Entre homem & mulher

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venda proibida

assinante

Nº 170

exemplar de

Abril 2010

Abril 2010 Nº 170 ■

Anticorpos produzidos no país

pesquisa fapesp

América Latina, celeiro da bioenergia

Entre Medicina e psicologia lidam com ambiguidade sexual genética

ESPECIAL

Novo mapa da vegetação nativa do estado de São Paulo

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Enfim,

claudia marcelloni/cern

a grande colisão Depois de sucessivos problemas e adiamentos, os físicos e os engenheiros do acelerador de partículas LHC (Large Hadron Collider ou grande colisor de hádrons) realizaram com êxito no dia 30 de março o tão aguardado choque de duas nuvens de prótons viajando em sentidos opostos a velocidades próximas à da luz com a energia de 7 teraelétrons-volt. O experimento, realizado em um túnel a 100 metros de profundidade na fronteira da Suíça com a França, foi o primeiro a alcançar níveis de energia tão elevados. “Estamos abrindo as portas para a nova física”, comemorou Rolf Heuer, diretor-geral do Centro Europeu de Pesquisa Nuclear (Cern), que administra o LHC. Uma equipe do Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista (IFT-Unesp) acompanhou a colisão em uma sala do Centro Regional de Análise de São Paulo (Sprace) ligada por uma rede de alta velocidade ao Cern e participará da interpretação dos resultados do experimento.

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SEÇÕES 3 IMAGEM DO MÊS 5 CARTAS 7 CARTA DA EDITORA 8 MEMÓRIA 22 ESTRATÉGIAS 46 LABORATÓRIO 62 SCIELO NOTÍCIAS 64 LINHA DE PRODUÇÃO 94 RESENHA 95 LIVROS 96 FICÇÃO 98 CLASSIFICADOS WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR

Retrato de Baby de Almeida, Lasar Segall, 1891 Vilna - 1957 São Paulo (1927, pintura a óleo sobre tela, 74 x 61 cm - Secretaria de Estado da Cultura Casa Guilherme de Almeida) O quadro acima foi usado na colagem da reportagem de capa “Limites incertos”

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POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA CAPA 16 Grupo de pesquisa paulista caracteriza 23 disfunções orgânicas do desenvolvimento sexual

28 SUSTENTABILIDADE Convenção mostra que América Latina terá papel fundamental na expansão da oferta de combustíveis renováveis

36 MUDANÇAS CLIMÁTICAS Problemas pontuais no trabalho do IPCC alimentam campanha contra o painel

42 HOMENAGEM A morte do bibliófilo José Mindlin, do geneticista Oswaldo Frota-Pessoa e do historiador István Jancsó

40 EDUCAÇÃO ENTREVISTA 10 Especialista em oftalmologia geriátrica, Rubens Belfort Junior diz que os problemas de visão da maioria dos brasileiros podem ser resolvidos de modo simples e barato

34 INFRAESTRUTURA Programa FAP-Livros destina R$ 33,9 milhões para aquisição de 165 mil títulos

Estudantes exibem propostas inovadoras em feira na USP

CAPA LAURA DAVIÑA COLAGEM A PARTIR DAS OBRAS: AUTORRETRATO, DE VAN GOGH, E LORETTE, DE MATISSE

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ciência

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tecnologia

humanidades 80 RELAÇÕES INTERNACIONAIS

50 AMBIENTE

56 ZOOLOGIA

68 QUÍMICA

Vegetação nativa do estado de São Paulo cresce pela segunda década seguida e volta a ocupar área similar à dos anos 1970

Genes e fósseis revelam origem da diversidade de borboletas sul-americanas

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As iniciativas empresariais para a produção de anticorpos no Brasil, insumos essenciais para a pesquisa

86 HISTÓRIA

60 GEOFÍSICA 55 Ecologia

Desaparecimento de conchas indica desequilíbrio ambiental em mares e rios

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Poços artesianos causam dezenas de tremores por dia no interior paulista

74 ENGENHARIA FLORESTAL

Estudo mostra a viabilidade do uso do tronco da seringueira para produzir móveis

A ciência escondida nos arquivos do Itamaraty

Como a modernidade apartou homem e natureza na metrópole paulistana

90 CIÊNCIA POLÍTICA

Evitar corrupção e garantir a competição são preocupação no debate sobre o melhor modelo de financiamento político

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cartas cartas@fapesp.br

As reportagens de Pesquisa FAPESP mostram a construção do conhecimento essencial ao desenvolvimento do país. Acompanhe essa evolução. ■ Opiniões

USP, é de 1989, outro pioneirismo, sob orientação do professor Fábio Nusceo, a eles três creditado. Renato Guimarães Jr. Campinas, SP

ou sugestões

Bioenergia

Envie cartas para a redação de Pesquisa FAPESP, rua Joaquim Antunes, 727 10º andar, São Paulo, SP 05415-001, pelo fax (11) 3087-4214 ou pelo e-mail: cartas@fapesp.br

■ Site

da revista

No endereço eletrônico www.revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP na íntegra e um arquivo com todas as edições da revista, incluindo os suplementos especiais. No site também estão disponíveis as reportagens em inglês e espanhol. ■ Para

anunciar

Astronomia A reportagem “Rumo às estrelas” (edi­ ção 169) ficou maravilhosa. Estamos “passando para a frente” para muitos outros tomarem conhecimento. Márcia Pina Albe IAG/USP São Paulo, SP

Ligue para: (11) 3087-4212 ■ Assinaturas,

Pavan e Sala

Envie um e-mail: fapesp@acsolucoes.com.br ou ligue: (11) 3038-1434

Os professores Crodowaldo Pavan e Oscar Sala mereceram as reportagens que os homenageiam na edição 168 desta revista. Ambos são também lembrados por suas contribuições, respectivamente, à Justiça e ao Direito. Pavan coliderou ação judicial que, en­ tão promotor de Justiça, ajuizei contra autoridades do governo federal, para impedir o combate à praga do “bicu­ do”, por helicópteros terceirizados que despejariam o veneno Malathion, que atingiria também populações urbanas, hortas e plantações frutíferas ao redor de Campinas. E Sala concedeu pioneira bolsa de estudos da FAPESP para a área jurídica, ao me possibilitar o mestra­ do na George Washington University, nos Estados Unidos, em ecologia e meio ambiente, então inexistente na América Latina. A polêmica tese “Di­ reitos e deveres ecológicos: efetividade constitucional”, para o doutorado na

renovação e mudança de endereço

■ Assinaturas

de pesquisadores e bolsistas

Envie e-mail para redacao@fapesp.br ou ligue (11) 3087-4213 ■ Edições

Preço atual de capa da revista acrescido do valor de postagem. Envie e-mail para redacao@fapesp.br ou ligue (11) 3087-4213

miguel boyayan

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O Centro de Pesquisa Paulista em Bio­e­ nergia, objeto de reportagem no número 168 de fevereiro de 2010, inaugura uma nova forma de gestão da pesquisa no estado e deve ser apenas o primeiro de outros centros virtuais que devem ser organizados no futuro pela FA­ PESP para integrar os esforços de pes­ quisa. É preocupante todavia a exclusão dos institutos de pesquisa do estado, al­ guns com programação tradicional em bioe­nergia, que deveriam ter um repre­ sentante no conselho gestor desse novo centro, observando-se o princípio do artigo 207 da Constituição Federal. Carlos Jorge Rossetto Pesquisador científico aposentado Campinas, SP

Correções Paulo Sérgio Zembruski é o autor da imagem publicada na página 21 da re­ portagem “Variações sobre um tema sufocante”, da edição de novembro de 2009 (Pesquisa FAPESP nº 165), erro­ neamente atribuída ao Departamento de Patologia/FMUSP. O representante do Brasil na conferên­ cia internacional sobre o ópio realiza­ da pela Liga das Nações em 1925 era Pedro Pernambuco Filho, e não Ulys­ ses Pernambucano de Melo Sobrinho, como foi publicado na entrevista com o psicofarmacologista Elisaldo Carlini na edição de fevereiro de 2010 (Pes­ quisa FAPESP nº 168). Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727 - 10º andar - CEP 05415-001 - Pinheiros São Paulo, SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

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Mariluce Moura - Diretora de Redação

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termo que se usava para as variadas ambiguidades sexuais de origem genética, aquelas que se expressam, por exemplo, pela presença simultânea de ovários e testículos num mesmo corpo ou por uma genitália mal definida entre os típicos padrões masculino e feminino, era, até bem recentemente, hermafroditismo. Hoje os estudiosos preferem conceituar os pacientes que apresentam tais quadros como portadores de distúrbios de desenvolvimento sexual (DDS) – em parte, em decorrência da carga depreciativa que cerca os qualificativos hermafrodita e pseudo-hermafodita e que parece mesmo ter se acentuado ao longo do tempo. Dessas complexas disfunções orgânicas, suas possíveis origens, evolução, sinais e terapêutica, um respeitado grupo brasileiro de pesquisa, sediado no Hospital das Clínicas (HC) de São Paulo, vem tratando há 30 anos. Não surpreendem, assim, dados o tempo e o afinco com que trabalha essa equipe liderada pela médica Berenice Bilharinho Mendonça, os resultados científicos que apresentou num artigo publicado no final do ano passado na revista Clinical Endocrinology. O grupo, reunindo sua própria experiência, mais a de colegas do país e do exterior, conseguiu caracterizar nada menos que 23 DDS e mostrar ao mesmo tempo, conforme a bela reportagem de capa elaborada pelo editor especial Carlos Fioravanti, “como os defeitos genéticos podem gerar desvios metabólicos que ampliam ou reduzem a produção dos hormônios masculinos e induzem à formação de órgãos sexuais masculinos e femininos, parciais ou completos, em um mesmo indivíduo”. Surpreendente mesmo no trabalho desses pesquisadores é a fina sensibilidade que perpassa a abordagem multidisciplinar para o tratamento mais eficaz dos pacientes de DDS, que lhes permite, sem constrangimento, lançar mão de variadas ferramentas da medicina e da psicologia para conduzir cada caso a seu melhor desfecho possível. E, para além do competente detalhamento do trabalho científico, é dessa refinada relação entre dois seres humanos que estão ali em posições tão assimétricas – e tão es-

sencial ao futuro de um deles – que o relato de Fioravanti dá conta belamente logo de cara, ao abrir seu texto com inolvidáveis diálogos médico/paciente. Vale muito a pena conferir, a partir da página 16. Permaneço ainda na editoria de ciência que oferece aos leitores, neste mês, um presente especial. Trata-se do mapa da vegetação nativa do estado de São Paulo, que pode ser destacado no final da revista e cuja publicação resulta de um esforço conjunto do Instituto Florestal com Pesquisa FAPESP e patrocinadores que estão discriminados na própria peça. A reportagem que tem a ver com o mapa, a partir da página 50, é do próprio editor de ciência, Ricardo Zorzetto, que explica em detalhes como e por que os campos e florestas paulistas cresceram significativamente pela segunda década seguida e voltaram a ocupar 17,5% do território do estado, uma área similar à que tínhamos nos anos 1970. A boa notícia foi divulgada em 17 de março pelo governo estadual. Tecnologia traz entre seus destaques uma reportagem sobre um novo, valente e ainda reduzido grupo de empresas de base tecnológica que estão surgindo no país para produzir anticorpos, kits de diagnóstico e outros insumos biotecnológicos destinados à pesquisa básica e à detecção de doenças humanas, animais e vegetais. Trata-se de um segmento importante para o crescimento vigoroso da pesquisa científica e tecnológica, e o jornalista Yuri Vasconcelos, nosso colaborador, apresenta as razões disso a partir da página 68. Para encerrar, volto ao começo da revista e destaco a reportagem do editor de política científica e tecnológica, Fabrício Marques, sobre os resultados da Convenção Latino-Americana do Projeto Global Sustainable Bioenergy, realizada na FAPESP, entre os dias 23 e 25 de março. A partir da página 28, ele detalha tanto os debates dos especialistas sobre as vias de produção de bionergia na América Latina quanto a resolução aprovada na convenção, que afirma de modo enfático o potencial de expansão dessa produção no continente, sem colocar sob risco a produção de alimentos, o meio ambiente e a biodiversidade. G<JHL@J8 =8G<JG (.' 89I@C ;< )'(' . ■

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memória

O mal sobre a Terra Sismologia moderna derivou do grande terremoto de 1755, que destruiu Lisboa Neldson Marcolin

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al qual a guerra, uma grande catástrofe natural traz destruição, mortes, doenças, fome e medo. No rastro de tanto mal, porém, é comum surgirem avanços científicos e tecnológicos que se tornam úteis para a humanidade. O terremoto que destruiu Lisboa em 1755 teve uma repercussão enorme para os destinos políticos, econômicos, sociais e culturais de Portugal. Na área científica, resultou nos primeiros estudos modernos sobre a origem e abrangência dos sismos e na engenharia antissísmica, utilizada na reconstrução da capital portuguesa. Todas as iniciativas foram comandadas pelo secretário de Estado Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro Marquês de Pombal e detentor de poderes absolutos concedidos pelo rei dom José I. O terremoto de Lisboa ocorreu em 1o de novembro, Dia de Todos os Santos, pouco depois das 9h30. Foram dois ou três abalos precedidos de um forte estrondo em um espaço de aproximadamente sete minutos. Por ser dia santo, boa parte da população estava nas igrejas ou em casa. Em ambos os lugares as velas acesas e os fogões funcionando levaram a um incêndio de grandes proporções imediatamente após o tremor, quando caíram casas, palácios, igrejas e prédios públicos. Apavorada, parte dos sobreviventes correu para as margens do Tejo, rio que banha Lisboa, mas não tiveram melhor sorte. Cerca de 30 minutos depois, um maremoto, com ondas de seis a nove metros, destruiu o porto, inundou a parte baixa da cidade e matou muitos dos que escaparam dos desmoronamentos e do fogo. Não se tem o número exato de mortos. As estimativas vão de 10 mil a 30 mil pessoas, baseadas nos muitos relatos da época. Também não se sabe qual a população lisboeta daquele tempo – talvez algo em torno de 200 mil moradores.

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Lisboa não foi a única cidade atingida. Houve mortos e destruição em outras localidades próximas à capital, no sul do país, nas ilhas oceânicas, na Espanha e no norte da África. O epicentro foi no mar e hoje se acredita que tenha atingido entre 8,5 e 9 graus na escala Richter. Carvalho e Melo assumiu a tarefa de tomar todas as providências. A frase “cuidar dos vivos, enterrar os mortos”, dita por ele, marcou o começo da reação ao desastre. Ao mesmo tempo, ele queria entender o ocorrido e conhecer suas razões. Foram preparadas então 13 perguntas sobre o terremoto – não se sabe

As novas construções usaram a técnica de gaiola, com travas e vigas de madeira em diagonal, revestidas por muros de alvenaria (ver abaixo). A estrutura conferia elasticidade ao conjunto e dava apoio para os pisos superiores caso a parte de alvenaria ruísse. A técnica vigorou até o começo do século XX. “Foi uma boa solução da nascente engenharia antissísmica”, diz Igor Pacca. Antes dos portugueses, os chineses, em 132 a.C., haviam criado um dispositivo engenhoso para descobrir de qual direção vinha o tremor – um ancestral do sismógrafo, desenvolvido depois de um grande terremoto na China.

“Elementos, animais, humanos, tudo está em guerra. Há que reconhecê-lo: o mal existe sobre a Terra.” Extrato do Poème sur le désastre de Lisbonne (1756), de Voltaire Randolph Langenbach/www.conservationtech.com/gaiola.html

Triste tableau des effects causes par le tremblement de terre et incendies arrivés a Lisbonne le 1er Novembre 1755 (1792), autor desconhecido. Museu da Cidade, Lisboa

Gravura de cobre mostra barracas de refugiados do terremoto, na periferia de Lisboa

por quem –, enviadas para todos os párocos do país, com a obrigatoriedade da resposta. As questões eram simples: a que horas começou o tremor e quanto tempo durou; quantas casas foram arruinadas em cada freguesia; quantos morreram em cada habitação; como se deu o maremoto (altura das ondas, fluxo e refluxo da maré) e outras. “As perguntas são muito diretas, sem a superstição da época, parecidas com as que faríamos hoje”, diz Igor Pacca, pesquisador do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da Universidade de São Paulo (USP), que estudou o terremoto de 1755. O célebre sismólogo francês Montessus de Ballore chegou a dizer sobre o Inquérito do Marquês de Pombal, como ficou conhecido o documento, que ele “tem um caráter verdadeiramente científico, bastante estranho para a época” e o considerava o marco do nascimento da sismologia moderna. Também na reconstrução de Lisboa houve inovação. O engenheiro Manuel da Maia e os arquitetos Eugênio dos Santos e o húngaro Carlos Mardel, todos militares, acabaram de arrasar a parte baixa da cidade, usaram o entulho para nivelar o solo e fizeram ruas mais largas e prédios mais baixos. Gaiola de madeira original usada na reconstrução dos prédios de Lisboa

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ENTREVISTA

Rubens Belfort Junior

A hora dos óculos genéricos

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professor Rubens Belfort Junior vem de uma linhagem de médicos oftalmologistas paulistas. A Clínica Belfort foi fundada pelo seu avô em 1933 e herdada pelo pai. Hoje, da família, trabalham lá Belfort Junior e Rubens, o único de seus quatro filhos que decidiu seguir o mesmo caminho. Apesar da tradição familiar, o lugar preferencial de Belfort é a universidade. É lá que ele ensina pesquisa, orienta e cria projetos que vão da pesquisa mais pura aos estudos aplicados de amplo interesse público. Nos últimos anos, Belfort tem insistido em dois temas. O primeiro é a necessidade de o governo distribuir óculos genéricos para a população carente acima de 50 anos como forma de melhorar a qualidade de vida. O segundo é um alerta constante para os cuidados que médicos em geral e oftalmologistas em especial devem ter com a crescente população de idosos. Sobre esse último assunto organizou em 2009 o livro Oftalmogeriatria (editora Roca), em parceria com Marcela Cypel. Professor titular da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Belfort é o único oftalmologista brasileiro membro da Academia Brasileira de Ciências, da Associação Nacional de Medicina e Academia Ophthalmologica Universalis e integrante do prestigioso International Council of Ophthalmology, além de ter sido presidente do Congresso Mundial de Oftalmologia. Até o ano passado comandava o Instituto da Visão, vinculado ao Departamento de Oftalmologia da Unifesp, para o qual conseguiu erguer um novo prédio, a ser inaugurado este ano. Hoje é o presidente da Sociedade Paulista de Desenvolvimento da Medicina, a maior entidade filantrópica brasileira na área de saúde e ligada à Unifesp, dona do Hospital São Paulo, administradora de 30 unidades de saúde e com mais de 26 mil funcionários em diferentes estados do Brasil. Aos 64 anos, tem na ponta da língua numerosos projetos em andamento ou por fazer. Nem todos são meramente acadêmicos, mas todos nasceram a partir de seu trabalho na universidade. Abaixo, os principais trechos da entrevista.

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Especialista em oftalmologia geriátrica diz que os problemas de visão da maioria dos brasileiros podem ser resolvidos de modo simples e barato Neldson Marcolin

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FOTOS EDUARDO CESAR

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■ No ano passado, seu livro em parceria com Marcela Cypel, Oftalmogeriatria, ganhou o Prêmio Jabuti como o segundo melhor de medicina do país. Por que a oftalmogeriatria se tornou importante? — É simples, a população está envelhecendo no mundo inteiro e o prolongamento dessa fase da vida resulta em um grande impacto na medicina. Se você pensar em três ou quatro doenças oftalmológicas, vai provavelmente se lembrar de glaucoma, catarata e degeneração macular. As três ocorrem na velhice. E é justamente nos países subdesenvolvidos onde se espera um aumento maior da população acima de 70 anos. É importante saber disso para entendermos os diferentes cenários de planejamento de pesquisa, ensino e atividades assistenciais. Não me refiro às pessoas de 65 anos, mas às de 80, 90 anos e daí por diante. Os centenários serão muito mais comuns entre nós. E os olhos dos pacientes mais idosos precisam ser vistos de modo diferente. ■ Tratar os olhos do idoso é mais difícil? — Há uma série de valores médicos que não costumam ser aplicados adequadamente ao paciente idoso. Chega uma idade em que as pessoas se tornam mais lentas. Temos que respeitar o tempo da resposta e manter algo muito importante, que é a autonomia do paciente. Quando alguém de 80 anos vai à consulta com a filha, às vezes com a neta, há a tendência do médico de conversar apenas com quem acompanha, e não diretamente com o idoso. Há importantes aspectos psicológicos e de comunicação. E não podemos esquecer que, de todas as tecnologias, a mais importante na medicina segue sendo a comunicação. Mas há outros aspectos, igualmente importantes. Por exemplo, o ato de abrir um vidro de colírio e pingar no olho é trivial para o jovem. Mas para um indivíduo em que a mão treme e não enxerga o rótulo é muito mais difícil. O paciente idoso, às vezes, toma 15 tipos de remédio por dia. Trocar ou adicionar um medicamento sem necessidade não tem apenas impacto econômico, mas também social. E se o paciente não enxerga ou enxerga mal é muito mais complicado de realizar as atividades do dia a dia. Temos que contribuir para melhorar a qualidade de vida do idoso e não nos preocu12

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A fila de espera para transplantes de córnea foi zerada em São Paulo graças à adequação das normas, dando a correta importância à questão da gestão e do financiamento parmos apenas em curar doenças. Até porque, algumas vezes, elas serão incuráveis. Precisamos perceber as doenças que têm impacto na qualidade de vida e concentrar esforços ali. Muitas vezes o paciente tem alterações já cognitivas, de memória, e elas não são evidentes. Ele vai à consulta, conversa de maneira aparentemente normal, sai com uma receita e, de repente, é como ter dado uma receita para uma criança de 4 anos que não sabe o que fazer com o papel. Isso é percebido quando o familiar liga e diz, “O que o senhor falou para meu pai quando ele esteve aí? Ele não se lembra de nada”. O livro Oftalmogeriatria trata desses problemas, além das situações técnicas oftalmológicas, e é, em parte, fruto da tese de doutorado da Marcela Cypel, para a qual acompanhamos octogenários, nonagenários e centenários. Já temos mais de 50 centenários em que estudamos a qualidade visual. ■ Quando começou o projeto? — Há três ou quatro anos. Vamos iniciar agora outro projeto muito interessante em que examinaremos gêmeos, de

septuagenários para cima, univitelinos e não univitelinos. Queremos saber o que é genético e o que é ambiental. Será que o indivíduo de 80 anos que tem um gêmeo univitelino vivo tem o mesmo tipo de doença ocular? Os próximos anos vão mostrar cada vez mais o impacto da epigenética e a genética. ■ Vamos falar de suas origens. O senhor vem praticamente de uma dinastia de oftalmologistas, correto? — São cinco gerações de doutores.Meu bisavô, José Nunes Belfort Mattos, em 1900 e pouco, era astrônomo, diretor do observatório de São Paulo, e registrava a temperatura e o clima da cidade. Por exemplo, ele registrou que em 1918 nevou na cidade de São Paulo. Na casa da família, na avenida Paulista, estava instalado o observatório particular dele, que depois foi integrado ao governo de São Paulo e a própria história da astronomia e meteorologia paulista e da Universidade de São Paulo (USP). Talvez por causa disso e das lentes, meu avô, na medicina, tenha se interessado por oftalmologia. Ele trabalhou em Campinas no Instituto Penido Burnier, na década de 1920. Em 1930 veio para São Paulo. Era oftalmologista, político, comunista. Meu pai também foi oftalmologista, assim como eu e um dos meus filhos, que concluiu uma bolsa sanduíche de doutorado no Canadá e nos Estados Unidos. Mas é apenas uma feliz coincidência. Tenho quatro filhos e só um foi para medicina. Dos outros três, um foi para economia e as duas filhas para administração de empresas. ■ Por que fez primeiro doutorado em imunologia e depois em oftalmologia? — Durante minha graduação gostava das questões de medicina preventiva, epidemiologia, moléstias infecciosas. Trabalhei com os médicos Walter Leser e Roberto Baruzzi, além dos irmãos Villas-Boas. Mas no final do curso mudei. Comecei a fazer especialização em oftalmologia e me interessei por doenças infecciosas oculares. Fiz um curso de ciências básicas nos Estados Unidos, onde a imunologia celular estava começando a aparentemente resolver muitos dos nossos poblemas. Tive a sorte de encontrar aqui na Escola Paulista de Medicina o brilhante Nelson Mendes, pouco mais velho que

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eu, já titular da imunologia. E fiz o curso da OMS [Organização Mundial da Saúde] no Instituto Butantan sobre o tema. A partir daí, com a boa orientação do Nelson e de outros na década de 1970, percebi que mais importante do que um doutorado em oftalmologia era fazer um em imunologia como oftalmologista. Afinal, transplante de córnea, uveítes, doenças infecciosas e mesmo retinopatia diabética e problemas chamados degenerativos à época mostravam-se já envolvidos com a imunologia e, hoje, biologia molecular. Como a pós-graduação em oftalmologia só existia na Universidade Federal de Minas Gerais, trilhei o caminho inverso: fiz o mestrado em imunologia e o doutorado em imunologia com o Nelson Mendes na Escola Paulista e, simultaneamente, apesar de “proibido”, fiz o doutorado em oftalmologia com o Fernando Oréfice e Hilton Rocha, em Belo Horizonte. ■ Como foi sua passagem pela Faculdadade de Medicina de Jundiaí? — Terminei o mestrado, tinha menos de 30 anos e fui para lá como professor titular. Os meus residentes tinham quase a minha idade, o que era ótimo em termos de comunicação porque os conceitos são muito semelhantes. Hoje, aos 64 anos e sendo professor desde os 29, vejo como é progressivamente difícil atingir o jovem, o gap é cada vez maior. E aconteceu algo muito interessante nesse setor, que mostra a importância de os sistemas oferecerem o exercício do poder aos jovens. Dois professores da oftalmologia paulista que se destacaram, o Newton Kara José, em Jundiaí, Unicamp [Universidade Estadual de Campinas] e USP, e eu, em Jundiaí e na Unifesp, ambos começamos muito jovens. O Newton começou em Jundiaí, foi para a Unicamp e eu entrei no lugar dele. Quando saí para a Unifesp, entrou a Ana Luisa Höfling-Lima, também muito jovem, que agora é professora titular na Unifesp. Depois de me tornar professor titular na Unifesp e antes de assumir, resolvi tomar um ano sabático e fui para o NEI, o Instituto Nacional de Olhos do NIH [Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos]. Fiquei um ano desenvolvendo trabalhos com oftalmologia, imunologia e biologia

molecular relacionadas principalmente ao HIV, contratado pelo NIH como visiting scientist, com privilégio cirúrgico. Quer dizer, podia operar norte-americano. Uma glória...Voltei em 1990, revitalizado. ■ O senhor sempre clinicou? — Sempre. Sem clinicar eu morreria de fome, com a família grande que tenho. Além disso, o consultório traz oportunidades e desafios úteis para a vida acadêmica. Se não clinicasse e não precisasse de dinheiro teria me tornado um burocrata, sem contato com pacientes a não ser em slides ou situações artificiais. Acho que a vivência e o desafio clínico e cirúrgico do consultório são fundamentais. Lá eu concorro em oferecer atendimento com qualquer um, geralmente mais jovem, que esteja no mercado e não precisa ter mestrado, doutorado, livre-docência. Na universidade concorremos por concursos, financiamentos e por situações frequentemente irrelevantes aos problemas que os pacientes têm de resolver. Por sua vez, o ambiente universitário, crítico e inovador, é indispensável para manter o consultório atualizado ■ O senhor atende na Unifesp e na Clínica Belfort? — Nos dois lugares e opero nos hospitais São Paulo, Einstein e Santa Cruz. Quando comecei na Clínica Belfort, em 1970, meu pai tinha 12 médicos trabalhando com ele. Há dois anos minha mãe, de 83 anos, me disse, “Ficamos tão felizes quando você foi fazer oftalmologia, nunca pensamos que fosse ‘destruir’ a clínica da família”. A clínica foi feita pelo meu avô e ele e meu pai sempre se dedicaram a ela. Meu pai era professor livre-docente, mas a vida dele era a clínica. Naturalmente ele foi percebendo que, apesar de sermos oftalmologistas, nosso trajeto de vida era diferente. Quando morreu, a clínica era praticamente ele e eu. Consultório para mim é fundamental, mas a universidade é a minha casa. ■ Vocês são quantos na clínica hoje? — Eu, meu filho e mais duas oftalmologistas, também docentes, que trabalham lá um período semanal, também para complementar o atendimento e propiciar cobertura aos pacientes quando um de nós viaja.

■ Como surgiram os mutirões para cirurgia de catarata? — Sempre achei que não adianta ter uma medicina cada vez melhor e cada vez mais distante da população. E, na década de 1980, graças ao meu pai, eu e o Newton Kara José conhecemos Carl Kupfer, na época diretor do Instituto Nacional de Olhos dos Estados Unidos. Kupfer era um americano atípico, internacionalista e avançado, que nos iniciou nessas ideias. Quando se fala em mutirão da catarata, temos sempre de lembrar do Newton. A grande liderança foi dele, que, à época, já era titular da Unicamp, lugar onde não o atrapalhavam e permitiam criar novos sistemas de atendimento. ■ Mas como começou? — O Newton começou a fazer uma crítica radical sobre a ineficiência dos serviços hospitalares nos quais se operava uma ou duas cataratas por dia e se achava ótimo. Aí ele começou a fazer 12, 20 cirurgias diárias de cataratas. Isso gerou um conhecimento novo e, em mim e em outras pessoas, uma vontade de fazer mais e melhor levando ao novo conceito de atendimento em escala sem comprometer a qualidade. Quisemos então fazer 50 cirurgias por dia. E começamos a concorrer. O Newton sempre foi um líder. Ele ia para algum lugar do Brasil fazer o mutirão dele e eu ia para outro, sempre competindo. Seguimos amigos há mais de 30 anos. ■ Os mutirões eram sempre separados? — Eram separados, mas graças ao objetivo comum conseguimos sensibilizar a todos no Brasil e em outros países. Foi um movimento que veio da universidade, contaminou o Conselho Brasileiro de Oftalmologia [CBO] e os governos. Os tempos eram adequados porque havia surgido uma nova ideologia da saúde aqui em São Paulo decorrente da era do [governador Mário] Covas. Não quero que pareça partidário, mas foi na época em que o [José] Serra virou ministro da Saúde, em 1998, que tudo realmente começou a acontecer em escala nacional porque ele foi sensibilizado pela importância disso tudo e passou a liderar novas ideias. Certa vez o Serra, como ministro da Saúde, visitou o Hospital São Paulo trazido pelo médico Miguel Srougi, que me apresentou a ele. Começamos a falar sobre diabetes e cegueira. Ele respondeu PESQUISA FAPESP 170

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que não entendia nada disso e me convidou para ir ao escritório dele na mesma noite. Foram duas horas de conversa franca sobre saúde ocular, médicos e hospitais públicos em que respondi a uma dura sabatina. Expliquei a importância de fazer o mutirão do diabetes ocular. ■ E ele topou... — Imediatamente. Ao final da conversa fez com que eu me comprometesse em fazer o que havia prometido. Em seguida pediu para ligar no dia seguinte bem cedo para um assessor, Renilson Rehem de Souza, no ministério. Saí preocupado talvez com uma falsa promessa, mas fiz o que o Serra tinha mandado e descobri o Renilson cedinho já informado e trabalhando na ideia. Começamos naquela mesma manhã o mutirão do diabetes ocular, que se espalhou pelo Brasil. Depois da catarata e do diabetes ele aceitou um terceiro projeto, também muito importante, sobre transplante de córnea. Tudo isso mudou a saúde ocular no Brasil. ■ Foi esse projeto que zerou a fila para o transplante de córnea em São Paulo? — Sim. O paciente sempre esperou anos para fazer transplante de córnea no Brasil inteiro. Até que a universidade, o CBO e o governo se uniram para reestruturar os transplantes. E, hoje em dia, em São Paulo, nenhum paciente espera mais que alguns dias para fazer a cirurgia. Zerou. O SUS [Sistema Único de Saúde] funciona. Isso ocorreu à custa da

adequação das normas de transplante dando a correta importância à questão da gestão e do financiamento. Não se remunera apenas a córnea transplantada, mas o olho captado. Essa estratégia foi muito eficiente para aumentar o número de córneas para transplante e em pesquisa e treinamento. Agora, é irônico, emblemático e triste que mesmo em estados próximos a São Paulo continuem a não ter córnea e nem bancos funcionando com eficiência. A mensagem óbvia é: só a norma federal, inclusive com financiamento, não funciona sem estrutura local, organização social e capacidade política resolutiva. ■ Por que Sorocaba, no interior do estado, se tornou o símbolo desse sucesso na questão de transplantes? — Sorocaba tem há muitos anos um indivíduo visionário, idealista e excelente administrador, o Paschoal Martinez Munhoz. Com apoio de organizações, tipo Maçonaria, ele desenvolveu um método eficiente de captação, em que se passou a atuar no necrotério onde o familiar era abordado de maneira adequada por alguém que explicava a possibilidade de doar os olhos, que pode ser retirado até várias horas depois do óbito. A dor do familiar, no necrotério, já está atenuada pela necessidade prática e fica mais fácil se perceber a retribuição social da doação, além de se criar estímulo financeiro pelo não pagamento de certas despesas. E o Paschoal soube usar isso de maneira adequada. Numa cidade menor as pes-

soas começaram a perceber o bem que estavam fazendo e a comunidade ficou orgulhosa pelo fato de ser o município que mais doava olhos, pelo bem de todos. Sorocaba passou a exportar córnea para outras cidades de São Paulo e do país. Esse exemplo está agora replicado e difundido em outros lugares do estado. Também a Secretaria Estadual de Saúde teve um papel importante em criar e a aparelhar outros centros juntamente com o Ministério da Saúde. ■ Como se deu o caso de Pauini, cidade da Amazônia que tinha o maior índice de analfabetismo há alguns anos? — Pauini veio à tona graças ao programa Alfabetização Solidária, comandado por Ruth Cardoso. Conversávamos sobre as dificuldades em alfabetizar idosos e comentei sobre a experiência dos governos militares com o Mobral no interior do Nordeste. As pessoas não aprendiam e eram às vezes consideradas estúpidas, mas a verdade é que eram idosas, não enxergavam. Ruth entendeu imediatamente a necessidade de primeiro habilitar visualmente as pessoas e só depois começar o processo educacional. Fomos para Pauini antes de chegar o Alfabetização Solidária. Examinamos todos os futuros alunos e entregamos os óculos antes das aulas começarem. Isso passou a ser também uma marca do fabuloso trabalho que a Ruth Cardoso iniciou e segue agora, tantos anos depois. Foi replicado em muitos outros locais. E veja que interessante: em decorrência daquele trabalho que nada mais era do que examinar a visão e dar óculos, descobrimos e publicamos sobre uma doença ocular nova no Brasil, causada por uma filaria, a Mansonella ozzardi. ■ O que ela causa? — Basicamente ainda não se sabe; talvez dificuldade para enxergar. No momento estamos preparando um projeto sobre isso para apresentar à FAPESP. ■ O senhor vai aos mutirões? — Fui a muitos e ainda adoro ir. Não apenas para ver pacientes sendo tratados, mas para sentir a solidariedade humana e o envolvimento social. O atendimento mais difícil nessas situações segue sendo a consulta de refração para se prescrever óculos. É muito importante

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dar óculos. Sem óculos, o adulto maior de 40 anos não consegue atuar, ler, viver bem. Nenhum índio de 50 anos consegue botar isca ou fazer artesanato sem óculos. Óculos são indispensáveis para a qualidade de vida. ■ O fato de dar óculos é algo desvalorizado entre os oftalmologistas? — Desvalorizado de todas as maneiras. É fácil demais de fazer, não tem glamour, mas receitar óculos certos pode demorar mais do que realizar uma cirurgia de catarata. Óculos inadequados continuam sendo uma queixa frequente em pacientes de todos os níveis no Brasil. E essa desvalorização de algumas atividades é muito ruim, porque a desqualificação do trabalho de dar óculos, de certa maneira, é como desqualificar o trabalho que faz o indivíduo enxergar. Fizemos inicialmente no programa Alfabetização Solidária, com o apoio do ótico Miguel Giannini e do empresário Álvaro Ferrioli, no Nordeste, o que culminou com um projeto que precisa ser retomado pelo SUS, que é evitar terminar a consulta com um “tome aqui sua receita e vá embora”. Foi constatado há muitos anos no Hospital São Paulo que os nossos pacientes frequentemente já tinham passado em outros hospitais e recebido a receita. O problema não era conseguir a prescrição, mas o que fazer com ela. É um problema do acesso da população. Não quero me envolver em política, mas durante a gestão do Serra no Ministério da Saúde ele topou um projeto piloto que era, ao término da consulta, dizer ao paciente, “O senhor precisa de óculos, escolha entre esses três modelos”. Em três dias ele voltava e recebia os óculos bifocais prontinhos e incluídos na consulta do SUS. ■ Quantos óculos foram distribuídos gratuitamente? — Fizemos 1.200 na primeira etapa e 12 mil na segunda em São Paulo, Manaus e no Recife, com grande sucesso. A etapa seguinte era passar para 120 mil, mas não foi para a frente. De qualquer forma, é possível, e comprando em escala o preço cai muito. É o mesmo que se diz do medicamento e do genérico. Precisamos desenvolver o equivalente ao genérico para os óculos. Isso volta à nossa primeira questão, a velhice. Não dá para o indivíduo gastar um dinheiro

A causa mais importante de baixa visual e de cegueira no Brasil é a falta de óculos que não tem com óculos. É um problema que se resolve com vontade política. A causa mais importante de baixa visual e de cegueira no Brasil é falta de óculos. O médico, liderando uma equipe de saúde ocular, pode, com auxílio da tecnologia e de técnicos de nível médio, com política de saúde adequada, tornar tudo mais ágil e eficiente. ■ A cegueira vem caindo no Brasil? — Não. Ela tende a crescer e não é por culpa do governo. Todos terão de operar a catarata algum dia (se não morrermos antes) e não há nenhuma possibilidade de qualquer outro tratamento previsto para os próximos 10 anos. É um problema mundial. Há muitas centenas de milhões de pessoas com cataratas aguardando para serem operadas em todo o mundo. Talvez logo se chegue próximo a meio bilhão de pessoas. O brasileiro agora vive muito mais e a cegueira e a baixa visual do idoso é algo para o que com grande frequência a medicina ainda não tem resposta. É o que ocorre, por exemplo, com a degeneração macular. Também está aumentando muito a cegueira relacionada ao diabetes, complicações oculares relacionadas a avanços da medicina como transplantes e cura ou adiamento da morte em alguns tipos de câncer. O diabético vive mais, mas infelizmente pode passar muitos anos com neuropatia, cegueira etc. A cegueira relacionada ao glaucoma também vai aumentando muito com a idade.

