Cérebro ativo por toda a vida

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Ciência e Tecnologia •

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Julho 2009· N° 161

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A FÉ DA PROSPERIDADE DA IGREJA UNIVERSAL :

NOVAS LEVEDURAS ACELERAM PRODUÇÃO DE ETANOL

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Cérebro ativo por toda a vida

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Um antrop61ogo na fronteira

Emilio Moran afirma Que a salda para os problemas amblentaiS depende da interação entre as ciências naturais e as sociais. Vela trechos da palestra

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causas e efeitoS das mudanças climáticas caMas Nobre diz que a capacidade no planeta do homem de mudar o sistema Rob OeSalle. do Museu de Hlst6!1a Natural de Nova Vork, apresenta os terresU'8 nAo tem paralelo entre 8S camln"'OS eo genom.> Veja trechOS espécles

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IMAGEM DO MÊS

Cogumelo

no Pacífico

PESQUISA FAPESP 161

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NASA

Uma remota e desabitada ilha russa, situada a nordeste do Japão, produziu um espetáculo para os astronautas a bordo da Estação Espacial Internacional. A erupção do vulcão Sarychev, na ilha de Matua, no oceano Pacífico, foi registrada no dia 12 de junho por uma câmera da estação, numa órbita a 350 quilômetros da superfície terrestre. A imagem mostra detalhes dos primeiros estágios de uma forte erupção. Vê-se uma coluna de fumaça formada por uma combinação de cinzas de coloração marrom e vapor esbranquiçado. No topo, a nuvem clara que lembra um cogumelo pode ser de vapor condensado, resultado da elevação da coluna sobre a massa de ar frio. A última erupção do Sarychev havia ocorrido em 1989.

JULHO DE 2009

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30.06.09 14:26:35


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JULHO 2009

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CAPA

POL(TICA

CIENTfFICA

E TECNOLÓGICA 18 Estudos revelam como

o cérebro envelhece e

36 INSTITUiÇÃO

30 BIODIVERSIDADE

Pesquisadores traçam estratégias para os

durante toda a vida

próximos dez anos do Programa Biota-FAPESP

articular

a solução

de grandes temas tecnológicos

ENTREVISTA

12 Especialista

32 COMEMORAÇÃO

em

Cebrap faz 40 anos com vasto portfólio de

sistemas dinâmicos

pesquisas nas ciências

e presidente

humanas e sociais

da

F Além de causar infarto e câncer, cigarro prejudica

ECOLOGIA

Formigas ajudam

a melhor forma de potencializar os recursos para pesquisa

sementes a germinar na Mata Atlântica e no Cerrado ENERGIA

Estoque de carbono retido no solo deve aumentar

amadurecimento da pesquisa no Brasil

3 IMAGEM DO MÊS 6 CARTAS

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FAPs discute

Jacob Palis fala do

SEÇÕES

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38 COLABORAÇÃO

Academia Brasileira de Ciências, o matemático

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CltNCIA

O IPT busca novo perfil e planeja

sugerem estratégias para mantê-Io saudável

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a mecanização da colheita de cana

9 CARTA DA EDITORA

10 MEMÓRIA

24 ESTRATÉGIAS

40 LABORATÓRIO

60 SCIELO NOTíCIAS

62 l


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EDITORIAS

>

POLÍTICA

C&T

> CIÊNCIA

> TECNOLOGIA

> HUMANIDADES

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66

>

METEOROLOGIA

TECNOLOGIA

>

74 NOVOS MATERIAIS

Poeira do deserto africano semeia nuvens responsáveis por

Novas cepas de

vão contribuir para a liberação controlada

parte da precipitação na Amazônia

leveduras convertem

de fármacos

66 BIOCOMBUSTíVEIS

80 ANTROPOLOGIA

A relação dúbia entre igrejas neopentecostais

mais rapidamente a sacarose em etanol 70 SAÚDE

são descritos por pesquisadores

e o demônio 78 RECICLAGEM

Lodo da indústria de papel entra

FíSICA

Percursos aleatórios da luz e de animais

HUMANIDADES

Nanoübras poliméricas

85 SOCIOLOGIA

Forças Armadas

Órteses para punhos

na composição de

enfrentam

feitas com resina e nanopartículas de

materiais

da sociedade pós-moderna

para construção

dilemas

argila são moldadas sob medida

90 LITERATURA

Tese investiga importância de qibis

72 QUíMICA

Películas desenvolvidas

na formação de leitores na infância

por pesquisadores da USP garantem autenticidade

a cédulas

e documentos

DTíCIAS

62 LINHA

DE PRODUÇÃO

94 RESENHA

95 LIVROS

96 FiCÇÃO

98 CLASSIFICADOS

I

CAPA

MAYUMI

OKUYAMA

ILUSTRAÇÃO

VISCA


CARTAS cartas@fapesp.br

Bartolomeu de Gusmão Gostaria de alertar que o texto "Proezas de um padre voador" (edição 160) apresenta uma valorização exagerada do trabalho de Bartolomeu de Gusmão. Sabe-se que já se usavam balões de ar quente na China, pelo menos desde o século III d.C; talvez desde o século II a.c., conforme descreve Ioseph Needham na sua obra Science and civilization in China, volume 4, parte 2, p. 596. Na Europa, seja por influência dos chineses ou por descoberta independente, já se empregavam balões de ar quente, para fins militares, pelo menos desde o século IX (ver WHITE J r., Lynn. Eilmer of Malmesbury, an eleventh century aviator: a case study of technological innovation, its context and tradition. Technology and Culture, 2: 97-111,1961). Portanto, muito tempo antes de Bartolomeu de Gusmão esses artefatos já eram conhecidos. Também é incorreto afirmar que Santos Dumont construiu o primeiro balão dirigível. Estes e outros equívocos podem ser desfeitos pela leitura da dissertação de mestrado de Erivelton Alves Bizerra, Santos Dumont e o desenvolvimento da dirigibilidade de balões.

CARLOS ALBERTO FILGUEIRAS

loniais que teriam atingido um elevado nível de desenvolvimento (reportagem "O sonho do Eldorado amazônico", edição 160), gostaria de me referir ao livro publicado em 2002 pelo comandante reformado da Marinha britânica Gavin Menzies. Em 1421, o ano em que a China descobriu o mundo (editora Bertrand Brasil), o autor apresenta provas de que marinheiros chineses teriam adentrado o rio Amazonas até o rio Tapajós, onde hoje fica Santarém, e a seguir descido até os afluentes do Tapajós, nas proximidades de Cuiabá. Menzies trabalhou durante 15 anos para reconstituir as viagens das frotas chinesas no período 1420-1430 e encontrar os mapas carto gráficos por eles produzidos. Foram esses mapas que mudaram a vida de dom Henrique e o destino de Portugal. Os mapas mostravam que nesse período os chineses circunscreveram o globo e localizaram o estreito de Magalhães orientados pelo Cruzeiro do Sul. Mapas das costas do Nordeste do Brasil apareciam em diversos mapas antigos. Eles localizaram ainda os deltas dos rios Orinoco e Amazonas, indicando suas latitudes com precisão. Esses fatos levaram Menzies a reunir um grupo de pesquisadores capazes de ler textos medievais espanhóis e portugueses encarregados do estudo de relatos em primeira mão de exploradores dessas mesmas nacionalidades do Novo Mundo, muitos dos quais nunca foram traduzidos antes. Isso foi possível graças aos direitos autorais antecipados do livro 1421, o ano ... A localização e a origem das "cidades perdidas" da Amazônia ainda estão por ser feitas. As descrições deixadas pelos antigos exploradores se mostram verdadeiras e exatas, sem nada de mirabolante. O Eldorado talvez seja a memória fantasiada, uma realidade ainda mais fantástica.

Instituto de Química - UFRJ Rio de Janeiro, RJ

VERA MARY COZZOLINO, APOSENTADA

Tenho um grande respeito pelo professor Roberto Martins, um amigo de longa data. Ele é um pesquisador de altíssimo nível e muito consciencioso em tudo o que faz. Vou comentar aqui apenas o tópico relativo a Bartolomeu de Gusmão. O que ele disse é rigorosamente correto. Todavia, quando fui entrevistado sobre Bartolomeu de Gusmão, não me preocupei com esse rigor histórico minucioso numa pequena reportagem que não se propunha a ser um trabalho de pesquisa, mas sim uma informação em comemoração ao tricentenário dos balões de Gusmão. A ciência chinesa era quase desconhecida no Ocidente até a enorme obra de Ioseph Needham, o grande erudito que a revelou ao mundo a partir dos anos 1950. O fato de os chineses terem usado balões ou mesmo o uso de balões na Europa medieval não empana, a meu ver, a importância de Gusmão, cujos estudos se deram com os jesuítas na Bahia, tanto no Colégio de Belém, junto à Vila de Cachoeira, como em Salvador, num ambiente bastante distanciado daqueles possíveis antecessores. Previamente a esse período ele havia ido por muito pouco tempo a Lisboa, mas seus estudos até 1709 transcorreram no Brasil. Ele só se transferiu definitivamente para Portugal em 1709, o mesmo ano em que construiu seus balões de ar quente. O que é importante ressaltar é que a educação proporcionada pelos jesuítas no Brasil era de alta qualidade para os padrões da época e que Gusmão soube tirar partido disso. É lamentável que os arquivos jesuíticos se tenham em grande parte se perdido quando da expulsão da ordem por Pombal em 1759, assim como os papéis pessoais de Gusmão, que desapareceram ou foram destruídos quando de sua saída precipitada de Portugal em razão de intrigas e perseguições.

Escola Politécnica/USP São Paulo, SP

Eldorado na Amazônia ROBERTO DE ANDRADE MARTINS

Grupo de História e Teoria da Ciência, Unicamp Campinas, SP

6 • JULHO DE 2009 • PESQUISA FAPESP 161

No sentido de colaborar com a discussão sobre a possibilidade de terem existido na Amazônia civilizações pré-co-

Algumas considerações positivas sobre a reportagem "O sonho do Eldorado amazônico': Como desenvolver atividades e projetos arqueológicos com base

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em suposições e lendas, se a função geradora da ciência é a objetividade concreta? Não necessitaria a Amazônia de procedimentos de desenvolvimento autossustentáveis, antes de liberação de áreas florestais para projetos arqueológicos? Atualmente, se a pesquisa arqueológica se concentrasse em áreas já delineadas como reconhecidamente históricas, como a região dos Sete Povos das Missões (no Sul) e o castelo Garcia D'Ávila, em Praia do Forte, na Bahia, por exemplo, teríamos resultados mais concretos. Parques já solidificados e promissores, responsáveis por descobertas consistentes, como o Parque Nacional da Serra da Capivara, estão longe de receber a atenção e os recursos que necessitam para atingir sua plenitude. Ao abordar essa questão, Pesquisa FAPESP está abrindo um espaço para que o desenvolvimento da arqueologia seja priorizado e a Floresta Amazônica protegida de incursões, cujas prioridades estão muito longe de serem projetos arqueológicos, já que nem sabemos ainda conviver com os complexos recursos de nossa Amazônia. FRANCISCO J.B. SÁ Salvador, Bahia

FAPESP

As reportagens de Pesquisa FAPESP mostram a construção do conhecimento essencial ao desenvolvimento do país. Acompanhe essa evolução.

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Alunos premiados Como orientador de um dos alunos premiados, gostaria de tecer dois comentários que acho não foram creditados adequadamente na nota "Estudantes premiados" (edição 160). O aluno premiado na Febrace/Poli/USP 2009 e na feira internacional Intel Isef, Ivan Lavander Ferreira, desenvolveu todo o seu trabalho no Centro de Toxinologia Aplicada (Instituto Butantan), um dos Cepids financiados pela FAPESP.Em segundo lugar, o prêmio recebido por Ferreira (segundo lugar geral em rnicrobiologia) foi o maior alcançado por um brasileiro nessa feira internacional (1.500 alunos do mundo todo), melhor dizendo pela primeira vez um brasileiro chegou tão perto do maior prêmio oferecido, do jeito que foi colocado não ficou claro. O prêmio foi tão importante

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PESQUISA FAPESP 161 • JULHO DE 2009 • 7


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que ocorreram convites para que o aluno venha a fazer o curso de graduação em universidades norte-americanas. PEDRO ISMAEL DA SILVA JR.

Centro de Toxinologia Aplicada Instituto Butantan São Paulo,

SP

canavieira espelhada na miséria salarial, na isenção de protetores corporais e nas jornadas diárias superextensivas. Além disso, muitas indústrias liberam em cursos fluviais o vinhoto, resíduo da produção do álcool. Isso agrava os quadros de poluição e interfere no equilíbrio do ecossistema aquático. O etanol, se comparado aos substratos energéticos fósseis, certamente contribui para a redução dos impactos ambientais nocivos à ecoesfera. Para classificá-lo como combustível sustentável, sua produção deve ser administrada possuindo por base o manejo consciente do solo e a conservação da natureza.

relações filogenéticas entre grupos de organismos podem ser reveladas através do estudo do seu desenvolvimento, sendo esta o resultado de observações de crustáceos do litoral de Santa Catarina. O próprio Darwin incorporou tal conceito na sua monografia sobre eracas e Haeckel também (e literalmente) apropriou-se da noção e a petrificou na fórmula "a ontogenia recapitula a filogenia" Em sua forma haeckeliana, a "lei da biogenética" tem justamente recebido muitas críticas, mas como regra geral continua guiando pesquisas na área de evo-devo (evolução e desenvolvimento) da Biologia moderna.

GABRIELA SILVA DUARTE

KLAUS HARTFELDER

Belo Horizonte, MG

USP (campus de Ribeirão Preto) Ribeirão Preto, SP

Ao ler a reportagem "Balanço sustentável" (edição 159) percebi quão exaltados foram os benefícios proporcionados pela utilização do etanol como combustível. Entretanto, a produção de álcool a partir da cana-de-açúcar esbarra em alguns problemas relevantes. Em primeiro lugar, não é seguro afirmar que o etanol de cana seja significativamente vantajoso em relação ao diesel. O álcool tem sido um substituto para a gasolina, em veículos particulares, mas ainda não abrange amplamente o setor de transportes coletivos e de cargas. Dessa forma, a densa frota de ônibus e caminhões continua sustentada pelo diesel, matéria fóssil potencialmente poluidora. Em segundo lugar, se por um lado a mecanização da colheita da cana atua de forma a suplantar os prejuízos provocados pelas queimadas, por outro não contribui para a melhor ia das condições de trabalho nas áreas de cultivo. É conhecida a realidade da mão de obra

8 • JULHO DE 2009 • PESQUISA FAPESP 161

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Darwin e o Brasil O trabalho dos pesquisadores relatado por Carlos Haag na reportagem "O elo perdido tropical" (edição 159) esclarece que nas Conferências Populares da Glória era predominante a visão humanística, antiescravista de Darwin, o "darwinismo social", de Herbert Spencer, e as ideias do pai da "lei da biogenética", Ernst Haeckel. Enquanto isso, o lado biológico, a evolução das espécies baseada no princípio da seleção natural, era mais fortemente conectado com o naturalista alemão naturalizado brasileiro Fritz Müller, residente em Florianópolis e Blumenau. Tanto Haeckel quanto o próprio Darwin foram fortemente influenciados por Fritz Müller, fato bem lembrado em artigo recente publicado por Margherita A. Barracco e Cesar Zillig em Scientific American Brasil. Provavelmente foi em 1861 que Fritz Müller recebeu uma cópia da primeira edição de A origem das espécies e, a partir daí, manteve uma vívida correspondência com Charles Darwin por 17 anos, tanto que nas edições seguintes do livro Müller se tornou o cientista mais citado. Duas das suas observações ganharam notoriedade entre os biólogos, a do mimetismo entre espécies não-palatáveis de borboletas (mimetismo Mülleriano), e a noção de que

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Excelente a reportagem "Coquetel de anticorpos" (edição 159) que, além de elucidar os vários trabalhos feitos no campo da busca por uma vacina eficiente contra o HIV, explica em que o mais promissor deles se baseia e como funcionará. No entanto, talvez seja o momento de investir mais em diferentes pontos, como o fulereno, molécula constituída por 60 átomos de carbono unidos de modo a formar uma estrutura semelhante a uma bola de futebol. O impressionante é sua capacidade de aprisionar dentro de si não só o vírus causador da Aids, como também alguns outros vírus que causam enfermidades como o da hepatite. No entanto, o fulereno causou graves efeitos colaterais em alguns pacientes testados, o que talvez possa ser revertido por meio da manipulação da molécula. Resta a nós, leigos, esperar e torcer para que a cura venha logo, seja de onde for.

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carta da editora fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo

O poder dos velhos

Celso Lafer

Presidente josé arana varela

vice-Presidente

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Celso Lafer, Eduardo MOacyr Krieger, Horácio Lafer Piva, herman jacobus cornelis voorwald, josé arana varela, josé de souza martins, JOSÉ TADEU JORGE, Luiz gonzaga belluzzo, sedi hirano, Suely Vilela Sampaio, Vahan Agopyan, Yoshiaki Nakano Conselho Técnico-Administrativo Ricardo Renzo Brentani

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ma projeção publicada pela Nature no começo do ano passado indica que a proporção de pessoas com mais de 60 anos na população mundial, de 10% em 2000, chegará em 2050 a 22%. Teremos então um mundo com uma população de quase um quarto de idosos, enquanto no Brasil a composição etária terá mudado de forma ainda mais veloz: os acima de 60 anos, que hoje representam 9%, serão 29%, quase um terço dos brasileiros em 2050, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Trata-se de uma situação simplesmente inimaginável há apenas um século, quando a expectativa de vida ao nascer, por exemplo, nos Estados Unidos, mal passava dos 50 anos e, no Brasil, estava em parcos 30 anos, como aparece em Brasil e Argentina: um ensaio de história comparada (1850-2002), livro de 2004 de Boris Fausto e Fernando J. Devoto, publicado pela Editora 34 (a fonte é um trabalho de 1998 de Rosemary Thorp, Progresso, pobreza e exclusão: uma história econômica da América Latina no século XX). A propósito, a Argentina situava-se então nesse quesito bem à frente do Brasil, com uma expectativa de vida de pouco mais de 40 anos. Esse grande envelhecimento da população em todo o mundo, acompanhado por uma preocupação pertinente com a qualidade de vida das pessoas na fase final da vida, vem motivando o desenvolvimento de um campo transdisciplinar de pesquisa que indaga, de múltiplos pontos de partida, como o cérebro envelhece. Ou melhor, o que acontece com o cérebro de adultos idosos saudáveis à medida que envelhecem mais e mais – e que estratégias podem ser seguidas para mantê-lo saudável por toda a vida. Os trabalhos, que vêm sendo elaborados sobre isso, inclusive no Brasil, devem contribuir para que se defina com mais precisão nos próximos anos a fronteira que separa alterações típicas do simples envelhecer daquelas mudanças que sinalizam o começo de doenças neurodegenerativas dramáticas, como o mal de Alzheimer. Sobre uma meia dúzia desses estudos brasileiros e mais a leitura referencial de vários trabalhos internacionais foi que o editor de

ciência, Ricardo Zorzetto, se debruçou para produzir a reportagem de capa desta edição de Pesquisa FAPESP (página 18). Enquanto a lia, pensava que filmes como o belo e melancólico Chuvas de verão, de Cacá Diegues, com o grande Jofre Soares no papel do velho que ao se aposentar toma a providência imediata de vestir o pijama e, assim paramentado, postar-se na porta de casa, mais e mais soará como um hino a um modo de viver inteiramente anacrônico – enquanto os filmes que atualmente celebram entre outras façanhas tardias a (re)descoberta do amor em anos avançados, como Tinha que ser você (Something’s gotta give) ou Alguém tem que ceder (Last chance, Harvey), tendem a se multiplicar, talvez com protagonistas cada vez mais velhos. Afinal, o envelhecimento saudável é uma incontestável vitória da vida – e o amor, pieguices à parte, reafirmação vigorosa do sim à vida. Outra leitura imperdível desta edição é a reportagem sobre a Igreja Universal do Reino de Deus, que abre a seção de humanidades (página 80). A partir de alguns estudos recentes provocados pelo crescimento impressionante do neopentecostalismo no país, o editor Carlos Haag fala da relação dúbia que existe entre igrejas neopentecostais e o diabo (menos fincado nos demônios da tradição cristã e mais vinculado ao exu das religiões afro-brasileiras) e apresenta algumas nuances da “teologia da prosperidade” que serve de base ao funcionamento da Igreja Universal. Como argumenta uma de suas entrevistadas, a antropóloga Paula Montero, “se a ‘teologia da libertação’ produziu a categoria do pobre como ator político na cena pública, a ‘teologia da prosperidade’ da Igreja Universal produz o pobre como ator econômico e o torna responsável por sua salvação”. Finalmente, quero destacar a entrevista pingue-pongue do matemático, presidente da Academia Brasileira de Ciências, Jacob Palis (página 12), feita pelo editor de política científica e tecnológica, Fabrício Marques. Estudioso, internacionalmente respeitado, dos sistemas dinâmicos, ele fala de maneira entusiasmada e instigante sobre o amadurecimento da pesquisa brasileira. PESQUISA FAPESP 161

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memória

Raridades na rede Projeto Brasiliana Digital disponibiliza livros antigos da Biblioteca Mindlin na internet Neldson Marcolin

A

preciosa coleção de livros, manuscritos e periódicos raros garimpados ao longo de 80 anos pelo jornalista, advogado e industrial José Mindlin começa a sair das prateleiras de sua biblioteca particular no bairro do Brooklin, em São Paulo, para se mostrar por inteira na internet. Desde junho, é possível ler, copiar e imprimir livros que formam o mais completo conjunto privado de obras sobre temas brasileiros. Eles são reunidos desde 1927, quando Mindlin começou a adquirir livros antigos, aos 13 anos. São títulos raros, alguns do século XVI, sobre literatura brasileira e portuguesa, relatos de viajantes, manuscritos históricos e literários, periódicos, livros científicos, didáticos, de arte e iconografia. Foram digitalizados até agora,

Da esquerda para direita: ilustrações dos livros História do Brasil (1918), Hans Staden (1557), Les bords du Parahiba (de Debret, 1834) e Rondon (à dir. na foto) na obra The RooseveltRondon scientific expedition (1916)


o desejo de Mindlin, com recursos próprios e patrocínio privado. Neste ano começou a ser construído um prédio na Cidade Universitária que abrigará a biblioteca doada e, também, as novas instalações do IEB. “A ideia é criar um centro que pense a cultura e a memória brasileira acessível a toda a população, indistintamente”, explica Jancsó. Para o projeto da Brasiliana Digital serão

digitalizados cerca de 12 mil títulos por serem de domínio público. Para tanto, foi comprado um sistema de digitalização robotizada de livros encadernados da Kirtas Tech, uma empresa norte-americana. Trata-se de um robô, apelidado pela equipe do Laboratório Brasiliana Digital de Maria Bonita, que fotografa até 2.400 páginas por hora (cerca de 40 livros por dia). O projeto da Brasiliana Digital é coordenado Eduardo Cesar

fotos Fac-Símiles: www.brasiliana.usp.br eduardo cesar

dentro do projeto Brasiliana Digital, por volta de 3 mil documentos (livros, folhetos, imagens, mapas etc.), que estão disponíveis no endereço eletrônico www.brasiliana. usp.br (conheça alguns nesta página). O Brasiliana Digital integra um projeto maior, o Brasiliana USP, coordenado pelo historiador István Jancsó, do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo. José Mindlin, de 95 anos, doou parte de sua biblioteca, a coleção Brasiliana de 17 mil títulos (40 mil volumes) para a USP em 2006 sob a condição de se construir um edifício próprio para os livros, de modo que eles tivessem o mesmo cuidado e atenção que recebem no prédio que o bibliófilo ergueu para guardá-los no terreno onde está sua casa. A universidade buscou formas de concretizar

pelo historiador Pedro Puntoni, da USP, e financiado pela FAPESP no valor de R$ 980 mil, dinheiro suficiente para comprar a Maria Bonita (US$ 220 mil) e pagar 15 bolsistas. “No total, temos 30 profissionais envolvidos, entre professores, pesquisadores, técnicos e bolsistas, trabalhando na digitalização”, diz Puntoni. Os livros podem ser pesquisados pelo conteúdo e são oferecidos completos em resolução para impressão (300 DPIs) ou para visualização na tela (100 DPIs). A Escola Politécnica (Poli/USP) também participa, auxiliando no manejo e desenvolvimento de softwares. “Posteriormente deveremos continuar usando o robô para outros projetos que se apresentarem”, conta o professor Edson Gomi, da Poli. Com o projeto, conseguiu-se preservar os livros raros para o futuro e garantir a universalização do acesso. A frase sempre repetida por Mindlin – “A gente passa e os livros ficam” – tornou-se ainda mais verdadeira.

Ao lado, o robô Maria Bonita; acima, o primeiro livro impresso no Brasil (1747) e páginas de Sermões (1679-1748)


entrevista

Jacob Palis

Saudável incerteza Estudioso dos sistemas dinâmicos e presidente da Academia Brasileira de Ciências, o matemático fala do amadurecimento da pesquisa brasileira Fabrício Marques

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constatou, poucos anos mais tarde, o acerto de sua escolha: em 1966, Smale recebeu a Medalha Fields, o prêmio de maior destaque na área de matemática, considerado o Nobel desta ciência. Na Universidade da Califórnia, em Berkeley, Palis obteve em sua tese de doutorado, concluída em 1967, e logo a seguir em trabalho conjunto com seu orientador, resultados que os levaram à formulação de uma importante conjectura na teoria moderna dos sistemas dinâmicos, relacionando dois conceitos, o de hiperbolicidade e o de estabilidade. A prova da conjectura seria concluída por um dos alunos de doutorado de Palis, Ricardo Mañé, 20 anos mais tarde. Embora tivesse convites para permanecer nos Estados Unidos, Palis quis voltar ao Brasil, pois anteviu a possibilidade de contribuir para multiplicar a boa, mas restrita, comunidade de pesquisadores brasileiros em matemática. No Impa, esteve à frente, ao lado de Peixoto, Lima e Manfredo do Carmo, entre outros colegas, da criação de um programa regular de doutorado, considerado de excelência. Na década de 1970, dedicou-se ao estudo das bifurcações (mudança de estruturas dinâmicas em sistemas que dependem de parâmetros) e, a seguir, à teoria dos sistemas caóticos, aqueles em que um certo grau de incerteza está presente: são sensíveis às condições iniciais e a dificuldade de fazer previsões é bem maior. Seu trabalho e o de diversos outros matemáticos levaram-no à formulação de uma conjectura global dos sistemas dinâmicos, segundo a qual a maioria dos sistemas têm seu comportamento a lon-

go prazo regido por um número finito de atratores, que constituem o “destino final” das trajetórias. Autor de mais de 80 trabalhos científicos e orientador de 41 teses de doutorado, Palis é detentor de diversos prêmios nacionais e internacionais, membro de 12 academias de ciências, dentre as quais a americana, a brasileira, a francesa e a russa e recebeu a Legion d’ Hounner do governo francês. Foi diretor do Impa entre 1993 e 2003. Nos últimos anos vem se dedicando também à promoção das atividades científicas e tecnológicas. Presidiu a União Internacional da Matemática entre 1999 e 2002. Em 2006 foi eleito presidente da Academia de Ciências do Mundo em Desenvolvimento (TWAS), com sede em Trieste, na Itália, para onde se desloca três ou quatro vezes por ano por curtos períodos. Desde meados de 2007 também preside a Academia Brasileira de Ciências (ABC), no Rio de Janeiro. “O fato de eu ser presidente da ABC ajuda minha atuação na TWAS e vice-versa”, diz. Casado – a oficialização de sua união com Suely Lima está programada para o dia 4 de julho –, pai de três filhos e avô de um neto, Palis deu à Pesquisa FAPESP a entrevista a seguir: n O senhor deixou Uberaba, Minas Gerais,

para estudar engenharia no Rio de Janeiro. Depois é que se especializou em matemática. Como foi essa travessia? — Sempre me interessei pela matemática. Sou o mais novo de uma família com oito filhos. Meu pai veio do Líbano e minha mãe do norte da Síria. Meu pai tinha uma loja grande em Uberaba, vendia de

fotos léo ramos

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e a comunidade brasileira de pesquisadores em matemática é reconhecida internacionalmente, um nome que sintetiza essa competência é o de Jacob Palis Júnior, de 69 anos. Mineiro de Uberaba, esse filho de um comerciante libanês com uma dona de casa síria foi um dos principais articuladores, nos anos 1970, da reformulação do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), que multiplicou a formação de matemáticos de alto nível no país e se consolidou como um celeiro da pesquisa de ponta neste campo do conhecimento. Palis fez graduação em engenharia, iniciada em 1958 e concluída em 1962, influenciado por um irmão engenheiro. Mas quando concluiu o curso, sentiu a necessidade de aperfeiçoar-se em matemática, sua paixão desde a infância. “Na minha cabeça eu voltaria à engenharia, mas com uma formação básica muito mais forte. Isso nunca aconteceu”, relembra. Após um estágio no Impa com os matemáticos Maurício Peixoto e Elon Lima, decidiu fazer o doutorado nos Estados Unidos e mandou uma carta para Stephen Smale, pedindo para ser seu orientando. Smale era um importante pesquisador de sistemas dinâmicos, uma área da matemática iniciada pelo grande matemático francês Henri Poincaré no final do século XIX. Trata-se do estudo de trajetórias de equações diferenciais a longo prazo e que servem para modelar fenômenos que evoluem no tempo, como o clima, as reações químicas e os sistemas planetários, dentre muitos outros. Palis foi prontamente aceito e


tudo. Mas nunca deixou nenhum dos filhos – eram cinco homens e três mulheres – ajudar na loja. Queria que todos estudassem na universidade. Era uma obsessão. Quando eu tinha 4 anos, me colocaram numa pequena escola em que eu ia e voltava sozinho – naturalmente perto da minha casa. Quando fui ao grupo escolar, já sabia somar, multiplicar, conhecia elementos de matemática. O curioso é que hoje está confirmado que a criança tem o perfil neurológico para aprender matemática e linguagem já a partir de 2 anos. O meu gosto por matemática vem desde essa época. n O desejo de seu pai se cumpriu, então. — Foi cumprido à risca. Ele financiava os estudos até o final. Um dos meus irmãos fez engenharia e foi o que mais me influenciou. Vim para o Rio de Janeiro aos 16 anos também para cursar a escola de engenharia, que é onde se fazia a melhor matemática, na minha visão daquela época. Cursei o segundo e o terceiro ano do científico, uma das duas alternativas do ensino médio para entrar na faculdade. Tive muito estímulo e ótima moradia, pois meu irmão engenheiro tinha um apartamento muito confortável de frente para o Pão de Açúcar. Foram anos muito importantes para mim, tanto que ao final do primeiro ano fiz um teste para entrar na Universidade do Brasil [atual Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ] e passei em primeiro lugar, mas não valeu porque não tinha idade. No segundo ano fiquei novamente em primeiro lugar e aí valeu. Fui para a escola de engenharia, mas gostava muito de matemática e de física e fazia muitas perguntas nas aulas. n Isso lhe trazia problemas? — As respostas nem sempre eram satisfatórias para as minhas ansiedades. Duas vezes fui chamado pelo diretor da escola porque professores reclamaram. Um deles dava o curso de motores e depois de seis aulas eu disse a ele, “Professor, o senhor poderia resumir tudo isso em uma aula”. Ele chamou-me ao quadro-negro e, de fato, pude fazer um bom resumo no período daquela aula. Ele queixou-se ao diretor, Rufino Pizarro. Disse que eu estava fazendo ironia, o que de forma alguma era verdade. O diretor me chamou, conversamos e ele disse, “Sou obrigado a repreendê-lo”. Mas na saída falou, “Não mude nunca”. O episódio repetiu-se e outro professor queixou-se ao diretor, que outra vez me encorajou a continuar fazendo perguntas.

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E como o senhor chegou à matemática? — Encontrei professores de matemática dentro da escola de engenharia – engenheiros que optaram por uma carreira ligada à matemática. Um dos catedráticos era Maurício Peixoto, que também me influenciou depois. Entre os relativamente poucos e ótimos matemáticos brasileiros da época um bom percentual deles tinha feito engenharia. Isso era um fenômeno comum na época – as pessoas faziam engenharia e no meio do caminho descobriam a física, a matemática, a química... Comecei a fazer um seminário de matemática e, na parte final do meu curso de engenharia, a frequentar o Impa e, em menor escala o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, o CBPF. Pensei que quando eu terminasse engenharia iria estudar mais matemática e física e depois voltaria à engenharia, mas com uma formação básica muito mais forte. Esse “retorno” nunca aconteceu. Terminei o curso e ganhei o prêmio de melhor aluno da universidade na época. Naquele momento decidi que queria ir para o exterior fazer o doutorado. Outra característica que tenho até hoje é que às vezes não sei muito bem do que estou falando, mas sei a direção que quero seguir. Não sabia direito o que era fazer n

Teria facilidade de ficar nos Estados Unidos. Mas concluí que seria importante criar um ambiente científico permanente no Brasil, em que a pesquisa fosse feita de forma sistemática 14

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doutorado no exterior. Eram poucos os exemplos na época. n Por que escolheu os Estados Unidos? — Perguntei ao Elon Lima, um dos ótimos matemáticos que eu conhecia, qual tinha sido o melhor matemático que havia passado pelo Brasil em anos recentes. E ele me deu um nome: Stephen Smale. Escrevi para ele. Smale estava na Universidade Columbia, em Nova York. Fiquei meio surpreso quando ele de pronto aceitou ser meu orientador.

O que sua família achou? — Ficou apreensiva, “Você vai estudar mais? Já não estudou o suficiente?”. Tive de convencê-los. O curioso é que me inscrevi em dezembro de 1963 para começar em setembro do ano seguinte nos Estados Unidos. Mas em junho o Stephen Smale decidiu aceitar uma oferta de Berkeley, na Califórnia, e saiu da Universidade Columbia. Ele me avisou que estava indo para Berkeley e escrevi de volta dizendo que as inscrições para lá já haviam se encerrado há tempos. Ele disse que negociaria com Berkeley para que me aceitassem. E assim se passou. Antes disto, em março daquele ano de 1964, houve o golpe militar e o CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] praticamente parou por alguns meses. Era o único lugar que eu conhecia que dava bolsas para o exterior. A essa altura eu não tinha como pedir ao meu pai para ajudar – ele já havia me “carregado” até o final de meu curso universitário. Então ouvi falar que existia uma bolsa de nome Fulbright dada pelo Instituto Brasil-Estados Unidos. Apareci para fazer o teste e, para minha surpresa, rapidamente concordaram em me dar uma bolsa. Mas disseram, “Vamos decidir qual é o seu perfil e onde é melhor você ir”. Eu não concordei, “Só aceito se for para a Columbia”. Pedi a inscrição e me aceitaram. Acabei indo para Berkeley, e com esta bolsa americana. n

Como foi sua adaptação? — Meu orientador de início deu-me boas-vindas, mas não muito mais do que isso, e nem era para ser. Mas ele coordenava um seminário relatando novas pesquisas em sistemas dinâmicos que eu decidi fazer após um semestre por lá. Em setembro de 1967 terminei meu doutorado. Fiquei mais um ano nos Estados Unidos: fui para a Costa Leste, visitei a Universidade de Brown e o MIT [Massachusetts Institute of Technology] e conheci Harvard. Em fevereiro voltei a n

Berkeley – me ofereceram uma posição de professor assistente. Fiquei até agosto porque queria participar de um grande congresso em julho, de análise global, e aí voltei para o Brasil. Creio que teria facilidade de ficar nos Estados Unidos, mas queria mesmo é dar minha contribuição à ciência de meu país. n Por que quis voltar? — Nesse tempo estava em Berkeley como professor visitante o Elon Lima, que havia sido professor em Brasília e depois retornou ao Impa, e também se encontrava por lá outro colega matemático, o Manfredo do Carmo, fazendo um pós­-doutorado. Eu conversava muito com eles e havia a ideia de que nós tínhamos poucos, porém ótimos, matemáticos, sobretudo Leopoldo Nachbin e Maurício Peixoto. Por diversas razões, inclusive científicas, eles passavam bastante tempo no exterior. Tínhamos, Elon, Manfredo e eu, a sensação de que seria importante ter um ambiente científico permanente, em que a pesquisa fosse feita de forma sistemática, assim como a formação de novos pesquisadores. Retroagindo um pouco, no primeiro ano que passei em Berkeley li um pequeno livro escrito por James Watson, ganhador do Nobel, descrevendo a descoberta da estrutura do DNA. O livro chama-se The double helix e me impressionou muito. A descrição do ambiente científico onde tudo aconteceu, no Laboratório Cavendish em Cambridge, Inglaterra, é que me chamou mais a atenção. Acho importante contribuir para criar um ambiente científico onde os alunos e os pesquisadores se sintam estimulados. Então me ofereceram uma posição na UFRJ e também no Impa. Mas, um ano depois de voltar, em 1970, percebi que não dava para me dividir entre a universidade e o instituto.

