Dinossauros no Maranhão

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no Brasil

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SEÇÕES

REPORTAGENS

CARTAS ....................... . ... 5 CARTA DO EDITOR ................... 7 MEMÓRIA ......................... 8 Há 200 anos, São Paulo era desbravado por expedições científicas

ESTRATÉGIAS Marte no horizonte da Terra .. . .... .. ... 10 Luz nos defeitos da mitocôndria . ... . .. .. . 10 Água e gás para erguer Veneza . . .. ... ... 11 Aterro da discórdia ..... .. .. . ..... .. .. 11 Vida longa para os cientistas coreanos . .... 11 A Índia testa sua vacina contra a Aids . .. . . 12

CAPA

AMBIENTE

Professor de biologia e agricultor participam da descoberta de um vasto depósito de fósseis de dinossauros no interior do Maranhão . .. .. 28

Caranguejo do Ártico é a primeira espécie marinha invasora encontrada na Antártida ..... 38

VIROLOGIA POLÍTICA CIENTÍFICA ETECNOLÓGICA DEFESA Cobaias humanas expostas ao frio . .. .. .. . 12 Do Congresso para a Esplanada .. .. .. .. .. 13 A miséria que cerca Alcântara . . ... . ... . . 13 CN Pq reajusta valor de bolsas ........... 13 Ohomem virtual e suas doenças .... ... . . . 14

Institutos militar terão mais recursos dos fundos setorais . . .. .. ...

1~

PARCERIA Prêmio de ciência e literatura ganha apoio da FAPESP .. . . . 23

CIÊNCIA ECOLOGIA

Equipe explica como o HIV se esconde e por que a interrupção do tratamento contra a Aids nem sempre funciona .... 42

NEUROIMUNOLOGIA

Esforço reconhecido nos Estados Unidos .. . 14 A bioética vai à Internet ......... . ... . . 14 Controle sobre a pesquisa de drogas . . .. ... 15 Na floresta, sem burocracia . .. . ... . ... .. 15 Bloqueio à vaca louca . .. .. .. ... .. ..... 15 Programa começa a todo vapor ... . . ... .. 15

Estresse produz efeitos inesperados sobre as conexões entre os sistemas nervoso, imune e endócrina . . .. .. .. . 44 Aumento da temperatura, acelerado pela ação humana, deve redesenhar o perfil da vida no planeta . .. . . 34

GENÔMICA Poucos genes podem ser responsáveis pela agressividade de alguns tipos de câncer . .. . 48 PESQUISA FAPESP 9b • FEVEREIRO DE 2004 • 3


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·~ PesqUISa

Ciência e Tecnologia no Brasil

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REPORTAGENS

SEÇÕES LABORATÓRIO Omomento de florescer , , ............. 24 Fertilidade masculina em queda .......... 24 Nas origens do mal de Alzheimer . , , ...... 25 Diferenças gritantes , .. , , .. . , .. ....... 25 Migrantes morrem mais do coração ....... 26

EPIDEMIOLOGIA

GEOCIÊNCIAS

Menos comprimidos de cloroquina têm o mesmo efeito que o tratamento tradicional contra a malária ........... 51

Sistema auxilia polícia e prefeituras a identificar com mapas e fotos a origem de chamadas telefônicas . .... 74

AGRONOMIA

ODONTOLOGIA

Rede de pomares experimentais testa variedades de citros mais resistentes a doenças ....... 52

Avançam as pesquisas com laser em tratamentos dentários .. ..... 76

ASTROFÍSICA

ENGENHARIA MECÂNICA Sistema de ultra-som verifica estruturas de oleodutos e paredes de usinas nucleares ......... 80

HUMANIDADES

Pressão alta em Vitória ...•............ 26 A Mimosa reaparece .................. 27 Opção nacional pela poltrona do sofá ...... 27

LITERATURA

SCIELO NOTÍCIAS . .. ............... 58 LINHA DE PRODUÇÃO Nanofios menores que a luz ............. Em busca do "vidro perfeito" ........... Rede de apoio à nanotecnologia .......... Roupa monitora paciente cardíaco ........

60 60 60 61

Mais numerosos do que se pensava, os buracos negros podem estar presentes em todas as galáxias ..... . .. 54

TECNOLOGIA ENGENHARIA AMBIENTAL Estudo analisa os dois lados de Machado de Assis: o funcionário público e o romancista ...... 82

HISTÓRIA Sistema poliglota salva motoristas ... .. .. . 61 Fibra de sisai nas telhas ...... .. ..... . . 61 Incubadora aeroespacial ............... 61 Estímulo elétrico nos nervos . . .. ........ 62 Parceria para criar softwares ....... . ... 62 Incubadas resistem às adversidades .... . .. 62 Motor aproveita energia térmica ......... 63 Patentes ......... , ....... , ... , .... 63

RESENHA .. . ........... .. ......... 94 Grupo Arquitetura Nova Flávio Império, Rodrigo Lefevre e Sérgio Ferro, de Ana Paula l<oury LIVROS ........................... 95 CLASSIFICADOS .. ...... ... ........ 96 4 • FEVEREIRO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 96

Carlota Joaquina surge em livro como política hábil ... 86

DIREITO Estudo aponta problemas dos Juizados Especiais do Estado de São Paulo . .... 90

Plasma na reciclagem de alumínio garante ganhos econômicos ......... 64

DIÁRIO Saem em livro anotações inéditas de Albert Einstein em sua visita à América do Sul ... 92

QUÍMICA Pesquisadores desenvolvem substâncias sintéticas para uso em biossensores .... 70

Capa: Hélio de Almeida Ilustração da capa: An derson Pinheiro Tratamento de imagem : José Roberto Medda


cartas@fapesp. br

Cotas Agradeço à FAPESP por proporcionar tão bela e rica revista sempre recheada de textos de alto nível de informação, mas sem o detestável esnobismo científico e o inalcançável "cientifiquês': Parabéns também pelo texto sobre a tese de Sérgio Buarque (edição n° 93): ótimo da primeira letra até o ponto final. Na seção Opinião, da edição no 94 ("Políticas de afirmação do negro no Brasil"), o tema em questão é tratado como uma dívida a ser paga pelos brancos aos desfavorecidos e prejudicados negros. Creio que não seja bem assim. Na página 9, é feito um contraste entre o percentual de negros e o de brancos na universidade no Brasil e esta comparação ampara a justificativa da ação compensatória das cotas. Por toda conjuntura política e social da construção do Brasil e do povo brasileiro, os brancos sempre estiveram na dianteira não só dos negros, mas dos não brancos de uma maneira geral. Construir um raciocínio como esse é admitir a existência de um abismo natural e socialmente intransponível e que existe uma competição, não entre pessoas, mas entre etnias. Se for sustentado tal pensamento, dificilmente serão compensados aqueles percentuais. Creio que o primeiro esforço seja o de abandonar a visão do "eles x nós". Se no início do século 20 era impossível se pensar em negros dentro de cursos universitários, hoje isto acontece e demonstra que o abismo não é intransponível e que as cotas não são necessárias. Em vez de investir na facilitação do acesso às universidades, deve-se investir na oferta de oportunidades indistintamente ao longo da pirâmide social. Dessa forma, o equilíbrio seria baseado no aproveitamento dessas oportunidades e não em correções artificiais. F ÁBIO RE NATO FERREIRA DO NASCIMENTO (NEGRO BRASILEIRO)

Rio de Janeiro, RJ

As cotas para negros nas universidades são nítidamente populistas e demagógicas. Primeiro, porque excluem integrantes de outras etnias que também sofreram ou sofrem injustiças (o índio é um gritante exemplo). Segundo, porque os números dos censos não levam em conta uma definição precisa de negro. Terceiro, porque desviam a atenção de algo essencial que é o de fornecer um ensino básico de qualidade à população pobre (constituída, supõe-se, de maioria negra). Este sim é o verdadeiro, justo e urgente desafio, preparar os alunos do ensino básico público para competir em condições de igualdade com os alunos do ensino privado. O resto é politicagem. L AURJVAL

A. DE

L UCA JR.

FOAr/Unesp Araraquara, SP

Correções Na reportagem "Inovações nos aços" (edição no 95) , a produção mundial de aço inoxidável- 12 milhões de toneladas por ano- refere-se à média da década de 1990. Segundo o Fórum Internacional de Aço Inoxidável, a produção de 2000 foi de 19,3 milhões de toneladas. Para 2003, a entidade estima 21,5 milhões de toneladas e, para 2004, 22,9 milhões de toneladas. É relevante mencionar que esses números referem-se a lingotes de aço bruto e englobam aços inoxidáveis e os resistentes ao calor. Na reportagem "Dose semanal" (edição no 95) consta a frase: "... o encapsulamento altera as propriedades tisico-químicas e biológicas do princípio ativo .. :: O correto é "... o encapsulamento não altera as propriedades .. :'.

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br, pelo fax (ll) 3838-4181 ou para a Rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP, CEP 05468-90 1. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

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EDITAL PARA APRESENTAÇÃO DE PROJETOS DE PESQUISA

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Inovação Tecnológica

PEQUENAS EMPRESAS A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo- FAPESP, por meio do Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas- PIPE, financia projetos de pesquisa destinados à inovação tecnológica de produtos, processos ou serviços com potencial de retorno econõmico ou social. As propostas podem ser inscritas até 31 de março, 31 de julho e 30 de novembro. Desde 1998, o PIPE apóia mais de 300 projetas. As condições para apresentação de propostas são as seguintes: Empresa - Qualifica-se para apresentar proposta empresa sediada no Estado de São Paulo, com até 100 empregados. A empresa poderá ser constituída após a aprovação do projeto. Neste caso, a FAPESP somente fará a contratação do projeto após a constituição formal da empresa. Pesquisador - Opesquisador responsável pela elaboração e desenvolvimento do projeto deverá evidenciar experiência e competência na respectiva área de conhecimento, não sendo exigida nenhuma titulação de pós-graduação. Deverá também dedicar um mínimo de 20 horas semanais à execução do projeto. Se o pesquisador não pertencer ao quadro de funcionários da empresa, poderá ser solicitada uma bolsa na modalidade Pequenas Empresas da FAPESP para dedicar-se ao projeto. Solicitação de apoio: As propostas devem ser encaminhadas à FAPESP, pelo pesquisador com o endosso da empresa, em formulário específico acompanhado da documentação descrita na página www.fapesp.br/ pipe. Peça central para avaliação da proposta é o Projeto de Pesquisa, que deve descrever claramente a inovação pretendida, seu potencial comercial e a metodologia a ser utilizada. Os projetas devem ser organizados abrangendo três fases. Fase 1: com duração de seis meses e financiamento de até R$ 75 mil, destina-se à pesquisa de viabilidade técnica da inovação proposta. Fase 11: com duração máxima de dois anos e financiamento de até R$ 300 mil, destina-se ao desenvolvimento propriamente dito do projeto de pesquisa. Nesta fase, somente serão financiados os projetas considerados bem-sucedidos na Fase I e que apresentem um bem estruturado Plano de Negócios para a comercialização da inovação resultante . Para a elaboração desse plano, as empresas poderão contar com o apoio do PIPEEmpreendedor, um programa de treinamento especializado com enfoque pragmático e vivencial em gestão de negócios, uma parceria da FAPESP com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas - SEBRAE-SP e o Instituto Empreender Endeavor. Fase III: destina-se ao desenvolvimento de produtos com base nos resultados obtidos na fase anterior. Nessa fase , os custos caberão exclusivamente à empresa, podendo a FAPESP apoiá-la na busca de financiamento de outras fontes. Para esse fim , a FAPESP firmou convênios com o SEBRAE e com a Financiadora de Estudos e Projetas - FINEP e tem buscado estabelecer cantatas com empresas de capital de risco que possam efetivamente apoiar a produção de inovações para o mercado. Próximo prazo para apresentação de propostas: 31 de março de 2004. Seleção dos projetos: A análise das propostas segue a sistemática de avaliação pelos pares, sendo cada proposta encaminhada a assessores ad hoc, especialistas na área em que se enquadra o projeto de pesquisa. Nenhum setor da atividade econômica é priorizado. • Informações detalhadas, formulários e a lista dos projetas já financiados pelo PIPE, podem ser obtidos na página www.fapesp.br/ pipe. • Informações adicionais podem ser solicitadas por correio eletrônico no endereço intec-pipe@fapesp.br

SECRETARIA DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO

GOVERNO DO ESTADO DE

SÃO PAULO CUIDANDO DE GENTE


CflRTn oo

EDITOR

Pesquisa FAPESP CARLOSVOGT PRESIDENTE

Um toque de ficção

PAULO EDUARDO DE ABREU MACHADO V[CE-PffES!DENTE CONSELHO SUPERIOR ADILSON AVANSI DE ABREU, CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, CARLOS VOGT, CELSO LAFER, HERMANN WEVER, HORÁCIO LAFER PIVA, MARCOS MACARI, NILSON DIAS VIEIRA JÚNIOR, PAULO EDUARDO DE ABREU MACHADO, RICARDO RENZO BRENTANI.VAHANAGOPYAN.YOSHIAKINAKANO CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO FRANCISCO ROMEU LANDI DIRETOR PRESIDENTE JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER DIRETOR ADMINISTRATIVO JOSÉ FERNANDO PEREZ DIRETOR CIENTIFICO PESOUISA FAPESP CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADORCIENTÍFICO), EDGAR DUTRA ZANOTTO, FRANCISCO ANTÔNIO BEZERRA COUTINHO, FRANCISCO ROMEU LANDI, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, JOSÉ FERNANDO PEREZ, LUIZ EUGÊNIO ARAÚJO DE MORAES MELLO, PAULA MONTERO.WALTER COLLI DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA EDITOR CHEFE NELDSON MARCOLIN EDITORA SÊNIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS DIRETOR DE ARTE HÉLIO DE ALMEIDA EDITORES CARLOS FIORAVANTI (CiÈNClí), CARLOS HAAG (HUMANÍOADES), CLAUDIA IZIQUE (PCLITOUT), HEITOR SHIMIZU (VERSÃOON-LINE), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA) EDITOR ESPECIAL MARCOS PIVETTA ED1TORES-ASS1STENTES DINORAH ERENO, RICARDO ZORZETTO CHEFE DE ARTE TÂNIA MARIA DOS SANTOS DIAGRAMAÇÀO JOSÉ ROBERTO MEDDA, LUCIANA FACCHINI FOTÓGRAFOS EDUARDO CÉSAR, MIGUEL BOYAYAN COLABORADORES EDUARDO GERAQUE (ON-LINE), FABRiCIO MARQUES, GIL PINHEIRO, LAURABEATRIZ, MARGÔ NEGRO, RENATA SARAIVA, SAMUEL ANTENOR, SÍRIO J. B. CANÇADO, THIAGOROMERO (ON-LINE), YURI VASCONCELOS ASSINATURAS TELETARGET TEL. (11) 3038-1434 - FAX: (11) 3038-1418 e-mail: fapesp@teletarget.com.br APOIO DE MARKETING SINGULAR ARQUITETURA DE MlDIA singular@sing.com.br PUBLICIDADE TEL/FAX: (11) 3838-4008 e-mail: mpiliadis@fapesp.br (PAULA ILIADIS) PRÉ-IMPRESSÃO GRAPHBOX-CARAN IMPRESSÃO PLURAL EDITORA E GRÁFICA TIRAGEM: 44.000 EXEMPLARES DISTRIBUIÇÃO DINAP CIRCULAÇÃO E ATENDIMENTO AO JORNALEIRO LMX (ALESSANDRA MACHADO) TEL: (11) 3865-4949 atendimento@lmx.com.br FAPESP RUA PIO XI, N" 1.500, CEP 05468-901 ALTO DA LAPA - SÃO PAULO - SP TEL. (11) 3838-4000 - FAX: (11) 3838-4181

http://www.revistapesquisa.fapesp.br cartas@fapesp.br NÚMEROS ATRASADOS TEL. (11) 3038-1438

Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAPESP É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO SECRETARIA DA CIÊNCIA,TECNOLOGIA, DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E TURISMO GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Quando uma série de curiosos acasos e coincidências leva a uma descoberta significativa, um reipretensioso sobre um achado científico, passando ao largo das asperezas da linguagem científica, pode se tornar leitura quase tão envolvente e divertida quanto um pequeno conto escrito com graça e leveza por autor que domina o seu ofício. E isso, mesmo para quem situa as grandes narrativas ficcionais em lugar incomparável dentre as criações da cultura que mais nos deleitam o espírito. Esse comentário vem a propósito da reportagem de capa desta edição em que o editor-assistente de Ciência, Ricardo Zorzetto, relata, a partir da página 28, o achado de aproximadamente 70 fósseis de dinossauros com cerca de 110 milhões de anos, no interior do Maranhão e, graças a esse material, a possível descoberta de uma espécie desconhecida desses gigantescos répteis pré-históricos. Independentemente do amplo e muito útil panorama traçado na reportagem sobre a pesquisa de dinossauros no Brasil, no caso, é mesmo o como se chega aos fósseis que dá sabor especial ao texto, ao envolver num mesmo e inusitado enredo um rapaz tagarela, empenhado em fazer proselitismo religioso, um agricultor, um professor de biologia formado pela Universidade Federal do Piauí e um paleontólogo da Universidade Federal do Maranhão. Vale a pena conferir. O passado remoto entrevisto com as armas da ciência é, sem dúvida, fascinante - é compreensível, portanto, alguma relutância em sair das imaginárias viagens a que ele arrasta. Uma vez que ela tenha sido vencida, contudo, vale a pena tomar contato com questões bem próximas e, certamente, de grande interesse político para o país, como o atual empenho do Ministério da Defesa para consolidar o chamado Sistema de Ciência, Tecnologia e Inovação de Interesse da Defesa Nacional (SisCTID) e, ao mesmo tempo, integrá-lo ao sistema civil de ciência e tecnologia. Nesse esforço, o primeiro passo concreto, conforme relata a editora de Política, Clau-

dia Izique, na reportagem que começa na página 16, é a decisão do ministério de acelerar dez projetos que há anos vêm sendo desenvolvidos nos institutos de pesquisa da Marinha, do Exército e da Aeronáutica - entre eles o da Usina de Hexafluoreto de Urânio, que permitirá ao Brasil dominar todo o ciclo do combustível nuclear. O tema é de particular interesse no momento em que está em curso uma delicada negociação do país com a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) quanto a formas de inspeção nas ultracentrífugas de enriquecimento de urânio que estão sendo instaladas numa unidade da empresa Indústrias Nucleares do Brasil (INB). No campo das tecnologias que não saturam o ambiente de eletricidade nem de outros resíduos indesejáveis, vale ressaltar a reportagem sobre um novo e mais eficiente processo de reciclagem de aparas e objetos de alumínio, como as latinhas de cerveja e de refrigerante, para incluí-los na liga de alumínio para produção de novas latas. A novidade, relata o repórter Samuel Antenor, a partir da página 64, baseia-se num forno aquecido por plasma, um gás produzido em altas temperaturas e mais conhecido como o quarto estado da matéria. Para finalizar, voltemos de certo modo ao ponto de partida: à ficção agora, de fato. Mais precisamente, a Machado de Assis, o bruxo construtor, para muitos, das maiores obras-primas da literatura brasileira e, por isso mesmo, sempre submetido a novos olhares que anseiam por um desvendamento total de sua singularidade como autor. Dessa vez, como relata o editor de Humanidades, Carlos Haag, a partir da página 82, Machado emerge da observação sistemática de um historiador como personagem capaz de combinar duas facetas aparentemente irreconciliáveis, a de romancista e a de funcionário público, para realizar uma crítica radical da truculência senhorial do Brasil. É leitura imperdível. MARILUCE MOURA

- DIRETORA DE REDAçãO

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MEMóRIA

Bela

e bárbara província Há 200 anos, São Paulo era desbravado por expedições científicas

NELDSON MARCOLIN

UMA VISTA DOS ARREDORES DE SAO PAULO, 1820. HENRY CHAMBERLAIN. COLEÇÃO NEY CASTRO ALVES, SÃO PAULO. ICONOGRAFIA PAULISTANA DO SÉCULO 19 (METALIVROS)

Um dos efeitos benéficos das extensas comemorações dos 450 anos da cidade de São Paulo é ter sua história intensamente lembrada por jornais, revistas, livros e programas especiais de rádio e TV. As expedições científicas empreendidas nos séculos 18 e 19 pelo interior do país são alguns desses acontecimentos que estão sendo resgatados lentamente do esquecimento - à exceção das realizadas na então capitania de São Paulo, quase nunca lembradas. Na segunda metade do século 18 até

o final do século 19, desembarcaram no Brasil naturalistas portugueses, franceses, ingleses, austríacos e russos interessados em coletar material, reproduzir e analisar a natureza brasileira. A Corte portuguesa incentivava as expedições, preocupada em saber quais matérias-primas poderiam ajudar a incrementar a economia de Portugal. Em São Paulo, o santista Martim Francisco Ribeiro de Andrada embrenhou-se pelo interior da capitania para conhecer melhor as terras paulistas. Como inspetor de minas e matas,

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ele produziu os relatos Jornais das viagens de 1803 a 1804 e Diário de uma viagem mineralógica pela província de São Paulo no ano de 1805. Neles, Martim Francisco fez múltiplas observações sobre a geologia e os animais nas explorações pelas matas e rios de Santos, Peruíbe, Iguape, Cananéia e arredores de São Paulo. Mas falou também dos costumes das populações, criticou a "indolência" do povo, elogiou a natureza prodigiosa e até arriscou uma crítica à Corte ("... Sua Alteza está mui longe, e só de perto é que pode ver os melhoramentos

de que carecem suas colônias"). Catorze anos depois, Martim realizou uma nova viagem exploratória, dessa vez com o irmão José Bonifácio de Andrada e Silva, de volta ao Brasil como cientista eminente e político importante, depois de passar 36 anos na Europa. Os irmãos Andrada partiram de Santos e chegaram até Itu, regressando por Sorocaba. No relato Digressão econômico-metalúrgica pelas serras e campos do interior da bela e bárbara província de São Paulo, de 1820, eles falam de gnaisses, micaxistos,


Cobra-cipó: registro da fauna da então província

São Paulo em 1820: várzea da Lapa com o Pico do Jaraguá ao fundo

granitos e xistos argilosos da serra de Paranapiacaba, argilas da capital, minérios de ferro de Santo Amaro, aluviões de ouro da serra do Jaraguá e relatam numerosas observações consideradas precisas por especialistas anos depois. Ao final de suas experiências científicas, José Bonifácio viu-se novamente cooptado pela política nacional na qual exerceu funções que tiveram conseqüência capital para o Brasil, a ponto de tornar-se conhecido como o Patriarca da Independência.

Buriti (.ao lado) e ariranha: outros exploradores, como Hercules Florence, desenharam plantas e animais do interior paulista

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POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA

Marte no horizonte da Terra

Luz nos defeitos da mitocôndria A Comissão Européia lançou

Os americanos levaram a melhor sobre os europeus no duelo para desbravar a superfície de Marte. Enquanto o robô britânico Beagle 2 entrou em pane ao penetrar na atmosfera do planeta, os americanos tiveram sucesso ao aterrissar, no intervalo de três semanas, os jipes Spirit e Opportunity, para explorar a

geologia marciana. A missão européia, é certo, não foi um fracasso. A sonda Mars Express, que lançou o Beagle 2, permanece em órbita e detectou grande quantidade de gelo no póle^Sul marciano, comdiretas colhidas por uma sonda americana em 2001. Enquanto os terráqueos se encantavam com novas dente americano George de construir uma estação habitada na Lua, em 2015, e transformá-la em plataforma para a primeira viagem do homem ao planeta vermelho. O plano de Bush despertou ceticismo,

uma vez que o Congresso tem limitado o orçamento da Nasa e ainda há desafios tecnológicos a vencer (falta encontrar um meio de proteger o corpo humano de uma prolongada exposição à radiação no espaço). Mas ninguém duvida que o império americano é o único a ter fôlego para liderar essa missão. A Mars Society, entidade privada e científica criada para promover a exploração do planeta vermelho, elogiou o plano de Bush - por estabelecer uma agenda de desafios baseada na premissa de que é possível, do ponto de vista tecnológico e financeiro, mandar o homem a Marte.

doenças incuráveis causadas por falhas genéticas que regulam a função da mitocôndria (Natiire, 15 de janeiro). Essa estrutura fornece energia às células, desintegrando açúcares e ácidos graxos. Os distúrbios ocorrem em um a cada 10 mil nascimentos e quase a metade das vítimas desenvolve o mortal mal de Leigh, que provoca degeneração cerebral. O programa apoiará 21 grupos de pesquisa e vai estudar o mal de Leigh, sem eso mal de Parkinson, em que disfunções da mitocôndria têm um papel. Jan Smeitink, da Universidade de Nijmegen, na Holanda, diz que subsidiar pesquisas é o único meio de avançar. O número de pacientes é expressivo, mas não o bastante para mobilizar a indústria farmacêutica. "Em nosso centro, recebemos 400 pacientes da ano", conta Smeitink.

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■ Água e gás para erguer Veneza Uma equipe de engenheiros italianos apresentou um plano para salvar Veneza do naufrágio. A idéia é bombear fluidos nos subterrâneos da cidade e erguer sua superfície {Nature, 15 de janeiro). A estratégia, coordenada por Giuseppe Gambolati, da Universidade de Pádua, retoma um plano de 1970. Mas incorpora avanços tecnológicos da indústria petrolífera acumulados nos últimos anos. A cidade foi construída sobre centenas de ilhotas numa laguna a 4 quilômetros de terra firme. O problema é que o movimento do mar na laguna leva parte do lençol freático e faz a cidade afundar. As autoridades já tomaram providências, como a elevação da pavimentação em áreas de risco e a construção, ao custo de US$ 3,8 bilhões, de uma gigantesca e polêmica represa antiinundação, cujas comportas se fecharão em caso de elevação do mar, programada para entrar em operação em 2011. Calculase que a eficiência da represa duraria no máximo cem anos - uma vez que a cidade continuaria afundando nesse período. Gambolati afirma que seu plano faria Ve-

neza subir 30 centímetros em dez anos. "Isso ajudaria a aplacar os efeitos da elevação do mar e aumentaria a vida útil da represa", diz. A estratégia consiste em injetar dióxido de carbono ou água do mar numa camada de areia de 600 a 800 metros

abaixo da laguna. A camada se expandiria, entre a argila (abaixo) e a superfície rochosa (acima), erguendo a cidade. A proposta dos anos 1970 previa a injeção a apenas 60 metros de profundidade. Críticos da proposta, como Rafael Brás, do Insti-

■ Vida longa para os cientistas coreanos

Aterro da discórdia Biólogos foram convocados para mediar uma briga de vizinhos. A Malásia diz que seus manguezais, na foz do rio Johor, estão ameaçados por um projeto de aterramento numa das ilhas do país vizinho, o arquipélago de Cingapura (Nature, 11 de dezembro). Em setembro, a Malásia apelou para o Tribunal Internacional em Hamburgo com base na chamada Lei do Mar - que

tuto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), dizem que é preciso avaliar melhor os efeitos antes de aplicá-la. O Corila, consórcio que coordena as pesquisas para salvar a cidade, dirá quem tem razão. •

limita a exploração do mar territorial em caso de agressão ambiental. A Corte determinou a formação de um grupo de biólogos independentes para avaliar o impacto do projeto, que começou há três anos e pretende expandir a ilha de Pulau Tekong. Em Cingapura, diz-se que a briga não é ecológica: o aterro complicaria uma rota de navegação que dá acesso a portos malaios. •

O Ministério do Planejamento e Orçamento da Coréia do Sul anunciou um aumento de 50% nas verbas para Ciência e Tecnologia das universidades {Nature, 11 de dezembro). Isso significa a destinação de US$ 190 milhões para 2004, grande parte endereçada à oferta de bolsas de pesquisa. "Estamos tendo dificuldades em atrair estudantes para os programas", diz Taeho Bark, vice-reitor para assuntos internacionais da Universidade Nacional de Seul. "As verbas extras deverão resolver o problema." A Coréia do Sul também luta para manter os professores mais experientes em atividade por mais tempo. O ministro declarou que pretende oferecer contratos de extensão de dois anos a cientistas exemplares, a fim de estimulá-los a permanecer em seus postos depois da aposentadoria compulsória aos 65 anos. •

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ESTRATéGIAS

■ A índia testa sua vacina conta a Aids A índia vai entrar para o seleto clube dos países que testam suas próprias vacinas contra a Aids (Nature, 15 de janeiro). O país acumula 60 mil casos confirmados da doença e cerca de 4,5 milhões de infectados - mas se recusava a participar de experiências com as 30 vacinas em desenvolvimento no mundo. Ocorre que a maioria dessas vacinas utiliza uma variedade do vírus HIV predominante na América e na Europa, mas diferente da que atinge os indianos. A vacina é uma resposta do governo da índia ao temor de que o país não estaria reagindo ao avanço da epidemia. "Não havia vacina na índia e isso obviamente era motivo de preocupação", diz Seth Berkley, presidente da Iniciativa Internacional pela Vacina contra a Aids, organização com sede em Nova York que está ajudando a organizar a experiência indiana. O Instituto Nacional de Pesquisa da índia espera realizar a pri-

MUNDO

meira fase de testes em junho, aplicando a vacina em 40 voluntários saudáveis. A vacina é uma modificação do vírus da varíola bovina acrescido de uma seqüência de genes do HIV do subtipo C, predominante na índia. •

www.inca.gov.br/regpop/2003/ Levantamento recente e com dados de todo o Brasil do Instituto Nacional do Câncer.

■ Cobaias humanas expostas ao frio Para determinar o quanto a pele humana resiste às temperaturas e aos ventos do inverno canadense, uma equipe de médicos conduziu uma série de testes na cidade de Toronto em 2003. Doze voluntários foram submetidos a um túnel de vento refrigerado por 40 minutos, expostos a temperaturas de 0, -10, -20, -30 e até -40 graus Celsius. Mostrou-se que riscos de queimaduras crescem exponencialmente em temperaturas abaixo de 27 graus. O trabalho, aparentemente um bom candidato ao prêmio IgNobel (que premia pesquisas esquisitas), servirá de base para um manual de sobrevivência de militares no frio. •

12 ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP %

nic.nac.wdyn.de/~alcalde/cyt Trabalho apresenta indicadores da cientifica peruana com base no ISI e abrange os anos 1998-2003.

EB SCIENCE

scienceworld.wolfram.com Enciclopédia de Astronomia, Química, Física, Matemática e uma seção de biografias dos grandes cientistas.


