Clonar ou não clonar

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Ciência eTecnologia

Março 2004 • N° 97 • R$ 8,50

FAPESP METAIS CONTRA TUBERCULOSE

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OSUPERCHIP BRASILEIRO

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www.revista pesqu isa.fape sp.br

SEÇÕES

REPORTAGENS

CARTAS ..................... . .... . 5 CARTA DO EDITOR ....... . .. . ........ 7 MEMÓRIA .. . . . . ................... 8 Primeira Escola de Farmácia das Américas foi criada há 165 anos

ESTRATÉGIAS Pasteur com sotaque chinês ....... ... .. . 10 Alento para a pesquisa peruana ..... . . . . . 10 Doutores que mi nguam ... . . ........... 10 Ajuda mais sincera aos países pobres . . .. .. 11 A queda do avalista da ciência . ....... . . . 11 Osaber com vista para o Danúbio ... . ... . 11

CAPA

ECOLOGIA

Projeto de lei aprovado pela Câmara dos Deputados reduz poderes da CTN Bio, proíbe a clonagem terapêutica e mobiliza a comunidade científica ... . . . 16

Composto químico descoberto na atmosfera da Amazônia intensifica a precipitação ..... 38

PALEONTOLOGIA

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA INDICADORES Os sinos dobram pe lo Terceiro Mundo ... ... 12 Salvem a tartaruga do Pacífico . .. . .... .. 12 Ciência na web .. . .. .. . . . . . . .. .. ... . . 12 ODNA evolui na Marquês de Sapucaí .. . . . 13

Cresce o número de publicações brasileiras sobre genômica . . .. 25

ACORDO Compra de caças supersônicos no exterior terá que beneficiar empresas nacionais ..... . ... 26

CIÊNCIA FARMACOLOGIA

Fóssil de 70 milhões de anos representa a mais antiga serpente encontrada no Brasil . . . . .. . . 42

ASTROFÍSICA

Ciência e ecologia em si mbiose .. . .. . . ... 13 Pantanal na Internet . . .. .. .. .. .. . ... . 14 Diagnóstico rápido e econômico . . . ... .... 14 De carona no foguete indiano .. . .. . .. . . . 14 Integração do Centro com o Sul ... . .. .. .. 15 A escolha do novo consel heiro . . .. . . . .. .. 15 Prêmio no México ....... . .. .. . .... . . 15

Equipe de brasileiros e argentinos detecta novo tipo de radiação das explosões solares ... .. . .. 44

CONTRIBUIÇÃO FEMININA Composto metálico mata o bacilo de l<och de forma mais rápida e com menos efeitos colaterais ... . .. ... . . 32

Estudos sobre o causador da doença de Chagas conferem a brasileira o prêmio L' Oréai-Unesco 2004 . .. . . . . . 48 PESQUISA FAPESP 97 • MARÇO DE 2004 • 3


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e Tecnologia no Brasil

FAI'ESP ,~

REPORTAGENS

SEÇÕES

LABORATÓRIO Os beija-flores e as folhas vermelhas Fêmeas de muriquis param de migrar

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USP 70

ENGENHARIA ESPACIAL

A trajetória da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo . . ......... . . 50

Pesquisadores da UnB constroem propulsor para satélites que utiliza plasma como combustível ... . ...... 76

TECNOLOGIA

MICROELETRÔNICA

ENGENHARIA MECÂNICA Pequena empresa participa do desenvolvimento da estrutura da asa de avião da Embraer ... 78

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HUMANIDADES

HISTÓRIA Esquistossomose em Belo Horizonte Protozoário emergente Operfil dos idosos latinos Água-viva de quatro braços Pássaro tropical canta vitória As nuvens além da Via Láctea Mares quentes atraem chuva o

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SCIELO NOTÍCIAS

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Novos materiais condutores aumentam memória dos computadores em até 250 vezes .. 64

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INOVAÇÃO

LINHA DE PRODUÇÃO Etiqueta no centro de uma parceria Diagnóstico estelar o

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Centro de estudos gaúcho analisa o passado das Missões .. 80

LITERATURA Morte de Hilda Hilst reaviva debate sobre sua obra .. .. .. . 86

CULTURA Agência da Unicamp busca parceiros para transferir tecnologia produzida na universidade ............. . 70 Mais autonomia para portáteis Luz interna nas bolsas femininas Software encurta busca científica Movidos pelo vento Pesca em águas contaminadas Captura de polvos com potes plásticos Fapemig recebe depósito de patente Ondas do mar geram energia Patentes o

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ALIMENTOS

Caixa modernista, com livros, CD e fac-símiles, lembra Semana de 22 ....... 90

RESENHA ......................... 94 A ditadura derrotada, de Elio Gaspari

LIVROS ........................... 95 CLASSIFICADOS ................... 96 4 • MARÇO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 97

Salgadinhos enriquecidos com farinha de pulmão bovino ajudam a combater a anemia .. 74

Capa : Hélio de Almeida Foto: Advanced Cell Technology Tratamento de imagem: Luciana Facchini


cartas@fa pesp .br

Paleontologia

São Paulo, 450 anos

Sou aluna do curso de LicenciaPor meio desta, gostaria de cumtura em Geografia da Universidade primentar a equipe da revista PesquiEstadual Paulista (Unesp ), campus sa FAPESP pela qualidade do trabade Rio Claro, e bolsista de iniciação lho realizado. Em especial, gostaria de científica da FAPESP. Expresso aqui destacar a cobertura dada pela revismeus parabéns pelo suplemento sota aos temas paleontológicos e às geobre os 450 anos de São Paulo. A edição ciências. Ao ver a capa da edição 96, especial foi muito bem elaborada. de fevereiro de 2004, onde está estampada a face de SI LVIA E LENA um novo dinosV ENTORIN I sauro herbívoRio Claro, SP EMPRESA QUE APOIA ro, descoberto A PESQUISA BRASILEIRA no Maranhão, Gostaria de lembrei-me, parabenizá-los imediatamenpela edição este, das diversas pecial sobre a matérias já pucidade de São blicadas sobre Paulo nos seus paleontologia. 450 anos. Os Em um breve temas das relevantamento Trop1Net.org portagens fo(entenda superram muito bem ficial), contei 17 escolhidos, as reportagens difotos estão maretamente reravilhosas e, solacionadas à paleontologia, publicabretudo, o enfoque que foi dado na das no período de 1998 a 2004, edição como um todo à grandiosidaedições 45, 59, 65, 70, 73 76, 78, 80, de dessa metrópole e à sua diversida81 , 85, 88, 93, 95 e 96. Tais reportade em todos os aspectos. É uma satisgens aparecem mais na seção Ciênfação receber a revista mensalmente e cia, mas informações paleontológiesta edição em especial. cas interessantes foram publicadas L UZIA H ELENA Q UEIROZ DA SILVA também nas seções de notas (EstratéMedicina Veterinária/Unesp gias, Laboratório e Linha de ProduAraçatuba, SP ção), abrangendo temas relacionados à paleontologia de invertebrados, de Correção vertebrados e paleobotânica. Uma vez que a paleontologia constitui imporNa reportagem "Água de beber" tante ferramenta à divulgação cien(edição no 95) , a última palavra do tífica, especialmente entre jovens e texto, antibactericida, está errada. adolescentes, esperamos poder conO termo correto, no caso, é bacteritinuar contando com o excelente trac ida. balho realizado pela revista Pesquisa

lJ)

NOVARTIS

FAPESP. M ARCELLO

G.

SIMOES

Presidente do Núcleo SP da Sociedade Brasileira de Paleontologia IB/Unesp - Campus de Botucatu Botucatu, SP

Cartas para esta rev ista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br, pelo fax (11) 3838-4181 ou para a Rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP, CE P 05 468-90 1. As cartas poderão ser resumidas por mot ivo de espaço e clareza.

PESQUISA FAPESP 97 • MARÇO DE 2004 • 5


Novo prazo Pesquisador

aran a sua revista

Pesquisa

em 2004

FAPESP

Desde o seu lanÇamento, Pesquisa FAPESP é enviada gratuitamente à casa ou ao local de trabalho de 23,5 mil pesquisadores, bolsistas ou assessores ad hoc da FAPESP. Se você faz parte desse grupo, chegou a hora de atualizar os seus dados pessoais no site

www.revistapesquisa.fapesp.br Se você tem interesse em continuar a receber a revista sem qualquer ônus, é imprescindível o preenchimento do cadastro até o dia 15 de abril.

PeS(iüiiát FAPESP


CnRTfl DO

EDITOR

Pesquisa FAPESP CARLOS VOGT PRESIDENTE

Contra as sombras da imaginação

PAULO EDUARDO DE ABREU MACHADO VICE-PRESIDENTE CONSELHO SUPERIOR ADILSON AVANSI DE ABREU, CARLOS HENRIOUE DE BRITO CRUZ, CARLOS VOGT, CELSO LAFER, HERMANN WEVER, HORAC10 LAFER PIVA, MARCOS MACARI, NILSON DIAS VIEIRA JÚNIOR, PAULO EDUARDO DE ABREU MACHADO, RICARDO RENZO BRENTANI.VAHANAGOPYAN.YOSHIAKINAKANO CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO FRANCISCO ROMEU LANDI DIRETOR PRESIDENTE JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER DIRETOR ADMINISTRATIVO JOSÉ FERNANDO PEREZ DIRETOR CIENTÍFICO PESOUISA FAPESP CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIOUE LOPES OOS SANTOS (COORDENADORCIENTÍFICO), EDGAR DUTRA ZANOTTO, FRANCISCO ANTÔNIO BEZERRA COUTINHO, FRANCISCO ROMEU LANDI, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, JOSÉ FERNANDO PEREZ, LUIZ EUGÊNIO ARAÚJO DE MORAES MELLO, PAULA MONTERO.WALTERCOLLI DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA EDITOR CHEFE NELDSON MARCOLIN EDITORA SÊNIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS DIRETOR DE ARTE HÉLIO DE ALMEIDA EDITORES CARLOS FIORAVANT1 (CIÊNCIA), CARLOS HAAG (HUMANIDADES), CLAUDIA IZIQUE (POLÍTICACiT), HEITOR SHIMIZU (VERSÃOON-LIME), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA) EDITOR ESPECIAL MARCOS PIVETTA EDITORES-ASSISTENTES DINORAH ERENO, RICARDO ZORZETTO CHEFE DE ARTE TÂNIA MARIA DOS SANTOS DIAGRAMAÇÃO JOSÉ ROBERTO MEDDA, LUCIANA FACCHINI FOTÓGRAFOS EDUARDO CÉSAR, MIGUEL BOYAYAN COLABORADORES ALCIR PÉCORA.ANA MARIA FERRAZ, BRAZ, EDUARDO GERAQUE (ON-LINE), FABRlCIO MARQUES, LAURABEATRIZ, LAURA GREENHALGH, MARCELO HONÓRIO (ON-LINE), MARGÔ NEGRO, MARILI RIBEIRO, SAMUEL ANTENOR, SAYONARA LEAL, SlRIOJ. B. CANÇADO.THIAGOROMERO (ON-LINE) ASSINATURAS TELETARGET TEL. (11) 3038-1434 - FAX: (11) 3038-1418 e-mail: fapesp@teletarget.cotn.br APOIO DE MARKETING SINGULAR ARQUITETURA DE MlDIA Singular@sln9.c0m.br PUBLICIDADE TEL: (11) 3838-4008 e-mail: mpiliadis@fapesp.br (PAULA ILIADIS) PRÉ-1MPRESSÃ0 GRAPHBOX-CARAN IMPRESSÃO PLURAL EDITORA E GRAFICA TIRAGEM: 44.000 EXEMPLARES DISTRIBUIÇÃO DINAP CIRCULAÇÃO E ATENDIMENTO AO JORNALEIRO LMX (ALESSANDRA MACHADO) TEL: (11) 3865-4949 atendimento@lmx.com.br FAPESP RUA PIO XI, N' 1.500, CEP 05468-901 ALTO DA LAPA - SÃO PAULO - SP TEL. (11) 3838-4000 - FAX: (11) 3838-4181 http://www.revistapesquisa.fapesp.br cartas@fapesp.br NÚMEROS ATRASADOS TEL. (11) 3038-1438 Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAPESP É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

FUNDAÇÃO DE AMPARO A PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO SECRETARIA DA CIÊNCIA,TECNOLOGIA, DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO ETURISMO GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Areportagem de capa desta edição de Pesquisa FAPESP trata de al.. guns desdobramentos concretos de um tema que, atravessado por complexas questões éticas, filosóficas, políticas e jurídicas, entre outras, desbordou-se já há algum tempo de seu estrito campo original, o científico, para o espaço aberto da sociedade. Parece natural que esse tema - a pesquisa em biotecnologia e, em particular, um de seus ramos mais promissores, a pesquisa com células-tronco de embriões humanos clonados - provoque discussões acirradas, apaixonadas mesmo. Entre outras razões porque se sabe que os novos conhecimentos produzidos por essa área de pesquisa podem provocar radicais transformações no trato do homem com a vida, incluindo aí mudanças de concepção sobre a própria vida humana e adoção de novas práticas destinadas a preservá-la, prolongála, alterá-la, mas ao mesmo tempo é impossível antevê-las com precisão. E essa impossibilidade, claro, alimenta a imaginação, às vezes de forma torta, acionando temores e presságios sombrios. Contra uns e outros, certamente um dos bons antídotos é lançar luz sobre o que está em jogo, é informação abundante o suficiente para ajudar a conduzir o debate a termos mais consistentes. Nesse sentido, Pesquisa FAPESP oferece aqui uma pequena contribuição, primeiro ao explicar, a partir da página 16, na reportagem da editora de Política, Claudia Izique, por que boa parte da comunidade científica brasileira se posicionou contra dois aspectos do projeto de lei de Biossegurança que, aprovado pela Câmara dos Deputados, encontra-se agora no Senado Federal - ou seja, a definição a respeito de quem tem a palavra final sobre a comercialização de organismos geneticamente modificados no país e a proibição de pesquisas com célulastronco para fins terapêuticos. E, em seguida, mostrando, na reportagem do editor especial Marcos Pivetta (página 22), como está a polêmica internacional em torno do assunto, depois que

uma equipe de pesquisadores sul-coreanos anunciou uma bem-sucedida clonagem de 30 embriões humanos, dos quais foi extraída uma linhagem de células-tronco pluripotentes para fins de pesquisa na área terapêutica. É no âmbito de novas terapias, aliás, mas longe dos tremores que cercam ainda a busca das revolucionárias terapias gênicas, que esta edição traz uma boa notícia: pesquisadores brasileiros esperam fornecer em breve uma nova arma química contra a tuberculose, doença que mata de 2 a 3 milhões de pessoas por ano em todo o mundo, a maioria em países pobres. Uma nova molécula especialmente desenhada para liquidar de forma mais rápida a principal bactéria causadora do mal, com menos efeitos tóxicos para o doente, batizada por enquanto de IQG 607 e já patenteada no Brasil, está em fase final de testes pré-clínicos com camundongos, relata Pivetta, a partir da página 32. Boa notícia também surge no terreno da informática, onde a competência brasileira tradicionalmente se vê cercada por muitas dúvidas: pesquisadores de São Carlos anunciaram um novo processo e uma nova formulação de chip, capaz de aumentar em 250 vezes a memória dos computadores. O mais inusitado, como relata o editor de Tecnologia, Marcos de Oliveira, a partir da página 64, é que para desenvolver os novos materiais com esse potencial o grupo valeu-se de um forno microondas caseiro. Nas páginas de Humanidades, vale destacar a reportagem de Laura Greenhalgh (página 80) sobre estudos históricos feitos na Universidade Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) que vêm revelando aspectos poucos conhecidos do convívio entre jesuítas e índios nos empreendimentos coloniais conhecidos como Missões e o belo artigo de Alcir Pécora, crítico, professor de Teoria Literária, sobre a obra especialíssima e até aqui muito pouco analisada da escritora Hilda Hilst, falecida no mês passado. MARILUCE MOURA

- DIRETORA DE REDAçãO

PESOUISA FAPESP 97 ■ MARÇO DE 2004 • 7


MEMóRIA Prédio da escola no final do século 19: pioneirismo

a saia ae auia Primeira Escola de Farmácia das Américas foi criada há 165 anos, em Ouro Preto NELDSON MARCOLIN

Houve um tempo, na primeira metade do século 19, em que os médicos não gozavam de boa reputação entre a população do interior do Brasil. Os boticários, herdeiros dos raizeiros, conhecedores de plantas e de simpatias diversas, caíam mais no gosto dos habitantes das províncias. A péssima situação do ensino e a má qualificação dos profissionais de saúde também não ajudavam a tornar os médicos mais eficientes na província de Minas Gerais, uma das mais importantes do país. Daí a decisão da Assembléia Provincial de aprovar lei, em 4 de abril 8 ■ MARÇO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 97

Formandos do curso de 1879: presença de negros antes da Abolição


Acima, sala de aula e laboratórios em 1939; ao lado, Schwacke com os alunos em excursão de 1895 para pesquisa sobre a flora da região

de 1839, criando duas Escolas de Farmácia - uma em Ouro Preto e outra em São João Del Rei - com uma especificação importante:"... nestas escolas ensinar-se-á a farmácia e a matéria médica, especialmente a brasileira". A escola de São João Del Rei não vingou. Mas a de Ouro Preto tornou-se a primeira do gênero nas Américas com o ensino desvinculado das faculdades de medicina - antes dela, a farmácia era apenas um apêndice dos cursos médicos. A organização inicial da faculdade enfrentou dificuldades nos primeiros anos, como falta de recursos para pagar seus dois professores concursados, Calixto José

Arieira e Manoel José Cabral, também proprietários de farmácias na cidade. Interessados no ensino e na formação de bons profissionais, os dois trabalharam por longos anos sem nada receber do governo. Superados os obstáculos, a Escola de Farmácia tornou-se um importante centro de ensino no século 19, que atraía estudantes de várias partes do país. E tinha um caráter democrático, incomum para a época, abrigando alunos negros bem antes da Abolição. Em 1891, chegou à cidade o botânico alemão Wilhelm Schwacke, nomeado diretor da escola. "Foi ele quem começou as pesquisas na área de botânica

sistemática e iniciou a tradição de excursões periódicas dos alunos a regiões de Minas Gerais para levantamento da flora da região", conta Victor Vieira de Godoy, professor da escola e estudioso de sua história. O trabalho resultou na criação de um herbário, em 1892, ampliado com a colaboração de outros botânicos, que tem hoje por volta de 32 mil peças, um registro importante da flora em uma região devastada por atividades predatórias da mineração. Em 1969, a Escola de Farmácia foi incorporada à Universidade Federal de Ouro Preto e hoje batalha pela construção de um Centro de Memória da Farmácia. PESQUISA FAPESP 97 ■ MARÇO DE 2004 ■ 9


POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA

ESTRATéGIAS

MUNDO

Pasteur com sotaque chinês O Instituto Pasteur vai abrir uma filial em Xangai, a maior metrópole da China (Nature, 5 de fevereiro). Uma equipe de 250 cientistas e técnicos se dedicará a pesquisas voltadas para doenças que ultrapassam a barreira entre espécies e são transmitidas dos animais para o homem, como a pneumonia asiática e a

■ Alento para a pesquisa peruana Os pesquisadores do Peru comemoram uma boa notícia. O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) concedeu uma linha de US$ 25 milhões para um programa de Ciência e Tecnologia no país, que também receberá US$ 11 milhões do governo local. O anúncio foi feito com pompa pelo presidente da República, Alejandro Toledo, durante o 11° Encontro Científico Internacional realizado em Lima {SciDev.Net, 13 de fevereiro). O programa contemplado busca melhorar a gestão da pesquisa universitária, inves-

gripe do frango. A unidade começará a funcionar em 18 meses. O acordo de cooperação foi celebrado em Paris, em fevereiro, entre o vice-presidente da Academia Chinesa de Ciências, Chen Zhu, e o diretor-geral do Pasteur, Philippe Kourilsky. "Nossa estrutura de pesquisa e vigilância sanitária não está preparada

tir na formação de recursos humanos e fortalecer os centros de pós-graduação. "Não é muito dinheiro, mas vamos mostrar que podemos fazer um uso exemplar da verba", diz o presidente do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia, Benjamín Marticorena, que liderou os esforços para conseguir o crédito. •

10 ■ MARÇO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 97

para enfrentar as moléstias emergentes e esperamos que o acordo com o Instituto Pasteur nos ajude a superar essa defasagem", disse Chen Zhu, referindose à emergência nacional causada pela pneumonia asiática em 2003, quando a China pediu ajuda aos pesquisadores franceses. O centro terá o status de em-

■ Doutores que minguam Continua a cair o número de títulos de doutorado concedido pelas 413 universidades americanas. Segundo censo anual feito pela Universidade de Chicago, formaram-se 39.955 doutores em 2002. Foi a primeira vez em nove

presa sem fins lucrativos e será dirigido por equipes de cientistas e executivos independentes do governo central. A unidade de Xangai integrará a rede de agências do Instituto Pasteur: são 23 centros em 17 países, a maioria deles em regiões tropicais onde as doenças infecciosas são epidêmicas. •

anos que o número ficou abaixo dos 40 mil. Em 2001, o número de novos doutores já havia sido inferior a 41 mil, o que não ocorria desde 1996. Uma análise dos números feita pela National Science Foundation (NSF), a agência de fomento à pesquisa do governo norte-americano, indica que a redução não atinge as áreas como comunicação, história, educação, marketing e economia. A queda se concentra nas chamadas "ciências e engenharias". Nessa categoria, 24,5 mil novos doutores se formaram em 2002, o patamar mais baixo desde 1993. A tendência de queda já é observada faz cinco anos. •


■ Ajuda mais sincera aos países pobres A Royal Society, a prestigiosa academia de ciências britânica, lançou duras críticas ao governo do Reino Unido, pelo apoio deficiente à pesquisa no Terceiro Mundo. Em relatório apresentado ao Comitê de Ciência e Tecnologia da Câmara dos Comuns, a sociedade descreveu o Departamento para o Desenvolvimento Internacional, articulador dessas iniciativas na burocracia britânica, como fraco em conhecimento científico e isolado dentro da burocracia estatal. Também diz que o órgão tem sido incapaz de identificar as reais necessidades dos países pobres. A análise sugere que o departamento prefere investir em projetos assistencialistas, que promovem benefícios imediatos, como aumentar os níveis de vitamina A nas batatas-doces de Uganda. Mas não se preocupa em executar programas que poderiam ajudar vários países de uma só vez - como monitorar por satélite as chuvas no continente africano, o que resultaria em maior produção agrícola e em redução da fome. O documento recomenda, ainda, que o departamento tenha à frente o apoio de um cientista-chefe, respaldado por uma equipe de pesquisadores profissionais {Nature, 5 de fevereiro). •

■ A queda do avalista da ciência Saiu de cena o político responsável por colocar a África do Sul no cenário internacional da ciência após décadas de isolamento imposto pelo apartheid. Ben Ngubane desempenhava as funções de ministro da Arte, Cultura,

0 saber com vista para o Danúbio f-2

Budapeste tem um sonho: resgatar o status de eixo científico da Europa. Para chegar lá, investiu num centro de estudos, o Collegium Budapeste, que se inspira abertamente no Instituto de Estudos Avançados de Princeton, em Nova Jersey. A tarefa é ambiciosa: o instituto de Princeton, criado em 1930, abrigou luminares como Albert Einstein e Kurt Gôdel, especialista em lógica. Com uma década de funcionamento, o Collegium Budapeste já se estabeleceu como um endereço de prestígio na Europa Oriental. A instituição tem cinco centros permanentes de pesquisa e mais 20 cientistas visitantes. Busca criar um nicho de trabalho teórico em disciplinas que

Ciência e Tecnologia desde o advento do governo democrático em 1994. Só se afastou do cargo entre 1996 e 1999, quando assumiu o cargo de primeiro-ministro da província KwaZulu-Natal. A comunidade científica sulafricana recebeu a notícia com apreensão porque Ngu-

vão de física a lingüística. "A Hungria deixou importantes marcas na ciência e estou otimista de que Budapeste conseguirá recuperar seu papel de centro intelectual", afirma o neurocientista Sylvester Vizi, presidente da Academia Húngara de Ciências. Um entrave já diagnosticado é o escasso intercâmbio internacional. O Collegium, no caso, é uma exceção. Tamar Gendler, filósofo e psicólogo da Cornell University em Ithaca, Nova York, é um dos 18 pesquisadores estrangeiros que trabalham no instituto. Gendler diz que se sentiu atraído pelas "inspiradas discussões com meus colegas". Atualmente, ele usa seu período sabático para escrever um livro sobre a

bane era um defensor dos investimentos em pesquisa. Não por acaso, sua gestão caracterizou-se por um período de estabilidade da atividade acadêmica. A saída deveu-se a uma desavença na coalizão de partidos que dão sustentação ao governo do presidente Thabo Mbeki.

base neuronal da imaginação, da autodecepção e das chamadas emoções fictícias - como o sorriso de alguém ao se imaginar numa sala com uma pessoa de quem gosta. Os novos pesquisadores queixam-se da velha-guarda e de seu pensamento com influência soviética. Mas não há sinais de escassez de cérebros. "Não temos jogadores de futebol famosos nem astros pop, então só nos resta brilhar na ciência", diz Livia Meszaros, estudante de medicina na Universidade Semmelweis, em Budapeste, que em 2002 ganhou o prêmio da Associação Húngara de Inovação pela melhor pesquisa de ensino médio do país. Para ela, ciência tem glamour. •

Ngubane vai assumir um posto diplomático: a embaixada da África do Sul em Tóquio. Segundo a revista Nature, ele não será substituído até as eleições de 14 de abril. Até lá, Phumzile Mlambo-Ngcuka, atual ministro de Minas e Energia, ocupará interinamente o cargo. •

PESQUISA FAPESP 97 ■ MARÇO DE 2004 ■ 11


ESTRATéGIAS

MUNDO

■ Os sinos dobram pelo Terceiro Mundo Academias científicas de todo o mundo propuseram a criação de dois fundos, no âmbito das Nações Unidas, para incentivar a pesquisa nos países pobres. O Inter Academy Council, que congrega 90 instituições, incluindo a Academia de Ciências dos Estados Unidos, enviou um relatório ao secretário-geral da ONU, Kofi Annan, em que critica a organização por não estimular estratégias voltadas para o desenvolvimento no Terceiro Mundo. O documento, intitulado Criando um futuro melhor: Uma estratégia mundial para capacitação em ciência e tecnologia, sugere a criação de um fundo para dar suporte a 20 centros de excelência nacionais ou regionais por períodos entre 5 e 10 anos, selecionados com base na qualidade de sua produção, independência e afinidades com as necessidades locais. Um se-

gundo fundo operaria um sistema competitivo de subvenção, em que juizes internacionais selecionariam parcerias entre equipes de países pobres e ricos (Nature, 12 de fevereiro). O dinheiro viria de governos e fundações. Annan deu seu aval ao projeto e se comprometeu a implementá-lo. Disse que a prioridade da ONU é investir em tecnologia aplicada à agricultura. "Eu desafio a comunida-

de científica a responder por que a África é o único continente que até hoje não conseguiu realizar uma revolução verde." •

■ Salvem a tartaruga do Pacífico O estoque das tartarugas-decouro que vivem no oceano Pacífico caiu 97% nos últimos 22 anos e existe o risco de que elas desapareçam em

menos de uma década. O alerta foi feito pela entidade ambientalista Conservation International, num simpósio sobre biologia marinha na Costa Rica, em fevereiro. A salvação, diz a entidade, está na criação de uma área de proteção, do Equador à Costa Rica, prevista para se consolidar até 2007, e em combater a urbanização das praias onde as tartarugas-de-couro põem seus ovos. •

Envie sua sugestão de site cientifico para cienweb@trieste.fapesp.br

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www.anvisa.gov.br/bancosdedados/psicoindex/ Banco de dados com informações técnico-científicas referentes às substâncias psicotrópicas.