Por quê? — O Impa tinha as melhores condições. Àquela altura o BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] tinha criado o Funtec [Fundo Tecnológico], que produziu uma melhora muito grande no orçamento da ciência e tecnologia básicas. E teve também o parecer Sucupira, do professor Newton Sucupira, do Conselho Federal da Educação, que organizou a pós-graduação no país em bases muito avançadas. Estes dois fatos me entusiasmaram. Certamente o Impa, com o apoio do BNDES, ficou bem mais forte, com potencial de contratar novos pesquisadores, promover aquela ideia de ambiente científico e de lançar um pron


grama regular de pós-graduação. O Impa já tinha doutorado, mas em conjunto com a UFRJ. Só para ver a diferença, nos anos 1960 foram formados no Impa oito ou nove doutores; nos anos 1970, 30. Ainda em 1970 me encontrei com José Pelúcio Ferreira, famoso por ter sido a pessoa instrumental para a entrada do BNDES no apoio à ciência. n Com o ministro João Paulo dos Reis Veloso o senhor não se encontrou? — Sim e Reis Veloso também foi uma figura importante na criação da Finep [Financiadora de Estudos e Projetos]. A propósito, deu-se comigo um fato inesquecível em 1970. Eu voltava para casa num sábado à tarde carregado de livros. Morava em Laranjeiras, pertinho do Fluminense, e em geral saltava do ônibus em frente ao Instituto de Cegos e descia em linha reta em direção à minha casa. Mas saltei um ponto antes – não me pergunte por quê – e fiz um circuito mais longo. Peguei uma ruazinha muito calma e por acaso encontrei o José Pelúcio. Ele estava com os dois filhos pequenos e me viu carregando livros. Perguntou, “No sábado à tarde?”. Respondi que estava treinando alunos e começando um novo programa de doutorado. Ele deixou que eu falasse e despejei entusiasmo sobre a minha área e a de outro colega. Disse que seria bom em 1971 fazer uma conferência internacional para nossos alunos terem visões diferentes da matemática e dos matemáticos e também para começarem a ser conhecidos internacionalmente. Ele perguntou, “Quanto custaria isso?”. E fiz timidamente um orçamento de cabeça e ele disse, “Mas só isso?”. No final da conversa ele concluiu, “Vamos fazer o primeiro contrato com vocês de US$ 150 mil”.

Era um dinheiro enorme para a época. — Muito. Eu não conseguia chegar a esse número. Mas em duas ou três semanas nós do Impa estávamos com o ministro Veloso e o Pelúcio assinando o protocolo da concessão do projeto. n

n Se o senhor tivesse parado do ônibus no ponto certo... — Aprendi que incerteza é uma coisa ótima. Claro que deu tudo certo, fizemos um grande simpósio em julho de 1971 e eu já tinha um aluno muito bem encaminhado no doutorado. Tínhamos começado no final de 1969, início de 1970 e eu esperava bons resultados quanto à formação de doutores só em quatro, cinco anos. E estes apareceram bem antes: o primeiro a concluir o doutorado comigo foi o Welington de Melo, que está no Impa, é um ótimo

matemático e também mineiro como eu. Nessa ocasião, um aluno de um colega uruguaio escreveu uma carta dizendo que tinha demonstrado vários teoremas, resolvendo conjecturas difíceis em minha área. Gostei muito daquela carta e convenci os outros membros do comitê organizador – o Elon e o Maurício – de que nós tínhamos que convidá-lo para nosso simpósio. Mas como, se ele não tinha nem se formado na universidade? Insisti porque as coisas que ele escreveu faziam sentido. Ele veio, conversou comigo, perguntou se o aceitaria como aluno. Respondi, “Pelo conteúdo de sua carta, sim”. Um mês depois ele escreveu-me e eu aceitei ser seu orientador de doutorado. n Trata-se do Ricardo Mañé, matemático nascido no Uruguai e já falecido... — Exatamente. Como o Welington, ele terminou seu doutorado em um tempo recorde, fez uma tese muito boa. O fato é que no início de 1973 eu já tinha orientado três teses de doutorado. A seguir fui para os Estados Unidos com uma bolsa Guggenheim e passei um ano fora. É importante dizer que as teses destes primeiros alunos foram publicadas em ótimas revistas. Fiquei muito entusiasmado porque os frutos apareceram antes do que nós esperávamos. O mesmo aconteceu na área de geometria, do Manfredo do Carmo.

Um site que mapeia a genealogia dos matemáticos informa que o senhor teve 41 estudantes sob sua orientação e 128 descendentes, que são os alunos de seus alunos. Queria que abordasse essa relação de orientadores e seus discípulos na matemática. n

— Tenho muito orgulho dos colegas que foram meus alunos e seus descendentes. Não tenho conflitos com eles porque acho importante reconhecer o mérito deles e não por terem sido meus alunos. O Ricardo Mañé, por exemplo, foi um matemático que poderia ter ganho a Medalha Fields. Esse prêmio é dado a matemáticos de até 40 anos. Nenhuma Medalha Fields foi dada até hoje a um matemático que tenha feito sua carreira em um país em desenvolvimento. Claro que o ambiente matemático internacional hoje em dia respeita muito mais a comunidade matemática brasileira do que naquela época, meados dos anos 1980, embora já desfrutássemos de um bom prestígio. Mas o fato é que quando se obtém um resultado espetacular em Princeton ou em Paris, todo mundo fica sabendo. Fora dos grandes centros, o impacto de um grande resultado tende a ser mais limitado. O Ricardo certamente era um matemático que poderia ter ganho a Medalha Fields. Outro que veio depois é o Marcelo Viana. Atualmente temos um candidato muito forte. Quem é? — Chama-se Artur Ávila. Ele chegou muito cedo ao Impa. Veio do Colégio Santo Agostinho. Foi aluno do Welington de Melo, e doutorou-se aos 20 anos. É brilhante. Hoje tem 30 anos. Está em Paris metade do ano e, com essa idade, já é um diretor de pesquisa, ligado ao Centre National de la Recherche Scientifique, o CNRS. Isso é excepcional. Há três anos ele veio passar uma longa temporada no Brasil e o Impa sabiamente n

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ofereceu a ele permanecer por aqui seis meses anual­mente, com salário, em uma posição muito especial. Isso é possível porque o Impa é uma organização social, com estrutura mais flexível. Enquanto está conosco ele ganha salário e quando vai para a França isso é suspenso. Sem dúvida, ele já é uma liderança aqui e também lá. Como a pesquisa em matemática no Brasil evoluiu nos últimos anos? — Atualmente é particularmente forte. Em 1974 e em 1978 dois matemáticos brasileiros deram palestras no Congresso Internacional de Matemáticos, fato até então inédito. Voltou a acontecer nos anos 1990. Ser convidado para fazer palestras em tal congresso é um fator de muito prestígio. Ele só ocorre a cada quatro anos e são convidados cerca de 180 matemáticos e matemáticas. O número de nossos palestrantes neste congresso vem crescendo e esse é um dos sintomas de nossa forte presença no cenário internacional. Não é o único, mas é um bom indicador. n

n E mais recentemente? — Em 2010 vamos ter dois palestrantes neste congresso e ambos são do Impa: Artur Ávila e Fernando Codá. O Artur dará uma palestra plenária. Como é muito jovem, isso aponta para a Medalha Fields. Mas não é certeza. O Marcelo Viana já tinha dado uma plenária em 1998 e não ganhou a Fields em 2002 – em minha opinião, isto foi um erro, mas sou suspeito para dizê-lo. Esse crescimento da importância da pesquisa científica brasileira é recente – como um todo, a ciência brasileira é muito jovem. De fato, ela começa a se consolidar com a criação da Universidade de São Paulo, em 1934. Claro que tivemos um Carlos Chagas, notável cientista, mas não foram muitos como ele. Nossa comunidade foi tomando corpo nos anos 1940 e sobretudo nos anos 1950. É tudo muito recente. n Qual o grau de amadurecimento da comunidade científica brasileira? — A produção científica brasileira cresceu muito e não por mero acaso. Graças a um investimento regular, que tem crescido nos últimos anos, os ambientes científicos têm cada vez mais se consolidado. Há uma grande concentração em São Paulo e, a seguir, no Rio. É bom que esses centros sejam fortes. Mas também é importante que surjam ótimos centros em todos os estados. É preciso não confundir essa posição com a de deixar de valorizar as melhores equipes, os me-

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lhores centros. A ideia não é essa. Mas a desconcentração é muito importante e foi por isso que a ABC recentemente criou vice-presidências regionais. Criamos também os Membros Afiliados de até 37 anos, jovens cientistas de maior talento de cada região escolhidos anualmente pelos Membros Titulares daquela região por um período de cinco anos não renováveis. Isso está tendo uma repercussão muito boa, graças ao entusiasmo desses jovens. A ABC mantém grupos de cientistas encarregados de produzir documentos sobre grandes temas. Qual é o saldo dessa experiência? — Os grupos de estudos representam outra frente importante de atividades. No ano que vem teremos uma eleição e há uma orientação no sentido de que os grupos de estudos em andamento concluam, se possível, sua missão de uma forma já propositiva para oferecer documentos conclusivos aos candidatos, sobretudo à Presidência da República, mas também aos que pleiteiam ser governadores de estado quando apropriado. Sempre com base científica. É muito importante que os documentos gerados sejam propositivos. Nesse sentido, graças ao grupo de estudos da ABC de biocombustíveis, marcamos uma presença muito boa no que se chama G8 + 5 de academias de ciências. Temos o G8 + 5, que é o grupo dos sete países mais ricos, mais a Rússia, e os cinco países de economia emergente (África do Sul, Brasil, China, Índia e México). Como os mandatários desses países se reúnem anualmente, as respectivas academias de ciências são convocadas para fazer proposições em dois temas científico-tecnológicos de primeira importância para a sociedade. Este ano foram escolhidos Energias Renováveis e Migração. No primeiro, biocombustível quase não aparecia, devido à questão da segurança alimentar. Aqui quero marcar um ponto: os cientistas brasileiros defendem o etanol brasileiro em bases puramente científicas. n

n E como foi a apresentação da ABC? — Falei sobre o etanol brasileiro, seguindo as linhas das discussões do grupo de estudo de biocombustíveis da ABC, mas o texto foi essencialmente escrito por Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP, com a colaboração de outra pessoa muito competente, que é o João Jornada, presidente do Inmetro. A certa altura, percebi que o texto nos colocava na defensiva porque dizia, “Podemos pro-

duzir usando um pequeno percentual de terra arável do Brasil e da América do Sul, cerca de 10% do consumo mundial de gasolina”. O “pequeno percentual” havia sido calculado por importantes cientistas da área de segurança alimentar como o limite aceitável para a plantação de cana-de-açúcar. Mesmo assim, pelas minhas contas, o resultado dava mais de 100%. Liguei de Roma para o Brito e disse que se produzia muito mais etanol do que estava no texto. Ele disse que sugeriu aquele número admitindo-se um coeficiente de risco exagerado. Eu respondi que deveríamos apostar em um número mais correto, levando em conta um coeficiente de risco mais plausível. Ele concordou. A conclusão é a seguinte: usando estimativas de cientistas respeitáveis que criticam biocombustíveis em favor da segurança alimentar, apenas com a terra arável que sobra de seus cálculos no Brasil e na América do Sul, podemos produzir etanol de cana que cobre todo o consumo mundial de gasolina até 2050. É espetacular. Além disso, é o menos poluente e não disputa espaço com a terra arável necessária à segurança alimentar. Creio que talvez tenha sido a melhor apresentação da reunião. E o documento final valorizou a posição sobre biocombustíveis de nossa delegação. n Quando o senhor esteve na FAPESP, em

abril, assistiu a uma exposição dos coordenadores de três programas da Fundação: o Biota, o de bioenergia e o de mudanças climáticas. O que achou dos relatos?


— Fiquei impressionado com a pujança dos estudos, o entusiasmo dos grupos e sua produtividade. São projetos densos. Entendi que o de mudanças climáticas tem essas características, mas ainda está em desenvolvimento. Nos outros, as atividades têm sido intensas. Na apresentação, o senhor deu sugestões sobre programas de formação de novos pesquisadores em áreas que me parecem ainda carentes no país... — Claro que levantamentos devem ser feitos para consolidar minha opinião, mas de pronto posso dizer que oceanografia mereceria um programa especial para formação de pesquisadores. Esse esforço já foi feito, mas há que ser renovado. Temos uma costa imensa, um ambiente muito especial que também sofre impactos de toda sorte, inclusive mudanças climáticas. Outra área é a de engenharia, que sofreu muito na década de 1980. É uma área vital para o desenvolvimento de qualquer nação. Há também o caso da matemática: trata-se de uma comunidade muito bem qualificada por vários indicadores, mas pequena em relação à demanda. Um exemplo: a média nacional de citações em relação à média mundial é de - 11%. Isto é, estamos colados à média mundial, que se concentra nos países avançados. Trata-se de um índice excelente. Mas a área não tem atraído um número suficiente de talentos. Mencionei oceanografia e engenharia, áreas que considero que tenham o mesmo problema. Isso representa para nós um desafio: criar estímulos para que um número maior de ótimos talentos se dirija a essas áreas. Quanto à matemática, em particular, ela é importante porque perpassa muitas áreas de conhecimento. O que está acontecendo é que estamos formando hoje cerca de 120 doutores por ano nas instituições bem qualificadas pela Capes. É um número pequeno porque não atende à demanda nem dos concursos das universidades. Muitas vezes as vagas são preenchidas por físicos teóricos e eles são bem-vindos, mas também não é sempre que se interessam.

O número de doutores em matemática que formamos não atende sequer à demanda dos concursos de universidades. Muitas vezes as vagas são preenchidas por físicos teóricos

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Quando o senhor assumiu a presidência da Academia de Ciências do Mundo e Desenvolvimento (TWAS) há dois anos, apontou como desafios específicos o aumento da participação das mulheres e a questão da fuga de cérebros. A TWAS está conseguindo cumpri-los? — Sim, mas os desafios pela frente são imensos. Essa é uma tarefa que não termina em tão breve período de tempo. Menn

cionando um exemplo singelo relativo à nossa ABC: este ano, num total de 18, foram eleitas seis cientistas mulheres como membros titulares. Esse número é inédito, correspondente a um terço do total de eleitos. Subimos um pouco o percentual de mulheres dentre os membros titulares, que agora é da ordem de 11,5%. Temos que chegar a 50%! De maneira natural, sem forçar e sempre respeitando o mérito. Na TWAS o percentual é bem menor, mas há programas especiais de doutorado e pós-doutorado para mulheres dos países em desenvolvimento. Temos também programas financiados em grande parte pelo Brasil, China, Índia e México, que oferecem bolsas de doutorado, bolsas de doutorado sanduíche e de pós-doutorado aos candidatos qualificados dos países em desenvolvimento e isso nas boas instituições de pós-graduação dos países mencionados. Cada vez mais a mulher é consciente da sua competência e participa mais desses programas. Mas há que manter vigoroso estímulo à presença da mulher no ambiente científico. E em relação à fuga de cérebros? — A fuga de cérebros é dramática nos países africanos, ao contrário do Brasil. Com a possível exceção da África do Sul, n

de modo geral, as instituições não são tão estáveis na maioria dos países da África. É fundamental tornar os ambientes de pesquisa mais estáveis. No conjunto, faltam centros de pesqusia adequados para que os talentos que existem por lá fiquem à vontade em suas atividades, sem excessivas preocupações financeiras de sobrevivência. Em relação ao programa que mencionei – doutorado, doutorado sanduíche, pós-doutorado para alunos qualificados dos países em desenvolvimento –, a TWAS fornece a passagem. Em relação à bolsa, é a menor das despesas, mas simbolicamente é importante. Acho que é também importante criar vínculos que permitam ao aluno que vem de um país relativamente menos desenvolvido voltar à sua nação de origem com a certeza de que suas relações com cientistas do Brasil, China, Índia e México permanecerão no futuro. Por isso é essencial ter o pós-doutorado como parte do programa. Há ainda um grande desafio: convencer os próprios governos dos países menos privilegiados a participarem do processo. n Por que o Brasil tem dificuldades dramáti-

cas de melhorar o rendimento dos alunos de matemática? Temos pesquisa de ponta, mas seguimos patinando no ensino básico. — É um aparente paradoxo. A pesquisa de ponta é feita por uma comunidade bem menor que a de ensino fundamental e médio. O ensino da matemática, nas suas diversas etapas, envolve números completamente diferentes, com milhões de jovens e crianças. Assim, as dimensões relativas às pesquisas e ao ensino de matemática como um todo são muito diferentes. Há dois pontos a discutir: o principal deles é a formação de bons professores. Mas não basta só ter professores competentes com salários razoáveis. É preciso ter também o apreço da sociedade. Isso piorou muito no Brasil porque antigamente não tínhamos pós-graduação e os professores do secundário dos melhores colégios eram figuras importantes na sociedade. Isso tudo se perdeu. O prestígio deslocou-se para a universidade e depois para pós-­ -graduação e pesquisa. Há que recompor esse quadro. Isso vai influenciar toda a cadeia. É algo fácil de desenhar e difícil de implementar. Estamos começando a enfrentar o problema com vigor. Temos olimpíadas para estimular os alunos, mas ainda esbarramos na falta de competência de quem ensina. O professor, às vezes, tem a maior boa vontade, mas não pode ensinar o que não sabe. n PESQUISA FAPESP 161

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Estudos revelam como o cérebro envelhece e sugerem estratégias para mantê-lo saudável durante toda a vida

Afiado até o Ricard o Zorzet to

eduardo cesar

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esquisas concluídas recentemente – e outras ainda em andamento – no Brasil e no exterior vêm permitindo conhecer em detalhes alguns dos fenômenos químicos e biológicos característicos do envelhecimento, em especial do cérebro e de outros órgãos do sistema nervoso central que controlam a forma como percebemos o mundo e interagimos com ele. Realizados com pessoas e animais saudáveis, vários desses trabalhos devem contribuir para que nos próximos anos se consiga definir com mais precisão a fronteira que separa as alterações típicas do envelhecimento natural daquelas que caracterizam o princípio de enfermidades neurodegenerativas aniquiladoras como o mal de Alzheimer, que atinge cerca de 5% das pessoas com mais de 60 anos e se torna mais e mais comum à medida que a idade avança. Segundo alguns especialistas, hoje essa fronteira estaria mais para uma larga faixa do que uma linha. “Estabelecer o que é parte do envelhecimento saudável e estreitar essa fronteira talvez permita identificar mais cedo as pessoas vulneráveis a desenvolver essas doenças e tomar medidas para tentar frear o seu progresso”, afirma o psiquiatra Geraldo Busatto, coordenador do Laboratório de Neuroimagem Psiquiátrica da Universidade de São Paulo (USP), que vem investigando o processo natural de envelhecimento do cérebro. Esse conhecimento, aliás, torna-se cada vez mais fundamental à medida que a população humana envelhece, a galope, nas diferentes regiões do planeta. A proporção de adultos com mais de 60 anos deve


crescer continuamente ao longo deste século – de modo mais acelerado em sua primeira metade, segundo uma projeção publicada na revista Nature no início de 2008 – e passar de 10% da população mundial em 2000 para 22% em 2050 e 32% em 2100. No início do próximo século o Japão será praticamente uma nação de idosos: metade dos japoneses terá mais de 60 anos. No Brasil não será diferente. O índice de pessoas com mais de 60 anos deve triplicar até 2050, passando dos atuais 9% para 29%, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em paralelo ao aumento da expectativa de vida, gastos públicos e privados devem crescer, uma vez que os idosos consomem mais recursos de saúde do que os mais jovens. Estimativas apresentadas anos atrás por James Lubitz em dois artigos no New England Journal of Medicine dão uma ideia de quanto custam alguns anos a mais de

vida nos Estados Unidos. Uma pessoa que morre aos 65 anos gasta com saúde no último ano de vida cerca de US$ 31,2 mil. Quem vive mais 25 anos e chega aos 90 desembolsa US$ 235,4 mil, a maior parte com atendimento médico e cuidados de enfermagem. Nesse mundo mais grisalho, que exigirá uma revisão dos sistemas de aposentadoria e trabalho, quem deseja ver netos e bisnetos crescerem certamente pretende chegar ao final da vida em boa forma, tanto do ponto de vista físico como mental. Ainda que se esteja longe de qualquer espécie de pílula antienvelhecimento, a ciência pode ajudar as pessoas a completar 80 anos com boa saúde, mente afiada e muito tempo de vida pela frente, e a desfazer o retrato pouco atraente da velhice que Shakespeare, com a ironia habitual dos ingleses, traçou na comédia As you like it, escrita 400 anos atrás, quando poucos viviam muito além dos 30. De acordo

com a personagem Jacques, a sétima e última fase da vida seria uma segunda infância. Mas desprovida da vitalidade e do frescor desta e marcada pela perda: dos dentes, da visão, do paladar, da memória, enfim, de tudo. Há oito anos as equipes de Busatto e de dois especialistas em epidemiologia da USP, o psiquiatra Paulo Rossi Menezes e a psicóloga Marcia Scazufca, iniciaram um levantamento em hospitais e unidades do serviço público de saúde e em clínicas privadas de uma área na região oeste da capital paulista habitada por cerca de 1,3 milhão de pessoas. Pretendiam identificar adultos que procuravam um serviço de saúde mental pela primeira vez com sinais de psicose, transtorno que provoca distorção na percepção da realidade, com o objetivo de obter imagens de seus cérebros e verificar se apresentavam alterações. Os pesquisadores também convidaram um vizinho sem problemas de saúde física pESQUISA FAPESP 161

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TIAGO QUEIROZ/AE

Afiado até o fim o fim


ao longo

Aprendizagem remodela massa cinzenta ou mental para participar do estudo e servir como parâmetro de comparação – em geral, vizinhos de bairro compartilham um ambiente físico semelhante e apresentam níveis socioeconômico e cultural muito próximos. Com um equipamento de ressonância nuclear magnética, o grupo da USP conseguiu imagens do cérebro de 89 pessoas saudáveis com idade entre 18 e 50 anos. Também produziu imagens de 102 homens e mulheres saudáveis na faixa etária dos 65 aos 75 anos, selecionados entre 2.072 pessoas que integraram outro estudo, feito em parceria com o psiquiatra Homero Vallada.

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AGLIBERTO LIMA/AGêNCIA ESTADO/AE

ssa amostra nos permite ter uma ideia mais aproximada de como é o envelhecimento cerebral na população brasileira, que tem uma história de vida muito diferente daquela da população europeia ou norte-americana”, afirma Busatto, um dos coordenadores da pesquisa. As análises iniciais desse trabalho começam a surgir agora na forma de artigos científicos, um publicado em março na Neurobiology of Aging e outro que deve sair em breve no American Journal of Neuroradiology, e de apresentações em dois congressos internacionais realizados no início de julho em Paris.

O que revelam? Muita coisa. Uma delas é que durante o envelhecimento natural o cérebro sofre uma considerável eliminação de células (neurônios) – há quem estime em 50 mil o número dessas células mortas por dia dos 20 aos 75 anos, totalizando uma perda de 10% do total com que nascemos –, mais acentuada na região que amadurece mais tarde: o córtex, uma camada de poucos milímetros de espessura que recobre externamente os dois hemisférios cerebrais. Como um regente de orquestra, o córtex cerebral coordena o processamento e o armazenamento de informações captadas pelos órgãos do sentido (visão, audição, paladar, tato e olfato), além dos movimentos. Nele estão concentrados os corpos celulares (a região central, onde está o núcleo ou centro de comando) da maior parte de nossos 100 bilhões de neurônios. Por sua coloração levemente acinzentada, o córtex, ao lado de áreas menores e mais internas do cérebro que também abrigam os corpos celulares dos neurônios, compõe o que se conhece como massa cinzenta. A partir das imagens do cérebro dos indivíduos com idade entre 18 e 50 anos, Débora Terribilli e Maristela Schaufelberger calcularam o volume de massa cinzenta e também o de massa

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branca, onde se concentram os prolongamentos (axônio) dos neurônios, responsáveis pela conexão de diferentes regiões do cérebro e de outros órgãos do sistema nervoso central. Elas notaram que as pessoas mais velhas de fato apresentavam uma redução mais acentuada da massa cinzenta, em especial em duas regiões do sistema nervoso central: o córtex pré-frontal direito e o hemisfério esquerdo do cerebelo – o volume de outras áreas cerebrais variou muito pouco. Situado na porção anterior do cérebro, logo acima dos olhos, o córtex pré-frontal é associado ao planejamento de ações, aos movimentos complexos e ao pensamento abstrato. No extremo oposto da cabeça, pouco acima da nuca, o cerebelo coordena a realização dos movimentos (em particular movimentos finos como passar uma linha pelo buraco de uma agulha), além de desempenhar um papel importante na aquisição da memória, na atenção, no controle dos impulsos e na percepção de informações do ambiente. Busatto esperava mesmo verificar alguma redução de massa cinzenta em algumas regiões, já que, depois de completar a sua formação no final da infância, o cérebro e outros órgãos do sistema nervoso central começam a encolher lenta e progressivamente, sem que isso represente danos relevantes ou alguma enfermidade. O mais intrigante, porém, foi que essa perda de massa cinzenta não ocorreu de forma contínua nem afetou de maneira homogênea o córtex pré-frontal e o cerebelo. Dois fenômenos biológicos parecem explicar esse achado. Um deles é o amadurecimento tardio do córtex, que provoca a eliminação das conexões (sinapses) entre neurônios não utilizadas, chamada pelos especialistas de poda sináptica. Como os cabos de uma central telefônica que são recolhidos, a poda sináptica interrompe a comunicação entre essas células. Mas pode ser acompanhada da criação de novas conexões e até mesmo da formação de neurônios novos (neurogênese), o que


daao longo vida da vida

ERNESTO RODRIGUES/AGêNCIA ESTADO/AE

Em plena atividade: Tomie Ohtake, a artista plástica de 96 anos, e o arquiteto Oscar Niemeyer, de 102

pode fazer o volume de massa cinzenta variar. A segunda transformação, geralmente observada até a terceira ou quarta década de vida, é a continuação do crescimento de uma camada protetora de mielina envolvendo o axônio, que acelera a transmissão dos impulsos nervosos, e influencia o cálculo do volume relativo da massa cinzenta. “Apenas parte da perda que vimos se deve à morte de neurônios”, explica Busatto.

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o final da adolescência até a idade madura, a redução de massa cinzenta foi mais rápida e intensa entre os homens do que entre as mulheres. Esse resultado, detalhado pelo grupo da USP no artigo da Neurobiology of Aging, coincide com o de um estudo realizado no Japão e que deve ser publicado nos próximos meses pela mesma revista. No Instituto de Desenvolvimento, Envelhecimento e Câncer da Universidade Tohoku, a equipe de Yasuyuki Taki acompanhou por seis anos 381 moradores de Sendai que

tinham de 28 a 87 anos. Imagens realizadas no início e no final da pesquisa mostraram o declínio mais acelerado de massa cinzenta na população masculina. Embora nos homens o volume desse tecido seja cerca de 10% maior do que nas mulheres – em média, 673 mililitros ante 606 mililitros –, eles perdem massa cinzenta mais rapidamente da terceira até a oitava década de vida. No final do experimento, o volume médio masculino era 640 mililitros e o feminino 589 mililitros. Novamente, duas razões parecem justificar esse declínio mais acentuado nos homens. Em primeiro lugar, eles são mais propensos a desenvolver problemas cardiovasculares, que reduzem o fluxo sanguíneo cerebral e aumentam a morte de neurônios. Além disso, até por volta dos 50 anos as mulheres estão naturalmente mais protegidas. Por mecanismos ainda não muito claros, os hormônios femininos, entre eles o estrógeno, parecem reduzir a morte de células cerebrais. pESQUISA FAPESP 161

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À medida que o tempo avança e o vigor físico diminui, ocorre uma mudança importante no padrão de perda da massa cinzenta cerebral. A diminuição no número de neurônios – antes restrita a algumas áreas do córtex, região do sistema nervoso muito jovem do ponto de vista evolutivo, que começou a se desenvolver há 60 milhões de anos com o surgimento dos primatas – passa a atingir também, de modo acelerado, uma porção mais interna e primitiva do cérebro: o sistema límbico, que abriga uma estrutura em forma de cavalo-marinho chamada hipocampo, associado à aprendizagem, à memorização de fatos recentes e à fixação de memórias antigas.

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te dois grupos paulistas encontraram algumas pistas de alterações bioquímicas que se tornam comuns com o envelhecimento e desencadeiam a morte celular – o que pode explicar, ao menos em parte, a perda de neurônios observada nos idosos. Anos atrás Elisa Kawamoto e Cristoforo Scavone, do Laboratório de Neurofarmacologia Molecular da USP, procuraram Tania Marcourakis e Ricardo Nitrini, estudioso do mal de Alzheimer, para propor uma colaboração: pretendiam estudar pessoas com a enfermidade à procura de alguma característica especial que pudesse ser usada como marcador biológico da doença, que até hoje só é confirmada após a morte por meio da autópsia. Trabalhos publicados à época sugeriam que o Alzheimer, que leva à perda progressiva da memória e da capacidade de realizar funções essenciais à vida como se alimentar, afetaria todo o organismo, e não apenas o sistema nervoso central.

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o analisar a atividade das proteínas de dois tipos de células do sangue (hemáceas e plaquetas), Elisa e Scavone descobriram uma alteração importante. Quem tinha Alzheimer produzia óxido nítrico em níveis bem superiores ao normal. Extremamente versátil, o óxido nítrico é um composto essencial à vida que funciona como neurotransmissor no sistema nervoso central. Em excesso, porém, mata as células – o óxido nítrico gera moléculas chamadas radicais livres,

Alexandre Schneider/Folha Imagem

os 70 anos em diante, os homens apresentaram uma perda de neurônios mais acentuada no hipocampo do que em outras áreas do cérebro, constatou Pedro Curiati ao analisar imagens do sistema nervoso central de 102 idosos saudáveis. Nas mulheres observou-se um declínio acelerado de massa cinzenta em todo o cérebro a partir dos 70 anos. “Analisados em conjunto, esses dados ajudam a compreender algumas das alterações clínicas que os idosos saudáveis apresentam, como dificuldade maior de aprender tarefas novas ou de criar novas memórias”, afirma a psiquiatra Tânia Ferraz Alves, uma das autoras da pesquisa. Até faz sentido que a perda mais acelerada de neurônios no envelhecimento normal comece no córtex fron-

tal e se prolongue por mais tempo nessa região. “O córtex é formado por bilhões e bilhões de células, o que lhe garante uma reserva fisiológica, pois muitas delas têm função redundante, enquanto o hipocampo só tem algumas centenas de milhares de neurônios”, comenta o neurologista Fernando Cendes, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), um dos coordenadores da Cooperação Interinstitucional de Apoio a Pesquisas sobre o Cérebro (CInAPCe), financiado pela FAPESP. Por meio de um teste de memorização de palavras e exames de imagens, Cendes e os neurologistas Benito Damasceno e Marcio Balthazar avaliaram a memória e a integridade do cérebro de 47 pessoas com mais de 50 anos (16 saudáveis, 15 com comprometimento cognitivo leve e 17 com Alzheimer em fase inicial). Tanto os indivíduos com comprometimento cognitivo leve como aqueles com Alzheimer apresentaram redução de massa cinzenta em duas áreas do sistema límbico – o hipocampo e os núcleos talâmicos –, em comparação com as pessoas saudáveis. A principal diferença, segundo Balthazar, estava na quantidade de neurônios perdidos, mais elevada em quem tinha Alzheimer. Outra distinção marcante: as pessoas com Alzheimer também apresentam algum nível de perda de massa branca, segundo dados publicados em 2009 no European Journal of Neurology. Tão importante quanto localizar e medir a perda de massa cinzenta é saber o que a provoca. Recentemen-

Sem perder a linha: idosos e crianças na passarela de Ronaldo Fraga na São Paulo Fashion Week

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havia mais. Já se sabia que os neurônios do córtex cerebral eram muito mais suscetíveis aos danos que surgem no Alzheimer do que os neurônios do cerebelo. Mas não se tinha ideia de qual fator conferia essa resistência. Elisa descobriu que as células do cerebelo produziam níveis mais altos de uma proteína que auxilia a preservação e estimula a proliferação dos neurônios: o fator neurotrófico derivado do cérebro (BDNF). As taxas de BDNF também eram mais elevadas no córtex de ratos jovens do que no de ratos idosos. “Com a diminuição da produção desse composto neuroprotetor e o aumento da geração de radicais livres, a célula não resiste”, diz Elisa, que atualmente pesquisa no Instituto Nacional do Envelhecimento dos Estados Unidos a capacidade de compostos naturais como a curcumina combaterem os radicais livres. Estudando a causa da morte de neurônios de ratos idosos, as farmacologistas Soraya Smaili e Guiomar Lopes, da Universidade Federal de São Paulo, viram que a elevação dos níveis de radicais livres no interior do cérebro danifica a membrana de uma das organelas mais importantes da célula, a mitocôndria, que transforma o açúcar (glicose) disponível no sangue em energia. Com a membrana alterada, a mitocôndria libera proteínas que desencadeiam a morte celular. “O envelhecimento parece produzir uma série de alterações que, isoladamente, não causam disfunção celular, mas, em conjunto, matam as células”, diz Soraya.

Enquanto não surge – se é que surgirá – um tratamento para minimizar os efeitos do envelhecimento sobre o cérebro, quem pretende chegar bem ao final da vida dispõe de algumas alternativas ao alcance de todos. Uma é a prática de exercícios físicos. Estudos com animais já mostraram que manter o corpo em movimento melhora o fluxo sanguíneo e a oxigenação do cérebro e estimula a produção de neurônios. Em testes com idosos, Arthur Kramer, da Universidade de Illinois, constatou que atividades aeróbicas, como caminhadas, melhoram o funcionamento do córtex, o desempenho em tarefas cognitivas e promovem o crescimento do hipocampo. “Quem não se exercita sempre pode começar”, diz Andréa Deslandes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, autora de uma análise sobre os mecanismos pelos quais o exercício pode retardar o envelhecimento. Quem não sai da cadeira sequer para alcançar o controle da tevê tem outra saída: manter-se intelectualmente ativo. Investigando o cérebro de pessoas que morreram com mais de 80 anos e aparentavam ser saudáveis do ponto de vista neurológico, Ricardo Nitrini, da USP, descobriu que uma em cada quatro idosos apresentava as lesões típicas do Alzheimer. “O que explica porque essas pessoas estavam bem é o alto grau de escolaridade e o nível intelectual elevado”, afirma. Atividades que exigem esforço mental, como planejar o caminho mais rápido na feira, fazer palavras cruzadas ou ler, ajudam. Na opinião do neurocientista Iván Izquierdo, especialista em memória, a leitura é a melhor maneira de manter as sinapses ativas. “Quando alguém lê usa vários tipos de memória”, disse Izquierdo em uma entrevista anos atrás. “Quem não pode ou não sabe ler deve pedir a alguém que leia para ele. Assim usa a memória auditiva.” n > Artigos científicos 1. Terribilli, D. et al. Age-related gray matter volume changes in the brain during non-elderly adulthood. Neurobiology of Aging. No prelo. 2. Taki, Y. et al. A longitudinal study of gray matter volume decline with age and modifying factors. Neurobiology of Aging. No prelo.

Marcio Balthazar e clarissa yasuda/Unicamp

que danificam as proteínas celulares. Faltava verificar se a produção exagerada desse composto era exclusiva do Alzheimer ou uma característica do envelhecimento. De volta ao laboratório, Scavone e Elisa realizaram testes com ratos com idades variando de 6 a 24 meses, o que, em uma comparação grosseira, corresponderia em humanos a uma faixa etária que vai do final da adolescência até os 85 anos. Desta vez encontraram produção aumentada de óxido nítrico tanto nas células sanguíneas quanto em neurônios do córtex pré-frontal dos animais idosos. Era um sinal de que o desequilíbrio bioquímico deveria surgir com o envelhecimento.

Em amarelo: áreas do cérebro em que há perda de massa branca no Alzheimer

Em vermelho: redução de massa cinzenta no córtex (alto) e no sistema límbico (acima) no Alzheimer

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Entre ciência e aventura

As glórias do passado e os desafios científicos do futuro dividem os membros da Royal Geographical Society (RGS), entidade londrina de 179 anos que patrocinou grandes expedições, como a viagem de cinco anos de Charles Darwin a bordo do navio Beagle e o desbravamento do interior da África liderado por David Livingstone, ambas no século XIX. No mês passado, um grupo de 70 membros da entidade tentou derrubar um veto, determinado há dez anos, para a organização de novas expedições, hoje vistas como caras e contraproducentes. Levada Cachoeiras Victoria, na África, descritas pela expedição de Livingstone em 1855 a voto em junho, a proposta de reativação das viagens foi derrotada pelos membros da > A Lua pode missões espaciais da Nasa. RGS com um placar de 2.590 a 1.607. "É lamentável abdi esperar? A primeira audiência carmos de nossa tradição de expedições fantásticas”, disse Alistair Carr, aventureiro e escritor que propôs a resolução. pública evidenciou Gordon Conway, presidente da RGS, argumenta que as granÀs vésperas do aniversário dificuldades para levar de 40 anos da chegada do adiante as metas do governo des expedições não são a forma adequada de enfrentar os homem à Lua, comemorado Bush, de substituir os ônibus atuais desafios da instituição. “Os grandes problemas de no dia 20 deste mês, espaciais por uma nova hoje são as mudanças climáticas, a segurança alimentar e uma comissão de dez geração de naves e levar a escassez de água e as grandes expedições não ajudarão especialistas convocada pelo novamente o homem à Lua. a enfrentá-los”, disse à revista Nature. Em vez de grandes presidente norte-americano Steve Cook, responsável pelo aventuras, Conway prefere projetos menores e com foco em problemas bem definidos. “Estamos falando da geografia do Barack Obama começou projeto de foguetes Ares, século XXI, não da do século XIX”, afirmou. a debater o futuro das idealizados para conduzir

Nasa

To the Mountains of the Moon: Mapping African Exploration, 1541-1880/Universidade Princeton

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a cápsula tripulada Orion ao espaço, informou que a Nasa gastou apenas US$ 10 bilhões dos US$ 35 milhões necessários para viabilizar a primeira missão à Estação Espacial Internacional, em 2015. E disse que serão necessários US$ 100 bilhões para completar a missão que levará o homem à Lua, em 2020. O custo elevado reabriu o debate sobre

A marca do homem na Lua, em 1969 24

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a utilidade científica desse tipo de missão, que pouco acrescentaria aos resultados das missões Apollo. Entidades como a Planetary Society, em Pasadena, na Califórnia, propuseram outros destinos em substituição à Lua, como asteroides próximos à Terra – numa etapa preparatória de uma viagem a Marte. O relatório da comissão deve ser concluído em agosto.

