Dezembro 2009路 N掳 166
FAPESP
PROGRAMA DE RECURSOS HUMANOS DA ANP. o desenvolvimento
o
do Brasil quem faz é você.
PRH-ANP, Programa de Recursos Humanos da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e
Biocombustíveis, está completando 10 anos. Nesse período, a ANP investiu R$ 164 milhões em bolsas de estudo e formou mais de 4.500 alunos com essas bolsas. Em 13 estados brasileiros, milhares de alunos foram preparados para trabalhar nas indústrias do petróleo e dos biocombustíveis. O PRH-ANP inclui no currículo de instituições de ensino superior disciplinas de especialização e apoia pesquisas inovadoras que tornam o Brasil cada vez mais competitivo no cenário mundial de petróleo e gás. Os recursos do Programa são oriundos do Fundo Setorial CT-Petro, administrado pela Financiadora de Estudos e Projetos - Finep/MCT. PRH-ANP: uma década de incentivo à qualificação profissional especializada, à inovação tecnológica e ao desenvolvimento do setor.
www.anp.gov.br
ªº,p do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis
Ministério de Minas e Energia
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IMAGEM DO MÊS
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As texturas de
Marte Imagens da superfície de Marte captadas pela sonda Mars Reconnaissance Orbiter, da Nasa, revelaram detalhes da superfície erodida da Arabia Terra, vasta região de planalto ao norte do planeta vermelho. As fotos foram captadas pela HiRISE, câmera de alta resolução que opera em comprimentos de onda visíveis e em infravermelho próximo, para obter dados sobre a composição mineral. É dotada de uma lente telescópica capaz de produzir imagens com resolução inédita em missões de exploração espacial. A Mars Reconnaissance Orbiter estuda Marte desde 2006 e já enviou mais informações sobre o planeta do que todas as outras sondas da Nasa juntas, de acordo com a agência espacial norte-americana.
PESQUISA FAPESP 166 • DEZEMBRO DE 2009 • 3
166
>
DEZEMBRO 2009
16
CAPA
10
>
>
CAPA
16 Estresse e falta de sono
são os grandes inimigos de uma vida sexual plena
POLíTICA CIENTíFICA E TECNOLÓGICA
28 MEDICAMENTOS
Participação
>
ENTREVISTA
cria engrenagem Manuela
Carneiro da Cunha, que acaba de se aposentar como titular da Universidade Chicago, lança
de
coletânea de textos
Ranking chinês aponta a USP cornoa 11Sa melhor
evolução das emissões de gases estufa e o
universidade
impacto do aquecimento
do mundo
do Brasil
em ensaios clínicos 10 Antropóloga
38 Estudos mostram a
34 AVALIAÇÃO
complexa no ambiente de pesquisa
na economia do Brasil 52
35 PLANEJAMENTO
Começa a preparação da 4a Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação
> 44
Chamada do Instituto Microsoft
36 AMBIENTE
Pesquisadores identificam
áreas
Research-FAPESP
prioritárias
para
contempla projetos em biodiversidade,
conservação
bioenergia
CIÊNCIA MEDICINA
Vírus da gripe suína induz reação inflamatória
32 TECNOLOGIA
DA INFORMAÇÃO
se
no Pará
exacerbada que destrói células do pulmão 48
EPIDEMIOLOGIA
Transferência
de renda
e acesso à educação são pilares da queda
e clima
da desnutrição
infantil
no Nordeste
>
SEÇÕES 3 IMAGEM DO MÊS 6 CARTAS
7 CARTA DA EDITORA
8 MEMÓRIA
22 ESTRATÉGIAS
40 LABORATÓRIO
58 SCIELO NOTíCIAS
60
I
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EDITORIAS
> POLÍTICA
C&T
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> HUMANIDADES
> TECNOLOGIA
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SO SAÚDE
78
TECNOLOGIA
Piso bactericida
podem ser mais saudáveis que as azuis
Pele artificial
Eclipses e ocultações fornecem dados
feita
a partir de células
óxido de titânio ganha
humanas testa
prêmio internacional
eficácia de fármacos e cosméticos
para aprimorar a compreensão da
68 ENGENHARIA
estrutura dos planetas
cana-de-açúcar ao irrigar a lavoura com
por
Compostos químicos voláteis promovem o ataque, a defesa
Morte de Lévi-Strauss traz revisão de sua ciência
Estudo mostra influência da tecnologia na Revolta da Chibata
esgoto doméstico
malha metálica separa a areia do óleo
54 ECOLOGIA
78 ANTROPOLOGIA
84 HISTÓRIA
Grupo da USP aumenta produtividade da
PETRÓLEO
Filtro formado
tratado
no processo de extração 76 ENGENHARIA
e os acordos
NAVAL
IPT prepara laboratório
de convivência entre vegetais e insetos
60 LINHA DE PRODUÇÃO
72 AGRICULTURA
DO
HUMANIDADES
para
hospitais feito com nanopartículas de
64 BIOQuíMICA
52 ASTRONOMIA
s
>
70 QUíMICA
Luzes vermelhas
90 RESENHA
para crescimento de demanda de projetos de embarcações
91 LIVROS
92 FiCÇÃO
96 CLASSIFICADOS
CAPA MAYUMIOKUYAMA IMAGEM REPRODUÇÃO DE DÁNAr. GUSTAV KLlMT, 1907-08
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CARTAS
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cartas@fapesp.br
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FAPESP
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Prótese de mandíbula
As reportagens de Pesquisa FAPESP mostram a construção do conhecimento essencial ao desenvolvimento do país. Acompanhe essa evolução. • Opiniões ou sugestões Envie cartas para a redação de Pesquisa FAPESP Rua Pio XI, 1.500 São Paulo, SP 05468-901 pelo fax (11)3838-4181 ou pelo e-mail: cartas@fapesp.br • Site da revista No endereço eletrônico www.revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP na íntegra e um arquivo com todas as edições da revista, incluindo os suplementos especiais. No site também estão disponíveis as reportagens em inglês e espanhol. • Para anunciar Ligue para: (11)3838-4008 • Assinaturas, renovação e mudança de endereço Envie um e-mail: fapesp@teletarget.com.br ou ligue: (11)3038-1434 Mande um fax: (11)3038-1418 • Assinaturas de pesquisadores e bolsistas Envie e-mail para redacao@fapesp.br ou ligue (11)3838-4304 • Edições anteriores Preço atual de capa da revista acrescido do valor de postagem. Envie e-mail para redacao@fapesp.br ou ligue (11)3838-4304
Revista e site Por meio desta, desejo expressar minha gratidão por tão excelente e útil publicação. Descobri Pesquisa FAPESP navegando por sites ligados aos biocombustíveis, embora eu já conhecesse a FAPESP, pois fiquei dois anos estudando na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A versão on-line não apenas nos põe em contato com excelentes reportagens, mas também dá pronta vazão às consultas obrigatórias que precisamos fazer em nosso trabalho. Nela eu soube dos avanços nas pesquis as com o etanol de segunda geração, com querosene vegetal e sobre novas cepas de levedura, entre outras. Além disso, a revista sempre oferece a possibilidade de ampliar nosso acervo cultural em outras áreas da ciência e da tecnologia, que às vezes, por falta de tempo e de oportunidades, desconhecemos. Não poderia deixar de elogiar a estrutura clara e prática de acesso às informações forneci das no site, o formato agradável e, como se não bastasse, uma versão num ótimo espanhol! Por tudo isso, desejo reiterar meu agradecimento e incentivá-los a manter o nível de excelência. NORMA
ELENA MORA MEN
Pesquisadora adjunta do Centro de Pesquisasdo Petróleo (Ceinpet) Havana, Cuba
6 • DEZEMBRO DE 2009
• PESQUISA FAPESP 166
Como é minha área de atuação, me interessei pela reportagem que fala de reconstrução de mandíbula, da editora assistente Dinorah Ereno ("Mimese óssea", edição 165). O PMMA - polímero de poli(metacrilato de metila) - vem sendo usado em aumentos de volume estéticos na face. O grande problema é que no uso do PMMA na reconstrução da mandíbula se exclui a possibilidade do uso de implantes dentários (são fixados no osso). De qualquer maneira, é interessante ver a tentativa de substituir a mandíbula, cuja reconstrução mais apropriada é a microcirúrgica.
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Na reportagem "São Paulo S.A:' (edição 165) foram omitidos imigrantes de outras etnias. O título correto deveria ser "Imigrantes brancos" ...
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Pesquisa FAPESP nos traz um conteúdo que raramente encontramos em outras publicações. A reportagem sobre alternativas para a redução de gastos com energia elétrica ("Economia na tomada", edição 162) mostra como não nos damos conta do desperdício que a permanente ligação dos aparelhos eletrônicos nas tomadas acarreta.
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Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp,br, pelo fax (11)3838-4181 ou para a rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP, CEP 05468-901. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.
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carta da editora fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo
Sono, sonhos e prazeres
Celso Lafer
Presidente josé arana varela
vice-Presidente
Mariluce Moura - Diretora de Redação
Conselho Superior Celso Lafer, Eduardo MOacyr Krieger, Horácio Lafer Piva, herman jacobus cornelis voorwald, josé arana varela, josé de souza martins, JOSÉ TADEU JORGE, Luiz gonzaga belluzzo, sedi hirano, Suely Vilela Sampaio, Vahan Agopyan, Yoshiaki Nakano Conselho Técnico-Administrativo Ricardo Renzo Brentani
Diretor Presidente
CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ
Diretor Científico
Joaquim J. de Camargo Engler
Diretor Administrativo
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Conselho editorial LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (coordenador científico), CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTONIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, mário josé abdalla saad, PAULA MONTERO, Ricardo Renzo Brentani, wagner do amaral, Walter Colli Diretora de redação mariluce moura editor chefe neldson marcolin Editores executivos Carlos Haag (humanidades), fabrício marques (POLÍTICA), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência) editores especiais Carlos Fioravanti, Marcos Pivetta (ediçÃo ON-LINE) Editoras assistentes Dinorah Ereno, maria guimarães revisão Márcio Guimarães de Araújo, Margô Negro editora de arte Mayumi okuyama ARTE maria cecilia felli Júlia cherem rodrigues fotógrafos eduardo cesar, miguel boyayan secretaria da redação andressa matias tel: (11) 3838-4201 Colaboradores Ana Lima, André Serradas (Banco de Dados), daniel neves, Danielle Maciel, Evanildo da Silveira, Laurabeatriz, Marcos Garuti, manu maltez e Yuri Vasconcelos
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instituto verificador de circulação
U
m sono frequentemente de má qualidade, com início postergado muito além do desejável noite após noite dada uma dificuldade inexplicável de adormecer ou interrompido muitas vezes, perceptivelmente ou não, por apneia ou, às vezes ainda, cortado pela insônia que irrompe subitamente no meio da madrugada, pode criar problemas sexuais – são especialistas que vêm investigando seriamente o tema, diretamente em pacientes humanos ou em ratos utilizados como cobaias, que o asseguram. E nem é preciso ter todo o conhecimento acumulado dos pesquisadores do Instituto do Sono, um dos 11 Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) apoiados pela FAPESP no estado de São Paulo, para imaginar que um rebaixamento sensível da libido e do desempenho sexual, com efeitos inclusive sobre fertilidade e gravidez, pode tirar o sono de muita gente que se vê às voltas com esses problemas. Dá para se vislumbrar aí um interminável e preocupante círculo vicioso. A reportagem de capa desta edição de Pesquisa FAPESP, elaborada pela editora assistente de ciência, Maria Guimarães, vai, entretanto, bem além desse círculo: ela traz as evidências científicas mais recentes de uma íntima e multifacetada conexão entre estresse, distúrbios do sono e uma infinidade de problemas no campo da sexualidade, da disfunção erétil entre os homens às desordens significativas no ciclo hormonal das mulheres. Assim, se já havia comprovação abundante de que a péssima combinação formada por estresse contínuo e sono fragmentado é um gatilho poderoso de problemas cardiovasculares, neurológicos, obesidade, diabetes e outros males, agora se começa a conhecer o quanto ela também afeta essa função tão vital e prazerosa que é o sexo. Vale a pena conferir, a partir da página 16. Eu gostaria de destacar uma outra reportagem ainda na seção de ciência desta edição: a que trata de uma pesquisa feita por um grupo da Universidade de São Paulo (USP) que revela o grau de destruição dos pulmões de pacientes que morreram na capital paulista depois de contraírem a gripe suína. Os pesquisadores examinaram amostras de diferentes órgãos de 21 pessoas e viram em quase todos os casos – mais precisamente em 20 deles, relata o editor de ciência, Ricardo Zorzetto, a partir da página 44 – que os pulmões apresentavam destruição em massa dos alvéolos, as bolsas microscópicas no interior das quais se dão as trocas gasosas fundamentais para a respiração e a manutenção
da vida. Em alguns casos havia também inflamação intensa e morte celular nos bronquíolos. Ora, no momento em que se inicia no hemisfério Norte a vacinação contra a infecção pelo vírus H1N1, ainda cercada de polêmica, e já começa a se estruturar a vacinação para o Brasil, com começo previsto para abril de 2010, a contribuição de um grupo de patologistas para o entendimento de por que o vírus da gripe suína provoca uma reação tão exagerada em alguns organismos, a ponto de levar à sua completa falência e à morte dos pacientes, está muito longe de desimportante. Até porque, a rigor, sabe-se ainda muito pouco da gripe suína. Na tecnologia, quero destacar a reportagem da editora assistente, Dinorah Ereno, a partir da página 64, sobre uma pele artificial idêntica à humana, desenvolvida por um grupo de pesquisa da USP, que deverá ser utilizada para avaliar a toxicidade e a eficácia de novos compostos destinados a fármacos e cosméticos. Não se trata, vale registrar, de um produto inédito: na Europa e nos Estados Unidos subsidiárias da empresa francesa L’Oréal e a norte-americana MatTek já produzem e vendem peles artificiais. Mas essa alternativa nacional criada a partir de células retiradas da pele de doadores submetidos a cirurgias plásticas reparadoras pode talvez sanar com vantagens uma necessidade da indústria brasileira exportadora, principalmente quando já não se pode mais testar cosméticos em modelos animais na Europa. No âmbito da política científica e tecnológica recomendo com ênfase a leitura da reveladora reportagem do editor Fabrício Marques, a partir da página 28, sobre a complexa engrenagem criada e em franca expansão no ambiente nacional de pesquisa por ação do crescimento significativo dos ensaios clínicos de medicamentos no país, nos últimos anos. Quando em 1996 entrou em cena a regulamentação desses ensaios, somente 30 pedidos de autorização de testes de medicamentos estavam protocolados no Ministério da Saúde. Já no ano passado, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorizou 248 testes. Esse movimento produz efeitos que vale a pena conhecer. Para encerrar, a par de nossos votos, a todos os leitores, de um final de ano alegre e gratificante e de uma estreia de 2010 pulsante, um pequeno, mas soberbo presente da equipe de Pesquisa FAPESP (sem falsa modéstia, que neste caso não se aplica mesmo): quatro páginas de “Ideias de canário”, um conto genial de Machado de Assis. Um deleite! PESQUISA FAPESP 166
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memória
Reserva biológica completa 100 anos e ganha livro com resumo de pesquisas realizadas no local
Hermann von Ihering com a mulher, Meta, na reserva
No topo da serra Neldson Marcolin
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Museu Paulista/USP
A
iniciativa de um cientista interessado na preservação de uma parte especialmente encantadora de uma floresta no topo da serra do Mar, em São Paulo, deu origem à primeira estação biológica de Mata Atlântica do país. O naturalista e médico alemão Hermann Friedrich Albrecht von Ihering visitou em 1909 a região de Paranapiacaba, hoje distrito de Santo André. Radicado no Brasil e diretor do Museu Paulista, Ihering impressionou-se com a exuberância daquele pedaço de floresta e, por sugestão de um amigo colecionador de plantas decorativas, comprou uma pequena porção de terra. O pagamento foi feito com recursos próprios e ajuda de alguns amigos. Ele já pensava em fundar “uma estação biológica, com parque e horto florestal”. Em 26 de abril deste ano a Reserva Biológica do Alto da Serra de Paranapiacaba completou 100 anos e, no mês passado, ganhou um livro em que 77 pesquisadores de várias áreas mostram os resultados de estudos científicos realizados no local. A reserva só ganhou o nome atual em 1985, quando foi tombada pelo governo do estado de São Paulo. Antes era Estação Biológica do Alto da Serra, embora Von Ihering a chamasse de Parque Cajuru (palavra indígena que significa “boca da mata”) quando a adquiriu e construiu uma casa para servir de sede. Em 1913, porém, o cientista não conseguia mais arcar
com as despesas da estação e a cedeu ao governo estadual. A administração ficou a cargo do Serviço Florestal da Secretaria de Agricultura, Indústria e Comércio e a área foi ampliada com doação e aquisição de novos terrenos. Em 1917, Frederico Carlos Hoehne veio do Museu Nacional, do Rio de Janeiro, para desenvolver um horto junto com o Instituto Butantan, que originou uma Seção de Botânica à qual a Estação Biológica estava subordinada. Hoehne foi
um dos primeiros pesquisadores brasileiros a fazer estudos sistemáticos, abrangentes e de longa duração sobre a flora nativa e temas correlatos, como biogeografia e ecologia. De 1917 a 1938, o cientista viu sua Seção de Botânica passar por várias instituições até a criação do Departamento de Botânica (mudado em 1942 para Instituto de Botânica), dirigido por ele. Até se aposentar, Hoehne trabalhou para aumentar a reserva, garantir sua preservação e desenvolver infraestrutura adequada à pesquisa científica. Construiu, por exemplo, a Casa do Naturalista, um alojamento exclusivo para pesquisadores que necessitassem passar um período maior estudando a flora nativa da região. O tamanho total da pequena reserva hoje é 336 hectares. O fato de estar situada entre
as proximidades das indústrias petroquímicas de Cubatão, na planície, e das cidades da Região Metropolitana de São Paulo, no planalto, cobra um preço alto. “A poluição atmosférica atingiu fortemente a reserva nos anos 1980 a ponto de surgirem ‘paliteiros’, árvores mortas que permaneciam em pé”, conta Márcia Inês Martin Silveira Lopes, organizadora do livro Patrimônio da Reserva Biológica do Alto da Serra de Paranapiacaba – A antiga Estação Biológica do Alto da Serra juntamente
com Mizué Kirizawa e Maria Margarida da Rocha Fiuza de Melo, pesquisadoras do Instituto de Botânica. A partir de então foram feitos trabalhos de recomposição da vegetação e pesquisas sobre os efeitos dos poluentes. “Hoje, mesmo com a poluição ambiental e as invasões ocasionais para extração de palmito e de plantas ornamentais, a área continua relativamente preservada”, diz Márcia, revelando que apenas oito vigias terceirizados tomam conta de 336 hectares. Os problemas não impedem que o velho Parque Cajuru continue como forte objeto de estudo e contemplação para pesquisadores, estudantes e visitantes. Instituto de botânica
Instituto de botânica
Hoehne (esq.) em 1933: intenso trabalho de preservação
Livro comemorativo e picada na mata, em foto de 1925 PESQUISA FAPESP 166
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entrevista
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Manuela Carneiro da Cunha
Antropóloga militante Pesquisadora, que acaba de se aposentar como titular da Universidade de Chicago, lança coletânea de textos Carlos Haag
fotos eduardo cesar
A
antropóloga Manuela Carneiro da Cunha pediu gentilmente para adiar o horário da sua entrevista para o que se revelou mais tarde ser um motivo justo: enviar uma carta aberta com várias assinaturas ao presidente da República advertindo-o dos perigos de se abrir por razões políticas uma estrada que ligaria Manaus a Porto Velho e de como isso iria afetar as populações nativas e o meio ambiente. Como ela mesma gosta de enfatizar, a militância política sempre fez parte de sua vida, foi algo extremamente importante para seu amadurecimento intelectual e várias de suas pesquisas sobre direito indigenista e sobre história indígena foram diretamente suscitadas pela importância política dos temas. Mas, como ela igualmente frisa, nunca houve uma relação simples entre percurso intelectual e militância política como está expresso num dos ensaios de seu livro mais recente Cultura com aspas (Cosac Naify, 440 páginas, R$ 69), uma coletânea de ensaios notáveis como a sua autora oferecendo um painel da produção dos últimos 20 anos da professora, aposentada como titular da Universidade de Chicago desde julho passado. Esta alma irrequieta e “política”, aliás, já é perceptível na escolha do tema de seu primeiro artigo sobre a relação entre mito e história, a partir de um movimento messiânico que ocorreu entre os
índios Canela, do Maranhão, em 1963. Na base do movimento estava o mito de Aukê, a história do menino índio que reaparece como branco e pergunta para os índios e para os brancos que armas ou utensílios eles preferem para comer e para caçar: os índios escolhem o arco e a cuia; os brancos, a espingarda e o prato. Esta seria a origem da desigualdade. No movimento iria acontecer uma nova relação de forças com os índios virando donos de fazenda e os brancos caçando na floresta e, assim, invertendo o mito e, dessa forma, mostra o artigo de Manuela, invertendo a história e a desigualdade. Assim é a antropóloga. Nascida em Portugal, filha de pais húngaros e judeus que foram para lá pouco antes da guerra, chegou em São Paulo com 11 anos. Começou a cursar física na USP, mas ao mudar-se para Paris passou a fazer matemática (é formada nessa ciência exata) e na mesma década de 1960 começou a frequentar os seminários de Lévi-Strauss. O antropólogo estava em busca de alguém que traduzisse para a matemática os seus esquemas e aceitou a jovem em seu grupo, inspirando-a mais tarde a realizar pesquisas entre os índios Krahó do Brasil Central, que acabaram por gerar Os mortos e os outros, ainda hoje um texto fundamental sobre os índios do ponto de vista do estruturalismo e da psicologia. Em 1975 viajou para a Nigéria com o marido e iniciou uma nova etapa de pesquisas focada em questões
de identidade étnica, que lhe permitiu defender sua livre-docência pela USP em 1984 sob o título Estrangeiros libertos no Brasil e brasileiros em Lagos. Sua militância política se intensificou com a participação na Comissão Pró-Índio de São Paulo e a importante presença nas discussões sobre a legislação indigenista que integraram parcialmente o texto da nova Constituição de 1988. Publicou a Enciclopédia da floresta, História dos índios no Brasil, entre outros livros. Foi professora da Unicamp, da USP, onde fundou o Núcleo de História Indígena e do Indigenismo, e até julho professora titular do Departamento de Antropologia da Universidade de Chicago. Leia a seguir trechos da entrevista que concedeu à Pesquisa FAPESP. n Como a senhora vê a participação política dos antropólogos? — Você começou falando comigo de Lévi-Strauss (ver reportagem na página 78), que muita gente acha que não se envolveu em questões políticas. Acho que há várias dimensões e modos dessa participação política, ela própria um objeto de estudo. Foi o que fez, por exemplo, nos anos 1960, Georges Balandier, antropólogo francês que se interessava particularmente pela descolonização da África. Outros fizeram interpretações explicitamente marxistas, ou melhor, inspiradas pelo marxismo, do material antropológico: é o caso de Gordelier, de Terray e vários outros da
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França. E pode-se finalmente, como Mauss e Lévi-Strauss fizeram, gerar efeitos políticos a partir de uma obra teórica. Isso para falar dos antropólogos franceses. No Brasil, o antropólogo se torna naturalmente solidário das pessoas, dos povos com os quais ele estuda e trabalha. É cada vez mais normal para antropólogos, da minha geração certamente, serem recrutados, inclusive, por essas populações para defenderem seus direitos. Hoje em dia, as novas gerações, quando chegam na situação de campo, além de terem que negociar muito mais os termos de sua aceitação do que as gerações anteriores, têm também de imediatamente oferecer uma contrapartida, que frequentemente é de ordem educacional, ou de ordem política. E quase todos os antropólogos da minha geração e das gerações que estão vindo agora estão envolvidos diretamente nessas questões. Como a senhora vê a questão ética da intervenção do antropólogo dentro das comunidades? — O primeiro princípio ético é certamente defender os direitos dessas pes soas. Isso é um princípio absoluto. Que isso tenha consequências, toda ação tem consequências. Mas não se pode pensar que o esforço teórico dos antropólogos seja uma consequência direta da sua atuação política. Não é, são dois caminhos diferentes. Tanto a prática como a teoria têm efeitos políticos. Acabei de aludir aos efeitos políticos, por exemplo, do pensamento de Lévi- -Strauss. Ele foi, entre outras coisas, um ambientalista e um defensor dos direitos dos animais antes mesmo que esses movimentos sociais se constituíssem. Mas querer entender a antropologia de um autor pela sua atuação política acho que é um erro. n
n Qual é a receita de unir bem a atuação
política e o trabalho teórico? — Ou de desunir, né? (risos) Não sei se existe grande sabedoria nisso, mas acho que é o seguinte: o trabalho teórico é um trabalho de reflexão e de recuo, que não se situa exatamente no mesmo plano. Agora, que um alimenta o outro, por exemplo, que o que aprendi com a prática política tenha influenciado profundamente meu modo de ver e tenha certamente gerado questões 12
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para a teoria, não há dúvida. Mas isso não significa que a teoria não tenha seu caminho próprio. No meu caso, a teo ria chegou antes. O que me levou para a antropologia foi Lévi-Strauss, foi o interesse pela antropologia dele, que por sua vez vinha pela minha formação matemática, que por sua vez era muito próxima, na sua concepção, do tipo de pensamento do Lévi-Strauss. Quer dizer, a matemática que estudei era uma matemática estrutural, ligada à teoria dos conjuntos. E era muito próxima do pensamento do Lévi-Strauss, que tinha uma afinidade com esse tipo de matemática. Foi essa afinidade que me levou para a antropologia. Depois de três anos como aluna do Lévi-Strauss, eu tendo tido um filho e meu marido tendo acabado a tese, nós voltamos para o Brasil e a primeira coisa que o Lévi-Strauss me disse: “Agora vá fazer campo”. Eu nunca tinha feito. Há um detalhe biográfico curioso: quando eu cheguei ao Brasil com 11 anos, nas primeiras férias de Natal, um amigo dos meus pais me convidou para ir para a casa dele, com a mulher e o filho, que moravam em Santa Catarina, no Vale do Itajaí. E ele me levou aos índios Xokleng. Eu tinha 11 anos e conhecer os índios Xokleng foi uma das primei-
A história do Brasil é uma história de opressão de várias categorias de pessoas, uma delas, muito fortemente, é a dos índios
ras experiências que tive no Brasil. Esse amigo chamava-se Alexandre Lenard, era um especialista em Bach, foi uma grande celebridade em um programa de auditório da época, que se chamava O céu é o limite. Só em 1978 é que realmente entrei nessa política, porque naquele ano houve aquela ameaça, de que eu falo em algum lugar, de um decreto de emancipação indígena, que na realidade era uma tentativa de emancipar as terras indígenas. E isso criou uma grande repulsa nos antropólogos, e não só antropólogos, mas também nos juristas e vários setores da sociedade. E a gente conseguiu se mobilizar, as pessoas estavam querendo um canal para se expressar talvez, mas houve uma mobilização extraor dinária em torno dessa questão, então, de repúdio à tentativa de emancipação compulsória dos índios, que, na realidade, era uma maneira de se apropriar das terras indígenas E seguiu-se a isso um grande movimento pela demarcação das terras indígenas – na época alguém uma vez escreveu que era até tocante ver aqueles pequenos adesivos que as pessoas punham nos carros “pela demarcação das terras indígenas”. Esse foi um momento muito marcante. Daí se seguiu a criação de várias comissões pró-índio e começamos a trabalhar em questões jurídicas, em questões históricas, mas sobretudo jurídicas, e ver o que estava acontecendo. E entre 1978 e 1988, que foi a Constituinte, tivemos 10 anos de amadurecimento das questões, através do estudo e da militância em vários pontos. Por exemplo, não sei se você se lembra que houve um tribunal Bertrand Russell, que era um tribunal de direitos humanos. E o Mário Juruna – que era um Xavante que depois foi eleito deputado, mas já era famoso por causa do gravador – foi convidado a ir para o tribunal Russell e o governo brasileiro não lhe deu o visto para ir. E isso foi o estopim de uma discussão sobre que tipo de direitos tinham os índios. Ao serem tutelados pelo Estado, se o Estado tinha esse poder de, por exemplo, negar um visto, negar um direito de ir e vir etc. E esse caso foi apenas um exemplo de questões que eram essencialmente jurídicas e que foram muito estudadas nessa época. Havia juízes nessa época, por exemplo, que diziam que os índios, por serem
tutelados, não podiam ingressar em juízo de forma autônoma e somente a Funai poderia ingressar em juízo por eles. Ora, se muitas vezes os conflitos eram entre os índios e a Funai, o que se ia fazer? Agora, isso dependia dos juízes. Havia juízes que aceitavam e juízes que não aceitavam. Quem estudou muito isso foi o professor Dalmo Dallari, que assessorou muitos desses casos. Então quando se chegou na época da Constituinte havia já um vasto cabedal, 10 anos de experiência. Então se chegou à Constituinte com uma série de percepções muito mais práticas do que antigamente do que se deveria fazer. Só para dar um exemplo dessa questão da personalidade jurídica: isso se resolveu sem que ninguém protestasse na Assembleia Constituinte, contrariamente a outros tópicos em que houve muita discussão. Como se resolveu isso? O artigo 232 da Constituição começa dizendo “Os índios, suas organizações” etc. etc. etc. O simples fato de nomear os índios e suas organizações os torna, ipso facto, personalidade jurídica. Tornam-se pessoas jurídicas pelo simples fato de serem sujeitos de uma frase, que é um daqueles milagres jurídicos. Quer dizer, a partir daí não existiam mais dúvidas sobre, por exemplo, isso, se os índios podiam ou não ingressar em juízo por conta própria. n Por que o Brasil incorpora tão mal seus
índios? Qual é a sua visão disso? — Eu não conheço nenhum país que incorpore bem os seus indígenas. Talvez Fiji, mas é um péssimo exemplo, porque querem se ver livres dos outros. Claro que a história do Brasil é uma história de opressão de várias categorias de pessoas, uma delas, muito fortemente, é a dos índios – não a única, aliás –, desde que foram escravizados, foram obrigados a trabalhar através de várias ficções jurídicas. Então há uma longa história de apropriação de mão de obra e de apropriação de terras. E, depois, o novo avatar dessa mesma opressão é essa ideia de que eles têm que ser incorporados e que essa incorporação tem que se dar pela assimilação cultural. Essa coisa começou já com a Colônia, que se atribuía o dever de evangelizar os índios. E toda essa ideologia do desenvolvimento, sobretudo a partir dos anos 50 do século XX, é uma ideologia de
assimilação, e não, como hoje em dia, um reconhecimento da importância das diferenças. Então acho que estamos num novo momento, sim. Acho que inclusive a Constituição de 1988 aponta para um novo momento, o que não impede que ainda haja muita gente retrógrada que acha que os índios são um obstáculo ao progresso, que os índios devem ser trazidos à comunhão nacional – o que, para os índios, tem significado, até agora, perderem suas terras e se tornarem uma espécie de subproletariado urbano na Amazônia. Então com o reconhecimento agora de cada vez mais terras indígenas, sua demarcação, acho que se inaugurou um novo momento. Há pessoas que questionam essa ideia de desenvolvimento, essa ideia de progresso. Então o que deve ser esse novo desenvolvimento? Quem deve beneficiar? Como deve ser medido? Pelo PIB? Pelo índice Gi ni que avalia a desigualdade? Por um índice que associe sustentabilidade e IDH? Essa é a nova questão, e não é uma questão só para os índios, é uma questão para as populações tradicionais em geral e é uma questão para a Amazônia, para o país como um todo. Quer dizer, que desenvolvimento é esse que se deve trazer? E aqui entro diretamente numa outra faceta disso, a questão da educação. A vontade e o valor da educação, hoje em dia, estão
disseminadíssimos na população brasileira. Trabalho em vários lugares da Amazônia, uma das razões principais para as pessoas saírem dos seus sítios para irem para a cidade é dar educação a seus filhos. Quer dizer, a ideologia da educação entrou no Brasil e se espalhou de modo impressionante. Agora, que educação? O que eu tenho visto da educação que se está dando a essas populações é um descalabro. É um descalabro. É uma educação completamente dissociada do que elas conhecem, que deprecia os conhecimentos tradicionais – quer dizer, a criança chega na escola e considera-se que ela não sabe nada e que deve esquecer tudo o que sabe, tudo que trouxe de casa. E isso não é válido só para a criança, é válido para os professores também. Eu tenho contado uma experiência que me chamou muito a atenção, que foi no médio rio Negro, um professor de etnia tucana dava aula em escola de uma sala só de uma pequena comunidade local. Esse professor era um excelente pescador, conhecia muito bem a mata, conhecia todas as técnicas necessárias para se viver naquela região mas se transformava quando entrava na sala de aula. Era um novo mundo, que não tinha nada a ver com o mundo que ele conhecia nem com aquele que os alunos conheciam. Só para dar um exemplo, perguntei uma vez para ele: “Você está achando PESQUISA FAPESP 166
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alguma dificuldade aqui na sua escola?”, ele disse: “Ah, sim, por exemplo, em história natural”. “E por que essa dificuldade?” “Porque não estão me fornecendo cartolina para dar aula.” Quer dizer... Ele tinha uma jiboia em casa, aliás, esse professor tinha vários bichos em casa. A dissociação era tal entre o que se aprende na escola e o que se sabe de casa que ele só podia pensar em dar aula com a cartolina. Quer dizer, a relação entre aquela teoria e o mundo que eles conhecem não era feita. Então isso significa que há uma depreciação e uma perda do conhecimento tradicional muito grande, e não há uma aquisição de uma boa educação. Então você fica numa espécie de limbo entre dois mundos. E a educação é pensada, sobretudo nessa região da Amazônia, não como um fim, mas como um meio. É esse desenvolvimento que se quer? n A senhora acompanhou bem de perto a
questão da reserva Raposa Serra do Sol e está fazendo exatamente um ano, agora, essa questão... — O governo Lula teve vários méritos nessa área indígena. Uma delas foi justamente ter homologado a área Raposa Serra do Sol e ter ido defender sua posição diante do Supremo. O ministro da Justiça também tem tido uma atuação muito positiva em reconhecer áreas indígenas, mas falta chegar até o fim, não há homologações recentes de áreas indígenas. Isso tudo é o lado positivo. Mas o problema no governo Lula é estrutural. No momento em que existe um programa de aceleração do crescimento, tal como foi definido, a partir do momento também em que é o setor das commodities e da agrope-
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cuária de exportação que está sendo o motor, digamos, o carro-chefe da política econômica brasileira, quando há conflito entre direitos indígenas e os projetos ligados, por exemplo, ao PAC, não há dúvida de que é o PAC que leva. Então o PAC segue um tipo de desenvolvimentismo que eu acharia que estava já superado. A base de sustentação do governo é fundada em alianças, algumas das quais, digamos, surpreendentes. Então, só para dar um exemplo, está-se anunciando uma estrada que é um absurdo total, que é a BR 319, Manaus-Porto Velho, que atravessa o que minha amiga Bertha Becker chama “o coração da floresta”. É uma estrada que não tem nenhuma justificativa, nem logística nem econômica, e que causaria danos enormes, tanto ambientais quanto às populações. Por que se está falando nessa estrada? Por uma conveniência eleitoral, pura e simplesmente. Uma estrada que, veja só, é paralela a uma hidrovia. Não faz sentido nenhum. Paralela ao rio Madeira. E que traria ao Amazonas todos os problemas de Rondônia porque ligaria, por estrada, Rondônia com Manaus. Porque veja, só o anúncio de uma estrada é suficiente para que haja um fluxo de população, que imediatamente se instala ao lado da estrada que se espera. E depois se diz: “Bom, mas essa população agora precisa de uma estrada”. A própria expectativa cria consequências graves, ambientais e de direitos humanos. Hoje está sendo divulgada uma carta aberta ao presidente da República, repudiando a construção da BR 319, assinada por uma série de pessoas, inclusive políticos, como o exgovernador Jorge Vianna, que nos reu-
nimos na semana passada em Chicago, numa conferência sobre a Amazônia. Quer dizer, é uma unanimidade que essa estrada é um crime e, no entanto, está-se falando dessa estrada. E mesmo que ela não se realize, está provocando efeitos. Vamos falar sobre os direitos da propriedade intelectual, um assunto que é importante para a senhora. — Nos últimos 15 anos ou mais, tenho trabalhado muito sobre a questão de direitos intelectuais. Mais de 15 anos. Não necessariamente propriedade intelectual. A gente está já acostumado a dizer “direito de propriedade intelectual” como se fosse uma coisa automática, que todos os direitos intelectuais fossem de propriedade. Essa é uma preo cupação ligada à questão de proteção dos direitos intelectuais das populações indígenas e das populações tradicionais em geral, ou seja, da proteção dos conhecimentos desse universo enorme que é o conhecimento tradicional. O conhecimento tradicional foi reconhecido pela primeira vez de uma forma muito contundente na convenção de diversidade biológica, que foi redigida e aberta para assinaturas no Rio de Janeiro em 1992. A partir daí essa questão só cresceu. O Brasil é um dos países megadiversos do mundo, como a Índia, a Malásia, a África do Sul, e tem tido uma política muito consistente de proteção do conhecimento tradicional e dos recursos genéticos dentro do território. Uma das bandeiras dessa defesa é a de pedir que passe e seja exigida a prova da origem legal do recurso genético e do conhecimento associado quando for pleiteada uma patente, e isso em qualquer lugar do mundo. Seria a exigência da legalidade da cadeia de origem desse invento. Cada invento ou cada novo cultivar, no caso da agricultura, tem que mostrar de onde veio. Então essa exigência de se dar a origem é estratégica para todos os países megadiversos, entre os quais o Brasil. Brasil, Colômbia, Peru etc. Esse mesmo reconhecimento do conhecimento tradicional e dos recursos genéticos encontra uma certa resistência quando se passa para dentro do Brasil. Ou seja, diante da comunidade internacional, o Brasil está reclamando isso, mas internamente os cientistas, sobretudo da n
área de ciências naturais, têm uma certa dificuldade em reconhecer o valor do conhecimento tradicional, o conhecimento das populações tradicionais. E há uma tendência a desmerecê-lo e há uma tendência em certos setores a achar que ele não traz nada, sob várias alegações. Como é uma entrevista da revista da FAPESP, vale a pena falar disso. A partir de certo momento, há uma bipartição da pesquisa em moléculas sintéticas por um lado e moléculas que derivam de produtos naturais. Ou seja, estão usando já a evolução natural. Com a evolução, com a importância da genética, evidentemente há uma tendência a se achar que os produtos sintéticos podem substituir os produtos naturais. Mas, então, vem um novo problema. O conhecimento tradicional conhece a atividade biológica de certos produtos naturais, então isso daria uma espécie de vantagem, uma espécie de pista inicial para os produtos naturais com conhecimento tradicional associado. Contra isso entra a tecnologia do chamado teste rápido das substâncias. Passa em altíssima velocidade para ser testado contra câncer, Aids, o que seja. Por causa dessa tecnologia de alta velocidade também se argumenta que já não se precisa da pista do conhecimento tradicional. Se isso é verdade ou não, ainda falta saber. Esse desprezo atual – atual em certos setores, apenas – pela contribuição do conhecimento tradicional acho que é muita miopia. Só para pegar um exemplo: vamos dizer que se está procurando um remédio contra câncer e os índios de certa etnia conhecem uma planta, eles não diagnosticam câncer, que tem uma atividade biológica, que é testada num laboratório de farmacologia. E vamos dizer que essa substância tenha atividade contra câncer. Eu ouvi farmacólogos dizerem que o conhecimento tradicional não trazia nada porque não era aplicado exatamente ao câncer. Só para dar um outro exemplo: os biólogos de conservação, durante muito tempo, achavam que o nível de sustentabilidade de um determinado animal dependia muito simplesmente do quanto ele se reproduzia e do quanto ele era caçado. Então, para que ele fosse sustentável, tinha que ser caçado menos que reproduzir de forma viável. Esse modelo, os seringueiros do Acre diziam que não tinha nada a ver,
Questões de direitos humanos não podem ser colocadas a reboque de outras considerações que se julguem mais importantes que não dependia disso a abundância de caça. Dependia se havia regiões em que não se caçasse, seriam os refúgios. Em havendo refúgio para caça, sempre vai haver abundância dessa presa. Muitos anos depois – e agora – o modelo mais aceito é justamente esse. É o modelo indígena. Que eles já tinham antes. Quer dizer, o modelo não é indígena, é o modelo seringueiro: abundância de caça depende exatamente da existência desses refúgios. Só para mostrar que, em várias áreas, existe um conhecimento extremamente importante. Bom, esse conhecimento tradicional tem seus próprios protocolos e procedimentos. Ele não é igual ao conhecimento que se faz nos últimos 300 anos, produzido através de certos protocolos, em laboratórios etc. Então há uma diferença, mas é uma diferença produtiva, entre os sistemas de conhecimento tradicional e os sistemas do conhecimento que temos na academia. Então é essa coexistência que acho muito importante se valorizar. E por isso estou tão irritada com a educação que se está dando a essa população. Está-se destruindo um cabedal de conhecimento, de aquisição de conhecimento, e de protocolos de inovação, porque há muita inovação, em nome do quê? De uma subeducação
que não dá acesso à produção de conhecimentos. Só dá acesso a se repetir e a se frustrar, em parte. Mas, apesar de tudo isso, a senhora ainda é otimista com relação ao Brasil? — Muito. Senão eu não estaria aqui. Se você me perguntar o que deve fazer o próximo presidente, acho que deve mudar as prioridades. É isso. Questões de direitos humanos não podem ser colocadas a reboque de outras considerações que se julguem mais importantes. Tem que levar em consideração questões de justiça. n
n A senhora acha que ainda há chance pa-
ra as questões indígenas na Amazônia? — Acho que sim, acho que está mudando. Como eu falei, acho que desde 1988, desde a Constituinte, houve uma mudança qualitativa, que não atingiu a todos na mesma medida e que tem recaídas de vez em quando também, mas há uma consciência crítica a isso. Nos anos 1970, quem questionava o progresso, a ideia de progresso tal como era entendida na época? Hoje, progresso e desenvolvimento, sim, mas não de qualquer modo. n A senhora ainda consegue pensar em matemática? — Acho que o que sobrou é uma tendência a pensar de forma estrutural, que está na minha formação. Porque a matemática é uma ciência humana, não é? Aliás, o Vico fala de matemática como ciência humana. Porque é a ciência que é criada pelo homem, quer dizer, a matemática é inteiramente criada pelo homem, ela não existe na natureza, é uma criação da mente. E o que é? É uma espécie de ordenação do mundo. É uma espécie de organização que se coloca no mundo. E acho que isso está na antropologia também que tento fazer. É. Porque isso é o fundamento do estruturalismo. Conseguir conhecer essas ilhas de estrutura, como dizia o Lévi-Strauss, no caos geral. Quer dizer, o mundo não é estruturado, mas o pensamento é capaz de estruturar algumas coisas. E, ao estruturar, ter um certo tipo de apreensão, de compreensão e de um domínio intelectual, de certa forma, sobre algumas esferas, que são poucas. E isso é o pensamento matemático: é uma certa forma n de querer organizar o mundo.