12 ■ MARÇO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 97

www.spiked-online.com/sections/risk/debates/ riskaverse Série de debates sobre benefícios e riscos da biomedicina.

hands-on-cern.physto.se Projeto educativo do acelerador europeu Cern sobre física é partículas para estudantes.


ESTRATéGIAS

BRHSI

O DNA evolui na Marquês de Sapucaí A ciência deu samba no Carnaval 2004. A boa surpresa no desfile da Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro, foi o vice-campeonato conquistado pela Unidos da Tijuca, que apresentou um reluzente carro alegórico com 123 bailarinos de corpos pintados, representando a espiral do DNA. Havia destaque fantasiado de Albert Einstein e até um autêntico Prêmio Nobel sambando, o químico polonês naturalizado norte-americano Roald Hoffman, agraciado em 1981 e convidado por intermédio da Universidade Federal do Rio de Ja-

■ Ciência e ecologia em simbiose Um programa criado para prevenir o impacto de acidentes ecológicos na bacia do rio Solimões, a terceira maior fonte de petróleo do país, tornou-se um celeiro de pesquisas e de informações sobre a Amazônia. O projeto Piatam (Potenciais Impactos Ambientais no Transporte Fluvial de Gás Natural e Petróleo na Amazônia), no qual trabalham 108 técnicos e pesquisadores, produziu um inédito levantamento sobre a

0 vulcão da criação, alegoria do DNA

neiro (UFRJ). "A ciência deveria estar na cultura popular, as pessoas gostam do DNA", resumiu Roald Hoffman. Com um enredo que

biodiversidade da região. Foram identificados, por exemplo, 98 espécies de peixes da bacia e mapeados os mais vulneráveis a derramamentos de óleo. Também foram registradas 30 espécies de plantas aquáticas das várzeas. O projeto foi iniciado em 1999 pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam), para reduzir riscos de acidentes na exploração petrolífera às margens do rio Urucu e no transporte de petróleo e gás ao

lembrava título de tese sociológica, O sonho da criação e a criação do sonho: A arte da ciência no tempo do impossível, o carnavalesco

longo do Solimões. A Petrobras abraçou o projeto, investindo R$ 1,65 milhão entre 2002 e 2003. O projeto mobiliza pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), entre outros. A UFRJ criou um modelo computacional sobre a dinâmica dos rios que permite avaliar se, em caso de enchen-

Paulo Barros mostrou mesmo que o povo simpatiza com os personagens e conceitos científicos - e que o poder da inovação não move apenas as fronteiras do conhecimento, mas também é capaz de exorcizar a mesmice dos desfiles. Outra criação de Barros foi um carro alegórico com um disco voador feito de 15 mil garrafas de água mineral. Empolgado com a parceria entre o Carnaval e a ciência, Roald Hoffman arriscou-se a sugerir um tema para o ano que vem: a teoria da movimentação dos continentes. •

te, há possibilidade de o óleo derramado invadir a várzea e os lagos próximos. O sucesso do programa já inspira outro Piatam, para monitorar a costa do Pará, Amapá e Maranhão, rota de navios petroleiros. "O Piatam está induzindo a formação de pessoal especializado em diversas áreas", diz Alexandre Rivas, coordenador do projeto e diretor do Centro de Ciências do Ambiente da Ufam. •

PESOUISA FAPESP 97 ■ MARÇO DE 2004 ■ 13


ESTRATéGIAS

BRBSI

Pantanal na Internet A Embrapa Pantanal, unibovinos e eqüinos", diz dade da Empresa BrasileiJosé Robson Sereno, da ra de Pesquisa AgropecuáEmbrapa Pantanal. "Com ria em Corumbá (MS), o download, podemos está divulgando sua proatender melhor a essas dução científica na Interdemandas", afirma. O obnet. Desde o ano 2000, o jetivo é resgatar todas as endereço www.cpap.empesquisas desde que a unibrapa.br começou a recedade foi criada, em 1975. ber o acervo digitalizado Hoje, 90% da produção da unidade, para downcientífica da unidade já load gratuito. A idéia iniestá franqueada e, a parcial era facilitar a troca de tir de agora, a divulgação informações com pesquidas pesquisas será feita sisadores da Espanha, Estamultaneamente em papel dos Unidos, França e Hoe na Internet. Só ficarão landa, países com que a de fora publicações voluunidade tem parcerias. mosas, como os catálogos Mas logo despontou uma de espécies do Pantanal, demanda nacional. "Recuja venda é .uma fonte cebemos cada vez mais de recursos da Embrapa pedidos de estudantes e Pantanal. Mas o site ofepesquisadores brasileiros, rece uma amostragem interessados em assuntos^ desse material, com uma como a fauna e a flora do. seleção de espécies e suas Pantanal, recursos pes- < fotos, como o tamanduáqueiros e pesquisas sobre bandeira e o tuiuiú. •

/* Mâ.

■ Diagnóstico rápido e econômico A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) celebrou um acordo de transferência de tecnologia com a empresa americana Chembio, dando o primeiro passo para a nacionalização dos testes rápidos para diagnóstico do vírus da Aids. A produção vai começar em abril e, ainda em 2004, atenderá à demanda do Ministério da Saúde. A cada ano, o Programa Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis e Aids do Ministério da Saúde faz 300 mil exames. Hoje, os kits são todos importados e custam US$ 1 milhão ao país. Na primeira fase, a Fiocruz vai comprar a matéria-prima da Chembio para produzir os kits no Brasil, com uma redução de 20% no preço. Em 2006, a produção será nacionalizada, ampliando a economia para US$ 500 mil por ano. O teste rápido é fundamental para o diagnóstico de grávidas que não fizeram pré-natal e de recém-nascidos. Graças a ele, é possível tomar medidas que impeçam a transmissão de mãe para filho, como evitar o aleitamento. Dados do ano 2000 mos-

tram que 148 mil crianças brasileiras nasceram sem que suas mães fizessem o pré-natal. Em 2003, a transmissão de mãe para filho respondeu por 82,3% dos casos de infecção por HIV em crianças no país. A Fiocruz pretende adaptar a tecnologia do teste rápido para criar exames de diagnóstico de moléstias como a dengue, a leptospirose e a leishmaniose.»

■ De carona no foguete indiano Técnicos da Agência Espacial Brasileira vão a Nova Delhi neste mês negociar o uso de foguetes da índia no envio de satélites nacionais ao espaço. O primeiro fruto dessa parceria deve ser o lançamento, em 2006, do satélite para estudo da atmosfera equatorial, o Equars, desenvolvido pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) com o objetivo de. estudaí"é mapear as bolhas de plasma, estruturas ionosféricas que interferem n^as telecomunicações no Hemisfério Sul. A índia também poderia ajudar a lançar outros satélites científicos, como o Mirax (Satélite de Monitoramento de Raios X) e o FBM (Satélite Franco-Brasileiro). •


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Integração do Centro com o Sul

O Mato Grosso do Sul firmou uma parceria com os três estados da Região Sul para realizar projetos comuns na área de Ciência e Tecnologia. O setor que terá mais atenção é o de agronegócios - locomotiva econômica do Mato Grosso do Sul -mas a parceria também prevê pesquisas nas áreas de saúde, meio ambiente, recursos hídricos, clima e biotecnologia. "A cooperação vai criar instrumentos para estimular a integração dos pesquisadores, a troca de informações e a criação de acordos bi ou multilaterais entre instituições dos estados", diz Rafael Geraldo de Oliveira, diretor-presidente da Fundação de Apoio ao Desenvolvimento do Ensino, Ciência e Tecnologia do Mato Grosso do Sul (Fundect). A parceria em projetos de Ciência e Tecnologia é decorrência natural da integração do Mato Grosso do Sul, em 1992, ao Conselho de Desenvolvimento e Integração Sul (Codesul), fórum que há quatro décadas promove o desenvolvimento da região. A primeira reunião para deba-

ter a parceria científica deve acontecer em março, paralelamente a um encontro do Codesul. •

■ A escolha do novo conselheiro A FAPESP convida institutos de pesquisa e de ensino superior do Estado de São Paulo a participar da escolha de um novo representante no Conselho Superior da Fundação. A vaga estará aberta a partir de 9 de julho, quando termina o mandato do conselheiro Paulo Eduardo de Abreu Machado. As instituições de ensino superior e de pesquisa em funcionamento no estado, oficiais ou particulares, poderão indicar candidatos ao cargo. A eleição está marcada para ocorrer entre os dias 24 e 28 de maio, por via eletrônica. Os,;nomes dos três candidatos mais votados serão encaminhados ao governador do estado, que fará a escolha do novo conselheiro da FAPESP. O credenciamento das instituições que desejam participar do processo pode ser feito até 19 de março, no endereço eletrônico www. fapesp.br/eleicaoCS. •

Prêmio no México O físico Constantino Tsallis, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), foi agraciado com o Prêmio México de Ciência e Tecnologia, concedido pelo governo mexicano a profissionais que contribuem para o conhecimento científico universal. O prêmio - diploma, medalha e R$ 115 mil - será entregue pelo presidente Vicente Fox. A cada ano é escolhido um único nome entre diversas áreas do conhecimento, da Física às Ciências Sociais, e entre candidatos da América Latina, Caribe, Portugal ' e Espanha. Desde que a premiação foi, instituída, em 1990, apenas três físicos foram contemplados. Todos são brasileiros e pertencem aos quadros " do CBPF. Além de Tsallis, já venceram Juan José Giambiagi ç José Leite Lopes. Tsallis desenvolveu uma nova equação matemática paqí calcular

casos complexos de entropia, a função que mede a desordem de um sistema. O estudo tem merecido capítulos em livros de pós-graduação e foi aplicado até para estudar turbulências que ocorrem em vôos. Tsallis nasceu em Atenas, em 1943. Aos 4 anos emigrou com a família da Grécia para o Brasil e, logo em; seguida, para a Argentina. Depois de uma passagem pela Europa, retornou ao Brasil em 1975. Chefiou diversos departamentos no CBPF, publicou mais de 30G trabalhos e ministrou cursos regulares de graduação e pós-graduação no Brasil, França, Argentina e Estados Unidos. Entre os vários livros que escreveu ou editou está Nonextensive entropy: Interdisciplinary applications, com Murray Gell-Mann, ganhador do Nobel de Física de 1969. •


CAPA POLÍTICA

CIENTíFICA E TECNOLóGICA

BIOSSEGURANÇA

Projeto restringe poder da CTNBio, proíbe clonagem terapêutica e mobiliza cientistas

CLAUDIA IZIQUE

O projeto de Lei de Biossegurança n° 2.401, de 2003, que deveria substituir a legislação atual e definir regras claras para a pesquisa e comercialização de organismos geneticamente modificados (OGMs), incendiou o debate sobre transgênicos no país. O texto aprovado na Câmara dos Deputados, no dia 5 de fevereiro, que agora tramita no Senado Federal, cria o Sistema de Informação de Biossegurança para a gestão das atividades que envolvam transgênicos e o Fundo de Incentivo ao Desenvolvimento da Biotecnologia para Agricultores Familiares, destinado a financiar projetos na área de biotecnologia e engenharia genética implementados por instituições públicas, que aprimoram a legislação atual. Mas é polêmico em pelo menos dois aspectos: atribui a um conselho de ministros a palavra final sobre a comercialização de organismos geneticamente modificados e proíbe as pesquisas com células-tronco para fins terapêuticos. Em relação ao primeiro aspecto controverso, os cientistas querem que a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) seja a única e definitiva instância para avaliar tanto as atividades de pesquisa como a comercialização dos transgênicos. "É fundamental para o desenvolvimento nacional que as pesquisas oriundas das instituições públicas possam ser rapidamente incorporadas ao nosso setor produtivo, sob pena de a sociedade 16 ■ MARÇO DE 2004 ■ PESUUISA FAPESP 97

Projeto de lei de Biossegurança proíbe a clonagem terapêutica com células-tronco embrionárias


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Pesquisadores retiram o núcleo celular de óvulo não fecundado..

brasileira não poder usufruir dos investimentos em ciência e tecnologia no Brasil", dizem os representantes de 13 entidades científicas, entre elas a Academia Brasileira de Ciências, em carta encaminhada aos senadores no dia 18 de fevereiro. O Conselho Superior da FAPESP também se manifestou. Em documento entregue ao presidente do Senado, José Sarney, pelo diretor-científico, José Fernando Perez, a Fundação "apela aos parlamentares para que ouçam os representantes acreditados da comunidade científica no sentido de transformar o texto da lei em instrumento de progresso e independência tecnológica, evitando assim danos irreparáveis aos mecanismos de geração de conhecimento e de riqueza". (ver íntegra na página 20). A comunidade científica reagiu também negativamente à proibição das pes-

quisas com células-tronco para fins terapêuticos. "Os textos do projeto de lei que tratam da pesquisa com célulastronco embrionárias são particularmente alarmantes quanto aos efeitos na saúde pública", afirma o documento elaborado pelas 13 entidades. "A terapia celular com células-tronco embrionárias pode representar a esperança no tratamento de mais de 5 milhões de pessoas, a maioria crianças e jovens. Não se trata de produzir embriões para esta finalidade, mas de utilizar aqueles que são descartados em clínicas de fertilização." As entidades pedem que a CTNBio também deva ter legimidade para decidir em última instância sobre esta matéria. Embate legal - O Brasil conta com uma Lei de Biossegurança (n° 8.974), desde 1996, que atribui competência à CTNBio - criada por medida provisória, em agosto de 2001, e vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia -,

para estabelecer normas técnicas e emitir pareceres conclusivos em relação à biossegurança. A competência da CTNBio para emitir pareceres sobre segurança ambiental, no entanto, tem sido contestada por meio de ações civis públicas com base na Lei Ambiental que, conforme se argumenta, confere esta autoridade ao Ministério do Meio Ambiente. Por conta deste embate legal, foi suspenso o parecer da CTNBio, de 1998, que dispensava a soja geneticamente modificada, da Monsanto, do Estudo de Impacto Ambiental, antes da liberação do plantio. Essa batalha, ainda inconclusa, criou um hiato jurídico que imobilizou as atividades de pesquisa e obrigou a edição de três medidas provisórias para autorizar a colheita da safra da soja da Monsanto, no Rio Grande do Sul. O governo então decidiu constituir uma comissão formada por nove ministérios e capitaneada pela Casa Civil para analisar a questão da biossegurança e for-

Células progenitoras As células-tronco são células progenitoras que mantêm a capacidade de diferenciar os inúmeros tecidos do corpo humano, explica Mayana Zatz. Podem ser obtidas pela técnica de transferência de núcleo ou clonagem terapêutica - como acaba de ser anunciado pelo grupo de cientistas coreanos (ver página 22) - de cordão umbilical ou de embriões. Por meio da clonagem terapêutica ou transferência de núcleo, detalha Mayana, é possível transferir o núcleo de uma célula de uma pessoa - da pele, por exemplo - para um óvulo sem

18 ■ MARÇO DE 2004 ■ PESCIUISA FAPESP 97

núcleo, esse novo óvulo, em tese, se tornaria capaz de produzir qualquer tecido daquela pessoa em laboratório, sem risco de rejeição. A clonagem terapêutica permitiria, por exemplo, reconstituir a medula de um paraplégico ou substituir o tecido cardíaco de quem sofreu um infarto. Essa técnica, no entanto, não poderia ser utilizada em portadores de doenças genéticas, já que todas as células teriam o mesmo defeito. Daí a importância das pesquisas com células-tronco. Existem células-tronco em vários tecidos de crianças e adultos, mas em

pequena quantidade. "Não sabemos ainda em que tecidos elas são capazes de se diferenciar", observa Mayana. O sangue do cordão umbilical também é rico em células-tronco, mas os cientistas tampouco sabem qual o potencial de diferenciação destas células em distintos tecidos. "Se as pesquisas mostrarem que células-tronco de cordão umbilical serão capazes de regenerar tecidos ou órgãos, esta será, sem dúvida, a mais importante fonte para a sua obtenção", diz Mayana. Neste caso, seria necessário observar a compatibilidade entre doador e re-


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... e injetam material genético extraído de célula adulta para obter células-tronco

mular uma nova lei que pusesse fim à polêmica sobre transgênicos. O projeto de lei do Executivo foi enviado à Câmara dos Deputados em outubro do ano passado. Ao longo de três meses, uma comissão especial - que teve como relator o deputado Aldo Rebelo (PCdoB - SP) -, acompanhada de perto por pesquisadores e representantes de associações científicas, modificou o texto original. Às vésperas da votação, Rebelo assumiu o Ministério da Coordenação Política e Assuntos Institucionais e foi substituído na relatoria pelo deputado Renildo Calheiros (PCdoB PE), que, sob pressão de ambientalistas e da bancada evangélica, modificou o projeto. "O resultado foi um Frankenstein jurídico", avalia Carlos Vogt, presidente da FAPESP. O relatório de Rebelo colocava a pesquisa sob a tutela da CTNBio e atribuía a um Conselho Nacional de Biossegurança - formada por 15 ministros - a palavra final sobre a oportunidade

ceptor e criar um banco público de cordão umbilical. Se estas pesquisas não derem o resultado esperado, a alternativa será o uso de célulastronco embrionárias que, de acordo com Mayana, são certamente pluripotentes, ou seja, têm capacidade de diferenciar-se em qualquer um dos tecidos humanos. Podem ser obtidas por meio de transferência de núcleo - como demonstraram os coreanos - ou a partir de embriões de má qualidade, que não teriam potencial para gerar um vida. "É fundamental que a nossa legislação aprove esse tipo de pesquisa porque elas poderão, no futuro, salvar inúmeras vidas."

econômica da comercialização dos transgênicos. Tanto no caso da pesquisa como na comercialização, caberia à CTNBio a avaliação de riscos e a identificação das atividades potencialmente danosas ao meio ambiente e que poderiam causar riscos à saúde humana. Calheiros modificou o texto para "valorizar o papel técnico" da comissão, como ele justifica em seu relatório. No projeto aprovado, fica claro que a CTNBio mantém autonomia para decidir sobre os projetos de pesquisa, cabendo ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama) licenciar as atividades poluidoras identificadas pela comissão. No artigo 11, no inciso XXIII, o projeto afirma que, "em caso de parecer técnico prévio conclusivo favorável sobre a biossegurança no âmbito da atividade de pesquisa, a CTNBio remeterá o processo respectivo aos órgãos e entidades referidos no artigo 13, para o exercício de suas atribuições". O artigo 13 define as funções e atribuições dos órgãos e entidades de registro e fiscalização vinculados ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento; Ministério da Saúde; Ministério do Meio Ambiente; Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca. Mas, no que se refere à comercialização, o texto não é tão esclarecedor. No mesmo artigo, no inciso XXIII, parágrafo 4, o projeto prevê que "em caso de parecer técnico conclusivo favorável sobre a biossegurança no âmbito da atividade de uso comercial, a CTNBio remeterá cópia do parecer ao Conselho Nacional de Biossegurança, para o exercício de suas atribuições". E, no artigo 13, parágrafo 1, o projeto diz que, "após manifestação favorável do Conselho Nacional de Biossegurança", caberá em decorrência de análise específica e decisão pertinente, ao órgão competente do Mi-

nistério do Meio Ambiente, no caso o Ibama, licenciar e emitir autorização e registros, fiscalizar e monitorar produtos e atividades que envolvam OGMs e seus derivados a serem liberados no ecossistema" no prazo máximo de 120 dias. Este período, no entanto, será suspenso "durante a elaboração dos estudos ou preparação de esclarecimentos pelo empreendedor". Esta falta de clareza em relação à competência da CNTBio, na visão de cientistas, faz supor que o parecer da comissão será definitivo apenas quando for contrário à liberação dos OGMs. Se favorável, o parecer terá que ser submetido ao conselho ministerial, para ratificação ou não. O texto também "permite interpretar" que a avaliação do risco ambiental e para a saúde realizada pela Comissão Técnica poderá não ser acolhida pelo Ibama ou pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), de acordo com Reginaldo Minaré, advogado especialista em biotecnologia. "O Ibama ou a Anvisa poderão, cada um no seu campo de atuação, exigir mais estudos sobre a biossegurança da atividade ou produto oriundo da engenharia genética, pois, de acordo com o texto, essas exigências serão feitas após a manifestação favorável do conselho ministerial", ele prevê. Para o Ministério do Meio Ambiente (MMA), não há nenhuma dúvida em relação ao projeto. "O texto aprovado dá ao Ibama poderes para questionar no Conselho Nacional de Biossegurança pareceres da CTNBio para a comercialização dos transgênicos. O instituto poderá pedir Estudos de Impacto Ambiental quando considerar que o plantio para a comercialização possa trazer prejuízos ao meio ambiente", informa a assessoPESQUISA FAPESP 97 ■ MARÇO DE 2004 ■ 19


ria do MMA no site www.mma.gov.br. No mesmo site, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, comemorou os resultados. "Esse não foi um trabalho exclusivo do Ministério do Meio Ambiente. Tudo foi coordenado pela Casa Civil, de forma que foi possível chegar a um projeto de lei adequado, conforme entendimento do governo, da maioria dos parlamentares e de boa parte da sociedade civil e da comunidade científica." A julgar pela reação da comunidade científica, a "maioria" não inclui boa parte dos pesquisadores. "Esse resultado foi uma surpresa", diz Aluízio Borem, da Academia Brasileira de Ciência e que também integra a Sociedade Brasileira de Genética e a Sociedade Brasileira de Biotecnologia. Desde 1998, os pesquisadores aguardam o final do confronto entre o Ministério do Meio Ambiente e a CTNBio, para dar continuidade a projetos estratégicos como, por exemplo, o do feijão resistente a vírus desenvolvido pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), que beneficiaria, principalmente, os pequenos produtores. "O atraso foi irreparável", lamenta Elíbio Rech, pesquisador da Embrapa. A expectativa em relação a uma nova lei era grande. Mas, apesar de o texto dar tratamento diferenciado à pesquisa científica - um antigo pleito dos pesquisadores -, transfere os obstáculos legais para a comercialização, neutralizando eventuais avanços obtidos com a pesquisa, já que impedirá a transferência de tecnologia para o agronegócio. "O Ibama não tem competência para essa análise.

Oito embriões humanos clonados pelos pesquisadores sul-coreanos

Eles são ecólogos e não biólogos moleculares. Prova disso é que o instituto pediu um levantamento socioeconômico da população estabelecida num raio de 3 quilômetros para que a Embrapa pudesse testar o plantio do feijão numa área de 10 metros quadrados", afirma Borem. "Estamos diante de um retrocesso com graves conseqüências para o agronegócios. Se a pesquisa genética não puder ser transferida ao setor produtivo, o país não vai avançar", acrescenta Marcelo Menossi, do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas.

