Ciência e Tecnologia
Fevereiro 2003· N° 84
e no Brasil
FAPESP
, AVANÇO NA CONSERVAÇÃO DE SEMENTES AJUDA A PRESERVAR O PAU-BRASIL VACINA CONTRA CASCA DE OVOS QUEBRAD~ÇA
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VOCÊ NÃO CALCULA QUANTA TECNOLOGIA FOI PRECISO PARA FAZER O INFOCLUSTER. ELE CALCULA.
Do trabalho conjunto entre a Itautec e a Escola Politécnica de São Paulo, surge o Infocluster: o primeiro supercomputador brasileiro. Com capacidade mil vezes superior à do primeiro supercomputador do mundo, o Infocluster tem uma incrível capacidade de processamento de informações. Capaz de realizar bilhões de cálculos por segundo, é uma ferramenta importantíssima para a pesquisa científica, cálculos de operações financeiras, previsão do tempo e até localização de poços de Infocluster. O supercomputador que colocou a Itautec do Brasil no topo do mundo da tecnologia.
Itautec Tecnologia de soluções.
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Ciência e Tecnologia no Brasil www.revistapesquisa.fapesp.br
SEÇÕES
REPORTAGENS
CARTAS
5
CARTA DO EDITOR
7
MEMÓRIA
8
Há 70 anos, Ernst Ruska criava o microscópio eletrônico na Alemanha
ESTRATÉGIAS Discriminação velada na Grã-Bretanha Bush luta contra sistema de cotas Prioridades para a ciência australiana ONU quer reunião sobre clonagem Falta emprego para químico nos EUA Encontro da Ompi será em abril Ciência na web Competitividade comprometida
10 .10 .10 11 11 11 11 12
CAPA
REVISTAS CIENTÍFICAS
Descoberta sobre ação de neurotransmissores ajuda a entender e a tratar distúrbios emocionais freqüentes, como ansiedade, pânico e depressão .30
Pesquisadores dos EUA criam editora on-line com acesso livre
RECURSOS
GENÉTICOS
.12 12 .12 13 13 .13 13
MEDICINA
FARMACOLOGIA Nova molécula é cem vezes mais potente que a bradicinina na redução da pressão arterial .. .42
BOTÂNICA
LABORATÓRIO A mais completa visão do céu do Hemisfério Sul
CIÊNCIA Equipe da Bahia aprimora tratamento da leishmaniose e grupo de Minas descobre verme que mata o transmissor ..... .36
POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA Em estudo, nova política para bolsas Fundo expandirá linhas de ação LN LS ampliará atendimento FAPs sob nova direção .......•..•...... Ciência para o ensino médio Rezende na Finep, Cury na Capes Um pacto com as universidades
24
26 o
V> W
Empresa japonesa registra a marca cupuaçu no exterior e abre debate sobre apropriação indébita de recursos genéticos 14
ENTREVISTA Nuno Carvalho, da Ompi, fala sobre biopirataria
17
FINANCIAMENTO Basa apóia o desenvolvimento de pesquisa na Região Amazônica
22
Sementes da árvore pau-brasi I conservam-se por um ano e meio, seis vezes mais do que se pensava PESQUISA FAPESP 84 • FEVEREIRO
44
DE 2003 • 3
_____________
• P..::.......:e::......:s::...qulsa
Ciência e Tecnologia no Brasil
FAPESP
I
REPORTAGENS
SEÇÕES Aquecimento global motiva migrações Por que não dar comida aos pássaros Mais provas dos benefícios do álcool Bactéria cria e usa aminoácido extra Genes ajudam a diagnosticar o câncer Como selecionar elétrons
26 26 27 27 27 28
PALEOBOTÂNICA
MEDICINA VETERINÁRIA
Encontrados fósseis de araucárias com 220 milhões de anos no Rio Grande do Sul .50
Vacina protege aves de bactérias que interferem no metabolismo do cálcio e deixam a casca do ovo mais frágil .... 75
BIODIVERSIDADE ENGENHARIA
FLORESTAL
Pesquisador da Embrapa do Pará desenvolve um novo método para secagem de madeira .... 78
HUMANIDADES CULTURA POPULAR Cai estoque de peixe-batata Genes silvestres usadoscontra fungos Os riscos do futebol de domingo O contágio de toxoplasmose pela água
28 28 29 29
SCIELO NOTÍCIAS
60
LINHA DE PRODUÇÃO Novas luzes sobre o espectro eletromagnético Força para célula a combustível Minitransistor procura espaço Alívio para os olhos e para os bolsos Estômago virtual para ver a digestão Escolha do sexo bovino
62 62 62 62 63 63
Identificadas 52 espécies de animais que vivem no fundo do oceano
.54
GEOLOGIA Estudo revela a intensa movimentação da crosta na região central do Brasil ...
.58
TECNOLOGIA ROBÓTICA
Pesquisadora organiza acervo de trovas, cordéis e poesias doados por Heitor Villas-Lobos
80
MÚSICA
Centro Tecnológico em São Carlos Testes em alta vibração Software interliga celular e clientes Derivado do ipê é patenteado Turbinas eólicas de pequeno porte Patentes
63 64 64 64 65 65
RESENHA 94 Ensaios sobre a Intolerância, Lina Gorenstein
Dirigível autônomo para uso em monitoração ambiental e inspeção aérea está em desenvolvimento em centro de Campinas
Dupla de pesquisadores recuperam Joanna de Flandres, ópera de Carlos Gomes esquecida há 140 anos 84
SOCIOLOGIA
66
INFORMÁTICA
ARTES CÊNICAS Como o dramaturgo italiano Dario Fo garante a perenidade do teatro político
LANÇAMENTOS
95
Ex-alunos da Unicamp usam novo sistema para fazer softwares e ganha mercado 70
CLASSIFICADOS
96
SANEAMENTO
ARTE FINAL
98
Os novos reatores para tratamento de efluentes industriais e domésticos
e Maria Luiza Tucci Carneiro (orqanizadoras)
Claudius 4 • FEVEREIRO DE 2003 • PESQUISA FAPESP 84
Estudo mostra poder do discurso oficial e jornalístico para criminalizar movimentos ..... 87
72
Capa e foto iIustração: Hélio de Almeida
90
cartas@fapesp.br
Números de P&D Quero cumprimentá-los pela qualidade de Pesquisa FAPESP, que se destaca entre as mais relevantes publicações dedicadas à divulgação dos avanços da ciência, tecnologia e inovação no Brasil. Aproveito para apresentar alguns breves comentários sobre o texto "Novos números de P&D'; publicado na edição nO83, no que diz respeito às estimativas do número de pesquisadores no país. A construção desse indicador é algo complexo se se pretende acompanhar as recomendações do Manual Frascati, da OCDE, a principal referência internacional nesse campo. Na reportagem, afirmase que o setor privado emprega 37% dos pesquisadores brasileiros, com base nas novas informações produzidas pela Pintec- IBGE, associadas às originárias do Diretório dos Grupos de Pesquisa do CNPq. Tal informação está correta, mas não leva em consideração os estudantes de pósgraduação engajados em atividades de P&D, tal como recomenda o men-
enorme quantidade de publicações com fins estritamente comerciais e, em muitos casos, manipuladoras de opinião. MICHEL
TANAKA
Estudante do ensino médio
cionado Manual Frascati: estudantes de pós-graduação engajados em P&D devem ser considerados como pesquisadores e devem ser reportados separadamente (OCDE, 1993, p.86). Embora na tabela contida na matéria tal recomendação tenha sido adotada, no texto que a acompanha não se menciona essa possibilidade. Caso o fizesse, a proporção de pesquisadores nas empresas seria de aproximadamente 26%. Existem outras questões relacionadas com esse indicador, tratadas naquele manual, cuja discussão demandaria um espaço maior que o adequado para uma simples carta. Tendo em vista o fato de que, a despeito daquelas recomendações e da relevância do tema, haja ainda uma certa divergência de métodos de contabilização do pessoal em P&D, em geral, e dos pesquisadores, em particular, seria interessante que a Pesquisa FAPESP desse continuidade a essa matéria, contribuindo ainda mais para o melhor conhecimento dos indicadores brasileiros de C&T. SINÉSIO PIRES FERREIRA
Coordenador de Estatísticas e Indicadores do MCT Brasília, DF
Revista Parabéns pela revista, de excelente qualidade a um bom preço, que segue sua missão de divulgação científica; é um verdadeiro bastião entre a
Sou professor na Universidade Federal de São João Del Rey, em Minas Gerais, e encontro-me na fase final de meu doutoramento em Educação. A revista Pesquisa FAPESP nO 81 deixou-me bastante interessado. Textos sobre temáticas muito atuais, dentre eles, um tratando da produção científica brasileira e outro sobre a questão da propriedade intelectual. Lamento, que entre nós, na comunidade acadêmica, tal como me parece, ainda prevaleça uma postura instrumental de ser e estar, cada um (como grupo ou indivíduo) fechado na realização da sua especialidade. Por conta disso, considero muito pertinente esses textos que fazem discussões de dimensões nacionais, sociais, culturais, econômicas e ideológicas sobre o ser e o fazer da ciência. Por conta disso, dou-lhes os parabéns por essa estrutura bem temperada de combinar textos mais técnicos com outros de reflexão conjuntural. Sobre o texto "Produção crescente", que trata da produção científica brasileira, gostaria de manifestar minha preocupação com uma abordagem, que percebo como predominante (e presente em tal texto), que não envolve, entre os parâmetros de avaliação da produção científica, elementos relacionados a uma articulação dessa produção com o desenvolvimento social, industrial e tecnológico de nossa população e país. Tenho a impressão de que são apresentados números pelos números, numa abordagem muito abstraída das dimensões econômica, social e política. Em outro texto, "A complexa fórmula da ciência moderna'; afirma-se: "Livre das amarras, o homem viu que estava pronto a interferir em todas as esferas e isso asPESQUISA FAPESP 84 • FEVEREIRO DE 2003 • 5
Pesqijl~
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Contra
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I
cancer, tu ercu ose e outros males
sustou - e ainda assusta - aqueles que ignoram o desenvolvimento do saber científico': Considero tal afirmativa também desprovida de uma reflexão mais contextualizada. "O homem está pronto!" Acho mais interessante pensar, com Paulo Freire, que o homem está em permanente construção e será sempre um ser inacabado. Dessa perspectiva, percebo um desenvolvimento científico que avançou muito e que ainda tem muito o que avançar, especialmente no rompimento com o véu da neutralidade científica frente aos determinantes políticos e econômicos. Fizemos a primeira ruptura epistemológica (da ciência com o senso comum), conforme apontou Bachelard. E a ciência pôde desenvolver-se tanto. Como diz Boaventura Santos: agora, é preciso fazermos a segunda ruptura epistemológica: com a primeira ruptura, para que a ciência se dirija a um auditório sociocultural mais amplo. Mais uma vez parabéns pela qualidade e o balanço bem temperado do conteúdo da revista. Deixo como sugestão, de acordo com os comentários que fiz acima, que se abra espaço para reflexões voltadas para essa dimensão política, social, econômica desse grande empreendimento - que é também uma grande instituição chamado ciência. MURlLO
CRUZ LEAL
São João Dei Rey, MG
Radiografia dos excluídos A reportagem "Mapa da Exclusão", publicada em Pesquisa FAPESP 6 • FEVEREIRO DE 2003 • PESQUISA FAPESP 84
de janeiro, deu uma importante contribuição a São Paulo por revelar o aumento dos contrastes sociais e econômicos da cidade, a deterioração da qualidade de vida da população da capital e a ausência de políticas públicas para sanar esse problema, que tem dimensão nacional. Parabéns à editora Claudia Izique por abordar tema tão relevante e à revista por dar o destaque merecido aos resultados desse trabalho sobre tão importante problema social. Congratulo a FAPESP por financiar projetos de políticas públicas e, principalmente, a equipe da PUC-SP, do Inpe e do Instituto Polis, por buscar uma atuação mais eficiente dos programas sociais, visando a evitar o desperdício do quase sempre escasso recurso público. Desejo que as "utopias" democracia, cidadania e felicidade, sonhadas pelos participantes do projeto, estejam ao alcance desses 10 milhões de excluídos num futuro próximo. ALESSANDRA PEREIRA
São Paulo, SP
Ciência na Web
sica para ensino a distância, projetos de iluminação e designer. Laboratório
VALMIR PEREZ de Iluminação/Unicamp Campinas, SP
Hormônio de crescimento Graças a um amigo que me enviou o número 82 de Pesquisa FAPESP, tomei conhecimento de que o Brasil entra no "Clube dos produtores de hormônio de crescimento", o que saúdo com entusiasmo e me alegra muito. Este é um grande passo à frente no desenvolvimento de nossos países, capazes de dominar tecnologias que nos tornarão cada vez mais auto-suficientes em áreas realmente relevantes como a da saúde. No entanto, desejo corrigir um erro de informação que aparece no artigo. O Brasil não é o quinto integrante do mencionado clube, mas o sexto, já que a Argentina produz desde 1997 hormônio de crescimento biossintético. O mesmo é comercializado com o nome de HHT pelo Laboratório Bio-Sidus. Em relação à produção brasileira, felicitações e êxito! LUIS GUIMAREY
Membro da Comissão Nacional Assessora para Tratamentos com Hormônio de Crescimento La Plata, Argentina
http://www.iar.unicamp.br/lab/luzlindex.htm
Laboratório de Iluminação da Unicamp apresenta numerosas informações técnicas sobre o tema.
Gostaria de agradecer a revista Pesquisa FAPESP pela inclusão do site do Laboratório de Iluminação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) na seção Ciência na Web. Certamente essa inclusão facilitará a aprovação dos próximos projetos do laboratório na universidade. Quero também aproveitar para lembrar que o laboratório oferece serviços gratuitos à comunidade científica em consultoria para projetos de estrutura fí-
Nota da Redação De fato, a Argentina já produz hormônio de crescimento, assim como a Coréia do Sul. A confirmação é do bioquímico Jaime Leyton, coordenador do projeto de Hormônio de Crescimento na empresa Genosys. Assim, o Brasil será o sétimo produtor e não o quinto, como consta na reportagem.
Correção A pesquisadora Chana Malogolowkin recebeu US$ 500 mil para criar o Laboratório de Genética de Drosófilas na Universidade de Haifa e não na Universidade Hebraica de Jerusalém ("Pesquisadora itinerante", n= 81).
• Pesquisa
CARTA
A ciência brasileira na tela
FAPESP CARLOS VOGT PRESIDENTE PAULO
EDUARDO DE ABREU VICE·PRESIDENTE
MACHADO
P
esquisa FAPESPtraz, a partir des-
CONSELHO SUPERIOR ADILSON AVANSI DE ABREU AlAIN FLORENT 5TEMPFER CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ CARLOS VOGT FERNANDO VASCO LEÇA DO NASCIMENTO HERMANN WEVER JOBSON DE ANDRADE ARRUDA MARCOS MACARI
rosr
Nll$ON PAULO
DIAS VIEIRA JUNIOR
EDUARDO
DE ABREU
MACHADO
RICARDO RENZO BRENTANI VAHAN
AGOPYAN
CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO FRANCISCO ROMEU LANDI DIRETOR PRESIDENTE JOAQUIM J. DE CAMARGO OlRETOR ADMINISTRATIVO
ENGLER
JOSÉ FERNANDQ PEREZ DIRETOR CIENTíFICO PESQUISA ANTONIO
lANOHO,
FAPESP
CONSELHO EDITORIAL DE MATOS PAIVA,
CECHELLI
EDGAR
OUTRA
FRANCISCO ANTONIO BEZERRA COUTINHO,
FRANCISCO ROMEU LANDI, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER,JOSÉ FERNANDO PEREZ, LUÍS NUNES DE OLIVEIRA, LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS, PAULA MONTERO, ROGÉRIO MENEGHINI DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MDURA ED/TORCHEFE NELDSON MARCOLlN EOITORASÊNIOR DA GRAÇA MASCARENHAS
MARIA
DIRETOR DE ARTE HÉLIO DE ALMEIDA EDITORES CARLOS FIORAVANTI (CIÉNCIAl CLAUDIA IZIQUE (POLÍTICA C&Tl MARCOS DE OLIVEIRA ITECNOLOGIAl HEITOR SHIMIZU (VERSÃO ON UNE) REPÓRTER MARCOS
ESPECIAL PIVETTA
EDITORES-ASSISTENTES ERENO, RICARDO
DINORAH
ZORZETTO
CHEFE DE ARTE MARIA DOS SANTOS
TÂNIA
JOSÉ ROBERTO
~~G;~:,A~t~IANA FACCHINI
FOTÓGRAFOS CESAR, MIGUEL
EDUARDO
BOYAYAN
COLABORADORES DÉBORA CRIVELLARO, FRANCISCO BICUDO, GIL PINHElRO, MARIO VIANA, T ÀNIA NOGUEIRA ALVARES, YURI VASCONCELOS ASSINATURAS TELETARGET TEL. (1!l3038-1434 - FAX: 1l1l3038·1418
e-mail: Iapespêteletarqet.ccm.br PUBLICIDADE TEL/FAX: 1l1l3838-40ü8 e-mail: redacao@fapesp.br PRt:-IMPRESSÃO GRAPHBOX·CARAN IMPRESSÃO PROL EDITORA GRÁFICA TIRAGEM:
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http://www.revistapesquisa.fapesp.br cartas@fapesp.br NÚMEROS
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Osartigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAPESP É PROIBIDA DE TEXTOS
A REPRODUÇÃO
TOTAL
E FOTOS SEM PRÉVIA
SECRETARIA
DA CIÊNCIA
E DESENVOLVIMENTO
GOVERNO
DO ESTADO
DO EDITOR
OU PARCIAL AUTORIZAÇÃO
TECNOLOGIA ECONÔMICO
DE SÃO PAULO
te mês, uma nova seção, SciELO Noticias (páginas 60 e 61), que amplia as já abundantes informações oferecidas ao leitor da revista, em primeira mão, sobre a pesquisa científica desenvolvida no Brasil. Notícias inéditas ligadas à produção científica de alguns países da América Latina e Espanha irão complementar o cardápio da seção. Ela começa de leve, com duas páginas, e mais adiante pode ser ampliada. Para quem ainda não conhece, SciELO - Seientific Eletronic Library Online ou Biblioteca de Revistas Científicas disponível na Internet (www.scielo.org) - é uma das mais importantes iniciativas já tomadas no país para tornar os artigos científicos dos pesquisadores brasileiros acessíveis a seus pares no mundo inteiro - e, portanto, citáveis, correntes na literatura científica internacional, com tendência a apresentar fatores de impacto mais significativos. O projeto da base de dados SciELO foi iniciado em 1997, graças a uma parceria entre a FAPESP e o Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (Bireme), instituição vinculada à Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) e à Organização Mundial de Saúde (OMS). Em 2002, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) também passou a apoiá-Ia. No começo, apenas dez periódicos científicos estavam no SciELO. Hoje são 93 títulos escolhidos entre as mais importantes das quase 500 revistas científicas brasileiras. E o modelo SciELO, incluindo sua metodologia, revelou-se tão bom que passou a ser exportado para outros países. Já estão em operação na rede SciELO os sites do Chile, de Cuba e um site temático de saúde pública com periódicos do Brasil, México, Espanha e mais os da Opas e da OMS. E estão em desenvolvimento os SciELO da Espanha, Venezuela e Costa Rica. No total, em janeiro de 2003, a rede disponibilizava 169 títulos. Pode-se imaginar o volume respeitável de novas informações científicas que estará a cada mês à disposição de Pesquisa FAPESP, para
daí garimparmos novidades que ajudem a aperfeiçoar seu objetivo editorial: mostrar que se produz conhecimento de alto nível neste país em ciência e tecnologia - um conhecimento que é essencial para seu desenvolvimento social e econômico e que, por isso mesmo, exige políticas que garantam e impulsionem sua produção. Os leitores que quiserem mais que essa amostra do material que estará disponível na biblioteca simultaneamente à sua publicação por Pesquisa FAPESP, ou que tenham interesse no estoque de informações do SciELO, podem acessá-Io não só pelo endereço eletrônico já citado, como pelos sites da nossa revista (www.revistapesquisa.fapesp.br), que, aliás, estará publicando novos destaques a cada semana, e da FAPESP (www.fapesp.br). Depois de toda essa informação sobre um único tema, vale destacar aqui a reportagem de capa sobre a descoberta, por um grupo de pesquisadores da USP de Ribeirão Preto, do papel desempenhado por dois neurotransmissores - o glutamato e o óxido nítrico no transtorno do pânico. Diga-se, de passagem, que eles estão envolvidos também com dois outros desequilíbrios psíquicos: a ansiedade e a depressão. O editor-assistente Ricardo Zorzetto relata, a partir da página 30, como os pesquisadores chegaram a esse resultado que abre perspectivas ao desenvolvimento de drogas mais eficientes para tratar o problema. De qualquer sorte, ouvindo outros especialistas, ele mostra que há um longo caminho a percorrer, numa abordagem necessariamente multidisciplinar, para o controle efetivo do transtorno do pânico, uma das mais sombrias condições psíquicas usualmente associadas ao modo de vida contemporâneo. Se a associação tem fundamento real ou se o transtorno do pânico - que, estima-se, aflige 1,6% dos brasileiros - é tão antigo quanto o homem e apenas passou a ser melhor caracterizado e diagnosticado há coisa de 20 anos, ainda não se sabe. Seja como for, as novas informações sobre esse difícil transtorno são instigantes. Leitura altamente recomendável. PESQUISA FAPESP 84 • FEVEREIRO DE 2003 • 7
•
MEMÓRIA
Um universo muito pequeno Há 70 anos, Ernst Ruska criava o microscópio eletrônico na Alemanha NELDSON
MARCOLI
s avanços da medicina e a criação de novas áreas de pesquisa científica, como a nanotecnologia, estão diretamente relacionadas aos avanços das técnicas de uso do microscópio eletrônico. "Hoje, uma das grandes questões da ciência é conhecer a estrutura exata de algumas moléculas e saber como elas se modificam", afirma Edna Freymuller Haapalainen, diretora do Centro de Microscopia Eletrônica da Universidade Federal de São Paulo (CemelUnifesp). "Esse tipo de pesquisa é fundamental para estabelecer as relações entre dados bioquímicos e morfológicos para entender a intrincada e dinâmica organização celular." Uma das principais ferramentas para compreender esses processos é o microscópio eletrônico. Na essência, ele é uma variação do velho
o
8 • FEVEREIRO DE 2003 • PESQUISA FAPESP 84
Ernst Ruska (à
esa.:
e o primeiro
microscópio
eletrônico
As primeiras imagens observadas foram de dois tipos de células de algas marinhas (ao lado). Abaixo, o desenho original de Ruska para o protótipo de microscópio eletrônico
I
$ I,
microscópio de luz inventado em 1590, quando os holandeses Hans e Zacharias Ianssen, que trabalhavam com vidro, ajustaram duas lentes dentro de um tubo pela primeira vez. O grande salto da microscopia ocorreu nos anos 30. O alemão Ernst Ruska (1906-1988) trabalhava no Instituto de Alta Voltagem, em Berlim, com Max Knoll, e em 1928 já se interessava por campos magnéticos e "lentes de elétrons': Em 1931, Ruska e Knoll construíram o primeiro
protótipo de microscópio eletrônico. "Com esse instrumento, dois dos mais importantes processos de reprodução de imagem foram introduzidos: os princípios de emissão e radiação", segundo escreveu Ruska em um texto para a Fundação Nobel. "Em 1933, fui capaz de colocar em uso um microscópio eletrônico, feito por mim, que pela primeira vez trouxe uma definição melhor do que o microscópio de luz." A vantagem está no aumento com resolução das
amostras observadas. O microscópio de luz permite ver uma amostra entre mil e 1,5 mil vezes maior do que seu tamanho real - células e microrganismos, por exemplo. O eletrônico tem um aumento de até 200 mil vezes para material biológico e até 1 milhão para outros tipos de materiais e permite observar organelas, DNA, proteínas, etc. Mas não basta ver a imagem maior: é preciso que ela tenha boa resolução. Para conseguir as duas coisas foram necessários alguns avanços tecnológicos. A amostra precisa ser o mais delgada possível e colocada no vácuo onde o feixe de elétrons atua para formar a imagem. Além disso, para conseguir atravessar o objeto e registrar a imagem em um filme (ou em uma tela de computador), os elétrons precisam estar acelerados (com mais energia). Essas características permitem obter a imagem aumentada e com resolução, mas impedem a observação de seres vivos - os elétrons "matam" a amostra ao atravessá-Ia no vácuo. O microscópio eletrônico é igualmente útil para analisar amostras inorgânicas e verificar, por exemplo, falhas em ligas metálicas, entre outros numerosos usos. Ruska ganhou o Nobel de Física em 1986. Junto com ele foram premiados o alemão Gerd Binnig e o suíço Heinrich Rohrer, criadores, em 1981, de um outro tipo de microscópio, o de tunelamento de elétrons, que não é óptico nem usa lentes, mas fornece imagens de moléculas e átomos com excelente definição. PESQUISA FAPESP 84 • FEVEREIRO DE 2003 • 9
• POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA
Discriminação velada na Grã-Bretanha
Só 8% das mulheres ligadas aos quadros das mais tradicionais universidades britânicas são professoras, e mais de um terço delas está na faixa mais baixa de remuneração de docentes (Nature, 5 de dezembro). A conclusão é de um relatório encomendado pelo governo britânico, e publicado em novembro, que constatou que essa realidade não
• Bush luta contra sistema de cotas O presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, afirmou que universidades como a de Michigan, que adota política batizada de ação afirmativa e reserva vagas para minorias, como negros ou hispânicos, vão contra a Constituição norte-americana. "Nossa Constituição dei-
difere muito dos meios acadêmicos de outros países, como Estados Unidos e Japão. Segundo Susan Greenfield, diretora do Instituto Real da Grã-Bretanha, em Londres, e coordenadora do estudo, as estatísticas refletem um sexismo velado, institucional, que impede, por exemplo, as mulheres que se afastam para ter filhos e cuidar de seus bebês de re-
xa claro que pessoas de todas as raças devem ser tratadas igualmente sob a lei", disse. Ele argumentou que a intenção da universidade pode ser boa, mas o resultado é a discriminação. A Casa Branca não vai interpelar a universidade judicialmente. O governo entregará à Suprema Corte dos Estados Unidos um documento em que argumenta contra esse sistema
10 • FEVEREIRO DE 2003 • PESQUISA FAPESP 84
tomar a carreira. "De certa forma", diz ela, "esta é a pior das discriminações". O relatório propõe soluções como bolsas-maternidade, reduções da jornada de trabalho e a manutenção de fundos para programas de ajuda. O governo britânico promete considerar as recomendações em um pacote de medidas que anuncia para breve. •
de seleção, que, aliás, já está sendo contestado por três alunos brancos que se sentiram discriminados. A Suprema Corte já havia julgado e considerado ilegal o sistema de cotas para minorias, no final da década de 70. Ainda assim, a Universidade de Michigan vêm utilizando o critério raça e etnia para promover a diversidade cultural entre os seus estudantes. •
• Prioridades para a ciência australiana Todos os institutos de pesquisa da Austrália deverão trabalhar pela sustentabilidade do meio ambiente, pela manutenção e a melhoria da saúde no país, pelo desenvolvimento de novas tecnologias e pela proteção à nação, segundo a lista de prioridades, longamente esperada, que o governo australiano publicou no ano passado (Nature, 12 de dezembro). A comunidade científica aplaudiu as prescrições e, principalmente, a liberdade que o governo promete que será dada às instituições no cumprimento das metas. Havia temores de que o gabinete conservador do primeiro-ministro Iohn Howard quisesse observar bem mais de perto o que os pesquisadores estão fazendo. "Estou contente com o resultado", diz Kenneth B1adwin, físico da Universidade Na-
Ciência na web Envie sua sugestão de
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científico
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www.cienciaonline.org
http://profiles.nlm.nih.gov
http://www.solutions.iq.unesp.br/
O Portal Ciência On Line está renovado, com novas áreas temáticas (geologia e biotecnologial e parcerias (Nasal.
Série de perfis e trabalhos de cientistas importantes da área biomédica que marcaram o século 20.
Uma extensa lista de sites que abrangem as várias especialidades dentro da química. Todos em inglês.
cional da Austrália, em Canberra, e diretor do comitê de políticas da Federação das Sociedades Científicas e Tecnológicas da Austrália. "O programa ajuda a focar os objetivos, mas mantém a flexibilidade." •
nagem de humanos vem sendo mais discutida depois que a empresa Clonaid anunciou, sem provar, o nascimento de um done, em janeiro. •
• ONU quer reunião sobre clonagem
A demanda por químicos e engenheiros químicos despencou e o índice de desemprego na área subiu para 3,3% nos Estados Unidos, em 2002. E o que é pior: as perspectivas pa-
Preocupada com as especulações sobre o nascimento de possíveis dones humanos, a Organização das Nações Unidas (ONU) quer uma grande reunião com todos os 190 países membros para debater o assunto e tomar uma posição, provavelmente a favor da proibição. Alemanha e França tomaram a iniciativa de pedir a reunião - eles querem que a convenção com a proibição seja assinada por todos os países. A primeira conferência internacional será realizada em Berlim, já com a preocupação de preparar o encontro maior a ser chamado pela ONU. A ministra da Educação alemã, Edelgard Bulmahn, acredita que um grande tratado internacional é a maneira mais eficaz para proibir de vez a prática. A do-
• Falta emprego para químico nos EUA
ra este ano atingiram o nível mais baixo de expectativa da década passada, segundo uma pesquisa recente, patrocinada pela American Chemical Society (Nature, 5 de dezembro). Com as barbas de molho, à espera de uma eventual recuperação da economia, nem a indústria farmacêutica, tradicional fonte de empregos para químicos recémfomados, está contratando. "Infelizmente", diz Madeleine Iacob, editora da revista Che-
PESQUISA
mical and Engeneering News, que publicou a pesquisa, "os prognósticos para 2003 são semelhantes aos de meados da década de 90". Nesse período, os profissionais do setor enfrentaram a maior crise de empregos e retração salarial dos últimos tempos. •
• Encontro da Ompi será em abril A Organização Mundial da Propriedade Intelectual (Ompi) e o governo da China estão organizando um encontro sobre Propriedade Intelectual e a Economia do Conhecimento. A reunião será em Beijing, em abril. Paralelamente, está prevista a realização de um fórum com o setor privado. Na pauta, entre outros temas, estão o debate sobre políticas para encorajar empreendedores para o desenvolvimento e exploração do capital intelectual por meio de gerência estratégica da propriedade intelectual e a definição de políticas de propriedade intelectual para recompensar os empreendedores por seus esforços e garantir à comunidade em geral os benefícios da criação. • FAPESP 84 • FEVEREIRO DE 2003 • 11
Competitividade comprometida Um estudo encomendado pela Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan) à consultoria americana Dri-Wefa comparou o potencial de crescimento da economia brasileira com a de oito países: México, Argentina, Chile, Coréia, Taiwan, Estados Unidos, Alemanha e Espanha. Utilizando indicadores como investimento em tecnologia, desenvolvimento da infra-estrutura, educação, custo de financiamento, inflação, câmbio e custos trabalhistas, a pesquisa constatou que o Brasil é pouco competitivo em relação a esses países, perdendo apenas para a Argentina e Espanha. O Brasil, por exemplo,
• Em estudo, nova política para bolsas Um grupo de estudos do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), coordenado pelo secretário executivo da pasta, Wanderley de Souza, elabora proposta para a nova política de bolsas de estudo e pesquisa concedidas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Sua principal tarefa é tornar viável o aumento no número de bolsas e rever seus valores. Outras duas missões do grupo: verificar a possibili-
dade de criação de novas modalidades de bolsas e preparar uma parceria entre a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), CNPq e estados para incrementar a política de apoio à pesquisa. •
• Fundo expandirá linhas de ação
o Fundo Verde-Amarelo investiu R$ 260 milhões em projetos de apoio à integração de empresas, universidades e instituições de pesquisa entre novembro de 2001 e dezembro de 2002. Os recur-
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obteve a pior colocação na comparação da infra-estrutura de transportes e índice de escolaridade, com a menor taxa de matrículas em universidades e menor percentagem de mão-de-obra em idade ativa com pelo menos grau superior. A qualidade de nossas escolas públicas só não é pior que a do México, destacou o diretor operacional da Firjan, Augusto Franco. O Brasil tem, ainda, a segunda maior carga tributária do grupo (38,82% do PIB, em 2001), menor apenas que a da Alemanha, país que possui renda per capita muito superior e oferece serviços públicos de melhor qualidade. •
sos foram aplicados em ações de ampliação e capacitação em tecnologia industrial básica, cooperação direta entre parceiros e inovação em arranjos produtivos locais. Em 2003, a expectativa do corpo técnico do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), responsável pela secretaria técnica do fundo, é de que o Verde-Amarelo amplie suas linhas de ações, articulando, por exemplo, tecnologia industrial básica com arranjos produtivos locais e com a realização de projetos cooperativos de inovação. •
• LNLS ampliará atendimento O Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS) recebeu R$ 2,1 milhões do Fundo de Infra-Estrutura (CT-Infra) para implementar três novos projetos. O primeiro prevê a construção de um dispositivo para aumentar a intensidade do fluxo de ultravioleta em 10 mil vezes, para auxiliar estudos da estrutura de átomos e moléculas em suspensão. O segundo projeto vai aumentar a absorção de raios X utilizados em pesquisa, e o ter-
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sores. Um grupo de estudos do MCT e das universidades analisarão a composição dos laboratórios, antes de fechar convênio com a Unesco e o Ministério da Educação para a execução do projeto. •
• Rezende na Finep, Cury na Capes
Recursos do CT-Infra deverão ampliar a capacidade de atendimento do LN LS em dois anos ceiro estudará a construção de uma linha de luz altamente polarizada. Os três empreendimentos deverão ampliar a capacidade de atendimento do laboratório em 10% nos próximos dois anos. •
• FAPs sob nova direção O historiador Epitácio José Brunet Paes é o novo presidente da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). Na Paraíba, o novo presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado (Fapesq) é João Marques de Carvalho, do departamento de Engenharia Elétrica da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). A Fundação de Amparo à Pesquisa de Sergipe (FAP/SE) será dirigida pelo engenheiro químico Marcos Wandir Nery Lobão. Ele estava à frente da Pró-Reitoria Adjunta de Pós-Graduação e Pesquisa da Universidade Tiradentes (Unit). Já no Maranhão, o governador José Reinaldo Tavares enviou à Assembléia Legislativa um
projeto de reforma administrativa que recria a Fundação de Amparo à Pesquisa e Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Estado (Fapema) e cria a Gerência Estadual de C&T, equivalente à secretaria estadual, além do Conselho de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. A Fapema foi extinta em 1998 e substituída pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Maranhão (Fapem), que permaneceu inoperante por quatro anos. •
• Ciência para o ensino médio O Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) vai firmar convênio com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) para equipar todas as escolas públicas de ensino médio com laboratórios para o estudo da ciência nos próximos quatro anos. O acordo prevê também a adoção de medidas para a formação e capa citação de profes-
O físico Sergio Rezende, da Universidade Federal de Pernambuco, ex-secretário de Ciência e Tecnologia do Estado, que exercia o cargo de secretário do Patrimônio Cultural e C&T de Olinda, vai assumir o comando da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). Carlos Roberto [arnil Cury, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, que integra o Conselho Nacional de Educação desde 1996, assumiu a Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Uma das suas primeiras tarefas será rever o sistema de avaliação dos cursos de pós-graduação. "Já é hora de definirmos quais critérios devem ser mantidos e quais precisam de maior clareza", disse. •
• Um pacto com as universidades O novo secretário de Educação Superior do Ministério da Educação (MEC), Carlos Roberto Antunes dos Santos, assumiu o cargo propondo um acordo com os reitores: "Temos de criar um pacto com os reitores: ver o que as universidades podem fazer pelo Brasil e o que o governo pode fazer pelas universidades". A sua expectativa é que as universidades preencham as vagas ociosas para ampliar os auxílios financeiros e realizar novas contratações de pessoal. • PESQUISA FAPESP 84 • FEVEREIRO DE 2003 • 13
POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA RECURSOS
GENÉTICOS
Fruta disputada Empresa japonesa registra a marca e patenteia processo de produção do cupulate CLAUDIA
IZIQUE
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cupuaçu (Theobromagrandiflorum), uma árvore da mesma família do cacau, cuja semente é fonte de alimento na Amazônia, está no centro de uma polêmica envolvendo organizações não-governamentais (ONGs), produtores do Acre, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Ernbrapa), o Itamaraty e a gigante japonesa Asahi Foods Co Ltd. Tudo começou quando a Amazonlink, uma ONG que apóia produtores locais na comercialização de derivados de cupuaçu, como geléias e bombons, se preparava para fechar um contrato de venda com uma empresa na Alemanha, no final do ano passado. "Já no final dos entendimentos, eles nos disseram que o negócio só se consumaria se o nome cupuaçu não aparecesse no produto, já que a marca cupuaçu estava registrada na União Européia pela Asahi Foods, desde o ano passado", conta Michael F.Schmidleher, presidente da Amazonlink. A mesma empresa japonesa, soube-se posteriormente, tinha igualmente registrado a marca cupuaçu nos Estados Unidos e no Japão. Uma investigação mais apurada revelou que a Asahi Foods também tinha patenteado o método de extração de óleo e gordura da semente e processo de produção do cupulate, uma espécie de chocolate elaborado a partir da fruta, no Japão e União Européia, entre os meses de outubro de 2001 e julho de 2002. Em 1998, o uso do extrato de cupuaçu para a composição de cosméticos já tinha sido registrado pela Body Shop Internacional. A patente da empresa japonesa, no entanto, pode guardar semelhança com outra depositada pela Embrapa, no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), em 1990, relativa ao "Processo de obtenção de cupulate em pó e em tabletes meio amargo com leite brando a partir de sementes de cupuaçu". A história veio a público no início deste ano, levantando suspeitas de que, apesar das medidas de proteção previstas na Medida Provisória n= 2.186 - 16, sobre o
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acesso ao patrimônio genético e o conhecimento tradicional associado,o Brasil segue exposto às ações de biopirataria. "É importante que este caso do cupuaçu chame a atenção para o problema maior da biopirataria', diz a ministra Marina Silva,do Meio Ambiente. O ministério, ela adianta, está encaminhando a criação de um grupo de trabalho interministerial e inter-institucional para analisar o registro de marcas e depósito de patentes do cupuaçu. Esse grupo, ela diz, vai conjugar "esforços e conhecimentos nos campos da pesquisa agronômica e genética, da propriedade intelectual, proteção dos direitos e interessesdifusos e coletivos':assim como da cooperação internacional. A ministra também pretende acelerar a aprovação de medidas de proteção da biodiversidade. Quando senado-
ra, ela foi autora de um projeto de lei regulamentando o acessoao patrimônio genético, já aprovado pelo Senado, em 1998, mas ainda parado na Câmara dos Deputados. "Em 2000, veio a Medida Provisória do governo anterior, motivada pela repercussão negativa do contrato realizado entre a organização social Bioamazônia e uma empresa estrangeira do setor farmacêutico, no primeiro semestre daquele ano", ela conta.