■ Do Congresso para a Esplanada O novo Ministro da Ciência e Tecnologia, deputado federal Eduardo Campos (PSBPE), assume o cargo com o desafio de dar mais peso político à pasta e restabelecer a relação do governo com a comunidade científica, desgastada na gestão do antecessor Roberto Amaral. Vai administrar um orçamento de R$ 4 bilhões, num ano em que o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva promete não contingenciar tanto os recursos públicos como fez em 2003. Se vencerá as quedas-de-braço com a área econômica, o tempo é que vai dizer. O fato é que Campos tem bom trânsito no Palácio do Planalto, consolidado como líder da bancada do Partido Socialista Brasileiro (PSB) na Câmara em 2003. Economista de formação e político profissional, assumiu aparando arestas: deixou claro que defende o uso pacífico da energia nuclear, sepultando a polêmica aberta por Roberto Amaral há um ano. "Não é o ministro que define a política nuclear no Brasil", afirmou. Campos tem 38 anos de idade. Está no terceiro mandato de deputado federal e foi secretário de governo e da Fazenda de Pernambuco entre 1995 e 1998. Campos já afirmou que quer manter uma boa relação com a academia e garantiu que vai procurar todos os setores da comunidade científica, "O momento é de unidade", disse. O Ministério da Ciência e Tecnologia segue sob a influência do PSB, que havia indicado Amaral. •

A miséria que cerca Alcântara O município de Alcântara, no Maranhão, tem vocação tecnológica (abriga o centro de lançamento de foguetes) e turística (preserva sua arquitetura colonial), mas a maioria dos habitantes vive em condições africanas de pobreza: 73% da população, de 21 mil pessoas, concentra-se na área rural e a renda mensal média de 59% das famílias é inferior a R$ 100. Uma parceria entre a Agência Espacial Brasileira e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) tentará melhorar o índice de desenvolvimento hum ano da região. A idéia

e ensinar aos pequenos produtores estratégias para aumentar sua produtividade. Eles usam técnicas de 300 anos atrás, baseadas na enxada e no facão, e não conseguem cultivar terrenos maiores que 1 hectare, incapazes de gerar riqueza. Plantam, numa mesma área, mandioca, milho, feijão e arroz. Quando o solo dá sinais de desgaste, abandonam-no, desmatam áreas próximas e voltam ali muito tempo depois. O programa vai montar duas unidades experimentais, nas quais serão testadas novas possibilidades. Um exemplo: as unidades vão tes-

■ CNPq reajusta valor de bolsas

Campos, o novo ministro

O valor das bolsas oferecidas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), congeladas há dez anos, terá um reajuste de 18%, a partir de fevereiro. As bolsas de mestrado passam de R$ 725,00 para R$ 855,00 e as de doutorado, de R$ 1.074,00 para R$ 1.267,00. O anúncio foi

tar a associação de apenas ;nas duas culturas em cada terreno (feijão com milho, ou mandioca com arroz), que conseguem desempenho melhor. Todos os agricultores da região serão convidados a conhecer o modelo - para reproduzi-lo em suas propriedades. "O obstáculo, em Alcântara, é tecnológico", diz Zeke Beze, consultor do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). "Já se tentou resolver o problema com financiamento rural, em vão. Os agricultores não sabiam como plantar de forma mais produtiva", afirma. •

feito pelo ex-ministro Roberto Amaral, nove dias antes de deixar o cargo. Dependendo do comportamento da economia, esse percentual poderá ser reajustado no segundo semestre. Amaral também informou que deverão ser criadas 1.500 novas bolsas de cursos de pós-graduação, sendo que 30% delas serão distribuídas entre os estados das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. •

PESQUISA FAPESP % ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ 13


ESTRHTÉGIRS

BRASIL

O homem virtual e suas doenças Uma coleção de CDs desenvolvida pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) reproduz a anatomia humana e o ataque de doenças ao organismo, com recursos de computação gráfica. Batizadas de Homem Virtual, essas ferramentas transformam o conhecimento médico em animação tridimensional. Estão sendo usadas no treinamento de estudantes e também em consultórios, para ajudar os pacientes a visualizar suas doenças e as estratégias de tratamento. Sete CDs já foram lançados. Cada um esmiuça um tema e é resultado de dois meses de trabalho. Primeiro, um grupo de médicos se reúne para compilar o conheci-

■ Esforço reconhecido nos Estados Unidos Fernando Reinach, professor titular de Bioquímica da Universidade de São Paulo (USP), não pôde ir a Nova York receber um prêmio, no dia 11 de janeiro. É que a data coincidia com a formatura de ensino médio de sua filha e ele permaneceu em São Paulo. Reinach foi premiado pela revista Scientific American como um dos 50 Líderes de Negócios de 2003, ao lado de nomes como Steven Jobs, o fundador da Apple, e empresas como a Genentech, que criou uma droga inovadora contra o câncer. O comitê que outorgou o prêmio destacou as qualidades de

Os CDs reproduzem detalhes da anatomia

mento acumulado naquela especialidade. Depois, passam as informações para os técnicos em animação, que as transformam num software interativo. "Reproduzimos uma infinidade de detalhes da anatomia. Afi-

pesquisador e empreendedor do professor da USP. Ele é diretor-executivo da Votorantim Ventures, fundo de capital de risco, que criou empresas como a Alellyx e a Canavialis, de biotecnologia aplicada à agricultura. A Alellyx, presidida interina-

Reinach, premiado nos EUA

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nal, um dos objetivos é o treinamento de médicos", diz Chão Lung Wen, coordenador da disciplina de Telemedicina da FMUSP. Um desses CDs é usado num curso sobre anatomia dos ossos do quadril e dos

mente por Reinach, é resultado do conhecimento gerado pelo seqüenciamento da bactéria Xylella fastidiosa, que ataca os laranjais, patrocinado pela FAPESP. Reinach participou ativamente dessa pesquisa como um dos coordenadores nos projetos genoma brasileiros de plantas e fitopatógenos. Recentemente, a Allelyx identificou um vírus relacionado à doença que provoca a morte súbita dos citros. Agora, busca criar testes de diagnóstico e mudas resistentes. "O Brasil já ganhou vários prêmios científicos, mas não é todo dia que somos reconhecidos na área de desenvolvimento tecnológico", diz. "Isso dá um sabor especial ao prêmio." •

membros inferiores. "Um assunto que o estudante levaria quatro dias para entender ele consegue compreender em quatro horas. A ferramenta é importante para a educação a distância", diz Wen. Outros títulos têm como alvo o público leigo, como os que mostram o ciclo do crescimento dos pêlos e a fisiologia da acne. Foram distribuídos em consultórios de dermatologistas, com patrocínio de uma indústria farmacêutica, para orientar os pacientes. Vem aí CDs sobre exercício físico, asma e doenças sexualmente transmissíveis. Cada exemplar custa R$ 50,00 e pode ser comprado pelo telefone (11) 3062-8784. •

■ A bioética vai à Internet Entrou no ar um portal com 4 mil registros e artigos sobre as questões éticas de temas polêmicos da ciência e da medicina, como o aborto, a eutanásia e a clonagem, entre outros. O site Biblioteca Virtual Bioética (http:// bioetica.bibliotecavirtualensalud.org) é uma iniciativa do Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (Bireme), da Organização Pan-Americana de Saúde. Parte do acervo está em espanhol e em inglês, mas, em alguns meses, todas as informações estarão disponíveis em português. •


■ Controle sobre a pesquisa de drogas A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) apresentou propostas de mudança na legislação sobre a pesquisa de novos remédios, cosméticos e equipamentos médicos no Brasil. Receberá sugestões para aperfeiçoar os textos até o início de março. Entre as novas obrigações, as indústrias terão de notificar a Anvisa sobre quaisquer reações adversas que surgirem no teste dos remédios. Também é regulamentado o trabalho das Organizações Representativas para Pesquisa Clínica, entidades contratadas pelas indústrias farmacêuticas para realizar as pesquisas. "A nova legislação exigirá que fique claro de quem é a responsabilidade se alguma coisa der errado: se da indústria farmacêutica ou da entidade terceirizada", afirma Sérgio Nishioka, gerente de Medicamentos Novos, Pesquisa e Ensaios Clínicos da Agência. •

■ Na floresta, sem burocracia A legislação ambiental, aos poucos, vai fazendo as pazes com a pesquisa científica. Primeiro foi o licenciamento para a pesquisa de transgênicos, que passou por um enxugamento. Agora, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) baixou um decreto que flexibiliza as regras de acesso ao patrimônio genético, criadas por medida provisória de 2001. Pesquisas acadêmicas sem fins lucrativos não precisam mais obedecer a um cipoal burocrático criado para combater a biopirataria, que incluía um mapa com o percurso preciso dos pesquisadores na fio-

resta e uma coleção de informações sobre os objetivos do projeto. Agora, basta fornecer uma lista com as metas principais e informar a região que será visitada. As regras rígidas continuam a valer para empresas e pesquisas com fins lucrativos. •

■ Programa começa a todo vapor

Bloqueio à vaca louca O Ministério da Agricultura criou três grupos de trabalho encarregados de montar uma estratégia para prevenir a entrada do mal da vaca louca no país. A questão ganhou importância depois que surgiu o primeiro caso de animal contaminado nos Estados Unidos - e aumentou o interesse pela carne brasileira no mercado internacional. A moléstia, conhecida como encefalopatia espongiforme bovina, surgiu na Europa, em 1986, devido ao uso de carne, ossos, sangue e vísceras nas rações animais, e já matou 150 pessoas. Uma das idéias em debate no Brasil é tornar obrigatório um teste de qualidade das rações para o gado. Esse exame foi patenteado em 2002, rastreia a presença de proteína animal através de espectrometria de massa e é mais sensível do que os utilizados na Europa. Foi desenvolvido pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa Recursos Genéticos em Biotecnologia) a pedido do governo federal, depois que o Canadá suspendeu, em 2001, a importação de

carne brasileira alegando perigo de contaminção da doença (na verdade, era apenas uma retaliação comercial). Em meio ao contencioso, a União Européia chegou a mandar enviados ao Brasil para averiguar a alimentação do gado. O método da Embrapa foi mostrado e os europeus voltaram satisfeitos. A Embrapa propôs que eles mandassem amostras de suas rações para serem avaliadas aqui. "Nunca mandaram nada", diz Carlos Bloch Júnior, líder da equipe que desenvolveu o teste. Passada a celeuma, o método caiu no esquecimento. Diz-se que o rebanho brasileiro está imune, porque só se alimenta de ração vegetal, mas não é bem assim. Quando a Embrapa desenvolveu o método, avaliou 185 amostras de ração nacional. Descobriu que 9% delas estavam contaminadas. Na maioria das vezes, tratava-se de problemas de higiene, que foram resolvidos. Em novos testes, a contaminação caiu para 3%. O risco é pequeno. Nos próximos meses, o governo decide se adota ou não o teste. •

A FAPESP, em parceria com o Sebrae-SP e o Instituto Empreender Endeavor, dá início, em fevereiro, a uma importante etapa do Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE Empreendedor) - as atividades de treinamento especializado com enfoque pragmático e vivencial em gestão de negócios. Ao todo serão nove sessões presenciais, quinzenais, e os empreendedores do PIPE terão suporte educacional durante todo o período, através de uma plataforma tecnológica criada especialmente para o programa. Paralelamente, serão oferecidas sessões de aconselhamento, realizadas pelo Empreender Endeavor, que têm como finalidade proporcionar, a cada empreendedor, acesso à informação especializada e a uma rede de contatos de alto valor agregado, incluindo presidentes e diretores de grandes empresas. A primeira sessão, sobre capital de risco e fontes de financiamento, ocorreu em dezembro e teve a presença de profissionais especialistas na área, como Pedro Cordeiro, sócio da Eccelera, empresa de capital de risco no Brasil. Em clima informal, os empreendedores puderam discutir todas as suas dúvidas. Há planejamento de outras sessões como esta no decorrer do ano. •

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POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA DEFESA

O Ministério da Defesa quer acelerar dez projetos que há anos estão sendo elaborados nos institutos de pesquisa da Marinha, Exército e Aeronáutica. Entre eles, está o de construção da Usina de Hexafluoreto de Urânio (Usexa), para a conversão do minério no gás, que após a etapa de enriquecimento será convertido em pó para a produção do combustível utilizado em Angra I e II. Atualmente, esse processo é feito no Canadá. "Com isso, o Brasil passará a dominar todo o ciclo de combustível nuclear", diz o comandante Leonam dos Santos Guimarães, coordenador do Programa de Propulsão Nuclear do Centro Tecnológico da Marinha em São Paulo (CTMSP). Para implementar esses projetos, a Defesa conta com a liberação de R$ 37 milhões dos fundos setoriais, previstos em protocolo assinado com o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). Também espera o apoio de empresas, como a Avibrás, que será parceira no desenvolvimento de uma turbina de pequena potência para a propulsão de veículos aéreos não tripulados (Vant), e de verbas do Ministério das Comunicações, que promete patrocinar um terceiro projeto, o da construção do satélite geoestacionário brasileiro, de acordo com o almirante Ricardo Torga, presidente da Comissão Assessora de Ciência e Tecnologia para a Defesa (Cornasse), órgão coordenador do novo sistema. A expectativa é de que os dez projetos representem o passo inicial para a consolidação do Sistema de Ciência, Tecnologia e Inovação de Interes16 ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 96

se da Defesa Nacional (SisCTID), criado em dezembro do ano passado. O objetivo do Ministério da Defesa é integrar a pesquisa e desenvolvimento militar ao Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, garantindo o acesso a novas formas de financiamento e a políticas de incentivo, além de colocar os institutos de pesquisa das três Armas no âmbito da Lei de Inovação que tramita no Congresso Nacional. Contando basicamente com recursos orçamentários - cada vez mais apertados -, as Forças Armadas têm enfrentado sérias dificuldades para pesquisar, desenvolver e nacionalizar tecnologias e correm o risco de perder pessoal qualificado. Para não interromper as atividades, a Marinha, por exemplo, tem implementado parcerias pontuais e transformou seus quatro centros de investigação em organizações prestadoras de serviços e criou um "banco virtual" para o qual confluem recursos de várias fontes, inclusive as dotações orçamentárias. Os custos das pesquisas são abatidos do "crédito virtual" de cada um dos institutos. Foi assim que o Centro Tecnológico da Marinha em São Paulo, em parceria com o Instituto de Pesquisas Nucleares (Ipen), conseguiu recursos para desenvolver a tecnologia de ultracentrifugação que permitirá ao Brasil começar a produzir urânio enriquecido em escala industrial para utilização nas usinas Angra I e II. Atualmente, o urânio extraído da mina de Catité, na Bahia, é transformado em gás (hexafluoreto de urânio), no Canadá, e enriquecido na Holanda, a um custo de US$ 19 milhões, a cada 14 meses (verpágina 20).


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Ultracentrífugas para o enriquecimento de urânio vão produzir combustível para Angra I e II


O Exército e a Aeronáutica não adotaram o modelo de prestação de serviços. Optaram por programas de associação com órgãos do governo e empresas. O Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento (IPD) - responsável pela pesquisa aplicada do Exército -, por exemplo, avalia o impacto da irradiação na ampliação da vida útil de alimentos e rações em parceria com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), a Universidade Federal do Rio de Janeiro e a Universidade Federal Fluminense. Junto com a Avibrás, estuda alternativas para o desenvolvimento de novos modelos de blindados. O protótipo do veículo, batizado de VBR-LR, já está pronto e em fase de avaliação técnica. Para reforçar o caixa, o Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) está criando, neste ano, um fundo para financiar projetos de pesquisa e a modernização de laboratórios. Os recursos serão captados junto às empresas privadas e incluem doações de pessoas físicas. O fundo já conta com um orçamento de US$ 1 milhão, segundo o reitor Michal Gartenkraut. Será gerido pela Fundação Casemiro Montenegro Filho, uma organização sem fins lucrativos que apoia a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico. O ITA também tem contado com o apoio de empresas como a El Paso, gigante mundial do gás natural, que investiu R$ 365 mil na instalação de um centro de excelência e capacitação de recursos humanos em turbinas a gás, e da Embraer, que investiu mais de R$ 3 milhões na implantação de um mestrado profissionalizante em engenharia aeronáutica. Parcerias estratégicas - A integração que o novo sistema quer promover tem como objetivo consolidar as parcerias com universidades e empresas privadas em torno de projetos de desenvolvimento de tecnologias de aplicação civil e militar, ou duais, no jargão militar. Esses projetos devem ser financiados com recursos dos fundos setoriais e de investimento de risco captados com o apoio do programa Inovar, da agência federal Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). "O satélite geoestacionário será utilizado tanto em navegação aérea como nas telecomunicações, e os veículos aéreos não tripulados terão grande utilidade no monitoramen18 ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP %

to e fiscalização de dutos", exemplifica o almirante Torga. A expectativa é de que essa convergência de interesses amplie o conteúdo tecnológico dos produtos e serviços da Defesa, capacite recursos humanos e fortaleça a indústria nacional, entre outros benefícios. A aproximação com os setores /^ civis começou já na elabo^^A ração das diretrizes do Sisi % CTID. Ao longo do ano ^L J^. passado, a Defesa reuniu pesquisadores e empresários de São Paulo, Campinas, São José dos Campos e Rio de Janeiro para integrar grupos de trabalhos e debater a minuta da proposta. Eles avaliaram modelos de parceria adotados por outros países, antes de propor um modelo nacional para a integração da pesquisa civil e militar. Também analisaram as afinidades das três Armas e o potencial de aproveitamento das pesquisas para as Forças Armadas e a sociedade, até chegar numa lista de 23 tecnologias que serão priorizadas pelo sistema, entre elas os reatores nucleares, sistemas espaciais, sensores, microeletrônica e hipervelocidade. Assegurado o financiamento - e tendo com pano de fundo essas 23 tecnologias -, o SisCTID vai funcionar em moldes semelhantes aos de uma agência de fomento, indu-

zindo projetos estratégicos - que, neste caso, terão caráter sigiloso e serão protegidos por legislação de salvaguarda - e incorporando pesquisas de inovação tecnológica, espontaneamente apresentadas. Nos dois casos, o sistema vai operar como uma rede de cooperação, tendo como ferramenta o Sistema de Gestão de Projetos Estratégicos (SGPE), um software via web, desenvolvido pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai). A utilização desse programa, aliás, já é resultado de parceria do Ministério da Defesa com a Confederação Nacional da Indústria (CNI). A carteira de projetos do sistema será gerenciada pela Comissão Assessora de Ciência e Tecnologia para a Defesa. No escopo das tecnologias eleitas como prioritárias, a Defesa elegeu os dez primeiros projetos que pretende implementar ainda este ano. Além da Usina de Hexafluoreto, do satélite geoestacionário e do Vant, também destinará recursos e buscará parceiros para o desenvolvimento de combustíveis nucleares avançados, como o urânio gadolínio, utilizado na geração de energia elétrica; construção de bloco girométrico para o Míssil Anti-Radiação; criação de sensores infravermelhos e óptico-mecânicos para sistema de visão noturna e navegação inercial; túnel de vento vertical para o treinamento de paraquedistas e um


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pseudo-satélite, que deverá conferir maior precisão aos sistemas de posicionamento global por satélite (GPS). A Defesa aposta no sucesso desse modelo. "Sem uma integração de esforços, dificilmente responderemos ao desafio de tornar a sociedade brasileira mais justa e equilibrada", afirma o ministro José Viegas Filho, na apresentação do documento Concepção estratégica, onde estão detalhadas as diretrizes do SisCTID. Há expectativas positivas também do lado civil. "O novo sistema poderá ser um ponto de inflexão na pesquisa e desenvolvimento militar", prevê Michal Gartenkraut, reitor do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), que participou dos grupos de debates. Para ele, o ponto forte é a intersecção entre os ministérios da Defesa e da Ciência e Tecnologia, que congregam, respectivamente, a inovação desenvolvida nas três Armas e o conhecimento gerado nas universidades e institutos de pesquisa. Se bem administrada, essa aproximação pode reeditar o sucesso da parceria que resultou no desenvolvimento da indústria aeronáutica no Brasil, avalia Gartenkraut. "A aeronáutica, historicamente, sempre teve essa visão dual", lembra. O ITA, o Centro Tecnológico da Aeronáutica (CTA) e a Embraer, criada 20 anos depois do ITA, são resultado disso. Ressal-

va, no entanto, que os recursos dos fundos setoriais "não podem substituir" o dinheiro do orçamento. "O mérito é que seja dinheiro novo." Mas a integração com as universidades não será fácil. "O grande desafio será colocar temas de interesse da Defesa na pauta das universidades", observa José Roberto Arruda, da Faculdade de Engenharia Mecânica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que também participou do grupo de debates promovidos pelo Ministério da Defesa. Ele acredita que a parceria com a universidade pode ser possível em torno de projetos "não bélicos", envolvendo educação ou defesa alimentar. "Defesa não é militarismo", ressalva. Mas reconhece que será preciso uma série de iniciativas para atrair talentos para este tipo de investigação, como, por exemplo, a criação de bolsas de doutorado ou de prêmios para teses, sugere. "Esse é um estímulo muito utilizado no exterior", diz. Globalização seletiva - O SisCTID começou a ser arquitetado no final do governo Fernando Henrique Cardoso. No dia 26 de novembro de 2002, faltando pouco mais de um mês para a posse do

novo governo, o Ministério da Defesa então sob o comando de Geraldo Magela Quintão - organizou um seminário onde foram propostas as diretrizes do sistema. "No ano seguinte, o ministro Viegas e Roberto Amaral, da Ciência e Tecnologia, assumiram esta proposta de forma extraordinária", conta o almirante Torga. Essas diretrizes foram detalhadas ao longo do primeiro ano do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o SisCTID foi oficialmente criado no dia 10 de dezembro do ano passado. O documento Concepção estratégica, uma espécie de certidão de nascimento do novo sistema, justifica sua implantação: descreve um cenário mundial de "incertezas", marcado, de um lado, pela globalização seletiva e "pelo condomínio do poder" formado por uns poucos países e, de outro, pela deterioração do conceito de soberania nacional em algumas regiões do planeta. Denuncia que, em nome da defesa e da paz mundial, "atos de guerra têm sido perpetrados sem o necessário respaldo legal do direito e apoio institucional". E propõe que os países que "valorizam a democracia, a liberdade e o respeito mútuos se mantenham preparados para "sustentar sua própria autodeterminação". Ocorre que as Forças Armadas têm encontrado barreiras técPESQUISA FAPESP 96 ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ 19


Exército e Mat' parceria empresas pri para nacion, tecnologL

nicas e comerciais de países do primeiro mundo que tentam "evitar quaisquer progressos que venham a permitir a aproximação de países concorrentes", conforme aponta o documento. A saída é a criação de um sistema, nos moldes do SisCTID, que articule os diversos setores da sociedade para fazer o país avançar com recursos e conhecimentos próprios. "Temos que nos libertar das importações", insiste o almirante Torga, citando como exemplo as dificuldades que o país tem encontrado para com-

prar componentes para o veículo aéreo não tripulado que, se tudo der certo, começarão a ser desenvolvidos por parceiros nacionais. Três décadas depois, o SisCTID atualiza o velho projeto das Forças Armadas brasileiras, implementado na década de 1970, de investir na montagem de uma infra-estrutura de pesquisa de ponta e na articulação de um complexo industrial militar nacional. "Os princípios são os mesmos", observa o almirante Torga. Na época, o conceito de "grande potên-

cia" era a referência teórica do pensamento militar brasileiro e a capacitação tecnológica, meta estratégica. "O projeto não vingou, exceto no caso do programa AMX, da Aeronáutica, que, apoiada no braço civil da Embraer, fez avançar o mercado brasileiro de aviões", de acordo com análise de Geraldo Lesbat Cavagnari Filho, pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp. O projeto da "grande potência" abortou, mas permitiu que os institutos militares incorporassem novas tecnologias que

Negociação delicada O Brasil está negociando com a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) formas de inspeção nas ultracentrífugas de enriquecimento de urânio que estão sendo instaladas na empresa Indústrias Nucleares do Brasil (INB), em Resende, no Rio de Janeiro. A primeira tentativa de acordo, no ano passado, acabou suspensa quando a AIEA solicitou uma inspeção mais intrusiva, incluindo o acesso visual das máquinas. A proposta da AIEA abre um precedente nos procedimentos de fiscalização e o acordo sobre esse procedimento acabou sendo adiado. Nessa negociação com a AIEA, o Brasil é representado pela Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), vinculada ao MCT e Autoridade Regulatória Nuclear; pela Marinha; pela INB; e pe-

20 ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP %

lo Ministério das Relações Exteriores. A visualização das máquinas, avalia-se, pode revelar informações de propriedade industrial. As ultracentrífugas desenvolvidas pelo Centro Tecnológico da Marinha em São Paulo (CTMSP) e pelo Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) utilizam tecnologia inovadora. A ultracentrífuga é equipada com um tubo cilíndrico que gira no vácuo em velocidade supersônica para separar o urânio 235, utilizado como combustível, do urânio 238. No modelo tradicional - utilizado pelo Urenco, consórcio formado pela Alemanha, Inglaterra e Holanda -, o tubo se apoia num mancai mecânico, sustentado no topo por mancais magnéticos. A ultracentrífuga brasileira funciona por levitação: tanto o mancai superior como o inferior

são magnéticos. A altura e o diâmetro da máquina, por exemplo, são informações tecnologicamente relevantes. Além do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP), firmado em 1997, o Brasil também é signatário, junto com a Argentina, a Agência Brasil-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (Abacc) e a AIEA, do Acordo Quadripartite para a Aplicação de Salvaguardas, em vigor desde 1994.0 acordo prevê que todas as instalações nucleares instaladas no país realizem contabilidade do material nuclear e enviem relatório às duas agências de inspeção. Periodicamente, essas instalações são fiscalizadas em visitas anunciadas ou não, que conferem a contabilidade, confirmam as informações e recolhem registros de imagens capta-


fizeram avançar a pesquisa estratégica, materializadas no Programa Espacial Integrado, no Programa Nuclear e no Programa Fronteiras. Pesquisa compartilhada - O SisCTID também prevê que as Forças Armadas compartilhem seus laboratórios com universidades e empresas privadas. Mas o desenvolvimento de projetos comuns exigirá cobertura legal para questões como, por exemplo, a titularidade das inovações e regras claras para eventuais

das por câmeras, entre outros. Os procedimentos de inspeção em cada instalação nuclear são negociados caso a caso. "Nos reatores de potência, por exemplo, há sistema de vigilância", diz Laércio Vinhas, coordenador-geral para Assuntos Internacionais da CNEN. Mas, em qualquer caso, o Acordo Quadripartite prevê que, para aplicar salvaguardas, é preciso levar em conta os interesses do país quanto à preservação de segredos tecnológicos, lembra Vinhas, que aposta no bom termo desse entendimento: "As agências de fiscalização tentam obter o maior número de informações possíveis e o país tenta preservar ao máximo seus segredos tecnológicos e comerciais. As partes têm que chegar a um equilíbrio". O físico Rogério Cerqueira Leite, professor emérito da Universidade Estadual de Campinas, diz não haver riscos tecnológicos na inspeção visual. "As diferenças tecnológicas não são

licenciamentos ou afastamentos de pesquisadores dos institutos de origem. A expectativa é de que estes e outros empecilhos sejam resolvidos com a aprovação da Lei de Inovação. "Já encaminhamos algumas sugestões ao projeto de lei que está sendo analisado pelo Congresso", observa o almirante Torga. Na Marinha, onde os institutos de pesquisa operam como organizações prestadoras de serviço, esse processo de abertura para a pesquisa civil já está em curso. É conduzido pela Empresa Geren-

importantes. Eles querem é controlar a produção brasileira", conclui. Um outro problema deverá constar da pauta de negociação com a AIEA. A Agência espera - na avaliação de algumas fontes do setor, na verdade, pressiona - que o Brasil assine um protocolo adicional ao Acordo de Salvaguardas que dá acesso aos inspetores a qualquer local do território nacional, e não apenas às instalações nucleares. "A Agência não está pressionando o Brasil. A assinatura do protocolo é voluntária. Cabe ao país, soberanamente, tomar a decisão a esse respeito", contesta Vinhas. O Brasil, ele diz, está analisando as implicações técnicas e políticas do protocolo adicional. E adianta que a posição brasileira é de que as discussões relativas ao protocolo adicional devem ser mais amplas e realizadas no contexto das iniciativa não só de não-proliferação de armas nucleares, mas também do desarmamento.

ciai de Projetos Navais (Emgepron) vinculada à Defesa e coordenada pela Marinha -, criada em 1982, quando o país se empenhava em desenvolver uma indústria militar naval. A empresa tinha autonomia para negociar e contratar empréstimos em moeda estrangeira e, com isso, contorna obstáculos ao reaparelhamento da indústria naval. "Na época, tínhamos projetos militares e tentávamos motivar os setores privados a serem parceiros. Agora mudamos nosso foco. Procuramos as diversas empresas de pesquisa e perguntamos: o que vocês querem pesquisar?", explica o almirante Wilson Montalvão, assessor técnico da Emgepron. A meta, ele explica, é assegurar aos institutos de pesquisa autogestão e receita própria. A grande maioria dos "clientes" ainda está no governo. O Casnav, por exemplo, desenvolveu um sistema de gerenciamento de documentos que está sendo adaptado para atender demandas da Presidência e Vice-Presidência da República. "Já existe interesse também do Ministério da Fazenda, da Petrobras e de Furnas", adianta o comandante José Augusto de Carvalho Benoliel, chefe do Departamento Administrativo do Casnav. Algumas parcerias com o setor privado já estão "concretizadas", diz o almirante Montalvão. Uma delas é com a Inbrafiltro, empresa ligada à área de blindagem de autos. "Eles nos procuraram porque pretendem estender suas atividades para a segurança pessoal, fabricando colete à prova de balas, capacetes etc", conta. O acordo que está sendo negociado prevê o desenvolvimento de um novo produto, cuja patente ficará com a Inbrafiltro e os royalties, com a Marinha. Outro projeto em curso, solicitado pela Petrobras, é a implantação de recifes artificiais para atender às colônias de pescas próximas à bacia de Campos. Algumas prefeituras já estão interessadas, porque o aumento da oferta de peixes permitirá a exploração do turismo ecológico. A política de abertura promovida pela Marinha também vai permitir o acesso de pesquisadores a quatro institutos da Marinha: além do Centro Tecnológico da Marinha em São Paulo, também ao Centro de Análise de Sistemas Navais (Casnav), ao Instituto de Estudos do Mar Almirante Paulo Moreira e ao Instituto de Pesquisa da Marinha, todos no Rio de Janeiro. • PESHUISA FAPESP 96 ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ 21


POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

PARCERIA

Estímulo para a ciência Prêmio Conrado Wessel muda formato e ganha apoio da FAPESP A FAPESP vai participar da i^k comissão de organização e L^L da avaliação das candida/m turas ao Prêmio FundaJÊL A. ção Conrado Wessel nas áreas de ciência e literatura, outorgado a personalidades ou entidades de destaque nas áreas de literatura, medicina e ciência. O acordo de cooperação entre as duas fundações foi aprovado pelo Conselho Superior da FAPESP e assinado em dezembro do ano passado. "Os prêmios e as premiações para feitos científicos e tecnológicos são também atores importantes da dinâmica da evolução da espiral da cultura científica. São instituições que, como outras, desempenham papel fundamental no processo de motivação da sociedade para o conhecimento", afirma o presidente da FAPESP, Carlos Vogt. O Prêmio Fundação Conrado Wessel, criado há dois anos, é dividido em seis categorias: medicina, ciência geral e ciências aplicadas ao meio ambiente, ao campo e ao mar, e literatura. Os melhores, em cada uma dessas categorias, receberão um prêmio no valor de US$ 50 mil e um ícone assinado pelo escultor Vlavianos. Na sua primeira edição, no ano passado - e em parceria com a Secretaria da Educação -, os prêmios nas áreas de ciência foram distribuídos por meio de concurso nas escolas da rede pública. "Neste ano, decidimos adotar formato novo e buscamos apoio de entidades expressivas, entre elas a FAPESP, nosso braço direito", diz José Moscogliatto Caricatti, diretor financeiro da Fundação Conrado Wessel.

Os candidatos aos prêmios na área de ciências serão indicados por 46 universidades, entre elas a Universidade de São Paulo (USP), a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a Universidade Estadual Paulista (Unesp) e o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). Cada uma dessas universidades tem prazo até o dia 5 de março para indicar pelo menos um nome ou entidade por área. A lista com o nome dos indicados será submetida à avaliação de um júri formado por sete membros, representando a FAPESP, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a Academia Brasileira de Ciência (ABC), o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), o ministério da área e a fundação. Os prêmios serão entregues no dia 20 de maio, da-

ta em que a Fundação Conrado Wessel completa dez anos. A FAPESP também vai participar da organização e seleção do prêmio de literatura. No ano passado, a Fundação Conrado Wessel convidou críticos literários para selecionar entre 94 concorrentes os três melhores autores inéditos. O prêmio foi a edição da obra, com tiragem de 2 mil exemplares, com direito a noite de autógrafos no Museu da Casa Brasileira, em São Paulo. Neste ano, serão premiados autores com obras publicadas nos últimos cinco anos. Serão, da mesma maneira, indicados pelas universidades e selecionados por júri que também contará com representantes da Academia Brasileira de Letras. Os prêmios serão distribuídos na mesma data. "A expectativa é de que a qualidade dos prêmios concedidos anualmente fortaleça o interesse por temas culturais, científicos e tecnológicos", ressalta Vogt. •

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0 momento de florescer

As flores só chegam após um estágio sob temperaturas mais frias

Como as rosas não falam, já dizia Cartola em uma canção inesquecível, o jeito foi descobrir, em laboratório, por que florescem. Uma planta floresce em conseqüência de mecanismos moleculares que indicam que o inverno acabou e é hora de produzir flores, de acordo com um estudo de uma equipe do Centro John Innes, de Norwich, Inglaterra, relatado na Nature de 8 de janeiro. Nos países frios, a maioria das plantas precisa passar por uma exposição a uma temperatura de 3o a 8o por três a oito semanas seguidas, durante o crescimento, sem a qual não conseguem desenvolver-se plenamente. São dois genes, chamados VRN1 e VRN2, que fazem a planta lembrar-se, a vida inteira, de que foi exposta a um período de baixa temperatura e evite florescer no inverno, preferindo as condições mais propícias da primavera. Os dois genes agem em conjunto com outro, o FLC, que funciona lentamente sob o frio e consegue adiar a produção de flores por mais de três meses. Os pesquisadores ingleses descobriram que mutações nos genes VRN podem desligar o FLC, fazendo a planta perder o relógio que indica o melhor tempo de florir. Trabalhando com uma planta-modelo, a Arabidopsis thaliana, os pesquisadores estudaram também as histonas H3 - proteínas que cobrem a molécula de DNA - ligadas ao FLC. E descobriram que uma estrutura química das histonas conhecida como mediação era diferente nas plantas que já haviam experimentado o inverno: também a mediação desativava o FLC. Além de ajudar a entender como as plantas florescem no tempo certo, esse trabalho pode elucidar os mecanismos da memória química, ate mesmo nos animais. .