Competência estratégica - "O Brasil adquiriu competência nessa área estratégica de pesquisa que tem grande potencial para gerar oportunidades socioeconômicas. O governo precisa de uma legislação não inibidora deste projeto, que é fundamental para o desenvolvimento de novas empresas", comenta Perez, da FAPESP. A perspectiva de enfrentar novos obstáculos para o licenciamento comercial de produtos preocupa também as empresas. A Cooperativa dos Produtores de Cana, Açúcar e Álcool de São

Carta da FAPESP aos senadores .ei de Biossegurança Obstáculos à pesquisa científica e tecnológica

O Conselho Superior da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), reunido em 11/02/04, manifesta grande preocupação com os termos da Lei de Biossegurança recentemente aprovada pela Câmara dos Deputados e presentemente em discussão no Senado da República. A lei, nos termos que foi apro-

20 ■ MARÇO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 97

vada, criará sérios obstáculos à pesquisa científica e ao desenvolvimento tecnológico em um setor no qual a transferência de tecnologia, da descoberta à sua aplicação, é extremamente rápida. Nessa área, de importância estratégica para o desenvolvimento econômico e social, bem como para a soberania nacional, o Brasil conquistou competência equivalente à dos países mais adiantados, competência que pode ser revertida em grande benefício para a população nas áreas de

alimentos, agropecuária e saúde. O Conselho Superior da FAPESP apela aos senhores parlamentares para que ouçam os representantes acreditados da comunidade científica no sentido de transformar o texto da lei em instrumento de progresso e independência tecnológica, evitando assim danos irreparáveis aos mecanismos de geração de conhecimento e de riqueza. São Paulo, 11 de fevereiro de 2004 CARLOS VOGT - Presidente


Embrião humano clonado antes de atingir estágio que permite a extração de células-tronco

Paulo (Coopersucar), por exemplo, já testou em campo, com o aval da CTNBio, cana-de-açúcar resistente aos herbicidas glifosato, em parceria com a Monsanto, e ao Bt, junto com a Syngenta. "Temos produtos que poderiam ser comercializados, mas estamos aguardando uma definição legal até hoje", diz Eugênio Cérsar Ulian, gestor de biotecnologia da Coopersucar. Diante da nova lei, a empresa poderá interromper estudo com um gene da cana identificado como responsável pelo seu florescimento, implementado em parceria com a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP), em Ribeirão Preto, com o objetivo de aumentar a produtividade das lavouras. "Nenhuma empresa pesquisa por pesquisar", justifica Ulian. Os representantes da comunidade científica propõem ao Senado que alterem o texto, credenciando a CTNBio como a "única e definitiva instância" para julgar a natureza científica da matéria e que seus pareceres pautem não apenas as atividades de pesquisa, mas também a comercialização. O Ministério do Meio Ambiente, eles argumentam, poderá se manifestar sobre o assunto, no âmbito da própria comissão que será formada por 27 doutores, 12 dos quais "especialistas de notório saber científico e técnico" e 15

representantes dos ministérios e entidades civis. Na avaliação de Esper Cavalheiro, que presidiu o Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico (CNPq) e CTNBio, a comissão "sempre teve condições" de avaliar se uma determinada manipulação pode causar danos à saúde ou ao meio ambiente. "Quando afirmam que os estudos de impacto ambiental não podem ser julgados por cientistas eu indago: Então eles devem ser julgados por quem? Por que os cientistas deveriam submeter seu parecer a outros cientistas que não estão na comissão?", ele diz. Outro ponto polêmico do projeto diz respeito à proibição das pesquisas com células-tronco embrionárias. A bancada evangélica na Câmara, formada por 55 deputados, chegou a ameaçar votar contra o projeto caso não fosse vetada a manipulação de embriões humanos para fim de clonagem terapêutica, prevista no relatório de Rebelo. Ganharam apoio de parlamentares católicos, ampliando o quorum para 120 deputados e até da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que enviou representantes ao Congresso. O resultado está no artigo 5o do projeto: "É vedado:

qualquer procedimento de engenharia genética em organismos vivos ou o manejo in vitro de ADN/ARN natural ou recombinante, realizado em desacordo com as normas previstas nesta lei; a manipulação genética em células germinais humanas e embriões humanos; clonagem humana para fins reprodutivos; produção de embriões humanos destinados a servir como material biológico disponível; intervenção em material genético humano in vivo, exceto, se aprovado pelos órgãos competentes, para fins de: realização de procedimento com finalidade de diagnóstico, prevenção e tratamento de doenças e agravos, e clonagem terapêutica com células pluripotentes. "A existência como ser humano começa com a fusão do óvulo com o espermatozóide. O embrião já é uma vida. Trata-se de um princípio religioso", justifica o deputado Henrique Afonso, da Frente Parlamentar Evangélica. Para Marco Antônio Zago, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da USP, e coordenador do Centro de Terapia Celular, um dos dez Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) mantidos pela FAPESP, a preocupação da Câmara está equivocada. "O debate deveria ser o que se faz com embriões humanos congelados em clínicas", sugere. Na avaliação de Mayana Zatz, coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano - outro Cepid - houve uma confusão entre os conceitos de clonagem reprodutiva, clonagem terapêutica e terapia celular com célulastronco. "A clonagem reprodutiva que seria a tentativa de produzir uma cópia de um indivíduo deve mesmo ser condenada e proibida", ela ressalva. Mas a clonagem terapêutica, uma técnica de transferência de núcleo celular, é apenas um dos métodos para se obter células-tronco para terapia celular ou medicina regenerativa. O resultado desta "confusão" poderá trazer sérios prejuízos para a pesquisa e colocar o Brasil na dependência de importar tecnologia de países que autorizam essa investigação. "Teremos que comprar essa célula lá fora e perder a chance de treinar pessoas que pudessem desenvolver essas linhagens. É um marco de limitação do progresso da ciência no país", prevê Lygia da Veiga Pereira, do Centro de Estudos do Genoma Humano da USP. • PESQUISA FAPESP 97 ■ MARÇO DE 2004 ■ 21


CAPA BIOSSEGURANÇA

Novidade do Oriente Sul-coreanos extraem células-tronco de embrião humano e reabrem polêmica MARCOS PIVETTA

Na era digital, algumas publicações científicas costumam antecipar em suas páginas na Internet uma parte do conteúdo que, em questão de dias, aparecerá em sua tradicional edição impressa. Fazem isso quando julgam ter em mãos um trabalho pioneiro, potencialmente bombástico, de interesse imediato para seus leitores, talvez até para o público em geral. Em 12 de fevereiro, a revista científica norte-americana Science, uma das mais conceituadas entre os acadêmicos, recorreu a esse expediente. Enquanto o Brasil debatia o novo projeto de Lei de Biossegurança que, ao regulamentar o cultivo de organismos transgênicos, defende a proibição de qualquer forma de clonagem humana, inclusive a empregada em experimentos com célulastronco retiradas de embriões, ramo de pesquisa que busca novos tratamentos para uma série de doenças -, o site do periódico forneceu um importante elemento para essa discussão. A Science publicou um artigo assinado por 14 pesquisadores sul-coreanos e um ocidental (um argentino radicado nos Estados Unidos), no qual são descritos os procedimentos de uma inédita e bem-sucedida empreitada: a clonagem, para fins de pesquisa na área terapêutica, de 30 embriões humanos, dos quais foi extraída uma linhagem de células-tronco pluripotentes. Para que servem essas células-tronco? Uma resposta curta e simples: elas são, teorica22 ■ MARÇO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 97

Células-tronco obtidas de embriões humanos clonados: pesquisa terapêutica

mente, uma "fábrica de tecidos humanos". Isso porque são células primordiais, indiferenciadas, que podem ser cultivadas por longos períodos em laboratório e, por meio de indutores químicos apropriados, se transformar em qualquer tipo de célula especializada do organismo (neurônios, tecido cardíaco, sangue etc). Tal grau de plasticidade parece ser exclusivo das células-tronco retiradas de embriões e ainda não foi plenamente documentado em célulastronco extraídas de adultos ou de outros tipos de tecidos (cordão umbilical). Daí todo o interesse da pesquisa médica em encontrar formas de obter células-tronco de embriões. Em seu experimento, os cientistas sul-coreanos usaram uma técnica chamada de transferência nuclear de célula somática. Primeiro, retiraram o núcleo

celular - depositário das informações genéticas - de óvulos obtidos de 16 voluntárias, que participaram do estudo sem nenhum tipo de remuneração. Em seguida, pegaram o DNA contido em células adultas dessas mesmas mulheres e o injetaram nos óvulos cujo material genético havia sido extraído. Tais procedimentos resultaram na criação de embriões com o mesmo DNA das mulheres adultas, clones das doadoras. Por fim, os pesquisadores cultivaram os embriões clonados e deles extraíram uma linhagem de célulastronco. A equipe oriental, que garantiu não ter implantado nenhuma cópia dos embriões em mulheres, foi comprovadamente a primeira a obter sucesso em uma experiência desse tipo. "Nosso objetivo nunca foi criar clones de bebês humanos, mas encontrar as causas de doenças incuráveis e oferecer uma nova janela para (se descobrir) curas", disse o veterinário Woo Suk Hwang, da Universidade Nacional de Seul, um dos líderes da equipe sul-coreana, que tem larga experiência em clonar vacas e porcos. "Pedimos a todas as nações que façam rapidamente leis para evitar a clonagem humana", afirmou o obstetra Shin Yong Moon, outro pesquisador-chave do experimento sul-coreano. O feito reavivou o debate clonagem terapêutica versus clonagem reprodutiva. Em vários países, onde os estudos com células-tronco de embriões são proibidos ou enfrentam graves res-


mana; as técnicas usadas para clonagem terapêutica são basicamente as mesmas empregadas na clonagem reprodutiva e abrem caminho para que a criação de cópias genéticas dos seres humanos se torne uma realidade no futuro. "A pesquisa com células-tronco é importante, mas esse tipo de tecido não deve vir de embriões humanos", opinou o papa João Paulo II. Os defensores da clonagem terapêutica também têm seus argumentos (nenhum cientista sério apoia a clonagem reprodutiva de seres humanos). Dizem que não há consenso sobre a visão dos religiosos de que embriões no estágio de blastocisto já são um ser vivo e afirmam não ser antiético continuar com as pesquisas. Sul-coreanos Moon (acima) e Hwang, da Universidade Nacional de Seul: contra a clonagem reprodutiva

trições legais ou éticas, setores da sociedade favoráveis a esse tipo de pesquisa, em especial o meio científico, saíram em defesa de seu ponto de vista, pressionando os governos a adotar uma legislação mais liberal sobre o tema. Em compensação, os segmentos da população que são contra toda e qualquer forma de clonagem também viram no artigo da Science um bom motivo para vir a público e exigir leis ainda mais restritivas. Foi assim no Brasil, que já estava mergulhado nesse debate em razão do projeto de Lei de Biossegurança, e também em outros países, como os Estados Unidos, que, sob a presidência de George Bush, contam com uma legislação bastante restritiva à pesquisa com células-tronco de embriões - uma proibição velada, na verdade. Sem verba pública - Desde agosto de 2001, Bush vetou a saída de dinheiro público para o financiamento de pesquisas com novas linhagens de célulastronco. Só há verba para projetos com linhagens que já existiam antes da tomada dessa decisão. Como havia poucas linhagens, os estudos nesse campo praticamente pararam nos EUA. O artigo na Science, com a notícia da bemsucedida experiência de clonagem terapêutica, talvez leve as autoridades de Washington a radicalizar ainda mais a sua posição. "A era do clone humano aparentemente chegou; hoje blastocis-

*

tos clonados para a pesquisa, amanhã blastocistos clonados para fazer bebês", disse Leon R. Kass, presidente do Conselho de Bioética do governo norte-americano, defensor da adoção de leis ainda mais severas para regular essa questão, como a simples proibição de todo tipo de clonagem de embriões humanos. O embrião começa a produzir células-tronco ao atingir o estágio de blastocisto. Nesse momento, não passa de uma pequena bola com cerca de 100 células e dele se podem extrair as células-tronco necessárias para a pesquisa médica. Esse procedimento é alvo de duas críticas contra a clonagem, inclusive a terapêutica: a extração de células-tronco provoca a morte do embrião, que, na visão dos partidários dessa posição, já seria uma vida hu-

Há quem, como o pesquisador britânico Ian Wilmut, que acha, sim, imoral não prosseguir com os estudos com células-tronco embrionárias. Isso porque essas células primordiais podem, daqui a alguns anos, revolucionar uma série de tratamentos na medicina, como o transplante de órgãos, o tratamento de doenças crônicas (diabetes, mal de Alzheimer, Parkinson) e a produção de drogas mais compatíveis com o perfil genético dos doentes. Wilmut é o pesquisador do Instituto Roslin, da Escócia, que, em 1996, produziu o primeiro clone de um animal no mundo, a ovelha Dolly, morta no início do ano passado. O Reino Unido, aliás, tem uma das leis mais liberais a respeito da clonagem terapêutica: permite, por meio de licenças expedidas pela Autoridade em Embriologia e Fertilização Humana, que se usem embriões humanos descartados pelas clínicas de reprodução artificial para os experimentos com células-tronco. Também é autorizada a criação de embriões especificamente para fins de pesquisa. A Suécia tem legislação semelhante à britânica. Em nível continental, a União Européia também tem tentado regulamentar a questão, mas ainda não se chegou a um consenso, visto que há estados mais liberais e outros mais conservadores a respeito das pesquisas com células-tronco retiradas de embriões. Como se vê, o tema rende controvérsias em toda parte, não apenas no Brasil, que prepara sua Lei de Biossegurança. • PESQUISA FAPESP 97 ■ MARÇO DE 2004 ■ 23


I POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA INDICADORES

Saldo positivo Cresce bastante o número de publicações brasileiras sobre genômica O avanço da pesquisa genômica teve um impacto positivo na evolução dos indicadores da produção científica nacional. Entre 1998 e 2003, o número de artigos sobre o tema, publicados por pesquisadores brasileiros em periódicos científicos internacionais indexados, cresceu 72,4%. Essa evolução, em termos percentuais, só foi comparável ao desempenho dos Estados Unidos e Inglaterra, com larga tradição na investigação sobre o genoma. Na Itália, França e Japão, por exemplo, o ritmo de crescimento das publicações foi muito menor: cresceu entre 37,6% e 44,6%. Essa evolução foi observada por Rogério Meneghini, coordenador de pesquisa do Laboratório Nacional Luz Síncroton (LNLS) -, e um estudioso da cienciometria - a partir da análise comparativa do desempenho de 11 países no Science Citation Index (ISI) da base de dados do Institute for Scientific Information, divulgada pelo National Science Indicators. A perfomance dos brasileiros supreendeu: em 1998, o Brasil ocupava a última colocação em publicações sobre genômica no ranking desses países. Na época, o destaque era a França. Ele observa, ainda, que a maior parte das publicações brasileiras está relacionada às pesquisas desenvolvidas pela Organização para Seqüenciamento e Análise de Nucleotídeos (Onsa), patrocinada pela FAPESP. Em números absolutos, os Estados Unidos mantêm larga vantagem em relação aos demais países, com mais de 20 mil artigos sobre genômica publicados no ano passado.

A expectativa é de que o crescimento do número de publicações também se reflita no número de citações, um outro indicador geralmente utilizado para medir o vigor da atividade de pesquisa de um país. A conclusão do seqüenciamento da bactéria Xylella fastidiosa, por exemplo, publicada da revista Nature, em julho de 2000, já soma 200 citações, segunDesempenho de quatro países do contabilizou Meneghini. "Esse é um número significativo, dado o curto espaço de tempo", ele ressalva. E o seqüenciamento e a comparação dos genomas de outras duas bactérias, a Xanthomonas citri e a Xanthomonas campestri, também publicados pela Nature, em maio de 2002, tiveram grande repercussão entre os pesquisadores e já contam com 60 citações. •

Inglaterra, Japão e Alemanha disputam a terceira posição, com algo em torno de 4.500 artigos publicados; seguidos pela França, com 3.887; Itália, com 1.565: e Brasil, com 508. Mas o país dá fortes sinais de ter consolidado competência na investigação genômica, conforme analisa Meneghini.

Evolução das publicações sobre genômica no Brasil e em dez países 1998-2003 % de cresc. Total de artigos no período 2003

País

1998 1999 2000 2001 2002 2003 (porcentagem sobre o total da produção científica do país)

Argentina

0,464

0,501

0,633

0,626

0,573

0,581

25,2

179

Brasil

0,446

0,425

0,575

0,665

0,742

0,769

72,4

508

Inglaterra

0,663

0,752

0,834

0,939

1,061

1,128

70,1

4.867

França

0,916

0,960

0,990

1,191

1,311

1,325

44,6

3.887

Alemanha

0,711

0,797

0,846

0,891

1,028

1,083

52,3

4.461

0,625

0,684

0,706

0,728

37,6

1.565 4.597

Itália

0,529

0,682

Japão

0,758

0,831

0,825

0,942

1,023

1,093

44,2

México

0,486

0,395

0,661

0,497

0,774

0,744

53,1

178

Portugal

0,724

0,628

0,722

0,738

0,558

0,764

38,4

166

Espanha

0,617

0,685

0,707

0,702

0,814

0,907

47,0

1.240

EUA

0,662

0,723

0,787

0,934

0,983

1,157

74,7

20.525

Fonte: Rogério Meneghini, com informações da ISI

PESQUISA FAPESP 97 ■ MARÇO DE 2004 ■ 25


POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

ACORDO

Quem dá mais? Compra de caças supersônicos no exterior terá que beneficiar empresas nacionais

Força Aérea Francesa comprou 50 Tucanos em acordo de offset

Em abril, o Ministério da Defesa promete anunciar o resultado da concorrência para a compra de 12 a 24 caças supersônicos para a Força Aérea Brasileira (FAB), um negócio de US$ 700 milhões. Os custos do programa conhecido como F-X, podem atingir US$ 1 bilhão, incluindo os custos de manutenção, infra-estrutura de solo e armamentos. Cinco consórcios estão na disputa. O vencedor se comprometerá a transferir tecnologia à indústria nacional, por meio de acordos de compensação, conhecidos como acordos de offset. O futuro contrato, cujos termos são mantidos em sigilo pela Defesa, poderá prever parcerias com empresas nacionais para o fornecimento de componentes dos caças, recursos para investimentos de risco, treinamento de recursos humanos, entre outros. O ministro da Defesa, José Viegas, já anunciou que empresas brasileiras farão parceria com o consórcio vencedor. "Um dos critérios para a escolha do fornecedor dos caças é a contrapartida", diz Júlio César Imenes, chefe do Departamento de Fomento, Análise e Acompanhamen26 ■ MARÇO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 97

to Técnico da Área de Inovação para a Competitividade Industrial da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). "Há interesse de que as empresas brasileiras se capacitem para nacionalizar tecnologia." A participação de empresas em acordos de offset exige que elas estejam preparadas para aproveitar, efetivamente, a tecnologia a ser compartilhada. "A ampliação das plantas, a aquisição de equipamentos e o desenvolvimento de atividades de pesquisa e desenvolvimento para adaptação e aprimoramento de tecnologias são exemplos de obrigações que podem ser exigidas das empresas brasileiras beneficiárias do acordo", afirma Imenes. A Finep dispõe de recursos reembolsáveis para o financiamento das atividades de P&D das empresas. Também será possível contar com recursos não reembolsáveis, destinados a universidades e institutos de pesquisas, que venham a participar de projetos cooperativos com

empresas beneficiárias de cláusulas de compensação, por meio de intercâmbios científicos, por exemplo. "Mas, para isso, será necessária a sensibilização dos comitês gestores dos diversos fundos setoriais, o Fundo de Telecomunicações e o Fundo Verde-Amarelo", ele observa. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) também poderá apoiar as empresas que participarem de acordos de offset. Essa mesma modalidade de contrato deverá ser utilizada em qualquer compra governamental feita por concorrência no exterior. Historicamente, o offset é prática comum na Aeronáutica. Permitiu a obtenção de novas tecnologias, investimentos na indústria aeroespacial e outros benefícios em capacitação e logística. Quando a Varig comprou da McDonnel Douglas aeronaves MD-11, a Embraer foi beneficiada com contratos de fabricação de 300 conjuntos de flaps, treinamento e transferência de tecnologia, além do financiamento dos aviões EMB-120 Brasília para o mercado norte-americano. O Exército brasileiro também firmou acordo de offset quando comprou helicópteros da


Contrato de modernização dos F-5 prevê compensação

A.erospatiale, que resultou na aquisição de 50 aeronaves Tucano pela Força Aérea Francesa, além de outras transações em benefício do próprio Exército. Atualmente, os projetos de modernização das aeronaves F-5BR, aeronaves de transportes CL-X, aquisição de sistemas e sensores e a modernização das aeronaves A-1M, entre outros projetos em andamento, também estão sendo realizados por meio de contratos que exigem compensação tecnológica. Estima-se que aproximadamente 40% do comércio mundial de bens e serviços esteja relacionado a contratos com cláusulas de compensação. No Brasil, o offset é obrigatório, desde 1992, nas compras do setor aeroespacial com valor superior a US$ 1 milhão. Em 2002, o Ministério da Defesa estabeleceu Política e Diretrizes de Compensação Comercial, Industrial e Tecnológica, por meio da Portaria Normativa n° 764/MD, de 27 de dezembro. Nos demais setores, no entanto, essa prática ainda é pouco conhecida. O Ministério das Relações Exteriores tem procurado estimular o debate em torno da prática de offset, por meio de seminários e grupos de trabalho. Em fevereiro último, o Centro de Gestão Estratégica do Conhecimento em

Ciência e Tecnologia (CGECon) publicou o livro Panorama da prática de offset no Brasil, que reúne artigos de 22 especialistas nesta modalidade de negócio. "Desde meados do ano passado, também estamos debatendo essa política com as embaixadas brasileiras no exterior para troca de informações", diz Ronan Coura Ivo, da equipe do centro. O CGECon foi criado pelo Itamaraty no início do ano passado, com o objetivo de reestruturar sistemas de informações em Ciência e Tecnologia no exterior. Atua como um roteador de conhecimentos por meio da operação de comunidades virtuais integradas por especialistas. Uma dessas comunidades, da qual participam representantes do Ministério da Defesa, debate e analisa modelos de offset. Esses especialistas têm a tarefa de capacitar diplomatas na formulação de acordos de compensação. Fatores multiplicadores - Os acordos de compensação comercial, industrial e tecnológicos foram criados logo após a Segunda Guerra Mundial para apoiar a reconstrução da Europa e do Japão "e garantir a hegemonia e a supremacia militar e econômica dos Estados Unidos como nação líder do novo contexto político e estratégico criado com a divisão do mundo

|

"

em eixos Leste e Oeste", contam o tenente-coronel Ancelmo Modesti e o brigadeiro-do-ar Aprígio Eduardo de Moura Azevedo, co-autores de um dos capítulos do livro publicado pelo Itamaraty. No Brasil, a primeira operação de offset ocorreu no início dos anos 1950, quando a FAB adquiriu da Inglaterra aeronaves Gloster Meteor TF-7 e F-8, que foram trocadas pelo valor equivalente em algodão. Atualmente, a grande maioria dos países utiliza fatores multiplicadores para atribuir, digamos assim, valor às transações que envolvam transferência de tecnologia, cooperação científica e tecnológica e investimentos em benefício do país. Exemplo: num acordo de compensação envolvendo um centro de pesquisa nacional e uma empresa estrangeira, o valor dos fatores multiplicadores levará em conta a atualização da tecnologia envolvida, escassez, complexidade do projeto, entre outros atributos. A empresa estrangeira estimaria em US$ 1 milhão o custo do projeto e solicitaria um fator multiplicador 5, o que resultaria num crédito de offset de US$ 5 milhões. A grande maioria dos negócios de compensação tecnológica tem ficado restrita à área da Defesa. A intenção, agora, é estender essa forma de compensação também para áreas civis. • PESQUISA FAPESP 97 ■ MARÇO DE 2004 • 27


■ CIÊNCIA

Os beija-flores e as folhas vermelhas Normalmente, os beija-flores procuram flores vermelhas ou amarelas - de cores fortes, enfim. Mas nem sempre é assim. Uma equipe de biólogos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) desco-

pouco chamativas, são as pontas das folhas que ficam vermelhas quando a planta começa a florescer e atraem os polinizadores", conta Maria Bernadete Ferreira Canela, responsável pelo estudo coor-

mélia de flores branco-amareladas, a Aeclimea pectinata, encontrada na Mata Atlântica do litoral paulista, e visitada por beija-flores, que atuam como polinizadores, levando o pólen de uma planta a outra e, assim, viabilizando a fertilização. "Como as flores são

e publicado no Anuais of Botany. Mas não é só a planta cies de beija-flores, com desamphoaon naevtus, os res das flores dessa espécie de bromélia. Em seu levantamen-

to de campo, realizado no Parque Estadual da Serra do Mar, no município de Ubatuba, Maria Bernadete verififlores acompanha a produção de néctar, mais abundante e doce pela manhã, a partir das 6 horas, caindo ao longo do dia, quando o interesse das aves também é menor. "O beija-flor também depende da planta", diz ela. Em cada inflorescência, de uma a 15 flores da Aechmea pectinata abrem-se a cada dia, por um período de 20 a 25 dias. •

Fêmeas de muriquis param de migrar As fêmeas de muriquis (Brachyteles arachnoiâcs hypoxanthus) deixam o grupo em que nasceram quando chegam à idade reprodutiva: é uma forma de evitar cruzamentos com o pai ou irmãos, a chamada endogamia, que amplia o risco de formação de filhotes com baixa variabilidade genética. No entanto, Bárbara, uma das fêmeas de um grupo de muriquis da Estação Biológica de Caratinga, em Minas Gerais, resolveu permanecer entre aqueles com quem sempre conviveu. Só por causa disso foi possível

Dependência recíproca: a bromélia com folhas vermelhas (ao lado) e um Ramphodon naevius


determinar o início da maturidade sexual de Bárbara, que engravidou aos 7,2 anos, após copular pela primeira vez aos 5,5 anos, de acordo com um estudo realizado por Waldney Martins, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e Karen Strier, da Universidade de Wisconsin, Estados Unidos, e publicado na Primates. Segundo Martins, como sempre havia fêmeas novas entrando e saindo do com precisão, o início da idade reprodutiva das fêmeas dos muriquis - algo importante para planejar as estratépecie, ameaçada de extinção. Mas, para o pesquisador, o fato de Bárbara e de sua irmã manecido no grupo, embora outras irmãs tenham migrado, é preocupante: "A mata pode ter atingindo sua capacidade de suporte, tornandose pequena para a quantidade de animais, ou o grau de parentesco entre os grupos já é tão grande que não faz mais diferença entre migrar ou permanecer no grupo natal". Desde que os muriquis de Caratinga começaram a ser acompanhados, há 20 anos, é a primeira vez que convivem a mãe, suas duas filhas e netos no mesmo grupo. Tornou-se mais provável o risco de cruzamentos entre familiares. •

Esquistossomose em Belo Horizonte Em abril de 2002, 24 moradores de um bairro de classe média da capital mineira experimentaram as conseqüências da crença de que tudo o que é natural é inofensivo. Dias após passar um final de semana em uma pousada do município de Ibirité, na região metropolitana de Belo

eliminar o risco de contaminação da água da piscina, mas permanece a necessidade de uma vigilância acirrada contra a esquistossomose, encontrada em 519 dos 853 municípios mineiros. •