it
0ra, no comando do ministério, Marina Silva tem planos de ampliar a composição do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (Cgen), criado pela Medida Provisória, para incluir representantes de entidades científicas, da sociedade civil, de comunidades indígenas e 10-
cais, para, juntos, propor ao Congresso um encaminhamento para a conversão da Medida Provisória em lei. Outra idéia que está sendo estudada é a de desarquivar os projetos de lei sobre a matéria que ainda estão na Câmara dos Deputados, produzir um substitutivo de consenso e submeter a nova versão à aprovação do Congresso. A expectativa, sublinha, é que, ainda este ano, seja possível promulgar uma "verdadeira" Lei de Acesso aos Recursos Genéticos. "Assim,o Brasil terá chances de realmente implementar regras nacionais que controlem o acesso e o aproveitamento econômico de sua megadiversidade", argumenta a ministra. E completa: "Diante dos fatos consumados de patentes, marcas e outras formas de registro e apropriações de nossos recursos e direitos, sempre no âmbito dos governos e das leis de outros países, fica claro que o resgate daquilo que nos é devido somente será possível alcançar por meio de ações coordenadas em escala internacional, seja nos tribunais de países que concederam patentes e marcas sem considerar nossos direitos, seja nas negociações em curso na Organização Mundial de Comércio (OMC), Organização Mundial da Propriedade Intelectual (Ompi), Convenção de Diversidade Biológica e outras instâncias", afirma a ministra. Prudência e cautela - Neste campo de debate, sobre o acesso a recursos genéticos,no entanto, em que concorrem legislações nacionais, internacionais e interpretações diversas, é preciso agilidade para não perder prazos de prescrição - no caso de contestação de registro de marcas ou depósito de patentes -, mas, sobretudo, prudência e cautela. As distinções são sutis. Exemplo disso: a Ompi está sugerindo a utilizaçãodo termo biogrilagem, e não mais biopirataria, para designar atos de apropriação indébita de recursos genéticos e conhecimentos tradicionais (veja entrevista com Nuno Pires de Carvalho, chefe da Seção de Recursos Genéticos, Biotecnologia e Conhecimentos Tradicionais Associados, Ompi, na página 17). Um dos argumentos é que pirataria diz respeito, por definição,
o cupuaçu é importante fonte de renda para produtores do Acre PESQUISA FAPESP 84 • FEVEREIRO DE 2003 • 15
a atos ilegais e nem todos os atos designados por biopirataria são, necessariamente, ilegais. Na falta de uma legislação que restrinja o acesso a recursos genéticos, recolher espécimes de uma planta, levar para o exterior, identificar o componente ativo, sintetizá10 e patenteá-lo não é ilegal. Se existir uma legislação, esses atos podem ser ilegais no país onde a coleta era desautorizada, mas não no país onde a patente foi solicitada.
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bservado com a devida cautela, o registro da patente da Asahi Foods Co Ltd. pode não se caracterizar como um ato de biopirataria ou, de acordo com a nova designação da Ompi, como biogrilagem. A Asahi Foods, no registro da patente, identifica claramente o uso dos frutos utilizados na pesquisa: tratam-se de produtos comprados numa plantação de cupuaçu nos arredores de Manaus. Sabe-se que, no primeiro quadrimestre de 2002, o Amazonas exportou 50 toneladas de semente de cupuaçu para o Japão e a expectativa é que o Japão importe cerca de 200 toneladas neste ano. Resta saber se o processo de extração do óleo e gordura para a produção de cupulate, reivindicado pela empresa, é novo. E é isso que a Embrapa quer saber antes de contestar ou não a patente. Registro de marca - O problema, pelo menos aparentemente, pode estar no registro da palavra cupuaçu como marca para designar produtos derivados dessa fruta, que vai contra o requisito da registrabilidade de marcas, que é a sua capacidade distintiva. "Seria a mesma coisa que registrar as palavras laranja, mamão ou banana", exemplifica Nuno Carvalho, da Ompi. O Itamaraty pretende mobilizar suas embaixadas nos países cobertos pelo registro da marca para obter mais informações sobre o caso e avaliar se o registro da marca poderá comprometer as exportações brasileiras. O cupuaçu é uma importante fonte de renda para pequenos produtores no Acre. Apenas a Reflorestamento Econômico, Consorciado e Adensado (Reca), 16 • FEVEREIRO DE 2003 • PESQUISA FAPESP 84
Estados Unidos a patente de uma composição cosmética e farmacêutica à base de andiroba (Carapa guianensis), árvore cujas sementes têm propriedades insetífugas e medicinais. A japonesa Morita Masaru também já patenteou no Japão um agente repelente para formigas e insetos que utiliza o óleo da fruta de andiroba. E os exemplos se multiplicam: a copaíba (Copaifera sp), conhecida como o antibiótico da mata, tem patente mundial registrada pela Technico- Flor para uso em composição cosmética e alimentar. A Aveda Corp patenteou, nos Estados Unidos, um método de colorir cabelos ou pestana que contém pigmentos e resinas da copaíba. A própria ministra, quando senadora, acompanhou problemas parecidos, como o caso das patentes concedidas ao químico inglês Conrad Gorinsky, na Ministra Marina Silva: plano de ampliar Cgen Europa, Estados e no Canadá, para incluir comunidades indígenas e locais sobre compostos de plantas medicinais usados pelos uapixanas, na região da fronteira entre uma associação de plantadores da região, Roraima e Guiana. Segundo relato de reúne 364 famílias que, no ano passado, produziram 850 toneladas da fruta pesquisadores, ela conta, os uapixae 95 toneladas de semente. ''A maior parnas usam as plantas tipir (Ocotea rodioei) e cunani (Clibadium sylvestre) te das vendas é para São Paulo e'Norparas as mesmas finalidades patenteadeste", conta Hamilton Condak, diretor. das por Gorinsky. O "biopirata', como A polpa da fruta é comercializada no ela o qualifica, descobriu e isolou as mercado por um preço que varia de R$ 2 . a R$ 5, o que tem sido um forte estímoléculas responsáveis pelas aplicações mulo para a ampliação dos pomares e ensinadas há muitas gerações de uapixanas. "No caso do bibiru ou tipir, há para o aparecimento de pequenas emreferência específica quanto ao ato de presas fabricantes de subprodutos do mascar a castanha da árvore do coraçãocupuaçu, como geléias e bombons. verde, como forma elementar de conA Amazonlink, criada em 2001, tracepção. Também são citadas as procomeça a intermediar a venda de subpriedades febrífugas e antiperiódicas das produtos do cupuaçu para o exterior, como foi o caso dos entendimentos frusinfusões feitas com a casca da árvore do coração-verde. Foi para tratar dessas trados com a empresa alemã. Se mancondições que o Gorinsky patenteou tido o registro da marca pela Asahi as moléculas alcalóides que denomiFoods, a alternativa para os produtores brasileiros seria comercializar o produnou de "Rupununines Biologicamente Ativos", em referência explícita ao rio to com outro nome ou correr o risco de pagar multas, sem falar na possibiliRupununi, em cuja região se encontra a planta", explica a ministra. E conclui: dade de perder negócios. ''As tentativas de resgate efetivo dos direitos violados, no entanto, esbarraIgnorância e preconceito - O cupuaçu ram nos preconceitos e ignorância dos não é o único caso com patente suspoderosos e na falta de prioridade por peita no exterior. A Rocher Yves Biolog Vegetales, por exemplo, registrou parte de quem poderia ter sido aliado nesta nova forma de luta social. na França, Japão, União Européia e
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ENTREVISTA:
NUNO CARVALHO
Em defesa da biodiversidade Ompi adota o termo biogrilagem para atos de apropriação do conhecimento tradicional
uno Pires de Carvalho é chefe da Seção de Recursos Genéticos, Biotecnologia e Conhecimentos Tradicionais Associados, da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (Ompi), em Genebra. Em entrevista à revista Pesquisa FAPESP, ele comentou o registro da marca cupuaçu e o depósito da patente sobre processos de extração do óleo e gordura da semente pela Asahi Foods Co Ltd., do Japão, explicou as razões pelas quais a Ompi está substituindo o termo biopirataria por biogrilagem e detalhou as medidas que têm sido adotadas para a proteção da biodiversidade e das comunidades locais.
N
Carvalho: palavra utilizada para identificar um fruto não oferece distinção que justifique o seu registro como marca
• O registro da marca e a paten-
te do processo de produção do óleo e gordura do cupuaçu fora do Brasil pode caracterizar um ato de biopirataria? - Quando se fala em biopirataria ou, mais corretamente, biogrilagem, há que ter dois aspectos em conta: o primeiro é o da alegada apropriação indébita de ativos intangíveis, como símbolos, desenhos, conhecimentos técnicos tradicionais, que pertencem a comunidades indígenas e locais. O segundo é o da ofensa à identidade e aos valores culturais dessas comunidades.
Sem entrar no mérito, parece que o registro da palavra "cupuaçu" como marca para designar produtos alimentícios vai contra o requisito essencial de registrabilidade de marcas, que é o da sua capacidade distintiva. Seria a mesma coisa que registrar as palavras "laranja", "mamão", "banana", etc., para identificar produtos alimentares. Parece óbvio que uma palavra normalmente utilizada para identificar um fruto não oferece suficiente distinguibilidade que justifique o seu regis-
tro como marca para distinguir produtos derivados desse fruto dos que são fabricados pelos concorrentes. É verdade que não existe nenhum tratado internacional estabelecendo critérios de registrabilidade. Apenas o Acordo Trips, em seu Artigo 15.1, se refere à "capacidade distintiva" das marcas registráveis. No entanto, há uma prática internacional nesse sentido. Será, portanto, talvez possível invocar a nulidade desse(s) registro(s) no exterior, desde que observados eventuais prazos de PESQUISA FAPESP 84 • FEVEREIRO DE 2003 • 17
prescrição. No caso da(s) patente(s), a questão toda reside, em primeiro lugar, em saber se é verdade que o processo de produção de óleo e gordura a partir das sementes do cupuaçu é tradicionalmente utilizado por comunidades da Amazônia. Parece que não. Segundo informação contida na patente européia em questão, tradicionalmente apenas se conhecia o uso das sementes para alimentação do gado e como fertilizante. Parece que o processo de extração da gordura das sementes do cupuaçu é bem mais difícil do que o do cacau, e que até recentemente não se sabia como fazê-lo. A Embrapa chegou a solicitar uma patente ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) sobre um "Processo de obtenção de cupulate em pó e em tabletes meio amargo com leite branco a partir de sementes de cupuaçu", em 1990. O pedido ficou parado no INPI, já que, nessa época, a legislação brasileira não permitia o patenteamento de processos de fabricação de produtos alimentares. Foi redepositado em 1996, já, portanto, à luz da nova lei de propriedade industrial. O pedido chegou a ser deferido em 1999, mas foi arquivado em setembro de 2000. Na verdade, haverá que saber se o processo da empresa japonesa é idêntico, em parte ou no todo, ao da Embrapa, ou se apenas modifica aspectos pouco relevantes, sem a inventividade necessária. O segundo passo, e se ficasse comprovado que a invenção japonesa não é nova, e que as patentes poderiam ser contestadas no exterior, seria o de se examinar se valeria a pena contestá-Ias. A mesma questão se levanta quanto à marca. Aqui há dois pontos a levar em consideração: o primeiro é o custo-benefício. Há perdas econômicas para as comunidades amazônicas em razão do registro da marca "cupuaçu" e da obtenção da patente? Se a resposta for sim - e parece que é, sobretudo no que diz respeito à marca -, então as entidades competentes deverão promover a eliminação desses obstáculos à exportação nos países onde os registros de marca e as patentes têm validade. Mas se do ponto de vista econômico não 18 • FEVEREIRO DE 2003 • PESQUISA FAPESP 84
houver interesse em contestar os registros no exterior, ainda assim há que se considerar a segunda dimensão, a da biogrilagem, ou seja, o da ofensa à identidade e aos valores culturais das comunidades amazônicas. A palavra "cupuaçu" e a utilização econômica da planta constituem um elemento de identificação cultural das comunidades amazônicas? O registro da marca e a patente constituem uma ofensa moral a essas comunidades ou apenas um ato de agressão econômica? Cabe talvez às próprias comunidades amazônicas responderem a essas perguntas.
• Por que a Ompi está adotando o termo biogrilagem (biosquatting) em vez de biopirataria (biopiracy)? - O termo biopiracy foi cunhado há alguns anos para designar os atos não autorizados de utilização comercial e de obtenção de direitos de propriedade intelectual- sobretudo de patentesa partir de recursos genéticos e de conhecimentos tradicionais associados. O problema é que essa palavra implica duas noções equivocadas. Em primeiro lugar, a pirataria é, e sempre foi, um ato ilegal. Ora, nem todos os atos designados por biopirataria são necessariamente ilegais. Na falta de uma legislação que restrinja o acesso aos recursos genéticos - e até há alguns anos, antes do advento da Convenção da Divérsida de Biológica, os recursos genéticos eram considerados um patrimônio da humanidade -, os atos de recolher um espécime de uma planta, levá-lo para o exterior, identificar um componente ativo, sintetizá-lo e patenteá-lo não são ilegais. Ou, se existe essa legislação, esses atos podem ser ilegais no país onde foi feita a coleta desautorizada, mas não no país onde a pesquisa foi feita e a patente foi solicitada. A palavra "biopirataria", portanto, está equivocada. O segundo equívoco é de natureza mais particular: a palavra "pirataria", desde o advento do Acordo Trips, aplica-se para designar alguns tipos de infração dos direitos de autor - e só dos direitos de autor. Ora, os atos de biopirataria podem também ocorrer no campo do direito de autor, mas geralmente tocam outras áreas da propriedade intelectual, como as marcas e, sobretudo, as patentes. Por isso, num dos documentos que estão sendo preparados pela Secretaria da Ompi para a próxima reunião do
Comitê Intergovernamental, sugere-se que a qualificação mais apropriada para esses atos seria a de biosquatting, que poderia ser traduzida por biogrilagemo Squatting significa a reivindicação privada de terras que pertencem a outrem ou que são de domínio público. Também designa simplesmente "invasão" ou "ocupação" de propriedade imóvel e não são necessariamente ilegais, pois pode haver lacunas na lei que acabam por "legitimar" a ocu pação privada de terras públicas. A palavra "biogrilagem", portanto, continua sendo de fácil compreensão popular para caracterizar atos de natureza técnica e juridicamente complexa, mas é mais correta do que "biopirataria"
• Empresas e laboratórios estrangeiros já tinham registrado o uso da ayahuasca e do curare, por exemplo. Por que países como o Brasil ficam tão expostos a esse tipo de predação? - O crescente aumento das acusações de biogrilagem deve-se a um conjunto de circunstâncias. Em primeiro lugar, houve avanços tecnológicos no screening em laboratórios de componentes ativos em materiais vivos, o que permite identificar muito mais rapidamente materiais potencialmente úteis para a farmacologia. Isso exige, claro, a necessidade de se obter mais amostras de recursos genéticos nos países em que eles são mais abundantes e diversos. Por isso mesmo, em segundo lugar, por razões puramente geográficas, as regiões tropicais e equatoriais dispõem de enormes mananciais de recursos genéticos e biológicos, os quais podem eventualmente conter componentes para utilização comercial e industrial nas áreas farmacêutica, química, alimentar, etc. Em terceiro lugar, com a Convenção da Diversidade Biológica, houve um despertar internacional para a questão da propriedade e da soberania sobre os recursos genéticos. Até um certo ponto, a questão coloca-se em termos simples: se um país pode decidir o que fazer com o petróleo que jaz em seu subsolo, por que não decidir também o que fazer com os recursos que estão acima do solo? O problema dos recursos genéticos é que a sua importância não está nos recursos em si mesmos, mas na informação genética que eles contêm. Por isso, não se trata de um poder de vender espécimes dos recursos, mas sim o de controlar o
uso que se faz do conhecimento sobre os componentes ativos que se encontram nesses recursos. Por isso a Convenção da Diversidade Biológica fala na partilha dos benefícios resultantes da utilização dos recursos e não propriamente na sua apropriação. E, em quarto lugar, lentamente as comunidades indígenas e tradicionais vão despertando para a necessidade de proteger os seus ativos intangíveis. No entanto, esse potencial só poderá ser disponibilizado quando existir um regime jurídico que formalize a sua titularidade. • Os países desenvolvidos adotam me-
didas de proteção do conhecimento tradicional? - Um dos primeiros países a tomar medidas efetivas para proteger as comunidades indígenas contra ofensas culturais causadas pela comercialização de nomes e insígnias tribais foram os Estados Unidos, onde se criou uma base de dados de símbolos e nomes indígenas, que os examinadores de marcas deverão consultar antes de deferir um pedido de registro. O mesmo se está fazendo na Nova Zelândia. Na área dos recursos genéticos, o Brasil é um país naturalmente sensível às práticas de biogrilagem - afinal, o nome do país é o nome de um recurso genético, o pau-brasil, que foi objeto de um contrato de acesso outorgado pelo rei D. Manuel I a Fernão de Noronha, nos primeiros anos do séc. XVI, como conta Eduardo Bueno, no livro Náufragos, Traficantes e Degredados. O trabalho dos índios, que já conheciam o uso da ár- . vore para extrair o corante, foi utilizado intensamente para cortar e triturar o tronco da árvore. Esse é um exemplo histórico da apropriação indébita de um conhecimento tradicional, e cuja finalidade comercial foi a de concorrer com o corante que ia de Sumatra para as tecelagens do norte da Europa, e que era de melhor qualidade do que o corante brasileiro, mas muito mais caro.
• A biogrilagem se agrava com a ausência de um sistema de proteção legal? - Sem dúvida, o recurso a um mecanismo jurídico efetivo de proteção, tanto no plano nacional quanto no internacional, evitaria muitas das práticas de biogrilagem ou, pelo menos, ajudaria a reprimi-Ias. Num documento preparado para a quarta sessão do Comitê
Intergovernamental, a Ompi identificou quatro razões para a adoção de um regime jurídico de proteção dos conhecimentos tradicionais: a) o exercício de direitos de propriedade intelectual sobre conhecimentos tradicionais permitiria a sua proteção contra atos distorsivos ou ofensivos, mesmo que os seus titulares não tivessem a intenção de cornercializá-los diretamente; b) um sistema claro e efetivo de proteção dos conhecimentos tradicionais aumenta a segurança e a previsibilidade das relações jurídicas, as quais beneficiariam não só as comunidades, mas também a sociedade em geral; elimina-se assim a enorme incerteza e desconfiança que rodeiam naturalmente as relações entre bioprospectores e os titulares dos conhecimentos; c) um sistema formal de proteção permitiria às comunidades registrar e capitalizar os ~eus conhecimentos, de forma a transformá-los em ativos suscetíveis de serem utilizados como base de sustentação a pequenas atividades empresariais, nos campos da agroindústria, do artesanato, etc.; e, finalmente, d) assim como nos últimos anos se assistiu a um avanço da base de proteção das patentes nos setores da indústria farmacêutica e biotecnológica, nos setores da informática e do audiovisual, como meio de evitar barreiras não- tarifárias ao comércio internacional, também se deveria facilitar a exportação de artesanato e de recursos genéticos incorporando conhecimentos tradicionais mediante a sua proteção - a falta dessa proteção no plano internacional representaria também uma barreira não- tarifária à sua exportação.
• E quais são as formas de proteção possíveis? - No que diz respeito ao sistema de proteção dos conhecimentos tradicio-
nais, há duas perspectivas posslvels. Por um lado, existe a chamada proteção "defensiva", ou seja, medidas que são tomadas com vistas única e exclusivamente a evitar que terceiros se apropriem dos conhecimentos tradicionais. Assim, as listas de nomes e de símbolos indígenas com vistas a evitar o registro de marcas, como fizeram os Estados Unidos, são um exemplo. Outro são as bases de dados de conhecimentos tradicionais, como a dos conhecimentos medicinais ayurvédicos, da Índia, estabelecidas de modo a que os examinadores de patentes possam levar em conta os conhecimentos tradicionais já divulgados publicamente e que, portanto, fazem parte do estado da técnica e constituem anterioridade a pedidos de patente. Um terceiro exemplo, o qual está sendo objeto de um estudo técnico por parte da Ompi e que está na origem de uma polêmica internacional, é a possibilidade de se exigir que todos os pedidos de patente relativos a inventos originados ou derivados a partir de recursos genéticos e/ou de conhecimentos tradicionais associados identifiquem a origem dos recursos utilizados, bem como dêem prova de que houve consentimento prévio informado por parte dos detentores desses conhecimentos. A Medida Provisória brasileira que trata do acesso aos recursos genéticos tem um dispositivo nesse sentido. Há dúvidas sobre a compatibilidade desse requisito com alguns tratados internacionais. De outra parte, existe a proteção "positiva", ou seja, a aquisição de direitos proprietários sobre os conhecimentos tradicionais. Há a possibilidade de se utilizar mecanismos pré-existentes de propriedade intelectual: o direito de autor, para algumas expressões dos conhecimentos tradicionais, como as artes folclóricas; as patentes, para algumas invenPESQUISA FAPESP 84 • FEVEREIRO DE 2003 • 19
ções tradicionais; as marcas, para nomes e símbolos; os desenhos industriais, para símbolos, figuras, etc. Sem dúvida, há problemas de ordem jurídica na utilização de alguns desses mecanismos para proteger conhecimentos tradicionais. Há também um outro problema: a propriedade intelectual é geralmente um conceito que as comunidades indígenas e locais não apreendem. Nesse campo, o INPI, sob a direção de José Graça Aranha, teve um papel pioneiro no mundo: pela primeira vez, não só reuniu pajés em São Luís,no Maranhão, para discutir questões de propriedade intelectual, em dezembro de 2001, mas também, em maio de 2002, organizou um curso de propriedade industrial para representantes das comunidades indígenas e seus advogados. Mas ainda há, dentro da proteção "positiva': a possibilidade de desenvolver um sistema de propriedade intelectual especialmente adaptado às características holísticas e informais dos conhecimentos tradicionais: um sistema sui generis. O Brasil tem um esboço de um regime desse tipo, em sua Medida Provisória. Mas países como o Panamá, Peru e Portugal estão bem mais avançados nesse sentido. Há ainda a necessidade de se adotar um tratamento multilateral dos conhecimentos tradicionais. É que, com a globalização dos mercados, a proteção dentro das fronteiras de um país não é suficiente se o produto ou o conhecimento é comercializado em outros países. A propriedade intelectual, préexistente ou sui generis, é territorial, e portanto não ultrapassa as fronteiras de cada país, a não ser que existam acordos internacionais nesse sentido. • Qual o papel da Ompi e quais ações têm sido desenvolvidas para combater a biogrilagem? - O trabalho da Ompi em matéria de conhecimentos tradicionais começou em 1998, depois da eleição do atual diretor-geral, o dr. Karnil Idris, que trouxe para a organização uma nova visão: a utilização da propriedade intelectual para promover o desenvolvimento econômico e social dos países e das comunidades carentes. Uma das iniciativas foi a de que se estudasse quais os setores da sociedade que não haviam ain20 • FEVEREIRO DE 2003 • PESQUISA FAPESP 84
da sido beneficiados com a propriedade intelectual e o que se poderia fazer para que a situação mudasse. Em razão dos debates então mantidos em torno da implementação do Artigo 8(j) da Convenção da Biodiversidade,escolheuse trabalhar com as comunidades indígenas. A Ompi passou por um período de aprendizado, entre 1998 e 2000, no qual organizou duas mesas-redondas, visitou nove regiões do mundo e promoveu quatro consultas regionais, juntamente com a Unesco, sobre a proteção das expressões do folclore. Quando a Ompi se preparava para passar a uma segunda fase, na qual verificaria como é que as comunidades indígenas haviam utilizado os mecanismos da propriedade intelectual para proteger os seus conhecimentos, houve um -debate em torno da proposta de Tratado sobre o Direito de Patentes, adotado em Genebra, em junho de 2000. O debate versou sobre a exigência de informação da origem dos recursos genéticos nos pedidos de patente, que a Colômbia, com o apoio de vários países, incluindo o Brasil, sugeriu que integrasse aquele tratado. Perante o impasse que resultou desse debate, acordou-se estabelecer na Ompi um fórum de discussões sobre as questões envolvendo os recursos genéticos, os conhecimentos tradicionais e o folclore. Em setembro de 2000 as assembléias da Ompi criaram, então, o Comitê Intergovernamental sobre Propriedade Intelectual e os Recursos Genéticos, os Conhecimentos Tradicionais e o Folclore, composto de todos os estados membros da Ompi, mais a Comunidade Européia, várias organizações internacionais e várias organizações não-governamentais. O comitê não
tem competência para interferir nas práticas dos seus estados membros. Seu papel é o de permitir as discussões entre os seus membros sobre os três temas de que ele cuida. • Quais são as linhas de trabalho no que se refere aos recursos genéticos? - Em matéria de recursos genéticos, o comitê trabalha na coleção de cláusulas contratuais relativas ao acesso de recursos genéticos e poderá, eventualmente, vir a discutir recomendações sobre práticas aceitáveis nesse campo. Quanto aos conhecimentos tradicionais, o comitê trabalha no lado defensivo, ou seja, no que respeita às bases de dados. Discutem-se os critérios técnicos para estabelecer essas bases, e sobretudo prepara-se um toolkit, ou uma caixa de ferramentas, contendo conselhos e recomendações em matéria de propriedade intelectual para as partes envolvidas no estabelecimento dessas bases de dados. Quanto ao aspecto positivo, o comitê faz um levantamento das experiências dos países quanto à utilização dos mecanismos tradicionais de propriedade intelectual na proteção dos conhecimentos tradicionais, bem como quanto ao desenvolvimento de mecanismos sui generis. Além disso, a Ompi preparou um estudo sobre os possíveis elementos de um sistema sui generis de proteção dos conhecimentos tradicionais, bem como um outro sobre uma definição operacional de conhecimentos tradicionais. Ao mesmo tempo, intensifica-se a assistência técnica aos países que queiram desenvolver iniciativas e legislação para proteção dos conhecimentos tradicionais e do folclore. Todos os documentos do comitê são disponibilizados no site (http://www. wipo.int/globalissues /igc/ documents/index.html). •
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Pesquisa FAPESP traz, a cada mês, mais de 90 páginas de informações novas sobre a ciência e a tecnologia produzidas nas universidades, institutos de pesquisa e empresas do Brasil. As reportagens que você lê primeiro nesta revista retratam a construção do conhecimento que será fundamental para o desenvolvimento do país. Ler Pesquisa FAPESP é acompanhar essa evolução sem perder nenhum movimento.