Fertilidade masculina em queda Um estudo do Centro de Fertilidade de Aberdeen, na Escócia, sugere que a fertilidade masculina está em declínio, após constatar, entre 1989 e 2004, uma queda de 29% nos índices médios de contagem de esperma - quase um terço em pouco mais de uma década. Os pesquisadores analisaram 16 mil amostras de sêmen de habitantes do Nordeste da Escócia que se apresentaram como voluntários. Um estudo anterior já tinha registrado uma diminuição mundial de 50% na contagem de esperma ao longo de 50 anos na última metade do século 20. Mas ainda não é possível estabelecer em que medida fatores externos - como o fumo, o uso de drogas, o álcool e a obesidade - afetam a qualidade do esperma. As influências ambientais, a exemplo de pesticidas e dos produtos químicos em geral, além de material radioativo, também costumam ser relacionadas entre os principais demolidorespeito especificamente aos

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Diferenças gritantes Com base na comparação estatística de milhares de genes do homem e do chimpanzé, 99,2% coincidentes, chegou-se à conclusão de que uma parte da diferença

escoceses, porem, os especialistas do centro de Aberdeen se perguntam se a queda na taxa local de contagem de esperma pode ser atribuída ao acidente nuclear de Chernobyl, em 1986. A chuva ácida e a poeira radioativa resultantes do acidente teriam passado sobre território escocês, expondo a população a índices excessivos de radiação. •

Nas origens do mal de Alzheimer Pesquisadores alemães da Universidade de Bonn ajudaram a entender como a proteína abeta se acumula no córtex cerebral de portadores do mal de Alzheimer. Já se suspeitava que essa proteína poderia disparar a doença, por ser encontrada em abundância em células nervosas danificadas, mas ainda não se sabia exatamente como ela se infiltra no citoplasma celular - a região gelatinosa entre o núcleo e a membrana externa. Introduzida em células animais, a abeta é capaz de matar as próprias células, mas ela nunca era vista entrando lá. A equipe de Anton

acnmnz e ae voiKer nerzog derrubou esse álibi, ao descobrir que, de fato, a proteína penetra no citoplasma e normalmente é desintegrada. Mas, quando o processo de desintegração falha, a abeta se acumula e destrói as células. A abeta é fruto de uma diviamilóide (APP, na sigla em inglês), encontrada em todos os tipos de células do organismo. Os alemães mostraram pela primeira vez uma via de desintegração ainda desconhecida da abeta, feita por meio da enzima degradadora de insulina (IDE, em inglês), encontrada no citoplasma. Os pesquisadores encontraram, de fato, uma superprodução de abeta em muitas pessoas nas quais os sintomas de Alzheimer se manifestam entre 50 e 55 anos. Nos pacientes mais velhos, em que a doença se apresenta mais freqüentemente, foi detectada uma redução da atividade da IDE. Talvez, ao menos nesses pacientes, a doença surja mais como conseqüência de um mau funcionamento do processo de

ção e do olfato. Pesquisadores da empresa norte-americana Celera Diagnostics colocaram lado a lado 7.600 seqüências de genes do chimpanzé com as de seus correspondentes humanos e, para dar uma perspectiva evolutiva mais ampla, acrescentaram os genes do camundongo. Curiosamente, o centro da audição parece não estar apenas no cérebro, mas no próprio aparelho auditivo, notadamente em um gene, o alfa-tectorina, na membrana do ouvido interno. Mutações nesse gene costumam causar surdez congênita no homem. Como esse gene é muito distinto nos homens e nos chimpanzés, pretende-se descobrir o papel dessas diferenças e se seriam deficiências de audição que impediriam o chimpanzé de aprender a linguagem. Surgiram também surpreendentes adaptações ligadas ao olfato: alguns genes dos seres humanos foram desativados permanentemente, enquanto outros se desenvolveram nos homens rapidamente, a exemplo daqueles que ajudam a encontrar comida e possivelmente a escolher as companheitambém de uma série de complexas mudanças evolucionárias e os estudos estão apenas começando. • Deficiências de audição talvez impeçam o chimpanzé de aprender a linguagem

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LABORATóRIO

BRASIL

Migrantes morrem mais do coração Os nordestinos e os mineiros são os que mais morrem de doenças isquêmicas do coração - infarto e angina no Estado de São Paulo, de acordo com um estudo de Luiz Francisco Marcopito, epidemiologista da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), publicado na Revista de Saúde Pública. De 3,2 milhões de declarações de óbitos de pessoas com mais de 20 anos que faleceram entre 1979 e 1998, ele selecionou 426.033, daquelas que haviam mor rido por causa de doenças isquêmicas. E 38,7% referiam-se a migrantes, dos quais 12,8% hawL viam nascido na região Nordeste e 10,6% em Minas Gerais, enquanto 4,2% eram nativos dos demais estados. Em al-

guns casos, há uma inversão em relação à participação relativa de cada grupo na população paulista. Em 2000, a população era de 37 milhões de habitantes, dois quais 75,2% de nascidos no próprio estado e

24,8% eram de outros estados ou países; no conjunto de não nativos, havia mineiros (20,7%), baianos (19,7%) e paranaenses (12,9%). No estudo da Unifesp, os nordestinos também morreram mais cedo, com mediana (valor que separa os dados observados em duas metades) de 64 anos de ida-

de. Os mineiros morreram com 67 anos e os paulistas nativos, com 69 - todos distantes da mediana de idade de morte dos imigrantes (europeus ocidentais, 78 anos; europeus do Leste, 80; e japoneses, 82 anos). Marcopito atribui a maior mortalidade entre os migrantes ao tipo de alimentação, rica em óleos e gorduras saturadas. Já os imigrantes formavam um grupo responsável por 11,3% das mortes causadas por infarto e angina. "Os estrangeiros falecidos devem ser os remanescentes da grande onda de imigração para o estado ocorrida no passado", diz ele. •

■ Pressão alta em Vitória Peixe frito, banana frita, frango frito. Muita fritura, muito sal, sedentarismo e sobrepeso fazem de Vitória, a capital do Espírito Santo, uma das cidades brasileiras com um dos mais altos índices de hipertensão arterial, verificada em 37,8% da população, segundo um levantamento feito a partir de uma amostra de 1.663 moradores (47,4% homens e 52,6% mulheres) entre 25 e 64 anos de idade. De cada um deles, uma equipe da Universidade Federal do Espírito

Santo (UFES), coordenada por José Geraldo Mill, examinou 20 parâmetros, como índice de massa corporal, excreção urinaria de sódio, taxa de glicose no sangue e colesterol. Os níveis de sódio e de colesterol foram mais altos em homens e em pessoas de menores condições econômicas, numa relação direta com a hipertensão. Um estudo complementar sobre os hábitos alimentares de 1.623 moradores de Vitória consolidaram algumas hipóteses que expli-

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cam esses resultados. "Os hábitos que levam à alta incidência da hipertensão e à obesidade são construídos dentro da própria família", diz uma das pesquisadoras da equipe, Maria dei Carmen Bisi Molina, carioca radicada há oito anos na capital capixaba. Talvez seja um pouco difícil mudar esses hábitos e incentivar a prática da atividade física como forma de evitar o

excesso de peso, outro fator de risco para doenças cardíacas. Em 2003, Lara Marina Venturim, aluna de Maria dei Carmen, acompanhou 40 pessoas que procuraram os postos à beira-mar do Serviço de Orientação ao Exercício (SOE). Seis meses depois, apenas 12 incorporaram o hábito de exercitar-se. "Além dos postos de orientação de exercícios", diz Maria dei Carmen, "é preciso implantar outras estratégias de políticas públicas de saúde." •


Mimosa splendida: arbusto raro da Chapada dos Veadeiros, norte de Goiás

■ A Mimosa reaparece Foi redescoberta uma espécie típica do cerrado da qual não se tinha notícia desde 1895: a Mimosa splendida, arbusto de quase 2 metros de altura, com tronco coberto de escamas e folhas no alto do caule. Descrita há 109 anos pelo naturalista francês Auguste Glaziou, a Mimosa splendida - sem nome popular - tem a forma de candelabro e cresce sobre solos rochosos e arenosos da Chapada dos Veadeiros, norte de Goiás. "O fato de ter sido reencontrada após tanto tempo significa que se trata de um espécie naturalmente muita rara e de distribuição geográfica bastante restrita, mesmo dentro da Chapada dos Veadeiros", comenta Marcelo Simon, pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e co-autor da descoberta, feita com Marina Amaral, quando ambos integravam a equipe do ecólogo John Hay e da botânica Carolyn Proença na Universidade de Brasília (UnB). Noticiado na Revista Brasileira de Botânica, esse achado reforça a importância

da Chapada dos Veadeiros como centro de espécies endêmicas (exclusivas) para esse gênero de plantas, o mesmo da dormideira ou sensitiva {Mimosa pudica), cujas folhas se fecham quando tocadas. Da dormideira já se conhecem alguns usos - no tratamento de problemas de fígado ou intestino, entre outros -, mas nada ainda foi estudado sobre os compostos químicos peculiares ou processos de polinização da Mimosa splendida. "Está tudo em aberto." •

■ Opção nacional pela poltrona da sala Estudos recentes sugerem que os brasileiros não estejam

assim tão distantes do estereótipo do preguiçoso norteamericano, o chamado couch potato - batata de sofá, numa tradução livre. O número de brasileiros que fogem dos exercícios nas horas de folga é de duas a três vezes mais elevado que os registrados nos Estados Unidos ou em países europeus, de acordo com uma série de artigos publicados numa edição especial da Revista Panamericana de Salud Pública sobre atividade física. Apenas 13% dos brasileiros fazem um mínimo de 30 minutos de atividade física em um ou mais dias da semana. Portanto, 87% não pensam duas vezes antes de deixarem-se cair na poltrona da

Os couch potatoes brasileiros: 87% da população

sala, enquanto nos Estados Unidos 38% da população não cumpre essa meta mínima de exercícios e na Europa, 32%. Os dados emergem de um estudo coordenado por Carlos Augusto Monteiro, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), e publicado na revista, editada pela Organização Panamericana de Saúde (Opas). Monteiro tomou como base a Pesquisa sobre Padrões de Vida, feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de março de 1996 a fevereiro de 1997, com uma amostra de quase 4.900 residências das regiões Nordeste e Sudeste - onde moram 70% da população - e 11.033 pessoas com pelo menos 20 anos de idade. Dos 191 países que integram que a Organização Mundial da Saúde (OMS), da qual a Opas é uma ramificação, apenas 31 fizeram esse tipo de levantamento. O editorial da Revista Panamericana de Salud Pública alerta para o fato de que a proporção da população das Américas cuja saúde se encontra em risco em conseqüência da vida inativa aproxima-se de 60%. •

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CIÊNCIA ^""1

m pé, encostado no batente da porta à frente da casa, o professor de biologia Vitorino Coelho de Sousa ouvia, sem prestar muita atenção, um ' rapaz tagarela que lhe enumerava os ensinamentos da Bíblia na esperança de convertê-lo à religião evangélica. De repente, a conversa tranqüila - uma das tantas que ainda ocupam os finais de tarde nas cidades pequenas - tomou desvios inesperados, originou uma história rica em aparentes acasos e resultou, dias depois, no sauros com cerca de 110 milhões de anos, encontrados no interior do Maranhão, e na descoberta de uma possível nova espécie desses gigantescos 65 milhões de anos. Até então, amostras tão antigas de dinossauros eram raras no Nordeste. Estamos em Coroatá, cidade de 50 mil habitantes no interior maranhense, 200 quilômetros ao sul da capital, São Luís, numa tarde do final de julho do ano passado. Após ouvir o visitante por longos minutos, Vitorino perdeu a paciência e entrou num embate entre ciência e religião, com argumentos acalorados de ambos os lados, quando o jovem evangélico afirmou que os animais existentes no mundo eram de origem divina. Professor de biologia numa escola secundária, Vitorino resolveu ensinar ao rapaz um pouco de ciência. Explicou que restos de plantas e animais petrificados, os fósseis, eram obra de Deus, mas haviam evoluído de outras espécies, surgidas milhões de anos antes. Admirado com a explicação, o jovem comentou: "Faz pouco tempo, vi na casa de uma pessoa aqui mesmo em Coroatá algumas pedras parecidas com osso". Vitorino passou dias intrigado com esse comentário. No final de semana, resolveu conferir. Apanhou a máquina fotográfica, seguiu para a região indicada e chegou até o sítio do agricultor Alexandre Marques Vaz, um plantador de mandioca, batata, arroz e milho, que, de fato, havia coletado, durante 13 anos, umas pedras semelhantes a ossos. A forma dessas pedras já havia gerado longos debates entre Alexandre e seus vizinhos. Alguns achavam serem mesmo osso de bicho talvez até de elefante, pelo tamanho, e por que não? -, enquanto para outros aquilo tudo não Vitorino teve de gastar muita conversa para convencer o desconfiado agricultor a mostrar as tais pedras, guardadas com o zelo de quem esconde um tesouro. E não eram poucas: forravam o chão de um dos cômodos da casa de tijolos sem reboco em que o agricultor de 32 anos mora com a mulher e os filhos. Alexandre havia colhido as pedras das margens dos afluentes do rio Itapecuru, que corta Coroatá e corre no sentido noroeste. De julho a novembro, quando chove pouco, o leito do rio baixa e ficam expostos os terrenos es28 ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 96

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cavados pela água, antes encobertos pela floresta de palmeiras de babaçu - é a Mata dos Cocais, vegetação típica dessa região do Nordeste, que se espalha a leste pelo Piauí e Ceará, ocupando uma área maior que a da Inglaterra. A vértebra e a lista telefônica - Sob o olhar matreiro do dono da casa, Vitorino logo bateu o 20 centímetros de diâmetro. Lembrando-se das aulas de paleontologia de seu curso de graduação na Universidade Federal do Piauí (UFPI), ele concluiu, de imediato: não era um osso de elefante, como haviam imaginado, mas uma vértebra

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Professor de biologia e agricultor participam da descoberta de um vasto depósito de fósseis de dinossauros no interior do Maranhão

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Como são raros os fósseis de dinossauros encontrados no país, Vitorino sabia estar diante de um material de alto interesse científico. Por essa razão, decidiu tornar pública a descoberta e chamou uma equipe da TV Mirante, a retransmissora da Rede Globo no Maranhão, para fazer uma reportagem. Mas não gostou do programa, que foi ao ar alguns dias depois apenas na região de Coroatá. "Foi sensacionalista", definiu. Insatisfeito, Vitorino passou a mão no catálogo telefônico em busca de um especialista e chegou ao paleontólogo Manuel Alfredo Medeiros, da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). "Achei que fosse mais um alarme falso", recorda Medeiros. "Duas outras vezes haviam me chamado para ver fósseis em outras cidades, mas eram ossos recentes." Mas, como a região podia de fato abrigar fósseis de dinossauros, Medeiros arriscou. Foi para Coroatá e não se desapontou: os fósseis eram mesmo de dinossauros. A maior parte dos ossos petrificados é de saurópodes, dinossauros herbívoros com cauda e pescoço longos - os maiores saurópodes, encontrados na Argentina, atingiam 30 metros de comprimento e chegavam a pesar 70 toneladas. A peça de maior valor científico é justamente a vértebra da cauda vista por Vitorino no primeiro encontro com o agricultor. Segundo Medeiros, o fóssil pertence a uma nova espécie de saurópode que deve ter habitado essa região entre 110 milhões e 100 milhões de anos atrás, durante o período geológico chamado Cretáceo. Foi uma datação indireta, feita com base em estudos geológicos da Petrobras e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A descoberta confirma ainda que essa região do Maranhão é um imenso depósito de fósseis continentais de uma fase do Cretáceo que vai de 110 milhões a 95 milhões de anos. De acordo com Medeiros, os achados são raros porque as camadas de rochas mais superficiais que contêm fósseis se encontram numa faixa entre 5 e 15 metros de profundidade sob o Cerrado e a Mata dos Cocais. "Se uma nova datação confirmar a idade dos fósseis entre 110 milhões e 100 milhões de anos, esse material deverá fornecer informações PESQUISA FAPESP % ■ FEVEREIRO DE 2004 • 29


preciosas sobre a fauna continental dessa fase do Cretáceo", diz Medeiros. Naqueles tempos, a América do Sul e a África ainda estavam em franco processo de separação, e a paisagem do Maranhão era bem diferente da atual. Pesquisa da UFRJ e Petrobras mostraram que o clima era predominantemente árido ou semi-árido, mas nas regiões próximas aos rios havia florestas de coníferas semelhantes a araucárias, sa-

mambaias com porte de árvores e plantas chamadas equisetos, que lembram a cavalinha. Conversa vai conversa vem, e Medeiros convenceu o agricultor Alexandre Marques Vaz a lhe doar ao menos a vértebra de saurópode, hoje guardada no Laboratório de Paleontologia da UFMA. Agora, a partir desse osso, o pesquisador pretende identificar a que animal pertenceu - de antemão, parece

algo realmente novo, de um gênero e espécie ainda desconhecidos para a ciência. "Queremos saber se esses grupos existiram também na África ou se são exclusivos do Brasil", diz o paleontólogo. Agora cabe a Darciléa Castro, da equipe de Medeiros, em conjunto com paleontólogos paulistas, começar a classificação dos outros cerca de 70 ossos petrificados. À custa de muitos argumentos científicos, o reticente Ale-

0 novo dinossauro do Maranhão Em janeiro, a equipe do geólogo Ismar de Souza Carvalho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), apresentou a reconstituição de uma nova espécie de dinossauro brasileiro, que viveu no Maranhão 110 milhões de anos atrás. É o Amazonsaurus maranhensis, um herbívoro quadrúpede com 10 metros de comprimento da cabeça à cauda e cerca de 10 toneladas. Foi descrito na edição de dezembro de 2003 na Cretaceous Research, a mais importante revista científica sobre o Cretáceo, o último período geológico em que esses grandes répteis habitaram o planeta. O Amazonsaurus é o mais antigo saurópode (dinossauro quadrúpede herbívoro) brasileiro do Cretáceo, período geológico que foi de 144 milhões a 65 milhões de anos atrás, no qual surgiram as plantas com flores e a América

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do Sul começou a se separar da África. A equipe da UFRJ encontrou os fósseis desse dinossauro às margens do rio Itapecuru - no município de ItapecuruMirim, 130 quilômetros ao sul da capital, São Luís -, uma área de transição entre a Floresta Amazônica e o Cerrado, ainda na Amazônia Legal brasileira. Por esse motivo, esse animal é considerado o primeiro dinossauro da Amazônia cuja espécie foi identificada. Características marcantes dessa espécie são o pescoço e a cauda mais longos e atilados nas pontas que os dos outros saurópodes. No dorso do A. maranhensis, destaca-se uma pequena elevação: são os prolongamentos das vértebras da coluna, os chamados espinhos neurais, que chegam a 20 centímetros. Segundo Carvalho, a nova espécie é parente distante de um saurópode que viveu na região noroeste da

África nesse mesmo período, o Rebbachisaurus garasbae. As vértebras de ambas são bastante semelhantes - sinal de que devem ter evoluído a partir de uma mesma espécie ancestral. A descoberta do Amazonsaurus contribuirá para a compreensão de como evoluíram os ambientes terrestres brasileiros no Cretáceo, muito menos estudados que o marinho desse mesmo período, quando se formaram as reservas brasileiras de gás e petróleo, situadas no Atlântico. "A partir de agora, a análise da evolução dos saurópodes deverá incluir o estudo do Amazonsaurus maranhensis", afirma Carvalho. O anúncio dessa descoberta coroou 13 anos de trabalho marcados por percalços. Sob a coordenação do veterano químico Cândido Simões Ferreira, hoje professor emérito da UFRJ com 84 anos, cinco jovens pesquisadores fi-


xandre abdicou de seu acervo, que, já está acertado, ficará sob a guarda da Casa de Cultura de Coroatá. A bacia do rio Itapecuru, que i^L desenha um arco de sul a L^^ norte no Maranhão, é conÈ M siderada hoje um verdaJL. -A^ deiro vale de dinossauros. Foi dali que saíram os fósseis da mais nova espécie brasileira de dinossauro: o Amazonsaurus maranhensis, descrito pela equipe do geólogo Ismar de Souza Carvalho, da UFRJ (veja quadro). Em 2001, as equipes de ^_ Medeiros e Carvalho encontraram na Ilha do Cajual, em Alcântara, a vértebra de uma nova espécie de saurópode, os corpulentos dinossauros herbívoros de cauda e pescoço longos e cabeça pequena. Com cerca de 95 milhões de anos, esse osso petrificado pertenceu a um sauró-

MARANHAO

pode de um grupo dos saltassaurinos. Antes encontrados apenas na Argentina, os saltassaurinos mediam cerca de 8 metros da cabeça à cauda -

são os anões da família dos titanossauros, animais que podiam atingir 30 metros e quase 70 toneladas. A descoberta do fóssil da Ilha do Cajual, quase 20 milhões de anos mais antigo que os dos saltassaurinos argentinos, permitiu aos paleontólogos brasileiros apresentarem uma nova versão para a evolução desses animais. "Eles provavelmente surgiram na região onde hoje está o norte do Brasil e depois migraram para o sul", diz Medeiros. Os pesquisadores do Rio e do Maranhão já determinaram o gênero e a espécie do saltassaurino maranhense, mas seu nome só será revelado em alguns meses, com a publicação do artigo científico que o descreve. De norte a sul - Após uma extinção em massa varrer boa parte da vida da Terra 210 milhões de anos atrás, os dinossauros evoluíram a partir de um carnívoro bípede que não chegava a 1 metro de altura, o tecodonte. Fósseis encontrados em diferentes regiões do planeta indicam que os dinossauros foram os ani-

Amazonsaurus maranhensis: 14 anos de buscas

zeram em 1991 a primeira viagem ao interior do Maranhão para mapear as áreas nas quais afloram rochas formadas no Cretáceo, que serviriam para o treinamento dos alunos de geologia da UFRJ. Consideradas de grande interesse econômico por abrigarem cerca de metade das reservas de gás e petróleo do planeta, essas áreas com rochas do Cretáceo somam 150 mil quilômetros quadrados - ou 1,5 vez o tamanho de Portugal - apenas no Maranhão. Acomodados do melhor modo possíveL em uma Kombi carregada de mantimentos, os seis pesquisadores partiram do Rio e atravessaram metade do país em uma viagem de cinco

dias. Em três semanas de trabalho intenso, a equipe rodou centenas de quilômetros analisando terrenos próximos às ferrovias e às rodovias sem localizar uma só área com as rochas procuradas. Tensos e cansados, os pesquisadores decidiram mudar a estratégia e passaram a percorrer de barco os rios da região, quando chegaram ao município de Itapecuru-Mirim - distante 70 quilômetros de Coroatá, onde foram encontrados recentemente mais fósseis de dinossauros. Em uma das primeiras paradas às margens do rio Itapecuru, ao descer do barco, Ferreira tropeçou em uma grande uma peça, inicialmente confundida

com osso de vaca. Essa era a primeira parte do esqueleto do Amazonsaurus maranhensis, reconstituído a partir de 20 peças bem preservadas e outros 150 pedaços reunidos ao longo de seis anos de escavações às margens do rio Itapecuru. Tão difícil quando a extração dos fósseis da rocha dura foi o reconhecimento do trabalho, que Carvalho assina com Leonardo dos Santos Ávila, do Museu Nacional, e Leonardo Salgado, da Universidade Nacional de Comahue, na Argentina. Por se tratar de um animal de gênero e espécie desconhecidos, o artigo passou por muitas revisões ao longo de três anos antes de ser aceito pela Cretaceous Research.

PESQUISA FAPESP % ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ 31


mais terrestres mais abundantes durante 150 milhões de anos, numa fase em que o clima do globo era mais quente e os continentes do Hemisfério Sul ainda estavam unidos num supercontinente, a Gondwana. Os paleontólogos acreditam que diversas espécies de dinossauros tenham habitado o atual território brasileiro, mas os fósseis desses animais são raros por aqui, principalmente porque os

grandes reservatórios de ossos petrificados estão cobertos pela Mata dos Cocais, no Maranhão, ou pelo Cerrado, em Mato Grosso e em São Paulo. Os fósseis do Araripe - Mesmo sendo poucos, os fósseis de dinossauros brasileiros revelam características físicas valiosas desses répteis e ajudam a entender como evoluíram. Não muito longe do Maranhão fica um dos mais importantes depósitos mundiais de fósseis de uma fase do Cretáceo que vai de 140 milhões a 100 milhões de anos atrás. É a Chapada do Araripe, um tabuleiro de 160 quilômetros de extensão por 50 de largura que se ergue a 900 metros de altitude no sul do Ceará e se espalha, a leste, para Pernambuco e, a oeste, para o Piauí. Nas minerações de calcário e gesso dessa região, foram encontrados fósseis de outras três espécies de dinossauros. 32 ■ FEVEREIRO DE 2004 • PESQUISA FAPESP %

Duas delas integram o grupo dos espinossaurídeos, répteis bípedes de até 10 metros de comprimento, em cujo dorso sobressaía uma espécie de crista. Um desses espinossaurídeos é o Angaturama limae, descrito em 1999 pelo paleontólogo Alexander Kellner, do Museu Nacional da UFRJ, a partir de fósseis do focinho do animal. Parente de espécies encontradas na África e na Europa, esse dinossauro viveu há cerca de 110 milhões de anos. Tinha a cabeça e o focinho alongados e dentes semelhantes aos dos

crocodilos atuais. David Martill, da Universidade de Portsmouth, na Inglaterra, identificou em 1996, a partir da porção posterior de um crânio encontrado na Chapada do Araripe e contrabandeado para a Europa, outra espécie de espinossaurídeo: o Irritator challengeri. O Irritator ganhou esse nome por causa da ira que que sua identificação despertou. Martill notava que a parte de trás do crânio pertencia a um dinossauro, mas o focinho não era compatível com a descrição de nenhum


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Nacional, em parceria com o paleontólogo Diógenes de Almeida Campos, do Departamento Nacional de Produção Mineral, no Rio de Janeiro. Em 1971, a equipe de Farid Arid, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), encontrou na região de São José do Rio Preto uma das duas espécies de titanossauro identificadas em São Paulo. Eram apenas três ossos petrificados do Antarctosaurus brasiliensis, um animal sobre o qual existe muito pouca informação. Em meados dos anos 1980, um agricultor de Presidente Prudente, oeste paulista, encontrou fósseis de outro titanossauro, que Kellner chamou em 1999 de Gondwanatitan faustoi - um dos esqueletos de dinossauro mais completos encontrados no país. Apesar de seus cerca de 8 metros, o Gondwanatitan, que viveu entre 90 milhões e 80 milhões de anos atrás, tinha o pescoço e a cauda mais curtos que o Amazonsaurus.

grupo conhecido. Só mais tarde é que descobriu: o focinho do animal havia sido reconstituído artificialmente pelos contrabandistas para valorizar a venda do fóssil. Um dos fósseis mais preciosos é o Santanaraptor placidus, que também saiu da cidade de Santana do Cariri, na Chapada do Araripe. É o primeiro fóssil de dinossauro que, além dos ossos, preservou parte do couro, dos músculos e dos vasos sangüíneos do animal. Com apenas 1,8 metro, esse carnívoro que viveu há 110 milhões de anos é um ancestral do conhecido e temido Tiranosaurus rex, enorme predador que do-

minou a América do Norte cerca de 40 milhões de anos mais tarde. Talvez tão feroz quanto o Tiranosaurus foi o Pycnonemosaurus nevesi, o maior predador brasileiro. Réptil bípede, de 8 metros de comprimento, viveu há 80 milhões de anos no interior do Mato Grosso. Com os membros anteriores curtos e os músculos da cauda bastante desenvolvidos, o P. nevesi é semelhante a outros animais do mesmo grupo encontrados na índia, na África e na Argentina. Mas as formas mais próximas do Pycnonemosaurus estão na Argentina. "Deve ter existido uma fauna comum ao Brasil e à Argentina, já distinta da encontrada na África", diz Kellner, que descreveu o grande predador em 2002 nos Arquivos do Museu

Os mais antigos - Mas o berço dos dinossauros brasileiros está mesmo nas redondezas do município de Santa Maria, na região central do Rio Grande do Sul. As três espécies mais antigas do país - e provavelmente do mundo - habitaram o território gaúcho há 225 milhões de anos, durante o Triássico. O mais antigo deles, comprovadamente o primeiro dinossauro brasileiro, é o Staurikosaurus pricei. Descoberto em 1937, esse carnívoro de cerca de 2,5 metros é um dos mais antigos dinossauros de que se tem notícia. Dezenas de milhares de anos mais novo que o Staurikosaurus é o Saturnalia tupiniquim, herbívoro de não mais de 4 metros de comprimento, descrito há cinco anos por Max Langer, hoje na USP de Ribeirão Preto. Uma característica curiosa desse réptil, ancestral de animais como o Amazonsaurus e o Gondwanatitan, é que, embora fosse quadrúpede, era capaz de se locomover apenas sobre as pernas traseiras em algumas situações. No município de Candelária, às margens do rio Guaíba, foram descobertos os fósseis de um dinossauro de 1,2 metro bastante primitivo. Trata-se do Guaibasaurus candelária, cerca de 1 milhão de anos mais novo que o Staurikosaurus. Inicialmente classificado como carnívoro, acredita-se atualmente que esse quadrúpede que provavelmente conseguia andar só com as pernas traseiras fosse, na verdade, um herbívoro. • PESQUISA FAPESP % ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ 33


CIÊNCIA

Aumento da temperatura, acelerado pela ação humana, deve redesenhar o perfil da vida no planeta

34 ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP

emanas atrás, os jornais do mundo inteiro noticiaram um estudo feito por 19 pesquisadores de oito países e publicado na revista científica Nature prevendo três cenários preocupantes para daqui a 50 anos, em conseqüência do aumento projetado de temperatura média global, provocada, principalmente, pela queima de florestas e de combustíveis derivados do petróleo. No melhor dos três, correm o risco de extinção iminente de 900 mil a 1,8 milhão de espécies de plantas e animais terrestres, correspondentes a 18% do total estimado de espécies atuais, se a temperatura subir apenas de 0,8 a 1,7 grau Celsius e a concentração de C02 na atmosfera elevar-se 30% - uma projeção

ta diante da recusa dos Estados Unidos e da Rússia, os dois maiores poluidores mundiais, de aderirem ao Protocolo de Kyoto, acordo internacional destinado a reduzir a emissão de gás carbônico. tudo coordenado por Chris Thomas, da Universidade Leeds, na Inglaterra com a participação da bióloga brasileira Marinez Ferreira de Siqueira, do Centro de Referência em Informação Ambiental (Cria) -, um aumento maior que 2 graus na temperatura ameaça a continuidade de quase o dobro de espécies - ou mesmo de três vezes mais, caso as plantas e os animais não consi-

Os programas de computador que levaram a essas conclusões são evidente-


mente limitados e partem do pressuposto de que a vida no futuro vai se comportar tal qual no passado, mas qualquer das três possibilidades representa uma nova extinção em massa - a sexta na história do planeta - com possíveis implicações sérias para a vida dos seres humanos. A última vez em que ocorreu algo semelhante foi há 65 milhões de anos, quando uma extinção provocada por erupções vulcânicas ou talvez por colisões de asteróides contra o planeta eliminou os dinossauros e a maioria das formas de vida na Terra, muito tempo antes de a espécie humana surgir. Quem enfrenta verões escaldantes talvez ache difícil acreditar que um aumento de 2 graus seja capaz de tamanho estrago. Mas pode-se considerar

talhe: o aquecimento não é homogêneo. "A elevação média de 2 graus pode representar o incremento de 1 grau cm algumas regiões do planeta, mas superior a 4 ou 5 graus em outras", diz Jefferson Cardia Simões, glaciologista da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E, como ção da água e altera o regime de chuvas, os desequilíbrios ambientais deixam de ser uma possibilidade teórica para se tornarem problemas concretos, como, aliás, já vem acontecendo. Em setembro do ano passado, um tufão, cuja origem se atribuiu às mudanças climáticas globais, atingiu a Coréia do Norte e deixou cem mortos, além de 25 mil desabrigados.