■ O senhor parece gostar de gestão. — Não se trata de gostar, mas de precisar. A falta de gestão é um dos maiores problemas do sistema universitário e hospitalar, mais grave que a falta de investimento. Cheguei aos Estados Unidos em 1990 e era professor titular. Na época o departamento era grande, tinha umas 50 pessoas. Hoje tem 500. Como professor, tenho que administrar. Tive a sorte de ser aceito no MBA [Master of Business Administration] da FEA [Faculdade de Economia e Administração da USP]. Na universidade serviu muito porque expandiu meu conhecimento e a possibilidade de aprendizado. Permitiu uma comunicação maior com profissionais da área. E hoje uma das coisas que me orgulho muito no nosso departamento é que há outras pessoas que também terminaram fazendo o curso. Temos uma tradição de vários docentes com essa preocupação com gestão. Foi esse conhecimento que nos permitiu construir o prédio do Instituto da Visão, mas também conseguir sucesso internacional em ensaios clínicos etc. Temos um time de excelentes professores-gestores em oftalmologia. ■ Qual sua posição hoje no instituto? — Era o presidente até 2009. Quando fui eleito presidente da SPDM, a Sociedade Paulista de Desenvolvimento da Medicina, saí para não ter conflito de interesses. ■ Esse prédio novo do instituto, de 11 andares, é da sua gestão? — É. Fruto de nossa geração. Ele teve de ser construído porque não podíamos deixar de erguer nessa área da cidade um prédio com a altura máxima que a legislação permitisse. Sempre soubemos que o prédio era maior do que a oftalmologia necessitaria e ele foi construído já pensando que a Unifesp e o Hospital São Paulo iriam precisar do espaço. Essa construção é um exemplo da necessidade de se ter uma boa gestão. Uma parte do terreno a prefeitura emprestou por 50 anos, outra parte conseguimos dinheiro do BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social]. Saber fazer gestão é fundamental. Não dá mais para ter um departamento apenas de cientistas e educadores – tem que ter também o gestor. ■ PESQUISA FAPESP 170

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capa

limites incertos Grupo de pesquisa paulista caracteriza 23 disfunções orgânicas do desenvolvimento sexual Carlos Fioravanti

ilustrações Laura Daviña | colagem a partir das obras autorretrato, de van gogh, e Lorette, de matisse

— Maria, você quer ser mulher ou homem?

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A médica Berenice Bilharinho Mendonça, ao fazer essa pergunta, buscava uma informação importante para planejar o tratamento de Maria, então com 16 anos, naquele dia usando um vestido florido. Berenice já tinha reparado que Maria olhava constantemente para o chão para que o cabelo comprido encobrisse os pelos de barba do rosto. Os níveis do principal hormônio masculino, a testosterona, eram normais para um homem. Os genitais eram ao mesmo tempo masculinos e femininos, com predomínio do aspecto masculino. Diante da médica, em uma sala do Hospital das Clínicas (HC) de São Paulo, Maria respondeu de modo evasivo, com voz grave e forte sotaque do interior de Minas Gerais: — Ah. A senhora é que sabe. Berenice conta que não soube o que fazer de imediato. Não poderia escolher por Maria. Como lhe parecia claro que Maria não se sentia bem como mulher, ela chamou a equipe com que trabalhava – Walter Bloise, Dorina Epps e Ivo Arnhold. Em conjunto, decidiram fazer o que não estava nos manuais de atendimento a pessoas com distúrbios do desenvolvimento sexual. Sugeriram que Maria morasse em São Paulo por um ano e vivesse como homem para ver com qual sexo se adaptava melhor à vida em sociedade. Maria vestiu roupas masculinas pela primeira vez, ganhou outro nome – digamos, João –, saiu do hospital com o cabelo cortado e trabalhou em um emprego que a assistente social lhe arrumou. Maria gostou de ser João. No HC, desde aquela época uma referência nacional nessa área, Maria passou por uma cirurgia que corrigiu a ambiguidade dos genitais, tornando-os masculinos. Quando Maria nasceu, a parteira havia comentado que bebês como aquele morriam logo, mas João tem hoje 50 anos e, de acordo com as notícias mais recentes, vive bem no interior de Minas Gerais. João sempre foi homem, do ponto de vista genético. Suas células contêm um cromossomo X e um Y, como todo homem – as mulheres

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têm dois cromossomos X –, além de 23 pares de cromossomos não ligados ao sexo. Por causa de uma falha em um gene em cromossomo não sexual, porém, seu organismo produz uma quantidade muito baixa da enzima 5-alfa-redutase tipo 2. Em consequência, seus genitais masculinos não tinham se formado por completo e se apresentavam com um aspecto feminino, o que fez com que fosse registrado como mulher. Seu problema – hoje controlado, embora as células continuem com essa deficiência – expressa um dos 23 tipos de distúrbios de desenvolvimento sexual (DDS) cujas possíveis origens, evolução, sinais e tratamentos Berenice, Arnhold, Elaine Maria Frade Costa e Sorahia Domenice apresentaram no final de 2009 em um artigo publicado na revista Clinical Endocrinology. Reunindo os 30 anos de experiência do próprio grupo ao de outros do Brasil e de outros países, esse trabalho mostra como os defeitos genéticos podem gerar desvios metabólicos que ampliam ou reduzem a produção dos hormônios masculinos e induzem à formação de órgãos sexuais masculinos e femininos, parciais ou completos, em um mesmo indivíduo.

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s relatos que acompanham os diagnósticos normalmente chegam carregados de angústia de pais que nunca souberam dizer com certeza se o bebê que viram nascer era menino ou menina. Berenice lembra que saber o sexo de um recém-nascido é importante não só para responder a uma das primeiras perguntas que os pais ouvem depois que nasce o filho ou filha. É uma informação essencial para decidir que nome dar ao bebê e como tratar a criança, já que muitos adjetivos e substantivos da língua portuguesa têm gênero (masculino ou feminino), tudo isso contribuindo para definir a identidade psicológica das crianças. Segundo ela, histórias de rejeição normalmente acompanham as crianças com ambiguidade sexual, antes pejorativamente chamadas de hermafroditas ou de pseudo-hermafroditas. O fato de apresentar genitais masculinos e femininos faz muitas meninas serem registradas e viver como meninos – e muitos meninos viverem como meninas. Confundir o sexo de recém-nascidos com ambiguidade sexual é fácil, porque “os

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genitais geralmente não são bem examinados ao nascimento e as meninas, principalmente as prematuras, muitas vezes apresentam um clitóris aparentemente hipertrofiado”, diz ela. Genes situados nos cromossomos sexuais (X e Y) ou em qualquer outro dos 23 pares de cromossomos de uma célula humana normal podem apresentar defeitos – ou mutações – e causar um dos 23 tipos de DDS. Tais distúrbios representam um grupo heterogêneo de problemas, alertam Martine Cools, da Universidade de Gent, Bélgica, e três pesquisadores da Holanda em um estudo de maio de 2009 na revista World Journal of Pediatrics. Os mesmos defeitos genéticos podem levar a sinais e sintomas diferentes e, por outro lado, um quadro clínico similar pode resultar de genes diferentes. Em apenas um gene, o SRY, que atua apenas nos primeiros dias de vida intrauterina, podem ocorrer 53 alterações que prejudicam o desenvolvimento sexual. Outras mutações podem reduzir ou ampliar a produção dos hormônios esteroides sexuais, dos quais o mais importante é a testosterona, ou de compostos como o colesterol, um precursor desses hormônios. E m um estudo de 2004, o grupo da USP apresentou 14 mutações em oito genes que impedem a produção de hormônios ligados ao desenvolvimento sexual. A médica Ana Claudia Latro-

O IDEAL É DESFAZER A AMBIGUIDADE SEXUAL ANTES DOS 2 ANOS DE IDADE

nico, â frente desse trabalho, associou cada mutação às respectivas manifestações externas, com base na avaliação de quase 400 crianças, adolescentes e adultos de todo o país e de países vizinhos atendidos na USP. Sob a coordenação de Tânia Bachega e Guiomar Madureira, a equipe identificou 18 mutações – pelo menos quatro específicas da população brasileira – que podem levar à forma mais comum de distúrbio de desenvolvimento sexual, a hiperplasia adrenal congênita virilizante, caracterizada pelo desenvolvimento excessivo do clitóris, a ponto de assemelhar-se a um pênis.

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sse distúrbio do desenvolvimento sexual resulta de mutações no gene CYP21A2, localizado no cromossomo 21 (não sexual), que reduzem a produção da enzima 21-hidroxilase. Em consequência, as glândulas suprarrenais produzirão menos do que deveriam de um hormônio, o cortisol, e mais de outro, a testosterona. As meninas sofrem uma virilização dos genitais ao longo da vida uterina – nascem com o clitóris hipertrofiado e uma bolsa escrotal sem testículos recobrindo a vagina – e podem ser registradas como meninos quando a alteração não é identificada logo ao nascimento. Por causa de alterações nesse mesmo gene, os meninos podem apresentar uma forma de hiperplasia que não traz ambiguidade sexual, mas pode implicar uma perda intensa de sal, a ponto de causar lesões cerebrais ou morte por desidratação, caso não sejam tratados a tempo. Uma em cada 15 mil pessoas tem ou deveria ter essa forma de hiperplasia, de acordo com estudos feitos na Europa ou na América do Norte. Os levantamentos no Brasil são raros. “A geneticista Elizabeth Silveira, co-orientada pela Tânia Bachega, examinou amostras de sangue de recém-nascidos coletadas no estado de Goiás, que faz rotineiramente o teste do pezinho para detectar a deficiência da 21-hidroxilase, e concluiu que a incidência de hiperplasia no Brasil por ano é de um caso para cada 10 mil nascidos vivos”, diz Berenice. Pelo menos 840 casos, portanto, deveriam ter sido diagnosticados nas universidades paulistas e de outros estados. O HC da USP, que deve ter acolhido o maior número de casos, só registrou 380.

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COLAGEM A PARTIR DAS OBRAS AUTORRETRATO, DE REMBRANDT, E RETRATO DE BABY DE ALMEIDA, DE LASAR SEGALL (1927, PINTURA A ÓLEO SOBRE TELA, 74 X 61CM - SECRETARIA DE ESTADO DA CULTURA - CASA GUILHERME DE ALMEIDA)

“Os pais tendem a esconder ou a negar os distúrbios do desenvolvimento sexual dos filhos, porque reconhecer pode ser emocionalmente doloroso, e a maioria dos portadores de distúrbios de desenvolvimento sexuais só chega aqui quando já são adolescentes ou adultos”, diz Berenice. Em uma situação extrema, há menos de um ano ela atendeu uma mulher de 70 anos que apresentava ambiguidade sexual e só resolveu expor seu problema depois de a mãe, que não a deixava falar, ter morrido. “Quanto mais cedo possível se fizer o diagnóstico e desfizer a ambiguidade sexual, melhor, de preferência antes dos 2 anos de idade, quando as crianças ainda não estabeleceram as noções de sexo e gênero”, diz a psicóloga Marlene Inácio, que acompanha as pessoas com ambiguidade sexual no HC há 28 anos. No início, ela conta, o diagnóstico que embasava o tratamento podia demorar de seis meses a um ano. “Hoje os resultados dos testes laboratoriais saem em uma semana”, diz. Em sua tese de doutorado, Marlene reuniu os relatos de 151 pessoas com ambiguidade sexual atendidas no HC, das quais 96 são geneticamente homens (XY) e 55 geneticamente mulheres (XX), com idade entre 18 e 53 anos. Seu propósito, por meio de um questionário com 121 perguntas, era verificar como essas pessoas viveram durante a infância, adolescência e vida adulta, antes e depois de terem sido diagnosticadas e tratadas, e se conseguiram se adaptar do ponto de vista psíquico, social e sexual com o sexo que adotaram. Marlene conclui que, de modo geral, estão bem. Muitas se casaram ou pretendem se casar. Os homens com ambiguidade sexual são estéreis, por causa da baixa fertilidade do líquido seminal ou por consequências da cirurgia corretiva, mas dois tiveram filhos, por meio de fertilização in vitro com seu próprio sêmen. De um grupo de 20 mulheres com uma das formas do distúrbio do desenvolvimento sexual 46,XY, 18 mudaram de sexo e hoje são homens.

É

o caso de outra Maria, que veio do interior da Bahia há cerca de três anos. Tinha voz grossa de homem, ombros largos e braços fortes de tanto trabalhar na lavoura. Vivera até os 16 anos isolada em um quarto

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nos fundos da casa, com pouco contato com a família, e não sabia ler nem escrever. “Psicologicamente, era um homem, e preferiu ser homem porque precisava da força para se opor aos pais que a tinham feito viver como mulher”, conta Marlene. “Ela tinha clitóris grande, que, segundo ela, lhe dava prazer sexual, e queria ser mecânico.” Em outro levantamento, Maria Helena Palma Sircili, uma das médicas do grupo, verificou que 90% das 65 pessoas com cariótipo 46,XY (geneticamente homens, mas socialmente mulheres) operadas de 1964 a 2008 no serviço de urologia do HC da USP estavam satisfeitas com o sexo que haviam adotado e haviam se ajustado à mudança; 69% das que optaram pelo sexo masculino e 29% das que preferiram o feminino estavam casadas. Esse estudo, a ser publicado no Journal of Urology, trouxe uma constatação que surpreendeu a própria equipe: a qualidade da atividade sexual não depende do tamanho do pênis.

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sses resultados animam Berenice e sua equipe a entrar em novas situações. Uma delas foi planejada e está em andamento, sob a coordenação de Elaine: as pesquisas com um pequeno peixe de água doce, o paulistinha, também conhecido como zebrafish ou Danio rerio, com o qual pretendem examinar o surgimento de distúrbios sexuais do desenvolvimento. Outra situação foi inesperada: em um congresso realizado no ano passado nos Estados Unidos, Berenice recebeu o convite para participar de uma equipe de cinco assessores do Comitê Olímpico Internacional. Tinham de ajudar a resolver um problema difícil: uma corredora com ambiguidade sexual pode correr entre mulheres? A conclusão a que chegaram é que sim, “se essa corredora estiver sob tratamento, com níveis de testosterona normal para as mulheres”, diz Berenice. Outra proposta dos médicos para o Comitê Olímpico: “Não podemos impedir quem tem genitália ambígua de participar de qualquer modalidade esportiva”. Esses estudos expressam um estilo de trabalho que valoriza a escolha dos pais de crianças com ambiguidade sexual ou dos próprios adultos com esses distúrbios. Dar voz aos pais implica o reconhecimento de expectativas frustradas com filhos que morreram ao nascer ou com meninas que chegaram no lugar imaginado para meninos. “Antes de o filho nascer, a mãe imagina o que o bebê vai ser; ele existe primeiro em sua mente”, diz a psicanalista Norma Lottenberg Semer, professora da Universidade Federal de São Paulo e membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise

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de São Paulo. “O que os filhos serão, em termos sexuais e psíquicos, em parte reflete as fantasias, os sentimentos e os pensamentos dos pais.” “As condutas de tratamento são estabelecidas em consenso entre os pais e a equipe multidisciplinar”, diz Berenice. Do diagnóstico, segundo ela, participam endocrinologistas, cirurgiões, clínicos, biólogos, psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais. “Quando não há consenso entre a orientação médica e o desejo dos pais, o desejo dos pais deve ser respeitado.” Uma vez sua equipe tratou de uma menina recém-nascida, hoje com 11 anos, que apresentava hiperplasia adrenal congênita, com um clitóris semelhante a um pênis, e tinha sido registrada como menino. Segundo Marlene, os pais escolheram que ela seria homem e não aceitaram a orientação de mudança para o sexo social feminino porque já tinham duas filhas e desejavam um filho. A escolha resultou também de outra razão. “A mãe achava que ser mulher era sinônimo de sofrimento e convivia com a culpa, como o marido dizia, de ter tido uma criança anormal”, conta Marlene. Na cirurgia, os médicos removeram ovários e útero dessa Maria, que terá de tomar hormônio masculino por toda a vida adulta, já que seu organismo não o produz.

COLAGEM A PARTIR DAS OBRAS RETRATO DE JAN DE LEEUW, DE VAN EYCK, E O NASCIMENTO DE VÊNUS, DE BOTTICELLI

Os homens que apresentavam ambiguidade sexual podem não ter os genitais tão desenvolvidos quanto os de outros homens – e não reclamaram. “Foi uma surpresa, porque os urologistas dizem que frequentemente os homens, mesmo sem distúrbios sexuais biológicos, reclamam do tamanho peniano”, diz Berenice. Marlene atribuiu esse resultado a uma satisfação maior com a identidade masculina do que simplesmente com as dimensões do pênis: “Nosso trabalho de aconselhamento psicológico propõe a exploração de outras possibilidades de satisfação sexual, erotizando o corpo todo, e não apenas os genitais”.

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uando são adultos, eles próprios escolhem que sexo querem manter. Foi assim que outra Maria com deficiência da enzima 5-alfa-redutase-2 apareceu lá com um lenço colorido cobrindo o cabelo curto, camisa masculina abotoada até o pescoço e sutiã com enchimento. Maria tinha se apaixonado por outra funcionária da casa em que trabalhava como empregada doméstica. No hospital, Maria vestiu-se como homem e gostou. Também adotou outro nome, Moacir. “Vimos essa transformação imediata, foi linda”, conta Marlene. “O sexo social de Moacir era feminino, mas o psíquico era masculino.” Segundo Marlene, Moacir está casado e feliz. O diagnóstico para definição do sexo ou da ambiguidade sexual inclui sete itens. Alguns são biológicos, como os níveis de hormônios e as estruturas genitais externas e internas. Outros são subjetivos, como o sexo social – pelo

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qual um indivíduo é reconhecido por outras pessoas – e a identidade de gênero – se essa mesma pessoa se assume psiquicamente como homem ou como mulher. “A identidade de gênero é ser e ao mesmo tempo sentir-se homem ou mulher”, diz Marlene. Uma pessoa que apenas se sente homem ou mulher, sem nenhum distúrbio biológico nem a identidade sexual correspondente, pode apresentar transtorno psíquico de identidade de gênero. Em uma dessas vertentes, o transexualismo, uma pessoa biologicamente normal tem a convicção de pertencer a outro sexo, sem aceitar seu próprio sexo. “O transexualismo não está associado a questões genéticas”, diz Norma. “É mais um problema de identidade do que de sexualidade.” São os homens que dizem que são mulheres em corpo de homem. O mais famoso transexual brasileiro, Roberta Close, depois de muitas cirurgias para tornar-se mulher, obteve em 2005 o direito de fazer outra certidão de nascimento, mudando o nome de Luís Roberto Gambine Moreira para Roberta Gambine Moreira e o gênero, de masculino para feminino. O homossexualismo constitui outro universo distante dos distúrbios biológicos. Nesse caso, a identidade de gênero se mantém: são homens ou mulheres que se aceitam como homens ou mulheres e escolhem outros homens ou mulheres como objetos amorosos. Já nos travestis a identidade de sexo é estável, mas a de gênero é flutuante: os travestis sabem que são homens, mas podem às vezes se comportar como mulheres.

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O PROJETO Diagnóstico molecular de distúrbios da diferenciação sexual

MODALIDADE

Projeto Temático COORDENADOR

BERENICE BILHARINHO MENDONÇA – USP INVESTIMENTO

R$ 608.743,81 (1997/01196-1)

O SEXO DOS FILHOS REFLETE DESEJOS, FANTASIAS E EXPECTATIVAS DOS PAIS

No hospital da USP, só depois do diagnóstico e da escolha do sexo a ser adotado é que a ambiguidade sexual pode ser desfeita, por meio de uma cirurgia de correção da genitália externa masculina ou feminina, seguida de reposição hormonal. “Não queremos apenas tratar e resolver, mas entender as causas de um problema, examinando os dados e a história pessoal de cada paciente, elaborando uma hipótese e, a partir daí, pedindo os exames”, diz Berenice. “Não adianta pedir exames e mais exames sem uma hipótese a ser investigada. Só investigamos os possíveis genes envolvidos em um problema depois de termos em mãos o diagnóstico hormonal. Se não, é caro e inútil.” Ela diz que não quer formar apenas médicos, mas investigadores médicos. Foi o que se passou com ela. Berenice chegou ao Hospital do Servidor Público Estadual em 1972 para cursar o sexto ano do curso de medicina que havia feito até então na Universidade Federal do Triângulo Mineiro, em Uberaba, Minas Gerais. Voltou um ano depois para fazer residência médica no Hospital das Clínicas da USP e conheceu Walter Bloise, que na época cuidava dos então chamados casos de intersexo. “Aprendi muito mais do que medicina com o doutor Bloise”, lembra ela.

“Aprendi que temos de tratar esses problemas com simplicidade e com tranquilidade, como se fosse uma doença cardíaca ou um lábio leporino.” Nessa época os testes de dosagem de hormônios eram feitos por meio das clínicas dos próprios médicos, quando possível, já que não havia um laboratório de endocrinologia no hospital. Um dia Antonio Barros de Ulhoa Cintra, o chefe anterior da endocrinologia que havia sido reitor da USP e presidente da FAPESP, cobrou-lhe a dosagem hormonal de um paciente. Ela respondeu: — Como o senhor sabe, não dosamos hormônios aqui no hospital. — Na minha época, eu andava com um tubo com sangue de paciente no bolso para dosar cálcio. — Hoje só de hormônios são 30. Precisamos de um laboratório, doutor Cintra.

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mílio Matar, outro professor, soube da conversa e decidiu pela compra dos equipamentos de dosagem de hormônios. Bloise a incentivou: “Por que você não faz um laboratório?”. Ela fez, em colaboração com o professor Wilian Nicolau. Hoje os 80 funcionários e pesquisadores de sua equipe cuidam da dosagem de 60 hormônios para todo o hospital. Agora ela pretende ampliar a discussão on-line de casos suspeitos de DDS com outros médicos, especialmente pediatras, de todo o país, por internet, para que as pessoas com distúrbios de desenvolvimento sejam logo identificadas e tratadas. Outra batalha à frente – dela e de toda a equipe – é a implementação do diagnóstico em recém-nascidos das alterações 21-hidroxilase, a enzima que causa a hiperplasia adrenal congênita virilizante no estado de São Paulo. “É um teste que custa apenas R$ 5 e pode evitar erros de diagnóstico do sexo ao nascimento e a mortalidade, que afeta principalmente os meninos, que nascem com os genitais masculinos normais e não são identificados.” ■ > Artigo científico MENDONÇA, B.B.; DOMENICE, S.; ARNHOLD, I.J.; COSTA, E.M. 46,XY disorders of sex development (DSD). Clinical Endocrinology. 2009, 70(2):173-87.

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Estratégias mundo

Ranking turbinado

Uma rede de colaboração científica recém-criada na África planeja aumentar o número de pesquisadores dedicados ao estudo da aquicultura e da pesca no continente para ajudar a recuperar os estoques de peixes, atualmente em declínio. A Fisheries University Network (FishNet) foi lançada no final de fevereiro numa conferência organizada por uma universidade agrícola de Malawi. A ambição é recrutar e treinar pesquisadores nesse campo entre os docentes de universidades africanas. Dados da FAO, braço das Nações Unidas para alimentação e agricultura, mostram que o abastecimento de peixes nos países africanos caiu 22

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de 17 quilos per capita nos anos 1970 para menos de 7 quilos per capita em 2006. “É sabido que a África não tem massa crítica científica capaz de agregar valor à cadeia de produção da aquicultura e da pesca”, disse à agência SciDev.Net Emmanuel Kaunda, professor da Universidade de Malawi. A iniciativa busca estimular a formação de políticas públicas conjuntas, criar pontes com parceiros estratégicos e levantar recursos. Outra meta é assegurar que os resultados das pesquisas tenham impacto no trabalho dos aquicultores e pescadores do continente. A rede deve trabalhar em conjunto com a Partnership for African Fisheries (PAF), programa voltado para desenvolver um novo padrão de exploração da pesca na África.

greenpeace

Multiplicação dos peixes

O tradicional ranking de universidades da Times Higher Education (THE), do jornal londrino The Times, vai promover mudanças em sua metodologia. Uma das queixas recorrentes ao levantamento é o peso conferido às subjetivas pesquisas de reputação, baseadas em questionários com pesquisadores em que eles são convidados a apontar as melhores universidades em cada área do conhecimento. Há críticas em relação à representatividade dos entrevistados – existiria um viés favorável a países anglófonos –, além da suspeita de que nem sempre eles estão bem informados sobre todas as universidades que irão avaliar. Em resposta às reclamações, a THE anunciou que seus dados não serão mais levantados pela empresa londrina QS. No lugar, utilizará dados de um projeto do provedor de informações Thomson Reuters, o Global Institutional Profiles Project, que também inclui pesquisas de reputação, mas se amparará em pelo menos 25 mil questionários, ante os atuais 4 mil. A THE continuará a listar as universidades num diagrama, o que, segundo os críticos, sugere uma falsa precisão e exacerba diferenças às vezes sutis. Mas incluirá mais dados, permitindo que instituições com perfis semelhantes comparem-se umas com as outras. “Nos sentimos na obrigação de aperfeiçoar a metodologia, porque o ranking influencia decisões e políticas”, disse à revista Nature a editora da THE, Ann Mroz.

Geleira Huayna Potosi: água e em energia para La Paz Pesqueiro na África: estoques declínio

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O futuro telescópio E-ELT: Chile é o candidato mais forte

o maior do mundo A localidade de Cerro Armazones, no Chile, saiu na frente na corrida para abrigar o maior instrumento astronômico do mundo, o European Extremely Large Telescope (E-ELT). O European Southern Observatory (ESO), responsável pelo telescópio, divulgou um relatório preliminar sobre os cinco locais candidatos

a receber o equipamento, sendo quatro deles no Chile e um na ilha espanhola de La Palma. Cerro Armazones é apontado como o sítio com melhor infraestrutura. Além de vantagens em relação à observação do céu, tem a seu favor a proximidade com outra instalação do ESO, o Very Large Telescope, em Cerro Paranal. Os dois observatórios poderão trabalhar de forma integrada se o E-ELT for construído lá.

Mas o governo da Espanha pressiona o ESO para levar o telescópio para La Palma, com o argumento de que seria melhor tê-lo em território europeu. O E-ELT terá um espelho de 42 metros composto por pelo menos mil segmentos hexagonais de 1,4 metro de largura e 5 centímetros de espessura. Será de quatro a cinco vezes maior do que os atuais telescópios de última geração.

o gênio rejeita US$ 1 milhão O matemático russo Grigory Perelman, 43 anos, recusou mais um prêmio em reconhecimento à proeza de resolver a conjectura de Poincaré, considerada uma questão central da topologia, área da matemática que estuda as propriedades geométricas que não mudam quando objetos são distorcidos, esticados ou encolhidos. Segundo o jornal Pravda, Perelman rejeitou o prêmio de US$ 1 milhão oferecido pelo Instituto Clay de Matemática (CMI, na sigla em inglês), de Massachusetts. Ele publicou a solução da conjectura em artigos na internet em 2002 e 2003. Em 2006 foi indicado para receber a cobiçada Fields Medal, concedida a grandes matemáticos com menos de 40 anos, mas recusou o prêmio, tachando-o de irrelevante. Ele também tinha rejeitado um prêmio do Congresso Europeu de Matemáticos, em 1996, sob o argumento de que não reconhecia nos pares que concederam a honraria autoridade para julgar seu feito. PESQUISA FAPESP 170

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ilustarções laurabeatriz

Um programa de US$ 77 milhões para ajudar países em desenvolvimento a enfrentar os desafios das mudanças climáticas foi lançado em março. Uma aliança liderada pela empresa PricewaterhouseCoopers (PwC) vai coordenar a Rede de Conhecimento em Clima e Desenvolvimento, patrocinada pelo Departamento de Desenvolvimento Internacional do Reino Unido. O objetivo é ajudar pesquisadores e autoridades de 60 países a ter acesso e a compartilhar informações científicas sobre as melhores formas de enfrentar problemas causados pelo aquecimento global. A rede também quer treinar especialistas nos países em desenvolvimento para que eles possam fazer seus próprios planos de mitigação. Saleemul Huq, do Instituto Internacional para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, em Londres, considera cruciais as duas principais missões da rede – que são construir competência para uma economia de baixo carbono e enfrentar as consequências das mudanças climáticas –, mas diz que os países em desenvolvimento têm necessidades diferentes. “Enquanto a economia de baixo carbono é mais importante para emergentes como a China, para a vasta maioria dos países pobres lidar com os impactos é a grande questão”, disse Saleemul Huq à agência SciDev.Net.

ESO

informação para todos

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oms

Vacinação em risco

o clima e a evolução

da evolução humana e as mudanças do clima. Os pesquisadores também sugerem um programa abrangente para escavar lagos extintos e bacias nas regiões em que os humanos evoluíram na Etiópia e no Quênia. Isso pode ajudar a reconstruir o ambiente do passado, levantando registros de mudanças climáticas nas áreas onde os ancestrais dos humanos realmente viveram.

Gargalos colombianos

laurabeatriz

Um relatório divulgado pelo National Research Council, dos Estados Unidos, recomenda a criação de um grande programa interdisciplinar para estudar como o clima do passado influenciou a evolução humana. No documento, diz a revista Science, uma equipe interdisciplinar de paleoantropólogos e geólogos recomendou iniciativas em várias frentes de pesquisa. A primeira é lançar um grande esforço para localizar novos sítios com fósseis usando ferramentas de sensoriamento remoto e métodos tradicionais

Mais de 4,2 milhões de pessoas, na maioria crianças, poderão morrer de causas evitáveis nos próximos seis anos, se o orçamento da organização Gavi Alliance continuar nos níveis atuais. O alerta dado pela entidade, que desde sua criação em 2000 vem conseguindo elevar as taxas de imunização em países muito pobres, faz parte de um documento enviado para seus doadores e benfeitores, que se reuniram no final de março. É a primeira vez que a parceria global sediada em Campanha de imunização: recursos não cresceram Genebra reúne seus principais doadores – países e organizações filande levantamento de trópicas – para levantar mais fundos. “A crise de financiamento terrenos. O objetivo é da Gavi é aguda”, disse Daniel Berman, diretor da Campanha por Acesso a Medicamentos Essenciais da ONG Médicos sem preencher lacunas-chave nos registros de fósseis, Fronteiras. De acordo com a OMS, a Gavi imunizou mais de 250 tentando saber quando milhões de crianças e preveniu cerca de 5,4 milhões de mortes novas espécies apareceram prematuras na última década. Mas vem se tornando vítima e desapareceram, para de seu próprio sucesso: a demanda por imunização cresce averiguar se há relações na contramão da capacidade de financiamento dos países entre os grandes eventos doadores, feridos pela crise financeira mundial.

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A Colômbia terá acesso a um empréstimo de US$ 500 milhões do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento para expandir sua capacidade científica e tecnológica. O dinheiro será liberado em dois estágios. No primeiro, entre 2011 e 2013, cada banco vai oferecer US$ 25 milhões, que serão utilizados em gargalos como a criação de um sistema de informação em ciência e tecnologia eficiente e de programas para atrair bons pesquisadores colombianos radicados no exterior. A segunda

parte, num total de US$ 450 milhões, virá depois de 2013 e irá financiar projetos em áreas estratégicas, como novos materiais, biodiversidade e biocombustíveis. Alejandro Caballero, funcionário do Banco Mundial que coordenou a montagem do empréstimo, disse que o fortalecimento do sistema científico e tecnológico da Colômbia permitirá melhorar a competência dos cientistas do país e poderá encorajar entidades públicas e empresariais e investir em pesquisa e desenvolvimento. Desde 2005, Argentina, Chile, México e Uruguai receberam empréstimos em moldes semelhantes do Banco Mundial.

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laurabeatriz

Estratégias brasil

Estação de agroenergia A Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo (USP), será a responsável pela gestão da Estação Experimental de Agroenergia, que funcionará na cidade de Jaú, interior paulista. A iniciativa, anunciada no mês passado pelo governo paulista, é fruto de uma parceria com a Secretaria de Agricultura e Abastecimento do estado e fará parte da Rede de Bioenergia da USP, que busca envolver pesquisadores da área de todos os campi da universidade e articular atividades de pesquisa sobre aplicação, produção e uso de energia a partir de fontes renováveis. Na estação serão desenvolvidos trabalhos, aulas e estudos de campo, principalmente em experimentos com a cana-de-açúcar. Trata-se do primeiro espaço voltado para pesquisa em bioenergia fora da sede da Esalq em Piracicaba. No local serão instalados o Polo de Aplicação e Desenvolvimento de Tecnologias da Agroenergia e Biomassa e o Centro de Ensino e Treinamento em Agroenergia. A parte administrativa e as salas de aula ficarão numa área de 80 mil metros quadrados já edificada da extinta Companhia Jahuense, que foi doada à USP.

ASCOM-MCT

cientista laureado

Davidovich: emaranhamento

O físico Luiz Davidovich, professor-titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro, foi agraciado com o Prêmio Almirante Álvaro Alberto para Ciência e Tecnologia, que será entregue no dia 4 de maio na Academia Brasileira de Ciências (ABC), no Rio de Janeiro. Davidovich atualmente lidera um grupo de pesquisa sobre o emaranhamento de

estados quânticos e, em particular, o estudo da influência do ambiente sobre essa propriedade do mundo das partículas atômicas. Autor de mais de 80 artigos, é membro da Academia Brasileira de Ciências, da Academia de Ciências do Mundo em Desenvolvimento (TWAS) e da National Academy of Sciences. O Prêmio Almirante Álvaro Alberto é uma iniciativa do Ministério da Ciência e Tecnologia, do CNPq e da Fundação Conrado Wessel que reconhece pesquisadores brasileiros pelo trabalho realizado ao longo de sua carreira. Criado em 1981, já foi concedido a nomes como Sergio Henrique Ferreira, Fernando Galembeck, Carlos Chagas Filho, Celso Furtado, Florestan Fernandes, Caio Prado Júnior, Otto Gottlieb, Mário Schenberg, Eduardo Moacyr Krieger e Jacob Palis Júnior, entre outros.

Projetos cooperativos As Fundações de Amparo à Pesquisa dos estados de São Paulo (FAPESP), Minas Gerais (Fapemig) e Pará (Fapespa) e a Companhia Vale S.A. lançaram chamada de propostas no âmbito do Acordo de Cooperação Tecnológica assinado em 2009, que busca selecionar projetos cooperativos a serem desenvolvidos nos três estados. O valor global da chamada é de até R$ 120 milhões, sendo até R$ 40 milhões para apoio a pesquisas em cada um dos estados participantes. Em São Paulo, a FAPESP aportará R$ 20 milhões, a mesma quantia da Vale. Serão admitidas propostas em duas modalidades: Rede de Pesquisa e Individual. No caso da FAPESP, as propostas poderão ser entregues até 23 de junho.

