conflitos demorados são um fardo ao Estado; o que levaria ao princípio do cumulative deterrence (recuo tático cumulativo), ou seja, atingir o inimigo forte e repetidamente até que ele entenda que não pode destruí-lo e barganhe em seus termos; a política de assentamentos como determinante das fronteiras finais de Israel. “Esses conceitos são uma política estável de segurança nacional, ainda que nunca tenham sido colocados num documento oficial, cujo objetivo é permitir a Israel lidar com as ameaças a sua existência e, ao mesmo tempo, existir como sociedade ‘normal’ e atrair judeus de todas as partes do mundo.” “Muitos desses princípios são baseados em fundações empíricas equivocadas e, apesar disso, a elite israelense nunca revisou os blocos básicos das suas doutrinas. A segurança de Israel teve benefícios ao seguir a lógica da Muralha de Ferro? A resposta de meus estudos é que não. Ao contrário, o sucesso israelense nas guerras não resultou em resignação de seus inimigos, mas no acirramento dos conflitos, e a sua maior vitória militar apenas aumentou a motivação árabe em lutar”, observa. “Apenas quando as lideranças israelenses chegaram à conclusão de que ‘a espada não pode destruir para sempre’, para usar a questão colocada por PESQUISA FAPESP 156

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Moshe Dayan, e entenderam a necessidade de concessões é que Israel conseguiu a paz. Até que se compreenda isso, a ‘não-estratégia’ de paz de Israel vai continuar a equilibrar sacrifícios de israelenses e palestinos.” O senhor afirma que Israel precisa “abrir os olhos para a realidade” e resolver a questão do Oriente Médio em outros termos que não os militares. Um país desenvolvido e democrático como Israel não teria percebido isso, caso fosse um equívoco? — O fato de que o uso desproporcional de força não funcione em determinado ponto não significa, segundo essa concepção de política de segurança, que não funcione no longo prazo. Infelizmente, esse longo prazo já veio e foi, mas Israel colocou-se numa inércia que é difícil de ser quebrada. Isso se deve fundamentalmente ao fato de que o establishment de segurança domina a política externa e, assim, o uso da força é sempre o primeiro argumento, em vez de ser, como esperado, o último. A invasão de Gaza é baseada na mesma lógica de resposta desproporcional. Além disso, ela se fundamenta na crença há muito estabelecida de que se você castiga a população civil de seu inimigo isso eventualmente irá forçar o governo (no caso, o Hamas) a recuar. Essa atitude, porém, falhou no passado e pode muito bem falhar no futuro. Há ainda outro fator que determina o uso da força israelense em Gaza. Há uma eleição a caminho [as eleições gerais em Israel foram antecipadas para o dia 10 deste mês] e o governo sofria críticas muito fortes por ter falhado em responder aos ataques com foguete que o Hamas lançou sobre cidades ao sul de Israel e foi pressionado a atacar caso o Hamas recusasse a renovar o cessar-fogo. Entretanto, o governo de Israel não quis lidar com as múltiplas baixas israelenses e escolheu iniciar com ataques aéreos e depois usar indiscriminadamente a força para minimizar as perdas das Forças de Defesa de Israel (FDI). Israel repete políticas que falharam muitas vezes no passado, usando força desproporcional contra governos fracos ou autoridades políticas que não têm capacidade de impor a ordem em seus membros. É o conceito da escalation dominance, uma noção errônea de ■

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Comparada a outros conflitos, a questão árabe-israelense recebe uma atenção internacional exagerada

que a força massiva pode diminuir a motivação, e sempre que um problema pode ser resolvido pela força ele deve ser resolvido aplicando-se uma força ainda mais intensa. O problema é que os conflitos atuais mostram mais uma vez que as FDI perderam a sua capacidade de realizar “operações cirúrgicas” de ataque e está escondendo a sua incompetência em lidar com conflitos de “baixa intensidade”, optando por usar bombardeios maciços de valor estratégico questionável e com sérios danos diplomáticos. ■ É possível uma solução para o conflito entre árabes e judeus? — Um historiador que se debruçar sobre o conflito árabe-israelense daqui a cem anos vai ter dificuldades em entender por que demorou tanto a ser resolvido, dada a quantidade de soluções razoáveis ao conflito que existiu desde o seu início. Comparada a outros conflitos contemporâneos, a questão árabe-israelense recebeu uma atenção exagerada da comunidade internacional e, na prática, é provavelmente menos severa e mais solucionável do que muitas outras questões globais. É preciso reconhecer, acima de tudo, que os árabes são afetados pela mesma relutância, visão míope e pela

mesma síndrome do “só em cima do meu cadáver” que aflige Israel. Estão paralisados por medos psicológicos e uma inflexibilidade ideológica tão rígida quanto a israelense. Basta lembrar a recusa do Egito em fazer um acordo formal de paz com Israel antes de 1967. Ou a relutância da Jordânia ou a atitude irascível da Síria, para citar alguns exemplos. Todo o conflito me parece uma “tragédia de erros”, e, com certeza, a culpa não está de um único lado. Mas a minha pesquisa está centrada não nos árabes, mas na política de segurança de Israel. Tendo isso em vista, vamos analisar alguns pontos importantes. Deve-se reconhecer que Israel é um parceiro relutante quando se trata de paz: a maioria dos acordos não foi iniciada por israelenses, mas pelo lado árabe ou por um terceiro parceiro, como, por exemplo, os Estados Unidos. A diplomacia de Israel muitas vezes confia na atitude do “vamos esperar um telefonema dos árabes”, em notável contraste com a postura hiperativa do uso da força militar. Outro fator relevante é a concepção gradual que sempre pautou os acordos entre árabes e judeus. Essa teoria sempre favoreceu o “tempo está do nosso lado” a fim de minimizar as concessões de Israel enquanto o momentum da paz é mantido. Outra característica é a aversão israelense em fazer acordos com blocos árabes, sempre optando por negociações bilaterais, como se um acordo geral representasse uma pressão muito forte para que Israel fizesse concessões extremadas. Assim, a política de paz israelense sempre privilegiou a noção de que um mundo árabe dividido sempre oferece melhores oportunidades. A discrepância entre a afirmação oficial israelense de que “ninguém no mundo árabe quer realmente estender a mão em paz” e a relutância real de Israel em promover a paz é sensível. Como entender isso? — Creio que se deve ao que chamo de “mentalidade de sítio”, muito bem expressa na noção desenvolvida por David Ben-Gurion de um pequeno Estado cercado por inimigos muito mais numerosos e que deve se desenvolver e prosperar em condições de ameaça a sua existência. Esse espírito faz com que se pense sempre que “o que é bom ■

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Como isso se reflete na sociedade de Israel? — Criar uma sociedade baseada em princípios de autodefesa gera uma postura nacional em que a segurança é o primeiro e mais importante valor. Há em Israel uma preponderância imensa da comunidade de segurança, por causa do poder das FDI e de outras instituições, como o serviço secreto. Essa dominância é reforçada pela falta de uma instituição civil que dê uma infraestrutura hierárquica semelhante aos tomadores de decisões e aos legisladores, gerando um desequilíbrio: em momentos de crise, a palavra das FDI é decisiva na tomada de decisões. Essa infiltração da comunidade de segurança é ainda reforçada pelo fato de que há muitos oficiais militares seniores militando na esfera política, o que dá mais respaldo a esse poder. O Parlamento falha em observar e conter essa dominância das FDI e da comunidade de segurança em assuntos de política externa. O Knesset não tem nem os instrumentos, nem a vontade política de agir nesse sentido. A Suprema Corte igualmente revela uma deferência às posições da comunidade de segurança. As consequências desse processo são graves. Ao mesmo tempo, a opinião pública, recheada por

esse espírito, cobra muito do governo medidas de retaliação que servem tanto para dar contas à sociedade como para incentivar o ethos de iniciativa militarista que as FDI e Ben-Gurion desejavam e desejam instilar na juventude israelense. Yitzhak Rabin já falava nisso quando começaram os ataques de homens-bomba nos anos 1990, que, para ele, mostravam a natureza estratégica do terrorismo palestino. Rabin sabia que tais ataques não colocavam em xeque a existência do Estado, mas

era uma ameaça estratégica que afetava a percepção individual de segurança em Israel. A pressão doméstica sobre o governo como resultado do terrorismo obrigava o Estado a ações que contradiziam a sua política de paz e levavam a uma espiral desnecessária de escalação do conflito. Eleições é outro ponto importante. Meus estudos revelam que, em épocas eleitorais, diminui o volume dos ataques israelenses em resposta às agressões árabes, mas cresce a intensidade desses ataques que

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para os árabes não pode ser bom para Israel”, como se os interesses israelenses fossem definidos pelo inverso das demandas árabes, bem como traz a noção da “nação que luta sozinha”, que faz com que propostas vindas de terceiros sejam sempre vistas com desconfiança. Da mesma forma, as organizações internacionais não seriam dignas de confiança por terem deixado Israel na mão no passado (como, por exemplo, a força da ONU antes da Guerra dos Seis Dias). Qualquer iniciativa da ONU é sempre vista como pró-árabe e descartada de cara. O que sobretudo é uma “política de arrogância”, ou seja, quando os árabes estiverem suficientemente fracos eles vão se sentar à mesa para negociar nos termos de Israel. Os políticos de Israel, a partir desse modelo dual, acreditam que, se os árabes estão fortes, qualquer moderação israelense vai parecer fraqueza, o que encorajaria ataques a Israel. Por outro lado, se os árabes estão fracos, não há razão para concessões. ■

Judeu ultraortodoxo faz sua prece diante do Muro das Lamentações, em Israel

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Torres de cartuchos: soldados israelenses avançam em direção a Gaza

precisam mostrar a que vêm, chamando a atenção dos eleitores. Há ainda a questão religiosa. O que ela provoca? — Escrevi um artigo cujo título era “Um Estado judeu ou um Estado democrático para Israel”. A religião tem um papel importante na política israelense. Tanto que uma minoria fanática religiosa (os dos assentamentos) corre livre pelos territórios ocupados, constrói assentamentos ilegais e continuamente ameaça os palestinos na Cisjordânia sem nenhuma restrição da autoridade do governo de Israel. Na realidade, porém, essas facções extremistas religiosas não são tão poderosas. Se o Estado tivesse um líder de coragem, o movimento de assentamentos teria sido uma mera nota de pé de página na história de Israel. Como está agora, com a força que adquiriu pela fraqueza do governo, ele é uma peça-chave e tem um papel destrutivo na política e na sociedade israelense. Uma vez que a ideologia religiosa se transformou na força do■

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minante da política de assentamentos, uma aliança tácita foi formada entre elementos favoráveis a uma estratégia de anexação no Partido Trabalhista e no Partido Likud e foi essencial durante o mandato dos dois partidos. Hoje a dificuldade do governo em controlar essa política de assentamentos é tremenda. Basta ver como, em 2003, apenas então os políticos se deram conta da loucura desses assentamentos em Gaza e na Cisjordânia. Foi o caso de Sharon. Mas já era tarde: ele tinha que dar conta de uma população de 230 mil assentados, incluindo sete mil deles na faixa de Gaza. Só se retiraram de lá depois que 950 israelenses foram mortos e milhares foram feridos. ■ O senhor também é um grande crítico da política nuclear de Israel. — O paradoxo da política nuclear israelense é que ela não tem grande impacto. Sempre que há a ameaça de que um país árabe (ou o Irã) desenvolveu armas nucleares, os israelenses passam a não mais acreditar no poder que suas

armas nucleares teriam de amedrontar os vizinhos e assegurar a paz, como nos tempos da Guerra Fria entre URSS e Estados Unidos. Se Israel tiver razões em acreditar que o Irã alcançou o ponto de fusão, ou seja, que está prestes a conseguir um grau elevado de enriquecimento de urânio, com certeza vai atacar os iranianos. E isso vai provocar uma escalada gigantesca nas tensões do Oriente Médio. Assim, é um privilégio duvidoso. A política nuclear israelense não alcançou nenhum de seus objetivos ou apresentou os efeitos colaterais positivos defendidos por seus defensores. Ao contrário, essa ação teve um efeito adverso significativo, pois provocou o fomento de uma corrida não convencional de armas na região e acabou gerando um regime antidemocrático de segredo de Estado e decepção sem nenhum significado do ponto de vista civil. Encorajou, sim, os estados vizinhos inimigos a desenvolver as “armas de destruição em massa dos pobres”, químicas, biológicas e mísseis balísticos. Esse regime nuclear, acima de tudo, atua

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sem controle das instituições políticas e não está sujeito ao debate público em um Estado democrático e desenvolvido como Israel. Esse tipo de atitude da elite israelense é bem característico de uma estratégia de utilizar o conflito continuado com os árabes em seu favor e em detrimento do país que, em função dos seus gastos militares preponderantes, está deixando de lado o investimento em valores que foram fundamentais em sua criação, como, por exemplo, a educação. A mobilização da sociedade israelense tem um custo alto. Ela serve, sim, como uma maneira de se fugir ao tratamento realista de muitos problemas sociais importantes. No longo prazo, esse princípio da nação em armas está provocando um efeito indireto na situação econômica, tecnológica e social de Israel em relação ao resto do Ocidente industrializado, a referência para os israelenses. Israel está começando a ficar para trás nessas questões. E como o conflito constante afeta os árabes? — Insisto que meu estudo é centrado na questão de Israel, mas é possível se observar que, da mesma forma que a elite israelense usa o conflito como um mecanismo para a construção de um Estado e a integração social num sistema democrático, as elites árabes usam a guerra como um mecanismo para a manutenção do controle autoritário e para perpetuar o subdesenvolvimento social e econômico. Mesmo líderes árabes mais progressistas como Sadat, Arafat ou o rei Hussein da Jordânia mantiveram uma política socioeconômica fechada, altamente hierarquizada e brutalmente corrupta, impedindo a colheita dos frutos econômicos e sociais da paz. Essa dualidade exacerbou os problemas dos regimes árabes, fazendo com que o sucesso de Israel fosse ainda mais espetacular em comparação com a pobreza, corrupção e falta de liberdade política no mundo árabe. O mundo árabe igualmente parece refém de uma tendência das elites intelectuais e econômicas em colocar a culpa de todas as suas mazelas em agentes externos. Primeiro foram os poderes coloniais, britânicos e franceses, depois os sionistas e agora os americanos, que parecem culpados por tudo de ruim que acontece nos países árabes. Mas ■

■ Que princípios da política de seguran-

Gastos militares deixam de lado o investimento em valores fundamentais como a educação

o Oriente Médio só perde da África em termos de subdesenvolvimento e é muito menos democrático do que muitas regiões do globo. O conflito não é responsável direto por isso, mas é sempre usado como desculpa. Além disso, nas monarquias do petróleo, a maior parte do dinheiro ganho é investida fora do seu país de origem e a maioria da força de trabalho vem do exterior. A paz total significaria o fim do autoritarismo da região. Para piorar, houve a emergência, nos países árabes, de grupos islâmicos radicais que tomaram para si a retórica anti-israelense a fim de mobilizar a oposição a qualquer tentativa de um regime político tentar fazer a paz com Israel. Essa oposição obriga os dirigentes árabes a andar sobre o fio da navalha, tendo, de um lado, os seus interesses estratégicos e, de outro, a necessidade de acalmar a oposição militante contra a paz com Israel. Muitos grupos radicais, inclusive, ascenderam ao poder sob a fachada de democracias. Muitos Estados árabes, portanto, recuaram novamente para o bunker autoritário, usando a retórica contra Israel como uma tática diversional. Os vizinhos de Israel se deram tão mal porque usam o conflito para perpetuar e aumentar a pobreza e as péssimas condições sociais que já existiam muito antes do surgimento do Estado de Israel.

ça de Israel deveriam ser revistos para pensarmos num quadro mais pacífico no futuro? — Israel precisa abandonar a noção de que apenas intransigência e ataque vão levar os árabes à paz e perceber que gestos realmente cooperativos têm um impacto mais duradouro do que apenas movimentos de contenção. Uma virada de Israel em direção a uma política de paz efetiva teria um impacto imenso nas tensões do Oriente Médio. Uma iniciativa de redução de armas, por exemplo, por parte de Israel igualmente teria um impacto importante no balanço de armas da região e seria o início de um longo caminho no estabelecimento de um clima de confiança na região. Faz-se necessário aumentar o controle da comunidade de segurança por parte do Knesset, do Judiciário e da sociedade civil. As instituições constitucionalmente responsáveis pela segurança têm que ter um papel mais relevante. Israel precisaria retomar uma doutrina convencional e oferecer negociar suas armas nucleares em troca de segurança regional real. Também se deve diminuir os gastos com a indústria de defesa e passar a se confiar mais num Exército regular com horizontes de carreira para os profissionais treinados. Creio que seria importante para o Estado estabelecer um pacto de defesa com os Estados Unidos que não fosse em detrimento de um regime efetivo de segurança regional. A relação entre EUA e Israel, hoje, se baseia em três elementos: uma percepção de interesses comuns no Oriente Médio, uma afinidade democrática comum e, mais importante, a influência do lobby de Israel sobre a América. Os judeus americanos, claro, apoiam Israel, mas há uma descrença crescente sobre as políticas de Israel com os palestinos, ainda que a liderança israelense nos EUA esteja ao lado dos israelenses. A pressão internacional tem, sim, um efeito sobre a política de Israel, mas enquanto a administração Bush continuava a bancar as ações, o governo isralelense não se sentiu pressionado a parar. Mais recentemente a decisão de um cessar-fogo unilateral foi causada tanto pela pressão externa quanto pela crítica doméstica das operações militares. Israel tem muito a ganhar e pouco a perder com a paz. ■ PESQUISA FAPESP 156

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CAPA

A FLORESTA NO LIMITE Redução de chuvas elimina árvores de grande porte e diminui capacidade de absorção de carbono na Amazônia Ricard o Zorzet to

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lado – no qual simulou secas intensas semelhantes às causadas de tempos em tempos no leste da Amazônia pelo El Niño, o aquecimento anormal das águas superficiais do oceano Pacífico. Durante cinco estações chuvosas seguidas, cerca de 30 pesquisadores e auxiliares da equipe de Nepstad instalaram um pouco acima do solo 5.660 painéis plásticos de 3 metros de comprimento por 0,5 metro de largura, recolhidos ao final de cada período de chuvas. Como uma espécie de guarda-chuva sobre a floresta, os painéis desviavam as águas vindas do céu para um sistema de calhas que as conduziam para longe dali. Os efeitos desse experimento complexo e dispendioso – foram medidos gases emitidos para a atmosfera, umidade do solo, crescimento das plantas, entre outros fatores – começaram a se tornar mais claros recentemente com a publicação de artigos científicos detalhando os danos causados por cinco anos de uma seca experimental severa que reduziu de 35% a 40% o volume de água que chegava ao solo (o índice médio de chuvas na região de Santarém é de 2 mil milímetros por ano, concentrados de dezembro a junho). Tornar impermeável à chuva o chão da floresta pode até parecer uma ideia extravagante. Mas não faltavam razões para seguir com o projeto. Modelos climáticos desenvolvidos pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) estimam que algumas regiões da Amazônia podem ficar até oito graus mais quentes nas próximas décadas se o consumo de combustíveis derivados

de petróleo e a derrubada e a queima de florestas no mundo seguirem no ritmo atual, elevando a concentração atmosférica de gás carbônico, o principal agente associado ao aquecimento e à transformação do clima do globo. Uma provável consequência desse aumento da temperatura é a alteração no regime de chuvas no planeta. “Ainda não há um consenso sobre o que pode ocorrer com as chuvas na Amazônia”, explica Carlos Nobre, climatologista do Inpe e membro do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), órgão das Nações Unidas que analisa as evidências de alterações no clima da Terra. “Dos 23 modelos climáticos que fundamentaram o relatório de 2007 do IPCC, a maioria mostra uma tendência de redução entre 10% e 30% das chuvas na Amazônia, mas o restante indica a possibilidade de que permaneçam nos níveis atuais ou até aumentem”, diz Nobre, coordenador do Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais. Além da mata - Apesar da incerteza, a

diminuição de chuvas sobre a floresta, resultado de fenômenos El Niño mais frequentes e intensos ou do aquecimento do Atlântico Norte decorrente do aquecimento do planeta, preocupa. Com menos chuva, é grande o risco de que a mata densa e exuberante que se espalha por quase 7 milhões de quilômetros quadrados na América do Sul se transforme, em especial a sul e a leste, em uma vegetação mais baixa, rala e seca, cuja aparência lembra a de savanas.

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paisagem que Paulo Brando encontrou em outubro passado na Floresta Nacional do Tapajós em Belterra, município no oeste do Pará, é bem distinta da que o encantou em sua primeira viagem à região seis anos atrás. As árvores mais altas e imponentes tinham muito menos folhas que o normal e já não se abraçavam no topo da floresta como antes. Várias estavam secas e mortas e por entre os vãos da copa deixavam espiar o céu. Quase sempre inacessíveis a quem caminha pela mata, os raios de sol chegavam à camada de folhas no solo, deixando-a mais seca e propensa a pegar fogo. Felizmente a transformação observada pelo engenheiro florestal paulista se restringe – ao menos por enquanto – a uma pequena área da Amazônia que na última década vem servindo de laboratório natural para pesquisadores brasileiros e norte-americanos interessados em descobrir o que pode acontecer com a mais vasta floresta tropical do mundo caso, como previsto, a temperatura do planeta continue aumentando e as chuvas diminuam na região. No interior dessa reserva ambiental às margens do rio Tapajós, a 67 quilômetros ao sul de Santarém, Daniel Nepstad, ecólogo do Centro de Pesquisas Woods Hole, nos Estados Unidos, e fundador do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), criou no final dos anos 1990 um elaborado experimento a céu aberto. Selecionou um hectare de vegetação nativa – o correspondente a um quarteirão com 100 metros de PESQUISA FAPESP 156

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Verde vulnerável: fogo avança mais facilmente em meio à vegetação seca

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Painéis, torres e poços: esboço do Seca floresta

E os prejuízos dessa transformação na estrutura e na fisionomia da floresta – ela passaria de úmida a seca – não devem se limitar à Amazônia. É que a água que a vegetação amazônica extrai do solo e lança à atmosfera controla o clima e as chuvas de boa parte do Brasil e da América do Sul (Pesquisa FAPESP nº 114). “Pequenas alterações na floresta podem afetar o balanço hídrico e térmico de outras regiões”, afirma o agrônomo Eneas Salati. Ex-professor da Universidade de São Paulo (USP) e ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Salati estuda há cerca de 40 anos a reciclagem natural de água e a formação de chuvas na Amazônia. Em um experimento conduzido duas décadas atrás na bacia hidrográfica de um afluente do rio Negro, no estado do Amazonas, cerca de 800 quilômetros a oeste de Santarém, ele descobriu que as plantas da floresta devolviam à atmosfera, na forma de vapor eliminado pela transpiração, metade da água 18

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das chuvas – efeito comprovado por estudos posteriores. Embora existam variações internas entre uma região e outra da Amazônia, esses valores não devem variar muito. Por essa razão, calcula-se que pouco menos da metade da água que cai sobre a floresta na forma de chuva retorne como vapor para a atmosfera. “Parte desse vapor sobe até a alta troposfera e vai até a Antártida, onde produz depósitos de gelo”, conta Salati, atualmente diretor técnico da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável. Nessa longa viagem, o vapor eliminado pelas árvores da Amazônia contribui para intensas chuvas no Sudeste e Sul do país, responsáveis por parte importante da produção agropecuária nacional. Seca artificial - Ante o risco de um

futuro mais seco, Nepstad decidiu verificar experimentalmente o quanto a floresta resiste à redução das chuvas e como ela se transforma se essa situação durar muito tempo. Em parceria com o

biólogo Eric Davidson, do Woods Hole, e o ecólogo Paulo Moutinho, do Ipam, Nepstad bolou o experimento Seca floresta em Tapajós, onde a estrutura e a fisionomia da vegetação são semelhantes às de quase um terço da Floresta Amazônica. O projeto, que envolveu pesquisadores de 14 instituições, integrou o Experimento em Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia (LBA) e foi financiado pelos governos brasileiro e norte-americano. Além dos painéis plásticos transparentes instalados acima do solo – os painéis eram virados algumas vezes na semana para que as folhas mortas e galhos chegassem ao chão –, os pesquisadores ergueram quatro torres de 30 metros de altura interligadas por passarelas de madeira, de onde era possível observar melhor a copa das árvores, e cavaram cinco poços com 11 metros de profundidade para medir alterações na reserva de água do subsolo. Em outro hectare da mesma floresta construíram aparatos semelhantes, mas mantiveram a área descoberta para permitir comparações – é a chamada área controle. “Não tínhamos intenção de predizer qual será o futuro da floresta, pois para isso teríamos de repetir o experimento em diferentes regiões, uma vez que a vegetação da Amazônia não é homogênea”, afirma Davidson, diretor de projetos de um segmento do LBA. “Queríamos apenas descobrir os possíveis efeitos da seca sobre a estrutura da mata.” Já de início surgiram surpresas. A floresta no Tapajós resistiu bem aos dois primeiros anos de seca artificial – algo, de certo modo, esperado numa região frequentemente atingida pela escassez de chuva causada pelo El Niño. A mortalidade das árvores na área coberta pelos painéis permaneceu semelhante à da que continuava a receber chuva. A copa das árvores, porém, encolheu quase 20%. Aparentemente não porque morressem mais folhas, mas porque as novas simplesmente deixavam de nascer, relatou Nepstad em 2002 no Journal of Geophysical Research. A abertura no dossel da floresta permitiu entrada de mais luz, secando a camada de folhas e galhos caídos sobre o solo (serapilheira) e aumentando o risco de incêndio. Nepstad calculou que a área privada de chuva se tornou vulnerável ao fogo por até dez semanas, diante de dez dias nos locais mais úmidos.

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IPAM/WHRC

Não foi tudo. “Já no primeiro ano as árvores praticamente pararam de crescer”, conta Paulo Brando, do Ipam, um dos integrantes da equipe. Houve uma queda de 20% no ritmo de crescimento das árvores de porte médio, com tronco de ao menos 10 centímetros de diâmetro e até 15 metros de altura, enquanto outras, como o louro-amarelo (Licaria brasiliensis) e o tachi-vermelho (Sclerobium chrysopillum), reduziram a taxa de fotossíntese, processo em que convertem a energia solar em açúcar, retirando gás carbônico da atmosfera. Trabalhando em um experimento semelhante montado em 2002 na Floresta Nacional de Caxiuanã, cerca de 1.300 quilômetros a leste de Santarém, Rosie Fisher e Patrik Meir, da Universidade de Edimburgo, Escócia, constataram que a provável razão da queda nas taxas de transpiração e fotossíntese da floresta é a maior dificuldade de as raízes absorverem água do solo. Brando analisou, em especial, o caso da espécie mais comum na região: a caferana (Coussarea racemosa), árvore de 20 metros, casca fina e caule acinzentado que vive à sombra das mais altas, no sub-bosque da floresta. Com a restrição de chuvas, a caferana passou a produzir folhas, flores e frutos mais tarde que o

normal, talvez como estratégia de economizar água. Seus frutos se tornaram mais leves e quase sem sementes após o quarto ano de seca, o que pode comprometer a reprodução da espécie. “Esse é um efeito da seca que raramente conseguimos observar”, diz Brando. O estrago só não foi maior, segundo os pesquisadores, porque as árvores da Amazônia têm ao menos duas importantes estratégias de obter água durante secas prolongadas. A primeira são raízes profundas, capazes de buscar água a 11 metros abaixo do solo. A segunda é a redistribuição hídrica, um mecanismo de extrair água das áreas mais úmidas e depositar nas desidratadas, identificado entre as árvores da Floresta Nacional do Tapajós pelos biólogos Rafael Oliveira, da Universidade Estadual de Campinas, e Todd Dawson, da Universidade da Califórnia em Berkeley, Estados Unidos (Pesquisa FAPESP nº 151). Quando a umidade do solo se encontra muito baixa, durante a noite as raízes de árvores como o breu (Protium robustum) e a maçaranduba (Manilkara huberi) absorvem a água armazenada nas camadas mais profundas e a distribuem por meio de uma trama de raízes superficiais próxima ao chão da floresta,

mais seco. Descoberta por Martyn Caldwell e James Richards no final dos anos 1980 em plantas de regiões desérticas, a redistribuição hídrica permite a sobrevivência dessas árvores e de plantas vizinhas de raízes mais curtas. No período de chuvas, esse fluxo inverte: durante a noite as raízes superficiais retiram água da terra encharcada e a conduzem para as raízes profundas, que a armazenam metros abaixo da superfície. Ao incorporar os dados observados no Tapajós a um modelo climático, Jung-Eun Lee, Inez Fung, Oliveira e Dawson constataram que a redistribuição hídrica ajuda a explicar como a floresta mantém por algum tempo, nas secas prolongadas, seus níveis normais de fotossíntese e transpiração, essencial para o equilíbrio do clima do planeta. “Se a maior parte das árvores da floresta usar de fato esse mecanismo, o desmatamento da Amazônia pode ter consequências mais graves do que imaginávamos”, diz Oliveira, um dos autores do artigo que relata esses resultados em 2005 nos Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS). Sem reservas - As estratégias de busca

de água, porém, não foram suficientes para impedir os danos que emergiram a partir do terceiro ano do experimento. A redução de pouco mais de um terço das chuvas por cinco anos fez baixar em quase 90% as reservas de água profundas, situadas entre 2 e 11 metros abaixo da superfície, na parcela coberta por painéis plásticos. Na área controle, 70% da água armazenada no subsolo permanecia disponível durante a estação seca. “O limite mínimo de chuvas para a vegetação se manter nessa região é de 1.700 milímetros. Abaixo desse valor, aumenta o risco de mudanças”, diz Oliveira. Sem água, as árvores não resistiram e começaram a sucumbir – em especial as maiores e mais encorpadas, Guarda-chuva na mata: painéis impediam água de chegar ao solo no Tapajós que acumulam 90% da PESQUISA FAPESP 156

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Incêndio experimental: queimada favorece invasão de gramíneas

massa da floresta. Morreram duas vezes mais árvores de grande porte, com tronco com 10 a 30 centímetros de diâmetro, na área privada de chuva do que no controle. Entre as mais imponentes, com caule de mais de 30 centímetros e entre 30 e 40 metros de altura, essa taxa foi ainda mais alta: 4,5 vezes maior. Numa avaliação mais geral, uma em cada dez árvores grandes secou na parcela coberta pelos painéis, ao passo que essa taxa foi de uma em cada 200 na área controle. A mortalidade continuou mais elevada um ano depois que o grupo removeu definitivamente os painéis plásticos da floresta, em 2005, informaram Nepstad e Ingrid Thover, do Ipam, em 2007 na Ecology. “O componente mais afetado pela redução de chuvas foi o estoque de carbono da floresta”, afirma Paulo Brando. Nos cinco anos de redução de chuvas, a taxa de crescimento das plantas, que inicialmente havia caído 20%, baixou ainda mais: foi 41% menor do que na área de controle durante o experimento, constatou o engenheiro florestal do Ipam, atualmente aluno de doutorado na Universidade da Flórida, nos Estados Unidos. Esse crescimento minguado se refletiu principalmente na produção de madeira, 33 toneladas menor na área coberta com painéis plásticos. A floresta mais seca também produziu 47 toneladas a mais de matéria orgânica morta. 20

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Apresentados em maio de 2008 na Philosophical Transactions of the Royal Society B, esses resultados indicam que diminuiu muito a capacidade de retirar gás carbônico (CO2) da atmosfera, fonte do carbono que é incorporado pelas plantas e transformado em caule, folhas, flores e frutos. “Ainda que as árvores menores tenham passado a crescer mais com a morte das maiores, a redução de folhas do dossel e a entrada de mais luz, esse crescimento esteve longe de ser suficiente para restaurar os níveis iniciais de absorção de CO2”, diz Brando. “Provavelmente levaria centenas de anos para a floresta recuperar a capacidade atual de estocar carbono.” Mantidas as outras condições (temperatura, área de mata e concentração de CO2) constantes nos níveis atuais, a diminuição de chuvas poderia transformar a Amazônia de um sumidouro em um emissor global. Estudos das emissões de gases feitos pelo LBA indicam que hoje a floresta se encontra em uma situação de quase equilíbrio no que diz respeito à emissão e à absorção de carbono: cada hectare da floresta é capaz de retirar do ar por ano 0,5 tonelada de carbono a mais do que emite. Não é pouco. Calcula-se que os 700 milhões de hectares da floresta extraiam da atmosfera 350 milhões de toneladas de carbono a cada ano, quase um décimo do que é absorvido por todas as

florestas tropicais do planeta – e 3,5% do que é lançado à atmosfera pelas atividades humanas. “Precisamos ter em mente que a redução de chuvas não é o único fator a influenciar o futuro da floresta”, lembra Carlos Nobre. Um modelo climático que a equipe de Nobre vem desenvolvendo no Inpe indica que, ao menos inicialmente, o aumento de gás carbônico na atmosfera pode contrabalançar o efeito da diminuição de chuvas. “A tendência de alteração nas regiões sul e leste da Amazônia continua, mas atenuada”, diz Nobre. Ainda que não avalie a influência desses outros fatores, o Seca floresta pode contribuir para o aprimoramento das previsões de alteração no clima. Seus resultados podem alimentar modelos climáticos mais precisos e realistas, uma vez que os atuais não incluem alterações na área total e na estrutura das florestas decorrentes das mudanças climáticas. “Esse trabalho está quantificando parâmetros que seriam muito difíceis de calcular”, afirma Eneas Salati. Calor e fogo - Enquanto acompanha-

va as transformações no Tapajós, uma vegetação densa e fechada que se ergue em média a 30 metros do solo, Nepstad e sua equipe começaram a se perguntar: se parte da Floresta Amazônica realmente se tornar mais seca e suscetível ao fogo, o que ocorre em seguida? Para descobrir, planejaram outro experimento grandioso: atear fogo a uma área de floresta mais seca, semelhante ao que poderia ser a Amazônia no futuro. Conseguiram autorização para realizar o projeto, conhecido como Experimento de savanização, em uma fazenda em Mato Grosso do grupo André Maggi, da família de Blairo Maggi, governador do estado e maior plantador de soja do país. Nessa região chovem 1.700 milímetros por ano e a floresta é mais aberta e baixa – o dossel tem em média 20 metros de altura –, uma vegetação de transição entre a Floresta Amazônica e o Cerrado (Pesquisa FAPESP nº 103). Por quatro anos seguidos, de 2004 a 2007, a equipe de Nepstad e Davidson colocou fogo em área de 50 hectares de floresta de transição. Agora começam a comparar o que aconteceu ali com as mudanças observadas em uma área de 50 hectares queimada duas vezes, em

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LUIZ CLAUDIO MARIGO

2004 e 2007, e outra de mesmo tamanho que permaneceu livre do fogo. O fogo abaixo do joelho – incêndios com chamas mais altas são raros em área de vegetação fechada – consumiu principalmente as árvores menores, com diâmetro entre 10 e 20 centímetros. A mortalidade dessas árvores mais que dobrou depois das duas primeiras queimadas: a cada ano passaram a morrer quase 10% delas. Outro grupo que sofreu foi o das lianas, trepadeiras de caule amadeirado que formam redes impenetráveis ligando o chão da floresta à copa das árvores. “Os danos causados pelo fogo foram complementares ao da redução de chuvas, que afetou principalmente as árvores mais altas”, conta a bióloga Jennifer Balch, atualmente pesquisadora do Centro Nacional de Síntese e Análise Ecológica, nos Estados Unidos. Curiosamente, queimadas sucessivas reduziram o poder de ação do fogo, que a cada ano se espalhava por uma área menor e com chamas mais baixas, relatou a bióloga em outubro de 2008 na Global Change Biology. A razão,

comprovou Jennifer, é que a cada queimada diminui a quantidade de folhas e galhos secos, o principal combustível dos incêndios florestais. Mas esse efeito parece temporário. É que a morte de árvores maiores, que é mais lenta, pode aumentar novamente o alimento do fogo. Jennifer constatou ainda que as queimadas favorecem a invasão nas bordas da floresta de gramíneas, vegetação mais propensa a queimar na seca. Aparentemente a repetição das queimadas exauriu o poder de recuperação da floresta. “Havia sementes e plântulas [plantas jovens] de várias espécies brotando depois do primeiro fogo”, conta Jennifer. “Mas, depois da terceira queimada, o número de espécies em regeneração caiu pela metade.” Oswaldo de Carvalho Júnior, biólogo do Ipam, notou que algumas espécies de mamíferos inicialmente se beneficiam do fogo, enquanto outras diminuíram. “O número de espécies que frequentavam a área não diminuiu, mas a população de cada uma delas baixou, com exceção das antas, que preferem as folhas tenras dos brotos”, diz Carvalho.

