O prazer de entender a ciência

Page 1

Agosto 2010· N° 174· R$ 9,50

Novos passos . rumo a" vacina anti-HIV Radar detecta chuva em três horas

LIVROS DE DIVULGAÇÃO

o PRAZER' DE ENTENDER A CIENCIA A

FAPESP



ESA/LFI/HFI Consortia

imagem do mês

Janela para o Universo Não é fácil visualizar. Mas este é o retrato do Universo. Do início dos tempos – melhor, do tempo e do espaço – até a atualidade. Essa imagem é resultado do primeiro ano de operação do satélite Planck, da Agência Espacial Europeia, a ESA. Lançado em maio de 2009, ele se situa hoje a 1,5 milhão de quilômetros da Terra e abriga um telescópio com espelho de 1,5 metro de diâmetro. Durante o último ano o Planck mapeou o céu em todas as direções captando radiação na faixa das micro-ondas. A Via Láctea, nossa galáxia, aparece na faixa central e mais brilhante da imagem e dá uma ideia da aparência atual das regiões do Universo mais próximas de nós. O passado do Cosmo se revela à medida que os olhos se dirigem para as bordas superior e inferior. E quanto mais longe do centro, mais distante no tempo. As manchas vermelhas mostram como era o Universo num estágio muito inicial, muito antes da formação das estrelas e das galáxias. Até 2012 o Planck repetirá esse mapeamento outras três vezes. “Não estamos dando a resposta”, disse David Southwood, diretor de ciência e exploração robótica da ESA. “Estamos abrindo a porta para um Eldorado em que os cientistas podem procurar as pepitas que levarão a uma compreensão mais profunda de como nosso Universo se formou e como funciona hoje.”

PESQUISA FAPESP 174

n

agosto DE 2010

n

3


.·l74

I

AGOSTO 2010

"

SEÇÕES 3

IMAGEM DO MÊS

6 CARTAS 7 CARTA DA EDITORA 8 MEMÓRIA 24 ESTRATÉGIAS 36 LABORATÓRIO 60 SCIELO NOTíCIAS 62 LINHA DE PRODUÇÃO 91 LIVROS 92 RESENHA 94 FiCÇÃO 96 CLASSIFICADOS

WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR

EDLÍTlCA C&T CAPA

30 INOVAÇÃO

18 Uma safra de livros oferece a uma nova

Como o Programa Genom'a FAPESP

geração de leitores brasileiros temas

criou novos paradigmas no ambiente de

científicos

pesquisa brasileiro

em

linguagem atraente

48 EVOLUÇÃO

40 SAÚDE Com participação

As aves se adaptaram

de brasileiros, grupos

à

internacionais

iniciam

nova fase em busca por uma vacina contra o HIV

escassez de alimento e de oxigênio durante o voo

50 AMBIENTE Na Mata Atlântica,

ENTREVISTA

46 BIOINFORMÁTICA

10 Para o economista

Pesquisadores mapeiam rede

José Roberto Mendonça de Barros,

de células humanas

infraestrutura e produção de

adultas e suas precursoras

conhecimento

CAPA

farão

59% das árvores são raras e podem desaparecer

52 GEOLOGIA Há 2 bilhões de anos,

São Paulo puxar o

vulcões reinavam onde agora é

crescimento

a Amazônia

ILUSTRAÇÃO

do país

DANIEL

BUENO

5


llUMAMJ2AI2E.,",--_

IECNOLOGIA 56 FíSICO-QuíMICA

66 METEOROLOGIA

76 MEDICINA

82 SOCIOLOGIA

ram

Nanotubos de

Radar meteorológico

Celulose e cera

Como a política

ento

moléculas biológicas

construldo no Brasil

compõem um

da elite do século XIX

podem virar sensores

faz previsão de chuvas

e células de energia

com três horas

novo modelo de exame clínico

sexualidade

modelou

a nossa

de antecedência

58 HOMENAGEM Reconhecido

80 RECICLAGEM 70 NOVOS MATERIAIS

no

exterior, o padre Jesus

Produtos com alto valor

Moure contribuiu

agregado utilizam-

para

a criação de instituições de pesquisa

resíduo da queima do bagaço de cana

Membranas de caroço de manga servem para tratamento

86 ANTROPOLOGIA As relações entre a universidade, o teatro e a cidade de São Paulo nos anos 1940

de água

90 HOMENAGEM os,

74 ENGENHARIA ELÉTRICA Nova metodologia e software melhoram o controle das perdas de energia do setor elétrico

Marlyse Meyer foi uma notável pensadora da cultura brasileira


FUNDAÇÃODE AMPARO À PESQUISADO ESTADODE SÃO PAULO CELSO lAFER PRESIDENTE

EMPRESA QUE APOIA A CIÊNCIA BRASILEIRA CONSELHO SUPERIOR CELSO lAFER, EDUARDO MOACYR KRIEGER, HORÁCIO lAFER PIVA, HERMAN JACOBUS CORNElIS VOORWAlD, MARIA JOSÉ SOARES MENDES GIANNINI, JOSÉ DE SOUZA MARTINS, .iost TADEU JORGE, lUIZ GONZAGA BEllUZZO, SEDI HIRANO, SUELY VILElA SAMPAIO, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO

BiOLAB

CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO RICARDO RENZO BRENTANI DIRETOR PRESIDENTE CARlOS HENRIQUE DE BR1TOCRUZ DIRETOR CIENTrFICO JOAOUIM J. DE CAMARGO ENGlER DIRETOR ADMINISTRATIVO

FARMACÊUTICA

CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADOR CIENT{F/CO), CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, CYLON GONÇALVES DA SILVA, FRANCISCO ANTÓNIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, JOÃO FURTADO, JOSÉ ROBERTO PARRA, LUrS AUGUSTO BARBOSA CORTEZ, uns FERNANDES LOPEZ, MARIE-ANNE VAN SLUYS, MÁRIO JOSÉ ABDALlA SAAD, PAULA MONTERO, RICARDO RENZO BRENTANI. SÉRGIO OUEIROZ, WAGNER DO AMARA L. WALTER COlll DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA

CARTAS

EDITOR CHEFE NELDSON MARCOllN EDITORES EXECUTIVOS CARlOS HAAG (HUMANIDADES), FABRfCIO MARQUES (POLfTlCA), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNDLOGIA), RICARDO ZORZETIO (CI(NCIA) EDITORES ESPECIAIS CARLQS FlORAVANTI, MARCOS PIVETTA (EDiÇÃO ON-LlNf)

cartas@fapesp.br

Pesquisa Brasil

Contaminação na China

Parabéns pela qualidade do programa de rádio Pesquisa Brasil; realizado pela equipe de Pesquisa FAPESP em parceria com a Rede Eldorado AM. Moro no Canadá e o programa me faz companhia a cada semana, informando e comunicando um pouco do que se passa no Brasil em termos acadêmicos. Obrigado em veicular pela internet os arquivos gravados. Sem isso eu não teria condição de acessá-los,

A nota "Caçadores de recompensas" (edição 171) trata do incidente de contaminação de leite e de preparações lácteas pela melamina na China. O texto se refere a "contaminação do leite" por "um produto químico industrial", sem esclarecer que o agente contaminante foi a melamina, um produto industrial não comestível. A adição dessa substância não foi "para elevar o teor de proteína do leite". Como as proteínas, a melamina contém muito nitrogênio em sua estrutura e os métodos comum ente utilizados para análise não distinguem o nitrogênio de proteína daqueles de fontes não proteicas. A melamina foi adicionada ao leite com o intuito de aumentar seu conteúdo de nitrogênio e, assim, simular um leite de alto valor nutritivo. O incidente não se limita a indicar "problemas que a pesquisa tecnológica enfrenta na China': O caso é de polícia, e não de pesquisa tecnológica.

EDITORAS ASSISTENTES DINORAH ERENO. MARIA GUIMARÃES REVISÃO MÁRClO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGO NEGRO EDITORA DE ARTE lAURA DAVlfilA E MAYUMI OKUYAMA (COORDENAÇÃO) ARTE MARIA CEClUA FElLl E JÚUA CHEREM RODRIGUES FOTÓGRAFO EDUARDO CESAR WEBMASTER SOlON MACEDONIA SOARES SECRETARIA DA REDAÇÃO ANDRESSA MATlAS COLABORADORES ANA LIMA. ANAISA FRANCO, ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS), BEL FALLEIROS, DANIEl BUENO. DANIELLE MACIEL. EVANILDO DA SILVEIRA. FRANCISCO BICUDO, FURIO lONZA, JOSElIA AGUIAR, lAURABEATRIZ, PEDRO HAMDAN, SALVADOR NOGUEIRA E YURI VASCONCELOS, OS ARTIGOS ASSINADOS NÃO REFLETEM NECESSARIAMENTE A OPINIÃO DA FAPESP

t

PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

KENYO ARAúJO PARA FALAR COM A REDAÇÃO (11) 3087-4210

Edmonton, Canadá

cartesetepeso.br PARA ANUNCIAR (11) 3087-4212 mpiliadis(J>fapesp.br

Moysés Nussenzveig

PARA ASSINAR (11) 3038-1434

teoesoeecsoiucoes.com.br TIRAGEM: 37.570 EXEMPLARES DISTRIBUiÇÃO DlNAP GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP PESQUISA FAPESP RUA JOAQUIM ANTUNES, N° 727 - 100 ANDAR, CEP 05415-012 PINHEIROS - SÃO PAULO - SP FAPESP RUA PIO XI, N° 1.500, CEP 05468-901 ALTO DA LAPA - SÃO PAULO - SP

SECRETARIA DO ENSINO SUPERIOR GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

J;;s FSC

Fontes Mistas Grupo de produto provenilMlte de uerestas bem manejadas e outras fonlH controladas WWW.fSC.Ofg

rert

nO.IMO·COC-om52

Ct996forestStewardshipCouncil

Este produto é impresso na PLURAL com papel certificado FSC - garantia de manejo florestal responsável, e com tinta ecológica Agriweb - elaborada com matérias-primas bioderivadas e renováveis.

Gostei muito da entrevista de Moysés Nussenzveig (edição 173) e é louvável o empenho por ressuscitar os kits da Abril. Lamento, no entanto, a ausência do nome de Maria [ulieta Ormastrorii, que cuidou do Ibecc/ Funbec e da iniciação à ciência de centenas de jovens, e de quem ouvi a epopéia de convencer o senhor Civita da importância dos kits, mesmo sendo comercialmente um "mau negócio': Seria justo homenageá-Ia na próxima edição dos kits. VALTER CÉSAR MONTANHER

INSTITUTO VERIFICADOR DE CIRCULAÇÃO

6 • AGOSTO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 174

Campinas, SP

V. DE CAMARGO Faculdade de Medicina, Unesp Botucatu, SP JOÃO LAURO

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727 - 10° andar - CEP 05415-012 - Pinheiros São Paulo, SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.


carta da editora

Ciência em forma de aventura Mariluce Moura - Diretora de Redação

E

xistem múltiplas formas de disseminação do conhecimento científico na sociedade e, talvez, uma das que o Brasil mais tenha tardado em descobrir seja a dos livros de divulgação. Falo em especial daqueles volumes belamente escritos em linguagem decifrável por leigos, com formas narrativas que não descuidam do ritmo para capturar o leitor e, se possível, mantê-lo aprisionado até o final. De livros que sem pudores lançam mão de diferentes artimanhas estilísticas da ficção e não mostram o menor pejo em pegar trilhas por diferentes estruturas dramáticas para fazer da pesquisa científica uma saga extraordinária marcada por infindáveis peripécias. E tanto faz se as aventuras acontecem nos amplos domínios cosmológicos, nas microdimensões do interior da célula humana ou nas altas escarpas da álgebra. Todos os campos, em princípio, guardam chaves e portas por onde se pode alcançar o leitor não especializado e ampliar a cultura científica na sociedade. O que para nós há de alvissareiro agora nesse território é que o mercado brasileiro de livros de divulgação científica ganhou fôlego na última década e deve crescer, conforme constatação do nosso editor de política científica e tecnológica, Fabrício Marques, autor da reportagem de capa, a partir da página 18. Alertado por dicas quase simultâneas do pró-reitor de Graduação da Universidade Estadual de Campinas, Marcelo Knobel, coordenador da coleção de divulgação científica da Editora da Unicamp, e do físico Cylon Gonçalves, que, entre múltiplas atividades, neste momento também coordena coleção similar da pequena editora Oficina de Textos, Fabrício saiu em busca do que havia, de fato, nesse campo dentro das fronteiras nacionais. E retornou de sua investigação com boas notícias, mesmo que o desempenho do mercado nacional, como ressalva, ainda esteja a anos-luz do que se passa nos Estados Unidos, no Reino Unido ou até na vizinha Argentina. Vale a pena conferir.

Em ciência, o destaque desta edição centra-se num tema em que até aqui são muito parcas as boas notícias: HIV/Aids. Entretanto, a busca por uma vacina contra o vírus que nas últimas três décadas infectou 60 milhões de pessoas e provocou a morte de 27 milhões delas recrudesceu de dois anos para cá, e hoje novas estratégias renovam a esperança de que algum dia se chegue efetivamente a um produto que represente uma proteção eficaz contra a doença. Detalhes dessas estratégias estão no relato de nosso editor de ciência, Ricardo Zorzetto, que conta também, a partir da página 40, quais são os grupos internacionais que se encontram à frente dessa busca e que brasileiros participam dela. Quero recomendar atenção à reportagem sobre o radar meteorológico do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), projetado e desenvolvido pela empresa paulistana Atmos. Como narra o editor de tecnologia, Marcos de Oliveira, a partir da página 66, o equipamento faz o monitoramento de nuvens, das tempestades que se aproximam, velocidade dos ventos e, entre outras medições, é capaz de prever chuvas com até três horas de antecedência, o que faz dele instrumento de enorme importância para a Defesa Civil e a prevenção de tragédias ligadas às condições meteorológicas. Por fim, convido-os a voltar à seção de política para que possam ler a reportagem que faz um balanço crítico do Programa Genoma FAPESP, 10 anos depois de seu projeto pioneiro, o da Xylella fastidiosa, ter sido tema de capa da revista Nature e ter colocado a ciência brasileira, como jamais até ali, no mapa da produção mundial de conhecimento relevante – aliás, a Nature lembrou o feito e seus produtivos desdobramentos em editorial na edição de 15 de julho. O projeto da X. fastidiosa, a propósito, teve componentes da mais pura aventura, com o que voltamos ao começo de nossa carta. Boa leitura! PESQUISA FAPESP 174

n

agosto DE 2010

n

7


Sob o céu da Bahia Observações astronômicas de Valentin Stansel foram citadas no Principia, de Newton

O

lhar para o céu e fazer anotações tão precisas quanto possíveis sobre fenômenos celestes nunca foi um problema para o jesuíta tcheco Valentin Stansel (1621-1705). Não importava se estivesse em cidades europeias ou em Salvador, no século XVII. Matemático de reconhecido talento, teve grande parte de sua obra concebida e escrita na capital colonial do Império português e publicada em Praga e Roma. Em 1687 foi citado por Isaac Newton no Princípios matemáticos da filosofia natural, conhecido pelo primeiro nome em latim, Principia. O físico inglês leu no Philosophical Transactions, publicação

da Royal Society, artigo de Stansel sobre um cometa observado em 1668, e usou as informações no livro. Nada mau para um padre que gostaria mesmo era de ter ido ensinar matemática na China em vez de vir para o Brasil. O Oriente estava na moda entre os jesuítas até meados de 1650. O estudo da matemática era valorizado na Companhia de Jesus desde o final do século XVI e foi um dos fatores que tornaram possível a missão na China ao ajudar, por exemplo, na reorganização do calendário chinês. A boa receptividade motivou jovens religiosos a se colocarem à disposição para missões naquela parte do mundo. Nascido em Olmutz, cidade da Morávia localizada na atual República Tcheca, Valentin Stansel estudou filosofia e matemática na Universidade de Praga. Tornou-se professor, realizou experiências e estudos de filosofia natural e escreveu pelo menos um livro até 1654. No ano seguinte partiu para Roma, escala obrigatória para quem vinha da Europa do leste e desejava seguir em missão. Na capital italiana trabalhou com Athanasius Kircher – matemático que era o grande orientador da Companhia de Jesus do período – e construiu uma rede de relações com outros


memória

Reproduções cedidas gentilmente por Carlos Ziller Camenietzki

Frontispício (ao lado) do elogiado Uranophilus (à esq.). Abaixo, o livro que reuniu relatos sobre cometas

sempre dentro do circuito da Companhia de Jesus. Uma das observações sobre cometas, a de 1668, saiu no Giornale dei Letterati, da Itália, em setembro de 1673, e foi traduzida para o Philosophical Transactions, de Londres. Foi dali que Newton tirou a informação sobre o cometa, já que cita nominalmente o trabalho de Stansel. Os relatos astronômicos de 1664/65 e de 1668 feitos em Salvador foram reunidos por seus confrades de Praga no Legatus Uranicus ex Orbe Novo in Veterem, em 1683. Dois anos depois ele escreveu Uranophilus

Caelestis Peregrinus, um elogiado diálogo ficcional entre três personagens que passeiam pelo espaço discutindo sobre o céu e a Terra. No total, Valentin Stansel escreveu nove obras de filosofia natural entre opúsculos e ensaios longos, cinco livros sobre religião e numerosos outros textos curtos. “É uma produção grande, mesmo levando em conta os padrões daquela época”, afirma Carlos Ziller. Sua obra, no entanto, caiu em profundo esquecimento e só voltou a ser estudada na década de 1990.

filósofos naturalistas jesuítas. Em 1657 seguiu para Lisboa, onde lecionou enquanto esperava uma chance de ir para a China. Vários contratempos depois, Stansel finalmente viajou, mas para o Brasil. O comando da ordem enviou um visitador (espécie de interventor), Jacinto de Magistris, para o Brasil com o objetivo de evitar que os jesuítas locais se envolvessem em rusgas políticas. Magistris levou Stansel consigo, em 1663. O religioso tcheco chegou ao Brasil com 42 anos e teve aqui seus melhores momentos como filósofo natural no Colégio de Salvador. “No começo ele não gostou dos jesuítas brasileiros e reclamou da falta de livros e de interlocutores”, conta o historiador Carlos Ziller Camenietzki, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Stansel escreveu para Kircher pedindo para voltar à Europa. Mas depois ele se adaptou, fez amigos e interagiu com outros religiosos e estudiosos.” Na época a cidade tinha figuras de expressão como Antonio Vieira, seu irmão Bernardo, Gregório de Matos e Alexandre de Gusmão, entre outros. Stansel era também considerado um bom astrônomo. Fez muitas observações sobre corpos celestes e publicou livros em Praga e em Roma e textos em periódicos, PESQUISA FAPESP 174

n

agosto DE 2010

n

9


entrevista

José Roberto Mendonça de Barros

São Paulo na nova geografia econômica Para economista, infraestrutura e produção de conhecimento farão o estado puxar o crescimento do país Mariluce Moura e Neldson Marcolin

10

n

agosto DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 174

impacto extraordinário na economia nordestina. “É largamente conhecido o fato de que a vida econômica de inúmeras comunidades só se move quando chegam os pagamentos das bolsas e das aposentadorias”, dizia no artigo. Três semanas depois, em 20 de junho, o Estadão baseava sua manchete dominical de primeira página, “Indústria faz Sudeste voltar à liderança do crescimento”, seguida da explicação “Menos dependente de programas de transferência de renda, região desbanca Nordeste como polo de expansão”, no estudo produzido pela consultoria MB Associados, que oferecera a base empírica para as análises do artigo. José Roberto Mendonça de Barros é sócio fundador da consultoria. Seu currículo, entretanto, envolve muito mais que o trabalho de consultor. Economista doutorado pela Universidade de São Paulo (USP) e com pós-doc no Economic Growth Center de Yale, ex-professor da Faculdade de Economia e Administração da USP, ele foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (1995-1998) na primeira gestão do governo Fernando Henrique Cardoso. Recebeu em 1998 o título de Economista do Ano, concedido pela Ordem dos Economistas do Brasil. Na entrevista que se segue, Mendonça de Barros explora a nova geografia econômica que vislumbra para o país e busca estabelecer o que a pesquisa cien-

tífica feita em São Paulo, ou seja, metade do conhecimento que o Brasil produz, tem a ver com esse redesenho da dinâmica da economia. n A noção de nova geografia econômica a que o senhor se refere é mais ampla que apenas o caso brasileiro, não? Há uma dimensão internacional nessa nova geografia. ­— Eu estava pensando [ao escrever o artigo para o Estadão] com o foco no Brasil, ainda que a geografia econômica esteja sempre se alterando e, nesses termos, exista um fenômeno universal que é a emergência do mundo asiático. Embora BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China) não seja uma categoria analítica como tal porque esses países têm algumas semelhanças, apesar das gigantescas diferenças, acho que eles têm em comum um potencial de absorção grande de pessoas egressas do setor rural que passam a ser integradas no sistema produtivo, daí o consumo se eleva e cria um mercado consumidor com um potencial enorme. Isso foi pensado mais do que tudo em termos de Ásia, em especial China e Índia, os dois países mais populosos do mundo, mas existe esse fenômeno da emergência. n Foi essa mesma visão da geografia econômica que o Prêmio Nobel de Economia Paul Krugman originalmente desenvolveu? — Ele tem um livro famoso de geografia econômica, mas é anterior à importância

fotos eduardo cesar

N

o último domingo de maio, o economista José Roberto Mendonça de Barros publicou um artigo no Estado de S. Paulo sob o título “Nova geografia econômica” no qual propunha que, a partir de 2011, a Região Sudeste – e São Paulo, em particular – puxará o crescimento do país pelos próximos anos, a taxas estimadas de 4% a 4,5%. E explicava em detalhes as principais razões para o estado se tornar o epicentro dessa mudança, que incluem a infraestrutura disponível em São Paulo e a qualidade de seu sistema de produção de conhecimento. São ambos fatores fundamentais para dar suporte aos investimentos em setores dinâmicos e de elevada densidade tecnológica que estão por vir, como o agronegócio vinculado à produção de etanol de segunda geração ou a exploração de petróleo no pré-sal. O prognóstico positivo para São Paulo e Sudeste seguia-se ao exame de por que a Região Nordeste, “onde se concentram os maiores volumes de pobreza do país”, foi a grande ganhadora no processo de crescimento nacional de 2003 até aqui. A melhora na posição das classes E, D e C, explicava ele, ligada aos ganhos reais do salário mínimo (78% entre dezembro de 2000 e maio de 2010), ao vertiginoso crescimento nas despesas da Previdência e à enorme expansão dos programas de transferência de renda, produziu um



que a Ásia acabou tomando. O livro tem já uns 10 anos. Quem realmente tornou famoso esse conceito foi o economista Jim O’Neill, da Goldman Sachs. Então, embora os BRICs não tenham uma relação orgânica entre si, eles têm uma similitude que fundamentalmente é essa: capacidade de incorporar gente, de transformá-la num mercado interno grande. E isso se contrapõe ao resto do mundo – mesmo antes da crise de 2008 – como um polo de crescimento e, junto com isso, de mudança de poder por conta do dinamismo do mercado interno, mais bem aproveitado em alguns lugares, menos em outros. Mas, enfim, dá-se uma alavancagem muito grande a partir do mercado interno, gerando transformações profundas no sistema produtivo e aí, de fato, há enriquecimento. A questão dos BRICs acabou sendo mal interpretada quando se dizia que eles iam crescer como se isso fosse independentemente do resto do mundo. Quando veio a crise, a reação foi na base do “Está vendo? A ideia dos BRICs não funciona”, porque eles não estavam segurando o mundo como um todo. Mas penso que essa nunca foi a ideia, o que está por trás do conceito é algo mais modesto: o potencial de crescimento rápido que, num determinado tempo, vai produzir transformações. E há uma nova geografia no sentido de que o mundo está crescendo na direção da Ásia, da bacia do Pacífico, se quiser, contraposta ao Atlântico – acho que tem algo realmente importante aí e para gerar dinamismo por muito tempo. O Brasil está um pouco longe desse modelo. Passamos a ter uma relação grande fundamentalmente como fornecedores das cadeias de recursos naturais, sejam alimentos ou matérias-primas indus-

12

n

agosto DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 174

triais. Mas essa foi a parte inicial: com o tempo, as relações econômicas, principalmente com a China, vão se aprofundar e este ano o investimento direto chinês no Brasil começou a aparecer. Seguindo um pouco a lógica do que ocorreu com o Japão, com a Coreia, começa-se como fornecedor de exportações para o país, o mercado interno vai crescendo, até que em certo momento faz sentido passar a ter a produção local. Todos os países, na medida em que vão enriquecendo, têm aumentada a importância da exportação de capital. Isso não se dá em detrimento da exportação de mercadorias, mas a de capital aparece de forma maior. Foi assim com a Inglaterra, os Estados Unidos, o Japão, está sendo assim com a Coreia e começando com a China. São relações relevantes, daí a percepção que tenho hoje de que acabou se consolidando uma dupla base de crescimento econômico do país, que se somam e não se excluem. Muitos colegas pensam que há uma dinâmica de exclusão entre a exportação de produtos das chamadas cadeias de recursos naturais e o mercado interno. n O mercado interno cresce alavancado pelos atuais programas redistributivos? — Em princípio não só pelos programas redistributivos, mas, neste período mais recente, por ele mesmo. Agora, mais do que tudo, alavancado por uma possibilidade real de a gente crescer, e aí entram produtividade, inovação tecnológica... E crescer não apenas em extensão, mas também em profundidade, que é o resultado dessas novas atividades, dos ganhos de produtividade. E, ao fazer isso, estamos transferindo esse potencial de compra e essa vontade de comprar para o mercado interno. Acho que o Brasil tem essa plu-

ralidade, não é nova. Países continentais tendem a ter no mercado interno a coisa mais importante – é difícil um país continental depender demais de importações, como pode ser com a Holanda, com a Bélgica, Cingapura, países pequenininhos em que se importa, exporta... Em países continentais não tem jeito, o grosso do atendimento às necessidades locais acaba sendo feito por produção doméstica. n O trabalho que citamos da MB Associados identifica três fatores que determinariam a mudança do polo dinâmico da economia brasileira nos próximos anos para o Sudeste, com especial destaque para São Paulo: a exploração do pré-sal, a disponibilidade de infraestrutura em geral e uma melhor oferta do sistema educacional e da área de geração de conhecimento. Gostaria que o senhor detalhasse essa visão. — O processo de estabilização foi muito longo, porque o aumento de desequilíbrios externos vem lá de trás, a inflação mostrava isso. Estou falando dos anos 1990 para cá, e não do Plano Cruzado (1986), um experimento que acabou não dando certo. A abertura da economia iniciada por Fernando Collor era realmente o rompimento com o modelo de substituição das importações, que tinha se esgotado. A academia vai passar a vida toda discutindo por que exatamente se esgotou, mas há algumas coisas que ninguém consegue explicar em termos definitivos. O aumento da inflação foi o resultado mais visível do esgotamento, a crise do Estado chegou ao nível do absurdo e a crise fiscal era também parte do processo inflacionário, ao que se somou a redução drástica do crescimento a partir dos anos 1980. Tudo isso está mais ou menos interligado e, se pegarmos a sequên­ cia para o rompimento com o modelo antigo, acho que o primeiro passo, ainda nos anos 1980, foi a percepção de que não há saída com inflação alta. Uma vez participei de um programa de tevê com Vicentinho [Vicente Paulo da Silva], que era presidente do então poderoso Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, e no intervalo ele me falou uma coisa do tipo “Zé Roberto, sou presidente do sindicato mais poderoso do Brasil”, o que era verdade, “lido com o setor mais poderoso do Brasil”, o automotivo, o que naquela ocasião era verdade, “consigo os melhores contratos de trabalho do Brasil”, o que igualmente era verdade, “mas perco todos os dias da inflação”, também verdade. Saí daquele programa impressionado, me perguntando, “o Vicentinho falou


isso?”. A inflação gerava uma corrida que para ele estava perdida... A percepção na sociedade abriu espaço para a estabilização. O Plano Bresser, o Plano Cruzado e o Plano Verão foram tentativas. n Quando foi essa conversa? — Em 1989. O que serviu também desse período foi adicionarmos profissionalmente, nós economistas, duas coisas mais que foram base do que veio depois. Primeiro, exorcizar a correção monetária – e os três planos foram aprendizados algo desastrados para desmontar a visão que se tinha da correção monetária e que acabou de vez no Plano Real. E, por fim, com base muito na experiência da Argentina, que também lidou com hiperinflação no período, foi dar nome à coalizão inflacionária, que era o que o Vicentinho descreveu: apesar de conseguir um reajuste salarial forte, o setor automobilístico repassava para o consumidor e o processo se realimentava. n A grande discussão da economia brasileira, de 1985 a 1990, foi justamente essa, não? Como quebrar de forma efetiva a inflação e os fatores que a alimentavam? — Exatamente. Chega-se no fim dos anos 1980 com duas percepções: uma é que, para quebrar a correção monetária, não pode ser feito algo passível de ser discutido na Justiça, senão volta tudo para trás. Foi a experiência ruim que ficou das várias tentativas. E, dois, tem que se abrir a economia, para haver competição com o que vem de fora. É um choque de qualidade. Fácil pensar, difícil fazer – mas foi feito. Na verdade, com a evolução do mundo naquele momento, as crises da Ásia, a crise da Rússia etc., o processo de estabilização demorou 10 anos. E o que aconteceu em 2008, a crise mundial de proporções enormes, com a taxa do dólar saindo de repente de R$ 1,60 para R$ 2,40 – sem provocar inflação –, foi o melhor teste da estabilização que podíamos ter. Para isso foi preciso abrir a economia, tirar a indexação, acertar os preços, melhorar a parte fiscal do Estado, reduzir a dívida externa... E nesse meio tempo tivemos um crescimento muito limitado por 20 anos, porque no perío­do pré-90 havia o problema todo da hiperinflação, e pós-90, pós-93, se estava exorcizando, tirando todos os entraves muito profundos da economia. n Sua avaliação então é que era mesmo impossível o país crescer em termos consistentes durante a década de 1990? — Eu acho. Claro que sempre existem erros de política econômica. A vantagem

É falsa a associação que sempre se faz entre recursos naturais e atraso e baixa produtividade. Se isso foi verdade no passado, hoje definitivamente não é de quem olha depois é perceber o que estava errado. Hoje, por exemplo, a economia está aquecida demais. Mas o fato é que há coisas que demoram tempo para fazer. Por exemplo, ajuste fiscal. É muito mais difícil crescer quando se está cortando do que quando se está expandindo o orçamento. Estamos hoje com todos os orçamentos se expandindo, mesmo estaduais, municipais e certamente o federal, há oito anos em expansão franca. Pode-se discutir se o gasto está adequado ou não, mas quando se gasta mais a economia vai para a frente. Com o ajuste fiscal é o inverso. Portanto, era difícil crescer mais e com esses grandes choques do exterior. Vou resumir assim: foi um longo processo de estabilização, que não terminou ainda porque temos resíduos de indexação. Mas o grosso foi feito, como os processos de ajuste fiscal e de abertura e a redução da dívida externa. Quando se retira a inflação, fica ainda mais perceptível a iniquidade que tínhamos de renda. O salário mínimo era, nos momentos anteriores aos reajustes, de US$ 60, o equivalente hoje a R$ 100. Mas, na verdade, era tão dura a luta de reajustar, reajustar, reajustar, que ninguém tinha uma percepção clara. Uma das discussões do plano de estabilização [que criou o real] era que a estabilização é em si uma redistribuição.

Tanto que em 1995 e 1996 a economia do país cresceu bastante. Mas como a distribuição era particularmente ruim, isso era apenas o início de um processo que teria que continuar. n Mas nesse processo longo da estabilização não houve, tanto na política de abertura quanto nas privatizações, problemas que terminaram por postergar a própria estabilização? — Existiram equívocos no programa de privatização e o maior exemplo é o do setor elétrico. Mas no conjunto ele foi extremamente bem-sucedido, inclusive no fato de tirar o Estado de situações em que só se geravam buracos, coisa que hoje pouca gente lembra. O setor siderúrgico, que era estatal, tinha comido US$ 20 bilhões. A privatização não significa só passar a pagar imposto, significa não gerar buracos. E se na energia elétrica foi mais problemático, a telefonia é um bom exemplo de privatização bem-sucedida. Mas, para mim, o mais complicado naquela ocasião foi a manutenção da taxa do dólar excessivamente valorizada por muito tempo, o que implicava manter o juro real excessivamente alto por muito tempo, porque um segurava o outro. Na minha experiência de governo essa foi uma das discussões que o Banco Central tentou antecipar e, lamentavelmente, terminou da forma mais difícil que foi a desvalorização de 1999. Ela não foi planejada, aconteceu, e penso que foi isso, mais do que tudo, que atrasou o processo. Com a inflação baixa, a segunda coisa que apareceu foi a questão distributiva. E aí então a questão das redes sociais tomou uma dimensão enorme. Isso, em minha avaliação, acabou resultando na construção dos dois pilares do crescimento: o primeiro, a produção competente das chamadas cadeias de recursos naturais, em que o agronegócio é um componente, minérios e metais outro, e, mais recentemente, a área de petróleo e gás. E todos esses resultam de um processo de construção de 30, 40 anos. De tecnologia aqui desenvolvida, seja a de produção de petróleo em águas profundas, seja a capacidade de produzir no Cerrado, seja como trabalhar os minérios com qualidade. Aí há muito conhecimento, e faço um parêntese para desmontar a associação que sempre se faz entre recursos naturais e atraso e baixa produtividade. Se isso foi verdade no passado, hoje definitivamente não é. Todas essas cadeias têm embutidas doses muito significativas de conhecimento, PESQUISA FAPESP 174

n

agosto DE 2010

n

13


que em boa medida vêm da pesquisa. Acho que há certa injustiça com os estados quando se fala em pesquisa agrícola, em particular com São Paulo. Se a Embrapa foi decisiva na área de grãos e no Cerrado, ela nunca lidou com cana, laranja e café. Muito mais recentemente entrou em frutas e hortícolas. Se pegarmos as grandes culturas, em pelo menos três a tecnologia foi toda gerada no plano estadual em São Paulo. n A transgenia na cultura da soja, a biotecnologia para tantas culturas têm sido fundamentais nos últimos cinco anos, não? — Decisivas. Um dos exemplos que costumo dar para me contrapor a essa ideia comum de que recursos naturais significam atraso é que há uma avaliação internacional segundo a qual são quatro as áreas em que mais se fez esforço de pesquisa e desenvolvimento e mais se avançou nos últimos 10 anos: a aeronáutica/astronáutica, a tecnologia da informação, o petróleo de águas profundas, que é um paradigma tecnológico completamente diferente da tecnologia de terra, e a biotecnologia. Duas das quatro áreas têm a ver com cadeias de recursos naturais. n Se pegarmos o exemplo da citricultura em São Paulo vamos falar de investimentos em pesquisa que começaram nos anos 1960, mesmo antes, com a pesquisa da tristeza dos citros nos anos 1950. — Isso, são 50, 60 anos, não é um projeto que começou agora. Com a cana, a mesma coisa, e também o café. A soja é que é mais nova. Na minha tese de doutorado, que comecei em 1971 e defendi em 1973, quando só quem conhecia comida japonesa sabia o que era soja, eu dizia que poderíamos chegar a exportar US$ 300 milhões de soja, o que se considerava uma maluquice completa. Hoje virou um negócio grande mesmo. Foi na soja que a trilogia de abertura do Cerrado, plantio direto e rotação de grãos produziu uma revolução, e isso é a Embrapa dos anos 1970 em diante. n Por que a soja entrou em sua tese? — Affonso Celso Pastore, que mexia um pouco com agricultura, foi o meu orientador. E de 1968 a 1973 ocorrera um grande boom de commodities, que terminou mal com a crise de petróleo em 1973. Nós já mexíamos um pouco com agricultura e o Pastore sugeriu, “Por que não estudamos um pouco de exportações não tradicionais?”. Estudei várias: arroz, 14

n

agosto DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 174

São Paulo é muito menos sujeito a solavancos porque tem uma institucionalidade madura na base da pesquisa, que começou, na verdade, no século XIX

amendoim... Quando comecei, não conhecia muito soja, mas percebi que uma coisa extraordinária tinha aparecido. Nos anos 1950 os americanos desenvolveram toda a tecnologia da produção de aves em cativeiro. Para produzir as aves, precisa-se de ração e para produzir ração tem-se que misturar alguns minerais e algo volumoso, que é o milho, com alguma proteína. A proteína vinha de farinha de peixe, basicamente das anchovetas pescadas sobretudo na costa do Peru. Mas ocorreu um fenômeno meteorológico na região e as anchovetas sumiram. O mercado ficou carente de uma fonte proteica para ração e como a soja é uma proteína vegetal de boa qualidade, o farelo desse grão começou a ser utilizado. No Brasil, plantava-se soja muito mais para refazer o nitrogênio na terra, no meio do café. E a pesquisadora Johanna Döbereiner, famosíssima, começou a fazer as primeiras pesquisas de fixação de nitrogênio no solo. n Mas voltando às cadeias de recursos naturais... — No início dos anos 2000, essa cadeia de recursos naturais acabou por se consolidar, com a exportação desses produtos e com uma rede de polos de crescimento. Por quê? Primeiro, com a desvalorização cambial de 1999, a parte externa da eco-

nomia se acertou finalmente, com câmbio flutuante e tudo mais. Segundo, ao lado da oferta já tínhamos consolidado conhecimento, tecnologia etc. Em terceiro lugar, 2001 teve uma recessão curta, porém intensa, e o mundo começou a entrar numa fase de crescimento e, mais do que tudo, a China consolidou aquele crescimento rápido. O crescimento mundial junto com o da Ásia é que deu essa perna, hoje francamente consolidada. Acho que tem duas percepções equivocadas: uma, é quanto ao grau de tecnologia envolvida nessas cadeias, muito mais profunda do que se pensa. E, outra, é que essas cadeias são muito mais longas do que se imagina. As pessoas pensam numa fazenda e nos grãos de soja, numa mineradora e no minério de ferro. Mas, se pegarmos a cadeia, temos produtos cada vez mais sofisticados. O fato é que temos energia renovável por causa da água e com a cana passamos a tê-la pela queima do bagaço, decorrente de desenvolvimento tecnológico cada vez mais aprimorado (altas pressões). Isso para não falar na tecnologia de petróleo, que é muito sofisticada. n Aí tem grande competência acumulada, inclusive pelas articulações dos centros de pesquisa com as universidades. — Exatamente. Acho que a segunda percepção equivocada é quando se pensa que as cadeias dos recursos naturais se resumem à produção agrícola e à produção mineral. Isso vai muito mais longe e, em consequência, o volume de emprego gerado por tais cadeias direta e indiretamente é enorme. Na cadeia da soja, a estimativa é que estejamos chegando a 1 milhão de empregos. E quanto à cana, exatamente para mostrar a sofisticação da cadeia, fiz um gráfico de fluxos [ver na página 16]. n Mas por que, no cenário de estabilidade já em cena em 2000, com o país preparado para crescer, São Paulo passa a crescer menos que a média nacional? — Só para encerrar o que estava expondo: consolidada a parte da exportação e do agronegócio, podíamos olhar com mais detalhes a economia toda. E, por outro lado, muito também por conta da estabilização, tivemos algumas coisas acontecendo nesse início. Primeiro, foi uma saudável redistribuição de certas atividades econômicas em direção a regiões com salário mais baixo. Assim, uma boa parte da indústria calçadista, antes concentrada em Franca e no Vale dos Sinos, foi para a Região Nordeste. Hoje ela existe na Bahia, na Paraíba, no Ceará etc.