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Mulheres na ciência

Reconhecimento duplo A pesquisa de doutoramento do bolsista da FAPESP Daniel Breseghello Zoccal, 29 anos, já lhe rendeu dois reconhecimentos internacionais. Ele vai receber neste mês, nos Estados Unidos, o The Michael J. Brody Young Investigator Award, concedido a jovens pesquisadores pela American Physiological Society e a companhia Merck. Em julho ele irá a Manchester, na Inglaterra, receber outra homenagem. A revista científica Experimental Physiology, editada pela The Physiological Society, agraciou Zoccal com um prêmio concedido a pesquisadores em início de carreira. Isso porque um artigo científico do brasileiro, publicado na revista em 2009, foi um dos que mais geraram downloads na publicação, numa evidência do 26

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interesse produzido na comunidade científica e seu potencial para render citações em outros artigos. Os prêmios estão relacionados à pesquisa feita por Zoccal em sua tese de doutorado, defendida no dia 28 de fevereiro na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (FMRP-USP), sob orientação do professor Benedito H. Machado. “Nosso trabalho contribui de forma importante na compreensão dos mecanismos envolvidos na hipertensão neurogênica, ao mostrar, usando um modelo animal, que mecanismos relacionados ao controle da respiração podem também influenciar significativamente os níveis da pressão arterial”, explica o recém-doutor. Zoccal já está engajado em um pós-doutorado, também na FMRP, no campo da fisiologia cardiovascular e da respiração.

Estão abertas até o dia 10 de maio as inscrições do Programa L‘Oréal/Unesco para Mulheres na Ciência. Podem participar pesquisadoras que tenham concluído o doutorado a partir de 2004 nas áreas de ciências biomédicas, biológicas e da saúde, ciências físicas, ciências matemáticas e ciências químicas. Cada vencedora recebe bolsa-auxílio no valor de US$ 20 mil. Lançado em 2006, o programa, criado graças a uma parceria com a Unesco e a Academia Brasileira de Ciências (ABC), já beneficiou 26 jovens cientistas. O júri, presidido pelo matemático Jacob Palis Júnior, presidente da ABC, conta com um representante da Unesco, um representante da L‘Oréal e oito pesquisadores indicados pela ABC, entre eles quatro cientistas brasileiras contempladas pela versão internacional do prêmio, o L‘Oréal/Unesco for Women in Science International: a geneticista Mayana Zatz, a física Belita Koiller, a bióloga Lucia Previato e a astrônoma Beatriz Barbuy. Mais informações estão disponíveis no site loreal.abc.org.br.

Reajuste das bolsas O Conselho Técnico-Administrativo da FAPESP aprovou proposta da Diretoria Científica para reajustar os valores de bolsas oferecidas pela Fundação. Os reajustes contemplam as bolsas de iniciação científica (IC), mestrado (MS), doutorado (DR), doutorado direto (DD) e pós-doutorado (PD-BR). Os novos valores são: R$ 474,00 (IC), R$ 1.392,90 (MS1 e DD1), R$ 1.478,70 (MS2 e DD2), R$ 2.053,20 (DR1 e DD3), R$ 2.541,30 (DR2 e DD4) e R$ 5.028,90 (PD-BR). Também serão reajustadas as bolsas de Capacitação de Recursos Humanos de

Apoio a Pesquisa, Jovem Pesquisador, Ensino Público, Pipe e Mídia Ciência. “Formação de recursos humanos para pesquisa é estratégia fundamental para o desenvolvimento científico e tecnológico em São Paulo”, disse Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da Fundação. “Em 2009 a FAPESP apoiou mais de 10 mil bolsistas no estado. De 2005 a 2009 aumentamos a quantidade de bolsas de mestrado em 89%, as de doutorado em 40%, as de pós-doutorado em 55% e as de iniciação científica em 18%. O reajuste realizado agora busca preservar o poder aquisitivo e incentivar a qualidade do trabalho dos bolsistas.”

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e ciências naturais. Para um periódico científico ser aceito na SciELO Brasil, deve passar por um processo de avaliação que leva em conta aspectos como a qualidade científica do conteúdo, a composição do conselho editorial e a adequação a normas da biblioteca. A SciELO Brasil

ELEIÇÃO NA FAPESP

é uma biblioteca eletrônica que abrange uma coleção selecionada de mais de 200 periódicos científicos brasileiros. É o resultado de um projeto de pesquisa patrocinado pela FAPESP em parceria com o Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (Bireme).

CPTEC

O Boletim de Ciências Humanas do Museu Paraense Emílio Goeldi, um dos periódicos científicos mais antigos do Brasil, recebeu parecer favorável para ingressar na coleção da biblioteca virtual SciELO Brasil. A primeira edição da publicação, batizada originalmente de Boletim do Museu Paraense de História Natural e Ethnographia, data de 1894 e foi lançada pelo naturalista Emílio Goeldi (1859-1917). Atualmente o periódico é publicado três vezes ao ano, em duas versões: ciências humanas

ILUSTRAÇÕES LAURABEATRIZ

NA COLEÇÃO SCIELO

SÓCIO NOVO NO CLUBE O Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), foi recomendado pela Comissão para Sistemas Básicos da Organização Meteorológica Mundial (OMM) para se tornar um centro produtor global (GPC, na sigla em inglês) de previsões de longo prazo. A designação é uma espécie de selo de qualidade internacional à produção das previsões climáticas sazonais do CPTEC e precisa ser ratificada pelo conselho executivo da OMM. O clube dos GPC inclui o Climate Prediction Center (NOAA-EUA), o European Centre for Medium-Range Weather Forecasts (ECMWF), o Japan Meteorological Agency (JMA), o Meteo-France e o UK Met Office Hadley Centre. Desde 2006, a OMM passou a designar como GPC os centros de previsão de tempo e clima que atendam a determinados requisitos de qualidade, como a geração mensal de um conjunto de produtos de previsão climática sazonal, o fornecimento de informações atualizadas sobre a metodologia utilizada e a disseminação de produtos de previsão através da internet, entre outros. Com a designação, o CPTEC participará de atividades internacionais da OMM, colaborando com centros internacionais especializados em previsões de longo prazo.

Mapa do CPTEC: colaboração internacional em previsões de longo prazo

A FAPESP vai realizar, entre os dias 28 de junho e 2 de julho, por via eletrônica, uma eleição para a elaboração de uma lista tríplice a fim de preencher vaga de representante dos institutos de ensino superior e de pesquisa, oficiais ou particulares, no Conselho Superior da Fundação. A vaga estará aberta a partir de 22 de julho, quando se encerra o mandato do conselheiro José Arana Varela, professor titular do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e atual vice-presidente do Conselho Superior. Poderão participar do processo eleitoral instituições que se credenciaram junto à FAPESP entre os dias 18 de março e 6 de abril de 2010. Encerrada a votação eletrônica, será imediatamente feita a apuração pública do seu resultado pela comissão eleitoral, na sede da Fundação. A lista com os três nomes mais votados será encaminhada para escolha do governador do estado.

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política científica e tecnológica

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[ sustentabilidade ]

energia do futuro Convenção mostra que América Latina terá papel fundamental na expansão da oferta de combustíveis renováveis Fabrício Marques

fotos eduardo cesar

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Convenção Latino-Americana do Projeto Global Sustainable Bioenergy (GSB), realizada na FAPESP entre os dias 23 e 25 de março, aprovou uma resolução que afirma enfaticamente o potencial de expansão da produção de bioenergia na América Latina, sem que isso comprometa a produção de alimentos, o meio ambiente e a biodiversidade. De acordo com a resolução, o continente já desempenha um papel importante na oferta de biocombustíveis, abrindo a perspectiva de atender tanto a demanda regional como a mundial. Possui terra, clima favorável, várias opções de matérias-primas e tecnologias que podem expandir-se por todo seu território de maneira sustentável. A resolução cita a produção de etanol no Brasil e de biodiesel na Argentina como exemplos de sucesso no continente na substituição de energia fóssil por renovável. Articulação internacional de cientistas do setor energético, o GSB já havia promovido em fevereiro uma convenção na Europa, na Universidade de Delft, Holanda, e outra na África, na Universidade de Stellenbosch, na África do Sul, entre 17 e 20 de março. Novos encontros acontecerão ainda neste ano, na Ásia, na cidade de Skudai, na Malásia, e na América do Norte, em Mineápolis, Estados Unidos. Após as cinco convenções, o Projeto GSB cumprirá outras duas etapas. Primeiro, buscará responder se é possível suprir uma fração substancial da demanda energética a partir da produção de biomassa, sem comprometer o fornecimento de alimentos, a preservação de hábitats naturais e a qualidade do meio ambiente. Em seguida, tentará propor estratégias viáveis e sustentáveis para a transição da atual matriz energética rumo a uma nova matriz, mais equilibrada e renovável. As resoluções aprovadas nas convenções europeia e africana sugerem que as perspectivas do projeto são favoráveis. Embora

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demonstrem preocupações com a mudança no uso da terra, os europeus afirmaram, no documento que aprovaram, dispor de “capacidade de fornecer partes substanciais de suas exigências energéticas do futuro provenientes de bioenergia sustentável”. Os africanos enxergam na bioenergia uma janela de oportunidade para o desenvolvimento econômico de seus países, mas declararam que sua visão sobre bioenergia precisa levar em conta uma miríade de desafios, que incluem o enfrentamento da pobreza, a segurança alimentar, a segurança energética e a saúde. A resolução latino-americana é a mais assertiva das três construídas até agora. O coordenador do Projeto GSB, Lee Lynd, da Thayer School of Engineering, Dartmouth College, nos Estados Unidos, fez elogios à disposição dos pesquisadores brasileiros de buscarem formas sustentáveis para produzir biocombustíveis, comportamento que, segundo ele, não se vê com facilidade. “Outros países deveriam enfrentar o problema como o Brasil está fazendo. Os Estados Unidos, por exemplo, são mais defensivos em relação aos mecanismos de sustentabilidade, embora liderem a produção de etanol”, afirmou. Segundo Lynd, as indicações reunidas até agora sugerem uma resposta positiva à questão estabelecida pelo Projeto GSB. “O objetivo do projeto é tentar demonstrar o que é possível, com foco no que é desejável. Só assim será possível mobilizar os responsáveis pelas políticas públicas”, disse. As dificuldades, segundo Lynd, decorrem de avaliações negativas arraigadas em certos meios e países sobre o potencial da matriz bioenergética, como, por exemplo, a possibilidade de faltar alimentos. “Há expectativas diferentes em relação à capacidade de inovação e de mudança de hábitos. Por isso há conclusões divergentes baseadas num mesmo conjunto de informações”, afirmou. A questão da segurança alimentar, segundo ele, não pode ser descartada, pois mesmo sem a variável dos biocombustíveis não se descartam problemas no futuro com a oferta de alimentos. Lynd lembrou, porém, que é necessário buscar uma convergência em relação aos biocombustíveis, pois os padrões atuais de consumo de energia são claramente insustentáveis.

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Percepções peculiares

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ada região do planeta tem hoje uma percepção peculiar sobre o futuro da bioenergia. Enquanto a América Latina acredita na possibilidade de ampliar as áreas plantadas de cana-de-açúcar e substituir por etanol parte da gasolina consumida no planeta, os Estados Unidos apostam com mais ênfase no desenvolvimento de tecnologias para extração do etanol de celulose, tecnologia ainda não viabilizada economicamente que poderia garantir quantidades de combustível substanciais sem ocupar muito espaço de áreas agriculturáveis. Para a Europa, onde há relativamente pouca terra disponível, o tema da segurança alimentar é especialmente sensível – e as autoridades de vários países veem com mais simpatia investimentos em energia solar e eólica. Já a África, a despeito de seus problemas reais de segurança alimentar, a Ásia e a Oceania tendem a ver os biocombustíveis como oportunidade de desenvolvimento. Uma mesa-redonda que fez parte da programação da Convenção Latino-Americana do GSB evidenciou tais diferenças. Patricia Osseweijer, professora da Universidade Tecnológica de Delft, na Holanda, abordou os temores da opinião pública europeia de que a produção de etanol e biodiesel comprometa a oferta de alimentos no mundo e enfatizou a necessidade de avançar na pesquisa de biocombus-

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tíveis sustentáveis e na comunicação pública das evidências científicas recolhidas a fim de superar resistências. Segundo ela, embora a sustentabilidade seja um conceito largamente aceito, as agendas de governos, indústrias, universidades, organizações não governamentais e da opinião pública em relação ao tema são divergentes. “É urgente esclarecer o conceito de sustentabilidade, que para parte significativa da população europeia tem mais relação com reciclagem de lixo do que com o uso de combustíveis renováveis.” Esse desencontro leva à inação. “Quando os políticos têm medo, eles não tomam decisões”, disse. Para os europeus, segundo Patricia, uma saída mais plausível para mudar o portfólio atual de matrizes energéticas seria o etanol de segunda geração, extraído de celulose. A resolução da Convenção Europeia do Projeto GSB enfatiza a necessidade de integrar a política de bioenergia com a de agricultura, de modo a garantir uma produção sustentável e sinérgica de alimentos, celulose, produtos químicos e bioenergia. Emile van Zyl, professor da Universidade de Stellenbosch, na África do Sul, enviou um vídeo com sua palestra, na qual ressaltou que a bioenergia pode trazer muitos benefícios ao continente africano, tais como criar novas fontes de divisas, impulsionar a agricultura, gerar empregos, diminuir as emissões de gases estufa e reduzir a insegurança política da região. Mas, para alcançar tais objetivos, há uma série de desafios a superar. “Experiências que funcionaram em outros países não necessariamente funcionarão na África”, disse. Segundo ele, é preciso levar em conta a experiência e a cultura local e ter em mente que o continente é carente de infraestrutura e serviços de apoio, que precisam ser criados para permitir a

exploração da bioenergia, além, é claro, de investimentos. Ramlan Abd Aziz, professor da Universidade Tecnológica da Malásia, fez um balanço do desenvolvimento da bioenergia na Ásia e Oceania. Segundo ele, boa parte dos países já dispõe de políticas para elevar a produção de biocombustíveis. A Tailândia, por exemplo, tem nove plantas de etanol e nove de biodiesel e incentiva o consumo de gasolina misturada com etanol. O mesmo ocorre na China, onde, contudo, há conflitos em relação ao impacto do avanço da produção de etanol na segurança alimentar para seu 1,35 bilhão de habitantes. Em Mianmar, o destaque é o biocombustível extraído de jatropha (conhecida no Brasil como pinhão-manso) – o país tem 90% das plantações do planeta. Segundo Aziz, o Sudeste Asiático tem potencial para produzir 14 mil barris por dia de combustíveis renováveis, acima dos 11 mil barris de petróleo explorados pela Arábia Saudita. “Temos clima tropical, disponibilidade de água e de terra, e trabalho barato. Por isso o Sudeste Asiático pode se tornar uma potência dos biocombustíveis”, afirmou. Para ir adiante, ressaltou, seria preciso reduzir as barreiras impostas à importação de biocombustíveis na Europa e nos Estados Unidos e avançar em tecnologias que melhorem a produtividade. Nathanael Greene, diretor de políticas energéticas do Conselho de Defesa dos Recursos Naturais, dos Estados Unidos, mostrou a trajetória dos biocombustíveis nos Estados Unidos – o avanço da produção de etanol de milho foi uma resposta à crise do petróleo nos anos 1970, assim como aconteceu com o álcool de cana brasileiro. Greene abordou as dificuldades políticas de mudar hábitos e alterar a matriz energética norte-americana e enfati-

Com expectativas diferentes sobre mudanças de hábitos e capacidade de inovação, os países chegam a conclusões divergentes sobre o potencial da bioenergia

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zou que os Estados Unidos precisam de soluções de grande impacto, capazes de reduzir substancialmente suas emissões de gases estufa sem privá-los de energia. Por isso, segundo disse, o etanol de segunda geração, extraído de celulose, soa como uma alternativa mais atraente do que o de primeira geração, que exigiria muita terra para plantar, apesar das incertezas que ainda cercam essa nova tecnologia. O diretor científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz, forneceu ao debate a perspectiva brasileira. Segundo ele, há indicações de que a hipótese colocada pelo Projeto GSB, que é saber se é possível utilizar de forma sustentável a bioenergia para suprir 25% da demanda internacional de energia nos próximos 50 anos, pode ser realizada. Ele mostrou que com apenas 10% das áreas agrícolas atualmente disponíveis na América Latina e na África, descontando-se florestas e áreas com outros cultivos, seria possível suprir com etanol 15% da necessidade mundial. “A meta de 25% não é absurda”, disse, ressaltando, contudo, haver outras questões pendentes, como a disposição dos países desenvolvidos de comprarem etanol dos dois continentes. Segundo Brito, a Europa e os Estados Unidos podem, para preservar sua segurança energética, optar por não depender dos biocombustíveis, como dependem hoje do petróleo do Oriente Médio. Para mostrar que a substituição do petróleo pelo etanol é plausível, o diretor científico da FAPESP expôs a experiência do estado de São Paulo, que, entre 1980 e 2008, reduziu de 59,8% para 33% a participação do petróleo entre suas fontes de energia, ampliando de 17,4% para 38%, no mesmo perío­ do, a participação dos combustíveis derivados da cana. E tal transformação, ressaltou, deu-se de forma sustentável. A cana avançou principalmente sobre áreas de pastagens e não teve impacto sobre a pecuária, que compensou a perda de espaço com o aumento de produtividade. E a área de Mata Atlântica manteve-se em equilíbrio no período.

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O potencial latino-americano

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urante a convenção, o potencial da América Latina foi abordado em palestras de vários pesquisadores. Luís Augusto Barbosa Cortez, professor da Faculdade de Engenharia Agrícola (Feagri) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e organizador da convenção, expôs a gênese e as características do modelo brasileiro de produção de etanol a partir de cana-de-açúcar e sustentou que é viável para o Brasil produzir 5% da demanda mundial de gasolina até o ano de 2025, desde que a expansão se dê sobre áreas de pastagens e se estimule uma reorganização das atividades agrícolas de forma a não comprometer a produção de alimentos. Citou o exemplo da Usina Vale do Rosário, em Orlândia, interior paulista, que há duas décadas desenvolve um projeto de integração de pasto e cana. Montou um confinamento de gado para aproveitar os subprodutos da indústria (bagaço, levedura e melaço) para engordar bois. Hoje engorda 20 mil cabeças e vende ração balanceada produzida com o subproduto do açúcar e álcool para engorda de mais 20 mil cabeças nas fazendas dos seus fornecedores de cana. “É um negócio rentável. E hoje cerca de 70% dos fornecedores de cana para a usina têm atividades pecuárias”, disse. Ele ressaltou, contudo,

que o desenvolvimento de novas tecnologias será essencial para melhorar os indicadores de sustentabilidade do etanol brasileiro. Rodolfo Quintero, professor da Universidade Autônoma Metropolitana (México), disse que o etanol de cana brasileiro tem qualidades superiores ao etanol de milho norte-americano, quando se avaliam o potencial de redução de gases estufa e a questão da escassez de alimentos. “Só o etanol de milho ameaça a agricultura e a segurança alimentar”, afirmou. Os Estados Unidos são os maiores exportadores do mundo de milho, vendendo o produto para mais de 90 países. “Esses países importadores podem sofrer as consequências se a produção de etanol de milho tentar suprir a demanda mundial de etanol”, disse. O México, segundo Quintero, importa dos Estados Unidos 10 milhões de toneladas anuais de milho – o equivalente a um terço do consumo mexicano do cereal. “Em 2009, os Estados Unidos produziram 10,6 bilhões de galões de etanol, o que exigiu 18 milhões de acres de plantio de milho, ou cerca de 21% da área total dedicada à cultura”, afirmou. André Meloni Nassar, diretor-geral do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Icone),

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abordou um novo modelo econométrico que leva em conta a realidade brasileira quanto à modificação do uso da terra pelo aumento da demanda de produção de etanol. O modelo demonstrou que o etanol brasileiro reduz as emissões de gases de efeito estufa em 61% – e não em 26%, como estabeleciam os cálculos anteriores –, convencendo a Agência Norte-Americana de Proteção Ambiental (EPA, na sigla em inglês) a reconsiderar sua avaliação sobre o etanol de cana-de-açúcar, classificando o produto brasileiro como “biocombustível avançado”. Márcia Azanha Ferraz Dias de Moraes, professora da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP), apresentou um estudo segundo o qual o aumento da mecanização no cultivo da cana levará a perdas de postos de trabalho: cada máquina adquirida faz desaparecer oito vagas, em média. “A mecanização pode significar o corte de 50 mil a 100 mil postos de trabalho”, disse Márcia. Mesmo assim, o aumento de 15% da produção de etanol nos próximos anos deve suplantar essas perdas, gerando 170 mil postos de trabalho no país. Os debates para elaborar a resolução final da Convenção Latino-Americana trouxeram à tona questões sensíveis. Terminou em equilíbrio a discussão sobre qual seria a razão prioritária para a América Latina investir em biocombustíveis, se o desenvolvimento econômico e social que essa atividade produtiva deve gerar ou se a capacidade de reduzir os gases de efeito estufa. Ambos os fatores foram considerados prioritários. Não foi por

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acaso que a resolução final deixou de citar as tecnologias de segunda geração, que têm grande potencial mas ainda não exibiram viabilidade econômica. “Não importa se é primeira ou segunda geração, importa se a tecnologia é boa”, disse Carlos Henrique de Brito Cruz, da FAPESP. O sucesso do Brasil com o etanol extraído de cana mostra que as tecnologias de primeira geração têm potencial para crescer, concordaram os participantes. Numa mostra da confiança no potencial dos biocombustíveis, incluiu-se no texto das recomendações uma referência à capacidade da bioenergia de suprir “mais de 30%” da demanda internacional de energia nos próximos 50 anos. O Projeto GSB fala num número menor, de 25%, e mesmo esse índice está sendo reavaliado, conforme afirmou o coordenador do projeto, Lee Lynd. Isso porque sugestões apresentadas nas convenções anteriores consideraram que um índice mais modesto não desmereceria o projeto. De acordo com Brito Cruz, a convenção realizada em São Paulo obteve sucesso ao levar à comunidade científica internacional envolvida com o Projeto GSB a visão dos brasileiros e latino-americanos sobre as grandes oportunidades que os biocombustíveis podem representar. “O Brasil tem uma posição muito especial, tanto no grupo envolvido com o Projeto GSB como no mundo, no debate internacional sobre biocombustíveis, já que é o único país que realizou a substituição em larga escala da gasolina por biocombustíveis. Por outro lado, o GSB cria uma caixa de ressonância para as ideias brasileiras nessa área”, afirmou. n

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[ INFRAESTRUTURA ]

Acervo multiplicado Programa FAP-Livros, da FAPESP, destina R$ 33,9 milhões para aquisição de 165 mil títulos

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FAPESP anunciou os resultados da sexta chamada do programa FAP-Livros, que apoia a compra de livros, e-books e publicações em várias mídias e busca atualizar o acervo de bibliotecas vinculadas a universidades e instituições de pesquisa, públicas ou privadas, no estado de São Paulo. O valor total das propostas recomendadas foi de R$ 33.923.638,00. Como esse total era superior aos R$ 25 milhões previstos na chamada, a Diretoria Científica da FAPESP recomendou e o Conselho Técnico-Administrativo aprovou uma suplementação de R$ 8,9 milhões. “Dessa forma, será possível apoiar fortemente todas as 175 propostas qualificadas e viabilizar a aquisição de aproximadamente 165 mil títulos para as bibliotecas de 175 instituições de pesquisa no estado de São Paulo”, destacou Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP. Na chamada anterior, de 2006, foram distribuídos cerca de 130 mil títulos. Participaram da chamada bibliotecas de instituições que tiveram pesquisadores vinculados a solicitações de qualquer natureza apoiadas pela FAPESP no período de 2003 a 2009. O FAP-Livros é parte da rubrica “Apoio à Infraestrutura de Pesquisa” do orçamento da Fundação e tem como objetivo viabilizar a aquisição de livros necessários para projetos de pesquisa em bibliotecas de acesso público de instituições que tiveram pesquisadores liderando auxílios e bolsas FAPESP nos últimos anos. As propostas foram analisadas considerando-se os benefícios ao desenvolvimento científico e tecnológico do estado e a capacitação das instituições proponentes. A Universidade de São Paulo (USP) lidera a lista de entidades com as maiores concessões, com valor recomendado de R$ 11.008.064,00. Em seguida vem a Universidade Esta-

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dual de Campinas (Unicamp), com R$ 9.245.884,00, e a Universidade Estadual Paulista (Unesp), com R$ 3.883.893,00 (ver quadro ao lado). O maior volume de solicitações e de concessões foi para propostas das áreas de ciências humanas e sociais, que receberam R$ 17 milhões. As publicações adquiridas atualizarão o acervo de bibliotecas vinculadas a instituições de ensino superior e pesquisa. Após a aquisição, as obras deverão, obrigatoriamente, compor o acervo da biblioteca da instituição e ser disponibilizadas para acesso público. Segundo Marta Valentim, coordenadora da Coordenadoria Geral de Bibliotecas (CGB), que congrega 32 bibliotecas da Unesp, a regularidade das chamadas do programa FAP-Livros faz com que os pesquisadores se mobilizem para participar delas. “A comunidade se prepara para indicar o material bibliográfico necessário”, afirma. “As universidades têm orçamentos para o desenvolvimento de coleções das suas bibliotecas, mas os valores são pequenos quando comparados às bibliotecas estrangeiras, por isso o FAP-Livros é importante ao ajudar a suprir uma demanda que não é totalmente atendida”, diz. De acordo com Sandra Nitrini, diretora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, a FAPESP atendeu quase integralmente à solicitação da unidade no âmbito do FAP-Livros. Atualmente, a Biblioteca Florestan Fernandes da FFLCH tem mais de 860 mil itens. Com a recente chamada do programa FAP-Livros, serão acrescentados 29.382 itens. “As chamadas do FAP-Livros contribuem para um contínuo processo de complementação deste acervo, o que garante a manutenção de seu padrão e a qualidade e a disponibilização de uma coleção cada vez mais rica e atualizada,

Concessões por entidade ENTIDADE USP Unicamp Unesp UFSCar Unifesp Centro Técnico Aeroespacial Ministério da Ciência e Tecnologia Embrapa Secretaria de Agricultura Secretaria da Saúde Secretaria do Desenvolvimento PUCCamp PUC-SP UFABC Outras entidades

fator imprescindível para o avanço e a produção do conhecimento nas humanidades”, disse Sandra. Ela conta que o acervo causou excelentes impressões no processo de avaliação externa por que passou a faculdade. “Os professores estrangeiros, um da Universidade de Lisboa e outro da École Normale Supérieure de Paris, foram os que mais se impressionaram. Os brasileiros, que já o conheciam, não deixaram de registrar também o reconhecimento do valor de nosso acervo, que dispõe também de livros raros”, afirmou. Nádia Farage, diretora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), da Unicamp, diz que a atualização do acervo da biblioteca da instituição tem um impacto que vai além da pesquisa e do ensino na universidade. “Somos uma biblioteca pública e pesquisadores de vários lugares do

VOLUMES SOLICITADOS 54.697 75.002 20.314 20.629 12.571 1.494 2.109 1.339 1.460 1.412 1.008 3.101 1.563 1.132 11.949

VALOR RECOMENDADO R$ 11.008.064 R$ 9.245.884 R$ 3.883.893 R$ 3.234.642 R$ 1.730.939 R$ 639.600 R$ 583.228 R$ 404.344 R$ 380.146 R$ 374.741 R$ 313.309 R$ 274.226 R$ 248.439 R$ 268.948 R$ 1.333.235

país vêm consultar obras de nosso acervo”, afirma. A indicação de obras para o programa, diz Nádia, responde às necessidades dos nove programas de pós-graduação do instituto. “Graças ao FAP-Livros, nosso acervo está bastante atualizado e dispõe de lançamentos recentes no mercado editorial internacional. Não é uma biblioteca de grandes quantidades, pois queremos diversidade, não volume“, afirmou. Segundo Michael Hall, coordenador da biblioteca e professor do IFCH, o recente edital do FAP-Livros vai fortalecer a pesquisa do instituto em várias áreas, com destaque para história da arte e filosofia moderna e temas relacionados à África e à América Latina. “A indicação de obras para o edital é sempre um grande evento no nosso instituto”, diz Hall. ■

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CIENTISTAS SOB ATAQUE

[ MUDANÇAS CLIMÁTICAS ]

Problemas pontuais no trabalho do IPCC alimentam campanha contra o painel

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Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), órgão assessor das Nações Unidas para assuntos do clima, vive a fase mais turbulenta de seus 22 anos de existência. Na esteira da denúncia de uma suposta manipulação de dados em favor da ideia de que o aquecimento terá efeitos dramáticos e da descoberta de erros pontuais em seus relatórios lançados em 2007, o colegiado composto por cerca de 600 cientistas de mais de 40 países vem sendo alvo de uma forte campanha movida por diferentes grupos de interesse, tais como políticos conservadores e representantes de setores vinculados à exploração de energia fóssil. Eles andavam calados desde que os relatórios de 2007 informaram que o aquecimento global era inequívoco e, com probabilidade acima de 90%, as causas do progressivo aumento da temperatura média do planeta estavam ligadas à emissão de gases estufa na atmosfera por atividades humanas, além de terem identificado seus efeitos deletérios (modelos apontam para elevação do nível do mar, aumento de temperatura e extremos de chuva, o que pode gerar o surgimento de legiões de refugiados do clima e a extinção de espécies). Os chamados “céticos do clima” recolheram-se um pouco mais quando o painel foi agraciado com o Nobel da Paz de 2007 por “construir e divulgar um maior conhecimento sobre a mudança climática causada pelo homem e por fixar a base das medidas que são necessárias para resistir a essa crise”. Com os episódios recentes, porém, os críticos reenergizaram seu discurso e buscam desqualificar todo o trabalho do painel. O cerco começou em novembro, quando emails de cientistas ligados ao painel vazaram às vésperas da Conferência do Clima de Copenhague. Piratas da internet divulgaram mensagens obtidas nos servidores da Universidade East Anglia, no Reino Unido, nas quais há insinuações de manipulação de dados. A mensagem mais constrangedora, datada de 1999, teve como autor o pesquisador Phil Jones. Ele falava de um estratagema para “mascarar as quedas das temperaturas”. O escândalo afastou temporariamente Jones do Centro de Pesquisas Climáticas (CRU, na sigla em inglês) da universidade. No final de março, Jones foi inocentado em investigação conduzida pelo Comitê de Ciência e Tecnologia da Câmara dos Comuns do Reino Unido. O CRU também foi acusado de não disponibilizar para a comunidade científica dados de temperatura de seus arquivos. A crise avançou em janeiro, quando o painel admitiu que errou ao anunciar o derretimento completo da cordilheira do Himalaia até 2035. A informação teve como fonte não um estudo científico, mas um documento de uma entidade ambientalista, o WWF (World Wildlife Fund). O presidente do IPCC, Rajendra Pachauri, teve de desmentir rumores de que renunciaria. “O essencial é que as robustas conclusões dos relatórios continuam válidas e não foram arranhadas nem pelos equívocos

“As conclusões dos relatórios continuam válidas e não foram arranhadas nem pelos equívocos nem pelos ataques dos grupos ligados a interesses econômicos”, diz Carlos Nobre

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nem pelos ataques dos grupos ligados a interesses econômicos”, diz um dos cientistas brasileiros no IPCC, o climatologista Carlos Nobre, coordenador do Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais e do Centro de Ciência do Sistema Terrestre (CCST) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

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painel reagiu e se defendeu, seguindo parâmetros que se esperariam de uma entidade científica. Seus dirigentes abriram uma investigação sobre o caso dos e-mails, que, embora difíceis de justificar, não resultaram em efetiva manipulação de dados e envolvem poucos pesquisadores, segundo se apurou até agora. Para José Antônio Marengo, meteorologista do Centro de Ciência do Sistema Terrestre do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (CCST/Inpe), as queixas dos que dizem não ter acesso aos dados de temperatura arquivados no CRU têm uma resposta simples: o centro não é autorizado pelos fornecedores de dados climáticos para liberar esses dados a terceiros. O CRU disponibiliza os dados de chuva e temperatura já processados, e não os dados originais de estação. “Is-

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Nos próximos relatórios, a ordem é evitar referências a documentos de governos e ONGs e se ater a artigos científicos so não é discriminação ou controle de informação, é simplesmente o CRU aceitando uma política dos serviços meteorológicos de muitos países do mundo”, explica Marengo. Em relação aos erros, os membros do painel argumentam que eles são pontuais e não comprometem as conclusões das 2.800 páginas de relatórios. Mas se dispuseram a promover mudanças metodológicas capazes de ampliar a qualidade e a transparência. Um comitê formado por representantes de academias de ciência de vários países fará uma revisão independente dos trabalhos. “É importante ressaltar que a crise não é científica. Os cientistas não estão divididos em relação às perspectivas das mudanças climáticas”, afirma Roberto Schaeffer, membro do painel, professor do Programa de Planejamen-

to Energético do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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em por isso os cientistas conseguiram sair da defensiva, sobretudo nos Estados Unidos. Os pesquisadores têm dificuldade de reagir a ataques desferidos por jornais, rádios e blogueiros de talhe conservador e nacionalista, que os tratam, na melhor das hipóteses, como inimigos da pátria numa época de crise econômica. Como definiu um editorial da revista Nature, a dificuldade se deve ao fato de a artilharia envolver ciência apenas na superfície. Busca, de fato, erodir a confiança do público leigo na ciência do clima. Para a revista, os cientistas precisam se preparar para enfrentar a guerra da mídia e os golpes incivilizados dos críticos, tornando-se mais transparentes e ativos na relação com os meios de comunicação. “Nós, pesquisadores do campo das ciências naturais, não temos muita experiência em lidar com assuntos muito controvertidos”, diz Carlos Nobre. “No caso do trabalho do IPCC, é necessário ter em mente que qualquer assunto tornou-se uma batata quente política. É preciso ter profissionais de imprensa que saibam responder aos ataques”, afirmou. Relatório divulgado em março pelo Greenpeace acusou as indústrias Koch, do ramo petrolífero, de dar US$ 50 milhões em uma década para estudiosos e entidades que fazem oposição à ciência do clima, muitos dos quais ajudaram a ecoar o escândalo da suposta manipulação de dados. O senador republicano James Inhofe, conhecido porta-voz dos céticos do clima no Congresso dos Estados Unidos, divulgou no dia 23 de fevereiro uma lista de 17 cientistas que quer processar como criminosos, acusando-os de violar leis e tentar confundir o governo. “Estou muito preocupado”, disse ao jornal britânico The Guardian Raymond Bradley, diretor do centro de pesquisa em ciência do clima da Universidade de Massachusetts Amherst, um dos 17 da lista. “Trata-se de uma pessoa poderosa, que está usando esse poder para perseguir pessoas.” Outro cientista citado, Michael Oppenheimer, da Universidade Princeton, diz que a tática de Inhofe é a mesma utilizada

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pelo senador Joseph McCarthy (19081957) em sua caça a comunistas reais e imaginários nos anos 1950, em plena Guerra Fria. “Inhofe criou a figura do culpado por associação. Quer processar todos os cientistas cujos nomes aparecem nos e-mails vazados, sem investigar se a acusação faz sentido”, afirma. O IPCC não produz ciência original. Faz a compilação dos estudos científicos divulgados num período recente e, após uma avaliação da literatura disponível, produz relatórios sobre o estado da arte da ciência em assuntos-chave, como a base científica das mudanças climáticas, vulnerabilidade, impactos, adaptação e mitigação. Os cientistas participantes, todos eles voluntários, reúnem-se em datas marcadas em grandes plenárias para discutir versões de relatórios, que circulam entre a comunidade científica e são alvo de críticas e comentários. Cabe aos membros do painel acatar ou refutar, com base em evidências e pesquisas, cada crítica feita. Os episódios que comprometeram a credibilidade do painel com o público leigo mostram que houve falhas nesse processo de revisão – ninguém notou, por exemplo, que o dado sobre o degelo do Himalaia não era calcado em nenhuma pesquisa científica. O governo holandês aumentou o embaraço ao reclamar que outra informação apresentada pelo painel – segundo a qual 55% do território da Holanda está abaixo do nível do mar – é equivocada. “É no mínimo estranha essa alegação, pois o governo da Holanda tinha representantes no IPCC e poderia ter corrigido isso antes da divulgação dos relatórios”, diz Ulisses Confalonieri, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz, que participou do grupo do IPCC que analisou os impactos, adaptações e vulnerabilidades ao aquecimento global. Outra crítica foi a utilização também de dados do WWF para lastrear os possíveis efeitos de secas severas na Amazônia, mas a informação, apesar da origem em relatório que não passou por revisão científica por pares, estava correta. “Seria inacreditável se, em quase 3 mil páginas de relatório, não houvesse nenhum erro. E nenhum desses equívocos foi citado nos sumários executivos dos relatórios. O erro sobre o Himalaia não altera a conclusão de que as gelei-

ras do planeta estão diminuindo de tamanho”, diz Carlos Nobre. A principal mudança prática nos métodos do painel diz respeito ao uso de informações científicas. A ordem é evitar sempre que factível referências à chamada grey literature (literatura cinza), aquela que, como os relatórios de ONGs e de governos, não é submetida a uma revisão científica rigorosa por pares típica das revistas internacionais indexadas. “Se for necessário, por exemplo, citar um relatório de um governo como fonte de informação, será preciso deixar claro que não se trata de um dado submetido ao crivo de pesquisadores e mandar uma cópia desse relatório ao IPCC, para que possa ser checado por qualquer pessoa”, diz Roberto Schaeffer. Outras mudanças buscam apenas reforçar as garantias de que nenhuma crítica feita às versões dos relatórios foi ignorada, com a criação de uma revisão independente.