> Parques em banho-maria A crise financeira mundial afetou grandes projetos de parques tecnológicos, principalmente nos Estados Unidos, mas outros países fazem um esforço para levar adiante tais empreendimentos. “Muitos projetos estão em banho-maria com a falta de dinheiro”, disse à revista


> Produção transparente

Nature Anthony Townsend, diretor de centro de estudos do Institute for the Future, de Nova York. Um dos projetos em compasso de espera é o de um parque em Kannapolis, na Carolina do Norte, vítima provável de um corte de US$ 4,5 bilhões do orçamento que o governo estadual terá de fazer. O Massachusetts Biomedical Initiatives, que agrega três incubadoras tecnológicas, perdeu a metade dos US$ 700 mil em subsídios estaduais que recebia para comprar equipamentos. Em outros países a situação é menos grave. No Japão, a Kansai Science City não foi afetada pela recessão, graças à diversidade de patrocinadores, que vão de laboratórios farmacêuticos a fabricantes de produtos eletrônicos. Recentemente, o governo francês anunciou investimentos de € 1,5 bilhão em 71 polos industriais. O premiê de Cingapura, Lee Hsien Loong, também

A Colômbia quer unificar sua produção acadêmica e científica num portal da internet. A Biblioteca Digital Colombiana (www.bdcol.org) foi lançada no mês passado e abriga teses e artigos científicos de pesquisadores de duas universidades públicas e onze privadas. O projeto busca dar suporte às universidades, que vêm sendo cobradas a organizar repositórios acessíveis à sociedade dos documentos científicos que produzem. Segundo Edwin Montoya, líder da iniciativa, o objetivo é atrair todas as universidades para o projeto.

> Etanol sudanês O presidente do Sudão, Omar al-Beshir, inaugurou a primeira fábrica de biocombustíveis do país. A planta, instalada a 250 quilômetros da capital Khartoum, foi construída graças a um acordo com a companhia brasileira Dedini e deverá produzir 200 milhões de litros de etanol de cana-de-açúcar nos próximos dois anos. O país também celebrou uma colaboração com o Egito para o desenvolvimento de biocombustíveis extraídos de palha de arroz. Eltayeb

Mohamed Abdelgadir, pesquisador sudanês na área de agronomia, disse à agência SciDev.Net que as duas iniciativas são exemplos promissores de cooperação Sul-Sul. “Elas estimulam a economia baseada no conhecimento e permitem a transferência de tecnologia entre países em desenvolvimento”, afirmou.

“O Sudão é um país talhado para a produção de biocombustíveis porque tem vastas áreas não cultivadas e custos de mão de obra agrícola baixos. Além de aumentar a renda para a população, os combustíveis renováveis são uma fonte de energia alternativa para a África”, disse Abdelgadir.

A Tunísia, a África do Sul e o Quênia emergiram do relatório The Africa Competitiveness Report 2009, produzido pelo Fórum Econômico Mundial, como os países mais inovadores do continente. “Eles têm instituições de pesquisa de qualidade, investem em pesquisa e desenvolvimento e se caracterizam por um nível significativo de colaboração entre universidades e empresas”, disse o relatório. Egito, Nigéria e Senegal também aparecem no estrato superior do ranking. O documento avaliou a competitividade dos países segundo 12 parâmetros diferentes. O ranking de inovação era um deles, mas também foram avaliados tópicos como infraestrutura, educação e saúde, estabilidade econômica e eficiência da força de trabalho, entre outros. Quando todos os parâmetros são ponderados, Tunísia e África do Sul seguem na dianteira, seguidos por Botswana e Ilhas Maurício. O documento ressalta que a economia africana cresceu nos últimos dez anos a taxas mais elevadas do que a média mundial. Alguns países, com ambientes mais estáveis, beneficiaram-se mais dessa onda. A Tunísia alcançou 6,3% de crescimento em 2007, graças à proximidade com o mercado europeu e ao investimento nas indústrias mecânica e têxtil. Hoje dispõe de uma infraestrutura de padrão internacional. Entre os 10,3 milhões de habitantes, 8,3 milhões têm telefones celulares e 2,3 milhões, acesso à internet.

Trio competitivo

Ilustrações laurabeatriz

avisou que os investimentos em dois grandes projetos de parques tecnológicos, batizados de Biopolis and Fusionopolis, seguirão apesar da recessão.

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Estratégias MUNDO

> Efeitos no Atlântico

científica, mas para todo o mundo”, justificou. Além da criação do laboratório, o protocolo propõe o desenvolvimento conjunto de duas outras áreas de pesquisa: energias renováveis e ciências do mar.

Energia do Sol e do vento

A presidente chilena Michelle Bachelet anunciou estímulos para a avanço das energias renováveis no Chile. A energia eólica é que terá mais crescimento, pois estudos de um órgão do governo demonstraram que o potencial de geração de energia aproveitada da força dos ventos é distribuído de maneira homogênea no país. Além de um parque de turbinas eólicas em construção, devem ser erguidos outros sete nos próximos anos, com capacidade de gerar até 850 megawatts (MW). Também há planos de estimular a produção de energia solar. Nos próximos meses será lançada uma licitação para instalar uma planta fotovoltaica de 500 quilowatts (500 kW), em San Pedro de Atacama, com painéis solares espalhados por uma área de 2 hectares. A instalação deverá assegurar o fornecimento de eletricidade para o povoado, de apenas 5 mil habitantes, mas que recebe 24 mil turistas por ano, que hoje depende da disponibilidade de gás natural e diesel. Siemens

Uma parceria entre Portugal e Estados Unidos resultará na criação de um laboratório no Arquipélago dos Açores para estudar os efeitos das mudanças climáticas no Atlântico Norte. Um protocolo de cooperação celebrado entre a Fundação para a Ciência e Tecnologia, agência de fomento e de avaliação do governo português, e a Universidade de Massachusetts – Dartmouth, prevê a criação do laboratório, que deverá promover estudos de sensoriamento remoto, além da observação da superfície e das profundezas do oceano. O ministro da Ciência e do Ensino Superior, Mariano Gago, disse ao jornal Expresso que a criação deste laboratório é uma oportunidade científica para

complementar a malha de investigação observacional sobre as mudanças globais. “O problema das alterações climáticas como oportunidade e não apenas como slogan é fundamental não só para a investigação

Chile vai expandir parque eólico 26

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> Cientistas cortejados Tangidos por perseguições políticas no período Saddam Hussein e pela violência pós-ocupação do Exército norte-americano, os cientistas do Iraque que fugiram para o exterior estão sendo cortejados pelo governo e convocados a ajudar na reconstrução do país. “Estamos felizes em dizer: voltem para casa, pois vocês, cérebros iraquianos, precisam nos ajudar a seguir um novo caminho”, disse, segundo a agência Reuters, Sadek al-Ribaki, conselheiro do primeiro-ministro Nuri al-Maliki, a uma plateia de pesquisadores em Bagdá, no final de junho. De acordo com o governo, há 350 mil iraquianos com diploma universitário vivendo fora do país – ou 17% dos 2 milhões de cidadãos que abandonaram o Iraque nos últimos anos. Mas muitos dos 200 cientistas presentes ao evento são céticos em relação aos resultados do apelo, num país em que civis ainda morrem todos os dias em tiroteios e explosões. “É difícil voltar definitivamente, mas o governo poderia nos convidar a participar de projetos específicos em que pudéssemos contribuir, mesmo a distância”, disse Mohammed al-Rubaie, professor de engenharia genética da Universidade de Dublin, na Irlanda.


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Estratégias brasil

laurabeatriz

Desembolso recorde

> Os brasileiros da bolsa Guggenheim Seis pesquisadores brasileiros estão entre os 180 agraciados com a bolsa prêmio da Fundação Memorial John Simon Guggenheim, dos Estados Unidos, em 2009. São eles Marcelo Knobel, Angela Alonso, Edson Leite, Renato de Lima Santos, Fernanda Guarino De Felice e Flávio dos Santos Gomes. Os US$ 25 mil de cada bolsa devem ser utilizados em projetos dos laureados. A premiação de Marcelo Knobel, pró-reitor de Graduação e professor do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) da Unicamp, refere-se aos estudos realizados na área de nanomagnetismo. Angela Alonso, professora do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP), coordena o projeto de pesquisa “A experiência inglesa de Joaquim Nabuco”,

apoiado pela FAPESP, e é coordenadora de Conflitos Ambientais do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Edson Leite, professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), atua na área de engenharia de materiais e metalúrgica e coordena atualmente o projeto “Compósitos moleculares funcionais derivados de poliuretanas: síntese e caracterização”, também apoiado pela FAPESP. Fernanda De Felice, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), atua na área de neurobiologia da doença de Alzheimer. Flávio dos Santos Gomes é professor do programa de pós-graduação em história da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Renato de Lima Santos é professor da Escola de Veterinária da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

A FAPESP investiu em 2008 R$ 638 milhões no apoio à pesquisa, maior desembolso na história da Fundação e 16% superior ao realizado em 2007. De 2001 a 2008 a Fundação investiu R$ 3,9 bilhões em projetos de pesquisa. Esse desempenho acompanha a evolução da transferência de 1% da receita tributária do estado de São Paulo para a Fundação, como determina a Constituição estadual. No período, a soma de recursos das transferências do Tesouro do Estado foi de R$ 3,3 bilhões, passando de R$ 271,4 milhões, em 2001, para R$ 623,4 milhões em 2008. Em 2008 a receita total da FAPESP – que compreende ainda recursos próprios e advindos de convênios – foi de R$ 769,33 milhões, valor 21,6% superior ao de 2007. Em 2008 foram contratados 11.336 novos projetos de pesquisa, volume 7% maior que o de 2007. O presidente da FAPESP, Celso Lafer, destacou que a Fundação, nos últimos anos, vem construindo seu trabalho em cima de um novo patamar. “Uma das coisas novas é o capítulo da internacionalização, por meio do estabelecimento de uma série de convênios e acordos que visam não apenas ampliar o volume de recursos para pesquisa, mas fortalecer o mecanismo de rede entre pesquisadores brasileiros e de outros países”, disse. Outra novidade foi a promoção de seminários e workshops relacionados aos diversos programas. “Esse conjunto de atividades permite a criação de redes entre os próprios pesquisadores brasileiros, que passam a interagir e a ter conhecimento sobre o que se passa em suas áreas de interesse e sobre as necessidades de pesquisa”, disse Lafer. Segundo o diretor científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz, os investimentos da Fundação podem ser classificados em três blocos: “A Formação de Recursos Humanos, com 35% do desembolso, é parte essencial da estratégia da FAPESP para formar as novas gerações de cientistas em São Paulo e no Brasil. O Apoio à Pesquisa Acadêmica, motivada pela curiosidade do cientista, recebeu 56% dos desembolsos. Para a Pesquisa Orientada a Aplicações, na qual se incluem importantes programas como Biota, Bioen, Mudanças Climáticas, Tidia, Políticas Públicas, CInAPCe, Pipe e Pite, foram desembolsados 9% dos recursos e esse percentual reflete o aumento da oferta por outras agências de recursos para projetos dirigidos a aplicações”. PESQUISA FAPESP 161

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Estratégias brasil

fotos Antônio Felipe Mota

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Instalações do Espaço Ciência: 100 mil visitantes em 2008

> Sai o edital do PPSUS A FAPESP, a Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo, o Ministério da Saúde e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) lançaram no dia 8 de junho uma chamada para apresentação de propostas ao Programa Pesquisa para o SUS: gestão compartilhada em saúde (PPSUS) 2009. O edital disponibiliza R$ 6 milhões para projetos de pesquisa em seis grandes temas: doenças transmissíveis; doenças não transmissíveis; morbidade e mortalidade materno-infantil; morbidade e mortalidade 28

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por causas externas; promoção e proteção da saúde e meio ambiente; e gestão e gerenciamento do SUS. As propostas serão recebidas até o dia 25 de agosto. A edição 157 da Pesquisa FAPESP informou que o edital sairia no dia 9 de março, mas o lançamento foi adiado após o fechamento da revista. Mais informações estão disponíveis no endereço <www.fapesp.br/ppsus>.

> Contribuição reconhecida Wagner Farid Gattaz, professor do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, foi agraciado com o Prêmio de Pesquisa da World

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O Espaço Ciência, um museu inte­ rativo a céu aberto mantido há 15 anos pelo governo pernambucano, venceu o 9° Prêmio José Reis de Divulgação Científica. O museu, que recebeu 100 mil visitantes em sua sede no ano passado, localiza-se em uma área de 120 mil metros quadrados, próxima ao mar e entre as cidades de Recife e Olinda, e oferece mais de 100 atrações para crianças, jovens e adultos. É dotado de instalações como um espelho d'água, uma hidrelétrica gerando corrente, um planetário e uma caverna e ainda abriga o manguezal Chico Science, uma área de mangue utilizada para experiências e espaço de educação ambiental – os visitantes são convidados, por exemplo, a identificar as espécies que habitam o lugar. O Espaço Ciência também organiza mostras e oficinas itinerantes, levadas num micro-ônibus a cidades do interior de Pernambuco e estados vizinhos, e se dedica a projetos de cunho social e educativo, como o treinamento de crianças e jovens carentes em cursos de jardinagem e de construção de jogos e brinquedos de madeira. “É a primeira vez que um museu de ciências vence o José Reis. A premiação, além de homenagear o nosso trabalho, também significa um reconhecimento ao avanço que temos visto nos museus do ciência brasileiros”, diz Antonio Carlos Pavão, professor de química da Universidade Federal de Pernambuco e diretor do Espaço Ciência desde 1995. O Prêmio José Reis, concedido anualmente pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), é uma homenagem ao médico, pesquisador, jornalista e educador José Reis, que morreu em 2002, aos 94 anos de idade.

Museu a céu aberto

Federation of the Societies of Biological Psychiatry, em reconhecimento às suas contribuições na pesquisa biológica dos mecanismos moleculares das doenças neuropsiquiátricas. O prêmio, um dos mais importantes na área de psiquiatria biológica, é outorgado pela federação que representa as sociedades de psiquiatria biológica de todo o globo. Criado em 2001, o prêmio é concedido a cada dois anos. Os quatro cientistas contemplados anteriormente são da África do Sul, Israel, Reino Unido e Estados Unidos.

> Ernesto Parterniani (1928-2009) Morreu em Piracicaba, aos 81 anos, Ernesto Paterniani, professor do Departamento de Genética da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP. Especialista de renome internacional na pesquisa genética do milho, teve papel de destaque na melhoria de variedades cultivadas hoje no Brasil, como a Piramex, a Pérola Piracicaba, a Piranão VD-2 e a Esalq-VD. Trabalhou como bolsista da Fundação Rockefeller no México e nos


> Raupp é reeleito na SBPC

(USP) e coordenador do Núcleo do Parque Tecnológico de São José dos Campos em São Paulo, Raupp foi reeleito com 766 dos 828 votos de associados fotos Miguel Boyayan

O matemático Marco Antonio Raupp foi reeleito presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) para o mandato de julho de 2009 a julho de 2011. Especialista em análise numérica, professor livre-docente da Universidade de São Paulo

Durante um semi­ nário sobre as pesquisas da vacina antimalária, realizado na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), o casal de cientistas Ruth e Victor Nussenzweig anunciou que pretende retornar ao Brasil em breve. Radicados nos Estados Unidos desde os anos 1960, Ruth Ruth e Victor Nussenzweig: vacinas antimalária e Victor, ambos com 81 anos, pretendem seguir trabalhando que reunirá bases de em pesquisas sobre a vacina antimalárica na FMUSP, onde ambos se formaram no início da década de 1950. Segundo dados de instituições como Victor, que é chefe da Divisão de Imunologia Michael Heio Datasus e o Instituto delberger da Universidade de Nova York (NYU) , a vacina Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), para RTSS, desenvolvida por sua equipe, está em estágio de agrupar informações testes clínicos de larga escala em diversas regiões da África. ambientais, climáticas, “A vacina já está em fase 3 [última] de experimentação, humanas e de saúde pública. envolvendo entre 15 mil e 20 mil pessoas. Nos últimos 20 anos foram testados os princípios e feitos muitos ensaios O principal objetivo da clínicos em humanos. A vacina se mostrou capaz de proteiniciativa é ampliar a ger de 30% a 50% das pessoas depois de três injeções”, pesquisa sobre os impactos disse o pesquisador à Agência FAPESP. das mudanças climáticas na

De volta para casa

Estados Unidos. Na Esalq chefiou o setor de Melhoramento do Milho, foi diretor do Departamento de Genética e coordenou cursos de pós-graduação em genética e melhoramento de plantas. Também exerceu funções como a de membro da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio). Em 1988 recebeu do CNPq uma das mais importantes premiações do país, o Prêmio Álvaro Alberto para a Ciência e Tecnologia. Em 1º de junho deste ano foi agraciado com o Prêmio Fundação Conrado Wessel (FCW) 2008 de Ciência Aplicada, por sua contribuição ao desenvolvimento agrícola e nutricional do país.

da SBPC. Raupp prevê que seu novo mandato será marcado pelas mobilizações em torno do aprimoramento de marcos regulatórios para o desenvolvimento da atividade científica e do fim do contingenciamento do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

> O monitoramento das mudanças

Observatório terá informações ambientais e de saúde

A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) anunciaram a criação do Observatório Nacional de Clima e Saúde (Observatorium),

saúde humana, que podem ser causadas por eventos extremos, como ondas de calor ou por alterações dos ecossistemas, produzir alertas de situações de emergência e servir de apoio à tomada de decisão por autoridades. Para o especialista do Inpe e coordenador do projeto, Antônio Miguel Vieira Monteiro, uma das peculiaridades do observatório será a possibilidade de participação dos cidadãos por meio da Base Viva, que permite ao usuário inserir informações sobre eventos naturais, clima e condições de saúde sem estar vinculado a nenhuma instituição. A versão piloto do projeto deverá ser lançada ainda neste ano.

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política científica e tecnológica

ma década. Lançado em 1999, o Biota-­ -FAPESP foi responsável por um inédito mapeamento da biodiversidade paulista. Produziu 84 projetos de pesquisa e gerou avanços no conhecimento, como a identificação de 1.760 espécies (1.109 microrganismos, 564 invertebrados e 93 vertebrados), além da publicação de mais de 700 artigos científicos, 20 livros e dois atlas. No campo da qualificação de recursos humanos, formou 169 mestres, 108 doutores e 79 pós-doutores. Em dez anos, a FAPESP investiu R$ 82 milhões no programa. Um dos consensos do workshop foi a necessidade de ampliar a visibilidade internacional da produção do Biota. Uma das metas é aumentar o número de publicações em revistas de impacto e incentivar o intercâmbio de pesquisadores e professores visitantes e a participação em eventos no exterior. “Precisamos ter maior inserção na arena internacional, tanto na área acadêmica como nas discussões de políticas de conservação e uso sustentável da biodiversidade. Isso deve ser feito por meio de parcerias, intercâmbios e participação nos comitês de organizações internacionais”, disse Joly. Outro ponto de convergência foi a necessidade de estimular a pesquisa em informática para biodiversidade, com o objetivo de criar novas ferramentas computacionais de análise dos dados capazes de amplificar o conhecimento gerado pelos dados de campo recolhi-

Biodiversidade

dez anos

Os próximos

Pesquisadores traçam estratégias para o futuro do Programa Biota-FAPESP | Fabrício Marques

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dos pelos pesquisadores, acrescentando, por exemplo, interfaces com modelos de mudanças climáticas. A reformulação do Sistema de Informação Ambiental do Biota (SinBiota), que reúne os dados coletados pelos pesquisadores, foi defendida por Ricardo Ribeiro Rodrigues, professor titular da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP), que coordenou o programa entre 2004 e 2008. “A criação de um novo protocolo de coleta que permita a reestruturação desse banco de dados é uma das questões que precisamos começar a discutir fortemente”, disse Rodrigues. Segundo dados apresentados por Carlos Joly, a área de ciência da computação apresentou poucos projetos e, consequentemente, foi uma das que menos recebem investimentos diretos do Programa Biota. “Só conseguiremos sofisticar o SinBiota se formos atrás de parcerias com a área de informática. Até agora não conseguimos motivar pesquisadores da ciência da computação a submeterem projetos ao programa”, afirmou. Entre as ideias aventadas no workshop estava também a integração do Biota à rede KyaTera, do Programa Tecnologia da Informação no Desenvolvimento da Internet Avançada (Tidia) da FAPESP, para facilitar a troca de dados e as colaborações. Valor - O professor de botânica Marcos

Buckeridge, da USP, também ressaltou a necessidade de atrair pesquisadores da área de informática, mas não só eles. “Precisamos de matemáticos, de engenheiros e também de economistas”, afirmou. Segundo ele, também é preciso dar foco à pesquisa na área que possibilite estabelecer o valor econômico dos recursos hídricos e da biodiversidade. “Sem estabelecer um valor, não há como cobrar”, disse. Líder de projetos temáticos do Biota e agora atuando no programa de Bioenergia (Bioen), Buckeridge defendeu a criação de um Comitê Interprogramas, para investir nos pontos de intersecção entre as iniciativas da FAPESP. O grupo encarregado de discutir o elo entre o programa e a educação sugeriu a criação do Espaço Biota Edu-

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um evento que comemorou uma década de atividade do Programa de Pesquisas em Caracterização, Conservação, Recuperação e Uso Sustentável da Biodiversidade do Estado de São Paulo (Biota-FAPESP), cerca de 300 pesquisadores reuniram-se num workshop em São Paulo a fim de discutir estratégias para os próximos dez anos. Divididos em grupos, os participantes esboçaram temas que devem merecer estudos complementares, como o aperfeiçoamento dos inventários da riqueza biológica, com a inclusão de novas técnicas de biologia molecular e genômica, a ampliação de estudos sobre a diversidade marinha ou a criação de uma área de educação, capaz de produzir material didático para os ensinos fundamental e médio. “O avanço do conhecimento da biodiversidade de algas, por exemplo, carece de investimentos em estudos que incluam biologia molecular. Sem esse tipo de dado nossos trabalhos não teriam qualidade para serem aceitos em publicações internacionais”, diz Carlos Alfredo Joly, coordenador do programa e professor do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). As propostas feitas pelos grupos de trabalho serão avaliadas pela coordenação do programa e os pontos em comum serão incorporados ao documento que estabelece estratégias, metas e objetivos do programa para a próxi-


cação, um ambiente atraente para os estudantes com dados coletados pelo programa. “Nos referimos à educação em sentido amplo – produzir material que possa ser usado tanto na rede de ensino fundamental e médio como para a divulgação voltada à sociedade em geral”, disse Carlos Joly. “Muitas vezes o professor de ciências usa exemplos da fauna e da flora de outros países porque não encontra material organizado de ecossistemas locais”, afirmou. Doenças negligenciadas - A trans-

formação do conhecimento gerado em produtos comerciais, considerado um dos pontos vulneráveis dos dez primeiros anos do Biota, deverá ser estimulado por meio de um conjunto de estratégias. “Há um consenso de que o Biota é o melhor espaço para falar de bioprospecção”, diz Vanderlan da Silva Bolzani, do Instituto de Química de Araraquara da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e coordenadora da Rede Biota de Bioprospecção e Ensaios (BIOprospecTA). Ela enfatizou a importância de priorizar a busca de fitoterápicos, a fim de abastecer o Sistema Único de Saúde, e a pesquisa de fármacos contra as doenças negligenciadas, aquelas que inspiram pouco interesse das indústrias por atingirem os países pobres. Por fim, o grupo encarregado de discutir estratégias para transferência de conhecimento para o governo sugeriu que os novos projetos incluam em sua concepção o uso de seus resultados para sustentar políticas públicas. Isso aconteceu, por exemplo, com uma resolução da Secretaria Estadual de Meio Ambiente (SMA) segundo a qual a análise de todos os pedidos para uso de áreas com florestas nativas deverá se basear nas categorias de importância para a restauração definidas num mapa produzido pelo programa. O grupo fez uma proposta ousada. Sugeriu a contratação de uma espécie de embaixador do Biota, um especialista talhado para desempenhar um papel político, capaz de identificar demandas da sociedade e estabelecer parcerias com outros estados e o governo federal, além de órgãos de fiscalização e licenciamento. n PESQUISA FAPESP 161

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Sintonia COMEMORAÇÃO

com a sociedade Cebrap faz 40 anos com vasto portfólio de pesquisas nas ciências humanas e sociais Neldson Marcolin

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ma instituição ágil, voltada para as ciências humanas e sociais, que permite fazer pesquisa de ponta e gerar trabalhos que servem de base para o setor de políticas públicas. Essa definição parece se encaixar bem no perfil do Centro Brasileiro de Pesquisa e Planejamento (Cebrap), que completou 40 anos no dia 29 de maio. “A universidade muitas vezes demora a entrar em sintonia com o debate das questões mais agudas da sociedade. O Cebrap responde rápido a elas, com investigações, análises e propostas”, avalia a antropóloga Paula Montero, presidente do centro e professora da Universidade de São Paulo (USP). Nesses 40 anos, há numerosos exemplos de trabalhos que se tornaram referência. Hoje o Centro de Estudos da Metrópole (CEM), abrigado no Cebrap, é responsável pelas linhas de pesquisas de maior impacto e visibilidade desenvolvidas na instituição, segundo Paula. O CEM é um dos 11 centros de pesquisa, inovação e difusão (Cepids) financiados pela FAPESP desde 2000. Este ano se tornou também um dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Seu objetivo é estudar os problemas urbanos e suas dinâmicas. “Até 2000, quando foi criado, os estudos urbanos tendiam a ser pouco centrais”, conta o cientista político Eduardo Marques, diretor do CEM e professor da USP. A maior parte da produção anterior do Cebrap focalizava a cidade em si, apesar de boa parte dos objetos serem urbanos. No final dos anos 1990, o Cebrap se articulou com outras instituições para responder ao edital da FAPESP relativo à constituição dos Cepids, liderado por Argelina Figueiredo. “Do tripé que sustenta o Cepid – pesquisa, inovação e difusão –, substituímos o termo ‘inovação’ por ‘transferência’, porque produzimos bases de dados sobre temas urbanos e as transferimos para o setor público”, explica Marques. Ele conta que nesses oito anos de funcionamento o CEM passou a ocupar lacunas importantes no cenário da produção e disseminação de dados georreferenciados sobre as principais metrópoles brasileiras. “Nós compramos várias bases de dados, digitalizamos e integramos outras, usamos para nossas pesquisas e as colocamos no nosso site, de graça, para todos os usuários.” O centro também desenvolve estudos e projetos sob encomenda. Quando alguma esfera de governo (municipal, estadual ou federal) precisa de um trabalho específico, como saber quantas pessoas há em determinada favela, o CEM faz o geoprocessamento com dados disponíveis, que são analisados e cruzados pelos pesquisadores e técnicos do centro. Esse tipo de trabalho gera recursos extraordinários que são usados para o funcionamento da instituição. Outros estudos do centro tentam entender a heterogeneidade do tecido social da metrópole. Hoje a migração é muito menor do que em déca­das passadas. As periferias e a pobreza não são ho­­mogêneas – há distritos com 600 mil pessoas e elevada heterogeneidade. “Isso decorre de vários fatores e se liga às políticas de inclusão com o retorno da democracia, dos anos 1980 para cá”, diz Marques. Há ativismo po­líti­­co, associações e maior negociação e pressão. O cenário das condições de vida melhorou. “A pobreza absoluta não acabou, mas diminuiu muito nas maiores metrópoles brasileiras, embora a pobreza relativa ainda seja uma característica marcante nas nossas cidades.” Apesar disso, a estrutura social sofreu poucas alterações nas últimas duas décadas nas grandes metrópoles, para além das transformações trazidas pela migração e in-

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corporação da mulher ao mercado de trabalho. Para identificar onde estão os problemas, o CEM produziu projetos como o Mapa das Vulnerabilidades Sociais do Município de São Paulo, além de outros 27 projetos desenvolvidos para órgãos públicos diferentes de todo o Brasil, incluindo Rio de Janeiro e Salvador. “No caso do projeto paulista, a ideia foi fazer análises e mapeamentos que ajudassem a dirigir as políticas públicas da prefeitura para atendimento do idoso e das crianças mais pobres, por exemplo”, explica. Só assim é possível saber com precisão onde aplicar o dinheiro público e as políticas sociais. Assentamentos precários - No ano

passado o CEM realizou para o Ministério das Cidades um projeto sobre assentamentos precários (favelas e lotea­mentos clandestinos e irregulares nas áreas urbanas). Em razão da dimensão do território nacional, foram gerados dados e estimativas para 671 municípios (aqueles acima de 150 mil habitantes, além de todos situados em regiões metropolitanas). Dentre esses, o CEM gerou cartografias intramunicipais para 371 deles – os mapas estão disponíveis no site <www. centrodametropole.org.br>. Também na rede há a revista digital DiverCidade, que trata de divulgar toda a massa de informações resultantes do CEM. Muito antes dos estudos sobre a me­­trópole, um livro lançado em 1976 foi muito importante para o Cebrap. Trata-se de São Paulo 1975: crescimento e pobreza. Feito a pedido da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, mostrava a outra face do milagre econômico brasileiro daquela época. Dom Paulo Evaristo Arns assinou a apresentação citando dados sobre o aumento da mortalidade infantil e criticando a desnutrição, o excesso de trabalho, a falta de moradia, a precariedade do transporte, a insegurança e a “asfixia da liberdade de associação, informação e reivindicação”. O estudo era dividido em seis capítulos escritos por Cândido Procópio Camargo, Fernando Henrique Cardoso, Frederico Mazzucchelli, José Álvaro Moisés, Lucio Kowarick, Maria Hermínia Brandão Almeida, Paul Singer e Vinícius Cal­deira Brant. Foram alguns desses autores que criaram o Cebrap, um instituto de pesquisa privado e sem fins lucrativos. Era 34

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um jeito de continuar trabalhando no Brasil mesmo com o cerceamento às liberdades democráticas do período, que levou o governo militar a cassar quem era considerado inimigo do regime. Entre os fundadores e sócios estavam intelectuais renomados, conhecidos no exterior, como Antonio Candido de Mello e Sousa, Elza Berquó, Eunice Durham, Francisco de Oliveira, José Arthur Giannotti, Roberto Schwarz e Ruth Cardoso, além dos já citados Fernando Henrique e Singer. Para manter o centro conseguiu-se financiamento da Fundação Ford – entidade norte-americana que não podia ser acusada de comunista – e de empresários. Uma das estratégias adotadas para evitar problemas com o regime era publicar todas as pesquisas produzidas. O

objetivo era não deixar parecer que ali se fizesse qualquer tipo de trabalho que fosse secreto. A iniciativa revelou-se um sucesso quando Elza Berquó, Cândido Procópio e Paul Singer começaram a fazer os estudos sobre demografia e a publicá-los nos então Cadernos Cebrap. É preciso lembrar que o planejamento familiar era uma questão política candente em 1970, um constante embate entre a Igreja Católica e os militares. “Os Cadernos se tornaram verdadeiros best-sellers porque os dados oficiais do governo sobre essas questões não eram públicos”, diz Paula Montero. Os estudos sobre a população foram essenciais para saber como eram as famílias, quantos filhos tinham, qual a composição da renda, onde moravam e trabalhavam etc.

Favela na capital paulista: geração de estimativas e mapas


Os Cadernos Cebrap e Estudos Cebrap inauguraram as publicações da casa. A primeira teve duas séries, de 1971 a 1978 e de 1984 a 1986. A segunda foi publicada entre 1971 e 1980 e antecedeu a atual Novos Estudos, que traz artigos, entrevistas, resenhas e dossiês e é referência obrigatória para as disciplinas no âmbito das ciências sociais, das artes e da literatura. Houve ainda a publicação dos Cadernos de Pesquisa, entre 1994 e 1997. Com exceção das edições recentes de Novos Estudos, todas as outras estão esgotadas. Mas é possível ler e imprimir todos os números dos periódicos antigos, assim como livros esgotados, na biblioteca virtual do Cebrap (www.cebrap.org.br). Políticas - Alguns grupos se destaca-

ram na primeira década da instituição. O de Fernando Henrique, Giannotti e Oliveira pensava sobre política e democracia – a democratização e a reforma do Estado eram temas sempre debatidos. Elza, Singer e Procópio se debruçavam sobre política e população, produzindo dados importantes sobre fertilidade, por exemplo. Octavio Ianni liderava uma equipe que estudava planejamento social. Já nos anos 1980 a reforma do Estado continuava na moda e surgiu um novo tema recorrente: o debate sobre a crise do bem-estar social. A área de religião, inaugurada no Cebrap por Procópio, permanece ativa, agora com a própria Paula Montero à frente. Nos anos 1970 e 1980 havia a discussão se o protestantismo nas camadas pobres urbanas produziria um sujeito mais adequado às exigências do mundo urbano. As religiões que se expandiram nessas camadas precisaram negociar com a tradição africana para desafiar o catolicismo. “Num primeiro momento, a umbanda cresceu muito nos anos 1960. Era uma mistura do catolicismo com o espiritismo kardecista”, diz. Nos anos 1990 foi a vez do crescimento do neopentecostalismo, que é uma combinação do protestantismo com a raiz africana. Segundo Paula, um dos rituais mais importantes do neopentecostalismo é a possessão seguida da expulsão de exu do corpo do fiel. A pesquisadora desenvolve alguns trabalhos mostrando como a cultura religiosa da Igreja Católica marcou profundamente a formação da sociedade

Um dos mapas sobre vulnerabilidade feito para São Paulo: mais dados para as políticas públicas

civil brasileira. Em nome da proteção da credulidade pública contra a ação de charlatões e feiticeiros, o Estado criminalizou e perseguiu, pelo menos até os anos 1950, as práticas populares afrorreligiosas e outras que tivessem qualquer conotação mágica. O único espaço possível para que essas práticas deixassem de ser perseguidas foi assumirem a forma de religião e reivindicarem o direito à liberdade religiosa. “Inverto o raciocínio de Max Weber, que tem a tese de que a secularização – movimento no qual a religião reflui para o mundo privado – libertou a sociedade civil”, diz. Para Paula, o espaço civil no Brasil foi construído ao mesmo tempo que se construíram novas religiões. Essa linha de pesquisa sobre religião indica que há uma continuidade dentro do Cebrap de temas e linhas de pesquisa que se renovam continuamente. Outros se esgotam por si mesmos. A discussão sobre a modernização do país, que dominou a década de 1970, deixou de ser importante. “Hoje não se fala mais nisso”, exemplifica Paula. Uma área que cresce dentro do Cebrap é a de direito e democracia. “Os professores Marcos Nobre e Ricardo Terra estão construindo uma colaboração com estudantes e pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas para, a partir das teses do filósofo Jürgen Habermas, pensar as normas do direito e a constituição de leis”, conta Paula. Antes de Nobre e Terra, o coordenador de filosofia era José Arthur Giannotti, da USP, um dos fundadores do Cebrap e seu presidente por duas vezes. “Trabalhávamos com lógica e ontologia”, diz Giannotti. Houve um momento, porém, em que se notou

que era importante trabalhar também com jovens. “Com a massificação das universidades, percebemos que teríamos de fazer um movimento para formar quadros científicos mais qualificados.” De 1986 a 2007 o Cebrap manteve um programa na área de humanidades com estudantes de todo o país, o Programa de Formação de Quadros Profissionais, dirigido por Giannotti. Até 2003, o objetivo era aprimorar a formação de mestrandos e doutorandos não só com estudos, mas também graças ao convívio contínuo com os pesquisadores. A partir de 2003 foi criada a modalidade para pós-doutorandos, com o mesmo objetivo. “Mesmo com as atividades de bolsistas, os estudantes conseguem participar de pesquisas em andamento do Cebrap”, conta o pesquisador. O programa contou com financiamento do Conselho de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) desde 1986 e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) a partir de 1989. Os resultados foram muito bons e beneficiaram diretamente as universidades paulistas com gente bem formada e se ajudou a renovar as gerações de pesquisadores do centro. Ainda este ano deverá ser lançado no Brasil e no México o livro O horizonte da política – Questões emergentes e agendas de pesquisa, coordenado pelo cientista político Adrian Gurza Lavalle, um dos coordenadores do CEM e diretor científico do Cebrap. “São nove artigos de 34 pesquisadores da casa que visam expor as novas agendas de pesquisa sobre política, para ampliar a compreensão do tema”, diz Lavalle. O livro condensa o trabalho de vários anos de reflexão e investigações e foi encomendado aos autores para mostrar, também, como se entende a política hoje. “Atualmente o Cebrap tem caminhado para um processo progressivo de internacionalização, mediante a rea­lização e coordenação de projetos de pesquisa comparativos entre diferentes contextos regionais e nacionais, graças à colaboração com instituições de outros n países”, conclui Lavalle. PESQUISA FAPESP 161

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Instituição ipt

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Gargalos do desenvolvimento O IPT busca um novo perfil e planeja articular a solução de grandes temas tecnológicos

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os 110 anos de idade completados em junho, o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) está investindo numa nova vocação. Habituado a responder a demandas da sociedade e do desenvolvimento industrial, como a produção de ensaios de materiais ou a elaboração de laudos sobre acidentes em obras, o IPT quer agora assumir um papel articulador da solução de grandes temas tecnológicos, antecipando-se às necessidades dos setores público e privado. Um símbolo desse novo modelo é o Centro de Pesquisas de Estruturas Leves, laboratório que o IPT irá inaugurar até dezembro no Parque Tecnológico de São José dos Campos, para pesquisa e desenvolvimento de novos materiais e estruturas metálicas. O objetivo é ajudar o país a desenvolver materiais que auxiliem a reduzir o peso dos aviões, dominando uma tecnologia essencial à competitividade no setor aeroespacial, com possíveis aplicações também na indústria automobilística e de petróleo.