O mesmo aconteceu com a indústria têxtil e o exemplo maior é o da Coteminas, que tem um polo em Campina Grande. Em paralelo, os custos de produção em São Paulo começaram a crescer muito e isso se tornou também uma razão para a redistribuição das atividades. O ABC [Região Metropolitana de São Paulo] estava completamente ocupado e, na fase e ampliação em que entrou a partir do Plano Real, a indústria conseguiu se espalhar no país. Mais incentivo fiscal consolidou o polo mineiro, levou a Ford para a Bahia e a GM para o Rio Grande do Sul. Quando a montadora vai para um lugar, pela tecnologia de produção do just in time, ela é obrigada a ter seus fornecedores ali. n Isso coincide com o momento em que São Paulo começa a ter participação decrescente no PIB. — Já vinha de antes, mas isso ajudou. E aí, sim, entram os programas de redistribuição de renda, levando a um crescimento vertiginoso dos mercados de bens de consumo. O Nordeste é o grande exemplo, mas não foi só lá. O que falei antes sobre o setor têxtil, de calçados, automóveis, refere-se à lógica da produção. E agora entra a lógica da demanda: o crescimento do consumo explodiu e isso fez a Região Nordeste crescer mais rápido, ainda que tendo que trazer de fora muitos bens lá consumidos. Esse é o período áureo do processo. Esse tipo de crescimento traz naturalmente um boom dos investimentos em expansão comercial para atender àquela nova classe que está emergindo. É importante destacar que foi muito mais crescimento da demanda que da produção. n Esse dinheiro que aumenta a demanda sai do governo? — Sim, é transferência do governo. É o INSS, o salário mínimo e as bolsas Escola, Família etc. Mas gostaria de fazer um parêntese: no gráfico que preparei [ver www.revistapesquisa.fapesp.br], a exportação do complexo soja, do complexo carnes, produtos florestais, sucroalcooleiro e alguns setores menores individualmente, vemos que o valor total da soja em grãos em 2009 foi de US$ 17,2 bilhões. O complexo carnes gerou US$ 11,7 bilhões. Produtos florestais, US$ 7,2 bilhões. O complexo sucroalcooleiro, US$ 9,7 bilhões, e café, US$ 4,2 bilhões. Queria mostrar como aparece o complexo da cana. Observamos a produção de cana, o relacionamento com a indústria de má-

quinas e equipamentos, insumos, serviços e os ganhos tecnológicos que vêm da pesquisa e da interação da pesquisa com máquinas, fertilizantes e tudo mais. A mesma cana tem hoje taxa de extração maior do que há 20 anos, o que tem a ver com a natureza dos equipamentos. Na indústria, que antigamente só servia para fazer açúcar, sai agora o caldo, o bagaço e os resíduos. Com o caldo se faz açúcar, álcool, bioplástico – valendo-se dos microrganismos adequados –, e estão em tempo de pesquisa os combustíveis de segunda geração, que são os da celulose. n E isso é exclusivo do Brasil, não? — Sim, desse tamanho não tem nada parecido. Na Índia é um negócio pequeno e basicamente para fazer açúcar. A África está no princípio do início do começo. O Brasil é o único lugar do mundo em que se tem uma frota de milhões de veículos usando só etanol, o que é uma inovação. O flex do etanol, mesmo simples, é uma inovação, que ajudou inclusive a nos defender da crise. O bioplástico tem uma demanda infinita, se olharmos com a visão de hoje. Os projetos que estão saindo ainda são um pouco caros, e o bioplástico do futuro precisa vir de fonte renovável e ser biodegradável em seis meses no chão.

n O Programa de Pesquisa em Bioenergia, Bioen, é, a propósito, um dos prioritários da FAPESP. — Tem toda razão de ser, porque isso é um breakthrough mesmo. Em nosso gráfico mostro ganho de produção na cadeia da cana vinculada à variedade, regionalização da pesquisa, otimização da pesquisa (a cana para gerar energia é diferente de cana para açúcar), variedades transgênicas, novos players, sistema de produção, terceirização, colheita mecânica, irrigação, alongamento da safra, cana orgânica, relação com equipamentos, relação de insumos, controle biológico de pragas... Tudo isso vai adicionando ganhos. Fechamos o parêntese e, resumindo a primeira parte, a combinação de estabilidade, crédito e programas de transferência gerou uma expansão de consumo que foi muito mais forte no Norte e Nordeste. E agora a segunda linha de argumento: por que Sudeste e São Paulo voltariam naturalmente a crescer mais? São dois grupos de razões. O primeiro é simples: esse movimento que podemos chamar de inclusão está batendo nos seus limites. Não se tem mais 12 milhões de famílias para botar no Bolsa Família. Segundo, se estamos corretos, o Tesouro Federal não terá a folga de recursos que teve até aqui porque aumentou muito os gastos, vai aumentar o valor real do salário mínimo, que tem efeitos positivos, mas aumenta custos, Previdência, tudo mais. Nesse sentido, o Bolsa Família é até o menos problemático dos programas, são R$ 12 bilhões por ano, não é tanto assim. Mas é o conjunto das coisas. Então achamos que vai ser difícil manter a mesma taxa de expansão das transferências por razões de dinheiro mais curto e porque em boa parte a clientela a ser incluída já está atendida. A partir daí nossa necessidade tem muito mais a ver com educação e inclusão no mercado de trabalho. Acreditamos que nas regiões que recebem mais recursos do programa de inclusão, o Norte e o Nordeste, essas transferências não crescerão na mesma velocidade. Um segundo ponto que se soma a isso é que no Nordeste os polos tradicionais de crescimento amadureceram. Não é que vão voltar para trás, mas já estão maduros, como é o caso do polo petroquímico na Bahia, o polo de frutas de Petrolina, que deu um grande salto e agora cresce devagarzinho, o polo cloroquímico de Alagoas, outro tradicional que também hoje cresce pouco. A Ford da Bahia, por exemplo, ou constrói outra fábrica nova ou não expande. Tem uma exceção, em Pernambuco. PESQUISA FAPESP 174

n

agosto DE 2010

n

15


A expansão da cana-de-açúcar O PIB do setor sucroenergético foi US$ 28,2 bilhões em 2008, quase 2% do PIB nacional

Produção de cana Ganhos tecnológicos Indústria

Caldo

Açúcar

Biocombustíveis de 2a geração

n Ligada ao porto. — Ao Complexo Industrial e Portuário de Suape. Já existia um dinamismo em Recife, reconhecidamente um centro médico da Região Nordeste, tem um polo de TI mais antigo, mas acima de tudo a novidade foi Suape e o que está em torno dele. Está lá a maior fábrica de resina PET do mundo, do grupo italiano Mossi & Ghisolfi, tem o estaleiro enorme, um dos maiores da Camargo Correia, e vem sendo construída a primeira das novas refinarias da Petrobras. Há um conjunto de atividades expressivas, mas na região como um todo não é assim. Minha visão é a de que, do lado da demanda, não vai ter mais o salto que se teve e, do lado da oferta, fizemos várias vezes estudos com atenção aos novos projetos e, tirando Suape, não tem nada para produzir um salto. n Vocês analisaram projetos que estão para começar ou que já começaram? — Analisamos muitos projetos, alguns já em andamento. A Transnordestina está atrasada e a transposição do São Francisco é algo que aparentemente não vai nem para um lado nem para o outro. Achamos que a refinaria em São Luís e outras são decisões fundamentalmente políticas e não vão acontecer. O que tem 16

n

agosto DE 2010

n

Resíduos

Bagaço

Álcool

Bioplástico

Máquinas Equipamentos Insumos Serviços

PESQUISA FAPESP 174

Levedura Energia elétrica

Biocombustíveis de 2a geração

para crescer ainda é o polo de produção agrícola Luís Eduardo Magalhães, no oeste da Bahia. n Vamos nos concentrar agora nas razões do provável crescimento do Sudeste. — Por que no Sudeste, e em particular São Paulo, vamos crescer mais? Primeiro, há a natureza: o pré-sal está concentrado do Espírito Santo até São Paulo. E, se olhamos os projetos da Petrobras, o grosso do investimento vai estar em frente a Santos. Não é só por causa dos poços, é mais porque, corretamente, a meu ver, a Petrobras não quer depender tanto do estado do Rio. A empresa ficou muito marcada por um período muito confli­ tuoso dos dois Garotinhos [os governadores Anthony e Rosinha Garotinho], com aumento de impostos, ameaças de mais ICMS sobre os equipamentos, de modo a inviabilizar projetos... Estrategicamente, a Petrobras aumentou na ocasião o gasto no Espírito Santo. O Sudeste como um todo vai crescer com o pré-sal, mas o salto vai ser em São Paulo. Tanto que em Santos estão construindo uma sede enorme, com muito investimento em recursos humanos. E o petróleo não é só petróleo, mas o que vem junto com ele. Seu impacto sobre as universidades, a pesquisa, os produtores de bens de ca­

Tortas

Vinhaça

Nutrição animal

pital, de embarcações... E também há a área de software. O petróleo tem uma área de hardware grande, equipamentos gigantescos, mas como sempre quem manda em tudo aquilo é software. Acho que o exemplo que todo mundo tem é a Noruega: nunca tinha produzido petróleo até achar, mas o produto está agora na fase declinante e o que eles exportam hoje é tecnologia de petróleo. Como em Aberdeen, na Inglaterra, ou em Houston, nos Estados Unidos, é o centro do conhecimento que importa. Então tem um pouco essa ambição e acho que a Petrobras está correta nesse sentido. n E nas mais de 50 redes temáticas de pesquisa mantidas pela Petrobras com universidades brasileiras, isso deve disseminar mais e aprofundar o conhecimento sobre petróleo. — Exatamente. Em paralelo, hoje há a percepção de que, além da pesquisa na universidade, é preciso treinar os técnicos intermediários. O operador de plataforma tem que ter um treinamento específico porque lida com um sistema complicado. Não é trabalho de peão, é algo muito mais sofisticado. Portanto, o impacto do pré-sal deve ser muito grande. Na verdade, acho que já está sendo sentido, naquilo que antecipa uma nova atividade de peso.


Por exemplo, o mercado imobiliário de Santos já mudou, ela vai virar uma cidade de grandes negócios. n E isso se estende por todo o litoral sul do estado? — Sim, vale para Caraguatatuba também, que é a área do gás, mas o centro é Santos. O governo estadual montou uma comissão há quase dois anos para discutir o que se pode fazer para maximizar os benefícios do investimento da Petrobras. E não se trata só de infraestrutura, mas também de recursos humanos. Em faculdades já há dezenas de cursos sendo criados por conta disso. O core da pesquisa mais pesada vai ficar no centro da UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro], mas vai ter mais do que isso. Independentemente de qual seja a velocidade do pré-sal, é um negócio muito grande e está no Sudeste. E o novo está em São Paulo. Volto a dizer, a Petrobras tem interesse em diversificar suas três pernas, Vitória, Rio de Janeiro e São Paulo, como forma até de diluir riscos. n Quanto dos R$ 110 bilhões que a Petrobras pretende investir no pré-sal virá para São Paulo? — Pelo menos 40%. Nessas coisas não se tem muita certeza, até porque a Petrobras muda um pouco de um documento para outro. n Vem daí o maior impacto para que São Paulo se ponha no centro geográfico de uma nova geografia econômica? — Não, vem de uma combinação de três ou quatro fontes ao mesmo tempo. Primeiro, há o pré-sal. Segundo, ainda nessa área de recursos naturais, o crescimento do valor adicionado da cadeia da cana. Por conta dessa nova realidade, Santos se consolidará como polo de exportação disso. Há três projetos de alcoolduto e todos terminam em Santos, porque no estado de São Paulo é onde se tem a infraestrutura e o centro da inteligência. n De exportação? — É. O grosso da exportação de açúcar hoje é por Santos. E álcool vai ser. Mas, voltando à nova geografia econômica, outro ponto é que já está acontecendo em São Paulo um crescimento na área de serviços mais sofisticados e isso vai se intensificar. Estou falando de saúde, por exemplo. A população brasileira vai envelhecendo e a demanda por esse serviço cresce. Não se trata só de hospital, mas do cluster da saúde, que inclui software,

equipamentos, manutenção de equipamentos, hospitais, o pré-operatório e o pós-operatório. E isso se amplia para o conceito de bem-estar, a prevenção da saúde, que envolve a ginástica... Esse bolo é um negócio enorme e de alta produtividade. Fizemos alguns estudos sobre isso e não há dúvida de que o centro é São Paulo, pela concentração de conhecimento, de serviços novos, excelentes hospitais etc. Não é que não haja isso em outros lugares, mas o centro é aqui. n Isso tem um peso grande no setor de serviços? — É considerável, mas a última pesquisa do IBGE direcionada para isso é de 2007. E ainda não pega tudo que está acontecendo. Se conseguisse medir inclusive construção imobiliária ligada a esse impacto, se veria que isso está concentrado em São Paulo. n São Paulo vai se tornando um polo para um pedaço do mundo. — Decerto. O que gera emprego de boa qualidade e renda. A internacionalização dos serviços de saúde está começando aqui. Isso significa o cidadão vir do exterior para fazer um tratamento aqui, seja dentário, seja médico, em hospitais credenciados, pago pelo seu seguro de saúde nos Estados Unidos, por exemplo, porque é muito mais barato do que lá. Hoje, tanto o Hospital Sírio-Libanês quanto o Einstein têm diretores internacionais só para aumentar a parte de serviços internacionais. A Costa Rica tem um negócio grande nesses termos, mas o maior do mundo é a Malásia. Mais de 1 milhão de pessoas vão para lá em busca de serviços de saúde em geral não muito grandes, mas enormemente mais baratos. E não fica só nisso: o pós-operatório vira uma atividade de turismo, como ocorre na Costa Rica. Agora, tem que ter competência, ser certificado nos Estados Unidos etc. São Paulo tem cada vez mais gente para isso. O outro exemplo são atividades criativas em geral. Li recentemente uma reportagem no Estadão sobre São Paulo como centro mundial de revistas de história em quadrinhos. Mas pode pôr aí publicidade, filmes, produção para internet, moda, arquitetura... n É aquela produção da cidade global, não? — Isso. E que se chama de economia criativa. Não temos isso só em São Paulo, o Rio de Janeiro também tem, por causa da Rede Globo, em especial na parte criativa. Mas o epicentro disso está aqui,

em razão da sofisticação da demanda, nível de renda, qualificação técnica... A terceira coisa que leva São Paulo para o centro da nova geografia econômica é a infraestrutura. Na precariedade da infraestrutura brasileira, São Paulo está um pouquinho melhor no que diz respeito ao transporte de mercadorias. n E sobre o significado da infraestrutura de pesquisa em São Paulo no novo papel que o estudo atribui ao estado? — Penso que todas essas atividades de alta produtividade, seja no serviço ou nos recursos naturais, obviamente demandam e são suportadas por uma capacitação de geração de conhecimento. Tanto no treinamento das pessoas como especialmente no setor de pesquisa. E acho que São Paulo tem nisso um pioneirismo e uma liderança que se mantêm. Inclusive em parte da pesquisa biológica, da pesquisa agronômica, da pesquisa agrícola. E aí São Paulo tem de diferente, primeiro, uma institucionalidade muito mais poderosa e a FAPESP é um dos pilares disso. O estado é muito menos sujeito a solavancos, porque tem uma institucionalidade madura da base de pesquisa, que começou, na verdade, no século XIX, com a pesquisa agronômica. As pesquisas da Politécnica geraram o IPT [Instituto de Pesquisas Tecnológicas], que já alcançaram um século. Portanto, temos tradição e esse bom modelo institucional de financiamento em paralelo à abertura para novas formas. As redes de laboratórios, os projetos desenvolvidos em rede como foi feito em relação ao amarelinho [ver página 30 sobre o pioneiro projeto genômico do país] falam dessa capacidade. n Para tornar sustentável o crescimento que seu estudo projeta, não será preciso fazer um bom investimento em formação de pessoal? — Acho que os economistas aprenderam que a vantagem ou a desvantagem de um país, hoje, mede-se por duas coisas: infraestrutura (não há como importar uma estrada) e talentos. Talento em geral, que inclui desde os treinamentos mais simples até os mais sofisticados. Você pode importar mil, 2 mil, 5 mil, 10 mil profissionais talentosos, mas não pode importar 5 milhões deles, não existe isso. O que significa que o Estado, as empresas, todos têm que apostar na formação de talentos. Porque se o hardware está na infraestrutura, a guerra mesmo é uma guerra de software, que é gente. Este é um mundo de software, aí é que está o valor. n PESQUISA FAPESP 174

n

agosto DE 2010

n

17


capa


compreendida Uma safra de livros oferece a uma nova geração de leitores brasileiros temas científicos em linguagem atraente Fabrício Marques | Ilustrações Daniel Bueno

O

mercado brasileiro de livros de divulgação científica, aqueles que buscam traduzir temas da ciência para a linguagem dos leigos, ganhou um fôlego inédito no país na última década. O advento de coleções desse gênero lançadas por editoras universitárias e comerciais vem despertando o gosto de leitores para uma safra de obras que vai da astronomia e da biologia à matemática e também privilegia temas emergentes como as mudanças climáticas, as células-tronco e a neurociência. “Das modalidades de divulgação científica, a dos livros é a que permite uma abordagem mais densa e aprofundada”, diz o físico Marcelo Knobel, pró-reitor de Graduação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e responsável pela edição de uma nova coleção de divulgação científica da editora da universidade, chamada Meio de Cultura. Das seis obras lançadas até agora pela Unicamp, cinco são traduções de originais estrangeiros, mas houve a preocupação de escolher autores fora do eixo anglo-saxão, que é o mais explorado pelas grandes editoras. Um dos livros é Dez teorias que comoveram o mundo, dos argentinos Leonardo Moledo, diretor do Planetário de Buenos Aires, e Esteban Magnani, professor de jornalismo científico. Narra momentos cruciais da produção do conhecimento, do heliocentrismo de Nicolau Copérnico à relatividade de Einstein, mostrando como o gênio dos grandes cientistas apoiou-se num processo de construção coletiva em que a maioria das peças do quebra-cabeça foi reunida, por tentativa e erro, graças a inúmeros pesquisadores que nem sempre entraram para a história. “A divulgação científica é a continuação das ciências por outros meios”, costuma dizer Moledo. Outra obra da coleção, A extinção dos tecnossauros, do


Livros de divulgação científica: mercado em expansão

italiano Nicola Nosengo, tem ambição semelhante, mas trata das transformações tecnológicas e de seus sucessos e fracassos, explorando a trajetória de engenhos promissores que naufragaram no teste do mercado ou que, depois de se tornarem essenciais na vida das pessoas por muito tempo, mergulharam na obsolescência e viraram peças de museu. “O essencial, nesta coleção, é que sejam livros bem escritos e agradáveis de ler”, diz Marcelo Knobel. A editora Vieira & Lent, do Rio de Janeiro, foi fundada em 2002 tendo como prato principal a divulgação científica, embora também publique obras nas áreas de educação e ciências humanas. Seu catálogo reúne 70 títulos e o maior sucesso é O cérebro nosso de cada dia, com 30 mil exemplares vendidos – número respeitável para o padrão editorial do país –, escrito por Suzana Herculano-Houzel, neurocientista do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O dono da editora, o neurocientista Roberto Lent, venceu recentemente a 30ª edição do Prêmio José Reis de Divulgação Científica, concedido pelo CNPq. Antes de criar a Vieira & Lent, ele já tinha um extenso currículo de contribuições para a popularização da ciência, escreve uma coluna na revista Ciência Hoje, que ajudou a fundar, e é autor de vários livros de divulgação científica para adultos e crianças. “As descobertas da ciência e as novas tecnologias despertam o interesse 20

n

agosto DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 174

das pessoas e constituem uma fonte de temas que não esgota nunca”, diz Lent, ressaltando que sua editora, embora bem estabelecida no mercado, não é um empreendimento de grande lucratividade. “Conseguimos nos manter e lançar novos títulos. Talvez seja mais fácil para outras editoras, que trabalham com muitas obras de divulgação traduzidas. Mas para nós, que privilegiamos o autor nacional, é complicado, pois custa bem mais caro”, afirma. Cotidiano - É certo que o desempe-

nho do mercado brasileiro ainda está a anos-luz dos países desenvolvidos, como Estados Unidos e Reino Unido, onde grandes cientistas como o astrofísico Stephen Hawking, o zoólogo Richard Dawkins e o biólogo Stephen Jay Gould obtiveram sucesso retumbante na carreira de divulgadores, vendendo milhões de livros no mundo inteiro. O mercado brasileiro também é tímido quando comparado ao da vizinha Argentina, onde uma coleção de 32 títulos de divulgação científica chamada Ciên­ cia que Ladra, dedicada a explorar a ciência escondida no cotidiano, com tiragem de mais de 1 milhão de livros. O carro-chefe são quatro obras sobre matemática, de autoria do jornalista e professor Adrián Paenza, que, juntas, já venderam 500 mil exemplares. “A escola de divulgação científica anglo-saxônica nos ensinou que é possível ler livros sobre temas científicos apaixonadamen-

fotos eduardo cesar

te, como se fosse uma novela”, disse ao jornal Clarín o biólogo argentino Diego Golombek, professor da Universidade Nacional de Quilmes e organizador da coleção. “O fundamental é surpreender o leitor, ajudando-o a entender um fenômeno da natureza numa leitura prazerosa”, afirma. No Brasil, três títulos da coleção Ciência que Ladra foram lançados pela editora Civilização Brasileira, um dos selos do grupo Record, mas ainda não alcançaram grandes vendagens. Com a experiência de quem se formou na Argentina e radicou-se no Brasil há várias décadas, o neurocientista Iván Izquierdo, pesquisador da PUC do Rio Grande do Sul, define a diferença entre os dois países. “A Argentina tem uma tradição cultural de 200 anos e o Brasil tem a metade disso. Até a língua portuguesa demorou a se firmar como padrão nacional, pois a referência da elite era o francês. A escravidão e o fato de o país ter se tornado uma monarquia têm a ver com isso”, diz Izquierdo, que tem uma experiência de sucesso no mercado de divulgação científica. O livro A arte de esquecer – Cérebro, memória e esquecimento (Vieira & Lent), que narra numa linguagem simples as pesquisas do neurocientista sobre os mecanismos da memória, vai ganhar uma segunda edição atualizada e será lançado em espanhol por uma editora mexicana. “O título do livro instiga os leitores e foi uma boa surpresa a receptividade que teve”, afirma Izquierdo.


Se no Brasil o mercado editorial de divulgação científica só agora está saindo da infância, não é trivial o fato de despontar no país um robusto conjunto de títulos publicados que não existia até o final dos anos 1990. A compreen­são de temas científicos estimula o pensamento crítico e é considerada um pré-requisito para a democratização da informação e para semear vocações em carreiras acadêmicas e tecnológicas. “É preciso despertar cada vez mais a curiosidade das crianças e dos jovens para temas científicos se quisermos seguir produzindo ciência”, diz Shoshana Signer, engenheira civil e fundadora da Oficina de Textos, editora de livros acadêmicos que desde 2004 lançou a série Inventando o Futuro, uma coleção de divulgação científica sobre temas de fronteira, como nanotecnologia, energia, radicais livres, DNA e Amazônia. “Apesar do retorno de vendas discreto, vejo como uma missão social da editora enfrentar esse problema. Sem uma percepção dos cidadãos sobre temas científicos, fica difícil enfrentar os gargalos na formação de recursos humanos e os desafios do desenvolvimento”, afirma. A popularização dos livros de divulgação científica teve início em meados do século XIX, quando começaram a ser editados em países como França, Alemanha e Inglaterra. Muitos cientistas se lembram de algum autor desse gênero que alimentou sua curiosidade na infância e na adolescência, assim

A compreensão de temas científicos estimula o pensamento crítico e ajuda a semear novas vocações acadêmicas

o controle da produção de energia é uma questão fundamental. Sem ele, a sobrevivência da nossa civilização está ameaçada”, afirma. O capítulo inicial do livro, que narra o pesadelo de um mundo sem energia elétrica, é apresentado na forma de uma história em quadrinhos. Mas a coleção não abre concessões ao rigor científico. “Exige-se que o leitor tenha curiosidade sobre o tema e interesse para entendê-lo”, diz Cylon, que nos anos 1980 comandou a implantação do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron e, em 2000, foi um dos organizadores da Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, realizada no ano seguinte. Atualmente é coordenador adjunto da FAPESP para programas especiais. Temas de fronteira – Os livros de di-

como a divulgação científica teve um papel na opção profissional de médicos, engenheiros e técnicos. Einstein, por exemplo, foi um ávido leitor dos livros de Henri Poincaré, filósofo, físico e matemático que escreveu diversos livros nesta área na virada para o século XX. O físico Cylon Gonçalves da Silva, professor emérito da Unicamp e autor do recém-lançado De Sol a Sol, energia no século XXI, da Oficina de Textos, cita a influência de Fritz Kahn (1888-1968), um médico judeu alemão autor de livros sobre astronomia e medicina, em especial sobre o corpo humano. “Eu era um adolescente no interior do Rio Grande do Sul e tinha uma avidez enorme por informação sobre ciência e tecnologia. Era a época do Sputnik e da bomba atômica. E o Fritz Kahn me marcou bastante”, diz Cylon, que, além do livro de sua autoria, coordena os lançamentos da coleção. “Hoje os temas são também fascinantes: há a engenharia genética, as mudanças climáticas, a eletrônica...”. Ao escrever De Sol a Sol, Cylon procurou traduzir os desafios da produção de energia para uma linguagem leiga. “O objetivo é mostrar para a garotada como o tema da energia é crucial e a importância de buscar fontes sustentáveis. O Brasil é um país privilegiado, pois boa parte de sua matriz energética é composta por fontes renováveis. Mas

vulgação se prestam, ainda, a uma missão mais específica, que é a de esclarecer a opinião pública acerca de temas científicos de fronteira – e a trajetória de uma das obras da coleção da Oficina de Textos é exemplar dessa vocação. Trata-se de O mundo nanométrico: a dimensão do novo século, escrito por Henrique Toma, professor do Instituto de Química da USP, lançado em 2004. “Havia uma efervescência da nanotecnologia no mundo inteiro e pouca gente compreendia a dimensão do tema, que reúne vários campos da ciência ao mesmo tempo”, afirma Toma. A princípio, a obra fez sucesso com outro público. “Circulou mais entre empresários e executivos de empresas interessados em investir em tecnologia. Dei muitas palestras sobre nanotecnologia em empresas e o livro ajudava esse público a entender o que eu estava falando”, afirma Toma, que participou da organização de cinco edições da Nanotech Expo, feira de produtos nanotecnológicos que ocorreu em São Paulo entre 2003 e 2008. Recentemente, ao receber uma comissão de cientistas iranianos na Universidade de São Paulo, Toma compreendeu o papel que o livro cumpriu naquele momento. “Eles me disseram que no Irã o lançamento de qualquer projeto em área de fronteira é sempre acompanhado de uma estratégia de divulgação científica para conquistar a opinião pública. Como são temas novos, a tendência natural é haver rejeição, e é comum que organizações não governamentais consigam pESQUISA FAPESP 174

n

agosto DE 2010

n

21


vencer a batalha da opinião pública difundindo apenas o potencial pernicioso da ciência, que sempre existe. Foi o que aconteceu com os transgênicos e com as células-tronco, para citar dois exemplos”, afirma. Cinco anos depois do lançamento, só agora O mundo nanométrico começou a se tornar um sucesso de vendas. Adotado em escolas, ganhou uma versão atualizada, que será lançada também em espanhol por uma editora mexicana. “Fez parte de um processo natural. Demorou um tempo para que o assunto amadurecesse e só agora ele foi compreendido por professores do ensino médio, que passaram a adotá-lo na sala de aula”, explica. A descoberta aconteceu por acaso. Um ex-aluno de Toma, que se tornou professor do Colégio Bandeirantes, de São Paulo, leu o livro e mostrou-o ao coordenador de ciências da escola. “Logo me convidaram para dar palestras para os professores e também para os alunos e o adotaram em sala de aula. Vários colégios seguiram o Bandeirantes. Só no ano passado fui convidado para dar mais de 40 palestras em escolas de ensino médio”, diz Toma, que defende a importância de os pesquisadores lançarem-se à tarefa de escrever para o público leigo. “É lamentável que, na

22

n

agosto DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 174

universidade, o trabalho de divulgação científica não tenha nenhum reconhecimento. Se consigo obter 100 citações em um artigo científico, o número de pessoas que leram o livro sobre nanotecnologia é muito maior”, afirma. Mentalismo – Uma crítica comum de

Faltam nas livrarias brasileiras seções de livros de divulgação científica. Com isso, o leitor tem dificuldade em encontrar as obras

editores e autores é que, apesar dos avanços recentes, faltam nas livrarias brasileiras seções específicas de livros de divulgação científica. Isso faz com que o leitor tenha dificuldade em reconhecer o gênero e encontrar as obras. “A questão é os livreiros darem destaque para os livros, o que não é fácil”, afirma a neurocientista e autora Suzana Herculano-Houzel. Segundo ela, é comum encontrar suas obras na estante de livros sobre ‘mentalismo’. “Até hoje não entendi o que essa palavra significa”, afirma. Outro livro com boa trajetória, A arte de esquecer, de Iván Izquierdo, costuma ser encontrado em prateleiras de autoajuda, conta o editor Roberto Lent. “Persiste o preconceito dos livreiros de que são obras que não vendem, e acabam sobrando como canal de veiculação as livrarias universitárias de centros ligados à ciência”, diz Lent. Para ele, colabora com o problema o fato de haver uma ideologia prevalente que separa a ciência da cultura no Brasil. “É um problema de tradição cultural. É raro ver os suplementos de cultura dos jornais falando de assuntos científicos, a não ser quando resvala na ética ou na filosofia, como no caso do aborto ou das células-tronco. É como se ciência fosse uma coisa e cultura fosse outra, o que não acontece em outros países”, diz ele. Isso, segundo o editor, faz com que obras de educação científica dificilmente sejam contempladas por editais públicos para compra de livros de bibliotecas, uma fonte importante de receita para pequenas editoras. Mas quais são os ingredientes para fazer o sucesso de um livro de divulgação científica no Brasil? Em boa medida, a receita é a mesma de um livro qualquer. “Tem que ser bem escrito e precisa cativar o leitor. Um bom escritor é um bom escritor, independentemente do gênero”, diz Marcelo Knobel, da Unicamp. “Eu escrevo para o público leigo entender e é incrível como os leitores se sentem gratificados quando conseguem compreender algo que consideravam


inacessível”, diz Suzana Herculano-Houzel. Seu livro mais vendido, Fique bem com seu cérebro (Sextante), é uma obra de divulgação científica disfarçada de autoajuda. Ao final de cada capítulo há sempre um parágrafo com dicas práticas relacionadas ao tema em questão, ensinando, por exemplo, a treinar o cérebro e manter a memória. “É gratificante receber mensagens de leitores que aplicaram as recomendações e tiveram algum benefício”, diz. Certas circunstâncias ajudam, como a avidez dos leitores por determinados temas. O neurocientista Sidarta Ribeiro, chefe de laboratório do Instituto Internacional de Neurociências de Natal – Edmond e Lily Safra, em Natal, atribui a isso a receptividade do livro Maconha, cérebro e saúde (Vieira & Lent), que escreveu em parceria com o neurofisiologista Renato Malcher-Lopes. “O interesse pelo assunto é gigantesco e o fracasso da guerra contra as drogas colocou o tema na ordem do dia”, diz Sidarta. Tópicos relacionados à neurociência, de maneira geral, têm boas vendagens. A astronomia também: o astrofísico Marcelo Gleiser é, hoje, o maior best-seller nacional, com livros que tratam de física e astronomia por meio de uma narrativa repleta de metáforas. O renome do autor, evidentemente, pesa bastante. Uma breve história do tempo, do astrofísico Stephen Hawking, foi um gigantesco sucesso editorial. “Como se trata de um livro de compreensão difícil e que teve uma tradução muito ruim, a única explicação para o sucesso é a história de vida do autor, um pesquisador excepcional vítima de uma doença degenerativa”, diz Roberto Lent. Matemática - As grandes editoras

comerciais começaram a investir no filão há relativamente pouco tempo. A editora Zahar tem três títulos de temas científicos entre os seus 10 livros mais vendidos atualmente: O andar do bêbado, de Leonard Mlodinow, breve história da probabilidade e da estatística; Almanaque das curiosidades matemáticas, de Ian Stewart; e Do big bang ao universo eterno, de Mário Novello. O grupo editorial Record, um dos maiores do país, descobriu os livros de divulgação científica no final dos anos 1990, quando O último teorema de Fermat, de Simon Singh, sobre um

grande enigma da matemática, tornou-se um sucesso: até hoje foram 62 mil exemplares vendidos. Agora a editora dispõe de algumas dezenas de títulos em campos como a matemática, a física e a biologia, que respondem por 1% do catálogo. “Das grandes editoras, fomos a primeira a reconhecer esse mercado”, afirma Luciana Villas-Boas, diretora editorial da Record. Segundo ela, os títulos de mais sucesso são os que tratam das dimensões humanas das grandes questões científicas, caso, por exemplo, de Rivalidades produtivas, de Michael White, biógrafo de Darwin e Newton, que disseca oito disputas da história da ciência, como as que opuseram Antoine Lavoisier e Joseph Priestley, Thomas Edison e Nikola Tesla, e Isaac Newton e Gottfried Leibniz. Outro best-seller é Criação imperfeita, do físico Marcelo Gleiser, que vendeu 25 mil exemplares. “Não temos certeza de quem é esse público, mas parece ser composto por estudantes e profissionais liberais interessados em temas científicos e em boa leitura.” Para Luciana, trata-se de um nicho que reúne todos os elementos para crescer. “Vamos apostar fortemente em bons títulos desse gênero”, afirma. n

Detalhe do livro De Sol a Sol, de Cylon Gonçalves, e a coleção Inventando o Futuro (esq.)