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monitoramento dará um novo respaldo aos próximos relatórios, mas outras limitações do painel prosseguirão. Segundo Schaeffer, sempre será possível alguém criticar a omissão de algum dado ou duvidar da representatividade dos cientistas. “Como a indicação dos cientistas segue critérios de representatividade regional, não é possível afirmar, por exemplo, que todos os membros do painel estão entre os melhores cientistas de suas áreas no mundo, mas certamente boa parte dos melhores está lá e outros participam indiretamente, fazendo críticas a versões preliminares dos relatórios”, afirma. Para José Marengo, também é preciso ter em conta que o trabalho

dos membros do painel é voluntário. “A proposta de ter alguns pesquisadores fixos e remunerados para cuidar dos relatórios é bem-vinda e poderá garantir uma dedicação maior. Hoje o trabalho no IPCC rivaliza com os vários outros afazeres dos pesquisadores”, afirma Marengo, participante do grupo do IPCC que avaliou as bases físicas do sistema climático nos relatórios de 2007.

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prejuízo produzido pelo escândalo e pelo cerco político ainda é difícil de mensurar. Para Ulisses Confalonieri, o IPCC sairá ileso da crise. “O painel continuará trabalhando normalmente. O essencial é haver mecanismos de controle”, afirma. Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da USP, que também representa o Brasil no IPCC, concorda que a crise não vai interferir no trabalho dos cientistas do clima. “Nosso trabalho prosseguirá, mas é possível que autoridades sejam influenciadas por esses episódios e adiem medidas necessárias”, afirma. Citando um artigo recente sobre a crise do IPCC assinado pelo economista Jeffrey Sachs, professor da Universidade Harvard, Artaxo antevê prejuízos. Sachs mostrou, por exemplo, que a reação do lobby da indústria tabagista na década de 1960 adiou por 10 anos a tomada de medidas contra o cigarro. “Muita gente morreu por causa disso”, diz Artaxo. “O risco é que isso aconteça com as mudanças climáticas, com a diferença de que a inação não afetará apenas um grupo de pessoas, mas parte significativa da humanidade”, afirma o professor da USP. ■

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S [ EDUCAÇÃO ]

Estudantes exibem propostas inovadoras em feira na USP Dinorah Ereno

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oluções ambientalmente corretas para resíduos descartados após o uso, um curativo inteligente para regeneração de tecidos cutâneos, além de outras propostas simples e práticas para portadores de deficiências são alguns exemplos de projetos apresentados na 8a edição da Feira Brasileira de Ciências e Engenharia (Febrace), realizada de 9 a 11 de março no campus da Universidade de São Paulo (USP), com promoção da Escola Politécnica (Poli) por meio do Laboratório de Sistemas Integráveis (LSI). Dos 1.200 trabalhos inscritos, foram escolhidos 280 projetos das áreas de engenharia, ciências exatas e da terra, humanas, sociais, biológicas, da saúde e agrárias para serem apresentados na feira por estudantes do ensino fundamental, médio e técnico de todo o país. Os projetos reúnem cerca de 600 estudantes e 250 professores, porque alguns são individuais e outros em grupo. “A participação na Febrace representa uma experiência transformadora para alunos e professores”, diz Roseli de Deus Lopes, professora do Departamento de Sistemas Eletrônicos da Poli e coordenadora da Febrace. “O aluno fica mais motivado quando trabalha, simultaneamente ao aprendizado, com a pedagogia de projetos”, diz Roseli. O professor também está na mira da Febrace, já que ele é fundamental para estimular o aluno a aprimorar o conhecimento e a se tornar mais autônomo em suas decisões. Todos os projetos apresentados foram avaliados por uma comissão formada por professores de diversas instituições e áreas das ciências e engenharia. Durante a feira, foram premiados os melhores projetos selecionados em sete categorias. No dia 13 de março, em uma cerimônia realizada no salão nobre da Faculdade de Direito da USP,

no largo São Francisco, região central da capital, foram escolhidos os nove projetos que representarão o Brasil na Feira Internacional de Ciências e Engenharia da Intel (Intel Isef), de 9 a 14 de maio em San Jose, na Califórnia, Estados Unidos. A feira, realizada anualmente, reúne mais de 1,5 mil jovens cientistas de 56 países. “Em cada edição são escolhidos seis projetos individuais e três em grupo para disputar a final internacional”, diz Roseli. Um dos nove projetos escolhidos é um curativo inteligente com nanopartículas de dióxido de zircônio e de prata, desenvolvido por Gabriela Schaab da Silva e Kawoana Trautman Vianna, do Curso Técnico de Química da Fundação Liberato, da cidade gaúcha de Novo Hamburgo, com orientação da professora Sílvia Guterres, da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “A ação antimicrobiana no nosso curativo inibe em 100% a proliferação de bactérias e em 40% a proliferação de fungos”, diz Gabriela. O dióxido de zircônio, por ter um alto índice de refração, reflete os raios infravermelhos emitidos pela pele humana, aquecendo-a e provocando aumento no fluxo sanguíneo local. “Esse aumento no fluxo sanguíneo fornece ao tecido mais nutrientes e oxigênio, o que favorece o processo de cicatrização de ferimentos e aumenta as chances de sucesso em reimplantes.” Os outros oito projetos que irão representar o Brasil são “Perfis alimentares: trabalhando com educação alimentar”, de Heitor Geraldo da Cruz Santos, da Associação Educacional e Cultural Arco-Íris, de Recife, Pernambuco; “Aná-

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de São Paulo; “Análise de absorção/ adsorção de metais pesados em ambientes aquáticos com a utilização de Pistia stratiotes”, de Natália Giuzio, do Colégio Interativa, de Londrina, no Paraná; “Construção de um canal com garrafas PET acoplado ao concentrador solar: sistema de fluxo contínuo de água solarizada com alternativa para desinfecção microbiológica em estação de tratamento de água”, de Karoline Lopes Martins, do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, de Belo Horizonte. Óculos-mouse - Nos três dias do evento

cerca de 12 mil pessoas circularam pelos corredores de uma gigantesca tenda de 2.200 metros quadrados. Nos estandes, ouvintes atentos se aglomeravam em volta de estudantes que descreviam as suas

Público atento às novidades apresentadas na Febrace

FOTOS EDUARDO CESAR

lise de extratos vegetais com potencial inseto-larvicida: caracterização química de biocontroladores utilizados em vetores de transmissão”, de João Batista de Castro David Junior, do Liceu de Maracanaú, Ceará; “A utilização do sistema fotocatalítico ZnO/U.V. na análise e controle de patógenos microbianos presentes em ambientes internos contaminados”, de Gabriel Nascimento da Silva Santos e Paulo Ricardo Maciel Nascimento, da Escola Santa Teresinha, de Imperatriz, Maranhão; “Performances de agentes curtentes ecológicos no curtimento de peles de peixes tilápias”, de Priscila Oliveira Andre, da Escola Técnica Professor Carmelino Corrêa Júnior, de Franca, no interior paulista; “FAC - Fotobiorreator para absorção de carbono”, de Victor Marelli Thut, do Colégio Dante Alighieri, de São Paulo; “Sulfonação de poliestireno: aplicação na retenção de íons de metais pesados”, de Paolo Damas Pulcini, Amanda de La Rocque e Carlos Henrique Leite da Silva, da Escola Técnica Getúlio Vargas,

invenções ou propostas desenvolvidas com apoio dos próprios professores ou de pesquisadores de universidades e instituições de pesquisa. Três estudantes gaúchos atraíam as atenções ao mostrar uns óculos-mouse de baixo custo para pessoas com deficiência parcial ou total nos braços poderem acessar o computador. Ligado a um mouse convencional, o sistema permite que o usuário possa clicar um ícone na tela apenas piscando os olhos. “O cursor se mexe pelos movimentos da cabeça”, diz Filipe Carvalho, um dos criadores dos óculos-mouse em parceria com Alexandre Sampaio e Cléber Quadros, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-Rio-Grandense, da cidade de Charqueadas. A polpa do buriti foi a matéria-prima escolhida pelas estudantes Luana dos Santos e Glenda Correa, da Escola Joaquim Viana, de Belém do Pará, para criar brinquedos educativos destinados ao aprendizado nas aulas de física, química e biologia. Roger Lafaiete de Carvalho, do Grupo Educacional de Camaragibe, em Pernambuco, encontrou na essência extraída do cravo-da-índia com o auxílio de uma panela para fazer cuscuz uma alternativa eficiente e acessível para os agricultores combaterem o ácaro rajado, que ataca principalmente plantações de morango. Já os estudantes Giovanna Torquato, Mateus Costa e Thainá Fontes, da Escola Técnica de Eletrônica Francisco Moreira da Costa, de Santa Rita do Sapucaí, em Minas Gerais, criaram um sistema identificador de ônibus para deficientes visuais e auditivos que avisa, por meio de um display e de um alto-falante, quando o veículo se aproxima do ponto. ■

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[ homenagem ]

Conhecimento compartilhado José Mindlin, morto aos 95 anos, deixa legado para a cultura e a ciência

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frase “conhecimento existe para ser compartilhado” parece banal e previsível na boca de qualquer intelectual. Quando era dita por José Mindlin, porém, ela ganhava um significado fortemente concreto. “O doutor José realmente dividia sua riquíssima biblioteca com quem pedisse para consultá-la”, diz Cristina Antunes, bibliotecária que trabalhou por 30 anos com o empresário. “Essa generosidade não é muito comum entre os que colecionam livros”, afirma ela, que acompanhou parte da formação do acervo. Nas últimas duas décadas, a fama de bibliófilo se sobrepôs às outras atividades exercidas por ele como jornalista, advogado, empresário, secretário de Estado e membro da Academia Brasileira de Letras. Mindlin, que teve quatro filhos, morreu aos 95 anos em São Paulo no dia 28 de fevereiro em consequência da falência múltipla de órgãos. “José Mindlin deixou um legado incalculável para a cultura e a ciência”, disse Celso Lafer, presidente da FAPESP. Fundador da indústria de autopeças Metal Leve, o empresário teve atuação importante como conselheiro da FAPESP (1973-1974) e como secretário de Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (1975-1976). Quando no Conselho Superior da FAPESP, tomou conhecimento de um decreto que havia transformado os institutos de pesquisa em empresas. Ao sair do conselho e se tornar secretário de Estado, participou ativamente do processo de anulação do decreto. “A transformação de todos os institutos em companhias era coisa que não fazia sentido, porque há institutos que podem vender serviços e por isso devem ser transformados em empresas, enquanto outros fazem pesquisa e não têm condições de vender serviços”, disse Mindlin no livro FAPESP – Uma história de política científica e tecnológica, organizado por Shozo Motoyama. Como secretário de Estado, o empresário teve a FAPESP sob sua responsabilidade administrativa. “Ele foi importante na indicação do professor William Saad

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Hossne para sua segunda gestão como diretor científico da Fundação. Foi um período difícil do ponto de vista político, em razão das restrições do regime militar, e o professor Saad, em conjunto com Mindlin, respondeu a esse desafio preservando a autonomia da FAPESP”, disse Lafer. Ainda na secretaria, o empresário levou à frente o diá­ logo entre a cultura literária e humanística e a cultura científica. “Ele era justamente um homem de cultura, mas com grande interesse nas áreas de ciência e tecnologia.” Na Metal Leve, uma de suas preocupações foi a criação de um centro de pesquisas. “A empresa se notabilizou no cenário industrial do Brasil por fazer pesquisa em parceria com a universidade”, disse Lafer. Mindlin teve atuação relevante durante o perío­do em que dirigiu o Departamento de Ciência e Tecnologia da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). “Em sua atuação empresarial ele deu destaque tanto para a pesquisa quanto para o design, que é uma dimensão importante não só do ponto de vista da funcionalidade e da qualidade do produto, mas também de sua aparência estética”, apontou Lafer. Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP, destacou a importância de sua atuação no campo cultural e científico. “Mindlin foi um grande amigo da FAPESP, valorizando a ciência, a tecnologia e a cultura em vários cargos de liderança que ocupou. Em diversas ocasiões contribuiu para a Fundação com ideias e sugestões”, afirmou. Brasiliana Digital - Brito Cruz lembrou ainda

o impacto da doação, em 2006, dos mais de 40 mil volumes (17 mil títulos) da Biblioteca Guita e José Mindlin à Universidade de São Paulo (USP). “Recentemente a FAPESP concedeu apoio

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expressivo para que a USP realize a digitalização dos volumes recebidos de Mindlin em doação, em importante iniciativa para dar publicidade àquela belíssima coleção”, disse. A Fundação apoiou o projeto Brasiliana Digital, que disponibilizará via internet, com acesso livre, toda a coleção reunida por Mindlin ao longo de mais de 80 anos, além de outros acervos da USP. Os recursos permitiram a compra de um sistema integrado de digitalização robotizada de livros. Parte do acervo já está disponível em <www.brasiliana.usp.br>. Segundo o coordenador da Brasiliana Digital, Pedro Puntoni, professor do Departamento de História da USP, a base da iniciativa é o projeto Brasiliana USP – cujo coor­ denador-geral era o historiador István Jancsó (ver reportagem na página 44) –, do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP. Para abrigar o acervo doado por Mindlin e a nova sede do IEB, está sendo construído um edifício de 20 mil metros quadrados no centro da Cidade Universitária, em São Paulo. “Estamos sentindo muita falta do doutor Mindlin e é triste que ele não possa ver pronta essa grande casa dos livros pela qual ele é responsável”, disse Puntoni à Agência FAPESP. O objetivo é concluir as obras dentro de um ano. A Brasiliana se constitui de livros, documentos, mapas e imagens que se referem à história e cultura brasileiras. O pesquisador acrescenta que, além das novas instalações da biblioteca e da digitalização de todo o acervo, existe um projeto associado que prevê a criação do Centro de Restauro de Livro e Papel Guita Mindlin, voltado para atender à demanda da USP para a formação de restauradores profissionais. Guita, mulher de Mindlin que morreu em 2006, era conhecida como exímia restauradora. “Com a

Eder Medeiros/folha imagem

Mindlin: valorização da ciência, da tecnologia e da cultura nos cargos que ocupou

criação desse espaço, queremos formar um centro de convergência de múltiplas disciplinaridades em torno do objeto livro”, afirmou. João Grandino Rodas, reitor da USP, disse que Mindlin pensava na digitalização do acervo para que ele pudesse ser universalizado. “Aceitamos essa ideia imaginando que isso não se devesse circunscrever simplesmente à Biblioteca Brasiliana”, contou. “Mindlin nos mostrou a necessidade de digitalizar todo o acervo da USP, em suas 41 unidades, que não pode ser confinado entre quatro paredes e limitado à consulta em horário útil.” Outro aspecto importante da contribuição de Mindlin, segundo Rodas, foi o esforço feito durante 15 anos para conseguir que a USP aceitasse a doação de seu acervo. “Percebemos que nas universidades públicas brasileiras geralmente é extremamente difícil a doação de acervos particulares.” Para o reitor, essa situação não pode perdurar. “Verificamos que hoje, no mundo, várias bibliotecas recebem acervos importantes doados por brasileiros às universidades estrangeiras, porque não conseguem fazer o mesmo no Brasil”, disse. “Graças a Mindlin, esses procedimentos se n tornarão mais fáceis.” PESQUISA FAPESP 170

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O geneticista e o historiador

FFLCH/ USP

Miguel Boyayan

P

esquisador, médico, professor, divulgador da ciência, formulador de políticas para o ensino de ciência e, acima de tudo, um formador de várias gerações de geneticistas brasileiros, Oswaldo Frota-Pessoa morreu em São Paulo no dia 24 de março, seis dias antes de completar 93 anos. Frota era professor emérito do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB/USP) e foi um dos pioneiros da genética humana e médica no Brasil. Deixou três filhos. O geneticista nascido no Rio de Janeiro formou-se em história natural pela Escola de Ciências da Universidade do Distrito Federal em 1938 e graduou-se na Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil (atual Universidade Federal do Rio de Janeiro) em 1941. Por 20 anos foi professor de biologia do curso secundário em escolas públicas do Rio. Nos anos 1940 Frota-Pessoa começou a colaborar com o grupo de genética da USP liderado por André Dreyfus, um dos responsáveis pela vinda ao Brasil de Theodosius Dobzhansky, introdutor do estudo da genética das drosófilas (a mosca-de-fruta) no país. Nos anos 1950 foi bolsista da Fundação Rockefeller no laboratório de Dobzhansky na Universidade de Colúmbia, em Nova York, e trabalhou em Washington, na Organização dos Estados Americanos. Durante esse período escreveu o livro Biologia na

escola secundária, a pedido do Ministério da Educação brasileiro. Na volta ao Brasil, em 1958, foi para a USP. Foi nessa época que Frota estudou uma cidade goiana onde havia muitas famílias com indivíduos surdos-mudos e escreveu seu primeiro trabalho em genética humana. Decidiu, então, deixar as drosófilas de lado e mergulhar na nova área ao lado de Newton Freire-Maia, Francisco Salzano e Pedro Henrique Saldanha, todos pioneiros da genética humana e médica no Brasil. E todos ajudaram a formar gerações de especialistas, como Mayana Zatz, da USP, orientada por Frota-Pessoa. “Na década de 1960, Frota foi convidado pelo geneticista Crodowaldo Pavan a iniciar um serviço de genética humana e médica no Departamento de Biologia do IB/USP”, contou Mayana em seu blog. “Esse serviço acabou se transformando em 2000 no Centro de Estudos do Genoma Humano, apoiado pela FAPESP, o maior da América Latina.” História – Também em março houve

outra perda para a pesquisa brasileira, desta vez nas ciências humanas. O historiador István Jancsó, professor titular do Instituto de Estudos Brasileiros da USP e coordenador-geral do projeto Brasiliana, morreu no dia 23 em decorrência de

AP E RA

Frota-Pessoa (acima), formador de gerações, e Jancsó, que terá a trajetória contada em livro

complicações renais. O projeto Brasiliana é o depositário da coleção de livros de José Mindlin (ver página 42). Nascido na Hungria e formado em história pela USP em 1963, Jancsó estudava a problemática das estruturas nacionais. Desde 2004 coordenava o projeto temático A formação do Estado e da nação brasileiros (1780-1850), financiado pela FAPESP. Além da USP, Jancsó deu aulas na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, na Universidade Federal da Bahia e na Uni­ versidade de Nantes, na França. Era professor livre-docente pela Universidade Federal Fluminense. Editava a revista eletrônica de história Almanack Braziliense e era membro do conselho editorial de cinco revistas especializadas. A vida e a trajetória intelectual do historiador será contada em livro. Um historiador do Brasil, István Jancsó teve a participação direta do próprio Jancsó, de acordo com a Agência FAPESP. Os autores Andrea Slemian, Marco Morel e André Micásio Lima colheram depoimentos do historiador ao longo de dois anos. O livro já está no prelo. n

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Observatório Pierre auger

laboratório mundo

Mais massa para os raios cósmicos Os físicos do Observatório Pierre Auger concluí­ram que os raios cósmicos de energias ultra-altas podem ser constituídos por aglomerados de prótons, partículas com carga elétrica positiva, e de nêutrons, partículas sem carga elétrica – e não simplesmente prótons, como se pensou por muitos anos. “Os raios cósmicos de energias mais altas tendem a ser núcleos de átomos de ferro, com muitos prótons e nêutrons”, diz Carlos Escobar, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), um dos coordenadores da equipe brasileira no Pierre Auger. Os resultados mais recentes dão mais massa aos bastante raros Em Malargue: detectores do Pierre Auger raios cósmicos de energias mais altas (Physical Review Letters). Se forem real­ Em busca de mente núcleos de ferro, um dos elementos químicos mais abundantes no Universo, podem tomar a forma de bolotas marcianos superenergéticas de 28 nêutrons e 26 prótons. Outra posEm alguns pontos de sibilidade é que sejam núcleos de carbono, com apenas seis sua exploração em Marte, prótons e seis nêutrons, produzidos pela fragmentação de a sonda Spirit, da agência núcleos de ferro. “Os raios cósmicos de energias mais altas espacial norte-americana parecem ser, na verdade, um coquetel, uma mistura de partí(Nasa), deixou rastros culas”, diz Escobar. “Quanto maior a energia, aparentemente tingidos de amarelo. maior é a participação dos núcleos mais pesados.”

Extensões do ser Os objetos de uso cotidiano se tornam parte de quem os utiliza. Essa ideia antiga foi agora testada em um experimento simples coordenado por Anthony Chemero, da Faculdade Franklin & Marshall, nos Estados Unidos. Quando uma pessoa diante de um computador usa um mouse para mover o cursor em testes motores, 46

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os movimentos da mão seguem um padrão matemático comum na natureza conhecido como “ruído rosa”, que parece reger processos cognitivos. Mas quando o mouse passa a funcionar mal e o cursor demora a responder, o ruído rosa desaparece. É um sinal de que a pessoa se tornou consciente do movimento e o aparelho deixou de ser percebido pelo cérebro como extensão do corpo (Plos One).

Era enxofre, misturado à poeira. O achado pode significar muito mais do que uma curiosidade química: o enxofre, muito mais comum no planeta vermelho do que por aqui, pode ser indício de vida. Na Terra, bactérias convertem sulfato, um tipo de composto de enxofre, em outro, o sulfeto. Ao examinar material colhido da cratera Haughton, no Ártico canadense, um grupo liderado por John Parnell, da Universidade de Aberdeen, na Escócia, mostrou que é

possível reconhecer nesses compostos de enxofre uma assinatura de atividade microbiana (Geology). Segundo eles, a próxima missão robótica da Nasa a Marte terá equipamentos capazes de detectar essa assinatura e verificar se há vida microscópica no solo marciano.

Rastros da sonda Spirit: enxofre misturado ao pó

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O segredo da força Um fio de teia de aranha é mais forte do que um cabo de aço com as mesmas dimensões. O motivo dessa resistência foi agora desvendado por uma equipe do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), Estados Unidos, que simulou em computador a interação entre os componentes de uma proteína da teia. O segredo parece estar na conformação espacial assumida por segmentos da proteína chamados folhas beta. Com a forma de um fole de sanfona, as folhas beta são mantidas por ligações químicas conhecidas como pontes de hidroTeia de aranha: resistência a toda prova gênio. Em geral consideradas fracas, as pontes de hidrogênio se unem firmemente quanProteínas do confinadas num espaço ínfimo (Nature Materials). Além disso, elas existem em grande quantidade na proteína da desordeiras teia. Quando uma ligação se rompe, outras mantêm intacta a Além de causarem estrutura da fibra, que se recompõe sozinha. Não é à toa que a seda de aranhas e bichos-da-seda seja usada na confecção enfermidades letais, como a doença da vaca louca, de produtos que podem separar a vida da morte, como os fios os príons também podem de suturas cirúrgicas e de tecidos de paraquedas.

ajudar na pesquisa médica. Essas proteínas defeituosas normalmente se acumulam em células do cérebro e de outros tecidos, causando danos extensos. Para entender como o processo

pnas

jpl/nasa

O sequenciamento do DNA mitocondrial extraído de um fragmento de osso descoberto em 2008 numa caverna da Sibéria, na Rússia, revelou a existência de uma espécie de hominídeo até agora desconhecida. A nova espécie, a primeira descoberta por meio de análises moleculares e sem registro fóssil estudado, pode ter convivido com o homem moderno (Homo sapiens) e os neandertais (Homo neanderthalensis) na Ásia Central entre 48 mil e 30 mil anos atrás. Ainda sem nome, a nova espécie do gênero Homo, extinta e da qual só se conhece a ponta de um dedo da mão, deriva de uma população de hominídeos que teria deixado a África numa leva migratória anterior à dos ancestrais dos neandertais e dos humanos modernos. As três espécies compartilharam um ancestral há cerca de 1 milhão de anos, segundo os pesquisadores do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, na Alemanha, e da Universidade de Manchester, na Inglaterra, responsáveis pela descoberta divulgada num artigo on-line da Nature.

joonas pihlajamaa

Novo hominídeo na Sibéria

funciona, um grupo coordenado por Bruce Chesebro, do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas, nos Estados Unidos, produziu camundongos transgênicos que fabricam príons sem as âncoras que os prendem às células. O resultado foi uma doença também letal, mas com características diferentes, segundo artigo publicado em março na PLoS Pathogens. Em vez de esburacar o cérebro dando a ele a aparência de uma esponja, a nova enfermidade

gerou danos cerebrais distintos, causados por depósitos amiloides semelhantes aos que se formam na doença de Alzheimer. Os novos príons também provocaram danos vasculares e alterações no espaço entre as células da matéria cinzenta do cérebro. Saber como essas proteínas atuam pode ajudar na compreensão de como se instalam e evoluem as doenças causadas por príons e o mal de Alzheimer, além de dar pistas para o desenvolvimento de novos medicamentos.

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Arnaldo Sakamoto/UFMS

laboratório brasil

Pântanos salgados

uma equipe do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), do Museu de História Natural do Reino Unido e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais reconstituiu a fauna de tubarões que há cerca de 25 milhões de anos nadava por ali. Entre as espécies listadas no Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi – Ciências Naturais, estão algumas até hoje 48

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Agora o peixe-boi de água salgada só é encontrado em uma área restrita dos Estados Unidos. Para a pesquisadora, o estudo ajuda a compreender como a mudança no nível do mar moldou o paleoambiente da região.

Sidclay Dias/MPEG

O Pantanal é uma terra de muitas águas, algumas delas muito pouco conhecidas como as que formam as lagoas salinas. Sempre redondas ou ovais, com até três metros de profundidade e diâmetro variando de 500 metros a mil metros, essas lagoas em geral estão localizadas no interior de regiões mais altas. Em Nhecolândia, no centro-sul do Pantanal, há 1.500 delas. Até há pouco tempo, essas formações eram consideradas relíquias de períodos mais secos entre 126 mil e 10 mil anos atrás, quando a evaporação da água teria criado zonas com maior concentração de potássio, Lagoas salinas: resultado da precipitação recente de minerais sódio e magnésio. Um estudo conduzido por pesquisadores do Brasil, dos Estados Unidos e da França, publicado recentemente na revista Geoderma, mostra que não é bem Um antigo mar encontradas na costa norte brasileira. Outras, como assim. Segundo um dos pesquisadores, a geógrafa Sheila de tubarões o tubarão-branco, agora Furquim, atualmente professora na Universidade Federal de só existem em águas Situada a quilômetros São Paulo (Unifesp), a salinidade se deve ao menos em parte mais frias e profundas. da costa, a região de a processos atualmente em curso. A água que alimenta essas “Naquela época havia Capanema, no norte do lagoas vem de lençóis freáticos e fica aprisionada durante a muitos peixes-boi marinhos Pará, já foi um mar repleto seca em camadas impermeáveis do solo. Nesses períodos de ali, e os tubarões-brancos de tubarões. E dentes fósseis maior evaporação, o grupo detectou a precipitação de íons de provavelmente vinham encontrados em uma mina magnésio, potássio e cálcio, que entram na composição dos em busca dessa fonte de de calcário em meio à minerais que deixam as águas salgadas. A água dessas lagoas alimento”, conta Sue Anne Amazônia ajudam a contar é também altamente alcalina, com pH 10. Em conjunto, essas Costa, do MPEG, uma essa história. A partir de propriedades químicas favorecem a sobrevivência da fauna local, inclusive dos rebanhos de gado típicos do Pantanal. das autoras do estudo. pouco mais de 300 dentes,

Dentes serrilhados: vestígios de 25 milhões de anos atrás

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Attalea maripa: esconderijo do barbeiro

modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular. A comissão avaliadora escolheu as melhores propostas de cada continente. O trabalho é realizado em colaboração com Paulo Lee Ho e Eliane Miyaji, ambos do Centro de Biotecnologia do Butantan. O prêmio é de US$ 25 mil, concedido pela empresa farmacêutica Pfizer.

ENTRE AS FOLHAS DAS PALMEIRAS Vetor da doença de Chagas, o barbeiro é um inseto especialista em driblar os esforços de erradicá-lo. Segundo estudo liderado por Fernando Abad-Franch, da Fiocruz Amazônia, os agentes da saúde pública precisam aprender a reconhecer falhas na

amostragem dos barbeiros, um procedimento essencial para se traçarem estratégias de combate à transmissão da doença. A equipe, que reuniu especialistas de vários países, mostrou que uma boa maneira de complementar os inventários é levar em conta a presença de palmeiras do gênero Attalea, uma das moradias favoritas dos barbeiros (PloS Neglected Tropical Diseases). As folhas dessas palmeiras criam reentrâncias ideais para o inseto se esconder e depositar seus ovos. Quanto maiores e mais cheias as folhas, mais barbeiros abrigam – amostragem feita em quatro regiões da Amazônia mostrou que os métodos tradicionais subestimam o tamanho das populações do inseto. Diante desses resultados, o manejo das palmeiras, com a retirada de folhas secas, pode se tornar um aliado essencial ao combate da doença de Chagas.

FOTOS JANSEM ZUANON E FERNANDO MENDONÇA/INPA

Maria Leonor Sarno de Oliveira, pesquisadora do Centro de Biotecnologia do Instituto Butantan, ganhou o prêmio Robert Austrian Award 2010 in Pneumococcal Vaccinology. O trabalho intitulado Single formulation vaccine against pneumococcal, diphteria, pertussis and tetanus diseases foi escolhido como o melhor da América Latina. A premiação ocorreu durante o 7o International Symposium on Pneumococci and Pneumococcal Diseases, realizado em Tel-Aviv (Israel). Segundo Maria Leonor, o projeto consiste no desenvolvimento de uma vacina combinada, composta por antígenos de pneumococo e da vacina celular pertússis, que já é produzida pelo Butantan e administrada em crianças brasileiras, na formulação DTP (difteria, tétano e pertússis). “Pelo fato de a vacina pertussis ser uma vacina celular, ela possui propriedades estimuladoras do sistema imune (adjuvantes) que aumentam e modulam a resposta para proteínas do pneumococo, melhorando a intensidade e a qualidade da resposta imune”, disse à Agência FAPESP. O projeto intitulado “Propriedades adjuvantes de vacinas celulares: combinação das vacinas celular pertússis e BCG com antígenos proteicos de Streptococcus pneumoniae”, que é coordenado pela pesquisadora, tem apoio da FAPESP por meio da

ARRIA BELLI/WIKIMEDIA COMMONS

VACINA COMBINADA

A COR DAS EMOÇÕES Alguns peixes estampam as emoções na própria pele. Ao menos é assim com algumas espécies da família dos ciclídeos, que inclui o acará-bandeira e o acará-disco. O fato de deixarem transparecer o estado emocional é um prato cheio para quem estuda comportamento, como Raoni Rodrigues e Kleber Del-Claro, da Universidade Federal de Uberlândia. Mergulhando com máscara e snorkel em um lago a 70 quilômetros ao norte de Manaus, Rodrigues descobriu que na maior parte do tempo o ciclídeo Apistogramma hippolytae apresenta o corpo prateado praticamente liso, coloração que torna mais difícil identificá-lo em seu ambiente natural. Em situações mais tensas, como quando perseguem ou são perseguidos, em poucos segundos surgem combinações variadas de listras e manchas. Com manchas no corpo e uma faixa debaixo do olho em fundo amarelo, as fêmeas com filhotes são inconfundíveis (Neotropical Ichthyology).