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Revelações da
Estresse e falta de sono são os grandes inimigos de uma vida sexual plena Maria Guimarães
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o corre-corre da vida urbana, o estresse vem de carona. Entre trabalho, trânsito, família, tarefas domésticas e lazer, os afazeres se sucedem e as horas de sono que o corpo pede com insistência são um luxo cada vez mais raro. Não é só o físico que resiste mal à tensão e à falta de repouso. A motivação e o desempenho sexuais também são vítimas, segundo estudos recentes. Além de sabotar uma atividade prazerosa e vital, reduzindo o desejo e causando impotência, o estresse pode também provocar infertilidade feminina e, portanto, a dificuldade de muitos casais terem filhos. “O sexo é essencial à preservação da espécie”, resume a biomédica especialista em sono Monica Andersen, do Departamento de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), para justificar seu interesse científico no assunto. De manhã cedo, quando vai à Unifesp nos finais de semana, Monica passa por jovens saindo dos bares no bairro paulistano Vila Mariana. Não pode deixar de pensar nos possíveis efeitos de trocar o dia pela noite com frequência nos dias de folga. Noites de pouco sono – a forma de estresse mais comum que a vida urbana moderna impõe ao organismo – afetam a memória, reduzem a capacidade de manter a atenção, causam hipertensão e atiçam a fome e a necessidade específica de ingerir comidas calóricas, que levam ao aumento indevido de peso, entre outras consequências indesejadas. Nos últimos meses o grupo da Unifesp liderado por Sergio Tufik, médico e diretor do Instituto do Sono, um dos 11 Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) financiados pela FAPESP, vem mostrando uma consequência da privação de sono talvez mais preocupante, para os homens, do que os males que põem a vida em risco: dormir mal pode causar impotência.
reprodução fischblut, Gustav klimt (1898)
Sonhos frustrados: privação dessa fase do sono prejudica a libido
O resultado emergiu do levantamento epidemiológico Episono, que analisou a qualidade do sono de mais de mil habitantes da cidade de São Paulo com idades entre 20 anos e 80 anos. Realizado no Instituto do Sono, esse estudo já havia revelado que um terço das mulheres que vivem em São Paulo tem insônia e um terço dos paulistanos sofre de apneia do sono, interrupções na respiração que provocam o despertar momentâneo (ver Pesquisa FAPESP nº 158). Agora põe às claras os danos que a privação de sono causa à saúde sexual. Durante o Episono, Monica fez a 467 homens uma série de perguntas sobre seu desempenho e desejo se xuais. Uma das questões em especial definia se o homem sofria de disfunção erétil: “Como você descreveria sua capacidade de ter e manter uma ereção adequada para um intercurso satisfatório?” Para a surpresa da pesquisadora, 17% deles responderam que “às vezes” ou “nunca” conseguiam. Essa taxa, que já é muito alta, sobe ainda mais depois dos 50 anos, quando 63% dos homens passam a reclamar de disfunção erétil, como detalha a equipe da Unifesp em artigo em processo de publicação na Sleep Medicine. Dos 20 aos 29 anos de idade, o problema é menos comum: 7% dos jovens se queixam do próprio desempenho sexual – mesmo assim, uma proporção completamente inesperada para essa faixa etária. A idade é o principal fator de risco para a disfunção erétil – depois dos 40, o risco aumenta. Ao avaliar a saú18
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de e os questionários junto com resultados de polissonografias, o exame mais completo para avaliar a qualidade do sono, Monica constatou que as noites maldormidas também são um verdadeiro atentado contra as ereções. O que ela demonstrou agora valer para os homens já havia sido observado anos atrás entre camundongos pelo pesquisador norte-americano David Gozal, da Universidade de Chicago, um dos maiores especialistas mundiais da área, que esteve em São Paulo em novembro para o 3o Congresso Internacional de Medicina do Sono. O efeito prejudicial da privação de sono sobre a ereção nem deveria ser tão surpreendente assim. Afinal, o bom funcionamento do pênis depende de um sistema circulatório eficiente, o que está longe de caracterizar as pessoas que têm distúrbios de sono. Em busca de marcadores genéticos ligados à propensão a desenvolver problemas eréteis, a equipe da Unifesp corroborou a complexidade que caracteriza a fisiologia da ereção. Segundo artigo que deve ser publicado em breve no Journal of Sexual Medicine, a revista mais renomada dessa área de pesquisa, a disfunção erétil aparece associada a diabetes, hipertensão, severidade de apneia do sono, idade e índice de massa corporal (a principal medida de obesidade). Todos esses problemas de saúde também estão de algum modo relacionados aos distúrbios do sono, o que torna difícil dissociá-los. O grupo pesquisou variações na sequência genética responsável por produzir a óxido nítrico sintase endotelial (eNOS), enzima responsável pela produção do óxido nítrico, um neurotransmissor com função crucial na ereção. Esse gene parecia um bom candidato para ajudar a prever os riscos de disfunção erétil, mas pelo visto não é. Ao menos na população paulistana e na alemã. “Talvez porque essas populações tenham mais tendência à obesidade”, especula Monica. Fatores de risco como o excesso de peso poderiam mascarar a associação entre alterações no gene e impotência, detectada por estudos feitos no México, em Taiwan e na Turquia. Diante desse resultado, a especialista em sono e sexo não desistiu e já encontrou outro gene promissor a indicar os riscos de disfunção erétil, que relata em artigo ainda não publicado.
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O estresse excessivo pode reduzir a fertilidade
e o desejo sexual
A base para entender o que acontece em seres humanos vem de um extenso corpo de pesquisa com ratos. Apoiados sobre ilhotas com água em volta, os ratos cochilavam durante os experimentos, mas eram privados de sono REM, a fase em que ocorrem os sonhos. É que nessa fase o cérebro desativa os músculos, fazendo os ratos encostarem o focinho na água e acordar, como uma pessoa que dorme no ônibus e apoia a cabeça no ombro do vizinho desconhecido. O efeito é parecido: um sobressalto que interrompe o sono REM. “Depois de quatro dias de privação de sono”, conta a pesquisadora, “metade dos ratos tem ereção sozinhos na gaiola”. Os vídeos do experimento não deixam dúvida. Os ratos têm ereções, se masturbam e até ejaculam. “A falta de sono desencadeia algo que aumenta a motivação sexual”, conta Monica. Pelo menos parte da explicação para esse efeito – chamado pelos pesquisadores de hipersexualidade (ver Pesquisa FAPESP nº110) – está nos hormônios. O teor de testosterona, hormônio em geral associado à masculinidade, cai vertiginosamente nos ratos privados de sono. E a concentração de progesterona, outro hormônio sexual, fica cinco vezes mais alta, de acordo com Monica. O resultado parece contradizer os problemas eréteis observados nos homens com distúrbios de sono. Monica, porém, lembra que a ereção e a ejaculação são reflexos, mas o sexo é muito mais do que isso. Ela mostrou que quando entra em cena uma fêmea receptiva, os machos impedidos de dormir têm mais dificuldade em ter um desempenho adequado. Em um artigo publicado este ano na Behavioural Brain Research, Tathiana Alvarenga, da equipe de Monica, mostra que ele cerca a fêmea e faz várias tentativas de comportamento de monta, como é normal. Mas precisa ensaiar muito mais vezes do que os ratos descansados. O problema envolve tanto a penetração como a ejaculação, que se
tornam muito mais difíceis. E preocupa porque a privação de sono não afeta só os jovens que passam a noite na balada. “Antes as pessoas dormiam com as galinhas, hoje passam as noites na internet”, compara Monica. Agora o trabalho ocupa boa parte do tempo e, quando não se abre mão de lazer, família e vida social, quem fica no abandono é o travesseiro. As mulheres, que tendem a acumular, além da profissão, as funções de mãe e de administradora da casa, também podem estar em risco e muitas vezes não conseguem dormir à noite organizando a agenda ou revisitando os acontecidos do dia. Embora a equipe de Monica ainda não saiba que danos a insônia causa na fertilidade, algumas pistas já aparecem em estudos com ratas, consideradas um bom modelo para entender o sistema reprodutivo feminino humano por ter um funcionamento neurológico e hormonal muito semelhante – a principal diferença é que o ciclo das ratas dura
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O Projeto 1. Centro de Estudos do Sono 2. Regulação neuroendócrina e efeitos do estresse sobre a função reprodutora feminina
modalidade
1. Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) 2. Projeto Temático Coordenador
1. Sergio Tufik – Unifesp 2. Janete Aparecida Anselmo Franci – USP-RP investimento
R$ 61.891,76 (FAPESP) R$ 1.077.666,13 (FAPESP)
cinco dias, em vez dos 28 humanos –, como mostra artigo que será publicado em breve no Journal of Sexual Medicine. O grupo da Unifesp privou ratas de sono REM por quatro dias em diferentes fases do ciclo hormonal. Quando a privação termina na fase do ciclo hormonal em que elas estão receptivas e, depois de descansadas, encontram um macho, a falta de sono as torna ainda mais receptivas ao ato sexual. Elas correm pela gaiola, dão pulos verticais, suas orelhas tremem e arqueiam as costas com muito mais intensidade para expor a região genital – todos sinais de intensa solicitação sexual, mais do que receptividade. O contrário acontece quando a privação de sono começa na fase não receptiva, correspondente à da tensão pré-menstrual (TPM) humana. Depois de repor o tempo de sono perdido, as fêmeas deixam bem clara sua aversão aos machos que as tentam seduzir. Elas soltam guinchos, erguem-se nas patas traseiras e atacam o pretendente com as dianteiras, como pequenas boxeadoras. Quando nas quatro patas, curvam as costas em U invertido. Depois de algumas tentativas, os machos não veem alternativa senão desistir. Tensão sexual - Análises dos níveis
hormonais dessas ratas revelaram que, como nos machos, a falta de sono afeta os teores de progesterona, provocando consequências diferentes conforme a fase do ciclo. A fisiologista Janete Franci, da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto, estuda o efeito dos hormônios no sistema reprodutivo das ratas e mostrou que o estresse pode tanto desencadear a ovulação como inibila. Na fase pós-menstrual, período que costuma ter uma duração variável, os estrogênios e a progesterona aos poucos preparam o corpo para a ovulação. A equipe de Janete descobriu que um pESQUISA FAPESP 166
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El Colossus, Francisco de Goya, 1810-18
Noites perturbadas: origem de angústias sexuais duradouras
estresse súbito e de curta duração nessa fase pode provocar uma ovulação precoce. Isso explicaria os indícios já antigos de que mulheres que sofrem estupro têm uma probabilidade maior de engravidar do que as que têm relações sexuais voluntárias. Para simular a violência sexual, os pesquisadores usaram um bastão de vidro para delicadamente estimular o colo do útero das ratas. Como esse procedimento não se compara à agressão sexual sofrida por tantas mulheres mundo afora, eles conseguiram criar uma situação de medo ao colocar um gato à vista das roedoras durante o experimento. “Vimos um pico de progesterona maior que o normal ocorrer antes do esperado”, conta Janete. Como a descarga de progesterona que antecede a ovulação foi antecipada, a pesquisadora acredita que a liberação do óvulo também aconteça mais cedo. Janete explica essa antecipação: o estresse ativa a glândula adrenal, responsável por secretar a adrenalina, o principal hormônio que induz as reações de emergência e a liberação dos hormônios progesterona e testosterona. O pico de progesterona desencadeado pelo medo, por sua vez, aumenta a concentração do hormônio luteinizante (LH), que provoca a ovulação precoce. Isso tudo só acontece na fase que corresponde à pós-menstrual, quan20
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do os estrogênios estão preparando o corpo para a ovulação. Fora dessa fase, Janete observou uma reação oposta nas mesmas condições experimentais: os níveis de LH chegam a cair em situações de estresse. “Precisamos agora estudar a viabilidade dos fetos gerados a partir de uma ovulação fora de hora”, alerta Janete. Não se sabem as consequências de fecundar um óvulo que ainda não estava completamente maduro. Assim como um grande susto pode desencadear a cascata de hormônios reprodutivos em mulheres, o estresse crônico pode levar à infertilidade. Em ratas, o grupo da USP mostrou que o estresse continuado pode estar por trás da maior causa de infertilidade – a síndrome do ovário policístico, que atinge uma em cada 10 mulheres em idade reprodutiva. Não se sabe por que nessas mulheres o óvulo fica preso dentro do folículo ovariano, cujas paredes vão se espessando e acabam formando um cisto. O resultado é uma ovulação errática, que pode acontecer duas vezes a cada ano em momentos imprevisíveis e tornam uma gravidez bastante improvável. “Muitas dessas mulheres são ansiosas”, conta Janete – uma pista de que o estresse deve fazer parte da gênese do problema. “É comum que elas desistam de engravidar, adotem uma criança e, com a tensão eliminada, engravidem logo em seguida.”
Ratas expostas a longos períodos de estresse – três horas por dia dentro de uma geladeira a 4 graus Celsius durante oito semanas – desenvolveram a síndrome do ovário policístico, segundo artigo publicado pela equipe de Ribeirão em 2008 na Endocrinology. O grupo de Janete verificou um excesso de noradrenalina no ovário dessas ratas, principalmente depois de quatro semanas de estresse. Com mais quatro semanas é como se houvesse uma exaustão da capacidade de produzir dos hormônios, que se tornam menos abundantes. “Mostramos pela primeira vez que o estresse pode causar infertilidade”, conta a pesquisadora, que descreve como a síndrome se instala em mulheres: “Se na puberdade o teor de noradrenalina de uma menina é maior que o normal, isso poderia implantar a síndrome. Depois, mesmo que a quantidade de noradrenalina liberada diminua, não há mais como tratar”. O artigo publicado no ano passado, parte do trabalho de doutorado de Marcelo Bernuci, mostrou também o envolvimento de uma região do encéfalo chamada locus coeruleus no bombardeio de noradrenalina que ataca os ovários: quando seus neurônios (de cor azul) são lesionados, as ratas não desenvolvem ovários policísticos ao longo das oito semanas do experimento. Bernuci agora está testando o propanolol, um anti-hipertensivo usado na prevenção de infartos, para bloquear a ação da noradrenalina no ovário – algo que pode se tornar uma arma no combate à síndrome do ovário policístico. No berço - Janete também verificou
que os efeitos do estresse no sexo não se limitam aos jovens e aos adultos atarefados com obrigações e lazer. Acontecimentos traumáticos logo depois do nascimento podem afetar o desenvolvimento do cérebro e ter efeitos duradouros, como mostra o trabalho em colaboração com o fisiologista Aldo Lucion, do Laboratório de Neuroendocrinologia do Comportamento da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Em ratas que sofreram repetidas separações da mãe quando recém-nascidas, diminuiu à metade o número de neurônios da região preóptica medial, uma área do cérebro envolvida no controle da ovulação, como mostra artigo deste ano na Brain Research.
mãe e filhos. O mesmo vale para humanos, alerta o pesquisador da UFRGS: “A mãe pode estar presente, mas é a qualidade da relação que importa para a criança.” Um estudo não publicado de seu grupo mostrou que filhos de mulheres com depressão pós-parto têm no sangue níveis aumentados de cortisol, um hormônio típico de estresse. “As mães com depressão pós-parto estão presentes, amamentam as crianças e cuidam delas, mas olham pouco para os filhos; o contato pelo olhar é muito importante”, conta Lucion. A reação de estresse dos bebês surpreendeu o pesquisador, acostumado à ideia de que esse mecanismo ainda não estaria formado em recém-nascidos, que não têm os sistemas nervoso e hormonal completamente desenvolvidos. “A mãe não precisa estar presente o tempo todo”, explica Lucion, “mas as crianças precisam de um cuidador estável com quem possam contar”. Em conjunto, os estudos de São Paulo e do Rio Grande do Sul deixam claro que as condições ambientais têm efeitos importantes na neurofisiologia do sexo. O estresse excessivo pode reduzir a fertilidade e o desejo sexual, o que cria problemas para quem quer ter filhos e prejudica um dos prazeres da vida. Entender melhor como isso funciona pode um dia indicar o caminho para terapias, mas desde já a prescrição clara para uma vida sexual plena é não abrir mão de boas noites de sono e evitar o estresse excessivo. Vale a pena, já dizia no século XVI o poeta francês Pierre de Ronsard: n “Viver sem volúpia é viver sob a terra”. > Artigos científicos 1. ANDERSEN, M.L. et al. Prevalence of erectile dysfunction complaints associated with sleep disturbances in São Paulo, Brazil: a population-based survey. Sleep Medicine, no prelo. 2. ANDERSEN, M.L. et al. Paradoxical sleep deprivation influences sexual behavior in female rats. Journal of Sexual Medicine, no prelo. 3. BERNUCI, M.P. et al. Locus coeruleus mediates cold stressinduced polycystic ovary in rats. Endocrinology. v. 149, n. 6, p. 2.907-16. Jun 2008. 4. CAMOZZATO, T.S.C. et al. Neonatal handling reduces the number of cells in the medial preoptic area of female rats. Brain Research. v. 1.247, p. 92-9. Jan 2009.
El Tres de Mayo, Francisco de Goya, 1814
Segundo Lucion, as separações eram breves e não causavam outros problemas a não ser a angústia do rompimento do laço materno. Nos primeiros 10 dias de vida dos ratinhos, os pesquisadores retiravam uma vez por dia todos os filhotes do ninho ao mesmo tempo, os seguravam na mão por cerca de um minuto antes de os devolver à mãe. Essa rápida separação já foi suficiente para reduzir não só o número, mas também o tamanho das células da região preóptica medial. E a alteração foi duradoura, conforme mostraram as análises do cérebro das ratas aos 11 dias, logo depois do experimento, e aos 90 dias de idade, o que corresponde nas mulheres a mais ou menos 30 anos. A alteração no cérebro parece explicar as observações publicadas no ano passado na Neuroendocrinology: fêmeas manuseadas na infância mais tarde têm alterações importantes no comportamento sexual e na fisiologia reprodutiva. As diferenças foram marcantes quando, entre 90 e 110 dias de idade, as fêmeas em período receptivo foram apresentadas a machos. As que tinham sido separadas da mãe na infância produziram menos óvulos e se mostraram menos propensas a exibir o arqueamento do dorso que indica receptividade sexual. O que parece acontecer é que, atrofiada pelas incertezas da infância, a região preóptica medial não consegue estimular a produção dos picos hormonais necessários à ovulação e ao comportamento sexual. Durante o período fértil, as fêmeas do experimento tinham um teor menor do que o esperado de noradrenalina e de óxido nítrico – além de estimular ereções, o óxido nítrico está envolvido na ovulação e na maturação dos óvulos. Como consequên cia, os níveis de três hormônios sexuais – o estradiol (um tipo de estrogênio), o folículo estimulante (FSH) e o LH – estavam mais baixos do que deveriam, sem atingir os picos de concentração necessários para desencadear a ovulação e os comportamentos sexuais. O próximo passo é entender a parte molecular e bioquímica de como o estresse afeta o desenvolvimento do cérebro. “Estamos estudando os fatores de crescimento neuronal”, conta o fisiologista. Os resultados do grupo gaúcho ressaltam a importância da relação próxima e constante entre
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Contra a parede: estresse atenta contra a vida sexual pESQUISA FAPESP 166
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Os Estados Unidos lançaram um fundo para estimular o desenvolvimento tecnológico nos países da Organização da Conferência Islâmica (OIC), que reúne 57 nações de maioria muçulmana da África, Ásia e Oriente Médio. O Fundo Global de Tecnologia e Inovação (GTIF) vai oferecer US$ 150 milhões para projetos em áreas como computação, educação, telecomunicações e tecnologias limpas. O fundo vai custear 33% dos projetos apresentados. O restante terá de ser levantado entre investidores privados. A criação do GTIF faz parte da promessa do presidente norte-americano Barack Obama de ajudar a desenvolver a tecnologia em países muçulmanos, feita num discurso histórico realizado no Egito, no dia 4 de junho. A comunidade científica dos países islâmicos reagiu com ceticismo. Sadallah Boubaker-Khaled, professor de matemática na Universidade Nacional da Argélia, avalia que a iniciativa dificilmente renderá frutos concretos. Segundo disse à agência SciDev.Net, a pouca capacidade de inovação dos países islâmicos não resulta propriamente da falta de dinheiro, mas do fato de que eles não estão prontos para se beneficiar da transferência de tecnologia e de conhecimento.
Promessa de Obama
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> Onde estão as supermáquinas Balanço divulgado em novembro mostra que os Estados Unidos concentram 277 dos 500 computadores mais rápidos do planeta, incluindo o primeiro da lista, instalado no Oak Ridge Laboratory, capaz de atingir 2,3 petaflops de processamento. Cada petaflop equivale a 1 quatrilhão de cálculos por segundo. Em segundo lugar aparece o Reino Unido, com 45, seguido pela Alemanha (27) e França (26). A China, a quinta colocada, com 21 supercomputadores, destacou-se por, pela primeira vez, abrigar uma das cinco máquinas mais velozes do mundo. Trata-se do Tianhe-1, instalado no National Super Computer Center em Tianjin, capaz de fazer 563 trilhões de cálculos por segundo. 22
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O Brasil aparece na lista com um supercomputador. Instalado no Núcleo de Computação de Alto Desempenho da Coppe/ UFRJ, está em 76º lugar da lista e é capaz de fazer 80 trilhões de cálculos por segundo. O ranking é uma iniciativa do projeto TOP500, parceria das universidades de Mannheim, na Alemanha, e do Tennessee, nos Estados Unidos, e do Lawrence Berkeley National Laboratory, também norte-americano; e se abastece de dados fornecidos pelos fabricantes de supercomputadores.
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> Mais fôlego no campo A China começa a transferir tecnologia agrícola para Moçambique. Um centro de pesquisas está sendo
construído pelo governo chinês numa área de 52 hectares perto de Maputo, capital do país africano, e deve começar a funcionar em 2010. A meta é oferecer treinamento para pesquisadores e agricultores a fim de melhorar os métodos de plantio e a produtividade no campo. Os chineses também vão introduzir em Moçambique novas variedades de milho, arroz, legumes e frutas. A iniciativa, que vai custar US$ 55 milhões, é o primeiro dos 10 centros
> O módulo russo A Rússia retomou, depois de oito anos de jejum, a construção de seu segmento na Estação Espacial Internacional (ISS), com o acoplamento do módulo de equipamentos para experiências científicas Poisk. O país já havia integrado à estação os módulos Zaria, em 1998, Zvezda, em 2000, e Pirs, em 2001. O atraso
Vários laboratórios de alta segurança estão sendo construídos na União Europeia, mas alguns cientistas afirmam que o bloco já tem mais dessas instalações do que necessita. A União Europeia dispõe atualmente de seis laboratórios de nível 4 de biossegurança, nos quais é possível trabalhar com patógenos muito perigosos. Outros oito estão sendo erguidos ou em fase de projeto, com um custo estimado em € 174 milhões. A expansão acompanha o boom ocorrido nos Estados Unidos, que elevou nos últimos anos o número de laboratórios de 7 para 13. Cientistas ouvidos pela revista Nature lembram que os centros vão trabalhar em rede, o que será positivo. “Poderemos melhorar a resposta a ameaças em nível pan-europeu”, disse Carla Nisii, pesquisadora do Instituto Nacional de Doenças Infecciosas de Roma. Outros duvidam da necessidade dos centros. Stephan Günther, chefe do Bernhard Nocht Institute for Tropical Medicine em Hamburgo, Alemanha, sugere que a expansão foi determinada pelos temores em relação ao bioterrorismo que se seguiram aos ataques de 11 de setembro de 2001. “Antes disso, só mesmo os pesquisadores em doenças tropicais é que estavam interessados em patógenos muito perigosos”, disse.
no cronograma deveu-se a cortes orçamentários no início da década e também à necessidade de os russos se concentrarem no envio e no resgate de astronautas à ISS, depois que o desastre do ônibus espacial americano Columbia, em 2003, interrompeu as missões norte-americanas por mais de dois anos. A construção do segmento russo deve terminar até 2015 com o acoplamento de outros dois módulos científicos.
> Conflito de interesses O Parlamento da Holanda derrubou um projeto de moção que propunha banir de cargos no governo ou em laboratórios públicos o cientista Albert Osterhaus, chefe do Departamento de Virologia do Erasmus Medical Center da Universidade de Roterdã. Um dos mais proeminentes pesquisadores da Holanda, ele foi acusado de agir em causa própria em seu trabalho como conselheiro
Ilustrações laurabeatriz
Febre de laboratórios
de transferência tecnológica que a China promete instalar no continente africano. As nações da região tornaram-se grandes fornecedoras de produtos agrícolas e matérias-primas para o crescimento do gigante chinês. Chris Alden, do Instituto Sul-Africano de Relações Internacionais, disse à agência SciDev.Net que a ideia é vantajosa para os dois países. Ajudará a China a garantir o abastecimento de alimentos e, ao mesmo tempo, dará a Moçambique uma nova fonte de divisas.
oficial para assuntos de saúde. Isso porque defendeu dentro do governo o uso de vacinas como solução para controlar futuras pandemias da gripe suína, mas não informou que é sócio de duas empresas de biotecnologia que poderiam lucrar com a proposta. Albert Osterhaus é conhecido por haver ajudado a identificar mecanismos de infecção da pneumonia asiática, a Sars, e da gripe aviária, causada pelo vírus H5N1. Apesar da rejeição da moção, Osterhaus ainda será investigado. E, em reação ao escândalo, o governo holandês decidiu mudar a legislação sobre conflitos de interesses relacionada a pesquisadores. Segundo a revista Science, o ministro da Saúde holandês, Ab Klink, anunciou que todos os cientistas serão obrigados a partir de agora a revelar as suas ligações financeiras com empresas.