ESTRATÉGIAS

MUNDO

VEREDICTO:

I INOCENTE

VIGILÂNCIA CONTRA FRAUDE Um estudo publicado na revista Nature revelou que episódios de má conduta científica são mais comuns do que se imagina, mas, em geral, a intervenção informal de colegas consegue corrigir o problema antes que se torne um escândalo. Geraldo Koocher, pesquisador do Simmons College, de Boston, enviou um questionário confidencial para 6,5 mil pesquisadores financiados

pelos Institutos

Nacio-

nais de Saúde dos Estados Unidos, indagando sobre comportamentos repreensíveis no ambiente de trabalho. Dos 2.599 que responderam, 2.193 já haviam vivenciado situações desse tipo. Pelo menos dois terços dos que testemunharam deslizes de colegas, como desleixo na coleta de dados e seleção de resultados, tomaram alguma atitude para corrlql-los. A maioria optou por conversas informais, em vez de queixas oficiais. "A alta incidência de problemas não me surpreendeu. Surpresa foi a quantidade de pesquisadores que tomou alguma atitude", afirmou Koocher. A diplomacia ajuda a desarmar espíritos fraudulentos. "Ele estava selecionando dados para obter um determinado viés, mas eu decidi me fazer de bobo", disse um dos que responderam o questionário. "Disse que estava confuso a respeito de seus métodos e ainda o bajulei: você está fazendo um trabalho tão importante que eu odiaria ver alguém criticá-Io. E ele teve de admitir que eu estava certo."

I

ARTIGOS

NA INTERNET

Um em cada cinco artigos científicos publicados em 2008 está disponível de graça na internet, de acordo com um levantamento de pesquisadores da Escola de Economia Hanken,

em Helsinque. O grupo analisou 1.837 artigos escolhidos aleatoriamente entre o 1,2 milhão disponível na base de dados Scopus. Do total, 8,5% estavam disponíveis nos sites das publicações - ou elas eram revistas de acesso aberto ou cobravam dos

24 • AGOSTO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 174

autores para oferecer os artigos gratuitamente. E outro quinhão, de 11,9% da amostra, foi encontrado nos sites dos autores ou em repositórios acadêmicos. Entre as disciplinas, as ciências da Terra foram as que tiveram mais artigos disponíveis, com 33% do totaL Trabalhos de pesquisadores da América Latina e da Índia são mais facilmente encontrados de graça na internet. "É que existem mais plataformas de acesso aberto nesses países", disse Bo-Christer Bjõrk, autor da pesquisa, à agência SciDev.Net.

Não há dúvidas sobre "o rigor e a honestidade" dos cientistas da Unidade de Pesquisas Climáticas (CRU, na sigla em inglês) da universidade britânica de East Anglia, segundo sindicância encarregada de investigar uma rumorosa acusação de manipulação de dados. O escândalo eclodiu em 2009 com o vazamento de e-mails de Phil Iones, diretor da CRU. Numa das mensagens, datada de 1999, ele parecia sugerir um estratagema para "mascarar as quedas das temperaturas': O episódio foi utilizado numa campanha que buscava pôr em dúvida a consistência da ciência do clima e desqualificar os relatórios do Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas. A CRU também foi acusada de não disponibilizar para a comunidade científica dados de temperatura de seus arquivos. Mas a sindicância, liderada por Muir Russell, ex-diretor da Universidade de Glasgow, rechaçou as alegações. "Qualquer pesquisador independente pode acessar os dados das fontes primárias e fazer sua própria análise de tendências das temperaturas", disse o relatório. Os responsáveis pelo inquérito, contudo, criticaram os cientistas de East Anglia por serem "pouco cooperantes e muito defensivos" na investigação.

A n c SI

p C

u

re di (l C SI

n

(l R f

P P C d n n

e I: n d d e


CAI COMÉRCIO ILEGAL DE MADEIRA

le" sde .s ês) lCa

o Ia orosa ão de odiu ento

ls

[das 999

t

,

farar turas". o

'Ia

[r

lS

e contribuiu para frear a liberação de 14,6 bilhões de toneladas de dióxido de carbono na atmosfera. Ainda assim, diz o relatório, 100 milhões de metros cúbicos de madeira ilegal são extraídos a cada ano. "Enfileiradas, as toras dariam mais de 10 voltas ao redor do globo", afirma o estudo. A madeira ilegal representa, pelos cálculos mais conservadores, 35% do total extraído da Amazônia brasileira, 22% em Camarões, 59% em Gana, 40% na Indonésia e 14% na Malásia.

A produção mundial de madeira de origem ilegal caiu 21 % desde 2002, segundo relatório elaborado pelo instituto londrino Chatham House. O estudo analisou a trajetória da madeira extraída de um grupo de países que respondem por 40% da atividade ilegal (Brasil, Indonésia, Malásia, Camarões e Gana) até sua entrada em grandes mercados consumidores (Estados Unidos, Japão, Reino Unido, França e Holanda), depois de passar por portos e fábricas principalmente da China. Constatou-se que a prática diminuiu entre 50% e 75% na Amazônia brasileira, mais de 75% na Indonésia e 50% em Camarões. Isso permitiu evitar, apenas nesses países, a degradação de mais de 17 milhões de hectares de floresta, área equivalente à do Uruguai,

OS IMIGRANTES

I DO CLIMA

Pesquisadores da Universidade Princeton apresentaram um modelo matemático capaz de prever deslocamentos migratórios vinculados aos efeitos das mudanças climáticas. Tomando como referência

a fronteira dos Estados Unidos com o México, a equipe liderada pelo ecologista Michael Oppenheimer concluiu que até 10% da população adulta mexicana, o equivalente a 6,7 milhões de pessoas, poderá deslocar-se para o país vizinho nos próximos

usada ara :a

PARA SALVAR O REATOR Pesquisadores

(le

europeus

de redirecionar da União

Europeia

mento do ITER, reator

ente

que será construído França. "Trata-se

experimental

em st. Paullez de uma pequena

Helga Nowotny,

presidente

ropeu, agência

de fomento

é

que o reator

inicialmente,

1,4 bilhão

custe

bilhões

principal

o orça-

de fusão

nuclear

Durance,

no sul da

catástrofe",

disse

do Conselho de Pesquisa Eu-

à ciência. A estimativa

15 bilhões,

dinheiro

no orçamento

2012 e 2013. A proposta

€ 20

de pesquisa

o triplo

ainda

mecanismo

para tapar

para a construção da UE

é retirar

sem destinação de financiamento

nos países do bloco para o perfodo

atual

do previsto

e os países da UE, que financiam

não têm de onde tirar

contra a proposta

(UE) para complementar

r

se

protestaram

1,4 bilhão do orçamento

o projeto, um rombo

o dinheiro

do bolo de

do 7° Programa a projetos de 2007

de

do ITER entre

Quadro,

de pesquisa

e 2013.

Projeto do ITER: falta

€ 1,4

bilhão

70 anos para escapar da perda da produtividade agrícola resultante da não adaptação ao aquecimento global. Isso no pior cenário, em que a queda da produção chegaria a 48%. No melhor cenário, a redução na colheita seria de 10% e o fluxo migratório alcançaria 1,4 milhão de mexicanos. Publicado nos Anais da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, o estudo foi duramente criticado por defensores dos direitos dos imigrantes. Eles dizem que os números servirão de alegação para tornar as leis anti-imigração mais radicais. Oppenheimer disse que seu grupo viveu um dilema antes de publicar o trabalho, mas concluiu que os dados eram importantes para a formulação de políticas capazes de atenuar os efeitos das mudanças climáticas. "Não queremos que os dados sejam usados para prejudicar os imigrantes e faremos tudo o que pudermos para evitar que isso aconteça", afirmou à revista Nature.

PESQUISA FAPESP 174 • AGOSTO DE 2010 • 25


I

A ARTE DE FAZER ORÇAMENTOS

Uma comissão das Academias Nacionais dos Estados Unidos propôs uma série de recomendações à Nasa, a agência espacial norte-americana, a fim de prevenir atrasos no lançamento de grandes missões causados por avaliações equivocadas de custos. O relatório chamou atenção por coincidir com o início de operação do Sofia (Observatório Estratosférico de Astronomia Infravermelha, na sigla em inglês), programa em parceria com o Centro Aeroespacial Alemão que deveria ter sido lançado há nove anos. Com 17 toneladas e 2,7 metros de diâmetro, o telescópio está instalado num Boeing 747 adaptado e irá observar o Universo enquanto navega pela estratosfera. O orçamento previa gastos de US$ 360 milhões, mas o Sofia já custou US$ 1 bilhão. E a cifra chegará a US$ 3,7 bilhões em 20 anos de operação, equiparando o projeto, em custo por

hora de observação, ao do telescópio espacial Hubble. O relatório sugere que os orçamentos tentem contemplar toda a vida útil dos empreendimentos, apesar da imprevisibilidade das fases iniciais de desenvolvimento. Missões de mais de US$ 500 milhões devem ter atenção especial, diz o relatório, para evitar o colapso dos projetos e da contabilidade da agência.

RÚSSIA QUER NOVA BASE ESPACIAL O primeiro-ministro da Rússia, Vladimir Putin, anunciou investimentos de US$ 810 milhões na construção de uma nova base de lançamentos espaciais no país, em Vostochny, na região de Amur, sudeste do país. A base, programada para operar a partir de 2015,

ARGENTINA

será uma alternativa à de Baik.onur, no vizinho Cazaquistão, arrendada até 2050 a um custo anual de US$ 115 milhões. "Devemos proteger as posições da Rússia no mercado global dos serviços espaciais", disse Putin, segundo a agência Reuters. A Rússia domina o setor espacial global e foi responsável por 37% dos 78 lançamentos no mundo em 2009, segundo o instituto norte-americano Space Foundation. Mas enfrenta concorrência crescente da Europa, da Ásia e dos Estados Unidos. "Precisamos ser mais competitivos e ter total independência em nossas atividades espaciais", afirmou o premiê. A base deverá contar com sete plataformas de lançamento, incluindo duas para voos tripulados. O governo tomou a decisão de construir o cosmódromo em 2007, mas a crise internacional levou a um adiamento do projeto.

VENCE MONSANTO

A multinacional Monsanto, maior produtora de sementes do planeta, foi derrotada numa antiga disputa judicial contra a Argentina. A empresa pedia ao Tribunal de Justiça da União Europeia para bloquear as exportações argentinas de farelo de soja para países europeus. Alegava que os agricultores do país utilizam, sem pagar royalties, sementes transgênicas de soja resistente ao herbicida glifosato com tecnologia desenvolvida pela companhia. O tribunal decidiu que as proteções de patentes só se aplicariam se o produto for usado com a função para a qual foi projetado, enquanto o farelo de soja

"é um material morto obtido depois que a soja já passou por processos de tratamento",

de acordo com o jornal The Wall

Street Journa/. A patente da Monsanto vale na Europa, mas Soja transgênica: patente não se aplica ao farelo

26 • AGOSTO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 174

jamais foi reconhecida na Argentina. A companhia deixou de vender suas sementes no país em 2005, mas os agricultores seguem usando sementes oriundas de suas colheitas.

R R A

e vc

q SE

m ir. d

ç é U

d

a


ESTRATÉGIAS

BRASIL

linho ada até tal de evemos da llobal

f'" ?isse

r=

Inma aI e foi dos nundo cano as Ia da nidos.

REVISÃO COM RETROCESSO A revisão do Código Florestal brasileiro, em votação no Congresso Nacional, provocou uma forte reação da comunidade científica. Uma carta publicada na revista Science, assinada por seis pesquisadores ligados ao Programa Biota-FAPESP, diz que o Brasil estaria "arriscado

a sofrer

seu mais grave retrocesso ambiental em meio século, com consequências críticas e

tal

irreversíveis que irão além das fronteiras do país", caso as mudanças na legislação ambiental sejam aprovadas. O texto

Pecuária em área de mata ••.•ciliar: restauração

é assinado, entre outros, por Jean-Paul Metzger, do Instituto

de Biociências da

r.II;._ ••••••

Universidade de São Paulo (USP), e Carlos Alfredo Joly, do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador do Biota-FAPESP. As novas regras, segundo eles, reduzirão

mo

a restauração obrigatória

de vegetação nativa ilegalmente

desmatada desde 1965. A comunidade científica, de acordo

um D.

com o texto, foi "amplamente ignorada durante a elaboração" do relatório de revisão do Código Florestal. A mesma crítica foi apresentada

em carta enviada por duas das principais

instituições científicas do país, Academia Brasileira de Ciências (ABC) e Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC), no dia 25 de junho, à Câmara dos Deputados.

TO mtes do ontra a a União e farelo oresdo icasde desenteções com a de soja soupor he Wall a,mas ixoude ultores as.

I

MARATONA CIENTíFICA

Cerca de 10 mil participantes, entre autoridades, pesquisadores, estudantes, representantes de sociedades científicas e autoridades, estiveram entre 25 e 30 de julho no campus da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em Natal, participando da 62a Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso

da Ciência (SBPC). Com 71 conferências, 53 mesas-redondas e 29 simpósios, além da exposição de 5.157 pôsteres, a maratona científica teve como mote as ciências do mar. "Após duas reuniões dirigidas à Amazônia [Belém, em 2007, e Manaus, em 2009], voltamos agora para o outro grande ecossistema brasileiro: o mar, a nossa 'Amazônia azul' de área de 4 milhões e 500 mil quilômetros

quadrados e para a qual a ciência tem olhado muito pouco", disse Marco Antonio Raupp, presidente da SBPC. Uma das novidades da reunião foi a atividade Ciência em Ebulição, na qual dois pesquisadores, com visões opostas, debateram sobre um tema polêmico. Um dos encontros com maior repercussão reuniu o presidente da Comissão Técnica Nacional de

~I

_.

_

~'m.

_

_

~._

_

6:Z- Reunião

••

I

••

o

_

~

Anual

~

_

_

da SBPC

'

~:.~::::::''''1II'' •

",W

~

~__

~!i< " ~ ,

,

,,,

~"';ti.

~

~~

Biossegurança Edilson Paiva, pesquisador da Embrapa, e Rubens Nodari, professor da Universidade Federal de Santa Catarina, que se perfilam em campos opostos no debate sobre transgênicos. O impacto das mudanças climáticas no semiárido, que pode levar a um aumento de 24% na taxa de migração da região, foi o tema de palestra do diretor do Instituto Nacional do Semiárido, Roberto Germano Costa. A preocupação com a ainda limitada internacionalização da pesquisa brasileira foi tema de uma palestra do físico Carlos Alberto Aragão, presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A Universidade Federal de Goiás (UFG) abrigará a 63a Reunião Anual da SBPC, em julho de 2011.

PESQUISA FAPESP 174 • AGOSTO DE 2010 • 27


US$ 2,5 MILHÕES EM CINCO ANOS o neurocientista

brasileiro Miguel Nicolelis, da

Universidade Duke, na Carolina do Norte, foi um dos agraciados com o Director's

Pioneer

Award, oferecido desde 2004 pelos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NIH, na sigla em inglês). Professor de neurobiologia e engenharia biomédica, Nicolelis foi admitido no time de 81 cientistas já contemplados com o prêmio, que destina a cada um de seus laureados US$ 2,5 milhões em financiamento Miguel Nicolelis: financiamento garantido

à pesquisa ao longo de cinco anos. Com o dinheiro Nicolelis pretende expandir sua linha de investigação que busca desenvolver interfaces entre máquinas e o cérebro. A intenção, segundo ele, é seguir desenvolvendo pesquisa acerca

de princípios básicos da neurofisiologia

I

POlO TECN0J-ÓGICO NO JAGUARE

Começaram as obras de reforma e adaptação do prédio onde será implantado o núcleo do Parque Tecnológico de São Paulo - Iaguaré, na zona oeste da capital paulista. O complexo será instalado no entorno de um grande polo de ensino e pesquisa, que reúne a Universidade de São Paulo (USP), os institutos de Pesquisas Tecnológicas (IPT), de Pesquisas

Energéticas e Nucleares (Ipen) e o Butantan. Para a adaptação do espaço, o centro, localizado em uma área de 46 mil metros quadrados, receberá investimentos de cerca de R$ 10,6 milhões. O núcleo central será composto por três blocos. Os dois primeiros receberão uma incubadora de empresas de base tecnológica com capacidade para 52 empreendimentos. O terceiro contará com um auditório com 158 lugares e instalações

sensoriais, motoras e cognitivas. Nicolelis lidera, no Brasil, o Instituto Internacional de Neurociências de Natal - Edmond e Lily Safra (IINN-ELS), em Natal, Rio Grande do Norte.

administrativas. A conclusão das obras está prevista para o primeiro semestre de 2011. A iniciativa faz parte do Sistema Paulista de Parques Tecnológicos (SPTec), criado pelo governo estadual para atrair investimentos e estimular a criação de empresas.

........ _=---_..•..__ ....•..

.....n"l!ll"'cl

I

o ~>

~

"

o parque

·';r: r.

será vizinho da Universidade de São Paulo

28 • AGOSTO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 174

que permitem aos

circuitos neurais no cérebro de mamíferos gerarem respostas

NOVO MEMBRO DO CONSELHO

O governador de São Paulo, Alberto Goldman, nomeou Maria José Soares Mendes Giannini, pró-reitora de Pesquisa da Universidade Estadual Paulista (Unesp) para integrar, como membro, o Conselho Superior da FAPESP. Maria José assumiu a vaga aberta em 23 de julho, com o término do mandato do conselheiro José Arana Varela. Professora titular da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Araraquara da Unesp, ela possui graduação em farmácia e bioquímica (1976), mestrado em microbiologia e imunologia (1982) e doutorado em ciências biológicas/microbiologia (1989), todos pela Universidade de São Paulo.


0 MAGO DA ARGAMASSA

1

o Museu

~icolelis, da ) Norte, foi r's Pioneer

s Institutos nidos (NIH, urobiologia foi admiti-

ltemplados

um de seus mciamento . Com o di1ualinha de

f interfaces fão, segun~isa acerca trnitern aos respostas no Brasil, o 1- Edmond Norte.

RO HO SãoPaulo, ,nomeou Mendes ora de rsidade [Unesp) o lho SP.Maria 'a aberta

da Casa Brasileira (MCB), em São Paulo, abriga até 19 de setembro a mostra A arquitetura de Lelé: fábrica e invenção, em homenagem ao arquiteto João Filgueiras Lima, conhecido como Lelé. A exposição reúne maquetes, fotografias, desenhos, filmes e animações que contam a história do arquiteto cuja obra é reconhecida pela colaboração com Oscar Niemeyer na construção de Brasília e pelo conjunto de projetos que desenvolveu junto à Rede Sarah de hospitais. A exposição inicia com um painel cronológico de centenas de obras, com destaque para os sistemas e tecnologias desenvolvidos para a construção de passarelas que marcam a paisagem da cidade de Salvador. A obra arquitetônica de Lelé, nascido em 1932 no Rio de Janeiro, caracteriza-se pela busca da racionalização e da industrialização na arquitetura. Suas técnicas envolvem o uso da argamassa armada e a utilização de estruturas pré-fabricadas. Lelé atua como diretor do Centro de Tecnologia da Rede Sarah (CTRS), onde desenvolve os projetos e a execução dos novos hospitais da rede.

incluída na coleção de publicações da Scientific Electronic Library On-line (SciELO). A Ars é a primeira revista da ECA-USP na biblioteca eletrônica de acesso aberto. Reúne trabalhos produzidos no meio universitário ou fora dele, e é editada pelos professores Gilberto Prado, Sônia Salzstein e Marco Giannotti.

INTERESSE R,epresentantes empresa

produção

Development

Imphandz

hectares,

O consórcio

com potencial

I

área agrícola Mxolisi

Agroenergia.

elas iologia ão Paulo.

A Ars, revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), acaba de ser

para produzir

declarou

em reunião

tecnologias

de

em áreas

Guiné, República

1 bilhão de litros

e pretendemos

e industrial",

pela

em uma área total de 210 mil

por ano. "Temos interesse

Mbetse,

formado

está investindo

em Moçambique,

e Zâmbia,

na área de bioenergia,

ARTE NA COLEÇÃO

sul-africano

Group (IDG) e o fundo de in-

vieram ao Brasil conhecer

de etanol

do Congo, Suazilândia

biocombustível

Morreu em São Paulo, aos 57 anos, o médico sanitarista Luiz Roberto Barradas Barata, secretário de Estado da Saúde de São Paulo desde 2003, vítima de infarto do miocárdio. Barradas foi um dos fundadores do Sistema Único de Saúde brasileiro.

NO ETANOL

de bioenergia.

para a produção

BAR~ADAS MORRE EM SAO PAULO

de um consórcio

Industrial

vestimentos

I

Sob seu comando, a Secretaria da Saúde de São Paulo criou o programa Dose Certa para distribuição gratuita de medicamentos básicos à população, idealizou a lei estadual antifumo e construiu o Instituto do Câncer do Estado de São Paulo. Em 2008, Barradas Barata assinou com Celso Lafer, presidente da FAPESP, e Marco Antonio Zago, então à frente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), convênio que estabeleceu o Programa de Pesquisa para o SUS: Gestão Compartilhada em Saúde, que busca apoiar pesquisas voltadas para problemas prioritários do SUS em São Paulo. Formado em medicina pela Santa Casa de São Paulo, especializou-se em saúde pública pela Universidade de São Paulo.

desse

no modelo do Brasil, usar a tecnologia

o presidente

em Brasília

na

do consórcio,

na sede da Embrapa

O governo da África do Sul pretende

misturar

de 10

a 15% de álcool na gasolina até 2013 e optou por não usar milho na produção entre

de etanol,

culturas

diretor-presidente possibilidades agrícola

para evitar

energéticas

da Imphandz, de cooperação

até a montagem

uma possível

e alimentares.

Andrew

declarou-se

que incluem

de carros

competição Mthembu,

interessado

nas

desde a tecnologia

flex na África do Sul.

Cana: bioenergia brasileira inspira africanos

PESQUISA FAPESP 174 • AGOSTO DE 2010 • 29


política científica e tecnológica


[ Inovação ]

O saldo de uma década

S

ão duradouros os frutos do Programa Genoma FAPESP, iniciativa lançada em 1997 que, há exatos 10 anos, obtinha seu primeiro reconhecimento internacional, com a publicação de uma reportagem de capa da revista Nature sobre o sequenciamento do código genético da bactéria Xylella fastidiosa, causadora da praga do amarelinho, que ataca os laranjais (v. 406, n. 6.792, 13 de julho de 2000). O artigo, que relatava o primeiro sequenciamento completo do DNA de um microrganismo que ataca plantas, foi obra de uma rede paulista de 192 pesquisadores apoiados pela FAPESP. Passada uma década, é possível afirmar que a iniciativa pioneira criou novos paradigmas da pesquisa brasileira. “Até aquela época, um jeito de formar um conjunto expressivo de pesquisadores numa área estratégica com nível de excelência internacional era enviá-los para o exterior. Mas nós apostamos que havia uma forma de fazer isso aqui no Brasil, trabalhando em rede num tema de fronteira”, lembra o físico José Fernando Perez, na ocasião diretor científico da FAPESP. Pesquisadores de várias instituições e diferentes disciplinas, da biologia à medicina passando pela então quase desconhecida bioinformática, trabalharam em conjunto numa grande rede virtual que chegou a reunir 60 laboratórios para enfrentar um objetivo comum, no caso, o sequenciamento genético de vários organismos. O modelo desafiou a forma clássica de estabelecer parcerias, em que geralmente um pesquisador recorre a outro apenas quando precisa de uma expertise técnica necessária para seu trabalho prosseguir. O que era inovador para a época hoje está incorporado ao dia a dia da ciência nacional. “Hoje, esse tipo de trabalho em rede está presente em vários programas, que não dependem mais da construção de uma sede para existir,

Como o Programa Genoma FAPESP criou novos paradigmas no ambiente de pesquisa brasileiro Fabrício Marques

PESQUISA FAPESP 174

n

agosto DE 2010

n

31


elliot w. kitajima/usp

A Xylella no microscópio: projeto mobilizador

como acontecia antigamente”, afirma o biólogo Fernando Reinach, um dos artífices do programa. Carlos Henrique de Brito Cruz, atual diretor científico da FAPESP e presidente da Fundação entre 1996 e 2002, destaca o papel de José Fernando Perez e Fernando Reinach no programa. “Eles foram decisivos e duplamente oportunos para a criação e o sucesso do projeto Xylella. O Fernando identificou a oportunidade científica, sequenciar um genoma, e o Perez identificou a forma e os meios – o instituto virtual ou a rede de pesquisadores. Um terceiro ator tem sido menos reconhecido, talvez por sua natureza institucional: o conjunto de instituições nas quais o projeto foi realizado. Estas foram construídas pelo Estado brasileiro – principalmente o esforço estadual paulista, pois a maior parte dos pesquisadores do projeto trabalha na USP, Unicamp e Unesp – ao longo de várias décadas”, afirma Brito. Ele lembra que a comunidade de pesquisa nestas universidades se desenvolveu graças ao apoio das próprias instituições, garantindo a dedicação integral à docência e à pesquisa e infraestrutura, e ao suporte de agências de financiamento à pesquisa com critérios rigorosos e exigentes, como o CNPq, a Capes, a Finep e a FAPESP. “E, efetivamente, desde a capa na Nature em 2000, inúmeras outras 32

n

agosto DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 174

capas foram conquistadas por belos trabalhos de cientistas paulistas em excelentes revistas”, diz o diretor científico da FAPESP. Também era inovador, e hoje já não causa tanta estranheza, o expediente de colocar um conjunto de pesquisadores a serviço de um empreendimento de risco – não havia garantias, como é comum em temas de fronteira, de que o Genoma FAPESP gerasse resultados de impacto. “O risco faz parte da pesquisa em inovação, mas isso era uma novidade no Brasil. A comunidade científica estava acostumada a trabalhar em projetos de risco baixo”, recorda-se José Fernando Perez. Até mesmo alguns líderes do programa, diz o então diretor científico, ressentiram-se da possibilidade de passar dois anos sem gerar resultados e publicar papers, e temeram pela avaliação das agências de fomento. Setores influentes da comunidade científica também se queixaram. Houve quem argumentasse que o objetivo do programa, de sequenciar genomas, era trabalho para computadores, não para pesquisadores. “A crítica não fazia sentido porque acumular dados sempre foi essencial para o avanço da ciência”, diz Perez. Marie-Anne Van Sluys, professora do Instituto de Biociências da USP e uma das participantes do programa, lembra que os pesquisadores se incorporaram ao esforço com espírito aberto. “Era algo completamente inusitado. Havia vários desafios. Um deles era fazer com que houvesse mais

pesquisadores dominando a biologia molecular. Para os que já tinham experiência, a meta era aprender a fazer um genoma inteiro. Ninguém tinha feito no Brasil e era um desafio importante para a comunidade científica”, recorda-se. Hoje esse padrão é mais disseminado. O artifício de reunir pesquisadores de diferentes disciplinas, das humanidades à biologia e à computação, num esforço conjunto em torno de um tema de fronteira está presente na estrutura das principais iniciativas da FAPESP, como o Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen), o Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais e o Programa Biota-FAPESP que, cada uma a seu modo, também vêm incorporando ferramentas da genômica em seus alvos de pesquisa. “Essa é uma herança do Programa Genoma, de ousar e de criar novas dinâmicas. Os conceitos são os mesmos, mas a articulação é diferente e nos proporciona um outro olhar, inclusive para a política científica e o nosso posicionamento internacional”, diz Marie-Anne. “Seguindo esse paradigma, o Bioen, o Biota e o Programa de Mudanças Climáticas têm em comum uma competência científica instalada de nível internacional. Qualquer grupo de pesquisa desses programas está num contexto internacional”, afirma.

Impacto

O caso do Bioen, programa de que Marie-Anne é uma das coor­ denadoras, é exemplar. “O esforço de pesquisa envolve, além de criar novas tecnologias para produção de energia de biomassa, estudar o impacto social do crescimento da bioenergia e desenvolver motores mais eficientes. Estamos ousando na criação de novos modelos, com risco associado”, afirma a professora. A pesquisa em bioenergia é uma das principais herdeiras do Programa Genoma. Com diferentes técnicas de sequenciamento que se complementam, Marie-Anne e Glaucia Souza, professora do Instituto de Química da USP e também coordenadora do Bioen, dedicam-se atualmente ao estudo da variabilidade de genes da cana-de-açúcar, um dos alvos do programa.


O Bioen quer ajudar no desenvolvimento de variedades de cana adaptadas aos diversos climas e solos brasileiros por meio da manipulação genética do metabolismo energético das plantas cultivadas, gerando, assim, vantagens competitivas para a produção brasileira. Um dos braços do programa é o desdobramento do Programa FAPESP Sucest (Sugar Cane EST), mais conhecido como Genoma Cana, que mapeou fragmentos de genes funcionais da cana, as chamadas etiquetas de sequências expressas (ESTs). Este projeto foi realizado entre 1999 e 2003 por cerca de 240 pesquisadores liderados pelo biólogo Paulo Arruda, com financiamento da FAPESP e da Cooperativa dos Produtores de Açúcar e Álcool do Estado de São Paulo (Coopersucar). Um dos desafios dos pesquisadores do Bioen é identificar as regiões do genoma da cana-de-açúcar responsáveis por regular a expressão dos genes mapeados pelo Sucest. O conhecimento da localização física dos genes e da dosagem de suas variações (alelos), além do ambiente em que eles estão inseridos, ajudará a ganhar eficiência no uso de marcadores moleculares, no melhoramento da cultura e na transformação de plantas. Esse conhecimento pode acelerar o desenvolvimento de novas variedades, processo que atualmente leva pelo menos 10 anos. A ideia é reduzir o número das plantas que são avaliadas no campo, utilizando-se de dados de marcadores moleculares para selecionar previamente variedades ligadas a genes de interesse. O sequenciamento da Xylella em 2000 foi um marco, mas está longe de resumir a importância do Programa Genoma FAPESP. Marie-Anne Van Sluys destaca o peso dos projetos que vieram em seguida, como o Genoma Câncer, que levou o Brasil a ocupar a segunda posição mundial em sequenciamento do genoma funcional de tumores humanos, só ficando atrás dos Estados Unidos; o sequenciamento completo da bactéria Xanthomonas citri, responsável pelo cancro cítrico, a mais séria doença dos laranjais; e o Genoma Cana. “Esses quatro projetos formam um cerne”, afirma Marie-Anne. “Eles não deixaram

A ideia de reunir pesquisadores de diversas disciplinas num esforço comum serve hoje de padrão para diversos programas

Resultado de sequenciamento de material genético

o esforço inicial morrer, ampliaram o número de pesquisadores na rede e aumentaram o grau de complexidade. O sequenciamento do Xanthomonas foi bem mais complexo do que o da Xylella e exigiu o aprendizado de uma nova tecnologia”, afirma. Em maio de 2002, os pesquisadores da rede publicaram novo artigo na revista Nature, dessa vez apontando caminhos para o combate à Xanthomonas citri e apresentando os resultados do sequenciamento da Xanthomonas campestri. A expertise continuou a render frutos, com o sequenciamento dos genomas do boi, do eucalipto e do café, da Xylella que ataca os parreirais (por encomenda dos Estados Unidos), da leptospira, bactéria causadora da leptospirose, e do Schistosoma mansoni, verme responsável pela esquistossomose, entre outras. Empresas e cooperativas participaram do esforço, caso do Fundo de Defesa da Citricultura, na Xylella, a Coopersucar, na cana, o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, na Xylella da uva, e o Instituto Ludwig, no genoma do câncer, além de empresas como Suzano, Ripasa, Votorantim e Duraflora, no projeto genoma do eucalipto, a Embrapa, no genoma do café, e a Central Bela Vista, no projeto genoma do boi. Ao todo foram US$ 11,7 milhões em contrapartidas ligadas ao

PESQUISA FAPESP 174

n

agosto DE 2010

n

33


Programa Genoma FAPESP. A iniciativa ultrapassou as fronteiras do estado e serviu de modelo para outras iniciativas de porte, como a rede nacional do Programa Genoma Brasileiro, criado no ano 2000 pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O projeto Genoma Brasileiro montou uma rede de 27 laboratórios, localizados em 18 estados, com a tarefa de decifrar o código genético da Chromobacterium violaceum, bactéria de importância para a biotecnologia.

Quebra-cabeça

Há heranças visíveis em outras searas. José Fernando Perez conta que recentemente participou de um congresso de uma sociedade científica da área de bioinformática. “Tinha mais de 600 participantes. Mas a comunidade de bioinformática no Brasil quase não existia antes de 1997”, diz Perez. A área era essencial para dar ordem ao quebra-cabeça que é fazer um genoma e constituía uma das grandes incógnitas para o sucesso do programa. “Os assessores internacionais nos advertiram que teríamos um gargalo nesse ponto. Decidimos, então, convidar dois jovens, o João Setúbal e o João Meidanis, ambos do Instituto de Computação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Eles simulavam os genomas, tinham publicado um livro sobre o assunto, mas nunca haviam trabalhado com genoma real.” Outro nome-chave do programa foi o de Andrew Simpson, geneticista do Instituto Ludwig de Pesquisa do Câncer. “Com sua liderança científica, aparou arestas do programa e permitiu que o programa fosse adiante”, afirmou. Um dos desdobramentos que dão a dimensão da importância do programa foi a criação de empresas de biotecnologia inspiradas no projeto. Em 2002, foi fundada pela Votorantim Novos Negócios a Alellyx (Xylella ao contrário), com a reunião de um grupo de pesquisadores que participaram no final dos anos 1990 do sequenciamento da Xyllela fastidiosa. Tornou-se uma empresa de pesquisa aplicada dedicada à criação, com base na genética molecular, de produtos e tecnologias que beneficiem a agricultura. Em 2003, 34

n

agosto DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 174

De volta à Nature Dez anos após a reportagem de capa do sequenciamento da Xylella fastidiosa, um editorial da mesma revista Nature (v. 466, n. 7.304, 15 de julho de 2010) lembrou a proeza brasileira e enumerou outros desdobramentos desse esforço, tais como o sequenciamento do genoma funcional da cana-de-açúcar e a contribuição para o programa internacional do Genoma do Câncer Humano, além da criação de duas empresas de biotecnologia agrícola, a Alellyx Applied Genomics e a CanaVialis. “A FAPESP investiu o equivalente a US$ 12 milhões, grande parte dedicados a sequenciadores, computadores e reagentes, enquanto o grupo reuniu e treinou pesquisadores de diversas áreas para desenvolver um conjunto amplo e duradouro de habilidades e conhecimentos”, disse a revista. Segundo a Nature, a biotecnologia brasileira amadureceu a tal ponto que seus cientistas tornaram-se atores no cenário internacional. “E a FAPESP continua a promover grandes ideias”, diz a revista, referindo-se aos investimentos da Fundação em vários campos da pesquisa em bioenergia e

a Votorantim criou a CanaVialis, que se tornou maior empresa privada de melhoramento de cana-de-açúcar do mundo. O investimento da Votorantim Novos Negócios na criação das duas companhias foi de cerca de US$ 40 milhões. Em dezembro de 2008, as duas empresas foram vendidas por US$ 290 milhões para a Monsanto para se tornarem a plataforma mundial de pesquisa em cana-de-açúcar da multinacional de sementes. Para José Fernando Perez, os dividendos da pesquisa genômica se concentraram, como era de esperar, nos setores

na formação e internacionalização dos pesquisadores paulistas. “Importantíssimo para a FAPESP esse reconhecimento manifestado no editorial da Nature. Ao destacar realizações, o editorial sublinha também ações em desenvolvimento. Com enorme satisfação vemos a FAPESP contribuir mais uma vez para a boa visibilidade mundial da ciência feita no Brasil”, disse Carlos Henrique de Brito Cruz, atual diretor científico da FAPESP e presidente da Fundação em 2000. O sequenciamento da Xylella, diz a Nature, demonstra os benefícios de pensar grande: os pesquisadores engajaram-se num grande projeto, executaram-no com precisão e publicaram-no em inglês numa respeitada revista científica. “Os resultados foram divulgados pelos principais meios de comunicação em todo o mundo e Perez acredita que esse resultado singular – e inesperado – ainda ajudou a mudar a relação entre a ciência brasileira e a mídia brasileira. A Xylella ajudou a mudar a percepção que o Brasil tinha de si mesmo, de suas capacidades e de seu lugar no mundo da ciência”, diz a revista.

da economia que melhor conseguiram apropriar-se do conhecimento, caso da cana-de-açúcar. “O sequenciamento da Xylella poderia ter gerado, por exemplo, o desenvolvimento de um tipo de laranja transgênica resistente a pragas, mas ainda há muita resistência a alimentos transgênicos e os produtores não viram interesse nisso”, afirma. Mas isso não o incomoda. “A última coisa que fizemos no programa foi escolher a bactéria a ser sequenciada, que serviria como projeto mobilizador. Os objetivos, que eram muito mais amplos, foram atingidos”, afirma. n


ão

P do car ento. ez da arlos iretor te

ovaiclima ( mudar a natureza do pai.