Protozoário emergente fe Muriqui de Caratinga: risco de cruzamento entre familiares Horizonte, pelo menos 17 semelhantes ao de uma gripe - febre, dor de cabeça, náuseas e tosse seca. pousada, abastecida com as águas de um córrego próximo. Os turistas passaram por pelo menos dois médicos antes de saberem que estavam com esquistossomose, causada pelo verme Schistosoma mansoni. A origem do surto só se tornou clara depois de uma equipe do Centro de Pesquisas René Rachou da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em Minas Gerais, coordenada por Virgínia Schall, visitar a pousada. A cerca de 300 metros da piscina, havia um riacho com caramujos da es-

pécie Biomphalaria glabrata, alguns deles contaminados com o S. mansoni, que libera na água larvas capazes de infectar o ser humano. Mais tarde, viu-se que o riacho refamília que não apresentava sinais de esquistossomose, embora estivesse contaminada. Do riacho, a água seguia até o córrego que abastecia a piscina. "Como as pessoas infectadas eram de classe média, os médicos não pensaram na possibilidade de elas terem uma verminose", diz Virgínia, que relatou o surto num artigo publicado na revista Memórias do Instituto Oswaldo Cruz. A orientação dos pesquisadores permitiu ao proprietário da pousada

Um parasita está preocupando os veterinários de Brasília. É o protozoário do gênero Hepatozoon, transmitido por carrapatos como o Ambliomma maculatum, que infecta animais de qualquer raça - e mesmo os sem-raça. Uma equipe da Universidade de Brasília (UnB) coordenada por Giane Regina Paludo examinou 30 cães infectados cos dessa enfermidade. Os animais apresentavam perda de peso e de apetite, mucosas pálidas e anemia, com uma baixa taxa de infecção no sangue (próxima a 1%), de acordo com esse estudo, publicado na Veterinary Parasitology. "Na maioria dos casos houve uma infecção com sinais clínicos leves e não específicos", comenta Giane, "mas podem ocorrer casos mais graves, com dores musculares extremas e emagrecimento progressivo, quando os animais não respondem mais a nenhum tratamento." Segundo ela, trata-se de uma doença emergente no país, eventualmente causada por uma nova espécie desse protozoário, ainda por ser devidamente caracterizada. A possibilidade de infecção humana é remota, porque o carrapato tem de ser engolido - o protozoário chega à circulação sangüínea por meio do aparelho digestivo -, como acontece quando um cão procura se livrar dos parasitas. •

PESQUISA FAPESP 97 ■ MARÇO DE 2004 ■ 29


LABORATóRIO

MUNDO

O perfil dos idosos latinos As mulheres formam 60% da faixa da população com mais de 60 anos na América Latina e do Caribe, de acordo com o primeiro levantamento de idosos nessa região, realizado pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas). Outras conclusões: a maioria dos idosos vive em áreas urbanas e tem apenas o nível primário de educação; 40% dos homens com 60 anos ou mais ainda trabalham, enquanto somente 8% das mulheres têm alguma função remunerada. O estudo mostrou ainda que uma crescente parcela de mulheres não vive com o marido ou companheiro, mas mora com uma criança ou outro parente. A área de estudo foi dividida em sub-regiões de acordo com o perfil socioe-

■ Agua-viva de quatro braços Por apresentar quatro braços em vez de tentáculos, uma água-viva encontrada nas águas profundas do litoral da Califórnia, Estados Unidos, tornou-se um animal peculiar o bastante a ponto de inaugurar uma nova subfamília, a oitava, desses animais marinhos. Batizado de Stellamedusa ventana, o animal cujos braços ajudam a guiar o alimento à boca vive entre 150 e 550 metros e tem 10 centímetros de largura por 20 de comprimento. Descrito num artigo do Journal of the

Mulheres: maioria na população com mais de 60 anos

conômico. Nos países andinos, o índice de envelhecimento (número de pessoas com 60 anos ou mais para cada 100 crianças abaixo dos 15 anos) deve dobrar em duas décadas. Na América Central, no Caribe de língua espanhola e no Haiti a população tem gran-

Marine Biological Association ofthe United Kingdom, foi encontrado por Kevin Raskoff, do Instituto de Pesquisa do Aquário da Baía de Monterey (MBARI), da Califórnia, por

des diferenças de crescimento e envelhecimento. Nos próximos 20 anos, Cuba e Porto Rico terão mais pessoas acima de 60 anos que crianças com menos de 15. República Dominicana, Costa Rica e Panamá terão ao menos um idoso para cada duas crianças, tornan-

meio de um robô submarino. As águas-vivas são comuns em redes de pesca, mas, por serem gelatinosas, são cortadas pelas linhas, tornando difícil sua identificação. •

Stellamedusa ventana: de 150 a 550 metros de profundidade

30 ■ MARÇO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 97

do as doenças metabólicas como o diabetes um dos principais riscos de morte. No Caribe de língua inglesa e nas Antilhas holandesas, o perfil da população idosa está associado ao duplo impacto da migração. A saída dos jovens acarreta às mulheres mais velhas o trabalho de cuidar dos netos e, ao mesmo tempo, a migração de aposentados amplia a demanda de serviços sociais e de saúde. Brasil e México têm metade de todos os idosos da região. O Uruguai é o país mais velho, 17% das pessoas têm 60 anos ou mais. Em duas décadas, todos os países do Cone Sul, exceto Paraguai, terão ao menos um idoso para cada duas crianças abaixo de 15 anos. O Uruguai terá tantos idosos quanto crianças. •

■ Pássaro tropical canta vitória Os fãs de esportes não são mais os únicos que celebram a vitória com gritos estrondosos. Um jovial pássaro africano também recorre aos pulmões quando derrota os invasores de seu território. Segundo Ulmar Grafe e Johannes Bitz, da Universidade de Würzburg, na Alemanha, o boubou (Laniarius aethiopicus) entoa um dueto com seu companheiro como forma de comemoração. A descoberta, noticiada na New Scientist (4 de fevereiro), foi feita acidentalmente: os pes-


Andrômeda: galáxias em formação

quisadores estudavam o repertório musical de pássaros na Costa do Marfim quando perceberam que toda vez que empacotavam o equipamento e deixavam o território os pássaros entoavam um assobio especial. Para pesquisar mais a fundo, Grafe e Bitz tentaram transmitir gravações de duetos usados normalmente pelos boubous em confrontos territoriais. Descobriram que a maioria dos companheiros que estavam próximos dos gravadores intrusos começava a cantar assim que os equipamentos eram desligados. Como os pássaros da vizinhança estão ouvindo esses conflitos, é importante divulgar a vitória, não apenas para avisar o perdedor de que ele perdeu, mas para permitir que outros saibam quem foi vitorioso. •

■ As nuvens além da Via Láctea Astrônomos encontraram nuvens de hidrogênio perto de Andrômeda, a galáxia vizinha à Via Láctea, confirmando as previsões de que matéria fria e escura pode estar governando a formação de galáxias. Há cerca de 40 anos, radioastrônomos descobriram nuvens de hidrogênio neutro girando em torno da Via Láctea. Alguns suspeitaram que as nuvens tivessem grande massa,

estivessem relativamente distantes e caindo sobre nossa galáxia, que poderia ter se formado a partir desse material. Para outros, as nuvens estariam próximas, seriam menores e cairiam sobre a Via Láctea após serem empurradas por explosões estelares. Mas como

a distância das nuvens era desconhecida, foi impossível verificar sua massa e origem. Agora, Robert Braun, da Fundação Holandesa de Pesquisa em Astronomia de Dwingeloo, e David Thilker, da Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, Estados Unidos, en-

contraram nuvens similares em torno de Andrômeda. Eles identificaram 86 novas nuvens, 20 delas ao redor de Andrômeda, e concluíram que a maioria contém 1 milhão de vezes mais hidrogênio que o Sol. A velocidade dos átomos de hidrogênio sugere que possuem cem vezes mais matéria escura invisível que hidrogênio. Embora algumas nuvens de Andrômeda sejam restos de galáxias-satélites separadas por forças de marés, muitas outras representam os mesmos blocos de construção primordiais que formaram a galáxia há 10 bilhões de anos. O mesmo provavelmente vale para as nuvens em torno da Via Láctea, numa indicação de que as galáxias ainda estão em formação. •

Mares quentes atraem chuva À medida que os oceanos tropicais continuam a esquentar, seguindo uma tendência de 20 anos, as chuvas quentes nos trópicos tendem a se tornar mais freqüentes, segundo um estudo da Nasa, a agência espacial norte-americana. Em um artigo na revista Geophysical Research Letters, William Lau e HueyTzu Jenny Wu, do Centro de Vôo Espacial Goddar em Greenbelt, Maryland, uma das unidades da Nasa, comprovam a teoria segundo a qual padrões de evaporação e precipitação podem se intensificar em algumas áreas devido ao aumento da temperatura. Eles se valem de observações de satélite mostrando que o índice com que a chuva quente esvazia as nuvens de água é substancialmente mais alto do que previam

Litoral da Flórida, 1945: tempestade

os modelos de computador. De acordo com os pesquisadores, chuvas quentes leves, resultantes do aumento da temperatura dos oceanos, elevam substancialmente a precipitação. "Existe um cenário onde o clima mais quente trará mais chuva quente", disse Lau. A pesquisa mostra que, para cada grau a mais na temperatura da super-

fície do mar, a taxa com que a nuvem se desfaz em água quente de moderada a leve nos oceanos tropicais sobe de 8% a 10%. As chuvas quentes representam cerca de 31% do total de precipitações do planeta e 72% do total de chuva sobre os oceanos tropicais, o que significa que desempenham papel crucial no ciclo da água. •

PESQUISA FAPESP 97 ■ MARÇO DE 2004 ■ 31


CIÊNCIA

FARMACOLOGIA

Ferro na tuberculose Em experimentos com animais, composto metálico mata o bacilo de Koch de forma mais rápida e com menos efeitos colaterais

MARCOS PIVETTA

Na batalha sem fim que a humanidade trava com um dos maiores assassinos de todos os tempos, o Mycobacteriutn tuberculosis, a principal bactéria causadora da tuberculose, um grupo de pesquisadores brasüeiros espera, em breve, fornecer um novo arsenal de armas químicas para endurecer os combates contra o microscópico inimigo, que anualmente ceifa a vida de 2 a 3 milhões de pessoas, a maioria absoluta em países pobres: drogas sintéticas especialmente desenhadas para explorar os pontos fracos do patógeno, matá-lo de forma mais rápida e menos tóxica ao homem, reduzindo o tempo de tratamento e seus efeitos colaterais. Uma molécula com aparente potencial para atingir esse conjunto de objetivos foi apresentada, discretamente, num artigo de duas páginas na edição de janeiro da revista científica britânica Chemical Communications, da Sociedade Real de Química da Grã-Bretanha. Batizado informalmente de IQG 607, o composto metálico - um ferrocianeto associado à molécula da isoniazida (INH), droga que há 50 anos é o carro-chefe no tratamento contra a tuberculose - já foi patenteado no Brasil e está na fase final de testes pré-clínicos com camundongos. A molécula é mais um resultado promissor de um grupo de cientistas ligados à Rede Brasileira de Pesquisa e Combate à Tuberculose (Rede TB). Criada há três anos, tal iniciativa congrega cerca de 170 cientistas de 47 instituições de pesquisa de vários estados do país que estudam a doença, negligenciada pelos grandes laboratórios farmacêuticos por ser um problema de saúde típico dos pobres. Embora ainda haja um percurso de anos pela frente até a candidata à droga antituberculose se mostrar realmente segura e eficiente, os resultados iniciais dos experimentos com 32 ■ MARÇO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 97



a nova molécula são animadores. "Nos animais, ela mata não só a variedade comum do M. tuberculosis como também as principais linhagens mutadas da bactéria que se tornaram resistentes aos medicamentos", afirma o bioquímico Diógenes Santiago Santos, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), coordenador dos estudos com o IQG 607 e outros compostos contra o agente causador da tuberculose, também conhecido como bacilo de Koch. "Por ter se mostrado menos tóxica do que as drogas hoje disponíveis no mercado, talvez possa ser usada em dosagens mais elevadas do que as prescritas para a isoniazida e, assim, acelerar o processo de cura do paciente." Para mostrar que a nova molécula tende a causar menos efeitos colaterais, Santos cita dados de um experimento feito em seu laboratório. Roedores que receberam diariamente uma elevada quantidade da nova droga (1 grama da molécula por quilo de peso) demoraram 20 dias para morrer. Já os que tomaram 250 miligramas de isoniazida, uma dose quatro vezes menor, morreram em apenas quatro horas. Drogas seletivas e refinadas, que ataquem mais o bacilo e menos o homem, podem levar a uma redução considerável no tempo necessário para tratamento da tuberculose, hoje de seis meses, durante os quais quatro distintos medicamentos são ministrados aos pacientes. Atualmente, a terapia é demorada porque os remédios disponíveis, muito tóxicos, têm de ser administrados em pequenas doses. Dessa forma, com a sucessão de drogas dadas aos enfermos ao longo de meio ano, os médicos conseguem matar ou esterilizar as diversas linhagens de bactéria que porventura infectem os doentes sem lhes causar grande desconforto. Ainda assim, por um motivo ou outro, como os indesejados efeitos colaterais da quimioterapia (náuseas, vômitos e icterícia), uma parte não desprezível dos pacientes não completa o longo esquema de tratamento, preconizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). "Cerca de 15% das pessoas que procuram nossos serviços abandonam o tratamento", diz Reynaldo Dietze, diretor do Núcleo de Doenças Infecciosas da Universidade 34 ■ MARÇO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 97

Federal do Espírito Santo (Ufes). Essas pessoas, mais os pacientes que não foram plenamente curados devido a erros de procedimentos terapêuticos, são as candidatas a ter recaídas e a desenvolver a tuberculose multirresistente, de difícil e caro tratamento. No Brasil, essa forma mais agressiva da doença - caracterizada pela resistência a pelos menos duas drogas antituberculose, em geral a isoniazida e a rifampicina — ainda é rara, respondendo por cerca de 1% dos 120 mil novos casos anuais da enfermidade. Mas, em outras partes do mundo, como nas ex-repúblicas soviéticas, já representa um grave e novo obstáculo para o controle da tuberculose. Depois de ter emitido sinais de que estava sob controle há algumas décadas, graças ao emprego de um coquetel de drogas baratas e capazes de curar 95% dos pacientes e à adoção maciça de uma vacina preventiva (a BCG), esse

antigo mal redobrou seu fôlego com o surgimento da Aids, nos anos 1980. "No Brasil e no exterior, muita gente achava que a tuberculose estava sob controle e não era mais necessário investir em pesquisa, mas essa idéia era um engano", afirma Afranio Kritski, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), outro pesquisador da Rede TB. Presente hoje em um terço da humanidade, o M. tuberculosis, que é transmitido pelo ar e causa infecções sobretudo nos pulmões, formou uma dupla maligna com o vírus HIV. Normalmente, 90% das pessoas que carregam o bacilo em seu organismo nunca vão desenvolver a tuberculose, nem mesmo serão capazes de transmiti-la pelo ar. Mas indivíduos fragilizados, com um sistema de defesa imunológico debilitado, como os doentes de Aids, são presas fáceis para as infecções causadas pela bactéria. Os grandes campos de refugiados e os re-


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centes movimentos de migração (forçada) de grandes contingentes humanos ao redor do globo também são apontados como causas do recrudescimento da tuberculose. Em 1993, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que a situação da doença era emergencial no mundo e instituiu a data de 24 de março como o Dia Internacional da Tuberculose, uma forma de chamar atenção para o problema. "É claro que o surgimento da Aids e as migrações em massa ajudaram a aumentar os casos de tuberculose no mundo", afirma Antônio Ruffino Netto, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMUSP/RP), coordenador dos estudos epidemiológicos da Rede TB. "Mas não podemos esquecer que a presença do bacilo no orga-

nismo é necessária, mas não suficiente para provocar a doença. A causa mesmo da doença é a desigualdade social." Locais fechados, pequenos e apertados, como campos de refugiados, prisões e mesmo favelas e cortiços superpovoados, representam ambientes propícios para a disseminação do bacilo, que infecta uma pessoa a cada segundo em alguma parte do planeta, 8 milhões de indivíduos por ano. Se, no final do século 19, a doença chegou a ser romantizada e até descrita como um mal que atingia inclusive os estratos mais elevados da sociedade, a tuberculose é hoje essencialmente vista como uma doença quase restrita às camadas mais humildes da população (veja texto àpágina 36 com um breve histórico sobre a doença). Estima-se que 95% dos casos e 98% das mortes ocorram em países pobres. O Brasü é o único país das Américas a figurar na lista das 22 nações que concen-

tram 80% das ocorrências de tuberculose no mundo. Oficialmente, a doença mata anualmente de 5 a 6 mil pessoas no Brasil, mas especialistas estimam que o número de óbitos deve chegar a 10 mil. A idéia de alterar a fórmula da isoniazida - e, assim, criar uma molécula contra tuberculose - ganhou corpo depois que a ciência desvendou o mecanismo de ação dessa droga no final dos anos 1990. O fármaco interfere na síntese dos ácidos micólicos, uma das vias químicas responsáveis pela produção das paredes celulares do bacilo de Koch. Ao fazer isso, impede a formação plena dessa estrutura rígida, essencial para a proteção das células do patógeno. Dessa forma, a droga não deixa a bactéria se multiplicar, levando-a, por fim, à morte. Falando assim, de maneira resumida, o mecanismo de ação da isoniazida - o mais antigo e importante dos remédios que os pacientes tomam ao longo de seu tratamento - parece até simples. Mas, na verdade, trata-se de um processo complexo, que desencadeia uma série de reações químicas não só no patógeno que se quer matar como também em seu hospedeiro. "A isoniazida é metabolizada no fígado humano formando compostos como a hidrazina, que são tóxicos a esse órgão e ao sistema nervoso central", afirma Santos. Daí as náuseas, vômitos e outros efeitos colaterais que incomodam os doentes durante o tratamento antituberculose. Além de intrincado, o mecanismo de ação da droga sobre o bacilo é indireto: para ter algum algum efeito terapêutico, a isoniazida deve ser ativada pela enzima catalase peroxidase, produzida por um gene presente na bactéria da tuberculose, o KatG. Se isso não ocorrer, o fármaco não funciona. Mas, afinal, como todo esse conhecimento sobre o mecanismo de ação da isoniazida auxiliou os pesquisadores brasileiros na confecção da nova candidata à droga? A pista de que, por caminhos tortuosos, tal fármaco era capaz de matar a bactéria porque atuava sobre a via metabólica ligada à síntese dos ácidos micólicos, responsáveis pela formação da parede celular do patógeno, forneceu subsídios para os cientistas desenharem compostos capazes de chegar exatamente ao mesmo alvo - só que por uma trilha mais direta. Por um atalho químico que poderia ser mais eficiente no cerco ao baPESOUISA FAPESP 97 ■ MARÇO DE 2004 ■ 35


Vítimas famosas do bacilo Descrita provavelmente pela primeira vez em velhos textos indianos, a tuberculose pulmonar foi chamada de tísica pelos antigos gregos, desde os tempos de Hipócrates, o pai da Medicina, há mais de 2 mil anos. A palavra quer dizer enfraquecimento ou desgaste, uma clara alusão a um dos sintomas mais visíveis da doença numa época em que ainda não havia tratamento efetivo: o consumo progressivo da saúde de suas vítimas. Desde então, a tuberculose recebeu outros nomes peste branca, consumição, capita de todas as mortes.

Noel Rosa, músico

SimonettaVespucci, musa

Ao longo dos séculos, fez 100 milhões de vítimas, uma estimativa que a torna uma das doenças mais letais de todos os tempos. A Organização Mundial da Saúde (OMS) prevê que, se a escalada atual da doença não for detida, outros 100 milhões de indivíduos perecerão nas próximos duas décadas - na maioria gente pobre, em idade produtiva (entre 15 e 50 anos),

que poderia ser curada, em grande parte, com os remédios já disponíveis. Um traço particular e paradoxal da tuberculose o nome contemporâneo da moléstia deriva do tipo de lesão que a bactéria Mycobacterium tuberculosis causa nos pulmões, caracterizada por nódulos ou tubérculos de matéria cinza morta é sua freqüente romantização, às vezes glamorização,

cilo e provocasse menos efeitos colaterais no homem. "Nosso objetivo era criar moléculas que atuassem sobre essa via metabólica, um dos pontos fracos da bactéria, mas que não precisassem ser ativadas pela enzima produzida pelo gene KatG e nem pelo sistema hepático humano", explica o químico ícaro de Souza Moreira, vice-reitor da Universidade Federal do Ceará (UFCE), que concebeu a estrutura do novo composto ferroso, cuja fórmula química é [Feii(CN)5(INH)p\ Tal pré-requisito se justifica: o KatG é um dos cinco genes do bacilo de Koch em que já foram detectadas mutações que tornam a isoniazida ineficaz contra a tuberculose. Alterações na composição do KatG parecem estar ligadas à metade dos casos em que a bactéria da tuberculose apresenta maior resistência à ação da isoniazida. Portanto, desenhar uma molécula antituberculose cuja ação independesse desse gene parecia ser um jeito de desenvolver uma droga com potencial para tratar os casos comuns - e também os mais graves — de tuberculose. 36 ■ MARÇO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 97

A estratégia de desenhar comi^k plexos químicos totalmente ^^A novos a partir da junção i M de compostos metálicos ^L -m. com a isoniazida se impôs desde o início das pesquisas, cerca de três anos atrás. "Os metais se combinam mais facilmente no meio celular", comenta Santos. Com essa abordagem, o cearense Moreira, o químico inorgânico do grupo, desenvolveu dez moléculas distintas. Algumas eram complexos que interagiam com o rutênio, outras com o cobalto e outras ainda com o ferro, como é o caso da molécula IQG 607. Por ser um metal mais em conta do que os demais, o ferro recebeu prioridade, já que a meta é desenvolver drogas eficazes e baratas contra a tuberculose. Por isso, os estudos com o IQG 607, um composto ferroso, estão em estágio mais adiantado. "Mas, além do IQG 607, vimos que outras cinco moléculas matam o bacilo de Koch", diz Moreira. Para encontrar a molécula ideal, que melhor se encaixaria nas vias metabólicas mais vulneráveis do bacilo, os

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Castro Alves, poeta

em determinadas épocas. Principal musa do Renascimento, imortalizada em pinturas famosas do florentino Sandro Botticelli, como o Nascimento de Vênus, e num retrato póstumo feito por Piero de Cosimo, Simonetta Vespucci morreu tísica, aos 22 anos, em 1476. Sua palidez e delicadeza, decorrentes provavelmente da ação do bacilo, eram vistas como traços ideais

pesquisadores lançaram mão de recursos sofisticados. No Laboratório de Sistemas Biomoleculares da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em São José do Rio Preto, o físico Walter Filgueira de Azevedo Jr. simulou, em três dimensões, como seria o ajuste dos compostos metálicos - não só do IQG 607, mas dos outros nove candidatos à droga à enoil-redutase, enzima alvo da via química a ser atacada. "Assim, antes mesmo de ser feito qualquer teste in vitro,já tínhamos informações sobre quais compostos se encaixavam melhor ao sítio ativo da enzima", explica Azevedo Jr. O IQG 607 foi um deles. Tal molécula e os outros compostos metálicos em desenvolvimento não são a única esperança fornecida pela Rede TB. Em laboratório, cerca de mil extratos de plantas já foram testados contra a bactéria da tuberculose, dos quais 30 exibiram algum resultado interessante. Grupos de todas as regiões do país tentam desenvolver exames mais eficazes para a detecção da doença, vacinas e medicamentos contra a doença. Na busca desse objetivo comum, algu-


Charlotte Bronté, romancista

Franz Kafka, escritor

Vivien Leigh, atriz

Frédéric Chopin, compositor

da beleza feminina. A tuberculose parece ter exercido um mórbido fascínio entre artistas e intelectuais, especialmente entre escritores, que, quando não sucumbiam à doença, faziam seus personagens padecerem de tísica. Apesar de a causa da tuberculose ter sido determinada em 1882 pelo bacteriologista alemão Robert Koch, a medicina demorou

décadas para encontrar tratamentos mais eficazes do que receitar temporadas de ar fresco e limpo nos sanatórios. Entre os doentes que feneciam nesse tempo, havia uma leva de artistas, cuja condição financeira nem sempre era das melhores. Entre 1848 e 1855, as irmãs e romancistas inglesas Charlotte, Emily e Anne Bronté - a primeira com menos de 40

anos e as duas últimas por volta dos 30 - morreram de tuberculose. Na música, uma das vítimas mais famosas foi o compositor polonês Frédéric Chopin, morto em 1849, antes de completar 40 anos. O bacilo de Koch também colocou um ponto final precocemente na carreira literária de Franz Kafka: o escritor tcheco se foi com pouco mais de 40 anos, em 1924.