A equipe de Chris Thomas analisou como alterações climáticas mais ou menos intensas podem influenciar o futuro de 1.103 espécies de plantas e animais, quase todas exclusivas (endêmicas) de cada uma das seis regiões ricas em diversidade - México, Austrália, África do Sul, Brasil, Costa Rica e Europa -, que correspondem a um quinto das terras do planeta. Foi a maior amostra já analisada para entender como as mudanças ra, onde vivem atualmente, de acordo com as estimativas mais confiáveis, de 5 milhões a 10 milhões de espécies, embora apenas 1,8 milhão tenham sido caracterizadas. Mesmo antes desse estudo já havia indícios de mudanças nas formas pelas quais as espécies de animais e plantas se relacionavam entre si ou com


o ambiente - as chamadas relações ecológicas - em conseqüência tias mudanças climáticas recentes. Nos últimos cem anos, 60% das populações de 35 espécies de borboletas européias que não apresentam hábitos migratórios se deslocaram e expandiram, de 35 a 240 quilômetros rumo ao pólo norte, a área geográfica que ocupam, de acordo com um estudo coordenado por Camille Parmesan, bióloga da Universidade do Texas, publicado em 1999 na Nalurc. C.ian-Reto Walthcr, geobotânico da Universidade de Hannover, Alemanha, em um artigo publicado em 2001, também na Naturc, ções ecológicas, como a antecipação de dois a cinco dias na migração de pássaros na Europa e na América do Norte ou o florescimento entre 1,5 e 3 dias mais cedo, a cada década, de plantas da Europa.

ria) e levar doenças tropicais para os países das regiões temperadas", comenta Thomas Eewinson, ecólogo da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). "A Europa pode ter de se preocupar com doenças tropicais que saparecido, como a malária, que era relativamente comum na Inglaterra na época do Império Romano." arcclo Tabarelli, ecólogo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), dá uma idéia do que pode acontecer num espaço como a Amazônia: o desaparecimento da vegetação e dos animais provocado pelas alterações do >ta deve levar a mudanças em mais de na região do planeta. A água perdida Ias plantas por meio da transpiração

Mais espaço para velhas doenças - O

ameaçado, de maneira mais direta do que se pode imaginar. "Mudanças climáticas podem aumentar a distribuição geográfica de insetos como o Aedes (transmissor da dengue e febre amarela) e o Anopheles (transmissor da malá-

origina massas de ar que transferem calor e umidade para regiões vizinhas. Alteração nesse ciclo pode tornar ainda mais seco o clima do Cerrado, na região central do Brasil, e prejudicar o cultivo de soja, hoje um dos principais produ-

Na contribuição brasileira ao artigo da Naturc, Marinez analisou o que pode acontecer com 163 espécies de plantas, a partir da base de dados resultantes de uma parceria do Cria com o Projeto de Cooperação Técnica Conservação e Manejo da Biodiversidade do Bioma Cerrado, integrado pela Embrapa Cerrados, Universidade de Brasília (UnB), pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e pelo Jardim Botânico de Edimburgo, Escócia. Desse total, 123 são endêmicas do Cerrado, que já ocupou 18% do território nacional e hoje está reduzido a um sexto da área original. No cenário mais ameno, com aumento de temperatura entre 0,8 e 1,8 grau, 66 espécies desse ecossistema estariam ameaçadas de extinção, enquanto 75 correriam esse risco com a subida de 2 graus na tempera"O aquecimento faz desaparecer o ambiente favorável à sobrevivência e à reprodução dessas espécies, em especial as mais sensíveis a alterações no clima", afirma a pesquisadora, cujo trabalho foi desenvolvido no âmbito do projeto SpeciesEink, ligado ao Programa Biota-FAPESP, financiado pela

Algumas espécies em maior risco

Na África do Sul Flores como estas, da família das Proteáceas, são muito sensíveis às alterações climáticas

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A flor do país Até mesmo a Prótea-rei, símbolo da África do Sul, pode ser extinta


Fundação. Assim, é possível que, por exemplo, dois arbustos típicos do Cerrado, a douradinha (Palkourea rígida) e o mercúrio-do-campo {Erythrõxylum suberosum), desapareçam em algumas gerações ou sobrevivam por mais algum tempo apenas como espécies mortas-vivas - com exemplares vivos, mas incapazes de se reproduzir. Pressão humana - De certo modo, a elevação da temperatura faz parte de um ciclo natural de aquecimento do planeta, que em seguida começa novamente a esfriar. O problema é que atividades humanas como o desmatamento e a poluição causada pelas indústrias e pelos automóveis estão acelerando esse processo. Há 18 mil anos, no auge da mais recente glaciação, também conhecida como a última idade do gelo, um terço da Terra estava coberto por geleiras e sua temperatura média era de cerca de 9 graus. Km 1900, 66% desse gelo já havia derretido c o planeta estava quase 7 graus mais quente. Desde meados do século 18, a taxa de gás carbônico na atmosfera cresceu 33%, passando de 286 para 373 partes por milhão por volume, devido, em

No Cerrado Será difícil o mercúrio-do-campo sobreviver se a Terra esquentar mais

grande parte, ao consumo crescente de combustíveis fósseis após a Revolução Industrial. Na atmosfera, o gás carbônico forma uma espécie de cobertor que retém o calor refletido pela superfície do planeta c permite a existência de vida. Portanto, na medida certa, seu efeito é benéfico. Em concentração muito elevada é que surgem os desequilíbrios. De acordo com a Organização Meteorológica Mundial, a temperatura média da superfície aumentou ao menos 0,6 grau apenas no último século, num ritmo mais intenso dos anos 1970 para cá. É uma elevação 15 vezes maior que a média verificada nos 180 séculos anteriores. "A diferença está na velocidade que o homem imprimiu a esse processo", comenta Simões. ara os seres humanos, que adquiriram a capacidade de tornar o espaço confortável - puxando um cobertor ou ligando o arcondicionado -, cinco décadas parece bastante. Mas é muito pouco tempo diante dos milhares de anos em que espécies maiores, de crescimento mais lento, levam para se ajustar às mudanças ambientais. De acordo com os

Perda iminente 0 aquecimento global prejudicará também a douradinha, outra espécie do Cerrado

biólogos, é muito pouco provável que em apenas meio século as plantas e animais tenham tempo de se adaptar, do ponto de vista genético, às mudanças causadas pelo aquecimento global, que agrava uma situação por si só já complicada, a perda contínua dos ambientes naturais. O risco de extinção, ressalta Tabarclli, não deve atingir da mesma forma todas as espécies. Algumas talvez sejam capazes de se dispersar em direção aos pólos ou para altitudes mais elevadas, com temperaturas mais amenas, enquanto outras podem até ser favorecidas. Provavelmente, as mais sensíveis às mudanças de temperatura e umidade devem desaparecer primeiro. "Se agirmos imediatamente, podemos tentar remediar os efeitos das mudanças climáticas, transferindo as espécies mais sensíveis para outras regiões", sugere o ecólogo Jean Paul Metzger, da Universidade de São Paulo (USP). Para Simões, da UFRGS, a de espécies do planeta é acima de tudo uma questão ética, mais do que numérica: "Temos o direito de deixar o planeta sem condições favoráveis à vida para as próximas gerações?" •

Dragão australiano 0 lagarto Hypsilurus boydii pode perder de 20% a 90% de seu habitat em 50 anos

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I CIÊNCIA

AMBIENTE

Um estranho nas geleiras do sul Caranguejo do Ártico é a primeira espécie marinha invasora encontrada na Antártida MARCOS PIVETTA

Na volta de uma viagem à Antártida em 1986, o navio oceanográfico Prof. W. Besnard, da Universidade de São Paulo (USP), trouxe amostras de um tipo de crustáceo que recolhera durante sua jornada exploratória. Eram dois pequenos caranguejos: um macho, cuja carapaça media 4,1 centímetros de comprimento por 2,8 de largura, e uma fêmea, com dimensões 20% maiores. Capturados em águas vizinhas à península Antártica, a noroeste do continente branco, os exemplares, em princípio, não chamaram muito a atenção. Como tantos outros espécimes enredados pelo Besnard no oceano Austral, o mar gelado que circunda a Antártida, foram encaminhados para o Museu de Zoologia da USP. Em maio de 1987, embebidos numa solução à base de álcool e dividindo o mesmo pote de vidro, os caranguejos deram entrada no acervo da instituição paulista. O frasco que acondicionava o par de bichinhos marinhos recebeu o nome de lote MZUSP 8878 e foi ocupar seu devido lugar numa estante. No momento da catalogação, o pesquisador Gustavo Augusto Schmidt de Melo, então curador da seção de carcinologia (crustáceos), achou os caranguejos interessantes, talvez até pudessem ser uma nova espécie, ainda desconhecida pela ciência. Sem dúvida, não havia esse tipo de animal no Brasil. Por isso, deixou anotado que valia a pena estudá-los um dia - assim que outras tarefas mais prementes fossem tocadas e houvesse gente para abraçar o trabalho. 38 ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 96

Dezesseis anos se passaram e esse dia finalmente chegou. No início de 2003, o carioca Marcos Tavares, especialista em crustáceos, mudou-se para São Paulo e assumiu o cargo de curador da seção de carcinologia do Museu de Zoologia, justamente no lugar de Melo, que acabara de se aposentar. Numa conversa de trabalho com seu antecessor no cargo, que, apesar de aposentado, continua ativo no museu, Tavares tomou conhecimento das estranhas amostras de caranguejo obtidas pelo Besnard. Acharam que era hora de pesquisar em detalhes aqueles exemplares de crustáceos. O interesse pela amostra cresceu ainda mais quando verificaram na literatura científica que não havia espécies vivas de caranguejos nativos da Antártida, mas apenas espécies fósseis, extintas. Isso os motivou a estudar realmente a fundo as amostras que vieram do frio. E o resultado da pesquisa veio rapidamente: em poucos meses, os pesquisadores concluíram que os caranguejos capturados pelo navio brasileiro representam a primeira evidência de introdução, provavelmente mediada pelo homem, de espécies marinhas invasoras, originárias de outras partes do globo, no oceano Austral. Em vez de serem uma nova forma de vida, os bichinhos recolhidos pelas redes do Besnard em 1986 pertencem a uma velha e conhecida variedade de crustáceo. Descrita na literatura científica há quase 250 anos, a espécie Hyas araneus recebe, entre os pescadores, o nome popular de caranguejo-aranha ou aranha-do-mar. Pescadores do mar do Norte e do oceano Ártico, bem en-


O continente gelado, o último a ser ocupado por espécies exóticas, e o Hyas araneus: de carona em navios


Science, especializada em assuntos do tendido. Nativo dessas regiões, muito continente branco. De forma preliminar, frias, a exemplo da península Antártica, a descoberta do caranguejo-aranha no o caranguejo-aranha só havia sido enoceano Austral foi apresentada em oucontrado, até então, em trechos de mar tubro passado num congresso sobre pessituados acima de 41 graus de latitude quisas antárticas realizadas em Ushuaia, norte. Nunca no oceano Austral, do ouna porção argentina da Patagônia. Tavatro lado do globo, a 61 graus de latitures, que não é especialista em Antártida, de sul. Portanto, a espécie em si está onde, aliás, nunca esteve, foi convidado longe de ser nova. Nova é a sua presença a abordar o assunto assim que renas franjas da Antártida, o conlatou informalmente a histótinente mais inóspito e meria a alguns pesquisadores nos poluído e de acesso do exterior. mais difícil. "A fauna en A presença dos dois dêmica do oceano Ausexemplares do H. aratral esteve isolada das neus na península Andemais por pelo metártica não significa, nos 25 milhões de obrigatoriamente, anos e agora está que os caranguejossendo exposta ao aranhas estabelecontato com espéceram colônias ali. cies exóticas", afirNão há registro de ma Tavares. Anque a espécie tenha tes do H. araneus, sido novamente larvas de espécies coletada na região. subantárticas de "Mas precisamos crustáceos, oride mais dados para undas do extremo saber se a introdusul da América do ção dos caranguejos Sul, já haviam sino oceano Austral do localizadas nas realmente não vingou proximidades da ou eventualmente deu península Antártica, 0 lagostim P. clarkii: certo e passou despercemas sua presença nesnos aquários brasileiros, bida", pondera Tavares. sa região se devia (e se com um fungo nocivo Possivelmente, sua presendeve) à dinâmica natural ça em águas tão distantes de das correntes oceânicas, seu local de origem tenha, por sem a influência do homem. ora, um efeito mais simbólico do Eram ocorrências com caracterísque prático. Pode significar que está ticas distintas das que levaram os caficando mais fácil chegar àquelas paranguejos-aranhas para a costa da ragens. A maior presença do hoAntártida. mem na Antártida e o aumento da temperatura média do Reaproximação - No jargão dos bióloplaneta - inclusive nas gos, a expressão espécie exótica designa águas muito frias do oceaqualquer forma de vida, animal ou veno Austral, que normalgetal, introduzida em um habitat dimente funcionam como ferente do seu local de origem. É uma uma barreira natural à definição de valor relativo. Endêmico e chegada de seres marinativo no Ártico e mar do Norte, o H. nhos oriundos de outros araneus é considerado exótico e invasor ecossistemas - podem ser na Antártida (e em qualquer outra parte do mundo). A descoberta de que, defatores indutores da entrada de espécies marinhas pois de pelo menos 25 milhões de anos exóticas à região mais meride isolamento, a fauna do oceano Ausdional da Terra. Em solo antral não se encontra mais completamentártico, o vaivém de pesquisate separada das espécies marinhas de dores e turistas já levou muitos outros mares resultou num artigo cienseres estranhos, de hábitos terrestres, tífico. Assinado por Tavares e Melo, o ao continente. Um caso notório foi o texto será publicado na edição de junho dos cachorros, que ali chegaram a ser deste ano da revista britânica Antarctic

<rj^>,

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usados para puxar trenós de neve até o início da década passada, quando sua presença na Antártida foi proibida. Se a introdução de espécies alienígenas já acontecia em terras antárticas, o mesmo parece agora suceder na costa do continente. Por isso, é importante descobrir de que forma o par de caranguejos-aranhas mudou de hemisfério e foi parar do outro lado do mundo, no oceano Austral. Como esses bichinhos do Ártico, acostumados a viver em fundos de mar compostos de rocha, areia e lama, a no máximo 550 metros de profundidade, conseguiram deixar as vizinhanças do pólo Norte, cruzar incólumes as elevadas temperaturas da linha do Equador e desembarcar nas proximidades do pólo Sul? Desembarcar parece ser o verbo adequado para descrever o meio de transporte usado pelos caranguejos-aranhas para chegar à Antártida. "Suspeitamos que os crustáceos tenham entrado na península Antártica incrustados no casco de navios ou no meio da água de lastro de embarcações", comenta Melo. Para os pesquisadores, devido às dimensões dos crustáceos, um pouco grandes para permitir o seu alojamento nas paredes externas dos barcos, a segunda hipótese é a mais provável. "O tráfego de navios aumentou muito no oceano Austral nas últimas décadas em razão do incremento das atividades de pesquisa, pesca e

0 siri C. hellerii: de Israel para a América do Sul


turismo", afirma Melo. Estima-se que 4 mil pesquisadores vivam na Antártida durante os meses de verão. No inverno, esse número se reduz a mil cientistas. A quantidade de turistas que visitam as geleiras e os pingüins do continente branco bate a casa dos 10 mil, às vezes 15 mil. Haja barco para transportar toda esse gente. Isso sem falar dos navios pesqueiros, geralmente em busca do abundante krill, um tipo de crustáceo parecido com o camarão. Porões com água - Não há nenhuma evidência concreta de que a água de lastro tenha sido realmente responsável pela introdução dos H. araneus no oceano Austral. Por exclusão das demais alternativas, é a que restou para ser investigada. Isso porque outras formas de introdução de espécies marinhas exóticas, como o cultivo comercial de peixes e crustáceos ou a construção de canais de navegação, não fazem parte da realidade do continente branco. Essas hipóteses fazem sentido em outros pontos do globo, mas não na Antártida. Armazenada nos porões dos navios, em compartimentos vedados, a água de lastro é essencial para garantir uma boa navegabilidade e a integridade estrutural, sobretudo em embarcações de carga. "Os navios são projetados para viajar com os porões cheios de mercadorias", diz Tavares. Em razão dessa característica, quando não há carga para ser levada de um lugar a outro, os barcos se locomovem com seus compartimentos cheios de água - a tal água de lastro, rica em amostras da fauna e flora locais — para garantir o seu equilíbrio. Quando chegam ao seu destino, onde vão ser abastecidos com produtos ou pescado, despejam a água de lastro, colhida no porto de origem, para evitar o excesso de peso. A Organização Marítima Internacional (IMO, na sigla em inglês), agência das Nações Unidas que monitora a segurança no transporte naval, estima que cerca de 7 mil espécies marinhas, muitas vezes na forma de larva, viajam nos tanques com águas de lastro da frota naval internacional, invadindo assim

habitats distantes do seu ambiente natural. Isso sem contar microrganismos e bactérias, como o vibrião do cólera, que também podem ser transportados dessa forma. A introdução involuntária de espécies exóticas promovida pelos navios, que carregam cerca de 80% das mercadorias comercializadas no mundo globalizado, resultou em alterações significativas em ecossistemas de algumas partes do mundo, com implicações de ordem ambiental, sanitária e, muitas vezes, econômica. Nos Estados Unidos,

0 L. vannamei: risco de contaminar outros camarões

uma espécie de molusco de água doce de origem européia, o mexilhão-zebra {Dreissenapolymorphd), chegou, via água de lastro, provavelmente no início dos anos 1980, aos Grandes Lagos e se espalhou por 40% dos rios navegáveis do país. Entre 1989 e 2000, os custos para se controlar a praga, cuja concha se agarra a tudo que é sólido, foram estimados em pelo menos US$ 750 milhões. Não faltam histórias parecidas com a do mexilhão-zebra em outras partes do planeta, inclusive no Brasil. Nativo do oceano Pacífico, o siri Charybdis hellerii, depois de colonizar o Mediterrâneo oriental, migrou para o Atlântico na década de 1980, possivelmente a bordo dos compartimentos de água de lastro de embarcações que fizeram escala em portos israelenses. Ainda nessa década, exemplares da espécie marinha foram encontrados em Cuba, na Venezuela e no Caribe colombiano. Em 1995, sua presença foi flagrada na Flórida e no Rio de Janeiro. Hoje, o C. hellerii, que pode se tornar um competidor do habitat normalmente ocupado por crustáceos de

importância comercial, é encontrado em, no mínimo, sete estados da costa brasileira. Outro caso famoso de introdução acidental de uma espécie exótica em território nacional é a história do mexilhão dourado (Limnopermafortunei), de origem asiática. Transportado na água de lastro de navios, o molusco apareceu primeiramente no rio da Prata, na Argentina, nos anos 1990. Atualmente está presente em alguns rios do sul do país. A exemplo do mexilhão-zebra nos Estados Unidos, a concha do L. fortunei é muito pegajosa. Um de seus efeitos colaterais é grudar nas turbinas da usina de Itaipu, em Foz do Iguaçu, norte do Paraná, aumentando os cuidados e gastos com a limpeza das engrenagens da hidrelétrica. Não se pode, contudo, generalizar e debitar a chegada de todas as espécies marinhas invasoras no passivo da água de lastro. O camarão-branco do Pacífico, Litopenaeus vannamei, foi introduzido no Rio Grande do Norte em 1981 para cultivo comercial em viveiros, geralmente em terrenos à beira-mar, o que facilita a obtenção de água marinha para o crustáceo. Hoje a espécie, de origem asiática, é o tipo de camarão mais cultivado no país, gerando milhões de dólares para a pauta de exportação. Alguns biólogos temem que o camarãobranco, muito suscetível a doenças virais, possa ser atacado pelo vírus TSV, como ocorreu nos estados norte-americanos do Texas e da Carolina do Sul em meados do década passada, e transmitir esse patógeno exótico para as espécies nativas de camarão. Com o lagostim de água doce Procambarus clarkii, nativo do sul dos Estados Unidos, há uma preocupação semelhante. Trazido para o Brasil por criadores e muito apreciado por donos de aquário, a espécie carrega um fungo, o Aphanomices astaci, ao qual é insensível, mas que pode ser nocivo a outro seres marinhos. "A introdução de espécies exóticas é uma roleta ecológica", afirma Tavares. "Suas conseqüências são imprevisíveis." O problema é que, como demonstra a descoberta do par de caranguejos-aranhas do Ártico em pleno oceano Austral, nenhum trecho de mar está livre desse jogo de azar. Nem mesmo ao redor da Antártida, onde a roda já teria dado suas primeiras voltas. • PESQUISA FAPESP % ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ 41


■ CIÊNCIA

VIROLOGIA

Equipe explica como o HIV se esconde e por que a interrupção programada do tratamento contra Aids nem sempre funciona

Nos últimos anos, a equipe de Ricardo Diaz, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), acompanhou passo a passo as mudanças que ocorrem no material genético do HIV em um prazo relativamente curto (três meses), quando os portadores de formas do vírus resistentes aos remédios adotam a estratégia de interrupção programada do tratamento - param de tomar os medicamentos por 12 semanas e, em seguida, reiniciam a terapia. Wilson Pereira Silva, um dos integrantes do grupo, descobriu o mecanismo que permite ao vírus resistente escapar à interrupção programada, elaborada justamente para reduzir a resistência aos medicamentos. Até agora, pesquisas internacionais indicavam que a retirada dos remédios poderia provocar alterações capazes de diminuir a população dos vírus resistentes, enquanto os não-resistentes, evolutivamente mais próximos dos vírus encontrados no início da infecção, teriam condições mais favoráveis de crescimento - em seguida, os vírus sensíveis aos remédios seriam eliminados com a reintrodução dos medicamentos. O intervalo de três meses também seria suficiente para o sistema de defesa reciclar os linfócitos, as células-alvo do HIV, substituindo os contaminados com o material genético do vírus por outros sadios. Não foi o que se viu. Em um estudo que faz parte de um projeto temático coordenado por Ricardo Diaz, Wilson Silva verificou que o vírus pode permanecer mais tempo vivo - numa forma inativa - em populações de linfócitos que se 42 ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 96

encontram em uma espécie de hibernação. A retomada do tratamento parece despertar essas células dormentes, que passam a produzir vírus resistentes aos remédios. Ao analisar um gene responsável pela produção de uma parte da cápsula do HIV, a equipe de Diaz confirmou que os vírus despertados com a retirada dos medicamentos haviam acumulado menos alterações e, portanto, eram geneticamente mais próximos daqueles que iniciaram a infecção. Resistência reduzida - Em outro estudo coordenado por Diaz, Domingos Matos dos Santos, da Universidade Federal do Pará (UFPA), avaliou como 35 portadores do HIV resistente aos medicamentos respondiam à interrupção programada do tratamento. A estratégia foi eficaz - e eliminou a resistência do vírus aos remédios - em apenas 34% dos casos. Para os demais pacientes, os benefícios foram pequenos ou inexistentes. Mas a notícia também tem aspectos positivos. Diante desses resultados, Santos resolveu verificar o que havia de especial com essas 12 pessoas para as quais a interrupção havia funcionado bem. Viu que, nesses casos, a quantidade de vírus no sangue era baixa e o número de linfócitos elevado antes mesmo do início do tratamento - ou, como dizem os médicos, o perfil inicial da infecção era bom. "Esses resultados indicam que a interrupção programada deveria ser adotada apenas quando o quadro inicial da doença é favorável", diz Santos. "É uma estratégia que exige uma avaliação individualizada e que o médico conheça em detalhes como a infecção evoluiu no paciente." •


A técnica de laboratório Janaína Maria Alves, da equipe da Unifesp, purifica o material genético do HIV para entender como o vírus escapa aos medicamentos


CIÊNCIA NEUROIMUNOLOGIA

■ftfêadas Estresse produz efeitos inesperados sobre as conexões entre os sistemas nervoso, imune e endócrino CARLOS FIORAVANTI

João Palermo-Neto, veterano pesquisador de 59 anos, reconhece a surpresa diante dos resultados de um experimento inusitado, a ser publicado este mês na revista especializada Neuroimmunomodulation: "Pensei que não fosse acontecer nada". Em um dos laboratórios da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (USP), onde ele leciona e coordena um grupo de pesquisa, camundongos sadios conviveram com animais com tumor de Erlich, que deixa a barriga enorme e pode levar à morte em menos de duas semanas. Alguns dias depois de terem sido colocados juntos, em pares, os camundongos sadios passaram a se comportar como os companheiros doentes: aquietaram-se num canto da gaiola, exploravam menos o espaço ao redor e se alimentavam menos que o habitual. Além disso, caíram suas defesas orgânicas, avaliadas por meio da quantidade de células de defesa - os glóbulos brancos - no sangue. Numa segunda etapa, os pesquisadores injetaram células de tumor nos camundongos sadios, e o quadro doentio se desenvolveu mais rapidamente nos animais que haviam acompanhado os doentes do que nos que haviam convivido com companheiros sadios. "Nunca tinha visto nada que indicasse que o ato de ficar junto pudesse mudar os parâmetros de imunidade", comenta Palermo, cuja equipe deve trabalhar intensamente nos próximos meses até descobrir se foi por meio do contato, do cheiro ou de algum estímulo químico que os camundongos sadios perceberam que os parceiros estavam doentes. Esse mesmo grupo de pesquisa já havia observado em camundongas prenhes submetidas a uma situação de estresse - choques elétricos de baixa intensidade aplicados nas patas - uma elevação da ansiedade, que se refletiu numa sensibilidade maior ao tumor de 44 ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ PESUUISA FAPESP 96

Erlich, em comparação a um grupo de animais que não havia sido exposto ao mesmo estímulo. Além disso, houve uma redução na atividade de um tipo de células do sistema imune, os macrófagos, que deixaram de engolfar e destruir os microrganismos invasores na intensidade habitual - essa tarefa, a fagocitose, é essencial para acionar outras células de defesa. Em um estudo publicado em 2003, o grupo da USP notou uma redução na fagocitose também como resultado do uso prolongado do diazepam, fármaco bastante usado em medicamentos contra a ansiedade. Em conseqüência, o organismo pode se tornar mais suscetível a infecções geradas por vírus e bactérias, o que, por si só, sugere cuidados redobrados no uso dessas medicações. Pouco a pouco, esses estudos mostram como o estresse físico ou emocional afeta o organismo, explicando com uma riqueza crescente de detalhes por que as feridas de herpes, por exemplo, explodem após um semestre de muita preocupação ou então por que surge uma gripe ou uma crise de alergia depois de uma prova difícil, que consumiu meses de estudo. Tais situações refletem as intricadas conexões entre três sistemas do organismo: o nervoso, o imune e o endócrino. O primeiro, formado basicamente por bilhões de células nervosas (neurônios) e por moléculas que transmitem as informações (neurotransmissores), controla as reações inconscientes ou conscientes — dos batimentos cardíacos à escolha da roupa pela manhã. O sistema imune, constituído principalmente pelos glóbulos brancos do sangue, cuida da defesa do organismo, combatendo vírus, bactérias, protozoários, fungos, vermes e toxinas estranhas, além de eliminar células velhas ou doentes. Por fim, o sistema endócrino, com cerca de uma dezena de glândulas que produzem em torno de 40 hormônios, que regulam o trânsito de açúcar e de gordura pelo organismo ou engrossam a voz dos meninos na puberdade. Agindo


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em conjunto, os três sistemas formam a tríade que governa o organismo. "Não se deve mais examinar um sem avaliar os outros dois, porque os três interagem entre si 24 horas por dia", observa Wilson Savino, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), do Rio de Janeiro. Chagas e Aids - Em um estudo publicado em setembro de 2003 no European Journal of Immunology, Savino e sua equipe demonstraram que o Trypanosoma cruzi, protozoário causador da doença de Chagas, danifica um dos elos que ligam os três sistemas: o timo, glândula do tamanho de uma ervilha situada no peito, entre os pulmões, atrás do osso esterno, e considerado o maestro do sistema imune. É aí que se forma um tipo de célula branca essencial no combate a vírus e bactérias, os chamados linfócitos T, justamente por se desenvolverem inicialmente no timo. Dessa glândula, essas células seguem para o baço e os gânglios, nos quais terminam de amadurecer - só então é que estão aptas a combater os microrganismos invasores. De acordo com o trabalho feito na Fiocruz, o T. cruzi faz com que alguns linfócitos T sejam liberados ainda imaturos - portanto, despreparados para cumprir sua função a contento. Além disso, o parasita que infecta 16 milhões de pessoas na América Latina, dos quais 6 milhões no Brasil, intensifica a produção de moléculas que se acumulam no timo e dificultam seu funcionamento. Depois de verificar, há alguns anos, que o timo atrofia à medida que a doença de Chagas evolui, a equipe de Savino demonstrou que a infecção pelo T. cruzi também provoca alterações no hipotálamo e na hipófise, duas regiões do cérebro que agem em conjunto com as glândulas supra-renais e controlam a resposta do sistema imune em situações de estresse agudo ou crônico (veja quadro). "É possível que algo semelhante ocorra em outras doenças infecciosas agudas, nas quais também ocorre a atrofia do timo", diz ele. "Na raiva,


por exemplo, já foram vistas anomalias no chamado eixo hipotálamo-hipofisário." Já se pode tirar proveito do conhecimento sobre as conexões entre os três sistemas, em benefício da saúde humana. Em um estudo aceito para publicação na Neuroimmunomodulation, Savino apresenta os fundamentos científicos para o uso do hormônio de crescimento humano (hGH, na sigla em inglês) como medicamento auxiliar no tratamento de doenças que minam o sistema imune, a exemplo da Aids. Em camundongos transgênicos, que produzem esse hormônio em quantidades acima do normal, o hGH apressou a saída de linfócitos do timo, sobre o qual atua diretamente, além de favorecer a migração para o baço e os linfonodos (reservatórios de células do sistema de defesa) e a liberação para o sangue. "Nos animais", conta Savino, "não observamos efeitos colaterais." Se no caso da Aids abre-se uma nova perspectiva de tratamento, os resultados a que chegou a equipe de Thereza Quírico-Santos, da Universidade Federal Fluminense (UFF), e de Soniza Leon, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), estão ajudando a orientar, já há três anos, as estratégias de tratamento de outro problema ligado ao sistema imune, a esclerose múltipla. Trata-se de uma doença neurológica infiamatória crônica do sistema nervoso que surge quando - não se sabe direito por quê - os linfócitos T resolvem atacar a mielina, substância que reveste as fibras nervosas do cérebro, da medula espinhal e dos nervos ópticos, originando um quadro de incapacidade progressiva da visão, de movimentos ou de funções orgânicas, que levam, por exemplo, à incontinência urinaria.

Os pesquisadores tornaram o tratamento mais eficaz por meio de duas análises feitas em laboratório: o perfil genético, indicador da suscetibilidade de cada pessoa à doença, e a chamada reatividade imunológica, que indica quais trechos da mielina são capazes de ativar os linfócitos T contra o sistema nervoso. Esses dois exames indicam se é melhor adotar antiinflamatórios ou imunomoduladores, as duas opções terapêuticas hoje disponíveis para controlar a doença. No final do ano, esse grupo concluiu um estudo mostrando que uma molécula de comunicação do sistema imune uma citocina - favorece o deslocamento de células inflamatórias para o sistema nervoso. "Esse trabalho evidencia que o processo inflamatório que destrói a mielina é contínuo, mesmo em pacientes sem surto", explica Thereza. É uma forte indicação, também, de que convém tratar a doença não apenas nos surtos, mas mesmo quando não há sinais do lento avanço da corrosão das fibras nervosas. Em um estudo recém-concluído, Luiz Carlos de Sá-Rocha, da USP, encontrou reações diferentes em um mesmo grupo de camundongos, numa associação direta com a hierarquia: havia os dominantes, que lideram o grupo, alimentam-se primeiro e têm acesso às fêmeas antes dos outros machos; e os submissos, que vivem ofuscados pelos dominantes. Os pesquisadores aplicaram no abdômen de cada um deles um tipo de açúcar - um lipopolissacarídeo que desperta reações semelhantes às de uma bactéria. E, curiosamente, os dominantes mostraram-se mais sensíveis pararam de comer e prostraram-se quietos num canto da gaiola -, enquanto os submissos se apresentaram mais resistentes e mantiveram-se na defensiva com os líderes do grupo. "Talvez os camundongos do grupo dos submissos te-

0 poder da tríad Uma situação de estresse agudo um vazamento repentino de gás na cozinha ou a iminência de pular de pára-quedas pela primeira vez - dispara dois mecanismos do sistema nervoso: um de resposta imediata e outro de ação mais lenta. Milissegundos após o susto, uma rede de fibras nervosas faz com que as glândulas supra-renais, situadas sobre os rins, produzam os hormônios adrenalina e noradrenalina. Como resultado, o coração começa a bater mais rápido, a pupila se dilata e o sangue irriga os músculos mais intensamente - e o corpo mobiliza as energias para a reação de luta ou de fuga. Em paralelo, o hipotálamo recebe a informação de que algo incomum está acontecendo e libera um hormônio chamado fator liberador de corticotrofina (CRF), que segue até a hipófise, também na base do cé-

46 ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP %

rebro. Acionada, a hipófise secreta o hormônio adrenocorticotrófico (ACTH). Caindo na corrente sangüínea, o ACTH chega às supra-renais e induz à liberação de mais um hormônio, o cortisol, cuja entrada na corrente sangüínea ocorre de duas a quatro horas após o susto. Sob a ação do cortisol, altera-se o perfil do sistema imune: a chamada resposta celular, efetivada principalmente pelos macrófagos e por células brancas chamadas neutrófilos, cede lugar à resposta humoral, baseada na produção de anticorpos, liberados pelas células. Nessa troca de guardas, o organismo pode ficar mais vulnerável a bactérias como a da tuberculose, cuja eliminação depende essencialmente da resposta celular. O problema maior é com o estresse contínuo, que mobiliza esses hormônios com regularidade e, assim,

deixa as portas abertas por mais tempo. Concentrações continuamente elevadas desses hormônios ajudam a explicar o fato de haver um risco 60% maior de uma pessoa idosa morrer após a perda do companheiro com quem viveu durante quase uma eternidade. Sob o viés da neuroimunologia, morrer de desgosto não é apenas uma figura de linguagem, mas uma situação bioquimicamente explicável. "Ou o organismo se adapta, ou surgem os problemas", afirma Sá-Rocha. Segundo ele, a tendência é de que as situações que um dia pareceram intoleráveis deixem de perturbar o equilíbrio do corpo. "Os níveis mais altos de adrenalina de quem trabalha na Bolsa de Valores", exemplifica, "podem não causar mais problemas para quem está acostumado e, com o tempo, podem até mesmo cair frente ao mesmo estímulo estressor."


A

/ OS PROJETOS Neuroimunomodulação

Imunorreatividade na Esclerose Múltipla

MODALIDADE

Projeto Temático COORDENADOR JOãO PALERMO-NETO-

COORDENADORA THEREZA QUíRICO-SANTOS

- UFF

FMVZ/USP INVESTIMENTO

R$ 716.213,73 (FAPESP)

INVESTIMENTO

R$15.000 (CNPq) e R$ 6.000 (Capes)

nham de fazer mais esforço para sobreviver e se tornem mais resistentes", cogita Sá-Rocha. Acompanhantes sensíveis - Os resultados obtidos até agora sugerem que possa haver também motivação para reagir, como se os animais se deixassem ou não ficar doentes. Numa tentativa de aplicar os resultados científicos ao universo humano, seria uma forma de entender por que as mães conseguem conter os sintomas da própria gripe se o filho está com uma gripe forte, ou por que os acompanhantes de doentes também tendem a ficar doentes. Cláudia Fernandes Laham, da Divisão de Psicologia do Hospital das Clínicas (HC) da USP, concluiu no ano passado um levantamento com 50 acompanhantes de doentes - ou cuidadores - atendidos pelo Núcleo de Assistência Domiciliar Interdisciplinar (Nadi), programa com especialistas que visitam os enfermos em suas casas. Com idade média de 58 anos, os cuidadores eram geralmente filhos (36%) ou cônjuges (30%) da pessoa doente. Mais da metade deles (62%) também apresentaram problemas de saúde, como dores musculares, hipertensão ou depressão. "Nas visitas às casas dos pacientes, nem sempre é fácil distinguir quem é o doente e quem é o cuidador" relata Cláudia. "Às vezes o doente está com a saúde melhor." De acordo com seu estudo, cuidar de uma pessoa doente implica perda de liberdade, solidão, cansaço e vigilância constante. "Qualquer pessoa, ao conviver com a dor de outra, pode achar que para manter a relação de amor é preciso sofrer também", comenta o psicólogo Niraldo de Oliveira Santos, da Divisão de Psicologia do HC da USP. Quando o doente é mais próximo - pai, mãe ou filho -, é ainda maior o risco de aflorarem nos acompanhantes sintomas semelhantes ou até mesmo idênticos, por causa dos laços afetivos mais fortes. "Identificar-se com o sofrimento alheio é uma forma de afastar o sentimento de culpa por estar sadio e de evitar as perdas reais ou simbólicas", diz Niraldo. Mas, como Cláudia verificou em seu trabalho, conviver com pessoas doentes também traz alguns ganhos, como a oportunidade de cuidar de outra pessoa ou de sentir-se produtivo com uma ocupação. .