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• POLÍTICA
CIENTÍFICA
REVISTAS
E TECNOLÓGICA
CIENTÍFICAS
Acesso livre e gratuito Cientistas fundam editora virtual e planejam lançar dois títulos eletrônicos neste ano
C
om US$ 9 milhões em caixa doados por uma instituição da Califórnia, a Fundação Gordon e Betty Moore, um grupo de renomados cientistas norte-americanos, liderados por Harold Varmus, Prêmio Nobel de Medicina em 1989, anunciou recentemente a criação da Public Library ofScience, ou simplesmente PLoS (www.publiclibraryofscience.org), uma editora científica sem fins lucrativos que pretende lançar títulos eletrônicos, de acesso livre e gratuito via Internet, para competir com as grandes revistas do setor, como Science, Nature e publicações da área médica. Até o final do ano, dois títulos online serão criados, primeiro a PLoS Biology e, em seguida, PLoS Medicine. "Mais tarde, vamos dar início a revistas mais centradas em disciplinas (médicas), como onco-
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logia e biologia do desenvolvimento, e depois a títulos mais especializados', diz Varmos, ex-diretor dos National Institutes of Health (NIH) e hoje presidente do Memorial-Sloan Kettering Cancer Center, em entrevista à revista Pesquisa FAPESP. As seções e o conteúdo das revistas da PLoS seguirão o padrão consagrado pelas grandes publicações científicas e - detalhe importante - todos os artigos aceitos terão de passar pelo tradicional processo de seleção e avaliação por um especialista no tema (peer review). O objetivo da iniciativa é democratizar, de forma rápida e instantânea, informação científica de ponta para todo e qualquer pesquisador, sobretudo os que não têm meios financeiros para custear assinaturas, eletrônicas ou em papel, das grandes revistas. Ao lado do laureado Varmus, estão à frente da montagem
da PLoS os pesquisadores Michael B. Eisen, da Universidade da Califórnia em Berkeley, e Patrick o. Brown, da Universidade de Stanford. Quem publicar na PLoS vai contar com outra vantagem: os direitos autorais dos artigos (copyright) permanecerão em nome dos pesquisadores que o redigiram - e não em poder da revista que os publicou, como normalmente acontece no mundo editorial científico. Embora detentores do copyright sobre seus próprios textos, os autores que publicarem na PLoS não poderão impedir a distribuição de seus artigos por terceiros, desde que o crédito do trabalho seja devidamente respeitado. Nem tudo nas publicações da PLoS será gratuito. A saúde financeira da editora científica criada pelos pesquisadores dependerá, além das novas bolsas e doações que vier a receber, da cobrança de uma taxa de US$ 1 500 por artigo publicado. Varmus e seus colegas querem que os custos de publicação dos artigos na PLoS passem a figurar como mais um item de gastos previstos no orçamento das pesquisas. Nos Estados Unidos, o Howard Hughes Medical Institute já se comprometeu a arcar com as taxas de publicação de seus 350 pesquisadores sempre que seus artigos forem dirigidos para revistas de acesso eletrônico livre, como as da PLoS. Pagar para publicar em periódicos científicos não chega a ser uma novida-
de. Há revistas impressas que já fazem isso. Mas a taxa da PLoS é, convenhamos, salgada, sobretudo para cientistas de países em desenvolvimento. "Esperamos reduzir ou eliminar as taxas para pesquisadores de nações que não podem arcar com os custos de publicação", assegura o Prêmio Nobel de Medicina. "Mas uma análise da literatura científica atual sugere que isso vai ocorrer numa percentagem relativamente pequena dos casos. Não porque vamos ter preconceito contra esses artigos. Mas, sim, porque infelizmente o número de cientistas trabalhando nesses países (pobres) é relativamente pequeno." iabilidade de uma empreitada de tal porte dependerá da adesão de cientistas de peso. Os criadores da editora virtual estão arregimentando pesquisadores de renome para fazer parte do conselho editorial da PLoS. Um desses nomes de primeira linha é o sueco Svante Pãabo, um dos diretores do Instituto Max Planck de Antropologia Evolucionária, em Leipzig, na Alemanha. Sua visão é realista sobre o empreendimento. "Se for capaz de atrair bons artigos para as suas primeiras revistas, a PLoS será, então, capaz de se expandir e se tornar um concorrente real de muitas publicações cuja assinatura hoje é cara", afirma Pããbo, "Não acho que ninguém vai parar de publicar na
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Nature ou Science, mas há espaço para outra revista top." A PLoS não é única iniciativa de democratizar o acesso on-line a informações científicas. Lançada em maio de 2000, a BioMed Central (www.biomedcentral.com), por exemplo, publica cerca de 100 revistas médicas on-line, algumas próprias, outras de terceiros, todas com peer review e de acesso gratuito. Normalmente, a Biomed Central, que faz parte da casa editorial européia Current Science Group, cobra US$ 500 dólares por artigo publicado, mas dá descontos ou isenta da taxa nos casos de pesquisadores sem recursos. Mantida pelo NIH, a PubMed Central (www.pubmedcentral.nih.gov) funciona de forma semelhante, mas mais na linha de uma biblioteca digital de algumas revistas da área de ciências da vida que concordaram em tornar gratuito todo ou uma parte de seu conteúdo. Há outras iniciativas parecidas, inclusive no Brasil, como o SciELO-Scientijic Electronic Library Online (www.scielo.br). O SciELO disponibiliza, sem custo algum, o conteúdo de 93 publicações nacionais, das áreas de humanas, exatas e biológicas. "As iniciativas de livre acesso à informação científica não quebram o sistema (das grandes revistas), mas são um progresso", diz Abel Packer, diretor do Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciência da Saúde (Bireme), um dos criadores do SciELO. • PESQUISA FAPESP 84 • FEVEREIRO DE 2003 • 25
• CIÊNCIA
•
LABORATÓRIO MUNDO
A mais completa visão do céu do Hemisfério Sul Três equipes européias de astrônomos, trabalhando sobre uma mesma constelação, a Fornax, conseguiram a visão mais clara e mais completa do Hemisfério Sul. A imagem ao lado, que resulta da combinação de outras 450 e um tempo total aproximado de 50 horas dos telescópios do Observatório Europeu do Sul (ESO), no Chile, exibe cerca de 100 mil galáxias, milhares de estrelas e centenas de quasares (galáxias em formação), em uma área apenas um pouco maior que a lua cheia. Capazes de fascinar, por causa da visão de conjunto e por mostrar objetos celestes que
• Aquecimento global motiva migrações O impacto do aquecimento global sobre os seres vivos pode ser maior do que se imaginava, de acordo com um estudo publicado na edição de 2 de janeiro da Nature. Os autores desse trabalho, a bióloga Camille Parmesan, da Universidade do Texas, e o economista Gare Yohe, da Universidade de Wesleyan, ambas dos Estados Unidos, chegaram à conclusão de que 95% das migrações de várias espécies podem estar relacionadas com as mudanças climáticas. "Borboletas do norte da Europa chegaram a mudar-se para regiões a mais de 150 quilômetros de distância de seu hábitat devido às alterações de temperatura na estação quente", diz Camille.
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Visão de conjunto: 450 imagens e 100 mil galáxias
Terry Root, ecologista da Universidade de Stanford que participou do levantamento, valendo-se de métodos estatísticos diferentes, concluiu que 80% das espécies que migraram recentemente, de moluscos a mamíferos e de ervas a árvores, procuravam reencontrar as mesmas condições climáticas sob as quais viviam anteriormente. Foram estudadas 99 espécies de animais e plantas do norte dos Estados Unidos e da Europa, a maioria deslocandose, a cada década, para novos ambientes, situados em média 6,1 quilômetros mais distantes ou 6,1 metros mais altos que os anteriores. Os pesquisadores alertam: os efeitos das mudanças climáticas estão agora evidentes e deveriam ser avaliados seriamente. •
26 • FEVEREIRO DE 2003 • PESQUISA FAPESP 84
~ escapam ao olhar dos nãoespecialistas, as imagens obtidas são, para os especialistas, uma base de dados para estudos detalhados a respeito dos processos de evolução das galáxias e do universo. São uma rica fonte de dúvidas, porque ainda não há como explicar, por exemplo, as áreas vazias entre uma galáxia e outra. Encerrado o mapeamento, realizado de janeiro de 1999 a outubro de 2002 sob a coordenação de Christian Wolf, do Instituto Max Planck de Astronomia, e Luiz da Costa, do ESO, começa agora o trabalho de análise desse trecho do céu. •
• Não alimente os pássaros Os norte-americanos gastaram US$ 2,6 bilhões em 2001 com comida para pássaros total duas vezes maior que o destinado a papinhas prontas para bebês e duas vezes e meia superior ao desembol-
Mudanças: efeitos do clima
sado em alimentos para nações carentes (Wall Street [ournal, 27 dezembro). Como entender esse fato? É que boa parte da população dos Estados Unidos está convencida de que, espalhando recipientes com alpistes e grãos ao redor de suas casas, ajuda a salvar a vida de pássaros selvagens. Mas os ornitólogos e biólogos estão preocupados. Dizem que essa prática dissemina doenças entre as aves e as atira nas garras de predadores, como gatos domésticos e gaviões. Além disso, ao aproximar-se em rasantes dos comedouros, milhões de pássaros acabam espatifando-se contra automóveis e vidraças. O pior é que não são apenas as aves que são atraídas pela fartura dos grãos. "As pessoas que gostam de alimentar passari-
nhos são as que mais nos procuram", diz Alan Huot, chefe de um agência de controle de zoonoses, em Connecticut, especializada em livrar residências de invasores como ratos, micos, gambás e até ursos. •
• Mais provas dos benefícios do álcool "Ninguém mais questiona: o papel profiláctico do álcool é indiscutível", sentencia Curtis Ellison, pesquisador da Universidade de Boston, Estados Unidos. "Há centenas de estudos, todos consistentes." Faz pelo menos 30 anos que se publicam pesquisas mostrando que, em alguns casos, como na prevenção às doenças cardíacas, o consumo moderado do álcool pode ser até mesmo indispensável. Ellison mostrou recentemente (New England [ournal of Medicine, 9 de janeiro) esses benefícios: a chance de homens que tomavam uma ou duas doses diárias de vinho, cerveja ou qualquer outra bebida alcoólica sofrerem um ataque cardíaco era de 32 a 37% menor em relação àqueles que nada bebiam. O estudo, fundamentado na análise do estilo de vida de 38.077 pessoas acompanhadas ao longo de 12 anos no Serviço de Saúde Pública de Harvard,
mostrou também que o risco de infarto caiu 22% nos homens que aumentaram em uma dose o consumo de álcool - independentemente da idade, dieta ou histórico familiar. Nesse estudo, observou-se o mesmo efeito para as mulheres. No entanto, há um detalhe importante: as que tomam duas ou mais doses diárias apresentaram 41% de chances de desenvolver câncer de mama em relação às abstêmias. •
• Bactéria cria e usa aminoácido extra Todo ser vivo é feito pelo mesmo 'material: apenas 20 aminoácidos, com os quais são montados os milhares de proteínas que formam todas as partes de qualquer animal ou planta. Esse é o código
genético (cada combinação de três bases do DNA produz um aminoácido diferente), que permanece imutável, aparentemente, há bilhões de anos. Mas por que não haveria 21 aminoácidos essenciais? Em um estudo publicado em 29 de janeiro no [ournal of the American Chemical Society, um grupo do Instituto de Pesquisa Scripps, na Califórnia, Estados Unidos, fez com que a bactéria Escherichia cali produzisse um novo aminoácido - p-aminofenilalanina (pAF) - de fontes simples de carbono. Técnicas de análise mostraram que pAF incorporouse em proteínas, disputando espaço com os outros 20 aminoácidos. A maior novidade é exatamente a biossíntese: a capacidade de a própria bactéria produzir e utilizar um novo aminoácido. •
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Consumo diário: para as mulheres, ainda há riscos
• Genes ajudam a diagnosticar câncer Em um estudo publicado em janeiro no New England [ournal of Medicine, um grupo de pesquisadores liderado por Rene Bernards, do Instituto do Câncer da Holanda, acena com evidências de que é possível prever, pela análise genética das células cancerígenas, se determinados tumores evoluirão ou não para a metástase - disseminação da doença para outras partes do corpo nos casos de câncer de mama. Se for confirmada, a descoberta consagrará também no campo da diagnose os métodos estatísticos recentemente empregados na pesquisa genômica. E ajudará os oncologistas a prescrever tratamentos quimio ou radioterápicos apenas para pacientes que possam beneficiar-se deles. Novos estudos, publicados recentemente, reiteram o potencial da nova técnica no diagnóstico de outros tipos de câncer. Mas esperam-se controvérsias. Os resultados da pesquisa sugerem que existem tumores que, desde as primeiras manifestações, tendem inevitavelmente para a metástase. Durante muitos anos, os especialistas acreditaram que a metástase geralmente é fruto do crescimento de tumores não detectados a tempo. •
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Como selecionar elétrons Prestes a embarcar para o doutorado na Universidade de Uppsala, na Suécia, Carlos Moysés Araújo leva na bagagem dez artigos publicados que assinou em revistas científicas internacionais durante seu mestrado, realizado no Instituto de Física da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Neles, o físico baiano de 27 anos mostra como separar os életrons - partículas atômicas que, como os piões, só giram de um lado ou de outro - e assim permitir um avanço rumo a semicondutores mais potentes e com menor perda de energia que os atuais. Seu trabalho na UFBA indicou que é possível selecionar os elétrons com uma rotação em um sentido ou em outro - ou com spin up ou down, como se diria na lin-
• Menos batata no mar As populações de Lopholatilus villarii, peixe popularmente conhecido como batata e historicamente um dos mais capturados no Sudeste, reduziram-se quase 40% entre 1995 e 1999 no trecho de litoral que vai de Santa Catarina ao norte do Rio de Janeiro. De acordo com estudo feito pelo biólogo Antônio Olinto Ávila da Silva, do Instituto de Pesca de São Paulo, o estoque total de indivíduos da espécie diminuiu de 1,9 milhão de exemplares para 1,2 milhão durante esse período. "Para não colocar a espécie em risco, o esforço de pesca do batata deveria
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Arseneto de gálio: em busca de chips mais potentes
guagem científica - regulando-se a energia inicial e o ângulo com que os elétrons chegam às camadas de silício ou arseneto de gálio, os dois materiais mais adotados atualmente na construção dos semicondutores. Para dar certo, é preciso também construir camadas assimétricas de semicondutores, as
se reduzir a 10% do que se fez em 2 000", diz Ávila da Silva. Pescado com linha de anzol, espinhel de fundo (um conjunto de anzóis) ou até com redes de arrasto, geralmente ao lado de outras espécies com as q uais divide o mesmo hábitat, como o cherne (Epinephelus niveatus) e o namorado, o batata costuma viver em águas frias a uma profundidade na casa
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chamadas heteroestruturas, conforme a receita publicada em junho do ano passado na Physical Review B. Assinado por Araújo e por seus dois co-orientadores, Erasmo Assumpção de Andrada e Silva, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), e Antonio Ferreira da Silva, da UFBA,
dos 300 metros. Os espécimes machos podem medir até 1,2 metro. Considerado menos nobre do que seus vizinhos no mar, o batata é comum ente vendido em restaurantes como se fosse cherne ou namorado, espécies de maior valor comercial e de grande procura pelos comensais. •
Peixe-batata: nos restaurantes, cherne ou namorado
esse trabalho é provavelmente o primeiro a mostrar, teoricamente, como, de acordo com o spin, os elétrons adquirem diferentes faixas de energia, chamadas de minibandas, nas heteroestruturas não-magnéticas, um grupo de materiais que inclui o silício e o arseneto de gálio. Disso tudo podem nascer os chamados filtros de spin, dispositivos capazes de reunir apenas os elétrons que girem, incessantemente, em um mesmo sentido - portanto, com a mesma faixa de energia. O resultado final mais prático desse estudo seriam as correntes elétricas mais puras com que se pretende dotar os circuitos integrados (chips) dos computadores ou dos microondas dos próximos anos. •
• Genes silvestres contra os fungos Deu certo uma etapa crucial da pesquisa que procura fazer com que o amendoim cultivado (Arachis hypogaea) deixe de ser tão suscetível a doenças causadas por fungos, que provocam perdas de até 50% da produção. Alessandra Pereira Fávero, pesquisadora da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, em Brasília, conseguiu selecionar espécies silvestres que carregam genes que conferem resistência a essas doenças, mas que não podem ser cruzadas com as cultivadas por causa do número diferente de cromossomos. A maioria das espécies silvestres tem apenas 20 cromossomos
Perigo na água
Amendoim cultivado: fungos reduzem produção à metade em cada célula (a metade da espécie cultivada), além de produzir um ou dois grãos por fruto (a cultivada fornece até quatro grãos por vagem). Alessandra cruzou espécies silvestres, duas a duas, e obteve híbridos estéreis, com 20 cromossomos. Tratou-os com colchicina, substância que duplica os cromossomos da célula, e tornou as plantas férteis, com 40 cromossomos. Assim, igualou o número de cromossomos dos híbridos entre as espécies silvestres com o da espécie cultivada, condição fundamental para serem cruzadas. Alessandra espera conseguir este ano as primeiras plantas resistentes, resultantes do cruzamento entre os híbridos silvestres e a espécie cultivada. •
• Os riscos do futebol de domingo Atenção, quarentões. Os médicos já preveniam, mas agora é um estudo realizado na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) que alerta: jogar bola apenas uma vez por semana pode fazer mais mal do que bem à saúde. O professor de educação física Roberto Carneiro, autor da pesquisa, registrou a freqüência cardíaca de 32 homens com idade média de 41,8 anos, a maioria sedentários, durante uma partida de 20 minutos de duração. Resultado: 75% deles forçaram tanto o ritmo do coração que se enquadraram no grupo dos que podem desenvolver doenças coronarianas. Outros 12,5% têm chances moderadas. Só os 12,5 restantes é que escaparam de qualquer risco. Durante o teste, houve casos em que a freqüência cardíaca chegou a 182 batimentos por minuto (bpm), com picos de 211 bpm, bem acima do normal. Se quiserem mesmo preservar o lazer, os esportistas de fim de semana deveriam corrigir os hábitos alimentares e praticar outras atividades físicas ao menos duas vezes por semana. Pode ser caminhadas ou natação. Até mesmo dança. •
Há quem não goste de tomar a água que chega às casas de Campos de Goitacazes, norte do Rio de Janeiro. Mesmo depois de tratada nos reservatórios, guarda um gosto estranho - e quem pode comprar água mineral para beber a usa apenas para lavar frutas e verduras. Água mineral, porém, é para poucos. O resultado dessa situação é a propagação de organismos como o Toxoplasma gondii, protozoário causador da toxoplasmose, numa intensidade muito maior em camadas mais pobres da população, de acordo com um estudo coordenado por pesquisadores da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e do Centro de Prevenção e Controle de Doenças (CDC), dos Estados Unidos. Publicado em janeiro na Emerging lnfectious Diseases, do CDC, esse trabalho fundamentou-se na análise do soro sangüíneo de 1.436 moradores da cidade, pertencentes a três classes socioeconômicas - baixa, média e alta. Desse total, 84% dos adultos e crianças do primeiro grupo apresentavam anticorpos contra o Toxoplasma, numa indicação de já terem tido contato com o parasita, encontrado em 63% e 23% das camadas média e alta, respectivamente. É uma taxa de contaminação levemente
maior que a registrada num levantamento prévio, realizado em 1997, quando se verificou que 82% de 74 crianças de escolas públicas de Campos tinham anticorpos contra o T.gondii. A coordenadora do estudo recém-publicado, Lílian Bahia-Oliveira, da
Gato: risco para grávidas Uenf, atribui os resultados ao consumo de água sem filtrar e leite sem ferver, que facilitam a disseminação dos oócitos (céluIas jovens) do parasita. Transmitida por fezes de gatos, hospedeiros definitivos desses protozoários, a toxoplasmose é normalmente inofensiva: de 30% a 50% dos adultos carregam o agente causador sem manifestar sintomas. Mas pode provocar encefali te e complicar o estado de saúde de pessoas com o sistema imune debilitado, além de ser uma das causas de cegueira em recém-nascidos, caso a mãe tenha sido contaminada antes ou durante a gravidez. •
PESQUISA FAPESP 84 • FEVEREIRO DE 2003 • 29
CIÊNCIA
Ataque A.contra Descobertas sobre ação de neurotransmissores ajudam a entender e tratar distúrbios psíquicos freqüentes RICARDO
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ZORZETTO
ubitamente, o coração dispara. Falta ar e sobrevém uma aterradora certeza de que se vai morrer. Meia hora mais tarde, de maneira tão inesperada quanto surgiu, sem nenhum motivo aparente, esse estado de ansiedade extrema desaparece. Após a primeira crise, que geralmente surge entre o final da adolescência e os 40 anos, as certezas e as seguranças se esvaem como se, de um momento a outro, um mundo de tranqüilidade desmoronasse. Assim, a pessoa passa a viver sob a ameaça constante de um outro ataque repentino, sem hora nem local para acontecer. As transformações químicas e biológicas que disparam e, ao mesmo tempo, alimentam essas duas alterações emocionais - a mais amena, a ansiedade, e a mais profunda, a crise de pânico - são agora mais bem compreendidas e poderão ser combatidas de maneira mais eficiente, como resultado dos estudos sobre as substâncias glutamato e óxido nítrico feitos por pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto. 30 • FEVEREIRO DE 2003 • PESQUISA FAPESP 84
A equipe do médico gaúcho Francisco Silveira Guimarães comprovou, em experimentos com ratos e em seres humanos, o envolvimento do glutamato e do óxido nítrico, cujas funções no sistema nervoso central ainda eram pouco conhecidas, nas manifestações de ansiedade, pânico e também em outro distúrbio emocional, a depressão, caracterizada por uma sensação de desânimo e de tristeza profundos e persistentes. Antes, só havia indícios dessa participação, não uma definição do papel específico que desempenham em cada problema. Guimarães verificou pela primeira vez a participação do óxido nítrico na ansiedade, um desequilíbrio que afeta 4% da população adulta brasileira - quase 5 milhões de pessoas no país apresentaram pelo menos um episódio clinicamente identificado de ansiedade, marcado, em um de seus sinais mais flagrantes, por uma preocupação exagerada e persistente com fatos corriqueiros (será que o dinheiro vai dar até o fim do mês? Será que hoje conseguirei fazer todas as coisas que tenho que fazer?). A equipe de Ribeirão Preto verificou
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que as duas substâncias, atuando em conjunto com outras, acionam os mecanismos que levam ao transtorno do pânico, um distúrbio no qual os indivíduos apresentam mais de uma crise por semana. Estima-se que cerca de 1,6% dos brasileiros tenha apresentado transtorno do pânico pelo menos uma vez durante a vida, de acordo com um estudo coordenado por Laura Andrade, do Instituto de Psiquiatria da USP, e publicado em julho de 2002 na Social Psychiatry and Psychiatric Epidemiology. O trabalho mostra também que, por razões ainda não totalmente compreendidas, as mulheres são 2,3 vezes mais propensas que os homens a desenvolver ansiedade e pânico e 1,6 vez mais propensas a ter depressão. Comunicação entre neuromos - No organismo, o glutamato e o óxido nítrico atuam como mensageiros químicos - são os chamados neurotransmissores -, conduzindo informações de uma célula nervosa (neurônio) a outra. É dessa comunicação entre os neurônios que depende todo o funcionamento do organismo, do pensamento e ações conscientes, como os movimentos da mão de quem toca um instrumento, a processosinvoluntários, como a respiração. No sistema nervoso central, formado pelo cérebro e por órgãos agregados, como o tronco encefálico, o cerebelo e a medula espinhal - responsáveis, em conjunto, pela manutenção geral do organismo -, há outros neurotransmissores, a serotonina, a noradrenalina e o ácido gama-aminobutírico (Gaba), mais bem estudados, que também influenciam o funcionamento dos neurônios. A falta ou excesso de qualquer um deles altera o bem-estar emocional. Os resultados dos estudos da USP de Ribeirão Preto facilitam, em primeiro lugar, a compreensão dos mecanismos de ação de alguns medicamentos que aumentam a quantidade de serotonina no sistema nervoso central, uma das estratégias mais adota das atualmente para combater a ansiedade, o pânico e a depressão, os problemas psíquicos mais comuns atualmente. Entre os mais usados está o fármaco fluoxetina, base do famoso Prozac, lançado em 1986,que faz com que esse neurotransmissor permaneça mais tempo em ação antes de se degradar. 32 • FEVEREIRO DE 2003 • PESQUISA FAPESP 84
Resposta imediata: diante do gato, o rato se sente ameaçado e produz mais óxido nítrico
Ao mostrar como e onde o glutamato e o óxido nítrico atuam, o trabalho da equipe de Guímarães abre novas perspectivas de desenvolvimento de outras drogas que, no futuro, poderão ser empregadas em associação com as atuais na terapia da ansiedade e da depressão, que acomete 16% dos brasileiros, de acordo com o estudo de Laura. Remédios que atuem sobre o glutamato ou o óxido nítrico poderiam ainda servir como alternativa aos antidepressivos existentes, que aplacam o problema em algumas semanas. É inegável: proporcionam uma melhor qualidade de vida principalmente quando associados a um acompanhamento psicoterápico de longo prazo, voltado à busca das causas mais profundas desses desequilíbrios e de novas formas de lidar com os problemas do dia-a-dia. Só os remédios não curam definitivamente esses transtornos emocionais, que, na visão de psicanalistas, são problemas típicos das últimas décadas, um período em que prevalecem valores como individualismo, consumismo e uma sucessão vertiginosa de eventos que se sobrepõem, como se cada dia fosse curto demais para as tarefas planejadas. "Há uma tendência de essas alterações emocionais surgirem em socie-
dades mais individualistas, nas quais as pessoas têm menos garantias asseguradas pela cultura e pelos laços sociais': afirma o psiquiatra e psicanalista Mário Eduardo Pereira, diretor do Laboratório de Psicopatologia Fundamental da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). "Conseqüentemente, vivese mais intensamente o desamparo:' nsiedade, pânico e depressão resultariam assim de uma espécie de descompasso entre as mudanças da vida (menos tempo para ver os amigos e mais trabalho, por exernplo) e a capacidade de os seres humanos se adaptarem a elas,numa visão compartilhada por Márcio Giovannetti, presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP).Ana Maria Sigal,psicanalista e professora de psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo, observa diariamente os efeitos do modo de viver contemporâneo. "Nós, psicanalistas, constatamos hoje nos consultórios um aumento considerável de pacientes que se queixam de crises de ansiedade e pânico", diz ela. Embora as causas específicas da ansiedade, do pânico e da depressão ainda não estejam muito bem definidas, mé-
na ou medicamentos semelhantes possam ajudar a resolver também ansiedade, pânico e até mesmo depressão, com a vantagem de não provocar alucinações como outra droga usada apenas experimentalmente, o AP-7, abreviação de ácido 2 amino 7 fosfonoheptanóico. Famílias
dicos e psicólogos concordam: esses distúrbios surgem em conseqüência de uma combinação de três fatores. Em primeiro, entram os estopins biológicos, ou seja, a predisposição genética de sofrer um desses desequilíbrios em algum momento da vida. Seguem-se os fatores emocionais - pessoas mais vulneráveis ou mais sensíveis aos fatos da realidade tendem a ser vítimas mais habituais da ansiedade e da depressão. Por fim, as razões ambientais, a exemplo da dificuldade de adaptação às transformações da sociedade. "Não existe uma causa única para esses problemas emocionais, mas uma integração desses três fatores", afirma a psicóloga Mariângela Gentil Savoia, do Ambulatório de Ansiedade do Instituto de Psiquiatria da USP. ''Apenas um dos fatores, isoladamente, não é suficiente para o distúrbio se manifestar." Num estudo com 43 portadores do transtorno do pânico e outros 29 voluntários saudáveis, Mariângela avaliou o número de situações estressantes que os participantes viveram no ano anterior à primeira crise e constatou: o que variava não era o número de eventos, mas a forma como as pessoas lidavam com eles e o valor que lhes atribuíam. O principal desses fatores foi a perda de
suporte social, mais precisamente, de um parente ou amigo, um ano antes da primeira crise de pânico. "Quem tem pânico apresenta estratégias pouco adaptadas para enfrentar as situações adversas", diz a psicóloga. "Em geral, não tentam resolver o problema, mas o evitam:' Por isso, o uso de medicamentos pode não ser a solução definitiva, mas ajuda o paciente a encarar o tratamento conjunto, com remédios e psicoterapia. corre que para conseguir um remédio que atue de maneira seletiva sobre o glutamato ou o óxido nítrico e cause menos efeitos colaterais ainda serão necessários anos de pesquisa, alerta Guimarães. Mas algumas dessas novas drogas mais seletivas já estão surgindo. Uma delas é a memantina, que parece agir sobre uma molécula à qual o glutamato se liga e, assim, inibir sua atividade. Produzida desde 1989 pelo laboratório alemão Merz, foi reapresentada na Europa em outubro do ano passado com uma nova finalidade: combater o mal de Alzheimer, doença que provoca degeneração do sistema nervoso central e perda de memória. Talvezno futuro a memanti-
superprotetoras
- Mesmo essa droga ideal, que atue sobre o glutamato ou o óxido nítrico, não basta. "De forma isolada, nenhum medicamento resolve o pânico, a ansiedade e as fobias", observa Giovannetti, da SBPSP. "Os remédios ajudam, mas não modificam a essência que gera o problema, porque o homem é um ser biológico, psíquico e social. A existência de cada um de nós não reage apenas a fatores orgânicos", comenta o psicanalista. O psiquiatra Mário Eduardo Pereira chegou a uma conclusão semelhante à de Giovanetti durante o tratamento de portadores de transtorno de pânico na Unicamp. "Em geral, os medicamentos eram úteis para controlar as crises, mas isso era insuficiente para o tratamento clínico desses indivíduos", afirma. "Muitos pacientes tinham medo de começar a usar a droga; outros, quando paravam o tratamento, apresentavam novas crises, que gerava a necessidade do uso continuado do medicamento." Disposto a entender melhor o problema, Pereira embarcou em 1995 para um doutorado em psicanálise na Universidade Paris VII, na França. Ao avaliar, agora sob o ponto de vista da psicanálise, portadores de transtorno de pânico atendidos da universidade entre 1984 e 1995, constatou a predominância de dois grupos distintos: o daqueles provenientes de famílias superprotetoras, que viveram sempre num ambiente seguro, sem nunca ter de fato enfrentado por si mesmos a realidade da falta de garantias da existência;e outro, com características opostas, de membros de famílias que encaravam os fatos do cotidiano como aterradores. "Começamos então PESQUISA FAPESP 84 • FEVEREIRO DE 2003 • 33
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a compreender que, do ponto de vista clínico, o tratamento medicamentoso só faz sentido caso se tenha uma visão mais ampla do indivíduo", comenta Pereira. "É preciso saber como surgem as crises e quais as dimensões simbólicas e pessoais envolvidas em sua vida em conexão com os ataques:'
o gato e a depressão - Tais conclusões se unem na busca de soluções que incluem novos medicamentos e a compreensão dos mecanismos biológicos da ansiedade, do pânico e da depressão. No laboratório de Francisco Guimarães, na USP de Ribeirão Preto, é comum ver técnicos injetando medicamentos diretamente no cérebro dos ratos ou ratos andando em labirintos suspensos ou em gaiolas,frente a frente com gatos. Foram esses alguns recursos de trabalho que permitiram a esse grupo de pesquisa avaliar as alterações no comportamento dos roedores após injeções de glutamato e óxido nítrico em áreas do sistema nervoso central associadas ao medo, como a substância cinzenta periaquedutal dorsal, conjunto de neurônios situado no tronco encefálico, entre o cérebro e a medula espinhal. s primeiras pistas que levaram Guimarães a estudar o glutamato e, posteriormente, o óxido nítrico surgiram na segunda metade dos anos 80. Na época, o pesquisador gaúcho era aluno de doutorado do psiquiatra Antônio Zuardi e do psicofarmacologista Frederico Graeff,que havia demonstrado que a serotonina, quando aplicada diretamente na substância cinzenta periaquedutal, diminuía as respostas de ansiedade diante de situações que despertam o medo. "Faltava saber qual neurotransmissor agia estimulando essa região",explica Guimarães. Um dos candidatos era o glutamato, o principal mensageiro químico estimulante do sistema nervoso central. Richard Bandler, na Austrália, e o próprio Graeff observaram que apenas a injeção do glutamato, sem exposição a uma situação ameaçadora, produzia manifestações que parecem associadas às reações do pânico em humanos. Mas 34 . FEVEREIRO DE 2003 • PESQUISA FAPESP 84
esses indícios eram insuficientes para comprovar que a alteração observada no comportamento dos animais decorria da ação do glutamato. "Ainda não dava para saber se, nas situações que geram ansiedade e pânico, a taxa de glutamato aumentava nessa região do sistema nervoso central': explica o pesquisador. Num estudo em colaboração com Graeff, José Carlos de Aguiar e Antonio de Padua Carobrez, hoje pesquisador da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Guimarães utilizou o AP7, que inibe a ação do glutamato e é empregado há quase 20 anos em testes com animais em laboratório. Eles colocaram os ratinhos em um equipamento chamado labirinto em cruz, uma plataforma em formato de X a 50 centímetros do solo, com dois braços abertos e outros dois protegidos por paredes. Por geralmente terem medo de altura e de espaços abertos, os ratos buscam as partes fechadas, algo semelhante ao que ocorre com alguém que tem medo de altura e é colocado na sacada de um prédio. Constataram que os roedores tratados com AP-7 pareciam ter perdido o medo: saíam das áreas protegidas e visitavam duas vezes mais as regiões abertas do labirinto, em comparação com os ratinhos que receberam apenas uma injeção de água e sal - o resultado confirmava a participação do glutamato como um estimulante da ansiedade: "Se esse neu-
rotransmissor não exercesse um papel fisiológico ativo na ansiedade, os ratinhos teriam se comportado de maneira semelhante, evitando sair para as regiões abertas': afirma Guimarães. "Os ratos tratados perderam o medo e alguns até mesmo chegaram a cair da plataforma", comenta. As provas - Em 1991, o farmacologista
inglês Iohn Garthwaite, da University College, em Londres, sugeriu, num estudo publicado na Trends in Neuroscience, que a ação do glutamato no cérebro poderia ser, em parte, decorrente da produção de óxido nítrico - um gás que, além de atuar como mensageiro químico no sistemanervoso central, funciona como dilatador dos vasos sangüíneos em outras regiões do corpo. No ano seguinte, a equipe de Steven Vincent, da Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá, deu um passo adiante e mapeou de maneira indireta por meio da detecção de uma enzima que produz esse neurotransmissor, a óxido nítrico sintase - as regiões do sistema nervoso central em que esse gás atuava. Ali havia mais uma pista: na substância cinzenta periaquedutal dorsal, a enzima estava presente em grande quantidade - um indício da participação do óxido nítrico nas manifestações de ansiedade e pânico. Com essas informações em mãos, Guimarães e outros dois pesquisadores
Um dos centros do medo: a substância cinzenta periaquedutal (área escura), contendo neurônios (ao lado) que possuem a enzima produtora de óxido nítrico
da USP em Ribeirão, Elaine Del Bel e Gustavo Ballejo, aplicaram na substância cinzenta periaquedutal de ratinhos outros compostos que inibiam a ação da enzima produtora de óxido nítrico. Ao observar que os roedores ficaram menos ansiosos quando colocados no labirinto em cruz, mostraram que o óxido nítrico realmente estimulava as reações de ansiedade e pânico. Para comprovar a influência desse gás neurotransmissor, no entanto, era necessário ver se o oposto também acontecia, ou seja, ao aumentar a quantidade de óxido nítrico na substância cinzenta periaquedutal, induziam-se reações de an- . siedade e pânico. Rúbia Weffort de Oliveira, aluna de doutorado de Guimarães, injetou na periaquedutal de roedores diferentes doses de dois compostos que liberam óxido nítrico - o c\oridrato de 3 morfolinosilnomina e complexo óxido nítrico dietilamina. Em seguida, colocou cada um dos animais isoladamente em uma arena com paredes plásticas de 40 centímetros de altura e constatou: quanto maior a dosagem dos compostos, mais intensa a reação dos ratinhos. Com doses mais elevadas, os ratinhos disparavam a correr em círculos e, num lance de desespero, tentavam - e por vezes conseguiam - escapar da arena. Rúbia constatou também que, se tratasse os ratinhos com azul de metileno, composto com efeito contrário ao dos dois
medicamentos, os animais não apresentavam sinais nem de ansiedade nem de pânico. Nesse trabalho, publicado em 2000 no Brain Research Bulletim, os pesquisadores conseguiram também mapear as áreas excitadas pelo óxido nítrico. Pela detecção de uma proteína presente em maior quantidade apenas nas células nervosas ativas, viram que o aumento do óxido nítrico na região periaquedutal estimulava neurônios não apenas dessa área, mas também em outras porções do sistema nervoso central ligadas ao circuito do medo e da ansiedade, como a amígdala, responsável pela memória de eventos desagradáveis, e o hipotálamo, centro que controla reações neurovegetativas, como a respiração, os batimentos cardíacos e o comportamento de fuga. Faltava, porém, confirmar se eram realmente as situações de estresse que aumentavam a produção da' enzima produtora de óxido nítrico. Ao imobilizar os roedores em gaiolas, em uma situação de estresse severo para o rato, verificaram o aumento do número de neurônios que produziam a tal enzima na região periaquedutal, de acordo com artigo publicado no ano passado na Neuroscience and Biobehavioral Revi-
o PROJETO Neurobiologia de Respostas Comportamentais a Eventos Aversivos MODALIDADE
Projeto temático COORDENADOR FRANCISCO SILVEIRA
GUIMARÃES
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Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto/USP INVESTIMENTO
R$ 278.831,34 e US$ 129.952,32
ews. Esse resultado complementou o trabalho que havia sido recentemente publicado na revista NeuroReport por Silvana Chiavegatto, Cristo foro Scavone e Newton Canteras, do Instituto de Ciências Médicas da USP, mostrando que a exposição dos ratos a um gato aumentava a produção de óxido nítrico nessa região do sistema nervoso central. Choques e fuga - Em paralelo a esses experimentos, Guimarães investigou se o glutamato, o principal neurotransmissor estimulante do sistema nervoso central, poderia influenciar o aparecimento de uma alteração emocional com características praticamente opostas às da ansiedade, a depressão. A suspeita era que, de modo semelhante ao que ocorre na região periaquedutalem que a serotonina e o glutamato têm funções contrárias (o primeiro inibe os circuitos do medo e da ansiedade, ao passo que o segundo estimula) -, o mesmo se verificasse no hipocampo, área cerebral ligada à memória de eventos desagradáveis, que provocam estresse e a conseqüente paralisação do animal. Em outro experimento, os ratos recebiam choques elétricos nas patas e, no dia seguinte, primeiro ouviam um sinal sonoro e depois sentiam o choque, de modo que existisse a possibilidade de fuga. Como normalmente o estresse aumenta a taxa de glutamato no hipocampo, os animais não saíam do lugar. Cláudia Padovan, aluna de doutorado, verificou que os ratos aprendiam a fugir após a aplicação no hipocampo de uma substância que inibe a ação do glutamato. Sâmia [oca, outra aluna de doutorado de Guimarães, constatou efeitos semelhantes ao do inibido r de glutamato ao injetar nos animais o medicamento zimelidina, semelhante à fluoxetina, que aumenta a quantidade de serotonina no sistema nervoso central. "No hipocampo, a serotonina parece atenuar o impacto emocional dos eventos estressantes, facilitando a adaptação ao estresse e combatendo a depressão, enquanto o glutamato teria efeito oposto", diz Guimarães. Seu plano é partir agora para estudos mais refinados e avaliar a ação do óxido nítrico e do glutamato em outras regiões do sistema nervoso associadas ao pânico e à ansiedade. • PESQUISA FAPESP 84 • FEVEREIRO DE 2003 • 35
• CIÊNCIA
MEDICINA
e esa
modulada
Avanços contra a leishmaniose envolvem controle da resposta imunológica e do inseto transmissor
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al atravessam a pele e penetram em nosso corpo, microrganismos estranhos deparam com proteínas que circulam pelo sangue e funcionam como uma espécie de radar. Esse contato - tal qual uma fileira de dominó que tomba - ativa, em seqüência, outras 30 proteínas e põe o sistema de defesa do organismo em ação. Células com funções específicas chegam ao local da invasão e iniciam o combate gerando uma inflamação. Quanto mais intensa essa resposta, mais eficiente e rapidamente o inimigo é 'eliminado. Mas essa reação, em geral benéfica, torna-se nociva quando exagerada porque, além de destruir o invasor, danifica os tecidos do próprio corpo. É exatamente a hiperatividade desse mecanismo a causa das lesões na pele e nas mucosas características das formas mais comuns da leishmaniose tegumentar, doença tropical que ocorre em 88 países, provocada pelo protozoário (parasita de uma única célula) Leish-
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mania brasiliensis. A partir dessa constatação, a que chegou em 1997, após mais de dez anos de pesquisa, a equipe do médico Edgar Marcelino de Carvalho Filho, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), propôs alterações no tratamento das duas formas mais comuns da leishmaniose tegumentar (a cutânea e a mucocutânea), que, ao que tudo indica, tornaram a terapia mais barata e eficaz - quase um
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século após o médico escocês William Boog Leishman identificar o causador da doença. As novas formas de tratamento consistem em associar ao uso do composto tradicionalmente empregado - o antimonial pentavalente, que combate o parasita, mas pode cau-' sar dores musculares e alterações nos batimentos cardíacos drogas capazes de controlar o nível de atividade do sistema de defesa. Aplicada de maneira ainda experimental aos casos em que o antimonial não surte o efeito desejado, a terapia vem mostrando bons resultados, conforme mostram estudos recentes da equipe baiana. A esses resultados, acrescenta-se outro achado animador. Uma equipe do Centro de Pesquisas René Rachou, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em Belo Horizonte, identificou uma nova espécie de verme ainda sem nome - capaz de matar o mosquito transmissor do parasita Leishmania chagasi, protozoário causador de uma forma mais grave da leishmanio-
se: a visceral ou calazar, que afeta o baço e o fígado e pode ser fatal quando não tratada. Se os próximos experimentos e testes em campo forem bem-sucedidos, a contaminação dos insetos com esse verme pode se tornar a primeira forma de controle biológico do transmissor da doença, o Lutzomyia longipalpis, hoje combatido com pesticidas fortes que podem contaminar o ambiente e, em seres humanos, causar danos ao sistema nervoso central.