Mãe em ação (acima) e coloração básica do Apistogramma

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[ Ambiente ]

O verde clandestino Vegetação nativa do estado de São Paulo cresce pela segunda década seguida e volta a ocupar área similar à dos anos 1970 Ricard o Zorzet to

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m tempos em que as questões ambientais se tornaram o centro da atenção do mundo e as florestas continuam a tombar planeta afora cedendo espaço a plantações e cidades, surge ao menos uma boa notícia no cenário regional. A área ocupada pela vegetação nativa do estado de São Paulo cresceu pela segunda década consecutiva e, ainda que retalhada em centenas de milhares de fragmentos menores que um campo de futebol, alcançou um espaço semelhante àquele pelo qual se espalhava no início dos anos 1970. Hoje 4,34 milhões de hectares de campos e florestas em diferentes estágios de conservação – em especial, Mata Atlântica – cobrem o correspondente a 17,5% do território paulista, de acordo com o mais recente levantamento da vegetação original do estado, feito pelo Instituto Florestal de São Paulo e divulgado em 17 de março, que está sumarizado no mapa encartado nesta edição de Pesquisa FAPESP. Até onde se sabe, essa área verde é praticamente a mesma que os 4,39 milhões de hectares que as florestas nativas ocupavam 40 anos atrás, antes de as pastagens e as plantações de cana-de-açúcar transformarem de vez a paisagem exuberante e variada das matas paulistas em um monótono tapete verde. Os 4,34 milhões de hectares de verde documentados no Inventário florestal da cobertura vegetal nativa do estado de São Paulo (período 2008 e 2009) representam uma área 25% maior do que a contabilizada no início desta década – em 2001 a versão anterior desse trabalho, também apresentada por Pesquisa FAPESP, havia registrado 3,46 milhões de hectares de Mata Atlântica, Cerrado e manguezais. Embora nem toda essa área represente florestas em recuperação, o aumento de matas e campos nativos parece consolidar uma tendência detectada no estado nos últimos 20 anos, quando, possivelmente pela primeira vez desde o início da colonização do país pelos

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europeus, a vegetação nativa paulista deixou de encolher e passou a crescer. O verde a mais mapeado no trabalho atual fez muitos ecólogos e conservacionistas respirarem mais aliviados e deixou alguns deles até mesmo otimistas, como o secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo, Xico Graziano. Na tarde em que os dados foram apresentados na sede do Instituto Florestal, situado em um trecho de Mata Atlântica no norte da capital paulista, Graziano afirmou: “Dá para dizer que o desmatamento vem diminuindo e a recuperação da vegetação aumentando. Conseguimos virar essa página”. O incremento da cobertura florestal do estado é uma boa notícia, que, no entanto, deve ser interpretada com cautela. O novo levantamento contabilizou 886,4 mil hectares de vegetação nativa a mais que o anterior. Mas nem toda essa área abriga campos e florestas que se recuperaram no período. Boa parte do aparente crescimento – especificamente 345,7 mil hectares – deve-se ao uso de imagens de satélite com maior resolução que a do trabalho anterior. É que, ao revelar mais detalhes, essas imagens permitiram redefinir o tamanho dos fragmentos conhecidos, em muitos casos maiores que o calculado antes. A versão deste ano do inventário, o quinto produzido pelo Florestal desde 1962, toma como base quase 100 imagens do território paulista feitas em 2008 e 2009 pelo satélite japonês Alos na escala de 1:25.000, em que cada centímetro do mapa representa 250 metros no solo. Essa resolução é quatro vezes maior que a do levantamento anterior, feito com imagens na escala de 1:50.000 obtidas pelos satélites Landsat e Cbers. São Paulo não é o único estado a acompanhar o que resta de suas matas a fim de estabelecer políticas mais adequadas de conservação. Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul já produziram levantamentos similares, mas nenhum cobrindo todo o território com o

Trecho de Mata Atlântica no Parque Estadual Carlos Botelho, no interior paulista

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fabio colombini

CiĂŞncia

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Colcha de retalhos INSTITUTO FLORESTAL

São João da Boa Vista

Mogi-Guaçu

1 Campos do Jordão 5 Campinas

São José dos Campos

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SÃO PAULO

Caraguatatuba

7 Santos

mesmo nível de detalhes do documento paulista, que consumiu R$ 1,5 milhão e 15 meses de trabalho de 16 especialistas em interpretação de imagens. Com o quádruplo da resolução, as imagens do Alos mostraram áreas muito menores que as vistas antes. No levantamento anterior os menores trechos de floresta identificados tinham em média três hectares ou 30 mil metros quadrados, a área de três campos de futebol. Já na versão atual a equipe do pesquisador Marco Aurélio Nalon, especialista em geoprocessamento do Instituto Florestal, conseguiu detectar blocos de vegetação natural de apenas 0,25 hectare ou 2.500 metros quadrados, o equivalente a um quarto de campo de futebol. Segundo Nalon, por muito tempo a escala de 1:50.000 foi suficiente para os órgãos de licenciamento e fiscalização acompanharem a degradação ambiental no estado e para pesquisadores de programas como o Biota-FAPESP realizarem o levantamento da flora e da fauna paulistas. Mas estava na hora de melhorar. “Como a pressão de uso 52

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do solo vem aumentando, precisamos enxergar cada vez com mais detalhe”, afirma Nalon, que há quase 20 anos trabalha com o engenheiro agrônomo Francisco Kronka, coordenador das três versões mais recentes do inventário e autor de outro estudo publicado nesta edição de Pesquisa FAPESP. Nas imagens do Alos, que deixam ver até a copa das árvores, a equipe de Nalon identificou 445,7 mil hectares de florestas antes desconhecidos, que se encontram retalhados em 184,5 mil fragmentos espalhados pelo estado. Ainda não se sabe quantos deles são de fato novos, ou seja, floresta renascendo. É provável que muitos já existissem e apenas não tivessem sido mapeados por serem pequenos demais para as câmeras dos satélites usados antes. “Esses 184,5 mil fragmentos eram clandestinos”, diz Nalon. “Agora ganharam endereço e identidade.” Antes podiam ser eliminados sem que as autoridades descobrissem. Agora não mais. Pelas contas de Nalon, aproximadamente 95 mil hectares são áreas novas

Vegetação em Ipeúna: mapa dos fragmentos vistos no inventário atual (acima) e no de 2001 (ao lado)

em que diferentes formações de Cerrado e Mata Atlântica foram replantadas ou voltaram a crescer depois que a terra, exaurida, foi abandonada. Em resumo, representam o crescimento real da vegetação nativa de São Paulo nesta década. “Do início dos anos 1990 até 2001, houve um aumento de 120 mil hectares na área verde do estado”, conta Nalon. “Portanto, um incremento de 95 mil hectares nos últimos anos é bastante plausível.” E não é pouco. É como se 600 parques como o Ibirapuera, o mais conhecido da capital paulista, ou 23 matas como as que formam o Parque Nacional da Tijuca na cidade do Rio de Janeiro, a maior floresta urbana do mundo, tivessem brotado no interior de São Paulo em menos de 10 anos. Essa boa notícia, porém, não permite acomodação. Ainda que mais verde esteja renascendo no estado, a recuperação se concentra nas regiões em que a vegetação já vinha crescendo antes. “Na década passada detectamos desmatamento no oeste paulista e talvez isso continue por ali”, comenta Nalon, que

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espera ter em breve a resposta para essa questão. Nos próximos meses, ele e sua equipe devem concluir a contabilização da área verde de cada município do estado e enviar o dado aos 645 prefeitos paulistas, informação que permanecerá disponível no site do Sistema de Informações Florestais do Estado de São Paulo (www.iflorestal.sp.gov.br/ sifesp/). Com esses dados, os administradores públicos poderão cobrar com mais rigor o cumprimento das leis ambientais e os pesquisadores, identificar com mais exatidão onde vivem certas espécies de plantas e animais. Onde estão as matas - Como se pode

ver no mapa, boa parte da vegetação nativa do estado está no litoral, em uma faixa de menos de 100 quilômetros de largura delimitada pela serra do Mar e pelas praias. Os municípios de Caraguatatuba, Ubatuba, São Sebastião e Ilhabela, no litoral norte, ainda mantêm a maior parte de suas terras coberta por vegetação nativa. Em média, 88,6% dessa região abriga florestas úmidas e manguezais que vêm sendo corroídos lentamente pela especulação imobiliária. Embora proporcionalmente elevada, essa área é pequena: apenas 168,9 mil hectares. Em termos absolutos, a maior extensão contínua de vegetação nativa se espalha pelos municípios do litoral sul e do vale do rio Ribeira de Iguape, próximo à divisa com o Paraná. Nessa região, a mais pobre do estado, restam 1,22 milhão de hectares de Mata Atlântica bem conservada, que já cobriu 65% do território paulista. Mas quase nada sobrou do Cerrado, que revestia as terras levemente onduladas do interior. O pouco que há – e continua a sumir – está na região de Ribeirão Preto, Franca, São José do Rio Preto, Bauru, Sorocaba e Campinas, onde nas últimas décadas as plantações de cana-de-açúcar vêm substituindo pastagens, cafezais e matas nativas, ao mesmo tempo que impulsionam a economia paulista. Ainda que o novo inventário indique um ganho considerável de verde – descontado o aumento proporcionado pelas imagens de maior resolução, seriam 95 mil hectares de florestas novas –, há quem diga que essa notícia não seja tão boa. É que ao menos 12% do verde paulista (531 mil hectares)

está pulverizado em pequenos blocos, muitas vezes com área inferior a 10 hectares. E, para algumas correntes da ecologia, áreas tão acanhadas não permitiriam a sobrevivência de grande diversidade de plantas e animais, não sendo, portanto, tão interessantes para a preservação ambiental. A relação, porém, parece não ser tão simples. Ganha força no país uma linha da ecologia segundo a qual cada trecho de um ecossistema nativo, por menor que seja, é importante. Cada fragmento pode conter um banco de informações genéticas único, capaz de contribuir de forma relevante para a conservação da biodiversidade e a restauração de ecossistemas semelhantes. “Mesmo em ambientes muito degradados, onde sobraram menos de 10 hectares, esses fragmentos desempenham um papel importante na conservação da biodiversidade remanescente”, afirma Ricardo Ribeiro Rodrigues, coordenador do Laboratório de Ecologia e Restauração Florestal da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, em Piracicaba. “Em regiões dominadas pela agricultura, sem unidades de conservação relevantes por perto, os fragmentos de floresta são a única fonte de informação de como era e funcionava a vegetação nativa e podem se tornar mais ricos com o manejo adequado”, explica. Bancos de sementes e de embriões de plantas, esses blocos de vegetação, em especial os menores, permanecem desconhecidos dos pesquisadores. “Só 35% dos remanescentes florestais estão em unidades de conservação, a maioria com área superior a 100 hectares, onde geralmente são conduzidos os estudos científicos”, diz Rodrigues.

Em menos de 10 anos quase 95 mil hectares de florestas e campos brotaram no estado

Ante esse potencial, a identificação de 184,5 mil novos fragmentos, que se somam a outros 120 mil já conhecidos, soa alvissareira. “Isso significa que os fragmentos existentes estão mais próximos entre si do que se imaginava”, comenta Giselda Durigan, pesquisadora do Instituto Florestal em Assis e estudiosa da conservação e restauração de ecossistemas. “Essa proximidade certamente facilita a recuperação das florestas.” Giselda coordena um grande estudo da Secretaria do Meio Ambiente que tem por meta descobrir o que faz uma floresta plantada vingar e se consolidar. São quatro áreas de matas nativas e 26 plantadas que crescem há pelo menos quatro anos (a mais antiga tem 55 anos) sem serem perturbadas. Nos últimos tempos ela verificou que um fator essencial para o sucesso das florestas em recuperação é a presença de um bom fragmento de mata nativa por perto. Em meio a um imenso canavial no município de Tarumã, próximo a Assis, no oeste do estado, por exemplo, foram plantadas 29 espécies de árvores para restaurar um trecho de mata ciliar. Dez anos mais tarde, outras 23 haviam surgido espontaneamente, a maioria trazida por aves e outros animais de fragmentos de vegetação nativa vizinhos – o menor deles com apenas um hectare. Algo semelhante ocorreu em uma fazenda no sudoeste de São Paulo, onde em 1972 foram plantadas 165 espécies de árvore em uma área de 20 hectares. No levantamento mais recente, feito em 2009, outras 64 espécies haviam brotado por ali. “Ainda não sabemos dizer qual deve ser a distância mínima para que ocorra a migração de espécies do fragmento para a área plantada”, diz Giselda, “mas quanto mais perto o fragmento estiver da floresta em restauração, mais rápido outras espécies vão chegar. E quanto mais antiga a floresta plantada, mais espécies entrarão ali”. Se essa influência dos fragmentos se mostrar consistente, a recuperação de florestas no estado pode se tornar mais simples e barata. “É possível criar corredores ecológicos com a restauração das matas ciliares [que margeiam os rios]”, imagina Rodrigues. “Recuperando essas matas, daria para interligar a maior parte dos n fragmentos de São Paulo.” PESQUISA FAPESP 170

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[ ECOLOGIA ]

Histórias de conchas mortas Desaparecimento de braquiópodes e moluscos indica desequilíbrio ambiental em mares e rios

A

e paleobiologia da Universidade do Arizona, Estados Unidos. Flessa e sua equipe, que já coletaram conchas de moluscos em diferentes lugares do mundo, inclusive no rio Paraná, acompanham há décadas as transformações do Colorado, rio de 2.330 quilômetros de extensão do sudoeste dos Estados Unidos, hoje interrompido por sucessivas barragens construídas para a geração de energia elétrica e o fornecimento de água para uso agrícola e urbano. Flessa verificou que a redução do teor de sais na água modificou a distribuição de populações de moluscos. A quantidade de representantes de Mulinia

FOTOS MARCELO SIMÕES/UNESP

Bouchardia rosea, um invertebrado marinho coberto por duas conchas de no máximo 15 milímetros de comprimento, antes abundante ao longo do litoral brasileiro, hoje é rara. Em 13 anos de coletas no litoral norte de São Paulo, o paleontólogo Marcello Simões e sua equipe da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Botucatu encontraram cerca de 6 mil representantes mortos e apenas seis vivos de Bouchardia rosea. “Essa espécie de braquiópode, antes a mais comum na plataforma continental brasileira, está desaparecendo e pode até estar extinta no Sudeste”, concluiu Simões. Coletas na Ilha Grande, em Angra dos Reis, litoral do Rio de Janeiro, reforçaram as conclusões obtidas com os levantamentos no litoral norte paulista. Surgida há cerca de 60 milhões de anos, a Bouchardia rosea serve de alimento para moluscos e crustáceos e, à medida que as conchas se fragmentam, deixa o fundo arenoso mais estável e firme, facilitando o crescimento de algas e corais. Os resultados sobre a Bouchardia saíram no final de 2009 na revista Historical Biology. Um dos pioneiros nessa abordagem é Karl Flessa, professor de paleontologia

coloradoensis, uma espécie de molusco predominante antes das barragens, sofreu uma redução de 94% – atualmente são os representantes do gênero Chione que dominam as águas do Colorado. Um peixe de quase dois metros, o totoaba (Totoaba macdonaldi), e um mamífero aquático semelhante a um golfinho chamado localmente de vaquita (Phocoena sinus) estão sob risco de desaparecer por causa das transformações pelas quais o rio já passou. Flessa também criou o Centro de Estudos de Moluscos Mortos, organização sediada na Universidade do Arizona cuja página na internet exibe em inglês o slogan “Colocando os mortos para trabalhar desde 1992”. O desafio é entender as causas da desproporção entre o número de exemplares vivos e mortos e, depois, ver se algo pode ser feito para reduzir a diferença. No caso da Bouchardia, aparentemente não há muito a fazer, porque a causa de sua escassez é provavelmente natural: alterações nas correntes marinhas ou na temperatura da água do mar. “Outros fatores, como a poluição, só pioram”, afirma Simões. ■

Carlos Fioravanti > Artigo científico

Amostras de Bouchardia rosea: maioria mortas

SIMÕES, M.G., RODRIGUES, S.C.; KOWALEWSKI, M. Bouchardia rosea, a vanishing brachiopod species of the Brazilian platform: taphonomy, historical ecology and conservation paleobiology. Historical Biology. 21: 123-137. 2009.

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Agrias claudina

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[ ZOOLOGIA ]

Cores ao vento

FOTOS ANDRÉ FREITAS/UNICAMP

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m dinossauro enfeitado com o vermelho e o azul de uma borboleta pousada na testa, como se fosse um laçarote nos cabelos de uma menina, pode parecer fantasia de desenhista ou diretor de filme ambientado na Pré-História. Mas é plausível, segundo o zoólogo André Freitas, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp): as borboletas da família das ninfalídeas já existiam há 90 milhões de anos. Em colaboração com colegas da Finlândia, da Suécia e dos Estados Unidos, ele mostrou na Proceedings of the Royal Society B que as ninfalídeas já faziam parte da paisagem quando dinossauros caçavam outros animais e comiam as folhas de uma variedade bem razoável de plantas. Além de servir como cardápio aos vegetarianos, é provável que a diversidade vegetal também estivesse por trás das inúmeras formas e cores de borboletas voejando de uma flor à outra, sugere o pesquisador da Unicamp. Mas tanto plantas como animais (borboletas inclusive) foram afetados pelo asteroide que há 65 milhões de anos caiu onde hoje é o México. Segundo essa teoria mais aceita sobre o desaparecimento dos dinossauros, as consequências do impacto foram violentas e causaram uma avassaladora onda de extinções, e deixaram rastros nos fósseis e nos genes das borboletas de hoje. “Na época das extinções, a fronteira entre o Cretáceo e o Terciário, só sobraram cerca de 10 espécies de Nymphalidae”, conta Freitas, que em duas figuras do artigo demonstra a importância da descoberta: cada uma dessas espécies sobreviventes deu origem a um ramo que depois se diversificou. Não é por acaso, portanto, que hoje as ninfalídeas estão divididas em 12 subfamílias. Passado o período em que o mundo ficou inóspito para boa parte dos seres vivos, o punhado de espécies que tinham resistido se diversificou de forma explosiva e deu origem ao grupo mais diverso entre as borboletas, que hoje abriga cerca de 6 mil espécies dos mais diferentes matizes e tamanhos. Elas podem, por exemplo, ser pintadas ou rajadas, vermelhas ou azuis, às vezes com manchas que se parecem com grandes olhos. Além de saber quando surgiram essas borboletas, o zoólogo também quer saber de que região do planeta elas vieram e quais condições ambientais foram responsáveis pela diversidade de cores que flutuam por ares tropicais. Ele é capaz de passar horas a fio debruçado sobre uma lupa, exa-

Genes e fósseis revelam origem da diversidade de borboletas sul-americanas Maria Guimarães

minando todos os detalhes de uma borboleta, como medidas, cores e a disposição de veias nas asas. A análise ampla da família considerou 235 dessas características morfológicas e 10 trechos do DNA, além da planta hospedeira característica para cada subfamília, e indica que de fato as ninfalídeas surgiram nos trópicos. Para ajudar a determinar quando cada espécie existiu, a equipe internacional usou raros fósseis de borboletas, uma dezena deles, com idades estimadas por métodos geológicos. Essa datação complementou os métodos moleculares para dar uma escala de tempo à árvore genealógica das ninfalídeas. Mas para ter uma ideia mais precisa de como e quando surgiu a riqueza atual de espécies, é preciso olhar caso a caso. É o que Freitas tem feito, em colaboração com Karina Silva-Brandão, agora pesquisadora na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, a Esalq, da Universidade de São Paulo (USP). Um exemplo são as borboletas de asas transparentes da subfamília Ithomiinae, que Freitas e Karina estudaram em parceria com a francesa Marianne Elias, à época na Universidade de Edimburgo, no Reino Unido. O grupo verificou, em trabalho publicado em 2009 na Molecular Ecology, que essas borboletas já viviam onde agora são os Andes quando a região ainda não era montanhosa, mais

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de 15 milhões de anos atrás. À medida que os movimentos da crosta terrestre foram formando montanhas no que hoje é o oeste da América do Sul, a cordilheira cresceu e novos ambientes surgiram, isolados por picos e vales. Essa situação ideal para o surgimento de espécies foi exatamente o que permitiu a diversificação das itomiíneas. Os dados genéticos mostram também que a partir de cerca de 4 milhões de anos atrás, talvez porque todos os ambientes propícios já estivessem ocupados, o número de espécies se estabilizou. Cardápio - Algumas dessas espécies de-

Em sentido horário: Dasyophtalma rusina, Episcada hemixanthe, Dryas iulia e Hamadryas arete

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ram origem a novas linhagens no norte da Amazônia e na Mata Atlântica, em regiões onde era convidativa a diversidade vegetal, sobretudo de plantas da família das solanáceas, que inclui tomates e batatas. Por meio de análises das árvores filogenéticas, Freitas já tinha mostrado, alguns anos antes, a importância da planta hospedeira na diversificação das itomiíneas. Lagartas de borboletas não são seres de uma voracidade indiscriminada: transportadas para uma planta diferente da habitual, muitas delas não reconhecem aquela superfície como alimento e morrem de fome, mesmo cercadas de folhas. As ancestrais das itomiíneas comiam folhas de apocináceas, a famí-

lia das alamandas, muito comuns em jardins com suas flores amarelas ou cor-de-rosa. O caule e as folhas dessas plantas, quando quebrados, vertem uma substância leitosa tóxica para muitos animais. As lagartas de borboletas que se alimentam de apocináceas tiram proveito disso: sequestram substâncias alcaloides e adquirem um sabor desagradável que dissuade predadores. Um recurso conveniente, mas as apocináceas são insuficientes para alimentar um número muito grande de espécies. Diante da limitação, novas espécies só seriam bem-sucedidas se conseguissem explorar outras fontes de alimento. “As solanáceas eram um recurso abundante

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O PROJETO Borboletas da Mata Atlântica: biogeografia e sistemática como ferramentas de conservação de biodiversidade - nº 2004/05269-9

MODALIDADE

Jovem Pesquisador COORDENADOR

ANDRÉ VICTOR LUCCI FREITAS – Unicamp INVESTIMENTO

R$ 164.736,14

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e sem competidores, por isso o acesso a elas foi o que permitiu a diversificação das itomiíneas”, conta Freitas. Outra subfamília das ninfalídeas a se disseminar a partir dos Andes foi Acraeini, conforme artigo que Freitas e Karina publicaram em 2008 na Molecular Phylogenetics and Evolution. Os hábitos alimentares parecem estar intimamente ligados a essa diversificação a partir de borboletas africanas especializadas em se alimentar, durante a fase de lagarta, das folhas espinhudas e cheias de toxinas das urtigas. Os pesquisadores acreditam que a mesma capacidade de se adaptar às urtigas permitiu o surgimento de descendentes com preferência pela família dos girassóis e das margaridas, também ricas em compostos químicos tóxicos. Essas devoradoras de margaridas também existem na América do Sul, indicando que a subfamília chegou a este continente a partir das estabelecidas no Velho Mundo. A história não para aí. Mais recentemente Freitas e Karina perceberam, em trabalho ainda não publicado, que o grupo das Acraeini surgiu na África há mais ou menos 30 milhões de anos. Mas, se nessa época o continente africano e o americano já estavam separados, como as borboletas passaram de um a outro? “Acreditamos que tenha sido pela Antártida”, conta ele. Naquele período, o continente polar meridional ainda não era congelado e abrigava uma rica vegetação. Só entre 23 milhões

e 28 milhões de anos atrás a Antártida se separou dos outros continentes e passou a ser circundada por correntes oceânicas que causaram o congelamento, mas nessa época as Acraeini já tinham chegado ao Novo Mundo. Além do que revelam as análises genéticas, o pesquisador da Unicamp aponta mais um indício de que a teoria está correta: na América do Sul as borboletas desse grupo vivem em áreas frias, como a cordilheira dos Andes e zonas mais altas da serra do Mar, domínio da Mata Atlântica. Bem diferente das espécies africanas, especializadas em florestas tropicais e savanas. “Só chegaram por aqui as que resistiram ao frio.” Viagens - Por causa dos fortes indí-

cios de um berço africano para algumas ninfalídeas, até pouco tempo atrás acreditava-se que a subfamília Biblidinae, que tem cerca de 20 espécies na África e na Ásia e mais de 90 por aqui, tivesse surgido por lá e, por algum motivo, se diversificado mais do lado de cá do oceano Atlântico. “Mas não é isso que vemos”, contesta Freitas. Suas análises indicam que as biblidíneas surgiram na América do Sul e depois – há cerca de 30 milhões de anos e outra vez por volta de 25 milhões de anos atrás – invadiram a África, gerando novas linhagens. Nessa época a travessia pela Antártida já não era possível, o que deixa um mistério em aberto. “Talvez o trânsito intercontinental seja mais fácil do que

se imaginava”, reflete, imaginando que borboletas adultas podem ser carregadas por ventos ou por jangadas naturais formadas por galhos, folhas, frutos ou, hoje, lixo. Não é impossível que façam essas longas travessias, afinal borboletas tropicais podem viver até 10 meses. Se uma única família de borboletas tem tantas histórias para contar, é difícil imaginar o que reservam todas as 127 famílias desses insetos voadores, incluindo também as mariposas. Passeios por jardins e florestas brasileiras são uma amostra da imensa variedade de cores esplendorosas, ainda em grande parte inexplorada – segundo Freitas, no Brasil poucos pesquisadores se dedicam a entender como surgiu essa diversidade. Admirar esses insetos vestidos de festa está ao alcance de qualquer pessoa. Uma caminhada pelas trilhas da serra do Japi, uma reserva de Mata Atlântica próxima a Jundiaí, no interior paulista, promete deslumbramento. Sobretudo nos meses de março e abril. ■

> Artigos científicos 1. WAHLBERG, N. et al. Nymphalid butterflies diversify near demise at the Cretaceous/Terciary boundary. Proceedings of the Royal Society, B. v. 276, n. 1.677, p. 4.295-302. 22 dez. 2009. 2. ELIAS, M. et al. Out of the Andes: patterns of diversification in clearwing butterflies. Molecular Ecology. v. 18, n. 8, p. 1.716-29. abr. 2009.

Frente e verso: dois lados de Diaethria clymena

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carlos costa e silva

[ geofísica ]

Quando os homens fazem a terra r e m e r t

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Poços de água causam dezenas de tremores por dia no interior paulista Carlos Fioravanti

Simulação: um hipotético tremor de terra abala a igreja matriz de Bebedouro

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omo fazer a terra tremer mesmo sem tocar em uma banda de rock pesado? Basta perfurar um poço de pelo menos 100 metros de profundidade, deixar encher de água e aguardar. Provavelmente a água vai se infiltrar entre os blocos de rocha abaixo da superfície e precipitar o deslizamento dos que já estavam para se soltar. Como resultado, o chão vai tremer, embora seja impossível prever em que momento e com que intensidade. Dificilmente será algo tão dramático quanto os terremotos recentes no Chile, que deslocaram várias cidades. Mas talvez seja o bastante para causar trincas em paredes de casas, como está acontecendo há alguns anos na região de Bebedouro, norte do estado de São Paulo. Uma equipe do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da Universidade de São Paulo (USP) verificou que tremores pouco intensos se tornaram constantes no distrito de Andes em Bebedouro a partir de janeiro de 2004. Poucos meses antes haviam sido abertos em uma fazenda 10 poços profundos, com 120 a 200 metros, para irrigar plantações de laranja nos meses mais secos. Por meio de 10 estações sismográficas instaladas na região desde 2005, os pesquisadores con­ cluíram que os poços é que estariam causando os cerca de 3 mil tremores registrados nos últimos cinco anos – dois por dia, em média (a maioria na época das chuvas, quando os poços não são bombeados). Os moradores os atribuí­ram inicialmente a explosões em pedreiras, embora não houvesse nenhuma nas proximidades.

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O Projeto Tremores de terra em Bebedouro, SP, induzidos por poços tubulares

modalidade

Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa Co­or­de­na­dor

Marcelo Sousa IAG/USP

de

Assumpção –

investimento

R$ 138.495,60 (FAPESP)

Como chove muito de dezembro a março, os poços não são bombeados e permanecem cheios. “A água pene­ tra mais facilmente entre os blocos de rochas basálticas que formam uma das camadas sob o solo e facilita o desliza­ mento dos blocos que já estavam sob tensão”, diz o geofísico Marcelo Assump­ ção, coordenador da equipe do IAG pro­ curada pelos moradores da região no início de 2005. Os tremores mais fortes chegaram a 2,6 e 2,9 de magnitude, nos dias 11 e 30 de março de 2005. “Tremores de magnitude 2 a 3 nor­ malmente não são sentidos pelas pessoas, mas em Bebedouro isso ocorre porque se originam próximos à superfície, a cerca de 200 metros de profundidade”, diz ele. Os menos intensos são frequen­ tes. Em março de 2005 os equipamentos registraram pelo menos 100 tremores por semana, dos quais 20 a 30 foram sentidos pelos moradores do distrito de Andes. Os abalos mais fortes fazem as casas balançarem e o chão e as janelas vibrarem, provocam trincas em pisos ou paredes, desequilibram quadros e portas e assustam as pessoas. Os sismógrafos indicaram que os tremores podem migrar, como detalha­ do no artigo a ser publicado na revista Water Resources Research. “A cada ano os tremores começam perto dos poços de maior vazão”, diz Assumpção. “Com o tempo os epicentros vão se afastando alguns quilômetros, acompanhando o deslocamento da pressão da água nas camadas mais profundas.” A infiltração de água nas fraturas das rochas pode causar tremores mais intensos nas proximidades dos reser­

vatórios das usinas hidrelétricas. No mundo todo há registros de cerca de 100 terremotos que os especialistas acreditam atribuem a alterações que os reservatórios provocam no solo – o mais sério, associado à construção da barragem de Zipingpu, na Chi­ na, atingiu 7,9 graus e matou 80 mil pessoas em maio de 2008. Um grupo do IAG e da Universidade de Brasília (UnB) identificou 16 hidrelétricas que induziram tremores de terra no Brasil. Sismos de magnitude 4 ocorreram nos anos 1970 nas proximidades dos reser­ vatórios Volta Grande e Marimbondo, ambos no Rio Grande, a menos de 100 quilômetros de Bebedouro. “Os terrenos das áreas norte e nor­ deste do estado de São Paulo apresen­ tam falhas geológicas que propiciam tremores”, diz Tereza Higashi Yamabe, professora aposentada da Universida­ de Estadual Paulista (Unesp) e atual­ mente pesquisadora-colaboradora do IAG que também estuda a região. Em geral, segundo ela, a maioria das centenas de poços da região tem me­ nos de 100 metros de profundidade e vazões menores de 10 metros cúbicos por hora. Não passam das rochas de arenito, que formam a primeira camada rochosa abaixo do solo. Quem precisa de mais água perfura mais fundo, avan­ çando na camada de rochas basálticas, mais espessa e mais compacta que a de rochas areníticas, mas com fraturas que podem estar cheias de água. “Os po­ ços profundos, que causam tremores, permitem que a água que circula nas camadas do arenito desça para camadas mais profundas e empurre as rochas que já estavam sob pressão geológica, prestes a deslizar”, diz Tereza. Audiências - Aos poucos os tremores deixaram de ser fenômenos puramen­ te naturais. Em 2006 e 2007 Tereza e Assumpção compareceram a duas au­ diências públicas no distrito de Andes, convocadas pela Câmara Municipal de Bebedouro. “Explicamos nossa inter­ pretação de que os tremores haviam sido iniciados pela abertura dos poços na Fazenda Aparecida e recomendamos a vedação da parte rasa dos poços para evitar que a água caísse para as cama­ das de basalto, especialmente na época em que os poços não são bombea­dos”, conta Assumpção. Segundo ele, as

con­clusões seguiram para a superin­ tendência do Departamento de Águas e Energia Elétrica (Daee), à prefeitura e à promotoria de Bebedouro, mas não se traduziram em ações que pudessem deter os tremores. “A população que sofria com os tremores queria os po­ ços fechados, mas os vereadores não”, diz ele. “Cada grupo aceitava ou não nossas conclusões, dependendo de seus próprios interesses.” Assumpção conta que o dono da fazenda com os 14 poços profundos não admitia que a origem dos tremores pudesse estar em suas terras. “O responsável pela Saaeb, a empresa de abastecimento de água de Bededouro, tampouco acreditou nas conclusões do estudo.” Encontrar quem conte dos tremo­ res em Bebedouro é uma tarefa ingrata. Ninguém na Fazenda Aparecida fala so­ bre esse assunto. Os técnicos da Saaeb dizem que estão aguardando as decisões do Daee. As consultas à prefeitura de Bebedouro também são infrutíferas. A maioria dos vereadores e das equi­ pes da prefeitura mudou no início de 2009, fazendo dos tremores um proble­ ma da gestão anterior. “Como não há nenhuma lei prevendo essas situações, por enquanto nenhum órgão público tem competência jurídica para obrigar a vedação da parte superior dos poços”, diz Assumpção. Após alguns meses praticamente sem atividades no segundo semes­ tre de 2009, os tremores em Andes voltaram a ocorrer desde meados de dezembro, aumentando de frequên­ cia em março e repetindo o mesmo padrão dos anos anteriores. Não fazer nada e deixar que terminem por si, até as rochas se acomodarem e toda a energia se dissipar, pode ser uma alternativa. O risco é que voltem mais intensos. Tereza lembra que os moradores de Nuporanga, outro caso de tremores disparados por poços, a 80 quilômetros de Bebouro, já haviam se acostumado com as centenas de pequenos sismos de baixa intensidade que sentiam desde 1977, mas se assus­ taram com o tremor de magnitude 3,2 que chegou 12 anos depois.

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> Artigo científico Assumpção, M. et al. Seismic activity triggered by water wells in the Paraná basin, Brazil. Water Resources Research (no prelo). PESQUISA FAPESP 170

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Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org

Notícias n

Ambiente

O estudo “Construção e análise de cenários de paisagem em área do Par­ que Nacional da serra da Bocaina” (foto), de Eunice Reis Batista, da Embrapa Meio Ambiente/Jaguariú­ na, e Rozely Ferreira dos Santos e Marcos Antonio dos Santos, da Universidade Estadual de Campinas, teve por objetivos construir e analisar cenários de paisagem, baseando-se no arcabouço teórico da ecologia de paisagem e utilizando como ferramenta um sistema de informação geográfica. A bacia hidrográfica do rio Mambucaba, importante reduto de floresta ombrófila densa, domínio Atlântico, foi o estudo de caso. A metodo­ logia baseou-se na construção de um cenário hipotético, supondo-se completa ausência de interferência humana, e em um cenário recente, que foram comparados entre si por meio da sobreposição dos respectivos mapas e informações temáticas. As combinações permitiram evidenciar grande variabilidade de ambientes resultante de fatores biofísicos e do uso e ocupação do solo. Foram obtidas 84 unidades terri­ toriais no cenário livre de pressões humanas, evidenciando-se grande complexidade ambiental natural. No cenário com interferências do homem, a paisagem apresentou 111 tipos de unidades territoriais. As vias de acesso foram apontadas pelos pesquisadores como fontes da origem e da distribuição de impactos negativos por toda a paisagem Mambucaba. Os especialistas recomendaram a realização de manejo, visando à recuperação e conservação da área. Revista Árvore – vol. 33 – nº 6 – Viçosa – nov./dez. 2009

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Agrotecnologia

Produção de rosas O trabalho “Produção e qualidade de botões de rosa cv. Vega cultivados sob plásticos de cobertura com diferentes anos de uso”, de José Luis Martins e Maria Angela Fagnani, da Universidade Estadual de Campinas, e Sônia Maria D'stefano Piedade, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo, teve o objetivo

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Amarildo Schemes Bitencourt

Cenários da Bocaina

de avaliar a produção e qualidade de botões de rosa culti­ var Vega (Rosa sp.), cultivada sob cobertura plástica com diferentes anos de uso. Para tanto foram selecionados 15 vãos de estufas com plásticos colocados em 1998, 1999, 2002, 2003, e testemunha (sem uso anterior), com três repetições, avaliados por duas maneiras: na primeira os frutos foram colhidos através de uma poda (como procedi­ mento do cultivo comercial); na segunda foi realizada uma poda rasa em uma área de um metro quadrado para poder acompanhar o crescimento da haste floral desde o início da formação até a fase de botão floral. No primeiro caso foram realizadas quatro coletas ao longo do período do ex­ perimento, nas quais foram colhidas quatro hastes florais por tratamento, totalizando 60 flores por data de coleta. No segundo caso foi avaliado o aparecimento dos botões florais dos novos brotos em quatro datas até a formação das hastes florais comerciais, e então coletadas 13 hastes florais por tratamento. Não houve diferença estatística entre os anos de uso dos plásticos de 1998, 1999, 2002 e 2003 nas variáveis: comprimento, diâmetro e comprimen­ to dos botões florais, massa fresca e seca das pétalas, para as condições e cultivar analisados. Com isso o produtor ganha um período maior de utilização do plástico gerando um custo menor, sem perdas na produção. Ciência e Agrotecnologia – vol. 33 – nº especial – Lavras 2009

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Cardiologia

Dor no pós-operatório A dor no pós-operatório de cirurgia cardíaca é fre­ quente. Existem poucos relatos sobre a sua relação com a função respiratória e o local mais reiteradamente relatado. O objetivo do estudo “A dor interfere na função respira­ tória após cirurgias cardíacas?” foi avaliar a intensidade e a localização da dor durante o período de internação e suas repercussões na função respiratória de pacientes submetidos à cirurgia cardíaca eletiva. A função respira­ tória (volumes pulmonares, força muscular respiratória e pico de fluxo expiratório) foi avaliada nos períodos pré-operatório e pós-operatório (1º, 3º e 5º dia), utilizando os equipamentos ventilômetro, manovacuômetro e medi­ dor de pico de fluxo expiratório. Para mensuração da dor utilizamos a escala visual analógica de dor. O local com maior frequência de dor referida foi o esterno (50% dos pacientes) e sua intensidade foi maior no primeiro dia de

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pós-operatório (8,32 na escala visual analógica). Em todas as variáveis analisadas houve piora dos valores em relação aos obtidos no pré-operatório e não foi observado o re­ torno aos valores pré-operatórios até o quinto dia de pós-operatório em todas as variáveis observadas, com exceção da frequência respiratória. Notou-se a correlação negativa entre a dor e a pressão inspiratória máxima no primeiro dia de pós-operatório. A dor pós-operatória diminuiu a função respiratória nos pacientes avaliados, prejudicando a realização de inspirações profundas, principalmente no primeiro dia de pós-operatório. Participaram do trabalho Ana Beatriz Sasseron, Luciana Castilho de Figueiredo, Núbia Maria Freire Vieira Lima e Orlando Petrucci, da Universidade Estadual de Campinas, Kerolin Trova, da Uniararas, Andréa Luciana Cardoso, da Universidade Metodista de Piracicaba, e Sarita Colasanto Olmos, da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto.

Allain e Clélia Maria Nascimento-Schulze, da Universidade Federal de Santa Catarina, teve como objetivo verificar o impacto de uma exposição científica sobre transgênicos nas representações sociais desse objeto de alunos do ensino médio de uma escola pública de Florianópolis. Os resul­ tados mostram que a exposição científica pode ajudar na formação de representações úteis ao processo de reflexão sobre a relação entre ciência e sociedade. Psicologia: Teoria e Pesquisa – vol. 25 – nº 4 – Brasília – out./dez. 2009

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Caça aos barbeiros

Revista Brasileira de Cirurgia Cardiovascular – vol. 24 – nº 4 – São José do Rio Preto – out./dez. 2009

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Educação

Educar em Revista – nº 35 – Curitiba 2009

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Divulgação científica

Os transgênicos e a sociedade Os transgênicos têm sido frequentemente apontados como um exemplo na discussão da relação entre ciência, tecnologia e sociedade. Muitos países, incluindo o Brasil, têm apostado na atividade da divulgação científica para auxiliar a se pensar essa relação. A teoria das representações sociais pertence a uma tradição que estuda a divulgação científica desde a década de 60 do século XX. A pesquisa “A formação de representações sociais de transgênicos: a importância da exposição científica”, de Juliana Mezzomo

www.educhagas.com.ar

Políticas públicas e ensino No artigo “Propostas alternativas de construção de po­ líticas públicas em educação: novas esperanças de solução para velhos problemas?”, de Salete Campos de Moraes, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, discute-se a possibilidade de construção de políticas públi­ cas alternativas no campo da educação, não apenas como proposições teóricas, mas também aquelas construídas na perspectiva oposta à da tradição brasileira, qual seja, a de verticalização das relações entre Estado e sociedade civil. Ainda que se considerem os recuos, obstáculos e entraves que caracterizam as mudanças de paradigmas em políticas públicas educacionais, é de se ressaltar que, nos últimos anos, tem-se construído, em várias cidades do país, novas formas de fazer política pública em educação, constata a pesquisadora. Tais experiências refletem projetos que tra­ zem consigo a concepção de democratização das relações entre Estado e sociedade, e podem representar novas es­ peranças de solução para velhos problemas.