O Gabinete de Resistência de Materiais, em 1904

Com um investimento total de R$ 90,5 milhões, a iniciativa foi viabilizada por uma parceria que envolve a FAPESP, o IPT, a Secretaria de Desenvolvimento de São Paulo, a Empresa Brasileira de Aeronáutica (Embraer) e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). “O IPT atua nesse projeto como um aglutinador, negociando com órgãos de fomento e atraindo competências das universidades para desenvolver tecnologias que solucionem problemas complexos do setor industrial”, diz o diretor presidente do instituto, João Fernando Gomes de Oliveira, professor da Escola de Engenharia de São Carlos, da Universidade de São Paulo (USP). Segundo ele, a ideia do laboratório não partiu do IPT, mas apontou um norte para a instituição. “Concluímos que a nossa relevância no futuro vai depender do envolvimento em grandes projetos estruturantes como esse”, diz João Fernando. Já existe um segundo projeto delineado, o laboratório de gaseificação de biomassa, que deverá operar num horizonte de cinco anos no Parque Tecnológico de Piracicaba, e irá articular esforços de empresas e investimentos públicos para superar gargalos tecnológicos na produção do etanol de segunda geração. O objetivo é tornar viável a transformação da celulose, que está no bagaço de cana e na palha descartada na colheita, em álcool combustível, por meio da conversão em gás da biomassa e a subsequente liquefação do gás em etanol. Esse tipo de tecnologia, que promete multiplicar a produtividade da cana-de-açúcar brasileira, é objeto de um grande esforço de pesquisa sobretudo nos Estados Unidos e na Europa. O consórcio interessado no laboratório do IPT inclui a Braskem, a Petrobras, o Centro de Tecnologia Canavieira (CTC) e a União da Indústria da Cana-de-açúcar (Unica). As unidades de São José dos Campos e Piracicaba se agregarão a uma estrutura que atualmente se distribui por 67 prédios e ocupa mais de 96 mil metros quadrados nos municí-

pios de São Paulo, Guarulhos e Franca. O instituto conta hoje com cerca de 500 pesquisadores e mais de 400 técnicos. Há outros assuntos em avaliação pelo instituto, como o aperfeiçoamento de tecnologias para a produção de células solares e de turbinas de energia eólica. “Estamos criando uma nova diretoria incumbida de prospectar grandes temas, com potencial nas demandas tecnológicas e no potencial de arregimentação de parceiros”, diz João Fernando. A senha para a mudança de perfil veio com o aumento substancial dos investimentos públicos nas atividades do IPT. Até recentemente o instituto tinha investimentos anuais de R$ 3 a R$ 5 milhões, na maioria advindos da iniciativa privada. Estão sendo investidos na modernização entre 2008 e 2010 R$ 150 milhões, sendo R$ 120 milhões de dinheiro do governo estadual. O novo perfil almejado pelo IPT segue um figurino internacional. João Fernando Gomes de Oliveira cita o exemplo do Korea Advanced Institute of Science and Technology (Kaist), uma das maiores instituições de pesquisa da Coreia do Sul, atualmente envolvida em projetos tecnológicos de fronteira, como o desenvolvimento de materiais plásticos ultrarresistentes e a criação de portos móveis, capazes de descarregar ainda no mar grandes navios de contêineres, cujos tamanhos são cada vez menos compatíveis com os calados dos portos tradicionais. “Guardadas as proporções, a ambição do IPT é semelhante. Sabemos que a inovação é um processo contínuo, que depende de diversas etapas. Existe um elo perdido no processo de inovação do Brasil: o financiamento e a simulação de testes capazes de mostrar que as boas ideias dos pesquisadores terão uma aplicação prática para as empresas. É nesse elo que queremos atuar”, afirma. Concreto e asfalto - A adaptação às

necessidades de cada época é uma marca da longevidade do IPT. Criado em 1899 como Gabinete de Resistência de Materiais da Escola Politécnica, tinha como objetivo produzir ensaios de materiais de construção, como o concreto e o asfalto então importados. A partir de 1926, passou a ser conhecido como Laboratório de Ensaios de Materiais e, em 1934, tomou o seu nome definitivo.

O instituto quer mostrar como as boas ideias de pesquisadores podem ter aplicação prática para as empresas. Um elo frágil da inovação

Ao longo de sua trajetória, engajou-se em missões de todo tipo, como a orientação da fabricação de granadas de mão para os paulistas rebelados em 1932; o desenvolvimento de placas de madeira para a fabricação de pequenos aviões na década de 1940; e adaptação de motores de carro para uso de gasogênio durante a escassez de gasolina da Segunda Guerra Mundial. A partir dos anos 1950, participou dos projetos de grandes usinas hidrelétricas, assim como, duas décadas mais tarde, da construção da primeira linha de metrô da capital paulista. Nos últimos 20 anos, dedicou-se também a projetos na área ambiental e a parcerias com empresas de pequeno e de médio porte, que não podem custear um departamento de pesquisa e desenvolvimento próprio. O trabalho que mais chama a atenção do público, porém, são as perícias feitas pelos técnicos do instituto em acidentes como o desmoronamento das obras de uma estação de metrô, há dois anos, que matou sete pessoas. “O ideal seria que o IPT tivesse sido convidado a participar na fase de elaboração do projeto e do monitoramento da obra, em vez de fazer um trabalho de arqueologia para definir as causas da tragédia”, diz João Fernando Gomes de Oliveira. “Mas não podemos evitar essa missão de ‘polícia técnica’, pois somos a instituição mais habilitada a fazer isso no estado e a maior parte de nosso financiamento é pública.” n

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COLABORAÇÃO

Movimento articulado Encontro das FAPs discute a melhor forma de potencializar os recursos para pesquisa

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m reunião conjunta em São Paulo nos dias 18 e 19 de junho, integrantes do Conselho Nacional de Secretários Estaduais para Assuntos de CT&I (Consecti) e diretores do Conselho Nacional das Fundações de Amparo à Pesquisa (Confap) decidiram enviar uma carta pedindo a criação de uma fundação de amparo à pesquisa (FAP) aos governadores dos quatro estados que ainda não têm uma instituição como essa funcionando. São eles, Rondônia, Roraima, Amapá e Tocantins. “Nossa expectativa é que, trabalhando de forma integrada e em parceria com os órgãos federais, os representantes das FAPs possam fazer ações articuladas, somar recursos e promover trabalhos que tragam resultados efetivos em ciência, tecnologia e inovação que garantam o desenvolvimento para o nosso país”, disse Mario Borges Neto, presidente da Confap e da Fapemig. “O fato de 23 unidades da federação terem sua própria fundação significa que a sociedade reconhece a ciência e tecnologia brasileira como fator de desenvolvimento social”, avaliou Ricardo Brentani, diretor presidente do Conselho Técnico-Administrativo da FAPESP. A opinião unânime do encontro entre os secretários e os diretores das fundações é que todos os estados têm de tomar iniciativas próprias para potencializar o financiamento à pesquisa que vem das fontes federais e empresariais. “Trata-se de levar adiante um federalismo cooperativo, que passa pela interação entre os estados-membros, da federação e pelo relacionamento entre as instâncias da União com as respectivas entidades dos estados-membros tendo como objetivo compartilhado adensar o potencial da pesquisa brasileira. No caso da FAPESP, isso vem se traduzindo nos inúmeros convênios com as FAPs de outros estados e igualmente pelos convênios com o CNPq e a Capes”, disse Celso Lafer, presidente da FAPESP. “Temos uma grande parceria com as FAPs e as secretarias de Educação de todo o país”, afirmou Jorge Guimarães, presidente da Capes, que representou o ministro da Educação, Fernando Haddad. “Nosso com-

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promisso e maior desafio é dar apoio à educação básica.” Ele lembrou que, embora a posição brasileira no mundo da ciência seja de destaque, na área de matemática básica, a situação é dramática. Apenas três alunos em mil acertam a metade das questões das provas dessa disciplina. “Temos de usar a inteligência disponível na ciência e tecnologia para melhorar o ensino fundamental.” Marco Antonio Zago, presidente do CNPq, também esteve presente no evento. Durante o encontro, a FAPESP e a Fapeam, do Amazonas, lançaram um edital conjunto para estimular projetos que envolvam a realização de intercâmbio de estudantes e pesquisadores dos dois estados. “Não há como desenvolver ciência no Brasil sem articular e sem adicionar recursos e competências e partilhar infraestrutura”, afirmou Odenildo Sena, diretor presidente da Fapeam. Para o secretário executivo do Ministério da Ciência e Tecnologia, Luiz Antonio Rodrigues Elias, que representou o ministro Sergio Rezende, é a articulação entre todos que permitirá a consolidação do Sistema Nacional de C&T no país. Ele contou que a lei de inovação foi aprovada no Rio Grande do Sul, por unanimidade, no dia 17 de junho. “Tem havido um esforço grande na maioria dos estados para aprovar as respectivas leis de inovação”, disse René Teixeira Barreira, presidente do Consecti. “Estamos fortalecendo o sistema com o braço da inovação”, disse. O secretário de Desenvolvimento de São Paulo, Geraldo Alckmin, informou durante o encontro que a lei paulista também seria regulamentada em junho. Carlos Vogt, secretário de Ensino Superior de São Paulo, participou da abertura da reunião. O diretor científico da Fundação, Carlos Henrique de Brito Cruz, destacou a importância de os governos estaduais respeitarem os repasses de recursos. Na apresentação que fez sobre a história da FAPESP ele contou que São Paulo sempre respeitou esse princípio. O diretor científico falou de alguns dos principais programas financiados atualmente, como de bioenergia (Bioen), o de mudanças climáticas globais e o de mapeamento da


eduardo cesar

Da direita para a esquerda: Brentani, Borges Neto, Barreira, Alckmin, Lafer, Vogt, Gomes, Elias, Guimarães e Zago

diversidade paulista (Biota), entre outros. “Só é possível pensar em programas com duração de dez anos, como o Biota, porque sabemos que os recursos estarão disponíveis”, disse Brito Cruz. Ensino superior – A qualidade e o

financiamento à pesquisa relacionada ao ensino superior entraram na pauta de apresentações e debates no segundo dia da reunião do Consecti e da Confap com uma reclamação. “Temos 48 universidades estaduais e municipais em 22 estados, mas o investimento do governo é muito maior nas Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes)”, disse João Carlos Gomes, presidente da Associação Brasileira de Reitores das Universidades Estaduais e Municipais (Abruem). “Não dá para fazer programas de educação e de ciência e tecnologia nacionais sem a participação das universidades estaduais e municipais”, alertou. “Sabemos que o investimento não será o mesmo que é feito nas Ifes, mas poderíamos ter um espaço maior no orçamento do governo federal, garantindo recursos para custeio e investimento.” Embora

reconheça a importância de levar as universidades federais para o interior, ele pede atenção para as instituições que já estão nessas cidades de modo a se integrar melhor com o sistema central e evitar a sobreposição. O Ministério da Educação, por meio da secretária de Ensino Superior, Maria Paula Dallari Bucci, ressaltou que vem sendo feito um longo trabalho de institucionalização das Ifes, ainda inacabado. Mas ainda há muito que avançar em relação a articulações externas, como explorar mais as áreas de extensão e inovação. “Do ponto de vista formal, os programas de extensão e inovação podem render mais do que rendem hoje.” Maria Paula também indicou por onde avançar. “A institucionalidade atual é fragmentada e não se conecta com a extensão e a inovação, embora as universidades recebam bom volume de recursos”, afirmou. “Temos pela frente o desafio da construção de uma nova institucionalidade: mais leve, mais inteligente e mais racional.” O assessor de Coordenação dos Fundos Setoriais do MCT, Antonio

Ibañez, disse que as coisas boas das universidades federais que eram tabus até algum tempo atrás, como as avaliações, foram absorvidas pela sociedade. Mas reconheceu que a autonomia das Ifes ainda é uma questão não resolvida, assim como as fundações criadas pelas universidades para torná-las mais flexíveis do ponto de vista burocrático e financeiro. “Tradicionalmente, o Estado não quer abrir mão do controle das universidades nem das fundações”, disse Ibañez. O professor Manassés Claudino Fonteles, da Universidade Federal do Ceará e ex-presidente do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras (Crub), reconheceu os avanços dos últimos anos, mas atacou a mediocridade geral das universidades brasileiras. “Precisamos construir um processo de competência do norte ao sul do país”, sugeriu. “Não podemos ter competência apenas nas 30 ou 40 instituições consideradas de bom nível.” Fonteles concluiu criticando o “financiamento episódico” da pesquisa, como ocorre tanto pelo país. n PESQUISA FAPESP 161

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laboratório mundo

Pedestres, ciclistas e motociclistas representam quase metade do total de 1,27 milhão de mortes causadas por acidentes de trânsito todo ano nas ruas e estradas. Resultado de excesso de velocidade, consumo excessivo de álcool ou falta de equipamentos de segurança, os acidentes de trânsito deixam também de 20 milhões a 50 milhões de feridos, de acordo com o primeiro levantamento internacional sobre acidentes de trânsito, feito pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 178 países. A maioria (90%) dos acidentes ocorre nos países mais pobres, em que circulam 48% dos automóveis do mundo – o Brasil está entre os dez que mais registraram acidentes e mais mortes –, enquanto os mais ricos apresentam as menores taxas de acidentes, que por sinal saltaram da décima posição em 2004 para a quinta principal causa de morte no mundo. Entre os 178 países analisados, só 57% exigem o uso de cinto de segurança para todos os passageiros e só 20% dos países pobres exigem seu uso.

eduardo cesar

Mais atenção nas ruas

Trânsito letal: Brasil está entre os dez com mais acidentes

> Unidos ao inimigo

rothamsted centre for bio imaging 2008

Uma equipe internacional encontrou uma estratégia proverbial para vencer um adversário difícil como o mosquito Aedes aegypti, transmissor da dengue: recrutar o próprio mosquito. Depois de uma boa refeição de sangue, as fêmeas procuram um lugar para descansar e se preparar para pôr os ovos. Foi nesses locais de repouso que o grupo

liderado por Gregor Devine, do instituto britânico Rothamsted Research, espalhou armadilhas com pequenas doses de um análogo do hormônio juvenil (JHA) dos mosquitos. O experimento no cemitério público de Iquitos, na região amazônica do Peru, mostrou que bastam armadilhas em 3% a 5% das áreas de descanso para que as fêmeas espalhem o pó pelas poças em que depositam seus ovos. A substância não é repelente

Aliado: substância tóxica (amarelo) na pata do mosquito 40

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nem afeta o comportamento dos mosquitos, mas interfere na metamorfose dos jovens, que expostos ao JHA não chegam à fase adulta. Os resultados apresentados em 26 de junho no site da PNAS foi animador: uma redução entre 42% e 98% na emergência de adultos. Os autores sugerem usar o método em conjunção e alternância com outros, para evitar que os mosquitos desenvolvam resistência à substância.

> Lavouras mais resistentes Nos próximos anos a temperatura média deve aumentar na maioria dos países africanos, de acordo com vários modelos de previsão climática, e reduzir a produção agrícola em pelo menos metade das áreas hoje cultivadas. Intensificar o uso

de variedades resistentes ao calor pode ser uma alternativa para adaptar-se às mudanças do clima, de acordo com um estudo de pesquisadores da Global Crop Diversity Trust e do International Food Policy Research Institute publicado


Pesquisadores argentinos encontraram uma alternativa de baixo custo – uma formulação seca de fungos Beauveria bassiana – contra os insetos transmissores do protozoário Tripanosoma cruzi, causador da doença de Chagas, um grave problema de saúde pública na América do Sul. Em experimentos realizados em laboratório e em campo – em nove casas

A volta das manchas

Os observadores do Sol detectaram a primeira mancha solar do novo ciclo que o Sol atravessa a cada 11 anos e começou após um atraso de dois anos. As manchas – áreas escuras do tamanho da Terra com temperaturas mais baixas – nunca tinham desaparecido por tanto tempo: dois anos em quase um século. Uma equipe do Observatório Solar Nacional usou uma técnica similar à usada para detectar terremotos e pode ter encontrado uma Atividade solar: jatos saem da superfície explicação para esse atraso – um fenômeno magnético chamado correntes de jatos solares. A cada 11 anos, o Sol gera de Tierras Nuevas, Bolívia, e em uma comunidade correntes de plasma nos polos que viajam, muito lentamente rural de Campo Largo, (cerca de 10 quilômetros por hora), somente até o equador. Por razões ainda não esclarecidas, essas correntes magnéticas iniArgentina –, os fungos degradaram a cutícula ciam um novo ciclo solar e as manchas solares reaparecem quandos insetos, usando seus do atingem 22 graus de latitude ao sul e ao norte. O chamado máximo solar, período de maior intensidade das manchas e das componentes em proveito próprio (PLoS Neglected descargas eletromagnéticas que interrompem as comunicações Tropical Diseases). Os por satélite, deve chegar em alguns anos, se não atrasar.

insetos, de difícil controle por terem adquirido resistência aos inseticidas à base de piretroides, podem morrer também por terem convivido com os que tiveram contato com

os fungos: de acordo com o trabalho coordenado por Nicolás Pedrin, da Universidad Nacional de La Plata, Argentina, 50,9%

dos insetos não infectados originalmente morreram após 30 dias do mesmo modo que os que haviam sido atacados pelos fungos.

david lentink/universidade de wageningen

> Fungo contra barbeiros

noaa

on-line em junho no Global Environmental Change. Se Ruanda, por exemplo, enfrentar o calor hoje sentido na Etiópia, pode começar a plantar o milho etíope, desde que os bancos regionais de sementes estejam disponíveis. Bancos de sementes internacionais talvez ajudem a evitar que a agricultura entre em colapso total nos outros seis países em que o clima estará quente como nunca antes se registrou em qualquer lugar da África.

Plantas engenheiras Se levassem os engenheiros em conta, insetos não voariam. O mesmo vale para sementes que voam como helicópteros em miniatura, descobriram David Lentink, da Universidade de Wageningen, na Holanda, e Michael Dickinson, do California Institute of Technology (Caltech), nos Estados Unidos. Surpreso com os longos voos das sementes de ácer e de carpino, que girando ao vento se sustentam no ar muito mais do que a física e a engenharia preveem, o grupo transformou o robofly, desenvolvido por Dickinson para entender como as moscas voam, num modelo de semente girando em óleo. Ao examinar o trajeto descendente da semente mecânica, os pesquisadores descobriram que ela é Independência: sustentada por minúsculos tornados horizontais. Sementes reais sementes de em túneis de vento verticais confirmaram: elas e os insetos domiácer se soltam e naram o voo posicionando as asas com um ângulo de ataque muito voam para longe da planta-mãe alto. Pode servir de inspiração para novas turbinas (Science).

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laboratório Brasil

aline de piano/unifesp

Budd christman/noaa

Sobrepeso e osteoporose podem ter ligação direta. Embora se acredite que a sobrecarga causada por altos índices de massa corpórea minimize a perda óssea, estudos revelam que os ossos se tornam mais frágeis porque hormônios sexuais se modificam nas células de gordura – quanto mais gordura, menos massa óssea. Em adultos a obesidade está ligada a um aumento da densidade de minerais nos ossos e um risco menor de fraturas da bacia em mulheres pós-menopausa. Em adolescentes, que ainda estão crescendo, as relações são mais refinadas, de acordo com um estudo de Wagner Prado e Aline de Piano coordenado por Ana Dâmaso, da Universidade Federal de São Paulo (Journal of Bone and Mineral Metabolism). Análises de sangue e de ossos de 109 adolescentes (41 rapazes e 68 moças) de 13 a 18 anos com sobrepeso indicaram uma

Os oceanos estão repletos de plástico: garrafas, embalagens, sacos e fragmentos de plástico industrial. Quem sofre mais são as aves marinhas, que confundem o lixo flutuante com presas, comem peixes com plástico no sistema digestivo e regurgitam os detritos para seus filhotes. O material não é digerido e pode bloquear o intestino, provocar úlceras e reduzir o volume útil do papo. O oceanógrafo Edison Barbieri, do Instituto de Pesca da Secretaria da Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, examinou o conteúdo estomacal de 110 aves marinhas encontradas mortas na Ilha Comprida, no litoral paulista. EnconAlbatroz: lixo ingerido atrapalha digestão trou plástico em todas as dez espécies avaliadas, em duas delas – relação inversa entre níveis o bobo-pequeno (Puffinus puffinus) e o albatroz-dede insulina e de resistência -sobrancelha (Thalassarche melanophrys) – em quantidaà insulina com a densidade de suficiente para atrapalhar a ingestão e a digestão, semineral óssea. Do mesmo gundo conta o pesquisador em um artigo publicado nos Brazilian Archives of Biology and Technology. A propormodo, nos rapazes obesos ção de animais afetados também assustou, respectivaque participaram desse mente, 86% e 73% nas duas espécies. Se a quantidade estudo, quanto maiores as taxas de leptina, hormônio de plástico que chega ao mar não for reduzida, o problema tende a se tornar cada vez mais grave. que reduz o apetite e acelera

Plástico, perigo para as aves

> O peso e os ossos dos adolescentes

o metabolismo, menor a quantidade de minerais nos ossos – portanto, maior o risco de osteoporose, uma doença característica dos idosos, em jovens. Acima do peso: esqueleto mais frágil em jovens 42

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> Inflamação de volta ao coração Anos atrás, pesquisas nos Estados Unidos mostraram que as pessoas que haviam suspendido o tratamento com

estatinas apresentavam risco de morte maior quando chegavam ao hospital na fase aguda do infarto do miocárdio. Não se sabia por quê. Por serem as estatinas as drogas mais receitadas


no mundo para controlar o colesterol em pessoas com risco de doenças cardiovasculares, uma equipe do Grupo do Estudo do Coração da Universidade de Brasília saiu atrás de explicações. Por meio de um estudo com 249 pessoas que tomavam ou não estatinas antes, durante ou depois do infarto, os pesquisadores mostraram que esse efeito se deve pelo menos em parte ao chamado rebote inflamatório – o reaparecimento dos processos inflamatórios que contribuíram para o infarto – causado pela suspensão da medicação. “Esse efeito não é observado em pacientes crônicos, que mantêm o uso de estatinas”, disse Andrei Sposito, coordenador do estudo detalhado em junho na revista Atherosclerosis.

Os registros mais antigos de helmintos de animais em vestígios arqueológicos de origem humana são de ovos do verme intestinal Taenia sp. e do parasita de canais biliares Fasciola sp. no Chipre, que datam de cerca de 9.500 anos atrás. De acordo com trabalho coordenado por Luciana Sianto e Adauto Araújo, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, no Brasil há apenas três registros de helmintos de animais

em vestígios arqueológicos humanos. Os mais antigos são ovos dos parasitas intestinais Acanthocephala encontrados em Minas Gerais, com idade estimada em 1.325 a 4.905 anos (Revista do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo). Também em Minas foi encontrado o primeiro registro no país de infestação pelo verme Echinostoma sp., comum na Ásia e transmitido pelo consumo de peixes e moluscos crus.

museu nacional/ufrj

tatiana jazedje/usp

Tubas terapêuticas

As tubas uterinas, antes chamadas de trompas de Falópio, normalmente descartadas em cirurgias para retirada do útero e laqueadura, poderiam ser uma fonte adicional de células-tronco para medicina regenerativa. Uma equipe do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo (USP) coordenada por Tatiana Jazedje e Mayana Zatz extraiu células mesenquimais de tubas uterinas de seis mulheres com 35 a 53 anos de idade, de acordo com um artigo publicado em junho na revista Journal of Translational Medicine. O trabalho foi feito em colaboração com médicos especialistas em fertilização e sua importância vem de as Polivalentes: células-tronco (vermelho) nas trompas células mesenquimais serem potencialmente capazes de se diferenciar em vários outros tipos. Facilmente isoladas e cultivadas, essas células deram > Companheiros de longo tempo origem a células de tecidos musculares e adiposos (ricos em células que acumulam gordura), cartilaginosos e ósseos. O Vermes intestinais grupo verificou também que essa transformação se deu sem chamados helmintos causar alterações nos cromossomos, que poderiam prejudicar acompanham animais e o funcionamento genético das células. Antes desse trabalho, seres humanos há muito células de cordão umbilical, tecido adiposo e polpa dentária, tempo e podem indicar por meio de outros estudos, haviam mostrado a mesma capacidade de diferenciação. A nova descoberta aumenta as hábitos – ou mudanças de hábitos – alimentares possibilidades de se obter células-tronco sem a necessidade de povos antigos. de destruir embriões.

Múmias: informação sobre dietas e doenças do passado

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ciência

Medicina

Mais danos da fumaça

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Carlos Fioravanti

“No ser humano, as repercussões do tabagismo sobre as coronárias são mais drásticas e com efeitos mais rápidos que as verificadas sobre o miocárdio”, comenta o cardiologista Paulo Tucci, professor da Unifesp. Ele explica desse modo por que os outros efeitos são menos conhecidos e menos estudados, mas não menos preocupantes. Todo ano cerca de 5 milhões de pessoas – metade delas nos países em desenvolvimento – morrem no mundo inteiro devido às mais de 50 doenças associadas ao hábito de fumar cigarros, visto hoje como uma forma de dependência química e psicológica. A névoa esbranquiçada que ajudou a compor o estilo de Humphrey Bogart em Casablanca, de Rita Hayworth em Gilda e de tantos outros personagens no cinema resulta da combinação de cerca de 4 mil substâncias tóxicas, das quais 250 são prejudiciais ao organismo, e 50, especificamente, cancerígenas. Para conhecer melhor os efeitos da fumaça de cigarro e prever o que poderia se passar também no organismo humano, os pesquisadores submetem ratos à fumaça de cigarros durante horas em câmaras fechadas. “No rato normal, o diâmetro da cavidade do ventrículo esquerdo aumentou e a capacidade de contração do coração diminuiu”, diz Sérgio Paiva, pesquisador da Unesp de Botucatu, com base em resultados de experimentos obtidos em 2003. “Essas alterações pioram em animais submetidos a um infarto agudo do miocárdio.” Os animais infartados que tiveram de respirar muita fumaça de cigarros apresentaram uma dilatação no átrio esquerdo e no ventrículo esquerdo, as cavidades do coração que bombeiam sangue oxigenado para todo o corpo. Em princípio não seria nada grave, porque o lado esquerdo do coração de pessoas que praticam esporte com regularidade também é

fotos miguel boyayan

O

s efeitos da fumaça de cigarro não se limitam aos mais conhecidos, como a intensificação do risco de infarto e de câncer de pulmão, laringe e boca. Pesquisas recentes em animais de laboratório, realizadas na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e na Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Botucatu, mostraram que essa fumaça pode ser ainda mais deletéria, sobrecarregando e enrijecendo o músculo cardíaco, o miocárdio, a ponto de deformar o coração e alterar seu funcionamento. Outro estudo, na Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto, indicou que a fumaça, agindo sobre as células do nariz, impede a formação dos cílios que filtram as impurezas do ar que entram pelas narinas. Os experimentos em animais ajudam a avaliar com precisão os riscos à saúde para os 20 milhões de fumantes no Brasil, o equivalente a 16% da população acima de 18 anos, que talvez não possam mais fumar em espaços públicos no estado de São Paulo a partir de agosto, de acordo com uma lei ainda em debate. “Vários estudos têm mostrado que pessoas expostas à fumaça de cigarro apresentam um maior risco de desenvolver sinusite crônica e, ainda, que a exposição à fumaça de cigarro piora a evolução de pacientes operados de sinusite crônica”, comenta Edwin Tamashiro, que detalhou as alterações da fumaça sobre o desenvolvimento dos cílios em um artigo publicado em abril na revista American Journal of Rhinology and Allergy. Outros estudos servem de alerta, como o realizado na Unifesp mostrando que a prática de exercício físico pode intensificar os danos provocados pela exposição à fumaça de cigarro, em vez de os impedir, como era esperado.

Cigarro prejudica o funcionamento e os músculos do coração


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Os Projetos 1. Efeitos da exposição a fumaça do cigarro e da suplementação da dieta com betacaroteno sobre a comunicação intracelular em cardiomiócitos de ratos 2. Mecanismo de ajuste da cinética do cálcio no miocárdio seguindo-se à dilatação ventricular súbita 3. Avaliação da genotoxicidade na prenhez de ratas com diabete de intensidade moderada

modalidade

Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa Co­or­de­na­dores

1. Sergio Alberto Rupp de Paiva – Unesp 2. Paulo José Ferreira Tucci – Unifesp 3. Débora Cristina Damasceno – Unesp investimento

1. R$ 110.885,88 2. R$ 91.736,88 3. R$ 119.103,28

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mais volumoso que o de pessoas sedentárias. O problema é que os danos são mais amplos e mais profundos no caso dos ratos, principalmente os que tiveram de praticar alguma atividade física e respirar muita fumaça de cigarro. Em estudos mais refinados, com quatro grupos de ratos (o de controle, o de treinados, que tiveram de nadar duas horas por dia, o de fumante, que respirou durante duas horas na câmara com a fumaça de 40 cigarros, e o de treinados fumantes), o coração mostrou-se mais pesado e o miocárdio com menor velocidade de contração e de relaxamento no grupo dos treinados fumantes, em comparação com os do grupo controle. Os treinados fumantes também apresentaram uma redução de 50% na força dos músculos papilares, que controlam a válvula mitral, que impede o refluxo de sangue do ventrículo para o átrio esquerdo. Além disso, nesses animais o volume do núcleo das células do miocárdio praticamente dobrou, indicando um aumento na síntese de DNA. Ainda não está claro por que o exercício físico ampliou, em vez de impedir, como se esperava, os efeitos da fumaça do cigarro – uma das possibilidades é que a hipertrofia do coração possa ser uma resposta conjunta dos estímulos gerados pelo exercício físico e pela fumaça de cigarros. Houve avanços, porém, nas hipóteses sobre os mecanismos de ação da fumaça. “Para o coração”, diz Tucci, “o grande vilão parece ser o monóxido de carbono”. Resíduo da fumaça de cigarro – e também da fumaça de carros e indústrias –, o monóxido de carbono (CO) age de dois modos sobre a hemoglobina, a molécula que distribui oxigênio a todas as células do corpo. O CO liga-se mais facilmente que o oxigênio à hemoglobina, assim ocupando as vagas que seriam do oxigênio (cada molécula de hemoglobina consegue transportar quatro átomos de oxigênio por vez). Além disso, aumenta a afinidade do oxigênio pela hemoglobina; em consequência, a hemoglobina não soltará o oxigênio tão facilmente ao passar pelas células. Já no interior das células do miocárdio, na medida em que mais fumaça de cigarro percorre as vias respiratórias e influencia as ligações do oxigênio com a hemoglobina, ocorrem alterações nas


proteínas que medeiam a ação de íons de cálcio, que regula a contração dos músculos cardíacos. “A contração do miocárdio será menor quanto menos cálcio entrar na célula”, diz Tucci, que demonstrou em 2006 a associação direta entre a quantidade de cálcio iônico e os batimentos cardíacos (ver “Os canais do coração”, Pesquisa FAPESP nº 122). Como resultado dessas alterações, “o coração perde capacidade de bombear sangue para o corpo”. Em ratos infartados, portanto, com insuficiência cardíaca, o sangue venoso, que chega aos pulmões rico em gás carbônico, vai congestionar os capilares sanguíneos próximos ao pulmão e até mesmo transbordar para os alvéolos pulmonares, que deveriam conter apenas ar, em vez de logo trocar gás carbônico por oxigênio e voltar a circular. “No organismo de quem fuma”, diz o pesquisador da Unifesp, “o volume de sangue retido no pulmão e no coração, que equivale normalmente a 5% do total em circulação no organismo, pode chegar a 25%”. Como resultado desse congestionamento, o oxigênio que chega aos pulmões com o ar vai demorar mais para entrar na circulação sanguínea e chegar a todas as células do corpo que precisam dele para produzir a energia que as mantém vivas. Efeitos sobre a gravidez – Foi também

usando as câmaras fechadas com paredes de vidro que Débora Damasceno e sua equipe verificaram na Unesp de Botucatu que a fumaça de cigarro pode também prejudicar o desenvolvimento de fetos, que nascem com peso abaixo do normal quando as ratas prenhes respiram continuamente ar com fumaça de cigarro. Em um estudo publicado este ano na Reproductive BioMedicine Online, Maricelma Souza, sob sua orientação, observou que a placenta estava maior e os fetos nasciam menores como provável efeito separado e cumulativo de dois problemas, o diabetes e a exposição prolongada à fumaça de cigarros. “A maior preocupação é que, embora as ratas da linhagem usada nesses experimentos sejam muito resistentes, em 20 dias já apresentaram danos”, diz Débora. “É muito assustador. Talvez as mulheres possam ter prejuízos até mais graves, embora não se possa afirmar com certeza.”

Dos experimentos surgem novas hipóteses para verificar efeitos ainda pouco explorados sobre o organismo feminino. Uma delas, que começa a ser examinada pela equipe de Débora, é que os componentes da fumaça de cigarro – em especial o benzoalfapireno, cujos danos ao organismo começam a ser estudados mais intensamente – possam atuar sobre os hormônios produzidos pelos ovários e, desse modo, ser uma das causas de abortos naturais também em mulheres. De acordo com um estudo do Instituto Nacional do Câncer (NCI) dos Estados Unidos publicado em outubro de 2008, o Brasil apresenta um dos maiores índices de mulheres que fumam durante a gravidez (6,1%), depois do Uruguai (18,3%) e Argentina (10,3%). Edwin Tamashiro também obteve resultados claros na USP de Ribeirão Preto avaliando os efeitos da fumaça de cigarro sobre as células com cílios que revestem as vias respiratórias, do nariz aos pulmões. “Os cílios das células do epitélio respiratório são importantíssimos na defesa primária do organismo”, diz. “Graças ao batimento ciliar é que conseguimos depurar impurezas e microrganismos que inalamos todos os dias.” Ele demonstrou in vitro que a exposição à fumaça de cigarro atrapalha o processo de formação de cílios em células em maturação, sugerindo que o organismo poderia se tornar mais suscetível a infecções causadas por vírus e bactérias transmitidas pelo ar. Resultados aparentemente paradoxais sobre os efeitos do tabagismo, porém, são comuns. A equipe de Débora verificou que tanto o diabetes quanto o tabagismo, separadamente, causavam danos no DNA de filhotes de ratas expostas à fumaça. Em outro experimento, examinando o DNA de filhotes de mães diabéticas fumantes, ela esperava que os efeitos se somassem, mas não: os danos foram menores. Nesse caso é difícil imaginar o que propor às mulheres grávidas fumantes, porque, como outros experimentos em animais mostraram, parar de fumar no meio da gravidez pode levar à síndrome de abstinência. Débora reconhece que a recomendação de associações médicas internacionais para as mulheres evitarem os danos da fumaça – parando de fumar ou evitando respirar fumaça

cinco anos antes de engravidar – é um tanto inviável. Na Unesp, Paiva havia notado em 2005 o que chamou de efeito paradoxal da fumaça de cigarro: ratos que respiraram muita fumaça e depois sofreram um infarto induzido apresentaram sobrevida maior que os do grupo controle, que haviam apenas sofrido infarto. “Talvez a fumaça crie um precondicionamento contra a falta de oxigênio, protegendo o coração contra o mal pior, o infarto, que se aproxima”, cogita Paiva. Um resultado inesperado veio de outro experimento: o betacaroteno, substância que deveria proteger o organismo contra doenças crônicas, eliminava o efeito protetor do cigarro. Capaz de eliminar resíduos chamados de radicais livres, o betacaroteno, encontrado na cenoura, no mamão e na manga, protegeu o coração de ratos normais, de acordo com um estudo de 2006 na Toxicological Sciences. Em outro estudo, na Arquivos Brasileiros de Cardiologia em 2007, o betacaroteno agravou os danos da fumaça no coração de ratos que sofreram um infarto agudo do miocárdio induzido e foram depois expostos à fumaça de cigarros. Experimentos com animais de laboratório são úteis porque ajudam a formular hipóteses sobre o que pode acontecer com pessoas, mas devem ser tomados com moderação porque, entre outras razões, “o que se faz é um superestímulo e por pouco tempo”, diz Tucci. “Temos de considerar os resultados experimentais sob uma ótica não n terrorista.”