Ia, diz cios dores eto,

~ Os elos ão dita udar 'Ieira judou asil

É simples: escolha a edição e envie um e-mall para revi sta pesq uisa@fapesp.br

ta.

guiram casoda entoda exemtipo de pragas, a a aliutores a.Mas a coisa olher a serviria s objemplos, I


LABORATÓRIO

, I

MUNDO

A RAIZ DA CORAGEM Entrar num aparelho de ressonância magnética

causa pânico em muitas

pessoas. Agora imagine, além de estar dentro desse túnel apertado, ter uma cobra de 1,5 metro, presa a uma tábua com uma tira de velcro, a centímetros

q

da cabeça. Como é possível controlar

v

esse pavor foi o que a equipe liderada

1 d d t d·

por Yadin Dudai, do Instituto Weizmann de Ciência em Israel, investigou com ajuda do aparelho de ressonância magnética funcional, que permite acompanhar a atividade do cérebro em tempo real. Os 16 voluntários que participaram

fo

do estudo sabiam que a cobra não era

fe

01

venenosa e aceitaram dominar o medo,

d d

apertando um botão que aproximava ou afastava o réptil, segundo artigo na Neuron. Os momentos de coragem se caracterizaram pela atividade do córtex cingulado anterior subgenual. Não é suficiente para rotular essa região da frente do cérebro de centro da coragem, mas os pesquisadores esperam que esse conhecimento dê pistas de como lidar com problemas como síndrome do pânico e estresse pós-traumático

REDE~COBRINDO

I PARTICULAS

Físicos de partículas do mundo todo se reuniram em Paris em julho para compartilhar os resultados mais recentes da área. No encontro, coordenadores dos principais experimentos do Large Hadron Collider (LHC), o maior acelerador de partículas do mundo, instalado no Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (Cem), apresentaram as medições feitas nos três primeiros meses de operação do equipamento à energia de

(Sc;encenews).

3,5 teraelétron-volts (3,5 vezes superior à dos outros aceleradores). Nessa fase, os detectares do LHC estão redescobrindo partículas já

36 • AGOSTO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 174

detectadas antes. "O número de colisões ainda é pequeno para permitir novas descobertas", explicou o físico Sérgio Novaes, da Universidade Estadual Paulista, que integra um dos experimentos. "Parece que o Modelo 'Padrão está funcionando como esperado", disse Rolf Heuer, diretor do Cern. "Agora cabe à natureza nos mostrar o que há de novo."

0 FUTEBOL E 1 AS ELEiÇÕES Todo eleitor avalia com cautela o passado dos políticos antes de definir seu candidato ao próximo pleito. Bom, deveria, mas nem sempre age assim. Pesquisadores da Califórnia decidiram verificar se apenas as decisões racionais influenciavam as escolhas políticas ou se eventos banais e desconectados podiam afetar a opção de voto. Para tirar a limpo a dúvida, eles compararam os resultados de jogos locais de futebol americano realizados entre 1964 e 2008 com os de eleições para o Senado, o governo estadual e a Presidência ocorridas no mesmo período. Os candidatos da situação (não importava o partido) receberam votação 1,6 ponto percentual maior

( s(

a q

s

n à a d

c


I

Mel: letal contra bactérias

quando as equipes haviam vencido partidas jogadas 10 dias antes das eleições do que quando tinham sido derrotadas - as derrotas favoreceram os candidatos da oposição. Essa influência foi mais intensa nas regiões onde as torcidas eram mais fervorosas. Os autores do estudo sugerem que a razão dessa influência é o estado de espírito individual (PNAS). Quando as pessoas se sentem bem, tendem a aceitar as condições em que vivem. Quando estão mal, as rejeitam.

ce ÔO

m

padrão mostraram que antidepressivos têm um efeito muito sutil na visão, e que quanto mais grave a depressão, maior a perda de contraste (Biological Psychiatry). O achado pode servir como diagnóstico e para estudar depressão em modelos animais.

As marmotas são a favor doaquecimento global. Pelo menos é o que mostra

HUMOR

o trabalho de Arpat Ozgul, do Imperial College London, em artigo destacado na

ifórnia

os ode po a ram os caisde e 2008 .ra o taduaJ idas no '0

(não

6 ior

O mel já é um ingrediente comum em pastilhas para a garganta e xaropes contra a tosse. Crendice? Longe disso, segundo um grupo da Universidade de Amsterdã, na Holanda. A equipe liderada por Sebastian Zaatde usou um método novo para isolar os componentes do mel com ação antibiótica e os testou contra vários tipos de bactéria resistentes aos antibióticos tradicionais, segundo artigo publicado em julho no FASEB Journal. O grupo demonstrou que o efeito microbicida do mel depende da ação em conjunto de uma série de

compostos. Alguns deles, como o peptídeo defensina-l, têm como papel preponderante manter as colmeias livres de um amplo espectro de bactérias. Esse peptídeo faz parte do sistema imunológico das abelhas Apis mellifera, que o acrescentam ao mel, contribuindo para a conservação dessa fonte de alimento. O achado pode servir como ponto de partida para a busca de novos antibióticos. Também pode ajudar a compreender melhor o funcionamento do sistema imunológico das abelhas e a orientar a criação de linhagens mais resistentes desse inseto, essencial para a agricultura.

AQUECIMENTO ENGORDA

I CINZENTO cionais lhas

ENXAME DE FARMACÊUTICAS

Dias cinzentos costumam ser associados à melancolia. Não é à toa, segundo a equipe coordenada pelo psiquiatra Ludger Tebarst van Elst, da Universidade Albert Ludwig, na Alemanha: a visão em tons cinzentos está associada à depressão. O grupo avaliou a retina de 40 pessoas com depressão clínica - metade delas em tratamento com antidepressivos - e 40 voluntários saudáveis, e verificou que o contraste entre claro e escuro é muito menor na visão dos deprimidos. As análises de eletrorretinograma por

capa da Nature em 22 de julho. Ao analisar dados colhidos ao longo de 33 anos numa população de marmotas (Marmo-

ta flaviventris)

do Colorado, nos Estados

Unidos, ele mostrou que os simpáticos roedores estão ficando mais gordos e mais abundantes. Isso é consequência do aumento da temperatura, que vem abreviando o período de hibernação. Como passam cada vez menos tempo fora de ação, a mortalidade

e a perda

de peso são menores durante o inverno . Despertando mais cedo e menos debiliFilhotes de marmota nascem cada vez mais cedo no ano

tadas, a cada ano as marmotas conseguem se reproduzir mais cedo - e os filhotes, por sua vez, têm mais tempo para ganhar peso antes de entrar em hibernação. Por enquanto parece bom para elas. Pelo menos até terem problemas decorrentes da superpopulação ou até o calor se tornar nocivo para esses animais afeitos ao frio.

PESQUISA FAPESP 174 • AGOSTO DE 2010 • 37


LABORATÓRIO

BRASIL

(

c a a a

TEMPESTADE SOBRE A AMAZÔNIA

d

Uma sequência de tempestades

E

G

G

tropicais

intensas, com ventos que saem das nuvens e

e

velocidades de até 145 quilômetros por hora,

fi

derrubou milhões de árvores na Amazônia em janeiro de 2005. Com base em imagens de satélite e observações de campo, o grupo coordenado por Robinson Negrón-Juárez e Jeffrey Chambers, da Universidade Tulane, Estados Unidos, concluiu que um fenômeno meteorológico

conhecido como linha de

instabilidade, que consiste num aglomerado de tempestades com cerca de 1.000 quilô-

Floresta rala: milhões de árvores caídas em 2005

metros de comprimento

e 200 de largura,

cruzou a Amazônia no sentido sudoestenordeste,

espalhando

chuvas pesadas e

ventos explosivos que abriram clareiras de

DENTADAS

I DO PASSADO Por volta de 90 milhões de anos atrás, no período Cretáceo, crocodilo era o que não faltava na região onde hoje é o interior do estado de São Paulo. Havia na época uma grande diversidade de espécies de crocodilos do grupo Bauru, que incluíam baurussuquídeos e peirossaurídeos, ambos com dentes serrilhados e curvados para trás, segundo revelam registros fósseis. Seu alcance estava longe de ser restrito à região de Bauru, e agora o paleontólogo Felipe Montefeltro, do Laboratório de Paleontologia na Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto, mostrou pela primeira vez, com base em material fóssil

bastante completo, que esses baurussuquídeos também viviam onde hoje está o município de Campina Verde, no Triângulo Mineiro. "Num afloramento que não tinha sido estudado, encontramos cinco crânios muito bem preservados, além de outros ossos", conta o pesquisador, que apresentou seu trabalho em julho no Simpósio Brasileiro de Paleontologia de Vertebrados, que reuniu especialistas na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). "Pelo menos um deles é uma espécie nova, e encontramos possíveis filhotes também." O grupo continuará a estudar a região, que promete ampliar o conhecimento da fauna do Cretáceo.

38 • AGOSTO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 174

até 30 hectares e causaram mortes e destruições nas cidades de Manaus, Manacaparu e Santarém (Geophysical Research Letters). Segundo Carlos Raupp, pesquisador da Universidade Estadual Paulista (Unesp) que participou

desse trabalho, a

quantidade de árvores caídas pode equivaler a 23% do total de dióxido de carbono (C02) que a Floresta Amazônica capta da atmosfera em um ano. "Em geral, um clima mais quente pode trazer mais tempestades severas, porque a atmosfera consegue reter mais vapor-d'água", diz Raupp. Assim, linhas de instabilidade

11

chegam à superfície de forma explosiva, em

como a de janeiro de 2005 podem causar

estragos piores na Amazônia no futuro.

Crânio fóssil de crocodilo cretáceo encontrado em Minas Gerais

II a


0 BANHO DAS FORMIGAS

PEI3IGOS DO

I TRANSITO

1

RE 'fstropicais asnuvense rplosiva,em [OS por hora, Amazônia mimagens po,o grupo ón-Juáreze de Tulane, m fenômeo linha de glomerado 000 quilôde largura, sudoestepesadas e lareiras de ascidades ai Research niversidade trabalho, a %dototal

ênica capta ais quente atmosfera sim, linhas em causar

Quando os seres humanos começaram a cultivar alimento há 10 mil anos, as formigas já eram agricultoras. Há 50 milhões de anos cuidam com zelo das plantações de fungos que Ihes servem de comida. E têm de lidar com pragas: microrganismos que eliminam os jardins de fungos. Em experimentos feitos em parceria com pesquisadores da Inglaterra, a bióloga Iuliane Lopes Santos, da Universidade Federal de Juiz de Fora, em Minas Gerais, constatou que muitas formigas mantêm um ritual de limpeza que evita a contaminação da prole e da plantação de fungos. Observando ninhos em laboratório, os biólogos verificaram que 90% das formigas quenquém da espécie Acromyrmex subterraneus, consideradas pragas na agricultura brasileira, se limpam assim que voltam ao ninho. Testes com as formigas cortadeiras Acromyrmex echinatior indicam que elas se limpam com mais cuidado na presença do fungo cultivado (Current Biology).

importante, e é isso que pesquisadores do Instituto de Botânica, em São Paulo, e da Universidade Estadual Paulista (Unesp) vêm estudando em duas áreas na Baixada Santista, segundo artigo na edição mais recente da Revista Árvore. O grupo verificou a importância das plantas herbáceas na

colonização inicial das áreas que sofreram deslizamentos e danos ao solo. Para eles, desde que a erosão tenha sido superficial, é possível usar esse conhecimento para acelerar a recuperação de encostas degradadas nessas áreas onde a ocupação humana causa grandes estragos.

Passando entre os carros e correndo contra o tempo em frágeis motocicletas, os motoboys passam por estresse diariamente e estão mais propensos a doenças mentais, conforme mostra um grupo liderado pelo psiquiatra Luis Augusto Rohde, do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (European Psychiatry). Entre 101 motoboys avaliados, o estudo encontrou uma incidência de doenças mentais de 75%, maior do que na população total. Mais de 80% deles têm problemas com uso de álcool e maconha. As substâncias químicas, porém, não parecem ser responsáveis por uma condução pouco cuidadosa: acidentes estão mais associados ao transtorno de déficit de atenção e multas têm relação com transtorno de personalidade antissocial.

ARMAS VEGETAIS Na'busca por ampliar o arsenal contra o mosquito Aedes aegypti, causador da dengue, um grupo da Universidade Fe-

I

ENCOSTAS PRESERVADAS

deral de Alagoas, da Universidade Estadual de Feira de Santana, na Bahia, e do Instituto

A necessidade de manter no lugar as encostas da serra do Mar nem sempre é evidente. A incidência de deslizamentos muitas vezes é intensificada por alguns fatores, como a poluição e a ocupação desordenada na base dos morros. Entender a regeneração natural da floresta é um passo

do Meio Ambiente

do

Estado de Alagoas pediu reforços às plantas. Os pesquisádores

testaram

94 extratos retirados de 10 espécies diferentes de plantas comuns na Região Nordeste, e verificaram que seis dessas espécies têm potencial contra larvas do mosquito. Os resultados, publicados na Parasito/ogy

Research,

mostram que

talvez seja possível usar essas plantas como um inseticida mais

8iriba-branca: sem efeito contra o mosquito da dengue

barato. Sobretudo, os achados abrem novas portas na busca por princípios ativos letais contra esses mosquitos responsáveis, a cada ano, por infectar cerca de 50 milhões de pessoas.

PESQUISA FAPESP 174 • AGOSTO DE 2010 • 39



Ciência

[ Saúde ]

A terceira onda Ricard o Zorzet to | Ilustrações Pedro Hamdan

D

ois estudos publicados na revista Science no início de julho renovaram a esperança de que um dia, ainda que distante, se produza uma vacina eficaz e segura contra o HIV, vírus que nas últimas três décadas infectou 60 milhões de pessoas no mundo e matou 27 milhões, número de vítimas talvez inferior apenas ao deixado pela epidemia de gripe de 1918 e pela Segunda Guerra Mundial. Em um dos trabalhos pesquisadores de duas universidades norte-americanas e dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NIH), o maior centro de pesquisas médicas do mundo, isolaram dois anticorpos altamente potentes do sangue de um portador do vírus da Aids. Cada um dos anticorpos – o VRC01 e o VRC02 – mostrou-se capaz de neutralizar 91% das 190 variedades mais comuns do HIV, desempenho bem superior ao dos anticorpos mais eficientes encontrados anteriormente, que bloqueavam a ação de 40% das cepas. No outro estudo uma equipe da qual participou o imunologista brasileiro Michel Nussenzweig, da Universidade Rockefeller, analisou a estrutura e as características moleculares do VRC01 e identificou a região do vírus a que esse anticorpo adere, impedindo o HIV de infectar as células humanas. “Esses resultados são muito encorajadores e abrem um novo caminho para o desenvolvimento de uma vacina contra o HIV”, afirmou o imunologista Anthony Fauci, um dos mais respeitados pesquisadores de Aids no mundo e diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas, um dos 27 centros que integram os NIH, em entrevista por e-mail à Pesquisa FAPESP.

Grupos do Brasil e do exterior iniciam nova fase de busca por uma vacina contra o HIV


NIBSC/SCIENCE PHOTO LIBRARY/SPL DC/Latinstock

Maré vermelha: linfócito T infectado (verde) libera novas cópias do HIV

É um erro imaginar que os

Mais do que representar o sucesso de um grupo científico de elite, esses trabalhos reiteram os acertos de uma nova era de buscas de vacinas que vem sendo chamada de terceira onda. Iniciada há dois ou três anos, essa mudança de rumos tenta corrigir os problemas identificados nos estágios anteriores, nos quais foram estudadas dezenas de formulações candidatas a vacina antiHIV – das quase 30 que passaram por algum estágio de teste em seres humanos, só uma gerou proteção, mas em nível muito baixo. Diante das tentativas frustradas e de um investimento mundial de quase US$ 1 bilhão por ano nos últimos anos, a comunidade científica internacional e a sociedade civil organizada se reuniram, revisaram suas metas de desenvolvimento de vacinas e decidiram investir mais esforço, tempo e dinheiro em tecnologias mais inovadoras, mas potencialmente mais eficientes. Foi uma mudança de rumos que abriu espaço para a participação, ainda que incipiente, de equipes brasileiras na corrida por uma vacina. “Houve um avanço expressivo nessa área nos dois últimos anos e o Brasil não pode ficar para trás”, diz Cristina Possas, responsável pela Unidade de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde. 42

n

agosto DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 174

antirretrovirais impedirão sozinhos o avanço da Aids; só 40% dos portadores do HIV têm acesso a medicamento Com a Universidade Federal do Rio de Janeiro e a Iniciativa Internacional por uma Vacina Antiaids (Iavi), o grupo de Cristina faz um levantamento da capacidade nacional de pesquisa e desenvolvimento tecnológico em produção de vacinas anti-HIV. Dados preliminares do estudo, a ser apresentado em outubro na Academia Brasileira de Ciências, mostram que o investimento brasileiro é modesto e está concentrado no Ministério da Saúde. Desde 1999 o ministério investiu R$ 7 milhões em 31 estudos de compostos candidatos a vacinas anti-HIV, 95% do total aplicado na área no

país, enquanto a África do Sul aplicou U$ 200 milhões. “É preciso ampliar a parceria com outras agências de financiamento no país”, afirma Cristina. Na Conferência Internacional de Aids realizada em julho, lembra Cristina, ficou claro que é um erro imaginar que os medicamentos sozinhos vão impedir a disseminação da Aids. A Organização Mundial da Saúde estima que só 40% de portadores do HIV tenham acesso aos remédios – e, calcula-se, para cada duas pessoas que iniciam o tratamento, outras três contraem o vírus. Pioneiro na distribuição gratuita de antirretrovirais, o Brasil vem investindo valores crescentes, que em 2009 somaram R$ 1 bilhão, no tratamento da Aids. “Um dos maiores gastos do Ministério da Saúde é com medicamentos anti-HIV”, diz o imunologista Ernesto Torres Marques, membro do Comitê Técnico Assessor Nacional de Vacinas anti-HIV do ministério.

É

consenso entre pesquisadores e membros da sociedade civil organizada que, para conter a pandemia de Aids, será preciso usar todos os meios à disposição, que incluem campanhas de educação sexual e orientação para a prática de sexo seguro. Além disso, claro, uma vacina. “Se a postura do Brasil for de esperar que outros resolvam esse problema, mais adiante teremos de pagar pelo que desenvolveram”, diz Marques, pesquisador da Universidade de Pittsburgh e da Fundação Oswaldo Cruz, criador de uma tecnologia que tenta facilitar a entrada dos componentes de uma possível vacina nas células e, assim, intensificar a resposta imunológica do organismo. Desde que o HIV foi identificado em 1983 como agente causador da Aids, a síndrome que aniquila o sistema de defesa humano e deixa o organismo suscetível a diversas infecções, pesquisadores do mundo todo buscavam anticorpos tão potentes como os descritos na Science. Mas não os haviam encontrado. A maioria dos anticorpos aderia a variedades específicas do vírus e não as neutralizava. A descoberta apresentada em julho restaura o ânimo dos pesquisadores depois de anos de resultados pífios porque prova uma antiga hipótese. Se o organismo de um portador do HIV produziu naturalmente anticorpos tão eficientes, é possível, ao


menos em teoria, estimular o de outras pessoas a fabricá-los também por meio da aplicação de uma vacina. Mas não será fácil nem rápido chegar a essa vacina. Primeiro é preciso descobrir como reproduzir artificialmente as proteínas da superfície do vírus que, em contato com as células de defesa, levam à produção desses anticorpos potentes, verificar a forma mais eficiente de introduzi-las no organismo e avaliar se de fato funcionam. Só então, vencidas também as etapas de produção industrial e de testes em animais e seres humanos exigida pelos órgãos de saúde para liberar a comercialização, se terá obtido a desejada vacina preventiva, capaz de evitar a infecção pelo HIV quando aplicada em pessoas saudáveis. Por ora, o mais próximo que se chegou de uma vacina preventiva foi a combinação de duas formulações (Aidsvax e Alvac-HIV) que não haviam funcionado separadamente. Essa estratégia foi

Os Projetos 1. Resposta imune protetora contra a infecção pelo HIV: desenvolvimento de imunógenos contra o HIV-1 e identificação de alvos para intervenção imunológica em pacientes progressores lentos (2006/57179-9) 2. Utilização em vacinas, imunógenos e testes de avaliação da resposta imune celular ao HIV-1 de epitopos de linfócitos T CD4+ inéditos de regiões conservadas do HIV-1 subtipo B (2004/15331-3) 3. Identificação de fatores virológicos, genéticos e imunológicos associados ao fenótipo de não progressão da doença do HIV (2001/00729-3) modalidade

1. e 3. Programa de Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa 2. Programa de Apoio à Propriedade Intelectual (Papi) Co­or­de­na­dor

Edecio Cunha Neto – FMUSP investimento

1. R$ 302.296,32 2. R$ 60.030,81 3. R$ 324.895,73

testada entre 2003 e 2006 na Tailândia em um ensaio clínico com 16,4 mil pessoas – metade tratada com a formulação dupla, metade com um composto inócuo (placebo). A eficácia da combinação foi considerada baixa: o número de pessoas infectadas foi 31% menor no grupo que recebeu Aidsvax e Alvac do que no grupo de controle. Apesar do desapontamento causado, esses resultados, apresentados em 2009 no New England Journal of Medicine, revelaram um lado positivo dessa história. Pela primeira vez, verificou-se em seres humanos o que só havia sido observado em macacos: era possível usar uma vacina para estimular a produção de anticorpos contra o HIV.

D

ois anos antes, testes clínicos usando uma formulação candidata a vacina produzida pela empresa farmacêutica Merck tiveram de ser interrompidos antes do fim porque o composto não gerou efeito protetor. Esse composto funcionava de modo diferente da combinação aplicada na Tailândia. Em vez de estimular a produção de anticorpos (resposta humoral), o composto da Merck acionava a defesa celular: recrutava uma cadeia de células encarregadas de identificar partículas dos microrganismos invasores e eliminar as células infectadas. A vacina da Merck usava uma versão modificada de um vírus que acomete as vias respiratórias – o adenovírus humano do tipo 5 –, incapaz de se reproduzir, para inserir nas células humanas genes artificiais de três proteínas do HIV. Uma vez no interior das células,

em especial de um grupo chamado de dendríticas, os genes do HIV passam a produzir cópias dessas proteínas, que depois são espetadas na membrana celular, onde funcionam como avisos luminosos denunciando a presença do invasor. Outras células de defesa, os linfócitos T CD8, identificam esses sinais e lançam proteínas tóxicas que matam as células infectadas. A ideia era boa e, se funcionasse, poderia resultar num tipo diferente de vacina preventiva, indutora de imunidade celular. Mas o composto da Merck não produziu o efeito esperado. Inicialmente, acreditou-se até mesmo que aumentasse o risco de infecção pelo HIV entre as pessoas que já haviam tido contato com o adenovírus. Essa possibilidade, depois refutada, se deveria ao fato de os anticorpos delas impedirem o adenovírus da vacina de entrar nas células e desen­ cadear a resposta celular. “No Brasil, cerca de 70% da população tem anticorpos contra esse vírus, sinal de que a vacina da Merck poderia não funcionar aqui”, afirma o imunologista Aguinaldo Pinto, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Com sua equipe, ele tenta solucionar esse problema substituindo o adenovírus humano por uma cepa exclusiva de chimpanzés. Nos testes com camundongos, a formulação aplicada na mucosa vaginal, nasal e oral estimulou a proliferação de células de defesa em outras mucosas do corpo. Mas não é tão simples. “Depois de uma primeira dose, o organismo pode desenvolver anticor-

PESQUISA FAPESP 174

n

agosto DE 2010

n

43


O que se espera de uma vacina Pesquisadores testam estratégias para desenvolver composto que reduza o risco de contrair HIV ou controle a proliferação do vírus

HIV Fragmentos de HIV

bactéria

DNA

PELE 1

2

Transporte Fragmentos de HIV ou de seu material genético (imunógenos) são inoculados puros ou alojados em bactérias ou outros vírus

Antígenos

3 Proteção Linfócitos T CD4 ativam

Ativação Células dendríticas capturam os imunógenos e os apresentam a outras células do sistema imune, os linfócitos

os T CD8, que liberam toxinas contra o vírus e células infectadas, enquanto os linfócitos B produzem anticorpos específicos contra proteínas do HIV

Células dendríticas Linfócitos B

Anticorpos

4 Memória Após ativados, os linfócitos passam a reconhecer segmentos do vírus invasor. Descendentes dessas células integram a memória imunológica, que permite ao organismo reagir rápida e intensamente e evitar infecções

44

n

agosto DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 174

Linfócitos T CD8 Linfócitos T CD4

Linfócitos T de memória

Linfócitos B de memória

Pedro Hamdan/infográfico Aids Vaccine Blueprint 2008 (IAVI)

vírus


pos e seria necessário usar outro tipo de vírus na dose de reforço”, explica. Atento a esses resultados, o imunologista Edecio Cunha Neto, do Instituto do Coração e da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), decidiu investir no desenvolvimento e nos testes de um composto produzido com base em novas premissas, possivelmente um dos primeiros candidatos a vacina anti-HIV de origem nacional.

P

or volta de 2002, recém-chegado de uma temporada em Harvard, Cunha Neto integrou a equipe do imunologista Jorge Kalil e, juntos, começaram a analisar o sistema de defesa de um grupo especial de portadores do vírus, que mantinham o HIV sobre controle por mais tempo e demoravam mais a adoecer. No sangue dessas pessoas, a quantidade de linfócitos T do tipo CD4 permanecia mais elevada que o normal. Responsáveis por acionar os linfócitos T produtores de toxinas (CD8) e os produtores de anticorpos (linfócitos B), as células CD4 são o principal alvo do HIV, que se aproveita da maquinaria celular para se reproduzir. Mas faltava descobrir o que os linfócitos CD4 dessas pessoas tinham de especial. Uma possibilidade, imaginaram, era que os linfócitos CD4 reconhecessem o vírus e ajudassem outros linfócitos a combatê-lo. Para testar a ideia, isolaram pequenos pedaços das proteínas do HIV e iniciaram uma espécie de pescaria molecular com o objetivo de ver quais deles eram reconhecidos mais facilmente pelos linfócitos daqueles pacientes. Selecionaram os 18 fragmentos de proteínas (peptídeos) de áreas do vírus que se mantêm inalteradas na maioria das cepas e que haviam sido identificados

Falta no Brasil infraestrutura adequada para realizar todos os experimentos necessários antes de chegar à fase de testes em seres humanos pelos CD4 com mais frequência e os recriaram em laboratório. Um teste conduzido pela imunologista Simone Fonseca, da equipe de Cunha Neto, com amostras de sangue de 32 portadores de HIV revelou que as células de defesa de praticamente todos reconheciam pelo menos um dos peptídeos. Em 40% dos casos, mais de cinco peptídeos foram identificados, segundo estudo publicado em 2006 na Aids. Em outro experimento, descrito em artigo publicado em junho deste ano na PlosOne, Susan Ribeiro e Daniela Rosa administraram os peptídeos a camundongos geneticamente alterados para produzir moléculas do sistema imune humano. Os resultados foram ainda mais animadores: 16 dos 18 peptídeos foram reconhecidos e ativaram tanto os linfócitos CD4 como os CD8. “Se tudo der certo, esses peptídeos talvez possam funcionar como um reforço para vacinas contra o HIV como a da Merck, já que têm princípios complementares”, comenta Cunha Neto. Antes que essa formulação um dia possa ser aplicada em seres humanos, é preciso percorrer uma longa jornada de experimentos, cheia de obstáculos. Um deles é a falta de infraestrutura adequada no Brasil para os testes mais avançados. Os experimentos feitos com macacos, que têm organismo mais próximo do humano, custam, no mínimo, US$ 500 mil. E ainda seriam necessários cerca de US$ 7 milhões para se produ-

zir uma formulação adequada para o uso em pessoas. “Nossa esperança”, diz Cunha Neto, “é que os resultados dos testes superem a expectativa e facilitem a obtenção de recursos para as etapas seguintes, cada vez mais onerosas”. Também na USP, o grupo do imunologista Alberto da Silva Duarte, presidente do comitê de vacinas do ministério, inicia uma segunda fase de testes em seres humanos de outra estratégia de vacinação, avaliada inicialmente em Recife por Luis Arraes. Chamada de vacina terapêutica, ela é preparada com células de defesa do sangue da pessoa infectada, cultivadas com cópias inativas do vírus antes de seres reintroduzidas no organismo. A expectativa é que esse tipo de vacina ajude o sistema imune de quem tem o HIV a manter o vírus sob controle por mais tempo e adiar o início do uso dos antirretrovirais. “Uma vacina terapêutica, além de complementar o tratamento, cria a oportunidade de descobrir qual tipo de resposta imune gera proteção contra o HIV”, afirma Duarte.

T

anto no Brasil como no exterior os custos desses experimentos limitam o desenvolvimento de candidatos a vacina. A formulação criada por Ernesto Marques encontrase numa fase mais avançada de testes. Experimentos com 40 macacos rhesus já mostraram que ela agiliza a identificação do HIV pelos linfócitos e eleva o nível dessas células de defesa no sangue. Estudos comparando essa formulação com outra usando vírus de macacos demonstrou sua eficácia como estratégia terapêutica. Marques, que colabora com o grupo de Alberto Duarte, busca agora um financiamento de US$ 1,5 milhão para iniciar os testes com seres humanos. Em 2008, quando foi lançada a versão mais recente do Plano Brasileiro de Vacinas Anti-HIV, o ministro da Saúde, José Temporão, prometeu R$ 25 milhões ao desenvolvimento de vacinas. Até o momento, segundo Cristina Possas, os recursos não foram liberados. n Artigo científico RIBEIRO, S.P. et al. A vaccine encoding conserved promiscuous HIV CD4 epitopes induces broad T cell responses in mice transgenic to multiple common HLA class II molecules. PlosOne. v. 5(6). 11 jun 2010. PESQUISA FAPESP 174

n

agosto DE 2010

n

45


[ Bioinformática ]

Como se faz um ser humano Pesquisadores mapeiam rede de células humanas adultas e suas precursoras Salvad or No gueira

T

odos sabem que o desenvolvimento de um ser humano, da primeira célula (o zigoto) ao indivíduo adulto, é um processo complicado. Mas quão complicado? Um estudo conduzido por pesquisadores da Universidade Federal da Bahia (UFBA) dá uma medida mais precisa dessa complexidade e oferece pistas que, no futuro, podem ajudar a tratar algumas doenças. O estudo foi conduzido por uma equipe de físicos que decidiu explorar aplicações na biologia das ferramentas usadas mais comumente em suas áreas de origem. Daí a abordagem tão incomum: eles decidiram enxergar o desenvolvimento humano como se fosse uma rede de computador, como a internet. Na etapa inicial do trabalho, Viviane Galvão, que na época fazia doutorado na Universidade Estadual de Feira de Santana e agora é pesquisadora do Instituto de Física da UFBA, vasculhou a literatura científica em busca de todas as referências sobre tipos celulares existentes no corpo humano, fosse qual fosse a etapa de desenvolvimento. Foram analisados estudos feitos com embriões e fetos abortados espontaneamente em diferentes estágios da gestação. Ela também consultou pesquisas que identificavam os tipos celulares encontrados em indivíduos já formados, do nascimento à morte.

46

n

agosto DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 174

Ao todo, a equipe identificou 873 diferentes tipos celulares. O número pode causar estranheza a alguém versado em embriologia humana, afinal se sabe que no corpo de uma pessoa adulta há cerca de 200 tipos de células. O que explica essa diferença é que o trabalho feito pelo grupo da Bahia em parceria com pesquisadores do Ceará e dos Estados Unidos leva em conta as células de tecidos que existem apenas durante certas etapas do desenvolvimento e depois desaparecem, como ocorre com a placenta, encontrada apenas durante a gestação. Depois de levantar esse catálogo tão completo quanto possível, o grupo usou modelos computacionais para procurar as conexões entre os diferentes tipos celulares na tentativa de estabelecer quais eram os precursores de cada tecido e de criar uma rede de relações entre todas as células. Surgiu então o que eles chamaram de rede de diferenciação celular humana (NHCD, na sigla inglesa), descrita em detalhes num artigo publicado em março deste ano na revista PNAS. Caminhos múltiplos – Nessa fase do

trabalho surgiu a primeira surpresa: os resultados contradiziam os de estudos anteriores. Em vez de formar um padrão que lembraria mais uma árvore, na qual o tronco é formado pelas células precursoras e os galhos por suas deri­vadas, surgiu um desenho bem diferente: as ligações eram mais complexas, com caminhos não necessariamente lineares e cheios de conexões intermediárias que, em certos pontos, lembravam uma teia de aranha. “Vimos que a célula A podia não só se transformar na célula B, mas também na

Trama da vida: cada ponto representa um tipo celular


pnas

O padrão formado pela rede também pode orientar a busca por substâncias que permitam controlar melhor os processos de diferenciação celular – um dos grandes desafios da pesquisa com células-tronco, conhecidas pelo vasto potencial de originarem diferentes tecidos no organismo diante do estímulo correto. “A gente pode observar, na rede, que um tipo celular A é mais comumente originado de uma célula B, mas também pode surgir a partir de um tipo C, então isso estimula o pesquisador a buscar novos fármacos que possam induzir essa diferenciação específica”, diz a pesquisadora da UFBA. célula C”, conta Viviane. “Havia diversos caminhos possíveis para a formação de um dado tipo celular.” Esse mapa de diferenciação celular produz um padrão de conexões que pode ser estudado com as ferramentas matemáticas usadas para estudar redes como a internet. Mas, mais importante, segundo os pesquisadores, é que esse trabalho permite uma visão sistêmica da diferenciação celular. Médicos e biólogos que investigam um órgão como o coração costumam conhecer a fundo as células cardíacas e suas precursoras, do mesmo modo que um pneumologista sabe muito mais sobre as células respiratórias do que sobre as demais. “Com essa rede à disposição, dá para perceber: ‘Ah, essa célula digestiva também aparece no sistema respiratório, algo que quem trabalha com uma área específica poderia não saber”, explica Viviane.

Visão integrada - Os estudos com

células-tronco, aliás, são os que mais podem se beneficiar dessa visão mais integrada da diferenciação celular. Enquanto desenvolvia a rede de diferenciação celular, Viviane Galvão também trabalhou em paralelo na modelagem

de diversas redes mais específicas voltadas para processos ligados a doenças. Um dos trabalhos buscava justamente retratar o que acontece, em termos de regeneração cardíaca, quando um coração danificado pelo parasita causador da doença de Chagas recebe uma injeção de células-tronco adultas. O tratamento foi desenvolvido pelo grupo do médico Ricardo Ribeiro dos Santos, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) da Bahia, e já mostrou resultados promissores, embora o mecanismo exato envolvido na ação das células-tronco ainda não esteja claro. Um dos trabalhos de Viviane, que teve participação do pesquisador da Fiocruz, tentou, por vias teóricas, jogar alguma luz sobre essa questão. Os resultados sugerem algumas explicações dos motivos pelos quais o tratamento funciona e podem, no futuro, ajudar a indicar a quantidade ideal de células-tronco a ser usada, embora muitos mecanismos biológicos envolvidos na recuperação do coração ainda estejam longe de ser esclarecidos. Viviane também trabalhou em modelagens similares para outras doen­ças, como certos tipos de câncer, e afirma que os resultados servem, por exemplo, para prever os caminhos que a metástase pode tomar. “Ao verificar o parentesco entre os diferentes tipos celulares, conseguimos entender por que um câncer específico invade um órgão, e não outro”, diz. Ela e seus colaboradores pretendem agora estabelecer a rede que caracteriza a resposta imunológica e a interação celular de outras doen­ças parasitárias, como tuberculose e malária. Talvez médicos e bió­logos inicialmente vejam esses achados com reserva. Afinal, ainda não se sabe com segurança se todos os tipos de células humanas já foram identificados. E uma rede incompleta pode n levar a conclusões incorretas.