Medicina tropical

Do ponto de vista epidemiológico são conhecidas mais de 120 espécies de triatomíneos, os insetos conhecidos po­ pularmente como barbeiros. A ocorrência e a positividade de Trypanosoma cruzi em triatomíneos de 16 municípios do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba foram avaliadas de janeiro de 2002 a dezembro de 2004. Os triatomíneos foram capturados seguindo basicamente as normas clássicas da Fundação Nacional de Saúde. Durante o período de estudo foram capturados 990 exemplares, sendo que 771 destes estavam em condições de serem examinados. Cinco espécies foram identificadas: Triatoma sórdida (foto), Panstrongylus diasi, Panstrongylus megistus, Panstrongylus geniculatus e Rhodnius neglectus. O T. sordida representou 71,5% de todos os triatomíneos capturados, seguido por P. megistus (18%), R. neglectus (9,3%), P. diasi (0,8%) e P. geniculatus (0,4%). Dos examina­ dos, 2,7% foram positivos para T. cruzi. P. megistus foi a espécie que apresentou a maior taxa de infec­ ção (8,3%), seguida pelo R. neglectus (2,9%) e T. sordida (1,4%). De acordo com os pesquisadores, há necessidade de se adequar às novas circunstâncias epidemiológicas com ênfase na vigilância entomológica, uma vez que o potencial de adaptação de espécies secundárias de triatomíneos, em áreas onde a doença de Chagas está controlada, é uma pre­ ocupação. O trabalho está descrito no artigo “Ocorrência e positividade para Trypanosoma cruzi em triatomíneos de municípios da Região Sudeste do Brasil, de 2002 a 2004”, de Márcia Beatriz Cardoso de Paula, Jean Ezequiel Limongi e Adalberto de Albuquerque Pajuaba Neto, do Centro de Controle de Zoonoses de Uberlândia, Idessânia Nazareth da Costa, Paula de Albuquerque Freitas, Rogério de Melo Costa Pinto, Ana Lúcia Ribeiro Gonçalves e Julia Maria CostaCruz, da Universidade Federal de Uberlândia. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical – vol. 43 – nº 1 – Uberaba – jan./fev. 2010

> O link para a íntegra dos artigos citados nestas páginas estão dis­po­ níveis no site de Pesquisa Fapesp, www.revistapesquisa.fapesp.br

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IBM

LINHA DE PRODUÇÃO MUNDO

AVALANCHE NANOFOTÔNICA

EDUARDO CESAR

Um dispositivo chamado de célula nanofotônica de avalanche, desenvolvido por pesquisadores da IBM, poderá ser um elemento-chave para integrar a tecnologia de silício a sinais ópticos infravermelhos, o que pode representar no futuro a substituição dos sinais elétricos dos fios de cobre por circuitos de silício nos chips que se comunicam por meio de pulsos de luz. Quando essa mudança ocorrer, haverá tanto um ganho de velocidade para os computadores como na eficiência da energia utilizada. Para isso, os pesquisadores usaram uma célula fotoelétrica de germânio, um semicondutor utilizado na fabricação de processadores de computador, capaz de detectar sinais de baixa potência óptica a uma velocidade muita alta. O efeito avalanche do Arranjo nanofotônico sobre chip de silício germânio começa com um pulso de luz que libera elétrons, que por sua vez vão liberando outros, fazendo o sinal original se tornar enormemente amplificado. A célula fotoelétrica é capaz de a água. Quando o dióxido receber sinais de informação óptica a 40 Gbps (gigabits por de carbono é adicionado, segundo). Em relação a outros protótipos de fotodetectores o solvente torna-se anteriormente desenvolvidos, os pesquisadores conseguiram hidrofílico, o que significa reduzir em 70% o ruído da amplificação por meio de um afinidade com a água. Assim, quando a água carbonatada trabalho de engenharia e nanofotônica.

GÁS POLUENTE EXTRAI ÓLEO O dióxido de carbono, um gás que contribui para o aquecimento global, misturado a um solvente seletivo forma a base de um novo método desenvolvido pelo professor Philip Jessop, da Universidade Queen, do Canadá, para obtenção de óleo de soja para fins culinários. O solvente escolhido para o processo é hidrofóbico, ou seja, repele 64

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– resultado da união do dióxido de carbono e água – é adicionada à mistura de solvente e soja, o óleo é extraído. Quando o dióxido de carbono é removido, o solvente volta ao seu estado hidrofóbico. Dessa forma, tanto a água como o solvente podem ser usados novamente. Para extrair o óleo, as indústrias usam o solvente hexano no processo de destilação, que requer grande quantidade de energia. O grande ganho do novo método, publicado na revista Green Chemistry, é que ele é feito sem energia.

ÔNIBUS COM EMISSÃO ZERO Durante os Jogos Olímpicos de Inverno de 2010, em fevereiro, a cidade anfitriã, Vancouver, no Canadá, passou a contar com 20 ônibus movidos a hidrogênio. Inicialmente servindo a competição como veículos de demonstração com emissão zero de poluentes, com o fim das provas eles passaram a integrar as linhas de transporte urbano. Os ônibus são operados pela empresa estatal BC Transit e funcionam com células a combustível, equipamentos que transformam o hidrogênio armazenado em tanques e o oxigênio do ar em energia elétrica. As células foram fabricadas pela empresa canadense Ballard, o sistema de direção pela norte-americana ISE e o chassi pela New Flyer, dos Estados Unidos. Um ônibus igual passou a rodar, em março, na cidade de Thousand Palms, na Califórnia. É operado pela empresa Sunline Transit.

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A maior parte dos polímeros – materiais feitos de longas cadeias de moléculas – são bons isolantes, tanto de calor como de eletricidade. Mas um grupo de pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), liderados por Chen Gang, encontrou uma maneira de transformar o polietileno, um polímero bastante utilizado para várias aplicações, em um material que conduz calor tão bem como a maioria dos metais, mas no entanto continua a ser um isolante elétrico. O novo processo faz com que o polímero conduza o calor de forma muito eficiente em apenas uma direção, diferentemente dos metais,

que conduzem igualmente bem em todas as direções. Isso permitirá que o novo material seja especialmente útil em aplicações em que é preciso tirar o calor de um objeto, como em um chip de computador. O trabalho está descrito na edição de 7 de março da revista Nature Nanotechnology. O arranjo polimérico que utiliza apenas um caminho de condutividade térmica começa com o desenho de fios finos de polietileno a partir de uma solução líquida em um microscópio de força atômica, que também foi usado para medir as propriedades da fibra resultante. A fibra obtida é cerca de 300 vezes mais condutora termicamente do que um polietileno normal.

Mais pontos para o etanol Um estudo realizado nos Estados Unidos vem comprovar mais uma vez a eficiência do etanol em reduzir emissões de hidrocarbonetos e monóxido de carbono. Agora a pesquisa foi realizada pelo Centro para Integração de Estudos de Manufatura do Instituto de Tecnologia de Rochester. O foco dos pesquisadores foi a mistura de 20% de etanol na gasolina, chamada de E20, combinação já utilizada há muitos anos no Brasil. Essa mistura proporciona uma redução de 20% nas emissões de poluentes se comparada com gasolinas E10 mais comuns nos postos daquele país. Publicado no Journal of Automobile Engineering, o estudo vai contribuir para a Agência de Proteção Ambiental na elaboração de um programa federal de combustíveis renováveis. As estimativas indicam que esse programa deve aumentar o consumo dessa mistura de 34 bilhões de litros em 2008 para 136 bilhões em 2022.

Ilustração Chen Gang/MIT

Polímero conduz calor

Fios finos de polímero no caminho da condutividade

Bactérias do biodiesel A aposta no uso de microrganismos para melhorar a produção de biocombustíveis está em alta. Frequentemente surgem estudos com esse tema. O último reuniu pesquisadores de um ramo acadêmico inusitado para a área energética, como o Centro de Doenças Infecciosas e Vacinologia do Instituto de Biodesign da Universidade do Estado do Arizona. Eles desenvolveram uma cepa de cianobactéria, que possui cor azulada e capacidade de fazer fotossíntese, do gênero Synechocystis, para produzir ácidos graxos, substâncias gordurosas presentes em óleos, de soja, amendoim, dendê, que são a principal matéria-prima na produção de biodiesel. Os pesquisadores conseguiram retirar esses ácidos sem destruir a bactéria por meio da introdução de genes no DNA desses microrganismos para a produção de uma enzima

chamada tioesterase. Ela facilita a secreção dos ácidos pela bactéria através da membrana celular. Os pesquisadores liderados pelo professor Xinyao Liu também introduziram modificações genéticas, ao longo de sucessivas gerações de cianobactérias, com adição de novos genes para provocar uma superprodução de ácidos graxos, além de eliminar estruturas celulares que não são essenciais para a sobrevivência da bactéria. O trabalho foi publicado na revista científica Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS) e os pesquisadores acreditam que as cianobactérias geneticamente modificadas são uma tecnologia promissora para a produção de biodiesel porque podem ser bem competitivas. Atualmente para produzir biodiesel é necessário cultivar plantas oleaginosas e depois fazer a extração do óleo por meio de solventes, além do alto gasto de energia elétrica.

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wilson dias/agência brasil

linha de produção brasil

Barcos movidos a energia solar

Para reverter ou pelo menos atenuar o impacto que a impermeabilização do solo gera na cidade, pesquisadores da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) desenvolveram um método construtivo para reter a água da chuva, fazendo com que ela seja escoada mais lentamente para córregos e rios. “Utilizamos materiais que já existem no mercado, como blocos de concreto e asfalto, mas do tipo poroso, e agregamos uma base de pedras que serve para sustentar o tráfego dos veículos”, diz o professor José Rodolfo Scarati Martins, do Departamento de Engenharia Hidráulica e Sanitária, que coordena a pesquisa. A água fica armazenada na base desse pavimento e 66

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Cidade Universitária.

Nanossensor de gases
 Um sensor de gases de tamanho nanométrico foi concebido no Centro de Componentes Semicondutores e no Instituto de Física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ele é formado por nanotubos de carbono decorados com nanopartículas de titânio que fazem a interação química com gases específicos como o

oxigênio, além de interagir sob pressão com o nitrogênio e o argônio. O nanossensor detecta pequenas quantidades de gases com baixo consumo de energia, da ordem de microwatts. Coordenado pelo pesquisador Stanislav Moshkalev, o trabalho foi tema do pós-doutorado, com financiamento da FAPESP, do físico Rogério Valentim Gelamo. O sensor poderá ser útil em ambientes que não podem ter a presença de oxigênio.

CCS/Unicamp

Piso poroso reduz enchentes

Movimentar pequenas embarcações que cortam os rios e igarapés amazônicos por meio da energia solar é a proposta de um projeto desenvolvido pela empresa K2C Serviço de Consultoria, que atua na área de planejamento florestal, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam) e da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). “Só para pesquisas de campo navegamos em alguns casos até quatro dias e nem sempre é fácil obter gasolina, que na Tipo de embarcação que vai receber painéis solares região custa cerca de R$ 3,20 o litro”, diz o engenheiro florestal Carlos Gabriel Koury, que coordena a pesquisa. A lentamente vai saindo através energia solar é captada por um painel fotovoltaico instalado de drenos para as galerias na cobertura da embarcação, chamada de voadeira. Como pluviais. O piso de concreto na região chove muito, se necessário serão acionadas as poroso, que recebeu baterias programadas para ficar embaixo dos bancos. “A alguns aditivos durante nossa proposta é que esse sistema híbrido seja utilizado a sua fabricação para ficar para quem usa voadeiras diariamente, como professores, permeável, está sendo testado agentes da saúde, agentes ambientais, porque a placa solar custa cerca de R$ 12 mil”, diz Koury. em um estacionamento da

Nanopartículas de titânio sobre nanotubo

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Oficina itinerante do Museu de Ciências da Unicamp

A premiação será feita de acordo com as categorias inscritas: Fundamental I (6o e 7o anos), Fundamental II (8o e 9o anos), Ensino Médio e Categoria Livre. Em 2009, com apoio do Instituto Sangari, os vencedores ganharam livros e kits de ciência. Após a final, as equipes visitaram centros e museus de ciência do estado de São Paulo.

Cana mais resistente Testadas em diferentes ambientes de produção de regiões canavieiras, 13 novas variedades de cana-de-açúcar foram liberadas para plantio pela Rede Universitária para o Desenvolvimento do Setor Sucroalcooleiro (Ridesa), formada por

10 universidades federais. Adaptadas a climas específicos de diversas regiões de cultivo do país, duas delas, por exemplo, são mais rústicas e tolerantes a estresses hídricos. Outra é mais precoce e rica em açúcar. As novas variedades também são resistentes à praga “ferrugem alaranjada”, causada por um fungo que afeta as folhas da planta.

Marcos Antônio Drumond/Embrapa Semiárido

Projetar, construir e operar um equipamento capaz de extrair petróleo das camadas de pré-sal é o desafio lançado este ano pelo Museu Exploratório de Ciências da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). As inscrições para participar do 4o Grande Desafio começaram no dia 9 de março e vão até 13 de junho e podem ser feitas pelo endereço eletrônico <http://www.mc.unicamp.br>. Até o dia da apresentação final, em 27 de junho, no Ginásio Multidisciplinar da Unicamp, os participantes poderão contar com amplo apoio da equipe do Museu Exploratório de Ciências, incluindo a possibilidade de testar o equipamento na arena oficial e oficinas para orientadores de equipe.

eduardo cesar

Desafio para o pré-sal

Pinhão-manso mais produtivo Uma variedade de pinhão-manso (Jatropha curcas) altamente produtiva, com rendimento de 3.800 kg de semente por hectare, o que representa mil litros de um óleo bastante cotado para a produção de biodiesel, foi obtida por meio de seleção feita pelo pesquisador Marcos Antonio Drumond, da Embrapa Semiárido, unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária em Petrolina, Pernambuco. “A grande limitação hoje para uso do vegetal como biodiesel é o sistema de produção, economicamente inviável”, diz. Quando conheceu uma variedade que não era nativa do semiárido, mas tinha muito potencial de produção, começou a propagar mudas e a realizar ensaios em diversos lugares. Desde 2005 dedica-se à seleção das melhores plantas. No primeiro ano, sem irrigação, conseguiu colher 300 kg de semente por hectare. No ano seguinte, após irrigação controlada, a colheita foi de 1.200 kg. “Com a seleção das melhores, conseguimos 3.200 kg no segundo ano”, diz. Com a poda das plantas e irrigação durante a produção dos frutos, a colheita atingiu 3.800 kg por hectare.

Colheita de 3.800 kg por hectare e mil litros de biodiesel

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tecnologia

Eduardo Cesar

Anticorpos de valor

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[ química ]

Empresas e institutos produzem no Brasil insumos essenciais para a pesquisa Yuri Vasconcelos

Na Rheabiotech, purificação de anticorpos monoclonais

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ão foi nada fácil para a bioquímica Fer­ nanda Alvarez Rojas realizar seus experi­ mentos e concluir o doutorado em ciên­ cias médicas na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) rea­lizado entre 1998 e 2001. A pesquisadora dedicou-se ao estudo de modelos animais para uso em laboratório em pesquisas sobre resistência à insulina. Fazia parte do estudo a execução de ex­ perimentos com uso de anticorpos, componentes essenciais para kits de diagnóstico e novos medica­ mentos. Na essência, os anticorpos são moléculas produzidas pelo sistema imune para combater doen­ças e têm sido empregados em trabalhos cien­ tíficos para a determinação de características dos antígenos, partículas presentes nas células invaso­ ras que induzem a resposta imune do organismo. O problema é que o Brasil não fabricava esse produto, que precisava – e ainda precisa – ser importado. Aí residia o calvário de Fernanda – e de muitos ou­ tros pesquisadores pelo país afora. “Os anticorpos eram encomendados e demoravam muito para chegar, atrasando as pesquisas. Além disso, quando chegavam muitos estavam com prazo de validade vencido ou estragados por problemas de acondi­ cionamento no transporte”, recorda-se Fernanda. “Numa ocasião, fiz 50 experimentos e só aproveitei quatro. Era muito desperdício de tempo e dinhei­ ro.” Episódios como esse fizeram Fernanda, depois de concluída a pós-graduação, cogitar a ideia de ela mesma produzir anticorpos para suas pesqui­ sas e de seus colegas na academia. A bioquímica associou-se a duas colegas – a enfermeira Eliana Araújo e a farmacêutica Ales­ sandra Gasparetti – e criou, em 2004, a Imuny Bio­ technology, em Campinas, interior de São Paulo, para produzir e comercializar anticorpos. A partir daquele ano a empresa contou com apoio financeiro da FAPESP por meio do programa Pesquisa Inova­ tiva em Pequenas Empresas (Pipe). Quatro anos de­ pois, Fernanda fundou, com o biólogo Luís Antônio Peroni, a Rheabiotech, uma spin-off da Imuny, que passou a produzir também kits para diagnóstico, deixando para a empresa-mãe a atividade comercial dos insumos biotecnológicos. Mais uma vez os pes­ quisadores contaram com um projeto Pipe, agora para desenvolver kits para a área agrícola. Um dos primeiros produtos da Rheabiotech é o Soja Detecta, para detecção precoce da ferru­ gem asiática de soja, doença causada pelo fungo Phakopsora pachyrhizi, que gera grande prejuízo para os agricultores. Ele foi desenvolvido com apoio técnico da Bayer CropScience, que forne­ ceu folhas infectadas para testes em laboratório, e se encontra em testes de validação de cam­ po. O kit utiliza um soro contendo anticorpos capazes de detectar a presença do fungo na plan­ ta. Para isso é preciso fazer um macerado de fo­ pESQUISA FAPESP 170

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Biorreator para a produção de anticorpos monoclonais

lhas de soja e aplicá-lo em um papel especial. Em seguida, esse papel com as amostras das folhas é colocado em contato com reagentes contendo os anticorpos. Caso exista presença do fungo no material, o papel adquire uma coloração avermelhada. Com 300 anticorpos diferentes, a Rheabiotech faturou no ano passado, ainda sem uma estratégia comercial, R$ 30 mil e prevê elevar sua receita para R$ 150 mil este ano. Para tanto, a em­ presa aposta no desenvolvimento de novos produtos, entre eles um kit em parceria com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), para a detecção de salmonelose suí­ na nos frigoríficos, além de dois kits para o setor de cítricos e outro para diagnóstico e prognóstico de doenças autoimunes, inflamatórias e alguns tipos de câncer. Esse último produto está sendo desenvolvido com o apoio financeiro do Programa de Subvenção 2009 da Financiadora de Estudos e Pro­ jetos (Finep) do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). Dois anos após sua criação, a Rhea­ biotech faz parte de um seleto e reduzi­ do grupo de empresas de base tecnoló­ gica – que se contam nos dedos de uma mão – especializadas na produção de anticorpos, kits de diagnóstico e outros insumos biotecnológicos destinados à pesquisa básica, à detecção de doenças humanas, animais e vegetais. “O mer­ cado nacional depende fortemente da 70

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importação de anticorpos. Diria que 99% desses insumos, fundamentais para diagnóstico de doenças e reali­ zação de pesquisas científicas, vêm do exterior”, afirma o médico Fernando Kreutz, sócio da FK Biotecnologia, empresa gaúcha pioneira do setor. Se­ gundo ele, o mercado nacional de rea­ gentes para diagnósticos, que inclui os anticorpos usados para pesquisa e detecção de doenças, gira em torno de R$ 1,2 bilhão, enquanto o de anticor­ pos de uso terapêutico ficou em R$ 1,8 bilhão em 2009. “É estratégico para o país ter uma indústria sólida desses in­ sumos e, assim, reduzir a dependência da importação de anticorpos e kits de diagnóstico”, diz Kreutz. Uso terapêutico - Criada em 1999, a

FK Biotecnologia, com sede em Porto Alegre, já colocou no mercado mais de 150 anticorpos monoclonais para pesquisa acadêmica e investe na pes­ quisa e desenvolvimento de anticorpos de uso terapêutico para tratamento de câncer. Esses são anticorpos especial­ mente desenvolvidos para combate a doenças. É um mercado ainda imaturo, com aproximadamente 20 anticorpos aprovados para uso terapêutico pela Food and Drug Administration (FDA), agência norte-americana que regula o setor de medicamentos. O faturamento do setor é de aproximadamente US$ 15 bilhões e quase a metade desse valor vem da venda de oito anticorpos na

área de oncologia. Segundo o Minis­ tério da Saúde, o país gastou em 2009 R$ 389,8 milhões apenas com quatro desses medicamentos. No Brasil, outra empresa que atua nesse segmento é a paulista Recepta Biopharma (ver Pes­ quisa FAPESP no 137). A FK investe também em outro seg­ mento que utiliza os anticorpos como matéria-prima, o de kits de diagnóstico. No início de 2010, a FK em parceria com a empresa Lifemed, de São Paulo, obteve registro na Agência Nacional de Vigilân­ cia Sanitária (Anvisa) de quatro novos produtos. Ainda no primeiro semestre deste ano a empresa deve lançar três kits de diagnóstico HCG, sigla de gonado­ trofina coriônica humana, o hormônio que indica pela dosagem se a mulher está grávida ou não. Os kits possuem anticorpos monoclonais que detectam o HCG secretado em grande quantidade no início da gravidez. Com os novos kits, ele espera elevar seu faturamento para R$ 10 milhões, cinco vezes o obtido em 2009. “Até o ano passado, nossa produção era limitada a anticorpos para uso em pesquisa. A partir de 2010 daremos um salto expressivo com os kits de diagnós­ tico. Agora seremos capazes de competir com os grandes fornecedores mundiais”, diz Kreutz. Os novos kits serão vendidos em farmácia e devem ser exportados para África e Oriente Médio. O biólogo imunologista Sandro Gomes Soares, diretor-executivo da Invent Biotecnologia, empresa insta­ lada na Supera, a incubadora de em­ presas de base tecnológica localizada no campus da Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto, no interior paulista, tem opinião parecida com a de Kreutz. Para ele, é fundamental que o país domine as técnicas de produção de anticorpos em larga escala, além de investir em pesquisa e desenvolvimento visando à criação de uma nova geração de anticorpos com a aplicação de téc­ nicas de DNA recombinante. Nessa técnica, por meio de processos biotec­

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Embalagem com anticorpos para o mercado nacional e internacional

especificidade. Eles podem ser produ­ zidos de maneira contínua e reagem apenas contra uma porção do antígeno, ou seja, um único epítopo. Já os anti­ corpos policlonais são produzidos em mamíferos – coelhos, camundongos, equinos, bovinos, ovinos – ou em aves, normalmente galinhas. Ao ser imuniza­ do, o animal fabrica enorme variedade de anticorpos contra diferentes porções do antígeno, porque eles se originaram de diferentes linfócitos B. Seu processo de produção é relativamente mais sim­ ples e o custo, inferior – enquanto um mililitro de anticorpos policlonais custa por volta de R$ 800, 150 microgramas ficam em R$ 1.500. Em contrapartida, a utilização dos policlonais é limitada a

CélulaB/UFRGS

Resposta fisiológica - Os anticorpos também são empregados como ferra­ mentas biotecnológicas convencionais nos testes Elisa e Western Blot, para quantificar e localizar proteínas de in­ teresse do pesquisador. Do ponto de vis­ ta fisiológico, anticorpos são moléculas de proteínas produzidas como respos­ ta à entrada de substâncias estranhas no organismo, como vírus, bactérias ou células tumorais. Produzidos e se­ cretados por células do nosso sistema imune conhecidas como linfócitos B, os anticorpos são capazes de reconhecer um alvo específico, o antígeno, presente nas células da substância invasora. Cada anticorpo possui dois locais, chamados de parátopos, que se ligam a uma parte específica do antígeno, o epítopo. Numa linguagem figurada, o anticorpo seria a chave e o antígeno, a fechadura. Quan­ do o anticorpo “se encaixa” no antígeno tem início uma ação imunológica para neutralizar o organismo invasor. Testar esses mecanismos é fundamental na pesquisa biotecnológica. Os anticorpos podem ser divididos em monoclonais e policlonais. Os pri­ meiros são produzidos em laboratório a partir de uma população de células derivadas de um único linfócito B, célula do sistema imunológico que faz todos os anticorpos apresentarem uma única

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nológicos, um gene que produz deter­ minado anticorpo é inserido ou codi­ ficado no genoma de um organismo. “Precisamos dar um salto em direção a produtos inovadores, maior do que as indústrias farmacêuticas nacionais têm dado”, aponta Soares.

Corte de intestino de carrapato mostra anticorpos monoclonais, em pontos azuis, em ação contra uma proteína

alguns procedimentos, como a composi­ ção de kits para diagnósticos e uso como ferramenta de pesquisa acadêmica. Os anticorpos monoclonais são produzidos por técnicas mais refina­ das, demandam um período mais longo de conclusão e possuem elevado custo de produção. Suas aplicações são mais amplas, podendo ser utilizados também para fins terapêuticos. “Por serem mais específicos, os anticorpos monoclonais são empregados preferencialmente nas pesquisas de diagnósticos e terapêuticas eficazes contra certas patologias”, expli­ ca Fernanda. “Mas, por sua capacidade de reconhecer e se ligar a antígenos de­ terminados – proteicos, glicoproteicos, lipoproteicos ou ainda carboidratos, ácidos nucleicos e lipídios –, eles tam­ bém podem ser utilizados com eficiência em pesquisa no estudo de proteínas por meio de ensaios imunológicos.” Ao contrário da Rheabiotech, que almeja ser uma fabricante de anticor­ pos em larga escala, o Célula B, um ser­ viço de extensão da Universidade Fe­ deral do Rio Grande do Sul (UFRGS), é especializado na produção sob en­ comenda de anticorpos monoclonais e soros policlonais feitos em coelhos, camundongos e galinhas. Seus prin­ cipais clientes são pesquisadores de universidades e institutos de pesqui­ sa, entre eles Unicamp, Embrapa e o Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da pESQUISA FAPESP 170

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Efeito fluorescente da ação de anticorpos em substância ligada à hipertensão

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Os Projetos 1. Produção de anticorpos policlonais - nº 03/13387-9 2. Desenvolvimento de kits diagnósticos para fitopatógenos de importância para agricultura nº 08/53621-4 3. Produção e purificação de anticorpos policlonais em escala piloto a partir de ovos de galinha nº 05/00705-8 4. Anticorpos conformação específica: proposta para geração de anticorpos dirigidos e receptores acoplados à proteína G (GPCRS) - nº 04/14258-0 5. Nova estratégia molecular para o diagnóstico de câncer: anticorpos conformação específica nº 08/01470-2

modalidade

Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) Co­or­de­na­dores

1. Fernanda Alvarez Rojas – Rheabiotech 2. Luís Antônio Peroni – Rheabiotech 3. Sandro Gomes Soares – Invent 4 e 5. Andrea Sterman Heimann – Proteimax investimento

1. R$ 386.454,14 e US$ 17.030,05 (FAPESP) 2. R$ 233.358,98 e US$ 60.833,30 (FAPESP) 3. R$ 145.713,69 e US$ 94.578,48 (FAPESP) 4. R$ 186.485,31 e US$ 139.159,44 (FAPESP) 5. R$ 35.608,00 e US$ 12.800,00 (FAPESP)

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USP. “Nosso objetivo não é produzir anticorpos em escala industrial, mas desenvolver pequenos volumes de so­ ros que não são encontrados comer­ cialmente. Eles são requisitados por pesquisadores que estão trabalhando com a caracterização de uma proteína nova, sem que exista anticorpo para ela. O usuário nos fornece a proteína e nós produzimos o anticorpo em pequena escala para atender suas necessidades”, diz o veterinário Itabajara da Silva Vaz Júnior, coordenador do Célula B. Os anticorpos da UFRGS têm si­ do empregados para a realização de pesquisas em oncologia, bioquímica, imunologia, genética molecular, bio­ logia molecular, citologia, histologia e fisiologia. “Podemos aplicar um anti­ corpo, que sabemos que reage contra determinada proteína, em um culti­ vo celular, tecidos de animais ou até mesmo no animal inteiro, e observar o seu efeito na fisiologia. Ele bloqueia a função? Atrapalha o crescimento? Além disso, nossos anticorpos também po­ dem ser usados para testar a presença de uma proteína em diferentes tecidos de um animal e, assim, mostrar em que tecidos ou órgãos essa proteína é ex­ pressa”, destaca. O serviço Célula B foi iniciado em 2003 a partir de um edital da Finep que visava financiar projetos de pesquisa e produção de anticorpos monoclonais e policlonais. Outra área de atuação do serviço é a avaliação de reagentes e componentes imunológicos e o treinamento de técnicos de institui­ ções de pesquisa e empresas. Ainda na esfera pública, uma das primeiras instituições a se dedicar ao desenvolvimento de anticorpos foi a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz),

com o Laboratório de Anticorpos Mo­ noclonais de Bio-Manguinhos, no Rio de Janeiro. “Desde 1983, ele tem desen­ volvido anticorpos monoclonais para fins de pesquisa e diagnóstico contra antígenos específicos de interesse para a saúde pública como hepatite A, B e C, leptospirose e febre amarela”, diz Márcia Arissawa, gerente do laboratório. Segun­ do ela, diante do aumento da demanda por anticorpos monoclonais e busca de novos segmentos de uso desses compo­ nentes, recentemente uma nova área foi construída para abrigar o laboratório que também ganhou novos equipamen­ tos. A nova estrutura física comporta salas especiais com baixíssima concen­ tração de partículas em suspensão que poderão ser usadas para produção de lotes de anticorpos monoclonais. Purificação essencial - Formular es­

tratégias de produção e desenvolvimento de moléculas e vetores para fins terapêu­ ticos, além de fabricar anticorpos, são os dois focos de ação da Invent Biotecnolo­ gia, que também recebe apoio por meio do Pipe da FAPESP. “Dentre os produtos em estágio mais avançado de desenvolvi­ mento na empresa está a criação de uma nova estratégia de purificação de anti­ corpos policlonais em aves”, diz Sandro Soares. A vantagem no uso das aves em relação aos mamíferos para a produção de anticorpos já é conhecida. É possí­ vel extrair anticorpos dos ovos em uma quantidade muito maior do que do soro, de forma não invasiva e com desgaste quase nulo do animal. Segundo Soares, enquanto uma ave é capaz de produzir 30 gramas de anticorpos por ano, um coelho produz apenas 2,5 gramas. A produção de anticorpos em aves, no entanto, é comprometida pela pre­ sença de resíduos lipídicos (gorduras) provenientes da gema dos ovos, onde os anticorpos se concentram, quando se aplicam as técnicas de purificação convencionais. “A Invent direcionou seus esforços para desenvolver uma es­ tratégia de purificação com alta taxa de recuperação e elevado grau de pureza.

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Corte de coração de rato sob efeito de anticorpos. Ao lado, teste Elisa

Exportação com produtos inovadores e domínio do processo de produção em escala industrial teína de sua linha de pesquisa”, afirma Luiz Augusto Pinto, sócio da empresa que tem entre seus clientes a Universi­ dade Federal de Minas Gerais (UFMG), o Centro de Desenvolvimento da Tec­ nologia Nuclear (CDTN), vinculado ao MCT, e a Fundação Oswaldo Cruz. Para a área industrial, a Bioaptus oferece soluções para o desenvolvimen­ to de produtos e métodos analíticos, sendo que seus principais clientes são as indústrias de kit de diagnóstico in vitro para medicina laboratorial e as in­ dústrias de vacinas animais e humanas. Instalada na incubadora de empresas Inova, da UFMG, a Bioaptus faturou no ano passado R$ 200 mil e espera au­ mentar sua receita em 300% em 2010. No próximo ano, a meta é atingir um fa­ turamento de R$ 4 milhões com a venda do Anfitech, que, segundo Luiz Augusto Pinto, é uma alternativa aos anticorpos atualmente importados de outros paí­ Eduardo Cesar

Como resultado, estabelecemos uma metodologia de baixo custo e um pro­ cesso escalonável para produção des­ tinada à indústria.” Agora a empresa está trabalhando no desenvolvimento de um kit comercial de purificação de anticorpos e na criação de um setor de serviços para atender a comunidade acadêmica. “Focamos no escalona­ mento de processos de purificação de anticorpos e produção de proteínas. Se não dominarmos o processo de produ­ ção em escala industrial, não seremos competitivos como as empresas inter­ nacionais”, diz Soares. Em Minas Gerais, apesar do pouco tempo de existência, a Bioaptus, criada em 2009, já colhe os frutos do lança­ mento do Anfitech, nome comercial de um anticorpo sintético, formado por uma molécula orgânica, desenvolvida pela empresa sem o emprego de células ou imunização de animais. Destinada ao uso em diagnóstico e tratamento de doenças, essa nova plataforma tecnoló­ gica já é usada por dezenas de clientes dos setores agropecuário, farmacêutico humano e veterinário e de medicina laboratorial. “Desenvolvido para apre­ sentar alta afinidade e especificidade para uma molécula alvo, o Anfitech é uma inovação para a área de pesquisa em biociências. O pesquisador pode encomendar um anticorpo Anfitech específico para uma determinada pro­

ses. A empresa já iniciou negociações para fechar contratos com interessados nos Estados Unidos e Europa. O mercado internacional, por sinal, é uma importante fonte de receita para a Proteimax, empresa de biotecnologia com sede em Cotia, na Grande São Pau­ lo. Vinte e dois por cento de seu fatura­ mento em 2009, de R$ 200 mil, veio da venda de anticorpos policlonais produ­ zidos em coelhos, ratos, camundongos e porquinhos-da-índia para o exterior. “Nossa principal linha de pesquisa é dirigida a uma classe de proteínas cha­ mada de receptores acoplados à proteína G, conhecidos pela sigla GPCR. São, ao todo, 70 anticorpos que formam a base da nossa plataforma de identificação de novos compostos com potencial tera­ pêutico”, diz a pesquisadora molecular Andrea Sterman Heimann, diretora da empresa que também possui dois pro­ jetos do Pipe. Por meio da ativação ou bloqueio desses receptores é que muitas drogas agem. As proteínas G fazem a comunicação entre o meio extracelular e o meio intracelular, permitindo ou não que um fármaco tenha o seu efeito num determinado órgão do corpo. Atualmen­ te, cerca de 50% dos medicamentos mais utilizados no mundo atuam direta ou indiretamente ativando ou bloqueando os receptores do tipo GPCR. Andrea concorda com a ideia de es­ timular o surgimento de uma indústria brasileira forte voltada para a produ­ ção de insumos para a pesquisa, mas acredita que ela não deva estar focada na substituição de importação, mas, sim, no desenvolvimento de produtos inovadores e competitivos no merca­ do mundial. Segundo ela, o mercado de anticorpos para pesquisa no Brasil não é grande o suficiente para sustentar empresas nacionais e, além disso, diver­ sos desses insumos são produzidos por algumas companhias estrangeiras em quantidades enormes para atender ao mercado mundial, tornando pequenas empresas pouco competitivas. “Já acon­ teceu de a Proteimax estar ganhando mercado de um determinado anticorpo no Brasil e a concorrência estrangeira baixar o preço somente para brecar o nosso avanço. Eles podem fazer isso, porque possuem compradores em todo o mundo. Por isso, creio que a melhor estratégia é bater a concorrência com inovação”, diz Andrea. n pESQUISA FAPESP 170

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[ ENGENHARIA FLORESTAL ]

Madeira da borracha Estudo mostra a viabilidade do uso do tronco da seringueira para produzir móveis Marcos de Oliveira

ILUSTRACÃO NANA LAHOZ COM FOTO DE EDUARDO CESAR

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borracha da seringueira ainda é imbatível. Está presente na composição dos pneus de carros e caminhões numa proporção entre 16% e 40% e até em 100% nos aviões, além de ser usada para produção de um variado número de utensílios, de luvas cirúrgicas a preservativos. Ela traz níveis de maciez, flexibilidade, resistência, impermeabilidade e capacidade de isolamento elétrico não encontrados nas borrachas sintéticas. A riqueza natural do látex – matéria-prima extraída por meio de cortes, chamados de sangrias, na casca do tronco da seringueira, a Hevea brasiliensis – deverá se juntar em breve no Brasil ao uso nobre da madeira dessa árvore para a fabricação de móveis. Um estudo do professor Francisco José do Nascimento Kronka, do Instituto Florestal, órgão vinculado à Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo, demonstrou a viabilidade técnica e comercial do uso do tronco da seringueira quando a produção de látex diminui, o que acontece depois de cerca de 35 anos após o plantio. “Isso já é feito com sucesso em

países como Tailândia, Malásia, Indonésia e Vietnã, no Sudeste Asiático”, diz Kronka. “Em 2008, quando estive no Vietnã, a meta de exportação de móveis produzidos com madeira de seringueira era de US$ 4 bilhões.” “No Brasil ainda não há mercado formado para a madeira da seringueira e grande parte é queimada em fornos e caldeiras ou utilizada em experimentos isolados, como em Mato Grosso, para confecção de tamancos”, diz Heiko Rossmann, diretor-secretário da Associação Paulista de Produtores e Beneficiadores de Borracha (Apabor). Essa entidade foi uma das cinco instituições parceiras no estudo de Kronka, que durou sete anos e recebeu financiamento da FAPESP por meio de um projeto do Programa de Pesquisa em Políticas Públicas. As outras entidades foram a Associação Brasileira das Indústrias de Mobiliário (Abimovel), a Coordenadoria de Assistência Técnica Integral (Cati) da Secretaria de Agricultura e Abastecimento Estadual, o Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e o Centro Tecnológico de Formação Profissional da Madeira e do Mobiliário de Votuporanga (Cemad) do Serviço Nacional de Aprendizagem

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Industrial (Senai). No campo acadêmico, a parceira é a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP). Embora a área energética tenha necessidade cada vez maior de biomassa, a queima da madeira da seringueira, que tem uma cor clara, quase esbranquiçada, e pode receber vários tratamentos para exibir outras cores, é uma perda considerável porque é um produto nobre e bom para a fabricação de mesas, cadeiras, camas e estantes, além de laminados e compensados. “Marceneiros a quem mostramos a madeira da seringueira se mostraram dispostos a pagar de 20 a 30% a mais que a madeira de pinus [Pinus sp. ou pinheiro, árvore de reflorestamento muito usada no Brasil] por ser de melhor qualidade”, diz Kronka, que visitou várias empresas. Ele também levou a madeira para a fabricante de lápis Faber Castell. Toras de seringueira foram enviadas à serraria da empresa localizada no município de Prata, em Minas Gerais, e depois de processadas levadas para a fábrica da empresa em São Carlos, no interior paulista. “Eles estudaram a madeira e ela foi bem aceita para a produção de lápis”, conta Kronka, também presente com outro estudo nesta mesma edição, na página 50.