Os pesquisadores do Woods Hole e do Ipam pretendem manter o experimento em Mato Grosso por alguns anos e retornar à Floresta Nacional do Tapajós para acompanhar a recuperação da mata. Enquanto buscam descobrir mais sobre a capacidade de resistência e adaptação da floresta, colecionam indícios de que o clima já está mudando. “Nos últimos anos”, conta Davidson, “os fazendeiros do Mato Grosso vêm alterando o padrão de plantio por causa das chuvas, que chegam mais tarde. Eles sabem que hoje o fogo se espalha mais rapidamente e de forma mais perigosa”. ■ > Artigos científicos 1. BRANDO, P.M. et al. Drought effects on litterfall, wood production and belowground carbon cycling in an Amazon forest: results of a throughfall reduction experiment. Philosophical Transactions of the Royal Society B. v. 363, n. 1.498, p. 1.839-1.848, 27 mai. 2008. 2. BALCH, J.K. et al. Negative fireback in a transitional forest of southeastern Amazonia. Global Change Biology. v. 14, n. 10, p. 2.276-2.287, out. 2008.

Sob risco: mudanças climáticas podem transformar parte da Amazônia em savana

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ESTRATÉGIAS MUNDO

sumiu Grandes universidades dos Estados Unidos amargam um sufoco orçamentário em decorrência da crise financeira do país. A Universidade Stanford, por exemplo, cortou vagas, congelou salários e adiou a construção de um novo prédio. A Universidade Washington, em Saint Louis, anunciou um corte de 10% do salário do reitor. As instituições sofrem com a redução no fluxo de doações privadas feitas por empresas e ex-alunos, uma tradicional fonte de recursos. “A queda chega a 30% desde o ano passado”, disse à revista Nature John Walda, presidente de uma associação que reúne os executivos de negócios das universidades. Os fundos em que as doações eram investidas também vêm sofrendo perdas. A Universidade Harvard anunciou que os prejuízos no seu fundo de doações podem

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A revista de divulgação científica do prestigioso Instituto Max Planck, da Alemanha, cometeu uma gafe antológica numa reportagem especial sobre a China. Os editores da MaxPlanckForschung resolveram estampar a capa da publicação com algum poema clássico escrito em mandarim. O contraste dos caracteres brancos com o fundo vermelho produziu, de fato, um belo impacto visual, mas a capa causou espanto por outro motivo. Descobriuse, após a edição ser distribuída, que o texto em mandarim não era de nenhum poema, mas havia sido inadvertidamente copiado de um anúncio publicitário de um clube de strip tease de Macau, que recomendava os serviços de suas “donas de casa sensuais”. O Instituto Max Planck foi rápido em admitir o erro e pedir desculpas. Em nota, afirmou que havia consultado uma especialista em China antes de publicar o texto e argumentou que a compreensão sobre o que estava escrito na capa não é facilmente acessível para quem não tem o mandarim como língua-mãe. O jornal corrigiu o erro em sua edição on-line, trocando o anúncio da casa de saliência pelo título de um livro do jesuíta suíço Johannes Schreck (1576–1630), sobre cujo significado não pairavam dúvidas.

PERDIDO NA TRADUÇÃO

> O dinheiro

chegar a 30%. As perdas ocorreram por conta de investimentos imobiliários e compra de participação em empresas. O caso extremo é o da Universidade Yeshiva, em Nova York, que perdeu US$ 110 milhões – ou 8% de seu fundo de doações – no esquema de investimentos fraudulentos do financista Bernard Madoff, que chegou a ser preso em dezembro. De certo modo, as universidades são vítimas do próprio sucesso. Como as doações cresceram significativamente desde os anos 1990, as instituições se tornaram mais dependentes delas.

> Canal bloqueado A Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos recomendou aos pesquisadores norteamericanos que evitem viajar ao Irã, depois que um

dos membros da instituição foi preso em Teerã em dezembro. Segundo a revista Nature, o físico Glenn Schweitzer foi detido em duas ocasiões por homens que diziam pertencer aos serviços de segurança do Irã. Schweitzer participava

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> Autonomia

de um programa da academia que promove colaborações com organizações científicas iranianas, a fim de manter canais abertos entre os dois países apesar da contínua confrontação política. As visitas do programa foram suspensas e a academia anunciou que só as retomará se o governo do Irã der garantias de que os pesquisadores podem ir ao país em segurança. ILUSTRAÇÕES LAURABEATRIZ

em xeque

> Ferramenta para exploração O Google Earth, ferramenta que permite a qualquer internauta localizar lugares por meio de imagens de satélite, levou um grupo de pesquisadores ingleses a encontrar um santuário com espécies desconhecidas em Moçambique. Um grupo de especialistas do Jardim Botânico Real de Kew, na Inglaterra, usou a ferramenta para procurar um local com potencial

para abrigar um projeto de conservação. Identificaram o Monte Mabu, uma região inexplorada mais de 1,6 mil metros acima do nível do mar, e montaram uma expedição para visitar o local. Entre as novas espécies que encontraram, há camaleões pigmeus,

borboletas, víboras, além de uma rara orquídea e diversas plantas exóticas. A equipe recolheu mais de 500 amostras de plantas para análise. “A fenomenal diversidade é muito impressionante”, disse à agência BBC o pesquisador que liderou a expedição, Jonathan Timberlake.

O Parlamento da Itália aprovou uma lei que tira das universidades públicas do país a liberdade de contratar seus professores – o objetivo alegado é combater o expediente de escolher profissionais por critérios políticos, não por mérito. De acordo com as regras aprovadas, um comitê de seleção composto por cinco pessoas vai decidir sobre cada escolha. A universidade poderá indicar apenas um nome desse comitê. Os outros quatro serão escolhidos aleatoriamente de uma lista composta por 12 membros proeminentes da comunidade científica italiana. Segundo a revista Nature, a comunidade científica italiana se opôs ao projeto e, em vão, fez pressão pela aprovação de uma versão alternativa, em que a liberdade de escolha era mantida, mas o eventual baixo desempenho do selecionado seria punido com perda de recursos para a instituição.

Uma rede de 50 pesquisadores de vários países sediada no Quênia irá produzir um mapa digitalizado sobre as características dos solos de 42 países da África. Batizado de Serviço de Informação sobre o Solo Africano, o projeto foi viabilizado graças a uma dotação de US$ 18 milhões da Fundação Bill e Melinda Gates e da Aliança para a Revolução Verde na África. A meta é reunir os mapas existentes e cruzá-los com novos dados obtidos por sensoriamento remoto para produzir um grande mapa digital, capaz de ajudar fazendeiros e autoridades em seus esforços para melhorar a fertilidade dos empobrecidos solos africanos. “Os mapas existentes têm entre 10 e 30 anos. Isso é um problema, porque certas propriedades, como o pH ou a disponibilidade de fósforo e carbono, mudam com o tempo”, disse à agência SciDev.Net Alfred Hartemink, da Universidade Wageningen, da Holanda, que participa da iniciativa. O mapa africano é o primeiro estágio de um projeto maior, o GlobalSoilMap.net, que pretende mapear todos os solos do mundo. Segundo Hartemink, a ideia é rastrear 70% do globo em cinco anos e obter um mapa completo em no máximo 15 anos.

O SOLO EM DETALHES

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Um centro médico em Moscou abrigará, a partir do próximo mês, uma experiência inédita que simulará as condições de uma viagem espacial tripulada a Marte. Parceria da Agência Espacial Europeia (ESA) com o Instituto de Problemas Médicos da Rússia (IBMP), a iniciativa vai reunir seis pessoas – dois europeus e quatro russos - que durante 105 dias irão viver, comer, dormir e trabalhar num espaço de 550 metros cúbicos desenhado para reproduzir o ambiente de uma nave espacial. A alimentação para todo o período será fornecida no primeiro dia – assim como a água, que terá de ser reciclada. A comunicação dos tripulantes com o mundo exterior terá um atraso de 20 minutos, o tempo que uma mensagem de rádio leva para chegar a Marte. Os participantes serão alvo de pesquisas voltadas para avaliar os efeitos psicológicos e fisiológicos do isolamento. Será apenas um teste para a grande experiência do programa, que é o confinamento da tripulação por cerca de 500 dias. Esse é o tempo aproximado de uma viagem de ida e volta a Marte. A previsão é que a segunda fase da experiência tenha início no final do ano.

ESA

BIG BROTHER MARCIANO

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Quando o homem for a Marte: confinamento prepara viagem

> China muda lei de patentes A China mudou sua lei de patentes num esforço para melhorar o ambiente de inovação do país. Uma emenda aprovada pelo Parlamento estimula os inventores a obter patentes no exterior, abolindo a exigência de que os depósitos de patentes de cidadãos chineses sejam feitos primeiro na China. Mas os inventores deverão antes consultar o governo, que determinará se a tecnologia se enquadra ou não no conceito de “segredo nacional”. A nova lei também adota o princípio do “padrão absoluto de novidade” para autorizar patentes, em vez da “relativa novidade” estabelecida anteriormente. É a terceira vez que a lei de patentes sofre alterações. As duas revisões anteriores, 24

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feitas em 1992 e em 2000, buscavam ajudar a China a absorver tecnologias estrangeiras e a respeitar as regras da Organização Mundial do Comércio. De acordo com um relatório divulgado pela Thomson Reuters Scientific, um dos braços de pesquisa da Thomson Reuters, a China poderá superar o líder Japão em número de novas patentes até 2012. Mas a baixa proteção dos direitos de propriedade intelectual é uma preocupação para empresas estrangeiras e muitas evitam investir em pesquisa e desenvolvimento no país.

> Colaboração Europa-Mercosul A União Europeia e o Mercosul anunciaram em Buenos Aires um programa conjunto que irá destinar

€ 3 milhões para cinco projetos de pesquisa e desenvolvimento em biotecnologia. Os projetos terão duração de 24 meses e reunirão consórcios de instituições públicas e privadas da Argentina, do Brasil, do Uruguai e do Paraguai. De acordo com a agência SciDev.Net, um dos projetos selecionados irá criar vacinas experimentais contra a tuberculose bovina

e métodos de diagnóstico de outras doenças do rebanho. Outro projeto tem como meta estabelecer uma rede de pesquisa no campo da genética para melhoramento do eucalipto. Os três restantes buscam a aplicação de ferramentas biotecnológicas no melhoramento da soja, o fortalecimento do status sanitário da avicultura e o desenvolvimento de vacinas contra a febre aftosa.

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ESTRATÉGIAS BRASIL

> O novo reitor da Unesp

ELIANA ASSUMPÇÃO/ACI/UNESP

Herman Jacobus Cornelis Voorwald assumiu o cargo de reitor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) no dia 14 de janeiro. Professor da Faculdade de Engenharia (FE), no campus de Guaratinguetá, Voorwald ocupou a vice-reitoria da instituição na gestão de Marcos Macari, que comandou a Unesp entre 2005 e 2008. O novo vice-reitor é Julio Cezar

Durigan, da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias de Jaboticabal. Segundo Voorwald, as prioridades de sua gestão serão a recomposição do pessoal, defasado com a aposentadoria de professores e a ampliação do quadro de alunos; a implantação do campus no bairro da Barra Funda, em São Paulo; e a consolidação dos campi experimentais criados em 2008. Também será preparado um plano de desenvolvimento institucional para os próximos dez anos. “Vamos enfatizar a atuação da Unesp nas atividades de pesquisa”, disse o reitor.

> Morre Rudá de Andrade

de cinema da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e dirigiu o Museu da Imagem e do Som entre 1970 e 1981. Em 1983 ganhou o Prêmio Jabuti pelo livro Cela 3 - A grade agride.

Foi inaugurado no dia 14 de janeiro o Centro Brasil-China de Tecnologias Inovadoras, Mudanças Climáticas e Energia, uma parceria entre o Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe-UFRJ) e a Universidade de Tsinghua, em Pequim. O centro terá sede na China. Ainda este ano pesquisadores das duas instituições farão um levantamento das emissões de gases causadores do efeito estufa, no Brasil e na China, cujos resultados serão apresentados até o fim de 2010, incluindo sugestões de ações voltadas para a redução das emissões. Outra atividade será o mapeamento nos dois países de fontes de biodiesel, para o desenvolvimento de projetos conjuntos. Nos últimos anos, a Coppe vinha recebendo várias visitas de delegações chinesas. O interesse demonstrado em tecnologias ligadas à exploração de petróleo no mar, alternativas para geração de energia elétrica e outras tecnologias sustentáveis – áreas nas quais a Coppe tem expertise – levou os dirigentes do instituto a propor a criação do centro. A Coppe também tem convênios de cooperação com a Universidade do Petróleo, em Pequim, e a Faculdade de Construção Urbana e Engenharia Ambiental da Universidade de Chongqing.

LAURABEATRIZ

Macari e Voorwald: sucessão

O escritor e cineasta Rudá de Andrade morreu no dia 27 de janeiro, aos 78 anos. Ele se recuperava de uma cirurgia no fêmur, quando sofreu uma parada cardíaca.

Filho dos escritores Oswald de Andrade e Patrícia Galvão, a Pagu, Rudá formou-se em cinema na Itália e foi conservador da Cinemateca Brasileira na década de 1950. Participou da fundação do curso

COPPE VAI À CHINA

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ESTRATÉGIAS BRASIL

A Biblioteca Digital de Obras Raras e Especiais da Universidade de São Paulo (USP) disponibilizou para consulta na internet 38 das principais peças do acervo da universidade. A iniciativa, mantida pelo Sistema Integrado de Bibliotecas (SIBi) da USP, tem o objetivo de colocar raridades, algumas dos séculos XV e XVI, à disposição de um público mais amplo sem danificá-las pelo manuseio. Segundo os organizadores, a intenção é ampliar e democratizar o acesso, isentando o pesquisador de se deslocar ou marcar a consulta para conhecer as publicações. Desde o fim da década de 1980, o SIBi já desenvolvia projetos, alguns deles com apoio da FAPESP, para catalogar e conservar as obras. Alguns dos livros foram digitalizados integralmente e estão disponíveis para consulta ou impressão para uso não-comercial enquanto outros tiveram apenas suas capas digitalizadas. Entre os títulos disponíveis há, por exemplo, o Liber chronicarum, uma história do mundo escrita em 1493, ilustrada e colorida à mão, com texto em gótico e notas manuscritas, e as Ordenações de Dom Manuel, de 1539.

Páginas do Liber chronicarum

> Cortes no orçamento Um corte de R$ 1,12 bilhão no orçamento do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), o equivalente a 18% do total proposto para 2009, fez a comunidade científica reagir. Os presidentes da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Marco Antônio Raupp, e da Academia Brasileira de Ciências, Jacob Palis Jr., saíram a público para criticar o Congresso, que promoveu o corte nos últimos dias de 2008. “É como dar um tiro no pé”, disse Palis. O titular do MCT, Sérgio Rezende, qualificou o corte como “irresponsável”. Um mês mais tarde, o Ministério do Planejamento anunciou um contingenciamento de R$ 37,2 bilhões no 26

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Orçamento da União, mas dessa vez a pasta da Ciência e Tecnologia foi uma das menos atingidas. O MCT perdeu 4,1% do orçamento destinado a custeio e investimentos, ante, por exemplo, 79% do Ministério do Meio Ambiente. De acordo com o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, o contingenciamento permitirá que o governo remaneje verbas para compensar os ministérios mais atingidos pelos cortes de dezembro, como o MCT e o Ministério da Educação. “Houve cortes, como em dotações para bolsas, que são inviáveis”, afirmou o ministro. Em São Paulo, a FAPESP divulgou nota no final de janeiro para esclarecer que está prevista a transferência mensal à fundação, sem

contingenciamento, do percentual constitucional de repasse da arrecadação tributária estadual, conforme consta no recente Decreto 53.938 que fixou normas para execução orçamentária e financeira na administração estadual paulista.

> Renovação na academia

Computação, Ivano Rolf Gutz, do Instituto de Química, Reynaldo Luiz Victoria, do Centro de Energia Nuclear na Agricultura, e Rui Curi, do Instituto de Ciências Biomédicas. Da Unicamp foram eleitos Carlos Alfredo Joly, do Instituto

LAURABEATRIZ

REPRODUÇÃO

RARIDADES DA USP NA INTERNET

A Academia Brasileira de Ciências (ABC) elegeu 22 novos membros titulares, que serão empossados no dia 5 de maio, no Rio de Janeiro. Entre os escolhidos, quatro são professores da Universidade de São Paulo (USP) e três da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Os professores da USP são Maria Aparecida Soares Ruas, do Instituto de Ciências Matemáticas e de

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> Portal para as mudanças climáticas Um banco de dados virtual sobre mudanças climáticas foi lançado pela Embaixada do Reino Unido no Brasil, pelo Conselho Britânico e pela Agência de Notícia dos Direitos da Infância (Andi). Com material em português, o endereço eletrônico www.mudancasclimaticas. andi.org.br reúne vídeos, gravações de depoimentos,

> A arquitetura

SCIENCE/AAAS

de Biologia, Yoshitaka Gushikem, do Instituto de Química, e Carlos Ourívio Escobar, do Instituto de Física Gleb Wataghin. A lista conta ainda com pesquisadores e docentes brasileiros das universidades federais do Rio Grande do Sul (UFRGS), do Amazonas (Ufam), de Minas Gerais (UFMG), de Viçosa (UFV), da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), do Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC) e da Universidade de Queensland, na Austrália, além de quatro membros estrangeiros.

do museu

Corais: ameaçados pelo aquecimento global

fotografias, entrevistas e artigos, além de um glossário de termos sobre o assunto. A decisão de lançar o portal, cuja meta é aperfeiçoar o debate sobre as mudanças climáticas no país, foi tomada depois que a Andi e o Conselho Britânico lançaram um estudo da cobertura sobre o assunto em 50 veículos da imprensa brasileira entre 2005 e 2007. A análise identificou uma série de

problemas, como a supervalorização dos impactos do aquecimento global em detrimento das causas ou a pouca ênfase dada às implicações do fenômeno na pauta do desenvolvimento econômico. “O site vem reforçar a necessidade, identificada na pesquisa, de uma melhor contextualização do tema”, observa o diretor-executivo da Andi, Veet Vivarta.

A Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) lançou um concurso público internacional destinado a arquitetos interessados em apresentar projetos para a sede do Museu Exploratório de Ciências da instituição. O objetivo é a construção de um prédio de 5,2 mil metros quadrados ao custo de R$ 10 milhões. O espaço deve abrigar exposições temporárias, auditório, observatório astronômico, áreas administrativa, técnica e de convivência, entre outras. Profissionais da área de arquitetura de qualquer parte do mundo poderão apresentar propostas até o dia 6 de março. O concurso terá duas fases. A primeira vai apontar os cinco melhores projetos, que serão detalhados na fase seguinte e avaliados no mês de maio por um júri internacional. O museu, criado em 2006, dispõe de um acervo baseado na construção de experimentos que permitem a participação ativa do visitante.

O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) anunciou a compra de componentes para equipar o Amazônia-1, o primeiro satélite de sensoriamento remoto desenvolvido exclusivamente pelo Brasil, com lançamento previsto para 2010. Foram firmados contratos para a aquisição de uma câmera óptica (denominada AWFI), fabricada por uma empresa brasileira, e o sistema de controle e computação embarcada, produzido na Argentina. Em 2009 o Inpe planeja concluir a compra dos equipamentos restantes. Um acordo assinado entre o Brasil e o Reino Unido permitirá incluir no Amazônia-1 a câmera inglesa Ralcam-3, com resolução de dez metros, que complementará as imagens coletadas pela AWFI, cuja resolução é de 40 metros. Associado aos satélites da série Cbers (China Brazil Earth Resources Satellite), o Amazônia-1 produzirá imagens com maior frequência e maior definição para monitorar o ambiente e gerenciar recursos naturais. O Amazônia-1 é baseado em uma plataforma nacional, denominada PMM, que será também utilizada em outros satélites propostos para o Programa Espacial Brasileiro: o científico Lattes-1, o meteorológico GPM-Br e o satélite radar de observação da Terra Mapsar.

A GÊNESE DE UM SATÉLITE

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POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

FINANCIAMENTO

O mé rito men sura do Reino Unido divulga mega-avaliação baseada em peer review que norteará distribuição de recursos para as universidades Fabrício Marques

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FOTOS WARWICK UNIVERSITY

A

comunidade acadêmica do Reino Unido vive um momento de definições. Foram divulgados no final de 2008 os resultados do sexto Research Assessment Exercise (RAE 2008), um grande esforço de avaliação da qualidade da pesquisa que determinará como US$ 2,3 bilhões anuais em verbas públicas serão distribuídos entre as universidades britânicas no período de 2009 a 2014. Foram avaliados 52,4 mil acadêmicos de 159 instituições de educação superior. Constatou-se que 17% das pesquisas conduzidas por eles têm nível de liderança mundial; 37% estão na categoria excelência internacional; 33% possuem reconhecimento internacional; 11%, reconhecimento nacional; e 2% estão abaixo dos padrões exigidos no Reino Unido. “Isso representa uma conquista notável e confirma que somos uma das grandes potências mundiais da pesquisa”, declarou, ao anunciar os resultados, David Eastwood, executivo-chefe do Higher Education Funding Council for England (Hefce), um dos órgãos responsáveis pela avaliação. “Das 159 instituições, 150 têm algum trabalho na fronteira mundial.” Embora o RAE 2008 não divulgue um ranking consolidado de instituições, uma análise dos dados feita pelo Times Higher Education mostra que as melhores foram as universidades de Cambridge e de Oxford, seguidas pela London School of Economics e pelo Imperial College. Algumas instituições melhoraram o desempenho em relação ao RAE anterior, realizado em 2001, caso da Universidade de Londres Queen Mary, que subiu da 48ª para a 13ª posição. Outras amargaram quedas, como a Universidade Warwick, que caiu do 6º para o 9º lugar. Mas as universidades terão de esperar até o dia 4 de março para saber exatamente quem vai ganhar e quem vai perder em recursos, pois a partilha levará em conta, além da qualidade da pesquisa, o volume de pesquisadores de cada instituição submetidos à avaliação. A Universidade de Cardiff, por exemplo, caiu da 8ª para a 22ª posição, mas é provável que não perca recursos porque submeteu mais membros de seu staff ao RAE 2008 do que na avaliação anterior. Ainda assim, são esperadas ondas de choque nas PESQUISA FAPESP 156

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UNIVERSITY OF LEEDS

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instituições com desempenho em queda, na forma, por exemplo, de demissões, como aconteceu em avaliações anteriores. O RAE chama a atenção pela sofisticação de sua metodologia, baseada num sistema de avaliação por pares que envolve consultores nacionais e estrangeiros, e por sua magnitude – a edição de 2008 custou US$ 17 milhões, diante de US$ 8 milhões da avaliação de 2001. Baseia-se em 15 painéis que supervisionam o trabalho de 67 subpainéis disciplinares. Ao todo, 950 revisores participam do processo. Há a presença de pelo menos um pesquisador estrangeiro nos comitês principais. “A ideia não é comparar a avaliação dos membros internacionais com os nacionais, mas assegurar que os níveis de qualidade exigidos sejam os apropriados”, disse a Pesquisa FAPESP Ed Hughes, do Hefce, o gerente do RAE 2008. “Em muitos casos, os membros internacionais ajudam a estabelecer parâmetros. Eles desempenham um importante papel de assegurar que a análise dos painéis tenha credibilidade internacional.” Consequências - Para efeito de comparação, o mo-

delo britânico tem diferenças significativas em relação ao sistema desenvolvido no Brasil pela Coordenação Nacional de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), que desde a década de 1970 avalia programas de pós-graduação stricto sensu. A começar pelos propósitos e as consequências dos processos de avaliação. No caso brasileiro, a avaliação trienal dos cursos de mestrado, mestrado profissional e doutorado busca não apenas medir a qualidade dos programas mas também estimular o seu desenvolvimento, uma vez que norteia o financiamento de bolsas e reconhece a excelência dos respectivos grupos de pesquisa. O fechamento de cursos mal avaliados acontece apenas em situações extremas e programas com nota regular preservam o direito de formar mestres e doutores, ainda que seu prestígio fique abalado. Já o RAE tem um impacto imediato e, às vezes, devastador, que vai além da pesquisa e da pós-graduação, pois serve como subsídio para alocação de uma ampla fatia de recursos para as universidades do Reino Unido. Uma avaliação ruim resulta em menos dinheiro por um longo período. “Com base no RAE, universidades podem decidir fechar determinados departamentos que se saíram mal na avaliação, como, aliás, ocorreu com o primeiro RAE”, diz Lea Velho, professora do Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “As consequências para os departamentos que se saíram mal na avaliação são reais”, afirma. Embora ambos os modelos levem em conta dados quantitativos e avaliação por pares, as

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metodologias adotadas pela Capes e pelo Hef ce britânico guardam poucas semelhanças. O RAE avalia a qualidade de apenas parte da produção acadêmica das universidades, aquela que, por decisão de cada departamento, é julgada mais relevante. Cada pesquisador pode declarar no máximo quatro linhas de investigação em que tenha se envolvido no período. Já no modelo da Capes, os programas de mestrado e doutorado stricto sensu devem declarar anualmente um espectro amplo de informações relacionadas à produção científica de professores e estudantes, à formação do corpo docente e à qualidade da formação dos alunos – e esse conjunto de dados subsidia a avaliação trienal. No exemplo britânico, o peer review é a tônica. Os revisores têm a obrigação de ler os trabalhos científicos destacados por cada departamento para formarem sua opinião. Em casos excepcionais, permite-se que alguns comitês abstenham-se de analisar em detalhes um determinado trabalho, desde que possam basear sua análise em revisões já feitas por outros especialistas, não em dados bibliométricos. O capítulo dos critérios de avaliação diz textualmente que “nenhum painel usará fatores de impacto de publicações como medida substituta de avaliação de qualidade”. A análise é feita com base em três elementos. O primeiro são os resultados da pesquisa acadêmica, na forma de artigos, livros, relatórios técnicos, patentes, entre outros. O segundo é o ambiente de pesquisa e se baseia em dados como o número de bolsas, o volume de recursos obtidos ou apoio institucional à pesquisa. O terceiro são indicadores de prestígio – no máximo quatro para cada pesquisador – como prêmios e distinções obtidas, organização de congressos, participação no comitê editorial de publicações científicas, entre outros. Cada comitê julga a qualidade desse conjunto de dados e a composição dos resultados dos três elementos confere o perfil geral de qualidade, que pode ter cinco classificações: 0 (abaixo dos padrões nacionais); 1 (reconhecido nacionalmente); 2 (reconhecido internacionalmente); 3 (de excelência internacional); e 4 (com pesquisa de ponta em nível mundial). Essa metodologia substituiu a de RAEs anteriores, que somavam pontos

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STFC

obtidos em diversos quesitos. “O objetivo é evitar que se repitam distorções na distribuição de fundos, com um departamento avaliado com menção 5* recebendo muito mais verbas do que outro avaliado com 5, embora as diferenças entre ambos não sejam grandes”, disse Ed Hughes. No caso da Capes, os critérios bibliométricos têm um peso grande, ainda que a avaliação esteja a cargo de comitês de especialistas. As principais revistas científicas foram cadastradas pela agência de acordo com sua qualidade (leia-se: fator de impacto) e o alcance da circulação (local, nacional e internacional). Esse sistema, chamado Qualis, serve para avaliar os artigos científicos dos pesquisadores e fundamenta uma parte significativa do processo de avaliação, sobretudo em áreas cuja produção acadêmica se expressa em artigos publicados em revistas. Dessa forma, uma produção modesta, mas divulgada em publicações de alto impacto, ganha mais peso nas fórmulas adotadas pelos comitês de avaliação do que uma produção mais vasta divulgada em periódicos com fator de impacto restrito. Os dados coletados são submetidos aos comitês de área e cada um deles utiliza critérios específicos para analisar as informações. Os programas são avaliados com notas de 1 a 5. Esse trabalho produz planilhas, comuns a todos os programas, que buscam dar transparência e exigem que os comitês levem em conta uma série padronizada de informações como contingente de docentes, o número de teses e dissertações defendidas, artigos publicados em periódicos científicos nacionais e internacionais, trabalhos publicados em anais de eventos nacionais e internacionais, livros e capítulos de livros. Mas uma análise qualitativa pode ser requerida em tópicos como, por exemplo, a avaliação de livros ou capítulos de livros, mais comuns na produção das ciências humanas, dada a ausência de indicadores capazes de avaliar sua qualidade. Os programas de doutorado que obtiverem nota máxima (5) podem ser submetidos a uma segunda etapa de avaliação, essa de caráter mais qualitativo. Eles podem ser reavaliados com menção 6 ou 7 a depender de indicadores como a capacidade de nuclear grupos de pesquisa ou a sua inserção internacional, mensurada por critérios como a existência de convênios internacionais, a presença de professores visitantes de universidades estrangeiras reputadas como de primeira linha, o intercâmbio de alunos com universidades estrangeiras, a participação de docentes em comitês e diretorias de associações internacionais, entre outros.