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Problema urbano - Avaliados em conjunto, os trabalhos das equipes baiana e mineira trazem importantes contribuições para a compreensão e o combate a essa doença, que desde 1980 vem se espalhando por todas as regiões do país, de acordo com a Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Com a devastação de áreas de florestas e a migração da população rural para os centros urbanos, tanto a leishmaniose tegumentar quanto a visceral estão deixando de ser exclusivamente silvestres e atingindo a periferia das médias e grandes cidades. Entre 1980 e 2001, a Funasa registrou 760 mil casos de leishmaniose tegurnentar, que já atinge 41 % dos 5.561 municípios brasileiros, em especial nas regiões Nordeste, Norte e CentroOeste. Nesse período, detectaram-se 47 mil casos da forma visceral, sobretudo em Belo Horizonte, em Minas; Natal, no Rio Grande do Norte; Teresina, no Piauí; Fortaleza, no Ceará; e São Luís, no Maranhão. Embora a doença não tenha chegado à cidade de São Paulo, sua incidência no Estado vem aumentando, desde que os primeiros casos apareceram, na região noroeste, em 1999, segundo o epidemiologista Luiz Iancintho da Silva, superintendente do órgão que controla as endemias no Estado, a Sucen. Em uma faixa que vai de Bauru ao sul do Mato Grosso do Sul, as autoridades sanitárias registraram 98 casos de leishmaniose visceral em humanos (com 11 mortes) entre 1999 e 2002, além de 9,3 mil em cães (5,1 mil apenas em Ara38 • FEVEREIRO DE 2003 • PESQUISA FAPESP 84
çatuba). De acordo com Silva, a Sucen testa o uso de coleiras com inseticida como alternativa à eliminação dos cachorros. Tratamento - Especialista em imunologia de parasitas como a leishmânia, Carvalho, da UFBA, começou a suspeitar de que a causa das lesões da leishmaniose cutânea e mucocutânea fosse . a resposta excessiva do sistema de defesa - e não uma atividade abaixo do normal, como se acreditava - em 1986, ao examinar moradores do vilarejo rural de Corte de Pedra, no município de Presidente Tancredo Neves. Situada 280 quilômetros ao sul de Salvador, essa é uma das regiões com maior número de ocorrências de leishmaniose tegumentar na Bahia. A cada ano, surgem mil casos da forma cutânea - que causa impressionantes feridas na pele em número e tamanhos variados (vão de lesões semelhantes a espinhas a ulcerações) e 30 da mucocutânea - que destrói a mucosa e cartilagens do nariz, da boca e da garganta, podendo, em casos extremos, causar morte por asfixia, Ao comparar a resposta imunológica de pessoas com leishmaniose cutânea com a de portadores da mucocutânea, Carvalho notou algo anormal: no sangue dos indivíduos com a forma
mais branda, a cutânea, os níveis de citocinas (um tipo de proteínas) contra o protozoário eram mais baixos do que no das pessoas com a forma mais agressiva - o oposto do esperado. Era o primeiro sinal de que talvez a resposta imune mais forte fosse a causa das lesões mais graves. É o contrário do que se verifica em uma terceira forma da leishmaniose tegumentar, a difusa, e na leishmaniose visceral, em que o corpo praticamente não produz resposta imunológica contra o protozoário. Outro indício de que os pesquisadores baianos trilhavam o caminho certo surgiria apenas anos mais tarde. Ao examinar portadores da forma eutânea e mucocutânea da doença em Corte de Pedra, a equipe de Carvalho decidiu avaliar amostras de tecido retiradas das lesões, em vez de testar o sangue. Para surpresa de todos, os ferimentos estavam livres dos protozoários. Mas as lesões apresentavam uma quantidade elevada de duas proteínas fundamentais na defesa do organismo: o interferon gama e o fator de necrose tumoralalfa. O interferon gama funciona como um sinalizado r químico e ativa células chamadas macrófagos, que, por sua vez, combatem o protozoário invasor liberando o fator de necrose tumoralalfa. Taxas elevadas de ambas nos feri-
Mais perto das cidades: desmatamento e migração contribuem para a expansão da leishmaniose visceral, transmitida pelo mosquito-palha para seres humanos e cães, que servem de reservatório para o protozoário Leishmania chagasi (ao lado)
mentos indicam que o sistema imune se encontra mais ativado que o normal. uatro anos mais tarde, em 1996, desta vez na cidade de Santo Amaro, a 80 quilômetros ao norte de Salvador, os pesquisadores encontraram indivíduos que haviam sido contaminados pela Leishmania brasiliensis, mas não desenvolveram a doença. Realiza-' ram testes para detectar o nível de fator de necrose tumoral e de interferon gama, produzido por outras células do sistema de defesa. Ao comparar os resultados das pessoas que não apresentavam sintomas da leishmaniose com o de portadores da forma cutânea e da mucocutânea, a equipe notou que quem não tinha as feridas da leishmaniose apresentava uma resposta imune cinco vezes menor que a das pessoas com leishmaniose cutânea e 30 vezes inferior à daqueles com a forma mucocutânea. No primeiro grupo, a atividade do sistema de defesa aumenta temporariamente, mas volta a baixar 30 dias após a infecção, enquanto nos outros dois ela permanece elevada. Com esse resultado, Carvalho derrubava, ao menos no caso da Ieishrnaniose cutânea e mucocutânea, a idéia
de que a ação mais intensa dos mecanismos de combate ao parasita fosse o mais desejável. "Vimos que a resposta imune mais baixa era suficiente para combater o protozoário", comenta o pesquisador, que coordena o setor de imunologia do Hospital Universitário Edgar Santos, da UFBA. A partir daí, o grupo baiano decidiu tentar controlar - ou, como dizem os médicos, modular - essa resposta. No caso da leshimaniose cutânea, conseguiu regular essa resposta adicionando ao tratamento tradicional um composto chamado fator estimulado r de colônias de granulocitos e macrófagos (GM-CSF, na sigla em inglês) - uma proteína que estimula a produção de células de defesa e também é capaz de controlar a resposta imune. Cicatrização mais rápida - Para verificar a eficácia dessa terapia, trataram dez pessoas com a forma cutânea da enfermidade com antimonial mais injeções de GM-CSF nas feridas e dez voluntários com antimonial mais uma solução inócua. Os resultados mostraram que o tratamento alternativo reduziu o tempo médio de cicatrização das lesões de 110 dias para apenas 40 dias, como mostra um trabalho publicado no [ournal of Infectious Diseases de outubro de
1999, realizado com pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade Cornell, dos Estados Unidos. Num estudo semelhante, ainda não concluído, os pesquisadores baianos substituíram as injeções pela aplicação de GM-CSF diretamente sobre os ferimentos na pele. Os dados preliminares indicam novamente que o uso do modulador do sistema imune é mais eficaz. Os ferimentos de sete dos dez indivíduos tratados com antimonial e GM-CSF fecharam em 50 dias, enquanto nesse tempo a cicatrização se deu apenas em uma pessoa que usou o remédio habitual, à base de antimônio. Os resultados pareceram tão bons que a equipe da UFBA partiu para um desafio maior: usar essa terapia em pessoas que continuavam a apresentar as lesões na pele por não responderem ao antimonial - o remédio não funciona em 10% a 15% dos casos de leishmaniose cutânea. Os pesquisadores trataram dez portadores de leishmaniose com antimonial pentavalente junto com a apli- . cação tópica do fator estimulador. Cerca de 60 dias mais tarde nenhum deles apresentava mais os ferimentos. Segundo Carvalho, o resultado surpreendeu tanto, que já vem sendo aplicado, ainda de modo experimental, nos pacientes que resistem ao tratamento convencioPESQUISA FAPESP 84 • FEVEREIRO DE 2003 • 39
Criadouros: depósitos de lixo favorecem proliferação do inseto transmissor da leishmaniose
nal - para se tornar a terapia padrão são necessários mais exames e a aprovação do Ministério da Saúde. Mas há uma vantagem adicional: a associação do GM-CSF reduziu o custo da terapia da leishmaniose cutânea resistente ao antimonial para R$ 300,00. Até recentemente, a alternativa era a droga anfotericina B, que custa R$ 2.500,00 e é mais tóxica, podendo causar insuficiência renal e alterações cardíacas. omo a forma mucocutânea da doença, em que há lesão de mucosas e cartilagens, inviabilizava a aplicação de injeções de GM -CSF, a equipe da UFBA tentou a pentoxifilina, um medicamento usado para tratar complicações da hanseníase que controla a produção do fator de necrose tumoral, proteína que o organismo dessas pessoas produz em excesso para combater o protozoário. Os cientistas trataram dez portadores da forma mucocutânea cujas feridas não haviam sarado com o antimonial. Adicionaram à aplicação desse remédio três doses diárias de pentoxifilina durante um mês e as lesões de 90% deles cicatrizaram em 90 dias, segundo artigo publicado em 2001 no American [ournal oi Tropical Medicine and Hygiene.
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Outro trabalho, em fase de conclusão, aponta que o uso de antimonial e pentoxifilina elimina a falha do tratamento, que é de 42% quando se usa só o primeiro medicamento. Com base nos resultados dessas pesquisas, Carvalho acredita ser possível até mesmo eliminar o emprego do antimonial e tratar a leishmaniose cutânea e mucocutânea apenas com moduladores do .sisterna imune, o que reduziria os efeitos cola ter ais da terapia convencional. "Na grande maioria dos casos, o organismo nunca elimina completamente os parasitas, mas aprende a conviver com uma pequena quantidade deles", afirma Carvalho. Verme - No Centro de Pesquisa René Rachou, da Fiocruz, os biólogos Paulo Pimenta e Nágila Secundino fazem um trabalho complementar: investigam a capacidade de mosquitos transmitirem a leishmânia - e outros parasitas - para seres humanos. Foi ali que, cinco anos atrás, a equipe mineira viu uma aparente seqüência de eventos de má sorte originar uma importante descoberta capaz de auxiliar no combate à forma mais grave - e menos comum - da leishmaniose: a visceral, transmitida no Brasil pelo mosquito-palha (Lutzomyia longipalpis) .
Em 1999, Pimenta e Nágila tentaram, sem sucesso, criar as primeiras colônias de L. longipalpis em laboratório. De três a quatro meses após a captura, realizada na Gruta da Lapinha (em Lagoa Santa, a 35 quilômetros da capital mineira), por algum motivo, os insetos morriam antes que a equipe terminasse os experimentos. Só encontraram a causa da morte dos mosquitos ao dissecá-los e analisá-los ao microscópio: tinham o abdômen repleto de vermes de corpo cilíndrico (nematódeos), com cerca de 1 milímetro de comprimento quando adultos. Era um caso muito raro de contaminação de vermes capazes de matar tlebotomíneos, a família à qual pertence o Lutzomyia longipalpis. A análise da forma e do ciclo de vida do verme permitiu descobrir a ordem a que pertencem (Rhabditida) e à família (Steinernematidae), conforme descrevem os pesquisadores no [ournal oi Invertebrate Pathology de junho de 2002. Atualmente, tentam determinar a espécie do verme que mata o transmissor da leishmaniose visceral por se proliferar no abdômen e impedir que o inseto se alimente adequadamente. A análise dos mosquitos mostrou que, na natureza, apenas 0,5% deles contém o verme. Mas, quando criados em laboratório, a contaminação é mais rápida e metade dos mosquitos apresenta o verme em quatro meses - o nível de infestação atinge toda a colônia após um ano, fato que torna o nematódeo candidato a ser usado no controle biológico do transmissor da leishmaniose visceral. Uma das vantagens, segundo Pimenta, é que o verme parece contaminar apenas os tlebotomíneos. Pimenta e Nágila pretendem agora ver se o verme infecta outras espécies do gênero Lutzomyia, que transmitem a leishmaniose tegumentar, e se os insetos contaminados em laboratório transmitem os vermes a outros mosquitos ao serem soltos na natureza. •
CULT
I, , • CIÊNCIA
FARMACOLOGIA
Pressão sob controle Pesquisadores da USP retiram do cérebro de ratos molécula mais eficaz que a bradicinina no combate à hipertensão
uase meio século depois de um grupo de pesquisadores brasileiros ter descoberto a bradicinina, molécula que se tornou essencial na fabricação dos medicamentos mais adotados atualmente no controle da pressão arterial, outra equipe chegou a resultados que, a princípio, representam um avanço no combate à hipertensão. Um peptídeo (fragmento de proteína) que recebeu o nome de hemopressina pode ser até cem vezes mais potente que a bradicinina na redução da pressão arterial e inspirar uma geração de medicamentos mais eficazes e com menos efeitos colaterais. As drogas hoje empregadas no tratamento da hipertensão apresentam riscos de causar impotência sexual, infarto do miocárdio, alteração do humor e dificuldades de concentração. "Ahemopressina é a neta da bradicinina", diz o coordenador do estudo, o farmacêutico Emer Suavinho Ferro, do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da Universidade de São Paulo (USP), cujos resultados serão publicados no [ournal of Biological Chemistry. Ao criar esse parentesco entre as moléculas, Ferro refere-seàs gerações de pesquisadores que trabalharam sobre esse tema, começando por Maurício Oscar da Rocha e Silva (1910-1983), que em 1948 42 • FEVEREIRO DE 2003 • PESQUISA FAPESP 84
identificou e purificou a bradicinina no veneno da jararaca (Bothrops jararaca) com outro pesquisador do Instituto Biológico de São Paulo, Wilson Teixeira Beraldo (1917-1998). Rocha e Silva orientou o doutorado de Antonio Martins de Camargo, hoje no Instituto Butantan. Descobridor de uma molécula com efeitos anti-hipertensivos, Camargo orientou Ferro. O trabalho de Rocha e Silvaganhou o reforço, nos anos 60, de outro discípulo, Sérgio Henrique Ferreira. Hoje na Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto, Ferreira isolou um princípio ativo capaz de intensificar a resposta à bradicinina, conhecido como Fator Potenciador da Bradicinina (FPB). Não foi fácil convencer os outros cientistas de que a bradicinina teria futuro. Um futuro e tanto, por sinal: estima-se que o captopril, o anti-hipertensivo feito a partir do potenciador da bradicinina, gere no mundo todo um faturamento de US$ 5 bilhões por ano para o laboratório norte-americano Bristol-Myers Squibb, que detém a patente desde que produziu uma versão sintética, em 1977. Formas de ação - Os testes em animais feitos no ICB comprovam a eficácia da hemopressina na redução da pressão arterial, mas ainda há muita pesquisa pela frente até surgirem novos medicamentos a partir desse peptídeo, cujo
nome é a fusão de hemo (em referência à proteína precursora, a hemoglobina) e pressina (em virtude de seu efeito sobre a pressão). Por enquanto, há somente algumas hipóteses sobre o mecanismo de ação dessa molécula, estudada com afinco pela bióloga Vanessa Rioli, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), aluna de doutorado de Ferro. Em linhas gerais, o controle da pressão arterial centra-se na angiotensina I, hormônio produzido na circulação sangüínea. Quando o sangue passa pelos pulmões, a enzima conversora da angiotensina (ECA) transforma a angiotensina I em angiotensina Il, enzima apontada como a maior responsávelpela hipertensão por fazer as artérias estreitarem e estimular a liberação de hormônios que elevam a pressão sangüínea. Os medicamentos contra pressão alta impedem que a ECA quebre a angiotensina I. Desse modo, adiam a produção da angiotensina II e preservam a bradicinina, poderoso vasodilatado r, que aumenta o diâmetro das artérias e assim amplia o espaço para o sangue circular, diminuindo a pressão. Com a hemopressina, as reações se tornam mais complexas. Supõe-se que o peptídeo possa agir diretamente como protagonista dos mecanismos de controle da pressão arterial, talvez promovendo o relaxamento das artérias,
foram usadas como iscas para outros peptídeos do cérebro de ratos - é no cérebro onde há maior diversidade de peptídeos. Depois, os pesquisadores filtraram as moléculas conectadas - complexos de enzima e peptídeo -, deixando de lado as que permaneciam isoladas. Na etapa seguinte, o Laboratório de Espectrometria de Massas do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) seqüenciou 16 peptídeos que apareceram ligados às enzimas. Dos três já sintetizados (os outros 13 ainda aguardam estudos mais aprofundados), dois não eram novidade e foram descartados. O potencial hipotensivo do peptídeo que restou dessa seleção só se tornou claro quando colocado em contato com a enzima conversora de angiotensina, a ECA, que também consegue quebrar a bradicinina. A ECA quebrou o peptídeo até então anônimo 11 vezes mais rápido que a bradicinina e 6,7 vezes mais rápido que a angiotensina I - sinal de que a hemopressina pode realmente atuar de forma indireta, desviando a atenção a si própria.
ou indiretamente, ao desviar a atenção para si, como uma espécie de boi de piranha, interagindo com a ECA e sendo ela própria (a hemopressina) quebrada. A ECA deixaria assim de atuar sobre a bradicinina e a angiotensina I, que estariam livres para manter a pressão estável. A equipe do ICB entrou na trilha que levaria a esses resultados há três anos, quando começaram a estudar o modo pelo qual duas enzimas, a thimet-oligopeptidase e a neurolisina, degradam peptídeos. Inativadas, as duas enzimas
o PROJETO Bases Moleculares e Celulares da Biologia das Peptidases MODALIDADE Linha regular à pesquisa
de auxílio
COORDENADOR EMER SUAVINHO FERRO - ICB/USP
INVESTIMENTO
R$ 509.849,14
Controle - O peptídeo funcionou melhor do que o imaginado nos dois testes por que passou, com ratos anestesiados e não anestesiados. Num trabalho feito com a Unicamp e o Instituto do Coração (Incor) da Faculdade de Medicina da USP, uma dose de hemopressina cem vezes menor que a de bradicinina, aplicada na veia femural esquerda de ratos anestesiados, provocou a mesma queda na pressão arterial. Com ratos não anestesiados, a potência da hemopressina é dez vezes menor que a da bradicinina - indicação de que o sistema nervoso central regula a ação da hemopressina de um modo distinto do verificadocom a outra molécula. "Confirmamos o controle do sistema nervoso central por meio da desativação do nervo vago de animais não anestesiados, que tornou a hemopressina tão potente quanto a bradicinina na redução da pressão arterial", observa o pesquisador. A equipe da USP entrou com pedido de patente da hemopressina, de modo a evitar que uma empresa estrangeira fique com os dividendos da descoberta, como aconteceu com a bradicinina. "Esperamos que a história, desta vez, seja diferente",diz Ferro. • PESQUISA FAPESP 84 • FEVEREIRO DE 2003 • 43
• CIÊNCIA
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ECOLOGIA
a on a Sementes da planta conservam-se por um ano e meio, seis vezes mais do que se pensava MARCOS
PIVETTA
eio milênio após a chegada dos portugueses, uma nova ofensiva sobre o pau-brasil está em curso. Desta vez, os candidatos a conquistadores dessa bela e levemente perfumada árvore nativa da Mata Atlântica são cerca de 20 pesquisadores do Instituto de Botânica de São Paulo, que, auxiliados por colegas de outras instituições paulistas e até do exterior, atacam em várias frentes, há quase dois anos e sem trégua, esse recurso natural intimamente ligado à história do país. Só que, em vez de extrair a brasileína, o corante que emprestava o tom avermelhado às roupas da realeza, ou cortar sua preciosa madeira, como faziam os velhos algozes da árvore, o multifacetado time de, por assim dizer, exploradores contemporâneos (no bom sentido, é claro) da hoje escassa e ainda ameaçada de extinção Caesalpinia échinata persegue fins mais nobres. Por meio de experimentos em fisiologia, bioquímica, anatomia, ecologia, tecnologia e até de pesquisas históricas, o grupo vai, aos poucos, iluminando algumas zonas de sombra que por vezes tornavam - e ainda tornam - obscuro ou pouco preciso o conhecimento científico a respeito do pau-brasil. Dessa forma, surgem mais elementos para balizar o trabalho de conservação das poucas reservas remanescentes da espécie e, quem sabe, auxiliar na promoção de seu reflorestamento ou mesmo de sua exploração sustentável se isso um dia se mostrar viável. "Reunimos competências para estudar a fundo a importância histórica, científica e econômica dessa árvore': afirma Rita de Cássia Figueiredo Ribeiro, do Instituto de Botânica, coordenadora do projeto, que realiza entre 12 e 14 de março em São Paulo um simpósio internacional sobre o pau-brasil. "Muita gente acha que o paubrasil já foi fartamente pesquisado, mas essa impressão é falsa:' Em pouco tempo, menos de dois anos, o projeto ampliou o saber científico sobre o pau-brasil de forma considerável. Por ora, a descoberta mais significativa mostra que as sementes da árvore, conhecidas por serem relativamente frágeis e de difícil preservação no ambiente natural, podem ser conservadas, desde que submetidas a certas condições, por 18 meses, período seis vezes maior do que sustentava a rala literatura científica sobre o tema. Até a publicação dos resultados desse trabalho, que ganhou as páginas da Revista Brasileira de Botânica em d~
minosas, encontramos estômatos nas sementes do paubrasil", afirma a especialista em anatomia vegetal Simone Teixeira de Pádua, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto. Normalmente alojados nas folhas das plantas, onde regulam as trocas gasosas com o ambiente e funcionam como poros, os estômatos raramente ocorrem em sementes.
bro, acreditava-se que as sementes de pau-brasil tinham vida curta: duravam apenas um mês se mantidas em ambiente natural e no máximo 90 dias se guardadas numa câmara fria. Isso equivalia a dizer que, se não fossem plantadas logo, as sementes não germinariam e apodreceriam. O domínio de técnicas mais eficazes de armazenamento de sementes de pau-brasil torna mais fácil a tarefa de quem se dedica a projetos de conservação e reflorestamento dessa árvore.
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guns especialistas chegavam a desconfiar de que as sementes de pau-brasil não toleravam a secagem, o principal método empregado para conservação desse tipo de estrutura reprodutiva. Para as sementes de boa parte das espécies vegetais, reduzir o teor de água de sua massa total a níveis inferiores a 10% é um modo eficaz de lhe garantir longevidade. A dessecação quase paralisa a sua atividade metabólica e reduz a ocorrência de reações prejudiciais, além de diminuir a atuação de microrganismos e insetos danosos. Com o pau-brasil, tal procedimento parecia não provocar efeito protetor semelhante. Parecia. Até que os pesquisadores paulistas mostraram que, com alguns cuidados extras, a secagem também estende a vida útil das sementes de pau-brasil. Eles selecionaram apenas as melhores sementes, mais maduras, e submeteram-nas a um calor de 40 a 50° Celsius (C), que as deixava com umidade pouco superior a 8%, Por fim, estocaramnas num ambiente com temperatura controlada em torno dos 8° C. "Com esses procedimentos, conseguimos aumentar de forma expressiva a sua longevidade", diz Cláudio José Barbedo, também do Instituto de Botânica. "Mas o método só dá resultado com sementes de boa qualidade." Os pesquisadores viram que, seguidos os procedimentos
Sementes e flores: descobertas incentivam projetos de conservação e reflorestamento
descritos, mais de 80% das sementes germinavam se mantidas em ambiente refrigerado por um ano e meio. "Estamos tentando agora entender quais são as alterações metabólicas que fazem essas sementes secas perderam a sua viabilidade num dado momento", afirma Rita. "Há indícios de que isso esteja relacionado a alterações em seus níveis de carboidratos (açúcares) solúveis." Da semente do pau-brasil germinaram outros achados. Os cientistas constataram que o revestimento das sementes de pau-brasil é menos espesso e composto por um tipo de célula diferente da usualmente presente nas sementes leguminosas, família à qual pertence a C. echinata. "No lugar das estruturas celulares que conferem rigidez à cobertura das sementes de legu-
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Fragilidade . Essa peculiaridade anatômica pode ser uma das razões de o paubrasil apresentar sementes mais frágeis e de conservação mais complicada do que outras leguminosas. Um pouco de anatomia comparativa ajuda a entender essa situação. Simone confrontou sementes de pau-brasil e de pau-ferro (Caesalpinia ferrea), uma leguminosa típica. Mais especificamente, analisou a testa das duas sementes, o tegumento que envolve e protege o embrião, chamado popularmente de casca. Conclusão: a testa da semente de pau-ferro apresenta duas camadas de células ricas em lignina, a mesma substância que confere rigidez à madeira, enquanto a do pau-brasil é, literalmente, mais porosa, com estômatos. Não é de se estranhar, portanto, que os dois tipos de estrutura germinativa se comportem de maneira tão distinta quando colocados no ambiente natural. "As sementes de pau-ferro são tão duras e resistentes que podem se conservar na terra, sem germinar, por até dois anos, o que não acontece com as do pau-brasil", comenta Simone. Outras linhas de pesquisa também chegaram a resultados preliminares importantes. O engenheiro agrônomo Marcelo Dornelas, que faz pós-doutoramento na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP, em Piracicaba, estuda a estratégia reprodutiva da espécie e viu que o desenvolvimento das flores na C. echinata se
dá de forma semelhante ao que ocorre em outras leguminosas. "Essedado pode ser útil no manejo das reservas naturais da espécie e de áreas plantadas': acredita Dornelas. Há também trabalhos que buscam compreender as reações da espécie tropical em condições ambientais bastante diversas das dominantes na Mata Atlântica. Nessa linha de investigação, experimentos feitos na cidade de São Paulo e num centro de estudos da Espanha indicam que o pau-brasil parece crescer menos em ambientes com altas taxas de um tipo específico de poluente, o gás ozônio, e se desenvolve melhor em locais com ar puro. "Aparentemente, a espécie é mais afetada pela presença de ozônio do que pelos poluentes primários, como o monóxido de carbono ou dióxido de enxofre", comenta Marisa Domingos, da seção de ecologia do Instituto de Botânica. A primeira pista nesse sentido foi fornecida pelos resultados, ainda preliminares, de um estudo comparativo que há dez meses está em curso na capital paulista.
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Resistência a poluentes - Cerca de 600 plantas de pau-brasil foram expostas em quatro pontos distintos da cidade: Parque do Ibirapuera, Aeroporto de Congonhas, um grande jardim mantido pela Secretaria de Estado do Meio Ambiente às margens do rio Pinheiros (Projeto Pomar) e um viveiro especial (Casa de Vegetação) do próprio Instituto de Botânica. Cada um desses locais foi escolhido em função dos p:oluentes a que estão mais freqüentemente expostos. Em Congonhas, há grande quantidade dos chamados poluentes aéreos primários, gases como o monóxido de carbono e dióxido de enxofre, que são subprodutos diretos da queima de combustíveis. No Ibirapuera, predomina o ozônio, um poluente secundário, que não é emitido diretamente por nenhuma fonte poluidora: formase naturalmente na atmosfera por meio de reações químicas entre moléculas de hidrocarbonetos e de óxidos de nitrogênio, mediadas pela luz solar. No Projeto Pomar, existe um pouco de tudo: poluentes primários e secundários,
A árvore nas cidades: concentração de ozônio limita o crescimento
o insuperável pernambuco Há cerca de 230 anos, o francês François Tourte construiu o primeiro arco de violino com o pernambuco, madeira que juntava uma rara combinação de atributos físicos: rigidez, flexibilidade, densidade, beleza e a capacidade de adquirir e manter, por anos e anos, uma curvatura. Desde então, ninguém descobriu um material, sintético ou natural, melhor que o pernambuco, como o pau-brasil é conhecido no exterior, para fabricar
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mais o efeito nefasto da vizinhança de um rio em agonia. Com temperatura máxima controlada, a 28° C, ar puro e filtrado, a Casa da Vegetação funciona como ponto de controle, como a representação de um local urbano livre de poluição. Embora ainda não tenham chegado à metade do estudo, os pesquisadores já notaram uma tendência: as plantas cultivadas no viveiro com ar puro, onde recebem normalmente a luz solar, crescem mais que as outras, e as expostas ao ambiente com muito ozônio aparentam se desenvolver de forma menos expressiva em relação às de outras localidades. Para ver se o excesso de ozônio pode ser a causa desse retardo no crescimento das mudas do Ibirapuera, um ensaio mais detalhado foi feito na Fundación Centro de Estudios Ambientales del Mediterráneo (Ceam), de Valência. Em câmaras especiais, mudas de pau-brasil permaneceram durante um mês em três ambientes com características distintas: um com ar puro, outro com certa dose de ozônio e um terceiro com uma quantidade ainda maior desse gás. "De forma geral, vimos que, quanto maior era o nível de ozônio na atmosfera, menores eram as taxas de fotossíntese das plantas e a produção de substâncias antiestresse (antioxidantes)', diz Marisa. 48 • FEVEREIRO DE 2003 • PESQUISA FAPESP 84
arcos de violino,viola,violoncelo e contrabaixo. "É possível fazer arcos de altíssimo padrão com outras madeiras, como o ipê, mas os músicos são tradicionalistas e têm preconceito com novos materiais", diz Daniel Romeu Lombardi, 54 anos, arquiteto de for-
mação que, na década de 80, virou arqueteiro, como se denominam os artesãos que esculpem esse complemento fundamental dos instrumentos de corda de uma orquestra. Por mês, de seu ateliê na cidade de São Paulo - na verdade, um cômodo nos fundos de sua casa, no bairro de Perdizes - saem quatro arcos. Os mais caros, que podem custar até R$ 3 mil, são sempre de paubrasil.Issonão quer dizer que qualquer pedaço de Caesalpinia echinata exiba potencial para ganhar as formas
............................ o arqueteiro Lombardi: arcos de até R$ 3 mil
Cidades e cupins - Por que estudar o comportamento de uma árvore típica da Mata Atlântica fora de seu hábitat natural e, ainda por cima, em locais po.luídos! Resposta: para ver se faz sentido estabelecer uma política pública que impulsione o plantio de pau-brasil nas grandes cidades brasileiras, um projeto que, além de seu inegável valor simbólico-histórico, poderia ajudar a embelezar os centros urbanos. Capaz de emprestar ao ar um sutil aroma que lembra o do jasmim, o pau-brasil é, patriotismos à parte, uma bonita árvore ornamental, sobretudo no período em que suas flores amareladas se abrem, entre agosto e novembro, embora alcance dimensões um pouco avantajadas para se incorporar maciçamente ao cenário urbano, podendo chegar a 20 metros de altura. Com uma abordagem igualmente prática, só que voltada para as características físicas e acústicas da madeira de pau-brasil, ensaios laboratoriais conduzidos no Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) começam a fornecer os primeiros indícios de que o lenho aver-
melhado da árvore que outrora dava cor ao mundo pode apresentar boa resistência natural à ação de cupins. A espécie parece ter propriedades semelhantes às do angico-preto (Anadenanthera macrocarpa), árvore que suporta bem o ataque desses insetos (e também de fungos). "Por ora, vimos que o desgaste sofrido pelo pau-brasil, quando em contato com os cupins, limita-se à superfície", relata a bióloga Maria Beatriz Bacellar Monteiro. Ainda no IPT, está sendo feito um estudo sobre as propriedades mecânicas e acústicas do pau-brasil, uma tentativa de entender por que essa madeira é a preferida dos construtores de arcos para instrumentos de corda (violino, viola, violoncelo e contrabaixo), talvez o único uso comercial ainda hoje protagonizado por essa árvore tropical (veja quadro acima). Numa vertente incomum em projetos de botânica, o esforço dos pesquisadores do Instituto de Botânica contempla uma investida sobre a história do pau-brasil e uma revisão de sua distribuição geográfica no território nacional, no passado e no presente - hoje, essa espécie é encontrada naturalmente nos estados de Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro. No ano passado, trabalhando como um misto de historiador
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de um arco de primeira linha. "Pode haver muita diferença de qualidade entre dois pedaços de pau-brasil" assegura Lombardi, que, informalmente, troca informações práticas com Edenise Segala Alves, pesquisadora do Instituto de Botânica de São Paulo que coordena os estudos anatômicos com a madeira que lhe serve de matéria-prima para seu trabalho. "Por isso, às vezes, tenho de descartar alguns pedaços." Com o auxílio de um aparelho italiano, que emite um campo elétrico nas ripas de pau-brasil em estado semibruto destinadas a se transformar em arcos, o arqueteiro mede o que acredita ser o potencial acústico da peça examinada. Quando o resultado do exame é pouco pro-
missor, Lombardi simplesmente descarta a ripa de padrão duvidoso. No Japão, pesquisadores já tentaram transferir alguns compostos químicos do pau-brasil para outras madeiras, na esperança de passar adiante as características acústicas da árvore brasileira. Mas os resultados ainda não são animadores. A natureza está vencendo essa batalha - por enquanto.