EDUARDO CESAR

Espreguiçadeira: uma das opções de móveis produzidos com madeira de seringueira

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Não é nobre queimar a madeira da seringueira como biomassa

O pinus usado em lápis e pela indústria moveleira, segundo o estudo do pesquisador, deve apresentar um déficit nos próximos anos devido a um consumo maior que o atual tamanho das florestas plantadas. O eucalipto, outra madeira de reflorestamento muito usada para móveis, também tem forte tendência para o consumo ser maior que a produção na próxima década. Outro fator importante que conta para a necessidade de madeiras para uso mobiliário é a diminuição da extração em florestas nativas, seja pelo contingenciamento de cotas dessas árvores, pressão ambientalista ou grande distância dos centros consumidores. “Assim, não é nada nobre queimar a seringueira”, diz Kronka. Ele mesmo obteve informações sobre a compra por R$ 45 a tonelada de madeira de seringueira por uma usina, no interior paulista, produtora de cana e de energia elétrica com a queima do bagaço de cana e outros restos de produção agrícola. Enquanto isso, em março deste ano, o metro cúbico (m3) de madeira de seringueira na Indonésia, segundo a Apabor, custava US$ 66, um valor em baixa devido à crise econômica de 2009. Em novembro de 2008 o preço médio naquele mesmo país chegou a US$ 230 o m3.

Diante de um quadro tão díspare em relação ao mercado mundial, é de grande importância capacitar o agricultor que planta a seringueira também para o aproveitamento da madeira. “Precisamos de clones [variedades]que se adaptem ao corte e a constantes desbastes para corrigir o tronco e deixá-lo mais reto.” Entre as medidas estudadas por Kronka está o tratamento da madeira após o corte. “É preciso desdobrar a madeira (fazer caibros e tábuas) o mais rápido possível e em seguida dar um banho com fungicida por cinco minutos para evitar os fungos que atacam a madeira recém-cortada.” Depois ela ainda deve ser mergulhada em inseticida e solvente mineral para evitar o ataque de broca quando a madeira secar. “A madeira tem um valor incrível”, diz o pesquisador Paulo de Souza Gonçalves, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), que realiza seu trabalho desde 1987 no Instituto Agronômico (IAC), em Campinas. “A venda da madeira poderia pagar o investimento de um novo plantio, que custa cerca de R$ 10 mil o hectare”, diz Gonçalves. Para ele, o trabalho de Kronka deverá incentivar o uso mais nobre do tronco da seringueira, a adoção de variedades mais produtivas e o aumento da área de plantio, principalmente no estado de São Paulo, detentor de 55% da produção nacional, com 67,1 mil toneladas de borracha produzidas em 2008. Para Kronka, uma vantagem adicional favorece o uso da madeira da seringueira no estado de São Paulo: “É que o polo moveleiro existente nos municípios de São José do Rio Preto, Votuporanga e Tupã se sobrepõe ao principal polo seringueiro do estado”. Em 2008 o Brasil produziu 123,1 mil toneladas, o equivalente a 1,2% da produção mundial liderada pela Tailândia, com 30,8% do total. Esse país mais seus vizinhos, Malásia, Indonésia e Vietnã, são responsáveis por 75,5% do fornecimento da borracha no mundo. Eles são seguidos pela Índia, com 8,8%, e China, com 5,6%. No âmbito do consumo, o Brasil precisou de 366 mil toneladas de borracha em 2008, representando 3,5% do total mundial. A China é o maior consumidor, com 29%. O déficit brasileiro é coberto com importações ao valor de US$ 666,4 milhões, conforme dados do pesquisador Paulo Gonçalves. “Temos só

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francisco kronka/IF

Plantação de Hevea brasiliensis em São Paulo: venda da madeira paga um novo plantio

no estado de São Paulo 14 milhões de hectares aptos ao plantio da seringueira”, diz ele. São áreas que partem da região central do estado em direção ao norte, incluindo estados produtores como Mato Grosso, Bahia, Espírito Santo, Minas Gerais, além do norte do Paraná, com mais dezenas de milhões de hectares. Incentivos para uma produção maior estão se multiplicando. A Apabor lançou em 2005 a campanha de plantio para atingir 250 mil novos hectares em 15 anos. “Com a divulgação e o investimento da iniciativa privada o crescimento foi de 60 mil hectares até 2008”, diz Rossmann, da Apabor. “Hoje devemos ter cerca de 90 mil hectares plantados no estado”, diz. “O governo deveria dar maior atenção à cultura por meio de incentivos e financiamento sem cobrança de juros durante o período que vai do plantio até o sétimo ano, quando começa a coleta do látex”, diz Marcelo Tournillon Ramos, presidente da Câmara Setorial da Cadeia Produtiva da Borracha do Ministério da Agricultura e diretor do Instituto Tecnológico da Borracha (Iteb), com sede no Rio de Janeiro. Essa tentativa de aumentar a produção nacional é quase uma ironia histórica porque a exploração comercial da borracha partiu do Brasil na forma de

extrativismo de plantas existentes na Floresta Amazônica e representou, no final do século XIX, cerca de 40% das exportações brasileiras. A decadência começou na famosa história do suposto roubo de cerca de 70 mil sementes de seringueira levadas para a Inglaterra pelo inglês Henry Wickham em 1876. A ideia era estabelecer plantações em colônias inglesas no Sudeste Asiático. Inicialmente, as sementes foram levadas para o Jardim Botânico de Kew,

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O Projeto Disponibilidade de madeira da seringueira (Hevea brasiliensis) como matéria-prima para a confecção de mobiliário no estado de São Paulo - nº 03/06440-0

modalidade

Programa Políticas Públicas Co­or­de­na­dor

Francisco José do Nascimento Kronka – Instituto Florestal investimento

R$ 225.499,30 (FAPESP)

em Londres. Devido a perda do poder germinativo das sementes, apenas 4% delas germinaram. As que sobraram, cerca de 1.900 mudas, foram levadas para o Jardim Botânico do Ceilão, atual Sri Lanka, então sob o domínio inglês, e algumas foram transferidas para a Malásia. Nos países asiáticos as plantações foram estabelecidas e a produção de borracha cresceu de forma industrial, enquanto no Brasil o extrativismo não conseguia acompanhar a demanda mundial em ascensão. Tentativas foram feitas em plantar seringueira na Amazônia, mas elas não deram certo como na Fordlândia (ver Pesquisa FAPESP n° 158) em razão do mal-das-folhas. Quando as árvores ficam adensadas uma ao lado da outra, o fungo, Microcyclus ulei, é devastador principalmente na região de origem da seringueira. “Em locais que possuem calor e umidade relativa alta, a doença se desenvolve”, diz Gonçalves. No hábitat natural das florestas, as seringueiras nascem separadas por alguns metros e entre elas existem outras árvores que não permitem o fungo prosperar e se fortalecer como nas plantações. Em São Paulo, o fungo que ataca as folhas novas e impede o crescimento da árvore já foi detectado em Ubatuba, em 1961, PESQUISA FAPESP 170

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numa plantação do IAC. Mas nas áreas na região de planalto mais ao norte do estado a baixa umidade é uma barreira contra o fungo. Essa adaptabilidade foi mostrada nas primeiras plantações no estado, em 1917, na Fazenda Santa Sofia, no município de Gavião Peixoto, de propriedade do coronel José Procópio de Araújo Ferraz, amigo do marechal Cândido Rondon, militar e sertanista que liderou a integração da Amazônia por meio do telégrafo, de quem recebeu milhares de sementes. Vinte e sete germinaram e em 1942 o IAC adquiriu sementes dessas árvores para plantio em estações experimentais, em Campinas, Ribeirão Preto e Pindorama. Estudos mais profundos vieram apenas em 1951, ano em que o Brasil passou a importar borracha natural da Malásia, de árvores descendentes das sementes levadas da Amazônia. O instituto trouxe sementes da Libéria, na África, e depois clones da Malásia. Paulo Gonçalves e Francisco Kronka concordam que essa dependência externa de uma planta nativa não é um problema que se deva levar para sempre. A soja, originária da China, tem inimigos poderosos naquele país, assim como o girassol dos Estados Unidos, cujo maior produtor é a Rússia, e o café na Etiópia, onde não é plantado. “Podemos pensar na cana-de-açúcar e na soja que vieram da Ásia e se deram n muito bem no Brasil”, diz.

paulo gonçalves/IAC

Primeira seringueira plantada no estado de São Paulo, em Gavião Peixoto

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A genética da Hevea

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m maior entendimento genético da Hevea brasiliensis deverá se somar a uma nova fase da seringueira no Brasil, com o possível aumento do plantio e a potencial formação de um mercado para a madeira na indústria de móveis. A genética dessa árvore começou a ser desvendada na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sob a coordenação da professora Anete Pereira de Souza, do Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética. “São vários projetos de auxílio-pesquisa e bolsas financiados pela Fapesp, que vão resultar num genoma funcional da seringueira”, diz Anete. Esse estudo vai localizar genes de interesse para identificar entre os clones de seringueira os mais produtivos e resistentes principalmente ao fungo Microcyclus ulei, principal inimigo das plantações. “Pretendemos obter um mapa com 200 marcadores funcionais associados a genes reponsáveis por características econômicas”, diz Anete. Um dos objetivos é localizar microssatélites, que são pequenas sequências do DNA, que se repetem ao longo do genoma de um organismo, ou alterações pontuais desse DNA (também chamadas de SNPs, do inglês Single Nucleotide Polymorphism), responsáveis, por exemplo, pela tolerância ao frio. Um domínio sobre esse possível conjunto de genes poderia estender a área de plantação da seringueira para estados brasileiros do sul e para outros países com temperaturas mais baixas. A pesquisa será feita com duas populações, chamadas de recombinantes, formadas por três tipos de clones (variedades genéticas) plantados no Brasil. Essas populações de plantas para o mapeamento genético estão sendo preparadas pelo pesquisador Paulo de Souza Gonçalves, do IAC, que estuda clones de seringueira há 39 anos. Ele já registrou, junto com colegas do instituto, 22 variedades ou cultivares, sendo 17 apenas em 2009, muitas tiveram contribuições de um projeto temático financiado pela FAPESP. Grande parte das plantações de seringueira do sudeste brasileiro ainda é formada por um clone malaio introduzido no Brasil em 1952, o RRIM 600, sigla em inglês de Instituto de Pesquisa da Borracha da Malásia. Ele está presente em 80% do cultivo paulista. Gonçalves, que não usa esse clone nas populações recombinantes, acredita que a situação se aproxima de um plantio monoclonal, “o que poderá levar a consequências desastrosas, como epidemias de pragas e doenças comuns em monocultivos, em razão da presença de pouca variabilidade genética nos seringais. Embora ainda estejamos longe de vivenciar tal situação, cabe a nós, especialistas do ramo, alertar os heveicultores dos possíveis riscos de danos”.

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Localizar genes de interesse econômico deve contribuir para o melhoramento das plantações

Gonçalves diz que o Brasil se ressente de um banco de germoplasma de plantas de seringueira que mostre a variedade de plantas encontradas em um ambiente natural. Isso quase aconteceu há alguns anos. No final dos anos de 1970 produtores de borracha da Malásia e de outros centros produtores perceberam a falta de variedades e fizeram um acordo por meio da Comissão Internacional para Pesquisa e Desenvolvimento da Borracha, conhecida pela sigla em inglês IRRDB, que previa o intercâmbio de clones no mundo e coleta de novos exemplares no centro de origem da planta que pudessem resultar em novos cultivares. Banco na Malásia - A expedição de coleta ficou restrita ao Brasil por motivos financeiros do IRRDB, como relata o pesquisador e historiador Warren Dean da Universidade de Nova York, no livro A luta pela borracha no Brasil. O governo brasileiro aceitou desde que beneficiasse o país com uma cópia de tudo que fosse coletado. Pesquisadores brasileiros participaram dessa expedição iniciada em 1981. Entre eles estava Paulo Gonçalves, que fez coletas de plantas e sementes no estado de Rondônia. “Outros colegas estiveram no Acre e em Mato Grosso.”

Foram coletadas 64.723 sementes e 1.160 mudas, segundo Dean. Parte desse material foi para a Malásia e outra parte ficou em Manaus. Foram, então, estabelecidos dois bancos de germoplasma de plantas in vivo (existem bancos de germoplasma de sementes acondicionadas em câmaras frias para posterior utilização) em que pesquisadores poderiam avaliar as qualidades agronômicas e produtivas de cada espécime para a produção de novas variedades. O Brasil possui bancos como esses de cana-de-açúcar, café (plantas exóticas porque não são originárias de ambientes naturais brasileiros) e da nativa mandioca. Porém a coleção brasileira de seringueira não deu certo, sucumbiu, principalmente, ao fungo Microcyclus. “Talvez se fossem plantadas em São Paulo, na região onde hoje é o polo seringueiro, as plantas tivessem sobrevivido”, diz Gonçalves. Ele e Kronka, do Instituto Florestal, já viram pessoalmente, há pouco tempo, a coleção que está bem cuidada na Malásia. Gonçalves já ouviu algumas vezes a sugestão vinda de vários pesquisadores e profissionais da área para, num acordo amigável com a Malásia, trazer uma cópia do banco de germoplasma daquele país para ser instalado no Brasil. “Morro de

Os Projetos 1. Construção de um mapa genético-molecular com microssatélites e mapeamento de locos ligados à tolerância ao frio e outras características de importância econômica em seringueira – nº 07/50562-4 2. Obtenção de população recombinante para mapeamento de características de importância econômica em seringueira [Hevea brasiliensis (Willd. ex Adr. de Juss.) Muell.-Arg.] – nº 07/52922-8 3. Melhoramento genético da seringueira (Hevea spp.) para o estado de São Paulo- nº 96/01268-0

modalidade

1. Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa 2. Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa 3. Projeto Temático Co­or­de­na­dores

1. Anete Pereira de Souza – Unicamp 2 e 3. Paulo de Souza Gonçalves – IAC investimento

1. R$ 186.230,32 e US$28.525,32 (FAPESP) 2. R$ 109.040,88 e US$ 8.654,00 (FAPESP) 3. R$ 423.372,60 (FAPESP)

vergonha de ter que repatriar as nossas plantas”, diz refutando a ideia. Mas ele montou um banco de germoplasma no IAC, ainda pequeno e formado basicamente por cultivares plantados no Brasil, que inclui clones produzidos no exterior e nenhum de planta originalmente coletada na Amazônia. É uma coleção que se mostrou útil para a elaboração de novos cultivares e para as populações que servirão ao trabalho genômico de Anete. n

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humanidades

[ relações internacionais ]

O Império da inovação A ciência escondida nos arquivos do Itamaraty Carlos Haag

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ada mais moderno e atual do que a discussão sobre inovação tecnológica e P&D como forma de diminuir a dependência externa do Brasil e colocá-lo em pé de igualdade com as grandes nações do Primeiro Mundo. Curiosamente, como revela uma pesquisa recente, nada mais antigo também do que pensar nessas questões. Em Inovações tecnológicas e transferências tecnocientíficas: a experiência do Império brasileiro, os pesquisadores Sabrina Marques Parracho Sant’Anna e Rafael de Almeida Daltro Bosisio, a partir de um projeto do Centro de História e Documentação Diplomática (CHDD), feito no Arquivo Histórico do Itamaraty (AHI), descobriram documentos que revelam a ação do Estado brasileiro e de seus agentes diplomáticos, entre 1822 e 1889, no sentido de usar a inovação tecnológica e a ciência como forma de criar uma nação, civilizar o Brasil e colocar o jovem país em compasso com os territórios europeus nos quais o Primeiro e o Segundo Reinados se espelhavam. “Foi muito importante a ação do Ministério dos Negócios Estrangeiros no sentido de transferir tecnologia fazendo circular pessoas, bens e informações, numa tentativa de criar condições para a formação e manutenção do Estado imperial, almejando o seu ingresso no grupo das nações civilizadas e reduzindo o hiato que, segundo se acreditava, o separava dele. Ora querendo se aproximar da Europa, ora buscando uma civilização adequada ao mundo dos trópicos, uma Europa possível, construía-se uma identidade nacional baseada no território e num sentimento de exclusão”, explicam os pesquisadores. Segundo Sabrina, coordenadora da pesquisa, “a discussão sobre a formação da ideia de nação no Brasil é longa e controversa, mas o material indica que múltiplos atores sociais efetiva-

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mente se empenharam na construção de elementos de distinção da metrópole a partir da superação do estigma da natureza selvagem e se fizeram protagonistas de um Estado independente a partir da construção de uma imagem de cultura e civilização na especificidade dos trópicos”. O universo do material da pesquisa constituiu-se da documentação disponível no Arquivo Histórico do Itamaraty. No total, foram lidos 297 maços documentais e levantados e fichados cerca de 5.500 documentos, dos quais resultou a seleção e reunião de 2.621 resumidos e classificados por tema que hoje compõem o catálogo, pronto, mas ainda sem data para ser editado, apesar da quantidade preciosa de informações para pesquisa que contém. Os documentos vêm acompanhados da precisa localização no arquivo. “No papel desempenhado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros como mediador das relações entre o Brasil e os demais Estados, buscando superar as desigualdades e fazer com que o país entrasse no grupo das nações tidas como civilizadas, deu-se ênfase à circulação de ciência e tecnologia diretamente relacionada ao movimento de trazer, para dentro do país, o saber que se disponibilizava no resto do mundo, buscando encontrar nas transferências as bases de construção de uma nação em sincronia com suas congêneres”, notam os pesquisadores. Uma das primeiras e mais constantes preocupações era com a educação da mão de obra, seja pela importação de obras para aplicação no Brasil, seja pelo envio de pessoal qualificado para aperfeiçoamento no exterior. “Salta aos olhos o grande fluxo de ofícios e despachos relativos à instrução pública na busca de métodos educacionais e na compra de livros e equipamentos para faculdades. São desde guias para a introdução de aulas de ginástica até livros variados para a formação de cursos especializados, numa vontade de civilização.

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Os documentos indicam esforços de universalização do saber, equiparação a modelos europeus e apontam para o desejo de constituição de elites aptas ao controle do Estado e de formação da população como povo capaz de construir a nação”, observam os pesquisadores. Em detrimento da educação universal, porém, os cursos para formação de mão de obra especializada parecem receber ênfase e não por acaso a preocupação centrada na formação das bibliotecas dos cursos jurídicos de Olinda e São Paulo: entre 1822 e 1841, mais de um terço dos documentos são relativos ao assunto. Afinal, era o curso que tinha o lugar central na formação do Estado nacional e ocupava a preocupação das elites dirigentes. “O fato é revelador na medida em que se criava o curso pelo estado de independência política e que se tornava

Salão nobre do Palácio do Itamaraty, no Rio de Janeiro

incompatível demandar, como antes, estes conhecimentos à Universidade de Coimbra. O país precisava começar a formar seus próprios bacharéis. Médicos, engenheiros, militares e técnicos do governo continuariam sendo enviados ao estrangeiro para completarem a sua qualificação. Estes profissionais tornaram-se pensionistas do Estado.” Uma parte do catálogo fala justamente da concessão de benefícios de viagem para aperfeiçoamento no exterior, já que não são raras no Império as práticas de envio de estudantes brasileiros para qualificação no estrangeiro e formação de uma elite capaz de suprir as demandas dos quadros técnicos para operacionalização do Estado. As pensões deveriam: solucionar um pro-

blema imediato notado pelo Império; formar um profissional que, além do fim último de sua viagem, devia deixar os olhos sempre abertos para o aprendizado do mundo. “As viagens em comissão e aquelas de estudo, exigindo com frequência relatórios semestrais, foram, de fato, de formação”, dizem os pesquisadores.

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o entanto, aos poucos, as viagens comissionadas por interesses do Estado vão ganhando proeminência sobre as longas viagens de estudo. “A partir de 1827, o governo passaria a tratar a instrução individual no exterior como de interesse do próprio estudante e deixaria de financiar períodos de formação completa no estrangeiro, deixando que os títulos de doutor ou bacharel ficassem a expensas das famílias abastadas da elite PESQUISA FAPESP 170

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Plantio de café: cônsules se empenhavam na remessa de sementes

imperial. O financiamento das viagens de instrução passaria a se restringir ao que chamaríamos hoje de especializações e abarcaria apenas as áreas vistas como de interesse imediato do Estado nacional.” Ora vista como meio de ascensão social individual, ora vista como instrumento de civilização fundamental ao Império, a política de educação se fazia no movimento de padronização do acesso à formação civilizadora no interior do país e de formação de elites técnicas para atender a fins específicos da burocracia estatal. “Assim, o movimento de declínio das viagens de estudo em prol do crescimento das viagens de estudo a cargos comissionados parece ser concomitante aos processos de internalização da formação profissional e de busca da maior universalização do acesso ao ensino primário e secundário.” A exceção, a partir de 1841, eram as pensões destinadas aos estudantes de belas-artes, já que a criação de um corpo de profissionais formados no estrangeiro com valores universais se fazia premente no momento em que Pedro II começava a construir sua imagem de mecenas e homem das artes e quando, no âmbito imagético, pintores, músicos e arquitetos parecem ter contribuído para forjar um sentimento de pertencimento nacional. “Assim, se a engenharia e a medicina, a agricultura e outros ramos do conhecimento se apresentaram como 82

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foco fundamental do Estado, oscilando da formação de quadros no estrangeiro para a formação no interior do país, direito e belas-artes aparecem aqui como casos-limite: o primeiro, símbolo maior do que deveria ser exclusivamente nacional, forma administrativa do Estado que se fundava; o segundo, símbolo do que deveria ser pautado em modelos estrangeiros, forma universal, civilizada, a enquadrar a nação nos cânones consagrados do belo internacional.”

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ntre 1822 e 1834, o Ministério dos Negócios Estrangeiros inicia suas primeiras atuações a fim de promover a troca de plantas e sementes com outras regiões do mundo, agindo, sobretudo, como mediador nas trocas entre instituições brasileiras ligadas à agriculturas e suas congêneres no exterior. “Olhando o procedimento de envio de sementes, tudo parece apontar para a emergência dos primeiros esforços do Estado em implementar inovações na agricultura diversificando a produção e contribuindo para o progresso nacional, já que a agricultura de gêneros para exportação era vista como fonte de civilização”, notam os pesquisadores. Categorias como rotina, indolência e falta de cultura eram usadas para designar o estado em que se achava a produção agrícola nacional, e as técnicas vindas

das nações avançadas eram consideradas inovações necessárias para eliminar esse atraso. De início, até 1834, o papel do ministério era secundário na aquisição e remessa de sementes, mas aos poucos ele se tornou atuante por meio do seu corpo diplomático, que passou a participar ativamente na obtenção de informações científicas e na aquisição e remessa de novas espécies. “Uma clara mudança na ação dos representantes brasileiros no exterior pode ser notada e vários foram os ofícios enviados descrevendo novas espécies que fossem úteis ao desenvolvimento da agricultura nacional. Sementes e mudas foram remetidas com detalhadas informações sobre o plantio, solo apropriado, época para o cultivo e colheita, zona climática adequada para cada espécie. As plantas passaram a ser descritas com seus nomes científicos e de acordo com a classificação de Lineu.” “Cônsules e outros agentes diplomáticos passaram a se empenhar pessoalmente na remessa de sementes, mesmo sem um pedido formal do governo imperial. Muitas vezes, os próprios diplomatas tomaram a iniciativa de selecionar e enviar informações científicas que pudessem contribuir para a aclimatação de novas espécies e para a racionalização da agricultura”, avaliam os pesquisadores. Agentes contratados para tratar de assuntos de imigração também foram en-

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Pedro II: mecenas

exposições mundo afora, tornando o Brasil fornecedor de produtos exóticos e úteis ao comércio internacional. A partir de 1870 observa-se na documentação, afirmam os pesquisadores, um aumento dos pedidos de sementes e mudas nativas do país por outros governos: palmeira, carnaúba, tajujá, fibras têxteis e também de espécies aprimoradas no país, como café, tabaco e cana-de-açúcar. “Com a ênfase nas ex-

reprodução do livro barão do rio branco - uma biografia fotográfica

volvidos na elaboração de trabalhos que pudessem contribuir ao desenvolvimento da indústria e do comércio do país e se empenharam na aquisição e remessa de sementes e plantas como algodão, tabaco, café, amoreira, freixo, quina, guaco, verbena, carvalho, baunilha, canela, pinheiro, anil, açafrão, e uma série de outras sementes que deveriam ser aclimatadas para serem úteis na construção do Estadão-nação imperial. “Além do envio de sementes e mudas, passou a ocorrer um crescente intercâmbio de publicações entre instituições científicas brasileiras e suas congêneres no exterior. Os próprios diplomatas brasileiros selecionavam e enviavam artigos científicos que pudessem contribuir para a aclimatação de novas espécies e para a racionalização da agricultura”, contam. “Em seus ofícios e correspondências, faziam relatos de experiências realizadas por cientistas que lhes eram contemporâneos, novas máquinas empregadas para determinadas culturas, enfim novidades no que diz respeito à tecnologia agrícola daquela época. Depois de remetidas as sementes, tais agentes demandavam os resultados do plantio para que a observação empírica lhes servisse de guia nas novas remessas.” Num terceiro momento, entre 1865 e 1889, há um arrefecimento na atividade de troca de insumos e cresce a participação do governo brasileiro nas

Brasil na Exposição Internacional de São Petersburgo

posições, as trocas de sementes voltaram a ocorrer no âmbito das instituições científicas que, mesmo vinculadas ao governo, ganharam autonomia”, dizem os pesquisadores. As poucas espécies que chegaram ao Brasil não vieram, como antes, com dados sobre cultivo e plantio, mas acompanhando os novos tempos, com estatísticas comerciais e apontamentos sobre a sua rentabilidade do café, já que, entre os anos de 1876 e 1877, amostras de café brasileiro foram enviadas à França para análise do produto e aprimoramento de sua qualidade a fim de aumentar seu valor de venda no mercado estrangeiro. “Ao longo do século XIX, ao lado da construção do Estado brasileiro, delineou-se uma política agrícola voltada para a exportação. Nesse transcurso, a administração da agricultura pelo governo deixou de lado as ciências naturais, como a botânica, a química e a geologia, para fazer uso das ciências econômicas como forma de desenvolver essa atividade agrícola. Esse novo paradigma passou a coordenar a divulgação científica tal como empreendida anteriormente pelos agentes diplomáticos.”

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o longo de todo esse período estudado houve, além dos pedidos do Estado, muita iniciativa individual dos diplomatas, bem como a receptividade às inúmeras ofertas feitas, no estrangeiro, de inovações tecnológicas que poderiam servir ao desejo de civilização do Império, prova da importância do ministério no cumprimento da “tarefa civilizacional” que lhe foi indiretamente delegada pelo Estado brasileiro. “É interessante notar que o papel desempenhado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros forjava, como mediador das relações entre o Brasil e os demais Estados, imagens do eu e do outro, buscando superar as desigualdades e fazer com que o país entrasse no grupo das nações tidas como civilizadas. Aos diagnósticos de civilização ausente e de um território-potência, se sobreporia também o de um aparato estatal faltante, definindo, no período, uma identidade nacional e um mito originário: cosmogonia a repercutir indefinidamente sobre um Estado eternamente em formação”, completam os pesquisadores. Tarefa para a ciência, via diplomacia. n » PESQUISA FAPESP 170

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Documentos de nervos e sangue CHDD difunde um dos maiores acervos diplomáticos do país

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documento é uma impressão da história e sua medida. Ele é a história com sangue e nervos.” Foi com essa visão que em 2000 o embaixador Álvaro da Costa Franco assumiu a direção do Centro de História e Documentação Diplomática (CHDD). “Não era o meu interesse prioritário de início, e o centro, naquela época, só existia no papel. Mas me envolvi muito no programa de conservação do acervo do Arquivo Histórico do Itamaraty (AHI) e senti a riqueza do que havia aqui, de quanto se podia fazer por aqui. Virei diretor para poder auxiliar o Ministério das Relações Exteriores, pois a função principal lá, afinal de contas, é fazer diplomacia e não conservar documentos. Eles precisavam de alguém para fazer isso aqui”, conta Costa Franco. O embaixador havia acabado de se aposentar e estava então à frente da Fundação Alexandre de Gusmão/MRE, à qual o CHDD é ligado. Durante um ano dirigiu um órgão de papel que analisava papéis até que em 2001 o centro passou oficialmente a existir, localizado no Palácio do Itamaraty, no mesmo corredor onde está o AHI, um dos mais ricos acervos sobre a história diplomática nacional. São três quilômetros de documentos com toda a correspondência diplomática do ministério e documentação variada, desde antes de 1822 até a década de 1960, quando Brasília foi inaugurada e parte mais recente dos arquivos foi levada para lá. “O CHDD existe para estimular os estudos sobre a história das relações internacionais e diplomáticas do Brasil e atua na criação e difusão de instrumentos de pesquisa, na edição de livros sobre história diplomática e na pesquisa e exposição sobre esse tema.” O centro tem uma equipe jovem e modesta: são nove estagiários universitários e dois de nível médio, um pesquisador de história, um administrador e dois arquivistas. “Como não havia nada antes, o que eu fizesse já era alguma coisa. Mas eram tempos em que os patrocínios estavam em queda e aquela não era uma atividade que gerasse grande publicidade. Resolvi então assegurar a difusão para os historiadores e para os interessados da área por meio dos Cadernos do CHDD, a fim de criar algo que fosse contínuo, de engajamento duradouro”, conta o embaixador. Os Cadernos do CHDD são uma revista “quase um livro” com 400 páginas, semestral, que foi iniciada em 2002 e se encontra no seu décimo quinto número e se dedica à publicação de documentos e estudos sobre a história das relações internacionais. Neles é possível encontrar-se desde circulares do Ministério da Relações Exteriores nos anos polêmicos de 1930 a 1939 a textos inéditos do Barão

do Rio Branco, escrevendo sob pseudônimo em sua juventude, passando por preciosidades como as memórias de Sérgio Teixeira de Macedo, um diplomata relembrando a sua infância nobre, que nem por isso o deixou escapar de uma educação das mais miseráveis. A revista é distribuída gratuitamente para universidades, bibliotecas, academias, institutos geográficos, entre outros, e pode ser lida, on-line, no site www.chdd.Funag.gov.br.

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Rio Grande do Sul, São Paulo e deve ir ainda este ano para Manaus. Entre os projetos futuros do centro estão a publicação da correspondência de Domício Gama com Rio Branco, a missão especial do Visconde do Rio Branco ao Prata, a correspondência de Nabuco de Washington, a Conferência de Havana, a correspondência de Oliveira Lima de Tóquio, entre outros. Também aguarda publicação a pesquisa Inovações tecnológicas e transferências tecnocientíficas: a experiência do Império brasileiro. “Tudo sobre a vida intelectual do Brasil com os países estrangeiros pode ser estudado nesses arquivos para além das relações diplomáticas e políticas”, acredita Costa Franco. “O diplomata segue uma carreira com muitas profissões e nesse trabalho junto ao centro pude ter contato e trabalhar com historiadores, professores, estudantes e ser um pouco como eles. Parcialmente, creio que consegui o que queria, mas ainda há muito a ser feito”, avalia. “História oral, por exemplo, é algo que precisamos fazer com urgência, recolher o depoimento de antigos diplomatas. Também organizar seminários, premiar trabalhos”, lamenta. Para o embaixador, porém, é preciso mais tempo e dinheiro. “Como se pode fazer história das relações internacionais se só trabalhamos uma das partes? O que acabamos tendo é uma visão

unilateral por aqui pela falta de chances de sair e conhecer o que há em outros arquivos sobre o Brasil. Por exemplo: temos pistas fortes de que havia no Prata a ideia de que o Império brasileiro era frágil por causa do separatismo e do escravismo. Ou seja, se fôssemos invadidos ao sul logo haveria um movimento de separação e outro movimento de sublevação dos escravos e, pronto, cairia a monarquia brasileira, algo que explicaria a agressão paraguaia. Isso, porém, requer que visitemos mais arquivos na Argentina, no Paraguai, no Uruguai, certo?” Segundo ele, era preciso que se criassem bolsas para que se pudesse visitar arquivos no exterior. “Isso é algo que eu gostaria de ter feito durante a minha gestão, que agora se encerra, à frente do CHDD, para ter a visão do outro”, afirma. “Mas creio que consegui deixar com os jovens do centro o meu recado de que nós temos um compromisso: a maior honestidade intelectual possível e um grande respeito aos documentos.” Que, afinal, são de nervos e sangue.