Numa época em que já havia drogas contra a doença, a atriz britânica Vivien Leigh morreu de tuberculose em 1967, com 53 anos. No Brasil, não faltam exemplos de ilustres vítimas fatais da tuberculose: o poeta Castro Alves faleceu aos 24 anos em 1871 e o músico Noel Rosa, aos 26, em 1937. Sem falar em Álvares de Azevedo, Augusto dos Anjos, José de Alencar...

mas iniciativas lançam mão, às vezes, de estratégias bastante singulares, numa diversidade de abordagens que, em vez de estimular a concorrência, promove a complementaridade dos esforços feitos no âmbito da Rede TB. Um grupo de pesquisadores chefiado pelo bioquímico Célio Lopes Silva, da FMUSP/RR desenvolveu, por exemplo, uma vacina gênica, a partir do DNA do M. tuberculosisy que, em experimentos com animais, foi capaz de prevenir e curar a doença (veja Pesquisa FAPESP 81). Embora tenha sido concebida para 0 PROJETO Novas Estratégias para Controle da Tuberculose no Brasil COORDENADOR DIóGENES SANTIAGO SANTOS

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PUC-RS INVESTIMENTO R$ 2.500.000,00 (CNPq, Ministério da Saúde e Unesco)

pessoas com tuberculose, a vacina é agora alvo de testes clínicos em seres humanos que têm uma forma avançada de câncer de cabeça e pescoço e não respondem a nenhum outro tipo de tratamento. "Em seis meses, devemos ter os primeiros resultados dos experimentos", afirma Silva, que também é o coordenador geral da Rede TB. Caros, demorados, trabalhosos e de resultado imprevisível, os testes em seres humanos são a última prova de fogo pela qual todo e qualquer novo remédio ou vacina tem de passar a fim de que sua comercialização seja aprovada. Primeiro, são avaliados a toxicidade e os efeitos colaterais. Depois, qual a sua dose ideal. E, em seguida, sua eficiência. Com as candidatas a drogas contra tuberculose, não é diferente. Santos estima que todas as fases de testes clínicos com a molécula IQG 607 deverão consumir, ao longo de dois ou três anos de experimentos com pelo menos 2 mil pessoas, uma quantia equivalente a US$ 40 milhões. Uma quantia que, se nunca for obtida, fará com que o possível remédio contra a tuberculose tenha o

mesmo fim de tantas outras promissoras moléculas: informação interessante que nunca saiu das páginas de um artigo científico. "A maioria dos grandes laboratórios internacionais não investe em drogas para doença de pobres", constata Santos. "E a indústria farmacêutica brasileira não têm o hábito nem a verba necessária para financiar pesquisas clínicas." No entanto, ele não desanima e, no momento, tenta convencer um laboratório britânico a bancar os testes clínicos com o IQG 607. Outra saída é batalhar por financiamento de governos e entidades filantrópicas. No mês passado, a Fundação Bill & Melinda Gates, criada pelo bilionário dono da Microsoft, a maior empresa de software do mundo, doou cerca de US$ 83 milhões para uma instituição norteamericana sem fins lucrativos que pesquisa novas vacinas contra a tuberculose, The Aeras Global TB Vaccine Foundation. Tal entidade acaba de iniciar os testes em seres humanos de uma nova versão, geneticamente modificada, da BCG. • PESQUISA FAPESP 97 ■ MARÇO DE 2004 ■ 37



CIÊNCIA

Gás descoberto na atmosfera da Amazônia intensifica a precipitação, enquanto as queimadas a reduzem CARLOS FIORAVANTI

m dois artigos científicos publicados em edições sileiros, europeus, australianos e israelenses explicam fenômenos sobre o clima da Amazônia que intrigavam há muitos anos. O primeiro estudo, que saiu no dia 20 de fevereiro, mostra por que chove tanto na maior floresta tropical do mundo, que cobre pouco mais da metade do território brasileiro. Por meio de uma cadeia de reações químicas só agora identificada, um gás liberado em abundância pelas plantas, o isopreno, converte-se em outro, recém-descoberto na atmosfera, que se revelou um dos compostos-chave nos processos de forma-

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ra seguinte, dia 27, revela por que o excesso de partículas inibe as chuvas na época de queimadas, entre agosto e novembro. As partículas resultantes da queima da floresta saturam o ar e levam à formação de nuvens mais altas que as formadas nos outros meses do ano, com gotas d'água bem menores, que, em vez de caírem na forma de chuva, permanecem em suspensão na atmosfera até evaporarem. umidade, que na atmosfera da Amazônia supera 90%, em contraste com regiões mais secas, como o Centro-Oeste, onde às vezes o vapor dágua disperso no ar não passa de 10% nos momentos mais críticos. Outro ingrediente indispensável são as partículas em suspensão no ar conhecidas como aerossóis, que atuam como núcleos de condensação de nuvens (NCN): atraem e condensam moléculas de água, crescendo até se tornarem pesadas o suficiente para caírem em forma de chuva. Mas havia um problema. Sempre que os pesquisadores do Experimento de Larga Escala da BiosferaAtmosfera na Amazônia (LBA) - megaprojeto internacional de US$ 80 milhões que reúne mais de 300 especialistas da América Latina, da Europa e dos Estados Unidos - quantificavam os núcleos de condensação, obtinham valores baixos, insuficientes para explicar por que a Amazônia é um dos lugares em que mais chove no mundo. A pluviosidade PESQUISA FAPESP 97 ■ MARÇO DE 2004 ■ 39


da floresta varia de 2.500 milímetros por ano por metro quadrado em Manaus a 5 mil milímetros em São Gabriel Cachoeira, também no Estado do Amazonas. Para se ter uma idéia desse volume de água, na cidade de São Paulo caem de 1.500 a 1.800 milímetros de chuva por ano.

cada espécie, e também industrialmente, como matéria-prima de alguns tipos de plástico. Até os pesquisadores conseguirem demonstrar as transformações do isopreno e sua importância sobre o ecossistema amazônico, acreditava-se que a tarefa de formar nuvens coubesse apenas a um composto orgânico comum nas florestas temperadas da Europa: o terpeno, uma molécula mais encorpada. As florestas tropicais, mais quentes, úmidas e ensolaradas que as temperadas, funcionam de modo diferente, já que as populações de plantas são distintas. Segundo o físico da USP, em Balbina, a região do Amazonas em que as medidas foram feitas, de 40% a 60% das nuvens de chuva devem se formar a partir de uma forma ou de outra do 2metiltreitol, enquanto o terpeno apresenta uma participação modesta, próxima a 20%. Nas matas de clima mais frio, o terpeno responde por algo em torno de 30% dos compostos orgânicos voláteis. Por fim, cerca de 10% das gotículas de nuvens nascem a partir de partículas orgânicas emitidas diretamente pela vegetação, como pólen, bactérias e fungos, igualmente capazes de atrair as moléculas de água.

As respostas começaram a aparecer com as análises das medições atmosféricas feitas em 1998 em L. uma das torres do LBA, a 70 quilômetros ao norte de Manaus. Foi quando os pesquisadores descobriram as transformações por que passa o isopreno, um gás já conhecido, produzido pelas plantas. Molécula simples, com cinco átomos de carbono e oito de hidrogênio, o isopreno sofre um conjunto de reações químicas sob a ação da luz solar - perde um átomo de hidrogênio e ganha quatro de oxigênio - e se converte em uma das duas formas estruturais de uma mesma substância, o 2-metiltreitol, até então desconhecida como composto atmosférico. Essa nova substância é agora vista como um dos densação de nuvens e possivelmente principais formadores dos núcleos de menos chuva. condensação de nuvens por duas razões. Mas a pluviosidade começa a diPrimeiro, por ser um álcool e, portanto, Medindo gotas - Coordenado por minuir já numa etapa anterior, como capaz de atrair moléculas de água. SeMagda Claeys, esse primeiro estudo da efeito das queimadas, que antecedem a gundo, por causa da quantidade em que edição da Science, que saiu na véspera formação de pastos e lavouras. "Descoé produzida. Embora apenas 0,6% do do Carnaval, dia 20, alerta para as altebrimos uma interação muito forte enisopreno se converta nessa substância, rações climáticas causadas pela perda tre a fumaça das queimadas e as nuvens não é pouco em termos absolutos. Estida floresta tropical, em decorrência de que está interferindo no ciclo hidroma-se que a Amazônia produza por ano processos naturais ou da ação humana. lógico", comenta Maria Assunção Silcerca de 2 milhões de toneladas de 2Quanto menor a área de floresta, meva-Dias, pesquisadora do Instituto de metiltreitol, o que torna esse novo comnor será a quantidade de vapor d'água Astronomia, Geofísica e Ciências Atposto um dos aerossóis de origem ore de isoprenos liberados pelas plantas. mosféricas (IAG) da USP, diretora do gânica mais comuns produzidos pelas Portanto, haverá menos núcleos de conCentro de Previsão de Tempo e Estuflorestas tropicais no mundo. "Ninguém imaginava que o OS PROJETOS isopreno, por ter uma massa molecular baixa, pudesse funInterações Físicas e Mudanças de Uso da Terra Interações entre Radiação, cionar como precursor de um Químicas entre a Biosfera na Amazônia: Implicações Nuvens e Clima na composto que, agora sabemos, e a Atmosfera Climáticas e na Ciclagem Amazônia na Transição é um dos componentes imporda Amazônia no de Carbono entre as Estações Seca Experimento LBA tantes dos núcleos de condene Chuvosa/LBA sação de nuvens na Amazônia", MODALIDADE MODALIDADE MODALIDADE Instituto do Milênio comenta Paulo Artaxo, pesquisaProjeto Temático Projeto Temático do Experimento LBA dor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP), COORDENADOR COORDENADORA COORDENADOR que participou dos dois artigos PAULO EDUARDO ARTAXO MARIA ASSUNçãO FAUS DA PAULO EDUARDO ARTAXO NETTO-IF/USP da Science. Havia outra razão SILVA-DIAS - IAG/USP NETTO-IF/USP pela qual não se apostava nesse INVESTIMENTO INVESTIMENTO composto químico, produzido INVESTIMENTO R$ 1.814.179,30 R$ 1.538.922,32 por todas as plantas em quantiR$ 4.200.000,00 (MCT) (FAPESP) (FAPESP) dades que variam de acordo com 40 ■ MARÇO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 97


Queimadas: nuvens com gotículas d'água que evaporam em vez de cair na forma de chuva

Velho, no mesmo estado, passavam por Rio Branco e Cruzeiro do Sul, no Acre, e terminavam em Tabatinga, no Amazonas. A medida que seguiam de uma região de queimadas freqüentes para outras em que são mais raras, até aterrissarem em um ponto em que a floresta se mantém razoavelmente preservada, tornavam-se nítidas as diferenças na estrutura das nuvens. Em Ji-Paraná, predominavam as gotas pequenas e as nuvens altas, ao passo que em direção a Tabatinga as gotas grandes e as nuvens baixas é que se tornavam mais comuns.

dos Climáticos (CPTEC), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), e uma das autoras do segundo artigo da Science. Quando a floresta arde em chamas para dar espaço a pastos ou plantações, o céu muda de modo radical. Em feixes de fumaça, ganham o ar até 30 mil partículas por centímetro cúbico uma concentração pelo menos mil vezes maior que em condições normais e cerca de cem vezes maior do que a verificada na cidade de São Paulo nos dias mais poluídos do inverno. Os pesquisadores do LBA, desta vez sob a coordenação de Meinrat Andreae, do Instituto Max Planck de Química, da Alemanha, demonstraram que a quantidade maior ou menor de partículas no ar faz toda a diferença no processo de formação das nuvens e das chuvas. Um número reduzido de aerossóis, como acontece em condições naturais, sem a interferência humana, induz à formação de grandes gotas de chuva, com um diâmetro que varia de 30 a 50 micrômetros (1 micrômetro é a milésima parte do milímetro), que se aglomeram em nuvens baixas, com o topo distante

de 3 a 5 quilômetros do solo, e caem em poucas horas. Por outro lado, o excesso de partículas liberadas quando a floresta queima produz gotas d'água menores, de 10 a 20 micrômetros de diâmetro, que formam nuvens mais altas, de até 16 quilômetros de altura, e, por serem mais leves, evaporam em vez de ganharem peso e caírem na forma de chuva. Os pesquisadores estabeleceram essas diferenças, já delineadas em termos mais gerais por meio de sensoriamento remoto, visitando as próprias nuvens, em cerca de 20 vôos em dois aviões Bandeirante, um paralelo ao outro, entre setembro e outubro de 2000. Em um deles estavam Andreae e Artaxo, coletando informações sobre as partículas que formam as nuvens. O outro avião, com pelo menos um pesquisador da Universidade Estadual do Ceará (Uece) - ora ia Alexandre Costa, ora João Carlos Parente de Oliveira - e, sempre, Daniel Rosenfeld, especialista da Universidade de Jerusalém, Israel, mergulhava nas nuvens com o propósito de analisar as gotas d'água que se formavam ali dentro. Do solo, Maria Assunção acompanhava as duas equipes, informando-as sobre o comportamento do clima. Os vôos começavam em Ji-Paraná, em Rondônia, seguiam rumo a Porto

Menos chuva no Sul - As medidas tomadas reiteram a estimativa de que as partículas resultantes das queimadas reduzem a quantidade de chuvas em até 30%, mas, segundo Assunção, ainda é preciso trabalhar um pouco mais para chegar a um valor mais exato: os aviões percorreram apenas as nuvens de chuva menores, evitando as maiores, que costumam incomodar os pilotos. "É possível que esse mesmo mecanismo possa também atrasar as chuvas, mas ainda não está demonstrado", diz ela. De todo modo, os contrastes já são nítidos: "Em Tabatinga chove todo dia, enquanto em Ji-Paraná chove menos do que choveria se não houvesse as emissões de queimadas", observa Artaxo. Já se sabia que as queimadas, por cobrirem o céu de fumaça, reduzem a temperatura da superfície em pelo menos 0,5° Celsius e a luminosidade em até 50% (veja Pesquisa FAPESP 86). Os dados obtidos fortalecem a hipótese de que as queimadas na Amazônia possam ter um efeito muito mais abrangente e inibir as chuvas também em outras regiões da América do Sul, especialmente no Sul e Sudeste do Brasil, a pelo menos 2 mil quilômetros de onde são produzidas, já que as nuvens de fumaça são carregadas pelas correntes de ar nessa direção - outra parte vence as montanhas dos Andes e chega ao oceano Pacífico. A equipe do LBA já encontrou nos Andes e em São Paulo partículas de queimadas da Amazônia, mas ainda falta provar que elas chegam também a outras regiões e conseguem espantar a chuva. • PES0UISA FAPESP 97 ■ MARÇO DE 2004 ■ 41


CIÊNCIA

PALEONTOLOGIA

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A cobra n 1 Fóssil de 70 milhões de anos representa a mais antiga serpente encontrada no Brasil

Em meados de julho de 2003, o brasileiro Max Cardoso Langer e o francês Emmanuel Fará, ambos paleontólogos, fizeram uma viagem em busca de fósseis pelo Triângulo Mineiro e noroeste de São Paulo. Depois de terem percorrido algumas localidades mineiras, nas quais não acharam nada muito interessante, tentaram a sorte numa cidadezinha paulista, General Salgado, de 11 mil habitantes e distante 545 quilômetros do município de São Paulo. A escolha não foi por acaso. Um colega brasileiro, Reinaldo Bertini, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), tinha descrito num artigo científico um crocodilo fóssil encontrado na região. Animados por essa descoberta, Langer e Fará - respectivamente, pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto e da Universidade de Poitiers, na França, - resolveram apostar no novo e praticamente desconhecido sítio paleontologia) que parecia existir na região. Foram a uma fazenda, onde achavam que ficava o tal sítio. Passaram um dia inteiro procurando, procurando, procurando e nada de fósseis. Deviam estar no lugar errado. Desapontados e intrigados, releram o artigo de Bertini, que carregavam em sua bagagem, e se deram conta de que um professor local, José Tadeu Arruda, havia auxiliado o colega da Unesp nos trabalhos de campo na região. No dia seguinte, saíram perguntando pelo professor Arruda e logo o encontraram. Com o novo membro na equipe, os pesquisadores entraram numa perua e seguiram as coordenadas do morador de General Salgado. "Assim que saímos do carro e olhamos para o chão, vimos uma série de pequenas vértebras no afloramento", recorda-se Langer. Eram os vestígios da mais antiga cobra encontrada até agora no Brasil: uma serpente de hábitos subterrâneos de uns 60 centímetros de comprimento, que provavel42 ■ MARÇO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 97


mente morava em tocas e deve ter vivido entre 70 e 85 milhões de anos atrás, no final do período Cretáceo (e da era Mesozóica), pouco antes da extinção em massa dos dinossauros. Até então, as mais velhas cobras fósseis encontradas em solo nacional tinham, no máximo, 65 milhões de anos, remontando ao período Paleoceno, já no início da era Cenozóica. Vértebras e costelas - Na verdade, a importância do achado só foi determinada um pouco mais tarde. Como ninguém que participou diretamente da localização do fóssil era especialista em ofídios, e a suspeita inicial era de que se tratava de restos petrificados de um réptil esquamado (serpentes, lagartos e anfisbenas), os pesquisadores decidiram repassar o material para o paleontólogo Hussam El Dine Zaher, do Museu de Zoologia da USP. Estudioso da origem e evolução desse grupo animal, Zaher debruçou-se sobre o frágil conjunto de fragmentos fósseis resgatados no noroeste paulista, basicamente uma dúzia de vértebras integralmente preservadas e pedaços de algumas costelas e de outras vértebras. A maior e mais significativa das peças cabia na palma da mão: uma série de sete vértebras inteiras ligadas a porções de algumas costelas. Por terem sido encontrados uns próximos aos outros e apresentarem características anatômicas comuns, todos os fragmentos pareciam ter pertencido a um único animal. Com certeza, uma cobra, concluiu Zaher. Uma série de particularidades dos ossinhos fossilizados - traços morfológicos como a forma da borda anterior do arco neural (parte superior da vértebra que envolve a medula espinhal dorsal de todo vertebrado) e o reduzido tamanho do espinho neural (estrutura pontuda que fica no topo do arco neural e se assemelha, para efeito de comparação, a uma microbarbatana de tubarão) - levou Zaher a sugerir que a serpente de General Salgado deve ter pertencido a um gênero extinto e desconhecido da superfamília Anilioidea. "Suas vértebras são distintas das encontradas nos cinco gêneros fósseis (extintos) de anilióideos conhecidos", ex-

plica Zaher. No Brasil, há registro de apenas dois desses gêneros fósseis, o Hoffstetterella e o Coniophis, ambos compostos de uma única espécie, a Hoffstetterella brasiliensis e a Coniophis precedens, descobertas em São José do Itaboraí, no Rio de Janeiro, com idade aproximada de 65 milhões de anos. Os demais gêneros só são encontrados na América do Norte, África e Europa. Se ficar comprovado que se trata de uma nova espécie ainda não descrita na literatura especializada, a serpente resgatada no interior paulista será batizada com um nome científico. A partir do material coletado em campo é difícil prever como era o jeitão da cobra mais antiga do Brasil. Uma

Falsa coral Anilius scytale, da Amazônia: parente distante da serpente fóssil

forma de imaginar como pode ter sido a sua aparência é olhar para a única espécie viva de anilióideos presente em todo o continente americano, a Anilius scytale, que pode ser um parente longínquo da serpente de General Salgado. Típica da bacia Amazônica, onde pode ser encontrada em buracos no meio da floresta e, às vezes, até em áreas urbanas, a A. scytale é uma falsa coral, com listras pretas e alaranjadas e olhos de tamanho reduzido. Apesar de se assemelhar às corais de verdade, que são venenosas, é completamente inofensiva. Tem hábitos noturnos, come pequenos animais (cobras e lagartos) e pode atingir 1,10 metro de comprimento, quase o dobro do tamanho estimado da serpente fóssil. Então, baseado nessa analogia, pode-se concluir que a cobra fóssil era uma versão menor da falsa coral hoje presente no centro e no norte do país?

Bem, não exatamente. "Qualquer inferência a respeito da coloração do fóssil é altamente especulativa e não encontra embasamento teórico ou empírico", pondera Zaher. "Quanto aos hábitos alimentares, somente poderemos dizer algo mais preciso quando encontrarmos o seu crânio fossilizado ou ao menos os ossos que portam os seus dentes." Grande parte das análises mais modernas de biologia evolutiva e anatomia comparada das serpentes depende do estudo de seu crânio. Aparentemente, a cobra de General Salgado exibia boa parte das características da A. scytale. Não deve ter sido venenosa e vivia num habitat que evocava mais o atual Pantanal do que propriamente a Amazônia. "As análises geológicas mostram que, há uns 70 milhões de anos, o noroeste paulista era uma planície fluvial, uma região baixa para onde se dirigiam os fluxos de água vindos de Minas Gerais", explica Langer. Portanto, a nova cobra fóssil era terrestre, mas morava perto da água. Ainda que muito interessantes, as diminutas vértebras e costelas da mais antiga cobra brasileira deverão ser de pouca serventia para o estudo de um dos temas mais quentes entre os herpetólogos (especialistas em répteis): qual é, afinal, a origem das serpentes? Elas derivaram de lagartos que, há mais de 140 milhões de anos, habitaram os mares ou a terra firme? Por ser um exemplar muito desenvolvido na escala evolutiva, a serpente de General Salgado não deve acrescentar muito a esse debate científico. Zaher e vários pesquisadores do exterior já estudaram vestígios de serpentes mais antigas e primitivas, como a Haasiophis terrasanctus, uma cobra com patas, com idade aproximada de 95 milhões de anos, que foi descoberta em Israel. De qualquer forma, os achados no noroeste paulista enriquecem o acervo de ofídios fósseis no Brasil. "Aqui é muito difícil encontrar ossos de serpentes preservados em rochas sedimentares", pondera o pesquisador do Museu de Zoologia. "Esse fóssil pode nos ajudar a entender como era, no passado, a distribuição geográfica das cobras no continente americano." • PESQUISA FAPESP 97 ■ MARÇO DE 2004 • 43


I

CIÊNCIA

ASTROFÍSICA

Os novos raios do Sol _quipe de brasileiros e argentinos detecta a mais intensa radiação das explosões solares

bro do ano passado, um dos telescópios do Complexo Astronômico El Leoncito (Casleo), instalado a 3 mil metros de altitub. de nos Andes argentinos, captou os sinais emitidos pela mais intensa explosão solar já registrada. Em uma das salas do observatório, protegidos do frio de 10° Celsius do verão andino, o físico brasileiro Pierre Kaufmann e os engenheiros argentinos Adolfo Marun e Pablo Pereyra mantinham os olhos grudados na tela do computador do Telescópio Solar para Ondas Submilimétricas (SST). Naquele momento, observavam com o telescópio de US$ 2,5 milhões, construído com financiamento do Brasil e da Argentina, um novo tipo de radiação solar. Tão logo viu o gráfico que se formava no monitor, Kaufmann imaginou ter enconcomeçado a procurar 20 anos antes, assim que notou 44 ■ MARÇO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 97


seus primeiros sinais em 1984, no Rádio-Obscrvatório de Itapetinga, em Atibaia, no interior paulista. Emitidos nas explosões solares, esses raios destacam-se pela freqüência de vibração de suas ondas. Os raios captados pela antena de 1,5 metro do SST ultrapassaram o limite de 100 Gigahertz (GHz), ate então a freqüência máxima de energia na faixa de rádio obserinício de novembro, a equipe de Kaufmann, da Universidade Presbiteriana Macken/.ie, de São Paulo, detectou essa radiação em duas freqüências: 212 e 405/., GHz ou 0,2 e 0,4 Terahertz (1Hz), a unidade de medida geralmente adotada, que explica o nome dessa radiação e a situa no espectro eletromagnético entre as ondas de rádio e a luz visível. "A emissão dessa forma de radiação é o fenômeno de mais alta intensidade, comparada com a de outras faixas de energia liberadas nas explosões solares", afirma Kaufmann, coordenador do estudo que rcPESQUISAFAPESP97 -MARCO DE 2004 ■ 45


lata a identificação dos raios T em explosão solar na Astrophysical Journal Letters de 10 de março. A quantidade de energia pro#M duzida por essa radiação / ^ num determinado inter^^^^k valo de tempo - ou seja, ,^L JL. sua intensidade - é de três a cinco vezes maior que a das emissões em rádio, as formas de radiação com maior comprimento de onda, e de 1 mil a 10 mil vezes maior que a das emissões em raios X e gama, os de menor comprimento de onda. Isso significa que a radiação correspondente aos raios T seria a mais brilhante, caso o olho humano conseguisse captar todas as faixas do espectro eletromagnético com a mesma eficiência que detecta a luz visível. Apesar da sua intensidade, um motivo impedia os físicos de observar os raios T: a produção de equipamentos capazes de captar radiação em Terahertz exige o domínio de tecnologias de acesso restrito. Outra dificuldade era que a maioria dos modelos teóricos não previa a existência de radiação nessa faixa de freqüência do espectro . "Por esses motivos, quase ninguém havia procurado identificar a atividade solar na faixa dos Terahertz", diz o físico paulista, que propôs em 1985 a existência de radiações solares com freqüências superiores a 100 GHz em um artigo na Nature. Kaufmann notou que seguia a pista certa ao ver, quatro anos atrás, indícios mais consistentes da radiação na faixa dos Terahertz, captados no início dos testes do próprio SST, o único telescópio projetado para observar o Sol nessa faixa de radiação, que emite ondas com comprimento inferior ao milímetro (submilimétricas). Mas faltavam os sinais contínuos, fartos e inequívocos, como os que chegaram em novembro passado, com o telescópio já em atividade regular. Uma hora antes de os sinais surgirem no monitor em El Leoncito, os engenheiros haviam reformulado o programa de computador que converte os sinais captados pela antena porque, até então, não funcionava conforme o esperado. Melhor que os raios X - Duas propriedades características dos raios T intensidade alta e freqüência baixa tornam essa radiação candidata a ser 46 ■ MARÇO DE 2004 ■ PES0UISA FAPESP 97

utilizada em equipamentos destinados ao diagnóstico de doenças. Como os raios T vibram muito mais lentamente que a radiação do outro extremo do espectro, os raios X e gama, eles possivelmente produzem menos danos ao material genético dos organismos vivos, assim como as ondas de rádio, emitidas pelos aparelhos de ressonância magnética nuclear. Já existem ao menos duas empresas criadas recentemente na Europa com o propósito de explorar as aplicações médicas dos raios T, que, além de mais seguros que os raios X por carregarem muito menos energia e não penetrarem o corpo tão rapidamente, também oferecem um contraste melhor entre as células sadias e as doentes. Os físicos acreditam ainda que a radiação identificada por Kaufmann possa ser útil para detectar drogas e armas ou ainda na pesquisa de fósseis, evitando os danos provocados pela escavação das rochas. Aplicações práticas à parte, os raios T deverão servir como um novo indi-

cador das possíveis origens das explosões solares, de causas ainda incertas, e poderão contribuir para a previsão do impacto dessas explosões sobre as telecomunicações terrestres. A essas explosões - comuns nos momentos de intensa atividade solar, quando ocorre a inversão de seus pólos magnéticos está associado o desprendimento de massas próximas à superfície do Sol, gerando gigantescas labaredas - associadas aos abrilhantamentos ou flares -, que lançam ao espaço nuvens com dez vezes o tamanho do próprio Sol, formadas por partículas superaquecidas e eletricamente carregadas, que atingem nosso planeta à velocidade de até 2 mil quilômetros por segundo. Quando há uma explosão no Sol, pode-se esperar problemas por aqui. As explosões ocorridas no final de outubro e no começo de novembro de 2003 - as mais intensas já observadas desde que os físicos começaram a registrar essas súbitas liberações de energia na década de 1940 - desligaram a