A escolha dos avaliadores segue formatos diferentes nos dois modelos. No caso do RAE 2008, houve uma disputa pelo preenchimento das vagas de membros e chefes dos painéis e subpainéis. Eles foram escolhidos por representantes das agências de financiamento com base em 4.948 indicações feitas por 1.371 instituições e sociedades científicas (as universidades não podem indicar membros). Na Capes, os coordenadores dos comitês, que são escolhidos pela instituição, têm certa liberdade para sugerir com quem vão trabalhar, respeitando critérios de competência na área. Os nomes, de todo modo, precisam ser aprovados pela diretoria de avaliação da agência. A última avaliação trienal envolveu cerca de 700 revisores. Há a exigência de que pelo menos 50% dos membros de cada comitê sejam substituídos a cada três anos. Citações - O RAE 2008 será a última avaliação britânica a seguir esse modelo. Para reduzir custos e dar mais agilidade à avaliação, o governo do Reino Unido decidiu lançar um novo sistema, o Research Excellence Framework (REF), que, embora não abandone a avaliação por pares, fará grande uso de indicadores bibliométricos, como o número de citações das publicações feitas pelos cientistas. “Os elementos que serão usados e o equilíbrio entre eles irão variar de acordo com as características de cada campo do conhecimento”, afirmou Ed Hughes. O Hefce está fazendo um estudo-piloto, envolvendo 22 áreas do conhecimento, para comparar os resultados do RAE 2008 com o que será a metodologia do REF. A mudança divide a comunidade científica britânica, sobretudo porque ainda não há clareza sobre os métodos a serem adotados. “Tomadas de forma isolada, citações têm se mostrado repetidamente uma medida pobre da qualidade da pesquisa”, disse a revista Nature em editorial sobre as mudanças na edição de 1º de janeiro. A publicação cita um estudo de 1998 que comparou os resultados de duas análises de um conjunto de artigos sobre física, uma usando métricas como citações e outra baseada em peer review. As divergências atingiram 25% dos artigos analisados. “Os formuladores de políticas não têm outra opção a não ser reconhecer que a revisão de especialistas tem um papel indispensável na avaliação”, disse a Nature. Num relatório apresentado em 2003 ao Hefce, os pesquisadores Nick von Tunzelman, da Universidade de Sussex, e Erika Kraemer-Mbula, da Universidade de Brighton, informavam que, apesar das críticas ao sistema de avaliação por pares britânico, raros países adotaram sistemas quantitativos puros para avaliar a pesquisa e, onde isso ocorreu, caso da região de Flandres, na Bélgica, foi cercado de controvérsias. A questão, segundo Ed Hughes, é encontrar um ponto de equilíbrio. “O novo sistema manterá elementos da avaliação por pares, mas precisamos encontrar meios de fazer um sistema de avaliação mais simples e mais eficiente sem perder o valor obtido pelos processos rigorosos usados nos RAE”, afirmou. ■ PESQUISA FAPESP 156 FEVEREIRO DE 2009 ■

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CIENCIOMETRIA

Leve-me ao seu líder Método criado por professor da Unesp movimenta o debate sobre avaliação da produção acadêmica

O

físico George Matsas, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), desenvolveu um método original de identificar líderes científicos e avaliar sua influência, além de medir o vigor de comunidades acadêmicas. Trata-se do Fator de Impacto Normalizado (NIF - Normalized Impact Factor), uma equação aplicável a membros de qualquer comunidade científica cuja produção seja medida em artigos publicados em revistas internacionais indexadas, como acontece com as hard sciences. O NIF é baseado numa ideia simples: o índice pondera as citações que um pesquisador faz em seus artigos com o número de vezes em que é citado em artigos alheios. Quem mais recebe do que faz citações tem NIF maior do que 1 e pode ser considerado um líder, pois exerce mais influência sobre os demais membros de sua comunidade do que é influenciado por eles. Já um NIF menor do que 1 é próprio do perfil de um liderado – sua influência ainda não é suficiente para que receba mais citações do que as que produz. “O índice, a meu ver, captura a essência do que é ser um líder”, afirma Matsas, que é professor do Instituto de Física Teórica da Unesp e integra a coordenação da área de física tanto da FAPESP quanto do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O índice foi apresentado à comunidade científica por meio do artigo “What are scientific leaders? The introduction of a normalized impact factor”, que está disponível na rede de serviços arXiv.org, um portal com pré-prints (pré-publicações) de diversos campos da física, matemática, ciências não lineares, ciência da computação e biologia quantitativa. Submetido à

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revista Scientometrics, referência em cienciometria, a disciplina que busca gerar informações para estimular a superação dos desafios da ciência, o texto ainda está em processo de análise. Mas teve boa repercussão entre especialistas e ajudou a alimentar o eterno debate sobre a forma mais fidedigna de avaliar a produção acadêmica. Para Rogério Meneghini, especialista em cienciometria e diretor científico da biblioteca eletrônica SciELO (Scientific Electronic Library Online), a proposta de Matsas é inovadora e tem potencial para ser utilizada. Segundo ele, o índice NIF em geral significa uma melhoria em relação ao chamado índice h, método proposto pelo físico Jorge Hirsch, da Universidade da Califórnia, em San Diego, em 2005, que ganhou larga utilização entre pesquisadores do mundo inteiro. “Com a popularização do índice h, vários pesquisadores vêm sugerindo formas de aperfeiçoá-lo ou evitar suas distorções”, diz Meneghini. “A proposta de Matsas, de certa forma, se integra a esse esforço.” Fácil de calcular, o índice h combina produtividade e impacto e é definido como o número “h” de trabalhos que têm pelo menos o número “h” de citações cada um. Trocando em miúdos: um pesquisador com índice h 30 é aquele que publicou 30 artigos científicos que receberam, cada um deles, ao menos 30 citações em outros trabalhos. A ponderação exclui trabalhos menos citados e também evita que as citações num único artigo de um autor contamine a contagem geral. Assim, dá a medida do tamanho e do impacto da produção acadêmica de um pesquisador. Uma das vantagens do NIF é que, ao contrário do índice h, ele é pouco influenciado pela autocitação. Um pesquisador que, ao escrever um artigo, cite vários

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ILUSTRAÇÕES MARCOS GARUTI

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de seus artigos anteriores consegue facilmente elevar seu índice h, sem que isso necessariamente o qualifique como liderança científica. O NIF possui um antídoto contra esse expediente, pois as autocitações seriam computadas ao mesmo tempo no numerador, como citação recebida, e no denominador, como citação feita, minimizando sua influência. Edgar Dutra Zanotto, professor do Departamento de Engenharia de Materiais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), também elogia a proposta de Matsas. “Creio que vai na direção certa. É valor universal e robusto, que consegue distinguir os líderes dos não líderes”, afirma Zanotto, que há dois anos propôs um outro método para identificar lideranças acadêmicas, publicado na revista Scientometrics, calcado no somatório de fatores objetivos, como publicações e citações em revistas indexadas, e fatores qualitativos, como a capacidade de captar recursos, o fato de trabalhar em centros de renome internacional ou conquistas de prêmios importantes (ver Pesquisa FAPESP nº 124). Ponderação - Para Zanotto, a principal

qualidade do NIF é que ele fornece um valor de referência padrão para várias comunidades científicas, independentemente das tradições e dos costumes de cada uma delas. “Cada área do conhecimento tem um número de citações peculiar. Se um artigo na área de matemática cita seis outros artigos, um de bioquímica chega a citar 30 ou 40. Isso não interfere no NIF, pois a ponderação sempre vai basear-se num valor de referência igual a 1”, afirma o professor da UFSCar. Já o índice h é influenciado por essa distorção: líderes de áreas diferentes têm índices h em patamares distintos e não podem ser comparados. “Isso não quer dizer que a comunidade de matemática não tenha seus líderes, ou que os bioquímicos sejam em média mais competentes do que seus outros colegas”, explica George Matsas. Para validar a metodologia, o pesquisador da Unesp examinou, no banco de dados científico ISI Web of Science, 223 físicos selecionados a partir de uma lista de 531 indivíduos reconhecidos em 2008 como outstanding referees pela Sociedade Americana de Física (APS). 34

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Dos 223 pesquisadores analisados, 31% deles foram considerados líderes e 69% seguidores, uma vez que o NIF destes foi menor que 1. O conceito de NIF, é certo, também tem limitações. O método não é aplicável às ciências humanas, cuja produção acadêmica se expressa não majoritariamente em revistas indexadas internacionalmente, mas em livros ou capítulos de livros, para citar dois exemplos. E o método só produz resultados confiáveis em pesquisadores seniores, uma vez que pesquisadores em início de carreira têm o NIF influenciado pela produção acadêmica de seus orientadores ou superiores, com quem assinam os artigos. Matsas admite que, se o método fosse adotado pela comunidade científica, poderia modificar comportamentos de pesquisadores interessados em elevar seu NIF, a exemplo do que aconteceu com o índice h. “Um modo de evitar que o NIF baixe seria procurar não fazer citações de outros artigos. Mas isso teria um limite. Um editor de revista acadêmica não aceitaria um artigo que deixasse de fazer citações indispensáveis”, afirma o professor da Unesp. Um aspecto positivo, segundo ele, é que dificilmente um pesquisador faria citações desnecessárias, aquelas que costumam ser feitas apenas para granjear simpatia de seus pares. O criador do método ressalta que a intenção de seu método não é fazer julgamentos individuais, mas avaliar o vigor de comunidades científicas a fim de ajustar políticas científicas. “Se formos aplicar o método a comunidades brasileiras, provavelmente descobriremos que o número de líderes não é tão grande quanto o aumento vigoroso da produção acadêmica faria supor”, diz. Mas esse tipo de referência ajudaria os formuladores de políticas a favorecer a formação de líderes. “Precisamos de mais líderes. Queremos que estrangeiros venham trabalhar em projetos de brasileiros. O Brasil tem passado por etapas positivas. A ciência nacional tem vigor cada vez maior. Mas falta um passo derradeiro: precisamos de políticas que criem mais chances de que a pesquisa brasileira seja protagonista no cenário internacional.” ■

Fabrício Marques

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PARCERIA

Avanço conjunto

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gico (CNPq) que também envolve pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Ridesa (Rede Interuniversitária para Desenvolvimento do Setor Sucroalcooleiro). A parceria entre os pesquisadores de São Paulo e de Minas Gerais deverá ajudar na interpretação dos dados do sequenciamento completo dos genes da cana-de-açúcar, um programa em andamento que envolve grupos de pesquisa do Brasil, da França, dos Estados Unidos e da Austrália. Outro projeto aprovado busca compreender como ocorre o processo de defesa da cana-de-açúcar quando ela sofre estresse por falta de água, o que gera queda de produtividade. “Já existem estudos que indicam as estratégias usadas. Algumas plantas enrolam folhas, outras modificam a arquitetura das raízes. Mas a base molecular desse processo é pouco conhecida”, disse Marcelo Menossi Teixeira, professor do Instituto de Biologia da Unicamp, que lidera o projeto em parceria com Marcelo Ehlers Loureiro, do Centro de Ciências Biológicas e da Saúde da UFV. “Vamos tentar estudar genes reguladores que podem estar ligados à resposta da planta ao estresse hídrico.” Serão estudadas quatro variedades de cana – duas delas tolerantes à seca e as outras duas sensíveis à escassez de água. Os pesquisadores de Minas Gerais farão estudos fisiológicos, enquanto os

de Campinas atuarão no campo da genética. “Cada um trabalhará dentro da sua expertise, mas o projeto também servirá para intercâmbio de experiências, como a capacitação de alunos de um grupo na especialidade do outro”, diz Menossi Teixeira. A chamada FAPESP-Fapemig tem dois cronogramas. As duas parcerias contempladas submeteram seus projetos até 1º de setembro de 2008. Outros projetos estão sendo avaliados, pois o edital previa a apresentação de uma segunda rodada de projetos até 10 de novembro. As duas fundações disponibilizaram R$ 5 milhões para o convênio, divididos em partes iguais entre elas. ■

Fabrício Marques EDUARDO CESAR

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ois projetos de pesquisa envolvendo as universidades de São Paulo (USP), Estadual de Campinas (Unicamp) e Federal de Viçosa (UFV) foram contemplados num convênio entre as fundações de amparo à pesquisa de São Paulo (FAPESP) e de Minas Gerais (Fapemig) que integra o Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen), um grande esforço de investigação voltado para aprimorar a produtividade do etanol brasileiro e avançar tanto em ciência básica quanto em desenvolvimento tecnológico relacionados à geração de energia a partir de biomassa (ver Pesquisa FAPESP nº 149). Os grupos trabalharão nos próximos dois anos numa nova etapa do sequenciamento genético da cana-de-açúcar e na compreensão dos mecanismos de defesa da cana à escassez de água. Um dos projetos envolve parceria entre a USP e a UFV. Glaucia Mendes Souza, do Instituto de Química da USP, e Márcio Henrique Pereira Barbosa, do Centro de Ciências Agrárias da UFV, lideram a iniciativa, que irá refazer com a tecnologia disponível atualmente o Projeto Genoma Cana-de-Açúcar (SucEST), da FAPESP. O projeto foi realizado entre 1999 e 2003 e registrou 238 mil etiquetas de sequências expressas (ESTs), segmentos que correspondem ao genoma expresso de uma variedade de cana. “O trabalho do SucEST pode ser refeito hoje em apenas dois dias, graças ao pirossequenciador 454 de que dispomos na USP”, disse Glaucia, referindo-se a um equipamento que permite sequenciar genomas de organismos diversos de uma maneira mais rápida e barata. “E dessa vez serão sequenciadas três variedades de cana”, afirma. Glaucia e Marcio Barbosa já trabalhavam juntos desde 2007, num projeto financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnoló-

Convênio FAPESP-Fapemig aprova primeiros projetos de pesquisa sobre etanol

Tolerância à seca e sequenciamento: alvos de pesquisa

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A NOITE ESTRELADA SOBRE O RENO, VINCENT VAN GOGH, 1888, MUSEU D’ORSAY


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DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA

O céu é aqui

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m 2009, um contingente estimado em dez milhões de pessoas no mundo inteiro – sendo um milhão só no Brasil – será convidado a olhar para o céu. Não com aquela afobação de quem quer saber se vai chover ou se o dia está mais poluído do que o habitual, mas sim para refletir sobre as coisas que existem entre a Terra e o espaço sideral – e que inspiraram gerações de seres humanos a empurrar as fronteiras do conhecimento. Trata-se da programação do Ano Internacional da Astronomia (AIA 2009), proclamado pela Organização das Nações Unidas (ONU), que reunirá nos próximos meses milhares de eventos em 136 países. O megaevento foi aberto oficialmente no dia 15 de janeiro numa cerimônia na sede da Unesco em Paris. A extensa programação internacional da abertura incluiu debates sobre o papel da astronomia na sociedade, apresentações sobre os principais momentos da astronomia moderna, observações em tempo real e videoconferências ao vivo envolvendo alguns dos principais observatórios do planeta – como a Estação do Polo Sul e o VLT (Very Large Telescope), localizado em Cerro Paranal, no Chile. No Brasil, o megaevento foi inaugurado numa solenidade no Planetário do Rio de Janeiro, que abriu suas portas gratuitamente durante quatro dias. A Escola de Samba Unidos da Tijuca, que levará à avenida o enredo “Uma odisseia sobre o espaço”, apresentou-se na cerimônia de abertura. Já a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) colocou telescópios em diversas praças da cidade, tanto na região central como na periferia. Outro destaque foi a reabertura do Observatório Astronômico do Museu de História Natural e Jardim Botânico da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), desativado desde a década de 1980. A programação vai espalhar-se por todos os estados brasileiros. Haverá observação do céu por meio de telescópios em locais públicos, palestras, exposições e shows de planetários, entre outros. Distribuída por 210 pontos do país, a organização está a cargo de três mil voluntários, entre astrônomos amadores, pesquisadores, professores de escolas e estudantes. A programação do evento está disponível no endereço eletrônico www.astronomia2009.org.br.

Um milhão de brasileiros deve participar da programação de eventos do Ano Internacional da Astronomia

Iniciativa da União Astronômica Mundial, o AIA 2009 comemora os quatro séculos desde as primeiras observações telescópicas do céu feitas por Galileu Galilei (1564-1642), em que foram vistos as manchas solares, as montanhas da Lua, quatro dos satélites de Júpiter, os anéis de Saturno e as estrelas da Via Láctea. Para o coordenador nacional do evento, Augusto Damineli, o Ano Internacional é uma oportunidade de aproximar a população da astronomia e reforçar a mentalidade e a educação científica dos jovens. “A astronomia tem um apelo maior entre os leigos do que outros campos do conhecimento. A observação do céu poderá ajudar a difundir a importância dos métodos da ciência, estimulando a formação de cidadãos com pensamento crítico”, diz Damineli, que é professor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP). Ele também espera que o AIA 2009 ajude a eliminar a defasagem de meio milênio na forma como a sociedade vê a astronomia. “A ideia cristalizada durante milênios de que o céu e a Terra são coisas separadas está superada há 500 anos. Mas as pessoas ainda mantêm uma imagem mental de que o céu é uma quintessência inacessível e a Terra é um vale de lágrimas, talvez porque a gravidade esteja sempre nos puxando para baixo. Para ajudar a confundir, PESQUISA FAPESP 156

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a palavra céu tem dois significados: um científico e outro religioso. Na verdade, o céu é aqui. Todos os átomos que nos rodeiam vieram de tipos diferentes de estrelas e surgiram em épocas diferentes do Universo. O grande desafio é levar o público a restabelecer essas ligações cósmicas, compreendendo que nós estamos, de fato, no céu”, disse. Fascínio - Para Damineli, o grande

objetivo do evento é permitir que as novas gerações resgatem ou pelo menos percebam o fascínio pelos astros que moldou a vida dos seres humanos e propiciou seguidos saltos da ciência – a astronomia deu origem a campos inteiros da física e da matemática, por exemplo. Ele lembra que a compreensão dos ciclos climáticos do planeta, que deu regularidade à produção agrícola, e o domínio de técnicas de localização, que propiciou as grandes navegações, tornaram-se possíveis graças ao aprendizado com a observação dos astros. O professor ressalta que a curiosidade intelectual foi o principal combustível dos precursores da astronomia, sem que houvesse uma lógica utilitarista a norteá-los. Ainda assim, o esforço para compreender o Cosmos teve um enorme impacto no cotidiano das pessoas. “A matemática ganhou o cálculo integral e diferencial quando Isaac Newton deduziu a força gravitacional da Lua. Nenhum engenheiro projeta pontes e edifícios sem recorrer a esse produto teórico da astronomia”, disse. Da mesma forma, a tecnologia que levou o homem à Lua estimulou a miniaturização dos computadores e as atividades de supervisão ambiental por satélites. Damineli menciona a espectroscopia – a análise da composição química dos astros – que tem hoje diversas aplicações. “O ato fundador de tudo isso se deu quando Newton colocou o prisma em um raio de luz e descobriu o espectro luminoso. De modo semelhante, a fotografia é herdeira do telescópio, quando se desejou registrar as imagens vistas através dele. Hoje é possível fotografar sem luz natural porque a sensibilidade fotográfica foi aperfeiçoada para atender ao uso dos astrônomos”, disse. Em 2007, Damineli assumiu a coordenação brasileira do AIA 2009 e saiu em busca de parceiros. Conversou com professores, pesquisadores, res38

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A observação do céu pode ajudar a difundir os métodos da ciência e estimular o pensamento crítico dos jovens

ponsáveis por planetários e museus de ciências, mas ficou especialmente surpreso com a adesão dos astrônomos amadores, que se dispuseram a emprestar equipamentos e a organizar eventos em locais públicos e escolas. “A proposta inicial era atingir algumas centenas de milhares de pessoas, mas os astrônomos amadores propuseram fazer com que um milhão de brasileiros vissem o que Galileu observou e garantiram que essa meta é possível”, diz Damineli. A princípio, o professor do IAG imaginava que pouco mais de 30 clubes de astrônomos amadores estariam ativos. O representante da Rede de Astronomia Observacional (REA), Tasso Napoleão, começou a cadastrálos e constatou que 125 grupos queriam participar. “É um número equivalente ao dos grupos da Inglaterra ou da França. Eles foram fundamentais para montar a programação. São médicos, engenheiros e outros profissionais que gostam de observar o céu por curiosidade e têm um enorme prazer em fazer isso”, afirma o professor. “Eles são mais disponíveis para a população do que os pesquisadores”, diz. A participação do governo brasileiro também foi importante. A diplomacia do país teve papel de destaque, ao lado de países como França e Itália, para

convencer primeiro a Unesco, braço das Nações Unidas para Educação Ciência e Cultura, e depois a ONU a proclamarem 2009 como Ano Internacional da Astronomia. “O então embaixador brasileiro na ONU, Ronaldo Sardenberg, que já foi ministro da Ciência e Tecnologia, percebeu a importância e engajou-se em superar resistências e angariar apoios de outros países”, diz Damineli. Segundo ele, alguns países, como a Inglaterra, costumam se opor sistematicamente à proclamação de anos internacionais temáticos, por acreditarem que eles não têm serventia. “Nossos representantes conseguiram convencer os outros países ao mostrar que, se o Ano Internacional não era importante para eles, era importante para a astronomia e para a divulgação da ciência”, afirma o professor do IAG. Recentemente houve ajuda oficial também em dinheiro. Em outubro do ano passado, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) lançou um edital de R$ 2 milhões para compra e manutenção de equipamentos, serviços, passagens e diárias. “O número de propostas superou bastante as expectativas e elas totalizaram pedidos de R$ 16 milhões”, diz Damineli. Uma novidade no edital é que parte do dinheiro podia ser disputada por profissionais sem nível de doutorado, ainda que fosse exigida experiência em astronomia. Foi uma forma de atrair os astrônomos amadores e professores de escolas. O Ministério da Educação dispôs-se a comprar e distribuir em escolas 50 mil lunetas com tecnologia semelhante à usada por Galileu, mas dificuldades burocráticas ainda não viabilizaram a compra. Uma preocupação de Damineli é evitar a dispersão dos grupos depois que o ano terminar. “Nosso desafio será criar uma rede permanente de divulgação científica”, diz o professor. Uma das ferramentas previstas para manter a rede funcionando será a criação de um endereço na internet, o Portal to the Universe, organizado pela União Astronômica Internacional, que reunirá uma enorme variedade de materiais em formato digital e servirá para manter a coesão da rede de participantes do Ano Internacional da Astronomia. ■

Fabrício Marques

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AMBIENTE

O fator humano Instituto vai mensurar os prejuízos financeiros ligados à saúde de diferentes tipos de poluição atmosférica

com base em pesquisas científicas capazes de mostrar quem está produzindo e quem está recebendo a poluição e quais são os efeitos e o custo disso”, afirma o professor. A rede liderada por Saldiva é um dos 101 Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCT), criados em 2008 pelo governo federal, e contará com R$ 7,2 milhões do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da FAPESP, que cofinancia todos os 35 INCTs do estado de São Paulo. Cliente - Alguns dos pesquisadores da

rede já trabalham juntos há um certo tempo com o apoio de órgãos como o CNPq e a FAPESP, além de parcerias com entidades internacionais como as universidades Harvard e de Toronto. Com o status de INCT, a produção deverá dar um salto, segundo Saldiva. “A USP já é hoje uma das cinco primeiras instituições do mundo em produção acadêmica nos campos da saúde am-

biental e toxicologia ambiental. Com a expansão de nossas atividades, vamos subir ainda mais nesse ranking”, afirma Saldiva. O pesquisador ressalva que as atividades do instituto não se estenderão ao setor privado. “Nosso cliente é a comunidade e a nossa produção será medida em papers.” As pesquisas irão analisar três cenários da poluição: a urbana, a causada pela agroindústria e a resultante dos biocombustíveis. Entre os estudos em andamento, há o monitoramento de 400 gestantes submetidas a graus diferentes de poluição atmosférica, que serão acompanhadas até que seus filhos tenham 3 anos de idade; o desenvolvimento de um concentrador de poluentes para monitorar a resposta de animais de laboratório aos efeitos de diferentes tipos de combustíveis; e a criação de métodos alternativos e baratos de medir a poluição e seus efeitos. ■

Fabrício Marques EDUARDO CESAR

U

ma rede de 130 pesquisadores espalhados por seis unidades da federação vai dedicar-se nos próximos dois anos a contabilizar os prejuízos financeiros causados pela poluição atmosférica. Sediado na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), o Instituto Nacional de Análise Integrada do Risco Ambiental promete produzir um vigoroso conjunto de pesquisas científicas sobre o impacto do uso de combustíveis na saúde humana. “As políticas ambientais se preocupam primordialmente em preservar a flora, a fauna ou os recursos hídricos. O ser humano é visto como apenas agressor. Acontece que ele também é um receptor e a saúde humana não faz parte da discussão das questões ambientais”, diz Paulo Hilário Saldiva, professor-titular do Departamento de Patologia da FMUSP e coordenador do instituto. “Nossa intenção é fornecer subsídios para que o custo à saúde humana seja computado na gestão ambiental. E que esse valor seja levado em conta pelas empresas e pelos formuladores de políticas públicas”, afirma. Saldiva dá um exemplo: a decisão de adiar no país a utilização de óleo diesel com um menor teor de enxofre foi tomada com base no impacto econômico que a mudança causaria à indústria automobilística e petrolífera, mas em nenhum momento se avaliou o prejuízo à saúde humana de se manter por mais alguns anos o diesel poluente. Da mesma forma, diz o professor, sabe-se que o custo da poluição dos automóveis na Região Metropolitana de São Paulo chega a R$ 1,5 bilhão anuais, mas esse valor não é levado em conta pelas políticas públicas de transporte e as vinculadas à produção de automóveis. “É esse tipo de informação que vamos oferecer,

Suscipsusto exeu feum inut nulput veliqui corba feumdainut ersit nulput O ar ersit poluído de São Paulo: custos agressão à saúde

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LABORATÓRIO MUNDO

tempo Se fosse possível voltar o filme da vida para trás e começar outra vez, será que a evolução se daria da mesma maneira? A essa pergunta, popularizada pelo evolucionista norte-americano Stephen Jay Gould, pesquisadores costumam responder que não. Mas talvez sim – pelo menos às vezes –, segundo mostra o experimento liderado pelo geneticista Henrique Teotónio, do Instituto 40

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Gulbenkian de Ciências, em Portugal, detalhado na edição de janeiro da Nature Genetics. No que consideram ser o experimento evolutivo mais abrangente com uma espécie de reprodução sexuada, os pesquisadores submeteram moscas-das-frutas (Drosophila melanogaster) a duas décadas de seleção natural em três ambientes distintos que favoreceram a sobrevivência e a reprodução de moscas que se reproduziam mais precocemente, mais no fim da vida ou que eram mais

VI a.C

> Óleo de peixe para o cérebro Bebês que nascem prematuros – com menos de 33 semanas de gestação, em vez das 40 ideais – correm alto risco de desenvolver distúrbios mentais e de aprendizado decorrentes de prejuízos no desenvolvimento cerebral. Um estudo liderado pelos médicos Maria Makrides, do Instituto de Pesquisa em Saúde da Mulher e da Criança, e Robert Gibson, da Universidade de Adelaide, ambos na Austrália, mostrou que uma solução simples pode ajudar: cápsulas de óleo

EDUARDO CESAR

> Viagem no

versões de cada gene – os alelos. Além disso, o estudo suscita uma reflexão. Mesmo aparentemente idênticas à forma ancestral, as moscas readaptadas podem ser geneticamente diferentes. Como usar essa informação para definir biodiversidade?

REPRODUÇÃO DO LIVRO THE BRITISH MUSEUM, A-Z COMPANION

GUERRA QUÍMICA

O arqueólogo Simon James, da Universidade de Leicester, na Inglaterra, apresentou, durante um seminário internacional em janeiro, evidências do que teria sido a primeira guerra química da história – e razão da misteriosa morte de quase 20 soldados da Roma Antiga. Em escavações recentes na cidade de Dura-Europos, na atual Síria, James identiGuardas persas: imagem em relevo do século V ou ficou betume e cristais de enxofre próximos ao túnel em que os restos mortais resistentes à escassez de dos soldados romanos foram achados, nas décadas de 1920 e alimento. Em seguida, 1930, empilhados e ainda com suas armas. Para o arqueólogo inglês, os romanos morreram asfixiados por gases tóxicos o grupo de Teotónio pôs as drosófilas de volta no liberados pelo betume e pelo enxofre queimados pelos persas ambiente original por do Império Sassânida, que por volta do ano 256 iniciaram 50 gerações e verificou que uma feroz batalha para retomar a cidade dos romanos. Os elas se adaptaram: a sassânidas teriam instalado braseiros e foles sob a galeria e, evolução foi revertida. quando os soldados avançaram, acrescentado os compostos O material genético revelou químicos. “Os romanos ficaram inconscientes em segundos ainda que a adaptação não se e morreram em minutos”, disse. Aparentemente não foi com deu por meio de mutações, gases tóxicos e túneis que os persas venceram os romanos. A cidade só foi retomada pelos persas tempos mais tarde, de mas de alterações nas modo ainda desconhecido, e depois abandonada. frequências das diferentes

Drosófila: evolução às avessas

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> Os riscos de

Novas medidas tiram da Via Láctea, a galáxia que abriga o Sistema Solar, o posto de irmã menor da galáxia vizinha, Andrômeda. Medir a Via Láctea não é fácil por estarmos dentro dela, mas agora um mapa tridimensional mostra que ela tem 50% mais massa e gira a 915 mil quilômetros por hora, 15% mais depressa do que se supunha. Os resultados sugerem também que ela tenha quatro braços de gás e poeira que formam estrelas, em vez dos dois que aparecem Via Láctea: agora com mais braços nas ilustrações atuais. O trabalho foi apresentado por Mark Reid, do alcoólicas depois de receber Centro de Astrofísica Harvard-Smithsonian, nos Estados Unio prêmio. Talvez por isso dos, durante o congresso da Sociedade Astronômica Americana, no início de janeiro na Califórnia. As observações tamo bem-estar mental dessas pessoas tenha melhorado, bém indicam que, como o Sistema Solar está a 28 mil anos-luz mas não a saúde física. do centro da Via Láctea, ele avança a cerca de 966 mil quilômetros por hora em sua órbita galáctica, não 805 mil como E a saúde do bolso também se estimava até agora. Um alívio para quem sofre de complenão avançou muito, de xo de inferioridade cósmica, mas as notícias não são só boas. acordo com outro grupo, Ser maior também significa ser capaz de exercer maior atracoordenado pelo ção gravitacional, o que deixa a Via Láctea mais propensa a norte-americano Scott uma colisão com Andrômeda ou outras galáxias próximas – Hankins, da Universidade daqui a 2 bilhões ou 3 bilhões de anos. do Kentucky. A equipe de

Hankins comparou o risco de falência de quem ganhou prêmios modestos (menos de US$ 10 mil) com o dos que levaram prêmios mais vultosos (entre US$ 50 mil e US$ 150 mil). Nos dois

anos seguintes à premiação, a taxa de falência entre os mais sortudos foi menor que entre os que receberam menos. Mas aumentaram

em seguida. Ao fim de cinco anos, por volta de 5% dos que ganharam mais dinheiro estavam falidos (NewScientist).

LAURABEATRIZ

abusar da sorte Você acredita que todos os seus problemas estarão resolvidos se ganhar na loteria? Dois estudos recentes mostram que não é bem assim. Andrew Clark e Bénédicte Apouey, da Escola de Economia de Paris, na França, analisaram os dados de um levantamento britânico que incluiu cerca de 8 mil pessoas que haviam ganhado na loteria entre 1994 e 2005. Os sortudos tinham muito a festejar, e boa parte deles passou a consumir mais bebidas

MAIOR E MAIS RÁPIDA

NASA-JPL-CALTECH

de atum. O experimento, desenvolvido em cinco hospitais australianos, se baseou na descoberta de que os problemas vêm da carência de um lipídio chamado ácido docosahexanoico – da família dos ácidos graxos ômega-3, abundantes no óleo de peixe – nessa fase do desenvolvimento cerebral. O grupo testou 657 recém-nascidos, que receberam altas doses de óleo de atum pelo leite materno ou misturado à fórmula especial para bebês. Numa avaliação feita aos 18 meses de idade, as crianças que haviam consumido óleo de atum apresentaram risco 50% menor de sofrer prejuízo de desenvolvimento do que as não-tratadas, mostraram os resultados publicados em janeiro no Journal of the American Medical Association (JAMA). Resta um mistério, que os médicos ainda não sabem explicar: o efeito foi maior em meninas do que em meninos.

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LABORATÓRIO BRASIL

EDUARDO CESAR

> Diversidade em exposição

Às margens do Ipiranga: libélula descoberta nos anos 1930

empalhados, quadros com insetos que incluem uma diversidade esplêndida de formas e cores de borboletas, fotografias e vídeos, o público pode vislumbrar a riqueza da fauna e da flora brasileiras. As visitas acontecem de terça a domingo entre 10 e 17 horas. A equipe do museu preparou também uma mostra de filmes com temas ambientais, com sessões aos sábados e domingos.

Quem caminha pelas praias da Costa do PARAÍSO Dendê, ao sul da capital baiana, tem granMACULADO des chances de encontrar desde sacos de plástico até luzes de sinalização usadas por barcos. Um estudo encabeçado pelo oceanógrafo Isaac Santos, agora na Universidade Estadual da Flórida, nos Estados Unidos, analisou os detritos encontrados ao longo de cerca de 150 quilômetros dessas praias isoladas de áreas urbanas em busca de traçar estratégias para reduzir a poluição e os riscos que ela representa para animais e pessoas (Environmental Monitoring and Assessment). Fragmentos de sacos e outras embalagens de plástico, muitas vezes engolidos pelos animais, somaram quase metade do lixo encontrado, seguidos por outros tipos de plástico. O tipo de detritos recolhidos indica que até 80% do que chega às areias das praias é transportado pelos rios que banham as cidades do litoral. O resultado sugere que a melhor forma de combater o problema não é só limpar as praias, mas também conscientizar a população das cidades e evitar a poluição dos rios. 42

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> Uma nova via de comunicação Pesquisadores do Brasil, da Inglaterra e dos Estados Unidos identificaram uma nova via bioquímica que regula a proliferação celular e o desenvolvimento de tumores. Em camundongos portadores de um enxerto de tumor de próstata, eles descobriram que a proteína CRKL, em geral encontrada no interior das células dos

FABIANO BARRETTO

Moradas de rica diversidade biológica, as paisagens naturais brasileiras vêm perdendo território mais depressa do que os pesquisadores conseguem estudá-las. Em busca de chamar a atenção do público para esse problema, o Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo inaugurou em dezembro a exposição Crise da biodiversidade – A natureza ameaçada, aberta ao público até 17 de maio. “A desproporção entre o que se conhece e o que ainda resta a ser descoberto constitui um dos mais sérios entraves à formulação de medidas eficientes que ajudem a alcançar um nível aceitável de desenvolvimento sustentável”, escreve o zoólogo Hussam Zaher, curador da exposição, no site do museu. Entre animais

mamíferos, aparece também no meio extracelular, onde aciona a divisão das células vizinhas. É uma forma inusitada de controle da proliferação celular. Até então não se conheciam proteínas do sistema de comunicação intracelular ligadas ao câncer que atuassem na transmissão de sinais químicos entre células tumorais. Ainda não se sabe como a CRKL vai parar fora das células. Mas há duas hipóteses: a proteína é secretada pela célula viva ou liberada após a morte celular, sugerem os pesquisadores em artigo nos Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS). Coordenado por Wadih Arap e Renata Pasqualini, da Universidade do Texas, o trabalho contou com a participação de Marco Arap, da USP, e Ricardo Brentani, do Hospital A.C. Camargo.