CIÊNCIA GENOMICA

Diferença mínima Poucos genes podem ser responsáveis pela agressividade de alguns tipos de câncer

O paradoxo era perturbador. Dois tumores derivados de tecidos conectivos do cérebro tinham graus de agressividade diametralmente opostos - um era quase benigno, de crescimento lento e restrito, e outro muito invasivo, de rápida e generalizada expansão. Mas o padrão de expressão (atuação) de seus genes em vez de ser bastante distinto, como se poderia inicialmente pensar, era extremamente parecido. O dado podia ser um indício de que a capacidade de se espalhar por tecidos sadios, tão marcante nas formas mais malignas de câncer, estava ligada ao funcionamento de um número reduzido de genes. Para experimentar tal hipótese, pesquisadores do programa Genoma Clínico do Câncer, financiado pela FAPESP e Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer, testaram aproximadamente 20 mil genes humanos, sendo que dois terços do total da espécie reagiam ao entrar em contato com os dois tipos de tumor. O comportamento desse conjunto de genes, que se encontrava depositado numa lâmina especial de vidro, chamada tecnicamente microarray, foi monitorado em nove comparações distintas entre os dois tipos de tumores. Os resultados do experimento - levado a cabo num laboratório do Instituto de Ensino e Pesquisa Albert Einstein, ligado ao Hospital Albert Einstein, de São Paulo, que recentemente se associou ao Genoma Clínico, lançando mão de recursos próprios - reforçaram a suspeita inicial dos cientistas. Somente 110 genes funcionaram de maneira significativamente diferente nos dois tumo48 ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 96

res: 45 foram mais expressos nos astrocitomas de grau I, o tipo mais brando de câncer, e 65 nos gliobastomas (astrocitomas de grau IV), a forma mais devastadora do tumor. Curiosamente, 27% dos genes mais ativos nos tumores mais graves estão intimamente relacionados à capacidade de as células se reproduzirem, um mecanismo imprescindível para a disseminação da doença. "Precisamos agora confirmar esses dados com o emprego de outras metodologias", diz Marco Antônio Zago, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, coordenador do Genona Clínico do Câncer. "E distinguir em quais genes a sua maior expressão é causa, e não conseqüência, da grande invasividade dos gliobastomas." Nove tipos de tumores - As análises de expressão de genes feitas em tumores de cérebro fazem parte de um estudo-piloto do Genoma Clínico. Seu objetivo central era testar as metodologias que serão empregadas ao longo do programa. Por isso, apenas três dos nove tipos de tumores que serão enfocados pelo Genoma Clínico foram alvo desses trabalhos iniciais, realizados por uma rede de cinco laboratórios de biologia molecular, com o apoio de dois centros de bioinformática. Além de trabalhar com amostras de tumores de cérebro, o estudo-piloto mediu o funcionamento de grupos de genes em células com câncer (e sadias) retiradas da laringe e do cólon. "Mas, por enquanto, só temos resultados expressivos com tumores de cérebro", afirma Zago. Iniciado há dois anos, o Genoma Clínico trabalha com amostras de tumores que se formam

em nove diferentes órgãos ou tecidos do corpo humano: estômago, esôfago, osso e medula óssea, além de cérebro, cabeça/pescoço e cólon/reto. Com orçamento estimado em US$ 1 milhão, bancado em porcentagens iguais pela FAPESP e Instituto Ludwig, o programa pesquisa se diferenças significativas no funcionamento de um gene, ou de um conjunto de genes, em células com câncer e em seus respectivos tecidos sadios podem fornecer informações úteis para o diagnóstico ou tratamento da doença. "Queremos investigar se essas mudanças de expressão se correlacionam com parâmetros clínicos dos doentes, como sobrevida, resposta a tratamentos e propensão para metástases (expansão do tumor para outros tecidos)", explica Zago. Não que a meta do programa seja desenvolver dispendiosos exames genéticos para serem aplicados diretamente nos pacientes com câncer e, assim, prever a evolução da doença ou orientar a melhor forma de tratamento. O objetivo é relacionar o comportamento dos genes nos tecidos tumorais com alterações em parâmetros fisiológico dos doentes, como a produção de proteínas e antígenos (substâncias reconhecidas como potencialmente agressivas pelo sistema imunológico). A vantagem dessa abordagem é que testes simples e baratos poderiam ser usados para detectar essas alterações fisiológicas. Em países como o Brasil, de nada adiantaria desenvolver procedimentos muito caros e complexos, que dificilmente entrariam na rotina clínica dos hospitais públicos. Além disso, essas proteínas e antígenos são potenciais alvos para desenvolvimento de novas terapias.


Lâmina de microarray com 20 mil genes: primeiros resultados do Genoma Clínico do Câncer

A forma como o Genoma Clínico estuda o comportamento do genes dos tumores é inovadora na medida em que reúne um variado time de especialistas e instituições para perseguir seus objetivos. Apesar do nome que remete à área de genética, o programa não é tocado apenas por biólogos moleculares. A maioria dos seus participantes são clínicos, cirurgiões, epidemiologistas e patologistas, que travam contato cotidiano com pacientes de câncer. Esses médicos pertencem a 19 grupos de pesquisa clínica de hospitais e universidades paulistas. Seu papel é de fundamental importância para a montagem de uma estrutura de dados primários que serão usados ao longo de todo o programa em uma série de estudos. Essa estrutura se assenta em dois pilares: amostras de boa qualidade dos nove tipos de tumores (e de seus respectivos tecidos sadios) e um detalhado perfil epidemiológico dos pacientes e pessoas saudáveis que forneceram esses tecidos. Até dezembro passado, o Genoma Clínico contabilizava amostras de 1.124 pacientes com tumores e 793 de pessoas sadias, os chamados casos-controle. Esse material biológico é a matériaprima para a execução dos estudos sobre expressão de genes em tumores que agora começam a ser feitos pelos biólogos moleculares do programa. Além disso, os clínicos e cirurgiões são capazes de formular questões relevantes sobre o comportamento das doenças, que podem ser respondidas pelas análises moleculares. "O Genoma Clínico construiu uma ponte entre os pesquisadores de laboratório e os clínicos e cirurgiões que atuam em hospitais", afirma Marcos PESQUISA FAPESP % ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ 49


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Brasilino de Carvalho, oncologista especializado em cirurgia de cabeça e pescoço do Hospital Heliópolis, da capital paulista. "Nós apresentamos os doentes de câncer para eles e eles nos mostram os genes e cromossomos." Coordenador de um dos 19 grupos que enviaram amostras de células com câncer e sadias ao programa, Carvalho e sua A agressividade de um tipo de tumor de cérebro equipe já forneceram ma- pode derivar da ação de apenas 65 genes terial celular retirado de cerca de 150 pacientes de câncer de cado programa. "Cabe, então, a alguém beça e pescoço. "O Genoma Clínico foi da nossa área separar os tecidos sadios um alento para a pesquisa em nossa dos que realmente apresentam o tumor." área", diz o neurologista Alberto Alain De nada adiantaria todo esse esforGabbai, da Universidade Federal de São ço na obtenção de material biológico de Paulo (Unifesp), cujo grupo de pesquiqualidade se não houvesse um banco sa forneceu amostras de 40 tumores de de dados informatizado, acessível aos cérebro extraídos de pacientes. participantes do programa, garantindo informação atualizada e confiável Para garantir a qualidade e a sobre os pacientes (e casos controle) homogeneidade das amosque forneceram quase 2 mil amostras tras de tecido sadio e com de tecido ao programa. Dessa forma, câncer, o programa deu êné possível saber em detalhes o perfil fase à padronização de proclínico e dados gerais de todas essas cedimentos usados durante a coleta de pessoas. "Periodicamente, fazemos uma material biológico. Nas cirurgias para checagem em parte de nossas inforextração de tumores, por exemplo, hamações", afirma Victor Wünsch Fivia sempre um patologista na sala de lho, da Faculdade de Saúde Pública operação. Esse especialista tinha a inda USP, coordenador da parte de epicumbência de assegurar a pureza da demiologia do Genoma Clínico. "Só amostra de tumor que seria enviada assim poderemos fazer grandes estupara o Genoma Clínico. Outra tarefa dos epidemiológicos sobre o câncer." do patologista é classificar as caracteProgramas de computador auxiliam os rísticas básicas dos tumores (tipo de pesquisadores nessa tarefa, apontando câncer, seu grau de evolução e invasiviautomaticamente dados estranhos que dade). "Às vezes, o cirurgião retira uns 20 possam existir nas fichas dos pacientes. centímetros de tecido, mas somente Por exemplo, se no formulário on-line uns 3 centímetros são células de câncer de um doente de câncer consta a inforadequadas para análise", explica Venanmação de que ele começou a fumar com cio Alves, da Faculdade de Medicina da menos de 10 anos de idade, o programa USP, coordenador da parte de patologia informa os pesquisadores sobre o caráter duvidoso desse dado. Com o alerta, o grupo que entrevistou o pa0 PROJETO ciente se encarrega de verificar a veracidade da informação. "Esse sistema Genoma Clínico do Câncer on-line é um grande avanço", comenta Wilson Silva Jr., um dos responsáveis MODALIDADE pela bioinformática do programa. "Com Programa Genoma Clínico ele, também temos uma ferramenta COORDENADOR poderosa para acompanhar a evolução MARCO ANTôNIO ZAGO ■ FMRP dos tumores e estabelecer relações entre o perfil da doença, a carga genética INVESTIMENTO e os fatores ambientais e comportaUS$ 1 milhão mentais dos pacientes." •


CIÊNCIA EPIDEMIOLOGIA

Quatro que valem por dez Menos comprimidos de cloroquina têm o mesmo efeito que o tratamento tradicional contra a malária

A pós observar que homens e I^L mulheres com malária que ^^A não tomavam todos os m ^ comprimidos indica■^L. JL. dos e, mesmo assim, melhoravam ou curavam-se, pesquisadores de Belém levantaram a hipótese de que o tratamento poderia ser repensado. A hipótese mostrou-se consistente. Uma equipe do Instituto Evandro Chagas e do Centro de Ensino Superior do Pará (Cesupa) testou essa possibilidade por meio de um estudo com 132 pessoas contaminadas com o protozoário Plasmodium vivax, divididas em dois grupos, sem saberem se estavam tomando medicamento ou placebo. Os 67 pacientes que formavam um dos grupos tomaram quatro comprimidos (600 miligramas) de cloroquina - o medicamento mais adotado no tratamento contra a malária durante um dia e placebo nos dois dias seguintes. Os 65 do outro grupo seguiram o tratamento tradicional: cloroquina todos os três dias (quatro comprimidos no primeiro dia e três nos dois dias seguintes).

A cloroquina: apenas um dia, em vez de três

Durante os sete dias, todos receberam primaquina, que evita a recaída da malária, da qual se registraram quase 370 mil casos em 2003, principalmente na região Norte. Os resultados foram estatisticamente equivalentes: 88,1% de cura medida pela ausência de febre - no primeiro grupo, com placebo, e 91,2% no segundo, após o quarto dia de tratamento. "Quatro comprimidos de

cloroquina em dose única, em vez de dez em três dias, são o suficiente para tratar a malária", assegura José Maria de Souza, médico do Instituto Evandro Chagas e um dos autores desse trabalho, publicado na Revista do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo. Segundo o pesquisador, não há riscos de um tratamento mais curto aumentar a resistência do Plasmodium vivax aos medicamentos. Essa possibilidade de ajuste no tratamento da malária soma-se a outra, verificada também no ano passado e noticiada na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. Nagib Ponteira Abdon, outro pesquisador do Evandro Chagas, aplicou'o tratamento padrão (dez comprimidos de cloroquina administrados durante três dias e um de primaquina durante 14 dias) em 40 pacientes, enquanto outros 40 tomaram quatro comprimidos de cloroquina, mais dois por dia de primaquina, durante sete dias. "Houve uma cura completa nos dois grupos", afirma Souza, que orientou esse trabalho. Segundo ele, os resultados desses estudos, que implicariam custos menores e menos sacrifícios à saúde dos pacientes, foram comunicados oficialmente para o Comitê Consultivo do Ministério da Saúde, do qual ele faz parte. • PESaUISAFAPESP% ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ 51


■ CIÊNCIA AGRONOMIA

Fruta nova

no laranjal

Rede de pomares experimentais testa variedades de citros mais resistentes a doenças

I

esde o mês passado, a busca por pés de laranja mais resistentes às principais doenças que assolam a citricultura nacional conta com uma rede de novos aliados. Num trabalho que literalmente fincou raízes em seis localidades da região Sudeste, agrônomos e técnicos do Centro de Citricultura Sylvio Moreira - unidade de pesquisa ligada ao Instituto Agronômico de Campinas (IAC), situada na cidade paulista de Cordeirópolis - terminaram em janeiro de assentar as últimas mudas que compõem um conjunto de 12 mil plantas muito especiais. Nesses pomares experimentais, localizados em terras pertencentes a quatro municípios paulistas (Araraquara, Botucatu, Itapetininga e Cordeirópolis), um de Minas Gerais (Comendador Comes) e um do Paraná (Maringá), há amostras de 751 híbridos desenvolvidos recentemente pelos pesquisadores do centro. Cada nova variedade carrega alguma característica que aparentemente lhe confere mais resistência ou até mesmo imunidade a doenças como a leprose, a gomose, o cancro cítrico e a clorose variegada dos citros (CVC), esta última 52 ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ PESUUISA FAPESP %

popularmente conhecida como amarelinho. Quase 65% das plantas são híbridas de copa, da parte superior da árvore, responsável pela aparência e características gustativas do fruto. Nos outros 35%, o caráter de hibridismo está presente em seu sistema de raízes, no chamado porta-enxerto. "As copas e os porta-enxertos mais usados em nossos laranjais apresentam baixa diversidade genética", diz Marcos Machado, do centro de citricultura, coordenador das pesquisas com os híbridos, feitas no âmbito do Projeto Gcnoma Citros, um dos Institutos do Milênio financiados pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A situação do limão-cravo, o porta-enxerto mais difundido na citricultura paulista, é emblemática: todas as suas mudas derivam de um único clone. Têm, portanto, rigorosamente o mesmo genoma. "Temos de alargar a base genétixarmos de ser o paraíso das doenças", afirma Machado. Todos os 751 híbridos passaram por um período de testes preliminares em casas de vegetação, um ambiente mais controlado do que os pomares abertos para onde foram transferidos. Apenas


os que se mostraram mais promissores acabaram sendo selecionados para compor a rede experimental montada pelo centro. Com sorte, em dois ou três anos, os pesquisadores esperam ter em mãos a comprovação científica de que alguns desses híbridos realmente são tros. Na última etapa do processo de seleção, deverão sobrar poucas variedades de citros com potencial para serem exploradas comercialmente. Isso porque, além de se mostrarem mais tolerantes a doenças, os híbridos terão de preservar as características de sabor associadas à laranja nacional e apresentarem boa produtividade do ponto de vista econômico. "Se obtivermos dois bons híbridos no final do projeto, o trabalho já terá valido a pena", opina Machado. Na maioria dos casos, os híbridos foram obtidos por meio de cruzamentos entre duas espécies de citros com características diametralmente opostas: uma delas apresentava grande suscetibilidade a uma ou várias doenças, enquanto a outra se mostrava resistente ou mais tolerante a essas pragas. No que diz respeito às copas, o cruzamento mais comum foi entre a laranja-pêra e

tangor Murcott (um híbrido natural de laranja com tangerina). Base da citricultura paulista, onde representa cerca de 45% dos cerca de 200 milhões de árvores plantadas, a laranja-pêra é facilmente atacada pelo cancro cítrico, amarelinho e leprose, doenças que não conseguem se desenvolver plenamente na tangerina. Desse casamento entre opostos, nasceram 311 híbridos distintos. Apesar de "filhos" da mesma família, cada híbrido de laranja-pêra e tangor Murcott apresenta um genótipo ligeiramente distinto do encontrado em seus "irmãos".

0 PROJETO Integração, Melhoramento Genético, Genoma Funcional e Comparativo de Citros MODALIDADE Instituto do Milênio (CNPq) COORDENADOR MARCOS MACHADO - Centro de Citricultura Sylvio Moreira

INVESTIMENTO

R$ 3.115.000,00

No caso dos cruzamentos entre diferentes tipos de porta-enxertos, a associação mais comum foi entre a espécie Poncirus trifoliata, que pertence a um gênero próximo dos citros, e a tangerina Sunki. Tal casamento produziu 281 híbridos geneticamente distintos. O objetivo é conseguir porta-enxertos mais resistentes ao fungo Phytophthora, que provoca a gomoses e ao vírus da tristeza dos citros, doença que na década de 1940 quase dizimou os laranjais paulistas e hoje, em versões mais atenuadas, pés de laranja. Um ponto precisa ficar claro com relação aos híbridos: não se trata de plantas transgênicas, embora os conhecimentos da moderna genética tenham sido usados no direcionamento de alguns cruzamentos. Aliás, um dos objetivos do Projeto Genoma Citros é produzir um banco de dados sobre os genes da laranja, da tangerina e de Poncirus. Os pesquisadores geraram 97 mil fragmentos de genes ativos de laranja e 12.700 de tangerina. Quando houver mais informações sobre o genoma dos citros, aí sim a criação de variedades transgênicas, modificadas com genes desse mesmo grupo de plantas,

PESQUISA FAPESP 96 ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ 53


CIÊNCIA

Furos no Cosmos Mais numerosos do que se pensava, os buracos negros podem estar presentes em todas as galáxias

WÈM1

. edutora e misteriosa, a trajetória dos buracos negros se assemelha ao antológico e falso striptease encenado por Rita Hayworth no filme Gilda, de 1946. Como a personagem vivida pela atriz norte-americana, que se desnuda minimamente, apenas das luvas, em sua magnética performance, esses corpos celestes nunca se mostram por inteiro. No máximo, se insinuam de tempos em tempos. Ca-

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nem a luz consegue fugir de seu campo gravitacional, os buracos negros não revelam sua silhueta de forma clara e explícita. A rigor, são invisíveis tanto para o olho humano como para as lentes dos mais poderosos telescópios, estejam eles instalados nos confins do Universo ou aqui na nossa galáxia, a Via Láctea. Espiá-los só é possível de forma indireta. Quando os instrumentos de observação celeste registram acelerações descomunais na velocidade orbital de uma estrela ou no centro de uma galáxia, a maioria dos astrônomos explica esse fenômeno devido à influência de uma colossal força gravitacional atuando sobre essa região do espaço. Força de tal magnitude só pode ser derivada de um objeto extremamente compacto, de enorme massa, que, contudo, não se encontra visível: um buraco negro, nas proximidades do qual, se a teoria da Relatividade Geral de Albert Einstein estiver correta, tempo e espaço devem ser curvos.

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Apesar de todas as dificuldades e limitações de observação, os astrônomos e astrofísicos produziram, com a ajuda de potentes telescópios terrestres e espaciais, uma pequena reviracos negros nos últimos cinco anos. De objetos exóticos e raros, encontrados somente cm determinadas regiões e situações do Universo, são agora encarados como uma ocorrência celeste muito mais freqüente e importante para a compreensão do Cosmos. "Os buracos negros passaram a ser vistos como parte das galáxias, influenciando e sendo influenciados pela evolução das mesmas", afirma a astrofísica Thaisa Storchi Bergmann, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que estuda como esses grandes devoradores de matéria se alimentam de tudo ao seu redor. Entre 29 deste mês e 5 de março, cerca de 300 astrônomos do Brasil e exterior estarão reunidos em Gramado, na Serra Gaúcha, para discutir justamente a inter-relação dos buracos negros com os elementos que constituem as galáxias - as estrelas e o meio intcrestelar - durante simpósio da União Astronôtões candentes quando o assunto é buraco negro. Uma série de observações recentes levantaram alguns pontos interessantes a respeito desse tipo de objeto celeste:

Os buracos negros são mais numerosos do que se penmaioria das galáxias. Antes se acreditava que eles estavam apenas no centro das chamadas Galáxias com Núcleo Ativo (AGN, sigla em inglês,) - que emitem grandes quantidades de energia, sobretudo em sua porção central, e representam menos de 10% do total de galáxias do Universo - em sistemas de estrelas duplas e no interior de quasares, objetos extremamente distantes, muito luminosos, que se parecem com uma estrela, mas que, na verdade, são núcleos extremamente ativos de galáxias. Hoje, acredita-se que quase todas as galáxias, mesmo as que não são classificadas como ativas, possuem em seu núcleo, ainda que num estado dormente, esse obscuro objeto sugador de matéria. A Via Láctea, nossa galáxia, que não é classificada de ativa, parece ter um buraco negro, não muito grande, que esporadicamente se manifesta. Num flagrante raro, o telescópio de raios X Chandra, da Nasa, registrou no fim de 2002 uma galáxia, a NGC 6240, com dois buracos negros supermassivos em sua região central, os quais aparentemente caminham para se fundir em um único buraco negro ainda mais supermassivo (veja imagens e ilustrações dessa ocorrência nas páginas desta reportagem). PESaUISAFAPESP% ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ 55


■ Sua diversidade de tamanho é maior do que se supunha. Previstos na teoria desde o final do século 18, e assim denominados desde os anos 1960, os buracos negros são sempre gigantescos. Mas os pesquisadores costumavam dividi-los somente em dois talhes diferentes: havia os supermassivos, com uma massa milhões ou até bilhões de vezes maior que a do Sol, que surgem no centro de algumas galáxias, e os estelares, cuja massa ultrapassa em cerca de dez vezes à do Sol, situados no corpo das galáxias, geralmente em sistemas duplos de estrelas. Novos indícios sugerem a existência de buracos negros de um terceiro tamanho, o médio. Esse parece ser o caso, entre outros, do buraco negro localizado pelo telescópio espacial Hubble, também da Nasa, num "cluster" (grupo) de estrelas denominado Gl, situado no interior de Andrômeda, a galáxia mais próxima da Via Láctea. Estimada no início de 2002, a massa do buraco era centenas de vezes maior que a do Sol. ■ O centro das galáxias, em especial das com núcleo ativo, é a região clássica em que se encontram os buracos negros 56 ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP %

Ao lado, os dois buracos negros (em azul) flagrados no centro da galáxia NGC 6240. Acima, ilustração representando a fusão progressiva dos dois buracos.

supermassivos. Mas, recentemente, esse tipo de objeto foi detectado em pontos do espaço em que, até poucos anos atrás, sua presença era dada como improvável, como na periferia de galáxias. Um buraco negro de tamanho médio, cuja presença na galáxia M82 foi detectada pelo Chandra, dista 600 anos-luz do coração dessa galáxia. Está fora do núcleo da galáxia. Equivalente ao percurso que a luz, com sua velocidade de deslocamento constante de 300 mil quilômetros por segundo, cobre ao longo de 365 dias, um único ano-luz eqüivale a cerca de 9,5 trilhões de quilômetros. Esses novos indícios sobre a quantidade, o tamanho e a localização dos

buracos negros parecem levar a uma questão de fundo: hoje é quase impossível estudar a evolução das galáxias - aglomerados formados por um vasto número de estrelas (algo entre milhões e bilhões delas), gás e poeira, tudo isso mantido coeso pela ação da gravidade sem, em algum momento, analisar o papel desses misteriosos comedores de matéria. Muitos astrônomos acreditam que a massa do buraco negro é proporcional à de uma concentração de estrelas, denominada bojo, presente na parte central da maioria das galáxias mais ou menos como se ambos, o buraco e o bojo, tivessem se formado e/ou crescido juntos. "Possivelmente, todas as galáxias têm um buraco negro em seu centro", afirma o pesquisador Laerte Sodré Júnior, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP). "Mas nem todos os buracos estão ativos hoje."


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Talvez a maior parte dos buracos negros, sobretudo aqueles situados em galáxias mais "calmas", como a Via Láctea e tantas outras, em que não há grande emissão de energia, funcione num regime que lembra o de alguns vulcões terrestres: na maior parte do tempo, não dão sinal de vida e, de repente, iniciam uma fase de intensa atividade, surpreendendo os seus observadores. Não se descarta a hipótese de que, em algum momento de sua história, todas as galáxias tenham sido ativas e exibido de forma quase inconteste um buraco negro supermassivo - e faminto por matéria - em seu núcleo. Com o tempo, devido à pouca disponibilidade de "comida" - basicamente, poeira e gás - nas redondezas, ou sabe-se lá por que motivo, elas teriam se acalmado. Isso não quer dizer que o buraco negro em seu centro tenha sumido. Por falta de alimento, ele estaria agora apenas silenciado. "Toda galáxia pode ter sido um quasar num passado distante", comenta o astrofísico Mareio Maia, do Observatório do Valongo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que estuda galáxias com núcleo ativo. Hoje em dia, de forma quase paradoxal, os luminosos quasares são encarados como os objetos celestes dotados dos mais ativos buracos negros supermassivos de que se tem notícia.

O problema é que, no caso dos buracos negros, o tempo de inatividade pode ser de milhões ou bilhões de anos - e, dependendo do comprimento de onda usado para observar as galáxias num dado momento, as pistas que denunciam a existência do grande devorador de matéria podem deixar de existir ou passar despercebidas. Para efeitos práticos, é como se não houvesse (mais) um buraco negro ali, já que ele, em si, é invisível. Galáxia esquizofrênica - A história da NGC 6221, distante 60 milhões anos-luz da Terra, ilustra a dificuldade de divisar buracos negros no Universo e de simplesmente rotular as galáxias como ativas ou "normais", como tendo ou não o grande devorador de matéria. Imagens obtidas da NGC 6221 no comprimento de onda da luz visível e no infravermelho próximo sugerem que se trata de uma galáxia do tipo "Starburst", um berçário de estrelas (jovens). Normalmente, não se associa esse tipo de galáxia à presença de buracos negros, embora esse conceito hoje esteja sendo revisto. No entanto, a mesma NGC 6221, se vista com o auxílio dos raios X, exibe características típicas das galáxias do tipo Seyfert, com núcleo bastante ativo, onde deve haver um buraco negro supermassivo. "Costumo brincar que essa galáxia é esquizofrênica", diz o astrônomo Roberto Cid

Fernandes, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que estudou essa galáxia com Thaisa e pesquisadores norte-americanos. "Ela é híbrida. Em vez de estrelas ou um buraco negro em seu núcleo, tem ambas as coisas." Uma pergunta de difícil resposta é uma versão cosmológica da clássica questão do ovo e da galinha. Afinal, quem apareceu primeiro: a galáxia ou seu buraco negro? Aparentemente, essas duas estruturas competem pela poeira e gás disponível no espaço. Daí a indagação: os grandes aglomerados de estrelas se formam em torno de buracos negros preexistentes ou são esses objetos sem luz visível que derivam da presença, anterior no tempo, das galáxias? Há defensores para os mais variados pontos de vista. Inclusive para a idéia de que essa é uma falsa questão. Depois de examinar 120 mil galáxias, no projeto Sloan Digital Sky Survey, uma equipe internacional de pesquisadores, coordenada por Tim Heckman, da Universidade Johns Hopkins, concluiu que as estrelas e os buracos negros se formam e crescem com a mesma velocidade. Traduzindo: não dá para dizer quem veio antes. Heckman vai estar em março em Gramado, no encontro da União Astronômica Internacional, debatendo esses e outros dados a respeito de buracos negros e galáxias. • PESQUISA FAPESP % ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ 57


Biblioteca de Revistas Científicas disponível na Internet www.scielo.org

■ História da ciência

A trajetória de Lutz O artigo Adolpho Lutz: um esboço biográfico-, de Jaime Larry Benchimol, historiador da Casa de Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, retrata as origens familares e a trajetória profissional de Adolpho Lutz (1855-1940), cientista brasileiro de ascendência suíça. No texto, a história de vida de Oswaldo Cruz é usada como condutora para a análise da instituição das medicinas pasteuriana e tropical no Brasil. Para o autor, a carreira do cientista, nascido na capital federal da época, o Rio de Janeiro, pode ser dividida em três períodos. O primeiro vai de 1881, quando concluiu seus estudos em medicina na Europa, a 1892, ano em que publicou numerosos trabalhos baseados nos estudos da biologia de espécies que se relacionavam com os humanos e suas patologias. O segundo período envolve os anos de 1893 a 1908, época em que Lutz esteve à frente do Instituto Bacteriológico de São Paulo. Esta segunda fase é marcada por pesquisas nas áreas da bacteriologia, epidemiologia e zoologia médica, especialmente em entomologia e na parasitologia. O terceiro grande capítulo da trajetória profissional de Lutz se abre em 1908. Naquele ano, o cientista ingressou no Instituto Oswaldo Cruz, no Rio. A instituição era o centro de gravidade da medicina experimental e da saúde pública no país. "A decisão de migrar para o IOC parece estar relacionada à possibilidade de se recolher ao ambiente onde se sentia inteiramente à vontade e de retomar as pesquisas em zoologia e botânica", afirma Benchimol. HISTóRIA, CIêNCIAS, SAüDE-MANGUINHOS N° 3 - Rio DE JANEIRO - JAN./ABR. 2003

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http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010459702003000100002&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Etologia

Símbolos emocionais Discutir o desenvolvimento das ciências biológicas sob um olhar antropológico é o objetivo central do artigo Chimpanzés também amam: a linguagem das emoções na ordem dos primatas, de Eunice Ribeiro Durham, professora do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP). O estudo mostra, apesar da óbvia singularidade do comportamento humano, envolto numa espessa nuvem de símbolos e va-

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lores dentro da qual se move a consciência, que o homem não deixa de ser um animal, simples produto da evolução biológica. "A comparação entre o homem e os outros animais é particularmente importante para estabelecer o contexto no qual podemos colocar de modo mais adequado as especificidades do comportamento humano", diz Eunice Durham. A pesquisadora compara homens e chimpanzés para focalizar os componentes emocionais de comportamento dessas espécies, além de privilegiar a análise do comportamento "amoroso", incluindo o sexual, e as relações entre mães, filhos, irmãos e amigos. O trabalho também analisa a importância dos componentes emocionais para a constituição e preservação dos grupos sociais. "A observação do comportamento emocional dos chimpanzés demonstra a existência de paralelismos inegáveis com a vida psíquica humana, que podem ser extremamente relevantes tanto para a teoria analítica como para a antropologia", conclui o estudo. REVISTA DE ANTROPOLOGIA

- VOL. 46 - N° 1 - SãO PAULO

-2003 http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S003477012003000100003&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Agropecuária

Indicadores do campo Apresentar um sistema de Avaliação Ponderada de Impacto Ambiental de Atividades do Novo Rural (Apoia Novo Rural). Este foi o objetivo dos pesquisadores Geraldo Stachetti Rodrigues e Clayton Campanhola, ambos do Centro Nacional de Pesquisa de Monitoramento e Avaliação de Impacto Ambiental da Embrapa, localizado em Jaguariúna, interior de São Paulo. O termo Novo Rural vem sendo usado para designar uma tendência socioeconômica observada em muitas áreas rurais do Brasil. Os produtores, em vez de migrar para as zonas urbanas, estão buscando cada vez mais atividades econômicas não-agrícolas de trabalho, que são desenvolvidas em conjunto com as tradicionais atividades feitas no campo. O modelo para medir os impactos ambientais dessa


nova forma de atividade rural, desenvolvido pelos técnicos da Embrapa, está apresentado no artigo Sistema integrado de avaliação de impacto ambiental aplicado a atividades do Novo Rural. O método em questão consiste em um conjunto de planilhas eletrônicas (plataforma MS-Excel) que integram 62 indicadores da performance ambiental de uma atividade econômica em um estabelecimento rural. Cinco dimensões de avaliação foram consideradas, como ecologia da paisagem, qualidade ambiental (atmosfera, água e solo), valores socioculturais, valores econômicos e gestão administrativa. Os indicadores foram construídos em matrizes de ponderação nas quais dados quantitativos, obtidos em campo e laboratório, foram automaticamente transformados em índices de impacto expressos graficamente. O índice de impacto de cada indicador foi traduzido a um valor de utilidade, empregando-se funções e coeficientes especificamente derivados para cada indicador, sendo que os valores foram agregados para compor o índice de Impacto Ambiental das atividades avaliadas. Os resultados da avaliação permitem ao produtor ou administrador averiguar quais atributos da atividade podem estar desconformes com seus objetivos de sustentabilidade, segundo planos de desenvolvimento local. PESQUISA AGROPECUáRIA BRASILEIRA BRASíLIA - ABRIL 2003

■ VOL. 38 - N° 4 -

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100204X2003000400001&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Medicina

Cuidados com o marcapasso O estudo Marcapasso cardíaco artificial: considerações pré e pós-operatórias procura familiarizar o anestesiologista com as principais indicações clínicas e com o funcionamento dos dispositivos do Marcapasso Cardíaco Artificial (MP). O texto também ressalta os cuidados operatórios que se deve ter na implantação do equipamento. "O avanço tecnológico difundiu grandemente a utilização de marcapassos, definitivos ou temporários, fazendo com que outros especialistas, além dos cardiologistas, se envolvessem ainda mais no manuseio desses aparelhos", dizem os pesquisadores no artigo. Os marcapassos são dispositivos eletrônicos de estimulação multiprogramável capazes de substituir impulsos elétricos ou ritmos ectópicos, para se obter atividade elétrica cardíaca. Foram estudadas a classificação, o funcionamento e as principais indicações clínicas para o implante de marcapassos. Da mesma forma, procurou-se elucidar os principais cuidados operatórios relativos ao uso do equipamento. "O conhecimento básico sobre a dinâmica de funcionamento do MP, bem como suas indicações clínicas, deve fazer parte da prática clínica do anestesiologista", alertam os autores do estudo. Assim, o manuseio e a indicação do MP temporário, por exemplo, ampliam o leque de atuação

desses especialistas, o que pode salvar vidas, inclusive em situações emergenciais dentro do centro cirúrgico. Os números comprovam a eficácia deste dispositivo: são utilizadas anualmente entre 50 e 80 unidades por milhão de habitantes em países subdesenvolvidos, contra 400 a 500 por milhão em países desenvolvidos. REVISTA BRASILEIRA DE ANESTESIOLOCIA

- VOL. 53 - N° 6

- CAMPINAS - NOV./DEZ. 2003 http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S003470942003000600015&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Produção Industrial

Eficiência coletiva Em tempos de internacionalização das indústrias, as estratégias competitivas e as competências essenciais de cada companhia são testadas ao limite extremo. Cada vez mais, o coletivo se torna mais importante que o individual. É nesse contexto que o artigo Estratégias competitivas e competências essenciais: perspectivas para a internacionalização da indústria no Brasil, de Afonso Fleury, do Departamento de Engenharia de Produção da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), e Maria Tereza Fleury, da Faculdade de Economia e Administração da USP, analisa as conseqüências da formação de redes internacionais, criadas para promover a execução de metas de eficiência coletivas. "A competitividade é, e será cada vez mais, relacionada ao desempenho de redes interorganizacionais e não de empresas isoladas", alertam os autores. No texto, são abordados problemas teóricos e evidências empíricas do ponto de vista de economias emergentes como a brasileira. Quais setores industriais do país apresentam potencial para se tornarem competitivos internacionalmente, por demonstrarem possuir as competências organizacionais necessárias? Essa é uma das respostas que o artigo procura discutir. Segundo o estudo, no cenário atual de economia globalizada, de reconfiguração das empresas na busca da eficiência coletiva, procurar compreender a dinâmica do processo de reestruturação do tecido industrial de um país como o Brasil é como tentar montar um quebracabeça caleidoscópico: cada vez que uma figura se forma, uma das peças se mexe, alterando a figura. A contribuição principal do texto é tentar compreender esse caleidoscópio. GESTãO & PRODUçãO AGO. 2003

- VOL. 10 - N° 2 - SãO CARLOS ■

http://www.scielo.br/scielo. php?script=scLarttext&pid=S0104530X2003000200002&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

PESQUISA FAPESP % ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ 59


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LINHA DE PRODUçãO

Nanofios menores que a lui

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Nanofio transporta a luz enrolado 'm um fio de cabelo

■ Em busca do "vidro perfeito" Uma descoberta feita recentemente na Grã-Bretanha abre caminho para a criação do "vidro perfeito". Pelo novo processo, a zeólita, um mineral cristalino usado como catalisador na fabricação de gasolina e na separação do oxigênio e do nitrogênio existentes no ar, transforma-se em vidro após ser submetida à pressão. Atualmente, frascos, vidraças e outros produtos de vidro são obtidos a partir de um material líquido resultante da fusão a altíssi-

Fios feitos de dióxido de silício, com apenas 50 nanô:tros (bilionésimos de metro) de espessura, apresentam um comportamento incomum. Como os nanofios são mais finos que o comprimento de onda da luz que transportam, eles servem como guias para indicar o movimento das on-

mas temperaturas de uma mistura de cristais de areia, carbonato de sódio, carbonato de cálcio e outros componentes. Solidificado rapidamente, esse material se transforma em vidro. Segundo o professor Neville Greaves, coordenador das pesquisas realizadas no Instituto de Matemática e Ciências Físicas da Universidade de Gales, o novo processo pode ser feito até em temperatura ambiente por meio da aplicação de um processo chamado amorfização - pelo qual as zeólitas e outros sólidos cristalinos como o quartzo, por exem-

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das. Além disso, por terem diâmetro unirem forme e superfícies regulares, apesar de suas dimensões atômicas, as ondas de luz mantêm-se coesas durante a transmissão. O estudo que resultou na descoberta é de uma equipe de pesquisadores da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, liderada por Eric Mazur e Limin Tong, também da Universidade de Zhejiang na China, que contaram ainda com a colaboração de pesquisadores da Universidade de Tohoku, no Japão. Gomo as fi-

pio, podem ser convertidos em estruturas amorfas (nãocristalinas) sob temperaturas abaixo de seu ponto de fusão e que, se puder ser executado de maneira lenta e gradual, será capaz de produzir um vidro quase "perfeito" (como os cristais), conforme a agência London Press. Segundo os pesquisadores, que publicaram um artigo sobre sua descoberta na revista Nature Materials em setembro de 2003, a dinâmica da passagem das zeólitas para um estado de estrutura amorfa é a mesma sob aquecimento ou pressurização. •

possibilitam a transmissão de ais informação em menos espaço, espera-se que o novo material se aplique aos cada vez mais microscópicos utensílios médicos e eq ü i pa mentos fotônicos, como sensores ou sistemas a laser em escala nanométrica. Na avaliação de Julie Chen, diretora do programa de nanoprodutos da Fundação Nacional de Giências dos Estados Unidos (NSF, na sigla em inglês), que financiou as pesquisas, o novo método de fabricação de nanofios, combinado com os avanços que a equipe vem obtendo no desenvolvimento de mieroequipamentos, deve ajudar a diminuir ainda mais os aparelhos ópticos e fotônicos (conforme press release da NSF).