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Estratégias MUNDO
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O governo de Portugal anunciou que houve um investimento recorde em pesquisa e desenvolvimento no país em 2008, da ordem de € 2,5 bilhões, alcançando inédito 1,5% do PIB. Em 2007 o índice foi de 1,2%. Com a marca o país ibérico ultrapassou em termos relativos nações europeias com mais tradição em pesquisa, como a Espanha, que gastou 1,27% do PIB em P&D em 2008, ou a Irlanda, com 1,3%. “Isto é extraordinário”, disse José Sócrates, premiê do país, ao jornal O Público. “Sou de uma geração que sonhava com a meta do 1%. Atingimos esse patamar em 2007 e continuamos crescendo em 2008.” Os dados divulgados fazem parte do Inquérito ao Potencial Científico e Tecnológico Nacional de 2008. O número de pesquisadores por mil habitantes pertencentes à população economicamente ativa aumentou, entre 2007 e 2008, de 6,7 para 7,2. O índice é superior à média europeia, mas ainda fica aquém de países como a Noruega (9,9) e a Finlândia (14,5). O número de publicações de artigos científicos em coautoria com instituições de outros países aumentou de 4.719 para 5.139, entre 2007 e 2008, num sinal de internacionalização do sistema científico.
Primavera lusitana
> Repatriado e demitido Desperdiçou-se o primeiro fruto de um programa voltado para repatriar três dezenas de cientistas indianos radicados no exterior e empregá-los em altos cargos no Conselho 24
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de Pesquisa Científica e Industrial (CSIR), a principal agência científica da Índia. Shiva Ayyadurai, pesquisador com verve empreendedora e formação no Massachusetts Institute of Technology, fora contratado para ajudar a comercializar tecnologias desenvolvidas nos institutos
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do CSIR, mas acabou demitido após cinco meses de trabalho. “A oferta de emprego foi retirada porque ele não aceitou nossas condições e exigiu compensações irrazoáveis”, disse à revista Nature Samir Brahmachari, diretor-geral do CSIR. Ayyadurai nega a versão e diz que foi demitido por escrever um relatório com críticas à agência. No documento ele exigiu um posicionamento da instituição sobre as barreiras institucionais existentes para a comercialização de tecnologias. “Minha interação com os cientistas do CSIR revelou que eles trabalham num ambiente medieval e feudal”, disse Ayyadurai. Ele afirma que foi contratado com a missão de aplicar sua experiência científica e empresarial na instituição e que Brahmachari prometera a ele autoridade e orçamento para executar a tarefa. Mas o relacionamento dos dois azedou depois que o relatório veio a público.
> Fusão e
demissão
Um mês depois de comprar a concorrente Wyeth, a gigante farmacêutica Pfizer anunciou o fechamento de 6 dos 20 centros de pesquisa e desenvolvimento mantidos pelas duas empresas e a demissão de 2 mil técnicos e pesquisadores. A nova configuração da companhia, que é a maior do setor farmacêutico, contará com cinco centros de pesquisa e nove laboratórios especializados. Dos cinco centros principais, dois faziam parte da estrutura da Wyeth: um deles em Cambridge, Massachusetts, que se dedicará agora ao desenvolvimento de drogas contra doenças inflamatórias; e o outro no estado de Nova York, voltado para a pesquisa de vacinas. Os três demais pertencem à Pfizer, sendo dois nos Estados Unidos e um no Reino Unido. Terão como alvo a pesquisa de analgésicos, câncer, mal de Alzheimer e diabetes. A rapidez com que a nova empresa foi reestruturada não é usual, segundo a agência Associated Press. Em 2001, quando a Pfizer comprou a Warner-Lambert, demorou dois anos até decidir o novo formato da companhia. E quando decidiu teve de começar tudo de novo, pois comprou em 2003 a Pharmacia Corp.
> Empenho reconhecido
fotos de © base7/romulo fialdini
Por seu esforço no desenvolvimento da pesquisa no Brasil, a FAPESP recebeu no dia 24 de novembro o prêmio Integração Tecnológica, concedido pela Câmara de Comércio Argentino-Brasileira de São Paulo (Camarbra). O presidente da FAPESP, Celso Lafer, que também representou o governador José Serra, recebeu troféu e diploma. “Ao reconhecer a FAPESP, a Câmara de Comércio Argentino-Brasileira destaca a importância da criação de redes de cooperação capazes de aprofundar
o relacionamento entre os dois países”, disse. Lafer destacou o empenho no processo de intercâmbio internacional que vem se fortalecendo nos últimos anos e que projeta o nome da FAPESP no cenário mundial. “A FAPESP está buscando esse processo de internacionalização e a Argentina é um parceiro importante”, disse. Apesar disso, salientou, a integração científica entre os dois países ainda é limitada. Do lado argentino, o Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (Conicet), principal agência científica do país, também recebeu o prêmio Integração Tecnológica.
Ilustrado com obras de Tarsila do Amaral (18861973), o Relatório de atividades 2008 da FAPESP foi lançado no dia 18 de novembro, com a abertura de uma exposição, na sede da Fundação, de 26 reproduções de obras da artista, ícone do Modernismo no país. Segundo o relatório, a FAPESP registrou, em 2008, o maior gasto com pesquisa em sua história, com R$ 637,85 milhões – em 2007 foram R$ 519,75 milhões. Um terço foi destinado à formação de recursos humanos, por meio de bolsas. Dois terços do dispêndio com pesquisa foram aplicados nas chamadas pesquisa acadêmica e pesquisa voltada a aplicações. O relatório destaca que a FAPESP contratou, no ano, 4.389 novos projetos de Auxílios Regulares, incluindo 69 Temáticos. Outro dado relevante é que os Projetos Temáticos passaram a ter a duração estendida de quatro para cinco anos. A Fundação contratou 123 novos projetos no âmbito do programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe), voltado para a pesquisa aplicada e a pequena empresa de base tecnológica. O ano de 2008 também marcou o lançamento de dois programas de pesquisa em temas que se apresentam como grandes desafios atuais da humanidade: o Programa FAPESP de Pesquisa em Mudanças Climáticas Globais e o Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen).
A negra e Passagem de nível III, obras de Tarsila PESQUISA FAPESP 166
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eduardo cesar
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Relatório de 2008 é lançado
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Marcello Damy de Souza Santos, fundador do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) e um dos pioneiros da física experimental no Brasil, morreu em São Paulo aos 95 anos no dia 29 de novembro. Nascido em Campinas, Damy formou-se na primeira
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turma do curso de física da Universidade de São Paulo (USP) em 1936. Trabalhou na Inglaterra no Laboratório Cavendish da Universidade de Cambrigde, com William Lawrence Bragg, Prêmio Nobel de Física, em 1938, e na volta a São Paulo fez descobertas importantes sobre raios cósmicos penetrantes junto com Gleb Wataghin e Paulus Pompeia (leia Pesquisa FAPESP de março de 2003). Construiu o primeiro acelerador de partículas que funcionou no Brasil, o betatron, instalado na USP no final dos anos 1940. Em 1968 aposentou-se da USP. Posteriormente dirigiu o Instituto de Física Gleb Wataghin da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e foi professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
> Clima de otimismo Em palestra realizada na FAPESP no dia 16 de novembro, o ministro de Meio Ambiente, Alimentação e Assuntos Rurais do Reino Unido, Hilary Benn, refutou o pessimismo em relação a negociações em torno de um novo acordo sobre eduardo cesar
miguel boyayan
> Morre o físico Marcello Damy
ilustrações laurabeatriz
Visibilidade internacional
O programa Biota FAPESP co-organizou dois simpósios na segunda edição da DIVERSITAS Open Science Conference, que ocorreu na Cidade do Cabo, África do Sul, entre os dias 13 e 16 de outubro. “Tratou-se do principal evento em 2009 na área de biodiversidade”, diz Carlos Alfredo Joly, coordenador do Biota. O primeiro simpósio abordou a utilização de dados científicos no aprimoramento de políticas públicas de conservação ambiental. O segundo tratou da estruturação de bancos de dados na área de biodiversidade e sua utilização para a tomada de decisões na área ambiental. Em ambos os casos, a experiência do Biota foi apresentada. De acordo com Joly, o papel que o Biota desempenhou sinaliza a visibilidade que o programa vem ganhando no cenário internacional. “Estamos produzindo ciência de alta qualidade e transformando-a em políticas de conservação. Isso chama a atenção de programas de outros países, que enfrentam desafio semelhante”, disse. Segundo Joly, a meta agora é transformar a visibilidade em parcerias internacionais de pesquisa. “Quando você mostra que tem grupos de qualidade, a integração é estimulada.” A participação do Biota em eventos científicos será aprofundada em 2010, Ano Internacional da Biodiversidade. Um evento com a participação de especialistas de vários países deve ser promovido pelo programa em São Paulo, no dia 22 de maio, que é o Dia Internacional da Biodiversidade.
Benn: parceria com o Brasil
> Lattes repaginado O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) lançou uma nova versão do Currículo Lattes, com um conjunto de novas funcionalidades e capacidade maior de cruzamento de dados. Acordos com a empresa Thomson Reuters, responsável pela base de dados internacional Web of Science, e com a Receita Federal do Brasil foram firmados para que a plataforma possa importar dados presentes nessas bases, cruzá-los com as informações declaradas
O governador José Serra escolheu João Grandino Rodas para o cargo de reitor da Universidade de São Paulo (USP). Além de Rodas, que é professor titular da Faculdade de Direito da USP, compunham a lista tríplice encaminhada ao governador Glaucius Oliva, diretor do Instituto de Física de São Carlos, e Armando Corbani Ferraz, próreitor de Graduação. Rodas era o segundo nome da lista. A posse será no dia 25 de janeiro, retomando uma tradição interrompida nos anos 1990, quando a ceriGrandino Rodas: posse mônia passou a ocorrer em novembro. Como o mandato da reitora Suely Vilela já se encerrou, o vice-reitor, Franco Lajolo, responderá pela instituição até a posse de Rodas. O novo reitor é graduado em pedagogia, direito, letras e música. Defendeu três mestrados: um em ciências político-econômicas pela Universidade de Coimbra, Portugal (1970), outro em direito pela Universidade Harvard, Estados Unidos (1978), e um terceiro em diplomacia, pela Escola Fletcher School de Direito e Diplomacia, nos Estados Unidos (1985). Em 1973, obteve doutorado em direito pela USP.
nos currículos e, assim, prevenir fraudes. A nova versão inclui também a Rede de Colaboração, em que é possível visualizar graficamente toda a rede de pesquisadores
que trabalharam como coautores na produção de artigos científicos citados em seus currículos. Criada em 1999, a Plataforma Lattes contém mais de 1,5 milhão de currículos.
Cecília Bastos/Jornal da USP
O novo reitor da USP
o clima, depois que Estados Unidos e China decidiram postergar para 2010 seu posicionamento sobre corte de emissões de gases estufa. “Avançamos muito nos últimos anos. Se eu dissesse há 20 anos que conseguiríamos introduzir no Reino Unido uma legislação para mudanças climáticas e redução de emissões de dióxido de carbono, ninguém iria acreditar. Mas a sociedade pressionou o governo”, disse. Segundo ele, o Brasil está emergindo como uma potência ambiental e, por isso, tem sido procurado pelo Reino Unido como parceiro na busca por um modo de vida sustentável no planeta. “Buscamos essa parceria porque o Brasil, com participação fundamental da FAPESP, produz pesquisa de classe mundial sobre mudanças climáticas, bioenergia e biodiversidade”, afirmou.
em janeiro
> No comando do comitê O Brasil, representado pelo diretor-geral do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Gilberto Câmara, presidirá em 2010 o Comitê de Satélites de Observação da Terra (Ceos, na sigla em inglês), que reúne 28 agências espaciais e 20 organizações nacionais e internacionais. A escolha foi anunciada na 23ª Reunião Plenária do Ceos, realizada entre 3 e 5 de novembro em Phuket, na Tailândia. O Ceos é responsável pela coordenação global de programas espaciais civis e pelo intercâmbio de dados de satélites de observação da Terra. De acordo com o Inpe, a presidência do Ceos reforça o reconhecimento do Brasil como líder na disseminação do uso de dados de satélites, por ter sido o primeiro a adotar uma política de acesso livre, com o programa Cbers, em 2004.
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POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA
MEDICAMENTOS
Ensaio de orquestra Participação do Brasil em testes clínicos cria engrenagem complexa no ambiente de pesquisa Fabrício Marques | ilustrações Marcos Garuti
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pesquisa clínica no Brasil experimentou um crescimento significativo nos últimos anos. Em 1996, ano em que deslanchou no país a regulamentação dos ensaios clínicos, havia apenas 30 pedidos de autorização de testes de medicamentos protocolados no Ministério da Saúde. Já no ano passado chegou a 248 o número de testes aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), órgão encarregado de autorizar e controlar estudos com medicamentos e produtos de saúde. Tal avanço produziu um impacto no ambiente de pesquisa do país. Fez surgir em boa parte dos hospitais brasileiros departamentos com pessoal especializado em pesquisa clínica. Com isso, os hospitais tornaram-se capazes não apenas de prestar assistência aos pacientes, mas também de submetê-los a testes de novos medicamentos ou de remédios já conhecidos porém utilizados em novas indicações, em busca da validação científica de seus efeitos clínicos e farmacológicos. Do lado da indústria farmacêutica, a disseminação dos ensaios ajudou a desenvolver uma complexa engrenagem exigida para fazer cumprir a legislação. “Uma conjugação de fatores, como a lei de patentes, que proibiu a indústria nacional de copiar medicamentos, a criação de
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normas claras para a pesquisa clínica e a profissionalização dos centros de investigação, criou um círculo virtuoso que vem qualificando o Brasil a participar cada vez mais desses estudos”, diz Dagoberto Brandão, diretor da PHC Pharma Brasil, consultoria de ensaios clínicos. Estima-se que, nos últimos 10 anos, mais de 100 mil brasileiros participaram de estudos clínicos. Cerca de 550 instituições médicas e centros de pesquisa no país estão qualificados para fazer os testes de medicamentos. São centros como o Instituto do Câncer de São Paulo Octávio Frias de Oliveira, vinculado à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP),
que atualmente participa de 35 ensaios, na maioria de moléculas de possíveis medicamentos, e vai implantar em breve outros 60 testes. “Criamos uma estrutura dedicada à pesquisa clínica. São 30 pessoas, entre pessoal da área financeira, que cuida do orçamento dos estudos e negocia com as empresas; pessoal jurídico, incumbido das questões contratuais; pessoal da área reguladora, que monitora a aprovação em comitês de ética; e enfermeiras e oncologistas, que atuam na parte assistencial”, afirma Paulo Hoff, professor da FMUSP e diretor clínico do instituto. Além dos hospitais e da indústria farmacêutica, um complexo conjunto
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de atores precisa entrar em cena para que os testes se realizem. Tome-se o caso da Recepta Biopharma, empresa brasileira de pesquisa e desenvolvimento de anticorpos monoclonais para tratamento do câncer, que começou suas atividades com um portfólio de anticorpos pesquisados e validados pelo Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer. Seu ensaio inaugural, um teste de avaliação de segurança e de eficácia de um anticorpo monoclonal em pacientes com tumor de ovário, foi o primeiro estudo clínico de fase II no Brasil para tratamento do câncer, com registro na Anvisa e no Food and Drug Administration, essencial para validação internacional do ensaio. Para organizá-lo, a Recepta precisou coordenar uma orquestra de instituições. Uma empresa de logística, a World Courier, foi contratada para distribuir em quatro estados, a menos 20 graus Celsius e com garantia de back-up de energia, os anticorpos monoclonais. “Descobri que esse serviço existia, mas que era prestado somente a ensaios clínicos de multinacionais”, diz José Fernando Perez, diretor presidente da Recepta, que foi diretor científico da FAPESP entre 1993 e 2005. A SafeLab, também da área de logística, foi incumbida de recolher e transportar o material biológico. Uma empresa de origem portuguesa, a EuroTrials, foi contratada para organizar
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e supervisionar o trâmite da pesquisa, assim como um laboratório de análises clínicas foi mobilizado para fazer todos os exames. No exterior foi necessário contratar uma empresa de auditoria para assegurar que a produção dos anticorpos monoclonais, feitos por uma empresa de biotecnologia norte-americana, e o seu acondicionamento em ampolas, feito na Universidade de Iowa, seguiram as normas da legislação. Nove hospitais em quatro estados do país estão participando do ensaio. “Para realizar suas atividades de pesquisa e desenvolvimento, a Recepta adota um modelo de inovação aberta com uma equipe própria de 32 cientistas e técnicos que opera em parceria com centros de excelência”, afirma Perez. “Uma simples terceirização da pesquisa, sem participação ativa da empresa na sua concepção e condução, levaria um projeto a competir com as demais tarefas dos cientistas dos centros de pesquisa, inviabilizando sua execução dentro dos prazos exigidos por uma empresa”, diz. A expertise da Recepta fez com que a empresa fosse convidada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) para colaborar com os quatro grupos de pesquisa que participarão, a partir de 2010, da elaboração do protocolo e execução de um ensaio clínico de fase II, no âmbito da Rede Brasileira de Pesquisa sobre o Câncer, utilizando anticorpos monoclonais na prevenção e controle de metástase em casos de câncer de mama. Outro sinal do avanço no Brasil dos testes clínicos pode ser medido pela instalação no Brasil de 17 empresas encarregadas de organizar e supervisionar o trâmite das pesquisas, servindo de 30
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elo entre a indústria farmacêutica e os centros de pesquisa hospitalares. São as chamadas CROs, sigla em inglês para organizações de pesquisa clínica, rebatizadas no Brasil de ORPCs, organizações representativas de pesquisa clínica. As CROs cuidam de todo o meio de campo dos ensaios. São as interlocutoras das instituições de pesquisa recrutadas, zelam pelo cumprimento das regras dos protocolos, auditam os resultados, cuidam do transporte de amostras biológicas e de exames, observam se as exigências legais e éticas foram cumpridas, entre outros. “Também há CROs que, como a nossa, têm uma vocação de consultoria científica”, diz a médica Maria Cecília Lorenzi, gerente de operações clínicas da EuroTrials, empresa de origem portuguesa que atua no mercado de CROs do país desde o início dessa década. “Ajudamos a desenhar o estudo, elaborar o protocolo e outros documentos envolvidos na fase clínica da pesquisa, analisar dados e treinar os centros de pesquisa”, afirma. O Brasil vem atraindo escritórios de CROs multinacionais, como a PPD e a PRA, ambas de origem norte-americana. “É comum que as multinacionais farmacêuticas contratem as CROs internacionais para organizar os ensaios em vários lugares do mundo”, diz Cecília.
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omo a grande maioria dos testes clínicos de fase II e III são conduzidos por multinacionais, Perez, da Recepta, diz ter ouvido em reuniões com CROs frases do tipo: “Professor, é uma emo-
ção conversar sobre testes clínicos em português”. Nesses casos, o protocolo vem escrito da matriz, sendo apenas traduzido e ajustado às exigências regulatórias do Brasil. “Conceber e elaborar um protocolo para um teste clínico é uma competência ainda não disseminada no país”, diz Perez. Um protocolo, ele diz, é um documento complexo que requer fundamentação científica para justificar o uso do medicamento, definir critérios de elegibilidade dos pacientes e detalhar os procedimentos médicos a serem realizados. Também há CROs brasileiras que atuam num nicho de mercado que não chega a competir com o das internacionais. Elas trabalham principalmente para empresas nacionais de medicamentos que, graças ao avanço do mercado dos genéricos, capitalizaram-se e passaram a investir mais em pesquisa e desenvolvimento. Exemplos bem-sucedidos de medicamentos desenvolvidos por empresas nacionais, como o Helleva, do Laboratório Cristália, e Acheflan, do Aché, indicam o esforço crescente, embora ainda incipiente, nessa direção. De acordo com Dagoberto Brandão, da PHC Pharma Brasil, uma CRO brasileira, o Brasil antigamente só costumava participar de ensaios na fase IV, aquela que monitora os efeitos de drogas já lançadas no mercado. “Nos anos 1990 passamos a fazer a fase III, que avalia a eficácia em um grupo grande de pacientes, e agora já há exemplos de produtos desenvolvidos desde o início, em que o risco de a pesquisa dar errado é maior”, afirma. Brandão é um dos donos da patente do Acheflan, nome comercial do primeiro anti-inflamatório feito com
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base no extrato de uma planta nativa brasileira. Sua empresa participou de todas as fases de desenvolvimento do produto, que custou R$ 15 milhões em pesquisas. “Também participamos dos ensaios de fase III do Helleva”, diz, referindo-se ao medicamento contra disfunção erétil criado no Brasil. O advento das CROs é um fenômeno mundial e está vinculado à terceirização de tarefas que não são o negócio principal das indústrias farmacêuticas. Segundo a Associação das Organizações de Pesquisa Clínica dos Estados Unidos (Acro, na sigla em inglês), 30% dos testes clínicos das fases I a IV são feitos por CROs, constituindo a etapa mais terceirizada no processo da pesquisa e do desenvolvimento de medicamentos. Segundo a associação, a principal vantagem da condução dos ensaios clínicos pelas CROs em comparação ao trabalho feito diretamente pelas empresas farmacêuticas é a redução no tempo dos testes em cerca de 30%. A inclusão do Brasil no roteiro de estudos clínicos é apontada como vantajosa por uma série de razões. “Os pacientes têm acesso a possibilidades terapêuticas que só poderiam estar disponíveis bem mais tarde”, diz Paulo Hoff. Outras vantagens são a chance dada aos médicos de conhecer padrões metodológicos consagrados e a oportunidade conferida às instituições de receber recursos financeiros das indústrias farmacêuticas. “Talvez uma das vantagens principais seja a qualificação que vamos conquistando. Se antes éramos meros participantes dos ensaios, hoje nos integramos a protocolos desde as primeiras fases e nos tornamos coadjuvantes importantes”, afirma Hoff.
Apesar dos avanços, há certo consenso de que a regulação do setor, criada para evitar que o país receba ensaios indesejados nos países ricos ou fora de padrões éticos, poderia ser menos burocratizada. Todas as instituições que se propõem a coordenar ou participar de estudos clínicos envolvendo seres humanos devem recorrer a seus comitês de ética, que analisam o protocolo e avaliam se as normas estão sendo respeitadas. Em casos específicos, como estudos com participação estrangeira, populações indígenas e reprodução humana, o estudo deve ser avaliado, após a análise do comitê da instituição, pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), que dá um parecer final.
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necessidade de aprovar o protocolo de pesquisa por dois órgãos governamentais, a Conep e a Anvisa, é apontada como uma fonte de lentidão. “Ocorre que o Conep avalia aspectos éticos, enquanto a Anvisa dá a aprovacão sanitária e avalia aspectos de segurança e metodologia da pesquisa”, diz Patrícia Ferrari Andreotti, coordenadora de pesquisa, ensaios clínicos e medicamentos novos da Anvisa. De acordo com Paulo Hoff, a duplicidade tira a competitividade do Brasil na participação de ensaios clínicos. “Países que seguem normas éticas com rigor, como o Canadá e os Estados Unidos, são muito mais rápidos na aprovação das pesquisas”, diz. Segundo ele, o ideal é que o Conep chancelasse a decisão dos comitês de ética, sobretudo quando eles perten-
cem a hospitais de ensino público e instituições de reputação consagrada. “Não faz sentido o Conep gastar dois meses para reavaliar o que os comitês de ética do Instituto Nacional de Pesquisas contra o Câncer (Inca) ou do nosso instituto já avaliaram”, diz. “Essa demora em aprovar as pesquisas, que chega a um ano no Brasil, só encontra similar na China. Mesmo nos vizinhos da América Latina a aprovação é mais rápida.” Hoff ressalva que a aprovação das pesquisas não significa abrir mão de preceitos éticos. “No caso da Anvisa, ela poderia ser mais célere ao autorizar as pesquisas e se demorar mais na hora de avaliar se o medicamento poderá ser comercializado. Não é porque a molécula foi desenvolvida no exterior que ela merece uma análise mais demorada. Critérios científicos devem sempre prevalecer”, afirma. Patrícia Ferrari, da Anvisa, diz que o órgão tem conseguido reduzir prazos. “Quando se trata de um estudo multicêntrico internacional, em que o centro tem pressa porque precisa acompanhar o cronograma seguido por outros países, temos agora em trâmite especial, mais rápido”, afirmou. Mesmo com dificuldades, diz Maria Cecília Lorenzi, da EuroTrials, as vantagens competitivas do Brasil seguem fortes. “O Brasil possui uma grande vantagem no recrutamento de doentes nas áreas terapêuticas de oncologia, sistema nervoso central, doenças cardiovasculares e diabetes. Devido ao grande potencial de inclusão de pacientes e ao ambiente de excelência para realização de pesquisas clínicas, espera-se que o Brasil venha a receber grande parte dos ensaios clínicos realizados fora dos Estados Unidos”, afirma. ■ PESQUISA FAPESP 166
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Tecnologia da Informação
Q flor de café/Eduardo Cesar
Chamada do Instituto Microsoft Research-FAPESP contempla projetos sobre biodiversidade, bioenergia e mudanças climáticas
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uatro projetos de pesquisa foram aprovados na nova chamada do Instituto Microsoft ResearchFAPESP de Pesquisas em Tecnologia da Informação, iniciativa conjunta da FAPESP e da Microsoft que busca obter avanços no conhecimento em tecnologia da informação e também alcançar aplicações de impacto social. A chamada, a terceira desde o lançamento do instituto, em 2007, incluiu projetos que apresentam forte sinergia com programas da FAPESP, como o da conservação da biodiversidade (Biota), o de bioenergia (Bioen) e o de mudanças climáticas globais. Um dos projetos contemplados é o SinBiota 2.0: pensando os próximos 10 anos. Sua ambição é desenvolver novas ferramentas computacionais para o Sistema de Informação Ambiental (SinBiota), que reúne e integra as informações produzidas pelos pesquisadores dos projetos vinculados ao Programa de Pesquisas em Caracterização, Conservação, Restauração e Uso Sustentável da Biodiversidade do Estado de São Paulo, conhecido como Biota-FAPESP. Hoje o SinBiota permite vislumbrar a distribuição das espécies catalogadas no território paulista sobre uma base cartográfica digital. O objetivo é atualizar esse sistema, incluindo ferramentas que, por exemplo, corrijam automaticamente erros de digitação dos nomes de novas espécies. O novo sis tema será modular, permitindo que no futuro sejam criadas novas interfaces capazes de propiciar o cruzamento de dados da biodiversidade, por exemplo, com informações socioeconômicas ou climáticas da região analisada. “Como o SinBiota foi concebido há 10 anos e o programa Biota está entrando numa nova fase, o momento é mais do que
miguel boyayan
derá ser aplicada ao estudo do genoma de agentes de doenças como malária e Chagas, entre outras. Coordenado por Agma Juci Machado Traina, do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da Universidade de São Paulo (ICMC-USP), o projeto Desenvolvimento de métodos e técnicas de mineração de dados para apoiar pesquisas em mudanças climáticas, com ênfase em agrometeorologia procura aperfeiçoar modelos agroclimáticos avaliando e cruzando grandes volumes de dados colhidos por sensores e de imagens de sensoriamento remoto. “A nossa meta é criar modelos e algoritmos que permitam identificar tendências e estabelecer correlações nesses grandes volumes de dados para, assim, ajudar os especialistas em agrometeorologia na tomada rápida de decisões”, diz Agma. Os novos métodos deverão permitir a previsão mais precisa e com frequência diária ou semanal de fenômenos climáticos regionais, com aplicação para a defesa civil, o tratamento de recursos hídricos e a agricultura. Biosfera - Já o projeto Desenvolvimen-
to e aplicação de uma rede de geossensores para monitoramento ambiental, coordenado por Celso von Randow, do Centro de Ciências do Sistema Terrestre (CCST) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), propõe o
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oportuno para atualizar o sistema”, diz o coordenador do projeto Carlos Joly, que é professor do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas e coordenador do Biota-FAPESP. O projeto Tecnologia da informação aplicada a genômica para bioenergia: anotação probabilística usando inteligência artificial é coordenado pelo físico Ricardo Vêncio, professor do Departamento de Genética da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo. A proposta é desenvolver métodos que utilizem a inteligência artificial (redes bayesianas) para tentar caracterizar as funções de genes da cana-de-açúcar. O projeto tem forte sinergia com pesquisadores do Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen) – uma das coordenadoras do Bioen, a pesquisadora Glaucia Mendes de Souza, participa da iniciativa. “A abordagem é inovadora porque não se limita a atribuir a uma sequência de genes de um organismo as funções já observadas numa sequência semelhante de outro ser vivo”, diz Vêncio. “A ideia é utilizar algoritmos que contemplem a incerteza contida nessa associação, de modo a caracterizar a confiabilidade do resultado”, afirma. Os resultados apoiarão pesquisas do Bioen sobre melhoramento de cultivares de cana para produção de biomassa, mas a metodologia é genérica e também po-
desenvolvimento de um sistema para coletar dados sobre as interações entre a biosfera e o ambiente da superfície terrestre em regiões heterogêneas e complexas. No primeiro experimento serão instalados 50 sensores na área de pesquisa do Programa de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera da Amazônia (LBA). Em seguida serão instalados até mil sensores na região. “Isto criará a possibilidade de monitorar com grande detalhe as pequenas variações de temperatura e umidade que ocorrem dentro e acima de áreas de floresta”, diz Randow. A rede terá capacidade de fazer medições frequentes de temperatura e umidade do ar, que ajudarão a compreender o escoamento de ar na floresta e as trocas de energia e massa, como carbono e água. O Instituto Microsoft ResearchFAPESP de Pesquisas em TI tem apoiado pesquisa na fronteira do conhecimento em Tecnologias de Informação e Comunicações (TICs) por meio de projetos com capacidade de ampliar o acesso dos cidadãos às novas tecnologias. Nas duas primeiras chamadas foram aprovados cerca de R$ 2,5 milhões para financiamento de propostas nas áreas de saúde, educação, inclusão digital, agricultura e governo eletrônico. Para a terceira chamada os recursos dis poníveis são de R$ 1 milhão. n
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Avaliação
Desempenho destacado Ranking chinês aponta a USP como a 115ª melhor universidade do mundo
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melhor do mundo, seguida por outras duas instituições norte-americanas, as universidades de Stanford e da Califórnia, Berkeley. O ranking chinês foi criado em 2003 e logo se tornou referência internacional na avaliação das universidades. Sua metodologia utiliza um conjunto de indicadores, como o número de alunos e docentes vencedores do Prêmio Nobel ou da Medalha Fields (um dos mais importantes prêmios da área da matemática) e o número de pesquisadores com artigos altamente citados na base Thomson Scientific, entre outros. Seus critérios são totalmente objetivos, ao contrário dos utilizados num outro ranking de prestígio, o da Times Higher Education, do jornal londrino The Times, no qual 40% da nota das instituições está vinculada a uma análise de pares. Um conjunto de 5 mil pesquisadores de todos os continentes é entrevistado e cada um deles indica um conjunto de universidades que considera excelentes. Como os entrevistados variam, há oscilações de um ano para o outro. Pelos critérios do Times Higher, a USP caiu de 197a para a 205a posição entre 2008 e 2009. A Unicamp também perdeu espaço, miguel boyayan
Universidade de São Paulo (USP) foi classificada como a 115a melhor universidade do mundo, de acordo com um ranking internacional de instituições acadêmicas organizado pela Universidade Xangai Jiao Tong, da China. A USP, que é a maior universidade pública do país e responde por cerca de um quarto da produção científica nacional, subiu seis posições em relação ao levantamento divulgado em 2008. O ranking também destaca o desempenho das instituições por grande área do conhecimento. A USP é a única instituição brasileira a figurar entre as 100 melhores do mundo num desses rankings setoriais, no caso, o da área da medicina clínica e da farmácia. O levantamento, que aponta as 500 melhores universidades do planeta, traz outras cinco brasileiras: a estadual de Campinas (Unicamp), entre as 300 melhores; as federais de Minas Gerais (UFMG) e do Rio de Janeiro (UFRJ), ambas entre a 302a e a 403a colocação; a federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e a estadual Paulista (Unesp), entre a 402a e a 500a posição. A Universidade Harvard emerge do ranking como a
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caindo de 249o para o 295o lugar (ver Pesquisa FAPESP nº 165). Para Suely Vilela, reitora da USP entre 2006 e 2009, a regularidade apontada pelo ranking chinês faz mais justiça ao de sempenho da USP do que as variações do levantamento britânico. “O ranking de Xangai aponta claramente uma tendência de estabilidade. E essa tendência é consistente com o que vem acontecendo na USP, com o fortalecimento dos programas de pós-graduação e o fomento contínuo à pesquisa proporcionado por agências públicas, com grande destaque para a FAPESP”, disse Suely. Segundo ela, o desempenho da USP no campo da medicina e da farmácia não é surpreendente. “Na área da saúde, temos 80 programas de pós-graduação, um patamar muito superior ao de outras áreas, como engenharias e ciências exatas e da Terra, que reúnem pouco mais de duas dezenas de programa cada uma”, afirma. O diretor da Faculdade de Medicina da USP, Marcos Boulos, diz que o desempenho no ranking tem relação direta com os investimentos públicos feitos na área da saúde. “Conseguimos apoio cada vez mais importante dos órgãos de fomento, em especial da FAPESP, e com isso podemos, por exemplo, montar laboratórios multiusuários e diversas unidades de apoio, otimizando nossas atividades de pesquisa”, disse. Para Rui Curi, diretor do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, o fato de estar entre as 100 melhores na área da saúde também é resultado da qualidade dos recursos humanos no setor. “E a demanda maior de recursos por essa área decorre da massa crítica de alto nível que temos no estado de São Paulo”, disse. Curi destaca que o ICB, com 145 pesquisadores, é uma das unidades que mais recebem n recursos da FAPESP per capita.