À deriva: botijão de barco na praia

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CANTO SILENCIADO

oca de base quadrada já descrita, com apenas quatro átomos de prata. Essas estruturas devem se formar espontaneamente quando o nanofio é esticado como um chiclete sendo puxado, segundo Maureen Lagos e físicos da Unicamp e do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS). Esses arranjos atômicos mínimos podem ser uma forma de os nanofios absorverem a intensa deformação que os torna algo próximo a uma nanossanfona e permite que estiquem muito sem se quebrar, explica Daniel

> As raias de um antigo lago Catorze dentes pontiagudos encontrados na ilha do Cajual, no Maranhão,

revelaram uma nova espécie e um novo gênero de raia espadarte, Atlanticopristis equatorialis. Agostinha Pereira, do Centro de Pesquisa de História Natural

MANUEL ALFREDO MEDEIROS/UFMA

RENATA SOUSA-LIMA/UFMG

Entre julho e novembro, o Parque Nacional Marinho de Abrolhos, na costa sul da Bahia, é palco das atividades reprodutivas de cerca de 3 mil baleias-jubarte (Megaptera novaeangliae). Por elas passam barcos com turistas, que somam entre 4 mil e 5 mil pessoas por ano, sinal da curiosidade que esses enormes mamíferos aquáticos despertam. A bióloga Renata Sousa-Lima, agora na UniDança nupcial: machos de baleia-jubarte expõem a cauda ao cantar versidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e associada ao InstituUgarte, pesquisador da > Fios ocos e to Baleia Jubarte, mostra que a atividade pode ser nociva. Unicamp e do LNLS e quadrados Em parceria com o norte-americano Christopher Clark, da um dos coordenadores do Universidade Cornell, ela usou gravadores especializados em estudo, publicado na Nature Físicos de Campinas captar sons na água para monitorar as baleias. Os resultados, Nanotechnology em janeiro. encontraram um formato publicados em abril de 2008 na Canadian Acoustics e a sair em edição futura da Park Science, mostram que os machos “Esperamos que essas novo de nanofios: não encaram bem a competição com barcos quando cantam estruturas se formem quadrados e ocos. também em fios de cobre, Examinados por meio de para atrair as fêmeas. Entre nove machos monitorados, quatro que devem constituir os um microscópio eletrônico se afastaram e pararam de cantar com a aproximação de um condutores elétricos nos de resolução atômica, barco. Os outros cinco continuaram a cantar, mas também se nanocircuitos do futuro”, poderoso a ponto afastaram. A observação preocupa: é possível que a situação diz Ugarte. Caso se formem, de exibir os átomos em favoreça os machos mais destemidos que, habituados aos os nanoarames de cobre movimento, esses arames barcos, podem ficar mais sujeitos a acidentes. Estudos mais detalhados podem ajudar a definir um nível de tráfego que devem ganhar elasticidade ultraminúsculos exibem não atrapalhe a reprodução das baleias. e resistência. a menor estrutura atômica

Espécie nova: dentes da raia Atlanticopristis equatorialis

e Arqueologia do Maranhão, e Manuel Medeiros, da Universidade Federal do Maranhão, examinaram os dentes e concluíram que os animais, hoje representados por esses resquícios, viveram no Atlântico equatorial há 100 milhões de anos (Revista Brasileira de Paleontologia). Fragmentos mineralizados de dentes e ossos, incluindo de dinossauros, e restos de árvores indicam que ali viveram animais e plantas similares às que habitavam o norte da África.

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CIÊNCIA

GENÉTICA

Novas ramificações Brasileiros dominam técnica para transformar células adultas em embrionárias Maria Guimarães

ÁRVORE DA VIDA, GUSTAV KLIMT, 1905-1909/DETALHE DE ESBOÇO PARA O FRISO DA PAREDE DO PALÁCIO STOCLET, EM BRUXELAS

T

odos os anos a prestigiosa revista Science elege os grandes feitos científicos do ano. Na lista divulgada em dezembro de 2008 o destaque foi para a reprogramação celular, uma técnica que devolve características embrionárias a células adultas. Com essa transformação, uma célula de pele, por exemplo, se torna capaz de originar qualquer outro tecido do corpo – propriedade até agora restrita a células retiradas de embriões nos primeiros dias de desenvolvimento. As células reprogramadas são chamadas células-tronco pluripotentes induzidas (iPS, na sigla em inglês). A técnica inovadora, que idealmente reduzirá a necessidade de extrair células de embriões humanos, foi desenvolvida em 2007 pelo japonês Shinya Yamanaka, da Universidade de Kyoto. Menos de dois anos depois, dois grupos brasileiros anunciaram, no final de janeiro, também ter obtido sucesso nessa área. Um deles é o do neurocientista Stevens Rehen, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em colaboração com o biomédico Martin Bonamino, do Instituto Nacional do Câncer (Inca). O outro grupo, cuja pesquisa é coordenada pelo médico Dimas Tadeu Covas e financiada pela FAPESP, é do Hemocentro da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto: a bióloga Virginia Picanço, pós-doutoranda do Centro de Terapia Celular (CTC) – um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) bancados por esta fundação –, obteve as células em novembro e trabalha para reproduzir o próprio feito e aumentar seu estoque. Com isso, o Brasil se aproxima do grupo de países onde pesquisadores já usam a técnica. No Rio de Janeiro, Rehen e Bonamino, com ajuda dos pós-graduandos Bruna Paulsen, da UFRJ, e Leonardo Chicaybam, do Inca, reprogramaram células renais de uma linhagem que já faz parte do equipamento básico de muitos laboratórios mundo afora. Festejaram o sucesso ao obter agrupamentos celulares com os três folhetos embrionários – endoderma,

mesoderma e ectoderma – que originam todos os tecidos do organismo. Era sinal de que tinham obtido células pluripotentes. O grupo também reprogramou células da pele (fibroblastos) de camundongos, modelo importante na pesquisa médica. Antes mesmo de completar os testes para obter células especializadas e testar seu funcionamento, o grupo optou por divulgar os resultados à comunidade científica brasileira. O anúncio foi feito discretamente em 22 de janeiro no site do Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias (Lance), vinculado ao Ministério da Saúde. Ali está a receita para que outros grupos de pesquisa possam produzir suas próprias linhagens de iPS (www.anato.ufrj.br/ips). Dois dias depois, a notícia se espalhou com a reportagem publicada pelo jornal O Estado de S.Paulo. Os pesquisadores do Rio, que tiveram apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), do Inca e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), reprogramaram células renais usando vírus como cavalos-de-troia, para inserir nas células renais quatro fragmentos de DNA capazes de ativar genes normalmente funcionais em células embrionárias. Aí entrou a equipe de Bonamino, especialista em produzir os vetores capazes de provocar alterações genéticas em células. O grupo do Inca usa células, conhecidas como células empacotadoras, como fábricas de vírus sob medida: além de carregarem um gene a mais, esses vírus não têm a parte do material genético que lhes permite se reproduzir e atacar as células. “O vírus que construímos é como um carro que leva o gene até a célula. Ali ele é desmontado, mas, como não leva consigo as instruções de montagem, não consegue se replicar”, explica Bonamino. Virginia Picanço, do CTC, usou a mesma técnica, mas inseriu seis genes nas células, em vez de quatro. Ela mesma construiu os vírus, inoculou fibroblastos humanos e esperou que aparecessem alterações nas PESQUISA FAPESP 156

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células. Depois de 11 dias, com ajuda da geneticista Lygia da Veiga Pereira, da USP, confirmou que os fibroblastos passaram a funcionar geneticamente como células embrionárias. Um problema desse método é que os vírus podem inserir genes em qualquer região do DNA, em muitos casos prejudicando a ação de genes fundamentais para as células como os supressores de tumor. Pesquisas anteriores já haviam mostrado que animais gerados a partir de células reprogramadas têm 20% mais chances de desenvolver tumores. Outro aspecto essencial é o número de vírus que infectam cada célula, que deve ser suficiente para que algumas cópias de cada um dos genes sejam inseridas em cada célula. Mesmo usando uma substância que acelera a reprogramação – o ácido valproico –, Bruna Paulsen conta que as 30 mil células humanas usadas na pesquisa renderam apenas dez colônias de iPS. O processo foi ainda menos eficiente para os camundongos: 250 mil células geraram 48 colônias de células induzidas.

“Queríamos mostrar que conseguimos fazer o feijão com arroz de maneira eficaz”, conta Rehen. Antes de usar essas células em pesquisa clínica, no entanto, será preciso verificar que podem gerar células especializadas normais. Além disso, os protocolos usados no Rio de Janeiro e em Ribeirão Preto só devem funcionar para fibroblastos e células renais. Provavelmente será preciso fazer ajustes na receita para manipular outros tipos de célula. O cardiologista José Eduardo Krieger, do Instituto do Coração (InCor) da USP, tenta aplicar o tal feijão com arroz às células de gordura humana e a outras linhagens com que trabalha, mas ainda não obteve resultados. Para crescer - Bonamino planeja usar

outros tipos de vetores virais que possam ser controlados – por exemplo, com um mecanismo que permita aos pesquisadores ligar e desligar genes. “Estamos em busca de maneiras mais eficientes, fáceis e seguras de manipular as células”, resume. Ele não é o único. Os biólogos Eugenia Constanzi-Strauss, do Instituto de Ciências Biomédicas da

USP, e Bryan Strauss, do InCor, em parceria com Lygia Pereira e Mayana Zatz, da USP, pretendem inserir os mesmos quatro genes usados no Rio em um tipo de vírus que transporta genes sem integrar seu próprio genoma ao da célula manipulada. São os adenovírus, que já são usados nos Estados Unidos para esse fim. Rehen também pretende comparar o desempenho das iPS com o de células-tronco embrionárias, para ver se de fato funcionam da mesma maneira. “A pesquisa com células embrionárias está muito mais avançada. É certamente daí que vão surgir os primeiros resultados importantes e as primeiras promessas para terapias”, prevê. Para o médico Dimas Tadeu Covas, diretor do Hemocentro de Ribeirão Preto, isso não deve servir como argumento para deixar de lado o estudo de alternativas. Ele afirma que é preciso investigar em paralelo as células-tronco embrionárias, adultas e reprogramadas. “A reprogramação é o assunto do momento, mas não sabemos ainda qual tipo de célula é mais eficiente para cada linha de pesquisa”, comenta.

O primeiro estudo clínico em humanos Terapia baseada em células-tronco embrionárias será testada em pacientes nos EUA Numa decisão histórica, uma empresa da Califórnia, a Geron Corporation, recebeu autorização da Food and Drug Administration (FDA), órgão que regula o uso de remédios e a venda de alimentos nos Estados Unidos, para testar em pessoas uma terapia baseada em células-tronco embrionárias humanas. A companhia vai injetar essas células em até dez pacientes com paralisia causada por graves lesões na medula espinhal e analisar a segurança e os possíveis efeitos do procedimento. É a primeira vez que uma terapia com esse tipo de célula recebe sinal verde para ser usada em humanos. “A decisão marca o início do que é potencialmente um novo capítulo na terapêutica médica, que vai além das pílulas e alcança um novo nível de cura: a restauração da função de um órgão ou tecido por meio da injeção de células substitutas saudáveis”, disse Thomas B. Okarma, presidente da Geron, em comunicado à imprensa em 23 de janeiro. A companhia pretende injetar as células no local da lesão na medula em pessoas que perderam os movimentos do tórax para baixo. A candidata a terapia será administrada aos participantes do estudo clínico entre 7 e 14 dias depois da lesão. Há evidências de que a chance de um resultado favorável é maior em pacientes recém-acidentados. Os pesquisadores, por ora, não têm a ilusão de devolver todos

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os movimentos aos pacientes com a possível terapia, uma vez que sua eficácia ainda não foi comprovada. As células-tronco embrionárias podem se transformar em qualquer tipo de célula e tecido do corpo. Mas não se sabe quais reações podem causar quando introduzidas no organismo, nem se é possível controlar sua transformação em células mais específicas. Um risco é que provoquem tumores. Além disso, religiosos e até mesmo cientistas questionam se é ético usar embriões humanos descartados para obter essas células, que parecem ter enorme potencial terapêutico. Como deu o aval para que os primeiros testes clínicos em humanos, o FDA entendeu que os possíveis benefícios dessa nova terapia são maiores do que os riscos e as questões morais. A aprovação do estudo três dias depois da posse do novo presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, defensor da pesquisa científica e tecnológica, foi interpretada como coincidência pelos executivos da Geron. Mas houve quem achasse que o sinal verde para o estudo reflete a posição do novo mandatário da Casa Branca. Desde 2001, vigoram nos Estados Unidos restrições à pesquisa com células-tronco embrionárias adotadas por George W. Bush. ■ MA RCOS PIVETTA

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DANIEL DAS NEVES

Ainda que o feito represente um avanço técnico importante, todos concordam que o mais interessante está por vir: usar as células induzidas para responder a questões científicas. A ideia é que sirvam para estudar doenças e testar medicamentos in vitro. “Não vamos injetá-las em doentes”, ressalta Rehen. Cada pesquisador poderá usá-las para construir modelos de pesquisa em sua área específica. O grupo da UFRJ, por exemplo, pretende se valer delas como uma ferramenta a mais para estudar o mal de Parkinson e testar possíveis terapias contra a doença. Segundo Bonamino, vários grupos do Inca poderão usar a técnica para produzir tecidos diferentes a partir de células de pacientes com predisposição familiar a câncer, para entender como a doença se manifesta em diferentes partes do organismo e buscar maneiras de combatê-la. No InCor, Krieger pretende produzir modelos para estudar doenças cardíacas pouco conhecidas e testar medicamentos que sejam eficazes para cada paciente. Já em Ribeirão Preto, o objetivo é estudar a formação das células do sangue. “A comunidade científica está muito feliz com a obtenção dessas células e com a promessa que todos tenham acesso a elas”, comemora a geneticista Mayana Zatz. Ela quer usar esse sistema para ajudar a entender e tratar doenças neuromusculares. “Posso comparar o funcionamento das células de dois pacientes que têm a mesma mutação e quadros clínicos diferentes”, exemplifica. No Centro de Estudos do Genoma Humano, ela tem um banco de células-tronco adultas e fibroblastos de mais de 200 pacientes. Talvez essa coleção agora ganhe ainda mais valor. Ainda mais do que a perspectiva de obter células reprogramadas, Mayana valoriza a colaboração científica. Numa área em que cada técnica e cada etapa exigem grande nível de especialização, laboratórios isolados têm menos chances de produzir resultados com alto impacto. Por isso, todos saem ganhando com a iniciativa de disponibilizar a receita para produzir iPS. “Mas isso só terá efeito se o governo mantiver o financiamento”, alerta a pesquisadora, preocupada com as ameaças recentes de cortes importantes no financiamento federal para a pesquisa científica. ■

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2 Volta ao passado 1. Células adultas são retiradas do corpo humano – da pele ou dos rins, por exemplo – e cultivadas em laboratório

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2. Vírus inofensivos, contendo genes ativos apenas em embriões, infectam as células adultas em cultura

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3. Ao incorporar os novos genes, a célula madura muda de forma e passa a funcionar como a de um embrião 4. Assim como as embrionárias, as células transformadas (iPS) se multiplicam de modo indefinido, gerando uma linhagem 5. Com certos compostos, é possível induzir as iPS a originar células especializadas, como neurônios, para repor células mortas

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> FISIOLOGIA

O cérebro e as infecções Medicamentos usados para tratar distúrbios mentais podem afetar resistência a vírus, bactérias e tumores Carlos Fioravanti | ilustrações Hélio de Almeida 48

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m experimentos feitos em animais, alguns medicamentos usados para tratar ansiedade em seres humanos retardaram o combate a infecções. Alguns antidepressivos, incluindo a fluoxetina, um dos mais usados no mundo, apresentaram efeitos semelhantes, enfraquecendo a defesa do organismo contra vírus e bactérias, enquanto um antipsicótico, o haloperidol, adotado no tratamento contra esquizofrenia, ativou as células de defesa, mesmo que não houvesse um problema iminente para resolverem. Medicamentos planejados para atuar sobre o sistema nervoso agem também sobre o sistema imune, mas não se trata de uma relação de mão única: estímulos sobre o sistema imune também podem ecoar sobre o nervoso, em um jogo de interferências recíprocas em que ora um ora outro assume o comando do organismo. As conclusões desses estudos, feitos no Brasil e em outros países, não podem ainda ser aplicadas de modo direto e imediato à

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realidade humana, por falta de levantamentos amplos que associem o uso de medicamentos contra distúrbios mentais a uma eventual maior incidência de infecções e até mesmo câncer. Em termos práticos, ao menos por enquanto as pessoas que tomam antidepressivos no Brasil (cerca de 17 milhões) ou ansiolíticos (20 milhões) não devem pensar em mudar o tratamento. m maio do ano passado, a médica veterinária Monica Sakai confirmou um efeito adicional do diazepam, um medicamento bastante usado para conter ansiedade. Em um dos experimentos que fez na Universidade McGill, em Montreal, no Canadá, como parte do doutorado na Universidade de São Paulo (USP), ela notou que o diazepam se ligava a proteínas específicas (receptores) do núcleo das células do tumor de Ehrlich, um tumor experimental de camundongos semelhante aos de mama e próstata em seres humanos. Essa afinidade indicou duas coisas: a primeira é que medicamentos desse grupo, os benzodiazepínicos, poderiam favorecer o desenvolvimento desse tipo de tumor; a segunda é que essa ligação, “embora indesejável à primeira vista, abre amplas oportunidades para a busca de medicamentos que se liguem a esses mesmos receptores, mas que combatam o tumor”, afirma o médico veterinário da USP João Palermo-Neto, coordenador da pesquisa, realizada em colaboração com Vassilios Papadopoulos, da Universidade McGill. Segundo Palermo-Neto, esses efeitos sobre o tumor de Ehrlich foram notados com uma dosagem de medicamento equivalente à usada para tratar ansiedade em seres humanos. “Como psiquiatra, não vejo implicações clínicas imediatas”, diz Luiz Dratcu, médico brasileiro e especialista-chefe da divisão de psiquiatria do Guy’s Hospital, em Londres, um dos principais hospitais de ensino do serviço de saúde público britânico. Ele sugere muita cautela com as extrapolações dos resultados obtidos em laboratório para os seres humanos. Seu argumento é que não há registros de casos de câncer ou de infecções associados ao uso de benzodiazepínicos, receitados a milhões de pessoas ao redor do mundo há mais de 50 anos, em doses variáveis e frequentemente por períodos longos. “Prescritos corretamente, os benzodiazepínicos e os antidepressivos são drogas seguras”, diz ele. “Se realmente houvesse uma associação crítica entre essas drogas e o desenvolvimento de tumores, já teria emergido.” O psiquiatra Jair Mari, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), sugere a realização de estudos epidemiológicos amplos para verificar se realmente o que foi visto em camundongos se passa também com seres humanos. Estudos que examinem os possíveis impactos dos medicamentos contra distúrbios mentais além do sistema nervoso ainda são raros, principalmente no Brasil. O grupo de psiconeuroimunologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Paraná, avaliou possíveis alterações do sistema imune e hormonal de 34 pessoas saudáveis e 40 portadoras de depressão que tomavam antidepressivos e eram atendidas no ambulatório do hospital da universi-

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OS PROJETOS 1. Neuroimunomodulação: efeitos do estresse e de citocinas nas relações bidirecionais entre os sistemas nervosos central e imune 2. Avaliação da rede familiar das crianças e adolescentes vítimas de violência sexual doméstica e as repercussões imunológicas 3. Depressão, estresse e sistema imune 4. Mecanismos pró-inflamatórios envolvidos no controle hipotalâmico da fome e termogênese

MODALIDADE

1 e 4. Projeto Temático 2 e 3. Projeto de Pesquisa de Pós-graduação COORDENADORES

1. JOÃO PALERMO-NETO – USP 2. SANDRA ODEBRECHT VARGAS NUNES – UEL 3. EDNA MARIA VISSOCI REICHE – UEL 4. LÍCIO AUGUSTO VELLOSO – Unicamp INVESTIMENTO

1. R$ 799.044,36 (FAPESP), R$ 50.000,00 (CNPq) 2. R$ 20.000,00 (Fundação Araucária) 3. R$ 5.000,00 (Hospital Universitário e UEL) 4. R$ 1.094.670,17 (FAPESP)

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dade. Uma das conclusões: “Pessoas com depressão severa podem apresentar alterações na produção de hormônios como o cortisol e na resposta inflamatória”, afirma Edna Reiche, farmacêutico-bioquímica e uma das autoras desse trabalho, publicado em 2002 na Brazilian Journal of Medical and Biological Research. Ainda não está claro se essas alterações decorrem do uso de antidepressivos, mas as implicações desses fenômenos podem ser amplas. “As células de defesa se multiplicam mais intensamente e as células de tumores incipientes, em especial em tecidos inflamados, podem se camuflar mais facilmente.” Segundo ela, essa inflamação intensa e às vezes crônica pode deixar o organismo mais vulnerável ao câncer, doenças cardíacas e autoimunes de origem inflamatória como a artrite reumatoide, principalmente se somada a uma predisposição genética e a fatores ambientais desfavoráveis. Não só medicamentos podem enfraquecer a resistência a doenças. Estresse emocional intenso também pode desregular as respostas do sistema imune e contribuir para o desenvolvimento de câncer, propuseram Edna e as outras duas cofundadoras do grupo de psiconeuroimunologia da UEL, a psiquiatra Sandra Vargas Nunes e a biomédica Helena Morimoto, na Lancet Oncology em 2004. Agora um grupo da University College London confirma a relação direta entre estresse psicossocial e a maior incidência, a redução da sobrevida e o aumento da mortalidade de pessoas com câncer após analisar 414 estudos que investigavam essa interação. Nesse trabalho, publicado na Nature Oncology em 2008, a depressão, examinada isoladamente, aumentou a incidência em 29% e a mortalidade em 34%. De modo geral os efeitos variam de acordo com a intensidade do estresse e o tipo de câncer e do temperamento de cada pessoa. Claudius Galeno, um médico da Roma Antiga, já tinha observado, há quase dois mil anos, que mulheres então classificadas como melancólicas – hoje como deprimidas – eram mais suscetíveis a tumores de mama que as de temperamento extrovertido, então chamadas de sanguíneas. Quem passou por uma gripe forte testemunhou essas interferências recíprocas entre o sistema nervoso, hormonal e imune ao sentir não só o corpo pesado, mas também uma depressão emocional passageira – nesse caso, o sistema de defesa influenciando o nervoso e o hormonal. Outro exemplo, também lembrado por Palermo-Neto, reflete uma situação oposta, de influência do sistema nervoso sobre o sistema imune: o agravamento da infecção pelo vírus causador do herpes, quando brotam feridas dolorosas geralmente nos lábios e nos órgãos genitais, após desgastes emocionais intensos como a morte de um familiar. Uma das causas dessa conversa cruzada é uma família de 12 proteínas chamadas TLR, sigla de toll like receptors, encontradas na superfície de células de defesa e de neurônios. Especializadas no reconhecimento de agentes causadores de doenças como vírus e bactérias, essas proteínas podem ser acionadas pelos próprios microrganismos invasores, por medicamentos e moléculas produzidas pelo próprio organismo. Uma vez acionadas, as TLR induzem a produção de moléculas conhecidas como citocinas, que estimulam a produção de anticorpos e de células que vão combater

vírus e bactérias. As citocinas podem também agir sobre o chamado eixo HPA: H de hipotálamo, uma região do cérebro; P de pituitária, uma glândula localizada na base do cérebro também conhecida como hipófise; e A de adrenal, uma glândula localizada sobre os rins. Essas proteínas, as citocinas, podem até mesmo eliminar neurônios que controlam o apetite e acionar a obesidade (ver adiante). “Algumas citocinas podem levar à produção de hormônios como o cortisol quando estamos gripados”, exemplifica Palermo-Neto, que começou a estudar essas conexões há cerca de dez anos. Não há, porém, um efeito único. Algumas das cerca de 30 citocinas produzidas pelo organismo podem estimular o sistema nervoso e hormonal enquanto outras podem inibir. O organismo ganha com essa flexibilidade do eixo HPA, explica o pesquisador. Uma infecção que ative o eixo HPA pode se tornar, ainda que momentaneamente, tão importante quanto o estado de alerta desencadeado por hormônios em situações de perigo. Na prática, qualquer um dos três sistemas pode ser acionado a partir dos mesmos estímulos. “As células do sistema imune não conseguem transmitir impulsos elétricos como os neurônios, mas têm receptores (proteínas de superfície) para neurotransmissores como a adrenalina e a acetilcolina”, diz ele. “Do mesmo modo, neurônios têm receptores que são ativados por citocinas, que podem mudar sua atividade elétrica.” istas em conjunto essas pesquisas sugerem que doenças que se manifestam no sistema nervoso podem se originar no sistema imune. Depressões severas e demência, por exemplo, podem resultar de desequilíbrios dos sistemas hormonal, nervoso e imune, como Brian Leonard, pesquisador da Universidade de Maastrich, na Holanda, argumenta em um artigo publicado em 2007 na Neurochemical Research. Ele se apoia em duas evidências clínicas. A primeira é que inflamações crônicas em pessoas deprimidas podem causar perdas contínuas de neurônios ao longo da vida. A outra é que, mesmo sem uma relação de causa e efeito, a depressão severa é um sintoma comum entre as pessoas que desenvolvem doenças neurológicas com perdas de neurônios, como o Alzheimer. “Esses resultados sugerem aos psiquiatras mais atenção ao sistema imune”, comenta o biólogo Roberto Frussa Filho, professor da Unifesp que, em estudos publicados nos anos 1990, mostrou como o haloperidol pode atenuar o crescimento do tumor de Ehrlich – um efeito oposto ao dos ansiolíticos. Palermo-Neto concorda. Edna Reiche também: “Os psiquiatras poderiam trabalhar mais em equipes multidisciplinares”. Ela acredita que os médicos poderiam, em conjunto, dar mais atenção não só aos distúrbios emocionais ou ao tratamento contra câncer ou infecções, mas também ao bem-estar, à alimentação e aos hábitos sociais das pessoas doentes: é o que tenta fazer o grupo de Londrina, cujos pesquisadores, em um dos trabalhos mais recentes, em fase de conclusão, constataram uma queda na resistência contra infecções em crianças que haviam sofrido abuso sexual. ■ >>

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> FISIOLOGIA

Gordura atrai

gordura Ácido graxo encontrado em carnes vermelhas causa a morte de neurônios que controlam o apetite

uem aprecia uma picanha malpassada e principalmente a camada branca de gordura que a envolve talvez se inquiete. Um tipo de gordura – os ácidos graxos saturados de cadeia longa, encontrados principalmente em carnes vermelhas – pode ser uma das causas da obesidade. De acordo com experimentos realizados em camundongos, essas moléculas acionam uma inflamação no hipotálamo, na base do cérebro, que leva à destruição dos neurônios que controlam o apetite e a queima de calorias. “Talvez tenhamos encontrado uma explicação para a dificuldade de as pessoas obesas controlarem a fome e perderem peso, mesmo que adotem dietas severas para emagrecer”, diz Lício Velloso, pesquisador da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que coordenou esse estudo, publicado em janeiro na revista científica Journal of Neuroscience. Os estudos anteriores da equipe de Velloso e de outros grupos já haviam mostrado que a obesidade era uma doença que começava no cérebro ou nos músculos, induzida por dietas com excesso de açúcares ou de gorduras. Esse excesso gerava resistência ao hormônio insulina, que carrega a glicose para as células, onde é transformada em energia, e induz ao consumo contínuo de alimentos (Pesquisa FAPESP nº 140). Testes com animais já haviam mostrado que dietas ricas em gordura em geral danificavam o hipotálamo mais intensamente que as ricas em açúcares. Para ver qual tipo de gordura era mais danoso, os pesquisadores da Unicamp injetaram diferentes tipos de ácidos graxos de origem animal ou vegetal no hipotálamo de camundongos. Os encontrados no óleo de soja mostraram um efeito tênue sobre o cérebro, enquanto os encontrados em gorduras animais e em proporção menor no óleo de amendoim apresentaram ação mais danosa.

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As moléculas de ácido graxo saturado se ligam a proteínas de superfície chamadas TLR-2 e TLR4 de um tipo de células chamadas microglias, que protegem os neurônios do hipotálamo contra vírus e bactérias, de acordo com o experimento realizado por Marciane Milanski sob a orientação de Velloso. Uma vez acionadas, a TLR-2 e, em maior intensidade, a TLR-4 estimulam a produção de outras proteínas, conhecidas como citocinas. Normalmente, em outras partes do corpo, as citocinas estimulam a produção de anticorpos e de células especializados em combater vírus, bactérias e tumores. No hipotálamo, as citocinas produzidas desse modo destroem neurônios que controlam o apetite e a queima de calorias. “O que não se sabia era o que poderia disparar essa inflamação que leva à morte de neurônios”, diz Velloso. Juliana Contin Moraes deve apresentar este mês uma tese de doutorado orientada por Velloso mostrando, por meio de seis técnicas de análise distintas, a morte de neurônios induzida pela inflamação acionada por esses tipos específicos de gordura. A TLR-4 era um alvo antigo. Em experimentos anteriores, camundongos dotados de uma mutação genética que desliga essa proteína engordaram menos, sem desenvolver resistência à insulina, mesmo quando submetidos a uma dieta com excesso de lipídeos (gorduras). O acionamento da TLR-4 explica também um fenômeno observado há anos nos laboratórios de Velloso e Mario Saad na Unicamp: a produção mais intensa que o normal de enzimas que impedem o funcionamento da insulina. Essa proteína representa agora a conexão entre dietas ricas em gorduras e o desenvolvimento da resistência à insulina, que pode facilitar o desenvolvimento de obesidade, diabetes, hipertensão, doenças cardiovasculares. Até mesmo câncer pode se desenvolver mais facilmente em pessoas com peso acima do considerado saudável.

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HÉLIO DE ALMEIDA

Uma pessoa é considerada com sobrepeso quando apresenta índice de massa corporal (IMC, obtido pela divisão do peso pelo quadrado da altura) de 25 a 29,9 kg/m2 e obesa com IMC igual ou superior a 30 kg/m2: assim, por exemplo, uma pessoa com 1,70 metro de altura é obesa se tiver mais de 87 quilos. De acordo com um levantamento do IBGE com base na população de 2003, 41,1% dos homens e 40% das mulheres apresentam sobrepeso e 8,9% dos homens e 13,1% das mulheres são obesos no Brasil. Quem gosta de comer carne com gordura deve estar se perguntando o que fazer para evitar essa situação. Certamente, acredita Velloso, reduzir o consumo de gorduras pode ajudar, mas, outra vez, não há informação sobre qual a quantidade de gorduras começa a matar neurônios nem se essa cascata de reações pode ser contida ou revertida. “O obeso, cujo organismo refaz continuamente o ponto de equilíbrio, corre o risco de nunca mais voltar ao equilíbrio anterior, com peso estável”, diz Velloso. A saída ainda distante seria encontrar medicamentos anti-inflamatórios capazes de agir somente no hipotálamo e em resposta a estímulos gerados apenas por ácidos graxos saturados de cadeia longa, para evitar que as células de defesa deixem de reagir quando apareça algum vírus ou bactéria. ■

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SAÚDE

O amor depois da menopausa amor depois da menopausa amor depois da menopausa OOO amor depois da menopausa

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epois da menopausa, quando acabam as ovulações mensais e os teores de hormônios femininos caem bastante, a qualidade da vida sexual de mais de um terço das mulheres piora muito. Elas passam a evitar relações sexuais, em grande parte por sentir desconforto e dor que tornam o sexo quase um suplício doloroso. Essas constatações vêm de um levantamento coordenado pelo ginecologista Aarão Mendes Pinto-Neto, da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e detalhado em três artigos publicados em 2008 na revista Menopause. No trabalho, parte da tese de doutorado da ginecologista Ana Lúcia Valadares, os pesquisadores avaliaram a qualidade da vida sexual de 378 mulheres com idades entre 40 e 65 anos que haviam completado o ensino médio, uma população muito pouco estudada no Brasil. Todas as entrevistadas eram moradoras de Belo Horizonte, capital de Minas Gerais. Elas responderam a um questionário – desenvolvido na Austrália e traduzido para o português pelo grupo da Unicamp – que investiga a vida sexual por meio de perguntas sobre a frequência das relações sexuais (solitárias ou a dois, com ou sem penetração vaginal), a intensidade do prazer alcançado com o sexo e a frequência e a intensidade de pensamentos sobre sexo e do desejo sexual. Um dos resultados que chamaram a atenção foi a grande frequência de dor durante a penetração – distúrbio chamado pelos médicos de dispareunia –, mencionada por quase 40% das entrevistadas. “Entre dois e três anos depois da menopausa, quase todas as mulheres sentem algum nível de desconforto devido à secura vaginal”, conta Aarão. Em muitos casos, nada que informação e um pouco de gel lubrificante não resolvam.

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PAULINE BONAPARTE BORGHESE, ANTONIO CANOVA, 1808

Estudo identifica fatores que prejudicam a sexualidade feminina após a idade reprodutiva

A companhia de um parceiro carinhoso e saudável também se mostrou indispensável para uma boa sexualidade. Ana verificou que as mulheres cujos parceiros tinham problemas como disfunção erétil ou ejaculação precoce apresentavam maior tendência a sentir dor durante o sexo. Uma explicação provável, segundo os pesquisadores, é que essas mulheres, para atingir um nível de lubrificação confortável, precisavam receber mais carícias, o que nem sempre um parceiro mais apressado consegue dar. A dispareunia foi mais comum entre as mulheres com depressão e as que se sentem nervosas em relação ao sexo. Como o questionário estabelece a correlação, mas não permite saber se a dor causa o problema emocional ou se é consequência dele, os pesquisadores se valem da experiência clínica para entender melhor os resultados. Com base nos casos que viu em mais de 20 anos de estudo, o ginecologista da Unicamp acredita que o desconforto físico surge antes do problema emocional. E, quando a mulher antecipa a dor que sentirá, começa a evitar a atividade sexual.