Artigo científico GALVÃO, V. et al. Modularity map of the network of human cell differentiation. PNAS. v. 107, n. 13, p. 5.750-55. 30 mar. 2010. PESQUISA FAPESP 174

n

agosto DE 2010

n

47


[ EVOLUÇÃO ]

As aves se adaptaram à escassez de alimento e de oxigênio durante o voo Carlos Fioravanti

Cabeças-secas, comuns dos Estados Unidos à Argentina

M

fabio colombini

Não basta ter asas

uitos fósseis encontrados na China nos últimos anos estão ajudando a entender melhor como e quando as aves surgiram e começaram a voar. Um dos mais recentes, apresentado em setembro de 2009 na Nature, é o Anchiornis, animal com penas e quatro asas que viveu há cerca de 150 milhões de anos, 10 milhões de anos antes do Archaeopteryx, até agora visto como a ave mais antiga. O Anchiornis, ao menos até aparecer outro fóssil mais antigo, iniciou a formação de um grupo de animais caracterizados principalmente pela habilidade de voar, às vezes milhares de quilômetros, como as aves migratórias. “Hoje, 90% das espécies de aves voam”, diz o biólogo José Eduardo Bicudo, professor do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo e principal autor do livro Ecological and environmental physiology of birds, publicado em fevereiro pela Universidade de Oxford, Inglaterra. Seus estudos, somados aos de outros especialistas, indicam que as aves conseguiram voar não só porque ganharam asas e penas próprias para o voo, mas também porque adquiriram adaptações fisiológicas que lhes permitem voar durante semanas em altitudes elevadas, onde há pouco oxigênio, bem acima do que o ser humano consegue chegar, a não ser por meio de avião. “O princípio fisiológico é simples: quanto menos carga levar durante a viagem, melhor”, diz Bicudo. Antes da partida, os músculos que ajudam a voar ganham volume, mas depois atrofiam à medida que a viagem está correndo. Outra peculiaridade é a eficiência digestiva: “As aves migratórias podem aumentar ou reduzir a produção de enzimas digestivas,


As aves migratórias se têm muito ou pouco alimento. Se não têm alimento, as células do sistema digestivo morrem e o trato digestório encolhe à metade do volume inicial. Quando acaba o jejum, o estômago, os intestinos e o fígado fazem novas células e voltam ao volume normal”. Ver aves de rapina planando sobre a cordilheira do Himalaia, a 9 mil metros de altitude, pode ser um belo espetáculo para nós, embora para as aves provavelmente seja desconfortável: em altas altitudes, faz muito frio e a concentração de oxigênio é baixa. “Elas superam as dificuldades por meio da eficiência respiratória”, conta Bicudo. Em um artigo publicado em 2006 na Integrative and Comparative Biology, Douglas Altshuler, do Instituto de Tecnologia da Califórnia, e Robert Dudley, do Smithsonian Institute, descrevem os mecanismos fisiológicos que permitem o voo em altitudes elevadas – e vão além dos sacos aéreos, bolsas conectadas aos pulmões e aos ossos que deixam o esqueleto mais leve. Os pulmões das aves extraem quase todo o oxigênio do ar e a hemogloblina delas tem maior capacidade de ligar-se e de desligar-se do oxigênio que a humana. Conhecidas pelo olhar arguto, as aves podem ter também olfato razoa­

O Projeto Estudo comparativo das interrelações de fatores ontogenéticos e ambientais sobre a endotermia de Melipona bicolor Lepeletier – nº 2002/13973-2 modalidade

Bolsa de Doutorado (Denise Loli) Co­or­de­na­dor

José Eduardo Pereira Wilken Bicudo – IB-USP investimento

R$ 95.369,33 (FAPESP)

podem reduzir a produção de enzimas digestivas quando há pouca comida disponível

velmente apurado. “Muitas espécies de aves marinhas detectam dimetilsulfato, substância gerada por peixes em decomposição, que lhes serve para a navegação e procura de alimentos. Os albatrozes têm um voo relativamente aleatório até encontrar um cardume de peixes que exala dimetilsulfato”, relata Bicudo. Além do olfato desenvolvido, embora por décadas tenha sido desconsiderado, outro conceito que pode surpreender é que o cérebro de mamíferos e o de aves, mesmo morfologicamente bem diferentes, têm estruturas funcionais equivalentes – uma conclusão que põe por terra a expressão cérebro de galinha para designar pessoas pouco inteligentes. “Os pombos podem memorizar 400 padrões de cores”, argumenta Bicudo. É também por meio do sistema nervoso que as aves detectam o eixo magnético da Terra e identificam o norte ou o sul. Do deserto ao polo - Essas peculiarida-

des do voo, que nem os especialistas conheciam até pouco tempo atrás, explicam como as aves se espalharam tanto, ocupando todo o planeta e adaptando-se a ambientes tão diferentes quanto desertos e polos gelados. Esse grupo exibe hoje espécies tão distintas quanto uma harpia, cujas asas abertas podem tomar 2,5 metros, e o canário-da-terra, menor que a mão de um adulto. Os fósseis mais antigos confirmam que as aves originaram-se dos dinos-

sauros e emergiram nas regiões equatoriais, de baixas latitudes, como a China e o Brasil – embora aqui o solo úmido das florestas não tenha preservado os fósseis. Bicudo acredita que muitas espécies que hoje passam por nosso continente como a águia-pescadora, uma das 33 espécies migratórias já vistas nos cerrados paulistas, se originaram por aqui. Os beija-flores, que ele estuda há anos, exemplificam essa irradiação: a América do Sul abriga cerca de 90 espécies, a América Central não mais de 15 e a América do Norte, cinco ou seis. “O Brasil é um celeiro de beija-flores”, diz ele. Em 2001, a bióloga Claudia Vianna e ele verificaram que o músculo peitoral do beija-flor-rabo-de-tesoura, que corresponde a um terço do volume corporal, produz uma proteína chamada HmUCP, que permite à ave se reaquecer rapidamente e atingir a temperatura mais confortável num período de 30 a 40 minutos, antes de levantar voo. À noite, depois de um dia de voo incessante, o beija-flor passa por uma brutal queda de temperatura corporal: de 40oC para próximo da temperatura ambiente – às vezes, até 15o C. O drama é o dia seguinte: ao acordar, precisa atingir a temperatura que lhe permita alçar voo e recomeçar a busca por alimento. A partir daí as asas começam a bater em média 700 vezes por minuto, e o coração, 1.400 vezes. Até esse momento proteínas equivalentes tinham sido identificadas apenas em mamíferos (ver Pesquisa Fapesp nº 69, outubro de 2001). Bicudo e sua equipe não avançaram muito com essa linha de trabalho com os beija-flores, já que conseguir as autorizações para recolher amostras de sangue se mostrou mais difícil do que pegar os animais, mas em 2005 Denise Loli e ele encontraram proteínas semelhantes, que ajudam a esquentar o corpo, em mamangavas do gênero Bombus e em Melipona, uma abelha-indígena sem ferrão, indicando que os animais que voam – aves, insetos e morcegos – podem guardar muitos mecanismos fisiológicos em comum. n PESQUISA FAPESP 174

n

agosto DE 2010

n

49


[ Ambiente ]

Na Mata Atlântica 59% das árvores são raras e podem desaparecer

D

Guarantã (Esenbeckia leiocarpa), em prancha da obra Flora brasiliensis

flora brasiliensis/carl f. von martius

urante três anos a bióloga Ales­sandra Nasser Caiafa atra­­ vessou o país algumas vezes para mapear a diversidade de árvores da Mata Atlântica, a vegetação densa e viçosa que já ocupou quase toda a costa brasileira e abriga muitas espécies de plantas e animais encontradas somen­ te ali, várias ameaçadas de extinção. Na jornada ela não precisou de botas nem facão: analisou 225 documentos científicos (livros, teses e artigos) guar­ dados nas 28 instituições de pesquisa que visitou entre 2004 e 2007. Cami­ nhando pela mata, Alessandra só con­ seguiria cobrir nesse tempo uma parte pequena da vasta área já percorrida por outros pesquisadores. Nessa leitura, a bióloga mineira, atualmente professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), confirmou as razões por que a Mata Atlântica é considerada um dos ecos­ sistemas mais ricos do mundo em di­ versidade de espécies. No trecho que vai do Espírito Santo ao Rio Grande do Sul há 846 espécies de árvores, do franzino cambucá-peixoto (Plinia rivularis), que não passa de quatro metros de altura e produz frutos avermelhados semelhan­ tes à jabuticaba, ao portentoso jequitibá-branco (Cariniana estrellensis), o gigan­ te da floresta em tupi-guarani, que pode atingir 60 metros de altura.

eduardo cesar

Floresta de pérolas

Francisco Bicud o


Sob risco: matas do Sul e Sudeste abrigam árvores pouco comuns

A surpresa maior, porém, veio quando Alessandra analisou como essas espécies se distribuem nessa faixa que se estende por quase 2.900 quilôme­ tros no sentido Norte-Sul e cerca de 100 quilômetros continente adentro. Apesar da variedade, a maior parte das espécies (59%) são árvores raras, en­ contradas em áreas restritas ou num ambiente específico da floresta. Uma proporção considerável, 11% das es­ pécies, ou quase uma em cada 10, são raríssimas: têm pouquíssimos exempla­ res, concentrados em algum ponto do litoral, e por isso correm maior risco de desaparecer. “Essas informações estimulam es­ forços de investigação semelhantes, já que no Nordeste, por exemplo, é gran­ de a carência de dados sobre a diver­ sidade de árvores da Mata Atlântica”, afirma Alessandra. “O trabalho aplicou um sistema de avaliação reconhecido internacionalmente”, explica o botâ­ nico Fernando Roberto Martins, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que orientou Alessandra

no doutorado e é coautor do artigo publicado este ano na Biodiversity and Conservation. “Quantificamos e quali­ ficamos o grau de raridade das árvores da Mata Atlântica. Temos agora uma fotografia mais fiel de como essas es­ pécies se distribuem”, completa. Raras e raríssimas - No trabalho Alessandra e Martins usaram uma es­ cala de classificação que determina o grau de raridade de uma espécie a par­ tir de três critérios: afinidade por um ambiente específico, abundância local e distribuição pela área estudada. Combinados, esses três fatores definem uma escala de oito níveis: um de espécies comuns e outros se­ te de graus crescentes de raridade. No primeiro nível de raridade estão as árvores encontradas em diferentes altitudes e com níveis variados de umi­ dade, grande distribuição geográfica e pequena abundância local em certos trechos (4,5% das 846 espécies). Já a categoria 7, a das raríssimas, incluiu 11% das árvores: todas com baixíssima

capacidade de adaptar-se a outros am­ bientes, encontradas em populações pequenas e distribuídas por uma área bastante restrita. Os pesquisadores encontraram espécies raras ao longo de toda a área estudada. Segundo Martins, fatores históricos, geográficos e biológicos ex­ plicam esse padrão. No clima seco que caracteriza os períodos de glaciação – o mais recente entre 18 mil e 14 mil anos atrás – só sobreviveram grandes árvores em áreas mais úmidas, como os vales e as encostas próximas ao mar, como sugere a teoria dos refúgios, propos­ ta nos anos 1960 pelo alemão Jürgen Haffer, adaptada à realidade brasileira pelo geógrafo Aziz Ab’Saber e contes­ tada recentemente. “Foram vários eventos sucessivos de restrição e espalhamento que moldaram o padrão de distribuição das espécies pe­ la Mata Atlântica do litoral Sul e Sudeste”, explica Martins. Atualmente, diz, esse padrão sofre influência direta da ação humana e da destruição da floresta. Não por acaso, muitas das árvores raríssimas estão na lista de espécies ameaçadas de extinção elaborada pela Fundação Biodiversitas em 2005. O que preocupa os pesquisadores é que o desa­ parecimento das mais raras pode gerar um efeito dominó, afetando a disponi­ bilidade de alimento para vários grupos de animais. “A extinção de uma única espécie rompe o nó de uma rede de inte­ rações, levando ao desaparecimento de várias outras”, explica Martins. Outras possíveis consequências são o empobre­ cimento do solo e o aumento dos níveis de gás carbônico no ar. Alessandra considera problemá­ tico o avanço das fronteiras agrícolas e o crescimento das cidades em áreas de Mata Atlântica e ressalta: “É preci­ so sensibilizar autoridades públicas e proprietários de terra para a importân­ cia dessas espécies raras”. Um modo de proteção possível, sugere, é criar unida­ des de conservação menores em áreas n com mais espécies bem raras. Artigo científico CAIAFA, A.N.; MARTINS, F.R. Forms of rarity of tree species in the southern Brazilian Atlantic rainforest. Biodiversity and Conservation. v. 19, p. 2.597-618. 19 mai. 2010. PESQUISA FAPESP 174

n

agosto DE 2010

n

51


[ Geologia ]

Inferno na terra

52

n

agosto DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 174


Há 2 bilhões de anos, vulcões reinavam onde agora é a Amazônia

fotos caetano juliani/usp

Maria Guimarães

Resquícios do núcleo (morro menor) e dos flancos de vulcão, e movimento de magma impresso em ignimbritos (ao lado)

U

ma sucessão de dezenas de vulcões espirram grandes quantidades de cinzas e de projéteis de rocha derretida que riscam o ar incandescentes. Rios de lava jorram crateras afora e descem pelas encostas, se espalhando e moldando uma nova paisagem. É isso que o geólogo Caetano Juliani, do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (USP), vê quando navega pelos rios Tapajós e Xingu ou sobe os morros em meio à Floresta Amazônica, no Pará. Mas não há motivo para preocupação: a maioria das pessoas não presencia ali mais do que a densa floresta ou as áreas desmatadas onde o gado pasta inconsciente, não corre riscos maiores do que as doenças transmitidas por hordas de mosquitos e o calor que sente, por mais que pareça sufocante, não chega perto daquele produzido por vulcões. O cenário enxergado pelo geólogo existiu há quase 2 bilhões de anos e apenas suas cicatrizes permanecem até hoje para quem sabe enxergá-las. “Aquilo era o inferno na Terra”, brinca Juliani. É dessa época o vulcão mais antigo de que se tem notícia, hoje um monte arredondado com cerca de 200 metros de altura (ver Pesquisa FAPESP nº 81). Nos últimos anos, porém, o grupo da USP encontrou mais vestígios de dezenas de vulcões – descaracterizados pela erosão, mas com uma assinatura inconfundível nas rochas. “Meus colegas nos Estados Unidos não acreditam que essas rochas se tenham preservado”, comemora o pesquisador. Testemunhos dos acontecimentos vulcânicos dessa época, conhecidos como evento Uatumã, são muito raros no mundo. Essa raridade confere grande importância aos achados na parte sul do cráton amazônico, uma das mais antigas PESQUISA FAPESP 174

n

agosto DE 2010

n

53


A atividade vulcânica registrada na Amazônia conta a história de boa parte do planeta naquele período

cimento geológico – para encontrar os vulcões. Cocurutos pontudos, como o da foto que abre esta reportagem, são formados pelo material que uma vez preencheu a cratera de um vulcão. As encostas foram roídas pelo tempo, deixando por vezes cadeias de mon-

Tm-landsat, tratamento de geobotânica por Teodoro isnard de almeida/usp

da superfície terrestre. É uma região de cerca de 1,2 milhão de quilômetros quadrados, 15% da área do Brasil, que o grupo de Juliani tem se empenhado em caracterizar nas excursões anuais de cerca de 40 dias em que percorrem rios e trilhas recolhendo amostras de rochas, identificando formações e documentando o passado em seus cadernos. E esse cenário desvendado não se restringe àquela região. “Os grandes ciclos vulcânicos costumam ser planetários”, explica Juliani. Para ele, o que está registrado na Amazônia conta a história de boa parte da Terra naquele período. Uma das áreas caracterizadas fica em São Félix do Xingu, um município no sul do Pará, junto ao rio Xingu, onde uma grande diversidade geológica forma um rico quadro desse período, o final do Paleoproterozoico. Parte do trabalho foi feita em conjunto com Carlos Marcello Fernandes – que no ano passado terminou o doutorado com Juliani e agora é professor no campus de Marabá da Universidade Federal do Pará (UFPA) – e publicada no Journal of Volcanology and Geothermal Research. Ao examinar as paisagens, é preciso imaginação – bem apoiada por conhe-

tes menores dispostos em semicírculo, que delimitam a área onde se erguia o vulcão. Ignimbritos, rochas formadas por materiais fundidos que tipicamente saíam dos vulcões e rolavam pelas encostas, são alguns dos testemunhos que ajudam a reconstruir essas formações fantasma. Dentro desses ignimbritos é comum encontrar fragmentos de pe­ dras-pomes, as rochas porosas como es­ponjas, típicas de regiões vulcânicas. O teor de sílica das rochas vulcânicas da região, que também contêm potássio, sódio e muito pouco magnésio, caracteriza um magma muito viscoso que, em vez de escorrer como uma calda de chocolate pelos lados do vulcão, é lançado em erupções explosivas. Resquícios de um magma mais líquido, que escorria fluido, estão mais longe do vulcão que o expeliu, ajudando a distinguir áreas próximas e distantes das crateras ativas – mais uma forma de mapear a superfície coalhada de crateras. Vales de fogo - Registros da violência

das erupções estão em incrustações nas rochas conhecidas como bombas vulcânicas. Juliani conta que pedaços de magma eram lançados e voavam pelos ares, adquirindo uma forma de fuso por causa da resistência do ar durante o voo. Ao aterrissar, perfuravam a camada de depósitos vulcânicos no chão, ação aos poucos petrificada quando o conjunto esfriava. Hoje, conforme o sentido em que a rocha se quebra, esses projéteis aparecem como círculos, quando a quebra é transversal à sua trajetória, ou como uma forma alongada e afilada na ponta, quando de perfil. Esse material permite aos geólogos olhar em torno e apontar, como se enxergassem o vulcão em plena erupção, de onde as bombas vinham. Outras formações reveladoras dos processos e da composição geológica daquele tempo são as rochas salpicadas de pontinhos coloridos conhecidas como tufos de cristais. Durante uma erup-

Restos de vulcões junto ao rio Xingu, vistos por satélite 54

n

agosto DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 174


fotos caetano juliani/usp

Feitas pelas erupções: dacito (esquerda) e tufo de cristais com uma bomba vulcânica

ção, uma grande quantidade de cinzas finas se espalha pelo ar e acaba se depositando no chão, formando uma camada de sedimento fino que os geólogos chamam de vidro vulcânico. Quando fragmentos de cristais, como quartzo, são expelidos pelo vulcão e caem, eles afundam e no caminho alteram a configuração de camadas de cinza. Esse trajeto dos cristais fica preservado quando o conjunto se cristaliza, mais um testemunho que permite conhecer e calcular a direção e a força com que esses minerais caíam. Como se não bastasse a sucessão de vulcões, a língua de terra delimitada a leste pela curva do rio Xingu, que aparece no mapa que ilustra estas páginas, também abrigava uma fenda na crosta terrestre. Dali o magma jorrava por fissuras ao longo de uma faixa com centenas de metros de extensão em que o magma, ao sair e se afastar da rachadura, formou uma estrutura semelhante a um vale. “Nunca algo parecido tinha sido descrito no Brasil”, conta Juliani, que percorreu com seus alunos toda essa ex-fenda, documentando e recolhendo material. Todas as vezes em que vão à região, os geólogos voltam para casa com a bagagem cheia de pedregulhos. Não como viajantes que catam lembranças ou meninos que enchem os bolsos de munição para uma possível batalha, mas com objetivos definidos. De volta ao laboratório,

as rochas coletadas passam por uma série de análises que indicam em detalhes a sua composição e idade. As amostras são examinadas a olho nu ou com lupa de uma superfície polida da rocha e podem também ser cortadas com uma lâmina de diamante e depois lixadas e polidas até chegarem, grudadas a placas de vidro, à espessura de 30 milésimos de milímetro para que fiquem transparentes a ponto de serem analisadas ao microscópio. Além disso, há outras técnicas à disposição, como análises químicas, datação e microscopia eletrônica. Mapa do tesouro - Juliani também tem

esquadrinhado o rio Tapajós, em parte com ajuda de seu aluno Carlos Misas. Lá, eles descobriram ricos depósitos de alunita – um indício de que ali deve haver veios muito ricos de ouro. A alunita é um mineral que só se forma quando a água que sai do magma a cerca de 450 graus Celsius (°C) chega à superfície ainda bem quente, cerca de 130°C, alterando as rochas da superfície. Também caracterizaram um depósito de ouro e cobre do tipo pórfiro, uma pista que sugere a existência de grandes depósitos minerais que, apesar de conterem um teor baixo de ouro, podem chegar a grande volumes, com até mais de 1.200 toneladas de ouro. Os pesquisadores estabelecem colaborações com empresas mineradoras para financiar o trabalho. É um investimento rentável para as empresas, visto que os estudos geológicos trazem informações sobre onde vale a pena investir na procura por minério valioso. Encontrem-se ou não recursos minerais de grande valor econômico, o intuito de Juliani é contar a história do que

aconteceu, por meio do trabalho que integra o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) de Geociências da Amazônia, com sede na UFPA. “O que fazemos é um trabalho de detetive”, conta. Com o conhecimento crescente sobre o cráton amazônico, os pesquisadores começam a detalhar o evento Uatumã, dividindo esse período de explosões vulcânicas em termos geográficos e temporais. Além do vulcanismo, essa reconstituição histórica também permite detectar movimentos tectônicos das placas que compunham a crosta terrestre naquela época. “Na região que estudamos há indícios de uma colisão tectônica como a que formou a cordilheira dos Andes. Só que não tem montanhas tão altas, não sabemos por quê.” Ano após ano, conforme permitem o financiamento e as intensas chuvas amazônicas que impedem o trabalho de campo, a equipe reúne as peças desse antigo quebra-cabeça. As peças que não se encaixam, como a ausência de montanhas onde placas parecem ter colidido e a preservação inusitada das rochas no sul do Pará, servem como um estímulo a mais. Esse fascínio pelo desafio fica evidente na frase do físico alemão Albert Einstein que Marcello Fernandes escolheu como epígrafe de sua tese: “Se, a princípio, a ideia não é absurda, então não há esperança para ela”. n Artigo científico 1. JULIANI, C. & FERNANDES, C. M. D. Well-preserved late paleoproterozoic volcanic centers in the São Félix do Xingu region, Amazonian Craton, Brazil. Journal of Volcanology and Geothermal Research. v. 191, n. 3-4, p. 167-79. abr. 2010. PESQUISA FAPESP 174

n

agosto DE 2010

n

55


Jogo de armar Nanotubos de moléculas biológicas podem virar sensores e células de energia

M

ontar, peça por peça, minúsculos tubos da espessura de um fio de cabelo dividido dezenas de milhares de vezes é o jogo que ocupa a equipe do químico Wendel Alves, da Universidade Federal do ABC (UFABC), e lhe permite desvendar as condições ideais para produzir esses nanotubos e controlar suas propriedades. Pode parecer ficção científica, mas é verdade. E passa longe de ser um brinquedo sem utilidade: a ideia é, no futuro, criar biossensores e geradores de energia em miniatura. Integrado ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) de Bioanalítica, coordenado pelo químico Lauro Kubota, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o laboratório recém-montado, que o grupo de Alves reparte com as equipes de outros três docentes, está pronto para o desafio. Mesmo assim algumas moléculas são pequenas demais para serem manipuladas na realidade, mesmo num avançado laboratório de química; nesse caso, os estudos teóricos ficam a cargo do físico Alexandre Reily Rocha, também professor da UFABC, a universidade ainda em processo de instalação em Santo André, na Grande São Paulo. “No computador eu posso pôr uma molécula de cada vez dentro do nanotubo e estudar, por meio de modelos de simulação, o que acontece”, explica. Os nanotubos de Alves são formados por aminoácidos, que são as unidades que compõem as proteínas e suas subpartes, os peptídeos. Ao contrário dos nanotubos de carbono, já bem comuns em laboratórios pelo mundo afora e que para se formarem exigem condições de trabalho específicas como temperaturas muito altas e uma corrente elétrica intensa, os de peptídeos ainda são novidade no Brasil, segundo o químico da UFABC. E uma novidade promissora. “Os nanotubos de peptídeos são mais baratos e mais rápidos de produzir”, resume. Na verdade, eles se formam espontaneamente. Basta dissolver os peptídeos num tubo de ensaio que eles se organizam formando inúmeros tubos. A equipe paulista mostrou, em artigo que será publicado em setembro no Journal of Materials Science, que para a formação dos nanotubos obtidos por eles é preciso usar, nas condições certas, uma série de peças feitas com um tipo específico de aminoácido: a fenilalanina, que se agrega em duplas formando o peptídeo difenilalanina. Depois de formada uma suspensão do material, o pesquisador vê aparecer um sólido branco no tubo de ensaio. A olho nu não passa disso, mas recursos de alta tecnologia como difração de raios X, espectroscopia e microscopia eletrônica de varredura ajudam a caracterizar os nanotubos, no princípio dispostos de forma aleatória. Felizmente não é preciso um nanopente para desembaraçá-los: basta ressuspender o sólido em água que os tubos se auto-organizam. A disposição varia conforme as condições de pressão, temperatura, pH e o solvente. Podem ficar de pé, como uma nanofloresta, ou deitados como espaguete num prato.

Thiago cipriano/UFabc/lme-lnls

[ Físico-química ]


Os Projetos 1. Síntese, caracterização e estudo das propriedades eletrônicas dos nanotubos de peptídeos e óxido de titânio – nº 2008/53a576-9 2. Simulações ab initio de transporte eletrônico em sistemas nanoestruturados desordenados – nº 2009/15129-3 modalidade

1. Jovem Pesquisador 2. Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa Co­or­de­na­dores

1. Wendel Andrade Alves – UFABC 2. Alexandre Reily Rocha – UFABC investimento

1. R$ 377.263,69 2. R$ 127.795,55

Nanofloresta: tubos de pé em eletrodo

Tarciso de andrade filho/ufabc

Alves está estudando como os parâmetros afetam a disposição dos nanotubos para que possa, no futuro, controlar essa organização – que influencia as suas propriedades – conforme o uso que pretende. De maneira geral, a ideia é aprisionar enzimas dentro de nanotubos aderidos a um eletrodo, para usá-los como biossensores. Uma enzima que se liga a moléculas de glicose, por exemplo, pode estar no âmago de um minúsculo sensor para diabéticos. Ao aderir às enzimas, as moléculas de glicose alteram a variação da corrente em relação ao tempo, permitindo medir o teor de glicose da amostra. O grupo de químicos da UFABC já conseguiu aprisionar em nanotubos o sítio ativo de uma enzima, a microperoxidase 11, que contém ferro e torna vermelho, a olho nu, o pó branco dos nanotubos. O trabalho, relatado no artigo do Journal of Materials Science, é parte do mestrado de Thiago Cipriano e

Moléculas de água dentro do nanotubo em corte transversal

demonstra que esses nanotubos cedem elétrons ao peróxido de hidrogênio e o transformam em água, um tipo de reação conhecida como redução. Agora Alves busca produzir sistemas de nanotubos com base em modelos biológicos que sejam capazes de retirar elétrons do oxigênio em temperatura ambiente, gerando eletricidade. “É isso que se busca em células a combustível”, explica. Junto com a estudante de mestrado Iorquirene Matos, ele montou nanotubos de peptídeo com uma estrutura de quatro íons de cobre que, de acordo com artigo na Electrochimica Acta de julho, de fato conseguem realizar essa redução. Realidade virtual - Em simulações, Alexandre Rocha estuda como melhorar a condução de eletricidade pelos nanotubos de peptídeos, isolantes por natureza. O trabalho indica que partículas de ouro e de cobre podem ser aderidas aos tubos, produzindo sensores mais precisos – um efeito já confirmado pelos químicos. Outro aspecto dissecado pelo físico é a influência da água nas propriedades dos nanotubos. Apesar de quase onipresente no planeta, a água ainda reserva muitos segredos à ciência. A dupla da UFABC já verificou, com base tanto nas simulações como nas imagens por raios X, que as moléculas de água aderem ao interior do tubo formando uma hélice – mas uma hélice imperfeita, não completamente regular. Ao acrescentar uma molécula de cada vez no ambiente virtual, Rocha conseguiu caracterizar como as molé-

culas de água se conectam, por meio de ligações de hidrogênio, aos aminoácidos que compõem os tubos. A estrutura é tão estável que, mesmo próximo da temperatura ambiente, os pesquisadores se referem àquela água como gelo. Para que evapore, não bastam 100 graus Celsius (oC): são precisos 150oC para retirar a água dos nanotubos. O passo seguinte são as análises físico-químicas, para definir como a água afeta as propriedades dos nanotubos. O químico reúne esses achados para montar (em pensamento) um sistema que ele admite – este sim – ainda ser ficção científica: um biossensor acoplado a uma biocélula de eletricidade, tudo nanométrico, de maneira que diabéticos poderiam implantar no pâncreas um aparelho capaz de medir níveis de glicose e liberar insulina quando necessário. Tudo isso alimentado por uma biocélula como fonte de energia. Em teoria, também deve ser possível usar essas biocélulas para alimentar marcapassos, hoje implantados em pacientes cardíacos com pequenas baterias. n

Maria Guimarães Artigos científicos 1. CIPRIANO, T.C. et al. Spatial organization of peptide nanotubes for electrochemical devices. Journal of Materials Science. v. 45, n. 18, p. 5.101-08. 2010. 2. MATOS, I.O. et al. Approaches for multicopper oxidases in the design of electrochemical sensors for analytical applications. Elec­ tro­chimica Acta. v. 55, n. 18, p. 5.223-29. 2010. PESQUISA FAPESP 174

n

agosto DE 2010

n

57


[ homenagem ]

O padre das abelhas Reconhecido no exterior, Jesus Moure contribuiu para a criação de instituições de pesquisa Neldson Marcolin

J Padre Moure em 1948, Curitiba

58

n

agosto DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 174

esus de Santiago Moure era um padre do século XX, mas mais parecia um daqueles clérigos ilustrados dos séculos XVII ou XVIII, que aliavam a religião ao profundo interesse pela história natural. Ao morrer em consequência de falência múltipla de órgãos no dia 10 de julho, aos 97 anos, poucos sabiam qual era a ordem que seguia – a da Congregação dos Claretianos –, mas todos o reconheciam como um dos grandes sistematas de abelhas do planeta. Filho de espanhóis, Moure nasceu em Ribeirão Preto, interior de São Paulo. A partir dos 12 anos frequentou seminários em Curitiba e Rio Claro. Teve toda a formação comum aos religiosos – com ênfase natural em filosofia e teologia – e aprendeu idiomas que seriam úteis na sua longa carreira científica, como latim, grego, hebraico, francês e espanhol. Em 1937, ao receber a ordenação em São Paulo, aproveitou o período na cidade para dar vazão a outra vocação, a zoologia. Fez contato com Frederico Lane, do Museu Paulista, e passou a colaborar com traduções do latim de textos entomológicos. Com Lane publicou seus primeiros trabalhos, entre 1938 e 1940, sobre curculionídeos, um tipo de besouro. Começou a dar aulas de história natural no seminário de Curitiba, em 1938, e foi um dos fundadores da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da cidade, depois integrada à Universidade Federal do Paraná (UFPR). Em 1939 assumiu a Divisão de Zoologia do Museu Paranaense, do qual viria a ser diretor. “Como padre e professor do seminário e da faculdade tinha muitas obrigações durante o dia. Para continuar trabalhando e publicando simultaneamente, durante 20 anos dormi apenas três horas e meia por noite”, disse ele em depoimento para o livro Cientistas do Brasil (SBPC, 1998). O interesse por abelhas iniciou-se em 1940 com a publicação do artigo Apoidea Neotropica.


fotos http://zoo.bio.ufpr.br/hymenoptera/livro_Moure/Melo_&_Alves-dos-Santos.pdf

Charles Michener e Moure durante viagem de trabalho à Argentina e ao Chile, em 1956

“Padre Moure foi autodidata em biologia”, assegura Paulo Nogueira-Neto, amigo de longa data, especialista em abelhas-sem-ferrão e professor emérito da Universidade de São Paulo (USP). “Ele aprendeu estudando sozinho, interagindo com colegas cientistas e acabou professor titular de zoologia”, conta. “Nogueira-Neto, Moure e o geneticista Warwick Kerr são os principais nomes da pesquisa com abelhas no Brasil pelo pioneirismo do trabalho que começou ainda na primeira metade do século passado”, diz o entomólogo Gabriel Melo, do Departamento de Zoologia da UFPR, o mesmo onde o padre trabalhou. Além de Nogueira-Neto e Kerr, Moure colaborou intensamente com João

Camargo – grande taxonomista e desenhista de talento da USP de Ribeirão Preto, morto em 2009 – e com pesquisadores do exterior, como Charles Michener, da Universidade do Kansas, que passou um ano em Curitiba trabalhando com ele em 1956. Quando Michener voltou para os Estados Unidos foi a vez de o brasileiro acompanhá-lo e trabalhar em outro país. Lá viu nascer e trouxe para o Brasil a taxonomia numérica, uma metodologia usada hoje em ecologia, ao assistir conferências do estatístico Robert Sokal, nos anos 1960. Viajou pela Europa para estudar coleções de abelhas neotropicais com bolsa da National Science Foundation e obteve auxílios

Warwick Kerr (esq.), Nogueira-Neto e Moure, em 1950, em Campinas: trabalhos pioneiros

da Fundação Rockefeller para equipar laboratórios no Brasil. No total, o religioso escreveu 220 artigos em revistas nacionais e estrangeiras e dois livros, além de ter descrito 432 espécies e 33 subespécies de abelhas entre 1940 e 2002. Nos últimos anos, debilitado, recolheu-se no convento dos claretianos de Batatais (SP). Na parte institucional participou de iniciativas em prol da pesquisa, como a criação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e da Coor­denação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (Capes), além de várias organizações científicas. “No Paraná, ele foi especialmente importante para desenvolver a pós-graduação”, conta Danúncia Urban, colaboradora antiga do “padre das abelhas”, como ficou conhecido em Curitiba. As atividades científicas nunca o fizeram abandonar as obrigações sacerdotais. Segundo Danúncia, os professores amigos celebravam seus casamentos e batizavam filhos e netos com ele. O pesquisador também não via nenhum conflito entre religião e ciência. Moure resolveu o problema de modo prático desde o princípio da carreira, segundo entrevista para Cientistas do Brasil: “Deus fez o mundo pela evolução. E a lei de Deus é a lei da evolução correndo no tempo”. n PESQUISA FAPESP 174

n

agosto DE 2010

n

59


o

Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org

Notícias • Música

Artes da cultura popular O artigo "Artes de musicar e de improvisar na cultura popular", de José Machado Pais, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, explora bases de sustentabilidade do valor patrimonial das chamadas culturas marginais, tomando como referência as artes de musicar e de improvisar. Aos preconceitos que associam a cultura popular à frivolidade se contrapõem evidências da sua criatividade. Para isso, o autor compara tendências e influências musicais de Portugal e do Brasil, na base de uma matriz partilhada de repentes e improvisações. Os exemplos do fado e do samba são usados para ilustrar as variações simbólicas, no decurso do tempo, das produções culturais: dos antros de marginalidade podem emergir ícones de nacionalidade. CADERNOS DE PESQUISA

- VOL. 39 - NO 138 -

SÃo PAULO

-

SET./DEZ.2009

• Engenharia agrícola

Regiões de risco em São Paulo As perdas produtivas na avicultura de corte, provenientes de climas com temperaturas diárias elevadas, são potencialmente de grande magnitude, pois abrangem perdas diretas e indiretas. A pesquisa "Avaliação de ~iscoà produção de frango de corte do estado de São Paulo em função da temperatura ambiente", de Douglas D. Salgado, doutor em engenharia agrícola, e Irenilza de A. Nâãs, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), teve a finalidade de apontar os municípios localizados onde há mais risco de temperaturas extremas diárias. Os dados históricos meteoro lógicos de temperaturas diárias, máximas e mínimas, fornecidos pelo Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura (Cepagri/Unicamp), foram adaptados para análise estatística, descritiva e exploratória. O trabalho indicou que os municípios da região oeste do estado de São Paulo foram os mais suscetíveis a apresentarem perda na produção avícola devido às temperaturas ambientais, sendo

60 . AGOSTO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 174

recomendado maior cuidado com o excesso de calor nos alojamentos das granjas. Também foi constatado que os valores médios e medianos das temperaturas mínimas são bons preditores do risco, em razão da alta associação entre o risco e essas variáveis. ENGENHARIA

AGRÍCOLA

- VOL. 30 - NO 3 - JABOTICABAL-

)UN.201O

• Ginecologia

Frequência de endometriose o

teste sorológico para o marcador tumoral CA125 tem sido largamente usado para detectar e monitorar a progressão da endometriose. Entretanto, sua utilidade ainda é controversa. Além disso, alguns autores descrevem a endometriose superficial como sendo um fenômeno cíclico e normal na vida de uma mulher. O estudo "Frequência de lesões endometrióticas em amostras de peritônio de mulheres férteis assintomáticas e correlação com valores de CA125" teve como objetivo determinar a frequência da doença e a correlação entre os níveis séricos de CA125 e a presença de lesões em peritônio de pacientes férteis assintomáticas. A pesquisa. foi realizada no Ambulatório de Planejamento Familiar da Faculdade de Medicina do ABC com 80 pacientes férteis assintomáticas submetidas à cirurgia de esterilização tubária. Os níveis de CA125 foram medidos a partir das amostras de sangue e as biópsias de peritónio foram estudadas por ensaio histopatológico. O estudo histopatológico do peritónio revelou que 16,25% das pacientes apresentavam endometriose mínima e leve. Os níveis de CA125 não demonstraram diferença estatística significante entre pacientes com e sem endometriose. A presença de lesões endometrióticas em peritónio de pacientes férteis reforça a hipótese de que achados acidentais de endometriose mínima e leve podem não ter significância clínica, e que é provável que a progressão da doença ocorra como resultado de alterações genéticas e imunológicas. Os níveis séricos de CA125 não demonstraram significância diagnóstica para a detecção da doença. O trabalho foi realizado por Caio Parente Barbosa e Geraldo Rodrigues de Lima, da Universidade Federal de São Paulo, Ângela Mara Bentes de Souza, Bianca Bianco, Denise Christofolini e Fernanda Abani Mafra Bach, da Faculdade de Medicina do ABC. SAO PAULO MEDICAL PAULO

-

NOV. 2009

]OURNAL

- VOL. 127 - NO 6 -

SÃo


• História

• Saúde coletiva

Ouro Preto e os modernistas

Aborto no Brasil o

artigo "Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna", de Debora Diniz, do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, e Marcelo Medeiros, da Universidade de Brasília, apresenta os primeiros resultados da Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), um levantamento por amostragem aleatória de domicílios, realizado em 2010, cuja cobertura abrangeu as mulheres com idades entre 18 e 39 anos em todo o Brasil urbano. A PNA combinou duas técnicas de sondagem: a técnica de urna e questionários preenchidos por entrevistadoras. Seus resultados indicam que, ao final da vida reprodutiva, mais de uma em cada cinco mulheres já fez aborto, que ocorreram em geral nas idades que compõem o centro do período reprodutivo das mulheres, isto é, entre 18 e 29 anos. Não se observou diferenciação relevante na prática em função de crença religiosa, mas o aborto se mostrou mais comum entre mulheres de menor escolaridade. O uso de medicamentos para a indução do último aborto ocorreu em metade dos casos e a internação pós-aborto foi observada em cerca de metade dos casos. Tais resultados levam a concluir que o aborto deve ser prioridade na agenda de saúde pública nacional. CIÊNCIA

& SAÚDE COLETIVA

- VOL. 15 - SUPL. 1-

RIO DE

JANEIRO - )UN. 2010

• Sociologia

Homicídios na capital paulista O artigo "Crime e castigo na cidade: os repertórios da justiça e a questão do homicídio nas periferias de São Paulo", de Gabriel de Santis Feltran, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), descreve e analisa a operação de "tribunais do crime", implementados por facções criminosas nas periferias da cidade de São Paulo. O autor argumenta que a disseminaçã? desse dispositivo, hoje "institucionalizado" nos territórios estudados, somente se tornou possível depois de o "mundo do crime" ter ascendido à posição de instância normativa legítima entre parcela minoritária, mas relevante, dos moradores das periferias urbanas. De acordo com o pesquisador, esse fenômeno remete, no mínimo, a três décadas de transformações ocorridas nas esferas do trabalho, da família, da religião e da ação coletiva, pilares da vida social das periferias urbanas. Mapeando essas transformações amparado por uma etnografia realizada entre 2005 e 2009, Feltran afirma que os dispositivos de regulação interna ao "mundo do crime" seriam os fatores explicativos centrais da queda das taxas de homicídio em São Paulo, notável nos anos 2000, e reivindicada publicamente por governos e polícias. CADERNO ABR.201O

CRH

-

VOL.