> Artigos científicos 1. Portes, L.A. et al. Swimming training attenuates remodeling, contractile dysfunction and congestive heart failure in rats with moderate and large myocardial infarctions. Clinical and Experimental Pharmacology & Physiology. v. 36, p. 394-399. 2009. 2. Lima, P.H.O. et al. Levels of DNA damage in blood leukocyte samples from nondiabetic and diabetic female rats and their fetuses exposed to air or cigarette smoke. Mutation Research. v. 31, p. 44-49. 2008. 3. Castardeli, et al. Exposure time and ventricular remodeling induced by tobacco smoke exposure in rats. Medical Science Monitor. v. 14, p. 62-66. 2008. PESQUISA FAPESP 161

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Ecologia

Jardineiras

fiéis

marco Pizo

andré freitas

Formigas ajudam sementes a germinar na Mata Atlântica e no Cerrado

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Maria Guimarães


Humberto dutra

Almoço bem pago: ataque a lagartas e transporte de frutos trazem benefícios às plantas

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uando andava por uma floresta na Mata Atlântica e viu a polpa de um fruto de jatobá aberto ser devorada por formigas, o biólogo Paulo Oliveira, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), começou a duvidar da noção difundida de que esses insetos sociais têm um papel desprezível na ecologia das sementes. Quase 15 anos depois, o grupo de pesquisa imerso na intimidade das relações entre plantas e formigas mostra que os pequenos animais não só arrastam as sementes para locais mais propícios como as limpam, facilitando a germinação. “A dispersão de sementes nos trópicos é muito mais complexa do que se achava”, comenta Oliveira. Quase todos os holofotes dos estudos sobre ecologia de dispersão de sementes estão voltados para aves, macacos e outros vertebrados atraídos pelos frutos coloridos e com polpa saborosa de nove entre dez espécies de árvores e arbustos de grande porte. Esses animais carregam os frutos por grandes distâncias e lançam as sementes ao solo. Se o fruto cai por acidente, ele ainda pode estar quase intacto, mas mesmo depois de passar

pelo sistema digestivo muitas vezes ainda resta um bom tanto de polpa. O que acontece no chão, entretanto, passou praticamente despercebido até Oliveira fincar aí um dos fios condutores de seu grupo de pesquisa. Um dos produtos mais recentes vem do doutorado de Alexander Christianini, agora professor no campus de Sorocaba da Universidade Federal de São Carlos (UFScar). Ele e Oliveira mostram que no Cerrado de Itirapina, no interior de São Paulo, formigas de cinco gêneros recolhem as sementes que chegam ao chão. Em artigo deste mês na Oecologia, os biólogos sugerem um papel importante para as formigas depois que as aves transportaram as sementes para bem longe da árvore-mãe: elas fazem o serviço mais detalhado de jardinagem. Aves e macacos em geral depositam as sementes debaixo de alguma árvore. Os restos de polpa então atraem as formigas, que levam nacos para dentro do formigueiro. “A semente fica limpinha no chão da floresta”, conta Oliveira, “impedindo que fungos se instalem e acabem por matar o embrião da planta”. Além disso, algumas formigas carregam as sementes até o formigueiro, que o pesquisador descreve como “uma ilha de nutrientes”, já que ali estão pedaços descartados de plantas e restos de formigas mortas e outros insetos. O jatobá (Hymenaea courbaril) despertou a curiosidade do pesquisador. Num experimento, com colegas da Uiversidade Estadual de São Paulo em Rio Claro e da Universidade Federal de Mato Grosso, mostrou que 70% das sementes limpas pelas formigas brotaram, o que só aconteceu com 20% das que não foram tratadas pelas pequenas jardineiras. De 1995 para cá, essa linha de pesquisa deu origem a quatro doutorados que revelaram que essa relação é bastante generalizada na Mata Atlântica e no Cerrado. PESQUISA FAPESP 161

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A bióloga Inara Leal mostrou que as formigas-cortadeiras, que incluem as saúvas, também têm seu lado jardineiro. Quem vê a longa fileira, quase uma autoestrada em miniatura, de formigas levando nas costas pedaços de folhas e flores teme pelo destino da planta saqueada. Não é à toa, uma única colônia de saúvas pode coletar 30 quilogramas de vegetação num dia como adubo para os fungos que cultivam e lhes servem de alimento. Elas são capazes de deixar, em poucas horas, um arbusto frondoso reduzido a um graveto seco, mas o importante para a bióloga é que as cortadeiras também carregam frutos e sementes. Inara, que depois do doutorado na Unicamp se tornou professora na Universidade Federal de Pernambuco, observou que as saúvas Atta sexdens são atraídas pelo arilo amarelo, um apêndice grudado às sementes da copaíba (Copaifera langsdorffii), uma árvore comum no Cerrado e na Mata Atlântica que tem sabiás-laranjeiras e jacus como principais dispersores. As saúvas carregam as sementes até 10 metros, retiram o arilo nutritivo e muitas vezes chegam a quebrar o revestimento duro da semente,

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O Projeto Ecologia e comportamento de formigas neotropicais

modalidade

Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa Co­or­de­na­dor

Paulo de Oliveira investimento

R$ 113.080,54

o que também ajuda na germinação, segundo artigo publicado em 1998 na Biotropica. O mesmo acontece com outras plantas típicas do Cerrado. Presas fáceis - Contemporâneo de

Inara no laboratório de Oliveira, Marco Pizo se concentrou sobre interações entre plantas e formigas na Mata Atlântica e mostrou que o arilo nutritivo vermelho em torno das sementes da canjerana (Cabralea canjerana) atrai formigas carnívoras. “Para as formigas carnívoras os frutos ricos em proteínas e gorduras são como insetos que não brigam, não mordem e não saem correndo”, compara Oliveira. Pizo, agora na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), no Rio Grande do Sul, espalhou sementes com e sem polpa pelo chão da floresta, protegidas por pequenas gaiolas para evitar que fossem recolhidas por animais maiores. Ficou claro que as formigas preferem as sementes com polpa (71% da parte vermelha é gordura) e que essas sementes germinam muito mais depressa depois de semeadas pelos pequenos insetos, conforme artigo destacado na capa do American Journal of Botany em 1998. Provado que as formigas transportam sementes, restava verificar se essa dispersão é direcionada ou aleatória. Durante o doutorado com Oliveira, Luciana Passos investigou as relações entre plantas e formigas na mata de restinga da Ilha do Cardoso, no litoral sul paulista. Parte da Mata Atlântica, essa floresta é menos exuberante por crescer em solo menos rico e mais arenoso. Ela espalhou pedaços de sardinha pela ilha para atrair formigas carnívoras, que a conduziram de volta aos ninhos – 21 deles. Em artigo publicado em 2002 no Journal of Ecology, Luciana conta o que acontece com os frutos ricos em óleo da árvore Clusia criuva, ou clúsia, que

produz numa estação por volta de 5.800 frutos com, ao todo, 25 mil sementes. Boa parte delas (83%) acaba nas fezes de 14 espécies diferentes de aves. A pesquisadora viu que as sementes que caem ao chão são transportadas por até 10 metros pelas formigas Odontomachus e Pachycondyla, carnívoras da subfamília das poneríneas, que “têm uma picada dolorida como se fossem marimbondos”, conta Oliveira. Mas a história não acaba aí. Luciana investigou mais a fundo e viu que essas formigas removem 98% das sementes que chegam às fezes das aves ainda não completamente digeridas. A bióloga então contou os jovens brotos de clúsias e encontrou um número desproporcional junto aos formigueiros – o dobro do que viu no resto da mata. Além disso, ela manteve o censo de plantas jovens ao longo de um ano e viu que ao redor dos formigueiros elas têm chances significativamente maiores de sobreviver. Luciana mandou amostras desse solo para análise no Instituto Agronômico de Campinas e verificou que ele é mais rico em nitrogênio e potássio do que o resto da floresta, graças aos detritos acumulados pelas formigas. O mesmo acontece com a maria-faceira (Guapira opposita), cujos frutos pretos de cabo vermelho atraem aves como o araçaripoca e a saíra-sete-cores e têm alto teor de proteínas (28%), de acordo com artigo de 2004 na Oecologia. As formigas Odontomachus carregam as sementes por até 4 metros e em torno de seus ninhos se aglomeram brotos. O grupo da Unicamp desenvolveu um sistema que mede o quanto uma estaca penetra no solo e assim mostrou que as escavações dos formigueiros deixam a terra à sua volta muito mais fofa, além de mais rica em potássio, fósforo e cálcio.

Depois de regalar-se com a polpa da copaíba, saúva deixa a semente limpa e pronta para germinar 50

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fotos Paulo Oliveira/unicamp

Para a predadora Pachycondyla striata, outras espécies, como Odontomachus chelifer, servem de alimento

Alexander Christianini deu um passo além e demonstrou que o desmatamento do Cerrado invalida o efeito positivo das formigas na ecologia das plantas. Já se sabe que o miolo das ilhas de floresta é mais fresco e úmido do que a fronteira com áreas desmatadas. O pesquisador mostrou que as formigas grandes também são mais comuns no interior do Cerrado, onde o solo é mais rico em nutrientes e mais macio. Ao longo de um ano de monitoramento, 92% das colônias de formigas do interior da mata persistem, ante só 30% nas bordas. Como ali também, a exemplo do que acontece na Mata Atlântica, as plantas germinam melhor junto aos formigueiros, jovens plantas nas bordas têm cerca de 0,2% de chances de sobreviver ao primeiro ano de vida. Esses resultados deixam claro que o desmatamento tem efeitos nocivos tanto sobre as formigas como sobre as plantas, e que esses efeitos so somam. Mas com seu talento de jardineiras as formigas podem ajudar a recuperar uma floresta alterada, contribuindo para a germinação das sementes.

O grupo da Unicamp vem descobrindo muito mais sobre as funções ecológicas desses soldados e operários em miniatura que vivem em grupos de milhões. Algumas plantas produzem substâncias para atrair formigas, que retribuem servindo como tropas de defesa. É o caso do pequi (Caryocar brasiliense), planta típica de cerrado que dá frutos muito apreciados na culinária da região central do país. As formigas se deliciam com o néctar que brota de glândulas nos botões das flores do pequi e atacam outros insetos, como lagartas. Sebastián Sendoya, aluno de Oliveira e André Freitas, mostrou que as borboletas Eunica bechina, especializadas em depositar seus ovos nas folhas do pequi, sobrevoam as plantas e detectam formigas predadoras. O trabalho, publicado este mês na American Naturalist, indica que a sofisticação visual das borboletas lhes permite pôr ovos em folhas seguras e até reconhecer formigas inofensivas. Tudo isso, e mais, está no que Oliveira considera o trabalho mais importante de sua vida: o livro The ecology and

evolution of ant-plant interactions, que ele escreveu em parceria com seu colega mexicano Victor Rico-Gray. Publicado em 2007 pela Chicago University Press, o livro é uma ampla revisão de todas as interações ecológicas que se conhece entre formigas e plantas. “As pessoas dão mais importância aos vertebrados porque são os animais que se enxerga com mais facilidade”, protesta o biólogo da Unicamp, “mas na Amazônia o peso seco de invertebrados é quatro vezes maior do que o de vertebrados”. E as formigas, cujas colônias podem chegar a milhões de operárias, são os mais numerosos entre os invertebrados. n

> Artigos científicos 1. CHRISTIANINI, A.V. e OLIVEIRA, P. S. The relevance of ants as seed rescuers of a primarily bird-dispersed tree in the Neotropical cerrado savanna. Oecologia. v. 160, n. 4, p. 735-745. jul. 2009. 2. SENDOYA, S.F. et al. Egg-laying butterflies distinguish predaceous ants by sight. The American Naturalist. v. 174, n. 1, p. 134-139. jul. 2009. PESQUISA FAPESP 161

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Aragem

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colheita mecanizada da cana­-de-açúcar deve aumentar o estoque de carbono no solo, por deixar a terra coberta de palha que aos poucos se decompõe, em comparação com o processo inteiramente manual, fundamentado na queima das folhas para facilitar o corte. Do mesmo modo, a conversão de pastagens degradadas em canaviais deve ampliar a quantidade de carbono no solo, acredita Marcelo Galdos, pesquisador do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena) da Universidade de São Paulo (USP), que esteve à frente das análises do fluxo de carbono de canaviais do Brasil, da Austrália e da África do Sul. Os resultados foram publicados em maio em duas revistas científicas, a Soil Science Society of America Journal e a Plant and Soil, e debatidos em 16 de junho no workshop Impactos Socioeconômicos, Ambientais e de Uso da Terra, realizado na FAPESP como parte do Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen). “O que temos de fazer é usar a agricultura conservacionista, transferindo o CO2 (gás carbônico) do ar para a planta e para o solo”, comentou Carlos Clemente Cerri, professor do Cena que orientou esses dois trabalhos, dos quais participaram pesquisadores da Universidade do Estado do Colorado, Estados Unidos, e do Instituto de Pesquisa de Cana-de-açúcar da África do Sul. “A cana colhida com queima reduz o estoque de carbono no solo, mas a sem queima aumenta”, afirmou Cerri. Segundo ele, a colheita mecânica pode fazer o solo reter até 3 toneladas de carbono em três anos, “um resultado importante para deduzir das emissões de gases do efeito estufa gerados pela produção de etanol”. Ainda não há consenso sobre esses valores. “Não temos encontrado grande benefício em deixar palha sobre o solo”, comentou Segundo Urquiaga, pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa Agrobiologia).

saudável

energia

Estoque de carbono retido no solo deve aumentar com a mecanização da colheita de cana

Ele chegou a ganhos mais modestos, de apenas 300 quilogramas de carbono por hectare ao longo dos 16 anos de acompanhamento de canaviais em Pernambuco tratados com e sem queima. “Não podemos nos preocupar apenas com carbono, temos de pensar na dinâmica da matéria orgânica e no papel do nitrogênio”, disse. “Se não fosse assim, bastaria enterrar bagaço de cana para transferir carbono para o solo.” Segundo ele, a quantidade de carbono estocado depende dos resíduos, do grau de degradação (solos mais degradados retêm mais que os mais bem conservados) e da própria capacidade do solo de acumular carbono. “No início o solo acumula muito, depois menos”, observou. Ao longo dos debates do dia, os pesquisadores concordaram que precisam estabelecer metodologias convergentes para obter informações mais abundantes e exatas sobre os impactos da produção de etanol de cana-de-açúcar e as possíveis contribuições para redução dos gases do efeito estufa como o gás carbônico, causadores do aquecimento global. “Os cálculos de impacto e benefícios ambientais dependem dos conhecimentos do impacto sobre o uso do solo, que não são claros”, reiterou Isaías de Carvalho Macedo, do Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Estratégico (Nipe) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP, motivou os pesquisadores brasileiros a fazer estudos cujos resultados sejam apresentados em revistas de circulação internacional. Geralmente os “resultados ficam escondidos em publicações em língua portuguesa”, comentou. “Precisamos ter mais presença mundial nesse assunto.” Para ele, um dos desafios à frente é “produzir uma ciência que seja competitiva mundialmente”, aumentando o número de cientistas e a capacidade científica nessa área, para manter a liderança na tecnologia de produção de etanol.


eduardo cesar

Cultivo da cana: sob testes de impacto ambiental

“O Brasil saiu na frente e tem experiência, mas a liderança não está garantida”, afirmou Marcos Jank, professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP e presidente da União da Indústria de Cana-de-açúcar (Unica). “A próxima etapa depende de investimento e planejamento. Tenho visto muita duplicação, falta de integração e de coordenação”, observou, acrescentando que tem recebido diretores de empresas estrangeiras com orçamentos próximos a US$ 50 milhões para desenvolver novos produtos, como os hidrocarbonetos, a partir da cana. Os investimentos são altos também em instituições de pesquisa. Apenas o Energy Biosciences Institute, um consórcio público-privado que reú­ ne duas universidades e uma empresa

de energia dos Estados Unidos, anunciou em maio os primeiros 49 projetos de pesquisa que devem receber US$ 20 milhões dos US$ 500 milhões destinados a pesquisa nessa área nos próximos dez anos. Um dos palestrantes, Evan Delucia, da Universidade de Illinois, uma das que participam do Energy Biosciences Institute, descreveu na FAPESP as pesquisas sobre o etanol em andamento nos Estados Unidos com outras plantas, a exemplo do milho. Desmatamento - No Brasil o plantio

da cana-de-açúcar ainda está associado a um problema que Jank procurou desfazer: o desmatamento. No início de junho, Bill Clinton, ex-presidente dos Estados Unidos, em um encontro sobre etanol realizado em São Paulo,

enalteceu o álcool brasileiro produzido a partir da cana-de-açúcar, que poderia evitar emissões de gases causadores do aquecimento, mas lembrou que as emissões produzidas pelo desmatamento, principalmente na Amazônia, continuam altas. Duas semanas depois, Jank assegurou: “A cana não causa desmatamento, porque está avançando sobre áreas de pastagens”. Em um dos capítulos do livro Sugarcane ethanol – Contributions to climate change mitigation and the environment, editado por Peter Zuurbier e Jos van de Vooren, uma equipe coordenada por André Meloni Nassar, diretor-geral do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações (Icone) e um dos coordenadores de projetos em andamento no Bioen, verificou que os canaviais não se expandem em direção às fronteiras agrícolas do país nem pressionam diretamente a vegetação natural em qualquer região do país. Segundo Jank, as pastagens é que tomam os espaços ocupados por florestas e outros tipos de vegetação natural. “O problema é o desmatamento indireto e ainda não medido com precisão.” “Não basta ser combustível”, comentou Heitor Cantarella, coordenador do grupo de trabalho de agronomia e uso da terra do Bioen e pesquisador do Instituto Agronômico de Campinas. “O etanol precisa passar em testes de sustentabilidade e se mostrar ambientalmente aceitável.” Glaucia Mendes Souza, coordenadora do Bioen, disse que um os objetivos do programa de pesquisas e dos encontros com os especialistas é justamente definir áreas que necessitem de mais atenção e investimentos. Lançado em julho de 2008, o Bioen conta com investimentos iniciais de R$ 73 milhões para apoiar pesquisas sobre variedades de cana, processos de produção de etanol e outros derivados, e impactos sociais, econômicos e ambientais do uso e produção de biocombustíveis. n

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> Meteorologia

A chuva que vem

do Sa a

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Poeira do deserto africano semeia nuvens responsáveis por parte da precipitação na Amazônia Reinald o José Lopes

eumetsat

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um paradoxo intrigante do sistema climático da Terra, uma das regiões mais áridas do planeta parece exercer um papel importante na formação da chuva que rega uma das áreas mais úmidas. Experimentos feitos durante a época mais chuvosa do ano em um trecho de floresta preservada na Amazônia Central, próximo a Manaus, indicam que a poeira do deserto do Saara, transportada por milhares de quilômetros pelos ventos sobre o oceano Atlântico tropical até a América do Sul, ajuda a formar as nuvens responsáveis por 80% da chuva nessa região amazônica. Sobre a floresta, os grãos de poeira do Saara funcionam como núcleos de gelo, plataformas microscópicas em torno das quais a água no estado sólido se agrega e origina as nuvens altas, muito carregadas de chuva. Os resultados desse trabalho, publicados na edição de maio da revista Nature Geoscience, são surpreendentes e ainda precisam ser aprimorados, ressalta o físico Paulo Artaxo, da Universidade de São Paulo (USP), um dos autores do estudo. “Precisamos descobrir, por exemplo, se essa influência da poeira do Saara ocorre também em outras regiões da Amazônia. Também precisamos de medidas de longo prazo, registradas ao longo de anos, para compreender como esse efeito varia com as estações do ano”, diz o pesquisador. De qualquer maneira, os dados obtidos perto do pico da estação chuvosa na Reserva Biológica do Cuieiras, a 60 quilômetros ao norte de Manaus, sugerem uma contribuição um bocado relevante da poeira do Saara para a concentração de núcleos de gelo na Amazônia Central. Artaxo e pesquisadores dos Estados Unidos e da Alemanha coletaram amostras de ar nessa região da floresta de 9 de fevereiro a 9 de março de 2008 e encontraram essas partículas de poeira em até 80% dos núcleos de gelo.

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Sobre o Atlântico: ventos carregam poeira do Saara para a América do Sul


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A poeira parece alternar sua função de principal semeadora de nuvens de gelo com as chamadas partículas biológicas primárias (bactérias, grãos de pólen, esporos e fragmentos de folhas e de insetos), emitidas pela própria floresta. Ora uma, ora outra era a responsável majoritária pela formação dos núcleos de gelo. Somadas, as duas fontes geraram 99% das sementes de nuvens – nenhuma delas contribuiu com menos de 15% dos núcleos.

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analogia com sementes é útil. Na Amazônia, as nuvens que se formam a grandes altitudes têm entre 15 e 18 quilômetros de espessura e são constituídas por cristais de gelo. São elas que geram as chuvas mais intensas e abundantes, essenciais para o ciclo hidrológico da região. Nuvens mais rasas, com 3 a 5 quilômetros de espessura, surgem mais próximo ao solo a partir de gotas líquidas e contribuem menos para as chuvas da Amazônia. Nesse estudo, os pesquisadores coletaram as partículas em suspensão – também chamadas de aerossóis – no ar da floresta ao nível do solo e as injetam em uma câmara que permite simular a formação das nuvens profundas convectivas. “Usamos uma câmara que reproduz as condições da atmosfera a até 18 quilômetros acima do solo e até 70 graus Celsius negativos”, diz o físico. É em um ambiente semelhante a esse, com baixa pressão e baixa temperatura, que se formam as nuvens profundas convectivas, justamente as que brotam a partir de núcleos de gelo e respondem pelo grosso da precipitação amazônica. “Estamos planejando experimentos com aviões para o período 2010-2011, para fazer medições em regiões da atmosfera em que as nuvens de gelo se formam. Medir essas partículas em altas altitudes não é trivial”, comenta Artaxo. A contribuição da poeira do Saara para a chuva amazônica nunca tinha sido flagrada, embora a jornada dos grãos pelo Atlântico fosse relativamente bem conhecida. Dados da agência espacial norte-americana (Nasa) sugerem que 4% da poeira de cada tempestade do deserto atravesse o oceano até as Américas – uma proporção maior, quase 20%, se perde no caminho, depositando partículas de ferro que fertilizam a água do oceano e aumentam a capa-

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cidade das algas de absorver carbono da atmosfera. Não são as ventanias no Saara que, isoladamente, trazem o pó até aqui. Parece haver um reservatório constante de partículas flutuando sobre o norte da África, que só é empurrado rumo às Américas quando as condições do vento são apropriadas. Um grau de mistério significativo ainda envolve os processos físicos da atuação dos aerossóis – sejam os de poeira, sejam os de origem biológica – como núcleos de gelo. “Esses processos ainda não são bem compreendidos”, reconhece Artaxo. A presença de certos metais – ferro no caso da poeira do Saa­ ra e zinco no das partículas produzidas pela floresta – parece ser importante para a formação dos núcleos de gelo. Aliás, a presença e a proporção de elementos químicos como alumínio, silício, manganês e ferro permitem confirmar a origem saariana da poeira analisada por Artaxo e colaboradores. “A proporção desses elementos nas partículas de Manaus é a mesma encontrada na poeira do Saara. E há a correlação entre a presença desses aerossóis e o movimento das massas de ar, o que mostra que não se trata de poeira levantada por um caminhão em uma estrada próxima ao local da coleta, mas de transporte atmosférico de longa distância”, explica Artaxo.

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ara o físico, ainda que a contribuição do Saara para a chuva se revele um fenômeno geral para a Amazônia, é difícil dizer o que isso significará num contexto de mudanças climáticas. Num planeta mais quente, chegará mais ou menos poeira até aqui? “Por enquanto precisamos obter mais dados experimentais para tentar responder isso com previsões quantitativas”, afirma. Em outra publicação recente, desta vez na Science, Artaxo deixou de lado o contexto específico da Amazônia para, com pesquisadores de outros países, se debruçar sobre os efeitos do fogo sobre o clima e a biosfera do planeta ao longo do tempo. Incêndios grandes e pequenos ajudaram, por exemplo, a forjar as várias áreas da savana do mundo ao longo de milhões de anos. E parecem estar se intensificando, diz Artaxo. “É possível ver um aumento da incidência de queimadas no mundo todo nos últimos anos”, afirma.

A equipe calculou que os efeitos dos gases estufa produzidos pelas queimadas correspondem a 19% da contribuição humana para o aquecimento global desde a época pré-industrial. “As queimadas no Brasil geram cerca de 30% dos gases emitidos por queimadas no planeta”, ressalta o físico. Números à parte, é bem prático: em termos de custo e benefício, reduzir ou eliminar as queimadas é provavelmente um dos melhores investimentos imediatos contra o aquecimento global causado pelo homem, superando planos como a ampliação da rede de usinas nucleares ou a troca da atual frota de automóveis movidos a combustíveis derivados de petróleo por veículos a biocombustíveis ou a hidrogênio. “Com o controle das queimadas, teríamos um retorno rápido em termos de redução de emissões de gases estufa com um investimento muito baixo. Também haveria outros benefícios, como a preservação da biodiversidade amazônica”, ressalta o físico. “A construção acelerada de usinas nucleares ou a renovação global da frota de carros demorariam décadas para reduzir significativamente as emissões de gases estufa.” Segundo Artaxo, há uma relação indireta entre o crescente descontrole do fogo no planeta e a hipótese da savanização da Amazônia. Essa possibilidade, que aparece com certa frequência em modelos climáticos que tentam prever o futuro da floresta, é consequência da transformação de vastas áreas de mata fechada em formas de vegetação mais abertas e ecologicamente empobrecidas, que lembram superficialmente o Cerrado do Brasil Central. “Com o avanço do desmatamento e a possível redução na taxa de precipitação, talvez surja uma vegetação mais suscetível ao fogo e aumente a incidência de queimadas”, diz Artaxo. “Isso geraria uma realimentação positiva que impulsionaria o processo n de savanização da Amazônia.” > Artigos científicos 1. Prenni, A.J. et al. Relative roles of biogenic emissions and Saharan dust as ice nuclei in the Amazon basin. Nature Geoscience. v. 2, p. 402-405. mai. 2009. 2. Bowman, D.M., et al. Fire in the Earth system. Science. v. 324, p. 481-484. abr. 2009.


O ouro de tolo

alexander lees

Exploração intensa de recursos naturais da Amazônia gera prosperidade passageira O modelo de desenvolvimento econômico predominante hoje na Amazônia – que começa com desmatamento e exploração madeireira e culmina com o uso de vastas áreas para pecuária extensiva e agricultura – está mais para um gerador de pobreza do que para um motor de riqueza, ao menos no longo prazo. A conclusão resulta de uma análise conduzida por pesquisadores do Brasil, do Reino Unido, da Nova Zelândia e de Portugal, publicada na edição de 12 de junho da Science. Os municípios amazônicos onde não há desmatamento têm inicialmente um baixo índice de desenvolvimento humano (IDH), indicador que leva em consideração a renda, a escolaridade e a expectativa de vida da população. Com a chegada da fronteira agrícola, esses municípios passam por uma onda de prosperidade e, quando seus recursos naturais se esvaem pela exploração intensa, voltam à situação inicial de IDH baixo. A análise não avaliou a trajetória dos municípios ao longo dos anos, por não haver uma série temporal disponível, explica a bióloga portuguesa Ana Rodrigues, do Centro de Ecologia Funcional e Evolutiva em Montpellier, França, uma das autoras do estudo do qual participaram os brasileiros Carlos Sousa Júnior e Adalberto Veríssimo, do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). Ante essa impossibilidade, a equipe comparou locais ainda não engolidos pela fronteira agrícola com outros nos quais a fronteira está muito ativa,

além de áreas onde o desmatamento e a ocupação estão quase concluídos. “Nessa classificação, usamos duas variáveis: a porcentagem de área desmatada até 2000, que dá uma ideia da extensão do desflorestamento; e a proporção de floresta derrubada entre 1997 e 2000, que indica se o município estava na fronteira ativa ou não”, diz Ana. O ano 2000 foi usado como referência para coincidir com o do Censo brasileiro, que permitiu calcular o IDH dos municípios. Os registros mostram que os municípios que desmataram até 60% de sua área – e 0,5% da área total entre 1997 e 2000 – alcançaram um IDH equivalente ao índice médio brasileiro. Já o IDH dos locais em que a proporção de floresta derrubada foi ainda maior e a devastação quase completa foi semelhante ao de regiões da Amazônia em que a floresta está preservada – nessas duas situações, o IDH é inferior ao índice de desenvolvimento humano médio do Brasil. “É provável que haja modelos em que a decadência econômica possa ser evitada apesar do desmatamento, embora eu suspeite de que eles dependeriam de injeções frequentes de investimento vindo de fora da Amazônia”, diz Ana. O desafio é criar um modelo de desenvolvimento com o mínimo de desmatamento. “Todos ganhariam: seria bom para as pessoas, para os ecossistemas e para reduzir as emissões de carbono responsáveis pela mudança climática global”, comenta. “A situação atual é ruim nessas três frentes.”

Riqueza exaurida: 1,8 milhão de hectares de floresta derrubados a cada ano

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m complexo aparato com pequenas caixas de vidro e uma câmera supersensível permitiu a pesquisadores franceses – dos quais uma radicada na Paraíba – descreverem o comportamento da luz em condições muito especiais. Quando um fóton, a partícula da luz, se choca contra um átomo de rubídio – e depois outro, e outro em seguida –, ele se desloca por distâncias que seguem um padrão conhecido como voo de Lévy. O resultado, publicado no final de maio no site da revista Nature Physics, é a primeira descrição estatística desse fenômeno físico com base em observações experimentais e pode ajudar a prever a propagação de fótons em certas situações. “Muitos pesquisadores têm procurado eventos naturais que sigam voos de Lévy”, conta a física Martine Chevrollier, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). São movimentos aleatórios que se caracterizam por uma série de passos pequenos entremeados por raros deslocamentos longos. É exatamente o que acontece no experimento em que fótons são lançados em um vapor atômico a 47 graus Celsius, cujos átomos de rubídio flutuam uns distantes dos outros. Com essa densidade baixa, os fótons esbarram em

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Física

Trajetos

ao acaso Físicos descrevem percursos aleatórios da luz e de animais

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um único átomo a cada vez e os pesquisadores podem medir detalhadamente essas interações. O trabalho da francesa radicada na Paraíba mostra uma interação nesses encontros em que um átomo absorve um fóton e o reemite em outra direção, como um jogador que recebe uma bola e a chuta para outro lado. Mas a interação entre fótons e átomos tem uma particularidade importante: se a frequência de vibração for parecida entre as duas partículas, o que acontece na maior parte das vezes, o fóton é lançado a uma curta distância, 5 milímetros em média. “Há, porém, uma probabilidade muito pequena de a frequência do átomo estar muito longe da do fóton”, diz Martine. Quando isso acontece, o fóton é reemitido com uma frequência diferente da que tinha antes, num efeito conhecido como Doppler, e por isso chega a percorrer distâncias muito maiores, de até 50 milímetros. No entanto, essa mudança de frequência só acontece a uma temperatura muito baixa, só obtida em laboratório. Já se imaginava, teoricamente, que isso pudesse acontecer. “O difícil é observar”, conta a pesquisadora. Ela tentou fazer o experimento em seu laboratório, sem sucesso. Era preciso controlar com precisão as condições para fotografar com uma câmera supersensível a trajetória dos fótons e a distância percorrida por cada um deles.


Por isso a parte experimental acabou sendo feita na Universidade de Nice, na França. Martine participou do trabalho na fase de cálculos e análise dos resultados. “As condições especiais das experiências que realizamos eram apenas impostas pela técnica concebida para medir os passos individuais dos fótons”, explica a física. Mas o voo de Lévy é bem comum em fenômenos que envolvem espalhamento de luz e acontece, por exemplo, em estrelas, em lâmpadas fluorescentes e em parte dos raios solares que se propagam na atmosfera e no mar. Mundo animal - O voo de Lévy também descreve com precisão alguns fenômenos ecológicos, explica o físico Marcos da Luz, da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Até um tempo atrás, acreditava-se que tudo seguia distribuições normais, em que eventos médios são muito comuns e os muito pequenos ou muito grandes são raros. Recentemente, porém, dados convincentes indicam que muitos animais – como chacais,

abelhas, pinguins e outros – seguem voos de Lévy. Junto com seus colaboradores Gandhi Mohan Viswanathan, da Universidade Federal de Alagoas, e Ernesto Raposo, da Universidade Federal de Pernambuco, o físico da UFPR tem usado os voos de Lévy para entender como esses animais procuram alimento. O voo de Lévy é vantajoso, por exemplo, quando uma fonte de alimento está distribuída de maneira esparsa e aleatória. A estratégia mais proveitosa para um animal em busca de uma refeição é, nesses casos, fazer pequenos movimentos por um tempo para vasculhar os arredores. Se não encontrar nada, é melhor ir para uma zona distante, onde a probabilidade de encontrar alimento talvez seja maior. Várias pesquisas mostraram que esse padrão é bem comum na natureza, como discute a revisão publicada em 2008 na Physics of Life Reviews por Viswanathan, Raposo e Luz. Eles mostram que um espectro variado de animais, de amebas a baleias, parece adotar voos de Lévy em seus deslocamentos.

Em uma colaboração constante, o trio de físicos do Paraná, de Alagoas e de Pernambuco agora trabalha em análises detalhadas para formalizar a teoria dos voos de Lévy em um contexto matemático rigoroso. Com isso, eles esperam descrever em fórmulas matemáticas não só o que acontece nos movimentos individuais, as situações observadas com mais frequência até agora, mas também nos procedimentos coletivos de busca, como bandos de macacos que seguem regras internas para coordenar os percursos de maneira a aumentar as chances de encontrar alimento. Para fomentar a discussão científica em torno do tema, os três pesquisadores estão organizando uma edição especial da revista Journal of Physics A, com artigos de revisão e trabalhos originais sobre movimentos de buscas aleatórias, que deverá ser publicada por volta de n outubro deste ano.