■ Rede de apoio à nanotecnologia A importância que a nanotecnologia ganhou nos últimos anos na área científica e no setor produtivo, com o desenvolvimento de dispositivos destinados a vários setores, está refletida na atenção especial da Fundação Nacional de Ciências (NSF, na sigla em inglês), o principal órgão de fomento à pesquisa nos Estados Unidos, que vai destinar cerca de US$ 70 milhões para projetos de ciência e engenharia em nanoescala. Para difun-


dir informação e apoiar a nanociência e a nanotecnologia naquele país, foi criada em janeiro deste ano a Rede Nacional de Infra-Estrutura Nanotecnológica (NNIN, na sigla em inglês), um sistema integrado por 13 sites universitários. Projetada para funcionar por um período de cinco anos, a rede será administrada pela Universidade de Cornell. Lawrence Goldberg, consultor sênior da NSF, diz que a iniciativa tem por objetivo a formação de uma nova força de trabalho versada em nanotecnologia e nas mais avançadas técnicas laboratoriais. •

■ Roupa monitora paciente cardíaco Uma camiseta com sensores é a novidade que promete melhorar a vida de idosos, pacientes cardíacos e doentes que precisam de acompanhamento constante. Prevista para ser lançada comercialmente ainda este ano, a V-TAM, nome do novo produto, resulta da parceria de várias empresas e instituições francesas responsáveis pela con-

cepção e fabricação desse produto (França Flash, de janeiro). Os sensores e os componentes eletrônicos que fazem a conexão externa foram colocados na própria trama do algodão pela empresa TAM-Télésanté, encarregada também de unir técnicas e aplicações diversificadas. Informações como freqüência cardíaca, ritmo respiratório e temperatura são transmitidas por meio de um telefone convencional ou celular a um centro de monitoramento. No caso de o paciente estar em situação de risco, um médico plantonista poderá se comunicar com ele por meio de um transmissor acoplado à camiseta. •

■ Sistema poliglota salva motoristas Um acidente de carro deixa o motorista inconsciente. Imediatamente um sistema instalado no automóvel aciona um serviço público de emergência no idioma falado no país da ocorrência e informa o local e a intensidade do choque (NewScientist, 14 de janeiro). Desenvolvido pela empresa belga Ertico, o sistema E-merge será útil também para motoristas estrangeiros que tentam obter ajuda pelo celular sem o conhecimento da língua local. Um aparelho do tamanho de um celular colocado sob o painel é ativado, no caso de um acidente, pelo mesmo sensor que aciona o airbag. O equipamento é composto por circuito telefônico, um transmissor GPS (sistema de posicionamento global por satélite), um microfone e um alto-falante. Se forem realizados os investimentos necessários na Europa, a empresa garante que o sistema poderá operar em 2008. •

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Fibra de sisal nas telhas

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Sisal: potencial para ser matéria-prima na construção civil Misturada a uma argamassa de cimento, a fibra de sisal mostrou ter potencial para se transformar em telhas, caixa-d'água e tanques. Os testes realizados pela Universidade do Estado da Bahia (Uneb) fazem parte de um projeto do Programa de Tecnologia de Habitação (Habitare) financiado pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). O objetivo dos pesquisadores é desenvolver componentes de edificações em sisal e argamassa. O projeto tem ainda a parceria de uma cooperativa formada por jovens da região sisaleira do nordeste baiano, a Cooperjovens, que busca alternativas para continuar trabalhando em seus locais de origem. Cerca de 800 mil pessoas de 40 municípios do nordeste baiano trabalham no plantio do sisal, sendo que pequenos agricultores respondem por 80% da produção. A escassez de madeira foi um dos fatores que direcionou a pesqui-

sa para o desenvolvimento de telhas de argamassa com a adição de sisal. Por enquanto, os pesquisadores procuram melhorar a durabilidade do produto. Eles ressaltam que a alta resistência à tração das fibras, combinada às propriedades das argamassas de cimento, confere ao material um melhor desempenho em peças estruturais. •

■ Incubadora aeroespacial Uma incubadora destinada a abrigar projetos de tecnologia aeroespacial, batizada de IncubAero, está prevista para começar a funcionar neste ano em São losé dos Campos (SP). Inicialmente, cerca de dez a 15 empresas serão incubadas no campus do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), em uma área de 400 metros quadrados. A proposta da criação da IncubAero partiu da Fundação Casimiro Montenegro Filho, organização de apoio à inovação tecnológica. •

PESQUISA FAPESP 96 ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ 61


LINHA DE PRODUçãO

BRASIL

Estímulo elétrico nos nervos Um estimulador elétrico que localiza nervos motores, para uso em anestesias, foi lançado comercialmente em novembro pela BGE Médica, empresa residente do Centro Incubador de Empresas Tecnológicas (Cietec), instalado em São Paulo na cidade universitária. O aparelho, totalmente desenvolvido pela empresa, é o primeiro de fabricação nacional e seu custo é cerca de 50% menor que o importado. A função dele é ajudar o anestesista, por exemplo, a localizar com exatidão, por meio de estímulo elétrico, o plexo braquial (rede de nervos), onde

■ Parceria para criar softwares A tecnologia da informação é uma das áreas em que a demanda por inovações não pára de crescer. Para atender a esse mercado em expansão, a empresa Ci&T Software e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) firmaram parceria para a criação do primeiro Laboratório de Inovação e Componentização de Software do Brasil. A empresa, formada em 1995 por ex-alunos da Unicamp, desenvolveu soluções inovadoras para softwares de comércio eletrônico (e-business), como a criação de estruturas que permitem a construção rápida e flexível de programas produzidos segundo a necessidade do cliente, por meio de componentes de softwares pré-desenvolvidos. Essas estruturas comunicam-

IflOJ ;X0.1

Aparelho da BGE: auxílio ao anestesista

se umas com as outras por meio de interfaces padronizadas e podem ser combinadas para formar complexos sistemas. A parceria entre empresa e universidade vai permitir que alunos e pesquisadores desenvolvam projetos que visam à redução de custos e mais rapidez na implementação de soluções de software. O investimento previsto para os três primeiros anos de operação do laboratório é de R$ 2 milhões. •

62 ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 96

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deve ser aplicado o anestésico no caso de cirurgias de braço e de mão. "Apenas pelo conhecimento da anatomia, o índice de erro atinge 30%. Com o aparelho, esse problema é zerado", diz José Carlos Corrêa Borges, diretor da BGE. Com o nome de Neuro Estimulador E2107, o aparelho que já é usado no Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas de São Paulo e na Universidade Federal de São Paulo deverá ser adquirido em maior número pelos próprios anestesistas, segundo a perspectiva comercial da empresa. •

■ Incubadas resistem às adversidades Pesquisa realizada anualmente pela Associação Nacional de Entidades Promotoras de Empreendimentos de Tecnologias Avançadas (Anprotec) mostra que apenas 20% das empresas nascidas em incubadoras fecharam suas portas em 2003. Entre as micro e pequenas empresas brasileiras, o índice das que desaparecem nos cinco primeiros anos de

vida chega a 97%, segundo o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). Além da baixa taxa de mortalidade, as incubadoras têm apresentado índices que apontam o fortalecimento do setor. O número de empresas graduadas, que saíram das incubadoras, mais que triplicou, passando de 320 em 1999 para 1.100 em 2003. Os postos de trabalho criados por empresas incubadas e graduadas chega a 18.300. No Brasil,


existem três tipos de incubadoras. As que abrigam empresas de base tecnológica, as de empresas de setores tradicionais e as mistas, que reúnem os dois tipos. Em média, as empresas têm três anos para deixar as incubadoras, quando então são classificadas como graduadas. •

■ Motor aproveita energia térmica Durante o ano passado, alunos de engenharia mecânica da Faculdade de Engenharia Industrial (FEI), de São Bernardo do Campo (SP), trabalharam no desenvolvimento de um motor que aproveita a energia térmica desperdiçada por grandes fontes geradoras de calor, como nos fornos da indústria de vidrarias, por exemplo, para produzir energia mecânica que movimente uma máquina ou até mesmo para gerar energia elétrica. O projeto, que recebeu o nome de Ciclo Alternativo de Geração de Energia (Cage), foi baseado no motor de ciclo de Stirling, desenvolvido pelo escocês Robert Stirling em 1816. Esse motor de combustão externa opera em quatro ciclos, como os convencionais a combustão interna, mas divide-se em duas regiões: uma quente, onde é feito o aquecimento, e uma fria, onde esse calor é dissipado rapidamente. Para que o motor entre em rotação, o ciclo, composto de compressão, aquecimento, expansão e resfriamento, precisa estar em perfeita sintonia. Amauri de Oliveira Paulo, um dos alunos participantes do projeto, diz que o ciclo de Stirling foi escolhido porque, embora seja bastante aplicado em outros países para o reaproveitamento de energia térmica gerada por caldeiras, no Brasil ainda é pouco conhecido. •

Proteína da semente de jaca contra queimadura

■ Medicamento na semente de jaca Uma lectina (um tipo de proteína) extraída da semente de jaca mostrou-se eficaz no tratamento de queimaduras. A descoberta, o isolamento e o uso medicamentoso dessa lectina, que ganhou o nome de KM+, foram feitos pela equipe da professora Maria Cristina Roque Barreira, do Departamento de Biologia Celular e Molecular da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Os testes foram realizados em ratos com queimaduras comparando-se a resposta da aplicação de três tipos de pomada: uma com a KM+, uma com outra lectina da jaca, a jacalina (utilizada como reagente bioquímico) e a terceira sem nenhuma lectina. Os resultados mostraram que a KM+ acelerou a regeneração da pele lesada e evitou a necrose local. Como a quantidade da KM+ é mui-

to pequena quando extraída do fruto, inviabilizando a produção industrial, a pesquisadora se associou com a professora Maria Helena Goldman, do Departamento de Biologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP, para produzir a lectina em laboratório. Usando a técnica de DNA Recombinante, Maria Helena conseguiu transferir o gene codificador da lectina para leveduras. Esse processo permite produzir a KM+ em escala industrial. A pesquisadora acredita que o tratamento com a lectina possa ser estendido à cicatrização de outras lesões de pele. Título: Patente da Lectina KM+ Recombínante para Uso Farmacêutico Inventor: Maria Cristina Roque Barreira, Maria Helena de Souza Goldman, Luís Lambe rti da Silva, Ademílson Castelo, Ricardo Santos de Oliveira, Marcelo Baruffi e Jeanne Blanco Machado Titularidade: USP/FAPESP

Desenvolvimento de um kit comercial para detecção precoce da reabsorção dentária. Esse fenômeno ocorre em pacientes durante tratamentos ortodônticos (uso de aparelho para correção), submetidos a processos para clareamento, cirurgias ou que sofreram traumatismos. Atualmente, as radiografias são o único instrumento para detectar a reabsorção da raiz, mas esse problema, que pode levar à perda do dente, só é visível quando está em estágio adiantado. Por esse novo método, com uma gota de sangue é possível detectar a existência de anticorpos contra a dentina (camada abaixo do esmalte do dente). Se o diagnóstico for positivo, significa que o dente está sendo reabsorvido. A simplicidade do método, que permite ao clínico reavaliar o tratamento adotado, é fruto da descoberta feita pela mesma equipe da Faculdade de Odontologia de Bauru da Universidade de São Paulo: na dentina concentram-se proteínas que funcionam como antígenos, substâncias protetoras do dente. Título: Sistema para Dete ção de Reabsorção Dentária Humana Inventores: Alberto Consolam, Eiko Nakagawa Itano e Mirian Marubayashi Hidalgo Titularidade: USP/FAPESP

PESQUISA FAPESP % ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ 63


TECNOLOGIA ENGENHARIA

De volta íü Equipamento à base de plasma para reciclagem de alumínio garante ganhos econômicos e ambientais

SAMUEL ANTENOR

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s latinhas de cerveja e de refrigerante ganharam um novo processo de reciclagem que vai tornar mais eficiente, com menos gastos de energia e sem deixar - resíduos, a volta desses produtos à liga de alumínio utilizada na produção de novas laplasma, um gás produzido em altas temperaturas, Ele é diferente porque a ionização (perda ou ganho de elétrons) das suas partículas, moléculas e átomos é significativa, garantindo propriedades físicas e químicas distintas dos demais estados existentes, como o sólido, o líquido e o gasoso. Assim, o plasma de de conduzir eletricidade, de forma muito próxima à dos metais. O equipamento, que vai reciclar todo tipo de objeto de alumínio, além de aparas e borras industriais, está em fase final de desenvolvimento no Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São ma Parceria para Inovação Tecnológica (PITE) da FAPESP, em conjunto com a Associação Brasileira do Alumínio (Abai), que reúne empresas produtoras e transformadoras desse metal. 64 ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ PESOUISA FAPESP %

Lingotes de alumínio reciclado: novo processo não deixa resíduos


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Construído na Divisão de Mecânica e Eletricidade do IPT, onde já está em operação, o forno apresenta baixo consumo de energia como vantagem mais evidente. O uso do plasma permite uma economia de 97% de energia elétrica em relação à produção de alumínio primário, produzido a partir da extração mineral de bauxita. Mesmo quando comparado ao estágio mais avançado do método convencional de reciclagem - que faz uso de combustão com a presença de oxigênio puro para o aquecimento do forno (oxicombustão) -, o processo a plasma é mais econômico. Experimentos realizados no protótipo construído no IPT indicam que para a produção de 1 tonelada de material reciclado, dependendo de sua composição, o novo forno necessita algo em torno de 400 a 500 quilowattshora (kWh), contra os cerca de 750 kWh do método convencional. A eficiência do equipamento ã^L permite outro ganho bemL^^ vindo, agora na área ami % biental: a eliminação total ^L -^L. de rejeitos industriais ao final do processo. No método convencional de reciclagem, o uso de sais é um fator ambientalmente problemático. Eles servem para recobrir o alumínio, evitando perdas do metal por oxidação, situação que ocorre pela presença de oxigênio no processo. O material usado é uma mistura de cloreto de sódio (NaCl) e cloreto de potássio (KC1), numa composição de 10% a 40% da carga metálica a ser processada no forno antigo. No final, depois de separados do metal, eles não podem ser reutilizados e se tornam um fator de risco para a contaminação de rios e lençóis freáticos. Por isso, os sais usados são destinados a ficar em depósitos específicos, na forma de aterros industriais, com elevado custo para as empresas. O uso de plasma soluciona por completo esse problema porque dispensa esses produtos no processo de reciclagem. Por ser de uso tecnológico recente e possuir propriedades tão distintas dos estados da matéria mais comuns, o plasma aparenta ser algo de difícil manipulação. Mas o pesquisador Antônio Carlos da Cruz, coordenador do projeto no IPT, explica que a técnica é relativamente simples: aquecido, o argônio (Ar) - gás escolhido porque não apresenta 66 ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ PES0UISA FAPESP %

reação com o alumínio - transforma a energia elétrica em energia térmica (calor), sem a utilização de qualquer outro elemento além do próprio gás. Na entrada do forno fica instalada a tocha de plasma que, mantida por uma descarga elétrica, faz o gás atingir temperaturas entre 5.000° C e 12.000° C, cifras muito superiores às obtidas no processo convencional. Segredo industrial - Maiores detalhes sobre o novo processo, Cruz prefere não divulgar. "A tecnologia está em fase de registro de patente", diz o pesquisador. Segredo à parte, o forno desenvolvido no IPT é do tipo rotativo, com um tambor que, carregado, agita continuamente o material em seu interior. "Essa característica é importante porque toda peça de alumínio apresenta uma camada de oxido, que precisa ser quebrada para que

o material fundido se junte e se transforme em metal líquido", explica. Nessa forma, o alumínio será levado por canaletas até os moldes onde o metal irá se solidificar e se transformar em lingotes. O protótipo de Forno a Plasma para Reciclagem de Alumínio atual apresenta capacidade de operação variável, de acordo com o tipo de material. Para borra de alumínio, que é um resíduo da produção primária, comporta até 200 quilos de carga. Com materiais mais nobres, como peças de alumínio e latas, sua capacidade é de 550 quilos, em um procedimento completo de operação que dura em torno de duas horas. No total, já foram processadas cerca de 50 toneladas de material, entre borras e sucatas, em condição de simulação industrial, com a mesma capacidade de processamento mensal do equipamento.


Para melhor demonstrar a aplicação do forno a plasma em escala industrial, materiais em condições semelhantes de composição e quantidade deverão ser processados, ao mesmo tempo, em um forno convencional, a fim de se obter uma comparação mais precisa, inclusive no item gasto de energia. A forma de fazer essas comparações de fornos com mais eficiência, segundo Cruz, é a montagem de um equipamento piloto, de concepção industrial, com maior capacidade de reciclagem e que possa ser operado em regime de dois turnos por dia, porque ele pode funcionar por 24 horas, sem parar. Nas dependências do IPT, a operação do forno protótipo abrange apenas um turno. A operação industrial colocará o Brasil no grupo de países que já usam plasma na reciclagem

de alumínio. "No Canadá, na França e na África do Sul, empresas já utilizam plasma para a reciclagem de borras de alumínio, mas o processo que desenvolvemos aqui é inovador porque amplia o leque de possibilidades de materiais para reciclagem pela nova técnica, como peças em alumínio fundido, laminados, perfilados, chaparia e latas", afirma Cruz, lembrando que, por ser totalmente limpa, a implantação da tecnologia empregada no forno tende a ser mais cara. "Mas, ao mesmo tempo, é operacionalmente tão competitiva quanto os processos com oxicombustão", completa. Esforço conjunto - A partir de um consórcio organizado pela Abai, entidade que congrega as produtoras de alumínio no país, as empresas Alcoa, TomraLatasa, Metalur, Servibrás e Sulina de

Metais têm participado ativamente do projeto do IPT, com treinamento de pessoal e financiamento de parte dos cerca de R$ 800 mil gastos no desenvolvimento da pesquisa. O material para reciclagem também é fornecido por essas empresas, que recebem de volta o alumínio reciclado em forma de lingotes resultante do processo. Ao lado da questão econômica, a importância do desenvolvimento de tecnologias que não agridam o ambiente foi o que mais motivou a Abai e as empresas a participarem do projeto, segundo Ayrton Filleti, coordenador da comissão técnica da associação. "O processo a plasma é ambientalmente mais adequado, porque elimina os rejeitos tóxicos provenientes da reciclagem do alumínio e, conseqüentemente, gera economia para as empresas com a diminuição do consumo de energia elétrica e acaba com a necessidade de aterros industriais especiais que são muito caros", assegura. "A tecnologia de plasma interessa às indústrias, mas ainda não tem prazo definitivo para ser implantada", diz Filleti. "O forno desenvolvido no IPT, além de mais barato que os similares existentes no exterior, é mais eficiente e, no futuro, as empresas terão que lançar mão desse recurso. Pela primeira vez a Abai participou de um projeto que resultou em tecnologia inédita, desenvolvida no Brasil, o que precisamos valorizar", ressalta, lembrando que, na Europa, a falta de espaço para aterros industriais tem obrigado empresas a pesquisar, inclusive, a reciclagem dos rejeitos salinos do processo convencional, algo caríssimo, fato que pode gerar interesse internacional no uso do forno brasileiro. PESQUISA FAPESP 96 ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ 67


O PROJETO Reciclagem do Alumínio: Desenvolvimento de Inovações Tecnológicas MODALIDADE Programa Parceria para Inovação Tecnológica (PITE) COORDENADOR ANTôNIO CARLOS DA CRUZ

- IPT

INVESTIMENTO R$ 397.730,16 e US$ 25.307,89 (FAPESP) e R$ 355.952,00 (Abai)

De acordo com a Abai, com 1,5 milhão de toneladas por ano, o Brasil é atualmente o sexto produtor mundial de alumínio. Desse total, 1,3 milhão de toneladas são obtidas a partir da mineração e 253,5 mil toneladas são resultado da reciclagem. A produção do alumínio primário, além de precisar de uma grande quantidade de energia elétrica e interferir no ambiente, gera entre três e quatro vezes mais resíduos que o reciclado. De forma diferente do que acontece com outros materiais, a reciclagem de alumínio exibe índices surpreendentes no Brasil, numa lista de itens encabeçada pelas latas de bebidas, com notáveis 87% de reciclagem total, de acordo com os mais recentes números divulgados pela entidade. Atualmente, a reciclagem de alumínio no país responde por 35,3% do consumo interno desse metal - total de 717,7 mil

toneladas por ano -, percentual acima da média mundial, situada em 33%. Se considerarmos apenas a reciclagem de latas de alumínio, cujo ciclo médio é de 46 dias, entre envasamento, consumo e retorno para a indústria, o Brasil é hoje o maior reciclador entre os países em que a prática não é obrigatória, com 121,1 mil toneladas por ano, à frente do

Japão e dos Estados Unidos. Isso representa 50% do total de alumínio reciclado no país. Vale lembrar ainda que, para cada tonelada de alumínio reciclado, 5 toneladas do minério bruto são poupadas. Do total das latas recicladas no Brasil, 70% é processado em Pindamonhangaba (SP), cidade da região do Vale do

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Longa vida na reciclagem Quase invisível aos consumidores, dentro das embalagens longa vida que hoje, além do leite, acondicionam sucos e até água de coco, existe uma fina camada de alumínio na forma de sanduíche com plástico e papel. Igual ao das latinhas, esse material poderia ser reciclado e voltar ao sistema produtivo. Para efetivar esse processo, a TSL Engenharia Ambiental - empresa especializada no tratamento de resíduos

68 ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP %

ma para a reciclagem do alumínio das embalagens longa vida. O processo resultante, diferente daquele desenvolvido no Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) para reciclagem de alumínio das latas, foi apresentado pela empresa em dezembro de 2003. "No caso do processo da TSL, o IPT foi contratado apenas para testar e comprovar a eficácia do novo sistema", diz Roberto Szente, do Laborató-

e Eletricidade do II rpervisionou os testes. O processo será implantado em parceria pelas empresas Tetra Pak, produtora de embalagens longa vida, Klabin, indústria de papel, e Alcoa, produtora de alumínio. Utilizando plasma térmico como um dos componentes do processo de reciclagem, a nova tecnologia - inédita no mundo - será utilizada para separar o plástico do alu-


Paraíba, que recebeu da Abai o título de Capital Brasileira da Reciclagem de Alumínio porque lá estão instaladas indústrias processadoras das sucatas. Além de um ciclo rápido de consumo, a latinha está muito ligada ao dia-a-dia da sociedade. Algumas empresas produtoras de latas já implementaram programas de reciclagem, promovendo

a separação do papel que é feita antes em máquinas específicas. O sistema desenvolvido pela TSL usa uma tocha de plasma para aquecer a 15.000° C a mistura de plástico e alumínio. Com o processo, o plástico é transformado em parafina e o alumínio é totalmente recuperado com as mesmas características do metal utilizado pela Tetra Pak na produção das embalagens. O novo sistema será instalado em uma unidade industrial da Klabin em Piracicaba (SP) e deverá estar pronto em outubro deste ano. A empresa vai receber o material coletado, separam

essa cultura por meio da conscientização de alunos nas escolas, com incentivos como a troca do material coletado por computadores. Distribuição de sucata - Outro fator importante na reciclagem de latas é o empenho dos catadores, espalhados por todo o país, que respondem por grande

papel e encaminhando o plástico e o alumínio para a TSL. Por sua vez, essa empresa separará os dois produtos e enviará o alumínio para a Alcoa, que transformará esse metal em finíssimas folhas para a Tetra Pak, que atualmente não utiliza material reciclado na composição das embalagens. O investimento na construção da unidade de plasma será de R$ 10,5 milhões, financiado em partes iguais pelas quatro empresas envolvidas. Um ano após a implantação, pretende-se exportar a tecnologia para outras unides da Tetra Pak no mundo. De

parte da coleta seletiva de materiais, repassando o resultado de seu trabalho aos depósitos de sucatas. Essas centrais fazem a distribuição do material para a indústria de processamento, em grandes quantidades. Com o aumento da demanda e da produção de alumínio secundário - mais barato e mais fácil de se obter -, a indústria já considera a possibilidade de faltar sucata no mercado brasileiro. Com isso, o Brasil, que compra do mercado externo apenas 98,7 mil toneladas de alumínio por ano, talvez necessite, em breve, importar sucata para reciclagem. Mesmo que ocorra um aumento significativo na quantidade de alumínio reciclado, a produção primária continuará sendo uma necessidade porque a demanda por esse metal é crescente. O mais importante é que ele pode ser reciclado inúmeras vezes. Essa característica, além de economizar energia e poupar o ambiente, garante uma atividade econômica saudável que, mesmo sem obrigatoriedade legal ou incentivos oficiais, está entre as que mais crescem no país. .

acordo com Fernando von Zuben, diretor de meio ambiente da empresa, o ganho será, sobretudo, ambiental, pois a unidade de Plasma terá capacidade para processar 8 mil toneladas de plástico e alumínio por ano, equivalentes à reciclagem de 32 mil toneladas de embalagens longa vida. Além de o processo passar a integrar uma cadeia de desenvolvimento sustentável, esperase um aumento de 30% no valor das embalagens coletadas, gerando uma maior remuneração aos catadores, empresas e prefeituras que trabalham com a coleta seletiva do lixo.

PESQUISA FAPESP % ■ FEVEREIRO DE 2004 • 69


■ TECNOLOGIA QUÍMICA

Mimetismo no laboratório Substâncias sintéticas para uso em biossensores imitam o comportamento de compostos biológicos

DlNORAH ERENO

70 ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ PESOUI!

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I

Borboletas, mariposas, camaleões e muitas outras espécies animais, ao menor sinal de aproximação do inimigo, mudam de cor ou de forma para se tornar parecidos com o ambiente ao redor e confundir os predadores. Essa capacidade de imitação, conhecida como mimetismo, inspirou pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) a criar compostos sintéticos que reproduzem, com vantagem, a atividade de anticorpos, enzimas, células, receptores e outros componentes biológicos, fundamentais para o funcionamento dos biossensores, como aquele que mede o nível de glicose dos diabéticos, o glicosímetro portátil vendido em farmácias. Batizados de sistemas biomiméticos, os compostos sintéticos têm o objetivo de reconhecer íons ou moléculas das substâncias analisadas pelos biossensores, ampliando e facilitando a disseminação desse tipo de análise química. "Outro objetivo é garantir uma estabilidade (manutenção da atividade), por longos períodos, para esses dispositivos, evitando um dos pontos críticos que impede a comercialização desses produtos para um vasto leque de aplicações", ressalta o professor Lauro Tatsuo Kubota, do Instituto de Química (IQ) da Unicamp, que encabeça a pesquisa com biossensores, dentro de um projeto temático coordenado pelo professor Elias Ayres Guidetti Zagatto, do Centro de Energia Nuclear da Agricultura (Cena) da Universidade de São Paulo (USP), em Piracicaba. A intenção dos pesquisadores é criar dispositivos que emitem respostas químicas traduzidas por componentes físicos que for-

mam o conjunto do biossensor, como eletrodos, fibras ópticas e polímeros condutores. A escolha de enzimas, anticorpos ou células é pautada pela substância que o dispositivo foi programado para identificar em águas, bebidas, alimentos ou em exames de sangue ou urina. Como muitos desses componentes biológicos não são estáveis por um longo período, Kubota decidiu substituí-los por uma substância sintética estável, à base de cobre e de ferro, colocada em forma de monocamadas na superfície do biossensor. A escolha dos dois elementos ocorreu porque a parte ativa das enzimas que serão substituídas é constituída por esses metais. Estabilidade ampliada - O novo material mostrou ser eficiente em relação à sensibilidade e à seletividade e preservou por mais de um ano a estabilidade do biossensor, diferencial que abre as portas do mercado ao produto. Até agora, os pesquisadores da Unicamp já desenvolveram diferentes compostos sintéticos, de interesse ambiental, farmacêutico e medicinal, que resultaram em três pedidos de patentes. A perspectiva é que os novos biossensores custem bem menos do que os usados atualmente. Os resultados obtidos pelos pesquisadores da Unicamp e do Cena, apresentados em um congresso internacional em Dusseldorf, Alemanha, em 2002, atraíram a atenção de pesquisadores da Europa e dos Estados Unidos, que fizeram propostas para trabalhos em parceria. Kubota não descarta colaborações em outras linhas de pesquisa, mas diz que no caso dos biomiméticos sua equipe já está muito à

Eletrodos com grafite, ouro e carbono aumentam estabilidade do biossensor

PESQUISA FAPESP 96 ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ 71


frente. Algumas empresas também têm procurado os pesquisadores, mas nenhuma parceria comercial foi fechada até agora porque ainda é necessário investir um pouco mais para se obter o dispositivo no formato final para ser comercializado. Além da pesquisa que envolve os compostos sintéticos, a equipe da Unicamp também trabalha em outra frente: o estudo de novos materiais para estabilizar os componentes biológicos, que tem se mostrado bastante promissor. Prova disso é que já conseguiu desenvolver um biossensor para avaliar o nível de álcool no sangue, à base de grafite, sílica modificada com nióbio e azul de metileno como corante, que atinge 99% de precisão e se mantém estável por pelo menos três meses. Prazo bem superior ao alcançado por trabalhos descritos na literatura, que chegaram a uma semana, no máximo. Quanto aos bafômetros existentes no mercado, eles não são totalmente precisos e só conseguem detectar o álcool em concentrações elevadas. Comparada aos métodos tradicionais, em que é necessário adicionar reagentes à amostra para produzir uma cor ou fluorescência que permitam a leitura, a análise com um biossensor é simples, rápida e econômica. Basta colocar uma amostra no dispositivo e fazer a medição, que consiste em converter a reação química em energia mensurável, como a da corrente elétrica. Essa corrente pode ser ainda traduzida por um processador e o resultado aparecer em um visor, que mostra a concentração da substância procurada. Nesse sistema, as quantidades de anticorpos ou enzimas utilizadas são mínimas, o que representa redução de custos, de resíduos poluentes e tempo de análise. Kubota explica que todo o processo é feito de forma muito seletiva. "Dentre várias substâncias presentes na amostra, somente a que se deseja é identificada." Controle fitoterápico - Além do glicosímetro, existem outros biossensores à venda no mercado, que avaliam uréia (funcionamento dos rins) e lactato (para avaliação da reação dos músculos após exercício físico). "Trabalhamos com a idéia de juntar vários dispositivos em uma única peça, para determinar lactato, creatinina, glicose e muitos outros parâmetros", diz o pesquisador. 72 ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 96