23 -

NO 58 -

SALVADOR

-

O artigo "Memória poética do espaço: Ouro Preto por Murilo Mendes': Valmir de Souza, da Universidade Guarulhos, visa apontar a importância de Ouro Preto, em Minas Gerais, no projeto modernista brasileiro. A cidade era considerada pelos modernistas um símbolo da nacionalidade. O artigo oferece algumas referências sobre esse lugar histórico e em seguida analisa a visão poética de Murilo Mendes sobre a cidade no poema "Flores de Ouro Preto ", do livro Contemplação de Ouro Preto, mostrando a recuperação literária do espaço e sua resistência frente ao processo de modernização no Brasil. ESTUDOS

HISTÓRICOS

(RIO

DE JANEIRO)

NO 43 - RIO DE JANEIRO - )AN./)UN.

-

VOL. 22 -

2009

• Tecnologia de alimentos

Aguardente envelhecida O estudo "Aspectos da composição química e aceitação sensorial da aguardente de cana-de-açúcar envelhecida em tonéis de diferentes madeiras" levou em consideração a cachaça envelhecida por três anos em recepientes de diversas madeiras (amendoim, araruva, cabreúva, carvalho, cerejeira, grápia, ipê-roxo, jequitibá e pereira). Após envelhecimento, as bebida foram avaliadas quanto ao grau alcoólico, acidez volátil, furfural, aldeídos, ésteres, alcoóis superiores, álcool metílico, cobre, compostos fenólicos totais, cor e aceitação sensorial. Independentemente da madeira, a aguardente envelhecida apresentou coloração mais escura e maior concentração de acidez volátil, de furfural, de ésteres, de alcoóis superiores, de congêneres e de compostos fenólicos totais que o destilado alcoólico simples. Mostrou também menor concentração de aldeídos, de metanol e de cobre que o destilado simples. A análise estatística geral indicou similaridades entre as bebidas nos tonéis de amendoim, araruva e jequitibá; entre as dos tonéis de cabreúva e pereira; e entre as dos tonéis de carvalho, cerejeira, grápia e ipê-roxo. A aguardente manteve-se dentro de todos os padrões de qualidade estabelecidos pela legislação nacional. O estudo foi feito por André Ricardo Alcarde, Paula Araújo de Souza, André Eduardo de Souza Belluco, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/USP). CIÊNCIA SUPL. 1-

E TECNOLOGIA

DE ALIMENTO

-

VOL. 30 -

CAMPINAS - MAl. 2010

> O link para a íntegra dos artigos citados nestas páginas estão disponíveis no site de Pesquisa FAPESP, www.revistapesquisa.fapesp.br

PESQUISA FAPESP 174 • AGOSTO DE 2010 • 61


LINHA DE PRODUÇÃO

MUNDO

FIBRAS ACÚSTICAS Fibras que podem detectar e produzir sons foram desenvolvidas por pesquisadores do Laboratório de Eletrônica do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Elas podem ser empregadas na fabricação

de roupas para

captação de voz ou do som ambiente, de maneira semelhante a sensíveis microfones, ou no monitoramento de funções corporais. O coração das novas fibras acústicas é o mesmo tipo de plástico usado em microfones.

O

pulo do gato da tecnologia é o conteúdo de flúor do plástico. Os pesquisadores conseguiram fazer com que as suas moléculas fossem assimétricas - com átomos de flúor alinhados de um lado e átomos de hidrogênio

do

outro - mesmo durante o processo de

I

PLANTAS BRILHANTES

aquecimento e transformação

do material bruto em fibra.

Essa assimetria das moléculas torna o plástico piezoelétrico, o que significa que ele muda de forma quando um campo

Identificar plantas doentes por meio de folhas que se tornam brilhantes ou vermelhas quando estão infectadas por bactéria, vírus ou outro patógeno. Essa possibilidade foi apresentada em um congresso de biotecnologia vegetal nos Estados Unidos, em junho, por pesquisadores da Universidade do Tennessee. Por meio de engenharia genética, que insere genes específicos no DNA do vegetal, o sistema imune da planta provoca uma reação traduzida em brilho ou mudança da cor na presença de um agente infeccioso. Isso seria importante para evitar o excesso de pulverizações

elétrico

é aplicado sobre ele. Quando conectadas

a uma

fonte de alimentação e aplicada uma corrente alternada, elas vibram e produzem sons em frequências audíveis.

em uma plantação. Os pesticidas seriam aplicados somente nas plantas doentes ou na região onde realmente a doença ataca. Por enquanto foram realizados testes apenas em . plantas de tabaco cultivadas em laboratório. O pesquisador Neal Stewart disse ao site SciDev. net que é possível testar a tecnologia em outras culturas. O próximo passo é fazer experimentos para confirmar a tecnologia no campo com diferentes culturas e patógenos.

62 • AGOSTO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 174

I

PASSOS DA NANOTECNOLOGIA

Uma nova forma de tratamento para tornar nanotubos de carbono mais aptos a se transformar em fios condutores foi proposta pela Universidade Rice, nos Estados Unidos, em estudo liderado pelo professor Matteo Pasquali relatado na publicação America Chemical Society, a ACS Nano. Um tipo de ácido chamado clorossulfônico foi usado para diluir e desembaraçar os nanotubos

que se unem durante o processo de fabricação. Essa técnica vai proporcionar que esses dispositivos possam ser articulados em um cabo chamado de fio quântico e transmitir até 10 vezes mais que um fio de cobre, com menor peso e tamanho. Esse tipo de fiação foi previsto pelo pesquisador norte-americano Richard Smalley, da mesma universidade. Falecido em 2005, ganhou o Prêmio Nobel de Química em 1996 com os pesquisadores Robert Curl, também de Rice, e Harold Kroto, da Universidade de Sussex, da Inglaterra. Eles descobriram a buckminsterfulierene, conhecida como buckybali ou fulereno, molécula que tem a forma de uma bola de futebol formada por 60 átomos de carbono e se tornou o primeiro arranjo molecular estável da família que inclui os nanotubos. Descoberta há 25 anos pela equipe formada pelos três pesquisadores, ela abriu caminho para a nanotecnologia.


EMISSÃO ZERO EM TÁXIS LONDRINOS

o tradicional táxi de Londres, na Inglaterra, chamado de Black Cab, vai ganhar uma versão verde com emissão zero de poluentes. O Black Cab Green será híbrido, movido a hidrogênio e dotado de baterias de íon de lítio. Até 2012, ano de Olimpíadas em Londres, uma frota de 16 veículos deverá estar rodando na cidade. Eles serão produzidos por um consórcio de empresas com financiamento de US$ 45 milhões do Conselho de Estratégia Tecnológica (TSB, na sigla em inglês) do Reino Unido. Entre essas companhias estão a Intelligent Energy, que vai fornecer as células a combustível, equipamento que transforma o gás

ELETRICIDADE

hidrogênio em eletricidade, a Lotus Engineering, com um pacote de integração dos vários sistemas do veículo, a própria fabricante do veículo, a London Taxis International, e a TRW

DO VEGETAL

Bastante usada na culinária, a batata transformou-se

em uma

fonte de energia renovável por pesquisadores da Universidade

Conekt, produtora de sistemas de freios, direção e controles eletrônicos. Armazenando energia da célula nas baterias e com tanque cheio de hidrogênio, o Black Cab Green terá autonomia de 402 quilômetros (km) e velocidade máxima de 130 km/h. A prefeitura de Londres trabalha com os fabricantes para que todos os.táxis da cidade em 2020 tenham emissão zero de poluentes.

Hebraica de Jerusalém, em Israel. Uma única fatia do tubérculo pode gerar 20 horas de luz, enquanto várias fatias são capazes de produzir energia para alimentar

equipamentos

médicos simples e até mesmo um computador.

O detalhe é

que a batata tem que ser cozida, já que a temperatura

de

ebulição rompe as membranas de suas células, liberando os seus eletrólitos naturais, responsáveis pelo fluxo elétrico. A capacidade de produzir e utilizar energia elétrica de baixa potência foi demonstrada com a construção

de

um sistema diodo emissor de luz alimentado por células de batata, que funciona de forma semelhante a uma bateria convencional, com dois eletrodos, um de zinco e outro de cobre, separados por um eletrólito,

no caso o tubérculo.

ROBÔ CENTOPEIA

o outro sob o calor. Quando uma corrente elétrica passa através dos pés, o fio aquece os dois materiais. Mas como um dos lados se expande mais do que o outro, a perna se movimenta como uma onda. O modelo tem capacidade para transportar cargas pesadas e se mover em qualquer direção. Os robôs pesam meio grama, medem alguns centímetros e têm espessura equivalente à de uma unha. Esse tamanho pequeno se constitui em uma vantagem na construção de dispositivos móveis para coletar amostras ambientais.

Um inseto robô com centenas de pés minúsculos foi desenvolvido por pesquisadores da Universidade de Washington, nos Estados Unidos. São 512 pés dispostos em 128 grupos de quatro, sendo que cada um deles é composto de um fio metálico imprensado entre dois materiais diferentes, um dos quais se expande mais do que PESQUISA FAPESP 174 ' AGOSTO DE 2010 • 63


LINHA Df PRODUÇÃO

BRASIL

BELEZA MICROSCÓPICA o

alecrim

cinalis)

(Rosmarinus visto

microscópicos

otti-

em detalhes inspirou a ar-

tista plástica Cristina Libardi a criar imagens de rara beleza da planta. Essa ponte entre arte e tecnologia foi realizada com a ajuda do professor Francisco Tanaka, do Departamento de Fitopatologia

e Ne-

Estrutura do alecrim ampliada e modificada

matologia da Escola Superior de Agricultura

Luiz de Quei-

roz (Esalq) da Universidade de São Paulo. Foi quando a artista teve a oportunidade de conhecer a estrutura molecular do alecrim em imagens com até 30 mil vezes de aumento, obtidas por meio dos microscópios de luz e o eletrônico de varredura. A partir desses registros, ela trabalhou com softwares de manipulação

de imagens, nas quais ressalta

aspectos do relevo e da topografia

da planta a partir do

emprego de cores e da alteração de características

como

brilho e contraste. Imagens híbridas que se assemelham a rendilhados

e outras

tado da interlocução

I

formas inspiradas surgem como resulentre tecnologia e arte.

MONITORAMENTO EM REDE

Agregar todo o conhecimento que existe na área de monitoramento ambiental para usá-lo de forma integrada no salvamento de vidas é a proposta da IEEE, a maior associação de engenheiros eletricistas e eletrônicos do mundo, com 500 mil associados. As iniciativas envolvem pesquisadores de vários países com o objetivo de utilizar a tecnologia de sensoriamento remoto para

monitorar o comportamento em terra, na atmosfera e na água. O professor João Antônio Zuffo, coordenador do Laboratório de Sistemas Integráveis da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (LSI-USP), também participa desse projeto conjunto. "A rede poderia evitar o que aconteceu no Haiti, por exemplo, onde houve muita demora na operação de salvamento", diz Zuffo. Dependendo do comprimento de onda utilizado, as imagens de

64 • AGOSTO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 174

satélite conseguem penetrar entre os escombros e orientar as escavações. "Como até hoje os haitianos estão sem comunicação, poderia ser estabelecida uma rede de emergência rápida, por satélite, conectada à rede local." No LSI, os pesquisadores trabalham no desenvolvimento de sensores ambientais para detectar hidrocarbonetos leves e medir a acidez em recursos hídricos.

"O sistema móvel apresentou um aumento de eficiência de até 53% em relação a um fixo similar", diz Alves. Um dos diferenciais dessa tecnologia é que, em vez de sensores, ela utiliza equações conhecidas na área de astronomia para calcular a posição exata do Sol. "A partir dessa informação, o painel é posicionado com a superfície perpendicular à incidência dos raios solares." Outro diferencial é que, em vez de motores de corrente contínua, o pesquisador optou por usar dois motores de passo, utilizados em impressoras de computador, que oferecem boa precisão de posicionamento e um sistema de controle simplificado. Esses motores são responsáveis pela movimentação do painel em dois eixos - um deles faz o ajuste da inclinação a cada três ou quatro dias e o outro o acerto do ângulo do horário, a cada quatro minutos.

CAPTAÇÃO SOLAR MAIS EFICIENTE Um sistema fotovoltaico com estrutura móvel, que permite captar o máximo de energia / solar, foi desenvolvido pelo professor Alceu Ferreira Alves, da Faculdade de Engenharia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Bauru, no interior paulista.

Painel acompanha o movimento do Sol


I

I

TESTE NACIONAL PARA H1N1

Um kit com tecnologia nacional que reúne em um produto os reagentes biomoleculares utilizados para detecção do vírus da injluenza H1N1 está sendo fabricado por um consórcio

TRANSPORTE

formado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), por meio do Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos, no Rio de Janeiro, e o Instituto Carlos Chagas, no Paraná, e o Instituto de Tecnologia do Paraná (Tecpar). Os reagentes multiplicam

COM ECONOMIA

Um ônibus híbrido capaz de reduzir em até 30% as emissões de dióxido de carbono em função de uma diminuição

equi-

valente no uso de combustível foi desenvolvido em parceria entre a empresa alemã Siemens e a indústria gaúcha Agrale, para o transporte

urbano de passageiros. O veículo, batizado

de Hybridus, utiliza uma tecnologia híbrida diesel e elétrica. Em vez de uma bateria recar-

o material genético do vírus, o RNA viral, tornando possível a sua identificação. No primeiro lote foram fabricados 30 mil testes para detectar a doença em pacientes internados com suspeita de gripe, em casos de surtos em comunidades fechadas e para investigar óbitos. Os laboratórios do consórcio têm capacidade para produzir 80 mil testes por mês. As principais vantagens do diagnóstico brasileiro em relação aos do exterior são o preço em média R$ 45,00 ante R$ 100,00 a R$ 150,00 dos importados - e o menor tempo de análise, que passou de oito para quatro horas.

PARCERIA ENTRE GIGANTES

A dinamarquesa Novozymes, produtora de enzimas industriais, e a brasileira Dedini Indústrias de Base, de Piracicaba, no interior paulista, fizeram uma parceria para dar continuidade à pesquisa e ao desenvolvimento de uma rota tecnológica para a produção de etanol celulósico no Brasil a partir da palha e do bagaço da cana-de-açúcar. Em fevereiro, a Novozymes apresentou a primeira enzima comercialmente viável para a produção de etanol celulósico. A Dedini, fabricante de equipamentos para o mercado sucroalcooleiro, desenvolveu um processo químico de hidrólise com ácido diluído utilizando um solvente da lignina. O objetivo da parceria é desenvolver um processo que utiliza a rota da hidrólise enzimática a partir de resíduos da cana e que resultará na implantação de uma usina de demonstração, integrada a uma refinaria. O Brasil é o maior produtor mundial de cana, com uma moagem superior a 600 milhões de toneladas ao ano.

regável, o ônibus é equipado com o sistema ELFA (Electric Low Floor Axle), controlado por uma central

eletrônica

que reúne dois ultracapacitores, que armazenam elétrica.

A tecnologia

energia man-

tém o motor diesel em níveis ideais de rotação, gerenciando o fornecimento necessária.

da potência

Assim, obtém-se

Ônibus com sistema híbrido para rodar nas cidades

uma economia considerável de combustível,

além de redução

de emissão de gases e ruídos.

PESQUISA FAPESP 174 • AGOSTO DE 2010 • 65


[ Meteorologia ]

E

m uma tarde de fevereiro de 2008 o sistema de alerta da Defesa Civil da cidade de Barueri na Região Metropolitana de São Paulo recebeu uma informação de previsão de tempestade para as próximas duas a três horas direto do sistema de radar meteorológico mantido por uma parceria entre a prefeitura do município e o Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da Universidade de São Paulo (USP). O pessoal da Defesa Civil imediatamente isolou algumas áreas, principalmente de encostas, e evitou, muito provavelmente, a morte de moradores de duas casas que foram destruídas com aquelas chuvas. O exemplo mostra a importância do monitoramento imediato do tempo em uma região como a de São Paulo, de alta concentração urbana. O radar meteorológico que faz o monitoramento de nuvens e a aproximação de tempestades, granizo e velocidade dos ventos, além de medir uma série de outras variáveis do tempo, é um instrumento que faz parte da rotina dos pesquisadores de meteorologia do IAG-USP desde 2007. Ele foi financiado pela FAPESP por meio do Programa Sistema Integrado de Hidrometeorologia do Estado de São Paulo (Sihesp), uma parceria entre o Conselho de Hidrometeorologia (Cehidro) e a atual Secretaria de Desenvolvimento do Estado. O projeto e a montagem são da empresa paulistana Atmos, que utilizou instrumentos e software importados adicionados à tecnologia nacional. O radar móvel está instalado em um caminhão, com uma antena multidirecional, equipamentos, computadores, além de um gerador a diesel, que o deixam capaz de operar em qualquer lugar. Sob a coordenação do professor Augusto José Pereira Filho, do Laboratório


tecnologia

ilustração sobre foto Arun Kulshreshtha/wikimedia

Radar meteorológico construído no Brasil faz previsão de chuvas com três horas de antecedência | Marcos de Oliveira

de Hidrometeorologia (Labhidro) do IAG, o radar faz parte de um sistema de previsão hidrometeorológica que inclui as modelagens atmosférica e hidrológica para dar suporte na previsão de chuvas intensas e a possibilidade de enchentes e na previsão do tempo com até dois dias de antecedência realizada por meio de outro sistema de previsão numérica, denominado Advanced Regional Prediction System (ARPS). Precipitações severas previstas com esse sistema são monitoradas com o radar do IAG, que permite uma previsão de duas a três horas de antecedência com alto detalhamento para a área de cobertura do equipamento. “Os radares móveis são mais indicados para pesquisa e os principais estão nos Estados Unidos e Japão. Nos Estados Unidos são muito usados para monitorar tornados. O nosso radar é o primeiro do mundo a ser operado com objetivos operacionais e de pesquisa”, diz Pereira Filho. Num raio de ação de 150 quilômetros, o radar permite o monitoramento e previsão de chuva que abrange parte do Vale do Paraíba, Baixada Santista, serra do Mar, Campinas, Região Metropolitana de São Paulo e parte da região oeste do estado. Com ele é possível analisar a maior incidência de chuvas na Região Metropolitana da capital e menor ao redor das cidades, em dias de tempestades isoladas, como nos mananciais. Chove mais nas cidades porque o ar é aquecido próximo à superfície terrestre em consequência do acúmulo, na área urbana, de concreto e asfalto que absorvem a energia solar e a devolvem na forma de calor. Principalmente no verão o ar seco e quente muitas vezes é misturado com o ar úmido e frio oriundo da brisa que vem do oceano. O resultado é a formação rápida de tempestades e pancadas de chuva forte,

rajadas de vento, granizo, descargas elétricas e, consequentemente, enchentes e deslizamentos. “O que temos em São Paulo, no caso das chuvas fortes e enchentes, é uma formação local, muito particular, de eventos meteorológicos, no nível de microclima”, conclui Pereira Filho. Somente em 2010, um ano que já havia sido prognosticado por Pereira Filho como muito chuvoso, o sistema de previsão emitiu mais de 50 alertas de tempestade. “A quantidade de chuvas fortes em janeiro último também teve relação com o fenômeno climático El Niño associado com temperaturas da superfície do oceano Atlântico Sul acima do normal, o que injetou na atmosfera grandes quantidades de umidade, levadas pelas circulações atmosféricas para o continente.” O convênio entre o IAG e a prefeitura de Barueri que dá suporte a esse sistema foi firmado em 2008. “Isso proporcionou que nós treinássemos o pessoal da Defesa Civil da cidade para operar o radar durante 24 horas por dia no período chuvoso, de setembro a março.” O radar móvel também é utilizado no ensino e pesquisa de estudantes de graduação e pós-graduação em meteorologia do


fotos Augusto Pereira Filho/IAG-USP

IAG e engenharia ambiental da Escola Politécnica da USP. “Eles vão até o radar e verificam como o sistema é operado”, diz o professor Pereira Filho. Atualmente o caminhão com todo o equipamento instalado está estacionado em um terreno elevado em Barueri. Uma massa grande de dados, como mapas de chuva, vento, tamanho de gotas, está disponível no site do Labhidro para as defesas civis, secretarias de Estado e demais órgãos públicos que possuam meteorologistas. A página inicial do site www.labhidro.iag.usp.br é aberta ao público e contém a previsão do tempo com temperatura, umidade, ventos e chuva, além dos boletins de alertas de tempestades. O volume de informação gerado pelo radar é muito grande, são cerca de 10 megabytes (MB) a cada cinco minutos. Ao todo são 20 produtos que estão disponíveis. “Já atingimos a marca de milhares de usuários em dias de muita chuva”, diz. As informações captadas pelo radar são enviadas ao IAG por meio de um sistema de micro-ondas e os dados armazenados em um servidor. São arquivos que mostram os vários fenômenos monitorados desde a formação de nuvens até a dissipação das tempestades. Os registros rápidos e acelerados são fáceis para um leigo entender o fenômeno na tela do computador. A sequência de coleta de dados do radar foi quebrada principalmente em 2009. “No verão daquele ano não pudemos fazer um levantamento porque o radar ficou seis meses parado por problemas técnicos”, diz Pereira Filho.

Radar em Barueri: pesquisa e monitoramento de chuvas 68

n

agosto DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 174

Além do radar, a equipe do professor, formada por professores, alunos do IAG e o pessoal treinado da prefeitura de Barueri, conta com mais duas estações meteorológicas terrestres e sensores de medição de umidade de solo e espectro de gotas, entre outros, adquiridos com recursos da FAPESP no mesmo projeto do Sihesp, que visava dar suporte a instituições de pesquisa do estado na compra de instrumental para estudos de tempo e clima. Uma estação está instalada no Parque de Ciência e Tecnologia (Cientec) da USP, na zona sul de São Paulo, e outro no campus da USP Leste. No mesmo programa também foram reformados os radares meteorológicos de Bauru e Presidente Prudente, do Instituto de Pesquisas Meteorológicas (Ipmet) da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e instalado um sistema de computação para processar as informações climáticas do estado no IAG. Formação empresarial - O Programa

Sihesp e a FAPESP resolveram em 2005 entregar a construção do radar meteorológico móvel para a Atmos, a única empresa brasileira que apresentou uma proposta, porque a Fundação preferiu fortalecer a presença de uma companhia nacional no fornecimento desse tipo de equipamento. Com sede em São Paulo, a Atmos foi fundada em 2004 como um braço da Fundação Aplicações de Tecnologias Críticas, a Atech, uma organização de direito privado e sem fins lucrativos criada em 1997 para integrar o Sistema

O radar transmite pulsos de alta potência que se propagam na atmosfera e atingem um fenômeno atmosférico como nuvens, chuvas, granizo e neve de Vigilância da Amazônia (Sivam), e que atualmente presta serviços para os sistemas de controle do tráfego aéreo brasileiro. A Atmos também teve outra empresa na sua formação, a Omnisys, que desenvolve e presta manutenção a sistemas de radares para tráfego aéreo. Atech e Omnisys construíram um radar meteorológico fixo em Mogi das Cruzes com base na experiência do Sivam e que serviu de experimentação para a criação da Atmos. “Para produzirmos o radar móvel, o professor Augusto forneceu os requisitos técnicos necessários e nós procuramos atender e resolver os desafios eletrônicos e mecânicos, como desenvolver o pedestal da antena e mudar a suspensão do caminhão convencional para um sistema pneumático que inibe a vibração”, diz Claudio Carvas, diretor-presidente da Atmos. Uma das necessidades era que o radar funcionasse em banda X, designação de frequência eletromagnética que funciona em 9,4 gigahertz (GHz), recomendável para monitorar a atmosfera, medir o volume das nuvens e a quantidade de água que vai cair em um determinado período. A chamada banda S, usada em outros radares meteorológicos, opera na fre­ quência de 2,8 GHz. A banda X funciona bem até um raio de 150 quilômetros (km), enquanto a S atinge até 240 km. O radar, denominado MXPol pelo Labhidro, sigla em inglês para banda X de mobilidade e polarização vertical e horizontal, tem a potência de 80 quilo-


watts (kW) de pico. “Isso significa que o radar transmite pulsos estreitos de alta potência que se propagam na atmosfera e atinge um fenômeno atmosférico como nuvens, chuvas, granizo e neve”, diz Paulo Eduardo Martins, gerente técnico do projeto na Atmos. Outra vantagem do radar móvel explicitado pelo professor Pereira Filho é a dupla polarização, técnica que permite observar o fenômeno na faixa vertical e horizontal. É possível analisar o interior das nuvens por meio de um software e identificar a quantidade de água ou granizo, e não apenas visualizar essas formações de baixo para cima. Outro recurso, o sistema Doppler, permite detectar o deslocamento das nuvens e tempestades.

Radar mostra tempestade na capital. Ao lado, software “vê” a quantidade de água dentro das nuvens

Pedestal inovador - Para montar o

radar móvel, que teve um orçamento de R$ 2 milhões, o projeto permitiu a compra, no Brasil, de um caminhão de série, um gerador a diesel, equipamento de ar-condicionado, racks e o contêiner, além da importação dos sistemas de transmissão, recepção, processadores digitais, software e computadores, dos Estados Unidos, motores de antena, da Itália, e refletor, da Finlândia. A Atmos desenvolveu um sistema inovador para o pedestal da antena parabólica de 2,44 metros de diâmetro, que não necessita

Os Projetos 1. Sistema de previsão hidrometeorológica para a Bacia do Alto Tietê (01/13952-2) 2. Desenvolvimento de receptor digital para radares meteorológicos Doppler (06/51396-8) modalidade

1. Sistema Integrado de Hidrometeorologia do Estado de São Paulo (Sihesp) 2. Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) Co­or­de­na­dores

1. Augusto José Pereira Filho – USP 2. Fábio Haruo Fukuda – Atmos investimento

1. R$ 1.820.586,34 e US$ 409.727,04 (FAPESP) 2. R$ 94.773,75 e US$ 43.549,52 (FAPESP)

ser lubrificado com óleo. Os testes de avaliação e adaptação antes da entrega foram realizados pelo engenheiro francês Frédéric Cazenave, pesquisador do Laboratório de Hidrologia da Universidade de Grenoble. Como muitos dos equipamentos e softwares ainda são importados e muitas vezes a preços elevadíssimos, a Atmos resolveu desenvolver produtos para radares no país. O primeiro, por meio de um projeto do programa de Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) da FAPESP, coordenado pelo diretor-técnico da empresa, Fábio Fukuda, foi um receptor digital para radar. “Esse aparelho processa para o software os sinais recebidos de uma forma muito mais precisa que os receptores analógicos usados atualmente. Desenvolvemos esse equipamento para uso nos nossos radares e até vender para outros fabricantes”, diz Martins. Esse produto só é feito por empresas alemãs e norte-americanas. Outro desenvolvimento da empresa é um software de meteorologia que gera todos os produtos (informação de nuvens, granizo, gotas de chuva, ventos etc.) recebidos do processador de sinais do radar. “Hoje só existe esse software lá fora, a um preço de licença de até US$ 200 mil para cada radar”, diz Carvas. Para desenvolver esse produto, a empresa teve aprovado, em 2007, um projeto dentro do Programa Subvenção Econômica

da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) no valor de R$ 855 mil. Além de construir e desenvolver equipamentos, a empresa presta serviços de manutenção para radares de vigilância aérea da Aeronáutica e controle de tráfego aéreo e vai vender serviços de meteorologia para a empresa Somar, de São Paulo, com o radar de Mogi, que será transferido, nos próximos meses, para a rodovia dos Imigrantes para melhor posicionamento. “Fizemos também a atualização e reformulação dos radares do porta-aviões São Paulo. Também fizemos reparos em geradores de frequência em bandas S e X para seis corvetas da Marinha brasileira. Atualmente temos 25 engenheiros dentro do Centro de Manutenção de Sistemas da Marinha”, diz Carvas. A Atmos possui ainda uma série de parcerias internacionais com empresas dos Estados Unidos e da Europa para suprir nichos tecnológicos como equipamentos de aproximação de aeronaves em aeroportos, radares de uso militar e equipamentos de vigilância para gerenciamento de tráfego aéreo baseado em informações de posicionamento via GPS. A perspectiva de novos radares instalados no país é grande. No Brasil existem 25 radares meteorológicos, sendo 17 ligados ao controle de tráfego aéreo. “Para deixar o país bem coberto seriam necessários cerca de 400. Nos Estados Unidos existem redes com até 200 radares meteorológicos”, diz Martins. n pESQUISA FAPESP 174

n

agosto DE 2010

n

69


[ Novos materiais ]

Cinzas de valor Produtos com alto valor agregado utilizam resíduo da queima do bagaço de cana

Yuri Vasconcelos

O

acelerado crescimento da indústria sucroalcoo­ leira nacional nos últimos anos alçou o Brasil a uma posição de destaque entre os fabricantes mundiais de combustíveis alternativos. Cerca de 27 bilhões de litros de etanol são produzidos por ano nas usinas do país. O fortalecimento da atividade fez crescer o volume de bagaço de cana-de-açúcar que sobra no processo de produção. A quase totalidade desse material que se tornou um sub­ produto de valor agregado é queimada em caldeiras e o vapor usado para gerar energia elétrica em turbinas e geradores. Com a queima, surgiu outro resíduo, a cinza do bagaço, cujo volume anual é estimado em 4 milhões de toneladas. Vários estudos estão propondo uma des­ tinação econômica e ambientalmente viável para esse produto, como mostra o trabalho do físico Silvio Rai­ nho Teixeira, da Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista (FCT/Unesp), em Pre­ sidente Prudente, no oeste paulista. Ele já desenvolveu pelo menos três aplicações para o produto: a produção de briquetes, produto feito de pó de carvão da cinza que é prensado e serve como alternativa ao carvão vegetal comum; de fritas, insumo utilizado para dar acabamento final a peças cerâmicas; e de vitro-cerâmicas, material produzido a partir da cristalização controlada de mate­ riais vítreos. Panelas e tampas de “vidro” de fogão elétrico são exemplos de utensílios vitro-cerâmicos transparen­ tes. Um dos primeiros usos para aproveitar as cinzas do bagaço foi lançar esse material sobre as lavouras como um adubo complementar. Depois testes mostraram bons resultados na incorporação do material na fabricação de concreto (ver Pesquisa FAPESP n°171). Teixeira explica que o primeiro passo para a formula­ ção desses novos produtos é a separação da fração orgâ­ nica da inorgânica das cinzas do bagaço. Os briquetes são fabricados a partir da porção orgânica, enquanto as fritas e vitro-cerâmicas utilizam a parte inorgânica, que é rica em dióxido de silício (SiO2), matéria-prima dos vidros mais comuns. O carvão existente na cinza apresenta-se em dois formatos: pequenos pedaços, maiores do que um milímetro, que inicialmente flutuam e podem ser mecanicamente separados, e uma parte de carvão em pó fino, que se sedimenta junto com o material inorgâ­ nico. A parte mais grossa é retirada usando-se peneira,


Silvio Rainho Teixeira/Unesp

Pisos e azulejos – A fabricação das

Preparação das fritas, insumo utilizado para dar acabamento final a peças cerâmicas

enquanto a fina é separada empregando-se um hidrociclone, equipamento que separa partículas em suspensão em um líquido baseado nas densidades dessas mesmas partículas. Feita a separação, o pó do carvão é misturado a uma subs­ tância aglutinante – uma espécie de cola – e compactado, se transformando em pequenos cilindros ou barras, formatos mais comuns dos briquetes. Eles apre­ sentam maior densidade e poder calo­ rífico igual ou superior ao do carvão de madeira. Podem ter aplicação industrial ou residencial. “Como é difícil compac­ tar o carvão puro para que ele adquira uma forma definitiva sem esfarelar, usa­ mos um aglutinante”, diz Teixeira. Essa parte do estudo tem a coordenação do professor Algel Fidel Peña, da Unesp.