El Leoncito, nos Andes: único no mundo a observar a radiação em Terahertz

rede de transmissão de eletricidade na Suécia, emudeceram os telefones celulares na Argentina, danificaram dois satélites japoneses e afetaram o funcionamento dos sistemas de comunicação e navegação de aviões e navios ao redor do mundo. Com base na intensidade e em outro traço dos raios T, os pulsos rápidos, que duram de 100 a 300 milissegundos, Kaufmann acredita que a radiação na faixa dos Terahertz seja produzida por partículas atômicas eletricamente carregadas, aceleradas a velocidades próximas à da luz (300 mil quilômetros por segundo). Essas partículas atômicas são os elétrons ultra-relativísticos, assim chamados por apresentarem energia superior a 1 milhão de elétron-volts, unidade de medida de energia das partículas atômicas. Desse modo, os raios T, produzidos por elétrons com centenas de milhões de elétron-volts, representam a energia liberada pelo movimento dessas partículas ultravelozes em interação com os

campos magnéticos do Sol. Curiosamente, essa forma de radiação surge também em experimentos feitos em aceleradores de partículas, equipamentos usados em testes de física atômica, capazes de impulsionar elétrons a velocidades próximas à da luz, fazendo essas partículas produzirem emissões eletromagnéticas na faixa dos Terahertz. 0 PROJETO Aplicações do Telescópio Solar para Ondas Submilimétricas (SST) MODALIDADE

Projeto Temático COORDENADOR PIERRE KAUFMANN - Universidade Presbiteriana Mackenzie INVESTIMENTO

R$ 137.496,00 e US$ 83.061,06 (FAPESP) R$30.000,00 (CNPq) R$ 65.000,00 (MackPesquisa)

Ao mesmo tempo que podem explicar a origem dos raios T, os elétrons ultra-relativísticos continuam a intrigar os físicos, uma vez que não se sabe qual tipo de fenômeno poderia produzir essas partículas no Sol. De qualquer forma, a hipótese de se formarem partículas com velocidade tão alta, seja como causa ou conseqüência das explosões, sugere alguns ajustes na forma de ver essa estrela de 5 bilhões de anos. Acreditava-se que a energia das partículas resultantes das explosões solares não excederia 1 milhão de elétron-volts. Como resultado do movimento desses elétrons, chamados de levemente relativísticos, formam-se as emissões da rádio. Agora, a descoberta da radiação que indica a existência de partículas com centenas de milhões de elétron-volts cria uma alternativa para explicar a origem dos raios X e gama. Considerados como as formas mais energéticas de radiação eletromagnética produzidas nas explosões solares, os raios X e gama não resultariam apenas da colisão de nuvens dos elétrons de alta energia com regiões mais densas do Sol. Segundo Kaufmann, essas duas radiações também poderiam resultar, como os raios T, do choque das nuvens dos elétrons ultra-relativísticos com a radiação que os próprios elétrons geraram, fenômeno conhecido como efeito Compton Inverso, utilizado para interpretar explosões em escalas bem maiores, como os núcleos ativos de galáxias. "A radiação na faixa dos Terahertz era o elo que faltava para reestudarmos a origem dos raios X e gama", diz ele. Tanto no Sol como em outras estrelas - existem 100 bilhões delas apenas em nossa galáxia, a Via Láctea - ainda há muito a explorar. "Não me surpreenderia se aparecessem muito mais explosões solares com a observação contínua feita em uma faixa mais alta de raios T, entre 5 e 100 Terahertz", comenta Kaufmann, cujo trabalho se limitou às freqüências de 0,2 e 0,4 Terahertz. Mas, segundo o pesquisador, apenas satélites espaciais podem captar emissões solares em freqüências superiores a 1 Terahertz. "E ainda não há nenhum equipado para essa tarefa." • PESQUISA FAPESP 97 ■ MARÇO DE 2004 ■ 47


f CIÊNCIA

CONTRIBUIÇÃO FEMININA

Disfarce revelado Estudos sobre parasita causador da doença de Chagas conferem a brasileira o prêmio L/Oréal-Unesco 2004

Em novembro de 2003, uma correspondência inesperada chegou à sala C-42 do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, no campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) na Ilha do Fundão. A bióloga Lúcia Mendonça Previato abriu o envelope vindo de Paris e não acreditou no que leu. "Li e reli, procurando saber nas entrelinhas se ainda faltava alguma etapa", diz a pesquisadora. O conteúdo justifica a desconfiança inicial. O texto de apenas meia página anunciava a coordenadora do Laboratório de Glicobiologia da UFRJ como a contemplada na América Latina neste ano com o Prêmio LOréalUnesco para Mulheres na Ciência (LOréal-Unesco Awards for Women in Science 2004). Concedido anualmente pela indústria de cosméticos francesa LOréal e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), o prêmio Mulheres na Ciência é um reconhecimento à contribuição de cinco destacadas pesquisadoras para a melhoria das condições de vida das pessoas e um estímulo para as mulheres prosseguirem na carreira científica. Nesta edição do prêmio, a sexta desde sua criação em 1998, foram contempladas também a bióloga molecular Jennifer Thomson, da Universidade da Cidade do Cabo, África do Sul; a neurobióloga Nancy Ip, da Universidade de Ciências e Tecnologias de Hong Kong, China; a geneticista Christine Petit, do Instituto Pasteur, França; e a bióloga molecular Philippa Marrack, do Instituto Médico Howard Hughes, Estados Unidos. Lúcia é a segunda brasileira entre as 29 pesquisadoras já laureadas com o prêmio, uma indicação da importância da pesquisa nacional. Em 48 ■ MARÇO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 97

2001, a geneticista Mayana Zatz, da Universidade de São Paulo, recebeu o prêmio por seu trabalho relacionado à distrofia neuromuscular, que levou à detecção de ao menos três genes associados ao surgimento dessa doença hereditária, que provoca degeneração dos músculos e perda progressiva da capacidade de se movimentar. Em quase 25 anos de pesquisa, Lúcia e seus colaboradores da UFRJ descobriram e revelaram em detalhes um dos artifícios que permite ao causador do mal de Chagas - o protozoário Trypanosoma cruzi, parasita que contamina cerca de 18 milhões de pessoas na América Latina - escapar do sistema imunológico. Logo após invadir a corrente sangüínea transmitido pelas fezes do barbeiro, o Trypanosoma adota um disfarce. Em uma gatunagem molecular, o protozoário furta uma molécula sinalizadora - um açúcar chamado ácido siálico - apresentada na parte externa das células humanas e a expõe em sua própria superfície, numa espécie de camuflagem que permite ao protozoário passar despercebido às células de defesa humanas. A notícia do prêmio - no valor de US$ 100 mil - deu à equipe do Rio um motivo a mais para comemorar. Recentemente, os pesquisadores do Laboratório de Glicobiologia constataram que um único gene, existente em uma cópia também única no genoma do Trypanosoma, controla o início da formação da molécula que receberá o ácido siálico, como revelam em um estudo a ser publicado nos próximos meses. Na opinião de Lúcia, esse é o alvo perfeito para novas drogas contra o parasita, uma vez que essa reação química - a ligação da alfa-N-acetil-glicosamina com o aminoácido treonina - é exclusiva do Trypano-


Dedicação e sorte: em 25 anos de pesquisas, Lúcia Previato desvendou a camuflagem do Trypanosoma

soma. Em tese, um medicamento que impeça essa ligação, jamais observada em células de mamíferos, atingiria apenas o protozoário, deixando as células humanas intactas. Assim, surgiriam menos efeitos indesejáveis, freqüentes no tratamento atual. "Esses resultados abrem a perspectiva de produzir novos remédios, menos tóxicos e capazes de combater o protozoário também na fase crônica da doença", comenta a bióloga. Lúcia busca agora a parceria de químicos e farmacólogos especializados em desenhar moléculas artificiais para, em alguns anos, quem sabe, chegar a um composto específico, capaz de bloquear apenas essa reação química típica do parasita e impedir sua camuflagem. Os medicamentos atualmente usados no combate à doença de Chagas, à base de nitroimidazóis ou nitrofuranos, agem apenas na fase inicial ou aguda da infecção, quando o protozoário ainda se encontra livre na corrente sangüínea e a pessoa apresenta febre alta, inchaço no local da picada e sensação de cansaço. Caso não se combata o Trypanosoma logo após a contaminação, a situação pode se complicar. Sem tratamento, de um terço a um quarto das

pessoas infectadas desenvolve a forma crônica da doença: o protozoário penetra nas células de órgãos como o coração, o intestino e o esôfago, provocando danos progressivos e, eventualmente, mau funcionamento desses órgãos. Mais comum entre a população rural, que leva mais tempo para procurar tratamento, a forma crônica da doença deixa poucas saídas: em geral, extrai-se o órgão doente ou, quando possível, faz-se um transplante, uma vez que os remédios não afetam o parasita no interior das células. Escolha política - Horas de trabalho a fio e, claro, alguma sorte levaram Lúcia e o marido, José Osvaldo Previato, também do Laboratório de Glicobiologia da UFRJ, a descobrirem a estratégia de roubo molecular do protozoário ainda no início da década de 1980, como resultado de um trabalho iniciado, em parte, por uma questão política. Mal a dupla retornou do pósdoutorado no exterior, Lúcia teve de assumir o laboratório chefiado pelo médico Luiz Rodolpho Travassos, que se mudava para a Universidade Federal de São Paulo. Dois programas de financiamento para pesquisas sobre do-

enças endêmicas dariam a oportunidade de levantarem a verba necessária para manter o laboratório em funcionamento e aplicar o conhecimento adquirido no exterior no estudo do parasita da doença de Chagas, que afeta quase 8 milhões de brasileiros. Três anos após o contato inicial com o Trypanosoma, Lúcia e José Osvaldo já haviam identificado a estratégia do parasita, descrita em 1985 em artigo do Molecular and Biochemical Parasitology. Incapaz de produzir o próprio ácido siálico, o protozoário usa uma proteína especial, a enzima transialidase, para roubá-lo das células humanas. "Foi uma descoberta que reorientou a pesquisa sobre o Trypanosoma cruzi no Brasil e no exterior", comenta a pesquisadora alagoana, que, em 1955, aos 5 anos de idade, mudou-se de Maceió para o Rio de Janeiro. A equipe de Lúcia passaria quase uma década vasculhando em detalhes a estrutura do açúcar e da proteína do T. cruzi à qual o ácido siálico se liga até identificar, em 1994, a conexão especial entre a proteína e o açúcar (a ligação de alfa-N-acetil-glicosamina com o aminoácido treonina), exclusiva do Trypanosoma cruzi, e possível alvo de novos medicamentos. • PESQUISA FAPESP 97 ■ MARÇO DE 2004 ■ 49


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Monumento à saúde A trajetória da Faculdade de Medicinada Universidade de São Paulo (USP), um dos mais vigorosos pólos de assistência à saúde e de pesquisa científica do país, inaugura a série de reportagens que Pesquisa FAP ESP publicará a respeito dos 70 anos de fundação dessa universidade. As próximas edições apresentarão outros núcleos e atividades representativas da história da USP FABRICIO MARQUES

No prédio da FMUSP, hoje tombado pelo Patrimônio Histórico, emergiram gerações dos melhores médicos brasileiros 50 ■ MARÇO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 97

A rnaldo Vieira de Carvalho (1867-1920), J^L cirurgião e ginecologista, c Enéas de Carg^k valho Aguiar (1902-1958), administrador È ^K hospitalar, morreram prematuramente, È ^L ambos na casa dos 50 anos de idade, e Mi^^J^^ puderam vislumbrar apenas o nasciÊ^ ^^^ mento das instituições que fundaram: Ê ^^L respectivamente, a Faculdade de Me^M ^k dicina da Universidade de São Pau^^™ ^^^^ Io (FMUSP), criada em 1913, e seu braço hospitalar, o Hospital das Clínicas de São Paulo (HC), inaugurado em 1944. A memória desses dois médicos é lembrada todos os dias, até mesmo por pessoas que mal sabem quem eles foram. Dr. Arnaldo e dr. Enéas são os nomes de duas movimentadas avenidas paralelas, na Zona Oeste de São Paulo, que comportam o quadrilátero formado pela FMUSP, o HC e seus diversos institutos. Trata-se do mais famoso e produtivo endereço de atendimento de saúde, ensino e pesquisa aplicados à medicina do Brasil. Paulistas e paulistanos buscam o atendimento do Hospital das Clínicas em casos de emergência e também em aflições corriqueiras, atraídos pela eficiência de seus médicos, um porto seguro em meio às deficiências da saúde pública. Brasileiros de todos os cantos do país, portadores de doenças raras ou tratadas com ferramentas experimentais, acostumaram-se a viajar milhares de quilômetros para se tratar no HC - muitos desconfiam da idéia de que existem centros de excelência em quase todas as regiões. Maior complexo hospitalar da América Latina, o HC fez, só no ano passado, 1,5 milhão de atendimentos ambulatoriais e 550 mil de emergência. Seus 2.492 leitos receberam 60 mil pacientes. Foram realizadas 45 mil cirurgias, entre as quais 500 transplantes e 6 milhões de exames laboratoriais. Como faculdade e hospital formam uma teia complexa e indistinta, o acompanhamento da notável diversidade de pacientes faz a diferença na formação de novos médicos e pesquisadores. Atualmente, a FMUSP abriga 1.422 estudantes de graduação (nota A no Provão) e 2.055 de mestrado e doutorado (70% dos programas de pós-graduação da FMUSP foram muito bem avaliados pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). A tradição de grande escola de medicina remonta as décadas de 1940 e 1950 - quando um professor catedrático era tão respeitado quanto o governador do Estado e os alunos, submetidos a disciplina férrea, iam às aulas de terno e gravata. Hoje, o perfil dos 344 docentes da FMUSP mudou bastante. "O campo de conhecimen-


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to da medicina expandiu-se e já não cabe naquelas antigas cadeiras dos catedráticos. Os médicos se especializam cada vez mais cedo", diz Ricardo Brentani, presidente da Comissão de Pesquisa da faculdade. Outra mudança, essa mais recente, é a dedicação cada vez maior à pesquisa científica. Nos últimos dez anos, cresceu progressivamente a produtividade dos 62 Laboratórios de Investigação Médica (LIM), os braços de pesquisa da FMUSP. Tome-se como referência os trabalhos originais publicados em revistas indexadas na base do Institute for Scientific Information (ISI). Em 1993, constam 72 trabalhos dos LIM na base ISI. Em 2002, esse número saltou para 338. Em termos relativos, o avanço também é significativo. Os LIM eram responsáveis por 1,6% de todas as publicações brasileiras na base ISI em 1993. Em 2002, essa fatia alcançou 3%. Essa mudança foi provocada por um conjunto de medidas que estimularam a atividade de pesquisa. Uma fração de 2% do dinheiro que o HC recebe do Sistema Único de Saúde (SUS), o equivalente a R$ 2,6 milhões em 2002, passou a ser destinada aos LIM - e distribuída segundo critérios de produtividade, como a publicação de trabalhos em revistas científicas de impacto e a capacidade de atrair recursos externos para pesquisa. Os laboratórios são avaliados anualmente. Conforme a nota dada, cada LIM recebe um quinhão maior ou menor. Esse dinheiro é gasto com autonomia, na compra, por exemplo, de material ou de passagens aéreas para pesquisadores participarem de congressos. Os 126 docentes com dedicação exclusiva à faculdade também conquistaram o direito a uma suplementação salarial variável. São avaliados com notas de A a D. Os de nota A chegam a receber R$ 3 mil extras no contracheque. Os de nota D não ganham nada. "A avaliação leva em conta várias atividades do professor, mas, sobretudo, a dedicação à pesquisa", diz José Eluf Neto, diretor-executivo dos LIM. As agências de fomento também tiveram um papel importante nesse novo perfil. "O raciocínio é simples", diz Maria Mitzi Brentani, professora associada da disciplina de Oncologia. "Com as verbas de agências, os laboratórios equiparam-se para fazer pesquisa, desonerando o orçamento da faculdade e do HC, que pode ser gasto com salários e atendimento ao público", diz. Em 2002, essas verbas alcançaram R$ 15,6 milhões. As principais fontes foram a FAPESP, com R$ 8,6 milhões, e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), com R$ 1,8 milhão. "No contexto da pesquisa biomédica, a FMUSP toma parte de todos os grandes programas da FAPESP. Participou de todos os genomas. E muitos dos professores têm programas temáticos com a instituição", diz Eduardo Massad, professor de Informática Médica. Massad coordena um LIM que se notabilizou pela elaboração de modelos matemáticos capazes de avaliar a disseminação de doenças e pela criação de estratégias para com52 ■ MARÇO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 97

batê-las. Recentemente, uma pesquisa anteviu a eclosão de febre amarela numa região do interior paulista fustigada pela dengue e povoada pelo mosquito que espalha as duas doenças - o que aconteceu em seguida. Células-tronco - Um exemplo da expansão da atividade de pesquisa é o Laboratório de Genética e Cardiologia Molecular, que ocupa o 10° andar do novo edifício do Instituto do Coração, o Incor. Com um projeto arquitetônico inspirado em laboratórios da Universidade Harvard, a instituição lidera, desde a primeira metade dos anos 1990, uma pesquisa de mapeamento de regiões cromossômicas ligadas à hipertensão. Outra linha de pesquisa busca entender como fatores genéticos e ambientais interagem para o aumento do risco cardiovascular e demonstrou que a hipertrofia no coração de camudongos é tão mais grave quanto maior for o número de cópias do gene responsável pela produção da enzima conversora de angiotensina I (ECA). A alteração genética, é certo, não é causa direta do problema, mas desponta quando um outro gatilho sobrecarrega o coração. O Laboratório, que se integrou ao esforço para mapear a bactéria Xylella fastidiosa, hoje abriga uma vasta coleção de pesquisas, que vão desde a genética envolvida na resistência das veias safena usadas como pontes no coração até a aplicação de células-tronco para reconstituir regiões do músculo cardíaco afetadas por enfartes. Especula-se que a pesquisa de células-tronco possa ter um efeito mobilizador da opinião pública semelhante ao advento dos transplantes cardíacos no final dos anos 1960. Dez pacientes enfartados já receberam injeções dessas células, capazes de se transformar em qualquer tecido. Reagiram bem. A pesquisa agora vai seguir com mais 60 pacientes para avaliar a eficácia desse procedimento na capacidade de reconstituir vasos e tecidos. "São imensas as oportunidades de novos tratamentos relacionados à terapia celular e à terapia gênica", diz o professor José Eduardo Krieger, responsável pelo laboratório. O laboratório do Incor nem de longe é exemplo isolado. Recentemente, a pesquisadora Ana Claudia Latronico, da Unidade de Endocrinologia do Desenvolvimento do Hospital das Clínicas, ganhou o Prêmio Richard E. Weitzman, concedido em junho pela Sociedade Americana de Endocrinologia, pela participação em estudos pioneiros que descrevem novas mutações genéticas causadoras de doenças hormonais. A equipe chefiada pela professora de oncologia Maria Mitzi Brentani, no Instituto de Radiologia, participa de pesquisas como a procura de marcadores moleculares relacionados à resposta à quimioterapia dos pacientes de câncer de mama. A equipe apresentou recentemente num congresso as características genéticas que, supostamente, fazem pacientes até com tumores avançados reagirem bem à doxorrubicina, droga quimioterápica. A descoberta, agora submetida a estudos mais amplos, pode ter um papel importante na escolha do tratamento para cada pacien-


Ensino e pesquisa são indissociáveis na FMUSP, mas o gigante HC reforçou o caráter assistencial

te, de acordo com as peculiaridades de seu DNA. "Nosso objetivo de longo prazo é encontrar um largo espectro de marcadores de tumores", diz a professora Maria Mitzi Brentani. Outra linha de pesquisa investiga a relação entre os baixos níveis de vitamina D no sangue e a eclosão do câncer de mama em mulheres com mais de 65 anos. Uma hipótese é que a baixa exposição ao sol e a alimentação pobre tenham um papel na deficiência da vitamina D e no conseqüente surgimento da doença. No Laboratório de Pneumologia, o professor-assistente Marcelo Amato desenvolveu um equipamento capaz de produzir imagens, através da emissão de pulsos elétricos, das condições pulmonares de pacientes de UTIs submetidos a respiração artificial. É comum que a ventilação forçada cause danos ao pulmão e os médicos têm ferramentas pouco acuradas para detectar esses problemas. Certas manobras, como a fisioterapia e a calibragem dos equipamentos, podem ajudar a prevenir o efeito colateral. Em 1998, o grupo da Pneumologia publicou na revista científica The New England Journal of Medicine um estudo mostrando os danos da ventilação mecânica. "Um caso famoso é o do presidente Tancredo Neves, que, depois de várias semanas internado e respirando artificialmente, sofreu da-

nos irreversíveis nos pulmões", diz Marcelo Amato. O equipamento consiste numa cinta atada ao tórax, repleta de eletrodos, que emitem pulsos na direção do pulmão em freqüências imperceptíveis ao corpo humano. Em um monitor, os pulsos se transformam em imagens que revelam os movimentos do pulmão - o ar que entra e sai é um isolante elétrico. O aparelho será avaliado na UTI do Hospital das Clínicas. Ensino e pesquisa são indissociáveis na trajetória da FMUSP, mas a balança historicamente pendeu para a formação profissionalizante. A faculdade começou a funcionar em 1913 e ganhou sua sede atual, um conjunto arquitetônico em frente ao Cemitério do Araçá, dezoito anos mais tarde. O prédio foi tombado pelo Patrimônio Histórico em 1981, por encarnar um conceito de escola médica modelar para a época - dois grandes departamentos (o laboratório e o clínico) instalados num bloco só, num "hospital de ensino". Como os professores deveriam dedicar todo seu tempo à faculdade, a contrapartida arquitetônica foi a criação de gabinetes para os docentes e seus assistentes. O conjunto foi construído com dinheiro da Fundação Rockefeller e reproduzia o ensino médico praticado nos Estados Unidos, fortemente vinculado à pesquisa. Mas a medicina que se praticava no Brasil, naquela época, tinha sotaque francês um modelo mais empírico e menos investigativo. Até a Segunda Guerra, quando os professores da FMUSP PESQUISA FAPESP 97 ■ MARÇO DE 2004 ■ 53


USP queriam se reciclar, costumavam ir a Paris. Segunda mão - Em 1934, com a fundação da USP, a Faculdade de Medicina integrou-se, oficialmente, ao corpo da Universidade. A criação do Hospital das Clínicas, em 1944, e o gigantismo que logo adquiriu moldaram o caráter assistencial e formador de bons médicos da faculdade. A pesquisa acabou ficando em segundo plano. "Se você analisar a biografia dos grandes professores da faculdade naquela época, A construção do prédio, no final dos anos 20, verá que eram grandes foi financiada pela Fundação Rockefeller clínicos ou cirurgiões, grandes professores, mas hoje seriam vistos como pesquisadores pouco produtifuncionários e a complementação salarial de empregados vos", diz o professor Eduardo Massad. A pesquisa que do HC. Exige-se que os médicos trabalhem em tempo por muito tempo se fez na FMUSP, e ainda ocupa espaintegral - podendo até mesmo atender pacientes particuço lá dentro, foi a que aproveita a diversidade de pacienlares em consultórios na instituição. O exemplo do Incor tes e seus diagnósticos para testar remédios. "Mas é um inspirou a criação, nos anos 1980, da Fundação Faculdade tipo de pesquisa de segunda mão. As drogas não são dede Medicina da USP, que também busca levantar recursos senvolvidas aqui dentro", completa Massad. A reforma privados para a instituição, mas não tem tanta flexibilidauniversitária de 1969 representou um golpe nas ativide quanto a Fundação Zerbini. dades da pesquisa. Com a transferência das cadeiras básicas da FMUSP para a Cidade Universitária, a faculdade riamos um ambiente em que médicos ressentiu-se com a perda de pesquisadores e laboratórios. e funcionários trabalham motivados e A reação veio em 1975, com a criação dos Laboratórios de a rotatividade é muito baixa, de 3% Investigação Médica, os LIM, protagonistas da atual esdos funcionários ao ano", diz o profescalada de pesquisas. sor Sérgio Almeida de Oliveira, direTambém remonta aos anos 1970 uma experiência de tor da Divisão de Cirurgia Torácica e gestão que teria impacto na instituição. Lastreado pelo Cardiovascular. A Fundação Zerbini prestígio popular que conquistou ao realizar o primeiro reserva verbas para que os médicos do hospital submetam transplante cardíaco do Brasil, o cirurgião Euryclides Zersuas pesquisas a revistas internacionais e participem de bini (1912-1993) conseguiu apoio e dinheiro para criar congressos. Em 2002 havia 463 projetos de pesquisa em um apêndice do Hospital das Clínicas ligado à sua esandamento. O fôlego financeiro da instituição, contudo, pecialidade, o Instituto do Coração (Incor). Do governo vem do atendimento aos pacientes. O segundo prédio estadual, conseguiu a cessão de um terreno na avenida do Incor, recém-inaugurado, foi idealizado para abrigar dr. Enéas, à época um barranco nos fundos do Instituto apenas atividades de pesquisa. Mas, quando a Fundação Emílio Ribas. Além da competência de seus clínicos e ciZerbini colocou o projeto na ponta do lápis, viu-se que rurgiões, o Incor foi inovador no modelo de gestão. O era necessário ampliar o atendimento para arrecadar instituto é gerenciado pela Fundação Zerbini, uma enmais dinheiro do SUS e de convênios. Decidiu-se, então, tidade de direito privado, que instituiu um modelo para reservar o 6o, 7o e 8o andares para internações. Hoje, o captar recursos privados, reservando 20% dos leitos do hospital tem 510 leitos. Incor para convênios médicos e pacientes particulares. Um paradoxo permeia a história da FMUSP. Não há Os 80% demais são vagas do SUS. O modelo gerou um professor, aluno ou funcionário que não reclame da suequilíbrio financeiro que garantiu a continuidade de perlotação do HC e de seu impacto perturbador no projetos de pesquisa nos anos 1980, quando a economia ambiente de ensino e na pesquisa. Mas é a demanda da do país estagnou. A fundação promove a contratação de população que abastece o complexo com uma diversida54 ■ MARÇO DE 2004 ■ PESHUISA FAPESP 97


países, vemos que e possível melhorar", diz. É difícil mensurar o impacto que o movimento exagerado do HC tem na formação dos estudantes. "Nossos alunos são tão bons que superam quaisquer deficiências da instituição", diz o professor Paulo Saldiva, coordenador do Laboratório de Poluição Atmosférica da FMUSP, um dos mais produtivos da instituição, com mais de 20 pesquisas publicadas por ano em revistas internacionais. O vestibular da FMUSP é concorridíssimo e seleciona a elite dos candidatos - a nota de corte do curso de medicina é a mais alta entre todas as carreiras. Depois vem a disputa pelas vagas na residência médica, que atrai os melhores alunos do país. Igualmente, é concorrido o ingresso nos programas de pósgraduação. "Podemos nos dar ao luxo de não absorver os pesquisadores que formamos, porque no ano que vem virá uma turma tão boa quanto a atual", diz Saldiva. Os pesquisadores da FMUSP gostariam que a instituição investisse mais nos laboratórios de investigação médica. Lembram que o SUS remunera o Hospital das Clínicas segundo uma tabela especial, pagando até 46% a mais a cada procedimento porque se trata de um instituição dedicada à pesquisa. "O hospital recebe do SUS 46% a mais por fazer pesquisa, mas reverte à pesquisa apenas 2%. Pode-se dizer que é pouco", diz o professor Eduardo Massad. Mas mesmo a concessão dos atuais incentivos à pesquisa teve alguma oposição dos docentes que cultuam a tradição profissionalizante da instituição. Essa tensão é saudável. Ninguém duvida de que a grande vocação da FMUSP continuará sendo a de grande escola médica e a do HC, de importante pólo de assistência à população. Mas o prestígio do quadrilátero das avenidas dr. Arnaldo e dr. Enéas tem a muito a ver com a pesquisa produzida ali, com a capacidade que a instituição mantém de empurrar as fronteiras da medicina. •

iss^^JR^ Dr. Arnaldo, cirurgião pioneiro (acima e à dir.), fundou a FMUSP em 1913, mas não viveu para ver a inauguração da sede, em 1931 (alto)

de de diagnósticos e tratamentos que são uma matériaprima fundamental para o ensino e a pesquisa. O prestígio da instituição vem de sua capacidade de fazer medicina de ponta, que é indissociável da pesquisa. Recentemente, a direção do hospital anunciou a decisão de rejeitar o atendimento de casos simples para investir na vocação original da instituição, que são os casos complexos. A medida, a rigor, já era realidade. O HC tem um telefone para marcar consultas, criado para evitar as filas. Na prática, funciona como uma peneira. Recebe 20 mil ligações por dia e agenda 200 consultas. "Sem dispersar esforços com casos sem gravidade, seremos capazes de fazer pesquisas de mais qualidade e melhorar o ensino", afirma Giovanni Cerri, atual diretor da FMUSR "A faculdade está muito bem quando é comparada a escolas do Brasil, mas, diante do desempenho de escolas de outros