Uma única gota de sangue será suficiente para fazer um check-up em um minilaboratório portátil. A s aplicações estudadas esteng^k dem-se por um vasto leque, L^L que inclui a análise de meÊ ^ dicamentos durante o ^L JL. processo de fabricação, das propriedades antioxidantes de fitoterápicos e o monitoramento do nível de estresse a partir da análise da atividade da enzima glutationa peroxidase, que atua no sistema de defesa do organismo no combate aos radicais livres. Quanto ao sistema que analisa medicamentos em forma de cápsulas e comprimidos, as pesquisas estão avançadas e resultarão em um pedido de patente. Normalmente essa avaliação é feita por amostragem em meio líquido, com a adição de vários reagentes, o que gera quantidade razoável de resíduos. Sem contar que os resultados não são conhecidos imediatamente. "Da forma como estamos propondo é possível analisar amostras em tempo real diretamente no sistema de produção, sem gerar resíduos", diz Kubota. Dessa maneira, em vez de o controle ser feito por amostragem, abarcaria toda a produ-

ção. No caso de ser detectado algum problema no lote fabricado, seriam descartados apenas alguns comprimidos, e não todo o lote. Outro biossensor desenvolvido no IQ da Unicamp com grande potencial de aplicação imediata é um dispositivo que analisa o princípio ativo de extratos de plantas, a partir do chá. Kubota ressalta que, embora tenha crescido muito no Brasil o controle de qualidade desse tipo de medicamento, é importante fazer uma análise mais acurada para avaliar se as propriedades apregoadas realmente permanecem no produto comercial, porque a preservação dos princípios ativos das plantas depende de vários fatores, como clima, solo, época de plantio e de colheita. O pesquisador começou a trabalhar na área de sensores e biossensores desde que foi contratado pela Unicamp, em 1994. Desde aquele ano, já trabalhou em várias pesquisas financiadas pela FAPESP, uma das quais envolveu um Projeto Temático, Estudo e Desenvolvimento de Novos Sistemas de Detecção para Aplicações Analíticas, encerrado em 2001. A idéia de participar de outro temático, desta vez com parceiros de áreas distintas, teve como objetivo a troca de co-


nhecimento para tentar chegar a um consenso de qual o melhor sistema de análise para determinar e quantificar diversas amostras biológicas e ambientais. Contribuição brasileira - Enquanto Kubota trabalha com biossensores, outro pesquisador do IQ da Unicamp, o professor Marco Aurélio Zezzi Arruda, também participante do mesmo projeto temático, dedica-se ao estudo de materiais naturais e sintéticos candidatos a aumentar a sensibilidade dos métodos de análise, com geração mínima de resíduos. Entre os naturais, estão a casca de arroz, a esponja vegetal (bucha) e o vermicomposto, produzido por alguns tipos de minhocas após a digestão de materiais como areia, solo e matéria orgânica. Eles apresentaram resultados promissores na detecção de pequenas concentrações de metais, como cobre, zinco, chumbo e cádmio, com custos operacionais reduzidos. Os materiais naturais são colocados em pequenas quantidades (20 a 25 miligramas) em minúsculas colunas (tubos) de polietileno. Esses tubos são inseridos nos sistemas de análise em fluxo, ou flow-injection analysis (FIA), e todo o conjunto é acoplado à técnica de es-

pectrometria de absorção atômica, que se baseia na absorção da radiação proveniente de lâmpadas específicas para cada elemento a ser determinado. A absorção é proporcional à concentração do metal presente na amostra. Dessa forma, pode-se quantificar metais presentes em alimentos, bebidas, materiais inorgânicos, biológicos, águas e efluentes (resíduos domésticos ou liberados pela produção industrial). Arruda explica que os materiais naturais conseguiram préconcentrar os metais em pequenas quantidades, aumentando a sensibilidade do método analítico. A próxima etapa da sua pesquisa prevê o uso desses materiais em biossensores, para avaliar se efetivamente melhoram a eficiência dos métodos eletroquímicos. Os materiais naturais para análise química, além dos compostos sintéticos desenvolvidos por Kubota, estão sendo avaliados também pelo professor Zagatto, que trabalha no aperfeiçoamento dos sistemas de análises por injeção em fluxo, aplicados pioneiramente nos laboratórios de Química Analítica do Cena nos anos 1970 pelo professor Henrique Bergamin Filho (1932-1996) e adotados atualmente em laboratórios de todo o mundo. Zagatto, que fazia parte 0 PROJETO Emprego de Novos Materiais e Diferentes Ambientes Reacionais para Melhoria em Sensibilidade e Seletividade na Análise de Amostras Biológicas e Ambientais MODALIDADE Projeto Temático COORDENADOR ELIAS AYRES GUIDETTI ZAGATTO

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Centro de Energia Nuclear da Agricultura (CenaVUSP INVESTIMENTO R$ 221.063,00 e US$ 163.470,00

da equipe liderada por Bergamin, conta que essa contribuição permitiu a automação do processo de análises e a miniaturização desses sistemas. A tecnologia consiste em injetar a amostra em tubos capilares, que correm como água dentro de tubulações fechadas. Durante o transporte, ela se dispersa, e pode também sofrer diluições, o que permite a execução das diferentes etapas associadas ao método analítico, como adição de reagentes, separação e concentração. Tudo funciona como se o sistema analítico fosse um laboratório hermético, sem contaminação. A amostra processada passa por um medidor, que monitora o produto das reações químicas envolvidas. O resultado da análise é obtido em poucos segundos, o tempo necessário para a amostra percorrer os capilares, e o ritmo de amostragem é alto, em geral acima de cem amostras por hora. Zagatto ressalta que a exploração dessa tecnologia tem descortinado um novo campo de conhecimento para a química analítica, como a monitoração de espécies químicas instáveis, ou seja, produtos que se decompõem em pouco tempo. Antes, os principais reagentes para análises químicas à venda eram fruto da seleção de matérias-primas, guardadas como um precioso segredo industrial, produzidas desde o século 18 com o objetivo de formar um composto estável no final. A estabilidade era imprescindível para o sucesso do método analítico, já que a coloração produzida deveria ser estável e refletir a concentração a ser determinada. Ocorre que, durante algumas aplicações, a amostra torna-se turva, mas na análise em fluxo a deterioração em nada compromete os resultados, pois a amostra é monitorada poucos segundos após sua inserção no analisador. Além disso, as amostras e os reagentes empregados situam-se na faixa de microlitros, o que significa economia de matériaprima e pouca geração de resíduos, mesmo nos casos de produtos tóxicos. Até o final de outubro deste ano, data prevista para o encerramento do temático, ainda há muito trabalho pela frente, mas os resultados já obtidos com os compostos biomiméticos e materiais naturais mostram que eles já estão prontos para serem utilizados em vários tipos de análise química. • PESQUISA FAPESP % ■ FEVEREIRO DE 2004 • 73


■ TECNOLOGIA

GEOCIENCIAS

Informação estratégica Sistema identifica com mapas e fotos a origem de chamadas telefônicas

74 ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP %

Um morador de São José do Rio Preto (SP) chama o serviço de emergência da Polícia Militar. Antes de ser atendido, um operador sentado em frente a um computador instalado na Central de Atendimento da corporação já sabe o número do telefone e o endereço de onde partiu a chamada. Quase ao mesmo tempo tem acesso a um mapa da região, além de fotografias aéreas do bairro, da quadra e fotos frontais da fachada da residência ou do ponto comercial que pediu ajuda. As informações são repassadas à viatura que estiver mais próxima do local, com detalhes como terrenos baldios existentes ao lado ou dados relevantes que possam ajudar a elucidar casos de roubos, assaltos e outras ocorrências. O rastreamento imediato das chamadas, acompanhado da localização geográfica, tornou-se possível com o sistema Geofone, desenvolvido pela empresa Geodados Mapeamento e Pesquisa com o apoio do Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE), da FAPESR "Percebemos que havia uma demanda no mercado por informações relacionadas à origem da chamada telefônica e que era possível trabalhar com a tecnologia do telefone integrada à dos Sistemas de Informações Geográficas (SIG), um banco de dados com informes sobre zoneamento, propriedades, estradas, escolas e parques relacionados à localização geográfica", diz o geólogo Flávio Gonçalves Boskovitz, coordenador do projeto Geofone em parceria com o tecnólogo Gabriel Gonçalves Dias Moreno. O sistema utiliza de forma integrada o telefone, o identificador de chamadas telefônicas e o computador. O identificador de chamadas transmite o número para o computador, que, instantaneamente, exibe o local. Antes,

porém, é preciso fazer o mapeamento de toda a cidade. O Geofone foi instalado na PM de São José do Rio Preto como parte dos testes realizados para avaliar a viabilidade do projeto, aprovado em maio de 2000 e encerrado no mesmo mês de 2003. "Fomos beneficiados porque agora conseguimos direcionar e coordenar antecipadamente a ação policial", diz o sargento Edimilson Leite da Silva. O programa também funciona como um banco de dados que registra, por exemplo, as chamadas feitas em cada região mês a mês e os locais com maior índice de roubos de veículos ou de furtos. Cadastro único - O atendimento de emergências policiais é apenas uma das aplicações do Geofone. Ele foi concebido para ser utilizado por serviços públicos de atendimento ao cidadão, além de serviços privados de pronta entrega e de atendimento ao consumidor. Caieiras, município paulista localizado na região de Jundiaí, adquiriu o sistema para integrar informações que dizem respeito aos seus 80 mil habitantes. Para isso, fechou um contrato de R$ 250 mil com a Geodados. Inicialmente, o programa foi implantado na Secretaria de Educação, mas já começou a ser adotado pelas outras secretarias. Carlos Alberto Reze, diretor de tecnologia da prefeitura, diz que todas as ligações são identificadas, independentemente da origem. "Se a chamada for feita de um telefone fixo, aparece a fachada da casa, se for de um orelhão, a rua onde está localizado, e, no caso de celular, a identificação do proprietário." Segundo Reze, se ocorrer qualquer tipo de acidente em uma escola, enquanto o aluno é encaminhado ao posto de saúde, os pais são avisados. Em caso de emergência, tanto as escolas como os postos de atendimento médico têm acesso à ficha do aluno em que estão re-


Mais Informações - Chamada Telefônica

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Identificação na tela: mapas da região e fotos aérea e da fachada do imóvel

gistrados dados como tipo sangüíneo, doenças que já teve, alergia a medicamentos. Os moradores, por sua vez, podem pedir qualquer tipo de informação na prefeitura, como dívidas, impostos etc, já que todos os departamentos municipais estão interligados em um cadastro único. Dados essenciais - Em Potirendaba, cidade de 14 mil habitantes próxima a São José do Rio Preto, o sistema começou a operar em março do ano passado integrado ao Disque-Denúncia, serviço municipal que acolhe reclamações e sugestões relacionadas a água, esgoto, buracos nas ruas, saúde e outros. Diariamente são atendidas, em média, cinco chamadas, encaminhadas aos coordenadores de áreas. "Essa é a maneira mais prática de o prefeito saber tudo o que

acontece na cidade", diz Rosângela Ferrari, responsável pelo serviço. Atualmente, a equipe da Geodados está desenvolvendo o Geofone para o 0 PROJETO Geofone - Sistema Integrado para Obtenção de Informação Georeferenciada para Serviços de Emergência MODALIDADE Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE) COORDENADOR FLáVIO GONçALVES BOSKOVITZ

Geodados INVESTIMENTO R$ 257.023,00

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Corpo de Bombeiros de Botucatu (SP), previsto para começar a operar em abril. Além da informação geográfica, na tela vão aparecer dados essenciais para a escolha do carro e dos instrumentos que serão enviados para o local, como o tipo de construção que solicitou o serviço. No caso de abrigar material infiamável, por exemplo, os imóveis do entorno serão avisados do risco. O Geofone não tem concorrentes no Brasil, segundo Boskovitz. Apenas uma empresa norte-americana oferece um produto semelhante, mas bem mais caro. Por enquanto, tem atraído principalmente a atenção de prefeituras, embora já tenha conquistado clientes como pizzarias, farmácias e planos de saúde. "Acreditamos que é uma solução que ainda tem muito espaço para ser difundida", diz Boskovitz. • PESUUISA FAPESP % ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ 75


TECNOLOGIA

ODONTOLOGIA

nas arcadas Avançam no país as pesquisas com equipamentos e técnicas de laser em tratamentos dentários

^ aracterizado como um feixe de luz concentrado, o laser, entre as suas várias utilidades, cada vez mais se torna um equipamento eficaz e seguro para uso na /odontologia. Da remoção de cáries a tratamento de canal, ele está recebendo a atenção de pesquisadores e dentistas em todo o mundo. No Brasil não é diferente. Pelo menos três instituições - a Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (Fousp), o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) e o Instituto de Física (IF) da USP de São Carlos - apresentaram nos últimos anos, de forma independente ou em parceria, uma volumosa produção científica e tecnológica associando o emprego do laser aos tratamentos odontológicos. As contribuições estão na criação de novos procedimentos e protocolos (processos de aplicação das técnicas) e no desenvolvimento de novos equipamentos que já estão à disposição dos dentistas brasileiros. Entre as inovações, por exemplo, há uma técnica que permite a remoção de cáries sem danificar o tecido sadio do dente, um procedimento que pode ser realizado sem anestesia em 80% dos casos porque o uso do laser não costuma causar dor. Os pesquisadores brasileiros também desenvolveram técnicas de diagnóstico da estrutura e da vitalidade do dente com uso de lasite oral, uleerações na mucosa da boca comuns em pacientes submetidos a altas doses de quimioterapia e à radioterapia. "Nós fazemos um trabalho de prospecção buscando novas técnicas e aplicativos para o laser na odontologia", diz o físico Vanderlei Salvador Bagnato, do IF-USP, coordenador do Centro de Pesquisas em Óptica e Fotônica (Cepof) em São Carlos, uma iniciativa multidisciplinar e multiinstitucional pertencente ao grupo dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) da FAPESP. O Ipen e a Fousp também participam do Cepof. Bagnato explica que o laser pode substituir, em muitos casos, o instrumental usado pelos dentistas porque possui propriedades semelhantes. "Na odontologia, utilizam-se dois 76 • FEVEREIRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP %


Na Faculdade de Odontologia da USP, experimento com feixe de laser de érbio para corte de dente

tipos de instrumental, conta Bagnato. "O primeiro serve para cortar e desbastar. São as brocas e as limas. O outro são os produtos bactericidas, que matam microrganismos. O laser, por sua vez, nada mais é do que um feixe de luz com grande concentração de energia, adequado para o corte e o desbaste. E é também um agente bactericida, em função de suas altas temperaturas." "O laser pode ser usado em diversas áreas da odontologia e é um procedimento muito seguro. Mas engana-se quem acha que ele veio para substituir os equipamentos tradicionais. Ele é parceiro nos tratamentos dentários", explica o professor Carlos de Paula Eduardo, da Fousp. De acordo com o pesquisador, a nova tecnologia traz inúmeros benefícios aos pacientes. Além de não causar dor na maioria dos casos, o laser faz uma remoção seletiva do tecido cariado, porque o feixe de luz age exclusivamente na cárie, preservando as áreas adjacentes que estão sadias - coisa que a broca de alta rotação não faz. Na prevenção, o laassociado ao flúor aumenta a resisser associad< rie. Outra grande tência do dei üor delas, é a reduvantagem, tah ção de infccções ., mentos dentários - c das áreas de pesquisa da Fousp, en conjunto com a Universidade de Aa

chen, na Alemanha. Por meio de um processo denominado de ablação do tecido cariado, o laser causa microexplosões na dentina (camada logo abaixo do esmalte do dente) atingida pelas bactérias, removendo a cárie e reduzindo em até 99,6% a população de microrganismos. O mesmo benefício acontece em tratamentos de canal e periodontais, aqueles que envolvem a gengiva. ^W ^^ m setembro de 2002, as pesi quisas ganharam impulso com a inauguração das no- vas instalações do Labo' ratório Experimental de Laser na Odontologia (Leio) na Fousp. O prédio, com 400 metros quadrados, está equipado com 25 lasers, que valem aproximadamente US$ 800 mil. "O objetivo do laboratório é fazer pesquisa, ensinar e proporcionar tratamento clínico, estabelecendo uma ponte com as empresas do setor e levando os benefícios para a comunidade", afirma Carlos Eduardo, fundador e diretor do Leio. O centro está preparado para receber num futuro próximo entre 100 e 150 pacientes por dia e os recursos para construção do laboratório, em torno de R$ 1 milhão, vieram da USP e da Fundação para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico da Odontologia (Fundecto).

Dabi Atlante e Gnatus, doaram equipamentos em definitivo ou por empréstimo para a realização de pesquisas. Considerado um dos mais avançados centros da área no mundo, o Leio conta com mais de 50 pesquisadores, entre professores e pós-graduandos, e recebe alunos de todo Brasil e de outros países. Em junho do ano passado, por exemplo, um grupo de dez pesquisadores italianos passou uma semana no laboratório o«rendendo a usar a nova tecnologia. O ando grupo está programado para egar em fevereiro e o terceiro em julho. Os pesquisadores do Leio também possuem uma vistosa produção acadêmica. "Nos últimos dez anos, produzimos 130 teses e dissertações, sendo que 75 saíram do mestrado profissionalizante e 55 da pós-graduação acadêmica", informa Carlos Eduardo. A produção científica não fica atrás. Já foram publicados 115 trabalhos completos em revistas e jornais científicos internacionais e 55 em periódicos brasileiros (por exemplo, Laser Surgery and Medicine e Journal Clinicai Laser and Surgery). São pesquisas relevantes como, por exemplo, a série de trabalhos que investiga de que forma o laser pode agir no sentido de diminuir a presença de microrganismos em tratamentos odontologia». PESQUISA FAPESP % ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ 77


Todo esse conhecimento tecnológico gerado nesses centros têm sido repassado à iniciativa privada. Atualmente, o Brasil dispõe de uma dezena de fabricantes de lasers voltados para a odontologia. Alguns deles, como MMOptics, DMC e Condortek, estão instalados em São Carlos e receberam transferência de tecnologia produzida na USP e no Ipen. "Nosso negócio é desenvolver sistemas ópticos e eletrônicos e fazer protótipos, que depois podem ser repassados para a iniciativa privada", conta Bagnato. "Há algum tempo, criamos um protótipo de um aparelho de laser que controlava simultaneamente tempo, potência e área atingida pelo feixe de luz. A MMOptics interessou-se por ele e produziu, a partir desse protótipo, um modelo chamado BDP." A partir daí, a empresa começou a inovar e atualmente é uma das líderes do setor. Elementos invisíveis - Vários tipos de lasers podem ser empregados nos tratamentos, sendo os mais comuns os de argônio, de dióxido de carbono (C02), de érbio-YAG (EnYAG) e neodímioYAG (Nd:YAG). O laser de argônio opera tendo como meio ativo uma ampola de gás argônio que emite luz nas faixas do ultravioleta, do azul e do verde, enquanto o de C02 tem como meio ativo uma ampola de dióxido de carbono. Sua luz é emitida no infravermelho e ele é muito usado na prática de vaporização, situação em que um tecido biológico mole ou duro é convertido em vapor pela energia absorvida do feixe de luz. Já os laser EnYAG e Nd:YAG são formados, respectivamente, a partir dos elementos químicos érbio e neodímio, e YAG é a designação de um cristal sintético constituído por oxido de ítrio e de alumínio. Excetuando o de argônio, que é visível ao olho humano, os demais são invisíveis. Nesse caso, o equipamento emite um feixe de luz vermelho chamado luz guia, que serve para indicar o local preciso onde o feixe de laser deve incidir. Esses lasers variam de acordo com a forma que são produzidos e classificados como de baixa ou alta potência, conforme a concentração de energia no feixe de luz. Enquanto os lasers de alta potência permitem o corte de até placas de aço, os de baixa potência são usados para bioestimulação. Com eles, 78 ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ PESOUISA FAPESP 96

o dentista é capaz de interferir no metabolismo celular por meio da excitação das moléculas, acelerando reações como cicatrização, analgesia e desinflamação", diz Bagnato. Trata-se de uma reação química muito bem delimitada e que não pode ser confundida com cromoterapia. "Quando se trabalha com luz, a fronteira entre o real e o esotérico pode se tornar muito estreita." ssai aplicações mais nobres do laser na odontologia, segundo o professor Bagnato, são proporcionadas pelos lasers de alta potência. Eles podem ser utilizados em tratamentos curativos ou estéticos, como remoção de cáries, troca de restaurações e clareamento dentário. Foi com um desses equipamentos - do tipo EnYAG -, dentro do Cepof, que foi possível o desenvolvimento de uma nova técnica de remoção de restaurações antigas com a total preservação da parte sadia do dente. A pesquisa, inédita, foi apresentada no ano passado em congressos internacionais e já foi aceita para publicação na norte-americana Laser in Surgery and Medicine. "Até então, não existia nenhuma técnica que usasse laser para remoção de resinas velhas em dentes", explica Bagnato.

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O laser também é um eficaz instrumento para tratamentos de canal. "Já fizemos vários trabalhos clínicos e não clínicos usando, principalmente, o laser de Nd:YAG. Além de ter vaporizado o tecido presente no canal, ele proporcionou um selamento dos chamados túbulos dentinários (minúsculas estruturas presentes na dentina, camada abaixo do esmalte do dente), preservando a integridade da parte interna do dente tratado", afirma o pesquisador. Outra aplicação dessa nova tecnologia são os tratamentos periodônticos, em que se faz o controle de infeções que envolvem o dente e a gengiva. "Em um de nossos estudos, conseguimos demonstrar a ação bactericida do laser de iodo por meio de um tratamento muito menos agressivo do que a tradicional curetagem ou raspagem." Lasers de baixa potência também são usados na pré-cirurgia como analgésico e no pós-operatório para regeneração de tecidos. Algumas pesquisas também apontam sua eficácia no controle da dor. O potencial de uso do laser não pára por aí. "Ele também pode ser empregado para prevenção e diagnóstico, mostrando onde existem cáries precoces", afirma Denise Zezell, coordenadora do Laboratório de Lasers em Ciência da Vida do Centro de Lasers e Aplicações (CLA), unidade do Ipen. Muitas vezes, a


cárie está abaixo do esmalte do dente e não é flagrada pela radiografia. O laser detecta essas infiltrações incipientes com mais sensibilidade do que os equipamentos convencionais. A tecnologia também pode ajudar a fazer diagnósticos de vitalidade pulpar por técnicas de ultra-som, outra técnica desenvolvida no Ipen. "Nesse caso, o laser atinge os microvasos da polpa do dente e traz a informação da velocidade do deslocamento do sangue, mostrando se a região está ou não saudável", explica o físico Nilson Dias Vieira Júnior, gestor do CLA. Esse diagnóstico, feito com laser de baixa potência, revela possíveis casos de necrose causada pela tração de aparelhos ortodônticos. Outro campo de aplicação é o tratamento de herpes labial, doença viral causadora de bolhas nos lábios. Dentro da boca, o laser pode também eliminar as mucosites, enfermidade comum em pacientes com Aids ou em tratamento de câncer. A apresentadora de televisão Ana Maria Braga recorreu ao laser para tratar desse problema quando fez tratamento quimioterápico há cerca de um ano e meio. "Pesquisas feitas no Ipen e no Leio e com apoio do Hospital Sírio-Li-

banês, em São Paulo, e do Hospital do Câncer Alfredo Abraão, em Campo Grande, em Mato Grosso do Sul, mostraram que o uso preventivo do laser de baixa potência reduz de forma significativa o aparecimento de mucosites", diz o pesquisador do Ipen. História recente - Os primeiros estudos sobre o uso do laser na odontologia surgiram no final dos anos 1960 com o 0 PROJETO Laser na Odontologia COORDENADORES VANDERLEI BAGNATO - Centro de Pesquisas em Óptica e Fotônica (Cepof) em São Carlos CARLOS DE PAULA EDUARDO Laboratório Experimental de Laser na Odontologia (Leio) da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (Fousp) NILSON DIAS VIEIRA JúNIOR Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen)

INVESTIMENTO R$ 150 mil por ano (Cepof), R$ 1 milhão (construção do Leio), US$ 82.000,00 (Linha Regular de Auxílio da FAPESP para a Fousp) e R$ 300 mil por ano (Ipen)

físico inglês Theodor Maiman e posteriormente na Rússia e na Hungria. Em 1990, a técnica começou a ser estudada no Brasil. O pioneirismo coube a um grupo de professores da Fousp que foram enviados naquele ano para um programa de intercâmbio na Universidade Kyushu, em Fukuoka, no Japão, um dos principais centros de pesquisa nessa área. Dois anos depois, a USP firmou uma parceria com o Ipen, que já tinha boa experiência no desenvolvimento de lasers. O acordo visava o desenvolvimento de novos protocolos de uso do laser nos tratamentos odontológicos. Esses procedimentos envolvem, entre outras coisas, especificações técnicas como potência, tempo e exposição, tipo de equipamentos e regulação do feixe de laser. Em 1995, foi criado o Leio na Fousp e, no final da década, surgiu o curso de mestrado profissionalizante de lasers em odontologia, realizado em parceria com o Ipen e a USP. Desde então, 80 profissionais já foram formados pelo curso, que está em sua quinta turma e é reconhecido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Contribuiu para esse rápido sucesso acadêmico a compra, com recursos da FAPESP, de um laser de érbio, no valor de US$ 70 mil, e de um laser de argônio, que custou US$ 12 mil, aparelhos que estão instalados no Leio. Apesar de todas as vantagens oferecidas pela nova tecnologia, ainda são poucos os profissionais que usam equipamentos de laser em seus consultórios. Estima-se que dos 170 mil dentistas do Brasil somente entre 100 e 200 usam lasers de alta potência. "Isso ocorre pelo fato de o laser ser uma nova tecnologia. E toda novidade encontra algum tipo de resistência", afirma Carlos de Paula Eduardo, do Leio. O pesquisador, no entanto, faz questão de frisar a segurança dos procedimentos. "Desde que você conheça os parâmetros e domine corretamente as técnicas, o laser é muito seguro." Outro motivo para o uso limitado do laser é o alto custo do equipamento. Aparelhos de alta potência custam em torno de US$ 60 mil. Com o tempo, no entanto, quando a técnica for mais disseminada, a tendência é de que esse valor caia e o uso do laser na odontologia possa se espalhar por todo o país. • PESQUISA FAPESP % ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ 79


[TECNOLOGIA

riscos Rápido e não destrutivo, ultra-som verifica estruturas de oleodutos e paredes de usinas nucleares

Com a ajuda de um computador e um aparelho de ultra-som, mais simples do que aqueles usados pelos médicos para ver o bebê na barriga das grávidas, pesquisadores do Instituto de Engenharia Nuclear (IEN), do Rio de Janeiro, trouxeram para o Brasil um método rápido, barato e não destrutivo para medir as tensões presentes em diferentes tipos de estruturas metálicas, como as paredes de uma usina nuclear ou as tubulações usadas em oleodutos ou gasodutos. Denominada birrefringência acústica, a nova técnica implementada no Brasil, ainda experimental, mede e relaciona a velocidade de propagação das ondas ultra-sônicas em duas direções perpendiculares do material em estudo. De posse desses dados, e fazendo uso de algumas equações, os engenheiros acreditam ter condições de avaliar o risco que essa estrutura corre de se romper e provocar um acidente. "Em relação a outros procedimentos, uma das vantagens da birrefringência acústica é não provocar nenhum dano na estrutura analisada", afirma o engenheiro Marcelo Bittencourt, do IEN, unidade de pesquisa ligada à Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN). "Ela também não oferece riscos à saúde da pessoa que a utiliza. Esses dois pontos positivos não são meros 80 ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 96

Gasodutos e oleodutos: análise das tensões estruturais sem danos ao aço

detalhes. Eles podem favorecer a disseminação da nova técnica - implantada no Brasil com algumas novidades em relação à existente em outros países -, que está protegida por três patentes. Isso porque um dos métodos mais populares para registrar a tensão em construções e artefatos, a chamada técnica do furo, requer abrir um pequeno orifício em seu objeto de análise. Fazer isso nas paredes de uma usina nuclear é, obviamente, inviável. Já um outro método empregado para medir as tensões em metais que se utiliza da difração de raios X expõe as pessoas que executam a análise a um tipo de radia-

ção que requer alguns cuidados. Não foi à toa, portanto, que a Agência Internacional de Energia Atômica resolveu financiar os estudos sobre a nova técnica entre 1999 e 2002. Tensão na câmara - Os primeiros ensaios com a birrefringência acústica tentaram medir as tensões próximas a juntas de solda presentes em uma câmara hiperbárica de 5 metros de comprimento e 90 toneladas de peso. Feita de aço de alta resistência, com espessura que varia de 17 a 25 centímetros, a câmara hiperbárica, construída pela Nuclep, empresa que fabrica alguns componentes usados em usinas nucleares, é um equipamento que simula pressões de até 3 mil metros de coluna


de água. Os bons resultados obtidos nos testes iniciais levaram os pesquisadores a cogitar o uso do método no monitoramento das tensões atuantes nas paredes de usinas atômicas, embora esse tipo de medição ainda não tenha sido feito numa central nuclear. Antes mesmo de os experimentos com a nova técnica avançarem na área nuclear, a Transpetro, subsidiária da Petrobras, interessou-se pelo assunto e procurou os engenheiros do IEN. A iniciativa da empresa, que cuida da rede de oleodutos e gasodutos da estatal brasileira, resultou numa parceria firmada no segundo semestre do ano passado. Ao longo de dois anos, a Transpetro, por meio do Programa de Tecnologia de Dutos, vai investir R$ 1

milhão para que os pesquisadores testem o método ultra-sônico em amostras de sete diferentes famílias de tubos de aço usados nos oleodutos da companhia petrolífera. "Cada família tem características um pouco diferente das

outras", explica Bittencourt. Alguns tipos de tubo apresentam costura interna. Outros, não. Isso sem falar nas diferenças de diâmetro e espessura dos aços empregados na confecção dos oleodutos.Também serão analisados tubos com distintos tempos de uso.

0 PROJETO

Na terra e no mar - No momento, a primeira tarefa dos pesquisadores do IEN é criar um banco de dados com informações necessárias desses materiais para possibilitar a medida das tensões em campo. Esses parâmetros são importantes para se saber quanto de pressão externa e interna um tubo, que muitas vezes se encontra debaixo da terra ou no fundo do mar, pode agüentar sem se romper ou apresentar fissuras. •

Avaliação por Ultra-som de Tensões em Dutos e em Usinas Nucleares COORDENADOR MARCELO BITTENCOURT

- IEN

INVESTIMENTO US$200.000 (Agência Internacional de Energia Atômica) e R$ 1 milhão (Petrobras)

PESQUISA FAPESP % ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ 81


82 ■ FEVEREIRO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 96


HUMANIDADES ITERATURA

Velho ..íostra Machado de Assis, romancista ou funcionário público, como crítico da truculência brasileira

primeira vista, nada menos propício aos vôos literários do que o ambiente pachorrento de uma repartição pública. Curiosamente, todo aquele tédio fez milagres com alguns de nossos escritores, entre eles Drummond, Graciliano, . Guimarães Rosa e, descobrimos agora, o bruxo do Cosme Velho, tema do recém-lançado Machado de Assis historiador (Companhia das Letras, 345 págs., R$ 41,00), de Sidney Chalhoub, que contou com o apoio da FAPESP em seu pós-doutorado na Universidade de Michigan, EUA, onde concluiu a pesquisa sobre como os anos como chefe da modorrenta segunda seção da Diretoria da Agricultura, do Ministério da Agricultura (entre 1870 e 1880), contribuíram para a feitura de obras-primas como Memórias póstumas de Brás Cubas. "O Machado romancista e o Machado funcionário público compartilhavam a mesma ideologia: ambos aprenderam a não esperar nada de bom da classe senhorial escravista brasileira do século 19", diz Chalhoub. O período em que esteve à frente do departamento coincide com todo o debate social e político feito pelos políticos do Império que aca\ \ baram culminando na lei de 28 de setembro í_ \ de 1871, depois chamada de Lei do ^-~ . '~ —Ventre Livre. Ambos os "Machados" -"" £_ foram envolvidos pela polêmica. "O romancista esmerou-se em mostrar em seus escritos que a polidez e a aparente civilidade de senhores e propnetános assentavam-se na violência e no arbítrio, ainda que sugerisse também a capacidade dos dependentes em penetrar tal ideologia e torcê-la na busca \ * de objetivos próprios", explica. "O funcionário trabalhava para submeter o po; der privado dos senhores ao domínio da ■• lei. Acreditava na importância do poder público para disciplinar a barbárie senhorial." Afinal, a política dessa elite assentava-se justamente sobre a inviolabilidade da vontade dos senhores que, ao lado da ideoPESOUISA FAPESP'

A escrivninha do romancista: capaz de denunciar a crise escravista

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logia dos dependentes (para os quais era melhor concordar e lutar na surdina do que enfrentar a ira dos mestres), deu às inusitadas relações sociais brasileiras um sentido natural e perene.