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Planejamento
O futuro em debate
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ntre os dias 24 e 28 de maio de 2010, especialistas, autorida des e membros da comunidade científica estarão em Brasília discutindo rumos e diretri zes para a política de ciência, tecnologia e inovação do país nos próximos anos. A 4a Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Ino vação terá como mote os desafios para integrar a ciência ao desenvolvimento sustentável. O evento foi convocado em novembro pelo ministro da Ciên cia e Tecnologia, Sergio Machado Re zende, que ressaltou a importância de estabelecer estratégias de longo prazo. “Essa conferência vem em um mo mento oportuno porque faz 10 anos que foram ampliados os recursos para a ciência e tecnologia”, disse Rezende, que destacou a relevância de iniciativas tomadas na década passada, como a criação dos fundos setoriais. “Deve mos avaliar nossos avanços e ainda propor um novo plano. Quem sabe, até mesmo, uma política de Estado que se estabeleça pelos futuros governos até 2020”, destacou. A primeira edição da conferência, realizada em 1985, debateu os desafios para o desenvolvimento do país, com destaque para áreas estratégicas, como informática, biotecnologia, química fina, além de uma política de forma ção de recursos humanos. A segunda, convocada em 2001, teve como mote a inovação e foi marcada pelo debate dos fundos setoriais. O tema da terceira conferência, ocorrida em 2005, foi o desenvolvimento econômico e abordou os temas do Plano de Ação de Ciência, Tecnologia e Inovação para o período de 2007 a 2010. Agora a palavra-chave é o desenvolvimento sustentável, com destaque para a utilização da biodiver sidade e as mudanças climáticas. “Entre os membros dos Bric [Brasil, Rússia, Índia e China], somos a única nação
Começa a preparação da 4ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação
com reais condições de crescer de acor do com os cânones do desenvolvimento sustentável”, diz o físico Carlos Aragão, secretário-geral da conferência. “Que remos chegar ao final da conferência com subsídios para que se tenha uma política de Estado que garanta tranqui lidade a quem atua na área da ciência, tecnologia e inovação e que mostre a importância do setor nas discussões que envolvam o desenvolvimento sus tentável”, afirmou Aragão. Sugestões - O evento também de
baterá outros temas focais, como a inovação, a importância da educação e o novo papel do Brasil no cenário internacional. A Conferência Nacional será precedida de conferências regio nais, que acontecerão entre os meses de março e abril em Vitória (Região Sudeste), Porto Alegre (Sul), Cuia bá (Centro-Oeste), Belém (Norte) e Maceió (Nordeste). Em paralelo, está sendo discutida a estrutura do evento nacional, como os tópicos das grandes plenárias. “Estamos recebendo suges tões bastante pertinentes, como, por exemplo, a inclusão da importância da ciência básica entre os temas”, diz Aragão, referindo-se a uma sugestão feita pelo diretor científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz, que
foi convidado a participar do conselho consultivo da conferência. Na avaliação de Brito Cruz, é preciso incentivar ainda mais a ciência básica, ao mesmo tempo que se cria a cultura de inovação nas empresas. “Não devem ser objetivos mutuamente excludentes, são complementares”, afirmou. “Os avanços do conhecimento na literatura, nas ar tes, nas humanidades, na filosofia, na fí sica da origem do Universo, na química fundamental, na teoria da evolução, nas partículas elementares e outras áreas são temas que intrigam e desafiam a huma nidade há séculos, e saber mais sobre eles é requisito essencial para participarmos mais do mundo como sujeitos, e não como espectadores somente.” Brito tam bém observou que os atores envolvidos até agora na conferência são majorita riamente vinculados ao governo federal e ressaltou a importância de convocar um espectro ainda mais amplo de vozes para a discussão, para que a conferên cia seja nacional e não somente federal. “O Conselho dos Reitores das Univer sidades Estaduais Paulistas precisa ser incluído entre os organizadores, pois suas instituições respondem por uma elevada proporção da ciência e da pósn -graduação no país.”
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Ambiente
Combate à extinção Pesquisadores identificam áreas prioritárias para conservação no Pará
Maria Guimarães
Raridades: o lagarto Stenocercus dumerilii (acima) e a salamandra Bolitoglossa paraense
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fotos teresa cristina ávila pires/mpeg
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m plena Amazônia, o estado do Pará naturalmente abriga parte da floresta exuberante característica do Norte do país. Uma amostra de apenas cinco hectares floresce no parque zoobotânico do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), próximo ao centro de Belém. Ali, árvores de copas densas já não formam um teto que impede o sol de chegar ao chão, mas à noite as cutias ainda correm discretas – e olhando para o alto é comum avistar uma ou outra preguiça passeando lentamente pelos galhos. Com o avanço das atividades humanas no estado, sobretudo agropecuárias, o desmatamento ameaça deixar a floresta restrita a ilhas protegidas como essa, pequenas demais para manter a diversidade biológica típica da Floresta Amazônica. Os pesquisadores do Goeldi decidiram descruzar os braços ante a destruição da floresta e buscam meios de atingir as metas do Programa Extinção Zero, criado pelo governo paraense em 2007. Em colaboração com a Conservação Internacional (CI-Brasil) e a Secretaria de Estado de Meio Ambiente do Pará (Sema), eles lançaram o programa Biota Pará para fazer um levantamento da fauna e da flora ameaçadas de extinção. E já foram além: propuseram áreas prioritárias para preservação no estudo Espécies ameaçadas de extinção e áreas críticas para a biodiversidade no Pará, coordenado pelas biólogas Ana Luisa Albernaz e Teresa Cristina Avila-Pires, ambas do Goeldi. Publicado em novembro na forma de um livro, o trabalho analisou quase 6 mil pontos de ocorrência de 122 espécies (50 de plantas, 23 de invertebrados, 2 de anfíbios,
Maçaranduba: árvore de até 50 metros, folhas largas e frutos miúdos, só encontrada na Região Norte
coincidem com áreas já protegidas, como terras indígenas, que deveriam passar a ser mais monitoradas. O segundo cenário inclui todos os tipos de unidades de conservação (de proteção integral e de uso sustentável). Neste caso, a recomendação também seria uma atenção especial ao manejo das terras. E o terceiro cenário abrange todas as áreas protegidas, inclusive as terras indígenas. O resultado mostrou que nem mesmo esse conjunto basta para proteger as espécies ameaçadas, ainda que haja maior esforço de manejo e monitoramento. Todos eles indicam que as várzeas do Amazonas, o leste e parte do sudeste do Pará estão sob forte ameaça e precisam de atenção urgente.
dario amaral
Meio do caminho - Segundo Teresa,
5 de répteis, 30 de aves e 12 de mamíferos). Modelos ecológicos permitiram predizer a distribuição total das 47 espécies sobre as quais havia mais dados. “Detalhamos o conhecimento da distribuição das espécies”, conta Teresa. Num encontro realizado em fevereiro deste ano, 19 pesquisadores do Goeldi e 20 especialistas de outras regiões do país discutiram as melhores maneiras de aproveitar esses dados a fim de permitir o uso sustentável do ambiente.
O estudo levou em consideração três parâmetros – as áreas já protegidas, o tipo de vegetação original e o custo para conservação tendo em vista a pressão de desmatamento em curto prazo – para gerar mapas indicando áreas a serem acrescentadas às reservas naturais já delimitadas. Também se avaliou a eficácia de três cenários distintos para a conservação das espécies ameaçadas. O primeiro considerava apenas as áreas de proteção integral existentes hoje – muitas das áreas a serem preservadas
o livro, elaborado como uma proposta concreta, já foi apresentado à Sema para que se discutam metas e estratégias de implementação. Mas o trabalho publicado está longe de ser um ponto final. “Precisamos de mais dados, por exemplo, para verificar melhor a situação do leste do estado, que está muito degradado”, conta a bióloga. As distribuições terão também de ser confirmadas para ver se as espécies em questão realmente – ou ainda – existem onde os modelos ecológicos preveem que estejam. O estudo ajudou a apontar ainda deficiências de conhecimento nas quais os pesquisadores deveriam se concentrar nos próximos tempos. Se sabe pouco sobre as plantas de algumas áreas do leste e centro do Pará. No caso das aves, as maiores lacunas estão no centro-sul e no noroeste. O centro é também pouco estudado em termos dos mamíferos que ali vivem. Há ainda muito trabalho pela frente, que pode ser reduzido caso não se tomem ações imediatas contra a degradação ambiental. Menos trabalho não é o que os biólogos dali desejam. n PESQUISA FAPESP 166
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Sob o signo de Copenhague Estudos mostram a evolução das emissões de gases estufa no país e o impacto potencial das mudanças climáticas na economia brasileira
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divulgação de dois estudos relacionados às emissões de gases estufa no país e aos prejuízos das mudanças climáticas na economia brasileira movimentou o debate entre cientistas, ambientalistas e autoridades às vésperas da Conferência de Copenhague, programada para o período de 7 a 18 de dezembro, na Dinamarca. Um dos trabalhos foi liderado por Carlos Cerri, professor do Centro de Energia Nuclear na Agricultura, no campus da USP de Piracicaba. Em artigo publicado na revista Scientia Agricola, a equipe liderada por Cerri apresentou uma estimativa da evolução das emissões brasileiras de gases causadores do efeito estufa nos últimos anos. O dado causou repercussão, porque o último inventário oficial de emissões é do ano de 1994, e animou o debate sobre a capacidade do Brasil de colaborar com o corte global de emissões, num momento em que o governo brasileiro se comprometeu a reduzir até 2020 entre 36,1% e 38,9% do lançamento de gases estufa estimado para o ano de 2020. Segundo o estudo de Cerri, que teve financiamento da FAPESP, as emissões brasileiras cresceram 24,6% entre 1990 e 2005 e mudaram de perfil. Embora o desmatamento continue sendo o principal emissor de gases estufa no Brasil, equivalendo a 51,9% do total de emissões, seu crescimento foi de apenas 8,1% no período. Já as emissões provenientes do consumo de energia,
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da agropecuária, da indústria e do lixo tiveram um aumento médio de 41%. As análises do grupo de Cerri foram feitas com base em outros estudos. “A universidade precisa se dedicar mais a esse tipo de pesquisa”, disse Cerri, que já fizera trabalhos semelhantes para o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Seu grupo se debruça agora sobre outro desafio. Está levantando opções para a mitigação dos efeitos das mudanças climáticas e simulando cenários que ajudem na tomada de decisões, tais como os desdobramentos do aumento da área plantada para a produção de bioetanol e biodiesel em substituição a combustíveis fósseis, a modernização da pecuária, com a adoção do confinamento do gado, ou as alterações no manejo do solo, com a introdução do plantio direto. Dados preliminares - A repercussão
do estudo e a ausência de dados oficiais sobre emissões levaram o ministro da Ciência e Tecnologia, Sergio Rezende, a divulgar, no final de novembro, dados preliminares do segundo inventário brasileiro de emissões de carbono, que englobará o período de 1990-2000, mas só estará concluído em 2011. Segundo o ministro, as emissões entre 1990 e 2005 aumentaram 62%. As de gases de efeito estufa em dióxido de carbono equivalente (CO2eq) do setor de energia passaram de 15,8% para 16,4%. Dos processos industriais, de 2% para 1,7%; da agricultura, de 25,4% para 22,1%; da mudança do uso da terra e florestas,
de 54,8% para 57,5%; e do tratamento de resíduos, de 2% para 2,2%. Em outro estudo de impacto, divulgado no final de novembro, foi feito um esforço para quantificar as perdas que a economia brasileira pode sofrer se os paí ses não tiverem êxito no esforço global para reverter os impactos das mudanças globais. Inspirada no relatório Stern, estudo britânico de 2006 que avaliou os efeitos na economia mundial das mudanças climáticas nos próximos 50 anos, a pesquisa Economia do Clima buscou prever o espectro dos prejuízos no Brasil. As perdas na economia até 2050 ficariam entre R$ 719 bilhões e R$ 3,6 trilhões, gerando um decréscimo entre R$ 534 e R$ 1.600 da renda anual de cada cidadão brasileiro. “Isso equivale a desperdiçar um ano inteiro de crescimento nos próximos 40 anos”, disse Sérgio Margulis, economista do Banco Mundial e coordenador técnico do estudo. Para fazer projeções, os pesquisadores mensuraram as prováveis perdas em vários setores da economia, como a pecuária, que pode sofrer uma retração de 25% devido ao déficit hídrico, além de outros impactos como o gerado pela da elevação do nível do mar em áreas costeiras. Foram simulados dois cenários de crescimento econômico para Brasil: um baseado em uma economia ambientalmente sustentável, e outro em uma economia “suja”, com elevação das emissões de CO2. As regiões mais vulneráveis à mudança do clima no Brasil seriam, segundo o estudo, a Amazônia e o Nordeste.
Seca na Ilha de Marajó, em 2005: se nada for feito, parte da Amazônia pode virar savana
Carlos Silva/Imapress/PAGOS
O aquecimento resultaria em redução de 40% da cobertura florestal na região sul-sudeste-leste da Amazônia, que seria substituída por savanas. No Nordeste, a escassez de chuvas causaria perdas agrícolas em todos os estados. “Um aspecto importante é a injustiça social que isso pode causar. O Norte, Nordeste e o Centro-Oeste seriam mais fortemente atingidos, e sabemos que as populações mais pobres são as mais afetadas dentro desse quadro”, disse Margulis. Todas as culturas do país, com exceção da cana- -de-açúcar, sofreriam perdas, em especial soja (-34% a -30%), milho (-15%) e café (-17% a -18%). A elevação do nível do mar traria prejuízos à zona costeira de R$ 136 bilhões a R$ 207,5 bilhões. A adaptação ao clima mais quente exigiria do país a instalação de uma capacidade extra de geração de energia da ordem de 25% a 31% da oferta de eletricidade de 2008, ao custo de US$ 48 bilhões a US$ 51 bilhões, dependendo do cenário. A coordenação geral do estudo coube ao professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA/USP), Jacques Marcovitch, tendo como coordenadores técnicos Sérgio Margulis, economista do Banco Mundial, e Carolina Dubeux, do programa de pós-graduação em engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe/UFRJ). O trabalho reuniu um consórcio de 11 instituições de pesquisa, formado pelas universidades de São Paulo (USP) e Estadual de Campinas (Unicamp), a Embrapa, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e a Fiocruz, entre outras. “O Brasil já é reconhecido como um país que tem avançado na questão econômica e na questão social”, disse à agência BBC o coordenador do estudo, Jacques Marcovitch. “Agora, o que pode e deve fazer é completar esses dois reconhecimentos com um terceiro. Pode ser líder nas políticas de desenvolvimento que incorporam a dimensão ambiental.” n
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laboratório mundo
> O dia a dia dos maias Murais recém-descobertos em Calakmul, no sul do México, estão revelando o dia a dia dos maias que viveram por lá há muitos séculos. Ramón Carrasco Vargas, do Instituto Nacional de Antropologia e História do México, Verónica Vázquez López, da Universidade Nacional Autônoma do México, e Simon Martin, da Universidade da Pensilvânia, descrevem 40
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na edição de novembro da revista PNAS o resultado de escavações iniciadas em 2004 em um dos sítios arqueológicos de Calakmul:
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primeiros estágios de um novo oceano
cenas bastante coloridas com grupos de mulheres, homens e crianças manipulando alimentos ou objetos do cotidiano, pintadas em paredes e construções entre os anos 620 e 700. Com até 16 cores, as pinturas revelam roupas, ornamentos, hábitos e relações sociais de um dos mais antigos povos da América Latina, hoje extinto, conhecido até agora principalmente por objetos ou monumentos que sobreviveram ao tempo.
Uma escrita semelhante a um hieroglifo acompanha algumas pinturas de Calakmul, descrevendo o dia a dia dos maias comuns.
> Cheiros da infância Ao passar embaixo de uma magnólia em flor, uma pessoa pode se sentir transportada para a casa da avó, onde brincava no jardim durante as férias da infância. Essas memórias olfativas infantis são enraizadas
Pintura em Calakmul: pessoas servindo e consumindo ul, bebida de milho pnas
Universidade de rochester
um mar no deserto
Uma fissura que se abriu em 2005 no deserto da Etiópia, no leste da África, pode ser o início de um mar, já que os processos vulcânicos em ação na fissura são quase idênticos aos verificados no fundo dos oceanos, de acordo com um estudo publicado em novem bro na Geophysical Research Letters. Para chegar a es sa conclusão, Atalay Ayele, pesquisador da Universidade Addis Ababa, na Etiópia, que coordenou o estudo, reuniu informações sobre a ativida Fissura corta a Etiópia: de sísmica na região próxima à grande fissura, que se for mou rapidamente em 2005: a abertura do solo se expandia seis metros em apenas alguns dias. Os terremotos que geraram a fissura se seguiram e a deixaram com 56 quilômetros de extensão. O vulcão Dab bahu, que havia entrado em erupção antes da formação da fissura, encheu-a de magma. Segundo Cindy Ebinger, pesquisadora da Universidade de Rochester, Estados Uni dos, coautora do estudo, intrusões de magma em aberturas como essa na superfície do deserto da Etiópia podem formar morros no fundo do mar. O que não se sabia e que este tra balho deixou claro é que as superfícies podem se romper e os morros crescer em apenas poucos dias.
Nevit Dilmen - wikimedia commons
Em 1898, homens que cons Menos sombra truíam uma ferrovia em Tsavo, e escuridão no sul do Quênia, foram mortos e comidos por dois leões. Um pesadelo digno de filme, imortalizado em A sombra e a escuridão. A história terminou quando os leões antropófagos foram mortos e, depois, depositados no museu de história natural de Chicago, o Field Museum. Até agora o número de vítimas era um mistério – partindo de 28, as estimativas inflaram até chegar a 135. O caso ficou fechado até agora, quando um grupo coordenado por Justin Yeakel e Nathaniel Dominy, da Universidade da Califórnia em Santa Cruz, colheram pelos e colágeno dos ossos dos leões para chegar a uma contagem mais confiável. Eles mediram os teores de isótopos estáveis para estimar a proporção em sua dieta de itens novos – carne humana, preciosa em tempos de escassez do alimento habitual (PNAS). Os resultados mostram que, embora caçassem juntos, a dieta dos dois leões não era idêntica. Ao longo dos ataques, os autores estimam que um deles comeu 10,5 pessoas e o outro, 24,2 – um total de 35 pessoas, bem distante das mais de 100 que entraram para a lenda. O trabalho também abre uma janela sobre o comportamento cooperativo de leões, que podem manter uma longa parceria mesmo que o butim não seja dividido de maneira equitativa.
atividade cerebral que envolve o hipocampo, associado à memória, e a amígdala, zona do cérebro central no processamento de emoções. E só vale para o olfato, o mesmo não acontecendo quando os pesquisadores substituíram cheiros por sons.
> Poluição altera lagos dos Alpes Mesmo lagos nos Alpes podem atestar os efeitos do uso excessivo de fertilizantes agrícolas e de combustíveis fósseis. Uma análise de 90 lagos de água doce nos Estados Unidos, na James Elser/universidade estadual do arizona
no cérebro, mas um grupo do Instituto Weizmann de Ciência, em Israel, mostrou que o especial não é a infância. Yaara Yeshurun, Noam Sobel e Yadin Dudai constataram que, quando um cheiro é encontrado pela primeira vez em um contexto específico, ele deixa uma marca duradoura no cérebro (Current Biology). A descoberta veio de um experimento em que voluntários viam imagens associadas a cheiros. Depois reviam as imagens e buscavam lembrar a que cheiro estavam associadas, enquanto a atividade do cérebro era monitorada por um aparelho de ressonância magnética funcional. Uma semana depois, apresentados a combinações diferentes de imagens e cheiros, talvez os participantes do experimento se lembrassem de ambas. Mas a primeira era acompanhada de uma assinatura específica de
Humanos, dieta alternativa
Montanhas Rochosas: águas com mais nitrogênio
Suíça e na Noruega publicada na Science em novembro indicou teores elevados de nitrogênio também em lagos distantes de cidades e plantações. A equipe de James Elser, especialista no estudo de água da Universidade Estadual do Arizona, Estados Unidos, à frente do estudo, concluiu que a ecologia dos lagos está se modificando, à medida que as plantas aquáticas, o fitoplâncton, recebem mais nutrientes como nitrogênio e fósforo e crescem mais. O problema é que o fitoplâncton dependente de fósforo é um alimento pobre para animais aquáticos, o zooplâncton. Os efeitos dessas mudanças ainda são desconhecidos, mas esse e outros estudos ajudam a formar um quadro mais amplo do efeito global do uso de nitrogênio e da poluição sobre ambientes naturais antes considerados intocados pela ação humana.
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laboratório Brasil
Apesar dos fiscais que visitam casas e procuram por focos do mosquito Aedes aegypti, o transmissor da dengue, surtos da doença se sucedem ano após ano. Um estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), coordenado pela pesquisadora Nildimar Honório, traz uma possível explicação: a transmissão da dengue pode ocorrer mesmo com baixa infestação. Pelo menos é o que indicam dados de três bairros do Rio de Janeiro – Higienópolis, Tubiacanga e Palmares (PloS Neglected Tropical Diseases). A maior incidência da doença foi encontrada em Palmares, uma favela no subúrbio, onde a densidade de mosquitos se mostrou menor, mas as condições precárias das casas não protegem os moradores dos insetos. Tanto em Palmares como em Tubiacanga, localizados em áreas mais isoladas, os maiores níveis de infecção estão concentrados nas áreas de comércio e em zonas de paradas de ônibus, onde mais pessoas circulam. Já em Higienópolis, um bairro central, a dengue ocorre de maneira mais homogênea. O estudo reforça a ideia de que as pessoas são mais eficientes do que os mosquitos em transportar a doença entre comunidades e dentro delas.
Favela: transmissão com pouco mosquito
> Berçário amazônico Quem caminha por uma floresta vê o solo repleto de sementes caídas e pequenas plantas, ainda com poucas folhas, que brotam por entre as folhas em decomposição. Uma imensidão vegetal que muitas vezes não entra na contabilidade da diversidade da flora. Mas agora se tornou mais fácil identificar essas plantas incipientes, pelo menos na Amazônia. O primeiro volume do Guia de propágulos e plântulas da Amazônia acaba de ser publicado pela editora INPA, do Instituto Nacional 42
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de Pesquisas da Amazônia. Ricamente ilustrado com fotografias de sementes – inteiras, no fruto e cortadas de várias maneiras –, detalhes de folhas e plantas em vários
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> Onde o Cerrado começou
estágios de desenvolvimento, cada dupla de páginas do primeiro volume traz uma régua e um índice de cor. Por enquanto só de 50 espécies, escolhidas principalmente por serem comuns na Amazônia Central.
reprodução
Fabio venni/wikimedia
Dengue sem fronteiras
Envira-bobó: da semente à planta com 11 centímetros
Marcelo Simon, pesquisador da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia e da Universidade de Oxford, desfez a explicação antiga de que as plantas que hoje formam o Cerrado haviam migrado da Amazônia ou da Mata Atlântica. À frente de um estudo publicado na PNAS, Simon mostrou que o Cerrado formou-se in situ, na própria região que hoje ocupa, por meio da colonização e diversificação de plantas adaptadas a incêndios naturais periódicos, mais do que pela dispersão de linhagens já adaptadas ao fogo em outros ambientes. As análises de genes e de fósseis de grupos de
2 milhões de quilômetros quadrados no Brasil, Bolívia e Paraguai, o Cerrado perde em extensão apenas para a Amazônia.
Paladar de formiga: brasileiro consome açúcar disfarçado
> Aviso ignorado por radares Os radares e os satélites de previsão meteorológica não previram as chuvas intensas que alagaram Blumenau e outras cidades do Vale do Itajaí, em Santa Catarina, em novembro de 2008. Portanto, podem voltar a não funcionar para prevenir a chegada de outros episódios climáticos extremos, alerta Reinaldo Haas, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Em um seminário promovido pela Fundação Bunge na Universidade de São Paulo, ele comentou que Marcelo Simon – Embrapa
plantas típicas do Cerrado, como Mimosa, Andira e Lupinus, indicaram que a maioria das cerca de 10 mil espécies de plantas do Cerrado (quase metade exclusivas) deve ter começado a se diversificar, gerando outras espécies, há cerca de 4 milhões de anos, coincidindo com o surgimento de gramíneas resistentes a incêndios e à expansão desse tipo de vegetação, classificada como savana, pelo mundo. Nessa época as florestas que hoje cercam o Cerrado já estavam formadas havia dezenas de milhões de anos. Cobrindo
miguel boyayan
O doce oculto
Os brasileiros consomem açúcar mais de modo indireto, na forma de produtos industrializados como balas, biscoitos, chocolates e refrigerantes (60% do total consumido), do que direto, comprando pacotes de 1 kg ou 5 kg (40% do total). O tipo de açúcar mais vendido é o refinado (80%), enquanto o cristal responde por apenas 20% das compras entre os consumidores no varejo, embora predomine entre as indústrias alimentícias. Um grupo de pesquisadores da Escola Superior de Agronomia Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP), em Piracicaba, chegou a essas proporções após consultar cerca de 300 usinas produtoras de açúcar e empresas atacadistas, com apoio financeiro da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica). Os números absolutos do consumo de açúcar per capita devem ser apresentados nos próximos meses. Em um estudo publicado em 2006 na Revista Brasileira de Epidemiologia, pesquisadores da Faculdade de Saúde Pública da USP, da Esalq e da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) mostraram que 84% de um grupo de 390 adolescentes residentes em Piracicaba consumia mais açúcar que o recomendado e sugeriram medidas educativas que enfatizassem a redução do consumo de açúcar.
Nas veredas: bioma do Brasil Central surgiu ali
os equipamentos não detectaram a iminência da tragédia catarinense porque as chuvas se formaram em regiões de baixa altitude, muito próximas da superfície. “É um fenômeno climático ainda pouco conhecido”, relatou. “Um amigo me telefonou contando que via a chuva, mas não escutava o barulho da chuva.” Ele havia detectado a chegada de chuvas intensas à região por meio de modelos climáticos computacionais com que trabalha com seu grupo na UFSC. “Avisamos a defesa civil 10 dias antes, mas não fomos ouvidos.” Prakki Satyamurty, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), lembrou que o desmatamento de encostas de morros ampliou bastante o efeito das chuvas. “Encostas não deslizam à toa”, disse. Segundo Haas, a cidade catarinense de Tubarão viveu uma tragédia ainda pior em 1974, quando chuvas intensas, de causas diferentes das de 2008, deixaram 199 mortos e cobriram 80% da cidade.
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ciência Medicina
Reação
desmedida Causador da gripe suína, o vírus influenza A (H1N1) induz inflamação que destrói células do pulmão Ricard o Zorzet to
CDC
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m meio à primavera chegou ao fim no Brasil a temporada de gripe de 2009, na qual o principal vilão foi o vírus influenza A (H1N1), causador da gripe suína, a primeira pandemia deste século. Na segunda semana de outubro o Ministério da Saúde registrou no país apenas 78 casos graves de infecção pelo vírus, uma redução brutal (97%) em comparação com o pico de ocor rência da enfermidade na segunda semana de agosto. Em seis meses o H1N1 deixou ao menos 19 mil brasileiros com febre alta, do res musculares intensas e uma angustiante falta de ar e matou 1.368 – quase um terço dos 4.735 óbitos por gripe contabilizados no mundo nesse período em que foram confirmados 399 mil casos. Enquanto o Brasil e outros países começavam a se pre parar para a segunda onda de gripe suína, que já se espalha pelo hemisfério Norte com a proximidade do inverno, pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) con cluíam as primeiras análises dos prejuízos causados no organismo pelo H1N1. Nos ca sos mais graves, verificou o grupo paulista, o corpo reage com uma ofensiva imunológica tão intensa que mata o vírus, mas também provoca destruição nos pulmões tão grave a ponto de fazê-los parar de funcionar. O sinal mais evidente desse estrago é a falta de ar (dispneia) intensa, bastante frequente nas pessoas que desenvolveram a forma mais grave – e por vezes letal – da gripe suína. “Todo médico deve ficar aler
ta a esse sintoma, indicador de que a infecção pode ser mais grave”, afirma a patologista Thais Mauad, da USP, primeira autora do estudo publicado on-line em 29 de outubro no American Journal of Respiratory and Critical Care Medicine, o primeiro a descrever de modo sistemático as lesões fatais induzidas pelo H1N1. Thais e outros 14 pesquisadores da Faculdade de Medicina da USP que tra balharam sob a coordenação dos pato logistas Paulo Hilário Saldiva e Marisa Dolhnikoff chegaram a essa conclusão ao examinar amostras de diferentes ór gãos de 21 pessoas mortas na cidade de São Paulo em decorrência da gripe suína. “Esses casos são representativos das regiões Sudeste e Sul, que concen traram o grosso das ocorrências no país”, afirma a epidemiologista Denise Schout, da equipe da USP.
Antes da vacina: bióloga avalia qualidade de ovo, usado para gerar cópias de vírus como os da página ao lado
casos – precisamente 20 dos 21 –, os pulmões apresentavam destruição em massa de alvéolos, bolsas microscópicas no interior das quais ocorrem trocas ga sosas. Em uma proporção menor (29% das pessoas), havia também inflamação intensa e morte celular nos bronquío los, ramificações dos tubos que condu zem o ar da traqueia até os pulmões, enquanto em 24% dos casos também foi detectado sangramento (hemorra gia), decorrente do rompimento dos vasos que irrigam os alvéolos. “O tipo de dano encontrado é se melhante ao que já se observou em outras pandemias de gripe, como a de 1918, a de 1957 e a de 1968, embora nas anteriores, em especial na primeira, a taxa de mortalidade fosse muito mais elevada”, comenta Thais. Outro achado chamou a atenção dos pesquisadores: 38% desses pacientes também apre sentavam infecção por Streptococcus pneumoniae, bactérias causadoras de problemas nas vias aéreas. “Em casos como esses é importante associar anti bióticos ao tratamento com antivirais”,
James Gathany/CDC
Danos intensos - Em quase todos os
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Por dentro do vírus Hemaglutinina Proteína da superfície usada para aderir às células das vias respiratórias
Neuraminidase Proteína que auxilia o vírus a sair de uma célula infectada e invadir outra
cdc
Material genético Oito genes armazenados em uma fita simples de ácido ribonucleico (RNA)
diz Thais. “Essas informações ajudam a compreender como a infecção se instala e avança e, no futuro, podem orientar o tratamento”, comenta Denise. Assassinas naturais - A concentra
ção dos danos nos pulmões não sig nifica que o H1N1 atinja apenas esses órgãos. Na quase totalidade dos casos, o vírus invade as células que recobrem internamente as vias aéreas superiores (nariz e garganta), provocando ape nas os sinais típicos de gripe: tosse, dor e coriza. Apenas em uma proporção muito pequena o H1N1 escapa à ca mada de muco que ajuda a proteger as vias aéreas superiores e alcança tam bém os pulmões, normalmente estéreis, complicando a situação – em 7% desses casos, segundo os dados da equipe da USP, a infecção pulmonar se agrava a ponto de levar à morte. A análise microscópica e bioquímica dos pulmões indicou, no entanto, que os danos no órgão não são causados di 46
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retamente pelo vírus. Uma vez infecta das pelo H1N1, que assume o controle da maquinaria genética, as células dos alvéolos passam a produzir um sinaliza dor químico – o interferon-gama – que inibe a multiplicação do vírus e aciona as células de defesa conhecidas como assassinas naturais (natural killers ou simplesmente NK, em inglês). As NK, por sua vez, despejam sobre as células infectadas compostos tóxicos que indu zem à morte programada ou à apoptose. Em níveis adequados, essa sequência de ações do sistema de defesa elimina os agentes infecciosos e ajuda a resta belecer a saúde do órgão. Mas, quando excessiva, acaba por danificá-lo – em alguns casos, de modo irreversível. No pulmão de quem morreu com a gripe suína, Thais e Ludhmila Hajjar encontraram níveis de interferon-gama e número de células NK muito supe riores aos observados nos pulmões de pessoas saudáveis. Ainda não se sabe ao certo o que, nesses casos, disparou
a resposta imune exacerbada. “Algum fator que ainda não identificamos deve ter gerado esse desequilíbrio”, diz Thais. Das 21 pessoas analisadas pela equipe da USP, 16 já apresentavam alguma outra enfermidade grave, como alguma forma de doença cardiovascular ou câncer, an tes de contrair a gripe suína. Na opinião de Thais, é provável que a imunidade dessas pessoas já estivesse comprome tida a ponto de permitir o agravamento da infecção. Enquanto não se descobrem as repostas para essas questões, especia listas de todo o mundo acreditam que a forma mais segura de se proteger do vírus é tomar a vacina, que já começa a n ser distribuída em alguns países.
> Artigo científico Mauad, T. et al. Lung pathology in fatal novel human influenza A (H1N1) infec tion. American Journal of Respiratory and Critical Care Medicine. No prelo.