REPRODUÇÃO

“Ao publicar na internet, temos um impacto grande, bastando lembrar que devemos estar atingindo os cerca de 20 mil alunos de relações internacionais que existem no país atualmente”, lembra o diplomata. O detalhe fundamental é que toda a edição é feita pela mesma equipe jovem do centro, embora a impressão esteja a cargo da Fundação Alexandre de Gusmão (Funag), em Brasília. “Eu e os estagiários fomos aos poucos nos improvisando em editores para dar conta do material. Afinal são textos antigos que exigem muitas revisões e uma leitura cuidadosa para que cheguem ao final impecáveis. São edições modestas, mas que repercutem bastante junto a uma comunidade, porque atingem diretamente o público interessado em história das relações internacionais”, afirma. “Além disso, também fizemos várias edições organizadas por professores universitários que propõem temas e trabalham em conjunto com o centro, uma mostra do potencial da ligação entre o Ministério das Relações Exteriores e as universidades que pode ser realizado por intermédio do CHDD.” Além da revista, o CHDD também já editou mais de 20 livros, alguns com mais de um volume. O CHDD também promoveu pesquisas sobre imagem e diplomacia desde o Segundo Reinado e levantou um grande número de imagens das revistas ilustradas publicadas no Rio durante o Império e durante a gestão do Barão do Rio Branco que era um voraz colecionador de recortes de jornal, entre os quais de caricaturas, incluindo as de imagens suas. Estão sendo fichadas as que retratam o Barão com vistas a publicação, possivelmente em 2012, centenário do seu falecimento. Em 2000 o centro organizou ainda a exposição O Barão e a caricatura, que circulou por Brasília, Curitiba,

Segundo diplomata, maior compromisso do centro é com honestidade e respeito aos documentos

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[ História ]

Um progresso animal Como a modernidade apartou homem e natureza na metrópole paulistana

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egundo registros, foi em 1685, no Recife, que um mosquito deu uma picada num incauto cidadão e, assim, teria ocorrido o primeiro caso de dengue no Brasil. Hoje, mais de 300 anos depois, em pleno século XXI, um simples mosquito ainda consegue render um país, sinal de que a modernidade brasileira não foi capaz, como esperavam os crentes do progresso de fins do século XIX e início do século XX, de “vencer” o “atraso” representado pelos “animais”. Mesmo numa metrópole avançada como São Paulo. “Naquele período, os animais da cidade passaram por um processo de ‘recolonização’, parte do processo de passagem de um padrão de raízes coloniais para outro com elementos de modernidade, em que o homem redefiniu suas atitudes e relações com os animais, colocando em oposição o ‘couro’, símbolo do animal, e o ‘aço’, o moderno”, analisa Nelson Aprobato Filho no doutorado O couro e o aço: a “aventura” dos animais pelos “jardins” da Pauliceia, defendido no Departamento de História da USP, orientado por Nicolau Sevcenko, com apoio da FAPESP. “Meu objetivo foi entender os impactos da modernidade sobre os animais da cidade e demonstrar que a modernidade paulista aconteceu em suas dimensões (reais, imaginárias ou simbólicas) graças e a partir dos animais e das atitudes, usos e sensibilidades que o homem passou a adotar sobre eles”, continua. Segundo o pesquisador, com a revolução científico-tecnológica, os animais passaram a ter uma importância inesperada, já que, no processo de emergência das grandes metrópoles, eram para os homens a parte constitutiva de uma “cultura de referências estáveis e contínuas” que, nota o pesquisador, foram dilapidadas com o progresso. “Foi, logo, sintomática a escolha física e simbólica de animais como elementos singulares de experimentação, contraponto e confronto para a justificação ou detração (real ou imaginária) da modernidade paulistana.” Exemplos não faltam, desde o “Ou São Paulo acaba com a saúva,

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ou a saúva acaba com São Paulo” até a associação, feita por Monteiro Lobato, entre o quadro social nacional e o carro de boi, visto como símbolo do atraso, da lentidão, da rusticidade “antiga” e perniciosa. Não sem razão, uma estatística comparativa, feita em São Paulo, da quantidade de bovinos, equinos, asininos e muares revela que, se em 1905 eles eram 21.606, em 1920 passam para 38.885 e em 1940 chegam a apenas 5.375. No espaço de duas décadas, mais de 35 mil animais desapareceram da paisagem da cidade grande e, mais importante, sumiram da consciência dos cidadãos. Esse processo de “desapreço” inicia-se já em meados do século XIX. “Basta ver as caricaturas de Ângelo Agostini, em Cabrião ou no Diabo Coxo para perceber como, na época, os animais, cada vez mais, aparecem associados ao atraso, à pasmaceira, à imundice. Porém, na realidade sociocultural da época, as maleabilidades do couro eram ainda mais resistentes do que as consistências do aço. Paulatinamente esse quadro foi se invertendo”, explica o autor. Então, não era difícil ver 300 carros de boi (que só irão desaparecer entre os anos 1910 e 1920) circulando entre São Paulo e Santo Amaro. A cidade também era constantemente atravessada por tropas, compostas por 40 a 80 animais. “Se ocorresse, por acaso, o encontro de quatro tropas numa rua paulistana

Um convívio incômodo entre a modernidade do bonde e a antiguidade do boi na capital

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imagens: reprodução

era possível observar-se o trânsito provocado por 320 muares e centenas de insetos e parasitas que acompanhavam as tropas. Delas aos carros de boi, das carroças às montarias, das boiadas aos urubus, das aves aos peixes etc., os animais viviam, invadiam ruas, largos e praças. Era impossível não ter uma convivência intensa com eles”, conta. O contraponto dessas maneiras do viver cotidiano, em que os animais eram, de forma até certo ponto equilibrada, agentes e pacientes, manifestou-se nos projetos e mecanismos criados por elementos ligados ao poder público, às entidades científicas e tecnológicas que passaram a atuar em São Paulo a partir de fins do século XIX e início do XX.

“Pelo acompanhamento das várias leis e projetos que tinham como alvo os animais percebe-se como o poder público tratou a questão: quais os lugares, funções e papéis que lhes caberiam na nova cidade; quais os animais ‘eleitos’ para permanecer no meio urbano; quais confrontos foram estabelecidos entre eles e o progresso.” O pesquisador lembra que, ao mesmo tempo, surgia a tendência de considerar o engenheiro como o profissional mais capacitado para gerir os destinos de uma cidade. “Eles passam a olhar com certa cobiça as administrações municipais que subordinavam seus habitantes e animais aos mecanismos da engenharia moderna. Entre o couro e o aço ia brotando uma nova e excludente mentalidade

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Visões do descompasso animal em São Paulo, na visão de Agostini

tecnológica. Na trilha das mulas, que para eles eram sinônimo de ruralismo e passado colonial, os engenheiros paulistas tentavam alicerçar seus ideais de civilização numa ‘cruzada’ pela modernidade”, observa. Até “vítimas” inesperadas, como os cães, viram alvo de campanhas de repressão por meio de leis regulatórias que incluíam gastos da prefeitura com “bolas de alimento com veneno dentro”, dado aos caninos soltos na rua, bem como taxas e obrigatoriedade do uso de coleiras (“os cães devem estar açaimados e coleira numerada que indique ter pago o imposto municipal”, dizia a Lei nº 68 do Código de Posturas de 1886). Havia discussões acaloradas sobre o que era ou não um “cão de raça” e, portanto, sujeito a privilégios. “Para construir uma cidade moderna era preciso criar mecanismos para corrigir os que denotassem tendência à ‘vagabundagem’, de homens ou cães.” Formigueiro - Não apenas os vira-latas ganharam de-

notação metafísica. “A guerra contra a saúva mobilizou a cidade em todos os níveis, seja na destruição física dos formigueiros, seja pela simbologia. Lobato foi um dos escritores paulistas que mais utilizaram o inseto como símbolo do arcaísmo e ruralismo, acompanhando-o, em suas reflexões, por décadas. Em suas teses cáusticas, escritas em 1908, por exemplo, as formigas representavam a antítese do progresso, a demonstração cabal do atraso em que estavam mergulhadas cidades e populações pobres.” Vinte anos mais tarde, Mário de Andrade falaria delas, num registro mais irônico, em Macunaíma. “Inda tanto nos sobra, por este grandioso país, de doenças e insetos por cuidar. Estamos corroídos pelo morbo e pelos miriápodes. Em breve seremos uma colônia da Inglaterra ou da América do Norte. Por isso e para lembrança dos paulistas, a única gente útil do país, propomos um dístico: ‘Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são’.” O historiador Nicolau Sevcenko, em seu artigo “O Brasil e as saúvas”, faz um curiosa síntese do uso metafórico do “inseto que incomodava”, pelas várias elites dirigentes, em diferentes épocas históricas, sempre que se tentava 88

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“eliminar saúvas”, fossem quem elas fossem: a elite agrária do século XX e o Jeca Tatu; Vargas e a campanha contra o malandro; os militares e a repressão. Os animais, porém, podiam ser um hábito arraigado de difícil contenção. “Ao observar as várias leis, por exemplo, vê-se a ineficácia das medidas governamentais para tentar coibir o tráfico dos carros de boi pelo centro da capital. Percebe-se, em especial após 1900, a insistência do poder público por afastar esses elementos das ‘áreas nobres’ e a resistência dos carreiros em abandonar uma prática de deslocamento que tinha tudo a ver com formas populares de sobrevivência. Essas figuras e seus animais iam se tornando visões indesejáveis e dissonantes para a nova metrópole.” Ao mesmo tempo, o couro e o aço, em face da tecnologia incipiente, eram obrigados a conviver, como no caso dos bondes puxados a tração animal. “Utilizados até então em tropas de mulas ou carroças, houve um estranhamento tanto da população, desacostumada desse gênero de condução, como dos animais, uma vez que o peso dos bondes era bem maior do que o que estavam acostumados.” Ou, nas palavras de uma testemunha ocular: “Os grupos pulavam e desciam dos bondinhos e se postavam à frente dos pobre muares, que, sob o ardor dos chicotes, faziam o impossível para arrastar os carros que se achavam com seu peso além da conta”. Havia quem reclamasse do novo serviço por se ver, subitamente, morando ao lado das cocheiras. “Não existirá meio de acabar com tão incômoda assembleia?”, reclamava às autoridades um morador do Rosário. O progresso logo traria o sossego ao incomodado. A partir de 1901, o monopólio dos transportes urbanos passa a ser controlado pela companhia canadense Light & Power, que iniciou a retirada dos bondes tracionados por animais das ruas centrais de São Paulo. O último deles foi retirado em 1910. Do entusiasmo inicial pelo novo transporte, a cidade agora se envergonhava de ter que andar com bonde movido a muares. “Houve a Revolução de Santana, organizada por moradores do bairro que, descontentes por pertencer a um dos únicos bairros

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“despertavam os moradores da cidade para novos ritmos que, dali em diante, eram obrigados acompanhar”. Mas não era o bastante. José Agudo, em Gente rica – Scenas da vida paulistana, revela os novos desejos por meio do personagem do Dr. Zezinho, “apurado no vestir e frequentador de cassinos e pensões que não têm hora de fechar”. Para ele, era um inferno chegar em casa “depois das duas da madrugada e não dormir, porque principiou o barulho de bondes e carroças”. Afinal, os automóveis estavam chegando e em breve “qualquer pé-rapado há de ter o seu”. “Também deixam atrás de si um fétido horrível de gasolina, mas é chic andar-se de automóvel. Oh! Um 40 O couro e o aço, em face da tecnologia incipiente, eram obrigados HP é soberbo. Depois, quem anda a conviver, como no caso dos bondes puxados a tração animal dentro dele não fica sujo de poeira nem sente o mau cheiro bondinhos, puxados por uma parelha de líricos muares, da rabeira. Os que foram à pata que se arranjem, ora essa não viam com bons olhos a sua substituição por amplos, é muito boa!”, filosofava o playboy paulistano, para quem limpos e rápidos veículos movimentados a força eléa prefeitura deveria “calçar as ruas de borracha”. trica. Manhosamente alegaram um sagrado horror aos Dr. Zezinho tinha ainda outras filosofias. “Os bondes vieram tornar mais suave o trabalho dos burros. Já se pode desastres”. Foi necessário que as empresas contratassem os “técnicos em acidentes”, pessoas que se deixavam atroser burro em São Paulo, pois até há bebedouros para eles pelar pelo bonde a uma velocidade de oito pontos para nas praças públicas. Ali mesmo no Largo São Francisco demonstrar a eficácia dos limpa-trilhos. há um. Que sábia providência. Quanto burro antes não sofria sede. Se os burros falassem, é possível que um deles Ritmos - “Os bondes elétricos, mais profundamente que que por aqui viesse de passeio, parodiando a celebrina os anteriores, de tração animal, por suas singularidades Sarah Bernhardt, exclamasse: ‘São Paulo é o paraíso dos tecnológicas e impacto perceptivo-sensorial, foram um burros!’.” Couro e aço iniciam um estranhamento cujas dos principais veículos da transformação comportamenn consequências finais ainda estamos sentindo. tal urbana e sociocultural ocorrida em São Paulo no início do século XX”, observa o pesquisador. Eles, continua, Carlos Haag da cidade que ainda eram servidos por bondes puxados por animais, resolveram usar a força para intimidar o poder público e a Light & Power. Soltaram os burros e colocaram fogo nos bondes”, conta Aprobato. Ao mesmo tempo, os bondes elétricos mexeram não apenas com o ego dos paulistas. “Para uma população acostumada a deslocamentos que tinham como parâmetro a velocidade desenvolvida por bois, mulas e cavalos, a adaptação integral ao novo veículo foi pautada por receios e medos constantes.” O zoólogo Afonso Schmidt descreveu como os “espíritos conservadores, habituados às doçuras dos

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[ Ciência Política ]

Dinheiro para as democracias Evitar corrupção e garantir a competição são preocupação no debate para identificar qual o melhor modelo de financiamento político

Joselia Aguiar

ilustrações catarina bessell

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ão antigo quanto a democracia moderna, o financiamento político é indispensável para sua existência: é o que mantém partidos políticos, divulga candidatos, realiza campanhas eleitorais. Igualmente indispensáveis são as medidas para sua regulamentação, que datam do final do século XIX. A Grã-Bretanha é pioneira ao criar, em 1883, uma lei para prevenir a corrupção nesse campo. Décadas depois, em 1928, com a mesma preocupação em combater práticas ilegais, o Uruguai adotou pela primeira vez no mundo o financiamento público, por acreditar que este seria mais eficaz. Até então, a fonte de recursos era exclusivamente privada. O exemplo uruguaio foi seguido pela Argentina, em 1955, e pela Alemanha, em 1959. Logo outros países optariam por esse tipo de financiamento. Porém não há consenso sobre qual, se o público ou o privado, é o melhor para coibir práticas ilegais – como se vê indistintamente pelos escândalos em países que têm um ou outro tipo, com regras as mais variadas. No debate sobre financiamento de partidos e eleições, impedir manobras corruptas não é a única preocupação. Existe também a de garantir que haja competição saudável, de modo que setores menos fortalecidos economicamente possam, em tese, concorrer com as mesmas possibilidades. “Um modelo adequado de financiamento político para um determinado país pode não ser o melhor para outro”, afirma a cientista política Adla Youssef Bourdoukan, que estudou o tema em sua tese O bolso e a urna: financiamento político em perspectiva comparada, defendida

recentemente no Departamento de Ciência Política da USP, sob orientação de Maria Hermínia Tavares de Almeida. “E o melhor será aquele que garantir um fluxo de recursos que permita a competição eleitoral ao mesmo tempo que minimize as possibilidades de corrupção”, acrescenta. No Brasil, o financiamento é misto – ou seja, os recursos vêm tanto do setor privado quanto do público, sendo o primeiro o predominante. Desde o escândalo Collor – quando denúncias de caixa 2 levaram ao impeachment do então presidente, Fernando Collor de Mello, em 1993, uma série de medidas foi criada pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral) para aumentar a transparência nas contas partidárias, fiscalizar e punir os políticos e partidos transgressores. Mas esse é, segundo a pesquisadora, um processo ainda em andamento, e há diversos casos de impunidade para alguns protagonistas de escândalos em torno de “recursos não contabilizados” em eleições anteriores. Como exemplo dessas medidas importantes, a pesquisadora cita aquelas que permitem que as prestações de contas dos partidos políticos e das campanhas eleitorais possam ser consultadas pelos eleitores na internet. Já é possível verificar as prestações de contas das campanhas eleitorais desde 2002 e dos partidos políticos dos anos de 2007 e 2008. Além disso, evitam-se hoje as “doações ocultas”, aquelas feitas aos partidos e imediatamente transferidas aos candidatos. No passado, a identidade dos doadores permanecia oculta. Eleitores só sabiam que um doador contribuiu para a campanha de determinado partido quando PESQUISA FAPESP 170

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este prestasse contas em abril do ano seguinte à eleição; e mesmo assim não era informado o destino da doação. Com as novas medidas, os partidos políticos têm de declarar a fonte dos recursos que irão transferir para candidatos durante as campanhas eleitorais.

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cientista político Bruno Wilhelm Speck, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor das pesquisas Caminhos da transparência: análise dos componentes de uma sistema nacional de integridade (Editora Unicamp) e Control ciudadano del financiamento politico (Transparency International Secretary), diz que, de fato, o Brasil já avançou bastante no aperfeiçoamento do seu modelo de financiamento. O país, segundo Speck, aposta menos em proibições e vetos e mais em regras básicas de prestação de contas e transparência. “O anterior proibia doações de empresas, mas de fato era uma fachada que camuflava o vale-tudo. Hoje é menos precário”, afirma Speck. Os candidatos e partidos podem receber recursos de praticamente todas as pessoas físicas e empresas, sem limitação efetiva sobre os valores, com a condição única de que prestem contas sobre a origem e a aplicação à Justiça Eleitoral, que divulga estes dados na íntegra na internet. “Há certamente recursos não declarados ainda. Mas há também um volume considerável de recursos – em torno de R$ 2 bilhões por eleição – dos quais sabemos a origem e a aplicação. Conhecemos os grandes doadores. Mesmo que sejam doações dentro da lei, a imprensa observa de perto estas empresas e os políticos que se elegeram com ajuda destes recursos. É um sistema que tem falhas ainda, mas é inegavelmente superior ao que estava em vigor antes. Requer uma Justiça

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eleitoral eficiente e cidadãos atentos e críticos, que questionem os seus candidatos sobre estas doações”, explica o cientista político. Aperfeiçoa-se, assim, o modelo de financiamento já existente, adotando regras mais rígidas para a prestação de contas e a divulgação dos dados. Outra opção, além desse aperfeiçoamento, seria, segundo ele, uma mudança radical para um sistema de financiamento público exclusivo. Porém, como diz Speck, o Congresso Nacional, que tem competência para isso, não avança nesse rumo. “A dicussão em torno do tema sugere explorar caminhos alternativos para tirar a reforma política do beco sem saída em que se encontra há anos”, afirma Speck. No Brasil há muita literatura sobre partidos, sistemas partidários e eleições, mas quase nada sobre como os partidos financiam suas atividades, avalia Maria Hermínia Tavares de Almeida. Por esse motivo, ela considera como pioneira a tese de Adla Bourdoukan. “Os estudos sobre financiamento partidário estão engatinhando no Brasil. A literatura internacional, bem explorada no trabalho dela, mostra que há diversidade nos modelos de financiamento e que são raros os países que se baseiam em apenas um tipo de financiamento. Predominam aqueles que combinam o público e o privado, como ocorre no Brasil”, diz. Novos estudos, segundo ela, podem fazer avançar o debate em várias questões: “Os determinantes da preferência pelos distintos modelos; a espinhosa questão do peso dos recursos não oficiais no financiamento aos partidos; as formas possíveis de monitoramento público do financiamento partidário”.

Os modelos de financiamento político envolvem uma série de variáveis, como explica a autora de O bolso e a urna. São eles que determinam como os recursos podem ser arrecadados. As fontes de recursos podem ser, como se disse, públicas, privadas ou ambas. A depender da escolha de cada país, os doadores podem ser indivíduos, empresas, sindicatos ou associações. Países também podem definir quais os limites para as doações individuais e para a arrecadação dos partidos. E também estabelecer regras sobre como esses recursos são gastos e se podem ser realizados por partidos, candidatos ou por terceiros, se há limites, vetos ou prazos. Geralmente se classificam os modelos de financiamento político em termos das fontes de receita. Dessa forma, nas democracias contemporâneas, encontram-se três modelos de financiamento político: exclusivamente privado, misto e por matching funds (ou contrapartidas).

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o levantamento que fez, Adla Bourdoukan encontrou países que adotam um teto máximo para os gastos com campanhas eleitorais, como Reino Unido, Portugal, Espanha, Argentina, México. Alguns proíbem as doações de empresas com finalidade lucrativa, como Estados Unidos, México, Israel. Outros impedem aquelas feitas por associações sindicais ou patronais. Entre eles incluem-se Brasil, Argentina, França, Portugal, Estados Unidos. Em alguns países há pulverização das fontes de receita dos partidos e candidatos. Os Estados Unidos são um exemplo. Nas suas últimas eleições presidenciais, 34% das doações individuais

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para a campanha de Barack Obama foram de valores considerados baixos, inferiores a US$ 200. A campanha de Obama, segundo ela, foi notória por mobilizar grande número de pequenos doadores, mas se pode dizer que as pequenas doações são uma característica do sistema norte-americano: na campanha de George Bush, em 2004, 26% do total de arrecadação foi em valores inferiores a US$ 200. O modelo de matching funds, no qual o Estado contribui com recursos proporcionais aos arrecadados pelos candidatos, é adotado nas eleições para determinados cargos nos Estados Unidos e na Alemanha, mas, de acordo com a pesquisadora, sofreu um grande golpe nas últimas eleições norte-americanas com a recusa de Barack Obama de participar do esquema por não desejar se comprometer com um teto máximo para seus gastos de campanha.

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financiamento privado sempre foi predominante no Brasil, com exceção do período militar, quando as doações vindas de empresas com finalidade lucrativa foram proibidas e surgiu o fundo partidário. A primeira forma de financiamento público no Brasil foi o horário gratuito para campanhas eleitorais no rádio e na TV, que teve início em 1962. O financiamento público direto, na forma do fundo partidário, foi estabelecido em 1965 e teve existência ininterrupta até hoje, embora com modificações na distribuição dos recursos. Pelos cálculos da pesquisadora, o financiamento público no Brasil representou aproximadamente 28% do total do financiamento político total em 2002, 24% em 2004 e 28,3% em 2006.

Em países que utilizam financiamento exclusivamente privado a competição se dá não só em torno de votos, mas também em relação aos recursos para financiar as campanhas políticas e o funcionamento dos partidos políticos. “Mas não é correto supor que os partidos com acesso a mais recursos seriam mais beneficiados, porque esses recursos não necessariamente irão se transformar em votos”, explica a pesquisadora. “É claro que um mínimo de recursos é necessário para que as propostas do partido ou candidato se tornem conhecidas dos eleitores e assim possam gerar votos, mas uma série de estudos aponta também para um efeito oposto: votos atraem recursos. Isso porque poucos doadores estão dispostos a desperdiçar dinheiro contribuindo com campanhas com poucas chances de vencer as eleições, ao passo que um grande número de doadores estaria disposto a contribuir com campanhas que supõem que possam ser vencedoras, mesmo quando as preferências políticas dos doadores e dos candidatos não são as mesmas”, acrescenta Adla Bourdoukan. No caso do financiamento público, a possibilidade de haver efeitos sobre a competição partidária é maior, alerta a pesquisadora. “O Estado tem de estabelecer critérios para distribuir os recursos públicos: pode dar uma quantidade igual de recursos para todos os partidos ou candidatos, o que equalizaria artificialmente a disputa eleitoral, além de atrair para a disputa candidaturas oportunistas cujo objetivo único seria se apropriar desses recursos, ou destinar recursos proporcionalmente à relevância política dos partidos ou candidatos”, explica. Existem basicamente duas possibilidades para medir essa relevância política, diz ela: com

base no desempenho dos partidos nas eleições anteriores ou na eleição atual. No primeiro caso, que é a opção adotada pela maior parte dos países com financiamento público, existe uma tendência ao engessamento do sistema partidário, pois as eventuais mudanças de preferência do eleitorado no tocante aos partidos políticos não estarão sendo levadas em conta na distribuição dos recursos públicos.

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m O bolso e a urna, a cientista política se detém principalmente no efeito de cada tipo de financiamento – privado ou público – na competição eleitoral. Uma das conclusões é que este costuma variar em função do sistema eleitoral. Em países com sistema eleitoral proporcional – aquele em que se exige um número mínimo de votos e há divisão de votos entre partidos – há mais financiamento público. Na outra ponta, em países em que o sistema eleitoral é majoritário – ou seja, o candidato vitorioso é o que obtém a maioria, e os eleitores votam em pessoas –, há maior predomínio de financiamento privado. “Há predominância de financiamento público em sistemas proporcionais como instrumento de restrição do mercado eleitoral em benefício de partidos mais estabelecidos”, afirma. A pesquisadora diz que países com sistemas proporcionais tendem a utilizar critérios para a distribuição dos recursos públicos baseados no resultado das eleições anteriores. Com isso, segundo ela, a competição pode ficar prejudicada. Tendo em conta as regras atuais para distribuição dos recursos do fundo partidário, a pesquisadora afirma que, no Brasil, é possível que um aumento no percentual do financiamento público em relação ao total (hoje é pouco mais de 20%), ou uma eventual implementação do financiamento exclusivamente público, como já foi proposto, tenha como consequência o engessamento da disputa eleitoral, o que pode levar a uma diminuição do número de partidos. ■ PESQUISA FAPESP 170

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RESENHA

Uma biografia iconográfica de Chagas Livro conduz o leitor pela história do cientista por meio de imagens Walter Colli

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narrativa iconográfica intitulada Carlos Chagas: um cientista do Brasil é um trabalho de fôlego das pesquisadoras Simone Petraglia Kropf e Aline Lopes de Lacerda, da Casa de Oswaldo Cruz. É rico em imagens que conduzem o leitor através da história por meio de documentos da época, cartas, fotos e notícias veiculadas pela imprensa. A história do médico Carlos Chagas entremeia-se com a história da descoberta da doença através de documentos e fotos. O livro contém pouco texto próprio, mas necessário, como o que descreve Chagas como um dos líderes de um movimento que preconizava a intervenção do Estado na saúde pública. O Brasil era doente não porque fosse país tropical ou formado por mestiços, mas porque não havia políticas preventivas na área da saúde. Chagas, pois, além de brilhante cientista foi também um sanitarista. Assim, o livro se subdivide em capítulos que vão desde a infância de Carlos Chagas no interior de Minas Gerais até sua intensa participação no ensino médico, na gestão da saúde, passando, é claro, pela grande descoberta da tripanossomíase americana, conhecida por doença de Chagas. O Rio de Janeiro do final do século XIX e início do XX era tido como porto maldito e túmulo de estrangeiros. Por lá grassavam a febre amarela e a varíola. Muitos sabem da luta empreendida por Oswaldo Cruz para debelar o Aedes aegypti e vacinar a população contra a varíola. Foi necessário impor a vacinação compulsória em 1904 sob a revolta de uma população amedrontada e uma imprensa que veiculava as notícias mais desencontradas. Quando descobertas feitas por cientistas são herméticas ou incompreensíveis para a maioria leiga, eles são acusados de insensibilidade social e in-

Carlos Chagas: um cientista do Brasil Simone Petraglia Kropf e Aline Lopes de Lacerda Editora Fiocruz 308 páginas R$ 70,00

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capacidade de comunicação, mas quando seu trabalho toca em aspectos sociais e econômicos imediatamente formam-se correntes contrárias, ao arrepio da verdade. Para alguns, a verdade não deveria ser proclamada se for desagradável ao poder constituído ou à ideologia predominante. Com Carlos Chagas não foi diferente. Enfrentou poderosos inimigos no interior da Academia Nacional de Medicina (ANM). Contestava-se desde a autoria da descoberta até suas intenções de fazer conferências na Europa, onde iria turvar a imagem do Brasil, expondo suas mazelas, a pobreza, a deseducação. Chagas descobrira a doença em 1909. Um de seus desafetos, Afrânio Peixoto, em 1923, ainda dizia que o mal de Lassance não tinha importância epidemiológica. No trabalho pode-se ver a notícia do jornal O Brasil, de 18 de novembro de 1923, provocada pela reabertura das discussões na ANM sobre quem teria descoberto a doença e seu agente onde, dentre outras, está escrito: “E que idéia ficarão fazendo de nós, dos nossos scientistas, os luminares da medicina estrangeira, ao constatarem que nem no Brasil se sabe quem fez a descoberta importante, negando-se ao médico tido como descobridor as glórias de um caso líquido?”. Essa notícia foi recortada do jornal por ninguém menos que o presidente da República Epitácio Pessoa, que fez anotação enviada a Chagas: “A mediocridade não perdoa ao talento como a treva não perdoa à luz”. O trabalho gráfico é impecável e equiparável aos melhores livros da espécie editados em outros países. Foi feliz a ideia de apresentar o texto em português e inglês. Além de fiel aos acontecimentos, é pedagógico porque atrai a curiosidade dos que tomam conhecimento da história pela primeira vez. Compulsando-a assoma a pergunta que parece sem resposta. Por que um homem que descobre não só uma doença totalmente nova, mas também seu agente etiológico e o vetor de transmissão não foi agraciado com o Prêmio Nobel? A Europa tinha conhecimento da descoberta. Muitos diriam que, na história desse prêmio, há muitas injustiças, explicáveis pela severa competição científica. Mas a doença de Chagas foi descoberta em 1909 e o prêmio não foi concedido de 1915 a 1918, em 1921 e em 1925. Será que nossa mediocridade teria alcançado a longínqua Estocolmo para abater o talento? A qualidade desse belo livro faz jus à estatura de Carlos Chagas, gigante da medicina e da biologia brasileiras.

Walter Colli é professor do Instituto de Química da USP e dedica-se ao estudo do Trypanosoma cruzi e sua interação com a célula hospedeira desde 1970.

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livros

Arquitetura e educação

O cativeiro da terra

Gelson de Almeida Pinto, Ester Buffa Edufscar 152 páginas, R$ 35,00

José de Souza Martins Editora Contexto 288 páginas, R$ 39,90

Neste livro Gelson Pinto, arquiteto urbanista, e Ester Buffa, historiadora da educação, traçam o percurso histórico da instituição universitária nascida na Europa medieval, passando por diversas transformações até a análise de alguns dos projetos de planejamento e construção do campus de grandes universidades brasileiras: UFRJ, USP, UFRGS, UnB e Unicamp.

Após 30 anos da primeira edição de um dos clássicos da sociologia brasileira, José de Souza Martins revisita sua obra incorporando novos textos, atualizando algumas discussões e acrescentando um ensaio fotográfico. O autor afirma que ao mesmo tempo que se abolia o cativeiro dos homens iniciava-se o cativeiro da terra, condenando a modernidade brasileira e a nossa entrada no mundo capitalista a uma modalidade específica de coerção do trabalho.

Edufscar (16) 3351-8137 www.editora.ufscar.br

Clarice: uma vida que se conta Nádia Battella Goltib Edusp 656 páginas, R$ 36,00

A sexta edição ampliada e revisada (com informações recentemente descobertas e imagens inéditas) do livro de Nádia Goltib propõe uma leitura fundamentada tanto em dados biográficos de Clarice Lispector como em considerações críticas sobre sua obra literária e jornalística. A autora aborda a formação da personalidade artística da escritora desde suas raízes ucranianas judaicas. Edusp (11) 3091-4008 www.edusp.com.br

Religiões e cidades: Rio de Janeiro e São Paulo

fotos Eduardo Cesar

Clara Mafra e Ronaldo de Almeida Editora Terceiro Nome / Fapesp 248 páginas, R$ 39,00

Doze autores buscam responder à pergunta central do livro: “Como é possível a convivência de tantos credos em meio à loucura metropolitana do Rio de Janeiro e de São Paulo?” A partir daí os textos se distribuem em três grandes tópicos: “Circuitos e segmentações”; “Sagrado no tempo e no espaço metropolitano”; e “Usos e gestão do espaço público”, todos abordados sob o ponto de vista da relação entre o sagrado e o urbano. Editora Terceiro Nome (11) 3816-0333 www.editoraterceironome.com.br

Editora Contexto (11) 3832-1043 www.editoracontexto.com.br

A luta pela anistia Haike R. Kleber da Silva (org.) Editora Unesp / Imprensa Oficial 488 páginas, R$ 60,00

Este livro é resultado do esforço coletivo que se iniciou após os primeiros abusos da ditadura militar, com as lutas pela libertação dos presos políticos que mais tarde se constituiriam na campanha nacional pela anistia no Brasil. Diversos autores debatem a história política recente do país, refletindo sobre as lutas travadas em favor da democracia, as conquistas e derrotas dos movimentos, além da violação dos direitos humanos. Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br

Florestan Fernandes: leituras & legados Florestan Fernandes Global Editora 376 páginas, R$ 49,00

O livro traz textos essenciais do pensamento de Florestan Fernandes produzidos nas décadas de 1940 e 1950, tendo, em sua abertura, a introdução que ele escreveu, com apenas 26 anos, para a tradução de A contribuição à crítica da economia política de Marx. A segunda parte traz “A educação como problema social”, entre outros. Global Editora (11) 3277-7999 www.globaleditora.com.br

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ficção

A bola azul de Gagarin

Ivana Arruda Leite

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o dia do fim do mundo eu acordei com uma barulheira infernal na calçada. Centenas de pessoas tomavam a rua aos gritos e choro, especialmente as mulheres e crianças. A brigada de soldados ia na frente arrebentando os portões e entrando na casa de quem, por ventura, ainda estivesse dormindo. Na minha, tiveram que pôr abaixo a porta do quarto pra me arrancar da cama. Eu andava com insônia há dias e havia tomado um remedinho pra dormir. Coisa leve. Mas forte o suficiente para achar que os gritos que eu ouvia faziam parte do meu sonho, onde um batalhão de homens fardados entrava no meu quarto. Acordou-me o mais alto deles, arrancando-me da cama num safanão. — Levante-se imediatamente e desça já para a rua. O mundo está acabando. O susto foi tão grande que eu quase morro ali mesmo, antes do fim do mundo. Moro na mesma casa desde o dia em que nasci. Enquanto meus pais eram vivos, morávamos os três aqui. Depois que eles se foram, passei a ser o único ser vivente neste casarão. Tentava desesperadamente dizer isso ao homem que vasculhava os cômodos da casa sem me dar ouvidos. Tenho sessenta e dois anos e nunca homem nenhum me viu nesses trajes. De camisola. Uma camisola de cambraia totalmente transparente. Por mais que eu tentasse esconder os seios, era inútil. Não me deixaram nem apanhar o peignoir que estava sobre a cadeira. Por sorte os chinelos estavam ao pé da cama. O cabelo, que sempre mantenho preso como convém a uma mulher da minha idade, foi solto mesmo. Uma velha descabelada, de camisola, sentada na calçada esperando o fim do mundo. Era isso que eu era. O que tenho eu a ver com o fim do mundo?, eu me perguntava espremida entre uma mulher que amamentava um bebê de poucos meses e outra que dizia à filha que seríamos engolidos por uma falha geológica que se abrira não sei onde. A falha não seria maior do que a boca da menina diante da explicação da mãe.

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danilo zamboni

Mais e mais gente chegava à calçada trazida pelas brigadas. A multidão lotava as ruas do bairro à espera do fim do mundo. Não é de hoje que ouço essa conversa. Desde que o mundo é mundo, seu fim se anuncia. Nem sei quantas vezes ouvi na escola ou no catecismo as meninas apavoradas dizendo que o fim do mundo estava próximo. Vai ser esta semana. Até o fim do mês, é certeza. Desse ano não passa. Chegava em casa desesperada e me pendurava no pescoço de papai. Ele enxugava minhas lágrimas e me consolava: — Sossegue, Lenita, o mundo não acaba tão cedo. Nós todos morreremos e ele continuará existindo por milhões e milhões de anos – a ideia de que eu morreria, de que toda a minha família morreria e o mundo continuaria de pé me dava um certo alívio. Mas eis que no meio da madrugada, quando eu já nem pensava mais no assunto, chegou o temido dia. Parece que de hoje não passamos. À tarde não haverá mais pôr de sol nem alvorecer na manhã do dia seguinte. Nunca mais haverá dia seguinte. Não é triste isso? Só não entendo o porquê de tanto escarcéu. O mundo não podia terminar com cada um deitado na própria cama, no conforto de sua casa? Falha geológica, fogo vindo do céu, oceano engolindo continentes – as informações são totalmente desencontradas. Cada um fala uma coisa. Bomba H, terceira guerra mundial, uma nuvem de gases tóxicos, explosão nuclear, tsunami, terremoto, maremoto. As opções são muitas sem que ninguém se decida por qual será. Castigo divino? Línguas de fogo descendo dos céus? Era assim que as freiras diziam que o mundo terminaria. Nossos pecados eram tantos que a ira de Deus nos transformaria em pó e fumaça. Será esse o nosso fim? Nunca acreditei nessa história de extraterrestres, de vida inteligente fora da terra, mas, e se fosse verdade? Será uma

invasão alienígena? E se o tempo todo eles estavam por aqui só esperando o momento certo do ataque? Seremos resgatados por algum deus de outra galáxia? Teremos uma segunda chance longe daqui? Não poucas vezes perguntei a Bernardo, meu sobrinho geólogo. — Até quando a terra suportará tantos maus-tratos? — Ora, Dinda — ele me dizia —, não é fácil explodir a bola azul de Gagarin. Nós voaremos pelos ares e ela continuará vagando solitária por milhões e milhões de anos. Se ao menos ele estivesse aqui para me explicar o que está acontecendo. As pessoas se desesperam com a falta de notícias. Ontem à noite eu ouvi todos os noticiários e em nenhum deles comentou-se nada sobre o fim do mundo. Ao final, despediram-se como de costume: “Boa noite e até amanhã”. Se eu soubesse que era hoje o dia, teria me agarrado à vida de outro jeito. Com muito mais voracidade. Morrer sem ter cometido nenhuma vilania, nenhuma insensatez? Sem ter perdido sequer a castidade? Presenciar o fim do mundo desse jeito? De camisola, descabelada, longe de Bernardo, sem nenhum conhecido por perto? A brigada nos manda ter calma. Sento no meio-fio e espero. Afinal, a paciência foi sempre a minha maior virtude. Pelo visto, inútil. Ivana Arruda Leite nasceu em 1951, em Araçatuba. É mestre em sociologia pela Universidade de São Paulo. Publicou livros de contos: Falo de mulher, Ao homem que não me quis; a novela Eu te darei o céu – e outras promessas dos anos 60 e dois romances: Hotel Novo Mundo e Alameda Santos. Tem o blog www.doidivana.wordpress.com PESQUISA FAPESP 170

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