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O PROJETO Sexualidade em mulheres climatéricas: inquérito populacional em Belo Horizonte

MODALIDADE

Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa COORDENADOR

AARÃO PINTO-NETO/FCM-Unicamp INVESTIMENTO

R$ 32.391,30

Alguns dos sinais desagradáveis da menopausa atrapalham o sexo, o que torna a disfunção sexual mais comum entre as mulheres que têm esses sintomas. Não surpreende. Quem transpira e sente falta de ar durante ondas súbitas de calor, não produz lubrificação vaginal, sofre de insônia, tem depressão e passa por um período em que as oscilações de humor parecem uma montanha-russa a ponto de dar saudades das tensões pré-menstruais da juventude dificilmente encara o sexo com bons olhos. Além disso, os medicamentos contra depressão e hipertensão, problemas comuns nessa fase da vida, podem diminuir o desejo sexual. Medida pessoal - Uma boa vida sexual,

Aarão frisa, é a que satisfaz a própria pessoa. Há quem fique feliz com sexo uma vez ao mês e quem ache três vezes por semana pouco. E, ele acrescenta, o desejo sexual naturalmente diminui com a idade – não com a menopausa. “Um homem de 50 anos tem menos desejo do que tinha aos 20 anos; o mesmo acontece com as mulheres.” Por essa razão, o pesquisador não fala em sexualidade boa ou normal, mas sim adequada para cada mulher. A satisfação, porém, não depende apenas da saúde física. Para uma vida sexual plena, a saúde emocional do relacionamento deve estar em dia. “Para ter uma sexualidade adequada, a mulher precisa sentir atração pelo parceiro”, conta o pesquisador da Unicamp. O questionário incluiu perguntas sobre quão satisfeita a participante estava com seu parceiro como amante, se estava apaixonada e, de maneira geral, como se sentia em relação a ele – ou ela, no caso de relações homossexuais. Uma proporção maior (de 71% a 86%) de mulheres que deram nota máxima em uma escala de 0 a 6 para cada um desses três itens – ou seja, estavam

apaixonadas, os parceiros as satisfaziam e elas os viam como bons companheiros – afirmou ter uma boa vida sexual. Entre as menos satisfeitas com seus parceiros, mais da metade (entre 53% e 56%) tinha a sexualidade prejudicada. Entre as mulheres da capital mineira, ficou claro que ter um parceiro sexual saudável é importante para uma boa vida sexual, mas morar com esse parceiro atrapalha. Segundo o ginecologista, alguns sexólogos defendem que a cura para a disfunção sexual feminina é um parceiro jovem e atraente. A partir desse levantamento, os ginecologistas podem ajudar as mulheres a resgatarem sua sexualidade depois da idade reprodutiva. Para isso é preciso avaliar o caso de cada paciente e buscar soluções mais adequadas para elas. A terapia de reposição hormonal, por exemplo, pode reduzir a falta de lubrificação e os calores, e determinadas posições sexuais podem ser mais confortáveis e prazerosas para a mulher. “Nossa função”, resume Aarão, “é oferecer bemestar geral às mulheres e preservar a saúde delas para a velhice”. ■

Maria Guimarães

> Artigos científicos 1. VALADARES, A.L. et al. Sexuality in Brazilian women aged 40 to 65 years with 11 years or more of formal education: associated factors. Menopause. v. 15, n. 2, p. 264-269. mar.-abr. 2008. 2. VALADARES, A.L. et al. The sexuality of middle-aged women with a sexual partner: a population-based study. Menopause. v. 15, n. 2, p. 706-713. jul-ago. 2008. 3. VALADARES, A.L. et al. A populationbased study of dyspareunia in a cohort of middle-aged Brazilian women. Menopause. v. 15, n. 6, p. 1.184-1.190. nov-dez. 2008.

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> ECOLOGIA

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rnitólogos começaram a defender a pecuária e pecuaristas a valorizar animais silvestres em Bagé, no Rio Grande do Sul. “Aves e agronegócio podem conviver”, assegura o biólogo Pedro Develey, diretor de conservação da Sociedade para a Conservação das Aves do Brasil (Save Brasil). Ele começou a aproximar os dois grupos habitualmente distantes depois de participar de um levantamento que mostrou a riqueza de aves no Pampa, a paisagem típica do Sul do país, marcada por descampados cobertos por uma vegetação rala. Em apenas três fazendas do município de Bagé ele e outros biólogos identificaram 144 espécies de aves, um terço do total estimado para todo o Pampa, incluindo a ema, a maior ave da América Latina, e assistiram a cenas raras, como um bando de 103 veste-amarelas (Xanthopsar flavus), de peito amarelo e asas pretas, voando sobre uma colina suave. Com base nesses dados, Develey e os 40 criadores de gado da Associação dos Produtores de Carne do Pampa da Campanha Meridional (Apropampa) encontraram uma linha de trabalho conjunta com ganhos recíprocos, o rótulo green beef, um conceito que concilia pecuária e preservação ambiental: na prática, bois crescendo em pastagens naturais, formadas por 106 tipos de gramíneas nativas, contando apenas as das três primeiras fazendas inventariadas. “Uma fazenda com muitas espécies de aves é uma fazenda saudável, com menos pragas e menos gastos com herbicidas”, diz Develey. Em dezembro do ano passado, como resultado do primeiro encontro de criadores de gado em pastagens naturais do Pampa no Cone Sul, saiu o livro Aves do Pampa, um manual de identificação das aves mais comuns na região de Bagé, com parte dos resultados do inventário de espécies nas fazendas. Criada em 1999 pela bióloga Jaqueline Goerck como ramificação brasileira da BirdLife International, a Save Brasil adota estratégias de ação diferentes para cada lugar do Brasil em que atua, mobilizando também prefeitos, promotores, professores, artistas e estudantes. “Os projetos de conservação só dão certo quando as comunidades locais participam.” ■

Aves

Carlos Fioravanti

Veste-amarelas, comuns em Bagé

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Green beef aproxima interesses de pecuaristas e biólogos no Sul

ADRIANO BECKER/SAVE BRASIL

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Fauna antártica do fundo do mar tem recursos para se manter ativa mesmo no inverno

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o inverno antártico o sol espia acima do horizonte só por umas três horas a cada dia, a temperatura fica por volta dos 30º Celsius negativos, o mar congela e se torna parte do continente que abriga o polo Sul do planeta. Os organismos que vivem embaixo d’água não têm como chegar à superfície e as profundezas do oceano se tornam ainda mais sombrias do que de costume. Há dez anos o oceanógrafo Paulo Sumida, da Universidade de São Paulo (USP), investiga como a fauna do fundo do mar na península Antártica Ocidental – a ponta do continente mais próxima da América do Sul – sobrevive até a volta do verão. Estudiosos dessa região espalhados pelo mundo todo já tinham averiguado a ecologia de organismos que habitam o continente e as águas que o circundam. “O plâncton, que vive na coluna d’água, tem muitas estratégias para lidar com a falta de alimento”, conta Sumida. Uma delas é assumir a forma de cistos dormentes à espera de tempos mais propícios para encontrar alimento e se reproduzir. Outros organismos em suspensão na água, como o krill (crustáceos que se parecem com camarões), se alimentam das algas que encontram aderidas na face submersa do gelo. Mas como ficam os organismos de fundo, conhecidos como bentos, que dependem do alimento que cai da superfície? Para ver o que acontece a profundidades entre 500 e 640 metros, o grupo explorou o fundo do mar de Bellingshausen com ajuda de câmeras de vídeo rebocadas por um barco ao longo de cinco expedições entre 1999 e 2001, e outras que permanecem no fundo do mar por meses a fio e fazem fotografias a cada 12 horas. Os resultados da parte analisada por Sumida e por Angelo Bernardino, na época seu aluno de mestrado, no Instituto Oceanográfico da USP, publicados em novembro de 2008 na revista Deep-Sea Research II, mostram

que ouriços-do-mar arroxeados, delicados lírios-do-mar – parentes das estrelas-do-mar – que nadam agitando os finos tentáculos, pepinos-do-mar alaranjados e poliquetas – animais semelhantes a minhocas espinhudas com até 25 centímetros de comprimento – têm uma despensa à sua disposição durante o inverno. A descoberta é resultado do projeto Food for Benthos on the Antarctic Continental Shelf (Foodbancs), coordenado por Craig Smith, da Universidade do Havaí, e David DeMaster, da Universidade Estadual da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, de que o oceanógrafo da USP faz parte. A equipe analisou 900 imagens de vídeo recolhidas nas expedições que, reunidas, somam uma área de 1.834 metros quadrados e permitiram identificar as espécies que vivem em diferentes zonas, medir sua abundância, os tamanhos dos animais, sua produção de fezes e a variabilidade na fauna de um ano para outro e entre áreas distintas e em diferentes períodos do ano. As imagens mostram uma fauna que varia muito conforme o ano e o local: entre novembro de 1999 e novembro de 2000, os animais detectados pelas imagens de vídeo quadruplicaram; e mais do que duplicaram entre fevereiro de 2000 e março de 2001. Até agora esse aumento populacional parece ser resultado de migração dos organismos, mais do que de aumentos no fluxo de partículas de carbono para o fundo. “Muitos animais jovens entram na população, o que chamamos de recrutamento”, explica o pesquisador. Despensa invernal - Depois da surpresa de

descobrir que esses animais estão ativos o ano inteiro, o grupo internacional busca medir a quantidade de alimento disponível nas diferentes zonas marinhas a cada estação do ano, além de detalhar o ciclo de vida dos organismos que vivem nelas. Sumida explica que no verão – época de maior produtividade – os organismos marinhos se reproduzem tanto que a quantidade de alimento fica excessiva. Os animais então comem mais e mais depressa, deixando cair para o fundo detritos parcialmente digeridos e até mesmo algas vivas. São essas algas e essa matéria orgânica que formam a despensa invernal das criaturas do fundo. “Com o frio do inverno, há pouca atividade de microrganismos e a decomposição

FOTOS ARTHUR GÜTH/USP

Armazém submarino

OCEANOGRAFIA

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O PROJETO Resposta da megafauna bêntica à deposição sazonal de fitodetrito na plataforma oeste da península Antártica

MODALIDADE

Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa COORDENADOR

PAULO YUKIO GOMES SUMIDA – IO-USP INVESTIMENTO

R$ 19.500,25

é muito lenta”, completa Sumida. A comida se conserva por meses a fio numa geladeira natural. Entender essa dinâmica vai além da curiosidade pelo fundo do mar, um mundo não tão distante mas bastante desconhecido. Ela também tem efeitos importantes na absorção e liberação do

gás carbônico, um dos protagonistas do aquecimento global: quando as algas afundam, levam consigo o gás carbônico fixado pela fotossíntese, gerando um déficit na superfície da água, que por isso absorve mais carbono da atmosfera. À medida que a água esfria o oceano antártico comporta uma maior quantidade do gás, que acaba aprisionado quando a superfície é recoberta por gelo. Mas nem sempre fica por ali: o gás carbônico dissolvido na água pode encontrar correntes profundas. “Essas correntes percorrem os oceanos e podem demorar até 500 anos para liberar os gases”, conta o oceanógrafo. Na segunda fase do projeto, agora em curso, Sumida pretende entender e prever os efeitos das mudanças que tem visto na paisagem e no clima do continente gelado. “A península Antártica é o lugar que mais está aquecendo no mundo”, diz o oceanógrafo, que acredita que o aquecimento poderá ser responsável por reduzir a produtividade marinha na região.

Este mês acontece a última expedição, de que participa um aluno de Sumida. Quando analisarem os novos dados, os pesquisadores esperam entender mais sobre o que está acontecendo com o ciclo de carbono e com a dinâmica ecológica da região. “A camada de gelo dura cada vez menos e se estende cada vez menos”, conta Sumida. Para ele, perder essa superfície equivale a desmatar uma floresta: há menos hábitat para animais como o krill, o que gera problemas importantes na cadeia alimentar que inclui animais maiores como focas e baleias. ■

Maria Guimarães > Artigo científico SUMIDA, P.Y.G. Temporal changes in benthic megafaunal abundance and composition across the West Antarctic Peninsula shelf: results from video surveys. Deep-Sea Research II. v. 55, n. 22-23, p. 2.465-2.477. nov. 2008.

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PAULO SUMIDA/USP

Sob o gelo: a vida continua para os pepinos-do-mar (página ao lado)

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> ASTROFÍSICA

Ruído misterioso

no Cosmos Experimento da Nasa e do Inpe capta um forte sinal de micro-ondas de origem inexplicada no Universo

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escoberta por acaso em 1965 pelos astrônomos Arno Penzias e Robert Wilson quando trabalhavam na unidade de Holmdel dos Bell Labs, nos Estados Unidos, a radiação cósmica de fundo é hoje considerada a melhor evidência de que há 13,7 bilhões de anos houve o Big Bang, a explosão primordial que teria originado o Universo. A evolução das pesquisas em cosmologia praticamente comprovou que esse fraco sinal de micro-ondas, emitido cerca de 400 mil anos depois do Big Bang, é uma espécie de eco perene do colossal evento que deu origem a toda matéria e energia existentes – e rendeu à dupla de pesquisadores o Prêmio Nobel de Física em 1978. No início de 2009, justamente o Ano Internacional da Astronomia (ver reportagem na página 36), uma equipe de cientistas da agência espacial norte-americana, a Nasa, e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), de São José dos Campos, registrou, também acidentalmente, um novo e forte ruído cósmico. A origem do sinal, no entanto, é um completo enigma para o grupo de cientistas, que também inclui colegas das universidades de Maryland e da Califórnia, em Santa Bárbara. O misterioso ruído de fundo apresenta uma intensidade seis vezes maior do que os pesquisadores esperavam medir na porção do céu esquadrinhada em 22 de julho de 2006 por um sofisticado instrumento embarcado num balão de alta altitude, o projeto Arcade, sigla que em inglês significa radiômetro absoluto para cosmologia, astrofísica e emissão difusa. A missão original do experimento era flagrar os tênues resquícios da radiação – leia-se calor – gerada pelas primeiras estrelas que se formaram no Universo, na chamada idade das trevas cósmicas, ao menos 100 milhões de anos após o Big Bang. Em vez disso, o voo do Arcade sobre a cidade texana de Palestine registrou um forte e inesperado sinal, vindo de

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NASA/WMAP SCIENCE TEAM

uma época desconhecida da história do Universo. Os pesquisadores dizem que nenhuma fonte de rádio até agora identificada no espaço seria capaz de gerar um ruído de tal magnitude. Logo, ou os dados estão errados ou representam algo realmente novo, talvez uma estrutura primordial ou um processo evolutivo do jovem Universo ainda ignorado pela ciência. “Refizemos todos os cálculos e demoramos mais de dois anos para divulgar os resultados para que tivéssemos certeza de que o sinal não era fruto de um erro”, diz o astrofísico Thyrso Villela, do Inpe, um dos dois brasileiros que participaram do estudo. Uma das primeiras preocupações foi eliminar a influência das emissões de rádio vindas da nossa própria galáxia, a Via Láctea, que poderiam contaminar o ruído cósmico detectado. “Mesmo que colocássemos todas as galáxias conhecidas lado a lado não iríamos conseguir produzir uma emissão de radiação com essa intensidade”, explica Carlos Alexandre Wuensche, também do Inpe, outro integrante do Arcade. A divulgação do provável achado ocorreu no início de janeiro durante a reunião anual da Sociedade Americana de Astronomia (AAS), em Long Beach, Califórnia. Embora ainda não tenha publicado oficialmente nenhum artigo científico sobre a suposta descoberta, tendo até agora redigido quatro papers e os submetido ao The Astrophysical Journal, a equipe de Al Kogut, da Nasa, o principal pesquisador à frente do projeto, foi um dos destaques do encontro científico. “O Universo nos pregou uma peça”, afirma Kogut, ainda sem compreender a natureza do ruído encontrado. Segundo os brasileiros, os melhores registros do intrigante sinal foram captados pelos três pares de antenas na forma de corneta desenvolvidas para o Arcade pelo Inpe, que operam em 3 e 7 giga-hertz, em baixas frequências de micro-ondas. O maior desafio de experimentos destinados a medir a radiação produzida no espaço profundo é obter um registro realmente limpo, livre das interferências que comumente contaminam esse tipo de trabalho. O projeto da Nasa, com a colaboração do Inpe, foi concebido para minimizar ao extremo esse erro sistemático, dizem os pesquisadores. Para que esse intuito fosse alcançado, os instrumentos do Arcade – sete radiômetros que operam em frequências de micro-ondas entre 3 e 90 giga-hertz – tiveram de ser resfriados com 1.800 litros de hélio líquido à mesma temperatura da radiação cósmica de fundo, cerca de 2,725 graus Kelvin (mais ou menos -270°C), muito próximo do zero absoluto. Dessa forma, o calor gerado pelo próprio instrumento de observação foi anulado, evitando um dos mais comuns desvios de medição. Durante as duas horas e meia em que o Arcade fez medições em 7% do céu visível, cruzando para cima e para baixo o plano da Via Láctea (a uma altitude máxima de 37 quilômetros), suas antenas trabalharam mergulhadas nesse gélido ambiente. “O Arcade foi projetado para medir variações de temperaturas de 0,001 K”, comenta Villela. “Nunca um

Ilustração de como seriam as primeiras estrelas do Universo: possível fonte do novo ruído

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instrumento de rádio teve dos são fantásticos”, opina essa sensibilidade.” a astrofísica brasileira AnO anúncio da descobergélica de Oliveira-Costa, do ta de um possível segundo Massachusetts Institute of tipo de radiação de fundo Technology (MIT), estudioagitou os astrofísicos espesa da radiação cósmica de cializados nesse tema e os fundo. “Mas existe sempre a estudiosos dos primórdios possibilidade de erro e essa do Universo. O que poderia questão ainda está em aberoriginar um sinal de rádio to.” Ela acredita que será dessa magnitude? A equinecessário aguardar a conpe do Arcade evitou fazer firmação da existência do especulações sobre a fonte novo ruído por mais ciendo ruído, mas considera que tistas, que também deverão sua gênese é extragaláctica, ser capazes de flagrá-lo com de fora da Via Láctea. Não o emprego de outras técniestá descartada a hipótese de cas e modelos de emissão de que o novo ruído cósmico radiação. Segundo Angélica, seja originário das primeinão existe um bom mapearas estrelas que surgiram mento da emissão das galáno Universo, as chamadas xias nas baixas frequências estrelas de população III, de micro-ondas em que o surgidas algumas centenas sinal foi detectado, dificulDesenho do Arcade: voo resfriado no hélio líquido de milhões de anos depois dade que pode induzir a do Big Bang, embora não equívocos. “Particularmenhaja evidências significate, acho que o sinal existe”, tivas nesse sentido. Os pesquisadores comenta a astrofísica. “A questão é saber não está marcado um novo voo do Arcade para averiguar se o sinal pode ser acreditam que o sinal não é origináse ele é tão forte quanto foi detectado ou rio de um ponto específico do espaço, medido novamente na mesma região até dez vezes menor.” mas deve permear todas as direções em que foi realizado o experimento de Quando registraram pela primeira 2006 ou em outra parte do céu. do Universo, como ocorre com a ravez, há mais de 40 anos, o sinal que diação cósmica de fundo. Entretanto, se mostrou ser a radiação cósmica de essa hipótese ainda não foi testada. No Interferências - Sem questionar a verafundo, Penzias e Wilson não sabiam se momento, os maiores esforços dos pescidade dos resultados gerados pelo Arcao fraco ruído que tinham medido era real. Chegaram até a achar que a estáquisadores parecem se concentrar em de, alguns astrofísicos preferem esperar o surgimento de mais evidências de que tica era uma distorção causada por feprovar que seus dados são verdadeiros e dar algum sentido a eles. “Vamos cono desconhecido sinal de fundo captado é zes de pássaros que se acumularam na versar com teóricos para ver se algum mesmo real, e não resultado de um erro antena de rádio usada no experimento fenômeno diferente pode ter acontede medição ou de interpretação. “Eles ou uma interferência provocada por cido no Universo quando o sinal foi parecem ter sido muito cuidadosos em alguma fonte terrestre. Já havia desde seu trabalho e os resultados apresentao final da década de 1940 teorias predectetado”, comenta Wuensche. Ainda vendo a existência da radiação cósmica de fundo e os trabalhos da dupla nos Bell Labs acabaram sendo a sua prova material. No caso do novo sinal registrado, ainda é muito cedo para saber como a história vai terminar. “Estamos revendo trabalhos antigos em busca de registros desse ruído que possam ter passado despercebidos”, diz Villela. “Há mapas do céu dos anos 1980 que registraram, sem grande sensibilidade, emissões em frequências ainda mais baixas, em mega-hertz, que podem ter captado esse sinal.” Na época, o ruído inesperado foi provavelmente interpretado como erros ou desvios de medição. O desafio agora é descobrir qual a Área colorida: os 7% do céu observado no estudo origem do novo ruído de fundo. ■ 62

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Guardião cósmico no semiárido Telescópio na divisa de Pernambuco com a Bahia vai monitorar o risco de asteroides e cometas caírem na Terra

C

lescópio estiver em operação por dois ou três anos seguidos, teremos certeza do potencial de observação do lugar”, diz Daniela. “Se o local não for tão bom quanto pensamos, podemos transferir o projeto para outro sítio.” Em Itacuruba já está pronta a base em que serão instalados o telescópio (alemão, com óptica russa) e sua cúpula de seis metros, importada da Austrália. O telescópio e a cúpula estão em Recife e nos próximos meses serão levados ao interior do estado. O custo total de implantação do projeto será de R$ 2 milhões. Segundo o Programa de Objetos Próximos da Terra da Nasa, a agência espacial americana, são conhecidos até agora quase seis mil pequenos corpos celestes orbitando as cercanias do planeta. No entanto, pouco mais de mil apresentam risco potencial de colidir

com o globo terrestre e causar algum dano. Para ser uma ameaça real, um asteroide ou cometa precisa ter diâmetro superior a 150 metros ou ser capaz de chegar a uma distância mínima da Terra de 7,5 milhões de quilômetros (0,05 unidade astronômica). Qual a probabilidade de um desses objetos colidir com a Terra? A cada 100 mil anos, há pouco mais de 16,5% de chance de um objeto com um quilômetro de diâmetro cair na Terra, de acordo com a Agência Espacial Europeia (ESA). Um asteroide desse tamanho abriria uma cratera de 20 quilômetros de diâmetro no planeta e provocaria a morte de milhões de pessoas. É para seguir por dias a trajetória desses possíveis visitantes indesejados que o Impacton foi planejado. ■

Marcos Pivet ta

E. DE JONG E S.SUZUKI/JPL/NASA

om cerca de quatro mil habitantes, o município pernambucano de Itacuruba, no vale do médio São Francisco, está prestes a se tornar um lugar importante para a astronomia nacional. Até meados deste ano deve entrar em operação ali, no coração do semiárido, um pequeno telescópio robotizado dotado de um espelho de um metro de comprimento. Sua missão é incomum em terras nacionais: fazer a caracterização física e determinar a órbita de pequenos corpos celestes, em geral asteroides e cometas com diâmetro entre algumas centenas de metros e uns poucos quilômetros, que giram nas proximidades da Terra e apresentam risco, ainda que ínfimo, de cair no planeta. “A probabilidade de uma colisão é muito baixa, mas não desprezível”, afirma a astrofísica Daniela Lazzaro, do Observatório Nacional (ON), no Rio de Janeiro, coordenadora dos trabalhos que serão feitos com o novo instrumento. “Como ninguém no hemisfério Sul faz o acompanhamento sistemático desses objetos celestes, decidimos investir nessa pesquisa.”O nome formal do projeto, Impacton (Iniciativa de Mapeamento e Pesquisa de Asteroides nas Cercanias da Terra no Observatório Nacional), é uma referência, com uma pitada de humor negro, a essa remota hipótese. A localidade nordestina foi escolhida para abrigar o telescópio, que será operado de forma remota, a partir da sede do ON, por suas características naturalmente favoráveis a observações cósmicas: cerca de 300 noites com céu limpo, aberto e sem chuva. O nível de transparência do céu, outro quesito importante, ainda não foi devidamente avaliado, mas os pesquisadores acreditam que Itacuruba, onde a altitude média é de pouco mais de 315 metros, não os desapontará. “Depois que o te-

Desenho de asteroide perto da Terra: choque é possível, mas risco é baixo

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Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org

Notícias Sociologia

Políticos cansados Cansados ou excluídos? O texto “Saindo de cena: parlamentares que desistem da disputa eleitoral (1990-2006)”, de Renata Florentino, da Universidade de Brasília, mapeia perfis de políticos que tendem mais frequentemente a abandonar a carreira eleitoral. A pesquisa abarca as eleições legislativas de 1990 a 2006, observando o perfil de deputados e senadores que recusaram a condição de “candidatos natos” e optaram por não disputar a reeleição nem concorrer a cargos considerados mais altos. São incluídos na análise também os políticos que disputaram cargos considerados de menor prestígio do que os anteriormente exercidos, de modo a evidenciar trajetórias malsucedidas e compará-las com os casos em que a desistência do mandato é total. Esse grupo de parlamentares constituiria, à primeira vista, a exceção da conhecida formulação de que os políticos são progressivamente ambiciosos. Em linhas gerais, observou-se que os políticos que recuam na disputa eleitoral, seja permanentemente, seja com pequenas estratégias de continuação, pertencem a grupos que: 1) já esgotaram de alguma forma sua participação e influência no jogo político (exposição em escândalos, idade avançada, participação em grupos sociais em decadência); 2) ou que ainda não conseguiram penetrar no campo político com a mesma desenvoltura de seus pares (mulheres, estreantes de primeiro mandato ou suplentes e parlamentares de bancadas muito pequenas). Revista de Sociologia e Política – v. 16 – nº 30 – Curitiba – jun. 2008 ■

Psicologia

Estresse e lesões de pele O estresse repercute nas doenças de pele. No trabalho “Localização da lesão e níveis de estresse em pacientes dermatológicos” avaliaram-se o estresse e a localização da lesão dermatológica e a associação entre essas variáveis comparando níveis de estresse em pacientes com lesões no rosto e/ou mãos de pacientes com lesões em outras partes do corpo. Tratou-se de um estudo transversal, descritivo, de associação, cujas autoras são Martha Wallig Brusius Ludgwig e Margareth da Silva Oliveira, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Marisa Campio

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Müller, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, e Ângela Maria Barbosa Ferreira Gonçalves, da Sociedade Brasileira de Dermatologia e Clínica. Quanto aos resultados, houve presença de sintomas de estresse na maioria dos pacientes; a fase de resistência e a sintomatologia psicológica foram predominantes. Na comparação entre grupos com diferentes localizações de lesão não houve diferenças significativas quanto aos resultados de estresse. Os achados corroboram a necessidade de um atendimento biopsicossocial aos pacientes. Estudos de Psicologia (Campinas) – v. 25 – nº 3 – Campinas – jul./set. 2008 ■

Materiais

Reciclagem de eletrônicos O descarte de produtos eletroeletrônicos vem crescendo anualmente. Por essa razão, necessita-se de reciclagem para que se evite o desperdício de recursos naturais não-renováveis. O objetivo do trabalho “Reciclagem de fios e cabos elétricos-cabo paralelo”, de Mishene Christie Pinheiro Bezerra de Araújo, Arthur Pinto Chaves, Denise Crocce Romano Espinosa e Jorge Alberto Soares Tenório, da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, é estudar a reciclagem dos cabos tipo cordão paralelo por meio de operações unitárias de tratamento de minérios. Foram testadas as seguintes operações unitárias: moagem, separação granulométrica, separação em meio denso, separação eletrostática, atrição, bateamento e elutriação. Ao final desses processos, as operações utilizadas obtiveram concentrados de cobre com baixo grau de contaminação. Observou-se que todas as técnicas precisam de outra técnica para complementá-las e que a moagem em moinho de facas com grelha de três milímetros é necessária para se conseguir a total liberação dos materiais. REPRODUÇÃO

Rem: Revista Escola de Minas – v.61 – nº 3 – Ouro Preto jul./set. 2008

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Biologia

melhoria de métodos diagnósticos, mas também como alvo para o desenvolvimento de medicações específicas.

Plantas medicinais

Revista Brasileira de Farmacognosia – v. 18 – nº 3 – João Pessoa – jul./set. 2008 ■

Pediatria

Genética do sono O objetivo do artigo “A genética dos distúrbios do sono na infância e adolescência” é revisar a literatura sobre o tema na infância e adolescência. O estudo é de Magda Lahorgue Nunes, da Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, e Oliviero Bruni, da Faculdade de Medicina da Sapienza University, Roma. As palavras-chave “sono” e “genética” foram usadas para pesquisar por artigos publicados nos últimos cinco anos no banco de dados Medline. A seguir, seus resumos foram analisados. A pesquisa também incluiu artigos clássicos, com a primeira descrição dos genes. A recorrência familiar de muitos distúrbios do sono é um achado frequente, mas genes foram descobertos para poucos deles. No artigo descrevem-se distúrbios do sono transmitidos por herança genética e também aqueles que apresentam altos índices de recorrência familiar, embora nenhum gene específico tenha sido encontrado. Apesar de a maioria dos distúrbios ainda não ter uma base molecular identificada, técnicas modernas são cada vez mais utilizadas para determinar a contribuição dos genes ao sono. A importância clínica dessas descobertas pode estar relacionada com a

Jornal de Pediatria – v. 84 – nº 4 – suplemento o – Porto Alegre – ago. 2008 ■

Saúde coletiva

Cuidados paliativos EDUARDO CESAR

O artigo “Levantamento das plantas medicinais usadas na Região Nordeste do Brasil”, de Maria de Fátima Agra, Kiriaki Nurit Silva, Ionaldo José Lima Diniz Basílio, Patrícia França de Freitas e José Maria Barbosa-Filho, da Universidade Federal da Paraíba, teve como objetivo relacionar as plantas utilizadas com fins terapêuticos. A área de estudo, o Nordeste, é reconhecida por uma rica biodiversidade, principalmente de plantas e de hábitats, abrangendo desde a Floresta Amazônica, Mata Atlântica, sistemas de mangues e dunas costeiras até florestas secas e savanas. Como resultado foi registrado um total de 650 espécies pertencentes a 407 gêneros e 111 famílias e suas informações etnomedicinais. A diversidade florística é dominada por vegetais superiores e apenas cinco espécies das famílias Aspleniaceae, Cyatheaceae, Equisetaceae, Polypodiaceae e Selaginellaceae pertencem ao grupo das pteridófitas, que corresponde a menos que 1% do total das espécies registradas. O estudo indica a importância da investigação das espécies farmacologicamente ainda não estudadas, uma vez que seus usos populares estão registrados.

O tipo de assistência prestado para pacientes com doenças avançadas e terminais tem sido objeto de intenso debate na literatura especializada. O artigo “Cuidados paliativos: interfaces, conflitos e necessidades”, de Ciro Augusto Floriani e Fermin Roland Schramm, da Escola Nacional de Saúde Pública, descreve as intervenções possíveis no fim da vida, com especial ênfase aos cuidados paliativos, um modelo em expansão no mundo. Analisa, a partir de uma perspectiva bioética, alguns dos aspectos moralmente relevantes que envolvem essas práticas, que tendem a ser conflituosas entre si. E, especificamente, dentro do campo dos cuidados paliativos, destaca certas dificuldades e desafios em torno da centralidade da autonomia, considerada um dos pilares para boas práticas de cuidados no fim da vida. Ciência e Saúde Coletiva – vol. 13 – supl. 2 – Rio de Janeiro – dez. 2008 ■

Psiquiatria clínica

Depressão materna A depressão materna tem sido apontada como uma condição pouco favorecedora ao desenvolvimento infantil, mostrando-se associada a dificuldades emocionais e comportamentais. O objetivo do trabalho “Depressão materna e a saúde mental de escolares”, de Ana Vilela Mendes, Sonia Regina Loureiro e José Alexandre S. Crippa, da Universidade de São Paulo, é identificar e analisar na literatura indexada artigos que abordem o impacto da depressão materna para as crianças em idade escolar. Procedeu-se à pesquisa em vários indexadores considerando o período de 2002 a 2007. A depressão materna associou-se às dificuldades apresentadas pelas crianças, tais como problemas comportamentais, sintomas depressivos, prejuízos cognitivos e sociais, independentemente do momento da primeira exposição à depressão materna e dos delineamentos adotados. A depressão materna configurou-se como fator de risco ao desenvolvimento infantil, com impacto negativo para as crianças em idade escolar. Do ponto de vista da saúde mental, considera-se relevante maior atenção às crianças que convivem com tal condição. Revista de Psiquiatria Clínica – v. 35 – nº 5 – São Paulo – 2008

> O link para a íntegra dos artigos citados nestas páginas estão disponíveis no site de Pesquisa FAPESP, www.revistapesquisa.fapesp.br

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LINHA DE PRODUÇÃO MUNDO

O grafeno está se transformando num material de múltiplos usos e com um futuro promissor. Isolado pela primeira vez em 2004 na Inglaterra, ele é caracterizado como uma folha de átomos de carbono arranjados em molde hexagonal, semelhante a uma colmeia, que pode ser enrolada na forma de um nanotubo Representação de folha de grafeno sob circuito eletrônico e é várias vezes mais resistente que o aço. Outra característica é a condutividade elétrica, aproveitada pelos pesquisadores pretende tratar e despejar nelas o arsenal biológico da IBM para produzir transistores usados nos circuitos eletrôque carrega. Os primeiros nicos, do tipo transistor de efeito de campo (FET na sigla em ensaios foram feitos com inglês). O grafeno se mostrou rápido na transmissão da correncamundongos. A equipe te elétrica e traz novas perspectivas para circuitos menores do que os atuais feitos basicamente de silício e já no limite de liderada pelo pesquisador Dan Peer estima que, se miniaturização. Ele também começa a ser cotado para compor tudo correr bem, dentro de telas eletrônicas flexíveis. Pesquisadores da Universidade três a cinco anos a inovação Sungkyunkwan, da Coreia do Sul, desenvolveram um método que transforma camadas de grafeno em eletrodos ultrafinos, poderá estar concluída e ser usada no auxílio transparentes e flexíveis, ideais para as futuras telas eletrônia tratamentos de saúde. cas que poderão substituir o papel em jornais e revistas.