PESaUISA FAPESP 97 ■ MARÇO DE 2004 ■ 55


Biblioteca de Revistas Científicas disponível na Internet www.scielo.org

■ Comunicação

Informação científica O objetivo do estudo O processo de consentimento livre e esclarecido em pesquisa: uma nova abordagem, desenvolvido por pesquisadores do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, foi avaliar a possibilidade de se fornecer conteúdo de forma coletiva para pessoas convidadas a participarem de alguma investigação científica. Assinado por José Roberto Goldim, Carolina da Fonte Pithan, Juliana Ghisleni de Oliveira e Márcia Mocelin Raymundo, o artigo se baseou na transmissão de informações sobre uma determinada pesquisa da área de ginecologia. Os dados foram fornecidos aos potenciais participantes em uma palestra única. Durante o evento, foram apresentados os procedimentos, riscos e benefícios daquela investigação científica. Após todos os esclarecimentos sobre o estudo, foram entrevistados 45 participantes do projeto. O objetivo foi detectar o grau de assimilação das informações fornecidas durante o simpósio. Os resultados mostraram que todos os participantes se lembraram dos procedimentos a que eles seriam submetidos, 54% se recordaram dos riscos e 96% dos prováveis benefícios daquele projeto de pesquisa. Os pesquisadores compararam os presentes resultados com os obtidos em um estudo similar que utilizou o processo de consentimento livre e esclarecido convencional pela transmissão individual das informações. As pessoas, diz a pesquisa, assimüaram mais as informações passadas de forma coletiva. "O indivíduo adequadamente informado está em melhores condições de exercer livremente a sua escolha entre participar ou não de uma pesquisa", atestam os autores. REVISTA DA ASSOCIAçãO MéDICA BRASILEIRA N° 4 - SãO PAULO - 2003

- VOL. 49 -

http://www.scielo.br/scielo.php?script=scLarttext&pid=S010442302003000400026&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt#back10

■ Sociologia

Domésticas e ascensão social A proposta do artigo Urbanização e emprego doméstico, de Christine Jacquet, pesquisadora da Universidade Católica de Salvador (UCSal), é analisar as lógicas que presidem a migração das mulheres em direção às cidades, a partir do estudo da população doméstica de Fortaleza. A justificativa para a realização do trabalho

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é o fato de que a maioria das domésticas que residem no emprego, geralmente oriundas do meio rural, participa ativamente da formação da população urbana brasileira. "A hipótese central desenvolvida no estudo é de que o ingresso na domesticidade urbana atende a um projeto pessoal de ascensão social e a um objetivo de ordem matrimonial, que resulta da desvalorização social e do empobrecimento dos rapazes no meio rural", diz o artigo. No Brasil contemporâneo, a população urbana se caracteriza pelo desequilíbrio entre os sexos: 94 homens para cada cem mulheres. Nas capitais, a desproporção é maior, pois o número de homens baixa para 91 a cada cem mulheres. Nas zonas rurais, ao contrário, observa-se um considerável déficit feminino: 109 homens para cada cem mulheres. A população doméstica de Fortaleza, composta por 95% de pessoas do sexo feminino, concentra uma taxa elevada de migrantes nativas da zona rural (68,4%). "O êxodo do campo, que alimenta o crescimento da população urbana, é um fenômeno majoritariamente feminino. No que diz respeito às domésticas brasileiras, elas participam ativamente do desequilíbrio entre os sexos. Na população urbana dos diferentes estados do Brasil, existe uma estreita correlação entre o excedente feminino e a presença de domésticas", revela o estudo. REVISTA BRASILEIRA DE CIêNCIAS SOCIAIS

- VOL. 18 - N°

52 - SàO PAULO - JUN. 2003 http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010269092003000200009&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Osteoporose

Alerta às crianças Revisar a literatura acerca da ocorrência de osteoporose na infância e adolescência, abordando o diagnóstico, a prevenção e o tratamento da doença é o objetivo do estudo Osteoporose na infância e na adolescência, desenvolvido por quatro pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), Lúcia Campos, Bernadete Liphaus, Clóvis Silva e Rosa Pereira. "A osteoporose é um importante problema de saúde em todas as partes do mundo. A partir dos 50 anos, 30% das mulheres e 13% dos homens po-


derão sofrer algum tipo de fratura", aponta o artigo. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a osteoporose é definida como uma doença metabólica óssea sistêmica, caracterizada pela diminuição da massa óssea e pela deterioração da microarquitetura do tecido ósseo, com conseqüente aumento da fragilidade do osso e da suscetibilidade a fraturas. Segundo os autores do estudo, a incidência de fraturas vai quadruplicar nos próximos 50 anos em decorrência do aumento da expectativa de vida. O artigo se baseou em informações de revisão bibliográfica, realizada por busca direta de artigos científicos e por pesquisa em bases de dados especializadas no assunto. "O pediatra tem a função de garantir as condições necessárias para que crianças e adolescentes desenvolvam a melhor qualidade possível de massa óssea, evitando fraturas na idade adulta", diz o artigo. A conclusão é de que a osteoporose deixou de ser uma preocupação exclusiva de indivíduos adultos e idosos, uma vez que a densidade mineral óssea dessas faixas etárias mais avançadas depende do pico de massa óssea adquirido na adolescência ou até o final da segunda década de vida. JORNAL DE PEDIATRIA (RIO DE JANEIRO)

• VOL. 79-N° 6

- PORTO ALEGRE - NOV./DEZ. 2003 http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S002175572003000600005&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Saúde

Controlando a dor pós-operatória A dor aguda pós-operatória pode apresentar grande influência na evolução dos pacientes cirúrgicos. O artigo Influência da criação de um serviço de tratamento da dor aguda nos custos e no consumo de drogas analgésicas na sala de recuperação pós-anestésica, de três anestesiologistas da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre (Marcos Emanuel Gomes, Paulo Ernani Evangelista e Florentino Fernandes Mendes), tem o objetivo de descrever a criação de um serviço de tratamento da dor aguda, em relação ao custo e ao consumo de drogas analgésicas utilizadas para o tratamento da dor. Um levantamento realizado nos Estados Unidos revelou que aproximadamente 75% dos pacientes submetidos a cirurgias experimentaram dor pós-operatória sem alívio adequado. O estudo se baseou no fato de que a dor pode influenciar de forma negativa a evolução do paciente, retardando sua recuperação. "O tratamento eficaz da dor pós-operatória contribui para a obtenção de uma mobilização mais precoce, um menor período de hospitalização e diminuição de custos, além de proporcionar maior conforto e satisfação ao paciente", justificam os pesquisadores. Foi realizada uma coleta prospectiva de dados, por meio de sistemas informatizados da Controladoria da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, relativos ao consumo e custo de drogas analgésicas na sala de recuperação e ao número de cirurgias realizadas. Os resultados mostraram que houve um aumento do consumo e dos custos com analgésicos, assim como

uma modificação no perfil de utilização no período estudado, entre os anos 2000 e 2001. Por conta disso, foi criado um Serviço de Tratamento de Dor Aguda (STDA), em Porto Alegre, o que determinou uma mudança no perfil dos analgésicos utilizados para o tratamento da dor. A conclusão é de que, devido à criação deste novo departamento, houve um aumento do consumo e dos custos dessas drogas, porque os pacientes passaram a ter sua dor pós-operatória mais bem controlada. REVISTA BRASILEIRA DE ANESTESIOLOGIA CAMPINAS - NOV./DEZ. 2003

- v. 53 - N° 6 -

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S003470942003000600012&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Medicina esportiva

Exercícios para os hipertensos Com base no princípio de que o exercício físico é aceito como estratégia complementar no tratamento da hipertensão arterial, o estudo Influência de programas não-formais de exercícios (doméstico e comunitário) sobre a aptidão física, pressão arterial e variáveis bioquímicas em pacientes hipertensos procurou investigar os efeitos de dois programas de exercício sobre a pressão arterial, aptidão física e perfil bioquímico sangüíneo de adultos hipertensos. Participantes de um programa de exercícios não supervisionados e outro do tipo "ginástica comunitária" foram acompanhados por 18 meses. Os cientistas analisaram os níveis de pressão arterial e aptidão física, como peso corporal, percentual de gordura e capacidade cardiorrespiratória, além de variáveis bioquímicas, como colesterol total, triglicerídeos e glicemia. Os resultados descritos no estudo indicaram que ambos os programas exercem efeitos positivos sobre a condição dos pacientes hipertensos, principalmente no que diz respeito à composição corporal, em termos quantitativos e de distribuição regional. Quanto à aptidão cardiorrespiratória e pressão arterial, os resultados do estudo foram pouco conclusivos. Apesar de diferenças significativas terem sido identificadas no sentido da melhora, não houve um padrão de comportamento que desse claramente suporte a esses efeitos. "A carência de uma análise acurada de variáveis potencialmente intervenientes, como dieta e evasão, deve ser considerada em estudos futuros", alerta o artigo. REVISTA BRASILEIRA DE MEDICINA NO ESPORTE - VOL. N° 5 - NITERóI - SET./OUT. 2003

9-

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S151786922003000500003&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

PESQUISA FAPESP 97 ■ MARÇO DE 2004 ■ 59


ITECNOLOGIA

LiNHR DE PRODUçãO

■ Etiqueta no centro de uma parceria A Philips e a IBM fecharam parceria para desenvolver sistemas de identificação por radiofreqüência (RFID, ou radio frequency identification, do inglês), também chamadas de etiquetas inteligentes, e de aplicações para smartcards. O resultado mais imediato da parceria é o desenvolvimento e implementação de uma solução RFID para a Philips Semicondutores, que tem como objetivo melhorar e acompanhar os processos da cadeia de suprimentos, obtendo todas as informações possíveis de um produto. Um dos exemplos práticos é a adoção dessas etiquetas em produtos de supermercado, dispensando a necessidade de tirar as compras do carrinho na hora do pagamento no caixa. Será possível também ter informações dos produtos como temperatura, umidade ou vencimento. Já as soluções smartcard têm como

MUNDO

Diagnóstico estelar Uma técnica pioneira desenvolvida pela Universidade de Leicester, na Inglaterra, recorreu a um equipamento destinado a estudar a luz emitida pelas galáxias para analisar o DNA a partir de chips de genes. O instrumento foi criado pelos laboratórios da Agência Espacial Européia, na Holanda, e permite diagnosticar doenças a partir de uma simples gota de sangue e comparar as características genéticas em amostras diferentes {London Press Service). Os chips são cobertos com DNA de milhares de genes que se unem combinando as seqüências quando uma amostra é jogada neles. Os pesquisadores usam marcadores fluorescentes que indicam onde houve a ligação e quais genes foram ativados. O problema é que as amostras têm de ser testadas ao mesmo tempo e no mesmo chip. A professora de biologia Pat HeslopHarrison e sua colega Trude Schwarzacher, junto com o professor de astronomia George Fraser e Andrew Holland, adaptaram a técnica de pesquisa espacial que usa propriedades de supercondutividade e associação de elétrons a temperaturas perto do zero absoluto (-273° Celsius) para analisar a fraca luz vinda de áreas do início da formação do Universo. O equipamento, conhecido como câmera de junção do túnel de supercondutividade (Scam), permitiu comparar com precisão quatro amostras biológicas. Segundo Pat Heslop-Harrison, a técnica dispensa filtros e outros sistemas que levam à perda de sensibilidade e ficam aquém da resolução necessária. •

60 ■ MARÇO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 97

foco os setores de finanças, transportes e venda de ingressos para eventos musicais e esportivos. •

■ Mais autonomia para portáteis Um novo material desenvolvido pela empresa Fujitsu, do Japão, vai permitir que microcélulas a combustível garantam a notebooks, computadores de mão e telefones celulares aumento de capacidade e mais tempo de autonomia. A tecnologia utiliza metanol (álcool extraído de madeira ou de gás natural) em alta concentração como fonte de hidrogênio para servir de combustível. Até agora, PCs, computadores de mão e celulares usavam baterias de íon de lítio, mas a demanda por melhor desempenho e funcionalidade também exigiu mais potência, e esse tipo de bateria já havia atingido sua capacidade máxima. As microcélulas desenvolvidas para celu-


lares usam soluções de álcool como combustível, que são de cinco a dez vezes mais potentes por unidade de peso que a bateria de íon de lítio. Essa tecnologia aplicada em um protótipo de notebook permitiu o uso do aparelho por oito a dez horas. •

■ Luz interna nas bolsas femininas No futuro, as mulheres não precisarão mais revirar as bolsas para, em ambientes pouco iluminados, encontrar batom, telefone celular, chaves, canetas e outros apetrechos. Um protótipo de uma bolsa feminina com o interior iluminado foi fabricado pela Bree, empresa alemã fabricante de bolsas e utensílios de couro, utilizando um filme plástico eletroluminescente que emite luz quando submetido a uma corrente elétrica. O filme é ligado a uma pequena bateria e acende ao simples acionar de um botão. Sua estrutura é basicamente a de um sanduíche. O interior é composto por camadas de polímeros eletroluminescentes e nas pontas ficam os eletrodos. O filme foi desenvolvido pela alemã Bayer Polymers em parceria com a suíça Lumitec, que trabalham para aplicar a mes-

ma tecnologia em filmes rígidos e com maior espessura para a moldagem de painéis usados no interior de veículos. •

■ Software encurta busca científica Um novo software de bioinformática desenvolvido pelo Centro Médico do Sudoeste em Dallas, nos Estados Unidos, está poupando o tempo de pesquisadores em busca de informação em áreas como Aids, câncer, pediatria e cardiologia. O aplicativo "simula o processo de pensamento científico" na pesquisa de dados, explica o professor de bioquímica e medicina interna Harold Garner, criador do programa junto com Jonathan Wren {Southwestern Medicine Magazine). "Nosso trabalho foi ensinar o computador a 'ler' literatura científica e fazer associações relevantes", afirma Wren. O software, chamado Iridescent, já deu sua contribuição ao ajudar a prever novos usos para drogas existentes no combate a doenças cardíacas. O aplicativo constrói uma rede de informações presentes na Biblioteca Nacional de Medicina, Medline, que abarca medicina, enfermagem, odontologia e saúde. •

BRASIL

Movidos pelo vento

Aerogerador transforma energia do vento em elétrica

Uma usina eólica destinada a fornecer energia elétrica aos campos de petróleo de Macau, Serra, Aratum e Salina Cristal, no Rio Grande do Norte, está em operação desde o final de janeiro. Sua capacidade de produção é de 1,8 megawatt (MW), equivalente ao consumo de uma cidade com 10 mil habitantes. A Petrobras investiu R$ 6,8 milhões no novo sistema, instalado na cidade de Macau, que vai proporcionar uma economia de 33 milhões de metros cúbicos de água dos reservatórios do sistema hidrelétrico do São Francisco. Três aerogeradores, com potência de 600 quilowatts (kW) e 46 metros de altura, transformam a energia dos ventos em elétrica. "A busca por fontes renováveis de energia, como a eólica e a solar, tem pautado novos projetos da Petro-

bras", diz Mozart Schmitt de Queiroz, gerente de Energia Renovável da empresa. Um deles, já em operação para testes de desempenho técnico e econômico, destina-se a bombear petróleo de um poço em terra de Mossoró (RN) utilizando a energia solar. Caso o sistema se mostre viável, deverá ser instalado em outros poços de produção em campos isolados da rede potiguar. Nos planos de curto prazo da empresa está prevista ainda a instalação de mais duas usinas eólicas. Uma delas destina-se a fornecer energia para um terminal da empresa em Rio Grande, no Rio Grande do Sul, e a outra para uma base operacional em uma região próxima a Campos, no Rio de Janeiro. Segundo Mozart Queiroz, estima-se que cada uma produza cerca de 3 MW. •

PESOUISA FAPESP 97 ■ MARÇO DE 2004 ■ 61


lares usam soluções de álcool como combustível, que são de cinco a dez vezes mais potentes por unidade de peso que a bateria de íon de lítio. Essa tecnologia aplicada em um protótipo de notebook permitiu o uso do aparelho por oito a dez horas. •

■ Luz interna nas bolsas femininas No futuro, as mulheres não precisarão mais revirar as bolsas para, em ambientes pouco iluminados, encontrar batom, telefone celular, chaves, canetas e outros apetrechos. Um protótipo de uma bolsa feminina com o interior iluminado foi fabricado pela Bree, empresa alemã fabricante de bolsas e utensílios de couro, utilizando um filme plástico eletroluminescente que emite luz quando submetido a uma corrente elétrica. O filme é ligado a uma pequena bateria e acende ao simples acionar de um botão. Sua estrutura é basicamente a de um sanduíche. O interior é composto por camadas de polímeros eletroluminescentes e nas pontas ficam os eletrodos. O filme foi desenvolvido pela alemã Bayer Polymers em parceria com a suíça Lumitec, que trabalham para aplicar a mes-

ma tecnologia em filmes rígidos e com maior espessura para a moldagem de painéis usados no interior de veículos. •

■ Software encurta busca científica Um novo software de bioinformática desenvolvido pelo Centro Médico do Sudoeste em Dallas, nos Estados Unidos, está poupando o tempo de pesquisadores em busca de informação em áreas como Aids, câncer, pediatria e cardiologia. O aplicativo "simula o processo de pensamento científico" na pesquisa de dados, explica o professor de bioquímica e medicina interna Harold Garner, criador do programa junto com Jonathan Wren {Southwestern Medicine Magazine). "Nosso trabalho foi ensinar o computador a 'ler' literatura científica e fazer associações relevantes", afirma Wren. O software, chamado Iridescent, já deu sua contribuição ao ajudar a prever novos usos para drogas existentes no combate a doenças cardíacas. O aplicativo constrói uma rede de informações presentes na Biblioteca Nacional de Medicina, Medline, que abarca medicina, enfermagem, odontologia e saúde. •

BRASIL

Movidos pelo vento

Aerogerador transforma energia do vento em elétrica

Uma usina eólica destinada a fornecer energia elétrica aos campos de petróleo de Macau, Serra, Aratum e Salina Cristal, no Rio Grande do Norte, está em operação desde o final de janeiro. Sua capacidade de produção é de 1,8 megawatt (MW), equivalente ao consumo de uma cidade com 10 mil habitantes. A Petrobras investiu R$ 6,8 milhões no novo sistema, instalado na cidade de Macau, que vai proporcionar uma economia de 33 milhões de metros cúbicos de água dos reservatórios do sistema hidrelétrico do São Francisco. Três aerogeradores, com potência de 600 quilowatts (kW) e 46 metros de altura, transformam a energia dos ventos em elétrica. "A busca por fontes renováveis de energia, como a eólica e a solar, tem pautado novos projetos da Petro-

bras", diz Mozart Schmitt de Queiroz, gerente de Energia Renovável da empresa. Um deles, já em operação para testes de desempenho técnico e econômico, destina-se a bombear petróleo de um poço em terra de Mossoró (RN) utilizando a energia solar. Caso o sistema se mostre viável, deverá ser instalado em outros poços de produção em campos isolados da rede potiguar. Nos planos de curto prazo da empresa está prevista ainda a instalação de mais duas usinas eólicas. Uma delas destina-se a fornecer energia para um terminal da empresa em Rio Grande, no Rio Grande do Sul, e a outra para uma base operacional em uma região próxima a Campos, no Rio de Janeiro. Segundo Mozart Queiroz, estima-se que cada uma produza cerca de 3 MW. •

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LINHR DE PRODUçãO

[

BRASIL

Pesca em águas contaminadas m estudo da qualidade das águas de pesqueiros, los de criação de peixes e e pesque-pague, mostrou ue 14 das 40 regiões esadas no Estado de São aulo apresentaram resíduos de agrotóxicos não permitidos para essa atividade e 11 delas tinham índices de coliformes fecais acima dos limites estipulados. A pesquisa foi conduzida por pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Alimentos (Ital), em parceria com a Coordenadoria de Defesa Agropecuária (CDA), órgão da Secretaria da Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo. Em cada uma das foram feitas quatrc

■ Captura de polvos com potes plásticos Alguns navios pesqueiros do litoral paulista estão, desde o final de 2002, capturando polvos com potes plásticos. Esse sistema de pesca resultou de um estudo sobre a dinâmica populacional e a avaliação de estoques do polvo comum {Octopus vulgaris) no Sudeste e Sul do Brasil, com apoio da FAPESP, desenvolvido por Acácio Ribeiro Gomes Tomás, do Instituto de Pesca, órgão ligado à Secretaria da Agricultura e Abastecimento. "O trabalho apresentou resultados bastante promissores com relação à captura de polvos, considerando que a população desova ao longo de todo o ano e atinge a maturidade sexual

Tanques pesqueiros com resíduos de agrotóxicos

coletas, totalizando 160 locais avaliados. Os dados analisados pelo estudo, financiado pela FAPESP dentro do Programa de Pesquisas em Políticas Públicas, serviram de base para a confecção de um manual de

com cerca de 9 meses e pouco mais de 1 quilo", relata Tomás. Ele explica que essa forma de pesca permite selecionar os animais por tamanho e promove a possibilidade de exploração mais racional, uma vez que, ao am-

aos produtores pauli; com informações de como criar peixes saudáveis. O projeto, iniciado em 1999 e finalizado em 2003, foi coordenado por Dilza Maria Bassi Mantovani, do Centro de Química de Alimentos tosee Nutrição Aplicada do Ital..

pliar o número de refúgios, reduz a competição pelo território, uma das principais razões da elevada mortalidade natural entre esses moluscos. Os primeiros potes de captura, usados como refúgio pelos polvos para se proteger

Paralan/a: estágio inicial do ciclo de vida do polvo

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durante o dia, foram feitos com duas telhas de barro adaptadas por sugestão de um pescador de São Sebastião, no litoral norte de São Paulo. Normalmente eles são lançados sobre fundos de cascalho, a até 130 metros de profundidade, em número que varia de 50 a mais de 2 mil, dependendo da região. Inicialmente foram testados por uma comunidade de pescadores do Guarujá. Passado algum tempo, alguns donos de navios também começaram a adotar esse sistema, utilizado há bastante tempo em muitos países da Europa, Ásia e América. No final do ano passado, quando os potes de plástico tinham substituído os de barro, com resultados bem melhores, oito armadores já haviam aderido a essa forma de pesca. •

■ Fapemig recebe depósito de patente O laboratório mineiro Hertape, que venceu a concorrência para a produção e comercialização da vacina sintética para o controle de carrapatos (Boophilus microplus) em bovinos, fez o primeiro depósito referente à transferência de tecnologia, no valor de R$ 15 mil, em fevereiro. O valor será dividido entre a Universidade Federal de Viçosa (UFV) e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig), parceiras no desenvolvimento do produto, previsto para ser lançado comercialmente até o final do ano que vem. A pesquisa que levou à descoberta da vacina teve início em 1993, coordenada por Joaquim Hernán Patarroyo, do Departamento de


Veterinária no Instituto de Biotecnologia Aplicada à Agropecuária (Bioagro), da UFV. Ela se baseou no estudo de uma proteína retirada do intestino do carrapato. A vacina sintética, que atua na reprodução do parasita, tem eficiência de 80% sobre a população de carrapatos, causa de grandes prejuízos para a pecuária. O carrapato diminui a produção de leite, de carne e ainda pode transmitir outras doenças ao gado. •

Patentes Inovações financiadas pelo Núcleo de Patenteamento e Licenciamento de Tecnologia (Nuplitec) da FAPESP. Contato: nuplitec@fapesp.br