Maria Guimarães

mo

> Artigos científicos 1. MERCADIER, N. et al. Lévy flights of photons in hot atomic vapours. Nature Physics. 2009. 2. VISWANATHAN, G.M. et al. Lévy flights and superdiffusion in the context of biological encounters and random searches. Physics of Life Reviews. v. 5, n. 3, p. 133150. set. 2008. PESQUISA FAPESP 161

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Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org

Notícias Mundo globalizado Estamos diante de um paradoxo: vivemos num mundo globalizado, em que os acontecimentos podem ser apresentados em tempo real, mas não logram se armar numa imagem de mundo que nos conduza a ele como nossa morada. No artigo “A perda do mundo”, de José Arthur Giannotti, da Universidade de São Paulo, pergunta-se se haveria algum rebatimento entre o funcionamento atual do sistema capitalista e essa experiência de falta do mundo que nos persegue no cotidiano. Novos Estudos – Cebrap – nº 81 – São Paulo – jul. 2008 n Psiquiatria

Transtorno mental e DST Evidências indicam que pacientes com transtornos mentais têm elevada prevalência de infecções sexualmente transmissíveis, mas os dados brasileiros são escassos. O objetivo do estudo “Prevalência de HIV, sífilis, hepatites B e C entre adultos com transtornos mentais: um estudo multicêntrico no Brasil” foi determinar a prevalência do HIV, hepatites C e B, e sífilis entre pacientes com transtornos mentais no Brasil. Os autores do trabalho são Mark Drew Crosland Guimarães, Lorenza Nogueira Campos, Ana Paula Souto Melo, Carla Jorge Machado e Francisco de Assis Acurcio, da Universidade Federal de Minas Gerais, e Ricardo Andrade Carmo, do Hospital Eduardo de Menezes, da Secretaria Estadual de Saúde de Minas Gerais. Uma amostra representativa de pacientes adultos com transtornos mentais foi aleatoriamente selecionada de instituições públicas de saúde mental no Brasil. Dos 2.475 pacientes entrevistados, 2.238 tiveram sangue coletado. A maioria era sexualmente ativa ao longo da vida (88,8%) ou nos últimos seis meses (61,4%), do gênero feminino (51,9%), solteira (66,6%), com metade dos participantes com menos de cinco anos de escolaridade e renda média mensal baixa individual (US$ 210). Uso de preservativo foi baixo em toda a vida (8%) ou nos últimos seis meses (16%). As soroprevalências gerais foram 1,12%, 0,80%, 1,64%, 14,7% e 2,63% para, respectivamente, sífilis, HIV, HBsAg, anti-HBc e anti-HCV. As taxas encontradas são maiores do que em outros estudos com populações representativas no Brasil, com altos índices de comportamento sexual de risco. Segundo os autores, a

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situação é preocupante e estratégias de prevenção devem ser urgentemente implementadas pelos serviços de saúde. Revista Brasileira de Psiquiatria – vol. 31 – nº 1 – São Paulo – março 2009 n Educação

Propaganda ufanista O artigo “Educação e ideologia tecnocrática na ditadura militar”, de Amarilio Ferreira Jr. e Marisa Bittar, da Universidade Federal de São Carlos, examinou a ideologia tecnocrática subjacente à educação brasileira durante a vigência da ditadura militar (1964-1985). Os autores seguiram a premissa segundo a qual as reformas educacionais implementadas após 1964 ficaram marcadas tanto pelo modelo de modernização autoritária do capitalismo brasileiro adotado a partir desse ano quanto pela teoria econômica do “capital humano”. A propaganda ufanista, que tinha como lema o “Brasil grande potência”, gerado pela “eficiência técnica” aplicada na forma de administrar o Estado e as suas empresas, também teve os seus corolários ideológicos no âmbito da própria política educacional levada à prática após a reforma universitária de 1968 e a reforma da educação de 1º e 2º graus de 1971. Assim, o sistema nacional de educação que emergiu com as reformas da ditadura militar foi marcado pela ideologia tecnocrática, que propugnava uma concepção pedagógica autoritária e produtivista na relação entre educação e mundo do trabalho. Cadernos Cedes – vol. 28 – nº 76 – Campinas – set./ dez. 2008 n Gestão

Desafios das mudanças climáticas O objetivo do artigo “Sob os ventos da mudança climática: desafios, oportunidades e o papel da função produção no contexto do aquecimento global”, de Charbel José Chiap­ petta Jabbour e Fernando César Almada Santos, ambos da Universidade de São Paulo (campus de Ribeirão Preto e de São Carlos, respectivamente), é lançar luzes sobre as

Reprodução

n Filosofia


implicações da mudança climática para as organizações. Para fazer frente a esse debate, são explorados: o conceito de inteligência ambiental; as estratégias por meio das quais as organizações fazem frente ao desafio da mudança climática; as oportunidades que explicam a adoção dessas estratégias; e o papel fornecido pela função produção para que tais estratégias possuam o efeito desejado. Por fim, tais conceitos são sistematizados, buscando-se uma integração dos modelos teóricos existentes, até então considerados de maneira estanque. Gestão e Produção – vol. 16 – nº 1 – São Carlos – jan./mar. 2009 n Física

No trabalho “A evolução do pensamento cosmológico e o nascimento da ciência moderna”, os autores Cláudio Maia Porto, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, e Maria Beatriz Dias da Silva Maia Porto, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, fazem uma exposição do processo de transformação que levou a ciên­cia qualitativa de Aristóteles, fundamentada em princípios filosóficos, à ciência moderna, estruturada sobre uma combinação de empirismo e matematização, processo cuja culminância se deu com a obra de Newton (ao lado). Os pesquisadores apresentam como o Cosmos aristotélico-ptolomaico, rigidamente ordenado segundo critérios metafísicos, foi substituído por um novo Universo, regido por uma causalidade mecânica, expressa por meio de leis matemáticas, e completamente destituído de conceitos como finalidade e valor. Eles mostram como a revolução introduzida por Copérnico ultrapassou os limites da astronomia, dentro dos quais nasceu, e promoveu uma ampla transformação do pensamento científico que conduziu ao nascimento da física newtoniana. Revista Brasileira de Ensino de Física – vol. 30 – nº 4 – São Paulo – out./dez. 2008 n Ginecologia

Câncer de mama e sexualidade As pesquisadoras Priscila Ribeiro Huguet, Sirlei Siani Morais, Aarão Mendes Pinto-Neto e Maria Salete Costa Gurgel, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e Maria José Duarte Osis, do Centro de Pesquisas em Saúde Reprodutiva de Campinas, avaliaram a qualidade de vida e aspectos da sexualidade de mulheres com câncer de mama segundo o tipo de cirurgia e características sociodemográficas. Foi realizado um estudo de corte transversal com 110

James Thornhill/Pinacotheca Philosophica

Nascimento da ciência moderna

mulheres tratadas há pelo menos um ano com câncer de mama no Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher da Unicamp. Os resultados, presentes no artigo “Qualidade de vida e sexualidade de mulheres tratadas de câncer de mama”, mostraram que idade, escolaridade, tipo de cirurgia e tempo desde a cirurgia não influenciaram a qualidade de vida nos domínios físico, meio ambiente, psicológico e relações sociais. Mulheres com relacionamento marital estável tiveram escores maiores nos domínios psíquico e relações sociais. Maior nível socioeconômico influenciou a qualidade de vida nos domínios físico e meio ambiente. Em relação à sexualidade, mulheres com relacionamento marital estável tiveram escores maiores de qualidade de vida em ambos os componentes de sexualidade. Mulheres submetidas à quadrantectomia ou à mastectomia com reconstrução imediata apresentaram melhores escores em relação à atratividade quando comparadas às mastectomizadas sem reconstrução. Ou seja, melhor nível socioeconômico e de escolaridade, relação marital estável e cirurgia com conservação mamária estão associados a melhores taxas de qualidade de vida, inclusive a sexual. Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia – vol. 31 – nº 2 – Rio de Janeiro – fev. 2009 n Dermatologia

Impacto emocional O vitiligo acomete, em média, 1% da população mundial. Mais de 75% dos pacientes têm autoimagem depreciativa em relação à doença. Seu impacto emocional é muitas vezes negligenciado pelo cuidador, influenciando negativamente o prognóstico. Os pesquisadores Lucas S.C. Nogueira, da Universidade Católica de Brasília, Roberto D. Azambuja Pedro e C.Q. Zancanaro, do Hospital Universitário de Brasília, verificaram o efeito do vitiligo sobre as emoções e discutiram as últimas descobertas sobre a interação mente-corpo e seu desdobramento sobre a doença. Cem pacientes com vitiligo responderam, na primeira consulta, a uma pergunta sobre as emoções que a presença das manchas lhes provocava. Entre os que tinham manchas em áreas expostas, 80% queixaramse de emoções desagradáveis, em relação a 37% dos que tinham manchas em áreas não expostas. As emoções mais referidas foram medo (71%), vergonha (57%), insegurança (55%), tristeza (55%) e inibição (53%). Qualquer doença crônica produz uma vivência negativa propiciada pela expectativa de sofrimento. O vitiligo é um desafio à autoestima. Além de uma orientação científica adequada, o paciente carece de conforto emocional. A resposta e a adesão ao tratamento e até mesmo a resiliência diante de eventuais falhas terapêuticas dependem da boa relação médico-paciente. Os resultados estão no artigo “Vitiligo e emoções”. Anais Brasileiros de Dermatologia – vol. 84 – nº 1 – Rio de Janeiro – jan./fev. 2009

> O link para a íntegra dos artigos citados nestas páginas estão dis­po­ níveis no site de Pesquisa Fapesp, www.revistapesquisa.fapesp.br

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lINHA DE PRODUÇÃO mundo

> Memória de 1 bilhão de anos A revolução digital dos últimos anos trouxe inegáveis e inimagináveis avanços em diversos setores da sociedade, mas uma preocupação ocupa as mentes dos cientistas e, principalmente, dos profissionais responsáveis pelo armazenamento de 62

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informações, como bibliotecários: o reduzido tempo de vida útil da maioria dos dispositivos de armazenamento de dados, estimado de 10 a 30 anos. Para tentar solucionar esse problema, pesquisadores da Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos, desenvolveram o protótipo de uma memória digital

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caracterizam as memórias digitais. Simulações em laboratório revelaram que memórias construídas com esse sistema podem vir a atingir uma capacidade de armazenamento de 1 terabyte por polegada quadrada. O próximo desafio dos pesquisadores é conseguir produzir em larga escala a memória “eterna” – que não usa silício como matéria-prima.

Stêphane gros/solar impulse

Força dos raios do Sol

Uma aeronave movida a energia solar, capaz de voar de dia e de noite sem precisar queimar um único litro de gasolina ou qualquer outro combustível fóssil. Assim é o avião Solar Impulse, com previsão de dar uma volta ao mundo em 2011 com escala em todos os continentes. O aparelho, concebido por um grupo de empresas liderado pela farmacêutica Solvay, pela fabricante de relógios Omega e pelo banco Deutsche Bank, deve alçar voo ainda Avião Solar Impulse: células fotovoltaicas sobre as asas este ano e, no próximo, fa­­­­zer travessias dos Estados Unidos e “eterna”, capaz de guardar do oceano Atlântico. Com 22 metros de comprimento e 1.600 informações por 1 bilhão quilos, o Solar Impulse possui 63 metros de envergadura, de anos. O dispositivo equivalente à do Airbus 340. A asa desproporcional serve consiste de uma para acomodar os 200 metros quadrados de células fotonanopartícula de ferro voltaicas do painel solar, responsável por captar os raios do inserida em um nanotubo Sol e transformá-los em energia. O voo noturno será possível de carbono. Quando com uma bateria de lítio de 400 quilos a bordo que armazena carregada eletricamente, a energia capturada durante o dia. O avião, construído com a nanopartícula se desloca fibra de carbono, voará a 70 km/h e terá capacidade para uma de um lado para outro pessoa. O voo ao redor do planeta será conduzido pelo suíço Bertrand Piccard, idealizador do projeto, que já deu volta ao do nanotubo, simulando mundo sem escalas num balão, em 1999. os algoritmos 0 e 1 que

> Internet tridimensional Já pensou planejar uma viagem para o Taiti pela internet e, no lugar de ver fotos e ler uma porção de links com textos sobre esse paradisíaco destino, ser capaz de fazer um passeio virtual em três dimensões nos bangalôs construídos sobre o mar azul? A internet tridimensional, rica em visualizações 3D


Há muito se sabe que o calor é eficiente no tratamento de tumores de câncer. A dificuldade está em aquecer o tumor sem provocar danos nos tecidos ao redor. Um passo para vencer esse desafio foi dado por cientistas do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos. Eles conseguiram criar um sistema

Instrumentos da câmera onde funcionarão 192 feixes de laser

com nanopartículas de ouro que destrói os tumores com efeitos colaterais mínimos. Primeiro implantam-se as nanopartículas nos tumores. Em estudos com camundongos, elas foram colocadas com injeções intravenosas. Depois é lançado sobre o tumor uma fonte de luz com comprimento de onda na região do infravermelho próximo. As nanopartículas absorvem os raios e emitem calor, destruindo o tumor sem atingir os tecidos ao redor. Nos experimentos os camundongos ficaram livres dos tumores em 15 dias, sem nenhum caso de reincidência.

A inauguração no final de junho do maior equipamento de laser do mundo nos Estados Unidos está animando pesquisadores ao redor do planeta. Não é para menos. Segundo os responsáveis pelo projeto, o aparelho, batizado de National Ignition Facility (Instalação Nacional de Ignição, ou NIF na sigla em inglês), deverá ser capaz de provocar uma fusão atômica que atingirá temperatura e pressão comparáveis às existentes no centro de estrelas e de planetas gigantes. O experimento, previsto para acontecer no próximo ano, abrirá espaço para a realização de uma série de estudos e testes impossíveis de serem feitos com a tecnologia atual. A fusão atômica será alcançada quando 192 potentes feixes independentes gerados pelo laser atingirem uma cápsula de hidrogênio e aquecerem seu invólucro de ouro, chamado hohlraum. Caso se mostre viável, a fusão nuclear pode vir a ser uma alternativa energética “limpa” e uma opção aos combustíveis fósseis e à energia nuclear convencional. Os custos do projeto, coordenado pelo Laboratório Nacional Lawrence Livermore, na Califórnia (EUA), são estimados em US$ 3,5 bilhões.

Experimento luminoso

laurabeatriz

> Nanopartículas contra o câncer

Lawrence livermore national laboratory

ultrarrealistas, foi um dos 40 projetos e conceitos futuristas apresentados pela Intel Corporation durante o Research@Intel Day, em meados de junho. Outro destaque do evento, focado em tecnologia, internet 3D, tecnologia da informação empresarial e mobilidade sem fio, foi a computação confrontacional, que permitirá ao usuário distinguir o joio do trigo e identificar dados equivocados ou falsos entre os milhares de informações que circulam pela rede. Com a ferramenta, quando você estiver lendo uma notícia on-line, blocos de texto serão automaticamente destacados se informações encontradas em outros lugares contradizerem alguma alegação feita. Os projetos estão sob o comando dos pesquisadores do Intel Labs.

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lINHA DE PRODUÇÃO brasil

CMDMC

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Óxido de estanho e óxido de zinco: arte em escala nanométrica

> Gente para produzir cana A perspectiva do aumento da produção de etanol em 40%, nos próximos três anos, e as necessidades tecnológicas relacionadas ao setor sucroalcooleiro trazem o desafio da formação de profissionais cada vez mais especializados. Nesse sentido, o Centro Paula Souza, do governo do estado de São Paulo, que administra 162 escolas técnicas estaduais (Etecs) e 48 faculdades de tecnologia (Fatecs), criou dois cursos voltados ao setor. O mais recente, iniciado neste ano, é o curso de Técnico em Produção de Cana-de-açúcar nas Etecs de Andradina e Penápolis, na região de Araçatuba, onde o aumento da produção subiu de 8,8 milhões de toneladas de cana em 2000 para quase 21 milhões em 2007. Esse 64

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Com trilha sonora de Vivaldi, Bach e Carl Orff (Carmina Burana), uma série de belas e surpreendentes imagens nanométricas de compostos químicos desfilam pela tela quando se aperta o play para assistir o DVD Nanoarte 2, Dança da Natureza, produzido pelo Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos (CMDMC). Formado por grupos de pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp), da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), o CMDMC, coordenado pelo professor Elson Longo, da Unesp, é um centro de pesquisa, inovação e difusão da FAPESP, que disponibiliza, com o DVD, imagens de seus experimentos com materiais cerâmicos e com polímeros captados em sistemas de microscopia eletrônica de alta resolução. As imagens são de óxidos de estanho, de cobre, de zinco, titanato de alumínio, polímeros e outras substâncias. Todas foram coloridas posteriormente no computador. A animação e a arte do DVD são de Rorivaldo Camargo, técnico em microscopia, e do doutorando Ricardo Tranquilin, ambos da UFSCar. Pedidos do DVD devem ser feitos pelo e-mail: elson@iq.unesp.br

A dança da nanoarte

curso, de um ano e meio, é voltado aos profissionais que gerenciam e executam atividades desde o preparo do solo até a colheita e a administração de máquinas

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no campo. Há três anos, as Fatecs de Araçatuba, Piracicaba e Jaboticabal ministram o curso superior Bioenergia Sucroalcooleira, com três anos de duração.

> Conforto térmico Uma casa fabricada com placas pré-moldadas de concreto celular espumoso, material que contém minúsculas bolhas de ar e facilita a construção em série, é o novo laboratório de engenharia civil instalado no campus da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em Natal. O experimento que vai ser usado também para testes de concreto com poliestireno (um tipo de plástico) expandido e outros tipos de tijolos e blocos faz parte da Rede de Pesquisa em Eficiência Energética de Sistemas Construtivos (Repeesc) que nasceu na UFRN e congrega pesquisadores das universidades federais de Campina Grande, na Paraíba, Piauí, Alagoas, Santa Catarina e o Instituto Nacional de Pesquisa


Um novo motor elétrico criado especialmente para uma minilavadora de roupas, composto de um estator – bobinas feitas com fios de cobres espirais que fornecem a energia elétrica ao circuito – e de um rotor, mecanismo giratório em forma de anel composto por ímãs permanentes, com potencial para aplicação em veículos elétricos e trens magnéticos, foi desenvolvido pelo Estúdio Santos Dumont, empresa de São Paulo. “A bobinagem é feita de uma forma linear, bem mais simples do que havíamos pensado anteriormente, o que facilita a fabricação do motor e permite o seu uso em vários produtos”, diz o designer Marcelo Monteiro, que desde novembro de 2004 trabalha no projeto da minilavadora de roupas (leia na edição nº 123 de Pesquisa FAPESP), com apoio da FAPESP na modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe). Como não existia nada semelhante no mercado, Monteiro contou com a consultoria de engenheiros no desenvolvimento e fabricação de uma bobinadeira especial. A minilavadora, que tem como inovação um cesto de lavagem esférico que gira simultaneamente no sentido vertical e horizontal, já tem depósito de patente no Brasil e no exterior. Uma nova patente do processo de fabricação do motor será depositada pela empresa Santos Dumont.

UFMG

iniciais da UFRN é o Iso-blok, bloco mais barato que os atuais, constituído de concreto celular espumoso e material reciclado, principalmente de plásticos, trabalho de doutorado do aluno e hoje professor Guilherme Fábio de Melo, que foi objeto de patente da universidade.

Parceria resultou em calçado próprio para caminhadas

> O tênis que saiu da universidade O desenho inovador do solado do tênis Aerobase, que será fabricado pela empresa mineira Crômic, permite que ele absorva e amorteça melhor os impactos de uma caminhada. Também possui um design que traz conforto e boa sensação térmica para o usuário. Outra novidade é que ele contou na sua elaboração, a pedido da empresa, com uma equipe de cinco professores e oito alunos do Laboratório de Bioengenharia do Departamento de Engenharia Mecânica da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),

coordenados pela professora Heloíza Helena Ribeiro Schor. O produto teve uma patente elaborada e foi licenciado para a Crômic, empresa responsável por 52% da produção brasileira de calçados esportivos. A universidade terá direito a um percentual ainda não definido por estar vinculado ao volume de venda. A concepção do tênis teve apoio da Coordenadoria de Transferência e Inovação Tecnológica da UFMG, também coordenado por Heloíza, da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais, do Instituto Euvaldo Lodi (MG) e do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae).

Estúdio Santos Dumont

Lavagem inovadora

Espacial (Inpe). A rede estuda a combinação do vento, da umidade, a iluminação e a radiação do sol com materiais de construção que proporcionem maior conforto térmico e baixo consumo de energia, no caso de ar-condicionado, para os moradores da Região Nordeste do país. Um dos resultados

Cesto de minilavadora gira na vertical e na horizontal

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tecnologia

biocombustíveis

Fermentação acelerada

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a busca por microrganismos mais eficientes para a produção de etanol, dois grupos de pesquisadores brasileiros desenvolveram, por métodos distintos, duas novas cepas de leveduras da espécie Saccharomyces cerevisiae capazes de produzir maiores quantidades da substância. Pequenos fungos microscópicos, as leveduras exerNovas cepas de cem um papel fundamental na transformação do leveduras são mais açúcar em álcool durante o processo de fermentação nas usinas. O grupo liderado pelo professor eficientes na conversão Boris Ugarte Stambuk, da Universidade Federal da sacarose em etanol de Santa Catarina (UFSC), recorreu à engenharia genômica, enquanto os pesquisadores coordenados pela professora Cecília Laluce, da Universidade Dinorah Ereno Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara, no interior paulista, utilizaram a genética clássica para obter um híbrido a partir de leveduras selecionadas. “Fizemos uma intervenção no genoma da Saccharomyces para modificar a forma como ela atua no fermentador e, com isso, conseguimos otimizar o processo”, diz Stambuk, do Departamento de Bioquímica do Centro de Ciências Biológicas da UFSC, que também coordena na instituição um grupo de pesquisa, criado em 1997, para estudos sobre a biologia molecular e a biotecnologia de leveduras. “Com a mesma quantidade de sacarose conseguimos obter de 10% a 15% a mais de etanol.” A estratégia consistiu em modificar a forma como a Sacaccharomyces produz a enzima invertase, responsável por acelerar o processo de hidrólise (quebra) dos carboidratos da sacarose, transformando-os em glicose e frutose. Essa reação, que acontece do lado de fora da célula da levedura, é chamada de hidrólise extracelular. Com a alteração da invertase por meio da modificação do gene específico para essa enzima, o açúcar passou a ser transportado e fermentado diretamente no interior da Saccharomyces. “A hidrólise extracelular é um sistema que considero ineficiente porque favorece o desenvolvimento de outras leveduras e bactérias presentes nas dornas de fermentação, que passam a se utilizar da glicose e da frutose”, diz Stambuk, que também é orientador credenciado no Programa de Pós-graduação em Biotecnologia da Universidade de São Paulo (USP). Quando fermentam, esses microrganismos contaminantes do processo produzem ácidos orgânicos que resultam em perdas na produção de etanol.

Fotos Eduardo cesar

Formação de colônias de leveduras da espécie Saccharomyces

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instituto de química/unesp araraquara

Schenberg, do Instituto de Ciên­cias Biomédicas da USP e que desde a década de 1970 faz pesquisas com leveduras, ressaltou que a estratégia desenvolvida é inovadora. “É um jeito novo de a levedura fazer álcool”, disse Ana Clara, que participou da banca de avaliação de um dos alunos de Stambuk. O pesquisador, que tem vários projetos na área, inclusive no sequenciamento do genoma de leveduras industriais, explica que as modificações genéticas se tornam estáveis dentro da levedura porque foram feitas nos próprios cromossomos. “Muitas modificações são feitas com plasmídeos para leveduras, material genético também encontrado em bactérias, mas no mundo industrial isso não funciona, porque essas moléculas são instáveis.” Resistência ao calor - A outra cepa de Células da levedura vistas com microscopia eletrônica

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gene responsável pela captação direta do açúcar. “Na literatura já havia sido descrito que isso era possível com a fermentação da maltose, outro açúcar que a Saccharomyces fermenta eficientemente”, diz Stambuk. “A levedura joga a maltose para dentro da célula e fermenta o açúcar do lado de dentro.” Desde o início do projeto da levedura geneticamente modificada em 2005, foram testadas várias estratégias para que ela parasse de produzir a invertase extracelular e passasse a transportar o açúcar para o interior da célula, onde é feita a hidrólise da sacarose. Uma delas foi muito bem-sucedida e resultou em um depósito de patente em abril deste ano, em parceria com a Fermentec. Várias dissertações de mestrado e teses de doutorado em andamento, orientadas por Stambuk e apresentadas na UFSC e na USP, também são fruto desse projeto. A professora Ana Clara Guerrini

Eduardo cesar

A próxima etapa da pesquisa, que teve a participação de pesquisadores do Instituto de Química e da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz de Piracicaba, ambos da USP, será testar a levedura geneticamente modificada na Usina Cerradinho, em Catanduva, no interior paulista, para avaliar como ela se comporta em um ambiente industrial. O estudo teve apoio financeiro da FAPESP, por meio de um Projeto Temático coordenado pelo professor Pedro Soares de Araújo, do Instituto de Química da USP, e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que aprovou uma proposta apresentada por Stambuk em parceria com a Fermentec, empresa de consultoria especializada em fermentação alcoólica, em um edital de Desenvolvimento Tecnológico e Inovação. Stambuk conta que o seu interesse por uma via de captação direta do açúcar pela levedura começou em 1997. Alguns estudos que apontavam essa possibilidade já tinham sido feitos na década de 1980 por pesquisadores espanhóis e australianos, mas não avançaram. Antes de iniciar o projeto que resultou na levedura geneticamente modificada, o pesquisador havia orientado dois alunos de mestrado que caracterizaram o

levedura que também mostrou em testes de laboratório ser uma excelente produtora de álcool tem outra característica que a torna especial para as condições enfrentadas nos processos industriais. Ela é resistente a altas temperaturas. “Enquanto as leveduras comerciais para produção de etanol fermentam bem entre 30ºC e 34ºC, a levedura que desenvolvemos fermenta entre 37ºC e 38ºC com pouca mortalidade celular”, diz Cecília. Como é muito difícil controlar a temperatura no verão no processo de fermentação, quando há uma elevação acima de 36ºC imediatamente aumenta a toxidez do álcool nas dornas, resultando na morte de leveduras produtoras de etanol. Outra inovação dessa nova cepa, que teve um depósito de patente feito pela Agência Unesp de Inovação em setembro de 2008, é que ela fermenta rapidamente. “Ela faz a conversão total do açúcar em até três horas, enquanto pelo processo tradicional a fermentação leva de seis a 12 horas”, diz a pesquisadora, que desde a década de 1980 se dedica a estudar fermentos. Isso representa uma vantagem porque, quanto mais longo o tempo de fermentação, maiores são os efeitos dos microrganismos contaminantes e de outros fa-


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Os Projetos 1. Estresse, transporte e metabolismo de alfa-glicosídios em Saccharomyces cerevisiae 2. Otimização da fermentação de sacarose e produção de álcool por Saccharomyces cerevisiae 3. Aspectos básicos e aplicados da utilização industrial de leveduras

modalidades

1. Projeto Temático 2. Desenvolvimento Tecnológico e Inovação 3. Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa Co­or­de­na­dores

1. Pedro Soares de Araújo – USP 2. Boris Ugarte Stambuk – UFSC 3. Cecília Laluce – Unesp investimento

1. R$ 482.204,54 (FAPESP) 2. R$ 173.005,92 (CNPq) 3. R$ 118.245,46 (FAPESP)

tores agressivos, como temperatura elevada e deficiência nutricional, do processo sobre o fermento. A nova cepa também resiste a quantias elevadas de etanol e à acidez em ciclos sucessivos de fermentação. Para chegar a essa levedura, foram selecionadas várias linhagens de S. cerevisiae encontradas em usinas que apresentavam características como tolerância ao calor e rápido consumo de açúcar para produção de etanol. Depois de vários testes e combinações, foi obtida uma levedura híbrida, que recebeu marcadores genéticos que permitem o seu monitoramento durante todo o processo de fermentação alcoólica. “Com os marcadores é possível saber a proporção dessa levedura em relação aos microrganismos contaminantes presentes nas dornas de fermentação”, diz Cecília. Além disso, é possível observar se as células do fermento estão passando por alterações durante a safra, se a levedura é dominada pelas leveduras selvagens e até mesmo se ela desaparece do processo vencida pelas concorrentes. Atualmente essa diferenciação é feita apenas por técnicas de biologia molecular que necessitam de consultores especializados.

“Na usina, a mesma levedura é usada em vários ciclos de fermentação durante a safra inteira, que dura até sete meses”, diz a pesquisadora Karen de Oliveira, que trabalhou com a levedura híbrida durante o seu doutorado, orientado por Cecília e encerrado em 2008. “Em alguns casos, são usadas três espécies diferentes de Saccharomyces no início da safra em usinas e depois de um mês não existe mais nenhuma”, relata. As leveduras que estão no ambiente ou na própria matéria-prima invadem o processo de produção de etanol e começam a se multiplicar. “Mas as leveduras presentes no ambiente precisam apenas se alimentar, e não produzir álcool”, diz Karen, que atual­ mente pesquisa o comportamento de leveduras durante a fermentação de hidrolisados do bagaço de cana no seu pós-doutorado. O projeto, coordenado pela professora Cecilia Laluce e que tem ainda a participação dos pesquisadores Sandra Sponchiado e Eduardo Cilli, faz parte do Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen). “Controlar a estabilidade das leveduras ao longo da safra é essencial para garantir a continuidade dos ciclos sucessivos de fermentação”, diz Cecilia. Isso porque, quando o fermento começa a ficar intoxicado pelo excesso de álcool produzido ou em decorrência das condições de estresse da fermentação, ele morre, o que pode levar ao reinício de todo o processo. “O colapso de um processo, com parada completa e reinício, significa grandes prejuízos para as usinas”, ressalta. A próxima etapa do projeto, que já está sendo negociada com o Centro de Tecnologia Canavieira (CTC), é testar a levedura híbrida em um processo industrial. n

> Artigos científicos 1. BATISTA, A.S. et al. Sucrose fermentation by Saccharomyces cerevisiae lacking hexose transport. Journal of Molecular Microbiology and Biotechnology. v. 8, p. 26-33. 2004. 2. BADOTTI, F. et al. Switching the mode of sucrose utilization by Saccharomyces cerevisiae. Microbial Cell Factories. v. 7. 2008.

Mutação induzida A levedura Saccharomyces cerevisiae conta com mecanismos para suportar estresses, como mostram estudos conduzidos em laboratório pela professora Sandra Regina Ceccato Antonini, do Centro de Ciências Agrárias da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), campus de Araras. Alguns fatores, como a deficiência de nutrientes e a presença de alguns tipos de alcoóis produzidos com o etanol na fermentação, levam a uma mudança na sua morfologia – de unicelular ela passa a filamentosa, ou seja, formada por uma cadeia de células, muitas delas extremamente alongadas e “deformadas” –, que pode compensar a perda da eficiência produtiva provocada pelo estresse. “Para a levedura significa uma forma de escapar de um ambiente desfavorável”, diz Sandra. A pesquisadora tem estudado esse efeito no processo de fermentação alcoólica, porque dentro das dornas de fermentação a levedura vive sob um estresse muito grande. Embora os dados ainda não sejam conclusivos, a pesquisadora ressalta que a filamentação indica uma vantagem adaptativa para a levedura, já que há um aumento da sua área superficial. “A levedura passa de uma célula para um filamento comprido”, diz Sandra, que desenvolveu a pesquisa com apoio da FAPESP por meio de um auxílio regular, iniciado em 2005 e encerrado em 2008. Como a área celular aumenta, pode haver um maior contato com o meio de cultura, levando a uma compensação devido à morte de células ocasionada pelo estresse. “Numa situação em que a levedura está estressada e não passa para a forma filamentosa, o prejuízo do estresse pode ser maior”, diz a pesquisadora. Ela ressalta que, mesmo sob condições estressantes, algumas linhagens de Saccharomyces não mudam de morfologia. A explicação é que a essa mudança pode ser uma característica genética, mas ainda não se conhece um gene específico relacionado à filamentação. “Existem vários genes que podem estar envolvidos nesse processo.” Na avaliação da pesquisadora, o fato de essa característica estar presente em leveduras industriais significa que alguma função ela deve ter, porque aparece por uma pressão seletiva. “A princípio achei que era uma característica ruim, mas depois comecei a perceber a sua importância.” PeSQUISA FAPESP 161

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SAÚDE

Resistência e conforto Órteses para punhos feitas com resina e nanopartículas de argila são modeladas sob medida

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m novo material composto de uma resina polimérica recoberta com partículas de nanocerâmica, para aplicação em dispositivos usados na imobilização de punhos e outras partes do corpo, foi desenvolvido na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O nanocompósito, que foi concebido para ser vendido em forma de kits e aplicado sob medida de acordo com a necessidade de cada paciente, poderá ser enviado para qualquer parte do mundo. “No caso de um terremoto, por exemplo, se for necessário enviar material para imobilização de pernas e braços em larga escala, é uma forma rápida e prática de atendimento”, diz o professor Antonio Ávila, coordenador do curso de pós-graduação em engenharia mecânica e orientador da tese de doutorado que resultou no novo produto, patenteado pela Coordenadoria de Transferência e Inovação Tecnológica da universidade. Uma das vantagens desse material em comparação com o importado usado nos dispositivos externos chamados órteses é o processo de moldagem a frio. “Quando misturada ao líquido endurecedor, a resina produz calor suficiente para permitir a modelagem do material”, diz a professora Adriana Valladão, do departamento de terapia ocupacional da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional da UFMG, que desenvolveu o material durante o seu doutorado. O aquecimento não se compara ao do termomoldável importado, um plástico que precisa ser aquecido em água quente a até 70 graus Celsius para ser utilizado, mas a resistência e a rigidez dos materiais são muito semelhantes. A moldagem a frio permite o uso do nanocompósito inclusive em pacientes com queimaduras. “Duas camadas externas recobrem uma camada interna mais rígida composta de um tecido em fibra de vidro e material nanoestruturado, para dar resistência”, explica Ávila. Para dar mais conforto ao paciente, o tecido em fibra de vidro é envolto por uma borracha macia de neoprene, um material sintético usado em roupas de mergulho, por exemplo. Nos kits, os materiais que compõem as camadas externas, a interna e o neoprene serão colocados separadamente em pacotes. Na composição do material nanoestruturado que recobre a parte central entra a montimorilonita, uma argila com alta capacidade de absorção de água, que é tratada e queimada para se transformar em cerâmica. “A espessura da cerâmica que estamos trabalhando tem


fotos Antônio ávila e adriana Valladão

Nanocerâmica distribuída em amostra

Fibra de vidro com resina nanoestruturada

cerca de 50 nanômetros”, diz Ávila. No Brasil existe uma jazida com esse tipo de argila, mas o processamento em granulação nanométrica não é feito aqui, por falta de tecnologia adequada. O quilo do material custa cerca de R$ 20,00, o que o torna apropriado para aplicações terapêuticas de baixo custo. Materiais alternativos - Desde a épo-

ca do mestrado, quando se dedicou à caracterização mecânica de materiais para órteses encontrados no mercado, Adriana se deu conta de que havia pouca diversidade à disposição. “Todos eram importados e caros”, diz. A partir daí a pesquisadora começou a pensar em trabalhar com materiais alternativos, que contribuíssem para reduzir custos dos hospitais públicos e do Sistema Único de Saúde (SUS). Inicialmente Ávila havia pensado em utilizar o material nanoestruturado para aplicação aeronáutica, como extensão do seu pós-doutorado na área de engenharia aeroespacial na Universidade do Arizona, nos Estados Unidos, concluído em março de 2004. A proposta de usar a nanocerâmica em um material para órtese partiu de Adriana. O projeto começou a ser desenvolvido em 2004 e teve financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e do Ministério da Saúde. A princípio, a ideia foi trabalhar com o material nanoestruturado para órteses de punho, mas ele poderá ser usado para pescoço, tronco e membros inferiores.“Foi escolhida a órtese de punho porque é um tipo de dispositivo utilizado em várias patologias, como síndrome do túnel do carpo, tendinite e outras decorrentes de lesões por esforço

repetitivo, para tentar minimizar ou diminuir o movimento do punho e, com isso, minimizar sintomas como dor e formigamento”, diz Adriana. A síndrome do túnel do carpo é uma doença que ocorre quando o nervo que passa na região do punho (nervo mediano) fica submetido à compressão, causando dormência e formigamento nas mãos, principalmente nas extremidades dos dedos. Participaram da avaliação da órtese 26 pessoas, com idade média de 22 anos. Todas cumpriram tarefas cotidianas, como pegar objetos pesados, digitar e se alimentar. “O objetivo era verificar se durante a execução das tarefas a órtese iria ou não se deformar e também se manteria o punho na posição correta”, diz Adriana. Na comparação com a órtese de punho feita com material termomoldável encontrada no mercado a resposta foi bastante semelhante. “Embora tenha rigidez bastante parecida com a do ma-

terial utilizado atualmente, a órtese feita com compósito nanoestruturado tem uma certa flexibilidade que faz com que se acomode melhor na mão do paciente, que se sente mais confortável”, relata. Na análise de custos entre os dois materiais, o desenvolvido na universidade mineira apresenta uma economia de 30% em comparação com o importado. Uma placa do material termomoldável importado com 60 por 40 centímetros custa cerca de R$ 400,00 e a fabricação de uma órtese de punho fica em R$ 52,00. A mesma órtese feita com o material nanoestruturado moldado a frio fica entre R$ 14,00 e R$ 17,00. “Como o governo gasta anualmente cerca de R$ 5 milhões só em financiamento de órteses, a diferença permitiria com o mesmo valor atender um número maior de pessoas”, diz Ávila. n

Dinorah Ereno

Nanoestruturas em formação na resina polimérica PESQUISA FAPESP 161

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> Química

Marcador colorido

Materiais luminescentes garantem autenticidade a cédulas e documentos Evanild o da Silveira

Terras-raras: compostos de elementos químicos emitem cor ao serem iluminados 72

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fotos eduardo cesar

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édulas de dinheiro cobertas por películas de polímero extremamente finas e translúcidas podem se tornar uma solução avançada para garantir a autenticidade da moeda de um país. Ao ser iluminada com luz ultravioleta, por exemplo, a nota emite como resposta uma luz vermelha comprovando a veracidade do papel-moeda. Esse recurso tecnológico que pode ser estendido para outros produtos passíveis de falsificação, como passaportes, carteiras de identidade e de habilitação, além de documentos oficiais, está em processo de patenteamento pela Agência USP de Inovação, que administra as patentes da Universidade de São Paulo. O grupo de inventores tem à frente o químico Hermi Felinto de Brito, professor do Instituto de Química da USP, que desde a década de 1980 trabalha com os elementos químicos chamados de terras-raras, matéria-­ -prima que faz parte dessas películas poliméricas. As terras-raras na verdade são metais e compõem um grupo de 15 elementos conhecidos como lantanídeos – entre o Lantânio (La) e o Lutécio (Lu) enfileirados em uma coluna na Tabela Periódica –, mais dois outros, o Escândio (Sc) e o Ítrio (Y). O termo “rara” foi dado a esse grupo de elementos porque na época da descoberta dos primeiros representantes desse grupo com propriedades muito similares entre si, no século XVIII, além de serem de difícil separação de outros minerais eram encontrados apenas na Escandinávia, na Europa. Hoje eles são encontrados no mundo todo. No Brasil, o 10º produtor mundial, são comuns nas areias monazíticas da Região Sudeste. Quanto à designação “terra”, a explicação é que inicialmente foram isoladas na forma de óxidos, em composição com o oxigênio, substâncias que na época recebiam o nome de “terras”. Embora pouco populares, esses elementos possuem propriedades luminescentes e são usados, por exemplo, em lâmpadas fluorescentes, aparelhos de diagnóstico médico e para formar as imagens nas telas de televisores, computadores e celulares. Apesar de darem cores às telas de TV, na natureza os metais terras-raras não são chamativos. Normalmente variam do cinza-escuro ao prateado e são macios e flexíveis. Mas eles se tornam atraen­ tes na forma de íons (átomos ou moléculas com perda de elétrons) para algumas tecnologias pela capacidade que possuem de emitir luz colorida, depois de submetidos a uma fonte de excitação que pode ser radiação eletromagnética (raios X, ultravioleta, luz visível, infravermelho), feixe de elétrons, calor, eletricidade, energia mecânica, reações químicas ou biológicas. No caso de alguns elementos do grupo terras-raras na forma de íons como o európio (Eu), o térbio (Tb) e o


túlio (Tm), quando submetidos à radiação ultravioleta, eles emitem as cores primárias, vermelho, verde e azul, respectivamente. “Para um material emitir luz é necessário que ele absorva uma quantidade suficiente de energia oriunda de uma fonte de excitação”, diz Brito, como, por exemplo, o fenômeno chamado persistência luminosa. Ele ocorre porque, ao serem excitados, os elétrons desses materiais absorvem e acumulam a energia que recebem. Depois de cessada a excitação, aos poucos eles relaxam e retornam ao seu estado normal, liberando no processo o excesso de energia adquirida na forma de fótons, que compõem a luz visível, ou, no caso, a luz colorida emitida pelo material. Há duas formas de ocorrer essa emissão: uma rápida, chamada fluorescência, em que todo o processo se forma em um tempo muito curto (nanossegundos), e outra mais lenta, a fosforescência, que pode persistir por um período muito longo, que varia de milissegundos até horas. Para que isso ocorra, no entanto, os pesquisadores têm de superar outra propriedade dos íons terras-raras. “Eles apresentam baixo coeficiente de absortividade molar, ou seja, absorvem pouca energia das fontes de excitação”, explica Brito. “Para superar essa deficiên­cia, utilizamos ligantes como ânions (moléculas orgânicas) ou moléculas neutras consideradas como doadores de pares de elétrons, com o objetivo de coletar luz