IBM

MATERIAL DO FUTURO

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> Minissubmarinos contra o câncer De vez em quando, temas abordados em filmes de ficção científica tornam-se realidade. É o que está acontecendo agora com a película Viagem fantástica, de 1966. Nela, minissubmarinos exploravam o interior do corpo humano. Trinta e três anos depois, pesquisadores da Universidade de Tel Aviv, em Israel, anunciaram que criaram um nanodispositivo capaz de se deslocar dentro do corpo, levando drogas para combater doenças diversas, como o câncer. O nanoveículo é na verdade uma droga que leva o medicamento no seu interior. Ele é dotado de um sistema parecido com o GPS (global positioning system), de localização por satélite, que lhe permite localizar as células que se 66

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> O etanol que vem do lixo Mesmo com os preços do petróleo em baixa, a necessidade de redução na emissão de gases nocivos na atmosfera do planeta continua. Por isso novos projetos de produção de etanol continuam a prosperar. A empresa canadense Enerkem anunciou a instalação de fábrica de biocombustíveis e produtos bioquímicos a partir de resíduos de matéria-prima

orgânica. Instalada em Westbury, no estado de Quebec, no Canadá, ela vai produzir gás de síntese, com tecnologia própria, e a partir dele gerar metanol e etanol. Segundo um comunicado da empresa, esta é a primeira usina de biocombustíveis e produtos químicos renováveis que utiliza matéria-prima não-alimentícia e de baixo custo como postes de madeira utilizados para conduzir eletricidade e posteriormente descartados. O processo

termoquímico da empresa, segundo a própria Enerkem, permite que uma tonelada de resíduos de madeira possa ser transformada em 360 litros de etanol (a mesma tonelada de cana produz quase cem litros de etanol). A empresa também participa da instalação de uma fábrica de etanol a partir do lixo doméstico da cidade de Edmonton, no estado de Alberta, também no Canadá. O projeto é da empresa canadense GreenField Ethanol, que produz e vende

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mais simples Pesquisadores da Universidade Estadual da Pensilvânia, nos Estados Unidos, desenvolveram um método de fabricação de dispositivos portáteis capazes de reconhecer e imediatamente reportar um conjunto de substâncias de interesse médico e ambiental presentes em determinado local ou organismo. A inovação consiste de um circuito integrado que incorpora uma mistura de nanofios biologicamente

CERÂMICA CLONADA

Inspirados no biomimetismo, que é a imitação de estruturas existentes na natureza para a solução de problemas de engenharia, pesquisadores do Laboratório Nacional Lawrence Berkeley, nos Estados Unidos, conseguiram criar uma cerâmica de extrema dureza. O objeto “copiado” foi a madrepérola (ou nácar), substância calcária de origem animal, altamente resistente, dura e brilhante, produzida por moluscos marinhos como as conchas. Durante o experimento, os pesquisadores controlaram o congelamento de partículas de óxido de alumínio (alumina) suspensas em Microscopia do material feito com polímero e alumina água salgada e adicionaram um polímero conhecido como PMMA (polimetilmetacrilato). O resultado do experimento foi uma cerâmica 300 marcados. Um dos passos mais importantes no processo vezes mais dura do que os seus componentes e com resistência de montagem do circuito similar à das ligas de alumínio. Esses materiais poderão ser é posicionar os fios com usados para identificar características microestruturais que, no futuro, poderão levar à síntese de materiais bioinspirados, precisão no circuito ainda que não biológicos, com resistência e dureza únicas. integrado. Usando um chip

convencional, cada tipo de nanofio é posicionado na placa numa operação individual. Pelo novo método seria possível colocar no chip três diferentes tipos de fios

Uma aeronave comercial da AVIÕES COM em presa norte-americana BIOCOMBUSTÍVEL Continental Airlines voou durante duas horas, no início de janeiro, com 50% de biocombustível feito de uma mistura de algas e pinhão-manso e 50% de querosene de aviação (QAV) tradicional em uma de suas turbinas. O Boeing 737-800 bimotor saiu do aeroporto de Houston e foi até o golfo do México, sem passageiros. Além de a quantidade de biocombustível utilizada ser maior do que em testes semelhantes feitos anteriormente, pela primeira vez um avião decolou com óleo de algas. A empresa aérea Virgin, do Reino Unido, usou em fevereiro de 2008, em uma das quatro turbinas de um Boeing 747, uma combinação de 80% de QAV e 20% de óleo de babaçu e coco, e a Air New Zealand, em dezembro, 50% de pinhão-manso e 50% de QAV. Os testes fazem parte da busca da aviação mundial por combustíveis que substituam derivados de petróleo com menos emissão de poluentes.

cobertos com DNA relacionados a diferentes patógenos ou doenças que fariam o trabalho

de identificação das enfermidades ou de contaminantes ambientais no próprio aparelho.

CONTINENTAL

> Montagem

LABORATÓRIO NACIONAL LAWRENCE BERKELEY

etanol sólido. A usina irá utilizar biomassa reciclada do aterro sanitário municipal para produzir 40 milhões de litros de etanol por ano. A iniciativa conta com o apoio da prefeitura municipal e o Instituto de Pesquisa Energética de Alberta (Aeri na sigla em inglês) e tem o objetivo de reduzir no estado a produção de dióxido de carbono (CO2) de responsabilidade dos veículos automotores.

Turbinas do Boeing com óleo de algas e de pinhão PESQUISA FAPESP 156

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LINHA DE PRODUÇÃO BRASIL

CTMSP

O urânio enriquecido utilizado na produção do combustível nuclear começou a ser produzido em escala industrial pela empresa estatal Indústrias Nucleares do Brasil (INB) na sua fábrica em Resende, no sul fluminense. Até o final do ano, a produção deverá chegar a 12 toneladas e a expectativa é de que, até 2012, todo o urânio enriquecido usado em Angra 1 e 20% do combustível para Angra 2 sejam produzidos pela INB. A autorização de operação inicial foi dada pela Comissão Nacional de Energia Nuclear no dia 5 de janeiro, mas só após as inspeções feitas por observadores brasileiros e pela Agência Internacional de Energia Atômica a fábrica recebeu o aval para começar a produzir. Até agora o Brasil exportava o urânio concentrado para o Canadá e comprava de um consórcio de empresas europeias o urânio enriquecido. O concentrado precisa ser convertido para o estado gasoso antes da separação das partículas de urânio por meio de processamento em ultracentrífugas. A tecnologia para o enriquecimento de urânio foi desenvolvida pelo Centro Tecnológico da Marinha em São Paulo (CTMSP) e pelo Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Pesquisa FAPESP, edição nº 96).

COMBUSTÍVEL NUCLEAR

> Algas para biodiesel Ultracentrífugas para enriquecer urânio

treinados Um simulador que reproduz todos os sistemas envolvidos no funcionamento de um trem, como tração, freios, dinâmica dos vagões, geometria da via férrea, até a visualização do ambiente em que ele trafega, com sol, chuva, neblina, está em processo de desenvolvimento final pelo Departamento de Engenharia Mecânica da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, em parceria com a equipe de operação de ferrovias da empresa mineradora Vale. O projeto Simulador de Realidade Virtual tem como 68

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objetivo a capacitação e o treinamento de mais de 3 mil maquinistas da Vale, responsáveis por mais de mil locomotivas em 9.863 quilômetros de linhas. Atualmente a empresa usa softwares importados para treinamento, mas eles são específicos para cada função. A construção do simulador com equipamentos convencionais, como computadores, monitores e sistemas operacionais Windows ou Linux, permitirá sua reprodução para outras aplicações na empresa, como nas unidades dos portos ou das minas.

POLI/USP

> Maquinistas

Uma das mais antigas formas de vida existentes na Terra, as algas atualmente são uma das grandes apostas para a produção de biocombustíveis. Além da alta produtividade observada em laboratório, elas não precisam de água potável e fertilizantes para se

desenvolver e também não competem com a terra usada no cultivo de alimentos. No Brasil, o interesse pelo tema cresceu e conta com o apoio do Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Tecnológica (CNPq), que vai investir em dois anos R$ 4,5 milhões em 11 projetos que têm como objetivo investigar

Simulador reproduz o percurso de trens

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> Batata com brotos sadios

Projetos de preservação ambiental e de eficiência energética estão entre os contemplados da terceira edição do Prêmio Werner von Siemens de Inovação Tecnológica. Na categoria Estudante – Novas Ideias, os vencedores nas modalidades Indústria, Energia e Saúde foram, respectivamente, Rafael Guedes Abreu, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, com um sistema para monitorar o desmatamento; Eric Costa, do Centro Universitário da Fundação Educacional Inaciana (FEI), com os nanotubos de carbono para reduzir perdas na transmissão de energia; e Dosagem exata de luz para recém-nascidos Cláudia Karina Barbosa de Vasconcelos, da Universidade Federal de Ouro Preto (MG), com para implantação comercial um dispositivo para monitorar a radiação no tratamento de da inovação, testando icterícia em recém-nascidos (Pesquisa FAPESP, edição nº 149). fertilização, irrigação, Nas mesmas modalidades na categoria Ciência & Tecnologia, os premiados foram Thais de Oliveira, do Instituto de Pesquicontrole biológico de doenças, padronização, produtividade sas Energéticas e Nucleares, com a reciclagem dos rejeitos e custo de produção, além líquidos das indústrias de lâmpadas; Ane Cheila Rovani, Carlos de conseguirmos a Alejandro Figueira e Felipe Cemin, da Universidade de Caxias certificação do primeiro do Sul (RS), com o aumento da eficiência de consumo energélote de batata-semente no tico em dispositivos eletromecânicos; e Giuliano Barbieri, da Universidade de São Paulo, com avaliação ultrassonométrica Ministério da Agricultura”, da consolidação e da densidade óssea cortical. diz a agrônoma Carla

de Meo, coordenadora de um projeto da N. Piccin financiado pelo programa Pesquisa Inovativa na Pequena e Micro Empresa (Pipe) da FAPESP, que estabeleceu a formatação comercial do produto, ao custo de R$ 116.758,53 e US$ 1.384,56. NPICCIN

Plantar batatas está se tornando um cultivo mais seguro, livre de doenças produzidas por vírus, com uma nova tecnologia desenvolvida pelo Instituto Agronômico, o IAC, com sede em Campinas (SP), e aplicada comercialmente pela empresa N Piccin, de Limeira (SP). A inovação é produzir batatas-semente por meio dos brotos e não mais com o próprio tubérculo usado no plantio. Esse novo método produz batata-semente nacional de alta sanidade em ambiente protegido sem o perigo de disseminação de doenças, principalmente das eventualmente trazidas com sementes importadas. Nos últimos cinco anos, o Brasil gastou US$ 9 milhões com a importação de batata-semente. A novidade foi elaborada sob a coordenação do pesquisador José Alberto Caram de Souza, do IAC, que disponibilizou a técnica para vários produtores. “Nós absorvemos a tecnologia e desenvolvemos os estudos de fundamentação agronômica

VENCEDORES DO SIEMENS

LAPPEM/UFOP

o potencial das algas para produção de biodiesel. Os projetos foram selecionados entre 63 apresentados por pesquisadores de todo o Brasil em resposta a um edital lançado em 2008. O primeiro problema a ser superado por pesquisadores do Rio Grande do Sul, Bahia, Paraná, Santa Catarina, Goiás e São Paulo escolhidos será produzir combustível de algas a baixo custo.

Batata-semente nacional livre de doenças

> Radiação no óleo usado O óleo usado nos motores, quando descartado sem tratamento adequado, pode se transformar em um perigoso contaminante para o ambiente. São compostos como enxofre, cálcio, ferro e níquel que podem poluir o solo e os rios. Como alternativa ao processo convencional de tratamento químico, que leva o produto final a ser misturado ao óleo novo, pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) desenvolveram um sistema que elimina os

contaminantes, faz a reciclagem e ainda obtém subprodutos que não são disponibilizados no processo tradicional como compostos para a indústria de lubrificantes, tintas e resinas. Realizada pela pesquisadora Ivone Mulako Sato e pelo aluno de doutorado Marcos Scapin, do Centro de Química e Meio Ambiente do Ipen, o novo método utiliza a radiação gama por meio de irradiação de uma fonte de cobalto-60 do instituto. “O processo ainda precisa ser finalizado, mas já se mostrou viável economicamente”, diz Ivone.

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Célula solar com corante inorgânico à base de rutênio (acima) e corante feito com extratos de frutas

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TECNOLOGIA

ENERGIA

Fotossíntese artificial Novas células solares de baixo custo reproduzem processo vegetal de transformação da luz solar | Dinorah Ereno

FOTOS EDUARDO CESAR

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élulas solares que mimetizam o funcionamento do sistema de fotossíntese das plantas têm sido estudadas e desenvolvidas por pesquisadores brasileiros e estrangeiros, com resultados que prometem uma nova geração de matérias-primas de baixo custo, em comparação com o silício usado na conversão da luz do sol em eletricidade. As novas células solares sensibilizadas por corantes, também chamadas de DSC, sigla de dye-sensitized solar cells, têm se mostrado uma alternativa promissora para produção de energia elétrica em todo o mundo. No Brasil, as pesquisas feitas no Laboratório de Nanotecnologia e Energia Solar do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) resultaram em uma empresa spin-off, a Tezca Células Solares, incubada na Companhia de Desenvolvimento do Polo de Alta Tecnologia de Campinas (Ciatec), que pretende fabricar até 2012 células solares para recarregar baterias de telefones celulares, máquinas fotográficas ou que possam ser acopladas a notebooks e brinquedos. “A empresa já tem uma patente de montagem de células solares com material totalmente nacional”, diz a professora Ana Flávia Nogueira, coordenadora de um grupo de 15 pesquisadores composto por pós-doutores e alunos de iniciação científica, mestrado e doutorado, que desenvolve dispositivos para aproveitamento da energia solar. A pesquisadora começou a se interessar pela área em 1996, durante a sua dissertação

de mestrado orientada pelo professor Marco-Aurélio De Paoli, também do Instituto de Química. Atualmente, as pesquisas que coordena estão concentradas em duas tecnologias que utilizam mecanismos diferentes para converter energia solar em eletricidade. Uma delas é baseada na tecnologia dye-cells ou células fotoeletroquímicas preparadas com dióxido de titânio (TiO2), uma substância utilizada em pastas de dente e tintas brancas de parede, com propriedades semicondutoras. Mas como o dióxido de titânio não absorve luz por ser branco, é preciso recorrer a um corante adequado para sensibilizá-lo e promover a absorção da energia solar. “O termo sensibilizar pode ser usado como sinônimo de dar cor ao óxido de titânio com corantes naturais ou sintéticos que absorvam na faixa de luz visível ao olho humano”, explica a pesquisadora. Extratos naturais - Os corantes

inorgânicos que possuem um metal parecido com o magnésio encontrado na clorofila – pigmentos vegetais que funcionam como fotorreceptores na fotossíntese – são os mais eficientes para desempenhar essa tarefa. Até agora os compostos de rutênio, elemento químico usado em catalisadores, têm se mostrado imbatíveis nesse papel pela capacidade de absorção e transferência de energia, mas outros corantes também têm apresentado bons resultados. Na Universidade de São Paulo, o grupo de pesquisa da professora Neyde Yukie Murakami Iha, do Laboratório de Fo-

toquímica e Conversão de Energia, que desde 1985 dedica-se ao estudo de sistemas para armazenamento e conversão de energia solar, tem testado corantes naturais com extratos de amora, jabuticaba, açaí, jambolão e outras frutas e flores que contêm pigmentos antioxidantes chamados antocianinas, com cores características como vermelho, azul e roxo. “Fizemos uma célula solar com corante natural que está funcionando há mais de um ano”, relata Neyde. “A vantagem é que fica muito mais viável economicamente e agride bem menos o ambiente.” Em 1995, a pesquisadora começou a desenvolver as células solares sensibilizadas por corantes do tipo dye-cells. “O grande impulso para essas pesquisas veio com o professor Michael Grätzel, da Escola Politécnica Federal de Lausanne, na Suíça, que mostrou a viabilidade comercial do sistema de nanopartículas de cristais de dióxido de titânio”, diz Neyde. Em 1991, Grätzel criou uma célula que, em vez de usar uma camada única de dióxido de titânio, era formada por pequenas partículas do óxido metálico com cerca de 20 nanômetros de diâmetro, cobertas com uma fina camada de pigmento. O método aumentou a superfície efetiva disponível para a absorção de luz solar. Desde então o grupo do pesquisador suíço e outros grupos de pesquisa têm procurado aumentar a eficiência de conversão energética desses dispositivos, utilizando novos materiais e soluções inovadoras para montagem dessas células. PESQUISA FAPESP 156

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Basicamente, elas funas células solares que utilizam cionam de maneira sememateriais semicondutores lhante a uma bateria de orgânicos, como polímeros celular, com dois eletrodos ou moléculas, como camada e, entre eles, um eletrólito, ativa nos equipamentos de um meio condutor que faz energia solar. Para preparáo transporte das cargas elé-las são usados dois semicontricas por meio de íons. “O dutores com características funcionamento dessas céludiferentes para fazer o translas, que são montadas como porte eletrônico. Nesse caso, um sanduíche, constitui um os dois eletrodos são colocaverdadeiro sistema químico dos diretamente em contato, integrado”, diz Ana Flávia. sem necessidade de um eleEsse sistema é constituído trólito. “As células orgânicas por um corante com alta nos permitem trabalhar com absorção de luz, que separa diversos materiais, o que e transfere a carga elétrica propicia o desenvolvimento para o dióxido de titânio e de módulos flexíveis, colorié regenerado pelo eletrólito. dos e transparentes”, diz Ana As cargas elétricas separadas Flávia. Na Universidade Fenesse processo se recombideral do Paraná, desde 1998 nam após passar por um o professor Ivo Hümmelgen, circuito externo, fazendo do Departamento de Física, com que ocorra a criação pesquisa esses dispositivos de uma corrente elétrica. feitos com polímeros, que Na USP, um protótipo da podem também ser associacélula solar de 10 por 10 dos a fulerenos ou a nanotucentímetros demonstra as bos, estruturas nanométricas possibilidades da tecnolofeitas de átomos de carbono. gia. Ligado a uma fonte de “Usamos como camada ativa luz, é capaz de movimentar derivados de poliotiofenos, um pequeno motor que faz uma família de polímeros Protótipo ligado a fonte de luz movimenta uma hélice girar uma hélice. que têm uma absorção basRecentemente, a empretante acentuada na região sa G24 Innovations, do Reino Unido, O grupo da USP, que contou com fivisível do espectro solar”, diz Hümmelque tem o licenciamento da patente de nanciamento da FAPESP e do CT-Energ, gen. Os fulerenos e nanotubos aumenFundo Setorial de Energia do Ministério Grätzel para a Europa, colocou à venda tam a eficiência do processo, pois são os carregadores de celulares e casacos com da Ciência e Tecnologia, para realização responsáveis por separar e transportar a placas de captação de energia solar, feidas pesquisas, tem cinco patentes decarga no interior do dispositivo. tos com filmes flexíveis sensibilizados positadas com a tecnologia. Algumas por corantes. A empresa australiana empresas se interessaram em começar a Conversão energética - “Um proDyesol está se preparando para lançar produzir as dye-cells, mas as negociações blema básico tanto das dye-cells como ainda estão em andamento. “Além de das orgânicas é que a eficiência ainda em escala comercial painéis com essa tecnologia para aplicação em fachadas converter a energia solar em eletricidaé mais baixa do que as células solares de casas e edifícios. “Ela já tem a tecde, essa tecnologia tem potencial para inorgânicas de silício utilizadas atualnologia pronta para isso”, diz Neyde, produzir hidrogênio e metano, que pomente”, diz Hümmelgen. Isso porque as que em 2007 fez uma visita à empresa. dem ser utilizados como combustíveis”, condições de produção em laboratório, “Só não colocou ainda os produtos no relata Neyde. O laboratório da USP fez com processos extremamente contromercado porque quer ter a garantia de uma parceria com o professor Thomas lados, nem sempre são possíveis de ser que a manutenção será feita de forma repetidas na produção em larga escala. Meyer, da Universidade Estadual da Caadequada, para que os painéis efetivaEnquanto as células comerciais à base rolina do Norte, nos Estados Unidos, mente tenham vida útil de dez anos, para o desenvolvimento de catalisadores de silício policristalino têm eficiência como o planejado.” Para isso, a Dyesol e sistemas integrados para a realização média de 11%, as dye-cells chegam a está fazendo consórcios com empresas da fotossíntese artificial produzindo 7% ou 8% em laboratório. “Em alguns e centros de pesquisa de vários países. combustíveis solares. laboratórios já foram obtidas células “Uma das grandes vantagens das dyeA outra tecnologia que está sendo certificadas com até 11% de eficiência”, -cells é a capacidade que elas têm de pesquisada na Unicamp, a mesma emrelata Neyde. Os cálculos para medipregada nos filmes flexíveis dos produoperar em baixas condições de lumição da eficiência energética englobam nosidade”, diz Neyde. tos lançados pela empresa britânica, são a totalidade da luz do sol que é con72

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vertida em eletricidade. “Esse cálculo leva em conta todo o espectro solar, que vai desde o visível até o infravermelho próximo”, explica Neyde. “Existem regiões com eficiência de 80% e outras sem nenhum aproveitamento.” Os carregadores de celular da empresa inglesa G24, por exemplo, permitem 20 minutos de conversação a cada hora de luz solar. Apesar de parecer pouco, é preciso considerar que essa é uma aplicação portátil, ideal para locais não conectados à rede elétrica. Apesar da menor eficiência, a tecnologia é promissora não só para aplicações em comunidades isoladas como também em áreas urbanas. A previsão de custo em escala industrial é cerca de 50% menor do que o de uma célula de silício. “Como a presença de pequenas impurezas no semicondutor não constitui problema para o funcionamento das dye-cells, são dispensados procedimentos complicados necessários para a fabricação das células de silício, como o uso de sala limpa e de roupas especiais”, diz Neyde. O custo projetado para as células solares orgânicas e dye-cells é de US$ 0,40 por watt, ante US$ 3,00 por watt de tecnologias à base de silício. No Brasil, o potencial de geração de energia fotovoltaica é de 10 mil megawatts (MW), quase uma usina de Itaipu,

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O PROJETO Células solares fotoeletroquímicas regenerativas utilizando vidros condutores contendo filamentos protegidos e sua associação modular para a montagem de painéis

MODALIDADE

Programa de Apoio à Propriedade Intelectual (Papi) COORDENADOR

NEYDE YUKIE MURAKAMI IHA – USP INVESTIMENTO

R$ 28.069,35 (FAPESP)

mas não é possível aproveitá-la totalmente porque é necessário ter espaços disponíveis para a instalação de usinas de energia solar. Até agora apenas 12 MW estão efetivamente instalados em comunidades isoladas, enquanto outros 80 integram sistemas conectados à rede elétrica, mas em caráter experimental. O Brasil é um grande exportador de quartzo, matéria-prima usada para fabricar o silício de grau solar, mas não domina a tecnologia de produção desse material semicondutor com alto valor

agregado. “O processo de crescimento dos cristais de silício é extremamente caro, porque envolve temperaturas altíssimas e um processo litográfico complexo para obtenção de cristais perfeitos”, explica Ana Flávia. Outra crítica feita pelas pesquisadoras à utilização do silício é o custo da energia gasta para a sua produção. “Para fins espaciais, por exemplo, é uma tecnologia que justifica o preço final”, diz Neyde. Mas o alto custo impede que seja empregada em larga escala. “O custo de instalação de um sistema de captação solar baseado no silício para uma casa de 200 metros quadrados fica em torno de US$ 35 mil”, diz Ana Flávia. Os cálculos foram feitos pela empresa SunLab, de Bragança Paulista, no interior de São Paulo. ■

> Artigos científicos 1. NOGUEIRA, A.F., et al. Polymer solar cells using single-wall carbon nanotubes modified with thiophene pedant groups. Journal of Physical Chemistry C. v. 111, n. 49, p. 18.431-18.438, 20 nov. 2007. 1. PATROCÍNIO, A.O.T., et al. XPS characterization of sensitized n-TiO2 thin films for dye-sensitized solar cell applications. Applied Surface Science. v. 254, p. 1.874-1.879, 15 jan. 2008.

No laboratório da Unicamp, célula passa por medição óptica

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QUÍMICA

Fio versátil e limpo Empresa paulista cria novo processo de fabricação de fibras acrílicas para o setor têxtil | Yuri Vasconcelos

FOTOS MIGUEL BOYAYAN

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mercado mundial de fibras sintéticas acrílicas, usadas pela indústria têxtil para confecção de roupas, cortinas, tapetes e bichos de pelúcia, muitas vezes em substituição ou misturadas a fibras naturais como algodão e lã, é estimado em 2,5 milhões de toneladas por ano. O maior fabricante do produto é a China, que produziu 839 mil toneladas do material em 2007 e exporta suas mercadorias para todo planeta. Lançada no início dos anos 1950 pela norte-americana Du Pont, essas fibras oriundas de matérias-primas derivadas de petróleo têm sido, desde então, fabricadas pelo mesmo processo original: antes de ser transformado em fios, o polímero poliacrilonitrila (PAN) tem que ser dissolvido em solventes caros e tóxicos, entre eles a dimetilformamida (DMF) e a dimetilacetamida (DMAc). Um processo produtivo que poderá ser superado por outro desenvolvido pela empresa paulista Quimlab Química, com sede em São José dos Campos, no interior paulista. Em tempos de maior preocupação ambiental e de sustentabilidade produtiva, o novo processo inova ao utilizar a glicerina residual da fabricação do biodiesel no lugar dos solventes. O uso da glicerina como aditivo permite que o polímero possa ser fundido sem se degradar (o que não ocorre com o emprego do solvente) e ser usado para fabricação não apenas de fibras sintéticas, mas também de uma série de outros produtos plásticos, como embalagens, sacos e garrafas. Esse novo tipo de polímero derivado do PAN recebeu o nome de Thermpan. A Quimlab já depositou três patentes do novo processo, uma delas internacional, e o desenvolvimento do produto encontra-se no estágio de produção-piloto e, se tudo correr bem, dentro de dois anos passará à fase industrial. “Estamos confiantes que nosso produto, batizado de Thermpan, será muito bem recebido pelo mercado”, afirma o engenheiro químico Elson Garcia, um dos pesquisadores responsáveis pela descoberta.

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A Quimlab é uma tradicional produtora de padrões químicos, principalmente destinados ao controle de qualidade em processos industriais. Criada em 1997, e até 2003 instalada na incubadora tecnológica da Universidade do Vale do Paraíba (Univap), a empresa deverá licenciar para outra empresa esse novo processo de produção de fibras acrílicas. O apelo ambiental e econômico é um forte aliado da Quimlab porque, ao dispensar o uso de solventes que são tóxicos ao meio ambiente e ao homem, o processo torna-se menos demorado, mais barato e mais limpo. “O emprego do DMF ou de outro solvente qualquer exige que se crie uma etapa para sua dissolução e, posteriormente, outra para lavagem dos filamentos acrílicos e extração do solvente. Por fim, é necessário adicionar uma terceira etapa, de destilação e recuperação do solvente, para que ele possa ser reutilizado na fabricação das fibras”, explica Garcia. “Na produção do Thermpan, o polímero PAN é plastificado em glicóis, entre eles a glicerina, e, por isso, pode ser fundido e produzir fios diretamente em uma extrusora convencional, que molda o material fundido, sem geração de resíduos tóxicos e que necessitam ser recuperados. Os glicóis ficam incorporados ao produto”, emenda o químico Nilton Pereira Alves, sócio da Quimlab. Com o acréscimo da glicerina – e de outros plastificantes que, por questão de segredo industrial, não podem ser revelados –, o Thermpan se torna capaz de ser fundido, por exemplo, com outro polímero, o cloreto de polivinila (PVC), largamente usado na fabricação de canos, caixas-d’água, brinquedos, luvas e mangueiras. Abrem-se assim possibilidades para novos materiais. Ao empregar a glicerina como plastificante, substância que Fibra acrílica interage com a cadeia polimériproduzida ca modificando o seu comportacom a mento térmico, a empresa está glicerina dando uma finalidade nobre a residual um subproduto da produção do da fabricação de biodiesel biodiesel – para cada mil litros

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Fitas e cabos produzidos com o novo polímero. Embalagens, canos e brinquedos também podem ser fabricados com custo menor

produzidos do combustível, sobram cerca de 100 litros de glicerina. Segundo a Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim), o consumo anual de glicerina no país, principalmente por indústrias farmacêuticas, cosméticas, alimentícias e químicas, é da ordem de 40 mil toneladas anuais – ante uma produção estimada em 250 mil toneladas até 2013. Um volume que necessita ter um destino, sob o risco de se tornar mais um problema ambiental, embora outro uso da glicerina seja a queima para produção de energia elétrica. “Prevemos que a produção de fibras acrílicas a partir da Thermpan terá um potencial mercado para utilização do excedente de glicerina fabricada na cadeia do biodiesel, que hoje é tratado como resíduo e tem baixo preço no mercado”, ressalta Alves. Para empregar a glicerina bruta 76

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de biodiesel na produção de fibras acrílicas – o ideal é usar glicerina de alta pureza –, a Quimlab desenvolveu um processo que permite a obtenção

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O PROJETO Desenvolvimento de processo de fiação de polímeros acrílicos por fusão para produção de precursores de fibra de carbono

MODALIDADE

Pesquisa Inovativa na Pequena e Micro Empresa (Pipe) COORDENADOR

ELSON GARCIA – Quimlab INVESTIMENTO

R$ 98.000,00 (FAPESP)

de um teor de 97% de pureza e apresenta excelente plastificação com o PAN, sem precisar da etapa de destilação. Amostras de glicerina bruta em estado pastoso produzida pela usina de biodiesel Bioverde, de Taubaté, em São Paulo, foram purificadas por esse método e usadas com sucesso na produção das fibras acrílicas de Thermpan. As pesquisas para desenvolvimento do novo processo e do Thermpan tiveram início em 2004 e a primeira patente foi depositada no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) em 2006 e a internacional no ano seguinte. A terceira foi depositada em outubro de 2008 também no Brasil. A grande inovação da Quimlab foi conseguir fundir o polímero acrílico PAN, que, em essência, era considerado não fundível ou termofixo, que não é moldável. Quando submetido a uma temperatura de aproximadamente 200°C, o pó branco, a apresentação original do PAN, se degrada e transforma-se em um resíduo preto com elevado teor de carbono. Ao se acrescentar a glicerina como plastificante, o polímero passa a ser fundível e pode ser processado em máquinas de fiação convencionais de fibras termoplásticas. No final dos anos 1990,

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a multinacional alemã Basf desenvolveu um processo e equipamentos empregando a água como elemento plastificante, mas, segundo os pesquisadores da Quimlab, não foi bem-sucedida. “Por usar água, a extrusora, equipamento que transforma o pó polimérico em filamento, precisa trabalhar com temperatura e pressão muito elevadas, o que torna o processo tecnicamente inviável”, explica Elson Garcia. “O processo que criamos é mais econômico e nos permitirá explorar novos mercados. A matéria-prima – no caso o polímero PAN – representa 70% do valor da fibra sintética vendida no mercado. Os outros 30% se referem ao custo de transformação. Com a Thermpan, esperamos reduzir o custo final da fibra em, pelo menos, 10%”, afirma Garcia. “Estamos na fase de escala-piloto com uma produção aproximada de dois quilos do produto por hora. Já apresentamos nossa inovação para algumas empresas, entre elas a Radicifibras, também de São José dos Campos, fabricante de fibras acrílicas com capacidade de produzir até 40 mil toneladas por ano. Eles estão interessados na tecnologia, mas preferem que nós avancemos mais no desenvolvimento do processo para voltarmos a conversar”, diz Alves. Ele estima que dentro de dois anos o processo esteja concluído e o Thermpan possa ser repassado para uma indústria interessada na produção industrial e na comercialização. Embora a principal aplicação do Thermpan esteja relacionada com a produção de fibras acrílicas para a indústria têxtil, a empresa quer explorar outros mercados, em aplicações tecnológicas e comerciais, e deixa aberta, inclusive, a participação de pesquisadores de universidades e institutos de pesquisa na busca de novos usos para o material. Em função das suas características físicas e mecânicas, ele pode ser conformado em qualquer formato, como placas, tubos, filmes e peças injetadas, além de ser usado na fabricação de embalagens, garrafas e sacos plásticos, entre outros produtos, concorrendo diretamente com o PVC, que também precisa ser plastificado para se tornar fundível. Com auxílio financeiro da FAPESP, por meio de um projeto do programa

Pesquisa Inovativa na Pequena e Micro Empresa (Pipe), a Quimlab também está trabalhando no desenvolvimento de substâncias precursoras de fibra de carbono de baixo custo, um produto acrílico com composição química adequada para permitir sua transformação em fibras de carbono e pré-oxidadas, conhecidas como Panox. Essas últimas são utilizadas na confecção de roupas a prova de fogo, largamente usadas por bombeiros, soldados e pilotos de Fórmula 1. Também servem para fabricação de bancos de aviões, automóveis, ônibus e trens, pois limitam a propagação de fogo em caso de incêndio. Trata-se de um material caro e sofisticado que, até o momento, não é produzido no país. Avião de fibra - As fibras de carbono

também possuem vasta aplicação na indústria aeronáutica, espacial, petrolífera e de materiais esportivos – raquetes e tacos de golfe a utilizam como matéria-prima, por exemplo. “A Embraer utiliza na fuselagem de seus aviões 10% de fibra carbônica, percentual que sobe para 50% no caso dos jatos da Boeing e da Airbus”, conta Elson Garcia. No final do ano passado, a Quimlab conseguiu produzir os primeiros filamentos da fibra carbônica, mas ainda trabalha para atingir as características físicas e mecânicas necessárias. Esse desenvolvimen-

to também conta com a participação de alunos e professores do programa de pós-graduação do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), de São José dos Campos, e apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por meio do programa Recursos Humanos em Áreas Estratégicas (RHAE) que investe cerca de R$ 150 mil no pagamento de bolsas de dois anos de duração para três mestres formados na instituição desenvolverem pesquisas relacionadas com a fibra. “Com a coordenação do professor Luiz Cláudio Pardini, eles estão fazendo a caracterização e determinação das propriedades da Thermpan visando principalmente a sua utilização na produção de fibra de carbono”, diz Alves. Outra instituição parceira da Quimlab no projeto das fibras carbônicas é o Centro Tecnológico da Marinha (CTM). “Temos uma manifestação formal de apoio do CTM, que desenvolve no Brasil um projeto para produção desse tipo de fibra sintética. Em breve, deveremos enviar as primeiras amostras de nossas fibras para realização das etapas de carbonização e ensaios físico-químicos nos laboratórios do órgão”, explica Nilton Alves. O CTM estuda o uso de fibras de carbono na produção de urânio enriquecido e submarinos fabricados no país. ■

Thermpan: polímero com processo produtivo menos tóxico ao ambiente

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ODONTOLOGIA

Sorriso branco Pasta com menos flúor e pH baixo diminui a incidência de fluorose em crianças | Marcos de Oliveira

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gostinho agradável dos cremes dentais esconde um perigo para crianças entre 11 meses e 7 anos de idade. Se ingeridas em excesso, as pastas provocam a fluorose, uma doença que deixa manchas esbranquiçadas ou opacas nos dentes em formação e nos casos mais graves provoca porosidade que facilita fraturas e a absorção de corantes dos alimentos. O vilão é o volume de flúor contido nos cremes dentais, embora ele possua um papel oposto e importante na proteção dos dentes contra as cáries, outro mal que pode trazer infecções e destruição dos dentes. A diminuição de flúor nas pastas para evitar a fluorose em crianças – esse problema não atinge os adultos – parece uma solução óbvia, mas não resolve o problema das cáries. “Não há evidências de que, ao diminuir o flúor, o efeito contra as cáries continue o mesmo”, diz a dentista Marília Afonso Rabelo Buzalaf, professora do Departamento de Ciências Biológicas da Faculdade de Odontologia de Bauru da Universidade de São Paulo (USP). Ela coordena uma série de trabalhos científicos que resultaram num dentifrício com menos flúor e composição modificada. Nos primeiros testes, o dentifrício, que é um gel fluido e aplicado em gotas na escova, se mostrou eficaz tanto contra a fluorose, que tem uma incidência no Brasil de cerca de 30%, como também na prevenção das cáries. A professora Marília lembra que até os 2 anos de idade as crianças, que tenham acompanhamento constante de um dentista, devem usar apenas pastas sem flúor. A proposta de fazer um dentifrício com baixo teor de flúor começou a ser desenvolvida em 2004. “Na formulação, compensamos a diminuição da concentração de flúor com a diminuição do pH, deixando o produto mais ácido”, diz Marília. O gel dental ganhou o prêmio principal da primeira Olimpíada da Agência USP de Inovação, em 2008, que teve os resultados conhecidos em novembro. “Ganhamos o primeiro lugar na área da saúde e o primeiro da olimpíada”, diz Marília. Além de um troféu, um notebook e R$ 5 mil, o grupo da professora Marília levou também um automóvel Chevrolet Prisma.