Arco de violoncelo: madeira tem propriedades únicas
e taxonomista, o engenheiro agrônomo Yuri Taveres Rocha, do Instituto de Botânica, fez duas grandes viagens. Entre abril e maio, esteve em Portugal, de onde trouxe cópias de cerca de 800 documentos ao certo quanto pau-brasil saiu daqui e datados dos séculos 16 ao 19. Sua prinonde eram exatamente as ocorrências cipal fonte de pesquisa foi o Arquivo naturais da árvore", diz ele. Histórico Ultramarino (AHU), em Lisboa. Ali, Rocha examinou 500 manusIdentidades trocadas - No segundo critos, com o objetivo de fornecer subpériplo, Rocha percorreu 12 cidades sídios para se contar a exploração e comércio do pau-brasil nos séculos 17 " paulistas a bordo de um carro cedido pela Fiat, para realizar um levantamene 18 a partir da análise dos carregamen-to dos principais pontos do Estado tos de navios que partiam do litoral onde foram plantadas mudas de paubrasileiro, sobretudo de Pernambuco, rumo a Portugal. "Até hoje, não se sabe brasil. "Essa informação é fundamental para sabermos como anda a conservação ex situ (fora de seu hábitat natural) PROJETO do pau-brasil em São Paulo", comenta o pesquisador. Algumas constatações: Caesalpinia echinata Lam. em Iperó, no Bosque de Pau-brasil para (peu-brssil): da Semente Conservação Ex Situ, há mais de mil à Madeira, um Modelo para Estudos de Plantas exemplares da árvore, plantados em Arbóreas Tropicais Brasileiras 1999; em Paulínia, no Bosque Brasil 500, existem outros 500 espécimes; na MODALIDADE Fazenda Lageado no câmpus da Unesp, Projeto temático em Botucatu, Rocha deparou com um pau-brasil de 15 metros de altura, com COORDENADORA RITA DE CÁSSIA LEONE FIGUEIREDO prováveis 80 anos de idade. RIBEIRO - Instituto de Botânica O tour paulista também serviu para tentar responder a uma questão que inINVESTIMENTO triga os cientistas e historiadores: a esR$ 400.648,82 e US$ 68.754,88 pécie ocorria de forma espontânea em
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São Paulo? Há relatos de que houve reservas nativas de pau-brasil em IlhabeIa e Ubatuba, mas até hoje não há comprovação científica. Rocha percorreu trilhas do Parque Estadual de Ilhabela, sempre com o mesmo resultado: todas as formações arbóreas que lhe apontaram como pau-brasil eram, na verdade, exemplares de outras espécies, cujos nomes populares oscilam entre o engraçado e o quase obsceno: jacarandá -bico-de-pato (Machaerium sp.), casca-de-barata ou pindaíba (Xylopia brasiliensis), araçá-piranga ou goiabão (Eugenia leitonii) e mamica-deporca (Zanthoxylum rhoifolium). A confusão se devia ao fato de essas árvores terem cascas avermelhadas ou protuberâncias em forma de espinhos (acúleos) no caule ou ramos, características que remetem ao pau-brasil. Apesar de ter sido de fundamental importância para a história e economia do Brasil colonial e até mesmo imperial, sob muitos aspectos, para usar um chavão, o pau-brasil ainda é um ilustre desconhecido. Nas mãos do homem, a trajetória desse recurso natural seguiu quase sempre uma máxima não-escrita: árvore boa era árvore cortada. Durante cerca de 370 anos, entre o início do século 16 e o fim do 19, enquanto a Mata Atlântica ainda teve estoques expressivos dessa árvore tropical e as tinturas artificiais não ganhavam terreno, a C. echinata emprestou seus tons de fogo a roupas, papéis e quadros, além de ser usada na construção civil e naval. Depois disso, foi esquecida ou relegada a um papel superficial nos livros de história. Felizmente, esse cenário começa a mudar com o avanço dos esforços de conservação da espécie, que tomaram impulso, três anos atrás, durante as comemorações dos 500 anos da descoberta do Brasil, e o lançamento de grandes projetos científicos sobre a mais nacional das árvores. • PESQUISA FAPESP 84 • FEVEREIRO DE 2003 • 49
CIÊNCIA
PALEOBOTÂNICA
Quando os pinheiros ,.,., eram anoes Fósseis de araucárias com 220 milhões de anos atestam a transição dessa espécie para árvores de grande porte
MARCOS
PrVETTA
or mais de duas centenas de milhões de anos, a terra abrigou e se encarregou de preservar os vestígios de um ser rudimentar. No final do ano 2000, num golpe de sorte ou por faro de paleontólogo, pesquisadores do Museu de Ciências Naturais da Fundação Zoobotânica e do museu da cidade de Mata, no Rio Grande do Sul, encontraram um afloramento na região de Faxinal do Soturno, próxima à Santa Maria, no centro do Estado, onde havia um fragmento vegetal petrificado, de formato circular e com cerca de 5 centímetros de diâmetro: uma pinha fossilizada. Esse órgão, no qual se produzem as sementes da planta, é exclusivo das coníferas, um dos mais antigos grupos a apresentar porte arbóreo surgido no globo. Num primeiro momento, contudo, essa amostra inicial não despertou grande entusiasmo. Afmal, os arredores de Santa Maria, distante cerca de 200 quilômetros de Porto Alegre, já haviam fornecido fósseis de animais aparentemente mais instigantes, sobretudo de dinossauros primitivos e de pré-mamíferos que se situam entre os mais antigos representantes desses grupos no planeta. Confrontado com os restos desses bichos, a pinha petrificada da velha conífera não parecia ser algo tão promissor. Em meados do ano passado, essa percepção começou a mudar. Uma nova expedição ao sítio paleontológico, desta vez com pessoal da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), resgatou no mesmo nível de sedimentos em que fora achada a
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Uma araucária atual: até 25 vezes mais alta que seus ancestrais
PESQUISA FAPESP 84 • FEVEREIRO DE 2003 • 51
Ramos fósseis: resquícios de uma planta com estimados 2 metros de altura e tronco com 15 a 20 centímetros de diâmetro
pinha - uma camada de 30 centímetros de espessura pertencente à Formação Caturrita, com idades em torno de 220 milhões de anos - mais remanescentes de órgãos de coníferas: ramos, galhos, folhas e caules. Há alguns meses, quando passou a estudar de forma mais detalhada esse conjunto de fósseis vegetais, a especialista em plantas fósseis Tânia Lindner Dutra, da Unisinos, situada na cidade de São Leopoldo, come- . çou a perceber a importância dos achados. "Eles são o mais bem preservado registro fóssilde coníferas já encontrado no Brasil em sedimentos tão antigos", afirma Tânia. "Achar pinhas, troncos e ramos desse grupo de árvores num único afloramento é algo muito difícil de acontecer:' Segundo a pesquisadora, os fragmentos de coníferas resgatados na localidade gaúcha apresentam características encontradas hoje em alguns representantes das modernas araucárias, mas, certamente, pertenceram a espécies agora extintas dessas árvores. Formas conservadas - Mais do que sua avançada idade geológica, estimada entre 220 e 209 milhões de anos, no final do período geológico conhecido como Triássico, os fósseis chamaram a atenção por outro traço: seu estado de conservação é, surpreendentemente, muito 52 • FEVEREIRO DE 2003 • PESQUISA FAPESP 84
bom. Por obra do acaso e da natureza, os sedimentos de origem lacustre e fluvial da camada geológica que abrigava os fósseis vegetais mantiveram com incrível nitidez os contornos e a forma dessas coníferas.
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iferentemente do que costuma ocorrer com fósseis muito antigos, que se tornam achatados pelo peso das camadas geológicas que os aprisionam e preservam, as partes de coníferas encontradas em Faxinal do Soturno mantêm sua tridimensionalidade. Algumas partes, como os ramos, mostram-se recobertos externamente por compostos de ferro, peculiaridade que lhes confere um aspecto inflado. As folhas espiraladas das coníferas fossilizadas da Formação Caturrita são de dois tipos básicos: curtas e quadradas ou alongadas num formato que lembra uma lança. Isso não quer dizer necessariamente que elas tenham pertencido a duas espécies distintas de árvores, visto que os pinheiros, mesmo hoje em dia, podem apresentar padrões diferentes de folhagem de acordo com a idade do ramo ou estágio de seu crescimento. Em Faxinal do Soturno, não foi encontrada nenhuma planta inteira, com
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todos os seus órgãos unidos uns aos outros e, no momento, é impossível precisar quantas coníferas eram formadas pelo conjunto de fósseisvegetais retirados das rochas gaúchas, nem mesmo se todos os órgãos encontrados pertenciam ao mesmo tipo de indivíduo. "Não descobrimos ainda uma árvore completa, que apresentasse conexão orgânica",afirma a pesquisadora da Unisinos. "Mas as partes de coníferas resgatadas provavelmente pertenciam a plantas aparentadas e que viviam numa área muito próxima." Pelo tamanho de seus lenhos, esses exemplares de primitivas araucárias estavam mais para arbustos do que para árvores de grande porte. "Sua altura era de cerca de 2 metros e os troncos tinham entre 15 e 20 centímetros de diâmetro e se parecem anatomicamente com formas primitivas de araucária descobertas na Índia e na Argentina, que viveram entre o final do período Permiano e o Triássico Superior (entre 260 e 200 milhões de anos)", diz Tânia. A largura dos ramos oscila de 2 a 5 centímetros e o comprimento alcança 20 centímetros. São dimensões bastante modestas quando comparadas às das modernas coníferas, entre as quais se destacam as mais elevadas e longevas plantas do planeta. Típicas do Hemisfé-
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rio Norte, as gigantescas sequóias são, por exemplo, as maiores árvores sobre a face da Terra, passando às vezes dos 100 metros de altura. A única espécie de araucária presente no Brasil, o popular pinheiro- brasileiro ou pinheiro-doparaná (Araucaria angustifolia), pode atingir 50 metros de altura e seu tronco exibir até 2 metros de diâmetro. uma á explicação para o flagrante contraste de dimensões entre as coníferas do século 21 e suas formas mais ancestrais. Num movimento mais ou menos semelhante e contemporâneo ao experimentado pelos dinossauros, que, de diminutos répteis, deram origem a criaturas de porte avantajado, as coníferas, entre o final do Triássico e o [urássico, há cerca de 200 milhões de anos, também assumiram proporções gigantescas. Num determinado ponto da História, as coníferas, então vegetais de dimensões discretas, começam a ganhar o porte de árvores, impulsionadas por mudanças climáticas no planeta. "Esses fósseis de araucárias primitivas de Faxinal do Soturno devem ser representantes do último momento em que os grupos de coníferas que hoje apresentam grande porte ainda eram arbustivas", comenta Tânia, que trabalhou com um financiamento de cerca de R$ 15 mil da Unisinos e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Para corroborar essa hipótese, a pesquisadora cita os restos petrificados de grandes troncos de coníferas que, desde 1931,têm sido encontrados na região de Mata e em outras partes do Rio Grande do Sul. Esses fósseis, também relacionados com a família Araucariaceae moderna, já possuíam troncos com cerca de 1 metro de diâmetro. Foram descobertos num nível geológico do Triássico um pouco mais recente do que o do afloramento de Faxinal que forneceu os restos de coníferas arbustivaso"As coníferas de Mata devem ser mais antigas que as de Faxinal", estima a pesquisadora. "É razoável acreditar que o aumento de tamanho das coníferas em várias partes do globo ocorreu durante um intervalo de cerca de 17 milhões de anos." Se essa mudança de tamanho entre as coníferas realmente ocorreu no final do Triássico, como le-
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tremamente quente e seco e todos os continentes estavam unificados numa imensa massa de terra chamada Pangea, cujo centro era praticamente um grande deserto. As coníferas ocorriam próximas às bordas dos continentes, em locais sujeitos à influência marítima, supostamente mais úmidos. Seu auge em termos de vegetação arbórea praticamente coincidiu com o primado dos dinossauros na Terra (entre 220 e 65 milhões de anos atrás). Esse paralelismo com o apogeu dessas míticas criaturas explica, em parte, o grande interesse por conhecer a evolução desse grupo de árvores. "Alguns dinossauros, como os brontossauros, alimentavamse dos ramos das coníferas", diz Tânia. Em razão da deriva progressiva dos continentes, de uma série de alterações climáticas e do surgimento das plantas com flores (angiospermas) - com uma série de vantagens adaptativas, as coníferas (e as gimnospermas) perderam seu primado no planeta. Hoje, a presença desse grupo de árvores - pinheiros, sequóias, cedros, ciprestes, abetos - se restringe às áreas de clima mais temperado, geralmente em locais de altas latitudes ou altitudes.AsAraucariaceae,fav; ~ mília de gimnospermas ~ com a qual os órgãos das ~ c proto-araucárias fossiz -« rlizadas de Faxinaldo Soturno guardam alguma relação, ficaram restritas ao Hemisfério Sul e a três gêneros distintos: Wollemia, Agathis e
r-----~----------------~--~~ Ramo inflado, com uma crosta de óxido de ferro, e a pinha: semelhanças com fósseis da Índia e da Argentina
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Araucaria.
vam a crer as evidências fósseis, o Rio Grande do Sul é o único Estado do Brasil, até o momento, em que se encontraram os sinais dessa transição. Perto do mar· Embora existam registros fósseis que situem o surgimento das primeiras coníferas há cerca de 400 milhões de anos, esse grupo de plantas gimnospermas - caracterizado por ter sementes nuas, não protegidas por um fruto ou flor - só passou a ter importância na flora do planeta bem mais tarde, coincidindo com o desenvolvimento dos grandes dinossauros. É interessante lembrar que, nesse ponto da história da Terra, o mundo era muito diferente do que é hoje. O clima era ex-
Bastante visível no Brasil desde a última glaciação, que começou há 1,5 milhão de anos e terminou há 10 mil anos, a araucária já ocupou uma área próxima a 200 mil quilômetros quadrados. Hoje é encontrada em vastas áreas de clima temperado chuvoso do Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina, com manchas esparsas no sudeste e nordeste de São Paulo, sul de Minas Gerais, sudoeste do Rio de Janeiro e no leste da Província de Misiones (Argentina), que, somadas, não vão além de 4% da área original. O pinheiro mais antigo do Brasil ainda vivo encontra-se no município de Canela, no Rio Grande do Sul. Tem 48 metros de altura e uma idade estimada em 700 anos. • PESQUISA FAPESP 84 • FEVEREIRO DE 2003 ' 53
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I t I 11
IClÊNCIA
BIODIVERSIDADE
magine um litoral em que, de cada dez espécies de animais que vivem no fundo do mar, uma pode ser nova e totalmente desconhecida para a ciência. Uma costa com tal riqueza ainda inexplorada de fauna bentônica, o nome técnico dado a moluscos, crustáceos, vermes e outros seres que habitam o asso alho dos oceanos, existe de verdade e nem fica tão longe assim. É a porção do litoral norte de São Paulo, nos municípios de São Sebastião, Caraguatatuba e Ubatuba, distante cerca de três horas de carro da cidade de São Paulo. Ocultos na areia das praias, incrustados na rocha de costões ou simplesmente escondidos nas profundezas do mar, alguns são bonitos e singulares, outros podem até causar medo, como o verme Diopatra cuprea, da foto ao lado. Provavelmente estavam ali, a um passo de serem descobertos pelo homem, desde tempos imemoriais. Faltava alguém com sorte e disposição para revolver as areias e os costões no momento e lugar certos. Esse alguém são os pesquisadores do projeto temático da FAPESP que visa mapear a biodiversidade da fauna bentônica marinha presente na costa paulista, coordenado por Antonia Cecília Zacagnini Amaral, do Instituto de Biologia (IB) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Depois de realizar extensas coletas entre janeiro de 2001 e dezembro de 2002 em trechos do litoral dessas três cidades, quase sempre em pontos em que ainda não haviam sido alvo de trabalhos exploratórios no passado, os pesquisadores do projeto pararam a parte de campo e foram analisar o que tinham capturado. Até agora, conseguiram contabilizar 535 espécies diferentes, entre as quais algumas de aspecto tão intrigan-
I
PESQUISA FAPESP 84 • FEVEREIRO DE 2003 • 55
te como as colônias avermelhadas de tunicados de Symplegma rubra, seres que parecem pequenas bolhas presas em rochas ou costões, e a serpente-domar, o equinoderma Amphiodia riisei, que pertence ao mesmo grupo taxonômico das estrelas-do-mar. Em meio a esse meio milhar de distintas espécies catalogadas, 52 foram identifica das como novas para a ciência. São seres nunca antes descritos em lugar algum do mundo pela literatura especializada em bentos. Daí a proporção de uma espécie nova de fauna bentônica para cada dez identificadas no litoral norte paulista, a impressionante cifra mencionada no início desta matéria. "E olha que esses números se referem a apenas 30% das amostras coleta das", afirma Cecília. "Os outros 70% estão sendo estudados." Em termos de tamanho, 40 das 52 novas espécies pertencem à chamada meiofauna. São animais que ficam retidos em uma malha de 0,05 milímetro. As outras 12 novas espécies são repre56 . FEVEREIRO DE 2003 • PESQUISA FAPESP 84 ,
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_
sentantes da macrofauna, maior porte.
animais de
Seres rastejantes - Entre as 52 novas espécies, há descobertas interessantes, sobretudo para quem trabalha com taxonomia. Foram capturadas, por exemplo, cinco variedades de D. cuprea, verme anelídeo do mesmo grupo das minhocas que pode chegar a 15 centímetros de comprimento por 8 milímetros de largura e foi identificado pela primeira vez há mais de 200 anos. Cada uma dessas variedades, apesar de muito parecidas, é, na verdade, uma espécie diferente, que será descrita minuciosamente por uma especialista nesse tipo de animal marinho. Para quem não tem olhos treinados e encontra a D. cuprea nas areias das praias, as cinco variedades são consideradas iguais. "O mais impressionante é que essas cinco espécies foram encontradas apenas num trecho do litoral de São Paulo", diz Cecília. "Imagine quantas mais pode ha-
ver em toda a costa brasileira." Felizmente, alguns exemplares desses diversificados seres rastejantes, como a Eunice sebastiani, utilizada como isca para peixes, escaparam dos pescadores, mas não das coletas dos pesquisadores. As novidades do projeto não se restringem à identificação de espécies novas para a ciência. Os trabalhos de campo em praias, costões e no fundo do mar (até a profundidade máxima de 45 metros) em São Sebastião, Caraguatatuba e Ubatuba registraram pela primeira vez na costa brasileira cinco famílias e 28 espécies de bentos marinhos cuja existência nunca havia sido comprovada em solo nacional. Eram espécies que se sabia que existiam no exterior, mas não aqui. Numa linha menos acadêmica e mais aplicada, em que o conhecimento gerado pode ter algum impacto sobre as comunidades locais, a equipe chefiada pela bióloga da Unicamp começou a analisar mais detidamente as variedades de moluscos, crustáceos e ver-
mes marinhos mais abundantes na região. A idéia básica por trás desse esforço para fins mais práticos é entender como e onde vivem essas fartas populações de bentos marinhos e qual é exatamente sua interação com o meio ambiente. Possibilidade de cultivo - Entre as espécies recolhidas com mais freqüência, algumas podem ser de interesse econômico, talvez passíveis de exploração comercial, como os inéditos bancos de Mytella charruana, um tipo de mexilhão (ou sururu no Nordeste), que foram localizados pelos cientistas em pontos do litoral norte. O molusco Tivela mactroides, uma concha acinzentada da qual se extrai um marisco comestível, é outro exemplo de recurso com potencial econômico. "Uma aluna do projeto vai estudar especificamente a biologia dessa espécie para ver se é possível cultivá-Ia de forma industrial", diz Cecília. Outras espécies igualmente abundantes são rotuladas pelos pesqui-
i
sadores como bioindicadoras. Sua ocorrência num local sinaliza algum aspecto das condições ambientais vigentes ali. É o caso da Capitella capitata, presente em grande quantidade na enseada de Caraguatatuba de acordo com as amostras colhidas pelo projeto. De cor avermelhada, esse verme, que pode chegar a poucos centímetros de comprimento, é uma presença típica de
o PROJETO Biodiversidade Bêntica Marinha no Estado de São Paulo MODALIDADE Projeto temático COORDENADORA ANTONIA CECÍLIA ZACAGNINI AMARAL - Unicamp INVESTIMENTO
R$ 2.500.000,00
areias situadas prOlamas a locais em que há despejo de esgoto doméstico. Em costões rochosos, uma espécie exótica, a Isognomon bicolor, provavelmente introduzida no litoral brasileiro por meio da água de lastro de navios, parece estar competindo e ocupando o espaço de espécies nativas, como um dos tipos de mexilhão explorado comercialmente, o Perna perna. Esse fato, segundo a coordenadora do projeto, pode provocar a extinção local do mexilhão, com conseqüências socioeconômicas. Única iniciativa voltada para o estudo da fauna marinha a fazer parte do Biota/FAPESP, programa que efetua um minucioso mapeamento de toda a diversidade de plantas e animais existentes no Estado de São Paulo, o projeto sobre bentos também conta com a participação de pesquisadores de mais duas universidades paulistas, a Universidade de São Paulo (USP) e a Unesp (Universidade Estadual Paulista), além de colaboradores de outros estados e até do exterior. "Se não havia por aqui especialistas numa determinada espécie, não hesitamos em procurar alguém de fora para nos ajudar", explica Cecília. Para auxiliar o trabalho de outros colegas que venham a estudar a fauna marinha que habita o fundo dos mares, a equipe da pesquisadora prepara um manual de identificação de bentos encontrados no litoral paulista. As fichas descritivas de 110 das mais de 500 espécies catalogadas já estão prontas. • PESQUISA FAPESP 84 • FEVEREIRO DE 2003 • 57
• CIÊNCIA
GEOLOGIA
Dez tremores por dia
Estudo revela a intensa movimentação da crosta da região central do país
i\
ranqüilidade dos vastos planaltos de Goiás e Tocantins é só aparente. Sob a superfície, reina uma inquietação que agora vem à tona. Uma equipe de pesquisadores de São Paulo, Brasília e Minas Gerais constatou que por ali se sucedem, por ano, 30 tremores de baixa intensidade, com magnitude entre 2 e 4, com raríssimos episódios acima desse limite. Considerando os abalos mais amenos, a partir de magnitude zero, ali a terra treme, em média, dez vezes por dia, em episódios de no máximo três segundos. "Sabíamos que havia tremores na região central do Brasil, mas não tantos': observa o coordenador do projeto, o geofísico Iesús Antonio Berrocal Gomez, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da Universidade de São Paulo (USP). Desde os anos 70, detectava-se na região apenas um ou dois tremores por ano como hoje, nem poderiam ser chamados de terremotos, termo reservado para os abalos intensos, capazes de derrubar casas e prédios. É que havia apenas dez sismógrafos - os aparelhos que registram a movimentação da crosta, a camada mais externa da superfície da Terra -, e concentrados ao redor de Brasília e da Serra da Mesa, na região norte de Goiás. Há quatro anos, quan-
58 . FEVEREIRO DE 2003 • PESQUISA FAPESP 84
do começou esse estudo, foram instalados mais dez, cobrindo outros pontos estratégicos, e a real atividade da crosta nessa parte do Brasil começou a emergir. Os resultados ganharam o reforço de uma técnica adotada pela primeira vez no país, a chamada refração sísmica profunda: os pesquisadores provocaram tremores artificiais e sondaram a crosta do coração do Brasil em profundidades de até 40 quilômetros. A incessante agitação subterrânea .não representa motivo de preocupação para as construções ou atividades humanas: na imensa maioria, os tremores são registrados apenas pelos sismógrafos. É importante, porém, por enriquecer com novos detalhes a história re-
o PROJETO Estudos Geofísicos e Modelo Tectônico dos Setores Central e Sudeste da Província Tocantins, Brasil central MODALIDADE
Projeto teli\1ático COORDENADOR JESÚS ANTONIO BERROCAL GOMEZ -
IAG/USP INVESTIMENTO
R$ 423.507,56
e US$1l2.073,90
mota dessa parte do país e por refletir fenômenos de escala planetária ainda em curso, como, provavelmente, em nenhum outro lugar do território nacional. "Os tremores da região central do Brasil são ecos da fragmentação da Pangea", sentencia Berrocal, referindose ao supercontinente formado há cerca de 250 milhões de anos que, ao esfacelar-se, num processo iniciado há 200 milhões de anos, originou as atuais Américas, África, Europa, Ásia e Oceania.
o oceano de Goiás • Berrocal e sua equipe interpretam os tênues abalos da região central do Brasil como uma resposta local ao menos dos movimentos mais próximos de acomodação das placas tectônicas. É o caso do afastamento da África da América do Sul, dois continentes que há 250 milhões estavam unidos e hoje constituem placas distintas e se afastam alguns centímetros a cada ano. Podem ecoar no coração do Brasil, de um modo que os cientistas pretendem detalhar em breve até mesmo os movimentos de acomodação dos blocos rochosos de cujo encontro resultaram os Andes, uma cordilheira relativamente jovem, formada há 150 milhões de anos e com bastante energia para liberar, como atestam os terremotos que ainda assustam colombianos, peruanos, equatorianos e chilenos.
renos mais antigos, já que a cadeia de montanhas foi quase completamente erodida,"
No início da pesquisa,pensou-se que os tremores de hoje derivassem tão-somente da acomodação final de dois crátons (subunidades das placas tectônicas), o Amazônico e o São Francisco,cujo encontro originou a Provínicia Tocantins. Não se descartou inteiramente essa hipótese, que deve ter algum peso, ainda que limitado, mas um detalhe a fez balançar. "A acomodação dos crátons deveria ter terminado há pelo menos 500 milhões de anos", observa Fuck, que começou a estudar a região em 1969. Arco mais jovem - Os tremores artifi-
.--------T\-----~~~~~~~--_,
I-
\ -I'
Com esse trabalho, foi possível dar um salto para épocas ainda mais distantes, de modo que se tornou mais clara a etapa inicial de formação dessa parte do território brasileiro, chamada Província TectônicaTocantins, uma área de 1.100 quilômetros no sentido nortesul, com largura de 400 a 600 quilômetros, que vai do sul do Tocantins até a divisa de Goiás com Minas, de um lado, e o leste de Mato Grosso, de outro. A auscultação da crosta - sim, é esse o termo usado, como se os geólogos ouvissem um coração batendo - confir-
A paz superficial do norte de Goiás, centro da Província Tocantins: movimentação da crosta ecoa fenômenos de escala planetária
mou algo apenas cogitado há alguns anos: entre 1 bilhão e 640 milhões de anos, um oceano de extensões aproximadas ao atual Atlântico ocupava a porção central do futuro território brasileiro. Os blocos de rocha emersos formavam um arquipélago como, atualmente, o do Japão. A paisagem, enfim, já foi bem diferente do que é atualmente, com montanhas como as dos Andes e vulcões ativos. "O que vemos hoje", diz Reinhardt Fuck, geólogo da Universidade de Brasília (UnB), que participa do projeto, "é só a raiz desses ter-
ciais, que ajudam a delimitar o alcance dos movimentos dos blocos rochosos,foram gerados por meio de 21 buracos de 40 a 60 metros de profundidade, preenchidos com até 1.000 quilos de explosivo gelatinoso e distribuídos ao longo de três trajetos com 300 quilômentros cada um. Acompanhadas por meio de 120 sismógrafos distribuídos ao longo das três linhas, as explosões revelaram uma variação de quase 11 quilômetros na espessura da crosta na região, que cresce de oeste para leste. Entre os pontos mais distantes da média de 36 quilômetros de espessura verificada ali, destaca-se São Luís dos Montes Belos, em Goiás, cujos moradores assentam-se sobre uma camada superficial de rochas de 33,7 quilômetros. No outro extremo, encontrou-se a crosta mais reforçada debaixo de Brasília: os habitantes da capital federal vivem sobre 43 quilômetros de rochas da crosta. Os tremores se concentram numa faixa de cerca de 700 quilômetros de extensão, em que a crosta é mais fina, chamada Arco Magmático de Goiás. Sua idade recuou cerca de 1,6 bilhão de anos a partir do estudo da crosta e de datações de rochas. Segundo Fuck, esse trecho da Província Tocantins formouse com o material extraído do manto terrestre e transferido para a crosta continental entre 930 e 640 milhões de anos atrás, em conseqüência da destruição do oceano que separava os crátons Amazônico e São Francisco. "Pensava-se que essa parte da Província Tocantins fosse das mais antigas do Brasil, mas os dados obtidos indicaram que se trata de uma das mais jovens", diz o pesquisador da UnE. • PESQUISA FAPESP 84 • FEVEREIRO DE 2003 • 59
Biblioteca de Revistas Científicas disponível na Internet www.scielo.org
Sei
Notícias Um sucesso visível
• AVICULTURA
Frangos contaminados
A primeira vez que Pesquisa FAPESP - ou melhor, seu embrião, o informativo Notícias FAPESP - falou sobre SciELO, sem se referir a essa sigla que ainda não havia sido criada, foi em novembro de 1996. O que havia então era só o firme propósito e o projeto, definido numa parceria entre a FAPESP e a Bireme (na época, Biblioteca de Referência de Medicina, e hoje, Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde), de tornar visível, acessível internacionalmente, o melhor da produção científica brasileira para integrá-Ia ao acervo mundial de conhecimento científico sistematizado. Implantado em 1997, o projeto avançou a passos tão largos que hoje contabiliza, indexados em sua base de dados, 93 periódicos científicos brasileiros, 1.356 fascículos e 19.815 artigos científicos. Muitos dos periódicos registraram aumento significativo do seu fator de impacto com a visibilidade propiciada pela biblioteca eletrônica. Não bastasse isso, o SciELO caminhou para além das fronteiras nacionais e já colocou em sua base outros 76 periódicos de países da América Latina e Espanha (ver tabela abaixo). Uma minúscula amostra das novas informações científicas que o SciELO agrega a cada mês a sua rede aparecerá, a partir desta edição, em Pesquisa FAPESP impressa e na versão on-line. São mais notícias inéditas que a revista oferece a seus leitores.
A Salmonella enteritidis (SE) "emergiu como um grande problema avícola e de saúde pública no Brasil a partir de 1993': afirmam Edir Nepomuceno da Silva e A. Duarte, do Departamento de Tecnologia de Alimentos da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Universidade Estadual de Campinas (FEA/Unicamp), no artigo Salmonella Enteritidis em Aves: Retrospectiva no Brasil. Segundo os autores, levantamentos realizados em 2001 continuam a mostrar que a SE em materiais avícolas é o principal sorovar responsável pelas infecções humanas. "O uso de vacinas específicas em poedeiras e reprodutoras tem se mostrado uma ferramenta auxiliar no controle de SE. O procedimento mais indicado para o controle de SE na avicultura está na aquisição e produção de lotes livres do agente. As rações e matérias-primas de origem animal parecem não ser tão importantes na perpetuação do problema de SE, porém, os roedores parecem ser reservatórios ambientais importantes de SE em granjas contaminadas", dizem os pesquisadores. www.sciel.tl.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516635X2002000200001
&Ing=pt&nrm=iso&tlng=pt
REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIA AvlCOLA
- VOL. 4 - N° 2
• ZOOLOGIA
Nova cobra
Rede Sei ELO
II
Início
Janeiro 2003
Brasil' Salud Pública"
10
93 7
Chile'
6 5 4 4
34 9
7
10
Cuba' Costa Rica' Espanha' Venezuela'
5
Total
Uma nova espécie de cobra foi identificada na região fronteiriça entre Brasil e Venezuela. Batizada de Micrurus pacaraimae, por ter sido encontrada na localidade de Vila Pacaraima, trata-se de um exemplar de cobra coral que pode ser reconhecida "pelo padrão bicolor dos anéis corporais, os negros sem formarem tríades e cerca de quatro vezes mais estreitos que os vermelhos, pela ausência de tubérculos supra-anais e pela disposição do capuz negro cefálico, unido ao anel nucal preto atrás das parietais', conforme descreveu Celso Morato de Carvalho, do Departamento de Biologia da Universidade Federal de Sergipe e do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia. O trabalho está no artigo Des-
10 8 1695
1 Coleção de periódicos científicos de todas as áreas científicas 2 Coleção de periódicos científicos da área de saúde 3 Coleção de periódicos científicos da área de saúde. Site experimental 4 Coleção de periódicos científicos da área de saúde pública do Brasil, Espanha, México e os periódicos da Organização Pan-americana de Saúde e da Organização Mundial da Saúde 5 Total não considera títulos presentes em mais de um site SciELO
crição de uma nova espécie de Micrurus do Estado de Roraima, Brasil (Serpentes, Elapidae), publicado nos Papéis Avulsos de Zoologia, do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo, título que acaba de entrar
60 . FEVEREIRO DE 2003 • PESQUISA FAPESP 84
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-
on-line
na biblioteca
tadas pelo Instituto e pelo Museu
do SciELO. As cobras
Nacional
de Zoologia
foram
de Pesquisas
da Universidade
cole-
cito Brasileiro.
de São Paulo,
Guarda
de cada uma das raças Puro
(dez animais
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raça Bretã),
às margens
claras no topo da cabeça
de um pequeno
igarapé
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da região.