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O Projeto Preparação e estudo fotoluminescente da persistência luminosa de materiais dopados com íons terras-raras

modalidade

Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa Co­or­de­na­dor

Hermi Felinto de Brito – USP investimento

R$ 191.572,77 e US$ 6.076,94 (FAPESP)

de forma eficaz.” Em termos práticos, o íon terra-rara é envolto por moléculas orgânicas, como dicetonatos, carboxilatos e sulfóxidos. São estes ligantes que absorvem a energia de excitação mais eficientemente e a transferem para o íon terra-rara, que depois a libera sob a forma de luz colorida. Mais barato - De acordo com Brito, o

número de pesquisas sobre a fotoluminescência de terras-raras está aumentando significativamente no mundo, devido às propriedades ópticas promissoras desses sistemas. “Vários compostos desses metais já são aplicados, portanto deve-se considerar o estudo de design molecular [síntese] que existe por trás desses produtos”, diz Brito. Também contribui para o aumento do interesse científico e tecnológico por esses materiais a redução de seu preço. “Há dez anos os compostos de terras­ -raras eram muito caros, mas agora o preço caiu bastante”, explica. “Nas nossas pesquisas usamos normalmente sistema de dopagem (1% apenas de terras-raras), o que também barateia o produto.” O elemento menos abundante dessa série, o túlio, é mais comum na natureza que o ouro, a prata e a platina. Para efeito de comparação, calcula-se que a crosta terrestre contenha 0,02% de lantanídeos e 0,00002% de prata. Assim, o túlio é mil vezes mais abundante do que o metal precioso. Na USP, Brito utiliza a estratégia de preparação de uma série de novos compostos de terras-raras altamente luminescentes que podem ser usados como dispositivos moleculares emissores de luz. No total, ele e seu gru-

po já criaram e testaram cerca de 200 compostos feitos a partir desses elementos, como o európio, o térbio e o túlio. Eles incorporam, principalmente, os dois primeiros elementos com um plástico e produzem um filme ou película fina. “Esse filme polimérico dopado apresenta característica “bicolor”, que, sob radiações em diferentes comprimentos de onda, emite cores distintas”, explica Brito. “Quando é excitado com uma lâmpada ultravioleta, que tem comprimento de onda curto (255 nanômetros), ele emite a cor verde. Se for excitado com uma luz com comprimento de onda um pouco mais longo (365 nanômetros), emite o vermelho.” Uma das vantagens desse sistema bicolor é a utilização de identificação da legitimidade de documentos com maior segurança e precisão por possuir dois marcadores ópticos em um mesmo sistema. Segundo Brito, além da capacidade de emitir duas cores, a estabilidade térmica e a facilidade do processamento dessa película polimérica dopada com íons terras-raras fazem dela um material atrativo para várias aplicações como marcadores fotônicos. Esses materiais podem ser aplicados na área de segurança, como uma impressão digital, por exemplo, nas cédulas de dinheiro. Ele revela que a patente depositada pela USP no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) sobre a película polimérica bicolor chamou a atenção de técnicos do Banco Central que já demonstraram interesse em conhecer a tecnologia para possível uso como marcador de cédulas do real. Brito diz também que as notas de euro já possuem esses marcadores, mas com compostos diferentes. n

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Manta de nanofibras de polímero possui maior resistência à ruptura

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NOVOS MATERIAIS

eficientes Nanofibras tornarão mais avançados os processos de filtração de microrganismos e liberação controlada de fármacos Yuri Vasconcelos

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ofisticados filtros capazes de reter vírus, bactérias e partículas sólidas extremamente finas de líquidos ou gases, cápsulas revestidas por membranas bioabsorvíveis que liberam o medicamento no organismo de forma controlada em determinado período de tempo e substratos para crescimento de órgãos e tecidos biológicos são materiais avançados que estão em desenvolvimento em vários pontos do mundo e têm as nanofibras poliméricas como matéria-prima principal. Esse material, que também está em fase de aperfeiçoamento, possui um processo de produção dominado por poucos centros de pesquisa no mundo, incluindo agora o Brasil, por meio do trabalho da equipe da engenheira química Rosario Elida Suman Bretas, professora do Laboratório de Reologia do Departamento de Engenharia de Materiais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). A equipe desenvolveu e solicitou a patente de dois tipos de produção de nanofibras por meio de um processo conhecido como eletrofiação, baseado na aplicação de corrente elétrica. O primeiro pedido, relativo à produção de nanofibras de poliamida 66 (ou náilon 66), foi financiado pela multinacional francesa Rhodia, que participou da pesquisa e depositou a patente na França. O segundo, relacionado à produção de nanofibras de nanocompósitos poliméricos de poliamida 66 (PA66) com argila montmollironita (MMT), teve apoio financeiro da FAPESP e foi depositada no Brasil. A poliamida 66 é um polímero largamente usado para produção de fios têxteis, reforço interno de pneus, suturas, cordas e linhas para varas de pesca. Nanofibras poliméricas são um tipo de fio plástico composto por polímeros ou compostos poliméricos com espessura da ordem de nanômetros (1 milímetro dividido por 1 milhão). São milhares de vezes mais finas do que um fio de cabelo ou uma fibra têxtil comum. Atualmente elas são empregadas por poucas empresas no mundo, entre elas a americana eSpin Technologies, a sul-coreana Nanotechnics e a japonesa Kato Tech, na fabricação de filtros capazes de reter poluentes de dimensões micrométricas. Uma de suas principais características é a elevada área superficial, o que permite uma superfície de contato com o meio externo muitas vezes superior à de fibras produzidas pelos meios tradicionais e com dimensões macroscópicas capazes de serem vistas com o olho humano. “A área superficial por volume ou específica de uma fibra é inversamente proporcional ao seu diâmetro. Isso significa que as nanofibras têm uma maior área para um mesmo volume de fibras, o que é muito importante para diversas aplicações”, explica Rosario Bretas. “Todos os processos ligados a fenômenos de superfície, como filtração, por exemplo, são potencializados pela criação dessa enorme área superficial”, complementa o engenheiro de materiais Thomas Canova, gerente de pesquisa e desenvolvimento da Rhodia Poliamida.

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Eduardo cesar

Menores e mais


Márcia branciforti/ufscar

Microscopia eletrônica de nanofibras de nanocompósitos de polímeros com argila montmollironita

Assim, quanto maior a área da fibra, por exemplo, maior a quantidade de fármacos liberados no organismo pelas membranas bioabsorvíveis (que são absorvidas pelo organismo humano na forma de cápsulas ou mesmo por adesivos sobre a pele) num determinado período de tempo. O mesmo ocorre com os dispositivos para crescimento de células de órgãos e vasos capilares e para filtração de partículas ou poluentes. Nesse último caso, quanto maior a área da fibra, mais elevada sua quantidade de poros e melhor a retenção de partículas.

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utra característica importante das nanofibras de compósitos poliméricos é a possibilidade de se fabricarem fios com propriedades superiores aos convencionais. Isso é possível porque esses compósitos são produzidos a partir da mistura de um polímero com

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Os Projetos 1. Sistemas poliméricos nanoestruturados: processamento e propriedades 2. Obtenção de nanofibras por eletrofiação

modalidades

1. Projeto Temático 2. Programa de Apoio à Propriedade Intelectual Co­or­de­na­dora

1 e 2. Rosario Elida Suman Bretas – UFSCar investimento

1. R$ 1.182.988,99 e US$ 643.499,18 (FAPESP) 2. R$ 6.000,00 (FAPESP)

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uma partícula de dimensões nanométricas. Essas partículas, por sua vez, são capazes de melhorar as propriedades mecânicas de um produto, como elasticidade e resistência a ruptura, a capacidade de funcionar como barreira a vários gases, além de elevar a taxa de biodegradabilidade. “É como misturar fibras de vidro ao náilon, para elevar sua resistência”, diz Rosario. A partícula adicionada ao polímero criado pela pesquisadora foi a montmollironita, um tipo de argila que confere ao náilon 66 maior resistência mecânica. O desafio de melhorar as propriedades do compósito está em fazer com que cada nanopartícula se encontre bem dispersa e distribuída por todo o polímero. Embora a poliamida 66 não seja biodegradável, o grupo da UFSCar já está desenvolvendo nanofibras de nanocompósitos poliméricos biodegradáveis e bioabsorvíveis utilizando como matriz os polímeros policaprolactona, poliácido láctico e polihidroxibutirato, entre outros. Em todos os casos, são utilizados a argila montmollironita e os nanotubos de carbono, partículas cilíndricas formadas por folhas de átomos de carbono. “Nosso objetivo principal com esses novos estudos, iniciados há dois anos, é produzir estruturas compósitas poliméricas bioabsorvíveis para suporte de crescimento celular in situ [na própria pele ou na mucosa humana para liberação de drogas ou contribuição no crescimento celular] e compósitos condutores de eletricidade”, conta Rosario. A parceria com a Rhodia, segundo a professora da UFSCar, foi fundamental para o sucesso da pesquisa. “A empresa forneceu a poliamida 66 sintetizada especialmente para a eletrofiação, ou seja, com peso molecular específico e composição química adequada. Is-

so permitiu que a solução polimérica tivesse a viscosidade, a condutividade e a tensão superficial ideais para a eletrofiação”, destaca. Segundo a pesquisadora, enquanto fibras poliméricas com diâmetros micrométricos podem ser fabricadas por métodos tradicionais de fiação (fundido e por coagulação, por exemplo), a única técnica capaz de produzir fibras poliméricas nanométricas é a eletrofiação. Esse método, criado há mais de 70 anos, já originou mais de 30 patentes apenas nos Estados Unidos. Um sistema de eletrofiação consiste basicamente de quatro equipamentos: um capilar, que pode ser uma seringa com agulha, um eletrodo de cobre ou outro metal, uma fonte de alta-tensão de até 30 quilovolts e um aparelho para coletar as nanofibras, como, por exemplo, um tambor rotativo. Durante o processo de eletrofiação, a solução polimérica – o polímero mais o solvente – é colocada dentro do capilar. Em razão da tensão superficial, ela permanece lá dentro, sem escoar. Em seguida, o eletrodo de metal é imerso na solução e é conectado à fonte de alta-tensão. Uma tensão elétrica é aplicada e, quando determinado campo elétrico é alcançado, a solução polimérica dentro da seringa começa a escoar, formando um jato.

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sse escoamento ocorre porque, quando a tensão elétrica é aplicada à solução polimérica, uma carga elétrica é induzida na superfície da gota na ponta do capilar. A repulsão mútua de cargas produz uma força diretamente oposta à tensão superficial”, explica Rosario. À medida que a intensidade do campo elétrico é aumentada, a superfície da gota da solução na ponta do capilar se estira, adquirindo um formato cônico. No momento em que o


Eduardo cesar

campo elétrico atinge um valor crítico, no qual a força elétrica repulsiva supera a força da tensão superficial, um jato da solução polimérica é produzido na ponta desse cone. Enquanto o jato se desloca pelo ar, o solvente da solução polimérica se evapora, formando uma nanofibra polimérica. Essa, por fim, se deposita sob o coletor na forma de uma manta de nanofibras não tecida.

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No laboratório, seringa com eletrodo goteja nanofibra para formar a manta

sadores de universidades do Brasil e do exterior. Os professores Rodrigo Lambert Oréfice e Alfredo Góes, ambos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), estão encarregados de fazer o crescimento de células ósseas nas estruturas compósitas desenvolvidas por Rosario. Outra parceria é com o químico Luc Averous, do Laboratório de Engenharia de Polímeros para Altas Tecnologias da Universidade de Estrasburgo, na França, autor de um novo método de eletrofiação em via de ser patenteado e especialista na síntese de polímeros biodegradáveis e bioabsorvíveis. Nesse caso foi firmado um convênio com duplo objetivo. O primeiro é a utilização em futuras pesquisas de novos políme-

Márcia branciforti/ufscar

e acordo com Rosario, a eletrofiação é a única técnica conhecida para fabricação de nanofibras poliméricas. Para a produção de nanofibras metálicas, pode-se recorrer à eletrodeposição química. O uso de tensões elétricas relativamente elevadas, a baixa produtividade do processo e a necessidade de utilização de solventes, alguns deles tóxicos, são as principais desvantagens da eletrofiação em comparação aos métodos convencionais de fiação. “Os solventes empregados no processo precisam ser evaporados. Por isso, o ideal é não usar solventes tóxicos. Nas nossas pesquisas, utilizamos água, acetona, diclorometano e ácido fórmico, que não são considerados solventes altamente tóxicos”, diz Rosario, que afirma desconhecer outro grupo de pesquisa brasileiro que tenha conseguido desenvolver nanofibras de compósitos poliméricos de poliamida 66 com montmollironita. “No Brasil, um grupo do Instituto de Química da Universidade de São Paulo já trabalha com essa técnica há muito tempo, mas com outros polímeros.” As pesquisas do grupo da UFSCar contam com a colaboração de pesqui-

ros bioabsorvíveis sintetizados por ele e o segundo é a realização de estudos comparativos do método pioneiro de eletrofiação desenvolvido por seu grupo com o dos pesquisadores da UFSCar. Também foi estabelecida uma parceria com a Universidade de Alberta, no Canadá, que tem como alvo os estudos do engenheiro químico e professor Uttandaraman Sundararaj, que conseguiu desenvolver nanofibras de cobre e prata por um processo de eletrodeposição em óxido de alumina. Com esse material ele conseguiu fabricar nanocompósitos adicionando poliestireno, que podem ser utilizados como sensores piezelétricos (que geram um campo elétrico sob ação de um esforço mecânico), sistemas de descarga elétrica e escudos contra interferência eletromagnética, entre outras aplicações. “A nossa proposta é fazer esses nanocompósitos com nanofibras de compósitos de um polímero condutor com nanotubos de carbono. Os testes elétricos seriam feitos na Universidade de Alberta”, diz Rosario. As parcerias com as universidades de Minas Gerais, França e Canadá contam com o apoio da FAPESP e fazem parte de um projeto temático, coordenado pela pesquisadora e que tem como pesquisadores principais os professores Elias Hage Júnior e José Alexandrino de Sousa, ambos da UFSCar. Além das duas patentes já requeridas, o projeto para produção de nanofibras poliméricas, iniciado em 2003, rendeu a publicação de quatro artigos científicos em periódicos nacionais e estrangeiros. Outros dois trabalhos já foram apresentados no 41th International Symposium on Macromolecules – Macro2006, realizado no Rio de Janeiro em julho de 2006, e no Annual Meeting of the Polymer Processing Society, ocorrido na Itália em junho de 2008. As pesquisas realizadas na UFSCar também contaram com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que n financiou três bolsas de estudos. > Artigo científico

Nanofibra de polímero com nanotubos: condutores de eletricidade

Guerrini, L. M.; Branciforti, M. C.; Canova,T.; Bretas, R. E. S. Electrospinning and Characterization of Polyamide 66 Nanofibers with different Molecular Weights. Materials Research. v. 12, n.2. 2009. PESQUISA FAPESP 161

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Reciclagem

Resíduo construtivo

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lodo resultante do processo de tratamento dos efluentes hídricos da fabricação do papel, formado por materiais como caulim – um tipo de argila muito usada pela indústria de porcelana – e celulose, foi reaproveitado de forma inovadora na produção de compósitos cimentícios para a construção civil, como blocos de vedação, pisos intertravados para calçadas e placas para forros. Areia, cimento e o resíduo obtido nas estações de tratamento de efluentes, depois do processamento adequado, formam uma argamassa que recebe a adição de brita para formar os compósitos. “A grande inovação está na composição do material”, diz a professora Adriana Nolasco, do Departamento de Ciências Florestais da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP) de Piracicaba, no interior paulista, coordenadora da pesquisa. “A partir da mesma base tecnológica é possível fabricar uma série de produtos.” A proporção do lodo na composição varia de acordo com a aplicação. Os testes de resistência à compressão apontam que blocos de vedação, painéis divisórios e tijolos compactados, componentes que exigem maior desempenho físico-mecânico, podem receber de 5% a 10% do resíduo, enquanto placas de forro e painéis isolantes termoacústicos permitem a adição de 20% a 30% do material. Foram escolhidas duas empresas com processos produtivos distintos para participar da pesquisa. A Papirus Indústria de Papel, de Limeira, fabricante de papel-cartão reciclado a partir de aparas,

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e a Votorantim Papel e Celulose, unidade de Piracicaba, que produz papéis para impressão e especiais a partir de matéria-prima virgem. A intenção era avaliar o desempenho de compósitos produzidos com resíduos de diversas fontes. O resultado mostrou variação insignificante no desempenho dos materiais obtidos, o que indica que mesmo resíduos obtidos em diferentes condições têm o mesmo potencial de aplicação. O estudo, feito pela mestranda Samantha Nazaré de Paiva com orientação da professora Adriana, resultou em um pedido de patente do material e do processo de produção pela Agência USP de Inovação. O trabalho também ficou com o primeiro lugar na categoria de soluções sociais e ambientais na Olimpíada USP de Inovação, em dezembro do ano passado. “O aproveitamento do lodo possibilita a fabricação de novos materiais para construção com custo reduzido”, diz a pesquisadora. “Ao mesmo tempo representa uma solução ambiental ao dar uma destinação adequada ao resíduo.” Grandes volumes - A posição do Brasil

como o sexto maior produtor mundial de celulose e o décimo primeiro no caso do papel é uma mostra dos grandes volumes dessas matérias-primas aqui produzidas. São cerca de 220 indústrias distribuídas em 17 estados. Dados do relatório estatístico 2007/2008 da Associação Brasileira de Celulose e Papel (Bracelpa) mostram que foram produzidos 12 milhões de toneladas de celulose e 9 milhões de toneladas de papel em 2007. O lodo de efluentes corresponde a cerca de 1% do volume

dessa produção. A disposição mais usual desse resíduo são os aterros industriais, a um custo médio de R$ 65,00 a tonelada, além do valor do transporte. No entanto, pequenas empresas ainda utilizam aterros sanitários e lixões municipais, em desacordo com a legislação. Um estudo anterior feito por Adriana aponta como 100 quilômetros a distância máxima entre as fábricas de materiais de construção e as indústrias de papel para tornar viável a produção. “Como esses materiais vão competir com os convencionais, é preciso levar em conta os custos de logística do lodo tratado para as fábricas”, diz. O ideal é que a produção seja regional, no entorno da indústria de papel. “As indústrias poderiam fazer parcerias com as prefeituras ou com o terceiro setor para viabilizar pequenos negócios para produzir esses materiais.” Ao dar nova destinação ao lodo das estações de tratamento, as indústrias reduzem custos de transporte e disposição desses resíduos. As empresas fabricantes de material de construção também serão beneficiadas com a nova tecnologia. “Elas conseguem produzir um material de boa qualidade com redução no custo dos insumos.” A tecnologia usada para a fabricação é a convencional, assim como as formas e dimensões dos componentes são os mesmos dos que estão no mercado. Os resultados obtidos nessa pesquisa são fruto de duas décadas dedicadas ao aproveitamento de resíduos. Em 1989, durante a sua dissertação de mestrado na Escola de Engenharia de São Carlos, também da USP, Adriana

miguel boyayan

Lodo da indústria de papel entra na composição de materiais de construção


Tijolo feito com mistura de areia, cimento e resíduo da indústria de papel

produziu um compósito a partir de cimento e o lodo da indústria de papel. “Era um material muito leve para isolamento termoacústico, indicado para substituição de painéis pré-fabricados feitos com isopor”, diz a pesquisadora. Como não encontrou nenhum parceiro comercial que se interessasse em produzir, o projeto não foi adiante. Mas ela não desistiu. Continuou seus estudos nessa linha, que resultaram no desenvolvimento de um bloco cerâmico e de tijolos, feito com o mesmo resíduo e argila. Nesse projeto, conduzido de 1993 a 1996, Adriana teve a parceria da Votorantim de Piracicaba, que se encarregou de contatar as olarias e indústrias cerâmicas do município. Dessa vez o desfecho foi outro e quase imediatamente ao fim da pesquisa os blocos cerâmicos feitos com resí­duos entraram em produção comercial, por meio de várias empresas, a partir de 1996, licenciados pela Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb). A indústria cerâmica também se beneficiou, porque como o resíduo é bastante úmido houve redução no consumo de água para a produção dos blocos cerâmicos. “A celulose evita a retração do tijolo durante a secagem ao ar, antes da queima”, diz Adriana. Quando a argila tem uma grande retração, muitos blocos se trincam e há perda do material. No processo de queima a celulose desaparece, mas o caulim, uma argila de altíssima qualidade, entra em ação. “A cerâmica ganha qualidade no acabamento e na resistência ao impacto.” n

Dinorah Ereno


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humanidades

Antropologia

Não há céu sem inferno A relação dúbia entre igrejas neopentecostais e o demônio Carlos Haag

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Antônio Gaudério/Folha Imagem

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ai, capeta!” Esse literal “grito de guerra” surge no imaginário de boa parte das pessoas quando ouve falar na Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), e suas “colegas rivais” neopentecostais, por causa por chamados ritos de “descarrego”, supostos exorcismos em que espíritos demoníacos são intimados a se “manifestar” do “interior do indivíduo” (seja nos templos das igrejas, seja, ao vivo e em cores, pela televisão), em geral demônios saídos das “profundezas” das religiões afro-brasileiras. O diabo, porém, não parece, para os pastores, tão feio como se pinta. “Graças a ele e à dinâmica em que nada lhe escapa, a IURD aumenta sua possibilidade de crescimento. Contrariamente ao que afirma, a igreja deve boa parte de sua expansão e constituição a esse ser. Logo, mais do que candomblé e umbanda, o que a igreja necessita de fato é dialogar com uma tradição sociorreligiosa em que se possam encontrar sofrimentos equivalentes à figura do diabo”, explica o antropólogo Ronaldo de Almeida, professor da Unicamp e pesquisador do Cebrap, cujo estudo A Igreja Universal e seus demônios (Terceiro Nome, 149 páginas, R$ 28,00) foi lançado recentemente com apoio da FAPESP. Segundo a pesquisa Economia das religiões, publicada pela Fundação Getúlio Vargas em 2007, a população de evangélicos cresceu de 16,2% (2003) para 19,9%. O estudo também revela que, com a crise metropolitana nas últimas décadas, o inchaço das grandes cidades, o aumento da violência e a piora do acesso aos serviços públicos, as igrejas evangélicas neopentecostais tiveram um crescimento mais expressivo nas periferias. Com o surgimento da “nova pobreza” as pessoas seguem em geral dois caminhos: ou se apegam a religiões de práticas mais intensas, como as pentecostais, ou perdem a esperança e viram sem


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TIAGO QUEIROZ/AE

religião. O estudo revela que o crescimento dessas igrejas nas áreas metropolitanas também pode ser entendido como uma forma de ocupar uma lacuna deixada pelo Estado, com desemprego, “favelização”, precariedade de acesso aos serviços públicos. Se a “velha pobreza”, a das áreas rurais, continua católica, a “nova pobreza”, da periferia das grandes cidades, estaria migrando para as instituições neopentecostais. “Se a ‘teologia da libertação’ produziu a categoria do pobre como ator político na cena pública, a ‘teologia da prosperidade’ da Igreja Universal produz o pobre como ator econômico e o torna responsável por sua salvação. Seu modo de ritualizar o dinheiro e fortalecer a eficácia da ação (via incorporação da feitiçaria no exorcismo) lhe dá uma grande amplitude discursiva”, analisa a antropóloga Paula Montero, da USP e do Cebrap. “Nessa nova configuração, os códigos referentes à saúde e à prosperidade, como uma ética do mundo dos pobres, têm apresentado grande capacidade de mobilização, um capital social que faz com que seus ritos conquistem estádios de futebol, televisões e outros espaços.” Será que os bispos da IURD querem mesmo que o capeta saia? 82

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Pecado - “As representações do diabo

são o eixo a partir do qual o universo simbólico desta igreja é constituído. É ele que causa as doenças, conflitos, desempregos, alcoolismo, leva ao roubo, como são Jesus e o Espírito Santo que curam, acalmam, dão saúde, prosperidade material e libertam do vício e do pecado. Nessa visão se nega por um lado a ação de outros seres espirituais como se nega a responsabilidade humana e, assim, as origens históricas do mal e do bem”, avalia a socióloga Cecília Mariz, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Se o catolicismo, desde o século XVIII, vem abandonando satanás e seu séquito, para a doutrina neopentecostal é preciso eliminar a presença do demônio. “Para eles, as outras denominações religiosas são pouco engajadas nessa batalha, ou até mesmo são espaços privilegiados da ação dos demônios, os quais se ‘disfarçariam’ em divindades cultuadas nesses sistemas, caso, sobretudo, das religiões afro-brasileiras, cujos deuses são vistos como manifestações desses demônios”, completa o antropólogo da USP Vagner Gonçalves da Silva. “Quem não tem Deus, tem o diabo”, afirmou um pregador ouvido por Almeida em sua

pesquisa de campo. “O que é enfatizado na evangelização não é o afastamento de Deus por causa do pecado e, assim, a necessidade de ‘conversão’, mas a aproximação com o diabo, preferencialmente gerada pela frequência aos terreiros no passado do fiel, o que requer a ‘libertação’”, analisa o antropólogo. Esse “culto de libertação”, segundo o pesquisador, pode ser lido, porém, como uma inversão simbólica dos rituais encontrados nos terreiros. Num paradoxo, se a relação inicial entre os dois universos religiosos está fundada sobre oposição e confronto, a IURD não deixa (é até mesmo obrigada, para sua própria sobrevivência, a fazê-lo) de reconhecer a veracidade do que ocorre na umbanda e no candomblé. “Esse reconhecimento garante que a possessão efetivada num terreiro se reproduza também no templo, embora nesse lugar a ‘manifestação’ tenha a função de revelar as estratégias do diabo para escravizar, espiritual e materialmente, o homem.” Segundo Almeida, ao acreditar que está combatendo uma fé inimiga, a Igreja Universal acabou, na verdade, criando uma cosmologia de seres malignos, povoando seu inferno com essas entidades. “Por um sincretismo às avessas, a IURD aca-


bou produzindo sua pombagira, seu exu Tranca-Rua, sua Maria Padilha. Às avessas, porque a síntese gerada buscou no polo negativo da religiosidade cristã (o diabo) o elemento equivalente às entidades, e é graças a essa inversão que a igreja pode ainda manter um discurso proselitista e a exigência de exclusividade, característica evangélica”, nota o pesquisador. Cultos - Dessa forma, a Igreja Universal

combate aquilo que, em parte, ajudou a criar, e não são apenas os ex-praticantes de religiões afro-brasileiras que comparecem, agora convertidos, aos cultos da Universal, mas também suas antigas divindades, ainda que transformadas. “O neopentecostalismo, ao se distanciar do pentecostalismo clássico, e ao se aproximar da umbanda e outras religiões, ainda que seja para negá-las, passou a traduzir para o seu sistema o ethos da manipulação mágica e pessoal, mas agora ‘sob nova direção’, colocando o ‘direito’ no lugar do ‘favor’”, analisa Vagner. “A igreja elaborou, pela guerra, uma antropofagia da fé inimiga. As diversas crenças do cenário religioso brasileiro não são apenas referências a partir das quais, pelo contraste, se possa pensar a identidade da Universal. Mais do que pela oposição, a igreja rege seu processo de expansão por essa antropofagia religiosa, na qual as mais diversas crenças podem ser negadas em seu conteúdo original e, ao mesmo tempo, assimiladas em suas formas de apresentação”, observa Almeida. Daí sua capacidade de “abrandar” o ascetismo pentecostal, suavizando o estereótipo do “crente” protestante tradicional e histórico. A nova igreja passa a valorizar os prazeres terrenos e a estimular o consumo de bens materiais como sinais de salvação. “Ao contrário da invocação umbandista, no neopentecostalismo exu não é mais chamado para atuar como mensageiro ou ‘sujeito do favor’. Agora sua função é vir para ser expulso em nome da cura e da salvação do possuído. Não sendo mais a morada do ‘maligno’, o crente liberto ‘expulsa o favor’ e afirma o seu ‘direito à graça divina’, falando diretamente com Deus”, explica Vagner. Na Universal, o fiel “toma posse da bênção”. “No caso dos terreiros, a ‘cobrança pelos serviços’ personaliza o pagamento,

A base da ideologia pecuniária é a chamada “teoria da prosperidade”, a aliança com Deus pelo consumo material

fazendo dele suspeito de interesse privado e exploração. No caso da Universal, esse ato é entendido como ‘doação’, uma demonstração de fé endereçada diretamente a Deus, para desafiá-lo. A oferta cria uma aliança entre Deus e o homem, pela qual Ele fica obrigado a uma restituição imediata”, observa Paula Montero. Nas palavras de Edir Macedo, bispo da Universal, o crente se torna “sócio de Deus” e nessa condição privilegiada passa a aproveitar as bênçãos do Senhor. “Para provar a própria fé e ganhar as recompensas, os fiéis são induzidos a realizar sacrifícios ou desafios financeiros. Quem não paga o dízimo, advertem os pastores, rouba a Deus. Como o tamanho da fé se mede pelo maior ou menor risco que se assume no ato de doação, quem quer mostrar grande fé precisa assumir grandes riscos financeiros”, explica o sociólogo Ricardo Mariano, da PUC-RS. “O modo sacrificial que o dinheiro assume nos ritos da Universal retira do sacrifício o seu caráter violento e bárbaro (em suposta oposição aos ‘presentes’ ofertados nos rituais afros aos deuses) e o transforma em uma relação abstrata de risco, como em um investimento econômico”, completa Paula. A base dessa ideologia pecuniária é a cha-

mada “teoria da prosperidade”, a aliança com Deus, garantia de que todos podem ter aquilo que quiser se tiverem fé e a demonstrarem com convicção. Isso inclui casa na praia, carros do ano, sucesso nos negócios e mesmo no amor. Não interessa se é um bem material ou espiritual. “A Universal procura maximizar a provisão de compensações concretas e imediatas neste mundo, adaptando sua mensagem à vida material e cultural das massas pobres a fim de dar algum sentido, a explicar a razão de se encontrarem vivendo como vivem, a justificativa de uma dada posição social”, nota Mariano. O dinheiro não está presente apenas nas práticas da Universal, mas igualmente em outras práticas religiosas. “Mas apenas nela os fiéis se reúnem, semanalmente, para o culto à prosperidade, em que ouvem sobre a legitimidade da abundância e assistem a uma pregação que parece uma ‘palestra’ sobre coisas do mercado”, analisa a antropóloga Diana Nogueira de Oliveira Lima, do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro). “A dinâmica cultual e sua mídia são perspicazes no despertar das crenças e das noções mágicas da religiosidade popular, tirando dividendos à instituição e negando qualquer acusação de ‘mercantilização do sagrado’. A Universal se estruturou como uma igreja brasileira de exportação, presente em vários países do globo (EUA, França, entre outros), dirigida por um Bispo S/A, faturador de sucesso empresarial e político, tendo poder de penetração pública e estratégias, também anônimas, entre os indivíduos e clientes anônimos. Daí ser uma igreja de ‘prestação de serviços’, uma instituição religiosa secularizada pela relação empresa-clientes”, escreve o teólogo e sociólogo Odêmio Ferrari, da PUC-SP, autor de Bispo S/A: a Igreja Universal e o exercício do poder (Ave-Maria, 264 páginas, R$ 29,00). “Sua originalidade é ter produzido uma dupla inversão: por um lado, seus ritos generalizaram a ‘feitiçaria’ no espaço público e, por outro, fizeram coincidir caridade e prosperidade econômica. Afinal, em suas práticas rituais mais importantes, a Universal recupera as categorias clássicas do cristianismo: o exorcismo e o donativo em dinheiro”, avalia Paula. Não sem razão, o apóstolo Hernandes, do casal dirigente da Igreja Renascer em PESQUISA FAPESP 161

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Rafael Andrade/Folha Imagem

Cristo, igualmente adepta da “teologia da prosperidade”, ao ser acusado de estelionato, defendeu-se: “Estamos sendo perseguidos pelo próprio diabo”. Doença - “A Universal e outras respon-

dem aos apelos imediatos cotidianos. Mais do que à doença, ela responde ao medo de alguma doença estigmatizada. Além de nos livrar dos problemas financeiros, promete que vamos ficar ricos. Ela é universal como ampla interlocução com a sociedade, visando um maior espaço público e, se possível, a conversão dos interlocutores ao reino de Deus”, analisa Almeida. No caminho dessa universalidade, além dos esforços conhecidos de se utilizar da melhor forma os meios de comunicação, incluindo-se mais recentemente a internet (forma, ao lado da música, de ter acesso aos jovens), os neopentecostais vêm ganhando espaço na política. “As igrejas Universal e Assembleia de Deus souberam aproveitar seus modelos autoritários como instrumento para conquistar votos juntos aos fiéis e implantar um regime de disciplina e hierarquia nas suas bancadas, tirando a autonomia de seus pares no Legislativo”, analisa o sociólogo Saulo Baptista, autor de Pentecostais e neopentecostais na política brasileira (Annablume, 430 páginas, R$ 67,00). Até os anos 1980, a posição dessas igrejas era de absenteís­mo social 84

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e político, ainda que com uma ferrenha dimensão anticomunista e de apoio ao regime militar. “A política pentecostal é exemplificada por posturas como acreditar ser pecado fumar e beber, mas não legislar em favor de elites e sonegar recursos para alimentação, moradia e saúde dos muitos necessitados. No sentido ético, participar de um esquema de corrupção não é tão condenável, desde que beneficie a igreja com ambulâncias ou concessões de rádio, porque isso amplia a capacidade de ‘ganhar almas para Cristo”, afirma Saulo Baptista. Apesar disso, a pesquisa revela que escândalos como o “mensalão” e outros chocaram alguns fiéis que reagiram e diminuíram as votações para os “candidatos oficiais” das igrejas. “Ao ingressarem de forma corporativa na política as igrejas adotaram o comportamento populista de manobrar fiéis para ganhar votos, e a presença dessas corporações no espaço público tem repetido vícios da cultura política nacional, não enfrentando questões sociais, remetendo-os ao mundo das causas sobrenaturais.” É o popular “irmão vota em irmão” que permitiu à “bancada evangélica” espaço para exercitar um perfil político fisiológico. “Sob o tripé cura, exorcismo e prosperidade financeira, e tendo o diabo como origem de todos os males, a Universal demarcou o seu espaço no cenário da religiosidade popular brasileira. Sem

Pesquisa revela que escândalos como o “mensalão” e outros chocaram alguns fiéis

maiores elaborações teológicas, a igreja, mais do que qualquer outra denominação evangélica, criou uma mensagem para atender às demandas mundanas imediatas”, completa Almeida. Se a ética protestante orientava a conduta econômica do puritano calvinista, continua o pesquisador, cabendo à instituição religiosa apenas o ensinamento da doutrina da predestinação, com a Universal temos a própria instituição relacionando-se com o mercado, impulsionada pela missão evangelizadora. “É uma verdadeira holding multinacional, cujo produto básico que dinamiza toda a estrutura é a fé.” Daí que não podem faltar nem o capeta, nem as religiões afro-brasileiras, sem as quais a igreja perde totalmente a sua razão de ser e existir. Assim, na ideologia, como nos rituais, o diabo pode até ir embora, mas ele sempre volta. n > Livros citados 1. MONTERO, P. Religião, pluralismo e esfera pública. Novos Estudos. Cebrap, v. 74, p. 47-66, 2006. 2. Hill, J. História do cristia­nis­mo. Editora Rosari, 560 páginas, R$ 79,00. 3. SILVA, Vagner Gonçalves da. Neopentecostalismo e religiões afro-brasileiras: Significados do ataque aos símbolos da herança religiosa africana no Brasil contemporâneo. Mana (Rio de Janeiro), v. 13 (1), p. 207-236, 2007.


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Futuro,

volver Forças Armadas enfrentam dilemas da sociedade pós-moderna

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ós somos da Pátria a guarda,/ fiéis soldados,/ por ela amados”, assegura o hino do Exército brasileiro. Se, em plena ditadura militar, boa parte dos civis entoava esses versos sem grande convicção, hoje a questão se agravou. “As Forças Armadas brasileiras vivem um momento de extremo conflito: ao mesmo tempo que abraçam ideias hipermodernas, buscam manter as prerrogativas tradicionais, conquistas corporativas e estruturas arcaicas, dentro de uma autonomia ante o Estado e a sociedade que beira a fase ditatorial. A instituição vive agora uma intensa crise de identidade”, afirma o militar e pesquisador Paulo Kuhlmann, professor do curso de Relações Internacionais da Unesp e autor da tese de doutorado Exército brasileiro: estrutura militar e ordenamento político, defendida recentemente na USP. “A sociedade brasileira e os órgãos legislativos e governamentais têm pouca preocupação com temas da Defesa e pouco conhecimento sobre as Forças Armadas. Por um lado, isso dá uma autonomia exagerada aos militares para delimitar o formato e a atuação da Defesa. Por outro, gera um estrangulamento, por meio de cortes orçamentários e outros fatores, da força pela estrutura estatal que a deveria manter, por desconhecer suas reais finalidades e funcionamento”, analisa.