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A estratégia de diminuir o pH para 4,5 diante dos 7,0 utilizados nos cremes dentais que estão no mercado, adotada na elaboração do novo dentifrício, tem o objetivo de aumentar o poder de produção de fluoreto de cálcio nos dentes, substância que funciona como um reservatório de cálcio e flúor na boca. Ao promover uma ligeira dissolução da camada superficial do dente, formada por hidroxiapatita, o cálcio é liberado e se liga ao flúor da pasta formando o fluoreto de cálcio. Esse fluoreto é adsorvido (processo em que as moléculas de uma substância se fixam na superfície de outra) ao esmalte dentário, funcionando como um reservatório de íons protetores (cálcio e flúor), que serão liberados quando as bactérias da placa produzirem ácidos. “O pH menor aumenta a formação do fluoreto de cálcio”, explica Marília. As estratégias dos pesquisadores da USP já existem de forma separada em outros produtos. “Há pastas com pouco flúor, outras com pH baixo (não no Brasil) e outras líquidas. Nós combinamos tudo num único produto e o testamos num estudo clínico randomizado (feito por amostragem) de 20 meses.” Os testes clínicos foram realizados a partir de 2006 com financiamento da FAPESP na cidade paulista de São José dos Campos, onde mora o aluno de doutorado, Fabiano Vieira Vilhena, que realizou sua tese sobre o uso do dentifrício. Com a colaboração da Secretaria de Educação da cidade, ele conseguiu que

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aplicadas na escova pela técnica da gota, levaram à utilização de uma quantidade menor de dentifrício, o que foi refletido em níveis menores de flúor nas unhas. Portanto, ganhou-se a vantagem de a substância não ser ingerida e não passar para a corrente sanguínea. “O dentifrício líquido tem maior fluidez e consegue se incorporar melhor à placa”, diz Marília. Isso acontece, segundo os pesquisadores suspeitam, devido à consistência do dentifrício que facilita a circulação do flúor nos canais do esmalte do dente. Teste da dosagem - Engolir pasta de

dente é uma prática comum nas crianças menores porque elas não conseguem, no enxágue, expelir todo o conteúdo do creme. Isso se deve também ao exagero na dosagem do creme dental. Outro estudo realizado na cidade de Bariri, próxima a Bauru, mediu a dosagem do dentifrício líquido comparada com o creme dental que as crianças colocam nas escovas. Os pesquisadores mediram a dosagem do líquido, em gotas, que chegou, em média, a 0,14 grama, enquanto o creme atinge, em média, uma concentração de 0,50 grama. “Com uma quantidade maior fica mais fácil engolir o creme.” O estudo posterior, que deverá ser realizado nos próximos meses, será o de comparar o uso do novo dentifrício em cidades com e sem água fluoretada. “Em São José dos Campos tem flúor na água e a eficácia do nosso

produto pode ter sido auxiliada pela fluoretação da água.” Além das vantagens para a saúde das crianças, o novo dentifrício também pode trazer benefícios para o bolso dos pais. “A nossa formulação deixa o produto mais barato, podendo ser vendido a R$ 1,00 o tubo com 120 gramas”, diz Marília. A Agência USP de Inovação está preparando um edital de licenciamento para as empresas interessadas. Na patente, além de Marília e Fabiano, também consta o professor Alberto Carlos Delbem, da Faculdade de Odontologia de Araçatuba da Universidade Estadual Paulista (Unesp). ■

FOTOS MIGUEL BOYAYAN

o novo gel dental fosse distribuído para crianças com mais de 4 anos de idade das escolas da prefeitura. Participaram 1.400 famílias, que foram supridas durante os 20 meses com dentifrícios e escovas de dente. As famílias não sabiam se o produto era o do estudo ou outro semelhante. Assim foram formados quatro grupos. Três usaram líquidos, sendo um com a formulação idealizada pelos pesquisadores com 550 partes por milhão (ppm) de flúor e pH 4,5, outro com 1.110 ppm de flúor e pH 4,5 e o terceiro com 1.100 ppm de flúor e pH 7,0 (neutro). O quarto grupo recebeu um produto comercial na forma de creme, com 1.100 ppm de flúor e pH 7,0. “Nós medimos a progressão do índice de superfícies dentárias cariadas, perdidas por cárie ou obturadas, chamado de Ceos, e verificamos que todos os produtos foram eficazes contra as cáries e a fluorose. “A nossa formulação protege as crianças de forma eficaz como os de 1.100 ppm de flúor”, diz Marília. Em outro estudo, com uma subamostra de 20 crianças de cada grupo participante do estudo anterior, foram realizadas análises da placa bacteriana e das unhas. A placa foi analisada por ser um reservatório de íons de flúor que podem ser disponibilizados para o dente e as unhas, por ser um biomarcador da ingestão de flúor. O resultado é que, com o pH menor, dobrou a incorporação de flúor na placa. Além disso, as formulações líquidas, ao serem

O PROJETO Estudo clínico do efeito de uma nova formulação de dentifrício líquido com pH reduzido e baixa concentração de flúor na prevenção do aparecimento de novas lesões cariosas

MODALIDADE

Nova formulação do dentifrício em forma de gel garante menos flúor na escova

Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa COORDENADORA

MARÍLIA AFONSO RABELO BUZALAF – USP INVESTIMENTO

R$ 96.281,47 (FAPESP)

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HUMANIDADES

DIPLOMACIA

O dia em que o Brasil disse NÃO aos Estados Unidos

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ashington, dezembro de 1862: em meio a uma custosa, em vidas e dinheiro, Guerra Civil, em que a União estava desesperada por fundos a fim de sufocar a rebelião dos estados confederados, o presidente Abraham Lincoln, em seu discurso anual, o State of the Union, ousou pedir ao Congresso a liberação de US$ 600 mil para outro fim que não o conflito. “Os congressistas precisam liberar o dinheiro necessário para a deportação de pessoas negras livres para qualquer lugar fora dos Estados Unidos”, afirmou Lincoln – cujo bicentenário de nascimento é celebrado neste mês – em seu discurso anual. Não foi a primeira ou a única vez que o governante, um ano antes da proclamação da emancipação dos escravos, falou oficial e publicamente sobre seu interesse em deportar negros: foram cinco declarações políticas, incluindo-se dois State of the Union e o discurso que precedeu a emancipação. “O local onde penso ter uma colônia é na América Central. É mais próxima de nós que a Libéria [território no continente africano, dominado pelos EUA, para onde foram enviados libertos]. A terra é excelente para qualquer povo, especialmente a semelhança climática com sua terra natal, sendo, portanto, adequada às suas condições físicas”, escreveu num artigo para o New York

Tribune, “The colonization of people of african descendent”. “O plano oficialmente proposto pelo presidente Lincoln e sancionado pelo Congresso, para dar início à tarefa de colonizar fora dos EUA os negros libertos ou em vias de serem libertados no decorrer da guerra, está em vias de se concretizar no máximo em cinco semanas. Eles serão transportados à custa do governo e mantidos durante a primeira estação à custa do Estado e para tal uma verba foi aprovada pelo Congresso”, afirmava, em agosto de 1862, um editorial do The New York Times. Foi com esse espírito que Lincoln nomeou como representante extraordinário e ministro plenipotenciário dos Estados Unidos James Watson Webb, um antiabolicionista que via a libertação de escravos como potencialmente mais perigosa do que a escravidão em si. “Não é apenas do interesse dos Estados Unidos e absolutamente necessário para sua tranquilidade interna que se livre da instituição da escravidão, mas também, em consequência do preconceito de nosso povo contra a raça negra, se torna indispensável que o negro liberto seja exportado para fora de nossas fronteiras, pois conosco ele jamais poderá gozar de igualdade social ou política”, afirmou Webb em carta ao secretário de Estado de Lincoln, William Henry Seward. O tom, mais “discreto”, ainda assim não renegava (mesmo que Webb, então na situação, passasse a se dizer contrário

Comemoração da abolição da escravatura em Washington, 1866

à Secessão e, logo, à “lepra da escravidão”) os editoriais que escreveu, em 1843, para o Courier & Enquirer: “Libertar os negros do Sul e deixá-los onde se encontram será o início de um conflito que só poderá terminar com o extermínio de uma ou da outra raça. A raça negra é caracterizada por uma ignorância degradante e inferioridade mental, enquanto os escravocratas são honrados, patriotas e de mente elevada”. E foi na condição de representante oficial do governo americano que o mesmo Webb, em maio de 1862, submeteu ao governo brasileiro a proposta da constituição de uma empresa binacional de colonização da Amazônia com negros americanos livres ou em que seriam libertados ao longo da Guerra Civil. “O (marquês de) Abrantes apresentou três propostas do ministro americano, cujo fim é transvasar para o vale do Amazonas principalmente os negros que se libertassem nos Estados Unidos. O Abrantes ficou de tirar cópias de tão singulares propostas e de responder como convém ao Webb”, anotou dom Pedro II em seu diário em junho daquele ano, já ciente do projeto de “deportação” de negros. O primeiro historiador a chamar a atenção para essa história exótica foi Sérgio Buarque de Holanda, no prefácio que escreveu para o livro A Amazônia para os negros americanos, de Nícia Vilela, em 1968. “Não me ocorreu procurar em fontes documentais brasileiras outras notícias sobre o projeto. Percorrendo, com outros interesses, o arquivo pessoal do ministro Webb, hoje na biblioteca da Universidade de Yale, PESQUISA FAPESP 156

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Pesquisadora recupera documentos com proposta de deportar negros americanos para a Amazônia | Carlos Haag

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Banda militar de soldados nortistas da União na Guerra Civil

pude achar dois textos que se relacionam com o projeto”, afirmou Buarque de Holanda. A “dica” chamou a atenção da historiadora Maria Clara Sales Carneiro Sampaio, que saiu em busca de mais informações. Não achou nada no Brasil e partiu para Yale, onde teve acesso aos mais de dois mil documentos (que transcreveu) da coleção James Watson Webb Papers, dos anos 1862 e 1863.

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m meio à papelada examinada por Maria Clara havia: minutas do projeto, cartas enviadas a Seward sobre o andamento das negociações e anotações de Webb sobre a situação do Brasil, que, acreditava, estava carente de mão-de-obra escrava e aceitaria, de bom grado, receber os negros americanos em seu território. A partir do material levantado, a historiadora escreveu sua dissertação, Fronteiras negras ao Sul, orientada por Maria Helena Machado, professora associada da USP, onde o trabalho acaba de ser defendido. Maria Clara, em seu doutorado, vai expandir a pesquisa para os outros países também sondados por

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Lincoln. “Esse estudo revela as pouco conhecidas influências da Guerra Civil no Brasil. A ironia está no fato de o presidente Barack Obama ter Lincoln como modelo: se houvesse prevalecido a vontade dele, os EUA teriam expatriado os afro-americanos”, diz Maria Helena. “Ele foi um homem branco do seu tempo e, claro, compartilhava muitas das dúvidas de racistas sulistas sobre a possibilidade de negros se transformarem em cidadãos. No caso das expatriações, o interesse de Lincoln revela a sua dúvida se ex-escravos seriam assimilados na sociedade americana, mas também o seu feeling de que mais brancos, em especial aqueles dos estados fronteiriços entre o Norte e o Sul, apoiariam a abolição se fosse assegurado a eles que os negros libertos seriam ‘realocados’”, avalia a brasilianista Barbara Weinstein, professora de história em Yale. O principal argumento apresentado por Webb em seu projeto baseava-se no suposto “estado crônico de falta de mão-de-obra no Brasil, em especial nas províncias do Norte”: “O rápido aumento

do valor do negro no Rio de Janeiro e o avanço do café, somado ao decréscimo da população escrava, ao contrário da nossa, e que é de um tipo de africano bastante inferior aos trazidos ao Brasil, está rapidamente despovoando as províncias do norte do Império (Northern Provinces). A grande necessidade do Brasil agora é mão-de-obra. Pelas características de clima e solo, o trabalho negro é preferível ao branco”, justificava o americano. Não deixa de elencar as vantagens do uso do negro americano. “Deus criou nos corações do povo dos Estados Unidos, cujo clima e solo são propícios ao trabalho escravo, uma aversão à escravidão que resultou na maior guerra civil jamais vista. O negro que está prestes a ser manumisso (libertado) foi treinado para o trabalho: é dócil e tratável, mas suspira por liberdade. Deus, em Sua infinita sabedoria e misericórdia, tornou possível por meio da política e interesses dos EUA e do Brasil assegurar-lhe essa liberdade. O Brasil sofre pela falta de mão-de-obra. Quatro milhões de negros preparados para o trabalho, cada um valendo o equivalente a três africanos nativos, estão suspirando por liberdade e prontos para comprá-la no solo congenial do Brasil e sob as leis e instituições liberais brasileiras.” Afinal, continua Webb, “a Constituição do Brasil reconhece como iguais os negros dos homens brancos e igualmente elegíveis com ele aos mais altos cargos do Império, onde a distinção social entre as raças branca e negra, que já existiu, está quase erradicada”. O projeto, assegurava, era filantrópico. A base seria uma concessão ao governo brasileiro do direito de exclusividade de trazer para o Brasil colonos, africanos ou afro-descendentes, emancipados ou em via de o ser. O nome da proposta indica o sentido real: concessão ao general James W. Webb, que teria esse privilégio mantido por 20 anos. “As pessoas a serem introduzidas pelo concessionário e seus associados serão chamadas de ‘aprendizes’: seu trabalho por um período de cinco anos e um mês do dia do seu desembarque no Brasil será propriedade do concessionário”, afirmava o contrato de concessão. “Em vez de libertar o escravo imediatamente, ele será preparado para gozar de sua liberdade e, ao mesmo tempo, pagar por seu ensino, pelo custo de seu transporte e por

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sua futura moradia”, observava Webb na proposta. “Há indicações fortes de que havia interesses comerciais no projeto, tanto de Webb como de brasileiros, interessados em lucrar com a administração de uma companhia de imigração, nos moldes lucrativos das companhias de colonização na África, como a que gerou a Freetown, em Serra Leoa, em fins do século XVIII, por abolicionistas ingleses, com o objetivo de desembarcar africanos apreendidos em tráfico ilegal, ou a compra do território da Libéria pela American Colonization Society, nos anos 1820”, avalia Maria Helena. “O dedo de Deus aponta para as províncias do Norte do Brasil como o futuro lar dos escravos libertos dos EUA. O Brasil e o negro liberto irão ambos se beneficiar na mesma medida: um tratado entre os EUA e o Brasil, pelo qual todos os negros libertos dos EUA lá sejam agraciados com terras pelo governo do Brasil e ao término dos anos estabelecidos se tornem cidadãos brasileiros com todos os direitos e privilégios da população negra do Império”, argumentava Webb.

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eservadamente, o ministro americano até concede que, no caso dos estados do Sul do Brasil, a vinda de imigrantes brancos europeus seria uma solução, mas isso não daria certo na região dos trópicos ao norte. “Estando o tráfico de escravos em seu fim e verificando-se que a colonização da Europa consta em leis imprudentes e egoístas, bem, que sejam humildes os estadistas brasileiros frente às perspectivas que o futuro apresenta. A não ser que as províncias do Sul sejam satisfeitas com trabalhadores de fora, o que só pode ser conseguido com uma mudança nas leis de colonização do Império, as províncias abaixo do Equador perderão seus trabalhadores e o Norte, por causa disso, vai voltar a ser habitado por indígenas e bestas selvagens dos quais tinha sido resgatado com a introdução do trabalho africano”, escreveu Webb, em despacho sigiloso, para o secretário de Estado Seward. Mas não apenas a União olhava para o Brasil como uma válvula de escape capaz de resolver os problemas que se avizinhavam com a abolição generalizada dos africanos, resultado do avanço da guerra. Os estados confederados já cogitavam esse movimento muito antes de Lincoln, em

especial a partir de outro projeto polêmico, desenvolvido em finais da década de 1840 pelo tenente sulista Matthew Fontaine Maury, estudioso das correntes marítimas, inventor do telégrafo submarino e do torpedo fluvial, que seria usado pelos confederados, para os quais ele era um ídolo da estatura de Robert E. Lee, durante a Guerra Civil. “Maury propunha, sob a capa da discussão sobre a livre navegação do Amazonas, a imigração em massa dos plantadores de algodão sulistas e seus escravos para o vale amazônico, ou ainda a imigração forçada dos escravos, tornando-se a Amazônia a válvula de segurança dos EUA”, afirma Maria Helena. Segundo a pesquisadora, prevendo a possibilidade de confronto entre Norte e Sul e as ameaças de perda do controle da situação que poderiam surgir com uma “guerra de raças”, Maury preconizava a transferência dos negros, capitaneada pelos sulistas, para o Brasil. “Não estou querendo transformar um território livre em escravista ou introduzir a escravidão onde ela não existe. O Brasil é um país tanto quanto o é a Virgínia. Sei que você se alegraria ao despertar um dia e afirmar que não existe mais escravidão na Virgínia. Isso sem tirar as correntes de um só braço, nem levar nenhum escravo à liberdade”, escreveu Maury. “Havia a questão da representação política. Os confederados colocaram a Amazônia no contexto da visão da liderança sulista, que acreditava ser necessário expandir a escravidão para um novo território para que aquela

liderança continuasse a existir. Os confederados viam a escravidão como algo permanente e necessário ao seu modo de vida e estavam dispostos a derramar quanto sangue fosse preciso para impedir a abolição”, avalia Barbara Weinstein. “Só assim se pode entender a amplitude das propostas de Maury, que se convenceu de que o cenário privilegiado dos interesses sulistas estava na Amazônia. A medida que novos estados eram incorporados à União e a população dos estados não-escravistas crescia, o Sul viu-se ameaçado em sua representatividade. Expandir e anexar outras territórios era uma forma de equilibrar as forças políticas”, completa Maria Helena. “No momento em que os confederados resolveram se separar dos EUA, muitos se preocuparam em como vencer um Norte industrializado e mais populoso. O Deep South (o Sul profundo) aos poucos foi se convencendo de que teria que fazer uma aliança com o Brasil, o Deepest South (o Sul mais profundo) para sobreviver e assegurar que a escravidão seria mantida naquele hemisfério. Para figuras como Maury, o Brasil era não apenas a esperança de vencer a Guerra Civil, mas também um refúgio ideal em caso de derrota. Era o chamado slave imperialism, o imperialismo escravista”, afirma o brasilianista Gerald Horne, catedrático em história afro-americana da Universidade de Houston. Para tanto, tomar a Amazônia era uma necessidade e mesmo um dever, parte do “destino manifesto”: “Quem vai povoar o vale do poderoso Amazo-

O presidente Lincoln e seu ministro para o Brasil, James Watson Webb

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Escravos americanos

nas? Aquele povo imbecil e indolente ou ele será desenvolvido por uma raça com energia e engenhosidade capaz de domar a floresta e trazer à tona os recursos que jazem ali?”, perguntava-se Maury em carta ao cunhado William Herndon, encarregado pela Marinha dos EUA de explorar a área sem nenhuma permissão do governo brasileiro. “Creio que o Brasil não vai colocar obstáculo ao povoamento da região por cidadãos americanos que escolherem ir para lá com seus escravos. Assim como o vale do Mississippi foi a válvula de escape para os escravos do Norte, agora livres, o Amazonas será para aqueles escravos do Mississippi”, acreditava o militar confederado. O estabelecimento de uma “República do Amazonas” seria o ápice da expansão sulista sobre o Brasil, a ponto de o abolicionista negro Frederick Douglass confessar sentir-se alarmado com esses planos amazônicos que, segundo ele, “tinham sido iniciados por capitalistas de nossas metrópoles e por meio de expedições ao Brasil, país com que, sem sucesso, eles tentam estabelecer um tratado para a proteção e propagação da escravidão no continente”. “Para os confederados era necessária a combinação entre as duas grandes nações escravistas da América, uma forma de resistência à pressão abolicionista do resto do mundo”, nota Horne. Seward, por meio de Webb, por várias vezes repreendeu o Brasil por sua suposta colaboração com embarcações sulistas que desembarcavam no Rio e em Salvador, bem como temia que o Império reconhecesse oficialmente os estados confederados. Foi justamente o projeto de um “imperialismo escravista” da absorção do Deepest South, como o preconizado por Maury na década de 1850, que, 84

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em 1862, jogou um balde de água fria na proposta semelhante feita por Webb. “Foi necessária a cruzada de Maury para que o Brasil saísse do seu imobilismo e se dispusesse a enfrentar a questão da navegação do Amazonas. Em 1851, o governo imperial já cuidava de se entender com os estados ribeirinhos do Amazonas e seus afluentes, para uma futura política de limites de navegação e proteção do Amazonas”, explica Nícia Vilela em seu A Amazônia para os negros americanos. Assim, apenas em 1867 é que o Brasil se sentiu à vontade, dado o novo quadro estável de relações interamericanas, para abrir o Amazonas para a navegação internacional. “A reação brasileira ao projeto de Webb desenhou-se, em verdade, a partir da pressão da proposta de Maury, uma década antes. Enquanto o americano, nos EUA, propagandeava as vantagens de se ocupar o vale amazônico e as riquezas que seriam geradas pela livre navegação do rio, o Brasil começou a fazer esforços diplomáticos e políticos brutais para segurar o avanço norte-americano sobre a soberania do Império”, nota Maria Helena. Logo, não deveria ter causado surpresa a Webb a negativa do governo brasileiro.

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eneral: tive o prazer de ler com a máxima atenção os documentos que me confiou e agora lhe dou retorno em relação ao seu plano de introdução de negros libertos no Brasil. Devo admitir que o objetivo em si é altamente interessante. É minha opinião pessoal que suas ideias merecem consideração e que muitas delas, em circunstâncias favoráveis, seriam

de grande utilidade. No entanto, nada dessa ordem poderá ser tentada em nosso país, pois temos uma lei que impede expressamente a entrada de qualquer negro liberto em nossas fronteiras. Encaminho a lei para seu conhecimento. Renovo meus votos de apreço e estima. Abrantes.” O projeto foi arquivado. “A elite política brasileira já estava focada na atração de imigrantes brancos europeus para o Brasil: planos de imigração e colonização estavam totalmente orientados no sentido do ‘branqueamento’ da população brasileira, e mesmo propostas para trazer trabalhadores chineses falhou porque o Parlamento não aceitou a vinda de ‘não-brancos’”, analisa Barbara. “Havia também o desejo de proteger a Amazônia de intrusões comerciais estrangeiras, especialmente num momento em que o comércio de borracha se firmou como uma fonte de divisas significativas. Até se pensou em criar colônias agrícolas no Pará nessa época, mas seriam para brancos europeus.” Do lado americano, a rejeição brasileira incentivava cautela. “Você pensa que avista o dedo de Deus apontando para as províncias do Norte do Brasil como a terra de promessas, descanso e reparação dos escravos dos estados do Sul desta República e pede ao presidente poder para negociar um tratado para efetivar a remoção de tais homens. O presidente não pode, sem consideração adicional, atender a este pedido”, escreveu Seward em carta aberta a Webb, publicada no The New

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York Times. “O presidente, embora negando conceder a você, no momento, a autoridade que você solicita, convida-o para a continuação das suas discussões, a partir da importante posição que você ocupa em um país de condição tão sugestiva para o pensamento liberal.” Secretário de Estado e presidente pareciam não falar a mesma língua (basta lembrar que Seward foi preterido pelo Partido Republicano por Lincoln para concorrer à Presidência): “Eu declino de mudar a colônia de negros libertos para qualquer Estado sem antes obter o consentimento do seu governo. Ao mesmo tempo, ofereci aos vários Estados situados abaixo dos trópicos, ou tendo colônias nestes lugares, para negociar com os EUA, sujeito ao consentimento do Senado, em prol da emigração voluntária de pessoas daquela classe para os seus respectivos territórios, com a condição de que sejam recebidas de forma justa e humana. Lamento dizer que muitos que gostariam de fazer isso não o fazem porque apenas Libéria e Haiti estão disponíveis e as pessoas não estão tão interessadas em

ir para esses lugares tanto quanto para outros”, afirmou Lincoln em seu State of the Union, deixando claro que ainda tinha esperanças em ver concretizada a deportação voluntária. “O senhor Seward falou bastante sobre a questão da emigração da população negra. Homens de peso, entre eles o presidente Lincoln, acreditavam que a melhor coisa para ambas as raças era a separação e a conservação do Norte apenas para os brancos. Mas membros do Partido da Emancipação eram contra essa remoção, pois não consideravam sábio abrir mão de tantos músculos e braços e se era prudente entregar esse poder para nações que não necessariamente serão sempre amigas dos EUA”, escreveu Lord Lyons, ministro da Inglaterra baseado em Washington, para seus superiores, relatando uma conversa que tivera com o secretário de Estado poucos dias antes da proclamação da emancipação. “Lincoln, no entanto, presidiu uma nação em guerra violenta e precisava de apoio do exterior e, assim, a última coisa que desejava era se en-

volver num conflito com uma nação estrangeira. Qualquer interesse que tivesse no projeto ou no Amazonas era menor se comparado com a sua necessidade de manter boas relações diplomáticas com o Brasil”, analisa Barbara. “Uma razão para que os negros americanos permanecessem no Norte foi por causa da relutância de algumas nações, em especial o Brasil, de recebê-los em meio a uma Guerra Civil, da mesma forma que a simpatia desse país pelos estados confederados foi fundamental para os rebeldes”, acredita Horne. Isso foi determinante na vinda, após a guerra, de ex-confederados ao Brasil. “Muitos emigraram e até tentaram trazer seus escravos (alguns até conseguiram), pois queriam viver num país onde o escravismo permanecia. A maioria se desencantou e voltou, mas muitos ficaram e fundaram comunidades. Alguns até pensaram em usar o Brasil como plataforma para construir um novo império escravagista e reverter o resultado da guerra”, diz Horne. Mas o dedo de Deus agora estava nas mãos do Norte. ■

A Amazônia brasileira nos tempos da proposta americana de Webb

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ARQUEOLOGIA

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o dia 21 de fevereiro de 1862 o capitão de navio Nathaniel Gordon foi enforcado nos Estados Unidos, o único americano que sofreu a pena capital por participar do tráfico negreiro. “Por quatro décadas o tráfico foi considerado, por lei, um ato de pirataria, mas até então ninguém havia sido punido. A administração Lincoln virou uma página da história e com esse enforcamento a nossa história não será mais a mesma”, sentenciou um artigo da revista Harper’s Weekly daquele ano. Gordon era um velho conhecido do Brasil e teve o “privilégio” de comandar, em 1852, o último navio negreiro, o brigue americano Camargo, a desembarcar, com sucesso, 500 africanos em solo brasileiro. Depois de despachar a sua “carga”, Gordon ateou fogo ao navio, para evitar sua prisão (o tráfico estava proibido no país desde 1850), e escapuliu vestindo roupas femininas para os EUA. Ele não foi, porém, o único americano a bordo de uma embarcação produzida em Baltimore, Maine ou Nova York a aproveitar as vantagens de navegar com a bandeira ianque e lucrar, muito, com o tráfico de negros para o Brasil e Cuba. “Milhares de cidadãos norte-americanos enriqueceram com o comércio negreiro. Eles ficaram conhecidos por venderem e alugarem navios a comerciantes de escravos brasileiros nos portos de Salvador e Rio de Janeiro. As embarcações construídas nos Estados Unidos abasteciam os entrepostos escravistas na costa africana, forneciam apoio decisivo às expedições escravistas e transportavam milhares de africanos para a costa brasileira”, afirma o brasilianista Dale Graden, da Universidade de Idaho. Um cônsul americano no Rio de Janeiro, na década de 1840, avaliou entre 70% e 100% a rentabilidade dessas expedições negreiras em navios dos EUA, tanto do Sul escravista quanto do Norte supostamente abolicionista. A nacionalidade desses navios ainda se mantém como um fantasma mesmo após tantas décadas. “Um dos muitos problemas que tivemos para conseguir a autorização para mergulhar em busca dos destroços foi o fato de ele ser uma embarcação construída nos EUA, o que, de acordo com a Convenção da Unesco para Proteção do Patrimônio Cultural Subaquático, pode causar problemas diplomáticos ainda hoje”, explica o historiador Gilson Rambelli, da Universidade Federal da Bahia, e coordenador do projeto Arqueologia subaquática de um navio negreiro – A história que não está nos livros, financiado pela FAPESP. O objetivo de Rambelli

era justamente localizar Porto Bracuí, Angra dos Reis (ao sul do Rio de Janeiro), vestígios do Camargo, o brigue do capitão Gordon. Partindo do relato de mergulhadores locais, que recuperaram lanternas e peças do brigue (mais tarde usadas para decorar um hotel, hoje desaparecido, junto com os artefatos), Rambelli organizou uma expedição para encontrar restos do navio. “Para a arqueologia subaquática é uma cápsula do tempo preciosa, capaz de dar voz àqueles cujo sofrimento foi algo esquecido pela história.” “As embarcações americanas tinham muitas vantagens para o tráfico, pois eram velozes, capazes de despistar perseguidores da Marinha Real Britânica e piratas, além de economizar tempo nas viagens, uma economia essencial de água e suprimentos e, logo, de vidas, no caso a ‘carga perecível’: seres humanos”, observa. “Do ponto de vista político, o pavilhão americano permitia privilégios, como a não permissão de vistoria a bordo, eliminando o perigo de serem presos pelos ingleses.” Para o pesquisador, a possibilidade de se poder atear fogo a um navio revela o lucro do tráfico, que permitia esse “luxo”, para livrar tanto a tripulação quanto os clientes, poderosos da região, de enfrentar a Justiça. “Angra e Ilha Grande sempre foram paraísos de contrabandistas”, diz Rambelli. A facilidade de então do tráfico não se repete hoje na pesquisa dessa atividade. Em 2004, o historiador encaminhou à Marinha um pedido para explorar o fundo