32° Grupo
Mestiço
e Brasileiro
localizado
no Setor Militar
Os animais
foram
da raça Puro Sangue
PAPÉIS AVULSOS DE ZOOLOGIA
e os da raça Bretã os melhores do clima do Distrito Federal.
- VOL. 42 - N° 8
Urbano
examinados
de Corrida
da
do Dis-
quatro
ve-
sido submetidos
concluíram
104920020008&lng=en&nrm=iso
e do
(dez animais
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Os pesquisadores
de San-
de Hipismo)
de Campanha
trito Federal. exercício.
elo. ph p?seri pt=seUssuetoe&pid=0031-
de Cavalaria
de Artilharia
zes por dia, antes e depois www.seielo.br/sei
adul-
do 1° Regimento
gue de Corrida,
coletada
40 cavalos
observaram
tos (de 4 a 13 anos)
em projetos conjuntos na região realizados entre 1986 e 1991. Segundo Carvalho, a Micrurus pacaraimae tem manchas
Os autores
da Amazônia
a
que os animais
são os mais susceptíveis adaptados
às condições
www.seielo.br/seielo.php?seript=sei_arttext&pid=S1516-3598
• PEDIATRIA
2002000400009&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
Obesidade regional A obesidade
em crianças
e adolescentes
é mais preva-
lente na região Sudeste
do que no Nordeste
conclusão,
M. Abrantes,
de Marcelo
do Brasil. A
• AGRICULTURA
Ioel A. Lamounier
Feijão melhorado
A. Colosimo, está publicada no artigo Prevalência de sobrepeso e obesidade em crianças e adolescentes das regiões Sudeste e Nordeste, agora disponível na SciE-
e Enrico
LO. Os pesquisadores, nas Gerais padrões
da Universidade
(UFMG)
de vida,
utilizaram
realizada
Geografia
e Estatística
das 3.317
crianças
faixas
etárias.
região
para crianças prevalência acima
Federal
de Mi-
da pesquisa
pelo Instituto
sobre
Brasileiro
em 1997. Foram
e 3.943 adolescentes
No Nordeste,
Sudeste,
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(IBGE)
em 8,2% das crianças
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bem
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de obesidade
11,9%
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e adolescentes
de 18 anos não foi estatisticamente
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Entre lactentes, feminino",
entre
Na
"A diferença
a obesidade
concluíram
foi mais prevalente
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de
do
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e de cultivares
pro-
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em
de similarigenética
objetivo
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os autores.
res João Baptista www.seielo.br/se
ie 10. ph p?seript=sei~arttext&pi
d =S0021 -
75572002000400014&lng=pt&nrm=iso&tln,g=pt
Silva Silva
JORNAL DE PEDIATRIA - VOL. 78 - N°
4
da
e Lessandra Rodrigues,
(UFPel),
da Universidade
Irajá Ferreira
Agropecuária
Teixeira,
de Agrobiologia
• ZOOTECNIA
o efeito do estresse
a que estão submetidas
térmico
os cavalos
e do exercício
utilizados
pelo Exér-
cito brasileiro foi o objetivo do estudo de Giane Regina Paludo, Concepta McManus, Renata Queiroz de Meio, Cardoso
e Fabíola
da Faculdade
de Agronomia
Universidade
de Brasília,
Fuck, do Ministério to brasileiro vezes, leiro,
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Peixoto
e Medicina
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de Pesquisa
da Embrapa, Nacional
e Mar-
de Pesquisa
O resultado
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Divergência genética entre cultivares locais e cultivares melhoradas de feijão, para o qual avaliaram a divergência genética de 37 cultivares locais (land races) e 14 cultivares
Granja
do Centro
da Embrapa.
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do Centro
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Cavalos estressados
André
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de Clima Temperado
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PESQUISA AGROPECUÁRIA BRASILEIRA
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te em poder Rio Grande
foi observada maiores:
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de
estuda-
e em 6,6% dos adolescentes.
os índices
- VOL. 31 - N° 3
REVISTA BRASILEIRA DE ZOOTECNIA
Moreira
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no Rio Grande
morfológicos
"variaoriundas
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às
brasi-
aclimatação",
no artigo Efeito do Estresse Térmico e do Exercício sobre Parâmetros Fisiológicos de Cavalos do Exér-
www.seielo.br/seielo
.ph pvscn pt=sei_arttext&pid=SO
100-
204X2002000900011 &Ing=pt&nrm=iso&tlng=pt
escreveram
PESQUISA AGROPECUÁRIA
BRASILEIRA - VOL. 27 - N° 9
PESQUISA FAPESP 84 • FEVEREIRO
DE 2003 • 61
ITECNOLOGIA
Novas luzes sobre o espectro Uma equipe de pesquisadores liderada por Henry Kaptein e Margaret Murname, da Universidade do Colorado, nos Estados Unidos, conseguiu criar, combinando conceitos de radiação eletromagnética e fibra óptica, um feixe de luz ultravioleta extrema (EUV). Ele é semelhante a um feixe de laser, capaz de focar uma região do espectro eletromagnético antes inacessível aos cientistas. O feixe tem uma potência de pico de aproximadamente 1 megawatt e produz ondas de luz em escala nanométrica (milésima parte do milímetro). Produzindo
• Força para célula a combustível Cresce nos Estados Unidos a pressão para que o governo norte-americano invista num programa nacional de células a combustível, equipamentos que funcionam a hidrogênio (puro ou extraído do gás natural, etanol, metanol ou gasolina) que poderão substituir os motores automotivos e os atuais geradores estacionários de energia elétrica com vantagens econômicas e ambientais. Segundo um estudo preparado pela empresa de consultaria Breakthrough Tecnologies Institute e apresentado ao departamento de energia daquele país por dirigentes de 26 empresas que desenvolvem células a combustível, o governo norte-americano deverá
Luz ultravioleta: ferramenta para a nanotecnologia ondas 10 a 100 vezes mais curtas que as ondas visíveis de luz, o aparelho facilitará a vida dos pesquisadores na
investir, nos proximos dez anos, US$ 5,5 bilhões nesse tipo de equipamento. Desse total, US$ 2,5 bilhões devem ser gastos em pesquisa e desenvolvimento. O restante fica destinado às seguintes iniciativas para popularizar as células: demonstrações públicas, frotas piloto, divulgação e suporte ao mercado. Em um outro estudo apresentado nos Estados Unidos, o etanol, o álcool que no Brasil é extraído da cana-de-açúcar, é apontado como o combustível ideal para células a combustível. O documento divulgado pela Associação de Combustíveis Renováveis (Renewable Fue/s Association), ligado à indústria do etanol, relata os benefícios desse combustível, como o de evitar a dependência de importação de petróleo e seus derivados, a al-
62 • FEVEREIRO DE 2003 • PESQUISA FAPESP 84
visualização de partículas e na manipulação de modelos em miniatura em áreas como a microscopia e a na-
ternativa para os produtores de grãos (lá G etanol é produzido principalmente com milho), além de contribuir com o ambiente, diminuindo a poluição do ar. •
• Minitransistor procura espaço Pesquisadores da IBM conseguiram criar o menor transistor do mundo. O aparelho não mede mais que 6 nanômetros (milésima parte do milímetro) de comprimento, o equivalente a um décimo do tamanho dos mais recentes microprocessadores. Embora ainda não tenha sido testado em um sistema eletrônico maior, os pesquisadores da IBM acreditam que o minitransistor pode ajudar a dotar equipamentos de um número cem vezes maior de
notecnologia. "Em dez anos, a luz de laser se expandirá totalmente até a região de raio X do espectro', especula Kapteyn. "A luz será, então, usada nos telescópios mais precisos que possamos imaginar, permitindo, por exemplo, imagens em tempo real da complexa dança ondulatória dos átomos nas reações químicas e farmacêuticas que ainda não foram visualizadas." A pesquisa foi financiada pela Fundação Nacional de Ciência (NSF), agência do governo norte-americano, com apoio do Departamento de Energia. •
transistores, aumentando a complexidade e o desempenho dos produtos eletrônicos (NewScientist, dezembro de 2002). Ainda falta, porém, descobrir um meio de produzir em massa os delicados transistores e neutralizar a interferência causada pelo movimento dos próprios elétrons no dispositivo. •
• Alívio para os olhos e para os bolsos O jovem cientista australiano Saul Griffith, de 27 anos, estudante do Laboratório de Mídia do Massachusetts Institute Technology (MIT), nos Estados Unidos, criou um novo aparelho para fabricar lentes de óculos a baixo custo que será muito útil em países do Terceiro Mundo. A idéia surgiu quando Griffith
embarcou para a Guiana como voluntário em um programa assistencial do Lions Club do Texas. A iniciativa visava à coleta e distribuição de óculos usados para as populações carentes daquele país. Decepcionado com o que viu - coisas como homens usando óculos de gatinho e adolescentes metidos em armações ridículas e desproporcionais -, resolveu dar tratos à bola (MIT News, 17 de dezembro). Desenvolveu um aparelho portátil, do tamanho de uma caixa de sapatos, com um molde programável que esculpe lentes de acrílico no tamanho e na forma prescritos por um oculista. Griffith diz que construiu o aparelho com todo o tipo de quinquilharia que encontrou pela frente. O molde flexível, por exemplo, muda de forma quando se aperta o êmbolo de uma enorme seringa que injeta óleo em um pequeno tubo de borracha. O processo é bem mais barato que o atualmente em uso, que requer um molde particular para cada lente produzida por equipamentos bem mais sofisticados e caros. Apesar de o aparelho ter sido desenvolvido especificamente para produzir essas lentes, o conceito teria outras aplicações, diz Griffith, que imagina que a produção em massa de bonecas poderia ser individualizada, dando a cada uma delas um rosto diferente. A
novidade já rendeu ao inventor um prêmio no valor de US$ 20.000,00 da Harvard Business School e a entrada para o Hall da Fama dos Inventores nos Estados Unidos. •
Escolha de sexo bovino
• Estômago virtual para ver a digestão Na tentativa de entender por que alguns alimentos e medicamentos, quando ingeridos, se decompõem mais rapidamente, enquanto outros fazem esse processo mais lentamente, pesquisadores da área de engenharia mecânica da Feinberg School of Medicine, da Nortem Evanston, Illinois, Estados Unidos, conceberam, em parceria com médicos, um estômago virtual, por meio de imagens fomecidas por um equipamento de ressonância magnética nuclear (RMN). O estômago consegue simular os movimentos gástricos, as contrações a que estão sujeitos os diferentes tecidos, além de possibilitar a verificação da movimentação dos alimentos ingeridos e a decomposição das partículas. Como resultado, já se sabe que os medicamentos em forma de cápsulas são eficazes apenas na parte de baixo do estômago, sendo a densidade das cápsulas fundamental para que se calcule sua velocidade de dissolução. A pesquisa é financiada pela empresa farmacêutica Astra Zeneca. •
Lentes de acrílico são feitas com molde flexível
A HY Biotecnológica, empresa incubada no Tecnorte, parque de alta tecnologia da Fundação Estadual do Norte Fluminense, criou uma técnica que permite determinar o sexo de bovinos antes da inseminação. A imunossexagem utiliza técnicas imunológicas para identificar e selecionar os espermatozóides de interesse para fertilização dos ovócitos. Dessa forma, os produtores podem escolher ter só fêmeas ou machos, dependendo se é para leite ou corte. Outra pesquisa em andamento na empresa é a produção de bovinos pelas técnicas de transferência intrafalopiana de zigotos (Zift), transferência intrafalopiana de gametas (Gift) e recuperação de gametas e transferência folicular (Graft). "Os resultados são ainda incipientes, mas os dados obtidos até o momento têm demonstrado que será possível produzir em torno de cem embriões fêmeas, por ano, a partir de uma única doadora", conta o médico veterinário Marcos Fernando
de Resende Matta. Os métodos utilizados atualmente no Brasil para produção de embriões não conseguem resultar em quantidade e qualidade ao mesmo tempo.
• Centro tecnológico em São Carlos O Science Park, um parque tecnológico com capacidade para abrigar 56 empresas, condomínios empresariais, escola de negócios, além de laboratórios de pesquisa e desenvolvimento e áreas de treinamento, está sendo construído na cidade de São Carlos. O empreendimento ficará instalado em uma área de 164 mil metros quadrados, doada pela prefeitura do município. O aporte financeiro virá de três fontes: a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) entrará com R$ 575 mil; a Secretaria de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, com 650 mil; e o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas, com R$ 108 mil. •
PESQUISA FAPESP 84 • FEVEREIRO
DE 2003 • 63
Testes em alta vibração o Laboratório
de Integração e Testes (LIT) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) possui, desde o final do ano passado, uma câmara acústica reverberante para realizar testes que simulam o ambiente de vibração intensa produzido pelos motores dos foguetes durante o lançamento de satélites. Nessa fase, o nível de ruído é capaz de causar avarias em componentes desses veículos espaciais. A câmara tem capacidade para produzir ruídos de até 156,5 decibéis, conseguidos com uma descarga de 6 quilos de nitrogênio gasoso por segundo. Do lado de fora, no entanto, o barulho ficará no máximo em 90 decibéis, limite tolerável para o ouvido humano. Para isso, paredes, piso e teto têm es-
• Software interliga celular e clientes Uma pequena empresa de base tecnológica com apenas dois anos de vida já conquistou clientes do porte do Banco do Brasil, Visanet e TV Globo. A M4U Integração de Sistemas e Tecnologia,
Câmara acústica simula ruído produzido por foguetes
trutura em concreto armado, com 50 centímetros de espessura. Além de atender às necessidades do programa espacial brasileiro, a câmara também poderá ser usada pela indústria aeronáutica para testes de estru-
instalada na Incubadora de Empresas Gênesis, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro, foi criada por ex-alunos do Laboratório de Comércio Eletrônico, do Departamento de Informática da faculdade. Sua especialidade são softwares que envolvem telefones celu-
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pedidos e outras informações; o terceiro faz pesquisa de mercado, com informações sobre produtos concorrentes, preços, promoções; e o quarto sistematiza processos que se encontram fisicamente fora dos domínios da empresa. •
• Derivado do ipê é patenteado
turas e revestimentos da fuselagem de aviões. A câmara foi construída pela Promon Engenharia, por meio de um contrato firmado com a empresa norte-americana Wyle Laboratories, responsável pelo projeto .•
lares integrados a operadoras e cliente final. A empresa desenvolveu quatro linhas de produtos, adaptados de acordo com as necessidades do cliente. Um deles automatiza o processo de tomada de pedidos; o outro dá suporte à venda, com a consulta de estoque, listagem dos últimos
A síntese de uma nova substância a partir da Beta-Iapachona, um derivado natural do lapachol, extraído de plantas da família dos ipês, foi feita por um grupo de pesquisadores do Departamento de Química Orgânica da Universidade Federal Fluminense (UFF), coordenado pelo professor Vitor Francisco Ferreira. Eles estão verificando a atividade antimicrobiana da substância e a sua adoção no tratamento da doença de Chagas. A Beta-Iapachona será testada no combate a bactérias patogênicas resistentes à vancomicina, antibiótico utilizado no tratamento de várias infecções, e também contra o câncer. A comprovação dessas atividades abrirá espaço para a fabricação de novos fármacos. O depósito da patente da nova substância no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), no ano passado, representou uma conquista es-
pecial para a UFE Em seus 42 anos de existência, completados em dezembro do ano passado, foi a primeira vez que a universidade teve uma patente registrada. •
Patentes Inovações financiadas pelo Núcleo de Patenteamento e Licenciamento de Tecnologia (Nuplitec) da FAPESP. Contato: nuplitec@fapesp.br
Título: Redutor do Tempo de
• Turbinas eólicas de pequeno porte
Chaveamentode Amplificadores Ópticos e Semicondutor, por Chaveamento em Degrau, com Pré-lmpuiso de Corrente Inventores: Evandro Conforti e Cristíano Gallep Titularidade: FAPESP/ Unicamp
Uma nova geração de turbinas eólicas foi lançada pela Cooperativa de Energias Alternativas (Altercoop), do Rio de Janeiro. Chamados de Batuíra, os equipamentos são de pequeno porte e possuem potência de 500 watts/hora em ventos de até 12 metros por
• Teste para hipertensão Amplificadores
e fibras ópticas: mais rapidez
• Dióxido de estanho na fibra óptica
Motor de última geração
segundo. Essa energia é suficiente para dez lâmpadas fluorescentes de 9 watts, uma televisão pequena, uma geladeira e um computador. Segundo o aviador Ronaldo Alves, sócio da Altercoop, o Batuíra é inovador e tem desempenho superior aos concorrentes porque possui controles computadorizados, além de o motor elétrico ser de última geração e as pás serem leves e compostas por ligas especiais, como dióxido de titânio e outras. Outra vantagem do equipamento é o baixo nível de ruído que as pás proporcionam. O preço da turbina é de R$ 2.200,00. •
Um novo método de obtenção de dispositivos cerâmicos para fusão de vidros especiais e fibras ópticas, à base de Sn02 (dióxido de estanho), foi desenvolvido no Laboratório Interdisciplinar em Eletroquímica e Çerâmica (Liec) do Instituto de Química de Araraquara, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), e do Departamento de Química da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Esses dispositivos resultam de técnicas e temperaturas convencionais de obtenção de materiais cerâmicos utilizando óxidos presentes em grandes quantidades no território brasileiro. E podem vir a substituir a platina, o ouro e o grafite, materiais atualmente usados para fundir fibras ópticas e outros vidros especiais.
Título: Obtençãode Dispositivos Cerâmicas Densosà Base de Sn02 com Alta Resistência
à Corrosão Química
Inventores: Leinig Antonio Perszollí, José Arana Varela e Elson Longo Titularidade: FAPESP/Unesp
• Comunicação acelerada Técnica para redução do tempo de chaveamento eletroóptico que faz o sistema liga e desliga de amplificadores ópticos semicondutores, equipamentos utilizados em e-xperimentos em laboratório e que deverão ser usados nas redes de telecomunicações em áreas metropolitanas. A técnica inventada na Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) reduz o chaveamento em dez vezes,de 2 bilionésimos de segundo ou 2 nanossegundos (tempo dos sistemas usados nas redes de Internet) para 0,2 nanossegundo. Essa redução oferece maior capacidade ao sistema em receber e despachar a luz do laserdurante as transmissões.
Um grupo do Departamento de Nefrologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) identificou uma nova forma da enzima conversora de angiotensina I (Eca), a isoforma de 90 kDa, que funciona como marcador genético da hipertensão. A partir dessa descoberta, os pesquisadores desenvolveram um teste que pode detectar a presença da enzima com o auxílio de várias técnicas laboratoriais, como cromatografia ou espectrometria de massa.
Título: Identificação e Quantificação de Proteínas, Isoformas da Enzima Conversara de Angiotensina I (Eca, 190kDa, 90kDa [N-domínio, marcador genético de hipertensão] e 65 kDa) em Tecidos, Células e Fluidos Orgânicos (por exemplo, urina). Métodos Analíticos para Diagnóstico, Estratificação de Risco, Decisão Inventores: Dulce Elena Casarini, Odair Marson, Frida Plavnic, José Eduardo Krieçer Titularidade: FAPESP/ Unifesp
PESQUISA FAPESP 84 • FEVEREIRO DE 2003 • 65
ROBÓTICA
Inteligente esem piloto Dirigível autônomo, capaz de fazer inspeção e coletar dados, está em desenvolvimento no CenPRA YURI VASCONCELOS
esenvolver tecnologia de operação em dirigíveis robóticos não tri~ulados para uso em sensonamento remoto, monitoração ambiental e inspeção aérea. Esse é o foco dos estudos dos Pesquisadores do Laboratório de Robótica e VIsão Computacional (LRVC) do Centro de Pesquisas Renato Archer (CenPRA), do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), localizado em Campinas. Eles trabalham no Projeto Aurora, sigla para
D
Autonomous Unmanned Remote Monitoring Robotic Airship ou Dirigível Robótico Autônomo Não Tripulado para Monitoração Remota, considerado um dos mais avançados programas de desenvolvimento desse tipo de aeronave no planeta. O dirigível do CenPRA decola com o auxílio de operador~ seID!e~~a; mática uma tra designada. ~ vasto caro pregado flo~ com
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sição do ar e de níveis de poluição e sua dispersão em centros urbanos e industriais. Além disso, o dirigível robótico serve para a inspeção de grandes estruturas como oleodutos, gasodutos e linhas de transmissão -, levantamento de ocupação urbana e prospecção topográfica, mineral e arqueológica. Aplicações em segurança pública ou vigilância também estão na lista dos usos do veículo aéreo. Dirigíveis não tripulados, já comercializados nos Estados Unidos e Europa, funcionam como aeromodelos, por meio de um radiocontrole da terra. O Aurora pretende avançar nesse campo, propondo, como a maior contribuição científica e tecnológica do projeto, a concepção do software necessári~ à 9P~ração autônoma do veículo, num ntViIainda não encontrado no mercado norte-americano e europeu. Isso • ectos inovadores desde ~algori ara a estabili-
ento
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Do alto, monitoração, sensoriamento e estudo de florestas, áreas agrícolas e industriais
84 • FEVEREIRO DE 2003 • ''I
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Controle via Internet Além de desenvolver o dirigível autônomo, o Laboratório de Robótica e Visão Computacional (LRVC) do CenPRA também estuda a manipulação de robôs via Internet no projeto chamado de Remotely Accessible Laboratory ou Laboratório de Acesso Remoto (Real). Iniciado em 1999, em cooperação com a Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o Real tem como objetivos
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criar plataformas (software de suporte) para novas aplicações na Internet, como laboratórios de acesso remoto, ensino a distância e teleconferências. Além disso, também foi desenvolvido um laboratório virtual para acesso,por meio da rede mundial, à infra-estrutura dos robôs móveis do CenPRA. Os laboratórios virtuais constituem importantes ferramentas educacionais e experimentais que permitem o acesso remoto a recursos laboratoriais. ----
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São,portanto, uma forma de compensar a falta de recursos e equipamentos de universidades e centros de pesquisa. Por meio do Real, pesquisadores de instituições localizadas em outras cidades e estados poderão fazer experimentos com os robôs móveis do LRVC, como o Nomad 200 e o XR4000, comprados nos Estados Unidos. Eles possuem diversos sensores e podem ser controlados por joysticks a distância. Os pesquisadores também vão interaI
operação semi-autônoma aconteceu em março de 2000. O objetivo dos pesquisadores é atingir um vôo totalmente autônomo. "O termo autônomo referese à capacidade de percepção e tomada de decisão a bordo, tornando o veículo capaz de desempenhar missões definidas antes do vôo, alterando a sua execução se necessário, sem a necessidade constante de um operador humano", esclarece o engenheiro eletrônico Samuel Siqueira Bueno, coordenador do Aurora e do LRVC.Assim,o veículo deve ter a "inteligência" necessária para seguir trajetórias, desviando-se de obstáculos e evitando zonas de turbulência, por exemplo. artirde 1998, o Aurora passou a contar com recursos do programa Jovem Pesquisador da FAPESP,coordenado inicialmente por Marcel Bergerman e, na seqüência, ElyCarneiro de Paiva,ambos engenheiros e bolsistas da Fundação. No âmbito desse projeto, o Aurora proporcionou ao CenPRA, um doutorado e quatro mestrados. Ao todo, o Aurora recebeu mais de R$ 1 milhão, somando financiamentos da FAPESP,da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), do Fundo Setorial do Petróleo (CT-Petro) e do próprio CenPRA. A amplitude de aplicações do dirigível robótico se deve, em parte, às características únicas desse veículo, como o fato de ele ter uma sustentação predominantemente aerostática, situação em que a aeronave navega sustentada
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por gases mais leves que o ar. Aviões e helicópteros voam baseados na sustentação que o ar dá as asas dessas aeronaves (no helicóptero são rotativas) em determinada velocidade. Graças ao tipo de sustentação, os dirigíveis gastam menos combustível para se mover e para compensar distúrbios externos, como os ventos. Os dirigíveis robóticos utilizam pequenas hélices como fontes de propulsão e peças articuláveis na superfície de seus corpos para mudança de direção. Essas hélices são movimentadas por motores a combustão que funcionam com hidrocarboneto, um combustível usado nos aeromodelos. Outras características importantes dessesdirigíveissão a capacidade de voar a baixas altitudes, de dezenas a poucas centenas de metros, e a baixas velocidades, a cerca de 20 km/h, por exemplo. Assim, podem fazer vôo pairado sobre áreas de interesse. Também são vantagens a sua elevada autonomia de vôo e a capacidade para pousar e decolar verticalmente sem necessidade de infra-estrutura específica, como pistas
o PROJETO Veículos Robóticos Semi-Automáticos MODALIDADE
Programa Jovem Pesquisador COORDENADOR ELY CARNEIRO DE PAIVA - CenPRA
INVESTIMENTO
R$ 226.504,88 e US$ 3.595,33
de pouso. Por fim, em caso de falha, os dirigíveis são veículos muito mais seguros, porque descem de forma lenta e não caem abruptamente. - O Aurora foi planejado para ser um programa de longo prazo e de múltiplas fases.A primeira delas, atualmente em curso, pretende estabelecer a base tecnológica do projeto, validá-Ia experimentalmente e realizar aplicações de baixa complexidade, que venham a provar o conceito desenvolvido. Para atingir esses objetivos, o CenPRA adquiriu, em 1998, na Inglaterra, o dirigível AS800, um aparelho comum para ser pilotado como um aeromodelo, por meio de um radiocontrole da terra, fabricado pela empresa AirspeedAirships.O AS800tem um corpo inflável com 10,5metros de comprimento,3 metros de diâmetro máximo e 34 metros cúbicos de volume, que é preenchido com gás hélio. Ele possui a capacidade para transportar 10 quilos de carga, e sua velocidade máxima é de aproximadamente 60 km/h. "O que fazemos com o dirigível é tirar o piloto humano e colocar um piloto automático inteligente, mantido por computador e instrumentos, criando uma arquitetura robótica específica para ele," relata Samuel. Inicialmente, foram feitas várias adaptações mecânicas para tornar o dirigível um veículo robótico. Ao mesmo tempo, realizou-se o desenvolvimento de toda infra-estrutura embarca da, que é composta por um computador de pequenas dimensões com sistema operacional baseado no software aberto e gratuito Linux, integrando sensorescomo GPS (Global PoAeromodelo transformado
gir com o dirigível robótico, obtendo, por exemplo, dados coleta dos por ele. O laboratório virtual do CenPRA foi desenvolvido como um serviço de telemática na Internet e permite três modos de interação entre o usuário e o robô móvel. O primeiro, denominado navegação básica, é destinado a pessoas leigas, com conhecimentos limitados de robótica, que queiram manipular os robôs por meio de comandos. O modo avançado é dirigido a pesquisadores que queiram desenvolver e testar sofisticados
sitioning System), central inercial, bússola, sondas de vento, câmeras fotográficas no espectro visível e infravermelho e aparelhos para sensoriamento remoto, entre outros. Os pesquisadores também desenvolveram a infra-estrutura de terra, que consiste de um laptop destinado à programação e a operação do veículo, e os links de rádio, de modem e de vídeo. "Hoje, ele é capaz de seguir de forma automática trajetórias definidas por pontos de passagem (coordenadas de latitude e longitude) e perfis de altitude", diz Samuel. "Agora, estamos estendendo o controle automático para a decolagem e a aterrissagem, procedimentos que nenhum dirigível não tripulado no mundo é capaz de fazer." Outra inovação tecnológica projetada para o dirigível robótico são os sistemas de navegação por visão computacional. O objetivo dos pesquisadores do LRVC é fazer com que o dirigível consiga desenvolver trajetórias seguindo alvos visuais, indo além das coordenadas geográficas. Essa etapa do desenvolvimento do Aurora está sendo realizada em parceria com instituições nacionais e internacionais, como o Instituto Nacional de Pesquisas em Informática e Automação (Inria), da França, o Instituto Superior Técnico, de Lisboa (1ST), e o Departamento de Ciências da Com-
algoritmos de navegação. Nesse modo de interação podem ser executados experimentos no campo de navegação autônoma, planejamento de missão e acompanhamento de controle de robô, que é executado remotamente. O terceiro, chamado de navegação de observador, é dedicado a alunos, que podem acessar o laboratório virtual e acompanhar os experimentos condu-
zidos por um professor ou especialista em robótica. A interação com o robô será acompanhada por dois canais de vídeo com imagens em tempo real obtidas por meio de duas câmeras, uma panorâmica focada no ambiente em que o robô se desloca e outra posicionada a bordo do próprio equipamento. Para disponibilizar esse laboratório virtual para o público, o CenPRA trabalha para a implantação de um link de alta velocidade e faz a atualização de sua infraestrutura.
XR4000, na frente, e Nomad 200: robôs manipulados a distância
putação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Os ensaios com visão computacional começam ainda neste semestre Experiência de vôo - Até o momento, a aeronave já realizou aproximadamente cem horas de vôo. Somados os preparativos anteriores à decolagem e os trabalhos até a ancoragem final do dirigível no hangar, a equipe acumula mais de 600 horas de trabalho experimental em campo. Os vôos são realizados na 2" Companhia de Comunicação Blindada do Exército (2" Ciacom), que fica próxima ao CenPRA.
A segunda fase do Aurora, prevista para ser iniciada ainda este ano, prevê a nacionalização da tecnologia, com a fabricação de um dirigível aqui no Brasil. Para isso, o CenPRA está elaborando um projeto em conjunto com o Departamento de Engenharia Aeronáutica da Escola de Engenharia da Universidade de São Paulo (USP) de São Carlos e com a Ômega Aerosystem, uma empresa de Santa Cruz da Conceição, região de Pirassununga (SP). "Planejamos construir um dirigível robótico não tripulado de médio porte, com aproximadamente 25 quilos de carga útil, que terá tecnologia de navegação autônoma em uma grande variedade de aplicações", informa Samuel. Segundo o coordenador do Aurora, grandes empresas demonstraram interesse no projeto e, no futuro, poderão empregar essa nova tecnologia, como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama), a Petrobras e a Transportadora Brasileira Gasoduto Bolívia-Brasil (TBG), bem como grupos de sensoriamento e de ecologia em universidades. "Essas empresas e grupos também nos auxiliam na prospeção de aplicações para esses dirigíveis robóticos," • PESQUISA FAPESP 84 • FEVEREIRO DE 2003 • 69
• TECNOLOGIA
INFORMÁTICA
Empresa de talentos Ex-alunos da U nicamp usam novo sistema para construir softwares adaptados a cada cliente TÂNIA
NOGUEIRA
próximo o mês de abril, a empresa Ci&T Systems comemora oito anos de atividade com vendas de R$ 15 milhões anuais e 140 funcionários. Tamanho sucesso, em tão pouco tempo, foi alcançado, pela então microempresa, sob o comando de três jovens formados no início da década de 1990 em engenharia da computação na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). César Gon, 30 anos, Fernando Matt, 29, e Bruno Guiçardi 30, desenvolveram soluções inovadoras para softwares de comércio eletrônico (e-business) e conquistaram um mercado formado principalmente por grandes empresas. O princípio adotado por eles foi criar estruturas que permitam a construção rápida e flexível de programas produzidos de acordo com a necessidade de cada cliente por meio de componentes de softwares prédesenvolvidos. Essas soluções são chamadas de componentização. "Desenvolvemos uma arquitetura que incorpora as mais recentes inovações existentes no mercado, utilizando e reutilizando cada componente básico de vários programas para atender novas demandas dentro de uma empresa': afirma Gon, mestre em ciência da computação e presidente da empresa. Ele traça um paralelo entre a história do software e a da indústria automobilística, que evoluiu de uma produção quase artesanal para uma cadeia produtiva que integra fornecedores de peças e montadoras. ''A Ci&T - a montadora na analogia - usa 'pedaços' de programa prontos em um software sob medida. É muito mais rápido e econômico do que aqueles
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FAPESP 84
ALVARES
em que se constrói cada peça para resolver problemas semelhantes': diz Gon. Esse sistema tem vantagens em relação às duas opções disponíveis atualmente. De um lado, softwares prontos, de prateleira, que não preenchem certas necessidades de cada empresa. De outro, programas desenvolvidos sob medida, de custo elevadíssimo e longo tempo de maturação. Por isso, o software componentizado, como é conhecido, para comércio eletrônico tem atraído organizações do porte como Petrobras, Natura, AGF Brasil e BankBoston, para citar alguns clientes da carteira que a Ci&T conquistou nos oito anos de existência. Nesse período, ela disputou - e venceu - concorrências em grandes multinacionais, o que acabou favorecendo seu rápido crescimento.