A segunda onda e a vacina Países do hemisfério Norte iniciam imunização antes do inverno
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emanas atrás os Estados Uni dos e a China iniciaram cam panhas de vacinação contra o vírus influenza A (H1N1) de origem suína, causador da pandemia de gripe registrada no primeiro semestre de 2009 e motivo de pânico em muitos países. Autoridades da saúde do mundo todo veem na imunização a principal forma de prevenir mortes por gripe suína e conter o espalhamento do vírus, que começou a se disseminar pelo hemis fério Norte antes mesmo do início do inverno e deve se tornar o principal causador da gripe nos próximos anos. Apesar da confiança dos gestores da saúde na imunização, em países como os Estados Unidos parte da população ainda não se convenceu da necessidade de tomar a vacina. Por trás da dúvida está o mesmo sentimento despertado pelo vírus no início do ano: medo. Se antes as pessoas temiam a agressividade do vírus, agora têm receio da segurança da vacina e dos efeitos que possa causar. É que, antes que fossem concluídos os testes de segurança e eficácia, a agência norte-americana de con trole de medicamentos e alimen tos (FDA) liberou a produção e a aplicação de duas formas de va cina contra o H1N1 – uma inje tável, produzida a partir de vírus inativos, indicada para qualquer pessoa a partir de 1 ano de idade; e outra inalável, feita com vírus enfraquecidos e recomendada para pessoas saudáveis na faixa etária dos 2 anos aos 59 anos. Como protege apenas contra o vírus da gripe suína, essa vacina vem sendo aplicada com outra, contra a gripe sazonal. Danielle Ofri, professora da Faculdade de Medicina da Uni versidade de Nova York, publicou em novembro no New England
Journal of Medicine um artigo relatan do o comportamento contraditório das pessoas atendidas no Bellevue, o hospi tal público mais antigo dos Estados Uni dos. No início da epidemia o medo do vírus desconhecido as fazia exigir uma vacina que ainda não existia. Agora que a vacina está disponível a maior parte delas, já menos ansiosa e mais habituada ao vírus, recusa-se a tomá-la. Entre os especialistas, ninguém du vida de que a vacina funcione, embora alguns discordem do nível de proteção que oferece. “Ainda que a vacina não proteja 100% das pessoas, ao menos uns 75% ela deve proteger”, afirma Edison Durigon, chefe do Laboratório de Virologia do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Segundo o virologista, quem é vacinado até pode pegar gripe, mas ela será menos grave. “A vacina só perderá eficácia se a variedade do vírus predo minante na epidemia sofrer alterações genéticas muito drásticas, o que é raro.” Se ocorrer, essa perda de eficácia será
conhecida daqui a algum tempo, depois que mais pessoas forem vacinadas e a proteção da vacina analisada. Até meados de novembro a Or ganização Mundial da Saúde (OMS) estimava que em 16 países 65 milhões de pessoas já tivessem sido vacinadas contra o H1N1. Em um informe a organização relatou que na China 11 milhões de pessoas foram imunizadas – houve registro de 15 casos de efeitos colaterais graves e duas mortes, não necessariamente decorrentes da imu nização. Como não deve haver vacina para todos – a OMS prevê a produção mundial de 3 bilhões de doses por ano –, a prioridade é imunizar as pessoas mais suscetíveis: crianças com mais de 1 ano, portadores de doenças graves e profissionais da área da saúde. No Bra sil, onde a taxa de mortalidade causa da pelo H1N1 ficou em 0,8 pessoa por grupo de 100 mil (a da gripe sazonal é 0,5 por 100 mil), a vacina contra a gripe suína deverá estar disponível antes do n inverno de 2010.
Atendente prepara dose de vacina em hospital universitário chinês PeSQUISA FAPESP 166
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Mudança veloz
EPIDEMIOLOGIA
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Transferência de renda e acesso à educação são pilares da queda da desnutrição infantil no Nordeste Fabrício Marques
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desnutrição infantil no Nordeste pode desaparecer do mapa das mazelas brasileiras em menos de 10 anos caso o problema continue a diminuir com a velocidade observada nos últimos 10 anos. A conclusão é de um trabalho coordenado por Carlos Augusto Monteiro, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, e Ana Lucia Lovadino de Lima, pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) da USP e bolsista de pós-doutorado da FAPESP. O estudo, que deve ser publicado na edição de janeiro da Revista de Saúde Púlica, mostra que a prevalência da desnutrição foi reduzida em um terço entre 1986 e 1996, caindo de 33,9% para 22,2% das crianças nordestinas, e em quase três quartos de 1996 a 2006, despencando para 5,9%. “Essa velocidade é inédita. Nenhum outro estudo no mundo revelou uma queda da desnutrição tão grande nesse espaço de tempo”, diz Carlos Augusto Monteiro. A queda da desnutrição no Brasil, em particular no Nordeste, já havia sido detectada em estudos anteriores do Nupens. O que o trabalho dos pesquisadores da USP trouxe como novidade foi a comparação dos fatores que levaram, nas últimas duas décadas, à redução nas taxas de retardo do crescimento infantil – os déficits de estatura são referências mais fidedignas para mensurar a desnutrição crônica até mesmo do que os déficits de peso. Essa análise só foi viável no Nordeste porque a região, que sistematicamente concentrava o problema da desnutrição infantil no país, dispunha de uma rica fonte de dados que permitia a comparação, no caso os inquéritos domiciliares de um programa internacional, a Pesquisa de Demografia e Saúde, feitos em 1986, 1996 e 2006. O estudo foi além e buscou identificar as razões do declínio. Concluiu que fatores distintos derrubaram a desnutrição no Nordeste nos dois períodos. Enquanto entre 1986 e 1996 a melhoria na escolaridade materna e a disponibilidade de serviços de saneamento foram os fatores centrais, no segundo período o fenômeno está atrelado ao aumento do poder aquisitivo das famílias, impulsionado por programas de transferência de renda, como o bolsa-família ou o aumento do salário mínimo, e, novamente, a melhoria da escolaridade materna. “Para controlar o problema em 10 anos será preciso manter o aumento do poder aquisitivo dos mais pobres e assegurar investimentos públicos para completar a universalização do acesso a serviços essenciais de educação, saúde e saneamento”, diz Ana Lucia Lovadino.
Os resultados da pesquisa mostram que medidas como a transferência direta de renda tiveram um reflexo instantâneo e significativo na redução das taxas de desnutrição. Segundo Carlos Augusto Monteiro, a focalização de recursos produziu efeitos sensíveis na questão da desnutrição. “Parece pouco, mas com R$ 100 por família vitimada pela miséria extrema o panorama da desnutrição muda radicalmente”, afirma. O crescimento econômico registrado nessa década serviu de estímulo, mas, diz Monteiro, momentos da história do país em que houve um desenvolvimento econômico bem superior, como o caso do milagre brasileiro dos anos 1970, não foram acompanhados por quedas da desnutrição no Nordeste como agora. De acordo com ele, a melhora da taxa de desnutrição no país desatrelou-se da evolução do Produto Interno Bruto (PIB). “O PIB do país sugeriria uma prevalência de desnutrição maior que a observada. O México, por exemplo, que tem um PIB próximo do nosso, tem taxa de desnutrição de 13 a 14%”, afirma. Se tais evidências servem para avalizar a eficiência dos programas de renda mínima, há um outro dado que revela a importância de medidas de longo prazo na melhoria da qualidade de vida do Nordeste. A pesquisa sugere que uma causa importante da queda da desnutrição foi o aumento da escolaridade
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O PROJETO Determinantes da tendência secular da desnutrição infantil na Região Nordeste do Brasil entre 1986 e 2006
MODALIDADE
Bolsa de pós-doutorado COORDENADOR/BOLSISTA
CARLOS AUGUSTO MONTEIRO / ANA LUCIA LOVADINO DE LIMA – USP INVESTIMENTO
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morariam muito a tê-lo”, afirma. Já outros indicadores melhoram num ritmo menos virtuoso. É o caso, por exemplo, das condições de saneamento. Entre 2001 e 2007, a proporção de domicílios no Nordeste conectados à rede de esgotos passou de 22% para 29,7%. No mesmo período, a cobertura da rede de água passou de 69,2% para 75,7%. “A melhoria das condições de saneamento não impediu que, em 2006, apenas um
quarto das crianças da Região Nordeste residisse em domicílios servidos por redes públicas de abastecimento de água e coleta de esgoto”, afirmou Ana Lucia Lovadino. “Estudiosos das políticas sociais no Brasil têm chamado a atenção para a menor visibilidade e o menor atrativo político dos investimentos em saneamento básico e para a necessidade de priorizar este tema na agenda brasileira das políticas públicas”, afirma. ■ MIGUEL BOYAYAN
materna e a mudança dos “antecedentes reprodutivos” das mulheres, conceito que contempla fatores como a taxa de fecundidade, a idade da mãe e o intervalo entre o nascimento dos filhos. “Quanto mais filhos tem uma mulher, menos tempo tem para se dedicar a cada um deles, e a tendência é que dê prioridade para o mais novo, em prejuízo dos outros”, diz Monteiro. As mudanças de comportamento neste campo foram extraordinárias. A taxa de fecundidade no Nordeste, que era de 5,2 filhos por mulher em 1986, caiu para 3,1 em 1996 e 1,75 em 2006 – colocando-se ligeiramente abaixo até mesmo da média nacional, que é de 1,77 filho por mulher. “Essa mudança coincide com a universalização do acesso ao ensino fundamental que ocorreu nos anos 1990. Foi nessa década que as mães avaliadas na pesquisa de 2006 cursaram o ensino fundamental. Elas, ao contrário de gerações anteriores, tiveram menos filhos e conquistaram uma autonomia para cuidar delas próprias e das crianças”, afirma Monteiro. Valor cultural - O pesquisador observa
que essa tendência é um indicador de modernização da sociedade brasileira. “Significa que a maioria dos brasileiros adotou como padrão ter no máximo dois filhos. Trata-se de um valor cultural que se disseminou num país que é vasto, mas está interconectado. Se você for à África, à Índia e até a alguns países da América Latina, notará que eles pouco progrediram nisso e seguem tendo, em certos estratos, quatro ou cinco filhos por mulher. Por isso é tão impressionante que o Nordeste tenha se igualado, em 10 anos, à média brasileira”, diz. O aperfeiçoamento dos serviços de saúde também é apontado como um fator decisivo, tanto pelo acesso das mulheres a informações fundamentais como pelo acompanhamento da saúde. Segundo Monteiro, o Programa de Saúde da Família, que leva agentes da saúde e médicos a regiões desassistidas, é a chave para compreender esse avanço. “Trata-se claramente de uma política compensatória, que busca acelerar o acesso à saúde de populações que de-
Desnutrição de crianças caiu de 22,2% para 5,9% no Nordeste
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Luzes vermelhas podem ser mais saudáveis que as azuis
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uando tiver de espantar o sono à noite, deixe alguma luz ver melha acesa por perto. “Pode ser uma alternativa para perma necer alerta”, afirma Mariana Figueiro, arquiteta formada em Belo Horizonte que coordena o programa de pesquisas sobre luz e saúde no Lighting Research Center. Parte do Rensselaer Polytechnic Institute, em Troy, ao norte de Nova York, este instituto desenvolve pesquisas básicas e aplicadas sobre o impacto da iluminação artificial nas pessoas. Em um estudo publicado na revista BMC Neuroscience, Mariana e sua equipe demonstraram que a luz vermelha pode ser mais apropriada para uso à noite do que luzes azuladas. Os pesquisadores fizeram os testes com luzes de cores puras, para ver, na verdade, os efeitos de luzes brancas comuns que tendem para o azul, como as fluorescentes brancas. “A luz vermelha ajuda a manter ou aumentar o nível de ativida de mental sem suprimir a produção de melatonina, hormônio que regula o sono, diferentemente da azul”, diz Mariana. Outros estudos haviam mostrado que luzes azuladas podem reduzir a produção de melatonina, liberada pela glândula pineal, localizada na base do cé rebro. A melatonina ajuda a regular o ritmo circadiano, variação de fenômenos como frequência cardíaca e sono que oscila em períodos de
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Carlos Fioravanti
aproximadamente 24 horas. Mais luz azul e menos mela tonina poderiam deixar o organismo mais vulnerável ao desenvolvimento de tumores, além de desregular o sono. Segundo Mariana, quem tem de permanecer acordado para trabalhar à noite pode sentir um pouco mais de sono sob luz vermelha, mas o organismo provavelmente sofrerá menos danos. As vantagens da luz vermelha sobre a azul emergi ram de um experimento de que participaram 14 pessoas submetidas a doses médias e baixas dos dois tipos de ra diação durante duas noites. Para avaliar com precisão as reações do organismo, a equipe de Mariana acompanhou as taxas de batimento cardíaco e a atividade cerebral. “A luz azul é mais potente para intervir em ritmos circadia nos”, ela concluiu. Estudos anteriores desse grupo haviam atestado a sensibilidade do organismo humano à luz azul: uma quantidade de luz azul muito mais baixa do que a da iluminação normal já pode interferir no ritmo do sono. Em outro artigo publicado este ano, na revista Journal of Carcinogenis, Mariana, Mark Rea e John Bullough, do
Lighting Research Center, apresentaram a hipótese de que a iluminação ambiental, normalmente excessiva a ponto de intervir na produção de melatonina, poderia contribuir para aumentar a incidência de câncer de ma ma, mas até o momento a falta de evidências quantitativas impossibilita qualquer conclusão. De imediato, os resultados abriram um caminho de pesquisa básica, voltada, entre outras possibilidades, às combinações mais saudáveis entre luz azul e vermelha, e aplicações, especialmente para quem trabalha à noite – ou na penumbra. Um dos desafios imediatos de Ma riana e sua equipe é usar as conclusões dos experimentos científicos para melhorar a iluminação nos submarinos, a pedido da Marinha dos Estados Unidos. Os pesquisa dores já verificaram que um dos problemas é o horário de trabalho, com turnos de 18 horas com seis de descan so, e trabalham na penumbra, “como se estivessem em uma caverna”, diz ela. “Não sabem mais quando é dia ou noite.” As consequências podem ser dramáticas sobre o ritmo circadiano, que precisa de uma intensidade de luz maior do que a visão para ser ativado. Os horários de sono podem facilmente perder a regularidade. Mariana pretende agora, com sua equipe, encontrar a melhor intensidade e quantidade de luz vermelha para usar durante a noite e para combinar com a azul durante o dia não só nos submarinos, mas também em outros ambientes de trabalho. “A luz azul é a mais recomendada para o dia, mas talvez não seja a melhor opção para a noite”, diz ela. Seu grupo e outros do Lighting Research Center sentem-se à vontade para enfrentar o desafio de transformar descobertas científicas em produtos de uso corriqueiro. Já fizeram um dispositivo de uso pessoal, o Daysimeter, que lembra um microfone posto próximo aos olhos e mede a quantidade de luz que cada pessoa recebe, indicando se os horários de sono, por exemplo, precisam ser reajustados. Nesse momento trabalham para ver os melhores tipos de luz que as pessoas idosas de vem receber para evitar quedas e dormir melhor. Outro projeto consiste no desenvolvimento de faróis de carros que possam causar menos impacto aos olhos à noite e, claro, iluminar melhor. n
> Artigo científico FIGUEIRO, M.G. et al. Preliminary evidence that both blue and red light can induce alertness at night. BMC Neuroscience. v. 10. p. 105-16. 2009.
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Astronomia
Urano e suas luas Eclipses e ocultações fornecem dados para aprimorar a compreensão da estrutura dos planetas
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Em ordem crescente: as luas Miranda, Ariel, Umbriel, Titânia e Oberon; na página à esquerda, Urano
fotos nasa
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ala-se pouco de Urano. Sétimo planeta a partir do Sol, o astro com nome do deus grego que representava os céus só foi descoberto em 1781 e não costuma ganhar nos noticiários o mesmo espaço dedicado hoje a Marte. Esse motivo pode até fazer muitos pensarem que se trata de um planeta menor. Mas não Roberto Vieira Martins. Ele e colaboradores do Observatório Nacional e do Observatório do Valongo, no Rio de Janeiro, testemunharam recentemente uma rara sequência de ocultações e eclipses entre as principais luas de Urano. As medições que obtiveram, as mais precisas já feitas para essas luas, devem ajudar a conhecer melhor tanto a trajetória dos satélites como a própria estrutura interna desse planeta azul-esverdeado coberto por densas camadas de nuvens. Desde que retornou do doutorado na França em 1982, o astrônomo brasileiro registra continuamente a revolução celeste de Urano e suas cinco maiores luas: Miranda, Ariel, Umbriel, Titânia e Oberon. De agosto a novembro de 2007, Martins e os astrônomos Marcelo Assafin, Felipe Braga-Ribas, Dario da Silva Neto e Alexandre Andrei se revezaram no telescópio do Observatório do Pico dos Dias – o maior em solo nacional, instalado em Brasópolis, Minas Gerais – para acompanhar uma série de ocultações e eclipses ocorridos entre as cinco das 27 luas de Urano, o único planeta do Sistema Solar com eixo de rotação inclinado um pouco mais de 90 graus em relação ao da Terra. A equipe do Rio observou cinco ocultações, quando um satélite encobre total ou parcialmente o outro, e dois eclipses, situação em que a sombra de uma lua encobre total ou parcialmente a outra. Foi uma oportunidade rara, pois Urano só se coloca em posição favorável à observação de eclipses e ocultações duas vezes durante os 84 anos que leva para completar uma
volta em torno do Sol. Além dos sete eventos, descritos em abril de 2009 no The Astronomical Journal, o grupo carioca acompanhou algo ainda mais incomum: uma ocultação e um eclipse simultâneos envolvendo o mesmo par de satélites – Ariel, de 1.150 quilômetros de diâmetro, e Miranda, quase 2,5 vezes menor. Brilho e órbita - A passagem de um
satélite ou de sua sombra à frente de outro bloqueia parte ou até mesmo toda a luz refletida por aquele mais distante da Terra – e, nesse caso, próximo a Urano. Conhecendo a redução de brilho, os astrônomos conseguem calcular a distância entre os objetos. Em geral, são necessárias medições feitas por vários telescópios para estabelecer com precisão a posição dos satélites na órbita de um planeta. Mas tudo fica mais simples quando ao mesmo tempo há um eclipse e uma ocultação de uma lua sobre outra, como ocorreu com Ariel e Miranda. “Essas informações, que serão publicadas em breve, tornam possível estabelecer de maneira mais precisa a geometria da órbita desses satélites, com margem de erro de 30 quilômetros”, afirma Assafin, da equipe do Valongo, ligado à Universidade Federal do Rio de Janeiro. E 30 quilômetros são quase nada para o planeta mais distante visível a olho nu, situado a 2,9 bilhões de quilômetros do Sol, distância 20 vezes maior do que a que separa a Terra de sua estrela. Nem a passagem da sonda espacial Voyager 2, que visitou as vizinhanças do planeta azul-esverdeado em 1986, havia gerado dados tão precisos sobre a órbita desses satélites. “Nossas observações permitiram coletar dados pelo menos 10 vezes mais precisos do que os anteriores”, conta Martins, que também é pesquisador associado do Observatório de Paris. Somando esses dados aos de grupos internacionais, a equipe de Martins
espera estabelecer com mais exatidão as órbitas das luas em torno de Urano e as forças que as influenciam. “Nem sempre são óbvios os fatores que determinam a órbita”, conta Martins. Um dos fatores que os astrônomos acreditam interferir na trajetória das luas é a chamada força de maré, consequência secundária da atração gravitacional entre dois corpos. Assim como a força de maré, que provoca uma lenta variação na órbita dos satélites, há também a influência de outras forças decorrentes da distribuição irregular de matéria no interior do planeta. A partir dessas informações os astrônomos conseguem inferir a composição das camadas mais internas do planeta. Sob suas nuvens de milhares de quilômetros de espessura, por exemplo, imagina-se que existam oceanos de água diluída em metano e talvez até mesmo uma superfície sólida. Mas tudo o que se vê a partir da Terra é a atmosfera. “Não sabemos o que existe ali embaixo”, conta Martins. Conhecer a estrutura dos planetas mais externos do Sistema Solar, como Júpiter, Saturno, Urano e Netuno, deve revelar detalhes do ambiente em que eles e o Sol se formaram há 4,5 bilhões de anos. Mas, antes mesmo que se obtenha esse tipo de informação, Assafin acredita que Urano se tornará mais conhecido. É que na busca por planetas rochosos como a Terra (ver Pesquisa FAPESP nº 104 e nº 164) os menores planetas encontrados têm as dimensões de Urano. “Para entender por que estão lá”, diz Assafin, “é preciso saber por que também existem por aqui”. n
Ricard o Zorzet to > Artigo científico ASSAFIN, M. et al. Observations and analysis of mutual events between the Uranus main satellites. The Astrophysical Journal. v. 137, p. 4.046-53. Abr. 2009. PESQUISA FAPESP 166
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Química
Uma formiga visita a inflorescência da para-tudo-do-campo ou perpétua (Gomphrena macrocephala)
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Ecologia
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Compostos voláteis controlam interação entre vegetais e insetos Carlos Fioravanti, de Pratânia
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abacaxizeiro-do-cerrado é um dos poucos pontos vermelhos em meio ao cinza ressecado das árvores de uma reserva de cerrado, cercada por plantações de cana-de-açúcar e eucalipto em uma fazenda em Pratânia, na região central do estado de São Paulo. As flores de cor azul-claro e as folhas do abacaxizeiro (Ananas ananassoides) liberam compostos voláteis que atraem beija-flores, abelhas e borboletas em busca de néctar ou pólen. “O ananás mantém uma relação mais próxima com os beija-flores, mas não impede que outros animais o visitem”, diz a bióloga Juliana Stahl, à frente de uma pesquisa orientada por Sílvia Rodrigues Machado e Elza Guimarães, professoras da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Botucatu. Os cheiros que ganham o ar em matas, plantações ou jardins expressam batalhas contínuas pela sobrevivência e mostram que as plantas, definitivamente, não são passivas. Após milhões de anos de seleção natural, cresceram somente as capazes de interagir com animais e outras plantas liberando compostos químicos que permitem a defesa ou estabelecem acordos muitas vezes de ganhos mútuos. “As plantas ‘manipulam’ seus visitantes”, atesta Sílvia. As pesquisas de seu grupo estão detalhando por que determinadas plantas atraem grupos específicos de polinizadores. Estão também explicando a formação de compostos químicos que interessam aos seres humanos. Tatiane Rodrigues, uma das biólogas da equipe de Sílvia, verificou que estruturas secretoras alongadas e arredondadas do caule e da raiz da copaíba produzem o óleo que as pessoas usam para tratar inflamações, ferimentos e micoses e as plantas contra insetos. “Mesmo as plantas recém-germinadas possuem células secretoras do óleo que lhes garante uma proteção contra predadores”, diz. Sua colega Shelley Favorito identificou cinco tipos de glândulas na superfície das folhas de Lippia stachyoides, que produzem óleos
Clívia Possobom/Elza Guimarães/UNESP
Uma abelha chega à Diplopterys pubipetala em busca de óleo
de cheiro forte que impermeabilizam as folhas e espantam predadores. Conhecer melhor essas interações ajuda a definir espécies de plantas e animais mais relevantes para a continuidade de ambientes naturais. O Croton glandulosos, arbusto de um metro que cresce em terrenos abandonados, é uma delas. Lucia Maria Paleari, pesquisadora da Unesp de Botucatu, ainda não parou de se impressionar com a diversidade de abelhas, pulgões, moscas, borboletas, besouros e formigas milimétricos que se fartam com as secreções liberadas por estruturas secretoras das raízes, caules, folhas e flores. Um dos visitantes é a abelha jataí (Teragonisca angustula), que se alimenta do néctar das flores do Croton e produz um mel cujo litro pode custar R$ 120. Para Lucia, esse arbusto, que não compete por luz e nutrientes com plantas cultiváveis, deveria ser mantido em áreas de cultivos agrícolas em vez de eliminada como mato desprezível, seu destino habitual. “O cróton alimenta insetos que poderiam atuar como inimigos naturais de pragas agrícolas”, diz. Oportunidade - A riqueza de plantas
e animais do país está motivando os próprios pesquisadores do Brasil e dos Estados Unidos a interagirem. Um dos centros que deve abrigar colaborações internacionais é o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Centro de Energia, Ambiente e Biodiversidade, coordena56
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do por José Rodrigues e Tetsuo Yamane, com sede na Universidade do Estado do Amazonas (UEA), em Manaus. Na inauguração do instituto, em abril, Jerrold Meinwald, um dos pioneiros dessa área, ressaltou em uma palestra o potencial do país nesse campo. “A região amazônica, com uma diversidade ampla e muito pouco estudada, representa uma oportunidade única para pesquisas”, observa. “Um investimento consistente do Brasil nessa área poderia produzir uma pesquisa de classe mundial e um instituto que poderia atrair e qualificar lideranças científicas.” Uma das integrantes desse grupo que começa a tomar forma é a bióloga brasileira Consuelo de Moraes, pesquisadora da Universidade do Estado da
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O Projeto Papel das estruturas glandulares de Croton glandulosus na interação tritrófica
modalidade
Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa Coordenadora
Sílvia Machado – Unesp investimento
R$ 183.752,02 (FAPESP)
Pensilvânia que mostrou que as mensagens das plantas podem ter destinatários específicos. “Muitos pesquisadores não acreditavam na especificidade das interações das plantas com outras espécies”, diz. Como detalhado em seu artigo publicado em 1998 na Nature, a vespa Cardiochiles nigriceps distingue a composição de compostos liberados por tabaco, algodão e milho atacados por lagartas das espécies Heliothis virescens e Helicoverpa subflexa – e só procuram as plantas com lagartas da primeira espécie. Agora no doutorado, Clívia Possobom reforçou essa possibilidade de mensagens específicas ao verificar que uma trepadeira do Cerrado, a Diplopterys pubipetala, mantém uma relação bastante próxima com abelhas da tribo Centridini. Glândulas situadas na base da flor produzem um óleo que parece servir apenas para as abelhas, que o usam como revestimento dos ninhos e alimento para as larvas. “Não conheço outra função desse óleo, que só sai quando a abelha raspa a glândula”, diz Clívia. Segundo ela, esse óleo “pode ser uma espécie de recompensa aos polinizadores, de quem a Diplopterys depende, por ser autoincompatível” (os grãos de pólen de uma planta, mesmo que tenham sido produzidos por uma flor hermafrodita, só poderá germinar se chegar às estruturas femininas de uma flor de outra planta da mesma espécie). “Há uma troca, uma coevolução”, observa Silvia. “As Dyplopteris e as abelhas dependem umas das outras.” Substâncias liberadas pelas plantas podem guiar outras plantas, nem sempre bem-vindas. Em uma Science de 2006, Justin Runyon, Mark Mescher e Consuelo mostraram que o cipó-chumbo ou Cuscuta pentagona, por meio de compostos voláteis, seleciona hospedeiros e cresce em direção a eles. A cuscuta parasita tomate, alfafa, bata, soja e cebola, mas não o trigo, que libera compostos que a repelem. “Depois de germinar a cuscuta tem 10 dias para encontrar uma planta hospedeira”, diz Consuelo. “Por não ter raiz nem folhas, se não encontrar, vai morrer.” Outra espécie de cipó-chumbo, a Cuscuta racemosa, vive na Mata Atlântica e deve apresentar um comportamento similar. Não se trata de um exemplo isolado porque pelo menos 4.500 espécies de
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plantas com flores, o equivalente a 1% do total, são parasitas e vivem da água e nutrientes extraídos de outras plantas. “A sinalização química é a forma de comunicação dominante na natureza”, diz Meinwald. O número de tipos de interações é praticamente ilimitado. Para complicar, flores ou folhas podem produzir diferentes tipos de compostos enquanto crescem. Em 2006, Silvia, Elza e Elisa Gregório, da Unesp de Botucatu, mostraram que as flores de um arbusto do Cerrado, a Zeyheria montana, produzem alcaloides, que repelem visitantes, no início do desenvolvimento da flor, e terpenos, que os atraem, quando os grãos de pólen estão prontos para fertilizar outras flores. Recado às outras folhas - Pelo menos mil espé-
cies de plantas adotam essa linguagem química, de acordo com um trabalho de Christopher Frost, da equipe de Consuelo, na Plant Physiology. As plantas liberam pelo menos três tipos de compostos que dão às matas o típico cheiro de mata. Identificados pelas siglas z3HAL, z3HOL e z3HAC, eles disparam as respostas contra parasitas, induzindo a liberação de substâncias de gosto desagradável. Em 2008 na New Phytologist, Consuelo e seu grupo descreveram as reações bioquímicas por meio das quais uma dessas substâncias, a z3HAC, liberada por folhas que estão sendo devoradas por insetos, aciona a produção de compostos que reforçam a defesa em folhas ainda intactas de uma variedade de álamo, árvore de regiões de clima frio. “Se uma folha está sendo atacada, a folha vizinha se prepara para se defender quando percebe os compostos voláteis”, diz Consuelo. “As folhas não conectadas entre elas se comunicam por meio desses compostos.” Lucia Paleari resolveu apresentar essas interações de modos mais emocionantes e propôs uma exposição sobre o Croton a um grupo de estudantes da Unesp de Botucatu em novembro do ano passado. Segundo ela, 2 mil crianças, jovens e professores do ensino fundamental e médio conheceram a planta e se impressionaram ao verem modelos imensos de cabeças e fotos ampliadas de insetos expostos no ginásio de esportes de uma escola de Botucatu. “Perguntavam como é que os insetos podiam ter tantas estruturas na cabeça e como uma planta que chamavam de mato tinha tantas coisas interessantes e podia atrair tantos animaizinhos diferentes”, relembra. “Aprendemos a n olhar com mais calma.” > Artigos científicos 1. FROST, C.J. et al. Plant defense priming against herbivores: getting ready for a different battle. Plant Physiology. 2008, 146:818-24. 2. RODRIGUES, T.M.; Machado, S.R. Developmental and structural features of secretory canals in root and shoot wood of Copaifera langsdorffii Desf. (Leguminosae Caesalpinioideae). Trees. 2009, 23 (5): 1013-18.