fritas e das vitro-cerâmicas é um pouco mais complexa e exige alto gasto ener­ gético, porque é necessário submeter o material a um processo de fusão em temperatura elevada. A matéria-prima básica para a formulação desses pro­ dutos é a sílica existente nas cinzas do bagaço, que representam mais de 80% de seu peso, e outros óxidos – de ferro, alumínio, potássio, titânio, fósforo – também presentes no resíduo. Como o ponto de fusão da sílica é muito alto, é preciso misturar a ela carbonatos de cálcio e carbonatos de potássio ou sódio para possibilitar que a fusão da mistura seja feita numa temperatura mais baixa, entre 1.300 e 1.450 graus Celsius. Após ser fundida, a mistura, em forma líquida, é despejada em um recipiente com água na temperatura ambiente. O resultado é um sólido com a estrutura atômica própria de um líquido, porque o resfriamento rápido “congela” o material e não permite que os átomos se organizem para formar um sólido cristalino. O material formado é um vidro que se quebra em pedaços muito pequenos chamados de frita. Ele é usado para fazer a camada vitrificada de peças cerâmicas como pisos, azulejos e vasos, entre outros. Teixeira estima que para cada quilo do resíduo é possível fabricar quase um quilo de frita. A partir da frita é possível desen­ volver peças de vitro-cerâmicas, um produto mais nobre e com maior valor agregado. Para isso, a frita é triturada até ficar um pó bem fino e aquecida lentamente, usando-se um aparelho de análise térmica. “Esse aparelho acom­ panha as reações que o vidro vai sofrer durante o processo. Quando aquece­ mos, fornecemos energia para os áto­ mos se organizarem e se transforma­ rem num material cristalino, com um padrão de organização simétrico. Esse é um processo bastante conhecido e em­ pregado. No nosso caso, a novidade é a utilização do resíduo da queima do bagaço de cana como matéria-prima”, afirma Teixeira. “De acordo com a mis­ tura usada – o tipo e a quantidade de PESQUISA FAPESP 174

n

agosto DE 2010

n

71


carbonatos –, são produzidos materiais cerâmicos distintos com propriedades diferentes. Nós estamos procurando obter materiais de revestimento como pisos, azulejos e outros que possam ser usados pela construção civil.” As cerâ­ micas vítreas – ou vitro-cerâmicas – apresentam propriedades importantes, como dureza superior à das pedras na­ turais, absorção zero de água e menor densidade. Por isso são usadas como revestimento interno e externo de edi­ ficações. Outra grande vantagem desse material em relação às pedras naturais é que ele permite a produção de grandes placas planas, curvas ou com a forma que se desejar para revestir colunas. O desenvolvimento da vitro-cerâ­ mica feita de cinza do bagaço contou com a colaboração dos pesquisadores espanhóis Jesús María Rincón López e Maximina Romero Pérez, do Insti­ tuto Eduardo Torroja de Ciências da Construção, de Madri, especialistas em vidro e cristalização de resíduos. Por enquanto, nem o processo nem os novos produtos (briquetes, fritas e vitro-cerâmicas) foram patenteados, mas Teixeira está avaliando essa pos­ sibilidade. Os resultados das pesqui­ sas foram apresentados em eventos nacionais e internacionais, como o Congresso Brasileiro de Cerâmica, e publicados em revistas científicas. Se­

O Projeto Desenvolvimento de material vitro-cerâmico através de vitrificação e cristalização de cinza de bagaço de cana – nº08/04368-4 modalidade

Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa Co­or­de­na­dor

Silvio Rainho Teixeira – Unesp investimento

R$ 5.566,00 e US$ 37.892,50 (FAPESP)

Acima, porções de bagaço, cinza residual e negro de fumo. Ao lado, produto com baixo percentual de carbono 72

n

agosto DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 174

gundo o pesquisador, depois dos bons resultados obtidos em laboratório, será preciso montar um processo de produ­ ção em escala piloto e avaliar os custos de implantação de uma empresa para uma precisa avaliação da viabilidade econômica das inovações. Embora não existam negociações em andamento com empresas privadas para repas­ se da tecnologia, Teixeira diz ter sido sondado por firmas de consultoria e empresários do setor interessados em conhecer as inovações. Negro de fumo - As possibilidades de

uso da cinza de bagaço também recaem para a produção de um material im­ portante para a indústria química, chamado negro de fumo, um insumo presente em tintas, vernizes, pneus, ar­ tigos de borracha e adubo, entre outros produtos. Uma solução orgânica desse material feita com cinza do bagaço foi criada pelo engenheiro químico paulista Leonardo Glidiz. Ele diz que desen­ volveu o material quando pesquisava por conta própria as cinzas de bagaço e alguns compostos de carbono para desenvolver um possível fertilizante quando, por acidente, derrubou no chão, na roupa e no material de estudo alguns compostos sólidos. “Irritado, fui tomar um café e, quando voltei para limpar, observei que o composto havia deixado marcas fortes, difíceis de sair”, recorda-se. “Reparei que o resultado do que parecia ser um desastre era, na verdade, um novo produto. Com ajuda de dois amigos, levei amostras para uma empresa para realizar um ensaio inicial e, para minha felicidade, o negro de fumo orgânico foi inventado.” Glidiz não revela quem são os ami­ gos e muito menos os compostos sólidos usados na experiência. Tudo faz parte do


Eduardo Cesar

O negro de fumo orgânico é a alternativa para substituir o produto derivado de petróleo

segredo da fórmula. O pedido de patente, tanto do produto como do processo e da marca “Bio Carbon Black”, foi reque­ rido em 2007 no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). Glidiz chegou a estagiar no hotel de projetos da Supera, a Incubadora de Empresas de Base Tecnológica de Ribeirão Preto para abrir uma empresa, mas desistiu e resolveu montar uma organização socioambiental e científica chamada de Centro Avançado de Pesquisa e De­ senvolvimento em Bionanotecnologia, uma instituição sem fins lucrativos para desenvolver o negro de fumo orgânico e outros produtos. Ainda sem sede defi­ nitiva, o centro aguarda a instalação do Parque Tecnológico de Ribeirão Preto para reivindicar uma vaga. “O negro de fumo orgânico que de­ senvolvemos é a única alternativa para substituir o atual produto derivado de petróleo”, garante Glidiz, que ganhou o segundo lugar na área de biotecnologia na Olimpíada da Agência de Inovação

da Universidade de São Paulo (USP) em 2008. Por meio de um projeto da Coordenação de Aperfeiçoa­mento de Pessoal de Nível Superior (Capes), aprovado dentro da Chamada Públi­ ca MEC/MCT/MDIC que reúne os ministérios da Educação, Ciência e Tecnologia e Indústria e Comércio, Glidiz realizou seu projeto no campus da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP. Tam­ bém chamado de fuligem ou negro de carbono (do inglês carbon black), o negro de fumo é um pó preto que se caracteriza por ser a forma química do carbono livre de impurezas. Ele come­ çou a ser fabricado em escala industrial em 1870. Sua primeira destinação foi a indústria de tintas. Nas primeiras dé­ cadas do século XX, o insumo ganhou importância com a descoberta de suas propriedades de resistência ao ser mis­ turado à borracha no processo de vul­ canização, processo usado na fabrica­ ção de pneu, desenvolvido pelo norte-americano Charles Goodyear. Aconte­ ce que o negro de fumo não ocorre na natureza e seu processo produtivo afeta o ambiente. A substância industrial uti­ lizada é fabricada por pirólise, uma rea­ ção de decomposição que ocorre pela ação de altas temperaturas ou queima incompleta de materiais derivados de petróleo. Os gases residuais do processo incluem monóxido de carbono e me­ tano. Segundo Glidiz, estima-se que sejam produzidas no Brasil por volta de 500 mil toneladas de negro de fumo por ano. O mercado mundial é avaliado em 11,7 milhões de toneladas com evo­ lução média anual superior a 4%. “A inovação que propomos é trans­ formar as cinzas geradas na queima do bagaço de cana-de-açúcar no negro de fumo orgânico, um produto alterna­

tivo com vantagens ambientais, eco­ nômicas e sociais.” A etapa inicial de fabricação desse produto, segundo Gli­ diz, consiste em um estudo prévio das cinzas residuais do bagaço em usinas parceiras para desenvolver um sistema de coleta. Posteriormente, o resíduo é transportado até a empresa licenciada para tratamento, separando impu­ rezas e selecionando o tamanho das partículas em peneiras vibratórias. O material final segue para misturadores com compostos reagentes para formar o negro de fumo alternativo. O objetivo do pesquisador é licen­ ciar a tecnologia para empresas inte­ ressadas – e não montar uma unidade própria para produzir o insumo e ven­ dê-lo a terceiros. “Já tenho empresas de quatro diferentes segmentos industriais – construção civil e cerâmica, automo­ tivo, plástico e polímeros – interessadas em montar o processo”, diz Glidiz. O investimento para montagem de uma unidade de processamento com capa­ cidade de mil toneladas por ano é de aproximadamente R$ 500 mil, incluin­ do o valor do terreno, maquinário e compra das cinzas. O estudo de viabili­ dade econômica feito pelo pesquisador aponta que o retorno financeiro se dará em dois anos. Como parte do “segredo industrial”, um composto reagente será fornecido às empresas licenciadas para ser adicionado ao processo. As análises e testes de engenharia de materiais realizados até o momento com o produto, segundo o pesquisador, foram promissores e tiveram resultados positivos. “Para a confecção de produ­ tos que não dependem de certificação, a inserção do negro de fumo orgânico no mercado é imediata. Para algumas aplicações industriais, como pneus, no entanto, é preciso desenvolver e testar protótipos de três a cinco anos, confor­ me a legislação”, diz Glidiz. n

Artigos científicos 1. Teixeira, S.R.; Peña, A.F.V.; Miguel, A.G. Briquetting of charcoal from sugarcane bagasse fly ash (scbfa) as na alternative fuel. Waste Management. v.30, n.5, p. 804-07. mai. 2010. 2. Teixeira, S.R. et al. Sugar-cane bagasse ash as a potential quartz replacement in red ceramic. Journal of the American Ceramic Society. v. 91, n. 6, p.1.883-87. 2008. PESQUISA FAPESP 174

n

agosto DE 2010

n

73


[ Engenharia Elétrica ]

Sem desperdício Nova metodologia e software melhoram o controle das perdas de energia do setor elétrico Evanild o da Silveira ilustrações Bel Falleiros

T

odos os anos, entre as hidrelétricas e o consumidor final, nada menos de 18% – ou 80 mil Gigawatts-hora (GWh) – da energia elétrica produzida no país se perde no emaranhado de fios, transformadores, ramais de ligações e medidores que compõem as redes de transmissão. São R$ 20 bilhões de prejuízo para as empresas do setor. Com o objetivo de descobrir os ralos por onde essa energia se esvai, o professor Antonio Padilha Feltrin, do Departamento de Engenharia Elétrica do campus de Ilha Solteira da Universidade Estadual Paulista (Unesp), no interior paulista, desenvolveu, com apoio da FAPESP, um sistema que analisa as perdas elétricas. A ideia era obter medidas de maneira relativamente rápida, realizar um acompanhamento e propor um plano de ação para diminuí-las. Os resultados, porém, superaram essa expectativa. O estudo deu origem também a uma metodologia e a um software para ajudar as companhias de distribuição a calcular e entender melhor como e onde ocorrem as principais perdas. Segundo Padilha, essa preocupação é relativamente antiga na engenharia elétrica. “Mas agora, com a separação no Brasil das atividades do setor elétrico em empresas de geração,

de transmissão e de distribuição, o problema ganhou destaque e começamos a investigar”, explica. “Quando observamos que as perdas nas distribuidoras, que levam energia ao consumidor final, são muito maiores que nos outros segmentos e que variam muito de uma empresa para outra, despertamos para a necessidade de desenvolvimento de novas formas de calculá-las.” O trabalho começou em 2004, com um projeto de pesquisa e desenvolvimento (P&D), aprovado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). A partir daí, a equipe do professor deu continuidade às pesquisas, em busca de novos métodos. O que eles queriam era criar uma metodologia que unisse as vantagens de dois tipos de cálculos, os simples e os complexos. Segundo Padilha, calcular as perdas técnicas de um sistema de distribuição envolve muitas variáveis. Entre elas, é possível citar a diversidade de redes (média e baixa tensão), o número e a variedade de dispositivos que causam perdas elétricas (medidores, ramais, transformadores) e a quantidade de dados necessários para cálculos. “Elas devem ser identificadas para fornecer subsídios para planos de ações que visem minimizar as perdas


técnicas e também eliminar as não técnicas, como o roubo de energia por ligações clandestinas.” De acordo com ele, a opção entre um processo de cálculo mais elaborado e um simplificado depende tanto dos dados disponíveis como do objetivo proposto. “Os métodos mais complexos, chamados botton-up, apresentam resultados que se aproximam da realidade, podendo inclusive ser utilizados para análises individuais e localizadas”, explica. O problema é que para isso necessita-se de uma extensa base de dados e cadastro permanentemente atualizado. As metodologias simplifi-

O Projeto Análise de tensão e de perdas elétricas em sistemas de distribuição de energia elétrica – nº 07/07041-3 modalidade

Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa Co­or­de­na­dor

Antônio Padilha Feltrin – Unesp investimento

R$ 71.756,94 (FAPESP)

cadas como os processos estatísticos e modelos geométricos, conhecidos por top-down, requerem um volume reduzido de dados e permitem a estimativa das perdas de forma rápida. Mas nesse caso os resultados são satisfatórios apenas quando aplicados a grandes sistemas e de forma global. Método simples - É aí que entra o tra-

balho de Padilha, realizado com o aluno de doutorado Marcelo Escobar de Oliveira, que desenvolveu um método simples, com resultados mais precisos. Ele permite obter as perdas técnicas nas redes de distribuição de uma maneira que os cálculos possam ser realizados, sem dificuldades, pelo menos uma vez por mês. “A inovação do método está em usar apenas os dados mais utilizados e de fácil obtenção nas distribuidoras e desprezar, ou procurar evitar, a necessidade de outros que não são de uso cotidiano da engenharia das empresas”, explica Padilha. “A partir disso, conseguimos chegar a um novo método de cálculo.” Essa metodologia se baseia na determinação das perdas técnicas por meio de uma quantidade de dados mínimos: curva de carga na subestação, dados da rede de média tensão como os cabos,

número de transformadores e dados médios da rede de baixa tensão como tipo de cabo e quilometragem. Apesar disso, ela obtém resultados tão confiáveis quanto os processos complexos. “A metodologia pode suprir a deficiência de muitas empresas que não possuem os dados de todos os seus clientes, bem como os de alguns segmentos como circuitos de baixa tensão, ramais de ligação e medidores”, diz Padilha. Apesar das vantagens do método que desenvolveu, Padilha lembra que é impossível zerar as perdas, embora o Brasil possa reduzir bastante o desperdício. Segundo ele, nos países desenvolvidos elas ficam em torno de 12%. “Naturalmente o sistema brasileiro apresenta algumas características especiais, como o local de geração hidrelétrica, que fica distante dos centros de consumo”, diz. “Em todo o mundo as perdas maiores estão na distribuição e no Brasil não é diferente. Portanto, o esforço para reduzi-las deve começar por diminuí-las nesse setor e o primeiro passo é conhecer as origens, técnicas ou comerciais, e os segmentos ou partes da rede em que elas são maiores.” A partir da nova metodologia que desenvolveu, a equipe de Padilha criou um software para realizar os cálculos de forma automática e amigável, permitindo a obtenção das perdas técnicas por segmentos de uma rede. A partir do valor total delas, podem ser calculadas as perdas não técnicas, aquelas que ocorrem devido a erro de medições, furtos e fugas, por diferença. Ainda como resultado do projeto, foram publicados quatro artigos em congresso e um em revista, além de um capítulo de livro. O software desenvolvido por Padilha e equipe precisa agora ser adaptado para trabalhos práticos. “Ele é excelente para trabalhos científicos, e para outras aplicações são necessárias adaptações no fluxo de entrada e saída de dados. Já existem algumas empresas distribuidoras e uma empresa que desenvolve e comercializa softwares interessadas no programa.” n Artigo científico Oliveira, M.E.; Padilha Feltrin, A. A top-down approach for distribution loss evaluation. IEEE Transactions on Power Delivery. v. 24, n. 4, p. 2.117-24. out. 2009. PESQUISA FAPESP 174

n

agosto DE 2010

n

75


fotos eduardo cesar

[ MEDICINA ]

76

n

agosto DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 174


Laboratório de papel Celulose e cera compõem um novo modelo de exame clínico Dinorah Ereno

U Teste de urina com quatro parâmetros de avaliação

m pequeno quadrado de papel do tamanho de um selo postal, que funciona como um minilabo­ ratório de análises clínicas, será usado ainda este ano em Santa Luzia do Itanhy, em Sergipe, para avaliar a condição básica da saúde das crianças e dos adolescentes do município com pouco mais de 10 mil habitantes. Chamados de dispositivos microfluídicos em papel ou µPAD (do inglês microfluidic paper-based analytical device), esses sistemas de análise fo­ ram desenvolvidos pelo grupo de pesquisa liderado pelo professor George Whitesides, da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, com a participação do professor Emanuel Carrilho, do Instituto de Química de São Carlos da Univer­ sidade de São Paulo (USP) e membro do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Bioanalítica (INCT Bioanalítica). Os exames são feitos com um pequeno volume de líquidos, como uma gota de sangue ou de urina, que correm por mi­ crocanais gravados em um papel poroso por uma impressora comercial a jato de cera. Depois da impressão, a folha é aquecida a 150oC du­ rante dois minutos, permitindo que a cera derreta e forme os microcanais – as trilhas que os líquidos analisados irão percorrer. Na ponta desses caminhos impressos no papel são colocados reagentes, como enzimas e anticorpos, que mudam de cor dependendo da substância testada. A cera funciona como uma barreira hidrofóbica, ou seja, ela não deixa que os líquidos como urina e sangue se espalhem alea­ toriamente pelo papel, que é impermeabilizado com um polímero. O exame é simples e extremamente prático. Basta colocar o líquido testado na entrada do dispositivo impresso


Dispositivo avalia a concentração de substâncias

no papel que imediatamente ele se es­ palha pelos microcanais e, em contato com o reagente, muda de cor. O resul­ tado demora, no máximo, 30 minutos, suficiente para haver a reação química e a mudança de coloração. O tempo é bem menor do que o tradicional tes­ te Elisa, o primeiro exame de sangue feito para verificar se o paciente está infectado pelo vírus HIV, por exemplo, que demora de duas a três horas para mostrar o resultado. “A análise feita no papel é somente visual”, diz Carrilho. Diagnósticos múltiplos - Atualmente

já estão prontos para uso os dispositivos para testar o nível de glicose, parâmetro para avaliação de diabetes, e de proteí­ nas totais em urina, fundamental para saber como anda a função renal ou se há infecção no trato urinário. Mas o mi­ nilaboratório de papel poderá ser usado para diagnosticar malária, tuberculose, Aids e outras doenças. “Muitas das rea­ ções químicas que são realizadas em la­ boratório podem ser transportadas para o papel”, diz Carrilho, que durante dois anos esteve no laboratório do professor Whitesides com uma bolsa Novas Fron­ teiras da FAPESP, para desenvolver sis­ temas bioanalíticos, e também assinou quatro artigos científicos publicados entre 2008 e 2010 na revista Analytical Chemistry, periódico quinzenal da Sociedade Americana de Química, que tratam do desenvolvimento e aplicação dos dispositivos microfluídicos em pa­ pel, e um na Angewandte Chemie, um dos periódicos mais prestigiados da área de química. 78

n

agosto DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 174

Desde então houve avanços na construção dos dispositivos e o grupo liderado por Carrilho tem contribuído para isso. Atualmente eles planejam, dentre outros alvos, trabalhar com um teste para avaliar a presença do glúten em alimentos ou bebidas. A informa­ ção sobre a presença ou não do glúten no rótulo de produtos é fundamental para quem sofre de doença celíaca, que consiste em uma intolerância perma­ nente a essa proteína presente no trigo, aveia, centeio, cevada e malte, além de outros cereais. O dispositivo de papel também está sendo trabalhado para detecção de me­ tais pesados na água, um indicativo de poluição, além de testes de qualidade de água e alimentos. Desde que voltou ao Brasil, Carrilho tem se dedicado a desenvolver novos sistemas de análise para adaptá-los à realidade brasileira, simplificando algumas etapas do pro­ cesso de fabricação, o que resultou em um pedido de patente para o sistema microfluídico. Por enquanto, não foi concretizada nenhuma parceria para a transferência de tecnologia, mas já houve várias conversas com investido­ res e alguns trabalhos de desenvolvi­ mento estão sendo feitos com a WAMA Diagnósticos, empresa são-carlense de testes clínicos rápidos. O primeiro ensaio bioanalítico criado pelo grupo de Whitesides em Harvard foi a análise de urina para avaliar glicose e proteínas. A partir de um canal central, parecido com um tronco de uma árvore estilizada, saíam três ramificações, ou zonas de teste.

Os ensaios foram baseados em reações químicas e enzimáticas conhecidas pa­ ra análise de urina. O resultado mos­ trou que ensaios independentes podem ser executados simultaneamente nas diferentes zonas de teste de um mesmo sistema, sem haver contaminação cru­ zada de reagentes. Ou seja, várias análi­ ses clínicas podem ser feitas ao mesmo tempo com resultados parecidos aos obtidos em um laboratório tradicional, sem necessidade de grande quantidade de amostras, tubos de ensaio, geladei­ ras e a demora para espera do resultado de, pelo menos, um dia. O desenho do dispositivo pode variar tanto no número de ramifica­ ções que saem do tronco central co­ mo no fechamento das pontas onde são colocados os reagentes. O grupo de Carrilho trabalha atualmente com um sistema com cinco ramificações, sendo duas para a repetição de cada teste e uma central para quantifica­ ção de creatinina, um parâmetro de normalização. Além de ser um exame bem rápi­ do, outra vantagem do microssistema de análises é o baixo custo dos mate­ riais utilizados. No caso dos reagentes, que dão a cor nos testes e são caros, as quantidades utilizadas são mínimas, da ordem de 0,1 microlitro (um litro divi­ dido por um milhão) de reagente para um exame. “Com uma única folha de papel é possível fazer 120 dispositivos,

O Projeto Desenvolvimento de ferragens microfluídicas que permitam o desenvolvimento e fabricação de sistemas bioanalíticos para química, biologia, bioquímica e medicina – nº 2006/02007-9 modalidade

Bolsa no Exterior – Novas Fronteiras supervisor

George Whitesides – Universidade Harvard BOLSISTA

Emanuel Carrilho – USP investimento

R$ 81.929,01 (FAPESP)


MINILABORATóRIO

posterior, os dispositivos serão feitos no próprio centro de pesquisas do IPTI, com a tecnologia sendo transferida pa­ ra a comunidade.

PODERá SER

Exame acessível - A ideia é levar o

USADO PARA DETECTAR METAIS PESADOS NA ÁGUA

com custo de impressão de 5 centavos de dólar”, diz Carrilho. A fabricação também é bastante simples e não exige equipamentos complexos. Atualmente o grupo do pesquisador está preparando mil dispositivos para serem utilizados nos exames que serão feitos em Santa Luzia do Itanhy. Todos os domicílios serão visitados por agen­ tes do Programa de Saúde da Família (PSF), do governo federal. A iniciati­ va faz parte de um projeto piloto que está sendo implementado na cidade, por meio do Instituto de Pesquisas em Tecnologia da Inovação (IPTI) – um centro multidisciplinar de estudos, que está associado ao PSF. Em uma etapa

minilaboratório de análises a outros municípios brasileiros. No caso de dúvidas a respeito do resultado dos exames, uma simples foto tirada por um telefone celular poderá ser enviada a um especialista, que após analisar a imagem dará o seu diagnóstico. A res­ posta poderá chegar como mensagem de texto no celular de origem com a prescrição do tratamento adequado. “A telemedicina é uma nova maneira de tornar ainda mais barato o diagnósti­ co”, diz Carrilho. Com isso, será mais fácil ter acesso à tecnologia nos lugares mais distantes. Foi exatamente a ideia de levar exames para os países mais po­ bres, de maneira simples e com baixo custo, que resultou no desenvolvimento do primeiro dispositivo microfluídico em papel, como parte de uma linha de pesquisa do professor Whitesides chamada Soluções Simples, ou Simple Solutions. O objetivo é levar para lu­ gares remotos da África ou de outros países em desenvolvimento, que não possuem nem médicos nem clínicas, uma ferramenta barata de diagnóstico. A pesquisa teve financiamento da Fun­ dação Melinda e Bill Gates, que doou US$ 10 milhões por cinco anos.

As inúmeras possibilidades dessa inovadora plataforma de bionálise ainda continuam a ser testadas pelos grupos de pesquisa envolvidos nesse projeto. Entre elas estão os estudos de novos suportes de papel, métodos de fabricação dos dis­ positivos e desenvolvimento de novos componentes, como eletrodos, válvu­ las, filtros, misturadores e revestimen­ tos, que poderão expandir o número de substâncias testadas e, consequentemen­ te, os exames realizados. Os pesquisa­ dores ainda se dedicam a desenvolver novos métodos para estabilização dos reagentes armazenados nos dispositivos, para que eles possam ser distribuídos sem necessidade de refrigeração. n

Artigos científicos 1. Cheng, C.-M.; Martinez, A.W.; Gong, J.; Mace, C.R.; Phillips, S.T.; Carrilho, E.; Mirica, K.A.; Whitesides, G.W. Paper-based Elisa. Angewandte Chemie International Edition. v. 49, p. 4.771-74. 2010. 2. Martinez, A.W.; Phillips, S.T.; Whitesides, G.M.; Carrilho, E. Diagnostics for the developing world: Microfluidic paper-based analytical devices. Analytical Chemistry. v. 82, p. 3-10. 2010. 3. Carrilho, E.; Martinez, A.W.; Whitesides, G.M. Understanding wax printing: A simple micropatterning process for paper-based microfluidics. Analytical Chemistry. v. 81, p. 7.091-95. 2009.

Arranjo com várias camadas permite a passagem de diferentes líquidos, sem mistura PESQUISA FAPESP 174

n

agosto DE 2010

n

79


[ Reciclagem ]

Plástico vegetal

80

n

agosto DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 174

eduardo cesar

U

m plástico biodegradável feito a partir do caroço da manga mostrou em testes de laboratório ter potencial para ser empregado em finas membranas utilizadas em processos para purificação de água, tratamento de efluentes, sessões de hemodiálise e na liberação controlada de fármacos. A pesquisa que deu origem ao novo material foi conduzida por pesquisadores da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), em Minas Gerais, e da Universidade de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul. O caroço é a camada dura externa da semente da manga, composta principalmente de fibras, que recobre o embrião. Celulose, hemicelulose e lignina, componentes que formam as paredes celulares das plantas, são encontradas em grande quantidade nessa porção da fruta. “No processo que desenvolvemos, extraímos a celulose do caroço da manga e, a partir dela, produzimos o acetato para fabricação dos plásticos usados nas membranas”, diz o professor Guimes Rodrigues Filho, coordenador do projeto desenvolvido no Laboratório de Reciclagem de Polímeros do Instituto de Química da UFU. A ideia de aproveitar essa parte desprezada da fruta surgiu quando os pesquisadores constataram que pelo menos 2 mil toneladas de caroços de manga são descartadas a cada safra pela indústria de sucos só na região do Triângulo Mineiro. Como no Brasil a produção de manga atinge cerca de 1,3 milhão de toneladas por ano – utilizadas principalmente como suco –, a quantidade desse resíduo que sobra fica, na média, em torno de 480 mil toneladas por ano. “As sementes correspondem a algo entre 30% e 45% do peso da manga, dependendo da variedade”, diz Rodrigues Filho. Essa montanha


sa está em processo de patenteamento no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). A empresa Órbita, do Centro de Incubação de Atividades Empreendedoras da universidade mineira, será a responsável por parcerias com outras empresas e pela transferência de tecnologia.

de resíduos normalmente tem como destino final a queima ou o descarte no lixo. Além do caroço da manga, os pesquisadores já produziram acetato de celulose a partir de jornais, bagaço da cana-de-açúcar e agora estão trabalhando com a palha de milho. As membranas usadas atualmente nos processos de filtragem são fabricadas, de modo geral, a partir da celulose obtida da polpa de madeira. Peneira molecular - Em um artigo

publicado em maio na revista científica Carbohydrate Polymers os pesquisadores compararam o desempenho de membranas de acetato de celulose feitas com jornais e com caroços de manga da variedade Tommy Atkins – de coloração avermelhada, polpa doce e bastante resistente – em processos de tratamento e purificação de água chamados de osmose reversa. Nesses processos, a água é separada de seus contaminantes – como sólidos dissolvidos, sólidos suspensos, bactérias e matéria orgânica – por meio de uma membrana semipermeável. Essa membrana se comporta como uma peneira molecular, rejeitando seletivamente quase todas as moléculas dissolvidas e permitindo somente a passagem da água pura. Como são muitas as aplicações para esse material filtrante, antes de produzir as películas é preciso saber em que tipo de aplicação elas serão usadas. “A

Membranas de caroço de manga servem para tratamento de água

porosidade depende do fluxo maior ou menor de líquidos que irão receber”, diz o coordenador do projeto. O controle dos poros é feito com a adição de alguns sais na mistura, como o perclorato de magnésio. Essa substância funciona como um agente indutor na formação de poros na pele da membrana, auxiliando nos processos de filtração. Na avaliação estrutural realizada com o microscópio eletrônico de varredura tanto a membrana feita a partir do caroço da manga como a de jornal apresentaram basicamente o mesmo padrão. No entanto, a subestrutura porosa é mais densa nas películas de acetato de celulose obtidas do caroço da fruta, em função da maior massa molecular do material, resultando em melhor desempenho. “Mesmo quando submetida à pressão em processos de separação, a membrana não se rompeu”, diz Guimes. Os pesquisadores testaram, além de diversos materiais, vários processos para produzir as membranas de acetato de celulose. Um dos métodos desenvolvidos pelo grupo de pesqui-

Embalagens biodegradáveis - A companhia foi criada pelos pesquisadores para poder participar no desenvolvimento de um projeto aprovado em 2008 por meio de um convênio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), que teve como base também a utilização do caroço de manga misturado ao bagaço de cana para produção de tubetes biodegradáveis – embalagens onde são colocadas as mudas de plantas cultivadas em viveiros. Os pesquisadores trabalham agora na formulação final para moldagem dos tubetes. Além disso, fazem estudos de biodegradação do material na Universidade de Caxias do Sul. Os recipientes encontrados no mercado, feitos de produtos derivados do petróleo como PVC e polipropileno, levam cerca de 150 anos para se decompor na natureza. Foi a partir dos resultados obtidos nesse projeto que os pesquisadores decidiram usar os mesmos resíduos vegetais para a produção de membranas, uma linha de pesquisa que já era conduzida no laboratório da universidade mineira desde 1996. Mas em vez de usar uma base composta da mistura da celulose obtida do caroço de manga e da cana, eles trabalharam com cada resíduo separadamente e agregaram outros materiais, como jornais. n

Dinorah Ereno Artigo científico Meireles, C.S.; Rodrigues Filho, G. et al. Characterization of asymmetric membranes of cellulose acetate from biomass: Newspaper and mango seed. Carbohydrate Polymers. v. 80, n. 3, p. 954-61. mai. 2010.

PESQUISA FAPESP 174

n

agosto DE 2010

n

81


humanidades

[ Sociologia ]

Amores

silenciados

82

n

agosto DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 174

nononononononon

reproduções do livro caricaturistas brasileiros, ed. sextante artes

S

eduzidos por Capitu, leitores e críticos que há um século debatem sobre Dom Casmurro nem sempre se detêm em outro vértice do triângulo: a relação entre Bentinho e Escobar. Por esse ângulo, o sociólogo Richard Miskolci observa a obra de Machado de Assis, assim como a de outros escritores do final do século XIX, em sua pesquisa O desejo da nação, que tem apoio da FAPESP. Ao usar como fontes não só os discursos literários, como também políticos e científicos, ele pretende combinar reconstituição histórica e análise sociológica para compreender como interesses político-sociais levaram ao controle da sexualidade, notadamente da homossexua­ lidade entre homens brancos da elite. Estudos sobre a construção da nação brasileira nesse período quase sempre se concentram nas discussões políticas ou nas relações étnico-raciais. “No Brasil, a experiência da colonização e do escravismo gerou particularidades no que se refere à sexualidade, ao desejo e ao erotismo”, avalia Miskolci, professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), onde coordena o grupo de pesquisa Corpo, Identidades e Subjetivações (www.ufscar.br/cis). Ao contrário das representações dominantes hoje sobre o Brasil, de permissividade ou liberdade sexual, o pesquisador argumenta que nos caracterizam convenções culturais próprias ainda pouco analisadas. “Identificá-las é um desafio”, explica. “Quero compreender como estamos inseridos em formas específicas de controle e ‘agenciamento’ do desejo e até mesmo qual é nossa gramática erótica própria.” O trio de personagens de Dom Casmurro, obra de 1900, ilustra o que Miskolci denomina de “heteronormatividade à brasileira”. Bento só consegue assumir seu papel de marido e pai de família “escorado” em sua amizade-amor por Escobar. “Não se trata da exclusão do homoerotismo. Antes, é sua contenção e disciplinamento dentro de um triângulo


Como a polĂ­tica da elite do sĂŠculo XIX modelou a nossa sexualidade | Joselia Aguiar


amoroso que direciona os homens para relações heterossexuais reprodutivas”, explica. As relações heterossexuais brasileiras, vistas a partir de Dom Casmurro, se fundam, assim, tanto em um vínculo disciplinado, mas profundo, entre dois homens, quanto na relação com a mulher, avalia o pesquisador. Sutilezas - Com a leitura de outros

romances da época, é possível entrever, segundo Miskolci, outras sutilezas no controle do desejo. No dia a dia do internato revelado em O Ateneu o fantasma a assombrar os homens de elite parece ser – muito mais do que o desejo pelo mesmo sexo – a possibilidade de ser tratado, ou maltratado, como uma mulher. O romance de Raul Pompeia, datado de 1888, mostra, assim, como ocorre o disciplinamento da masculinidade: há práticas “pedagógicas” violentas, combatendo e desqualificando qualquer traço de personalidade que pudesse ser associado ao feminino. Ou seja, mais que a homossexualidade, o que se pretende conter, pelas lentes de O Ateneu, é a existência de “efeminados”. “A relação entre masculinidade, honra e violência, concreta ou simbólica, parece ser uma herança desse período que estudo, pois rege tanto as masculinidades heterossexuais quanto as homossexuais na sociedade brasileira contemporânea”, afirma o professor. Na sociedade brasileira do final do século XIX também são temidas as relações

homossexuais interraciais, como Miskolci observa em Bom crioulo, romance de Adolfo Caminha que provocou escândalo ao ser publicado, em 1895. Em Amaro, um escravo foragido que protagoniza a trama, tem-se a imagem então corrente do homem negro como um predador sexual, perigoso e sem controle. “Há muitos temores e estereótipos sexuais que se mantêm ou se reatualizam em nossos dias”, explica o sociólogo. Não se trata de traçar uma história dos homossexuais ou da homossexualidade na sociedade brasileira. O pesquisador diz que seu objetivo é contar a história da formação do nosso ideal de nação em uma perspectiva subalterna, ou seja, uma história “dos outros”: excluídos, abjetos, marginalizados por sua sexualidade não normativa. Seu levantamento busca encontrar, nas sombras, os desejos proscritos e impossíveis, os amores silenciados.