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Tráfico made in USA A busca pelo Camargo, um dos muitos navios negreiros americanos que vieram ao Brasil

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do mar e recebeu, quase um ano depois, uma resposta negativa, iniciando uma verdadeira “batalha naval” para poder completar seu projeto. No ano seguinte encaminhou outro pedido de autorização, dessa vez para o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Como resultado só conseguiu realizar poucos mergulhos antes do final do seu financiamento, tendo localizado madeiras náuticas que, acredita, possam indicar a localização do Camargo. “Se por um lado a pesquisa arqueológica perdeu tempo precioso com tramitações políticas e burocráticas, por outro, ao permitir que Iphan e Marinha sentassem para discutir o tema, está legitimando a nossa preocupação e abrindo caminho para a compreensão futura da importância da arqueologia subaquática no Brasil.” Se os segredos do Camargo estão guardados no mar, a participação americana no tráfico foi um divisor de águas para os senhores de escravo brasileiros após a promulgação da Lei Eusébio de Queiroz, em 1850, que proibia o comércio negreiro. “Durante todo o dia 4 de julho (dia da independência americana) nós decoramos o navio para celebrar a data e disparamos uma saudação do canhão que tínhamos a bordo. Às quatro da tarde daquele dia recomeçamos o embarque da nossa carga e uma hora mais tarde tínhamos embarcado 746 negros, levantamos âncora e partimos”, contou

William Anderson, imediato do Quinsey, navio negreiro americano, ao cônsul americano no Rio de Janeiro, em 1851. “Eu arriscaria afirmar que nenhuma embarcação dos EUA é vendida no Brasil para ser destinada a um porto na África, sem que o comandante e a tripulação dos Estados Unidos, se não os donos, de livre e espontânea vontade viabilizem e contribuam para perpetuar o tráfico”, escreveu o ministro norte-americano para o Brasil Henry Wise, um sulista

escravocrata que lutou contra o tráfico em águas brasileiras pelo simples fato de que a maioria dos navios negreiros ianques vinha do Norte, rival na Guerra Civil. “Desembarques clandestinos eram realizados com a cumplicidade de uma série de agentes do Estado corrompidos por traficantes e senhores de escravo. O abuso de funcionários da Marinha e do Exército era tal que muitos alugavam instalações do governo para servir de depósitos de escravos. Apesar de algumas medidas, muitos duvidaram do peso da nova lei”, avalia o sociólogo Luiz Alberto Couceiro, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O pouco-caso acabou com o “caso do Bracuí”. Presos - Em dezembro de 1852, o Diá-

rio do Rio de Janeiro noticiou o “boato” de que um navio americano havia desembarcado africanos no porto de Bracuí. O imperador pessoalmente foi informado de que dois marinheiros americanos haviam sido presos, membros da tripulação do Camargo. O delegado local era também dono de escravos e seu envolvimento repercutiu na imprensa da Corte. “Um contingente de 400 praças foi enviado para patrulhar a região de Angra. Após a intervenção do Estado nas fazendas onde os escravos haviam sido ilegalmente comprados, apenas 38 negros foram recuperados. Além disso, a partir do 88

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Cenas de horror nos navios negreiros, onde pessoas ficavam como sardinhas

fato político, outros escravos da região acharam que tinham o mesmo direito e fugas começaram a acontecer. Escravos presos diziam que estavam exercendo o seu direito à liberdade, como os africanos trazidos no Camargo que foram libertados”, afirma Couceiro. Foram três meses de investigações e manobras políticas que levaram a uma queda de braço com o Império, que queria mostrar ser ele, não os proprietários, a mandar na nação, dizendo o momento certo de tomar atitudes contra o trabalho escravo. “Foi uma ação orquestrada. Segundo carta do responsável pela investigação, Ildefonso de Souza Ramos (substituto de Eusébio de Queiroz), ao aportar o barco comandado pelo americano, Gordon, muitas canoas se aproximaram e os africanos desembarcaram em terras da fazenda Santa Rita”, observa a historiadora Martha Abreu, da Universidade Federal Fluminense. Perseguido antes por um navio inglês, Gordon incendiou o navio, prática corriqueira entre outros comandantes americanos de navios negreiros. Valia a pena: um escravo comprado na África por US$ 40 valia em terras brasileiras, cuja produção crescente de café demandava escravos que não mais eram “importados”, de US$ 400 a US$ 1.200. Assim, uma carga de 800 escravos podia render a fortuna de US$ 960 mil: US$ 100, em 1850, correspondem, hoje, a US$ 4 mil. Pelo menos 430 navios americanos teriam feito 545 viagens escravistas às Américas entre 1815 e 1850, a maioria para Cuba e para o Brasil. Muitos baleeiros foram convertidos em navios negreiros ou serviram como disfarce para americanos traficarem escravos para costas brasileiras. Então Nova York ganhara a honra dúbia de ser o maior entreposto de tráfico negro do globo. “É lamentável que a Grã-Bretanha e os Estados Unidos sejam obrigados a gastar tal montante de sangue e dinheiro para

a supressão do tráfico escravo”, afirmou Lincoln pouco antes de tomar posse como presidente. A chegada da Guerra Civil desviou para outras funções os poucos navios ianques destacados para patrulhar águas americanas, e até 1862 os britânicos não tinham permissão de abordar embarcações com bandeira dos EUA. “Em minha opinião, o Brasil, em nome dos descendentes de escravos trazidos para o seu país, deveria exigir reparações dos EUA por esses atos ilegais cometidos há 150 anos”, diz o brasilianista Gerald Horne. O último navio americano a transportar africanos para o Brasil foi a escuna Mary E. Smith, que deixou Boston em 1855, com destino à costa do Espírito Santo, onde chegou em janeiro de 1856, carregando 400

negros, traficados da África, a bordo. Um vapor brasileiro, o Olinda, abordou a escuna e o escoltou até Salvador, onde se verificou que havia mais de 70 africanos mortos de doença contraída na viagem. A população de Salvador entrou em pânico, apavorada com uma possível epidemia. Nas duas semanas seguintes em que a escuna esteve presa mais cem cativos morreram (incluindo o capitão americano). Os tripulantes foram julgados e sentenciados a três anos de prisão, apelando para o cônsul americano Richard Meade. Dom Pedro II chegou mesmo a receber o mais velho dentre eles e concedeu o perdão oficial a todos em 1858. ■

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SOCIOLOGIA

d N a a r o da Mestre de capoeira mistura luta baiana e globalização em Nova York

REPRODUÇÃO

vida Gonçalo Junior

Mestre João Grande: o pescador de futuros adeptos da capoeira

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ascido em Itagi, no interior da Bahia, João Oliveira dos Santos cresceu como lavrador e gostava de observar a movimentação dos bichos no mato – que, mais tarde, associaria à da capoeira. Órfão de mãe, sem ter frequentado escola, virou tropeiro até que num domingo, aos 20 anos, quando descansava nos degraus da igreja da cidade, um casal de mascates lhe perguntou se não gostaria de ir para Salvador. Não pensou muito e partiu com uma trouxa de roupa. Ao chegar, deparou-se com uma roda de capoeira angola e reconheceu um lance que havia visto em sua infância, sem saber do que se tratava. Curioso, perguntou a Mestre Barbosa o que era aquela dança, ele respondeu: “É capoeira”. E João recorreu ao Mestre Pastinha para ensiná-lo. Surgia o Mestre João Grande, que, ao lado de João Pequeno, tornou-se o guardião da capoeira angola, mesma expressão pela qual era conhecido Mestre Pastinha. Destacou-se tanto na capoeira angola em Salvador a ponto de Mestre Canjiquinha, um expoente da arte, ter afirmado: “Foi Deus quem fez João Grande

jogar capoeira”. Mas ele não vivia da dança, trabalhava na construção civil. Até que decidiu fazer shows folclóricos. Ingressou no Viva Bahia, o pioneiro grupo folclórico de Emília Biancardi, e viajou para a Europa e Oriente Médio, na década de 1970. Antes disso, em 1966, foi à África com Mestre Pastinha participar do Festival de Artes Negras de Dacar, no Senegal. Na década seguinte, enquanto Pastinha morria pobre e cego num cortiço do Pelourinho, João Grande trabalhava num posto de gasolina. O mestre não mais praticava capoeira quando surgiu um movimento de resgate da luta na Bahia durante a década de 1980. E ele retomou o ofício de ensinar no Forte Santo Antônio, onde já estava instalado Mestre João Pequeno. O lugar começou a ser frequentado por intelectuais norte-americanos interessados na dança, que viam como legado da diáspora africana. Foram os casos de Ken Dossar e Daniel Dawson, que o convidaram para participar do Festival de Artes Negras de Atlanta, Nova York, em 1990. Ao fim do evento, recebeu um convite de um capoeirista chamado Nego Gato para dar aulas no Harlem. Mestre João Grande aceitou e, graças a uma aluna inglesa, a professora universitária Tisch Rosen, que ele apelidou de Risadinha, conseguiu abrir sua academia, Capoeira Angola Center, na rua 14, em Manhattan. Hoje, aos 75 anos, Mestre João Grande pode não ser o mais conhecido capoeirista baiano, mas, talvez, nenhum tenha recebido títulos tão importantes e homenagens relevantes quanto ele. Em 1994 tornou-se doutor honoris causa pela Upsala College, de Nova Jersey. Sete anos depois, levou o National Heritage Fellowships, só para citar dois. E acaba de se tornar tema do doutorado Na roda do mundo: Mestre João Grande entre a Bahia e Nova York, defendido na USP PESQUISA FAPESP 156

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por Maurício Barros de Castro, com orientação de José Carlos Sebe Bom Meihy. O estudo procura relacionar a globalização e o impacto da ancestral capoeira angola na moderna e cosmopolita cidade americana. O autor explica a importância das tradições no vertiginoso mundo moderno, a partir da reflexão sobre o papel da capoeira no processo histórico brasileiro, diante dos conflitos entre a ancestralidade africana e a construção da identidade nacional. Castro conta que sua pesquisa nasceu de uma indagação: como Mestre João Grande conseguia manter suas tradições numa cidade como Nova York, onde “tudo que é sólido se desmancha no ar”, segundo expressão de Karl Marx utilizada por Marshal Berman, que escreveu um livro com esse título e trata, entre outros assuntos, da questão da modernidade na maior cidade americana. “A pergunta era importante porque a capoeira angola é uma cultura que se baseia na preservação e transmissão das tradições e Nova York é considerada o centro do mundo globalizado”, explica. Ao contrário do que se pode pensar, prossegue ele, as tradições fazem parte da modernidade. “O discurso da tradição foi pronunciado justamente com o advento da sociedade moderna, como forma de resistência a ela. A própria modernidade possui centenas de séculos e pode ser definida como uma moderna tradição, conforme dizem Octavio Paz e Renato Ortiz.” Para o pesquisador, na sociedade moderna, o culto da tradição está mais forte do que nunca. “Um dos pilares do sucesso de Mestre João Grande em Nova York é uma valorização da cultura tradicional existente na cidade, apesar de ela refletir a modernidade global e produzir cenas como a da explosão das torres gêmeas do World Trade Center.” A capoeira angola de Mestre João Grande é valorizada pela intelectualidade e juventude de Manhattan por ser considerada uma importante forma de resistência cultural à sociedade capitalista globalizada. “Mas é claro que Mestre João Grande, por exemplo, também é favorecido pela globalização, viaja para vários lugares do mundo, tem alunos de vários países, mas isso não impede que ele mantenha seu cultivo da tradição.” 92

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Arte feita para ser praticada por todas as raças de qualquer estrato social

Assim, a globalização serve ao Mestre João Grande possibilidades de transitar pelo mundo e divulgar sua arte. Por outro lado, coloca-lhe armadilhas no caminho. “A questão da identidade é fundamental na ‘modernidade líquida’, como define Berman. Temos uma multiplicidade de identidades, conforme Homi Bhaba.” O desafio de Mestre João Grande, portanto, está em manter sua identidade de mestre de capoeira angola – uma condição que remete à manutenção de rituais afro-descendentes – no ambiente globalizado em que tudo é imposto, inclusive a língua. “Ele afirma que nunca precisou falar inglês para ensinar capoeira – os alunos buscam aprender o português para cantar nas rodas.” Hegemônico - Na globalização, obser-

va Castro, existe um multiculturalismo hegemônico que tenta reduzir tudo a uma cultura comum. “É o caso das tentativas de alguns grupos de capoeira de introduzir canções em inglês nas rodas. Mestre João Grande resiste a isso, e não apenas porque não fala inglês, mas porque percebe que isso mais enfraquece do que fortalece a identidade da capoeira angola”, afirma o pesquisador, que cita as entrevistas que realizou como principais fontes do trabalho. Outras referências foram as músicas da capoeira, notícias de jornais e revistas e uma ampla bibliografia.

O pesquisador ressalta que normalmente se associa o debate entre a capoeira angola e a regional à discussão sobre pureza e mestiçagem, em voga entre os intelectuais da época, como Gilberto Freyre, Edison Carneiro e Roger Bastide. “Mas acho que, na verdade, Pastinha e Bimba tinham ideias muito próximas, ambos queriam socializar e ensinar a capoeira para um público mais amplo, defendiam seus aspectos esportivos e tinham fortes referências negras.” Bimba, que era filho de negros, até mais do que Pastinha, que era filho de um espanhol com uma baiana. “A diferença entre eles era que Pastinha mantinha o discurso da ancestralidade africana e Bimba afirmava que a capoeira nascera na Bahia, era uma cultura local.” De acordo com o pesquisador, Pastinha também defendia as tradições da capoeira, enquanto Bimba quis modernizá-la. “Tratava-se de duas estratégias distintas de afirmar a cultura negra na sociedade brasileira.” Um outro aspecto importante que vale ressaltar, acrescenta, é que se trata de um estudo dedicado à capoeira angola e não à capoeira de uma forma geral, como é mais comum encontrarmos nas pesquisas sobre o tema. “A capoeira encanta pessoas de todo o mundo e já está difundida em mais de 150 países e em todos os cinco continentes. Este foi um dos motivos

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a superação das análises estruturalistas, limitadas à sincronia. “Dependentes da diacronia, pela história, despertam-se novas interpretações que questionam modelos presentes indicando reconstruções de aspectos menosprezados. No caso específico da capoeira, a dominação da capoeira regional, como padrão hegemônico, desafia entendimento das fases históricas de apropriação de linhas que receberam apoio oficial – em particular sob o governo de Getúlio Vargas – e assim abafaram o outro ramo.” Patrocínio - A capoeira angola, diz o

orientador, modalidade menos prestigiada, “asilou-se” na memória de poucos e recentemente tem ressurgido como manifestação crescente e paralela à sua irmã, a regional. “A história da estranha relação entre duas modalidades é importante para o entendimento das escolhas do patrocínio governamental e também da popularidade que chegou a eclipsar o adjetivo distintivo entre as duas. A institucionalização de uma po-

lítica cultural orientadora do critério de seleção de modelos deve ser contrastada com a memória, resistente, da manifestação preterida. Por mais que a capoeira angola tenha sido deixada de lado, não morreu, sobreviveu na obscuridade, mas reponta agora com força e prestígio desafiadores de explicações.” Outro fator interessante na sua opinião é o sucesso da capoeira angola, em particular na cidade de Nova York. “Com incrível popularidade entre os norte-americanos, a figura do mestre João Grande é exemplar. Vivendo no sofisticado Soho nova-iorquino, o mestre nordestino, que não fala inglês, exerce sua função de capoeirista como se o cenário fosse o Brasil.” E seus “alunos” são das mais variadas procedências do mundo. “A sobrevivência da capoeira angola na mais moderna cidade do globo, em Nova York, é um fenômeno que expõe os critérios de seleção promovidos pela globalização que acolhe esta modalidade como se ela fosse universal.” ■

JORGE ARAUJO/FOLHA IMAGEM

CAIO GUATELLI/FOLHA IMAGEM

que levaram o governo a reconhecê-la como Patrimônio Cultural do Brasil, em julho de 2008.” A preparação da tese de Castro sobre um mestre de capoeira pode ser vista como exemplo do crescente interesse da academia por temas populares, em particular aqueles que se prestam à consideração de manifestações públicas como o futebol, a religiosidade, as festas. “Esses assuntos passam gradativamente a preocupar setores crescentes e uma boa dimensão disso pode ser notada pelo número de dissertações e teses acadêmicas que convivem com artigos em jornais e revistas sobre comportamento”, afirma José Carlos Sebe Bom Meihy, orientador de Castro. “A antropologia, como seria de esperar, saiu na frente, abrindo caminho para a sociologia e para a história e, hoje, estudos se estendem às áreas de psicologia, esportes e lazer.” Neste quadro, acrescenta Meihy, o caso da capoeira é significativo, uma vez que a perspectiva histórica sugere

Capoeira e política: roda em plena campanha das Diretas Já

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... FICÇÃO

A morte da ciência

Lufe Steffen

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u digo que a ciência não morreu e posso provar! As palavras do professor Anselmo reverberavam em meus ouvidos. Durante sua última palestra na universidade, olhares incrédulos miravam o ancião mestre, que parecia quase patético em sua atuação, travando uma guerra imaginária entre ciência e tecnologia. — Mas a tecnologia não está justamente a serviço da ciência, professor? — eu tinha perguntado isso ao mestre há algumas semanas, quando o encontrei na saída da biblioteca. — A tecnologia é muito maravilhosa, mas perigosa também... — balbuciou o professor, afastando-se. Agora, ali, no meio do calor da palestra, minha mente avançava, temerosa de que os comentários gerais na universidade fossem verdade: o professor Anselmo estaria de fato ficando caduco, teimoso e louco – e, pior ainda: ultrapassado. Não era novidade o comportamento do mestre. Sempre rejeitando utilizar as chamadas novas tecnologias, preferia continuar escrevendo teses e mais teses, enormes tratados científicos, químicos e biológicos, à mão! Mesmo tendo à sua disposição os computadores da universidade, recusava-se a utilizar as “engenhocas malignas”, como ele dizia. Chegou a comparar os PCs ao vilão do filme 2001, o famigerado computador HAL 9000 – que se rebela contra os astronautas e toma o poder na astronave. Numa ocasião, reza a lenda, chegou a expulsar de uma aula demonstrativa de química um aluno que estava gravando tudo com uma câmera de vídeo digital. Bradou convicto que a experiência química era única, praticamente um acontecimento da natureza sob a ação do homem, e como tal não devia ser documentada – muito menos por uma “engenhoca moderna, uma planta carnívora feita de metal”, concluiu. Diziam que em sua residência o mestre só usava máquinas de escrever ou os velhos e bons lápis grafite. E que no seu

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laboratório particular de biologia os aparelhos e tubos de ensaio eram dos mais primitivos, criando um cenário de filmes de horror B dos anos 40. Seria o mestre uma mistura do dr. Frankenstein com o Professor Aloprado de Jerry Lewis? Ou, pior: uma versão real do abominável dr. Phibes... Fascinado e ao mesmo tempo aterrorizado com tais fantasias, resolvi visitar o reduto do mestre. Não foi difícil conseguir o endereço dele na administração, com a desculpa de que faria uma entrevista com o professor para publicar na revista científica da universidade. Mas como entrar na casa? E com qual desculpa? Nem eu mesmo sabia, mas segui em frente, movido por uma estranha energia sensorial. Acabei usando a mesma mentira da universidade, quando a empregada abriu a porta da casa: disse que queria entrevistar o professor. Estranhamente, ele me recebeu. Eu nunca tinha tido muito contato com o mestre Anselmo, somente fui aluno ouvinte dele em algumas aulas de física quântica. Achava muito pitoresca a figura do mestre, com cerca de oitenta e cinco anos, ainda na ativa, desfilando pelos corredores como um personagem de filme mesmo, ou de histórias em quadrinhos. Por todo seu passado de pesquisador nas áreas de física, química e biologia, autor de teses seminais sobre variados temas, premiado e reconhecido nacionalmente, o mestre continuava respeitado, apesar de suas excentricidades. Acabava sendo uma figura folclórica no ambiente acadêmico. Mas enfim, apesar dessa imagem distante, tive então a chance de conhecer melhor o professor Anselmo. Ele me perguntou para onde seria a entrevista, e eu insisti na mentira: a entrevista seria publicada na revista científica da universidade. — É bom mesmo falarmos da ciência... ainda posso provar que ela não está morta! — anunciou o mestre.

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LAURA TEIXEIRA

Preparei meu gravadorzinho de pilha, à moda antiga, pois sabia que, se tirasse do bolso um mp3 para realizar a entrevista, corria o risco de ser chutado da casa a pontapés. Comecei a gravar a conversa com o mestre. Eu suava frio, pois na verdade nem mesmo tinha preparado perguntas ou coisa parecida. Improvisei como um ator, um autêntico mentiroso. — Por que o senhor acha que estão tentando matar a ciência? — O avanço da tecnologia está tirando o foco da verdadeira ciência! — Desenvolva, professor. Mestre Anselmo passou a atacar as novidades do mundo moderno, detendo-se nas maravilhas da Antiguidade, nas invenções que o homem criara em “tempos românticos”, em meio à espontaneidade e sem os “supostos apoios viciados de hoje”. Tentei argumentar que o microscópio, por exemplo, era uma invenção moderna muito útil, e que sem ele o próprio professor não teria realizado alguns de seus grandes feitos e descobertas. O mestre rebateu, dizendo que o microscópio foi uma das últimas invenções válidas antes do império nefasto das mídias. E o professor iniciou seu longo discurso, crucificando os meios de comunicação, novas mídias e a internet. — Mas a internet não é útil, por exemplo, para alunos pesquisarem seus trabalhos, para democratizar a informação para aqueles que não podem comprar livros? — A informação na internet está deturpada, desvirtuada! — foi a resposta. — A liberdade de acesso permite que qualquer pessoa, com ou sem base, publique o que quiser ali. E quem lê muitas vezes é logrado, tomando como verdade coisas que muitas vezes não são! Comecei a ficar assustado com as opiniões do professor. Uma junção de paranoia e preconceito emanava de suas declarações, que ao mesmo tempo não deixavam de fazer

sentido. Mas como levar a sério tudo o que ele dizia? Uma postura tão radical poderia levar a um isolamento, a um estado de reclusão, a um mundo particular. E era isso mesmo. O professor Anselmo estava morando num mundo particular. Ele já não fazia parte da realidade. Era um homem congelado. Ele próprio tinha virado um assunto de estudo científico. Seu cérebro, este sim, tinha de ser doado à ciência. E foi com esse argumento que finalizei o texto que introduzia a entrevista do professor. Eu, que tinha procurado o mestre sem nem mesmo saber por que, levado por uma misteriosa sensação, acabei redigindo um texto de quatro páginas, uma entrevista onde o professor esbanjou todo seu espantoso conhecimento, recheado de opiniões polêmicas, sempre rechaçando as fantasmagóricas “novas tecnologias”. Passei o fim de semana escrevendo. Terminei, e na segunda-feira corri para a redação da revista da universidade. Queria que publicassem a entrevista no próximo número. Mal pude dizer minhas intenções, pois estavam todos correndo de um lado pro outro, desnorteados. Uma notícia abalava o mundo científico: o professor Anselmo estava morto. Num misto de perplexidade e satisfação, pensei que eu conseguiria todo o espaço que queria na revista. Minha entrevista seria publicada com destaque, afinal de contas eu, quem diria, era o dono da última entrevista concedida pelo louvado mestre. E naquele momento, parado no meio da correria na redação, tive certeza do título da matéria: “A Morte da Ciência”. Lufe Steffen, 33 anos, é cineasta, jornalista e escritor. Dirigiu curtas-metragens, colaborou com sites e revistas, e é autor do livro Tragam os cavalos dançantes, lançado em 2008. PESQUISA FAPESP 156

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.. .. RESENHA

Os limites das decisões humanas Livro aprofunda os temas de interesse de José Goldemberg Luiz Gylvan Meira Filho*

O O mundo e o homem José Goldemberg Editora Perspectiva 324 páginas R$ 45,00

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livro O mundo e o homem reproduz artigos escritos para O Estado de S. Paulo (mais um escrito para o Correio Braziliense) pelo professor José Goldemberg e publicados ao longo de dez anos. Como sou assinante do Estadão, já havia lido a grande maioria deles. Ainda assim, foi muito interessante relê-los em conjunto. O professor Goldemberg desenvolveu a capacidade de escrever num estilo agradável para uma leitura durante o café da manhã, com precisão técnica sem exigir malabarismos como buscar na memória o fator de conversão de diferentes unidades físicas ou, o que é pior, levantar da mesa para consultar uma tabela com fatores de conversão de unidades. O livro não se propõe a fazer previsões sobre o que ocorrerá no século XXI. Realisticamente, o autor reconhece que tentativas no passado não tiveram tanto sucesso. Mostra, sim, que algo do futuro pode ser previsto como resultado do progresso incremental baseado em conhecimento já existente e relata como no século passado algumas mudanças grandes resultaram de progressos importantes no conhecimento, como no caso da teoria da relatividade e da mecânica quântica, que, evidentemente, não haviam sido previstas. Permeia todo o livro a preocupação com o homem. Reconhece que as decisões humanas não são suscetíveis de previsões com a mesma natureza das previsões científicas. Tomo a liberdade de ir mais além – quando isso foi tentado, o resultado foram regimes autoritários que buscaram demostrar o acerto das previsões por meio da imposição de limites à liberdade. Por outro lado, o professor Goldemberg busca mostrar os limites das decisões humanas, condicionadas que estão por considerações facilmente estabelecidas mas pouco conhecidas em geral, com o conhecimento existente atualmente. Os artigos individuais estão organizados em seis grandes temas que, sabemos, foram objeto de interesse (e de responsabilidade, nos inúmeros cargos públicos que ocupou em sua carreira) do professor Goldemberg. No capítulo sobre Ciência, os artigos nos lembram a forma como a ciência evolui, com o respeito absoluto à observação da natureza e a busca das anomalias, ainda que sutis, em relação ao que era esperado, pois é da análise dessas anomalias que é gerado conhecimento. Discorre o autor sobre a interação, nem sempre fácil, entre a ciência e o poder político, e apresenta reflexões sobre como a ciência poderia melhor contribuir para o bem-estar da população do Brasil.

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Os artigos sobre Meio Ambiente e Clima, temas com ampla discussão na imprensa, servem para trazer um pouco de sobriedade ao debate que, por sua intensidade, acaba incluindo erros de avaliação. O professor Goldemberg foi dos primeiros brasileiros a chamar a atenção para o fato de que a mudança do clima provocada pelo homem passaria a ser um tema de importância crescente no futuro – isso no final da década de 1980. Como registro histórico, foram os seus comentários que me levaram a prestar atenção à mudança do clima além da previsão de tempo e clima (na época eu me dedicava à criação do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos do Inpe). Seus artigos sobre o tema, ainda que não muito numerosos, representam uma avaliação muito precisa dos desafios que teremos de enfrentar nesta área. O tema da Energia é tratado de forma difícil de encontrar em outros textos. A população em geral tem alguma dificuldade em perceber a diferença entre energia e potência. Alguns profissionais do setor seguem paradigmas predefinidos sem atentar para o fato de que existem potencialmente alternativas disponíveis com relativa facilidade. É o caso, por exemplo, do uso do bagaço de cana para gerar energia elétrica. Lembro a frase usada pelo professor Goldemberg em seminários: “Há uma Itaipu dormente nos canaviais paulistas”. A preocupação com energia é de todos nós, inclusive por seu impacto na economia, e pelos desdobramentos quanto à segurança de abastecimento de energia e impactos na mudança do clima. O tema é tratado de forma facilmente compreensível. A Amazônia, região importante do Brasil e em geral vista através de mitos, passou a ser vista de forma sinóptica graças às sugestões do professor Goldemberg, na época reitor da USP, ao incentivar o Inpe a usar suas imagens de satélite para ver o que estava acontecendo por lá. Em muitos anos de trabalho, aos poucos os mitos são substituídos por conhecimento e formulação dos reais desafios associados ao ordenamento territorial de uma parte importante de nosso território. Os artigos sobre o tema resumem os aspectos que, por mais difíceis que sejam, precisam ser levados em conta no debate ainda em curso sobre a Amazônia.

nucleares para abrir um novo canal do Panamá, e isso era visto como algo natural. A experiência acabou mostrando as limitações impostas pelo comportamento humano. A lição dos artigos sobre este tema é de que a energia nuclear é um tema muito importante e que não pode ser tratado somente pelos especialistas e pelos interessados, mas sim pela sociedade como um todo. A leitura desse capítulo ajuda neste debate. Por último, a série de artigos sobre a Universidade apresenta uma reflexão lisongeira e otimista sobre o papel que a universidade pode e deve ter no desenvolvimento econômico e social de nossa população. Faz neles uma defesa intransigente da necessidade de um sistema de meritocracia e de excelência em pesquisa para efetiva geração de conhecimento. Numa época em que o ensino universitário privado supera o público, o professor Goldemberg defende a necessidade de estender ao setor privado o requisito de que a universidade, para merecer este nome, deva ser não somente uma instituição que transmite o conhecimento de livros existentes, mas uma geradora de conhecimento, na melhor tradição da definição de universidade na Alemanha, onde o conceito foi originado. Em resumo, recomendo que o livro seja lido por oficiais dos governos, se preferirem um artigo por dia no café da manhã. Mas também que seja lido por todos, quase como um manual de sobrevivência para enfrentarmos em melhores condições os desafios reais do século XXI.

Energia nuclear - Como a maioria dos físicos de sua

geração, o professor Goldemberg dedicou-se ao tema da energia nuclear numa época em que, devemos lembrar, ela era vista como uma panaceia para muitos problemas da humanidade. Falava-se, por exemplo, em usar bombas

Luiz Gylvan Meira Filho é pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo PESQUISA FAPESP 156

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.. .. LIVROS

A integração do negro na sociedade de classes (vols. I e II)

De Orfeu e de Perséfone: morte e literatura

Florestan Fernandes Editora Globo 440/624 páginas, R$ 64,00/R$ 80,00

Lélia Parreira Duarte (Org.) Ateliê Editorial, Editora PUC Minas 448 páginas, R$ 40,00

Obra composta por dois densos volumes, trata-se da tese que colocou Florestan Fernandes entre os mais célebres pensadores do país. O estudo minucioso sobre a questão racial mostrou que, apesar de o Brasil se inserir numa ordem moderna e democrática, continua a apresentar sérias características de uma sociedade estamental, o que impossibilita a efetiva inserção dos negros e mulatos na estrutura de classes.

Utilizando símbolos mitológicos que remetem a uma ideia de estética e persona, os cantos de Orfeu e as máscaras de Perséfone são o mote para este trabalho. O livro discorre sobre as relações entre morte e literatura em produções portuguesas e brasileiras contemporâneas de autores como Guimarães Rosa, Augusto de Campos e Antonio Lobo Antunes analisadas por diversos estudiosos da área.

Editora Globo (11) 3767-7400 www.globolivros.com.br

Ateliê Editorial (11) 4612-9666 www.atelie.com.br

A formação da elite colonial

Um cinema brasileiro antropofágico?

Rodrigo Ricupero Alameda Casa Editorial 392 páginas, R$ 58,00

Guiomar Ramos AnnaBlume Editora 162 páginas, R$ 32,00

Ricupero aborda o período de formação da elite colonial brasileira entre 1530 e 1630, apontando que só os vassalos com recursos é que tocariam as necessidades da colonização. Debruçando-se sobre o movimento de conquista e a consolidação do domínio português da costa atlântica, o livro nos mostra a constituição de uma elite detentora de recursos, proprietária de terras e escravos, que forneceria os quadros para a administração colonial.

Neste livro, quatro filmes produzidos entre 1969-1974, instigantes no plano estético e político, e inspirados na metáfora oswaldiana da antropofagia, são analisados por Guiomar Ramos. Tendo como referência o pensamento de Mikhail Bakhtin e as noções de carnavalização, grotesco, paródia, colagem e alegoria do século XVI, a autora traça um quadro interessante sobre o cinema brasileiro da época.

Alameda Casa Editorial (11) 3862-0850 www.alamedaeditorial.com.br

AnnaBlume Editora (11) 3812-6764 www.annablume.com.br

Estudos de cinema - Socine IX O historiador e seu tempo

FOTOS EDUARDO CESAR

Antonio Celso Ferreira, Holien Gonçalves Bezerra, Tania Regina de Luca (Orgs.) Editora Unesp 236 páginas, R$ 39,00

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Fruto do XVIII Encontro Regional de História da Anpuh-SP, o livro reúne artigos que discutem a relação entre o historiador e sua capacidade de compreensão temporal dos sujeitos e das práticas, levantando o debate historiográfico, metodológico e teórico que envolve seu trabalho. A coletânea analisa autores como: Gilberto Freyre, Oliveira Vianna, Sérgio Buarque e Emília Viotti da Costa.

Este volume traz uma seleção de artigos do IX Encontro da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual. Reunindo temas como vertentes do cinema brasileiro recente, cinema brasileiro lá fora, América Latina, imagem e poder, interfaces com outras artes, experiências no cinema, no vídeo e na TV, entre outros, o livro sugere o estado avançado da reflexão sobre o campo do audiovisual no Brasil.

Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br

AnnaBlume Editora (11) 3812-6764 www.annablume.com.br

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Esther Hamburger, Gustavo Souza, Leandro Mendonça e Tunico Amancio (Orgs.) AnnaBlume, FAPESP, Socine 2008 390 páginas, R$ 40,00

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