Insetos copulam sob a paina da paineirinha-do-cerrado (Eriotheca gracilipes) PESQUISA FAPESP 166
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Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org
Notícias n
Farmacologia
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Uso de plantas medicinais A crença de que medicamentos à base de plantas são isentos de riscos à saúde faz parte da bagagem cultural da população afeita ao seu uso: “O que vem da terra não faz mal”. No entanto, o potencial tóxico, as características específicas do usuário, a possibilidade de contaminação e a falta de regulamentação constituem fatores de risco para a ocorrência de reações adversas, intoxicações e outras complicações decorrentes de seu uso. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com 20 raizeiros (vendedores de ervas in natura) na cidade de Diadema (SP) e relatados 40 casos de problemas relacionados ao uso de 22 espécies de plantas medicinais. As espécies mais citadas foram Luffa operculata (buchinha), com 7 casos, Senna alexandrina (sene), 4 casos, e Paullinia cupana (guaraná, na ilustração), 3 casos. Dentre os sinais e sintomas relatados, os mais frequentes foram relacionados ao sistema nervoso central, problemas gastrointestinais e cardiovasculares. Os entrevistados também relataram um caso de aborto relacionado ao uso de S. alexandrina e três casos de óbito após a ingestão do chá do fruto de L. operculata. O caráter “natural” das plantas medicinais não é sinônimo de ausência de riscos para a população usuária. É necessária a implantação de políticas de fitofarmacovigilância eficientes, a fim de tornar o consumo mais racional e, deste modo, minimizar os riscos à população usuária. O estudo foi publicado no artigo “‘O que vem da terra não faz mal’: relatos de problemas relacionados ao uso de plantas medicinais por raizeiros de Diadema/SP”, de Juliana Lanini, Joaquim M. Duarte-Almeida, Solange Nappo e Elisaldo A. Carlini, do Departamento de Psicobiologia, Universidade Federal de São Paulo. Revista Brasileira de Farmacognosia – vol. 19 – nº 1 – João Pessoa – jan./mar. 2009
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Saúde pública
Contracepção entre jovens O estudo “Práticas contraceptivas e iniciação sexual entre jovens de três capitais brasileiras”, de Lilian F. B. Marinho, Esteia M.L. Aquino e Maria da Conceição C. de Almeida, do Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia, investigou o uso de contraceptivos na primeira relação sexual de 2.790 homens e mulheres. Trata-se de inquérito domiciliar em três capitais brasileiras, com entrevistas de amostra probabilística. Utilizou-se análise de regressão logística. As variáveis foram agrupadas em: determinantes macrossociais, socialização e entrada na sexualidade, contexto da iniciação sexual e características da/o jovem e da/o parceira/o. A prevalência do uso de contraceptivo foi de 68,3% entre as mulheres e de 65,3% entre os homens. Entre elas, a contracepção associou-se à renda familiar per capita, cor/raça e revistas femininas como fontes de informação sobre gravidez e contracepção. Para ambos os sexos, o uso foi mais frequente quando houve conversa prévia sobre o tema entre parceiros, a iniciação sexual foi mais tardia e em motel, e o(a) parceiro(a) era paciente e tranquilo(a). O tempo entre o início do relacionamento e a iniciação sexual mostrou- -se associado ao uso de contraceptivo na iniciação sexual dos rapazes. De acordo com as autoras do estudo, os fatores macrossociais parecem determinar a contracepção mais frequente na iniciação sexual das mulheres, enquanto para os homens o contexto relacional é mais importante. Cadernos de Saúde Pública – vol. 25 – supl. 2 – Rio de Janeiro – 2009
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Ortopedia
Furadeiras na cirurgia Estima-se que há mais de 50 anos as furadeiras elétricas têm sido empregadas em cirurgias ortopédicas nos hospitais brasileiros para a perfuração óssea. Trata-se de equipamento elétrico, termossensível, não indicado para uso cirúrgico, não avaliado anteriormente quanto à eficácia da esterilização, suspeitando-se de risco para infecções. Esse estudo avaliou a eficácia da esterilização por óxido de etileno (ETO) de furadeiras
Brazilian Journal of Microbiology – vol. 40 – nº 3 – São Paulo – set. 2009
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Neuropsiquiatria
Mais mulheres na neurologia Nas últimas quatro décadas houve um aumento na participação de mulheres na medicina. O artigo “A crescente participação da mulher na autoria de trabalhos publicados em neurologia no Brasil”, de Osvaldo M. Takayanagui e José Antonio Livramento, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, apresenta a participação de mulheres como autoras de artigos publicados em Arquivos de Neuro-Psiquiatria, revista oficial da Academia Brasileira de Neurologia. Foi analisada esta participação em quinquênios, a partir de 1945 até 2005. Neste período 950 artigos foram publicados. A participação de mulheres como primeiro autor apresentou aumento de 2,8% (1945) para 36,6% (2005) e como último autor (chefe de grupo) passou de 2,8% (1945) para 23,8% (2005). Arquivos de Neuro-Psiquiatria – vol. 67 – nº 3b – São Paulo – set. 2009
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Sociologia
Teorias dos movimentos sociais O artigo “As teorias dos movimentos sociais: um balanço do debate”, de Angela Alonso, da Universidade de São Paulo e do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), de São Paulo, apresenta as três principais teorias de explicação dos movimentos
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novas intencionalmente contaminadas com esporos de Bacillus atrophaeus. Foi desenvolvida pesquisa experimental, laboratorial, randomizada e aplicada onde foram analisadas 16 furadeiras elétricas, além de controle positivo e negativo. Todos os equipamentos previamente limpos e esterilizados foram submetidos à contaminação com esporos. Em seguida, o grupo experimental foi limpo, esterilizado por ETO e aplicado o teste de esterilidade por filtração. Nas condições do desenvolvimento do experimento, a eficácia da esterilização das furadeiras por ETO foi comprovada, segundo os pesquisadores. O estudo completo está no artigo “Avaliação da eficácia da esterilização de furadeiras elétricas domésticas utilizadas em cirurgias ortopédicas”, de Vania Regina Goveia, Flavia Morais Gomes Pinto, Irene Alexeevna Machoshvili, Thereza Christina Vessoni Penna e Kazuko Uchikawa Graziano, da Universidade de São Paulo.
sociais, constituídas nos anos 1970: a de Mobilização de Recursos, a do Processo Político e a dos Novos Movimentos Sociais. Em seguida, a autora mapeia as reformulações de que essas teorias foram objeto, seja em reação às críticas recebidas, seja para fazer face às mudanças empíricas das últimas décadas, que acentuaram as dimensões cultural e transnacional do ativismo. Lua Nova – nº 76 – São Paulo – 2009
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Agricultura
Produtividade da cana As projeções climáticas para este século indicam a possibilidade de graves consequências para a humanidade, especialmente para a agricultura, com efeitos adversos nas produtividades das culturas e no agronegócio como um todo. Nesse estudo foi utilizado um modelo agrometeorológico para estimar a produtividade da cana-de-açúcar na região de Piracicaba, São Paulo, baseado nos cenários futuros do clima, apresentados no quarto relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), de 2007. A produtividade da cana-de-açúcar foi avaliada nos anos de 2020, 2050 e 2080, levando-se em consideração as possíveis alterações de temperatura, precipitação, insolação e concentração de CO2 na atmosfera, assim como os avanços tecnológicos. O aumento da temperatura acarretará no aumento da produtividade potencial, já que essa variável afeta positivamente a eficiência do processo fotossintético das plantas; entretanto, as alterações na radiação solar e na chuva terão menores impactos na produtividade. A produtividade potencial aumentará cerca de 15% em relação à condição atual em 2020, de 33% em 2050 e de 47% em 2080. Com relação à produtividade real, o aumento da produtividade potencial compensará o efeito negativo causado pelo aumento projetado para o déficit hídrico. A produtividade real aumentará cerca de 12% em relação à condição atual nos anos de 2020, de 32%, em 2050, e de 47%, em 2080. De acordo com os autores da pesquisa, o aumento da produtividade da cana-de-açúcar observado na ocorrência dos cenários futuros avaliados terá impactos importantes no setor canavieiro. O estudo está no artigo “Mudanças climáticas e avanço tecnológico: impactos na produtividade da cana-de-açúcar na região centro-sul do Brasil”, de Júlia Ribeiro Ferreira Gouvêa, Paulo Cesar Sentelhas, Marcelo Cabral Santos, Escola de Ensino Superior Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo, e Samuel Thomazella Gazzola, da Usina Costa Pinto (Piracicaba). Scientia Agricola – vol. 66 – nº 5 – Piracicaba – set./out. 2009
> O link para a íntegra dos artigos citados nestas páginas estão dispo níveis no site de Pesquisa Fapesp, www.revistapesquisa.fapesp.br
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lINHA DE PRODUÇÃO mundo
Uma das fontes energéticas mais promissoras, por ser renovável e não agredir a natureza, a energia solar é produzida por grandes painéis fotovoltaicos, normalmente instalados nos telhados, que transformam a luz do Sol em eletricidade. Esse arranjo, no entanto, poderá ser substituído no futuro por um sistema que emprega fibras ópticas para coletar a luz solar e pode ser embutido em qualquer ponto da casa ou do prédio. A inovação, criada no Instituto de Tecnologia Geórgia, nos Estados Unidos, utiliza como ponto de partida fibras ópticas comuns, usadas em sistemas de telecomunicações. Os pesquisadores criaram em sua superfície nanoestruturas de óxido de zinco, formando uma fina camada sobre a qual foram aplicados corantes fotoquímicos usados em
Pesquisadores da empresa de biotecnologia alemã Novoplant conseguiram desenvolver ervilhas geneticamente modificadas capazes de combater uma infecção comum na avicultura provocada pelo protozoário do gênero Eimeria. A doença, chamada de coccidiose, causa uma redução da eficiência do crescimento de frangos de corte e leva a prejuízos anuais estimados em US$ 4,2 bilhões. Os pesquisadores inseriram na Gene transforma legume em medicamento planta um gene exógeno que estimulou a produção de anticorpos capazes de barrar a invasão das células do intestino dos galináceos pelo células solares orgânicas, parasita. As sementes transgênicas foram misturadas à faritambém conhecidas nha e depois adicionadas à ração animal. Em ensaios expecomo DSC (Dye-sensitized rimentais, galinhas com altos níveis de infecção por Eimeria Solar Cells). A fibra óptica capta a luz do Sol apresentaram melhora depois de comer a ração. Estudos e as nanoestruturas se anteriores já haviam mostrado que as plantas podem ser responsabilizam por modificadas de forma a estimular nos animais a produção de convertê-la em eletricidade. anticorpos contra doenças, mas, segundo os cientistas resUma importante vantagem ponsáveis pelo avanço, essa é a primeira vez que grãos foram da tecnologia é que alterados para produzir, eles mesmos, os anticorpos. Serão necessários de três a cinco anos para a realização de testes ela permite a produção em larga escala que comprovem a eficácia das sementes. de geradores fotovoltaicos
Ervilhas modificadas
> Energia solar na fibra
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dobráveis, carregáveis e “disfarçados” em construções.
> Busca digital semântica
Georgia Institute of Technology
Fibra óptica preparada para captar luz do Sol
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A busca de informações na internet ou em arquivos digitais de empresas ou de governos muitas vezes é acompanhada de incertezas e dificuldades em relacionar arquivos com o mesmo significado. O problema está sendo abordado por vários grupos de estudo no mundo. Um deles, que já apresentou uma solução, é a Organização Multimídia
Semântica para a Melhora dos Serviços Informativos (Mesh, na sigla em inglês), que recebeu financiamento de € 7,4 milhões da Comunidade Europeia e desenvolveu uma plataforma de buscas semânticas que gera resultados com base em conteúdos e contextos de arquivos de vídeo, áudio e texto. O novo sistema realiza uma avaliação inicial e provê resultados de acordo com o significado da pergunta. A plataforma foi
Deutsche Welle, além da Universidade de Londres Queen Mary, Universidade Autônoma de Madri, Instituto de Audiovisual da França, Universidade de Twente, na Holanda, entre outras instituições de sete países europeus.
> Captação das ondas Como se sabe, os oceanos são uma imensa fonte de energia. O mais recente dispositivo para o aproveitamento dessa energia é dos engenheiros aeroespaciais da Academia de Força Aérea dos Estados Unidos, onde o equipamento está em testes num túnel de água.
Eles criaram um novo sistema baseado nos princípios da aerodinâmica com hélices instaladas dentro de uma turbina que permitem um excepcional controle do fluxo de água e a consequente geração de eletricidade. Simulações de computador e testes em modelos de laboratório indicaram que a tecnologia é durável, altamente eficiente e pode ser usada em qualquer ponto do oceano, independentemente de sua profundidade. Usando conhecimentos de mecânica dos fluidos, arrasto e sustentação, os cientistas projetaram uma turbina que interage com o movimento cíclico,
para cima e para baixo, das ondas do mar. Sistemas de controle individuais para cada pá da hélice permitem que a turbina aproveite ao máximo a energia das ondas.
> Dessalinização com nanotubos Ainda cara e pouco disseminada, a dessalinização da água do mar é uma tecnologia que tem ajudado a resolver o problema da escassez hídrica. Em novembro, o Laboratório Nacional Lawrence Livermore, dos Estados Unidos, licenciou para a empresa Porifera uma tecnologia baseada em nanotubos de carbono capaz de fazer a separação do sal presente na água dos oceanos. Esses nanotubos formam um arranjo nanométrico de tubos ocos de átomos de carbono que permite o fluxo de gases e líquidos por eles, bloqueando moléculas maiores como as de sódio da água do mar. Atualmente a separação do sal é feita pelo processo de osmose reversa, que emprega membranas menos permeáveis. Nos últimos anos, a Porifera estuda o uso de membranas de nanotubos porque elas possuem propriedades superiores de permeabilidade e durabilidade.
U.S. Air force academy
miguel boyayan
Plástico verde
Os bioplásticos podem substituir até 90% dos plásticos convencionais derivados do petróleo consumidos atualmente. Tecnologia para essa substituição já existe. A conclusão é de pesquisadores da Universidade de Utrecht, na Holanda, encomendado pelas associações European Bioplastics e European Polysaccharide Network of Excellence. Os bioplásticos estão no mercado há 10 anos produzidos com açúcares e amidos de produtos agrícolas ou com material reciclado de alimentos e de madeira. Bioplástico: lento crescimento no mercado A produção mundial de bioplásticos foi de 360 mil toneladas em 2007, usada na busca de notícias muito abaixo (menos de 1%) dos 270 milhões de toneladas sobre catástrofes naturais, do total de plásticos produzidos no mesmo ano. Os pesquisadores acreditam que o percentual de bioplásticos deve subir desordens civis e violência para 2% em 2020. O baixo crescimento é devido aos custos urbana e já se mostrou apta para ser comercializada. de produção e disponibilidade de capital para investimento em A Mesh é uma parceria de novas fábricas, dificuldades técnicas no aumento de escala, empresas como Telefônica, pouca disponibilidade de matéria-prima e a própria adaptação Motorola, a TV alemã do setor de plásticos em trabalhar com os novos materiais.
Lâminas da turbina em túnel de água PESQUISA FAPESP 166
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lINHA DE PRODUÇÃO brasil
daniel neves
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Placa com tubos recebe o soro do paciente. Dentro estão microesferas recobertas com antígenos das doenças e material fluorescente. O tubo é colocado diante dos dois feixes de laser que identificam ou não a doença.
Rapidez no diagnóstico
Um equipamento de diagnóstico capaz de detectar até 100 doenças em apenas meia hora, chamado de multiteste, está sendo desenvolvido por um consórcio formado pelo Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Biomanguinhos), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), do Rio de Janeiro, Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás), Instituto Carlos Chagas (ICC), da Fiocruz do Paraná, Instituto de Tecnologia e Instituto de Biologia Molecular, ambos do Paraná. O multiteste é dotado de uma placa com pequenos poços onde se colocam o soro e minúsculas esferas de cinco micrômetros de diâmetro cada uma (um micrômetro equivale a um milímetro dividido por mil) recobertas por antígenos (proteínas) dos vetores das doenças como fungos, bactérias ou vírus. Dois tipos de feixes de laser sobre o soro completam o teste mostrando se o exame é positivo ou negativo. O resultado aparece por meio da reflexão da cor de cada microesfera iluminada com o laser quando ativada por um anticorpo do paciente. A montagem do equipamento utiliza tecnologia da empresa norte-americana Luminex, como as microesferas e os lasers. O consórcio brasileiro desenvolveu o software que faz a integração do equipamento. “Também produzimos os reagentes, os antígenos e a formulação do teste”, explica Marco Aurélio Krieger, pesquisador do ICC e coordenador do projeto. “Atualmente estamos desenvolvendo um protótipo no ICC e os equipamentos de automação do teste estão sendo validados no Biomanguinhos”, diz Augusto César de Carvalho, diretor de Assuntos Estratégicos da Hemobrás. “Até junho de 2010 está previsto um estudo piloto na triagem de bolsas de sangue no Hemocentro do Paraná. Depois haverá um estudo em três estados do país ainda a serem definidos.” O desenvolvimento do equipamento recebeu até agora R$ 15 milhões do Ministério da Saúde e mais R$ 2 milhões da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep).
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> Inovação premiada Um projeto para aumentar a produtividade da geleia real, apresentado pela professora Maria Claudia Ruvolo Takasusuki, da Universidade Estadual de Maringá, no Paraná, ganhou o Prêmio Santander de Ciência e Inovação 2009 na categoria Biotecnologia. A proposta consiste em selecionar matrizes de abelhas Apis mellifera africanizadas para gerar
operárias mais produtivas. Outros três projetos de Ciência e Tecnologia também foram premiados. O médico Nelson De Luccia, professor da Universidade de São Paulo (USP), foi o contemplado na categoria Saúde com o projeto de desenvolvimento de próteses para revascularização de membros inferiores, como prevenção de amputações. O engenheiro Demercil de Souza Oliveira Junior, professor da Universidade Federal do Ceará, venceu na categoria Indústria, com um conversor eletrônico de baixo custo que transforma energia eólica em eletricidade para populações de locais isolados. O agrônomo Dante Pazzanese Lanna, também da USP, foi o premiado na categoria Tecnologia da Informação e Comunicação, pela criação de um software para o setor pecuário que administra
Abelhas selecionadas para aumentar produção de geleia real
embraer
Sustentabilidade no céu
A busca por combustíveis renováveis e menos poluentes para a aviação movimenta o setor de transporte aéreo mundial. O último lance dessa corrida tecnológica ocorreu no Brasil. Foi um acordo para teste de biocombustíveis firmado entre a Embraer, a GE Aviation, fabricante de motores para aviões, a Azul Linhas Aéreas e a Amyris, companhia norte-americana que atua no Brasil no desenvolvimento de combustíveis produzidos, por meio de Biocombustível nos motores a jato processos biotecnológicos, com cana-de-açúcar (leia em Pesquisa Fapesp uma tecnologia inovadora n° 153). A empresa já possui um biocombustível que leva o para pintura de aço inox nome de No Compromise que poderá ser utilizado em um jato com utilização do laser. da Embraer de propriedade da Azul, empresa brasileira que começou a voar em 2008 com os modelos EMB-190 e EMBOs responsáveis pela tecnologia que permite, -195, com a média de 100 passageiros, que usam motores GE, por meio de ajustes nos num voo de demonstração em 2012. A principal tecnologia usada pela Amyris para produzir o biocombustível é a modiparâmetros do laser, uma pintura localizada ficação genética em linhagens da levedura Saccharomyces em poucos segundos e sem cerevisiae, responsável por transformar o caldo de cana em etanol durante o processo de fermentação nas usinas. a utilização de produtos
a alimentação do gado, com dados como composição nutricional dos alimentos, melhor combinação entre eles e cálculo de custos.
> Pintura de aço a laser
eduardo cesar
A empresa Welle, incubada no Centro Empresarial para Laboração de Tecnologias Avançadas (Celta), de Florianópolis, em Santa Catarina, lançou
químicos, são os irmãos gêmeos Gabriel e Rafael Mantovani Bottós, estudantes de engenharia elétrica e mecânica da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em parceria com professores da universidade. Embora ainda não tenham concluído a graduação, os dois trabalharam por dois anos no centro de pesquisas Fraunhofer Institute, na Alemanha, que também é parceiro da Welle.
> Expansão petrolífera As pesquisas de novos processos, materiais e equipamentos para
a indústria petrolífera, desenvolvidas na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e na Universidade de São Paulo (USP) em São Carlos, no interior paulista, vão ganhar um reforço de peso com a construção de dois novos centros financiados pela Petrobras, parceira das duas instituições. A UFSCar vai construir um centro especializado no desenvolvimento de processos e materiais avançados para a indústria do petróleo e energia, ao custo de R$ 15,5 milhões. A obra, que terá 3.600 metros quadrados de área coberta onde serão instalados
laboratórios e unidades de apoio, está prevista para ser concluída em um ano. A USP de São Carlos receberá R$ 4 milhões para instalar um Laboratório de Energias Renováveis. Um dos produtos em desenvolvimento pelos pesquisadores é um sistema de bombeamento inteligente para a retirada de misturas com gás e petróleo. Além da construção dos novos centros de pesquisa, a Petrobras já investiu quase R$ 20 milhões em pesquisa e infraestrutura e outros R$ 35 milhões estão previstos para a construção de um Centro de Processamento de Polímeros na mesma cidade.
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tecnologia
Pele
BIOQUÍMICA
recriada Modelo artificial testa eficácia de novos compostos para fármacos e cosméticos Dinorah Ereno
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ma pele artificial idêntica à humana, que reproduz os mesmos tecidos biológicos e pode ser utilizada para avaliar a toxicidade e a eficácia de novos compostos para fármacos e produtos cosméticos, foi desenvolvida por pesquisadores da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo. Células retiradas de peles de doadores submetidos a cirurgias plásticas reparadoras são a matéria-prima utilizada para a construção da pele artificial em laboratório. “Desenvolvemos um modelo que mimetiza a pele humana com toda a sua estrutura de epiderme e da derme”, diz a professora Silvya Stuchi Maria-Engler, coordenadora da pesquisa. A epiderme, a camada mais externa da pele, é obtida por meio da cultura de queratinócitos, células que realizam a síntese da queratina e respondem pela proteção, e dos melanócitos, células responsáveis pela produção de melanina e pigmentação da pele. A derme, a camada abaixo da epiderme, é reconstituída a partir da cultura de fibroblastos humanos – responsáveis pela produção de fibras e capazes de sintetizar o colágeno e a elastina – cultivados em gel de colágeno. Essas estruturas celulares possuem características de crescimento e morfologia muito similares à pele humana, o que aumenta a uniformidade e reprodutibilidade dos testes de medicamentos e de cosméticos.
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Pele artificial feita a partir de material descartado em cirurgias plásticas
eduardo cesar
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“O nosso modelo pode sanar uma necessidade do mercado”, diz Silvya. No caso dos cosméticos, por exemplo, as empresas fabricantes enviam os princípios ativos de novos produtos para serem testados no exterior. Isso porque, desde o início de 2009, uma diretriz da Comunidade Europeia indica que nenhum produto cosmético poderá ser avaliado quanto à segurança e eficácia em animais de laboratório. Para substituição dos animais, os testes que garantem a segurança e eficácia de novos princípios ativos e formulações devem ser realizados em modelos in vitro, com células isoladas, ou preferencialmente em modelos biomiméticos, como o que simula a pele humana.
carla abdo brohem/usp
Novas moléculas - Além da indústria
cosmética, a farmacêutica também poderá dispensar alguns testes em animais com o uso de sistemas biomiméticos de pele. Potenciais fármacos para tratamento de doenças como o melanoma, um tipo agressivo de câncer de pele, poderão ser testados com o modelo desenvolvido na USP. Embora tenha baixa incidência no Brasil, a doença apresenta elevada taxa de letalidade. Nos estágios iniciais as chances de cura
Estruturas celulares da pele artificial aumentadas em 20 vezes
são altas, mas quando descoberto tardiamente, por ser um tipo de tumor bastante resistente aos quimioterápicos usados no tratamento, a sobrevida dos pacientes é baixa. “Nossos estudos estão voltados para a busca de novas moléculas que ataquem essa célula tumoral, tentando subverter os efeitos de resistência ao medicamento”, diz Silvya. Na Europa e nos Estados Unidos existem alguns modelos de pele artificial à venda, produzidos pelas empresas Episkin e SkinEthic, subsidiárias da francesa L’Oréal, e pela MatTek, do estado de Massachusetts. Mas há dificuldades de transporte e importação, porque é um material vivo e, portanto, perecível. “A pele que desenvolvemos é idêntica à produzida no exterior”, diz Silvya. O modelo desenvolvido na USP emprega células humanas provenientes de culturas primárias, cujo poder proliferativo contribui para a diferenciação das camadas da epiderme in vitro. Isso vai permitir a produção de kits sob encomenda, de acordo com a necessidade do cliente, pois é possível reproduzir a pele integralmente ou somente a derme ou a epiderme. Os produtos encontrados no mercado internacional empregam linhagens celulares estabelecidas. Embora sejam de manipulação mais fácil e não dependam de doadores, como passaram por alguns processos de transformação elas não se diferenciam em múltiplas camadas, como as células primárias. “No nosso produto, as transformações são minimizadas pelo curto tempo de cultivo no laboratório”, diz Silvya. Nos kits sob encomenda podem ser incluídos, por exemplo, melanócitos, células que em geral estão ausentes dos produtos que estão no mercado. Se o objetivo for avaliar os efeitos de novas moléculas destinadas à pigmentação da pele, melanócitos que refletem as diferentes etnias poderão ser incorporados à cultura celular para produzir a pele artificial pigmentada. Na avaliação de quimioterápicos antimelanoma, a pele poderá ser produzida com o melanoma, simulando, in vitro, o processo de invasão tumoral.
Uma das possibilidades futuras para a pele artificial desenvolvida na USP é utilizá-la em cirurgias reparadoras para pacientes queimados ou com lesões crônicas, uma tendência que tem crescido em outros países. Nos Estados Unidos, um grupo de pesquisadores liderados pelo professor James McGuire, da Universidade Temple, na cidade de Filadélfia, tem utilizado com sucesso a pele artificial para tratamento de feridas crônicas em pacientes diabéticos. Na Nova Zelândia, a tendência é incorporar substâncias como mel e partículas de prata, que apresentam, respectivamente, propriedades antissépticas e antibacterianas aos enxertos feitos a partir do colágeno. A pesquisa que resultou na pele artificial foi iniciada em 2005, quando a professora Sílvia Berlanga de Moraes Barros, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da USP, testava compostos com atividade protetora contra os raios ultravioleta do tipo UVB, os mais lesivos para a pele. Silvya Stuchi, na época recém-contratada como professora associada da FCF, já havia enveredado desde o seu mestrado por um caminho que lhe forneceu o conhecimento e os instrumentos necessários para desenvolver um modelo de pele artificial. “O resultado da minha tese foi uma estrutura muito semelhante à derme, que tinha como base o colágeno de tendão de camundongos”, diz a pesquisadora. Depois de concluir o mestrado e o doutorado na Unicamp, Silvya foi para os Estados Unidos fazer o pós-doutorado com bolsa da FAPESP. Lá ficou por pouco tempo, o suficiente para aprender a fazer vasos sanguíneos artificiais. Ao regressar, participou do grupo da pesquisadora Mari Cleide Sogayar, do Instituto de Química da USP, que trabalha em um projeto de transplante de células para pacientes diabéticos. Dois anos depois, passou no concurso da Faculdade de Ciências Farmacêuticas. Como já sabia fazer a derme, ela propôs à professora Sílvia Berlanga testar os compostos para proteção solar inicialmente nesse modelo. “Depois tentaria reorganizar o epitélio, um tecido coeso, estratificado, formado por várias camadas de queratinócitos, e em seguida seriam adicionados os melanócitos, reproduzindo a unidade dermo-epidérmica e assim teríamos a
nívea oliveira/usp
pele”, relata. A grande dificuldade para transpor essa etapa era conseguir dois tipos de células humanas específicas, os melanócitos e os queratinócitos. “Só tínhamos os fibroblastos, que podem ser comprados nos bancos de células”, diz. A oportunidade surgiu com um convite para passar um ano no Departamento de Dermatologia da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, para trabalhar com medicamentos antitumorais para a pele, uma linha de pesquisa que já vinha desenvolvendo. “Fui trabalhar com a professora espanhola María Soengas, que hoje é uma das líderes acadêmicas nessa área”, diz Silvya. Na época, María Soen gas, que atualmente chefia o grupo de melanoma do Centro Nacional de Investigações Oncológicas (CNIO) da Espanha, fez uma parceria com a universidade norte-americana para desenvolver pesquisas com esse tipo de tumor. Recentemente, o grupo da pesquisadora espanhola identificou um composto sintético capaz de desencadear a autodestruição em massa de células de melanoma, o que abre as portas para fabricação de novos medicamentos. Modelo brasileiro - Durante o período
que passou em Michigan, Silvya aprendeu a isolar e a produzir uma cultura de queratinócitos e melacinócitos de pacientes humanos a partir da pele de prepúcio de recém-nascidos. “É um material com capacidade proliferativa muito grande”, relata. E foi além no seu objetivo. Ela propôs à pesquisadora María Soengas reproduzir a pele artificial seguindo o modelo brasileiro, desenvolvido com base em um projeto feito em parceria com os pesquisadores Luisa Lina Villa e Enrique Boccardo, do Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer, em São Paulo. “O nosso objetivo inicial era estudar novos fármacos em melanoma, mas percebemos que a indústria cosmética brasileira precisava da pele que desenvolvemos para testar novos princípios ativos”, diz Silvya. Na linha de pesquisa de novos fármacos, o grupo da professora Sílvia Berlanga já testou na pele artificial uma nova molécula isolada de uma planta
Placa de cultura de modelo biomimético
da flora brasileira com potencial quimioterápico. “No lugar do melanócito é colocado o melanoma”, explica Silvya. “Com a aplicação da nova molécula foi observada uma regressão do melanoma in vitro.” Os dados, que estão sendo preparados para a publicação, constam da tese da doutoranda Carla Brohem. Algumas empresas já procuraram o grupo de pesquisa da USP para estabelecer parcerias, mas até o momento nenhum acordo foi formalizado. “Estamos preparados para fazer testes com a pele artificial, mas não de forma sistemática nem em escala industrial.” Para isso, o modelo precisa ser validado de acordo com os padrões internacionais. Até agora, o grupo de pesquisa da Faculdade de Ciências Farmacêuticas recriou a pele artificial com células provenientes do banco da Universidade de Michigan. Para suprir a demanda futura, foi estabelecida uma parceria com o Hospital Universitário da USP. “Quando for aprovada pelo comitê de ética, já que se trata de patrimônio genético humano, vamos receber a pele descartada em cirurgias plásticas reparadoras”, diz a pesquisadora. n
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O Projeto Geração de peles artificiais humanas e melanomas invasivos como plataforma para testes farmacológicos
modalidade
Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa Coordenadora
Silvya Stuchi Maria-Engler – USP investimento
R$ 145.597,39 (FAPESP)
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Adest
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Engenharia do Petróleo
Sem areia LNLS e empresa de Campinas desenvolvem filtro para a extração de óleo do fundo do mar Marcos de Oliveira
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xtrair petróleo do fundo do mar não é tarefa das mais fáceis. A perfuração do solo marinho envolve os desafios de superar as rochas, a pressão e a água salgada. Os equipamentos precisam ser elaborados para esse ambiente e um cuidado pouco conhecido fora das áreas relacionadas à exploração petrolífera é a obtenção de óleo livre de areia. A retenção do material arenoso é feita com um equipamento chamado de Tela Premium que utiliza uma espécie de filtro até agora produzido por apenas três empresas no mundo, uma norte-americana, uma japonesa e outra alemã. “Somente a Petrobras gasta com esse equipamento cerca de US$ 80 milhões por ano”, estima Samuel Tocalino, sócio da Adest, empresa incubada na Companhia de Desenvolvimento do Polo de Alta Tecnologia de Campinas (Ciatec), no interior paulista, que firmou em outubro um contrato de transferência de tecnologia com o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), da mesma cidade, para produzir a Tela Premium no Brasil. A tela consiste em um tubo de até 12 metros de comprimento e 16,5 centímetros de diâmetro que é mergulhada no poço de petróleo. Ela está conectada na parte inferior da coluna de produção ligada à plataforma. Dependendo da extensão e da geometria, várias Telas Premium são acopladas, podendo chegar a alguns quilômetros de comprimento. Por meio de furos laterais, ao longo do corpo da parte externa do tubo, o óleo adentra o sistema e passa por um filtro formado por uma malha metálica que envolve a parte interna e retém a areia, deixando o petróleo passar (foto acima). “Esse meio filtrante é que envolve tecnologia de ponta para a produção, principalmente em relação à soldagem”, diz o engenheiro de petróleo Paulo Dore Fernandes, consultor sênior da área de engenharia de poços do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento (Cenpes) da Petrobras.
Plano estratégico - “O processo de sol-
dagem resulta na união de telas metálicas para formar o filtro. Em laboratório, fizemos ensaios de corrosão, resistência mecânica e análise microestrutural para qualificar amostras e protótipos”, diz Bagnato. Os estudos realizados no LNLS foram propostos em conjunto por Bagnato e Tocalino. “Eu havia trabalhado como funcionário em uma empresa que prestava serviços e vendia equipamentos para a área de exploração petrolífera. Sabia da necessidade da Petrobras e de outras empresas que exploram petróleo no Brasil em ter a Tela Premium”, explica Tocalino. Desde 2003 o governo federal, por meio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) com apoio do Fundo Setorial do Petróleo e Gás Natural (CTPetro) e do Programa de Mobilização da Indústria Nacional de Petróleo e Gás Natural (Prominp), elabora editais para incentivar empresas a produzir equipamentos da indústria petroleira e substituir os importados com vantagens tecnológicas e preços competitivos. “Comecei a pensar em produzir esses filtros e passei a procurar quem dominasse a tecnologia de soldagem por difusão. Na Unicamp indicaram-me o professor Osmar do LNLS.” O Síncrotron solicitou o financiamento de um projeto à Finep com recursos do CTPetro, fundo formado com recursos da exploração de petróleo. Iniciado em 2007, o projeto teve finan-
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O Projeto Desenvolvimento de elementos filtrantes para ambientes químicos agressivos encontrados na produção de petróleo
modalidade
Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) Coordenador
Samuel de Almeida Prado Tocalino – Adest investimento
R$ 254.023,29 e US$ 84.567,73 (FAPESP)
ciamento de R$ 800 mil da Finep e R$ 200 mil da empresa. Neste final de 2009 a Adest e o LNLS estão operando uma planta piloto para finalizar o produto. “Os primeiros testes serão provavelmente em Sergipe, entre fevereiro e março de 2010, num poço em terra onde os riscos e custos são menores. Se positivos, a etapa seguinte é no mar”, diz Dore. Depois de aprovados, a empresa nacional estará qualificada para produzir a Tela Premium e vender para a Petrobras. A tecnologia do processo de soldagem do filtro está protegida por um acordo de confidencialidade acertado entre a Adest e a Associação Brasileira de Tecnologia de Luz Síncrotron (ABTLuS), operadora do LNLS para o Ministério de Ciência e Tecnologia. As partes também firmaram um contrato de transferência de tecnologia por um período de cinco anos em que o labo-
ratório terá direito a 3% de royalties sobre o valor líquido das vendas dos produtos e serviços. Esse é o primeiro contrato de transferência de tecnologia do Sícrotron a gerar royalties que serão reaplicados em projetos de pesquisa. Tocalino diz que além da Petrobras, natural compradora das telas, as empresas internacionais que exploram o mar territorial brasileiro também estão interessadas no produto. “Elas precisam, por exigência do contrato, ter um índice mínimo de nacionalização que varia de acordo com cada leilão da ANP [Agência Nacional do Petróleo].” Uma empresa norueguesa, a Statoil, já manifestou interesse nas telas para uso no Brasil e no exterior e vai financiar um projeto de qualificação técnica desse material sob a coordenação do LNLS. O processo que utiliza a soldagem por difusão terá várias outras aplicações além da produção das Telas Premium. O filtro também poderá ser utilizado no saneamento básico, em esgotos, no processamento de polímeros e na produção de combustíveis. Ainda com a parceria do LNLS, a Adest solicitou um projeto ao programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) da FAPESP, iniciado em 2008, envolvendo a tecnologia de soldagem por difusão no desenvolvimento de tecidos metálicos adaptáveis aos ambientes mais agressin vos em relação à corrosão.
Tela Premium, acima, e amostras produzidas no LNLS da malha metálica que separa a areia do petróleo
LNLS
“Desenvolvemos um material por um processo chamado de Soldagem por Difusão, em meio a vácuo, em que átomos de um material migram para outro e vice-versa, num trabalho feito em altas temperaturas”, explica Osmar Bagnato, coordenador do Grupo de Materiais do LNLS. O grupo possui a experiência de produzir componentes para uso nos aceleradores de partículas nas linhas de luz do LNLS, como sensores, resfriadores e outros equipamentos eletroeletrônicos e estruturais. O Síncrotron é um acelerador de elétrons formado por um tubo de vácuo circular com 93 metros de circunferência. Os elétrons emitem, por influência de ímãs ao longo do anel, ondas eletromagnéticas que vão do raio X até o ultravioleta. Elas servem para análise, em estações de trabalho, de estruturas orgânicas e inorgânicas no nível atômico.
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QUÍMICA
Película com nanopartículas de óxido de titânio ajuda no controle de infecções
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ma película finíssima composta por nanopartículas de óxido de titânio com alto poder bactericida, que pode ser empregada em pisos cerâmicos, azulejos, vidros, plásticos e outros materiais, foi desenvolvida na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), no Paraná, em parceria com a Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara, no interior paulista, com um novo método, mais simples e econômico. “Utilizamos alta pressão no processo em um forno especialmente construído para essa finalidade e, dessa forma, conseguimos reduzir para cerca de 400ºC a temperatura para a produção do filme fino”, explica Thiago Sequinel, aluno de doutorado do Instituto de Química da Unesp, responsável pela pesquisa, que ficou com o primeiro lugar neste ano na competição internacional Idea to Product (Da ideia ao produto), realizada anualmente na Universidade do Texas, em Austin, nos Estados Unidos, desde 2001, que tem como objetivo desenvolver novas gerações de empreendedores de tecnologia. Sequinel foi o representante da equipe Nanoita, coordenada pelo professor Sergio Mazurek Tebcherani, da UEPG e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia dos Materiais em Nanotecnologia (INCTMN), e teve como concorrentes representantes de outras 15 universidades da Ásia, Europa, América do Norte e América do Sul. Em segundo lugar ficou a Escola de Negócios de Estocolmo, na Suécia, e em terceiro a Universidade do Colorado, nos Estados Unidos.