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ento mostrar no livro que um dos objetivos de Machado é analisar os modos de atuação política cotidiana dos dependentes, homens e mulheres, livres ou escravos", fala o pesquisador. Nesse contexto, observa Chalhoub, "Machado foi capaz de 'traduzir' a complexidade de seu tempo histórico, de interpretar o nexo entre as coisas e de mostrar a indeterminação inerente à experiência histórica". Eis que a literatura consegue fazer história, em especial por meio dos afamados "diálogos machadianos". "Os diálogos são parte importante desse exercício analítico, pois mostram dependentes buscando atingir objetivos próprios por dentro da ideologia senhorial, de modo a não se expor à retaliação, caracteristicamente incivilizada, de que eram capazes proprietários e senhores de escravos." Para tanto, não é preciso nem sequer esperar as grandes obras da maturidade. "Um romance como Helena é muito mais complexo do que se pode suspeitar à primeira vista. Ela, por exemplo, quando quer conseguir algo de Estado, trabalha a situação de maneira a tornar desejo dele, Estácio, fazer precisamente aquilo que ela, Helena, espera que seja feito. Enfim, tudo muito sutil, indireto, dissimulado, como a própria literatura machadiana", nota o pesquisador. Uma literatura para olhos atentos, pois, diz Chalhoub, "sua percepção exige do leitor que decodifique por si mesmo a maior parte dos trejeitos e gracejos que constituem a arte da resistência na rapariga e qualquer leitor do século 19 saberia observar essa aparência a contrapelo, e o bruxo certamente contava com esse olhar." De certa forma, o historiador era o pai do romancista. "A história de Estácio e de Helena, antes que o drama choroso de um amor impossível, é a descrição do período de hegemonia inconteste da classe senhorial-escravista, cuja crise profunda o romancista vivenciara entre 1866 e 1871, e cujo desmanchar ele assistia com olhar investigativo na década de 1870", diz o autor, para quem, Machado de Assis, ao es-

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crever Helena, não tinha mais ilusões sobre a continuidade do status quo do poder. Para Chalhoub, o escritor deixa então a mocinha falar por ele. Mas os tempos ainda não davam uma luz ao fim do túnel. "Se não tem mais ilusões, Machado sofre com o impasse e não vê alternativa e, assim, a ambigüidade da protagonista traduzia a experiência histórica de um sem-número de dependentes desse tempo: seduzidos pela ideologia senhorial, Helena e seus semelhantes podiam mostrar-se gratos 0 PROJETO Machado de Assis e a Emancipação dos Escravos MODALIDADE Bolsa de Pós-doutorado BOLSISTA SIDNEY CHALHOUB - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/ Unicamp

aos senhores e relutar em sacudir as estruturas tradicionais." Teatro perigoso - Nada mais natural: como lutar contra séculos de dominação e contra uma classe cujo paternalismo se configurava num mundo idealizado pelos senhores, uma "sociedade imaginária que eles sonhavam realizar no cotidiano", em que tudo acontecia era função do seu desejo. Contra isso, apenas era possível a "esperteza" dos dependentes em torcer a vontade senhorial em prol da sua própria sobrevivência. Daí, nas palavras do pesquisador, "o desafio de Helena, Luís Garcia, Capitu, José Dias e tantos outros de afirmar a diferença no centro mesmo dos rituais da dominação senhorial". Um teatro perigoso em que se devia saber o limite de viver em meio à violência apenas pelo poder das palavras. Assim, o Brasil machadiano era bem mais do que apenas a dicotomia casa grande-senzala. "Havia condições intermediárias entre a escravidão e a li-


Machado e o Rio de Janeiro estampados em nota: para obter o que desejavam, dependentes dissimulavam discurso

berdade que, ao mesmo tempo que matizam a visão tradicional de uma sociedade dividida entre senhores e escravos, sugerem o tanto de precariedade inerente à condição desses dependentes." A grande "sacada" do bruxo surgiu justamente no bojo das discussões que presenciava (e das quais participava) como funcionário público: "A crise da sociedade senhorial escravista originava-se basicamente no processo histórico de emancipação dos escravos". A mágica do bruxo foi justamente ir além da dicotomia e perceber os interstícios, usando esse conhecimento como matéria-prima de seus romances. Daí, os romances vão aos poucos mudando sutilmente de tom, cada um deles, diz Chalhoub, "com uma lógica social própria, sendo importante ver o modo como surgem na história de seu tempo e o modo como se insurgem contra ela, tentando entendê-la e transformá-la". Dessa forma, após Helena, em laia Garcia, de 1878, a narrativa agora espelha a crise decisiva do paternalismo.

"A novidade é que os dependentes se confrontam com uma vontade senhorial mais consciente de si, ciente da resistência a seus desígnios e decidida a fazer valer sua autoridade por meio da astúcia e mesmo da fraude, não hesitando em violentar os subordinados", nota o autor. Em Memórias póstumas de Brás Cubas tudo se consolida. "Há o solo comum da crítica ao mundo senhorial, agora de forma quase brutal, na exposição do arbítrio e da violência dos senhores, mas também na sugestão de que havia situações em que os dependentes faziam gato-sapato do todo-poderoso Brás Cubas. Em Memórias, Machado reescreveu Helena e, se o menino é o pai do homem, Brás é filho de Estácio." Aos poucos, a luta para corroer a elite torna-se mais intensa, quase aberta e os podres poderes mostram-se em sua inteireza. Brás decide o destino da borboleta negra como decide a vida de seus subalternos sociais e dona Plácida, a alcoviteira, só viera à existência porque foi ne-

cessidade dele que ela viesse. Abusando da liberdade da morte, Cubas é um senhor boquirroto, cujas confidencias de arrogância nos assombram pela sinceridade. A pós a crueza de Memórias, i^L Machado faz a "crítica ceL^^ rebral de Dom Casmurro, È m romance tão sereno quan^Lm i^k^. to cirúrgico no relato dos horrores senhoriais. Talvez uma autópsia do mundo dos senhores de escravos, pois que esse se fora, em grande medida, no momento da escrita do livro", observa o pesquisador. O "xadrez político dos dependentes" agora incomoda os senhores, que vêem traição e dissimulação em todos os cantos e olhos. "Capitu conhecia a arte do diálogo político. Em Dom Casmurro, a menina é mãe da mulher. Sempre que sujeitos da história, os dependentes traem os senhores. Se é esta a única clave possível, podemos respirar aliviados: Capitu traiu Bentinho." • PESQUISA FAPESP % ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ 85


I HUMANIDADES HISTORIA

Portinari retratou a chegada da família real lusitana ao Rio, com dom João VI e Carlota Joaquina ao centro: ela queria voltar à Europa

A mulher que amamos odiar 86 ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 96


Vítima de uma historiografia cheia de preconceitos, Carlota Joaquina ressurge em livro como uma política hábil

O conhecimento que boa parte de nós tem sobre Carlota Joaquina (17751830) costuma ter densidade de um enredo histórico de escola de samba: é aquela espanhola bigoduda que odiava o Brasil e chacoalhou os sapatos ao sair daqui, para não levar nenhum grão de poeira do país. O filme de Carla Camurati tampouco ajudou muito: se ajudou o renascimento do cinema nacional, enterrou de vez a personalidade da soberana. "O movimento liberal e as transformações sociais e políticas do século 19 exigiram reinvenções do passado como forma de legitimar um presente que se queria construir. Carlota Joaquina, rainha portuguesa que nunca perdeu sua identidade espanhola, foi contra a vinda da família real ao Brasil - e declarou seu regozijo com a volta à Portugal -, que defendeu o absolutismo e se recusou a assinar a Constituição Liberal portuguesa, certamente não servia para subir ao pódio dos personagens dignos da memória nacional", explica a professora Francisca Nogueira de Azevedo, autora do recém-lançado Carlota Joaquina na Corte do Brasil (Civilização Brasileira, 397 paginas, R$ 40), um retrato surpreendente da rainha, que surge como uma política hábil, capaz de ir muito além do papel subalterno a que a corte lusitana constrangia as mulheres. Não foi a intenção da pesquisadora fazer a reabilitação de sua figura histórica. "Quis acompanhar a trajetória de vida de Carlota, preocupada com o universo feminino de seu tempo, com a produção historiográfica que delineou os estereótipos que marcam a sua memória e com sua atuação na esfera pública, onde, desde fins do século 18, ela assume um papel preponderante na política externa portuguesa", avalia a Francisca. Filha primogênita do rei Carlos IV, de Espanha, casou-se, com apenas 10 anos, com o futuro dom João VI. Embora um típico casamento diplomático que visava ao pacto entre as duas coroas ibéricas, nas cartas referia-se ao marido como um homem bom e honesto, culpando o grupo que os cercava pela desarmonia do casal, que, em 1806, chegou ao ápice com a chamada PESOUISA FAPESP % ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ 87


Conspiração do Alfeite. "Vários documentos comprovam que dom João passou por um longo período de depressão, afastando-se completamente do poder. A corte portuguesa dividia-se, então, entre anglófilos e francófüos. O grupo de tendência francesa apoiou Carlota para que ela assumisse o poder, como regente no lugar do marido." A "traição" teve um preço alto: "Carlota foi colocada incomunicável, confinada no palácio como prisioneira, afastada dos amigos e dos pais e sua correspondência passou a ser controlada pelo grupo político de dom João". É nesse espírito que se vê a bordo de um navio com destino à Colônia, onde, mal chegando, descobriu que os pais, monarcas da Espanha, estavam prisioneiros de Napoleão, com quem haviam estabelecido pouco antes uma aliança (condenada por Carlota com notável antecipação) que permitira a Bonaparte cruzar o território espanhol para invadir Portugal. O irmão de Carlota, Fernando VII, liderou um motim contra o pai e deu a Napoleão a chance de arrancar o trono dos espanhóis para colocar em seu lugar o irmão José Bonaparte. "Assim, o problema maior de Carlota não era a Colônia, mas as condições em que veio para o Brasil, praticamente um exílio. Suas cartas revelam sua luta para, de início, não partir de Portugal e, depois, seu desejo de voltar à Europa. Não encontrei nenhuma referência a um desprezo pelo Brasil, mas várias tentativas de sair da Colônia", diz Francisca. Sem rei, os "criollos" dos vicereinados espanhóis na América viram a chance de pôr fim à opressão dos Bourbon, movimento logo percebido por Carlota. No exílio colonial, ela decidiu lutar pela preservação do império de seu pai nos trópicos. "Carlota queria a regência da Espanha e, a partir da sede da monarquia, em Buenos Aires, coordenar a resistência à invasão napoleônica e garantir para a dinastia dos Bourbon a coroa espanhola, ou seja, fazer o mesmo que dom João fez", diz a pesquisadora. Para tanto, reuniu o apoio de parte da nobreza espanhola e da portuguesa, descontente com a vinda da Corte ao Brasil, à ajuda intelectual do almirante-de-esquadra britânico no Rio, Sidney Smith, e enviou, em 1808, 88 ■ FEVEREIRO DE 2004 • PESQUISA FAPESP %

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Carlota Joaquina enfim retorna a Portugal {quadro de Debret): rainha não odiava o Brasil, mas viveu aqui como exilada

um manifesto à Espanha, no qual se coloca como a defensora dos direitos de sua família. Ganhou, com isso, na Colônia, pesados inimigos para seus planos de se tornar a regente exilada de Espanha. Entre eles, o chefe do gabinete de dom João, o conde de Linhares, que logo percebeu o perigo dessa ação para seus planos de estender o império português para as áreas ocupadas pela coroa espanhola. O conde tinha um aliado forte: Lord Strangford, o embaixador inglês em Lisboa e desafeto de Smith. Strangford achava que o Brasil deveria ser "um empório para as mercadorias

inglesas, destinadas ao consumo de toda a América do Sul". O embaixador espanhol no Rio também se irou com Carlota, pois tinha ordens expressas da junta que governava a Espanha de mantê-la longe das colônias do Prata. Afinal, as lembranças desagradáveis da última união entre as coroas ibéricas levava a considerar os infortúnios que viriam de uma nova soberania portuguesa sobre os hispânicos. Como se não bastasse, Carlota, apesar do que diziam seus desafetos, não era um homem... O sistema que ordenava a sociedade lusitana entre os séculos


do Prata viram no "carlotismo" o caminho mais fácil para conseguir o livre comércio.

18 e 19 privava a mulher do convívio social, mantendo-a presa ao cotidiano doméstico. "A atuação de Carlota na esfera pública, negociando acordos diplomáticos, articulando com parte da nobreza portuguesa para ascender ao poder a pleiteando a regência da Espanha, certamente transgredia o espaço determinado para as princesas consortes na corte bragantina", observa Francisca. "Aliás, ao não se enquadrar nesses padrões, atribuiu-se a ela qualidades geralmente representativas do sexo masculino: violência, autoritarismo, ambição etc. Muitos artistas fiéis a esses estereó-

tipos a retratam com feições marcadamente masculinas." Postura comprada pela posteridade em detrimento de sua atuação política, notável. "Em 1812, mais da metade dos deputados da corte espanhola era favorável a que ela tivesse a regência da Espanha. Carlota conseguiu vencer, ainda, dois grandes obstáculos que impediam sua chegada ao trono: a revogação da Lei Sálica, que vigorava na Espanha, que proibia a ascensão das mulheres ao poder, e o reconhecimento de seu direito à sucessão da monarquia", conta. Os principais intelectuais e líderes políticos da província

"Criollos" - Mesmo os que não confiavam em Carlota viam em suas pretensões ao controle da Espanha por meio dos vice-reinados uma forma de impedir a explosão definitiva dos movimentos liberais "criollos", que se aproveitaram do novo equilíbrio de forças na região, originado na ocupação da Península Ibérica por Bonaparte que, ao retirar de cena o monarca, mostrou a fragilidade do sentido nacional hispânico. "Praticamente todo o império espanhol se voltou para o desenrolar dos acontecimentos no rio da Prata, pois os fatos que ali ocorriam certamente iriam afetar o resto dos domínios dos Bourbon na América." Os ingleses agiram mais rápido: "A Corte do Rio de Janeiro tomou consciência de que a Inglaterra já não fazia mais questão da parceria lusa em seus projetos no Prata. A opção pela independência das províncias sob influência britânica era a melhor solução para a Grã-Bretanha na opinião de Strangford", nota Francisca. A América espanhola rendeu-se ao movimento de independência e o cerco a Carlota se fechou ainda mais: "Ela foi mantida praticamente incomunicável, afastada de qualquer decisão sobre os domínios espanhóis". Em 1814, a Espanha perdeu em definitivo suas colônias do rio da Prata e Carlota Joaquina saiu derrotada da mais importante investida política de sua vida. No Brasil, sofria com o calor e fortes dores no peito, voltando à Europa em 1820, por causa da Revolução do Porto. Não se aquietou. Na chamada Conspiração da Rua Formosa, tentou, em conluio com nobres e frades, fazer o rei abdicar e rasgar a Constituição, instrumento liberal que odiou até o fim de seus dias e tentou derrubar em golpes sucessivos que a levaram ao exílio e mesmo a usar o filho, o infante dom Miguel, para tentar restabelecer o absolutismo que, acreditava, era a ordem natural das coisas. "Carlota Joaquina não é mulher fácil de se entender. Compreendê-la, decifrar o enigma de sua personalidade, é algo impossível para seus contemporâneos, daí o repúdio natural que recebe dos membros da sociedade que desprezam a inquietude e a curiosidade das mulheres", nota Francisca. (C. HAAG) • PESUUISA FAPESP 96 ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ 89


■ HUMANIDADES

DIREITO

Justiça seja feita Estudo aponta problemas dos Juizados Especiais do Estado de São Paulo e possíveis soluções RENATA SARAIVA

Uma pesquisa realizada pelo Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais (Cebepej), com participação de alunos e professores da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), pretende jogar uma luz sobre a questão da democratização da Justiça, item importante para os que deverão se encarregar da Reforma do Judiciário. Já nas mãos de algumas pessoaschave para essa reforma em Brasília, a pesquisa, intitulada Juizados Especiais e acesso à Justiça, foi concluída em julho de 2003 e consistiu em um exaustivo trabalho de campo para verificação da efetividade dos Juizados Especiais do Estado de São Paulo, região que concentra 50% do serviço judiciário do país, considerando-se não apenas os Especiais, mas também os Juízos Comuns. Durante um ano e meio, 15 pesquisadores saíram a campo para avaliar aspectos materiais e funcionais dos Juizados Especiais, Juizados Informais de Conciliação e Juizados Itinerantes localizados na capital e no interior de São Paulo. Por meio de questionários, observações qualitativas e posteriores análises estatísticas dos questionários, foram avaliados itens como: o perfil do reclamante; a natureza da lide; o percentual de acordos; as principais dificuldades 90 ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ PESUUISA FAPESP 96

de acesso aos juizados; o índice de satisfação e insatisfação dos usuários; o percentual de recursos; a qualidade de trabalho dos agentes do Direito (magistrados, procuradores, conciliadores, advogados e funcionários) e as condições materiais dos juizados. Considerados a primeira grande iniciativa a favor do fácil acesso à Justiça por parte das camadas populacionais menos privilegiadas, os Juizados Especiais, anteriormente chamados Juizados de Pequenas Causas, foram motivo de diversas controvérsias desde sua origem. Os Juizados de Pequenas Causas foram criados em 1984, pela Lei n° 7.244/84, e deveriam ter seu trabalho baseado na oralidade, simplicidade, informalidade, celeridade e busca persistente de uma solução amigável das causas. A competência daqueles juizados limitava-se a causas de até 20 salários mínimos e não contemplava a execução de seus julgados, que deveria ocorrer nos Juízos Comuns. "Os Juizados de Pequenas Causas foram muito criticados por profissionais que alegavam se tratar de um sistema elitista, pois se estaria oferecendo uma Justiça de segunda categoria à população mais humilde", relembra o professor e coordenador da pesquisa Kazuo Watanabe, que participou da elaboração daquela lei. "Mas o fato é que, na

época da criação daqueles juizados, o preço e a demora da Justiça inibiam o seu uso, o que, sabemos, cria uma panela de pressão social. Nós queríamos facilitar o acesso à Justiça ao cidadão comum, de maneira a inibir as pequenas contravenções, algo semelhante ao que ocorre nos Estados Unidos", destaca o professor. Os Juizados de Pequenas Causas foram revistos pela Lei n° 9.099, de 1995, que os transformou em Juizados Especiais, obrigando a implantação destes em todo o território nacional. A competência dos Juizados Especiais foi mudada, ampliando o limite de causas cíveis (excluídas as causas familiares e de ações contra o Estado) de 20 para até 40 salários mínimos e incluindo a execução de seus julgados e também de títulos executivos extrajudiciais no próprio trabalho do Juizado Especial. "Decidimos realizar essa pesquisa para verificar a efetividade desses juizados e se eles teriam condições de atender a todas as causas de até 40 salários mínimos, caso isso se tornasse obrigatório - atualmente, pequenas causas também podem ser tratadas pela Justiça Comum", explica Watanabe. A conclusão geral da equipe coordenada pelo professor é de que os Juizados Especiais têm um desempenho razoável - apesar das inúmeras dificuldades


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Na opinião do professor, alguns legisladores perderam a noção de que os Juizados Especiais deveriam servir a uma idéia maior, a da democratização do acesso à Justiça. E passaram a transformá-lo em um espaço de busca de soluções para os problemas da Justiça Comum. "Por exemplo, a lei determinava que apenas pessoas físicas teriam acesso aos Juizados Especiais. Mas, com o tempo, determinou-se que as microempresas também poderiam recorrer a eles. Além disso, quando se ampliou a competência para causas de até 40 salários mínimos, passou-se a exigir a presença de um advogado para entrar com processos entre 20 e 40 salários mínimos - o que não é necessário para as causas menores de 20 salários", explica o pesquisador. Também a preferência pelos acordos conciliatórios, um dos aspectos mais

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materiais e financeiras -, mas é preciso parar de ampliar suas competências, caso contrário eles entrarão em colapso. "Antes mesmo de ir a campo já tínhamos a opinião de que a lei de 1995 ampliara demais as competências dos Juizados Especiais e isso talvez comprometesse a celeridade e a simplicidade que esses juizados deveriam ter, de acordo com sua concepção original."

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importantes dos Juizados Especiais, ficou comprometida nos últimos anos, segundo Watanabe. "No início, os agentes conciliatórios eram recrutados entre advogados, que trabalhavam voluntariamente", conta. Com o tempo, o voluntariado diminuiu e as conciliações passaram a ser feitas também por estudantes de Direito, já que em várias regiões do estado os Juizados Especiais têm convênio com universidades. "Isso comprometeu a qualidade do atendimento, fazendo com que a média anual de 90% de soluções conciliatórias diminuísse para 25%, embora saibamos que esses convênios são extremamente importantes para a formação dos alunos e para os juizados. O que falta é um melhor treinamento e monitoramento", explica. As soluções conciliatórias tam0 PROJETO Juizados Especiais e Acesso à Justiça MODALIDADE Linha Regular de Auxílio a Pesquisa COORDENADOR KAZUO WATANABE - Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais

INVESTIMENTO R$ 62.421,25

bém se tornaram mais difíceis com a ampliação do atendimento para causas mais caras (de até 40 salários mínimos). Os dados da pesquisa Juizados Especiais e acesso à Justiça mostram uma grande dificuldade de infra-estrutura desses juizados, com problemas desde espaço físico até falta de computadores. A escassez de verbas faz com que, em inúmeros casos, os próprios funcionários se responsabilizem pela compra de equipamentos. Além disso, apenas os juizados da comarca da capital têm juizes trabalhando em regime de exclusividade. Fora da capital, os juizes têm de se dedicar aos Juizados Especiais em carga horária extra, sem o acréscimo equivalente de remuneração. "Diante de dados como esses, sugerimos que parem de ampliar as competências dos Juizados Especiais e invistam neles, assim como se verifica a necessidade de investimento na Justiça como um todo. Além disso, achamos importante uma mudança de mentalidade, de forma a interromper o processo de atribuição de soluções que deveriam ser buscadas na Justiça Comum aos Juizados Especiais. É preciso lembrar que eles têm uma finalidade maior: garantir o acesso à Justiça aos cidadãos mais pobres." Kazuo Watanabe pretende estender a pesquisa para outros estados. • PES0.UISA FAPESP % ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ 91


I HUMANIDADES

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DIÁRIO

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A relatividade

tropical

Saem em livro as anotações inéditas escritas por Albert Einstein em sua visita à América do Sul (incluindo-se o Brasil) em 1925

Bem, tudo é relativo. "Ele é um desses super-homens que para nós, selvagens e analfabetos habitantes destes Brasis, só existem nas monografias e nos dicionários, um desses predestinados que não se encontram na fauna indígena e de cuja existência chegamos a duvidar. Eu queria um sábio à antiga, um sabichão em carne e osso em cujo abdome eu pudesse dar piparotes íntimos que me deixassem a certeza da sua erudita realidade", escreveu, em 1925, o jornalista Jorge Santos, descrevendo o efeito da entrevista que fizera com Albert Einstein, então em visita ao Brasil. "Pouco entendimento de ciência. Sou uma espécie de elefante branco e, para mim, eles são uns tolos", anotou o cientista no diário dessa sua viagem à América do Sul (além do Brasil, visitou a Argentina e o Uruguai), composto de comentários sucintos como esses, mas muito saborosos pela acidez. Como se pode verificar em Einstein, o viajante da relatividade na América do Sul, de Alfredo Tiomno Tolmasquim (lançamento da Vieira&Lent), que traz toda a história do périplo tropical do físico e o seu diário, até então, inédito, cujos manuscritos estão guardados na Universidade Hebraica de Jerusalém. O autor é professor do Museu de Astronomia e Ciências Afins, do Rio de Janeiro, e pesquisador-visitante do Max Planck Institute for the History of Science, em Berlim. "Essas anotações constituem uma íntima expressão de seus pensamentos e sentimentos, retratando seu estado de espírito em cada momento. Elas nos ajudam a conhecer um pouco mais o lado humano daquele que muitos achavam que tinha uma parcela de divindade", explica Tolmasquim. O convite a Einstein, já uma celebridade internacional pela sua Teoria da Relatividade, para visitar a América do Sul foi feito, de início, pela Universidade de Buenos Aires, em 1923, mas apenas cumprido dois anos mais tarde. Ao saber por jornais portenhos da vinda do físico, o rabino Raffalovich, líder da comunidade judaica do Rio de Janeiro, logo entendeu que a possibilidade da extensão da visita ao Brasil seria uma chance de ouro para melhorar a imagem dos judeus entre os brasileiros. Com o auxílio de acadêmicos cariocas, conseguiu que Einstein aceitasse passar pelo país. Para o cientista, a oportunidade era valiosa: um admirador de culturas exóticas, Einstein também era um defensor ferre92 ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ PESHUISA FAPESP 96

Einstein visita Manguinhos: gênio horrorizado com o estado da ciência no Brasil


nho da criação de uma Universidade Hebraica e do sionismo. A chance de ajudar a colônia local pareceu ideal a ele e em 21 de março de 1925 aportou no Rio a bordo do Cap. Polônio. Numa breve entrevista, avisou aos mais afoitos que a relatividade não alargara os horizontes da ciência, mas, ao contrário, os havia restringido, esclarecendo que a idéia errônea de infinito fora substituída pela de um universo limitado. O Brasil também se revestia para ele de um outro charme: afinal, fora a observação de um eclipse solar em Sobral (além da Ilha do Príncipe, no Golfo da Guiné), Ceará, feita em 1919 por uma expedição da Royal Astronomical Society, que ajudou a comprovar a sua nova e polêmica teoria. Em verdade, o físico não se entusiasmara tanto assim com a observação feita no Brasil, pois fora feita de maneira ineficiente, mas, ainda assim, elegante, escreveu, a pedido de Assis Chateaubriand, uma nota: "A pergunta que minha mente formulou

foi respondida pelo ensolarado céu do Brasil". Pelo firmamento pode ser, pois o estado das ciências no país, à época, deixava muito a desejar. Havia apenas uma incipiente universidade no Brasil, a do Rio de Janeiro, de 1920, e as poucas pesquisas feitas por aqui tinham fins absolutamente práticos. O que só aumenta o mérito de homens como Amoroso Costa, capaz de, seis dias após o anúncio da teoria em Londres, escrever um artigo sobre ela em O Jornal, explicando a descoberta de Einstein. No geral, porém, o que impressionou o cientista foi mesmo a natureza local. "Deliciosa mistura étnica nas ruas. Português-índio-negro em todos os cruzamentos. Espontâneos como plantas, subjugados pelo calor." "A visita ao Jardim Botânico foi para mim um dos maiores acontecimentos que tive mediante impressões visuais." Nem tudo eram flo-

res: "O europeu necessita maior estímulo metabólico do que esta eterna atmosfera quente-úmida oferece. Do que vale beleza natural e riqueza? Eu penso que a vida de um escravo-do-trabalho europeu ainda seja mais rica, sobretudo menos utópica e nebulosa. Adaptação provavelmente só possível com renúncia da agilidade", escreve no diário. No meio tempo, vai para a Argentina e o Uruguai, mas volta ao Brasil em maio para ficar uma semana. Dá conferências (em geral, apinhadas de muitos curiosos e poucos sábios) e visita, como bom turista, Copacabana e o Pão de Açúcar ("viagem vertiginosa sobre floresta selvagem em cabo de aço e, acima, magnífico jogo e alternância de neblina e sol"). Na imprensa, o jargão "tudo é relativo" passa a explicar do custo de vida ao futebol, passando por uma propaganda de casa lotérica. No fim da viagem, o desabafo do gênio: "Finalmente livre, porém mais morto do que vivo". Não é preciso ser sábio para entender. (C. HAAG) • PESQUISA FAPESP % ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ 93


RESENHA

O pretérito do futuro Livro recupera pioneirismo da Geração Arquitetura Nova FERNANDA FERNANDES

Flávio Império, Rodrigo Lefèvre e Sérgio Ferro, arquitetos marcantes na década de 1960 por seus pensamentos e práticas, são apresentados em livro que reflete sobre sua produção. A arquiteta Ana Paula Koury, autora do livro, apresenta um trabalho criterioso e equilibrado na aproximação com a polêmica obra do trio, por ela nomeada de Arquitetura Nova. Paula Koury faz parte de uma geração de estudiosos da arquitetura que não conviveu, no calor da hora, com os debates travados por Ferro, Lefèvre e Império. Essa posição permite um olhar despojado e aberto a novas descobertas, oferecendo uma leitura cuidadosa do percurso profissional desses arquitetos. Destaca o que neles se apresenta como contribuição coletiva, configurando assim uma postura de grupo e também assinala o que, em cada um deles, é peculiar ou próprio. Assim, evita que se perca na busca de unidade o detalhe e riqueza do específico e contempla a incursão dos arquitetos e também artistas em outras áreas, como a pintura e a cenografia, além de destacar sua atuação no ensino de arquitetura. As quatro décadas que separam o trabalho desses arquitetos da apresentação de sua obra em livro assistiram a várias transformações e viram mudar a própria concepção de arquitetura e sua inserção na sociedade como mobilizadora de cultura e política. A leitura hoje realizada recupera um momento importante de nossa história arquitetônica e o atualiza esclarecendo o presente e suas indagações. No livro, a polêmica de Ferro, Lefèvre e Império com o mestre Artigas é revista a partir de diversos textos de onde emergem as dúvidas e vicissitudes de um período que ousou refletir sobre suas contradições. Indústria e manufatura, riqueza e carência alimentam uma arquitetura de forte compromisso social, que se distancia das questões puramente arquitetônicas, colocando-se como elemento diferencial na construção do país. 94 ■ FEVEREIRO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 96

Nos textos de Ferro e Lefèvre delineia-se a proposta da "poética da economia", que, interligada à reflexão sobre as condições do canAna Paula Koury teiro de obras, propõe uma alternativa de desenvolviRomano Guerra mento das técnicas de proEditora / Edusp / dução arquitetônica. BaseaFAPESP da na economia de meios, 136 páginas / R$ 39,00 essa poética considera as carências do país e a partir daí propõe uma nova linguagem que indica outros caminhos de atuação. Capítulo particularmente denso é dedicado à análise dos projetos arquitetônicos realizados pelos três arquitetos, às vezes em duplas, outras com outros parceiros, mas que mantém a unidade de princípios presente nas arquiteturas que visam com clareza uma meta e que traçam com precisão um percurso. Arquitetura que fez da simplicidade sua diretriz, acreditando em soluções transformadoras das condições da habitação social e do trabalho no canteiro e apostando na constituição de novos valores na esfera social e política. O estudo detalhado das edificações recupera o caráter de experimentação proposto pelos arquitetos. As variações sobre o tema da abóbada, como forma econômica e suficiente para abrigar os espaços da habitação, são exploradas nos seus aspectos construtivos e espaciais. A autora particulariza cada uma das soluções e torna legível o processo de investigação e o aprimoramento da proposta arquitetônica formulada por Ferro, Lefèvre e Império. As reflexões e os questionamentos colocados pelos três arquitetos, e principalmente por Sérgio Ferro, foram duradouros e repercutiram na formação das gerações seguintes. Com este estudo Paula Koury coloca, lado a lado, reflexão política e ação profissional, permitindo um novo olhar sobre a atuação do grupo e sua contribuição para uma arquitetura estreitamente vinculada a uma visão de mundo. Grupo Arquitetura Nova Flávio Império, Rodrigo Lefèvre e Sérgio Ferro

é arquiteta, doutora em História pela FFLCH/USP e professora do Departamento de História da Arquitetura e Estética do projeto da FAU-USP. FERNANDA FERNANDES


LlUROS A eleição de Israel: Um estudo histórico comparativo sobre a doutrina do "povo eleito" Ariel Finguerman Humanitas/FAPESP 173 páginas / R$ 20,00

Em meio à eterna crise no Oriente Médio, esse estudo de Ariel Finguerman se reveste de um significado especial, na medida em que boa parte do conflito moderno se reveste de dilemas passados. Aqui, o pesquisador analisa a célebre condição de povo eleito, clamada por Israel, em seu sentido bíblico e na sua relação com outras religiões. Humanitas FFLCH/USP: (11) 3091-2920; fax (11) 3091-4593 www.fflch.usp.br ou editflch@edu.usp.br

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Educação para a morte: Temas e reflexões Maria Julia Kovács Casado Psicólogo/FAPESP 2 volumes / R$ 27,00

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Dois livros que tratam da morte em seu aspecto interior e que propugna a discussão do tema em sua forma de individuação (o outro volume é Educação para a morte: Desafio na formação de profissionais de saúde e educação). Ou seja, em vez de pensar como algo muito distante e que deva ser analisado isoladamente, a autora propõe que se fale da morte no seio da sociedade da qual somos membros integrantes. K<'ÍI<'\«H'!S

Casa do Psicólogo Livraria e Editora: (11) 3034-3600 www.casadopsicologo.com.br

A construção do suspense: A música de Bernard Herrmann em filmes de Alfred Hitchcock Rosinha Spiewak Brener iEditora/FAPESP 158 páginas / R$ 26,00

A síntese histórica e a escola dos anais i

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Aaron Guriêvitch Editora Perspectiva 295 páginas / R$ 42,00

Um autor que veio do frio, Aaron Guriêvitch é um historiador russo que traz uma valiosa contribuição para que se possa ter uma visão algo mais crítica sobre a chamada Escola dos Anais francesa, baseada na obra e no pensamento do historiador Marc Bloch. Entre as muitas ressalvas que faz à adoração exagerada pela Escola, está o fato de que ela se restringiu à Europa Ocidental e não levou outras sociedades como fonte.

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Editora Perspectiva: (11) 3885-8388 www.editoraperspectiva.com.br

Florbela Espanca: Uma estética da teatralidade Renata Soares Junqueira Editora Unesp 153 páginas / R$ 20,00

Um estudo feito com carinho extremado por uma estudiosa da poesia de Florbela Espanca. Nesse livro, a pesquisadora faz justiça aos escritos da portuguesa, mostrando que, ao contrário da pecha de anacrônica, em geral atribuída a sua obra, ela pode ser colocada em condições de igualdade a seus pares masculinos, como Fernando Pessoa, Sá-Carneiro, e Almada Negreiros. Uma boa análise. Editora Unesp: (11) 3242-7171; fax (11) 3242-7172 www.editoraunesp.br ou feu@editora.unesp.br

A roda, a engrenagem e a moeda: Vanguarda e espaço cênico no teatro de Victor Garcia no Brasil Newton de Souza Editora UNESP 173 páginas / R$ 22,00

Um estudo para se ler com o DVD ligado e com uma pilha de filmes de Hitchcock ao lado. A pesquisadora analisa em todos os aspectos musicais e dramáticos a mágica conseguida por Bernard Herrmann ao compor as eletrizantes trilhas sonoras dos filmes do mestre do suspense. Pegando cena por cena e dissecando a música, conseguimos um belo retrato de como Herrmann era, o parceiro ideal.

O pesquisador Newton de Souza acertou em cheio ao escolher a obra de Victor Garcia, o encenador argentino responsável por montagens as mais revolucionárias de O balcão e Cemitério de automóveis. Ele serve à perfeição para discutir o polêmico conceito de vanguarda como alternativa aos modelos capitalistas de produção.

Editco Comercial: (11) 3179-0082; fax (11) 287-8083 www.ieditora.com.br ou info@ieditora.com.br

Editora Unesp: (11) 3242-7171; fax (11) 3242-7172 www.editoraunesp.com.br ou feu@editora.unesp.br

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