JONATHAN CAMPOS/GAZETA DO POVO/AE

Sociologia

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escolas militares. No ano em que o Ministério da Defesa completa dez anos, a relação entre civis e militares ainda é claudicante, incerta e indefinida. “Em resumo, há um nítido contraste com o período anterior, em especial os anos 1970, sem que tenha havido propriamente uma ruptura política. A debilidade institucional associada a uma soberania atrofiada pela globalização gerou uma ‘crise de identidade’ dos militares”, analisam as pesquisadoras da Unesp Ednéia Fázio e Suzeley Mathias em seu estudo O ensino médio e o papel do Exército. “A classe política brasileira não tem se debruçado sobre a definição dos interesses nacionais e, assim, não visualiza as ‘novas ameaças’ que o país enfrentará num futuro próximo”, continuam. Assim, o preparo do comando castrense para responder aos novos desafios que se colocam continua parte da arena militar, que tem não apenas se organizado de forma autônoma, mas também definido interesses e ameaças para o país como um todo por si própria. E aí está o perigo.

fotos FILIPE ARAUJO/AE; www.army.mil

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crise de identidade está ligada com o desaparecimento do inimigo, a partir do fim da Guerra Fria, e com a desvalorização do estamento militar na maioria dos países. No Brasil essa desvalorização soma-se à ideia de revanchismo por parte dos reprimidos a esse estamento. Alguns militares acreditam que os governos de esquerda vingam-se, por outras vias, jogando as Forças Armadas no desamparo e no sucateamento”, avalia. Uma pesquisa feita pelo diretor do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas, o antropólogo Celso Castro, coordenador do Consórcio Forças Armadas Século XXI, sobre o estado das relações civis-militares no Brasil, revelou que “ainda é grande o peso negativo da herança simbólica da atuação das Forças Armadas durante o regime militar”. Além disso, a pesquisa mostrou que é preciso uma maior convergência do sistema de ensino militar com padrões e valores utilizados no sistema de ensino civil, pois há uma clara desconfiança dos civis sobre os padrões de qualidade e isenção do sistema das


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novidade, ainda não se sabe se boa ou má, é a aprovação recente, pela Presidência da República, do projeto, feito pelo Ministério da Defesa e pela Secretaria de Assuntos Estratégicos, de renovação das Forças Armadas para a criação de uma Estratégia Nacional de Defesa, que pretende, a partir do segundo semestre deste ano, começar a construir no país uma “cultura militar vanguardista e profissional” por meio da reorganização, reorientação e reequipamento das Forças Armadas. A partir do momento em que a sociedade civil passar a ter ingerência sobre o projeto de Defesa e na constituição do soldado do futuro será possível, enfim, descobrir para que servem as Forças Armadas, hoje voltadas para um sem-número de atribuições, as chamadas “missões subsidiárias”. “Ações como combate à dengue, fornecimento de água no Semiárido, construção de estradas, entre outras tarefas, são atribuições que se somam à ideia de construção de nação preconizada pelo Exército como a sua função precípua e

praticada por meio do serviço militar e da profissionalização dos recrutas”, explica Kuhlmann. “A reestruturação do Exército ao longo da transição democrática ocorre em um período em que a força militar busca o distanciamento do conflito ideológico-político e da busca pela profissionalização e modernização.” Segundo o pesquisador, as Forças Armadas tentam se profissionalizar por meio de uma avaliação profissional, operacional, baseada na eficácia exigida de uma força militar moderna, embora esbarrem nos gastos e na falta de possibilidade política de mudar o sistema. “A isso se soma a preocupação com a perda da vantagem política de influenciar a juventude e ter seu efetivo reduzido a um mínimo insuportável, fruto do medo da alteração do serviço militar, hoje obrigatório.”

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uhlmann lembra ainda que existe uma reação dos militares à política norte-americana para a América Latina, em que os EUA desejam que as Forças Armadas sejam meras polícias

contras as “novas ameaças” (tráfico de drogas, crime organizado, entre outros), deixando o ideal de soberania de lado. “Ao lado do medo do revanchismo da sociedade e da indefinição do Ministério da Defesa, visto como jovem demais, há a negação ao pensamento único gerado pela globalização que afirma ser a soberania desnecessária e anacrônica”, observa o militar. Há uma longa trajetória a marcar esses medos: a Guerra das Malvinas, em 1982, que colocou os militares argentinos numa situação de ridículo; a democratização da América Latina; o fim da União Soviética e, com isso, o término da Guerra Fria; e, mais recentemente, o atentado às Torres Gêmeas em 2001, que provocou uma retomada de ideais militaristas que se pensavam extintos. “O fim da Guerra Fria gerou uma doutrina de reajuste das Forças Armadas dos EUA e da Europa, um downsizing, já que as antigas configurações de conflitos se faziam mais presentes”, nota Kuhlmann. A instrução dos soldados foi deixando de lado os valores tradiPESQUISA FAPESP 161

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Bruno Gonzalez/AGIF/AE

das Agulhas Negras mude sua base do estado do Rio para Brasília. Também, nesse sentido, a inserção do Ministério da Ciência e Tecnologia na construção da Estratégia Nacional de Defesa, com medidas que maximizem a integração dos esforços de pesquisas nas instituições científicas civis e militares.

U Militares policiando arredores de favela no Rio de Janeiro

cionais de Duty, Honor, Country e se aproximando dos valores de recompensas materiais, mais comuns às atividades profissionais civis, a chamada civilinization dos exércitos. “Após o 11 de Setembro, porém, esse momento, batizado de ‘pós-modernismo militar’, é substituído pelo amargo estado de segurança. Há um retorno à preocupação original de defender o território, quase caracterizando a volta ao passado tradicional, embora o inimigo seja ‘volátil’, por meio do combate ao terrorismo.” No Brasil, conta o pesquisador, o primeiro movimento correspondeu à criação, em 1984, do Sistema de Planejamento do Exército (Siplex), que pretendeu operacionalizar a instituição e colocá-la na modernidade. Pensava-se, então, em aumentar o efetivo militar, mas a nova reconfiguração nacional e internacional impediu isso.

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o Brasil ocorreu a transferência da prioridade da Defesa da Região Sul para a região amazônica. Ao contrário do que se via no período da Guerra Fria, quando o foco estava no Sul, que possuía um inimigo delimitado, interestatal e que se armava e se preparava consoante a um confronto, na Amazônia, atual prioridade, novas e velhas ameaças são percebidas, bem como a forma de combatê-las: os vazios geográficos são amenizados com a ideia de colonizar a região, envolvendo também a nacionalização e a integração dos índios, is88

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so somado às questões de controle da fronteira (contrabando de armas, madeira etc.) e confronto com guerrilha de outros países. Em suma, uma estratégia da resistência.” A nova geopolítica interveio na formação militar. “Ela agora deve proporcionar a capacidade do militar de cumprir diversos papéis diferenciados, como scholar, estadista, negociador, polícia. Mas se não houver educação formal para suprir essas carências ele não desempenhará bem suas novas funções no mundo pós-­-moderno.” Assim, é preciso capacitar os novos militares a cumprir “novas missões”, possibilitando maior estreitamento das relações civis-militares. Isso não é tão fácil como se poderia pensar. “Se a educação é tão sensível como pensamos, e a educação militar está fora do âmbito de ação do governo, então podemos concluir que as Forças Armadas gozam de grande autonomia, pois pode formar seus quadros, forjando consciências sem sequer dar satisfação de seus atos”, analisam Ednéia e Suzeley. “No que diz respeito à formação militar, todas as reformas querem aproximar os futuros comandantes da sociedade civil, incluindo, nisso, o próprio método de educar as futuras classes dirigentes. Mas não se deve perder de vista nem a capacidade castrense para ocupar espaços vazios (daí a necessidade de se formar civis nessa área), nem a capacidade de antecipação e adaptação que eles têm”, avisam as pesquisadoras. Não sem razão, o projeto do governo prevê que a Academia Militar

m ponto, no entanto, ainda incomoda militares e estudiosos de Defesa: a função de “polícia” interna que governo e sociedade gostariam de colocar sobre os militares. “Há uma grave falta de clareza e precisão na legislação atual sobre como regular essa atuação das Forças Armadas na ‘garantia da lei e da ordem’, função que causa grande desconforto em parte do meio militar. Atualmente se caminha por sendas de ambiguidades jurídicas que regulamentam a missão e as tarefas do Exército, o que banaliza o emprego dos militares como uma fórmula mágica para a solução dos problemas”, alerta Kuhlmann, para quem há o perigo de militarização das instituições policiais e da corrupção dos estamentos militares. Igualmente, continua, é preciso cautela com as “missões complementares” que, em geral, são vistas com bons olhos pelas Forças Armadas, já que elevam a simpatia da sociedade pelos militares. “O Exército está tendo uma atua­ção onidirecional. Se juntarmos isso à desvalorização do equipamento de Defesa nacional, aos baixos salários e às más condições de trabalho, tudo altera a expectativa dos que estão nos quartéis e daqueles que pretendam ingressar. Sem ingerência civil nos currículos de formação militar, há excessos de atuação e a crise de identidade se consolida nas Forças Armadas.” Sentindo-se desamparados, observa o pesquisador, os militares perderam as referências de seus valores e crenças corporativos relacionados ao cumprimento de uma missão que não existe mais. “Isso se refletiu e ainda se reflete em vários episódios de desobediência.” Ao mesmo tempo, o uso indiscriminado, ainda que, como dizem as autoridades civis, esteja alicerçado legalmente, já trouxe problemas na convocação das tropas sem o aval da Presidência e do Congresso, com consequências funestas como as mortes na invasão da siderúrgica de Volta Redonda, entre outras.


11 de Setembro teve a sua participação. “Mas não o que se esperava. A maior parte dos soldados não reagiu aos ataques e apenas uma pequena parcela se importou e foi à luta. Os números de hoje são ridículos em comparação com os sacrifícios épicos feitos nas guerras passadas. Poucos interromperam suas vidas para servir ao ‘bem maior e ao ideal’.” Os pontos positivos ficaram com a diversidade crescente nas forças americanas. “Muitos que não são os ‘típicos soldados americanos’ (branco, cristão, hetero, trabalhador, jovem, preparado fisicamente) acabaram conseguindo, enfim, uma cidadania completa dentro das organizações militares. Igualmente as novas condições geopolíticas, que exigem um soldado mais sofisticado para as novas missões, deram maior espaço às recrutas mulheres, mais adequadas às novas sutilezas exigidas pela nova forma de guerra”, explica. Isso, aliás, também aconteceu nas Forças Armadas brasileiras por motivos análogos, embora menos bélicos. Para aqueles que defendem o fim do serviço militar obrigatório, “como nos EUA”,

Ender avisa que a América está na contramão e deveria advogar um serviço universal nacional. “Isso poderia ser usado para corrigir muitos dos males sociais de que sofre a sociedade americana.” O mesmo argumento, aliás, é usado por militares e civis no novo projeto de Defesa que preconiza a manutenção do serviço militar obrigatório e sua universalização efetiva para todas as classes sociais, e não apenas aos mais pobres, como acontece atualmente. Seja como for, lá, como aqui, nota Ender, ainda existe um grande lapso “entre os mundos civil e militar” e se verifica uma civilinization da vida militar, seja na representação social, seja nas atitudes representacionais. E é aí, notam os n especialistas, que mora o perigo.

Carlos Haag > Livros citados 1. Ender, Morten G. American soldiers in Iraq. Routledge, 199 páginas, 2009. 2. Best, Nicholas. O maior dia da história. Editora Paz e Terra, 332 páginas, 2009.

www.army.mil

A relevância da discussão é comprovada pela repetição de algumas dessas questões naquele que sempre foi o modelo de todas as forças: o Exército americano. O sociólogo da Academia de West Point, Morton Ender, acaba de lançar, nos EUA, American soldiers in Iraq: mcsoldiers or innovative professionals?, pesquisa de campo feita com vários militares em ação no Iraque. “Há muitos resultados inesperados, fruto da adoção, pelos corpos americanos de princípios de eficiência derivados da rede McDonald’s, como rapidez, estabilidade etc. Isso vem gerando soldados individualistas que se acreditam melhores do que seus colegas, mas que acabam patinando na chamada ‘irracionalidade do excesso de racional’, receita certa para limites na criatividade, autonomia e espontaneidade”, explica Ender. “Os novos soldados não mais lutam por suas equipes, por seus camaradas, mas sim por um ideal nacionalista abstrato de América. Suas atitudes são pautadas pela America first, o que sugere um ‘isolacionismo-internacionalista’ entre os soldados americanos.” Nisso o

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Quem disse

que os quadrinhos

são inimigos dos livros Tese investiga importância de gibis na formação de leitores na infância

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m 1944, a Revista do Inep (Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos), do Ministério da Cultura, publicou ao longo de três edições um estudo bombástico a partir de uma pesquisa feita com professores e estudantes sobre as histórias em quadrinhos, um produto de massa surgido no país na década anterior. A conclusão era das mais alarmistas: os comics constituíam um nocivo instrumento que estava prejudicando o aprendizado escolar de diversas formas: desestímulo ao estudo das disciplinas, abandono dos livros infantis e, pior, causavam preguiça mental, ao viciar os estudantes com imagens e poucos textos. Seguiu-se, então, uma guerra em escolas de todo país, quando fogueiras foram organizadas para queimar gibis. Mais lenha foi jogada no incêndio quando o professor Antonio D’Ávila publicou, em 1958, A literatura infanto-juvenil, um tratado em defesa dos livros para crianças e contra as revistinhas. Foi preciso duas décadas para que editoras como Ibep e Ática adotassem a linguagem dos quadrinhos em seus livros de português, geografia, história e matemática. Desde então, a aceitação das revistinhas pelos professores como reforço paradidático parecia pacífica. Na verdade, os quadrinhos se tornaram quase sempre o primeiro contato de várias gerações de crianças com o aprendizado da leitura e da escrita e de entretenimento, além de um objeto de grande valor afetivo, sempre ligado à infância. É o que está exposto na tese de Valéria Aparecida Bari, O potencial das histórias em quadrinhos na formação de leitores: busca de um contraponto entre os panoramas culturais brasileiro e europeu, com orientação do professor Waldomiro de Castro Santos Vergueiro, da Escola de Comunicações e Artes (ECA), da USP. Na pesquisa, ela se propôs a discutir a importância das histórias em quadrinhos na formação do gosto pela leitura das crianças, a partir das experiências de dois países: Brasil e Espanha. Ao mesmo tempo, debruçou-se sobre a compreensão das mensagens transmitidas tanto pelo texto das histórias quanto pelos desenhos – que são indissociáveis e se completam nesse tipo de arte. Segundo a pesquisadora, os elementos que constituem os quadrinhos, como o letramento, abrem possibilidades de inserção dos produtos da linguagem gráfica sequencial nas práticas biblioteconômicas e pedagógicas atuais. “A leitura de histórias em quadrinhos forma leitoras que gostam de todo o tipo de leituras, com a vantagem de criar tam-

imagens reprodução

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Literatura


bém uma cultura de leitura infantil e comunidades leitoras de grande abrangência”, observa. “Afinal, é preciso lembrar que a formação do leitor só chega ao amadurecimento se a pessoa gostar de ler. O vínculo emocional é um elemento fundamental. Nesse sentido, as histórias em quadrinhos, além da facilidade de mostrar conteúdos complexos para leitores iniciantes, também amadurecem a relação emocional entre o leitor e sua leitura.” A pesquisadora destaca que, em um país que muito recentemente deixou de ser predominantemente analfabeto, o primeiro contato de grande parte da população com a leitura se deu nos bancos escolares e nas bibliotecas públicas. “Temos uma geração que, no início do século XXI, foi impulsionada a ingressar num mundo letrado e virtualizado, sem que as vivências leitoras tenham um significado em sua vida real. Somente o prazer e o gosto podem justificar esse esforço para subir os enormes degraus da alfabetização e letramento.” Segundo ela, a linguagem híbrida das histórias em quadrinhos, que conjuga texto e imagem na formação dos significados complexos, forma um leitor atento, eclético e proficiente, para a leitura competente de diversas mídias e linguagens, assim como na qualidade da organização das ideias e a formulação de textos escritos, com muita diversão e articulação. O letramento, prossegue ela, compreende fases evolutivas como pré-requisitos para a formação das habilidades e competências leitoras. Primeiro, a decodificação, que requer a memorização do registro da linguagem escrita e sua reprodução gráfica. Segundo, a de reprodução, repetição e produção própria, que requer a memorização de estruturas mais complexas da linguagem escrita, ao mesmo tempo que o desenvolvimento de habilidades motoras para a reprodução de letras e sinais gráficos, competências linguísticas e articulação de ideias e raciocínios. “A prática da leitura e da escrita como exercícios de reprodução, repetição

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de do leitor, conforme pude constatar nas minhas entrevistas para a pesquisa, indo muito além das leituras que não poderiam deixar de embasar uma pesquisa científica.”

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e produção, quando bem conduzida, leva à formação de hábitos leitores. Os hábitos, por sua vez, levam ao gosto pela leitura, a parte mais requintada e pessoal do processo de letrar alguém.” Nesse contexto, as histórias em quadrinhos contribuem de forma relevante com todas essas fases: auxiliam muito na memorização, estimulam naturalmente a reprodução e produção própria do seu leitor, habituam as crianças à leitura e, de forma muito clara, formam o gosto leitor. “Todas essas fases têm em comum o grande esforço mental, sofrimento e comprometimento necessário por parte do indivíduo, para o êxito do letramento. Como uma vantagem adicional, preparam o cére-

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bro para trabalhar integradamente as amídalas direita e esquerda, já que se utilizam de linguagem híbrida, facilitando a subjetividade e preparando o cérebro para o pensamento complexo.” Em sua opinião, não seria possível compreender o fenômeno da formação do leitor, ou seja, do letramento, sem as vivências sociais nos ambientes nos quais se dá a apropriação social da leitura. Nem seria procedente que tivesse obtido o grau de especialista, sem viver e reviver o fenômeno da leitura em sua plenitude. “As histórias em quadrinhos chamam a atenção para os aspectos mais positivos da leitura, tornando o ensino da leitura mais afetivo e voltado para a formação de gosto e personalida-

trabalho da Valéria parecia ter colocado uma pedra sobre o preconceito de décadas contra os gibis no Brasil. “A inegável popularidade dos quadrinhos foi, talvez, responsável por uma espécie de desconfiança sobre os efeitos que eles poderiam provocar nos leitores. Já que são um meio de comunicação de vasto consumo e com seu conteúdo voltado para os jovens, as HQs se tornaram, logo cedo, objeto de restrição por parte de pais e professores”, observa Waldomiro Vergueiro, coordenador do Núcleo de Pesquisas em Histórias em Quadrinhos da ECA-USP e organizador do livro Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula (Editora Contexto, 160 páginas, R$ 25,00), ao lado de Angela Rama, Alexandre Barbosa, Paulo Ramos e Túlio Vilela. Foi só depois de os quadrinhos ganharem um novo status, em especial na Europa, como forma de arte que o preconceito foi diminuindo e se começou, timidamente, a incluir quadrinhos em materiais didáticos, de início para ilustrar partes das matérias que, antes, eram explicadas por um texto escrito. “Houve erros e exageros pela inexperiên­cia do uso em ambiente escolar, mas as iniciativas contribuíram para refinar esse processo”, afirma Vergueiro. Hoje é muito comum usar quadrinhos para transmitir conteúdo, em especial após a avaliação realizada pelo Ministério da Cultura, a partir de meados de 1990. Mais recentemente, o emprego de histórias em quadrinhos na educação


é reconhecido pela Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). “Há várias décadas, os quadrinhos fazem parte do cotidiano dos jovens e, assim, a inclusão desse material na sala de aula não é objeto de qualquer tipo de rejeição por parte dos estudantes que, em geral, o recebem de forma entusiasmada.” Vergueiro lamenta que haja no Brasil e até mesmo no mundo um subaproveitamento dos quadrinhos nas salas de aula das mais diversas formas – reforço paradidático, estímulo à alfabetização (uma vez que é uma forma de entretenimento) etc. “A interligação do texto com a imagem, que existe nos quadrinhos, amplia a compreensão de uma forma que qualquer um dos dois códigos, sozinho, não conseguiria atingir.” Segundo o pesquisador, há ainda um desconhecimento do meio por parte dos professores, que não lhes possibilita saber o que escolher e como utilizar em aula. “Soma-se a isso o pouco incentivo governamental existente para utilização das histórias em quadrinhos, deixando praticamente toda a iniciativa por conta dos professores.”

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omo argumentos para defender a adoção dos quadrinhos no ensino, ele destaca a familiaridade dos alunos com as histórias em quadrinhos e com os elementos de sua linguagem desde os primeiros anos de vida, o fácil acesso aos produtos quadrinhísticos, o baixo custo do material (na banca de jornal) quando comparado a outros meios, a possibilidade de aplicação em virtualmente todas as áreas e disciplinas e a possibilidade de desenvolver estudos ou projetos multidisciplinares com histórias em quadrinhos. “Acho que devemos ter uma atitude permanente de esclarecimento dos professores quanto às vantagens e possibilidades de utilização dos gibis em sala de aula.” Para Vergueiro, isso poderia começar na formação dos professores que, quando ainda alunos de graduação, podem e devem ter contato com as histórias em quadrinhos como instrumento de trabalho de sua futura profissão, familiarizando-se com produções im-

portantes da área e recebendo orientações de como utilizá-las em ambiente didático. “A ideia preconcebida de que os quadrinhos colaboram para afastar as crianças e jovens da leitura de livros e outros materiais já foi refutada por vários estudos. Hoje sabemos que os leitores de quadrinhos são também leitores de outros tipos de jornais, revistas etc. A ampliação da familiaridade da leitura de quadrinhos, na sala de aula, permite que muitos estudantes se abram para a leitura, encontrando menos dificuldades para concentrar-se nas leituras que são destinadas ao estudo.” Há quem defenda a importância dos quadrinhos como forma de facilitar o acesso à literatura. “Já cresceu o reconhecimento da HQ como recurso pedagógico, porém, na escola, instituição que homologa o uso dos quadrinhos como ferramenta de ensino e apren-

dizagem, a concepção que prevalece é aquela que vê nos quadrinhos apenas um recurso auxiliar para aprender, não reconhecendo neles o seu diálogo com o literário. Há uma carência sobre o quadrinho e as possibilidades comunicativas que ele oferece”, explica Maria Cristina Xavier de Oliveira, autora da tese de doutorado A arte dos quadrinhos e o literário, defendida há poucos meses na USP sob orientação de Nelly Novaes Coelho. “O quadrinho apresenta novas formas de criar textos e de leitura. É uma arte que, ao contrário do que se pensa, precisa ser apreendida e compreendida. O quadrinho é um meio que pode servir a muitos fins, como despertar um olhar criativo, o raciocínio rápido, a concatenação de ideias, o domínio de técnicas de composição e da exploração visual. Os quadrinhos podem ser um meio de formação de leitores, não passivos, meros receptores, mas ativos, colaboradores importantes na leitura e na construção de novos textos”, acredita. Quem disse que aquilo que você adora ler é “apenas um gibi”? Com certeza foi alguém que não participou da Campanha de Desarmamento Infantil, em Recife, onde, em poucas semanas, mais de 500 mil armas de brinquedos foram trocadas por gibis. A pena do quadrinho, com certeza, é mais forte do que a espada ou o revólver. E bem n mais gostosa de se ver. PESQUISA FAPESP 161

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resenha

Caridade científica Estudo revela dívida da medicina brasileira com o mecenato de industriais Carlos Haag

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m 1905, a Companhia Docas de Santos construía uma usina hidre­létrica na serra de Santos, para fornecer energia elétrica para o porto, quando um surto de malária paralisou as obras. Os dois sócios, Cândido Gaf­frée e Eduardo Guinle, ambos a fina flor da sociedade da capital, apelaram ao amigo Oswaldo Cruz, então diretor do Instituto Manguinhos, para ajudá-los. O cientista indicou Carlos Chagas, que conseguiu resolver o problema. A capacidade da ciência em retirar obstáculos ao progresso encantou a dupla de industriais, que resolveu, em gratidão, apoiar a medicina e a ciência. Eram os tempos do “nacionalismo sanitário” da belle époque carioca em que combater doenças era símbolo da modernidade, do esforço tropical de erradicar o que havia de atraso no país e permitir que o Brasil construísse a sua nacionalidade em igualdade com os países do Primeiro Mundo, espelho onde a burguesia da época se via refletida. Fora para isso que o prefeito Pereira Passos “botara abaixo” os velhos casarios do centro, erguendo uma nova cidade nos moldes de Paris. O livro da historiadora Gisele Sanglard, fruto de sua tese de doutorado de 2005 pela Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, reconstitui esse processo de patrocínio privado à ciência na primeira metade do século XX, em especial na relação entre Carlos Chagas e Guilherme Guinle, sobrinho de Gaffrée e que o substituiu à frente dos negócios após a morte do industrial. Dessa parceria resultou a construção de

Entre os salões e o laboratório – Guilherme Guinle, a saúde e a ciência no Rio de Janeiro, 1920-1940 Gisele Sanglard Editora Fiocruz 304 páginas R$ 38,00

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hospitais para sifilíticos e cancerosos, na década de 1920, entre outras conquistas. No novo cenário do Rio republicano as elites estavam dispostas a construir uma nova relação com a cidade, lançando mão do mecenato para acabar com a pobreza que “maculava” a capital. A prática tinha tudo a ver com a formação católica nacional e a caridade, só que, com o progresso, foi substituída pelo “mecenato científico”, nascido diretamente do entusiasmo pelas descobertas de Pasteur na França. Se antes era “apropriado” dar dinheiro para os pobres do hospital, no novo século exige-se uma nova postura e, assim, a medicina passa a combater a pobreza por meio do controle das doenças. Ciência e capital industrial se encontraram. Com a generosidade tão característica das elites americanas (infelizmente rara em nossa história), a sociedade endinheirada passou a preencher os vazios deixados pe­ lo incipiente Estado republicano, resolvendo as questões que aquele não conseguia. Como não podia deixar de ser, esse encontro entre ciência e dinheiro podia ocorrer nos salões elegantes, como os do Jockey Club carioca, onde Guilherme Guinle, que assumiu os negócios familiares com a morte de Gaffrée, e Carlos Chagas se encontravam e discutiam propostas de mecenato para a medicina, no combate seja à sífilis, à lepra, às grandes endemias ou às doenças do sangue, todos projetos caros ao novo diretor de Manguinhos após a morte de Oswaldo Cruz. O que impulsionava Guinle era seu desejo de melhorar as condições de vida da raça brasileira. Claro que havia nisso boas doses de eugenismo, a doutrina cara à época, mas quem somos nós para julgar ou atacar as conquistas que seu patrocínio legou à posteridade, como bem colocou o jornalista Chatô em O jornal na série que fez com os mecenas das ciências? Foi graças a eles que muitos pesquisadores conseguiram levar adiante seus trabalhos. O Rio reunia o ambiente, as pessoas e o desejo de construir uma nação a partir das conquistas modernas, ainda que, na raiz, o que impulsionou esse mecenato tenha sido a tradição caridosa herdada dos tempos da colônia lusitana. No encontro dos salões com o laboratório, do investimento da ciência como regeneradora da sociedade, onde amizades tiveram papel importante, nasceu a medicina brasileira. Bons tempos em que a elite pensava num projeto para o país e preferia gastar seu dinheiro em hospitais e pesquisas, no espírito de Pasteur, e não no de Louis Vuitton.


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livros

Comunicação popular escrita

Castrati e outros virtuoses

Américo Pellegrini Filho Editora Edusp/FAPESP 695 páginas, R$ 70,00

Alberto José Vieira Pacheco Editora Annablume/Fapesp 354 páginas, R$ 50,00

Uma pesquisa feita em todo o planeta, Comunicação popular escrita traz um imenso painel do que se produz em grafitagem em 107 países. São 14.014 grafitos nas línguas de origem, com uma classificação inédita e fruto de um trabalho elaborado. Com certeza, é uma obra de re­ferência importante para estudiosos e aficionados.

Alberto Pacheco nos conta em seu livro, que traz um cd-rom com canções e documentos, a prática vocal carioca nos tempos em que a família real se transferiu para o Brasil. A contratação de castrati, numa época em que estes desapareciam na Europa, encontrou um virtuosismo no país, causando grande impacto na música composta, sobretudo, por Marcos Portugal e José Maurício Nunes Garcia.

Edusp (11) 3812-6764 www.edusp.com.br

Força de trabalho e tecnologia no Brasil Marcio Pochmann Editora Revan 148 páginas, R$ 27,00

O estudo defende que, na primeira década do século XXI, a crise do capital globalizado permite inaugurar uma nova fase no processo de desenvolvimento nacional. Isso, segundo o autor, exige uma reflexão sobre o avanço da matriz energética renovável do Brasil, já que o país não poderia mais perder-se no que o autor chama de erros do passado. Editora Revan (21) 2502-7495 www.revan.com.br

História de São Paulo colonial

fotos Eduardo Cesar

Maria Beatriz Nizza da Silva (org.) Editora Unesp 348 páginas, R$ 48,00

O livro aborda momentos importantes da história da Capitania de São Paulo, desde seu período donatorial ao período da restauração de sua autonomia e o movimento constitucional. Especialistas com intuito de contar uma história ainda não contada da cidade enfocam questões como a autonomia das Câmaras, o poder do capitão-mor, a presença paulatina da Coroa na Justiça e sua intervenção no âmbito financeiro, além de um estudo da demografia e do universo da posse da terra e de escravos. Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br

Editora Annablume (11) 3812-6764 www.annablume.com.br

Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano José de Souza Martins Editora Contexto 192 páginas, R$ 35,00

A partir de uma ideia de fronteira como lugar privilegiado da observação sociológica e do conhecimento sobre os conflitos e dificuldades próprios de quem vive no limite e no limiar da história, José de Souza Martins nos guia em seu estudo sobre as fronteiras étnicas no Brasil, a criança na luta pela terra e pela vida, além de fazer uma reflexão acerca do tempo e do capitalismo de fronteira. Editora Contexto (11) 3816-0333 www.editoracontexto.com.br

Franceses no Brasil: séculos XIX-XX Laurent Vidal e Tania Regina de Luca (orgs.) Editora Unesp 488 páginas, R$ 54,00

Os imigrantes franceses no Brasil, geralmente pouco visíveis diante da presença maciça de outras etnias, é assunto deste trabalho que busca estimular estudos nesse campo. Laurent Vidal e Tania Regina organizaram o livro em cinco temáticas que tratam, principalmente, sobre as imagens e realidades da imigração, as atividades urbanas e as colônias agrícolas, a terra de refúgio e algumas trajetórias e memórias individuais. Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br

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ficção

Campo em branco

Emilio Fraia

Para Julia

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a rodoviária, ele recusou o táxi, a bagagem era pouca e a empresa tinha arrumado uma pensão no centro, não deve ser longe. Sumiu pela rua lateral, de calçamento de pedra e um barulho distante de gente bebendo e falando, as fileiras de casas velhas e iguais faziam os telhados subir iguais, por cima de janelas e sacadas de ferro que se repetiam até o céu, todas iguais. Em menos de meia hora, uma mesma ladeira voltou de novo e de novo (a cidade é pequena, confusa). Economizou dinheiro jantando um misto-quente e no escuro do quarto o ventilador trepida, parece que vai se soltar do teto e cair feito um boeing. Não muda muito e acontece assim: 1) a visita ao hospital da cidade; 2) a falsa apresentação como familiar; 3) o papo informal com o médico; 4) e se tudo corre bem, uma cópia do histórico de consultas e internações do morto. No caso do avô da Raquel foi fácil, o doutor Benaglia nem sequer fez perguntas. Com indiferença, abriu uma gaveta e entregou os documentos que comprovavam a doença cardíaca omitida pelo velho, tudo carimbado, em duas vias – o doutor Benaglia tinha os dedos tortos. Estendeu a mão, pegou os papéis, agradeceu e antes de sair, tossindo, lembrou da garganta, aproveitou pra falar da garganta, que estava irritada e doendo desde cedo. O médico vasculhou o bolso do jaleco, tirou um bloco desbotado e num garrancho, sem vontade, receitou algo (difícil de ler). Então se despediram. Na rua de novo, tentou não se perder; a casa da Raquel fica na parte antiga, do outro lado. Na passagem estreita, olhou o mapinha, seguiu pelo muro, ouvia um tambor, as vozes pareciam perto, ali, na rua, depois da igreja.

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A Raquel perguntou se ele aceitava um café. Na casa, de dois andares e uma árvore cinza na frente, ela e o avô moravam sozinhos. O avô era reitor da universidade, consertava pianos (ou algo assim). Tinha morrido há cerca de um mês. De acordo com o registro 91.937 da seguradora, o velho sofrera uma cirurgia para a retirada de um rim, há três anos. Depois, nada mais. Tinha a saúde perfeita. Mas ela devia saber, não tocou no assunto, devia saber do coração do velho, o avô mentiu para a seguradora, ela provavelmente está mentindo também. A Raquel gesticulava com a coluna inclinada: “O lugar do meu vô era ali, naquela cadeira do canto”. Ela era bonita, usava grampos no cabelo fino e foi abrindo a cortina enquanto falava, “estávamos assistindo um filme na tevê, e acho que fui até o quintal ver por que o cachorro não parava de latir, quando voltei, meu avô estava ali, no chão”, pela janela, na rua, as crianças pulavam, o ar pontilhado de confetes, “demoraram pra chegar do hospital e abracei o corpo, o rosto, as mãos. Porque aquilo ali era meu vô, mas já não era, entende?” Ela parou. Ele apoiou a pasta sobre a mesa, a mão no braço dela: estou aqui pra te ajudar (lá fora, as crianças apostavam corrida, faziam guerra), tossiu e tirou a papelada: vou estar agilizando o processo, o dinheiro deve chegar em um mês, no máximo dois. O que precisava era da assinatura dela, e tossiu: a caneta, disse, e apontou o campo em branco. Vai chover e choveu. Apesar disso o calor seguia forte. Sem camisa, deitado na cama, ele prestava atenção nas turbulências do ventilador, nas hélices que trepidavam, afundavam e pareciam rir (de soluçar), da sua


mo

magreza provavelmente. Rangiam, como se fossem despencar, dividindo-o em dois – e nenhum daqueles seria ele. Quis mais de uma vez avisar o rapaz da recepção, mas teve preguiça. Estava cansado. A luz pálida dos primeiros postes se acendeu e pela vidraça um finzinho de sol pingava no vão antes da noite, sua última na cidade. A chuva foi passando, passando. Pensou em tomar banho, talvez dar uma volta. Chapéus pontudos, cabeças de ave, de caveira, Neros e Césares, o bloco do rabanete, um corso de nuvens, de mulheres-fantasma, sereias, princesas e piratas, cameleiros e sufis, uma cortina de garoa morna– a Raquel. Forçou a vista, era ela; o batuque cresceu e a Raquel, ele tentava segui-la entre ombros, por cima de um casaco desbotado; ela surgia borrada, duplicava-se, depois sumia. Acendia, apagava. Não entravam em acordo, a Raquel que – os tambores, aquele amontoado de relâmpagos a carregou. Ele forçou na direção oposta, porque de repente também era empurrado pra dentro e dentro lideravam a correnteza um estandarte prateado e um homem vestido de touro com chifres de dois andares parecendo um ciclone que aumentava rodopiando, rodopiando, rodopi– Sentiu um puxão no braço. Quase morreu de susto e a Raquel riu (a franja na testa, os olhos escuros de sombra), tentou falar e precisou berrar porque todo um clarão de conexões, batidas, vozes, trombones, mulheres de bigode, homens de saia, os encurralava (confuso e impossível de explicar assim, aqui, desse jeito). Ela disse, tentou dizer, que uma amiga, acho que se chamava Marina, Maria, ou não era nada disso também, estava dando uma festa e que – alguém gritou e ele não en-

tendeu, mas ela falou alguma coisa como ter sido legal conhecer você, que a amiga, a festa, vamos com a gente, e obrigada por tudo, obrigada mesmo. Estava quase amanhecendo quando na frente da casa da Marta ele se despediu da Raquel. Desceu uma ladeira, e a noite voltava – a competição de vinho ruim na cozinha, a história sobre um homem que convertia leões ao cristianismo, a Raquel dançando, girando, pessoas falando ao mesmo tempo, quase que, você tem um cigarro?, quer dizer a, quando eu era criança, isso, discutindo, não dá pra saber, outra cidade, sem nenhuma razão, a Raquel descobrindo comigo o telhado, deve ser, ou ele sim, só meu pai que, minha mão no meio das coxas dela, e no fim nós, é, claro, não tinha ninguém, nada, ninguém. Desceu uma ladeira, duas, se apressou. Nas calçadas, restavam os bêbados e no lugar dos piratas e índios, a carcaça de uma poltrona velha jogada no meio da rua. Pensou em ligar para casa, não aparecer na empresa. Tomar um banho, talvez dar uma volta. Ou simplesmente ficar assim, aqui, deitado no quarto, as mãos por trás da cabeça, olhando pra cima – a competição de vinho ruim, o homem que convertia os leões, a Raquel dançando, girando, descobrindo comigo o telhado. As coxas, o vestido curto. Tudo de contornos imprecisos, girando: um tipo de mancha. Apagada, mortificada, embranque – ele tossiu, e a garganta, o ventilador acabava com ela. Emilio Fraia é jornalista, co-autor com Vanessa Barbara de O verão do Chibo (Alfaguara, 2008) e colabora com as revistas Trip e piauí. PESQUISA FAPESP 161 julho DE 2009 n

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