Sergio Tebcherani/UEPG
O filme pode ser aplicado do Centro Multidisciplinar Etapas da formação em cerâmicas ou azulejos de para o Desenvolvimento de do filme fino hospitais e cozinhas indusMateriais Cerâmicos e coorobtidas por triais. “Quando a bactéria endenador do INCTMN, tammicroscopia tra em contato com a película bém deu a sua contribuição. eletrônica é exterminada, reduzindo as Coube a ele fazer a caracteride varredura taxas de infecções hospitalares zação do material. e alimentares”, diz Sequinel. No mercado existem proFuturamente, o produto podutos destinados a pisos hosderá ser utilizado em residências, como pitalares e outros locais em que o comforma de combate aos processos alérbate a infecções é uma constante, como gicos desencadeados por bactérias. A sprays bactericidas. “Mas, com o tempo, metodologia empregada para obtenção a película formada pelo spray acaba se do material resultou em um filme fino soltando do substrato”, relata Sequinel. de alta qualidade. “Como o material No caso do filme fino feito com naobtido adere perfeitamente à superfínopartículas de óxido de titânio, um cie onde é aplicado, seu tempo de vida composto inorgânico altamente estável, útil é o mesmo da peça cerâmica, já o efeito bactericida só será alterado no que o filme não se desprende”, explica caso de quebras ou rachaduras no piso o pesquisador, que desde o mestrado tratado com o material. A metodoloem engenharia de materiais na UEPG, gia desenvolvida também permite criar uma diversificada linha de produtos. sob orientação do professor Tebcherani, tem trabalhado no desenvolvimento Para isso, basta mudar o óxido utilizade uma nova metodologia para a fordo para a formação do filme. Ou seja, na atual fase da pesquisa, Sequinel tem mação de filmes finos. No doutorado, feito na Unesp de trabalhado com o mesmo processo de Araraquara com orientação do profesobtenção de filmes finos para várias sor José Arana Varela, deu continuidade outras aplicações, principalmente em à linha de pesquisa que vinha desenvoldispositivos eletrônicos. Em um dos vendo. Varela e Tebcherani atuaram coestudos, o foco são as propriedades mo parceiros nesse trabalho. O profesmecânicas de nanopartículas de óxido sor Elson Longo, da Unesp, diretor-geral de estanho, um material semicondutor.
Ao que tudo indica, esse composto poderá ser utilizado em lentes de óculos para filtrar os raios solares. Na competição Idea to Product, os hospitais e as indústrias de alimentos foram os dois grandes nichos de interesse para a nanopartícula de óxido de titânio. “O mercado para a película no Brasil fica em torno de US$ 20 bilhões e nos Estados Unidos chega a US$ 26,5 bilhões”, diz Sequinel. Os dados são da Associação Nacional de Fabricantes de Cerâmica para Revestimento (Anfacer) e constam da apresentação do produto, feita com a consultoria do professor Rene José Rodrigues Fernandes, diretor do Centro de Empreendedorismo e Novos Negócios da Fundação Getúlio Vargas (FGV) de São Paulo. “Foi o professor Fernandes que contribuiu para transformar a ideia em um produto”, diz Sequinel. Desde 2008, a FGV é a promotora da competição na América Latina. Nesta competição os estudantes devem elaborar o conceito do produto desenvolvido e mostrar que a inova ção apresentada tem potencial para a criação de novos negócios. Como vencedora dessa etapa em setembro deste ano, em que se destacou entre outros 27 participantes de instituições brasileiras e latino-americanas, a Nanoita foi para a final nos Estados Unidos. Lá, o projeto foi avaliado por uma banca de especialistas de áreas como engenharia, economia, química, física e medicina, além de representantes do setor privado. Como prêmio, Sequinel recebeu um troféu e US$ 10 mil. Atualmente o pesquisador estuda a adaptação do processo, que já tem três depósitos de patente – um deles trata da obtenção de nanopartículas e os outros dois referem-se à formação do filme –, para aplicação em grande escala. A equipe envolvida no projeto está estudando a melhor forma de vender o produto. Algumas empresas do setor cerâmico já entraram em contato, mas nenhum licenciamento foi formalizado até agora. n
Dinorah Ereno
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agricultura
Irrigação alternativa Grupo da USP obtém produtividade maior da cana-de-açúcar ao irrigar a lavoura com esgoto doméstico tratado Yuri Vasconcelos
eduardo cesar
Estação de Tratamento de Esgoto em Piracicaba: água para a agricultura
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ma tecnologia que usa efluentes domésticos para irrigação agrícola pode ajudar a economizar água e contribuir para a agricultura deixar de ser a atividade econômica que mais consome esse líquido. A produção de um quilo de arroz, por exemplo, necessita de 2 mil a 5 mil litros de água. Um grupo de pesquisadores da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo (USP), em Piracicaba, no interior
paulista, tem feito avanços consideráveis nessa área e, em um dos experimentos, com cana-de-açúcar, conseguiu elevar em até 50% a produtividade ao irrigar a lavoura com esgoto doméstico tratado. Os resultados do estudo, que faz parte de um projeto temático apoiado pela Fa pesp e coordenado pelo professor Adolpho José Melfi, da Esalq e do Núcleo de Pesquisa em Geoquímica e Geofísica da Litosfera (Nupegel) ligado à pró-reitoria da USP, foram publicados na edição de agosto na revista Scientia Agricola.
O uso de águas residuárias – outro nome para efluente ou esgoto doméstico – para irrigação de lavouras, segundo o pesquisador, é seguro e oferece vários benefícios. “Um risco que existe são os organismos patogênicos presentes no esgoto. Mas, antes de ir para a plantação, o efluente tratado pode passar por um processo de desinfecção, por exemplo, com cloro ou por radiação ultravioleta, que praticamente elimina os patógenos presentes no efluente”, ressalta. “Também é feito um monitoramento PESQUISA FAPESP 166
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essenciais para o crescimento das plantas. Assim, os agricultores podem usar menos fertilizantes em suas plantações, o que é um benefício de ordem econômica. “Esse é um aspecto importante, porque os fertilizantes têm um impacto grande nos custos da produção agrícola”, destaca a professora Célia Regina Montes, do Cena e do Nupegel, que também integra o grupo de pesquisa. Em uma das plantações experimentais, de capim para feno, a economia no uso de fertilizante nitrogenado mineral chegou a 80% num ano com pouca chuva, quando a irrigação com efluentes foi mais intensa.
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modalidade
Projeto Temático Coordenador
Adolpho José Melfi – USP investimento
R$ 1.055.509,45 e US$ 227.031,64 (FAPESP)
Lagoas e reatores - Esgotos tratados
por diferentes sistemas, segundo a pesquisadora, podem ser utilizados para irrigação, mas neste projeto temático estão sendo utilizados apenas os de origem doméstica. “Os efluentes industriais possuem características diferentes e compostos indesejáveis, como metais pesados. As regiões agrícolas, em geral, são menos industrializadas e, portanto, os esgostos tratados são predominantemente domésticos”, ressalta. Nas pesquisas conduzidas na USP foram utilizados esgotos tratados por dois processos biológicos: lagoas de estabilização e reatores anaeróbios, conhecidos pela sigla Uasb, de Upflow Anaerobic Sludge Blanket, seguido de processo de lodos ativados. No primeiro caso, o motor do tratamento é a energia solar. Esse
Estações de tratamento perto da lavoura facilita a irrigação 74
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O Projeto Uso de efluentes de esgotos tratados por processos biológicos (lagoas de estabilização e reatores Uasb/lodos ativados) em solos agrícolas
CECAPGoogle
detalhado e constante da qualidade do efluente, do solo, do lençol freático e, evidentemente, da cultura agrícola para evitar qualquer tipo de contaminação.” De acordo com Melfi, o alto teor de sódio presente nos efluentes pode alterar a estrutura do solo, pela migração das argilas e consequente redução da aeração e da condutividade hidráulica do solo. Esse problema, segundo Melfi, pode ser solucionado com a adição de gesso agrícola ao solo. Ele é colocado na terra em forma de pó, anulando o efeito do sódio”, afirma. Quanto aos lençóis freáticos, a maior preocupação é com a contaminação por nitrogênio, um macronutriente presente no efluente que, se for absorvido em excesso pela planta, pode se infiltrar no solo e na forma de nitrato poluir as reservas subterrâneas de água. A principal vantagem desse novo sistema é ambiental, porque, além de reduzir o consumo de água, a irrigação com águas residuárias provoca uma melhora na qualidade dos cursos d’água porque eles deixam de receber os esgotos tratados das cidades. Embora tratados previamente, os efluentes contêm uma carga de nutrientes (principalmente nitrogênio, fósforo e potássio) que contribui para a proliferação de algas e alteração da qualidade das águas, num processo chamado de eutrofização. No entanto, a presença desses nutrientes nos efluentes é uma grande vantagem do ponto de vista agrícola, porque são
sistema é composto por um conjunto de lagoas contendo bactérias aeróbias e anaeróbias que degradam a matéria orgânica dos esgotos. Os esgotos permanecem por um determinado período de tempo nas lagoas e quando saem sua carga orgânica foi substancialmente reduzida, de forma que podem ser lançados nos cursos d’água. As lagoas de estabilização são um dos sistemas mais usados em cidades de pequeno e médio porte do interior paulista e são operadas pela Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo) em 319 municípios do estado. Nos reatores anaeróbios, o processo também é biológico, mas depende de energia elétrica para funcionar. O tratamento é feito por bactérias anaeróbias e o efluente passa posteriormente por uma lagoa de aeração antes de voltar para o rio. Nos dois casos, a desinfecção por cloro ou radiação ultravioleta é feita no final do tratamento. Em tese, qualquer lavoura pode ser irrigada com efluentes domésticos, embora o ideal seja priorizar alimentos que não são consumidos in natura, mas processados industrialmente. Dessa forma, as altas temperaturas empregadas no processamento reduziriam o risco de contaminação por organismos patogênicos. No temático da FAPESP, do qual também fazem parte pesquisadores da Escola Politécnica, Faculdade de Saúde Pública e Instituto de Geociên cias da USP, Embrapa Instrumentação Agropecuária, unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária em São Carlos, Instituto Nacional de
Pesquisas Espaciais (Inpe), em São José dos Campos, e Universidade do Sul Toulon-Var, na França, foram feitos experimentos com plantações de milho, girassol, café, capim para feno e cana- -de-açúcar, no campo experimental de Lins, no interior paulista, totalizando uma área de seis hectares. No campo de Piracicaba os experimentos são com as culturas de laranja e cana-de-açúcar em área total de dois hectares. Em todas elas houve ganhos de produtividade, em parte por conta do processo de irrigação – algumas culturas não são normalmente irrigadas, como a cana-de-açúcar – e, também, pelo aporte de nutrientes existentes no efluente. Os efeitos da irrigação com águas residuá rias na produtividade da lavoura de cana-de-açúcar, reportados no artigo da revista Scientia Agricola, foram estudados durante 16 meses numa lavoura na cidade de Lins. Ao final do estudo, os pesquisadores constataram um aumento de produtividade de cerca de 50%. O emprego de esgoto tratado na irrigação não é novidade, já sendo utilizado há muito tempo. As chamadas sewage farms, ou fazendas de água de esgoto, da Austrália, Alemanha e França já operam há mais de um século. Em outros países, como Israel, Estados Unidos, Arábia Saudita, Chile e México, a introdução do sistema é mais recente, mas já há produtos agrícolas comercializados que tiveram esse tipo de irrigação – as laran-
jas de algumas plantações da Flórida, nos Estados Unidos, são um deles. No Brasil o assunto começou a ser estudado com mais profundidade há cerca de 10 anos, exatamente pelo grupo da Esalq. Ainda não existe uma legislação federal específica sobre o tema. Em 2005 uma resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) definiu as diretrizes gerais do uso de esgoto tratado em cinco diferentes modalidades: irrigação agrícola e florestal, uso urbano, uso industrial, recuperação de áreas degradadas e aquicultura. Agora, para cada uma das práticas, é necessária uma resolução específica que, entre outros aspectos, regulamente a qualidade do efluente. “Um grupo ligado à Câmara Técnica de Ciência e Tecnologia do Conselho Nacional de Recursos Hídricos já está trabalhando em uma minuta da resolução para a regulamentação do uso agrícola e florestal”, afirma Célia Montes. “Não tenho dúvidas de que, tomando todos os cuidados, já poderíamos estar adotando esse sistema de forma muito mais intensa no país há algum tempo.” Para os pesquisadores do projeto, o mais indicado é fazer a irrigação com água de reúso sempre pelo método de gotejamento, porque dessa forma evita-se a dispersão de aerossóis contendo partículas do efluente. Em certas culturas, como o capim para feno, em que é necessário irrigar por aspersão,
eduardo cesar
Cana-de-açúcar irrigada com efluente: até 50% a mais em produtividade
recomenda-se suspender a irrigação em períodos de vento forte. “É uma precaução extra”, diz Adolpho Melfi. Ele destaca também que o ideal é que as estações de tratamento de esgoto estejam localizadas em pontos elevados e próximos à cultura, facilitando o envio dos efluentes tratados para um reservatório junto às plantações. “Também podem ser usados caminhões-pipa no transporte”, afirma Melfi. Outra preocupação dos pesquisadores é com a aceitação por parte dos produtores e consumidores de alimentos que foram irrigados com esgoto tratado. No ano passado foi feito um estudo com agricultores de Lins sobre a percepção que eles têm desse novo método. A maciça maioria respondeu que não teria problemas em adotar o sistema, desde que ele tivesse sido validado por uma instituição de pesquisa, como a USP, por exemplo. A única ressalva apontada pelos entrevistados foi quanto ao possível custo de implantação e operação do sistema. Esse estudo fez parte de uma das 10 dissertações de mestrado de alunos que participam do projeto desde o início das pesquisas em 2000 e que foi englobado pelo projeto temático, iniciado em 2005 e com previsão de encerramento no próximo ano. Outras sete teses de doutorado e oito trabalhos de pós-doutorado também foram produzidos neste projeto, e mais 14 trabalhos de iniciação científica. “Além de demonstrarmos a viabilidade do sistema, o projeto temático da Fapesp tinha também como objetivo a formação de recursos humanos nesta área”, destaca Melfi. n > Artigos científicos 1. Leal, R.M.P.; Firme, L.P.; Montes, C.R.; Melfi, A.J.; Piedade, S.M.S.; Soil exchan geable cations, sugarcane production and nutrient uptake after wastewater irrigation. Scientia Agricola. v. 66, n. 2, p. 242-49. 2009. 2. FONSECA, A.F.; MELFI, A.J.; MONTEIRO, F.A.; MONTES, C.R., ALMEIDA, V.V.; HERPIN,U.; Treated sewage effluent as a source of water and nitrogen for Tifton 85 bermudagrass. Agricultural Water Management. v. 87, p. 328-36, 2007.
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Nav ega ção
Engenharia Naval
garantida IPT moderniza laboratório para testes e ensaios de projetos de embarcações Evanild o da Silveira
Tanque com 280 metros de comprimento produz ondas e testa miniaturas 76
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ntes da construção em um estaleiro, os projetos das grandes embarcações, como os navios, passam por testes e ensaios em laboratórios de engenharia naval. Um dos mais importantes do Brasil, o do Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo (IPT), acaba de passar por uma reformulação que o transformou num dos mais modernos do mundo. Inaugurado em 1956, quando o país começou a se tornar capaz de construir grandes navios, e ampliado em 1980, o laboratório do IPT possui um tanque de provas com 280 metros (m) de comprimento, por 6,6 m de largura e 4,5 m de profundidade. Um equipamento que produz ondas deixa o tanque parecido com um mar em miniatura, por onde navegam navios em escala reduzida na forma de maquetes de até 5 m de comprimento. Vários aparelhos instalados ao longo do tanque testam e analisam parâmetros da navegação como velocidade, comportamento nas ondas e resistência da água. O projeto do novo laboratório começou a ser delineado a partir de 2005, com três objetivos principais. Um deles foi criar um centro multiusuário, com 15 estações de trabalho para pesquisadores, projetistas e clientes do IPT, que servirá para apoiar a integração entre eles em projetos conjuntos de pesquisa e desenvolvimento na área de hidrodinâmica. O segundo foi melhorar a capacitação tecnológica do Centro de Engenharia Naval e Oceânica (Cnaval) do IPT, que abriga o laboratório, por meio da aquisição de equipamentos de medição para ensaios no tanque de provas, túnel de vento e túnel de cavitação para estudo de hélices. O último objetivo também realizado foi reduzir o tempo de construção de modelos físicos para serem testados. Foram investidos na reforma R$ 9,5 milhões, 90% vindos da Petrobras, a
Uma máquina de prototipagem rápida para o desenvolvimento de modelos de hélices e de lemes foi outro equipamento adquirido. É uma espécie de impressora em três dimensões. Os modelos são projetados em computador e depois construídos pela máquina numa resina especial, camada por camada. O sistema alcança um nível de detalhamento difícil de ser obtido em um processo convencional de usinagem. Além disso há também uma grande redução no tempo de produção, que passa de 45 a 60 dias para um ou dois dias. Pressão na hélice - Outra modernização
tecnológica foi feita no túnel de cavitação, que passou por uma grande reforma de sua estrutura, com desmontagem e proteção contra corrosão interna. Cavitação é o nome que se dá ao fenômeno de vaporização de um líquido pela redução da pressão, durante seu movimento. Esse fenômeno pode comprometer o desempenho do navio. “A cavitação traz grandes preocupações aos projetistas, porque pode gerar efeitos indesejáveis como queda de empuxo (perda de força fornecida pela hélice), erosão das pás e aumento de vibrações induzidas pelo propulsor”, diz Padovezi.
fotos eduardo cesar
maior cliente do laboratório, e 10% da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). Desse total, cerca de R$ 4 milhões foram aplicados em obras civis, que consistiram na troca de cobertura do tanque de provas e na renovação e ampliação das áreas técnicas do Cnaval. O restante dos recursos foi usado para a aquisição de equipamentos, como um braço robótico – que custou R$ 1,3 milhão –, usado para a fabricação dos navios em miniatura. O braço foi a grande novidade da reformulação e resolveu um dos maiores gargalos do laboratório, que era o tempo gasto para a confecção de um modelo de navio em escala reduzida. “Antes a construção desses modelos era artesanal”, explica Carlos Daher Padovezi, diretor do Cnaval. “Eles eram desenhados em papel e feitos em madeiras por marceneiros. Cada um levava de 45 a 60 dias para ser construído. Agora são modelados no computador e esculpidos pelo braço robótico em blocos de poliuretano ou isopor. Depois as superfícies recebem tratamento com resina de fibra de vidro. O processo todo demora de cinco a seis dias. Com isso poderemos fazer quatro vezes mais ensaios, passando de 20 para 80 por ano.”
Braço robótico esculpe modelo de embarcação
Além da reformulação estrutural do túnel, foram comprados equipamentos modernos para a realização de ensaios, como dinamômetros, para medir o desempenho das hélices, e sistemas para visualização de cavitação e hidrofones, para medir ruídos embaixo d’água. O túnel de vento não passou por reformas, mas recebeu equipamentos, entre os quais o mais importante é o PIV (Particle Image Velocimetry), que funciona com feixes de laser e uma ou duas câmeras, dependendo se a medição do escoamento é bi ou tridimensional. “Ele mede o deslocamento de uma partícula qualquer no ar ou na água, pela emissão de dois pulsos simultâneos de laser, com a captação das imagens por uma ou duas câmeras especiais”, explica Padovezi. “O software próprio consegue, por meio da comparação de imagens da partícula obtidas com a emissão de dois pulsos, indicar a velocidade local do escoamento.” Um equipamento PIV também foi adquirido para o tanque de provas e para o túnel de cavitação. A reforma preparou o Cnaval para atender a demanda de uma indústria em expansão. “Estamos mais eficientes para responder aos novos pedidos”, garante Padovezi. “Temos atualmente 10 projetos de pesquisa em andamento. Entre nossos clientes estão a Petrobras, a Universidade Federal do Pará, o Departamento Hidroviário do Estado de São Paulo, a Hermasa Navegação da Amazônia e a Marinha do Brasil.” Vários estaleiros nacionais estão iniciando as suas encomendas de estudos experimentais. Se depender do crescimento do setor naval, outros clientes não faltarão. A indústria, que gerava 45 mil empregos em 1979 e chegou a 1999 com os estaleiros quase parados, vivendo de reparos em navios e empregando apenas 2 mil pessoas, passa hoje por situação similar à do auge com previsão de crescimento. n PESQUISA FAPESP 166
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humanidades
Antropologia
A tristeza dos trópicos Morte de Lévi-Strauss traz revisão de sua ciência Carlos Haag
Lévi-Strauss em sua casa na França, onde viveu recolhido nos seus dias finais
lósofo marxista a etnólogo brilhante. Na França assumiu a cadeira de antropologia no Collège de France, em Paris, escrevendo a maioria de suas grandes obras, como As estruturas elementares do parentesco (tese gestada durante sua estadia americana), O pensamento selvagem, Antropologia estrutural e As mitológicas. Um resumo biográfico como este parece pouco para uma vida centenária. O mais impressionante é que essas possibilidades são oferecidas a um amplo espectro de domínios de pesquisa: filosofia, sociologia, história, história das religiões, literatura, psicanálise, arte etc. Sua contribuição afetou e, parece, ainda afetará esses campos por muitos anos, o que talvez explique a sua longevidade.
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sua maior contribuição, porém, é de uma simplicidade fundamental: não pode existir uma civilização absoluta mundial porque a própria ideia de civilização implica a coexistência de culturas oferecendo entre elas o máximo de diversidade, observa Marcio Goldman, antropólogo do Museu Nacional. O melhor da civilização é justamente essa “coalizão” de culturas, cada uma delas preservando a sua originalidade. Ninguém deu um golpe mais violento no racismo do que Lévi-Strauss (como bem observou
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REPRODUÇões do livro claude lévi-strauss: l’homme au regard éloigné
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om uma curta história de vida, praticamente nascida em 1870, a antropologia está baseada em quatro ou cinco nomes importantes, como Tylor, Frazer, Malinowski, Boas e Claude Lévi-Strauss, falecido recentemente, deixando os trópicos um pouco mais tristes. “Ele é provavelmente dentre todos deste grupo o mais completo antropólogo do século, cuja característica é ter sintetizado em sua obra diferentes tradições de várias escolas nacionais”, avalia o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, do Museu Nacional. Ele certamente não gostaria de ser “vítima” póstuma de tantos elogios fúnebres, como ocorreu no mês de sua morte, mas apenas que se falasse, com propriedade, de sua obra, um organismo vivo que explica os ameríndios como nenhum outro foi capaz antes dele. “É a rejeição de Lévi-Strauss à moda parisiense: o estruturalismo não pode ser uma ‘corrente de pensamento’, uma ‘escola’ e muito menos ser associado a um autor em particular. Estruturado e estruturante é o próprio modo de operação do espírito, e suas obras, portanto, não podem ser senão estruturais. Segundo ele, todos os autores de verdadeiras obras são estruturalistas”, observa a antropóloga da USP Beatriz Perrone-Moisés, para quem ele é reconhecidamente “um dos maiores pensadores do século, cujas ideias continuam bem vivas, pois continuam gerando conhecimento e sugerem múltiplas possibilidades a serem ainda exploradas”. Nascido em Bruxelas em 28 de novembro de 1908, estudou filosofia e direito em Paris, mas hoje é considerado o criador da antropologia estrutural e um dos maiores pensadores do século XX. Tinha 26 anos quando veio ao Brasil, em 1935, integrando a chamada Missão Francesa que participou da criação da USP. Nos poucos anos em que ficou aqui viajou pelo país e fez pesquisas etnológicas com índios Kadiwéu e Nambikwara, uma experiência que resultou na escrita do celebrado Tristes trópicos. Por causa da guerra, não pôde voltar à França e instalou-se nos Estados Unidos, onde deu aulas na New School for Social Research, em Nova York, e consolidou o seu pensamento e a guinada em sua vida, de aprendiz de fi-
Pierre Bourdieu, lembra Viveiros de Castro) e, talvez, poucos pensadores nos ensinaram a ser mais humildes. Impossível não ver nessa visão resquícios do jovem de 17 anos apaixonado pela política, um militante de esquerda que se pôs a devorar Marx e a participar de organizações socialistas. “Esse otimismo por Marx nunca se aplacou e raramente eu estudo um problema de sociologia ou etnologia sem reviver minha reflexão ao ler o Dezoito Brumário ou A crítica da economia política”, gostava de dizer Lévi-Strauss, para quem “Marx, Freud e a geologia eram minhas três amantes”, porque, continuava, essas áreas do saber não se contentavam nunca com a aparência fenomênica do discurso de analisandos, dos mistérios da terra, da pragmática das relações econômicas. “Marx ensinou que a ciência social não se constrói sobre o plano dos acontecimentos, assim como a física a partir dos dados da sensibilidade”, escreveu em Tristes trópicos.
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évi-Strauss, observa Viveiros de Castro, sintetizou em suas obras a tradição da escola de sociologia de Durkheim e Mauss, a antropologia cultural americana de Boas com que entrou em contato em seu exílio nos EUA (“ele aprendeu muito com essa escola antropológica teuto-americana”, explica o pesquisador), bem como com a antropologia britânica, essa, por sua vez, influenciada pela tradição francesa. “Isso tudo faz com que ele não seja o típico pensador francês, aliado ao fato de que morou boa parte de sua vida fora da França, seja no Brasil, seja nos EUA, sabendo reunir as várias influências em seu trabalho”, observa Viveiros de Castro. Lévi-Strauss, em suas andanças pelo mundo, igualmente foi um pensador aberto para influências de outras disciplinas como a linguística, responsável, por exemplo, pela síntese da antropologia com os estudos de Jakobson, entre outros. “Foi ele também quem abriu as portas da antropologia para as ciências de ponta, como a cibernética, que era como se chamava então a informática, conectando-a com novas disciplinas como a teoria dos sistemas, a teoria da informação. Isso deu um novo perfil à antropologia, que propiciou uma nova abertura para as ciências exatas, e reuniu-a com as ciências humanas. Ele, afinal, tinha talento para matemática, bem como para as artes, e conseguiu a síntese de várias disciplinas”, explica. Acima de tudo, observa o antropólogo, Lévi-Strauss foi uma mente privilegiada, um pensador clássico no grande sentido. “Algo do temperamento de um Bach: um grande rigor formal reunido a uma grande invenção melódica. Foi o último antropólogo a conhecer tudo
Em suas expedições, o antropólogo foi recolhendo material e imagens
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sobre as populações indígenas com sua memória prodigiosa.” Curiosamente, sua influência na antropologia, cujo tempo parece, num paradoxo, sempre relativo, foi curta: cerca de 20 anos, entre os anos 1950 e 1960, encerrando-se em 1968, quando, segundo Viveiros de Castro, o estruturalismo entra em hibernação. Apenas mais recentemente é que sua obra entra novamente em reavaliação. “Essa influência curta não significa que ele não teve um papel importante, assim como o fato de ele ter sido lacônico na sua vida política, e era conservador pessoalmente, signifique que ele não teve um papel político fundamental e avançado.” O antropólogo lembra o livro Raça e história, escrito em 1952 a pedido da Unesco para combater o racismo, que, segundo ele, foi um ataque feroz ao etnocentrismo, onde se formula de forma visível o que antes apenas era restrito ao mundo acadêmico. “Ele traz para diante dos olhos ocidentais a questão dos índios americanos com seu poder intelectual, algo que nunca antes havia sido feito. O colonialismo não mais podia sair nas ruas como costumava fazer. Ele fez mais pela causa indígena do que todos os seus críticos juntos, ainda que não fosse um pregador explosivo. Foi um crítico demolidor da arrogância ocidental e colocou os índios na atualidade e eles deixaram de ser relíquia do passado, deixaram de ser alegorias, virando nossos contemporâneos. Isso vale mais do que qualquer análise”, avalia. Para o pesquisador, hoje olhamos para os ameríndios e vemos neles o futuro que poderíamos ter tido e não mais teremos, e que não teremos graças à arrogância etnocentrista criticada por Lévi-Strauss e já verificada por ele na questão ecológica. “Ele foi o pensador que mudou os termos em que a antropologia foi feita.”
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pós os terrores da Segunda Guerra Mundial, fazia sentido que tivesse admiração pelos povos primitivos, já que foi entre eles que encontrou a fraternidade. Ao mesmo tempo, ensinava, era impossível esquecer-se do conceito das diversidades e, logo, não se podia olhar para outras sociedades tomando como parâmetro a nossa e afirmando a sua superioridade sobre os chamados “primitivos”. Mais: era preciso reconhecer a força desses povos, capazes de elaborar uma sabedoria particular que os incitava a resistir a qualquer modificação de sua estrutura que privilegiava a preservação da natureza, as regras matrimoniais destinadas a manter a fecundidade e o princípio político que abolia qualquer forma de decisão que não fosse baseada na unanimidade. “São os anos de Totemismo hoje e O pensamento selvagem, nos anos 1960, uma pausa em seu trabalho
Uma pausa no trabalho de etnologia ao lado da mulher, Dina
antropológico sobre o parentesco, problemas de organização social, dramas de relação social. Lévi-Strauss começa a deslocar o seu interesse para problemas de cosmologia, classificação, mitologia. Para ele, pensamento selvagem é aquele em estado anterior ao ser domesticado pela ciência, com a finalidade de ter um rendimento, ou seja, um pensamento que não foi racionalizado em um sentido econômico-científico”, analisa Viveiros de Castro. “Ele insiste que o pensamento indígena não é confuso, obscuro, nem está perdido nas brumas da magia e da participação primitiva. Ao contrário, é um pensamento obcecado com a ordem, a distinção, a classificação. Para Lévi-Strauss não há descontinuidade entre a ciência moderna e a ciência selvagem, mas, no futuro, as duas convergem para o mesmo ponto. Enfim, ele dissolve os graves equívocos que os europeus mantinham a respeito do outro, dissolve o etnocentrismo.”A “abertura ao outro” não é uma característica europeia, cuja tendência natural é considerar o seu grupo como o exemplo acabado da humanidade e ver os demais coletivos humanos como exemplares menos perfeitos dessa humanidade. “Ao falar das percepções recíprocas da alteridade mobilizadas pela invasão e conquista europeia das Américas, Lévi-Strauss insiste na diferença radical entre o que chama de ‘abertura ao outro’, característica do pensamento ameríndio, e o fechamento fanático dos PESQUISA FAPESP 166
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Fotos de índios tiradas por Lévi-Strauss em suas viagens
europeus (fechamento político, filosófico, estético) diante da alteridade social e natural oferecida pelo Novo Mundo.” “Os ameríndios elegeram a diferença como princípio. Lévi-Strauss evidencia essa filosofia a partir de uma análise de mitos que contam as aventuras de dois personagens, mitos de ‘gêmeos’ que lhe permitem mostrar em operação o que ele chama de ideologia bipartite dos ameríndios. O lince que dá nome ao livro História de lince é um desses membros de duplas míticas, constantemente oposto ao coiote”, observa Beatriz Perrone-Moisés. “Filosofia e ética ameríndias têm na diferença o seu princípio. A ideologia bipartite dos ameríndios é expressa nos mitos de gêmeos e marca a abertura para o outro. Lévi-Strauss observa que mitos de criação por toda a América incluíram com relativa rapidez os não índios. Isso só pode ser explicado, diz ele, se admitirmos que o lugar dos brancos já se encontrasse marcado em vazio em sistemas de pensamento baseados num princípio dicotômico obrigado a desdobrar os termos a cada
Em sua sala na Universidade de São Paulo
etapa. De modo que a criação dos índios pelo demiurgo tornava necessário que ele tivesse criado também não índios.” Ou seja, lugar do outro, reservado para a alteridade, continua a pesquisadora, e concebido como fundante, está sempre lá, e, nesse sentido, a filosofia ameríndia é “aberta para o outro”.
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egundo Viveiros de Castro, o outro não era aqui apenas pensável, mas indispensável. “Nesse sentido, o Brasil foi um momento de passagem definitivo na construção de sua futura identidade profissional. Se antes de 1935 ele era um professor de filosofia do ensino secundário, a partir de 1938 transforma-se num americanista com pesquisa sobre índios brasileiros. Sua obra e carreira são devedoras da experiência brasileira”, observa a antropóloga Fernanda Arêas Peixoto, da USP. A primeira fase de sua produção apoia-se em matéria-prima obtida no Brasil, sobretudo o artigo sobre os Bororo e a tese sobre os Nambikwara, publicada em 1948. Seus trabalhos posteriores, ainda que reúnam informações etnográficas de várias regiões americanas, foram também beneficiados pela etnografia brasileira, que funciona como uma espécie de ponto de partida do qual a obra se projeta. Poderíamos dizer que a obra espiralar de Lévi-Strauss contém um movimento permanente que se traduz na incorporação de novos objetos e questões e em um retorno sistemático a antigos resultados, ao começo, os Bororo, os Nambikwara”, escreve a antropóloga em seu artigo “Lévi-Strauss no Brasil”. “Não parece exagero afirmar que os primórdios da Universidade de São Paulo e a presença dos mestres estrangeiros em São Paulo na década de 1930 reverberam até hoje nas feições adquiridas pelas ciências sociais em contexto paulista. O mesmo parece ocorrer com a etnologia, cujo florescimento foi de certo modo obstaculizado pela preponderância da sociologia. Paradoxalmente, a etnologia foi introduzida nos cursos
da USP por aquele que se tornaria o seu maior nome: Lévi-Strauss.” “Ele foi a personalidade mais mar cante da antropologia em geral, da antropologia desde que ela existe. Lévi-Strauss foi o grande sucessor, de certa maneira, de Sartre no pensamento francês e foi, ao mesmo tempo, um antagonista de Sartre. A influência de Sartre até os anos 1960 era enorme. Sartre foi um homem que, sobretudo no final da vida, tomou, literalmente, um partido político. Especialmente depois da Guerra da Argélia. E Sartre, depois da guerra e sobretudo do final dos anos 50 e começo dos anos 60, foi um homem profundamente marcado por uma visão política. O Sartre de antes da guerra era outra coisa. Mas Lévi-Strauss teve um caminho muito diferente. Lévi-Strauss era socialista, de saída, depois disso nunca entrou em nenhum partido político. E ele tinha, em relação aos seus contemporâneos, uma atitude que muitos não entenderam como política, como se ele estivesse se abstendo de uma posição política”, analisa a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha. “Na verdade, o trabalho dele tem implicações políticas extremamente centrais, a meu ver. Ele foi um ecologista antes do ecologismo existir e ele está inclusive adiante do seu tempo, por exemplo, na defesa dos
direitos dos animais, que ele não chama assim, exatamente porque ele está à frente dessas etiquetas, mas que introduziu com um tema extremamente importante. É preciso lembrar que ele coloca a antropologia e o nascimento da antropologia diretamente ligados à noção que Rousseau chamou de piedade. O que é piedade? É possibilidade de se pôr no lugar do outro, simplesmente. É isso piedade. Agora, quem é esse outro? É simplesmente o humano? Ou é também, por exemplo, o animal? Ou são aqueles que, na época em que ele começou a escrever, eram chamados ainda ‘povos sem escrita’ ou ‘primitivos’, até. Qual é, então, a implicação política dele? Não é só o ecologismo e a defesa dos animais, é a defesa de uma unidade humana. Essa política dele é, em muito larga medida, o resgate da igualdade do pensamento humano. Quer dizer que o pensamento humano é o mesmo; se ja lá onde for ele funciona da mesma maneira – não que os conteúdos sejam n os mesmos.”