Estoque global - O primeiro contrato assinado pela Ci&T, de R$ 50 mil, foi com a IBM, para gerência de redes de telecomunicações, fato que consolidou a formação da empresa em 1995. Em 2002, outra multinacional levou a Ci&T a dar o primeiro passo em direção ao mercado externo. Depois de vencer mais de 800 concorrentes, ela desenvolveu o projeto da Hewlett-Packard (HP) de reposição automática de estoques em grandes distribuidores, como Pão de Açúcar, Extra, Carrefour e Kalunga. Em três meses, o sistema batizado de Eletronic Order Fulfillment foi adotado também pelas unidades da HP no Chile, México e nos Estados Unidos. Essa primeira exportação respondeu por 10% do faturamento de R$ 15 milhões da Ci&T no ano passado. O plano de expansão no mercado mundial inclui
uma representação comercial nos Estados Unidos para facilitar a participação em feiras e eventos do setor, e trabalhar o mercado norte-americano. A meta - ambiciosa, reconhece César Gon - é crescer 50% por ano até 2007, quando pretende alcançar a casa dos R$ 100 milhões de receita. Para isso, ele analisa a entrada de um parceiro estratégico este ano, possivelmente um investidor de capital de risco. Gon, no entanto, não se deixa seduzir ainda pelo mercado de capitais e pretende manter sua empresa como uma sociedade anônima (S.A.) de capital fechado. Ao optar por essa linha de crescimento, um pouco mais lenta, a Ci&T conseguiu passar ao largo da crise que afetou o setor de Internet nos últimos anos." osso foco está em empresas tradicionais, de negócios sólidos, com quem estabelecemos relacionamento de longo prazo. Visualizamos nosso cliente globalmente e procuramos desenhar o crescimento dessas empresas nos próxi. mos CillCO anos. " Depois da expansão impulsionada pelo setor de telecomunicações, a empresa desenvolveu soluções para indústrias, bancos, seguradoras, empresas de distribuição, mí-
dia e entretenimento. "O nosso grande desafio é fazer uma ponte entre as necessidades do negócio e a tecnologia. Fazemos isso, criando equipes para cada cliente. Essas equipes se especializam em segmentos e trabalham por mercado." O setor de seguros é um exemplo, com produtos desenvolvidos para a BrasilPrev, Caixa Econômica Federal e a AGE A maior cliente da Ci&T é a Petrobras. Na gigante petrolífera, a empresa campineira modernizou o sistema de controle de dados de movimentação, estoque e qualidade de petróleo, gasolina, nafta, gás natural e álcool. Para a Natura, foi desenvolvido um novo site para aumentar a interatividade entre a maior empresa brasileira de cosméticos e suas consultoras e consumidoras espalhadas pelo Brasil.
ara continuar a crescer, a Ci&T está investindo R$ 7 milhões no biênio 2002/2003. São R$ 2,5 milhões obtidos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), dentro do Programa de Apoio ao Setor de Software (Prosoft), e R$ 4,5 milhões de recursos próprios. O que permitiu mudar a sede da empresa de um antigo casarão no centro da cidade para um prédio de 1,6 mil metros quadrados, com infra-estrutura tecnológica de vanguarda, situado no Pólo de Alta Tecnologia de Campinas. A outra parte dos recursos é utilizada para ampliar a malha de marketing e comercialização, com a abertura de escritórios em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília.
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Novos empregos - Boa parcela dos investimentos será aplicada no desenvolvimento de novos produtos e na ampliação de seu quadro profissional, de 140 para 180 funcionários ainda em 2003. A Ci&T pretende manter o perfil que ajudou a empresa a crescer: a grande maioria dos funcionários é formada em ciência da
computação, mas há espaço para físicos e engenheiros, entre outros. Do total de funcionários, 70% vieram da Unicarnp, o celeiro onde a empresa busca seus profissionais, que se autodenominam a "Geração U". Entre os profissionais da Ci&T, 30% têm título de mestrado ou doutorado. "Mas a característica comum a todos é a capacidade de inovar e a disposição para mudanças, fator que faz parte da cultura da empresa", diz Gon. Pioneira no Brasil no desenvolvimento de softwares baseados em componentes, a Ci&T agora aposta suas fichas nos web services, recurso que permite a comunicação via Internet entre sistemas desenhados em diferentes linguagens de programação, desenvolvidos por fornecedores distintos e em sistemas operacionais diversos. A operacionalidade conquistada pelos web services representa o primeiro passo da computação distribuída, tendência que deverá nortear o futuro do desenvolvimento de softwares, afirma Kleber Bacili, coordenador da unidade de componentes da Ci&T. Antes as empresas concentravam em grandes computadores - os mainframes - o processamento de suas informações, muitas vezes feito em máquinas diferentes que executavam serviços para determinadas funções. A grande evolução consiste em criar um sistema que seja compatível e tenha comunicação e acesso direto a várias máquinas e nós da rede, de forma simples, barata e sem nenhum tipo de interferência. Bacili exemplifica com um banco que utiliza a mesma infra-estrutura tecnológica para fazer análise de crédito e liberar financiamento. Os web services permitem distribuir a tarefa de análise de crédito para empresas que tenham essa especialização, liberando o espaço dos computadores da empresa para outras missões. "Por meio desse recurso é possível usar serviços ao redor do mundo", diz Bacili. Um bom caminho para a empresa continuar na rota da inovação. • PESQUISA FAPESP 84 • FEVEREIRO DE 2003 • 71
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• TECNOLOGIA
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im eza Pesquisadores da USP e do Instituto Mauá preparam novos equipamentos para tratamento de efluentes
eclarado o Ano Internacional de Águas Doces pela Organização das Nações Unidas (ONU), 2003 espera boas notícias para a preservação dos recursos hídricos no planeta. O consumo de água cresce junto com o aumento da população e com o incremento das atividades agrícolas e industriais. Uma situação que não pode dispensar o reuso da água, até como meio de preservar as fontes naturais, como rios, lagos e represas. Um grupo de pesquisadores da Escola de Engenharia de São Carlos (EESC) da Universidade de São Paulo e da Escola de Engenharia Mauá (EEM) do Instituto Mauá de Tecnologia, em São Caetano do Sul, pode estar contribuindo para uma boa notícia. Eles estão desenvolvendo vários equipamentos que vão resultar em novos reatores para tratamento de esgotos e disponibilizar a água resultante para usos menos nobres e sem necessidade de potabilidade, como em atividades industriais, lavagens de rua ou para a irrigação de culturas, cujos produtos não sejam consumidos sem cozimento. O foco dos estudos desses pesquisadores são sistemas para tratamento de esgotos sanitários e efluentes industriais, que utilizam microrganismos anaeróbios (bactérias e suas parentes, arqueas, que não necessitam de oxigênio para sobreviver) para fazer a purificação dessas águas residuárias. Embora ainda pou-
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72 • FEVEREIRO DE 2003 • PESQUISA FAPESP 84
co utilizado no país, esse processo biológico possui uma longa e tradicional linha de estudos. Na EESC, desde os anos de 1970, pesquisadores estudam e desenvolvem novas configurações de reatores anaeróbios. Depois de tantas pesquisas, chegou a hora de alguns dos sistemas estudados serem colocados em prática. Segundo o engenheiro Eugênio Forestí, diretor da Escola de Engenharia de São Carlos, estão sendo mantidos contatos com governo do Estado de São Paulo visando a montagem de uma estação piloto de .tratamento anaeróbio em uma cidade de pequeno porte na região de São Carlos. É a oportunidade que faltava para os pesquisadores apresentarem, na prática, a eficácia do processo.
o
Baixo custo - "Mantivemos os primeiros contatos e esperamos implantar logo um sistema anaeróbio em escala demonstrativa no tratamento de efluentes", afirma Foresti, que está na coordenação de um terceiro projeto temático financiado pela FAPESP sobre o assunto. "Estamos desenvolvendo tecnologias alternativas de baixo custo e mais adequadas ao país", diz Foresti. Cinco tipos de reatores são estudados no temático: horizontal de leito fixo, de leito expandido-fluidificado, de membrana, em batelada seqüencial e híbrido. Os quatro primeiros sistemas são inovadores e o quinto trata-se de uma modificação e aprimoramento de um reator,
também
conhecido
como UASB (Up-
flow Anaerobic Sludge Blanket), ou reator anaeróbico de manta de lodo e escoamento ascendente, desenvolvido na Holanda na década de 1970. Os sistemas biológicos anaeróbios nasceram como uma alternativa aos processos aeróbios (que exigem a presença de oxigênio para viver), uma tecnologia bem mais consolidada e empregada. Os dois sistemas utilizam de microrganismos que se alimentam dos poluentes presentes nos esgotos domésticos e efluentes industriais. Em outras palavras, eles eliminam a matéria orgânica que está dissolvida e particulada na água. Por não precisarem de oxigênio, os anaeróbios apresentam uma vantagem sobre os processos aeróbios, que é o baixo consumo de energia, uma vez que não necessitam de nenhum processo de aeração. "O gasto energético dos tratamentos anaeróbios equivale, em média, a 30% do gasto dos aeróbios', afirma Foresti. Outra vantagem dos processos anaeróbios é a menor produção de lodo, que não chega a 10% do que é gerado nos aeróbios. O resultado disso é uma considerável economia no manejo e na destinação final desse tipo de resíduo, um subproduto indesejado dos tratamentos aeróbios. Com vantagens tão claras, fica a pergunta: porque até hoje os sistemas de tratamento anaeróbios são tão pouco empregados no Brasil? As razões são,
a
PESQUISA FAPESP 84 • FEVEREIRO DE 2003 • 73
Reator anaeróbio na Mauá: estudo de tratamento de águas residuárias
em parte, históricas. No começo da década de 1980, foram iniciados estudos no país para uso do reator UASB.A exploração inadequada desse reator por alguns profissionais com pouco conhecimento sobre o sistema gerou desconfianças quanto à sua confiabilidade.
dos para substituir os aeróbios, mas sim para complementá-los. Segundo Foresti, o sistema ideal deveria combinar o uso dos dois tipos de reatores. Os sistemas anaeróbios requerem outro complementar que pode ser tanto o aeróbio quanto os físico-químicos (microfiltragem, precipitação química seguida de sedimentação, ozonização, desinfecção por cloro ou radiação ultravioleta) para que os efluentes possam atingir padrões de qualidade. "Sem dúvida, o modelo ideal seria a combinação de um processo anaeróbio seguido de um aeróbio, ficando o segundo responsável apenas pelo pós-tratamento e não pela remoção da carga orgânica presente nas águas residuárias. É nisso que estamos trabalhando", afirma Foresti. O resultado seria um sistema mais barato, com menor produção de lodo e altamente eficiente.
A Escola de Engenharia Mauá também produziu, nos últimos anos, vários estudos relacionados aos processos anaeróbios de tratamento de águas residuárias, dentro de um projeto do Programa Jovem Pesquisador da FAPESP, coordenado pelo professor JoséAlberto Domingues Rodrigues."Em quatro anos de trabalho (entre 1998 e 2002), conseguimos montar o Laboratório de Engenharia Bioquímica e consolidar nossa área de pesquisa", diz Rodrigues. Ele e outros pesquisadores da instituição, como os professores Walter Borzani e Suzana Ratusznei, investigam processos de tratamento operados nos chamados modos batelada e batelada alimentada. Esses processos são relacionados à forma como os reatores anaeróbios fazem o tratamento da água residuária. Se rápido, é batelada simplesmente; se lento, é alimentada.
Configuração ideal - Para realizar suas m dos problemas era o experiências, os pesquisadores do Laforte odor exalado pelos boratório de Engenharia Bioquímica reatores, resultado da da Mauá contam com cinco reatores. produção de gás sulfídri"Uma vez que esses reatores ainda são co, um subproduto do pouco conhecidos, estamos estudando tratamento anaeróbio. "Naquela época, vários aspectos relacionados às suas connós não conhecíamos efetivamente todições operacionais. Nosso objetivo, dos os detalhes sobre o sistema. Queicom esses estudos, é conferir flexibilimamos etapas indevidamente e isso dade aos sistemas anaeróbios descontrouxe marcas que permanecem até tínuos, em equipamentos que recebem hoje': reconhece Foresti.Com o aprimoágua residuária de forma intermitente, ramento da tecnologia, muitas daquelas como nas indústrias de laticínios",diz o deficiênciasforam sanadas.Hoje existem pesquisador da Escola de Engenharia vários trabalhos que tratam da remoMauá. "Ainda não ção ou estabilizaconseguimos cheção das substâncias gar a uma confiOS PROJETOS que provocam o guração ideal de odor nos sistemas um desses reatoanaeróbios. Assim, Estrutura, Composição, Desenvolvimento de Processos res para uso indusesses sistemas esCrescimento e Dinâmica Anaeróbios em Batelada e Batelada de Biofilmes em Sistemas Mistos Alimentada para Tratamento trial, mas imagino tão, pouco a pouco, AnaeróbioslAeróbios de de Águas Residuárias que até o final de ocupando seu esTratamento de Águas Residuárias 2005, num projeto paço."Elessão cada MODALIDADE temático iniciado vez mais empregaMODALIDADE Programa Jovem Pesquisador em setembro de dos em unidades Projeto temático 2002, em parceria industriais." COORDENADOR DO PROJETO COORDENADOR JOSÉ ALBERTO DOMINGUES RODRIGUES com a EESC e a Os defensores EUGÊNIO FORESTI- Escola de - Escola de Engenharia Mauá do Universidade Feda tecnologia anaeEngenharia de São Carlos da USP Instituto Mauá de Tecnologia deral de São Carróbia fazem queslos (UFScar), teretão de frisar: esses INVESTIMENTO INVESTIMENTO mos feito avanços sistemas não estão R$199.348,70 e US$ 48.393AO R$ 104.471,67 e US$ 95.890,23 significativos." • sendo desenvolvi-
U
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ITECNOLOGIA
MEDICINA
VETERINÁRIA
Casca grossa Vacina protege aves de bactérias que provocam fragilidade nos ovos DINORAH
ERENO
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m 1991, o ano foi atípico para várias granjas do interior paulista. As galinhas botaram um número excessivo de ovos sem casca ou com casca extremamente fina. O fato chamou a atenção de João Takashi Ohashi, médico veterinário formado pela Universidade de São Paulo (USP), que pouco tempo antes havia montado sua própria empresa, a Livet Produtos Veterinários, depois de uma longa atuação no desenvolvimento de produtos em uma multinacional. Ele decidiu investigar as causas dessa estranha ocorrência elaborando uma hipótese de que parte do problema poderia estar ligada a agentes infecciosos, como as bactérias. Até então, os estudos apontavam a idade avançada das galinhas, má nutrição, problemas genéticos e ambientais como fatores responsáveis por alterações nas cascas dos ovos e doenças infecciosas específicas. Anos mais tarde, João levou à frente a sua idéia de investigar as causas bacterianas da doença e chegou a imaginar uma vacina. Para concretizar seus estudos, em 1998, ele apresentou um projeto à FAPESP dentro do Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE). A coordenação do projeto foi da professora Masaio Mizuno Ishizuka, da Faculdade de Medicina Veterinária e
E
Pontos brancos representam agentes infecciosos PESQUISA FAPESP 84 • FEVEREIRO DE 2003 • 75
Zootecnia da USP. "As pesquisas, encerradas em junho do ano passado, mostraram correlação entre lesões na medula óssea provocadas por bactérias e a qualidade da casca", conta João. E resultaram em uma vacina bacteriana inédita, eficaz na eliminação de 11 % do problema de má formação da casca, segundo Masaio. émdisso, os estudos apontaram para um vírus, responsável por muitos estragos no metabolismo de cálcio das aves. Somadas, essas duas causas representam metade dos problemas relacionados à ovosporose, batizada pelos pesquisadores como a osteoporose das aves. Os 50% restantes referem-se a fatores como nutrição inadequada, manejo e doenças causadoras de lesão do trato reprodutor, bronquite e outras infecções. No momento, João e Masaio estão debruçados no desenvolvimento de uma vacina mista (bacteriana e viral) para minimizar os prejuízos decorrentes da má qualidade da casca de ovos. Essas perdas chegam a 7,4% ao ano no Brasil, 6,4% nos Estados Unidos e 8% na Alemanha. Um levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), publicado no início deste ano, envolvendo apenas granjas de postura com plantei igualou superior a 10 mil poedeiras, mostra que o Brasil produziu, no período de janeiro a setembro de 2002, 1,332 bilhão de dúzias de ovos, ou cerca de 16 bilhões de unidades. A projeção para o ano fica em torno de 21,3 bilhões de unidades. Esse volume dá idéia da dimensão dos prejuízos enfrentados pelo setor com o descarte de ovos impróprios para o consumo. Considerando um país que quer atingir a fome zero, as perdas são imensas, possivelmente chegando a 1,3 bilhão de ovos perdidos em 2002.
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Doença progressiva - A vacina desenvolvida pela Livet destina-se a combater as bactérias Escherichia coli, Staphylo-
coccus aureus, Staphylococcus epidermidis e Enterococcus sp. de linhagens isoladas de galinhas. O estudo apontou que essas bactérias atingem a medula óssea das aves, impedindo a adequada formação do cálcio dos ovos. A vacinação deve ser feita até a 163 semana de vida 76 • FEVEREIRO DE 2003 • PESQUISA FAPESP 84
Somente no ano passado, perdas com cascas fragilizadas chegaram a 1,3 bilhão de ovos
das aves, quando se inicia a fase reprodutiva das poedeiras. "No início, a doença gera pequenas perdas, que vão se acentuando à medida que a ave atinge o final do período reprodutivo, chegando a 15%, porque é uma doença crônica e progressiva", relata Masaio. ''A ovosporose inicia-se muito antes do início da produção de ovos." Os estudos começaram com o isolamento e a identificação das bactérias na medula óssea do fêmur e da tíbia de aves com idades entre 1 dia e 16 sema-
o PROJETO Desenvolvimento de uma Vacina Bacteriana- Toxóide para Prevenção da Sindrome da Má Qualidade da Casca de Ovos em Aves Reprodutoras e Poedeiras Comerciais MODALIDADE
Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPEl COORDENADORA MASAIO MIZUNO ISHIZUKA -
USP/
Livet INVESTIMENTO
R$ 237.824,50 e US$17.211,00
nas, seleciona das aleatoriamente nos galpões de quatro granjas comerciais que apresentavam problemas de perdas relacionadas à má qualidade da casca. As granjas assemelhavam-se em relação ao tamanho, tipo de alimentação, manejo zootécnico e sanitário. Toxinas degradantes - Para estimar a produção e as perdas decorrentes da má qualidade da casca, foram selecionadas aves em fase de produção de outros galpões das mesmas granjas, com idades correspondentes a 20, 40, 60 e 80 semanas de vida. Os experimentos revelaram relação entre infecção bacteriana em medula óssea e intensificação do processo de calcificação medular. "Quanto mais grave a lesão, menor a quantidade de osteoblastos e osteoclastos, as células da medula óssea", relata João. Os osteoblastos são responsáveis por sintetizar a parte orgânica da matriz óssea, enquanto os osteoc\astos estão relacionados com a realocação de cálcio no tecido ósseo. Segundo o pesquisador, as bactérias produzem toxinas capazes de degradar o paratormônio (PTH), hormônio responsável por controlar a quantidade de cálcio disponibilizada pela medula ós-
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Bactérias ataca m a meduIa óssea da~s----;;:;:;:;;;;;:;;;;';:;;;;;;;::::;::::::::::==:;:;::;::; aves e alteram calcificação das cascas sea para a formação da casca do ovo. A hipótese de que agentes infecciosos poderiam ser parte do problema foi comprovada por meio de testes bacteriológicos, histopatológicos (estudo microscópico de lesões orgânicas) e estatísticos. Depois disso, os pesquisadores trabalharam no desenvolvimento de uma vacina para controlar as bactérias. Testes feitos em laboratório mostraram i que essa vacina aumentou em 11% o número de ovos com casca boa, ou seja, em condições de comercialização, resultado promissor em se tratando de doença com muitas causas.
Teste do anel - Mas o resultado não deixou os pesquisadores totalmente satisfeitos. Eles decidiram então ampliar o objeto de estudo e começaram a tentar identificar vírus que poderiam influenciar no metabolismo do cálcio das aves e, conseqüentemente, na formação da casca. O processo de identificação e isolamento do vírus foi feito por um método de diagnóstico chamado BiDigital O-Ring Test (teste do anel), criado pelo pesquisador japonês Yoshiaki Omura, radicado nos Estados Unidos, e usado principalmente por médicos acupunturistas para investigar a influ-
ência da energia eletromagnética no diagnóstico e tratamento de doenças. O teste baseia-se em um princípio da física, a ressonância, que é o prolongamento de um som ou onda eletromagnética pelo seu reflexo ou repercussão em outros corpos. João conta que, por esse método, ele consegue identificar, entre outras coisas, grãos de vários cereais envoltos em um plástico preto. Ele compara o diagnóstico ao trabalho de um cachorro perdigueiro que fareja a caça. "Com o O-Ring, já vou diretamente ao que interessa tanto para identificação de vírus e bactérias como para o desenvolvimento de produtos, que incluem fitoterápicos para tratamento de gado e aves." A confirmação é feita sempre pela técnica convencional, como no caso do vírus que está sendo analisado
e tipificado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Assim que a comprovação for feita, o que os pesquisadores esperam que ocorra ainda em fevereiro, eles começarão a testar em laboratório a vacina para combater o vírus. O próximo passo é entrar com o pedido de patenteamento da vacina bacteriana, inicialmente no Brasil e depois no exterior. O registro da viral ficará para uma fase posterior, após o término dos testes. Cálculos feitos por produtores norte-americanos apontam que as perdas nos Estados Unidos, somente em decorrência de má formação de cascas, são da ordem de US$ 1,2 por ave ao ano. Levantamento realizado em 1997 indica que, no ano imediatamente anterior, esse problema causou aos produtores brasileiros prejuízos que atingiram a soma de R$ 79 milhões. Prova de que a vacina, assim que estiver totalmente pronta para impedir que vírus e bactérias interfiram no metabolismo de cálcio das aves, representará considerável economia para o setor granjeiro nacional. • PESQUISA FAPESP 84 • FEVEREIRO DE 2003 • 77
ITECNOLOGIA ENGENHARIA
FLORESTAL
Secagem rápida e
econonuca A
•
Pesquisador da Embrapa desenvolve método para tratamento de madeira
o novo processo dispensa a pré-secagem feita ao ar livre
m meados dos anos 90, quando passou a defender para seus colegas um novo método de secagem acelerada de madeira, que seria capaz de reduzir drasticamente o tempo e o dinheiro consumidos nessa tarefa vital para a indústria do setor, o engenheiro florestal Osmar José Romeiro de Aguiar, da Embrapa Amazônia Oriental, em Belém, no Pará, ouvia freqüentemente que estava maluco. Baseado no relaxamento das tensões de secagem que ocorrem no interior da madeira (a parte externa vai secando e a de dentro permanece úmida) quando submetida à estufa, o novo processo prometia maravilhas. Segundo seu inventor, esse método diminui o teor de água de qualquer tipo de madeira serrada - independentemente da espécie, espessura e grau inicial de umidade - aos níveis desejados, geralmente em torno dos 10%,
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78 • FEVEREIRO DE 2003 • PESQUISA FAPESP 84
num prazo de dez a 20 vezes menor do que o normal. E fazia tudo isso sem .provocar rachaduras ou empenamentos nas tábuas e sem recorrer à chamada pré-secagem ao ar livre. Essa técnica consiste em deixar no ambiente natural por longos períodos, meses geralmente, a madeira cortada para que as tábuas percam progressivamente grande parte de seu conteúdo líquido antes de serem encaminhadas para um estágio mais breve no interior de um secador, a estufa industrial, que terminará a redução do teor de água do material. Retira-se o excesso de água presente naturalmente numa tábua de pinho, mogno ou de qualquer outra árvore porque a madeira úmida é instável e difícil de se trabalhar. Nesse estado, ela não lixa bem, não cola e não mantém seu tamanho original de jeito nenhum. Fora isso, há outras vantagens em abaixar o teor de umidade de uma ripa de carvalho ou ipê: madeira seca pesa me-
nos (e reduz o custo do frete), é mais resistente e apodrece menos, pois suporta melhor ataques de fungos e insetos. Perguntas insistentes - A importância da secagem da madeira - o setor produz cerca de 90 milhões de metros cúbicos de madeira em tora e fatura R$ 2,5 bilhões por ano - levou a confrontação entre a técnica antiga e a proposta do pesquisador da Embrapa. "Mas onde está escrito que se deve proceder assim? Se eu não fizer a pré-secagem e adotar o seu método, a madeira não vai rachar ou queimar? E quem pagará o prejuízo?", eram as perguntas que ele ouvia de colegas e madeireiros quando terminava de expor suas idéias. Hoje, Aguiar ainda ouve esse tipo de indagação, mas com menor freqüência porque carrega dois trunfos na manga que lhe dão credibilidade: defendeu seu método de secagem numa tese de doutorado na Escola Nacional de Engenha-
ria Rural, Águas e Florestas de Nancy (Engref), na França, e obteve, em parceria com os franceses, co-autores da; descoberta, a patente do processo no Brasil,União Européia, Estados Unidos, Canadá, Austrália, lndonésia e Malásia. "Agora, sou procurado para dar palestras em empresas e universidades", afirma o pesquisador, que, por uma questão de sigilo industrial, não pode divulgar todos os detalhes de sua criação intelectual. Ele acredita que o interesse despertado se deve a uma estimativa de custos de secagem pelo seu método, em média, 60% menores em relação aos processos tradicionais. A economia gerada por sua invenção decorre, em grande parte, da vantagem de usar as estufas, que consomem grande quantidade de energia elétrica e térmica (vapor), por um tempo menor do que o empregado pelos métodos conhecidos. Na abordagem convencional, o tempo gasto para, por exemplo, secar
tábuas de carvalho - madeira nobre usada para móveis de luxo,instrumentos musicais e barris para envelhecimento de bebidas - varia de um ano e meio a dois anos. Primeiro, a madeira fica secando ao ar livre por cerca de 18 meses e, em seguida, permanece 40 dias dentro de uma estufa a 45° C. Haja paciência. "Pelo meu método, o carvalho é colocado diretamente no secador industrial, a temperaturas superiores a 70° C, e seca em 20 dias",assegura Aguiar. Fluidez molecular . O nome técnico do novo método é secagem baseada nas propriedades reológicas da madeira, caracterizadaspela fluidez molecular dos seus polímeros naturais quando aquecida a uma certa temperatura. Esse método explora a transição vítrea da lignina, substância orgânica complexa que se deposita nas paredes celulares do lenho e lhe confere dureza e rigidez. Se mantida em seu ponto de transição ví-
trea, dentro de uma faixa de temperatura, geralmente superior a 70° C, a madeira momentaneamente perde seu caráter rígido e ganha viscosidade e elasticidade.É essacondição mais flexível que permite o relaxamento das tensões da secagem tradicional, e dessa maneira permite um processo mais rápido e homogêneo. Nessa condição vítrea, menos rígida e mais viscosa, a madeira sofre de forma mais suave o impacto das tensões de secagem inerentes ao processo de diminuição de seu teor de água e, conseqüentemente, apresenta menos rachaduras, de acordo com Aguiar. "Pense num tubo de PVC aquecido. Se você aquecê-lo um pouco, mas não em demasia, ele não muda de estado físico, mas se torna maleável. É possível, então, alterar seus contornos sem estragá10 ou quebrá-lo. Quando esfriar, o tubo se enrijece novamente e conserva seu novo formato", compara Aguiar. "Algo semelhante acontece com a madeira aquecida e em processo de secagem enquanto está dentro da faixa de transição vítrea. Como a lignina se torna temporariamente viscosa e mole, a madeira perde água e sofre rearranjos moleculares sem grandes traumas. Quando a temperatura baixa, a madeira volta a endurecer e mantém seu novo teor de umidade:' Se a faixa de transição vítrea for ultrapassada, pode-se perder toda a madeira dentro da estufa, um risco do novo processo, que trabalha com temperaturas mais elevadas do que o usual. Dependendo da árvore e do teor inicial de umidade de um lote de madeira, esse rearranjo molecular no interior da matéria pode ser brutal ao final do processo de secagem. Em termos visuais, uma conseqüência perceptível do processo de secagem - portanto, dessas deformações internas decorrentes da perda de água - é a contração da madeira. Quando seca,uma tábua de eucalipto com 1 metro de largura poderá ser reduzida para apenas 85 centímetros. Aguiar espera que o processo que inventou se mostre realmente mais eficaz do que o usual- muita gente ainda não está convencida disso e, por ora, apenas uma empresa de Belém o utiliza de forma comercial. "Quando a licença de uso da patente for negociada com alguma grande empresa, meu método vai ser mais bem compreendido e se disseminar", acredita. • PESQUISA FAPESP 84 • FEVEREIRO DE 2003 • 79
I.
HUMANIDADES
CULTURA
POPULAR
o baú
sertanejo
Vill~:Lobos Mário de Andrade: herdeiro da coleção do músico
Pesquisadora organiza acervo de trovas, cordéis, poesias e paródias que estavam na coleção do compositor ~~--~~~----~
80 • FEVEREIRO DE 2003 • PESQUISA FAPESP 84
DÉBORA
CRIVELLARO
(I
n Sabiá trêis pote, siricóia miudinha sabiá trêis pote siricóia miúda. Sei que o senhor demora vir aqui no nosso lugar eu fico com arrodeio eu fico ouvindo cá ai meu Deus se aquele moço tão cedo não vem no Natal. Chico Antônio
stamúsica faz parte de um gênero de cantoria de repente chamado coco e foi improvisada pelo cantador Chico Antônio, em Natal (RN), na despedida de Mário de Andrade, em 1929. Qual não foi a surpresa da pesquisadora Edilene Matos ao ouvi-Ia, no ano passado, em frente ao Mercado Modelo, Salvador (BA), tocada ao som do pandeiro e da viola
E
, por três cantadores. Mistérios da oralidade, diriam os apreciadores da cul'tura popular. Edilene é um deles. Seu projeto de pós-doutorado, desenvolvido no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP) e financiado pela FAPESP, está relacionado a Mário de Andrade, Chico Antônio, Catulo da Paixão Cearense, Heitor Villa-Lobos, Leandro Gomes de Barros e tantos outros artistas envolvidos com a valorização da arte do povo. "Cultura popular não fica nada a dever à chamada cultura erudita, é criação da mesma forma e o povo é o que há de mais renovador, criativo e buliçoso", diz a pesquisadora. Edilene se propôs a colocar em ordem o chamado Fundo Villa-Lobos, uma farta documentação - trovas, paródias, folhetos, cantos, desafios, poesias - datada provavelmente a partir de 1905 e recolhida por artistas investidos de pesquisadores da estatura de Pixinguinha
e Donga, nos idos de 1920. A encomenda partiu de Arnaldo e Carlos Guinle, ricos industriais e mecenas cariocas, que pretendiam angariar temas e peças folclóricas pelo Norte e Nordeste e publicar a produção popular pelos quatro cantos do país. Trouxeram um vasto material, fruto de uma ampla e desordenada investigação. Para organizar tudo foi convidado Villa-Lobos. O objetivo do compositor, segundo entrevista concedida ao jornalista e escritor Alcântara Machado, no salão de chá do Mappin, em 1925, era publicar três livros: o primeiro sobre música; o segundo e o terceiro sobre poesia e dança. Em 1927, começou a mexer nos papéis, mas não conseguiu levar adiante, dada a vastidão dos textos e a vida cheia de ocupações que levava. Decidiu repassá-lo, provavelmente em 1929, ao amigo Mário de Andrade, que acabara de empreender as célebres viagens ao interior do país, a fim de estudar e recolher a arte do povo. PESQUISA FAPESP 84 • FEVEREIRO DE 2003 • 81
Carta de Villa-Lobos para Mário, com foto e dedicatória: estudo renderá livro e CD-ROM com fac-símiles dos documentos, fonte preciosa para revisitar a produção do escritor paulista
Mário leu todo o material, fez anotações e marcações com lápis ou tinta. Há interrogações, exclamações, traços cruzados, remissões a autores ou poemas. Chegou a fazer alguma classificação, apesar de não acreditar nos gêneros puros, a que chamava de "retoriquice besta': Classificou em desafios, narrativas, romances históricos e líricos, abecês, trovas, glosas, motes, gírias e diálogos. O objetivo era publicar uma grande obra sobre cultura popular cujo título seria Na Pancada do Ganzá (numa alusão ao instrumento que lhe fora oferecido a ele por Chico Antônio, de quem Mário dizia valer uma dúzia de carusos). O desejo foi revelado em carta para o amigo Manuel Bandeira, em 1930. A pesquisadora resolveu ingressar "no fabuloso reino construído pela incursão de Mário de Andrade pela cultura popular" também inspirada pelo trabalho realizado pela pesquisadora Ruth Terra, que culminou no livro A Literatura de Folhetos nos Fundos VillaLobos (IEB/Edusp,198l). Nele, a autora fez um levantamento do que encon-
82 . FEVEREIRO DE 2003 • PESQUISA FAPESP 84
trou no acervo. De início, Edilene pretendia trabalhar com sete pastas - ao todo são 22. Mas, à medida que le~ os textos, achou por bem fazer a organização, sistematização e análise de todas as 42. Elas compreendiam 633 textos, alguns com mais de 60 páginas. A maior parte deles, cerca de 300, eram cordéis, literatura de fronteira entre o oral e o escrito, fixada tipograficamente, mas que guarda todas as marcas da oralida-
o
PROJETO
A Outra Face dos Fundos Vil/a-Lobos: a Poesia Popular
Modalidade Bolsa de pós-doutorado
Supervisão TELÊ ANCONA LOPES - Instituto de Estudos Brasileiros/USP
Bolsista EDILENE DIAS MATOS- Instituto de Estudos Brasileiros/USP
de, além de suscitar também outras linguagens, como a visual, presente na capa e na contracapa dos folhetos. Outras 300 contemplam vários gêneros, desde paródias, textos popularizados, letras de música e diálogos. "Ordenei e fiz uma classificação que me pareceu apropriada para o material que encontrei, baseada na dominância temática", conta. Recordo o tempo sadio De minha infância querida Quando eu no verdor da vida Brincava à margem do rio Admirando a beleza Dos golfos da baronesa, Que soltos na correnteza Passava qual um navio (poema/paródia, sem indicação de autoria, que remete o leitor a Casimiro de Abreu e seu antológico Meus Oito Anos. Mário fez a seguinte anotação: "Admirável. Compare com Meus Oito Anos")
Edilene Matos fez cópias dos textos, providenciou a digitalização, ordenou
novas pastas, mas deixou as originais na ordem de Mário, que havia empreendido uma "organização desorganizada': Com esse trabalho, conseguiu detectar a autoria de muitos folhetos, como o do Na Pancada do Ganzá, que atribui a Chico Antônio. A pesquisadora concluiu o ensaio de abertura, no qual trata de questões como primórdios da cultura popular, origens dos Fundos Villa-Lobos, intertextualidade, relação de Mário com a cultura popular, além de análise dos Fundos Villa-Lobos. Pretende também lançar o material em livro, que virá com CDROM. Idéia elogiada pela professora Telê Ancona Lopes, da USP, coordenadora das pesquisas do Arquivo Mário de Andrade. "Esse CD-ROM, assim como o volume no qual se acha a análise documentária, acusando inclusive as notas de leitura de Mário e o resumo de cada conteúdo, amplia de forma extraordinária a difusão dos fundos", diz Telê.