A relação entre masculinidade, honra e violência parece ser herança do período”, diz Miskolci

84

n

nononnon DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 1XX

Na sociedade atual, o sociólogo observa que gays e lésbicas já são identidades normalizadas, inseridas no mercado e dentro de uma concepção política liberal. O caráter abjeto na sociedade brasileira de agora não seria atribuído a pessoas brancas de classe média ou alta, formando casais monogâmicos querendo se casar – mesmo que sejam casais homossexuais. Como estigmatizados, encontram-se hoje travestis, transe­xuais, “efeminados”, pobres, negros, portadores de HIV. “Os que permanecem na base da pirâmide da respeitabilidade sexual e social são os que herdaram a abjeção que estudo no final do século retrasado”, diz Miskolci. Em Bom crioulo, o pesquisador observa algo que permanece atual: a tendência cultural a desvalorizar o negro como parceiro amoroso para homens. Estudos sobre gays brasileiros como os feitos ou orientados por Júlio Assis Simões, professor do Departamento de Antropologia da USP e pesquisador colaborador do Pagu – Núcleo de Estudos de Gênero da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), têm mostrado como o ideal de parceiro é branco, e o negro tende a ser visto apenas como parceiro sexual ocasional, exótico. Algo diverso se passa entre casais héteros. Como mostra o livro Razão, “cor” e desejo, escrito pela também professora do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP) Laura Moutinho, o racismo brasileiro


As obras literárias não apenas ilustram a história do período, mas permitem acessá-la

teve o efeito inesperado de “erotizar” os homens negros, fazendo com que a maioria de nossos casais interraciais héteros seja formada por um homem negro e uma mulher branca. Burguesa - Na virada do século XIX

para o XX, almejava-se que a nação se tornasse mais branca e burguesa do que era. A sexualidade, segundo Richard Miskolci, se não tinha centralidade até o século XVIII, deve ser vista a partir desse período como peça-chave na reconfiguração de tal imaginário nacional na nascente República. A tríade monarquia, indigenismo simbólico e catolicismo seria substituída por uma nova compreensão, “científica” e “racializada”, do que era a nação brasileira. O desejo e o sexo se tornam questões centrais por causa dos temores sobre relações interraciais e as incertezas sobre as consequências da miscigenação. A construção da nação exigia o “agenciamento” do desejo para formas ideais, particularmente para a heterossexualidade reprodutiva do casal monogâmico estável. Esse casal era idealizado como branco ou branquea­ dor. Um casal “miscigenador” deveria ser formado por um homem branco

– brancura, poder e masculinidade se equivaliam – e uma mulher mulata – pois se rejeitava a mulher negra. “Este ideal unia expectativas com relação à sexualidade e ao desejo, impunha a reprodução como norma e estabelecia que esta deveria resultar em ‘branqueamento’ da população. Devia-se evitar qualquer desvio do desejo que ameaçasse a formação do modelo de casal reprodutivo, ao qual se atribuía a expectativa de gerar a nação almejada, progressivamente cada vez mais branca e sexualmente normalizada”, argumenta o sociólogo. A escolha em focar sua pesquisa nos homens, explica Miskolci, deriva da necessidade de explorar melhor como se reconfiguraram as relações entre eles e as expectativas sociais com relação a seu papel coletivo. De forma sintética, ele diz que aparentemente houve uma progressiva redução da importância da amizade entre homens, que se tornou periférica na comparação com a relação com a esposa e a família, dentro da qual se atendia às expectativas coletivas de reprodução da nação. Os temores com relação aos “desvios” dessa missão masculina de “embranquecimento” encontravam amparo na pedagogização do sexo, que se associava também à psiquiatrização das “perversões”. O controle da sexualidade feminina se baseará em uma hierarquização entre mulheres brancas, mulatas e negras. Na sua interpretação dos desejos da nação, o sociólogo se baseia na obra de Michel Foucault e no campo acadêmico conhecido como Saberes Subalternos – a vertente culturalizada do marxismo que incorporou o pós-estru­ turalismo francês e se desdobra, hoje, na corrente feminista conhecida como Teoria Queer e nos Estudos Pós-coloniais. Às obras li­ terárias somam-se análises de discursos políticos e científicos da época. Entre os homens de ciência no Brasil, a maioria um misto de literatos-cientistas com

ambições políticas, discutia-se qual seria a viabilidade da nação mestiça. “É um tema explorado exaustivamente pelo pensamento social brasileiro no que toca à questão racial, da miscigenação, mas que, fato curioso, deixa de fora as relações não reprodutivas, em especial entre pessoas do mesmo sexo.” Para o sociólogo, as obras literárias não apenas ilustram a história do perío­ do; permitem acessá-la por meio de experiências subjetivas, diferenciadas, algumas vezes até mesmo em desacordo com o que se passava. “Não se trata da genialidade dos escritores, mas da característica da própria criação literária, que frequentemente foge ao controle e às intenções do autor”, afirma Miskolci. Enquanto o discurso político e o científico, mais institucionais e articulados, tendiam a coincidir mais do que a divergir, as expressões literárias da época permitem entrever ambiguidades, dissidências e, sobretudo, tanto o processo de constituição da nação quanto formas diversas de resistência a ele. n

PESQUISA FAPESP 174

n

agosto DE 2010

n

85


ARQUIVO/AGÊNCIA ESTADO/AE

Cacilda Becker

086-089_Teatro_174.indd 86

7/28/10 10:37:29 PM


[ ANTROPOLOGIA ]

PALCO DE RAZÕES E PAIXÕES

S

e, entre 1940 e 1950, São Paulo se transformou, como já disse um ufanista, na “locomotiva do Brasil”, é preciso ressaltar que um dos vagões mais importantes era a cultura, cujos passageiros mais ilustres foram os intelectuais da primeira geração de cientistas sociais formados pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, da então recém-fundada Universidade de São Paulo (USP), e, atores e diretores do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), criado em 1948. Ambos eram reflexos da nova modernidade democrática que substituía as velhas elites agrárias, decadentes, e das novas oportunidades que surgiam desse processo. “Na capital paulista implantou-se um sistema cultural denso e diversificado, que irá se expressar ao mesmo tempo no teatro e na vida intelectual, por causa de alterações na estrutura social, decorrentes do processo de metropolização por que passava a cidade, e em razão da guerra mundial que gerou a vinda de professores e atores estrangeiros”, explica a antropóloga Heloísa Pontes, professora do Departamento de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisadora do Pagu, Núcleo de Estudos de Gênero da mesma universidade. Há 10 anos Heloísa se dedica a estudar a relação entre o teatro, a universidade e a cidade e o resultado final é o livro Intérpretes da metrópole, a ser lançado pela Edusp. A pedra de toque da pesquisa foi uma observação feita por um dos seus “objetos de estudo”, a filósofa e crítica literária Gilda de Mello e Souza no artigo “Teatro ao Sul” (incluído no livro Exercícios de leitura), onde a ensaísta afirma que São Paulo, a partir dos anos 1940, tornou-se o centro de experimentações no âmbito da cultura e, aqui, o teatro se antecipou aos estudos sociais, encarregando-se da tarefa realizada no Nordeste pelo romance. “O que surpreende é que tudo aconteceu ao mesmo tempo: intelectuais inovadores e um teatro moderno, representado pelo TBC, aparecem em relação numa urdidura que reúne, de um lado, a vinda da Missão Francesa e seus professores (Claude Lévi-Strauss, Pierre Monbeig, Roger Bastide etc.) para a USP e a chegada de diretores estrangeiros como Louis Jouvet, Adolfo Celi, Henriette Morineau e Ziembinsky. Essas ‘visitas’ irão formar, simultaneamente, a primeira geração de intérpretes e inte-

As relações entre a universidade, o teatro e a cidade nos anos 1940 Carlos Haag

PESQUISA FAPESP 174

086-089_Teatro_174.indd 87

AGOSTO DE 2010

87

7/28/10 10:37:31 PM


88

AGOSTO DE 2010

086-089_Teatro_174.indd 88

REPRODUÇÃO

lectuais modernos, criadores de novas redes de sociabilidade para a cidade”, analisa a pesquisadora. Desse encontro entre um novo contingente de alunos e de atores amadores, oriundos em sua maioria de famílias de classe média de imigrantes, uma cidade como São Paulo, com estrangeiros em início de carreira (Missão Francesa) ou mais experientes como os diretores de teatro, que chegam aqui devido à Segunda Guerra Mundial, permitiu-se a implantação de um sistema cultural e intelectual complexo, sem precedentes na nossa história. “Nesse contexto, a cidade se tornou o polo modernizador do teatro brasileiro, ofuscando a cena teatral carioca por mais de uma década”, diz a professora. E o fez não só no palco, mas na vida acadêmica. A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP se tornou o centro da formação de um novo sistema acadêmico de produção intelectual, graças ao trabalho, de um lado, dos integrantes do grupo da revista Clima (Antonio Candido, Gilda, Décio de Almeida Prado etc.) e, do outro, dos cientistas sociais liderados por Florestan Fernandes. “Para se ter uma ideia do impacto da USP na vida e na carreira de mulheres como Gilda basta mencionar que as faculdades de direito e medicina, nas quais se formavam os filhos da elite dirigente, eram avessas às pretensões do contingente feminino, que jamais ultrapassou a cifra de 5% do corpo discente entre 1934 e 1949”, lembra Heloísa. “Compare-se com os 60% de mulheres e os 30% de filhos de imigrantes que integravam as turmas de ciências sociais na faculdade entre 1936 e 1955.” A universidade, como a cena teatral, igualmente separava São Paulo da então capital federal, o Rio de Janeiro, onde a instituição nunca alcançou a mesma centralidade obtida na capital paulista. “Ali, e por um bom tempo, a vida universitária conviveu com outras vias de acesso à vida pública, sendo um pouco mais que uma agência de obtenção de credenciais para o escalonamento salarial dos ocupantes de postos superiores do serviço público”, afirma o sociólogo Sergio Miceli da USP, autor de Intelectuais à brasileira (Companhia das Letras). “São Paulo foi praticamente o único espaço institucional em que se constitui algo próximo ao que se poderia chamar de elite intelectual.” Nada mais distante da experiência de um sociólogo carioca. “No Rio de Janeiro esses intelec-

Patrícia Galvão, a Pagu

tuais não conheciam uma carreira universitária, o estímulo à pesquisa acadêmica em moldes científicos e modernos, a autonomia, vivendo sob jurisdição política das autoridades educacionais do governo federal, em um ambiente urbano que, como sede do governo, fazia da burocracia política o centro de gravidade da vida intelectual”, afirma a socióloga Maria Alice Rezende de Carvalho, da PUC-RJ, autora do artigo “Temas sobre a organização dos intelectuais no Brasil”(Revista Brasileira de Ciências Sociais, 2007). Além disso, na qualidade de cidade cosmopolita, o Rio, lembra Heloísa, abrigava uma convivência intelectual diversa da de São Paulo, em que livrarias, cafés, bares e redações de jornais e revistas eram os espaços privilegiados de circulação de ideias e de sociabilidade. Reflexo - Essa postura moderna foi o re-

flexo ideal das transformações operadas na sociedade da metrópole. “São Paulo vivenciava a descrença em relação ao legado, ao passado, e essa atitude se exprimia no surgimento de um tecido cultural

renovado, produzido pela modernização evidente na produção inovadora da linguagem intelectual e cultural. A ênfase no presente resultou na crença de um futuro promissor identificado com a realidade de uma sociedade de classes aberta e com regime de participação democrática”, analisa a socióloga Maria Arminda do Nascimento Arruda, da USP, e autora do livro Metrópole e cultura (Edusc). “Essa sensação de perda de raízes, que para alguns (a antiga elite) era percebida como negativa, para outros significava a chance de liberação nas mais diferentes áreas.” Só assim foi possível, como revela Heloísa, a ascensão de figuras como Florestan Fernandes, que se deixou aclimatar pelos ensinamentos da escola francesa, e a atriz Cacilda Becker (um exemplo apenas, já que se pode dizer o mesmo de Fernanda Montenegro, Maria della Costa, entre outras mulheres que, no dizer desta última, “mandavam no teatro”), discípula dos vários diretores estrangeiros, ambos de origem humilde que tiveram a sua vida alterada, alcançando “nome próprio” e brilho nas suas áreas de atua-

PESQUISA FAPESP 174

29.07.10 01:23:57


ção. Em comum a essas atrizes está uma origem modesta, filhas de imigrantes e donas de um reduzido capital intelectual até a sua entrada na cena teatral, onde se desenvolvem rapidamente nas mãos dos diretores estrangeiros numa química exemplar que, em pouco tempo, atualizou a cena nacional, por meio do TBC, em igualdade com a internacional. “Vindas dos escalões inferiores e remediados da estrutura social brasileira, as atrizes infundiram os modos, as dicções, a corporalidade, a expressividade, as graças, os sinais de uma energia social que reverberava no palco a mobilidade geográfica e societária do momento de transformação pelo que passava a metrópole”, fala Heloísa.

ELAS SE AVENTURARAM PELA FICÇÃO ANTES DA VIDA INTELECTUAL”, DIZ HELOÍSA

Pesquisa - Mas havia disparidades entre

escrito por um homem’”, desabafou Lúcia num artigo de 1954. Mas, por vezes, a realidade pesava em demasia, como foi o caso da “musa inventada do Modernismo”, que é como Heloísa define Patrícia Galvão, a Pagu, que completa seu centenário neste ano. “Entrega e submissão, em função da sexualidade sequestrada, da maternidade partida e da militância baseada no autossacrifício, são os eixos da trajetória de Pagu, bem diversos do esperado para uma mulher que fez nome e fama como símbolo da irreverência e da emancipação feminista.” Já Gilda abriu mão de sua paixão pela ficção. “Seu gesto foi recusar a posição que os companheiros da revista lhe

SIDNEY/AE

os dois grupos, fator que impulsionou a pesquisa da professora. “Numa situação inversa à das mulheres intelectuais da época, cujos exemplos mais sensacionais foram Gilda, Patrícia Galvão (a Pagu) e a crítica literária Lúcia Miguel Pereira, que enfrentaram uma série de constrangimentos para se afirmar e ‘fazer nome’, as atrizes foram alçadas à condição de protagonistas com o respaldo de seus parceiros.” Basta lembrar as várias atrizes que, após deixarem a “escola” do TBC, formaram suas companhias em que eram as primeiras atrizes tendo os parceiros a seu lado como empresários ou diretores: Fernanda Montenegro e Fernando Torres, Cacilda e Walmor Chagas, Nydia Lícia e Sergio Cardoso. Para as intelectuais que acompanhavam de perto essa cena era preciso, como confessou Gilda de Mello e Souza, se rebelar contra o destino reservado às mulheres então: ser esposa exemplar ou, no caso das “inconformadas”, se dedicar à ficção ou aos versos. Gilda, Pagu e Lúcia preferiram se realizar “como homem” (ainda palavras de Gilda), cada uma a seu modo. “Elas se aventuraram pela ficção antes de partir para uma vida intelectual, na época dominada pelos homens. Lúcia, em seu romance Maria Luísa, de 1933, escrito no mesmo ano que o romance socialista pioneiro Parque industrial, de Pagu, e Gilda nos contos escritos para a revista Clima, que foram solenemente ignorados apesar da sua elevada qualidade literária”, diz a pesquisadora. “As escritoras recebiam, então, o supremo elogio feito a um trabalho feminino: ‘Até parece

atribuíram, insurgir-se contra as modalidades socialmente mais adequadas de expressão para as mulheres da época, no que foi o seu primeiro ato de liberdade. Ainda assim, na repartição das tarefas, aos homens couberam as posições e os temas nobres: a cultura e a editoria das seções permanentes. Às mulheres, a ‘costura’ da redação, a função de colaboradoras.” Sem falar nas críticas de Florestan Fernandes à pesquisa de Gilda sobre a moda, vista como “coisa de mulher” e que não corresponderia aos métodos científicos necessários de se fazer sociologia. Daí o descaso completo a que foi relegada a sua tese de doutorado, defendida em 1950 e só publicada três décadas mais tarde, sobre A moda no século XIX. “Com recursos e meios distintos, Lúcia, Patrícia e Gilda refletiram sobre os constrangimentos sociais e psicológicos que incidiam sobre a vida das mulheres. Uma comparação rápida entre o campo intelectual e o campo teatral permite contrastar as oportunidades de carreira e as maneiras distintas de ‘fazer nome’ que se abriam para as intelectuais e as atrizes”, nota Heloísa. “Mais ‘feminino’ que o campo intelectual do período, o teatral ilumina, por contraste, os espaços possíveis, os recursos utilizados e as frustrações experimentadas pelas três intelectuais para se fazerem reconhecidas como ensaístas e críticas de cultura.” De um polo ou de outro, ambos com as dificuldades enfrentadas pelas mulheres, surgia uma metrópole moderna e cultural que podia, com ufanismo merecido, figurar como “locomotiva do Brasil”. ■

Montagem no TBC

PESQUISA FAPESP 174

086-089_Teatro_174.indd 89

AGOSTO DE 2010

89

7/28/10 10:37:32 PM


[ homenagem ]

A tristeza de folhetim

E

la foi chamada carinhosamente pelo amigo Antonio Candido de “animal acadêmico”, infelizmente uma espécie rara e em extinção. A morte de Marlyse Meyer (19242010) é a perda de uma notável pensadora da cultura brasileira, em seus altos e baixos estudos (como ela, aliás, nomeou o grupo de pesquisa que criou na USP em 1975), sempre ativa embora estivesse aposentada do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o que, no entanto, não a impediu de continuar a escrever e orientar discípulos. Deixou poucos mas ótimos livros em face da grandeza intelectual: Folhetim, uma história (Companhia das Letras, 1997), o seu maior sucesso e, segundo ela, “o livro que me deu maior prazer”; Pirineus, caiçaras: deam­bulações literárias (Unicamp, 1991); Surpresas do amor: a conversação no teatro de Marivaux, sua tese de doutorado (Edusp, 1993); Caminhos do imaginário no Brasil (Edusp, 1993); As mil faces de um herói canalha (UFRJ, 1998); e organizou Do Almanack aos Almanaques (Fundação Memorial da América Latina e Ateliê Editorial, 2001). Entrou para a literatura, segundo dizia, “por falta de coragem”: queria fazer história ou ciências sociais, mas a primeira “tinha desenho por causa dos mapas” e a outra “estatística”. Num cursinho pré-vestibular conheceu Antonio Candido, uma amizade contínua e intensa. Conheceu o marido, o físico Jean Meyer, na Faculdade de Filosofia e acompanhou-o quando ele foi trabalhar na Europa, de início na Itália, onde ela estudou e deu aulas na Faculdade de Letras de

90

n

agosto DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 174

bel pedrosa

Marlyse Meyer foi uma notável pensadora da cultura brasileira

Veneza, e depois na França, onde lecionou no Institut d’Etudes Luso-Brésiliennes. Estava para voltar ao Brasil nos anos 1960, mas o golpe militar e o AI-5 adiaram seu retorno, que só aconteceu em 1975. Viveu o 1968 na França e, ousada, pedia aos alunos que traduzissem panfletos para os operários portugueses da Renault. Antonio Candido a queria na USP, mas ela acabou indo para a Unicamp, em busca de um emprego rápido e necessário, tornando-se professora do Instituto de Artes por causa de sua tese sobre teatro. Adorava estudar “romances de segunda linha” e novelas (que sugeria aos alunos como forma de melhor entender os folhetins), aventurou-se a pesquisar candomblé e gostava de dizer, por causa de tudo isso, que “eu era pós-moderna e não sabia”. Ganhou o Prêmio Jabuti, em 1997, por seu livro Folhetim e ficou famosa ao traduzir Raízes do Brasil, de Sérgio Bu■ arque de Holanda, para o francês.


livros

Brasilidade revolucionária Marcelo Ridenti Editora Unesp 188 páginas, R$ 36,00

Ridenti trata em seu livro de uma ‘brasilidade revolucionária’ que se define com mais clareza a partir do final dos anos 1950 e ganha destaque na década seguinte, apostando nas possibilidades da revolução brasileira, nacional-democrática ou socialista. As ideias que se propagavam nesse período indicavam o andamento de uma revolução, em que artistas e intelectuais teriam um papel expressivo nessa construção. Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br

Além das formas

Leopoldo M. Bernucci e Francisco Foot Hardman Editora Unesp 492 páginas, R$ 43,00

O perfil poético de Euclides da Cunha é agora integralmente revelado. Em Poesia reunida é possível entender os traços estilísticos e retóricos do autor. A poesia euclidiana mostra a transição do romantismo ao modernismo no país, abordando temas como o repúdio à escravidão e a utopia revolucionária republicana à metafísica do eu e da vida humana desgarrada da religião. Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br

Carlos Zibel da Costa Annablume Editora 232 páginas, R$ 40,50

Ecos do púlpito – Oratória sagrada no tempo de D. João VI

Este livro se pretende uma introdução ao pensamento contemporâneo no design, nas artes e na arquitetura para além das mudanças ocorridas na morfologia e na visualidade associadas à pós-modernidade. O autor investiga a origem do conceito e a sua difusão sociocultural e ainda abrange diversos debates como “o autor e o texto como representantes do poder” e “o controle social disfarçado em cultura”.

Maria Renata da Cruz Duran Editora Unesp 208 páginas, R$ 30,00

AnnaBlume Editora (11) 3812-6764 www.annablume.com.br

Marlyse Meyer: nos caminhos do imaginário Jerusa Pires Ferreira/Vilma Arêas (org.) Edusp 244 páginas, R$ 45,00

fotos Eduardo Cesar

Euclides da Cunha – Poesia reunida

O livro reúne ensaios escritos a respeito da obra de Marlyse Meyer, alguns artigos apresentados nas “Jornadas” realizadas em 2007 no Centro de Estudos da Oralidade, textos dedicados à pesquisadora, depoimento de cunho pessoal, uma entrevista, além de um filme, Ir e vir, que alude ao processo criador da professora que sempre se movimentou em diferentes segmentos da cultura. Edusp (11) 3091-4008 www.edusp.com.br

O estudo de Maria Renata Duran destaca a importância dos pregadores imperiais como gênese de uma intelectualidade brasileira no início do século XIX. Dessa forma, o livro demonstra o papel fundamental da oratória sagrada no Brasil oitocentista, num tempo em que o analfabetismo era imenso e a palavra falada, o principal mote às discussões locais. Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br

Bahia, a corte da América Maria Beatriz Nizza da Silva Companhia Editora Nacional 792 páginas, R$ 45,00

Maria Beatriz da Silva trata em profundidade a história colonial da Bahia, abarcando com ineditismo uma ampla complexidade de temas que vão muito além dos tópicos costumeiros em torno do nexo escravidão e açúcar, revelando assim toda a heterogeneidade de um dos principais centros de poder da América colonial. Companhia Editora Nacional (11) 2729-7799 www.editoranacional.com.br

PESQUISA FAPESP 174

n

agosto DE 2010

n

91


RESENHA

Delicado amor filial Uma menina cheia de lembranças poéticas MARISA

LAJOLO

F o

pai, a mãe

e a filha Ana Luisa Escorei Ouro sobre Azul 288 páginas R$ 35,00

inda a leitura de O pai, a mãe e a filha de Ana Luisa Escorel, limpidez e sobriedade são as impressões que ficam. Fortes e duradouras. Quase 300 páginas de um elegante volume de capa dura em tons alaranjados, na qual uma risonha menina com laço de fita na cabeça contempla o leitor. Amor à primeira vista. Celebra-se assim, desde a mais externa das dimensões de um livro - sua capa -, o pacto de sedução e fidelidade entre quem conta uma história - a filha menina - e o leitor do livro. Ou a leitora. Em qualquer caso, estas enigmáticas figuras já na primeira linha são jogadas na São Paulo de meados do século XX onde ressoa a voz da mãe da menina explicando o endereço: Rua Perdões, por favor. Ali onde a Conselheiro Furtado encontra a Pires da Mata. A cartografia do livro é espalhada e por ela o leitor transita levado pela mão firme e pela memória rigorosa da narradora. Ruas de terra de um bairro paulistano, varais de roupa, o centro da cidade com restaurantes e casas de chá, uma cidade do interior paulista, uniformes escolares, terrenos baldios com mamo na, viagens de trem e férias na fazenda. Sotaques de imigrantes, molecada de rua, caneladas, primos e primas, gosto de pipoca, cheiros de empórios bem sortidos, miudezas de um armarinho e texturas de tecidos. A menina se lembra de tudo: o mundo evocado ganha a concretude dos cinco sentidos e envolve o leitor, provocando-lhe, talvez, suas próprias lembranças. A história que o livro conta - de cunho memorialístico - cobre alguns poucos anos da vida da menina e os muitos anos da vida de sua família.

92 • AGOSTO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 174

À medida que se desfia, a narração vai desdobrando tempos: não é mais apenas o tempo da filha menina, do título e da capa. A história se distende pelo tempo de seu pai e de sua mãe, dos pais de seu pai e dos pais de sua mãe. Nesse retorno ao passado, episódios familiares bordejam um pouco da história do Brasil. Não pelas personagens, mas pelo que encenam, na vida pública e privada, do mundo de duas famílias precursoras das classes médias formadas por sucessivos rearranjos da outrora poderosa aristocracia agrária brasileira. Com este alargamento temporal, também se amplia a geografia que a narração percorre: Rio de Janeiro, Minas Gerais e Europa dissolvem fronteiras nas várias gerações que engendraram a família da risonha menina da capa que conta sua história no interior do livro. Ao longo da leitura, no entanto, o leitor vai percebendo as artimanhas da narração ao dar-se conta de que a voz que conta a história não é, certamente, a voz de uma risonha menina. A voz que narra a história, numa sóbria


terceira pessoa, é uma voz sofisticada. Sofisticadamente construída para parecer uma voz infantil. E é convincente no artifício: parece, mesmo, narrativa de criança. A informalidade da linguagem, a coloquialidade do tom, as frases curtas, o esforço bem-sucedido de reproduzir hesitações e certezas do discurs'o infantil são traços que constroem a verossimilhança do tecido narrativo. Já a sofisticação transparece na precisão da linguagem e - sobretudo - no desvio que a terceira pessoa da narração imprime ao gênero autobiográfico, por excelência escrita do eu. Trata-se aqui de um eu travestido de ela. A filha anunciada no título participa da história que conta revestida da sobriedade de uma terceira pessoa. Mas a distância do eu ao ela, que formalmente garante a limpidez do estilo, não abafa - antes realça e nesse realce engolfa o leitor - o sentimento profundo e a emoção forte que acompanham histórias de vida. Emoção e sentimento

(prováveis) de quem as escreve e (também prováveis) de quem as lê. Mas, se a autoria testemunhal de protagonista fica assim cifrada na linguagem elegante de Ana Luisa, são dela - o leitor é informado - os muitos desenhos que ilustram o livro. Estes sim são de autoria da menina da capa. Guardados, datados e muitas vezes legendados pela mãe da menina, os desenhos ingênuos e belos que se espalham em folhas de papel às vezes pautadas (as fichas onde o pai da menina anotava leituras?) reproduzem, no traço livre e tosco da mão de uma criança, formas incríveis. Bichos, flores, figuras humanas, prédios, automóveis, ensaios de letras, e uma princesa em noite estrelada. As imagens talvez revelem o que a palavra cala. Mas ... não é uma menina qualquer a menina da capa, a ela que a narração constrói. Filha de professores da (então) recém-fundada Universidade de São Paulo, Ana Luisa dedica o livro a seus pais, Gilda e Antonio Candido.

A partir desta dedicatória, a história narrada pela menina pode também ser lida em outra clave, espécie de roman à def. Cruzam-se, nas páginas do livro, figuras que muitos leitores certamente identificarão logo: um dos amigos que visitam a casa da menina dá ao pai dela a máquina onde tinha escrito Raízes do Brasil, e outro amigo namorava uma mocinha magra chamada Ruth e acabou sendo presidente do Brasil. É no cotidiano desses pais enredados em livros, teses e artigos, e de amigos dos pais com o mesmo ritmo de vida, que a menina vai construindo seu arquivo, vai vivendo a vida que narra. Nas páginas finais, uma discreta nota funciona como um making of! do livro. Conta Ana Luisa que ao longo de dois anos ela, suas irmãs e alguns primos trocavam reminiscências pela internet. O que, por assim dizer, coletiviza as memórias registradas, construí das por este substrato comum dos que compartilharam com a autora a vida narrada. Desta vida fazem parte muitas histórias. As contadas pelo pai da menina e as contadas pela avó dela, exímios ambos na fina arte de contar histórias. Não falta à cena nem mesmo a lembrança do pratinho de doces que a narradora ia trazendo mas ... se foi com o vento, a chuva ... É uma destas histórias que encerra o livro. A hoje pouco conhecida história de Limo Verde, príncipe transformado em ave. Incansavelmente recontada pela avó, linda história, cheia de encantamentos, objetos mágicos, sofrimento e amores. Finda a história, a menina - na pele da narradora - como que casualmente registra que história de família,

de coisa acontecida, ou conto de fadas era tudo a mesma coisa e ela gostava igual. Como gostam igual (e muito!) os leitores deste livro que se tece, igualmente, de histórias de família, de coisas acontecidas e até - como se viu - de contos de fadas!

LAJOLO é professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie e professora convidada da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

MARISA

PESQUISA FAPESP 174 • AGOSTO DE 2010 • 93


ficção

Curriculum Mortis Uma tese Furio Lonza

Ainda vou me tornar um mestre de um
novo gênero literário: o silêncio. Isaac Bábel

Q

uando desligaram os aparelhos, a família vacilou, mas acabou doando os órgãos para transplante. As córneas de Leonardo foram parar num rapaz cego de outra cidade, que voltou a ver a vida como ela é; o coração continuou a bater no peito de um senhor desenganado de 59 anos; a mão direita rumou para o toco maneta de um executivo sem escrúpulos; o fígado resolveu a falência de irrigação de um menino melancólico que reviveu instantes de esperança e o rim passou a filtrar as toxinas que infernizavam as entranhas de uma mulher em estado terminal. A resolução da mãe foi determinante: não poderia contrariar as ordens expressas do filho. Hospitais & médicos comemoraram; as famílias, nem é preciso dizer: exultaram, borbulharam copos de prazer; a obstinação da Ciência tinha enfim derrotado a Ira Divina. Ah, sim, a perna esquerda apareceu no corpo de um rapaz recém-triturado no mar pela hélice de um motor de popa. O corpo de Leonardo repartiu-se em muitas vidas, mas houve rejeições, como é natural nesses casos, são as regras inexplicáveis de um mundo falível, mas nada que uma química plena e farta não pudesse resolver com um mínimo de adestramento. Como se sabe, da mesma maneira que o mundo cria os limites da existência, o homem se encarrega de gerar seus próprios atalhos. Pois a vida é assim mesmo. Por mais que queiramos causas e efeitos, as reações não correspondem necessariamente às ações e obedecem aos meios mais ilícitos, zombando da representação trivial e consequente do mundo. As revelações se dão nas esquinas mais improváveis do tempo, onde a convexidade da atmosfera se funde com a concavidade da matéria. É nessas encruzilhadas que maltratamos um animal, traímos a confiança dos amigos sem um motivo plausível ou nosso carro se esborracha na estrada para Teresópolis.

94

n

agosto DE 2010

n

PESQUISA FAPESP 174

A história não é banal, se me permitem. O pai vivia repetindo para os amigos que seu filho não tinha ambição. Mas ele estava enganado: a única ambição de Leonardo era ser ninguém, era ser nada. Contudo, ele sabia que não ser nada era difícil; sempre tem alguém que insiste em distribuir méritos, um ou outro atributo positivo, sei lá, todo mundo tem algo que valha a pena na vida. Leonardo tinha uma tese: o homem atrapalha pelo simples fato de existir. Por isso, não queria interagir, não queria interferir, achava a ação humana nefasta por definição. A única saída: anular-se, minimizar ao máximo sua presença na Terra, deixar que a roda do mundo completasse sua rota livremente. Tornar-se invisível, eis toda a lírica possível. O silêncio, a não ação, o doce entranhamento, a ternura estava justamente no vazio. Nem protagonista, nem antagonista, Leonardo pretendia o aniquilamento como forma total & sublime de encontrar o absoluto. Para ele, a reação era uma maneira conservadora de preservar os mecanismos mais arcaicos do mundo. Pré-socrático por natureza, Leonardo odiava adjetivos. Sua filosofia consistia em cristalizar os objetos no tempo & no espaço. Teriam que continuar imutáveis, sem que fossem flexionados ao sabor das intempéries. Para ele, o adjetivo representava a ação mais torpe e autoritária do homem, com o objetivo de desvirtuar o real sentido da vida. Controvertido, impetuoso, diáfano, avassalador, poético, ambíguo, grandiloquente, viril, premonitório, sonhador, ambicioso, erótico, mágico. Para Leonardo, nada disso tinha valor ou importância. Sua cosmogonia era simples: a existência não admite intervenções de nenhuma ordem. Com o tempo, porém, ele começou a abolir também os substantivos. O ser já não mais estava, desincorporara-se


anaisa franco

de vez, tinha virado nuvem, pó, vento, poeira, éter, fragmento de uma estrela antiga e morta que, por definição, já não brilha mais, pois Leonardo tinha matado inclusive os verbos. Com isso em mente, no sentido de acelerar o processo, resolveu agir por conta própria: pisou fundo no acelerador e seu automóvel precipitou-se despenhadeiro abaixo: só teve a escuridão do coma pela eternidade de um mísero instante. E foi nesse fragmento de trevas que ele vislumbrou toda a vida que não teria. Aliás, o estado vegetativo, como se diz, é apenas uma provocação às plantas. O homem é muito estúpido, se acha superior em tudo. Quando subiu na escala alimentar, mastigando a carniça que o tigre-dentes-de-sabre deixava nas pradarias, ele não imaginava a roubada em que estava se metendo: as toxinas da carne ativaram o cérebro, que começou a pensar, e virou um predador. Vamos colocar as coisas da seguinte maneira: nada pode explicar um ato desses, a morte é uma coisa visguenta, pegajosa, indigna, absolutamente impossível; ela humilha, encolhe, ela ilumina a estupefação, estremece, distribui códigos de tortura; o assassino de verdade é escorregadio, volátil, um rato, um rato peludo com as patas em disparada entrando no primeiro buraco que aparece pela frente; ele avança dolorosamente até roçar as fronteiras do horror, lança-se na morte por mordedura, a morte mordida do rato; quando não há mais rato, o futuro cadáver se vê acua­ do pela ausência, torna-se irredutível, torna-se infinito, pleno, cai-lhe a mordaça, então ele grita, mas ninguém ouve; o despojo humano – com o perdão da palavra! – explode em estilhaços e se torna igual a si mesmo, igual a seu silêncio. O predador de si mesmo respira aliviado pela primeira vez, com a ilusão de ter assassinado o resto da Humanidade.

Não há rancor, não há o mínimo resquício de religiosidade ou satisfação, é um descampado, uma alameda sem árvores, sem sombra. Mas deixemos isso de lado: vamos logo às alegorias de praxe: a mão de Leonardo acabou por estrangular a esposa infiel do executivo, o coração partiu-se em três ou quatro pedaços quando a jovem esposa do velho o deixou, o fígado do menino estourou numa cirrose hepática espetacular quando ele cresceu e percebeu a vida como ela é. Já o rim murmurou seus últimos momentos no corpo da mulher que esperava pela diálise na fila do hospital público. E as córneas... Na verdade, não se tem notícia do destino dessa imensidão leve, vazia por dentro e suave como uma criança, mas sabe-se que não deu em boa coisa, não. A aflição foi enorme. Tudo estava calmo e, de repente, a escuridão. O espírito do homem está em linha direta com sua alma, é difícil prever o que pode acontecer quando um homem vê através de outro homem, são janelas roubadas, são fendas meramente corporais que se corrompem com os anos, a criatura se fecha, há uma ingenuidade salgada & virgem, o langor nostálgico de um monarca destituído, toda a história do Universo se condensa em cristais de visão abissal. Foi como um balão que subiu, subiu e incendiou-se perto das nuvens. É compreensível, houve até algumas risadas. Leonardo conseguira enfim provar sua tese, com distinção e brilho: o homem não dá certo nem depois de morto. Furio Lonza é escritor, jornalista e dramaturgo, tendo publicado, dentre outros, Eric com o pé na estrada, Máquina de fazer doidos, As mil taturanas douradas e História impossível. PESQUISA FAPESP 174

n

agosto DE 2010

n

95


,, i

)

I

I

t

l 1 i~

••

MEDICINA

fU\I[)A.ÇÃO

[§}l

J

I

CALOUSTE GlJLBENKIAN

J:A E P

Instituto Gulbenkian de Ciência

I I

j

São Paulo Advanced School on Primary Immunodeficiencies: Unraveling Human Immuno-Physiology

f

Nov 28th - Dec 4th, 2010, São Paulo - Brazil Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da FMUSP Applicants should be MDs, graduate students of biomedical and biological sciences or post-doc researchers. Up to 50 applicants will be accepted: 25 from Brazil and 25 from other countries. The School will cover ali expenses related to travei and accommodation.

Coordinators: Magda Carnelro-Sarnpaio Carlos A. Moreira-Filho António Coutinho

96 • AGOSTO DE 2010 • PESQUISA FAPESP 174

Application/ more information: www.icr.usp.br/espca-pid thais.scudelletti@icr.usp.br

[ [


t

)} Anuncie você também:

tel. (11) 3087-4212

I www.revistapesquisa.fapesp.br

• Pesquisa

-,

PESQUISA FAPESP 174 • AGOSTO DE 2010 • 97


Www.SCI

O·org Scientific Electronic Library Online Adote SciELO como sua biblioteca científica Adopte SciELO como su biblioteca científica Make SciELO your scientific Library

«<

••• ••••••• •••••• •••••• •••• • •••• •• •

l~~~ ~'f~A ......~

-

--------

BIREME • OPAS • OMS

(fiCNPq Conselho

Nacional

Clentfflco

e Tecnol6gico

de Desenvolvimento

••••• ••••••• ••••••• •••••• ••••••• •••• • ••• ••

••


· me lífica lífica rary


Pesquisa A BIOLAB carrega em seu DNA a vocação para a pesquisa, como um caminho indispensável para o desenvolvimento de novos produtos e tecnologias que, junto com a inovação, representem a missão da empresa - Saúde ao Alcance de Todos.

Desenvolvimento A visão de vanguarda da Biolab levou a empresa a acreditar no desenvolvimento como um caminho para se destacar em um mercado altamente competitivo.

Inovação Inovar para crescer de forma continuada e sustentável. A partir desse princípio, a BIOLAB atua com foco na Inovação em todos os aspectos, desde a adoção de novas tecnologias de produção até o desenvolvimento de moléculas exclusivas.

Aprendizado Para a BIOLAB, o ciclo de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação somente se completa quando ele se transforma em Aprendizado.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.