> Livro Caixeta de queiroz, r. (org.). Lévi-Strauss: leituras brasileiras. Editora UFMG, 2008.
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fotos reprodução
Poderio de fogo do Minas Gerais: coberta do encouraçado com seus canhões
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História
O almirante negro e seu
encouraçado prateado 100 anos da Revolta da Chibata
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arodiando a relatividade científica, o tempo militar passa mais vagarosamente do que o civil e um século pode não ser tanto tempo assim quando o assunto é delicado para as Forças Armadas. Em 2008, ao inaugurar no Rio uma estátua do marinheiro João Cândido (1880-1969), líder da Revolta da Chibata de 1910, o presidente Lula sancionou lei de anistia póstuma ao chefe da rebelião e seus participantes. A Marinha, então, afirmou “não reconhecer heroísmo nas ações daquele movimento” e nada “tem a se opor à colocação da estátua, desde que haja o cuidado de evitar inserções ofensivas à Força e às vítimas dos amotinados”. Não foi a primeira reação negativa dos marinheiros. “Na década de 1930, o jornalista Aporelli, o Barão de Itararé, tentou publicar uma crônica do feito e foi miseravelmente assaltado por oficiais da nossa Marinha de Guerra que o deixaram nu e surrado numa calçada de Copacabana”, escreveu Oswald de Andrade, para quem a revolta e suas reivindicações tinham ecos do Encouraçado Potemkim, filme soviético de Eisenstein. Em 1964 o jornalista Edmar Morel teve seus di-
reitos políticos cassados por ter escrito em 1959 A revolta da chibata, hoje um clássico, relançado agora pela Editora Paz e Terra por causa do centenário da revolta em 2010. “Acordei em meio duma maravilhosa aurora de verão em novembro de 1910. A baía esplendia com seus morros e enseadas. E vi na baía, frente a mim, navios de guerra, todos de aço, que se dirigiam em fila para a saída do porto. Reconheci o encouraçado Minas Gerais que abria a marcha. Seguiam-no o São Paulo e mais outro. Todos ostentavam uma pequena bandeira vermelha. Seria toda uma revolução numa aurora?”, perguntou-se Oswald de Andrade, testemunha ocular da história. “De repente vi acender-se um ponto no costado do Minas e um estrondo ecoou perto de mim, acordando a cidade. Um estilhaço de granada bateu perto num poste da Light. Era contra a chibata, a carne podre que se levantavam os soldados do mar. O seu chefe, o negro João Cândido, imediatamente guindado ao posto de almirante, tinha se revelado um hábil condutor de navios. A revolta teve o mais infame dos desfechos. Foi votada pelo Congresso a anistia, mas presos eles foram massacrados e
só escapou o almirante João Cândido.” O motim descrito pelo modernista é, com certeza, o episódio mais analisado da história da Marinha brasileira, mas, compreensivelmente, a maioria dos estudos foca na história social, em especial nas raízes históricas do recrutamento, as condições de vida e trabalho das praças e as regras de disciplina da corporação. “Embora esses estudos mencionem os navios da Esquadra de 1910, a relação entre a revolução tecnológica naval do final do século XIX e a revolta de 1910 até hoje não foi tema de estudos aprofundados. Daí proponho que a aquisição dos modernos encouraçados Minas Gerais e São Paulo, que tinham acabado de chegar ao Brasil, vindos da Inglaterra, funcionou como elemento ‘desequilibrador’ nas relações entre oficiais e marinheiros, já que os grandes navios trouxeram consigo condições industriais de trabalho e disciplina que se chocaram com os castigos corporais ainda vigentes na Marinha de nosso país, desencadeando a revolta”, explica o cientista político João Roberto Martins Filho, da Universidade Federal de São Carlos, autor de A Marinha brasileira na era dos encouraçados, 18951910, estudo apoiado pela FAPESP que PESQUISA FAPESP 166
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Movimentação cotidiana no navio que exigia mil homens para ser operado
será lançado em março pela Editora da FGV. Em sua pesquisa, Martins analisa os impactos, internos e externos, da modernização da Marinha brasileira, iniciada entre 1904 e 1906, e que fez com que o país, ainda que por apenas alguns meses, fosse a única nação, além da poderosa Grã-Bretanha, a possuir um dreadnought, o navio britânico de guerra precursor da era dos imensos encouraçados de armamento padronizado e de grande calibre. Bélico - “A política naval brasileira
provocou repercussões não apenas na região, onde quase levou a uma guerra com a Argentina, preocupada com o aumento do potencial bélico brasileiro, mas também nos principais centros decisórios navais da época, onde se passou a especular sobre a principal transferência dos imensos navios, 86
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o Minas e o São Paulo, para marinhas de grandes potências. Daí não fica difícil entender como a incorporação de navios da mais avançada tecnologia a uma Marinha que ainda disciplinava seus marinheiros com a chibata ter sido causadora de uma revolta como a que aconteceu em 1910”, nota o pesquisador. Não era possível efetivamente reunir a tecnologia state of the art dos imensos encouraçados com o espetáculo terrível de marinheiros negros amarrados em um ferro que havia na coberta dos navios e castigados brutal e publicamente para toda a tripulação, nus da cintura para cima. Os códigos até limitavam as chibatadas a 25, mas era comum chegarem a 100, 250 e até 500 num único dia. Por ter agredido um cabo com uma navalha, um marinheiro, em novembro de 1910, no Minas, recebeu 200 chibatadas. Segundo um oficial, “as costas
dele assemelhavam-se a uma tainha lanhada para ser salgada”. “Os castigos corporais garantiam a dominação do oficialato branco a bordo e nos quartéis, a continuidade da prática da tortura de escravos agora aplicada por oficiais da Marinha a marinheiros livres 12 anos após a abolição da escravidão”, observa o historiador Álvaro Pereira do Nascimento, da Unicamp, autor de Cidadania, cor e disciplina na revolta dos marinheiros de 1910 (Mauad/Faperj, 264 páginas, R$ 39). “Raros eram os que desejavam ser marinheiros e os homens eram recrutados à força nas ruas ou prisões e havia o alistamento de menores pobres, órfãos e desvalidos, enviados por pais, tutores e juízes. O governo incentivava esse tipo de alistamento enviando pagamento de prêmio aos responsáveis dos garotos. O disciplinamento usado pelos oficiais era o que maior aversão gerava entre os possíveis candidatos”, explica o pesquisador. Em 1910, quando a Marinha de Guerra esperava a chegada dos navios encomendados aos estaleiros ingleses
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Tem V. Excia. O prazo de doze horas para mandar-nos a resposta satisfatória sob pena de ver a pátria aniquilada. assinados, Marinheiros
em Newcastle, como parte do seu rea parelhamento, iniciava-se o governo do marechal Hermes da Fonseca (19101914). Marinheiros brasileiros tinham ido até a Europa para tripular os novos Minas e São Paulo e descobriram uma nova realidade, sem chibatas e castigos excessivos. Em 22 de novembro o motim começou precipitado justamente pelo castigo das 200 chibatadas no marinheiro que batera no cabo. O sinal foi o toque da corneta das 22 horas. “Nós marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos, não podendo mais suportar a escravidão na Marinha brasileira, a proteção que a Pátria não nos dá, rompemos o negro véu, que nos cobria aos olhos do patriótico e enganado povo. Achando-se todos os navios em nosso poder, tendo a seu bordo prisioneiros todos os oficiais, os quais têm sido os causadores da Marinha brasileira não ser tão grandiosa, mandamos essa mensagem para V. Excia. Faça aos marinheiros brasileiros possuirmos os direitos sagrados que as leis da República nos facilita, retirar os oficiais incompetentes, a fim de que desapareça a chibata, o bolo, e outros castigos semelhantes; aumentar o nosso soldo (...). Tem V. Excia. o prazo de doze horas para mandar-nos a resposta satisfatória sob pena de ver a pátria aniquilada, assinados, Marinheiros.” O marechal aproveita e decreta estado de sítio, suspende as garantias constitucionais e persegue seus inimigos políticos. “No Congresso, a posição de Rui Barbosa foi vitoriosa e se concede anistia aos rebelados, encerrando-se a revolta. Mas, logo em seguida, a Marinha desrespeita a decisão, expulsando dezenas de ex-amotinados. Há uma nova revolta em dezembro e os marinheiros de novembro e dezembro são presos, muitos colocados para morrer asfixiados numa masmorra na ilha das Cobras. Outros são enviados para o Acre, onde são obrigados a trabalhar nos seringais e na construção da ferrovia Madeira-Mamoré. João Cândido foi um dos dois sobreviventes da cela da ilha das Cobras. Passou dois anos preso,
incomunicável, e só saiu após um arrastado processo militar”, conta Pereira do Nascimento. Em 1911, a maior parte fora desligada, morta ou fugira. “Devido ao racismo na Marinha, negros não poderiam ser oficiais. Mesmo que distantes do oficialato, os marinheiros de 1910 desejaram construir uma nova realidade, capaz de alavancar suas carreiras, garantir um espaço no qual assegurasse dias mais felizes para suas vidas.” A prova viva de que essas esperanças não se concretizaram foi a vida do almirante João Cândido, que, após o terror da cela, que era diariamente, a pretexto de limpeza, pintada com cal e água (essa evaporava e só ficava a cal), foi internado num hospício e trabalhou por 40 anos num mercado de peixes. Difícil imaginar tudo isso em abril de 1910, quando o Minas Gerais fez sua entrada triunfal no Rio de Janeiro, descrito pelo jornal O Paiz com cores entusiasmadas: “A chegada foi o acontecimento que fez palpitar numa
vibrante emoção patriótica toda a alma nacional, porque não foi só o Rio de Janeiro que recebeu nas águas de sua formosa baía o formidável dreadnought; foi o Brasil inteiro que saudou no vulto agigantado do colosso dos mares sul-americanos o símbolo soberano de sua própria pujança, a expressão concreta de sua energia da nação”. O dreadnought era o navio-símbolo do século XX e suas inovações modernas. “Era a ideia de que a industrialização da guerra transformava os encouraçados em estabelecimentos comparáveis às modernas fábricas, o que se faria sentir principalmente nos dreadnoughts, cuja tripulação chegava a perto de mil homens. Além do número, é preciso considerar a concentração que a vinda do Minas e do São Paulo trouxe a nossa força naval. Num único salto, um terço das guarnições se concentrou apenas em dois navios”, observa Martins Filho. Bastava comparar: o antigo orgulho da frota nacional, o Riachuelo, tinha 98
Marinheiro em seu posto num dos celebrados canhões do Minas Gerais PESQUISA FAPESP 166
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Maioria da tripulação era composta de negros e mulatos
metros. O Minas tinha portentosos 165 metros. “Subir a bordo dele era ascender a outro mundo com 12 canhões de 12 polegadas, dispostos em seis torres giratórias, todas movidas à eletricidade, com os outros mecanismos de tiro movidos à força hidráulica; o navio era movido por motores de tripla extensão que ficavam em duas salas, medindo cada uma cerca de 19 metros de comprimento por sete metros de largura; a propulsão era dada por dois pares de hélices de cinco metros de altura; os
condensadores conseguiam resfriar 8 mil metros quadrados de área e a água que corria neles pesava 23 toneladas; havia dezenas de compartimentos para maquinistas, foguistas, marinheiros e oficiais e o Minas possuía dois conveses, quatro cobertas e um porão.” O que soava, porém, como vantagem podia trazer problemas, pois, como observava um diplomata inglês, “os oficiais brasileiros não tinham conhecimento para manejar os complicados mecanismos do novo navio e,
em sua opinião, quando esses homens, os ‘garantias’ (oficiais britânicos que vinham para ajudar a treinar equipes nacionais), voltassem para a Inglaterra, as máquinas logo ficariam em péssimo estado”. A isso se acresciam os problemas com disciplina e com o racismo nos maus-tratos dos oficiais para com os marinheiros, no geral negros aos quais eram atribuídos todos os males das guarnições, expresso pela grita da “falsa piedade pelo negro boçal que mata e rouba” dada pela Marinha diante do clamor da sociedade pós-revolta de 1910. “A força naval que recebeu o Minas e o São Paulo era marcada por agudos contrastes e paradoxos. Em escala menor ela refletia os dilemas do país”, nota o pesquisador. “No caso, pode-se também perceber que a importância simbólica dos novos navios tenha dado a seus marinheiros um novo senso de dignidade.” Outro aspecto da influência do fator tecnológico, continua Martin Filho, é a potência do canhão dos dreadnoughts, já que durante todo o transcorrer do movimento pairou sobre a capital o fantasma das torres giratórias cujo poder de fogo, amplamente discutido à época da chegada do Minas e do São Paulo, ainda estava na memória da população carioca. “Também foi a questão tecnológica que impediu o governo de atacar os navios, já que era impensável, depois
Operação de rotina numa das inúmeras tarefas exigidas no Minas
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Dia da revolta: marinheiro ao centro com faixa “Deus e liberdade”
de anunciar ao mundo que era dono dos maiores encouraçados e festejar os navios como estandartes nacionais, arriscar sua destruição. Isso estava de tal modo forte que se arriscou à humilhação do governo e da Marinha, em troca da preservação dos dreadnoughts.” Argentina - Afinal, em dezembro de
1908, a notícia de que o Minas iria ficar pronto fez com que o Congresso da Argentina, em desespero, aprovasse as despesas para a construção de dois dreadnoughts destinados a equiparar os portenhos ao poderio naval brasileiro, em que pesaram os boatos de que seria construído um terceiro navio (o Rio de Janeiro) ainda maior do que os dois anteriores. Via-se nesse movimento a mão dos estaleiros estrangeiros interessados em abrir uma corrida naval entre os sul-americanos para colher lucros com a febre dos extravagantes e custosos dreadnoughts, em que o Brasil já mergulhara, sem saber que a construção moderna naval tinha um componente de transitoriedade que transformava um navio em obsoleto antes mesmo de ele sair do estaleiro. Os grandes estaleiros sabiam também que os mercados dos países menos desenvolvidos eram especialmente bons
para os navios imensos como os dreadnoughts, mais até do que as grandes potências. “O fato de o Brasil ter sido o único possuidor de dreadnoughts além da Inglaterra provocou uma polêmica mundial sobre como nossas compras se inseriam no equilíbrio naval do período. Havia boatos em jornais americanos de que, em caso de guerra entre EUA e Japão, por exemplo, o Brasil poderia vender seus navios para o último, como declarara a Argentina”, afirma o pesquisador. Discutiam-se os planos de guerra mundial levando-se em consideração o Brasil e seus navios. Diplomatas ingleses se preocupavam com as visitas de presidentes brasileiros ao Kaiser alemão que os levava a conhecer a Krupp e seus canhões. “Não seria prudente agendar uma visita de Hermes da Fonseca para dar uma olhada na nossa frota em Portsmouth?”, observou o chefe da delegação britânica no Rio, após o presidente brasileiro voltar da Alemanha. Quase como o presidente Lula hoje é cortejado pelos governos estrangeiros que desejam que o Brasil compre um caça de seus países, naquela época se queria que comprássemos navios e canhões da Inglaterra, e não dos alemães, evitando problemas na guerra que se aproximava, lucros restritos à
nação amiga e diminuição do círculo de influência de nações inimigas. No caso portenho houve mesmo a nomeação de um chanceler adversário do Barão do Rio Branco que pregava a invasão do Rio de Janeiro caso o Brasil não se decidisse a “dividir” sua nova frota com os argentinos. “Por sorte ele foi substituído e a possibilidade de guerra em torno dos dreadnoughts foi afastada. A nau dos insensatos foi chamada à terra.” O final foi tristonho. O Rio de Janeiro, o terceiro da frota não adquirido pelo Brasil, acabou comprado pelos turcos, confiscado pelos ingleses na guerra e rebatizado de Agincourt, tendo participado da batalha da Jutlândia. Menos glorioso, o Minas não foi à Primeira Guerra Mundial e, em 1922, bombardeou o forte de Copacabana, para, dois anos depois, confrontar seu irmão, o São Paulo, na revolta tenentista. Na Segunda Guerra Mundial, foi levado a Salvador, onde ficou como nau pedra na defesa do porto. Deu baixa em 1953, alguns anos depois do São Paulo, rebocado para seu leito de morte e desmontado. Nem de longe lembrava o portento que há 100 anos tão bem dirigido pelo almirante negro foi capaz de tirar Oswald de Andrade da cama. n
Carlos Haag PESQUISA FAPESP 166
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resenha
Retratos de época Nos 40 anos do Cebrap, livro e DVD trazem entrevistas com análises atualizadas do período Neldson Marcolin
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uth Cardoso reagiu com irreverência ao ser convidada para a série de depoimentos que marcam a celebração dos 40 anos do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Para a antropóloga, no mundo das ideias o sujeito pensante é muito menos importante do que as noções e conceitos que ele expressa. Ela dizia que parte considerável do trabalho intelectual é resultado de um esforço coletivo, produto de uma época e de um lugar. Mesmo que seja difícil discordar dessas opiniões, não dá para deixar de saudar o resultado das comemorações: o livro Retrato de grupo foi além da análise de um período soturno brasileiro. Há nele um exame bastante atualizado não só dos anos mais sombrios como dos dias que correm. O objetivo de Retrato de grupo foi reunir a geração fundadora e os colaboradores posteriores mais importantes na forma de entrevistas feitas por outros pesquisadores de modo a trazer uma reflexão inédita de um grupo de intelectuais que partilhou uma experiência incomum, como dizem os organizadores no prefácio, Paula Montero, atual presidente do Cebrap, e Flávio Moura, editor da revista Novos Estudos. Além das entrevistas, há o perfil intelectual dos que já morreram, como Cândido Procópio Ferreira de Camargo, Ruth Cardoso e Vilmar Faria. Os depoimentos dos pioneiros mostram como alguns intelectuais de São Paulo decidiram não se exilar quando o AI-5 foi decretado e muitos foram aposentados compulsoriamente. Fernando Henrique Cardoso, José Arthur Giannotti, Elza Berquó, Paul Singer (cassados), Juarez Brandão Lopes e Cândido Procópio compuseram o
Retrato de grupo Cosac Naify Paula Montero e Flávio Moura (organizadores) 328 páginas R$ 59,00 Encarte: DVD com entrevistas
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núcleo inicial. O dinheiro veio da Fundação Ford e, posteriormente, de outras agências de fomento. O nome Cebrap era propositadamente anódino, para evitar suspeitas injustificadas do regime militar e mostrar que podiam atuar na área de planejamento e fazer trabalhos de ordem técnica. Em maio de 1969 o centro começou a funcionar. A partir de 1970 outros chegam como pesquisadores permanentes: Octávio Ianni, Francisco de Oliveira, Bolívar Lamounier, Lúcio Kowarick, Vilmar Faria e Carlos Estevam Martins, além de Francisco Weffort, Boris Fausto, Régis de Castro Andrade, Luiz Werneck Vianna e Maria Hermínia Tavares de Almeida. Todos esses pesquisadores, assim como os que vieram depois, como Fernando Novais, Roberto Schwarz, Ruth Cardoso e José Serra, tiveram papel importante no centro ao analisar o período mais difícil do Brasil, os anos 1970, propor soluções e pensar o futuro do país. No livro são entrevistados cinco dos seis pioneiros e Oliveira, Kowarick, Serra, Novais, Schwarz e Rodrigo Naves, ex-editor da Novos Estudos. As entrevistas agradam porque não se limitam a contar a história das origens e glórias do Cebrap, o que tornaria o livro enfadonho. Os principais personagens não se furtam a comentar as brigas intelectuais e ideológicas, acirradas durante o período de democratização quando alguns deles mergulharam na política. Não por acaso o centro forneceu um presidente da República, um governador de estado e vários ministros e secretários de governos municipal, estadual e federal. Demografia, sociologia, filosofia, história, antropologia e economia recebem análises atualizadas no livro, como se cada um dos entrevistados estivesse fazendo uma revisão em voz alta do que foi realmente importante para suas carreiras e do que é de fato fundamental em cada uma dessas áreas do conhecimento. O autor de maior destaque na maioria das análises é Marx, sempre citado com reverência como um autor capital para toda aquela geração. É igualmente curioso notar as posições, críticas e elogios sobre os recentes governos de Fernando Henrique e de Lula. Nesse sentido, as análises do próprio ex-presidente, de Paul Singer e de Francisco de Oliveira são as mais interessantes pela visão divergente, mas embasada em fatos, que cada uma delas oferece. Por fim, o livro traz também um DVD com um filme de 90 minutos com trechos dos depoimentos. É um bom instantâneo de um difícil, mas fértil período da história recente brasileira.
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livros
Cultura com aspas Manuela Carneiro da Cunha Editora Cosac Naify 440 páginas, R$ 69,00
A produção ensaística da antropóloga Manuela Carneiro da Cunha em mais de 30 anos de trajetória, incluindo textos inéditos de 2009, está reunida em Cultura com aspas. Seus estudos tratam da maneira como a “cultura” é reflexivamente constituída e engajada como uma categoria do encontro interétnico. A autora explora temas como direito indigenista, xamanismo, catequese e indigenização da cultura. Editora Cosac Naify (11) 3218-1444 www.cosacnaify.com.br
Solistas dissonantes: história (oral) de cantoras negras Ricardo Santhiago Editora Letra e Voz 296 páginas, R$ 40,00
Ricardo Santhiago apresenta histórias orais de 13 cantoras negras brasileiras: Adyel Silva, Alaíde Costa, Arícia Mess, Áurea Martins, Eliana Pittman, Graça Cunha, Ivete Souza, Izzy Gordon, Leila Maria, Misty, Rosa Marya Colin, Virgínia Rosa e Zezé Motta. Elas mostram como instituíram e consolidaram, na soma de conquistas individuais, uma nova história (oral) na música popular feita no Brasil. Editora Letra e Voz www.letraevoz.com.br
Brasil, Índia e África do Sul Maria Regina Soares de Lima e Monica Hirst (orgs.) Editora Paz e Terra 238 páginas, R$ 28,00
Os artigos reunidos neste livro se debruçam sobre os desafios e oportunidades para novas parcerias entre esses três países que ganham cada vez mais importância no cenário contemporâneo. Os autores discutem a importância que os valores democráticos e a defesa do multilateralismo têm nesses países, analisando-os tanto como países individuais quanto por seu relacionamento no âmbito da iniciativa IBAS.
Carminda da Cruz Landim Editora Unesp 408 páginas, R$ 110,00
Carminda Landim empreende um estudo minucioso, ricamente ilustrado, fruto dos seus 40 anos acadêmicos, que descreve a morfologia dos órgãos e sistemas das abelhas, tanto do ponto de vista anatômico como da organização histológica e da ultraestrutura que os compõem, além das funções que castas e sexos desempenham na sociedade.
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Gente negra na Paraíba oitocentista
Os americanos
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fotos Eduardo Cesar
Abelhas: morfologia e função de sistemas
Antonio Pedro Tota Editora Contexto 304 páginas, R$ 47,00
Este estudo trata do universo de famílias negras, de pessoas escravas e livres da província da Paraíba, trazendo à tona as lutas pela construção de autonomia social e econômica. Enfoca como a escravidão no Nordeste silenciou uma massa de trabalhadores, criando a ilusão da ausência do preconceito entre as classes sociais.
O historiador Antonio Pedro Tota rastreia as origens, costumes e parodoxos do povo dos EUA que, para uns são um paradigma da modernidade, para outros, um monstro tentacular imperialista. E procura responder questões como “Qual é a origem da autoconfiança e da soberba dos americanos?”, “Como se tornou um país rico e poderoso?”, entre outras perguntas.
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ficção
Ideias de canário Machado de Assis
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m homem dado a estudos de ornitologia, por nome Macedo, referiu a alguns amigos um caso tão extraordinário que ninguém lhe deu crédito. Alguns chegam a supor que Macedo virou o juízo. Eis aqui o resumo da narração. No princípio do mês passado — disse ele — indo por uma rua, sucedeu que um tílburi a disparada quase me atirou ao chão. Escapei saltando para dentro de uma loja de belchior. Nem o estrépito do cavalo e do veículo, nem a minha entrada fizeram levantar o dono do negócio, que cochilava ao fundo, sentado numa cadeira de abrir. Era um frangalho de homem, barba cor de palha suja, a cabeça enfiada em um gorro esfarrapado, que provavelmente não achara comprador. Não se adivinhava nele nenhuma história, como podiam ter alguns dos objetos que vendia, nem se lhe sentia a tristeza austera e desenganada das vidas que foram vidas. A loja era escura, atulhada das coisas velhas, tortas, rotas, enxovalhadas, enferrujadas que de ordinário se acham em tais casas, tudo naquela meia desordem própria do negócio. Essa mistura, posto que banal, era interessante. Panelas sem tampa, tampas sem panela, botões, sapatos, fechaduras, uma saia preta, chapéus de palha e de pelo, caixilhos, binóculos, meias casacas, um florete, um cão empalhado, um par de chinelas, luvas, vasos sem nome, dragonas, uma bolsa de veludo, dois cabides, um bodoque, um termômetro, cadeiras, um retrato litografado pelo finado Sisson, um gamão, duas máscaras de arame para o carnaval que há de vir, tudo isso e o mais que não vi ou não me ficou de memória, enchia a loja nas imediações da porta, encostado, pendurado ou exposto em caixas de vidro, igualmente velhas. Lá para dentro, havia outras coisas mais e muitas, e do mesmo aspecto, dominando os objetos grandes, cômodas, cadeiras, camas, uns por cima dos outros, perdidos na escuridão.
ilustrações manu maltez
Ia a sair, quando vi uma gaiola pendurada da porta. Tão velha como o resto, para ter o mesmo aspecto da desolação geral, faltava-lhe estar vazia. Não estava vazia. Dentro pulava um canário. A cor, a animação e a graça do passarinho davam àquele amontoado de destroços uma nota de vida e de mocidade. Era o último passageiro de algum naufrágio, que ali foi parar íntegro e alegre como dantes. Logo que olhei para ele, entrou a saltar mais abaixo e acima, de poleiro em poleiro, como se quisesse dizer que no meio daquele cemitério brincava um raio de sol. Não atribuo essa imagem ao canário, senão porque falo a gente retórica; em verdade, ele não pensou em cemitério nem sol, segundo me disse depois. Eu, de envolta com o prazer que me trouxe aquela vista, senti-me indignado do destino do pássaro, e murmurei baixinho palavras de azedume. — Quem seria o dono execrável deste bichinho, que teve ânimo de se desfazer dele por alguns pares de níqueis? Ou que mão indiferente, não querendo guardar esse companheiro de dono defunto, o deu de
graça a algum pequeno, que o vendeu para ir jogar uma quiniela? E o canário, quedando-se em cima do poleiro, trilou isto: — Quem quer que sejas tu, certamente não estás em teu juízo. Não tive dono execrável, nem fui dado a nenhum menino que me vendesse. São imaginações de pessoa doente; vai-te curar, amigo. — Como? — interrompi eu, sem ter tempo de ficar espantado. — Então o teu dono não te vendeu a esta casa? Não foi a miséria ou a ociosidade que te trouxe a este cemitério, como um raio de sol? — Não sei que seja sol nem cemitério. Se os canários que tens visto usam do primeiro desses nomes, tanto melhor, porque é bonito, mas estou vendo que confundes. — Perdão, mas tu não vieste para aqui à toa, sem ninguém, salvo se o teu dono foi sempre aquele homem que ali está sentado. — Que dono? Esse homem que aí está é meu criado, dá-me água e comida todos os dias, com tal PESQUISA FAPESP 166
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regularidade que eu, se devesse pagar-lhe os serviços, não seria com pouco; mas os canários não pagam criados. Em verdade, se o mundo é propriedade dos canários, seria extravagante que eles pagassem o que está no mundo. Pasmado das respostas, não sabia que mais admirar, se a linguagem, se as ideias. A linguagem, posto me entrasse pelo ouvido como de gente, saía do bicho em trilos engraçados. Olhei em volta de mim, para verificar se estava acordado; a rua era a mesma, a loja era a mesma loja escura, triste e úmida. O canário, movendo a um lado e outro, esperava que eu lhe falasse. Perguntei-lhe então se tinha saudades do espaço azul e infinito... — Mas, caro homem, trilou o canário, que quer dizer espaço azul e infinito? — Mas, perdão, que pensas deste mundo? Que coisa é o mundo? — O mundo — redarguiu o canário com certo ar de professor —, o mundo é uma loja de belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prego; o canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira. Nisto acordou o velho, e veio a mim arrastando os pés. Perguntou-me se queria comprar o canário. Indaguei se o adquirira, como o resto dos objetos que vendia, e soube que sim, que o comprara a um barbeiro, acompanhado de uma coleção de navalhas. — As navalhas estão em muito bom uso, concluiu ele. — Quero só o canário. Paguei-lhe o preço, mandei comprar uma gaiola 94
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vasta, circular, de madeira e arame, pintada de branco, e ordenei que a pusessem na varanda da minha casa, donde o passarinho podia ver o jardim, o repuxo e um pouco do céu azul. Era meu intuito fazer um longo estudo do fenômeno, sem dizer nada a ninguém, até poder assombrar o século com a minha extraordinária descoberta. Comecei por alfabetar a língua do canário, por estudar-lhe a estrutura, as relações com a música, os sentimentos estéticos do bicho, as suas ideias e reminiscências. Feita essa análise filológica e psicológica, entrei propriamente na história dos canários, na origem deles, primeiros séculos, geologia e flora das ilhas Canárias, se ele tinha conhecimento da navegação, etc. Conversávamos longas horas, eu escrevendo as notas, ele esperando, saltando, trilando. Não tendo mais família que dois criados, ordenava-lhes que não me interrompessem, ainda por motivo de alguma carta ou telegrama urgente, ou visita de importância. Sabendo ambos das minhas ocupações científicas, acharam natural a ordem, e não suspeitaram que o canário e eu nos entendíamos. Não é mister dizer que dormia pouco, acordava duas e três vezes por noite, passeava à toa, sentia-me com febre. Afinal tornava ao trabalho, para reler, acrescentar, emendar. Retifiquei mais de uma observação, — ou por havê-la entendido mal, ou porque ele não a tivesse expresso claramente. A definição do mundo foi uma delas. Três semanas depois da entrada do canário em minha casa, pedi-lhe que me repetisse a definição do mundo.
— O mundo — respondeu ele — é um jardim assaz largo com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima; o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira. Também a linguagem sofreu algumas retificações, e certas conclusões, que me tinham parecido simples, vi que eram temerárias. Não podia ainda escrever a memória que havia de mandar ao Museu Nacional, ao Instituto Histórico e às universidades alemãs, não porque faltasse matéria, mas para acumular primeiro todas as observações e ratificá-las. Nos últimos dias, não saía de casa, não respondia a cartas, não quis saber de amigos nem parentes. Todo eu era canário. De manhã, um dos criados tinha a seu cargo limpar a gaiola e pôr-lhe água e comida. O passarinho não lhe dizia nada, como se soubesse que a esse homem faltava qualquer preparo científico. Também o serviço era o mais sumário do mundo; o criado não era amador de pássaros. Um sábado amanheci enfermo, a cabeça e a espinha doíam-me. O médico ordenou absoluto repouso; era excesso de estudo, não devia ler nem pensar, não devia saber sequer o que se passava na cidade e no mundo. Assim fiquei cinco dias; no sexto levantei-me, e só então soube que o canário, estando o criado a tratar dele, fugira da gaiola. O meu primeiro gesto foi para esganar o criado; a indignação sufocou-me, caí na cadeira, sem voz, tonto. O culpado defendeu-se, jurou que tivera cuidado, o passarinho é que fugira por astuto. — Mas não o procuraram?
— Procuramos, sim, senhor; a princípio trepou ao telhado, trepei também, ele fugiu, foi para uma árvore, depois escondeu-se não sei onde. Tenho indagado desde ontem, perguntei aos vizinhos, aos chacareiros, ninguém sabe nada. Padeci muito; felizmente, a fadiga estava passada, e com algumas horas pude sair à varanda e ao jardim. Nem sombra de canário. Indaguei, corri, anunciei, e nada. Tinha já recolhido as notas para compor a memória, ainda que truncada e incompleta, quando me sucedeu visitar um amigo, que ocupa uma das mais belas e grandes chácaras dos arrabaldes. Passeá vamos nela antes de jantar, quando ouvi trilar esta pergunta: — Viva, senhor Macedo, por onde tem andado que desapareceu? Era o canário; estava no galho de uma árvore. Imaginem como fiquei, e o que lhe disse. O meu amigo cuidou que eu estivesse doido; mas que me importavam cuidados de amigos? Falei ao canário com ternura, pedi-lhe que viesse continuar a conversação, naquele nosso mundo composto de um jardim e repuxo, varanda e gaiola branca e circular. — Que jardim? que repuxo? — O mundo, meu querido. — Que mundo? Tu não perdes os maus costumes de professor. O mundo — concluiu solenemente — é um espaço infinito e azul, com o sol por cima. Indignado, retorqui-lhe que, se eu lhe desse crédito, o mundo era tudo; até já fora uma loja de belchior. — De belchior? — trilou ele às bandeiras despregadas. — Mas há mesmo lojas de belchior? PESQUISA FAPESP 166
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Sudeste de Santos
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Social
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CE
Fortaleza
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pela Educação
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