Ergueu-se a onda do povo O general ficou quieto Os oligarcas pensavam Que o estado era objeto Que o pai deixasse ao filho O filho deixasse ao neto (folheto político Antonio Silvino na eleição de Rego Barros para governador da Paraíba, de autoria de Leandro Gomes de Barros. Mário anotou a lápis: "Quase inteiro excelente - tirando algumas estrofes fica ótimo")
Segundo Telê, Mário trabalhou com cultura popular desde 1922 no gabinete; mas também fazendo pesquisa de campo. Em 1928, na Revista de Antropofagia, ele publicou o primeiro estudo sobre o folclore, intitulado O romance do Veludo. "Correspondia-se praticamente com todos que se detinham sobre cultura popular - Câmara Cascudo, Ademar Vidal, até com Lehmann Nitsche, que coligiu mitos ameríndios da América do Sul", conta. Quando se tornou diretor do Departamento de Cultura da Municipalidade de São Paulo, em 1936, criou a Sociedade de Etnografia e Folclore, com enorme rede de informantes. Contratou fotógrafo e cinegrafista para registrar o cateretê, a folia de reis, o samba rural paulista e constituiu a Missão de Pesquisas Folclóricas. O baú sertanejo de Villa-Lobos não podia ter estado em melhores mãos. • PESQUISA FAPESP 84 • FEVEREIRO OE 2003 • 83
• HUMANIDADES MÚSICA
A volta da malvada de Gomes Joanna de Flandres, ópera esquecida há 140 anos, é recuperada em dois projetos
oi como se a posteridade quisesse punir as malvadezas medievais de [oanna de Flandres, a mulher que renegou pai para não perder a coroa e o amante. A ópera que Carlos Gomes escreveu sobre ela em 1863 - e de certa forma foi seu "passaporte" para estudar na Itália - foi deixada pelo compositor no Brasil antes de ele partir para a Europa e am~rgou 140 anos de esquecimento total, não mais encenada desde a sua tormentosa estréia no Rio de Janeiro. Muitos chegavam mesmo a dá-Ia como perdida, o que ela nunca esteve. "Fim de um triunfiascol', anotou Gomes na última página de sua partitura, antevendo, sem querer, o futuro. Mas agora a moçoila terrível está de volta e em dose dupla. A professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Lenita Waldige Mendes Nogueira acaba de compilar a versão integral de [oanna de Flandres, trabalho concluído com o apoio da FAPESP, ao mesmo tempo em que dois outros pesquisadores, Achille Picchi, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), e o maestro Fábio Gomes de Oliveira, também terminaram a sua edição integral da ópera de Gomes, com apoio da Unisys e da Secretaria de Cultura do Estado. O detalhe é que nenhum sabia do trabalho do outro. "Foi uma surpresa. Mas, como há várias edições de uma sinfonia de Beethoven, por exemplo, não há mal em termos essas duas compilações de [oanna", conta Lenita. Afinal, foram décadas de ausência. Em verdade, a partitura estava à disposição dos interessados, em forma de microfilme, nos acervos da Biblioteca Nacional (o ato I) e da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (do ato II ao ato IV). "Não sabemos por que estavam em arquivos separados, mas isso deve ter confundido os pesquisadores que a declararam perdida", explica a professora. Seja como for, não há mais desculpa para que orquestras e maestros não voltem a reviver a segunda ópera de Gomes, escrita (como a anterior, A Noite do Castelo, de 1861), sobre libreto em português de Sal-
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vador de Mendonça para Ópera Nacional, que tentava incentivar o gênero em língua portuguesa. [oanna foi o canto de cisne do projeto nacionalista musical de José Amat, criador da instituição. istória,no entanto, não é das mais tropicais:Balduíno, pai de Ioanna, e conde de Flandres, está desaparecido nas Cruzadas.A moça assume o poder e se apaixona por um trovador, Raul, e casa-se com ele. No momento em que o rapaz está para ser proclamado o novo senhor de Flandres, reaparece Balduíno. Sem querer perder o poder e o amante, Ioanna chama-o de impostor e o aprisiona. Raul, arrependido, tenta convencê-Ia a libertar o pai e acaba por apunhalá-Ia. Balduíno está livre, saudado pela multidão e chega a tempo apenas de ver a filhota morta e o "genro" se matar diante dele. Pano. "Gomes foi ousado ao musicar um drama sobre uma mulher má como Ioanna, algo inédito para o tempo. Pegou gosto pela coisa e, depois, fez várias outras óperas com mulheres difíceis,como Fosca",observa Lenita. "Musicalmente, a obra também é um progresso sobre A Noite do Castelo e já mostra traços do que seria Gomes mais tarde", nota. "Embora ligada a uma estética algo passada já na época, há momentos muito bons, coros bonitos e uma orquestração mais avançada e menos ligada às modinhas, o que se observa na sua criação anterior." Há muito de Donizetti e Bellini, compositores que Gomes então admirava, na escrita de [oanna. "Mas'; observa o musicólogo Luiz Heitor Correa de Azevedo, "a melodia dessa ópera, sem ter a preocupação de seguir as pegadas de modelos consagrados, tem momentos de abandono que deixa os céus mediterrâneos pela ardência dos trópicos e evoca, imprecisamente, qualquer coisa que está bem próxima de nós."
A
Troca de ofensas - Para Lenita, [oanna
de Flandres, prova do desejo de Gomes 86 • FEVEREIRO DE 2003 • PESQUISA FAPESP 84
Joanna real: detalhe de tapeçaria de 1703 mostra a personagem
belga
em superar os seus limites técnicos, sofre um pouco da ousadia do músico. ''A partitura é muito irregular. O ato I é muito longo, quase metade de toda a ópera, com duetos enormes. Curiosamente, nos atos seguintes, como se ele quisesse compensar essa dimensão ou se sentisse cansado da partitura, a ação vai muito rápida. A morte da protagonista é curtíssima. Nesse todo, ainda pode estar faltando uma abertura da
o PROJETO Restauração da Ópera Joanna de Flandres de Csrlos Gomes MODALIDADE
Linha regular de auxílio à pesquisa COORDENADORA
LENITA WALDIGE MENDES NOGUEIRA- Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicarnp) INVESTIMENTO
R$ 23.894,00
peça, talvez perdida. Pouco antes da estréia, o compositor e a produção da ópera trocaram ofensas em cartas publicadas nos jornais. "Apelo para a lealdade que distingue o sr. Nicolai (o regente da produção em 1863), para que declare ante o público em que ponto a partitura da minha ópera sofre as suas correções, cortes e acréscimos, que não fossem por mim apontadas, ou sugeridos apenas por necessidade da execução", disparou Gomes, enfurecido com o ritmo da produção, a falta de cantores, o despreparo da orquestra, as alterações feitas em sua partitura. Ele se mostrou furibundo até com o atraso do libretista em lhe enviar o texto para musicar.
Gênio difícil - A polêmica, fascinante, mostra a situação precária da cena musical carioca de então e o gênio difícil de Gomes, que seria testado várias vezes com o descaso dos teatros com suas óperas, mesmo em Il Guarany, estreado em 1870, no Scala, de Milão. Os produtores chegaram a organizar uma claque para vaiar a estréia de [oanna e destruir o compositor, sem sucesso. Em 15 de setembro de 1863 ela, por fim, foi encenada com a presença do imperador. No ano seguinte, Gomes embarcava para a Europa. Sem, no entanto, levar a partitura. "Creio que sabia não haver interesse por uma peça em português na Itália e talvez a considerasse uma obra indigna do futuro glorioso que esperava ter", avalia a professora. Aqui contou mesmo foi o talento do músico. Havia um decreto do Conservatório de Música do Rio de Janeiro que estabelecia como função dos mestres "propor ao governo, de cinco em cinco anos, o nome de algum aluno ou artista que se haja distinguido por seu talento transcendente a fim de ser mandado à Europa aperfeiçoar-se em música". Foi com a ópera que o compositor conseguiu o direito de estudar no exterior e não por uma benesse de Pedro 11.A maldade da moça foi a sorte do moço de Campinas. •
• HUMANIDADES
SOCIOLOGIA
A pena que vence a espada Tese mostra poder do discurso oficial e jornal ístico para criminalizar movimentos sociais
m Hamlet, de Shakespeare, o conturbado príncipe, ao ser questionado pelo personagem Polonius o que tanto chamava a atenção no livro que devorava, responde com desdém: "Palavras, palavras, palavras". Isso podia funcionar bem na Dinamarca, mas, no Brasil, quando o assunto é a posse da terra, há nas palavras muito mais do que imagina a nossa vã filosofia. Esse é o tema da tese de doutorado O Discurso do Conflito Materializado no MST: A Ferida Aberta da Nação, de Lucília Maria de Sousa Romão, defendida no Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, de Ribeirão Preto (FFLCRP/USP), orientada pela professora Leda Verdiani Tfouni, também da USP. Foram quase quatro anos de pesquisa sobre textos· e um trabalho de campo de entrevistas realizado em Matão (SP), no acampamento Dom Hélder Câmara, onde o Movimento dos Sem-Terra (MST) havia reunido mais de mil famílias. Ao analisar de que forma a imprensa e as autoridades usavam o discurso para retratar os sem-terra, Lucília descobriu na fala atual semelhanças incômodas com as formas com que, no passado, as mesmas organizações e governantes se referiram aos quilombos, a Canudos, ao Contestado, ao levante de camponeses suíços de lbicaba e às Ligas Camponesas, de Francisco Iulião. "Em todos os casos,
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Raso da Catarina, em foto de 1989: miséria ainda grassa no interior da Bahia PESQUISA FAPESP 84 • FEVEREIRO DE 2003 • 87
400 Jagunços Prisioneiros. Canudos, Bahia. 1897.
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Original de Flávio de Barros, pertencente ao Museu da República (RJ), recuperado digitalmente nos laboratórios da Reserva Técnica Fotográfica do Instituto Moreira Salles
o funcionamento discursivo procurava satanizar e criminalizar em suas práticas políticas e na denominação que receberam, o que indica uma formação discursiva capaz de imprimir um movimento de sentido sempre afinado", observa Lucília. "A saber: apagar as razões sociais que fazem os excluídos se mobilizarem, seqüestrando sua luta política e narrando, em lugar dela, o transtorno e a ameaça à paz democrática",completa a pesquisadora. egundo a professora, "o discurso oficial desloca a questão da luta pela terra da esfera civil para a área criminal". "Essatem sido uma tônica recorrente e acentuada nos últimos anos: desmerecer,denegrir e descontruir a imagem do outro, acusando-o de formar quadrilha, bando, cometer crimes ardi-
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88 • FEVEREIRO DE 2003 • PESQUISA FAPESP 84
losos, tais como seqüestro, implodir a ordem juridicamente igualitária e democrática do país", explica Lucília. ''Ao fazer isso, o sujeito se move para uma área do chamado interdiscurso - o ir-evir da memória discursiva - em que o rigor da lei deve ser usado para conter os bugres, os rebeldes, os subversivos, devastadores da ordem social': avalia a pesquisadora. Curiosamente, os mesmos termos foram usados pelo discurso oficiale jornalístico de há vários séculos para se referir aos "negros selvagens e insolentes" dos quilombos e, mais tarde, aos "rebeldes preguiçosos" colonos suíços da Fazenda Ibicaba. "Hoje, como então, não se quer falar sobre as razões que levaram essesvários movimentos históricos sociais a agir da forma como o fizeram. Ninguém quer saber, por exemplo, por que um grupo do MST ocupa uma fazenda, as condi-
ções socioeconômicas que os levaram a essa empreitada. O que transparece não é o fundo social,mas apenas o resultado 'ilegal', a 'bandalheira' e o 'vandalismo' É uma mecânica perversa': analisa a pesquisadora. Os vários movimentos sociais citados por Lucília já foram dissecados em seus mais diversos aspectos, mas poucos se preocuparam em entender que eles entraram em conflito com a sociedade também por meio do choque entre os seus discursos diferenciados, que a pesquisadora divide em "formação discursiva dominante" (com o aparato jurídico e ligada à grande imprensa nacional) e a "formação discursiva dominada", a do objeto de preconceito e difamação da primeira. "É fundamental analisar a construção da fala, em especial numa sociedade como a brasileira. O discurso tem um poder notável de tecer o imaginário e fazer o
Marcha de integrantes do MST: discurso com maior visibilidade que, aos poucos, vai conquistando a simpatia de setores mais esclarecidos, acredita a pesquisadora Lucília •
sentido caminhar numa única direção' como se fosse a verdadeira representação de um dado sócio-histórico", explica a professora. "Assim, influenciados por essa fala com poder de autoridade, muitos tomam para si essa perspectiva do que são os excluídos e o que os motiva a agir de uma dada maneira", analisa. "A opacidade da linguagem e o jogo permanente de espelhos do dito/silenciado cristalizam a noção de que todo dizer tem uma sombra, uma segunda pele colada no seu corpo. Cabe ao analista levar isso em conta. É o que eu faço quando olho para o registro de notícias travestidas de tom jornalístico com efeito de neutralidade", avisa. Pois, segundo Lucília, se o discurso oficial é forte, ganha um megafone potente na grande imprensa. "Na tentativa de explicar o mundo, o discurso jornalístico engorda suas estratégias para fazer a informação
parecer segura, confiável e fiel à realidade, como se esse fosse o único modo de dizer", avalia. Lucília acredita que isso é um velho chavão na imprensa brasileira quando o assunto são movimentos sociais de reivindicação da posse da terra. "Quem cobriu os eventos em Canudos foram apenas 'medalhões' ligados ao poder militar e aos jornais ligados ao Estado", lembra. Visão dos rebelados - Efetivamente, apenas no ano passado foi publicada a visão do conflito de Canudos do ponto de vista dos "rebelados" O Breviário de Antonio Conselheiro, lançado pela Universidade Federal da Bahia, data de 1895 e foi encontrado nas ruínas da vila por um soldado. Com mais de 700 páginas, traz esclarecimentos sobre a real motivação dos homens do Conselheiro e a comparação do texto com as idéias
propagadas sobre o movimento em Os Sertões, de Euclides da Cunha, mostra os equívocos oficiais da representação dos "insurretos" "A imprensa é apenas ilusão de objetividade. Daí a importância do MST ao recapturar o discurso da luta pela terra. Afinal, ao contrário dos movimentos anteriores, o atual é mais organizado e descentralizado, não se limitando a um único lugar, mas permeando todo o país", nota Lucília. "Consegue dessa forma um discurso com maior visibilidade que, aos poucos, vai conquistando a simpatia de setores mais esclarecidos, que já não os vêem mais como o discurso dominante os retrata", diz. "Muitos fazem uma reprodução acrítica do discurso que recebem. Meu trabalho quer justamente mostrar o perigo disso." É bom desconfiar que a pena pode ser mais forte do que a espada. • PESQUISA FAPESP 84 • FEVEREIRO DE 2003 • 89
• HUMANIDADES ARTES
CÊNICAS
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Estudo, agora transformado em Iivro, mostra como o dramaturgo ital iano garante a perenidade do teatro político MÁRIO
VIANA
ozinho em cena, o homem de roupas escuras fala sem parar, gesticula bastante e arrasta multidões. Aos 77 anos, mantém como que hipnotizadas platéias de até 8 mil pessoas num só espetáculo. Sedutor como poucos, transforma-se no melhor amigo de cada espectador, a quem narra pelo microfone alguma história que parece ter acontecido ontem. Se uma pessoa na platéia tosse, espirra ou deixa tocar um celular, o homem se aproveita do fato - e, sem perder um só instante o fio da meada que vem tecendo, incorpora o inesperado à narrativa, como se ambos fossem naturalmente interligados. O público ri, aplaude, delicia-se com o italiano Dario Fo, mestre na precisão quase cirúrgica dos gestos e na fabulosa arte de contar histórias. Ator, diretor, dramaturgo e, desde 1997, Prêmio Nobel de Literatura, Dario Fo transformou-se também em objeto de estudos de Neyde Veneziano, livre-docente em Teatro pela Escola de Comunicações de Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Publicada pela Editora Códex, a tese de pós-doutorado A
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Cena de Daria Fo - O Exercício da Imaginação, que contou com o apoio da FAPESP,
é o primeiro estudo em português sobre o artista italiano. O primeiro feito da pesquisa de eyde Veneziano é jogar uma luz de estudiosa sobre o trabalho de um profissional pouco afeito às teorias. Pesquisador incansável das origens da comédia popular, Fo resgatou para a cena contemporânea elementos perdidos na Idade Média - como os jograis, os contadores de histórias (ou racontadores, como prefere a professora). Misturou esses estudos com signos da comédia mais popular, daquelas feitas em circo, e jogou em tudo um forte tempero político - forte o suficiente para marcar sua obra e vinculá-Ia ao pensamento de esquerda. Para al-
guns, a postura politizada poderia ser a razão de um certo envelhecimento do trabalho do dramaturgo: na Itália, algumas universidades travam verdadeiras batalhas contra Fo e sua dramaturgia engajada. Outros o acusam de falso revolucionário, pois defende teses de esquerda, mas não dispensa a vida confortável, com Mercedes na garagem, jóias e outros signos do "luxo burguês". No Brasil, esse tipo de implicância não pegou e ele tem aqui vários defensores. "Dario Fo é um desses artistas que resignificam a tradição, à medida que a colocam em novo patamar, dando-lhe atualidade, porém preservando dela os constituintes fundamentais", afirma Silvana Garcia, professora-orientadora no program.a de pós-graduação da ECA/USP. "Ele fez isso com a com media dell'arte, com a tradição cômica medieval, com a mímica moderna, e a todas essas heranças ele acrescentou a substância crítica política, o que o remete às origens da comédia, a Aristófanes." Para o diretor Antonio Abujamra, responsável pelas primeiras montagens de Dario Fo no Brasil, o autor italiano é imprescindível. "Ele é um arsenal de teatro popular", afirma. "Como autor, Fo percebeu a falta de espaço que havia para os derrotados da História e decidiu dar voz a eles em seu trabalho." Abujamra assinou duas direções de textos de Fo, ambas no começo dos anos 80: Morte Acidental
de um Anarquista,
estrelada por Antônio Fagundes e com casa cheia durante sete anos; e Um Orgasmo Adulto Escapa do Zoológico, espetáculo que serviu de trampolim para o "teatro essencial" da atriz Denise Stoklos. Em ambos assim como em toda a obra do italiano - o humor ácido é constante. "Dario Fo sabe que sem humor não é possível suportar o planeta", comenta Abujamra. "É impressionante, porque ele não é grande PESQUISA FAPESP 84 • FEVEREIRO DE 2003 • 91
ator, mas é um tremendamente bom contador de histórias." Essa qualidade, Fo apreendeu desde a infância, ouvindo os contadores do Lago Maggiore. Com eles, o dramaturgo aprenderia a usar dialetos, a prestar atenção aos movimentos da platéia, a usar da hipérbole e do surreal, a passar de um personagem a outro mesmo contando uma história narrada na primeira pessoa. alvez resida nessa chave um dos segredos da permanência da obra de Fo. "Ele pesquisou a história dos gestos tão profundamente que, hoje, quando está em cena, transforma o menor movimento numa coisa enorme. Ele apenas mexe a mão e o teatro inteiro percebe o que ele está contando", afirma o ator gaúcho Roberto Birindelli. Há dez anos, Birindelli percorre várias cidades - no Brasil e no exterior - apresentando o monólogo Il Primo Miracolo, um dos textos mais engraçados e críticos de Fo. Na peça, ele conta o desajuste que Jesus, acompanhado de José e Maria, sentia quando ia brincar com crianças do Egito. "Ele fala de segregação racial, de isolamento do estrangeiro, e é possível adaptar isso a qualquer situação': diz o ator, que fica sozinho em cena e representa 21 personagens. Esse é claramente um método Fo de apresentação de espetáculo. Embora como diretor, ele saiba usar muito bem os recursos fornecidos pela tecnologia, quando vai ao palco Fo prefere a limpeza total de elementos. Só que, para chegar a essa simplicidade, ele trabalha trabalha muito. "Não existe musa inspiradora, que vem de noite e sopra versos no ouvido do dramaturgo", explica Neyde Veneziano. "É tudo técnica, muita técnica, muita pesquisa." O dramaturgo recebe ajuda de pesquisadores, digere o que lê e monta um texto, que servirá apenas de guia para o espetáculo. No processo de ensaios, gestos e voz vão ganhando vida e recebem acréscimos a cada apresentação. "Em nenhum momento, Fo remonta um espetáculo do mesmo modo que fez há dez, 15 anos. Ele muda, adapta, atualiza e perpetua:' Ao gesto, Dario Fo acrescenta o uso requintado da voz. Nascido em um país onde cada cidade parece ter um acento próprio, Fo percebeu que o bom con-
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92 • FEVEREIRO DE 2003 • PESQUISA FAPESP 84
ta dor de histórias capta a voz de cada personagem no meio do povo. "Poucos atores hoje entendem que voz é corpo, que a fala tem uma função poética e que ela só se realiza com o uso de um elemento concreto, que é o som", afirma a professora Sarah Lopes, responsável pela cadeira de Expressão Vocal do Departamento de Artes Cênicas do Instituto de Artes da Unicamp. "Dario Fo faz isso brilhantemente. Ele domina a técnica do raconto e, por isso, sabe adaptar cada espetáculo à região em que está apresentando. Fo é como um músico que domina seu instrumento e é capaz de executar qualquer ritmo."
o PROJETO A Cena de Dario FoO Exercício da Imaginação MODALIDADE
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EUGENIA CASINI ROPA- Dipartamento di Musica e Spetacolo da Universidade de Bologna (Itália) BOLSISTA
NEYDE VENEZIANO - Escola de Comunicações e Artes da USP
realidade histórica em particular." No caso de Dario Fo, a prova disso é que suas peças continuam a ser montadas e sob condições, em todos os sentidos, geográficos e históricos, bastante distantes daquelas de origem dessa produção. "Quem acha que um teatro de re sistência está fora de moda não entende nada de Dario Fo", avisa Neyde. "Seu teatro político não é agressivo, é provocador, o que é bem diferente." Para ela, o homem político Fo foi chegando, com o passar dos anos, ao homem sensível. "Ele provoca, mas dando um abraço nas pessoas. É como se fizesse um teatro político humanista" diz. Admirador confesso do italiano, o autor, ator e diretor Hugo Possolo, do grupo Parlapatões, acha que o engajamento político de Fo não é limitador de sua dramaturgia. "Como ele se apóia basicamente na cultura popular, sempre contando histórias do ponto de vista do desfavorecido, o trabalho ganha um viés de esquerda mas o que fica mesmo é a raiz popular apresentada com um tremendo poder poético", diz Possolo.
A capacidade de garimpar a essência da comédia popular e descobrir elementos do medievo no riso de hoje foi, evidentemente, estimulada pelo viés político de Dario Fo e Franca Rarne, sua mulher, também atriz. O teatro que passaram a fazer nos anos 70 ganhou forte coloração política, com apresentações em fábricas, sindicatos, escolas, quadras de bocha e onde mais fosse possível montar um espetáculo. A organização da companhia, vinculada a um braço do Partido Comunista Italiano, era comunitária - nos cartazes, os nomes de Franca e Dario não encabeçavam o elenco, mas vinham em mo-
desta ordem alfabética. Mesmo assim, em nenhum momento Fo abriria mão de sua concepção de teatro popular. "Ele não se preocupou em fazer um teatro partidário, mas um teatro político'; analisa Sarah Lopes. "Dario Fo sabe defender uma ideologia sem perder em momento algum a qualidade artística." "Todo teatro de intenção política tira sua seiva do momento histórico, mas ganha universalidade pelo emprego de construções alegóricas e metafóricas", afirma Silvana Garcia. "Esse teatro aceita atualizações, porque se dispõe a ser um instrumento interpretativo da realidade e não um mero retrato daquela
Ariano Suassuna - Segundo Neyde Veneziano e Sarah Lopes, os Parlapatões são, no Brasil, o grupo que faz um trabalho mais próximo da dramaturgia que Dario Fo produz na Itália - na literatura, o trabalho de Ariano Suassuna é o que mais se aproxima da união de popular e erudito. "No caso do teatro, a diferença fica muito por conta da técnica, que Fo domina como poucos", afirma Sarah. Também seria creditado a favor do italiano a classe de Fo, que evita a vulgaridade a todo custo. Possolo discorda. "Só porque ele ganhou um Nobel, isso não significa que deva ser lido como um autor sacralizado", afirma. "Existe um lado escatológico forte na obra dele, como em algumas histórias de Mistério Buf[o, por exemplo." Artista com impressionante capacidade de aproveitar o momento da platéia e misturá-lo à história que está representando, Possolo - que busca inspiração nos circos - não hesita em classificar Dario Fo como um palhaço. "Assim como Léo Bassi, outro italiano, Fo recoloca o palhaço como demolido r de morais vigentes, capaz de tecer críticas profundas enquanto faz rir. E isso não fica ultrapassado nunca." • PESQUISA FAPESP 84 • FEVEREIRO DE 2003 • 93
Uma justa homenagem Ensaios tratam da questão judaica do século 16 ao 20 JACQUELINE
"
MUitos
HERMANN
marranos
perderam suas vidas, não porque secretamente continuassem em sua fé religiosa judaica, ou porque expressassem uma fé sincrética, mas porque eram judeus, exatamente como milhões de judeus perderam suas vidas no século 20, não por razões religiosas, mas, simplesmente, porque eram judeus." Esse pequeno trecho de um artigo recente da professora Anita Novinsky resume bem o horizonte conceitual que motivou a trajetória acadêmica e intelectual da mais importante estudiosa do judaísmo no Brasil. Em seu clássico Cristãos-Novos na Bahia, publicado em 1972, Anita Novinsky elaborou o conceito de "homem dividido" para tentar traduzir o sentimento de exclusão vivenciado por um imenso contingente de judeus portugueses que, a partir de 1497, foram obrigados a se converter ao cristianismo, passando a não ser mais nem judeus para os judeus, nem cristãos entre aqueles que pa~saram a ser chamados de cristãos-velhos, grupo livre da ascendência que passou a identificar o "sangue infecto" dos descendentes da lei mosaica. Quase 30 anos depois, e aprofundando a discussão sobre o conflito interior desse "homem dividido", Novinsky tem preferido o termo marrano a cristão-novo para compreender a história sefardita no Brasil colonial, argumentando que, embora muitos recém-conversos perseguidos pela Inquisição portuguesa tenham mantido em segredo suas crenças e práticas proibidas, estruturou-se na colônia uma sociedade marrana pluralista e cuja ligação não se deu necessariamente por meio da religião. Sua tese fundamental é a de que não foi a prática religiosa que motivou a perseguição inquisitorial ou a discriminação racial, mas a "velha tradição anti-semita do mundo ocidental", reelaborada contínua e historicamente. Para compreender o caminho capaz de ligar as duas pontas dessa trajetória conceitual é preciso inseri-lo no campo de estudos judaicos que a historiadora e a obra de 1972 criaram, e do que dá provas inequívocas o recém-lançado Ensaios sobre a Intolerância. Inquisição, Marranismo e Anti-semitismo, or94 . FEVEREIRO DE 2003 • PESQUISA FAPESP 84
ganizado por Lina Gorenstein e Maria Luiza Tucci Carneiro, ambas formadas na chamada "escola Novinsky" Livro de justíssima homenaLina Gorenstein gem à pesquisadora da USP, o e Maria Luiza Tucci conjunto de ensaios ultraCarneiro (orqs.) passa, da melhor forma posHumanitas FFLCH/USP sível, a deferência dos autores 442 páginas com "a mestra" de todos eles, R$ 40,00 pois demonstram não só a vitalidade dos estudos judaicos no Brasil como as sendas abertas pela documentação inquisitorial inventariada e desde 1978 posta à disposição dos pesquisadores não só da questão marrana, mas também das religiosidades e da vida cultural da colônia, por meio da série Fontes para a História de Portugal e
Ensaios sobre a Intolerância. Inquisição, Marranismo e Anti-Semitismo
do Brasil. O livro está dividido em cinco partes e, apesar de dedicar a maioria a alguns dos inúmeros aspectos da questão judaica do século 16 ao 20, traz também estudos que cruzam a questão judaica com outras dimensões da discriminação - a exemplo do texto de Luiz Mott sobre cristãos-novos homossexuais nos tempos da Inquisição -, ou trabalhos que tiveram início com os processos inquisitoriais indicados por Anita Novisnky e resultaram em campo novo de pesquisa, como foi o caso das religiosidades populares na colônia, aberto por Laura de Mello e Souza e presente na homenagem a Novinsky com mais um de seus inspiradores trabalhos sobre o calundu. Mas se ainda não bastasse, inclui-se entre os ensaios artigo que polemiza com a tese central da homenageada: Ronaldo Vainfas analisa um escrito da primeira metade do século 16 e levanta indícios dos aspectos essencialmente doutrinários e religiosos da cruzada antijudaica presente em Portugal no período. Trata-se, portanto, de uma homenagem que procurou estar à altura da contribuição de Anita Novinsky à historiografia brasileira. E isso não podia ser pouco.
JACQUELINE HERMANN é professora do Departamento de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora de O Sonho da Salvação, 1580-1600 (Companhia das Letras, 2000)
Verger: um Retrato em Preto e Branco Cida Nóbrega e Regina Echeverria Corrupio 484 páginas / R$ 90,00 Com texto da jornalista Regina Echeverria e da pesquisadora Cida Nóbrega (tudo numa belíssima edição com 222 fotografias feitas por ele e sobre ele), eis, enfim, a primeira biografia de Pierre Verger, encerrando, de forma ideal, as celebrações do centenário do antropólogo e fotógrafo francês que amava o Brasil, morto em fevereiro de 1996. O livro é uma referência necessária para se entender o que foi o país e o que pode vir a ser. Bom lançamento.
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Com uma Perna Só Oliver Sacks Companhia das Letras 216 páginas / R$ 31,50 O neurologista inglês e profícuo escritor Oliver Sacks lança mais um livro. Desta vez, ele conta sobre o acidente que ocorreu na Noruega, em 1974, quando machucou a perna esquerda, sofreu uma cirurgia e passou a ter a sensação de que ela se tornara inexistente. Preso à cama, sentindo-se isolado pela insensibilidade dos colegas médicos, Sacks critica os padrões do atendimento de sistema de saúde e analisa os mecanismos neurossensoriais responsáveis pela formação da imagem corporal. É um belo relato de um momento crítico de sua vida pessoal.
Ensaios sobre a Formação Econômica Regional do Brasil
Manto de Penélope
João Pinto Furtado Companhia da Letras 328 páginas / R$ 39,00 Assim como a Penélope homérica tecia, toda noite, uma tapeçaria apenas para, de dia, desfazê-Ia, o conceito de Inconfidência Mineira ganha, a cada novo momento histórico e político nacional, um novo contorno ideológico. Contar o que efetivamente foi o movimento transforma-se, nesse movimento constante, numa tarefa homérica. Por meio do perfil dos personagens e das condições do tempo, o autor propõe uma leitura inovadora do evento.
Wilson Cano Editora Unicamp 152 páginas / R$ 17,00 O livro do economista Wilson Cano, professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, reúne cinco textos escritos por ele entre 1983 e 2000, trazendo a precisa visão do autor sobre a formação econômica regional do país e a integração do mercado nacional. Os artigos tratam desde o Ciclo do Ouro, em Minas Gerais, no século 18, até uma notável discussão sobre o pensamento de Celso Furtado relativo ao papel da agricultura itinerante, atualizado para os dias de hoje. Indispensável.
Literatura e Resistência
o Desenvolvimento
de Produtos Sustentáveis
Alfredo Bosi Companhia das Letras 302 páginas / R$ 37,00 Conhecido por sua visão marxista da literatura, Alfredo Bosi está de volta num livro exemplarmente construído e que analisa, com sagacidade, as obras em que se pode notar um componente estético e ético de resistência. São eles: o padre Antônio Vieira e sua busca de uma utopia, mesmo contra a Inquisição; Basílio da Gama e a sua simpatia pela luta dos guaranis; Cruz e Souza resistindo contra o preconceito social, incluindo-se uma experiência pessoal; Euclides da Cunha e de como a elite se curvou aos sertanejos; entre outros.
Ezio Manzini e Carlo Vezzoli Edusp 368 páginas / R$ 39,00 Até há pouco tempo, falar para empresários em gastos para garantir . . o futuro do meio ambiente era ,L---=---'--'--I..:::.....:.:~ pregar no deserto. Hoje, a consciência é bem outra. Esse é o foco do livro dos dois pesquisadores do Politecnico di Milano: o desnvolvimento sustentável. A preocupação da dupla é colocar alternativas para uma reorientação das empresas na busca por produtos e serviços que minimizem o impacto. O livro ajuda a preparação para a inevitável transição para a sustentabilidade. ':jc
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Instituto de Ciências Biológicas (lCB) Universidade Federal de Minas Gerais
Mestrado em Genética - ANO 2003 Estão abertas as inscrições para a seleção de mestrado até 12 de fevereiro. Inscrições e matrículas na secretaria do curso: Bloco L3, sala 317, Instituto de Ciências Biológicas da UFMG Caixa Postal 486, CEP 31270-901 Belo Horizonte, MG Horários: Segunda a sexta-feira, das 10:00 às 12:00 horas e das 14:00 às 16:30 horas. Informações complementares: http://www.icb.ufmg.br/-pg-gen/
UNICAMP Especialização na FEA
o Curso
de Especialização "Gestão da Qualidade e Segurança dos Alimentos", oferecido; pela Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), será realízado de 21 de março a dezembro de 2003. Tem duração de 390 horas/aula, ministradas às sextasfeiras (15 às 23 horas) e sábados (8 às 17 horas). As inscrições estão abertas e poderão ser efetuadas até 14 de março, na Secretaria de Extensão da FEA. A documentação necessária é copia autenticada do CPF, RG, diploma de graduação, uma foto 3 x 4 e currículo. O processo seletivo inclui análise de currículo e entrevista com a Coordenação Acadêmica do curso. O resumo das ementas das disciplinas poderá ser visualizado em http://www.fea.unicamp.br/ensino/extensao/ especializacao/fea-200.html. Mais informações: Telefone: (19) 3788-3886 e-rnail: extensao@fea.unicamp.br
PESQUISA FAPESP 84 • FEVEREIRODE 2003 • 97
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