■ Ondas do mar geram energia A primeira usina de ondas das Américas, prevista para ser instalada na costa do Ceará até o final de 2006, vai gerar 500 quilowatts (kW), energia suficiente para atender a 200 famílias. Concebido pela Coordenação dos Programas de Pós-Graduação de Engenharia (Coppe), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em parceria com a Eletrobrás, o projeto prevê o desenvolvimento de estudos das condições do mar e de modelos experimentais para o dimensionamento do protótipo. Na usina projetada, flutuadores acoplados a uma estrutura de viga acionam uma bomba hidráulica que, por meio de movimentos alternados, injeta água nas câmaras hiperbáricas interligadas. As câmaras liberam então um jato de água com pressão e vazão necessárias para acionar uma turbina convencional, que, acoplada a um gerador, fornece energia elétrica. A principal inovação tecnológica está no uso da câmara hiperbárica, equipamento que simula ambientes marinhos de alta pressão. A câmara simulará a pressão de uma queda-d'água, similar à de uma usina hidrelétrica, para gerar energia. •

Extração do veneno de jararaca " Veneno em nanocápsulas para obtenção de soros

Nova formulação de veneno usada para a produção de soros contra venenos de animais peçonhentos, como cobra, escorpião, lagarto, aranha e abelha, apresenta vantagens sobre o método tradicional, que consiste em inocular pequenas doses de venenos em cavalos para obter o plasma com anticorpos. Depois de purificado, transforma-se no soro hiperimune, usado no tratamento de picadas de animais peçonhentos. O método proposto pela equipe do Centro de Biotecnologia do Instituto Butantan utiliza veneno inativado encapsulado em lipossomos (nanocápsulas de gordura) estabilizados para obtenção de soros. A formulação resulta em ausência de toxicidade para o animal imunizado porque o veneno encapsulado evita reações locais e sistêmicas. Além disso, há aumento na produção de anticorpos,

uma vez que os lipossomos ajudam a intensificar a resposta imunológica. A diminuição do sofrimento animal é conseqüência não só da diminuição da toxicidade do veneno como também da diminuição dos números de doses necessárias para atingir taxas de produção desejáveis. Dessa forma, a produção de anti-soros poderá ser feita com maior eficiência e menor custo. Título: Microencapsulação de Venenos de Animais Peçonhentos em Lipossomos Estabilizados de Fosfolipídeos Naturais Inventores: Maria Helena Bueno da Costa, Rosalvo Guidolin, Pedro Soares de Araújo, Reto Albert Schwendener, Gregory Gregoriadis Titularidade: Instituto Butantan/FAPESP ■ Novo controle para indústria petroquímica

Nova tecnologia de controle para ser usada em processos da indústria química,

petroquímica e de refino de petróleo. A base da metodologia é um algoritmo (processo de cálculo) matemático chamado controle preditivo, utilizado para otimizar a produção. Periodicamente o controlador tira amostras das principais variáveis do processo, como temperatura, pressão, vazão, nível da carga (petróleo, nafta ou gasolina), e o próprio programa se encarrega de recalcular em tempo real os valores ideais dessas variáveis e fazer os acertos necessários. Mas o programa usado atualmente tem limitações porque o controlador não leva em conta simultaneamente vários modelos possíveis, nem considera as particularidades de cada um. O método proposto pelo Departamento de Engenharia Química da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) compreende uma família de modelos matemáticos que representam o processo em diferentes condições operacionais, como variações na qualidade do petróleo, vazão e diferentes tipos de carga. O cálculo das ações de controle é feito de forma que não ocorra instabilidade em nenhuma das condições de processamento. Título: Controlador Preditivo Robusto de Sistemas Estáveis em Malha Aberta Inventores: Darci Odloak e Marco Antônio Rodrigues Titularidade: USP/FAPESP

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TECNOLOGIA MICROELETRONICA

Condutor ao forno Com o auxílio de um microondas caseiro, pesquisadores desenvolvem novos materiais que aumentam a memória dos computadores em até 250 vezes MARCOS DE OLIVEIRA

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m grupo de pesquisadores do Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos (CMDMC) anunciou, em São Carlos, um novo processo e uma nova formulação de chip capazes de aumentar em 250 vezes a memória dos computadores. A novidade é importante porque poderá trazer grandes benefícios para os consumidores e para os rumos da indústria da informática e eletroeletrônica no âmbito nacional e, quem sabe, internacional. No Brasil, a produção de semicondutores, componentes essenciais para o funcionamento de todo tipo de equipamento eletrônico, é um dos quatro pontos das diretrizes da política industrial do país, anunciadas pelo governo federal em novembro e que devem ser confirmadas agora em março. Esses produtos são fa64 ■ MARÇO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 97

bricados com silício e formam os famosos chips e demais dispositivos que, por sua vez, compõem os circuitos integrados e fazem o processamento e a guarda das informações de qualquer microprocessador, esteja ele na caixa eletrônica do banco, nos telefones celulares, no sistema de injeção de combustível de um carro, na TV ou nos computadores. Os semicondutores estão, portanto, cotados para receber, ao lado de softwares, fármacos e bens de capital, incentivos governamentais e empresariais para um novo impulso de desenvolvimento. Até agora, a discussão sobre a produção desses componentes no Brasil se baseia, principalmente, na importação de tecnologia, com a montagem de fábricas aqui. Com essa perspectiva, a novidade anunciada em São Carlos pode esquentar o debate sobre a produção de semicondutores no país.


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Para chegar aos novos materiais que podem servir a uma nova geração de memória computacional, os pesquisadores do CMDMC, um dos dez Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) financiados pela FAPESP, desenvolveram um processo simples e barato de deposição química com um forno de microondas caseiro que já rendeu o registro de uma patente. Também construíram um eletrodo (elemento condutor de carga elétrica) que poderá substituir a platina nos circuitos integrados. Todas essas conquistas já são alvo do interesse de uma empresa multinacional, cujo nome os pesquisadores envolvidos na negociação preferem não revelar.

positivos eletrônicos, conhecidos genericamente como chips (um sanduíche de material semicondutor e condutor intercalados por camadas de filmes dielétricos), na forma de descargas, também chamadas de indução, quando sua rigidez dielétrica é superada. A constante dielétrica do filme de titanato de bário e de chumbo produzido em São Carlos é de 1.800, mais de 250 vezes a de um capacitar (dispositivo que armazena carga elétrica num espaço bem reduzido) usado em circuitos integrados. Os filmes atuais, à base de oxido de silício e de nitreto de silício, apresentam constante dielétrica igual a sete. Em outros produtos resultantes de trabalhos de pesquisadores do CMDMC, além de norte-americanos e japoneses, as maiores constantes dielétricas para esses materiais atingiram a marca de 700 com métodos sofisticados e custosos. "Os chips atuais com constante sete são capazes, por exemplo, de processar memória de 1 gigabyte (GB), enquanto com o material que desenvolvemos poderão chegar aos 250 GB", anuncia o professor Elson Longo, coordenador do Laboratório Interdisciplinar de Eletroquímica e Cerâmica (Liec), do Departamento de Química da Universidade Federal de São Carlos (UFScar) e do CMDMC, chamado de Cepid Cerâmica, que é formado também pelo Instituto de Química (IQ) da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara, pelo Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares e pelo Instituto de Química de São Carlos da Universidade de São Paulo. "Atualmente, nas pastilhas dos semicondutores com 1 centímetro quadrado (cm2) de área é possível arquivar 1 megabyte (MB) de informações. Com a nova memória, será possível arquivar no mesmo espaço 250 MB", diz Longo. "A alta densidade dielétrica, além de representar um avanço para o armazenamento de memória dos capacitores, é necessária para manter a concentração e o armazenamento da

Materiais para futuras gerações de memória de

acesso

aleatório

Pequenos isolantes Para entender o avanço das novidades apresentadas pelos pesquisadores é preciso entrar no mundo dos semicondutores e seus componentes. O primeiro grande sinal de que o novo material em forma de películas, chamadas de filmes finos, à base de titanato de bário e chumbo (PbBaTi03), possui boas características para integrar um dispositivo de memória computacional está na sua alta constante dielétrica. Quanto maior essa constante, maior a quantidade de elétrons que podem ser arquivados na memória. Esse parâmetro mede quanto o material permite o deslocamento da carga elétrica através de sua superfície para outras camadas internas dos componentes. Na verdade, esses materiais são isolantes, incapazes ou ineficientes para conduzir uma corrente elétrica, ao contrário de um condutor em que a carga flui normalmente. Já os semicondutores, materiais formados por elementos químicos como silício, germânio ou compostos como arseneto de gálio, possuem uma condutividade elétrica intermediária, armazenando menos elétrons que um metal, porém proporcionando um controle mais fácil e ordenado dessas partículas. Num material dielétrico, a carga é deslocada para outro nível dentro dos dis66 ■ MARÇO DE 2004 ■ PES0UISA FAPESP 97

carga elétrica dentro dos padrões exigidos para as futuras gerações de memória de acesso aleatório dinâmico, chamadas de Dram (do inglês Dynamic Random Acess Memory), que fazem o armazenamento de dados e de informações do software utilizado no momento do uso do computador, resultando também em um menor consumo de energia elétrica." A ssim, a pesquisa que resultou I^L nos filmes finos de titana^^A to de bário e de chumbo È M faz parte de uma corrida ^L. -A. mundial, com mais de 20 anos de percurso, para superar um dos problemas da microeletrônica: o tamanho da célula de memória. Essa peça está sendo reduzida a cada ano com o objetivo de aumentar o número desses dispositivos e proporcionar maior capacidade de arquivamento e processamento de dados para os computadores. Um caminho que vem da solicitação evolutiva dos softwares, cada vez mais variados, disseminados e sofisticados. A diminuição dos dispositivos de memória também facilita a miniaturização e a criação de novos equipamentos eletrônicos ou o aumento das funções desses aparelhos. Desde os anos 1970, é permanente a procura pela multiplicação de memória e espaço dentro dos dispositivos semicondutores. A mais famosa predição sobre esse progresso da informática foi feita pelo engenheiro eletrônico Gordon Moore, um dos fundadores da Intel, principal fábrica de semicondutores, instalada nos Estados Unidos. Ele disse que o crescimento da indústria de computadores provocaria o aumento da capacidade de processamento dos chips, que deveria dobrar a cada dois anos. Delineada num artigo escrito por ele, em 1965, para a revista Eletronics, a previsão ficou conhecida mais tarde como a Lei de Moore. Durante esse tempo, a indústria eletroeletrônica tem seguido à risca essa evolução ou até com mais rapidez. O tamanho das memórias RAM, por exemplo, tem quadruplicado a cada três anos. Ao mesmo tempo, está cada vez mais difícil manter a densidade de elétrons em capacitores, utilizando os atuais derivados do silício. O capacitor, um dos mais importantes elementos desse tipo de dispositivo, tem suas dimensões


Camadas inovadoras

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diminuídas a cada ano. No início dos anos 1990, a área desse componente era de 3,6 mm2. Atualmente, é de 0,1 mm2. A estimativa é de que essa área diminua até 0,04 mm2 entre 2007 e 2010. Também diminui de tamanho e aumenta a quantidade de transistores (ampliadores de sinais elétricos) em equipamentos eletrônicos. Em processadores 8086, introduzidos no mercado em 1978, o número de transistores era de 29 mil unidades. Hoje, com o Pentium 4, a quantidade atinge o 42 milhões de transistores. Choque da temperatura - Os tamanhos reduzidos desses componentes trazem um outro problema: o superaquecimento das camadas de oxido de silício. A indústria produtora desses dispositivos lançou-se há alguns anos numa busca incessante para que se evite, no futuro, em capacitores diminutos, a perda de corrente elétrica nos circuitos integrados, abalando, assim, a confiabilidade dos computadores e demais equipamentos eletrônicos. Altas temperaturas não são problema para os filmes desenvolvidos pela equipe coordenada pelo professor Elson Longo. "Os sistemas são confiáveis porque o titanato de bário e chumbo não degrada nas temperaturas que prejudicam os dispositivos atuais. Outra vantagem do novo filme é a sua condição ferroelétrica, que leva vantagem sobre os ferromagnéticos, usados atualmente, porque possuem baixa voltagem de operação, além de menor tamanho, baixo peso e alta velocidade de escrita e leitura, processo que estoca, apaga e imprime os característicos sinais digitais 0 e 1 nas memórias de um computador. "Grandes grupos industriais dos Estados Unidos, Europa e Ásia estão investindo milhões de dólares na obtenção de filmes finos ferroelétricos porque eles são compatíveis e de fácil integração com a atual tecnologia de produção de circuitos integrados que usam chips de silício e de arseneto de gálio", diz Longo. 68 ■ MARÇO DE 2004 ■ PES0UISA FAPESP 97

Detalhe da estrutura molecular da memória química do titanato de chumbo e bário na solução de ácido cítrico, antes da queima do carbono

Mas a grande vantagem industrial do novo filme é seu processo de fabricação. A partir de uma solução orgânica de citrato obtida de ácido cítrico (existente em frutas como laranja e limão) é preparado um composto sólido e com estrutura química polimérica (semelhante aos plásticos) que leva bário, chumbo e titânio como ingredientes. Esse composto é levado a um forno simples com temperatura de até 300° Celsius para a retirada do material orgânico (carbono, principalmente). "Em seguida, utilizamos um forno de microondas doméstico para orientar a cristalização [essencial para se obter uma boa constante dielétrica] e produzir o filme de titanato de bário e chumbo", explica Longo. É a primeira vez que se obtém esse composto por essa técnica. "Talvez a Nasa (a agência espacial norte-americana) e os militares dos Estados Unidos já estejam usando esse titanato em chips que necessitem de um estágio de estabilidade avançado. Porém ele não é fabricado

industrialmente, talvez esteja sendo produzido em laboratório por métodos caros e complexos, e sem a constante dielétrica que obtivemos". Ao contrário das salas ultralimpas, sem nenhum tipo de material contaminante em suspensão, que formam unidades fabris de alta tecnologia ao custo de muitos milhões de dólares, a produção dos filmes de titanato de bário e chumbo poderá ser feita em qualquer ambiente sem nenhum cuidado especial. "Pelos métodos utilizados hoje, esses materiais ficam prontos em cerca de 40 horas. No sistema que desenvolvemos, são duas horas de queima no forno comum e mais dez minutos no microondas para obter o titanato", compara Longo. A FAPESP financiou a patente sobre esse sistema, depositada em julho de 2003, antes, portanto, da publicação, em 12 de janeiro deste ano, de artigo científico na revista Applied Physics Letters, do Instituto Americano de Física, assinado pelo professor Longo e mais os pesquisadores Fenelon Martinho Lima Pontes, Edson Leite, Geovane Pimenta


em forma de estrutura polimérica e depois, quando queimamos, fica somente o esqueleto, que é a placa condutora ou dielétrica", diz Longo. "Outro ponto importante é que esses materiais são compatíveis entre si na estrutura química e molecular, facilitando a integração desses filmes num mesmo dispositivo que, normalmente, também possuem ouro como condutor, outro elemento compatível quimicamente."

Mambrini e Márcia Tsuyama Escote, da UFScar, e mais o professor José Arana Varela, da Unesp. O mesmo método foi usado para produzir outra inovação do grupo de pesquisadores: um eletrodo de niquelato de lantânio (LaNi03). Esse material substitui a camada de platina no sanduíche que forma o chip. Do mesmo modo verificado no titanato de bário, o niquelato foi produzido de um com-

posto, agora formado por níquel e lantânio, que garante as propriedades estruturais do material antes de ir para o forno, ao contrário dos filmes atuais que passam por vários processos de deposição química ou física. Isso significa que a matriz, chamada de precursor polimérico, já possui a memória química que tem a estrutura necessária para se tornar um material semicondutor ou condutor. "Fazemos o material

OS PROJETOS Filmes Finos para Mem ória de Computadores

Aparato e M étodo para Cristalização de Filmes Fi nos Utilizando rurnu ue miLíuuiiudb uuniesiiLU

MODALIDADE

Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids)

MODALIDADE

Programa de Apoio à Propriedade Intelectual

COORDENADOR ELSON LONGO - Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos

COORDENADOR ELSON LONGO - Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos

TNVFÇTTMF-NTfl

R$ 1.200.000,00 anual para todo o Cepid

INVESTIMENTO

R$ 6.000,00

Bilhões mundiais - As novidades apresentadas pela equipe do professor Longo não devem diminuir de imediato a dependência brasileira de importação de semicondutores, que, em 2003, atingiu US$ 1,7 bilhão, segundo a Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee). Desse total, US$ 1,2 bilhão foi de compras de países do Sudeste Asiático, como Taiwan, Cingapura e Hong Kong. "O Brasil não tem condições sozinho de bancar fábricas de semicondutores que necessitam de alguns bilhões de dólares para serem instaladas", diz Longo. "Mostramos com o nosso trabalho que o Brasil tem competência para desenvolver inovação, além de formar pessoal com ótima qualificação para esse setor." A produção dos filmes de titanato de bário e chumbo e do eletrodo de niquelato de lantânio com a técnica desenvolvida pelo Cepid Cerâmica poderá ser realizada tanto no Brasil como no exterior, conforme a negociação, se resultar positiva, indicar. Esse é um mercado bilionário que estuda muito bem os novos passos. Não é para menos. No ano passado, as vendas mundiais do setor de semicondutores atingiram US$ 166,4 bilhões, 18,3% maiores que em 2002, segundo a Associação da Indústria de Semicondutores (SIA) dos Estados Unidos. A previsão de crescimento de vendas, formulada por essa entidade para este ano, é de 19%. Um mercado atraente numa atividade, cada vez mais, fundamental. • PESQUISA FAPESP 97 ■ MARÇO DE 2004 ■ 69


ITECNOLOGIA

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Parcerias aceleradas Agência da Unicamp sai a campo para transferir tecnologia produzida na universidade MARILI RIBEIRO

Boas idéias são essenciais. Mas, esquecidas nas gavetas, elas não rendem nem dividendos nem conforto, em especial no caso específico das que resultam em ganhos tecnológicos e podem ser incorporadas a produtos e serviços para o mercado consumidor. Na luta contra esse descompasso, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) resolveu agilizar ainda mais a comercialização das 297 patentes que possui como resultado do trabalho de seus pesquisadores. Para tratar disso, a universidade contratou uma profissional com experiência na área, Rosana Ceron Di Giorgio, que assumiu a função de diretora de Propriedade Intelectual da Agência de Inovação da Unicamp (Inova). A meta prevista por ela é licenciar dez patentes 70 ■ MARÇO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 97

por ano. Uma tarefa árdua, a se considerar que, nos quase dez anos de existência do Escritório de Patente da universidade que precedeu a Inova, apenas seis delas foram licenciadas por grupos empresariais e já renderam mais de R$ 600 mil desde 1996 para a universidade. Animada com as perspectivas do trabalho que tem pela frente, Rosana, desde quando chegou ao campus no final do ano passado, selecionou 70, entre as quase 300 patentes, que acredita poder mais rapidamente colocar à disposição de interessados em estabelecer parcerias com a universidade. Três delas, segundo a diretora de Propriedade Intelectual da Inova, estão com os contatos bastante avançados. "Acredito que logo estaremos assinando o primeiro contrato dessa nova etapa de ação


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mais agressiva da agência, que agora vai ao mercado oferecer o que tem no portfólio", diz ela. Rosana revela que o produto que deverá chegar às prateleiras, graças a um laboratório empenhado em fabricá-lo, serão as cápsulas à base de isoflavonas de soja, capazes de oferecer melhor absorção pelo organismo de seus benefícios no combate aos radicais livres. A patente da pesquisa que resultou na descoberta foi registrada graças ao trabalho de Yong Kun Park, do Laboratório de Bioquímica de Alimentos da Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA). Park pesquisa isoflavonas de soja desde 1998. Ele conta que, há pouco mais de três anos, cerca de 20 empresas norte-americanas produzem derivados de soja para alimentação em razão de sua comprovada atividade de redução e controle de colesterol e da pressão sangüínea. Segundo o pesquisador, o Brasil tem condições ideais para produzir grande variedade de alimentos derivados de soja, afinal detém quase 17% da produção mundial dessa leguminosa. O contrato para transferência de tecnologia está prestes a se tornar realidade. Baixa caloria - Na mesma linha, com três indústrias na área de alimentos estudando a proposta, Rosana aposta na rápida negociação de uma das patentes registradas por Hilary de Menezes, também da FEA. A partir de pesquisas com a junção de mandioca e castanha-do-pará, a equipe coordenada pela pesquisa-

dora obteve um tipo de cereal matinal de alto valor protéico e baixa caloria, por ter conseguido eliminar o excesso de gordura presente na castanha. "Temos boas chances porque essa patente está praticamente pronta, independendo de outras experiências para sua imediata aplicação", explica Rosana. Mais um potencial contrato envolve um dos maiores distribuidores de plásticos do país, que se mostrou empolgado com a possibilidade de obtenção de plástico biodegradável à base de amido e gelatina, com vantagens em relação aos equivalentes disponíveis no mercado, graças ao baixo custo da matéria-prima, além da inestimável vantagem em termos de marketing social que é oferecer ao mercado um produto feito de material altamente reciclável. A finalidade seria aplicá-lo no segmento de embalagens e derivados descartáveis, como pratos, copos, talheres, pastas de documentos e até vasos para flores. O doutorando Leonard Mensanh Sebio, da FEA, chegou à patente por meio do desenvolvimento do projeto para produzir plástico biodegradável à base de amido, gelatina, glicerol e água pelo processo industrial de extrusão, ao realizar pesquisa ao lado do orientador Yoon Kil Chang. Sebio conta que levou quatro anos no desenvolvimento do processo. "As etapas mais complexas foram a simula-

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ção tecnológica, os ajustes dos parâmetros operacionais e a formulação do produto para obtenção de um similar de plástico, porém totalmente biodegradável", conta. "As vantagens evidentes são suas finalidades ambientais, já que é totalmente biodegradável, podendo constituir uma ração para gado e peixes no caso de descartado em rios e lagoas, pois poderá ser metabolizado em cadeias alimentares do organismo de qualquer ser vivo, ou como adubo em aterro ou em compostagem", explica. O material pode substituir plásticos sintéticos, ou papéis e papelões, na fabricação de produtos descartáveis. Na época do lançamento da Inova, em julho do ano passado, a agência recebeu a missão de ter um destacado programa na área de propriedade intelectual. Além de ampliar a capacidade da instituição em registrar propriedade intelectual, a agência trabalhará para acelerar o licenciamento das patentes. "Sem isso, a patente é só um item de despesa e não de receita", enfatizou Carlos Henrique de Brito Cruz, reitor da Unicamp, durante o lançamento da agência. Mais do que o trabalho de incentivo à divulgação da propriedade intelectual nascida dentro do campus, a ambição da agência é identificar, desenvolver, construir e apoiar iniciativas que conectem as atividades de pesquisa e ensino dentro da universidade com interesses fora dela. Antes mesmo da investida atual e bem mais aguerrida do que no passado, PESQUISA FAPESP 97 ■ MARÇO DE 2004 ■ 71


a Unicamp já vinha cuidando de preservar e valorizar as descobertas de suas inteligências. Um aberto defensor da comercialização de patentes - que está por trás de cinco delas comercializadas com as multinacionais Serrana, do grupo Bunge, e Rhodia-Ster -, Fernando Galembeck, do Instituto de Química da Unicamp, advoga que a universidade pública deve zelar pelo seu patrimônio. "Patentes são parte desse patrimônio", simplifica ao ponderar por que, desde 1978, quando realizou o registro de sua primeira patente, sempre foi entusiasta da iniciativa. Das patentes compartilhadas com o mercado, três cobrem aspectos diferentes do universo de pigmentos de tinta. Duas delas foram premiadas pela Associação Brasileira de Fabricantes de Tintas e pela International Conference on Surface and Colloid Science, na França. O outro grupo de patentes gira em torno de nanocompósitos e algumas já estão a caminho. A s dedicadas ao universo dos g^L pigmentos partiram do ^^A princípio de que as tintas i ^ devem cobrir as superfí.JL. -^L. cies sobre as quais são aplicadas e, para que isso aconteça, elas devem devolver ao ambiente a luz que incide sobre elas. Tecnicamente, isto é chamado de "poder de cobertura", ou "retroespalhamento da luz", explica Galembeck. Um material retroespalha a luz eficientemente quando ele contém estruturas com duas características: as dimensões dessas estruturas devem ser de aproximadamente meio micrômetro (1 micrômetro é 1 milésimo de milímetro), ou seja, elas devem ter uma dimensão aproximadamente igual ao comprimento de onda da luz. Além disso, o índice de refração dessas estruturas deve ser diferente do índice de refração do meio em que elas se acham dispersas. Para satisfazer essas duas condições, normalmente são usadas partículas de oxido de titânio dispersas na resina formadora da tinta, porque esse material é a substância branca com maior índice de refração que existe. A pesquisa que desenvolveu observava que é possível retroespalhar a luz usando bolhas pequenas, como se vê em qualquer copo de cerveja. "A cerveja é amarela, mas a espuma é branca, isto é, ela devolve ao ambiente luz de todas as cores que incidem sobre ela. 72 ■ MARÇO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 97

Essa é a idéia básica dessas patentes: introduzir partículas que contêm bolhas de ar, com dimensões de centenas de nanômetros (micrômetros), utilizando polifosfato de alumínio, matéria-prima do novo pigmento", esclarece ele. A percepção dessa característica aconteceu durante os trabalhos de tese de Pompeu Pereira de Abreu Filho, Emília Celma de Oliveira Lima e Marisa Massumi Beppu, sob orientação de Galembeck. Eles descobriram que os polifosfatos formam espumas sólidas, isto é, se expandem ao serem aquecidos, aprisionando bolhas de ar. Aquecendo essa substância química também é possível obter microespumas. Finalmente, perceberam que essas microespumas são formadas mesmo sem aquecimento, quando se deixa secar uma película (filme) de látex que contém partículas de polifosfato de alumínio. A inovação descoberta em laboratório foi parar na linha de produção industrial com redução de custos entre 10% e 15% ao substituir o oxido de titânio, um produto em grande parte importado. No caso das aplicações voltadas à pesquisa para a inovação em nanotecnologia e que rege a outra linha de patentes

de Galembeck, a que ganha maior destaque é a dedicada a materiais nanoestruturados, ou nanocompósitos. Conforme ele conta, um caso particular nesse segmento é o de nanocompósitos de plásticos e borrachas com argilas. "Para obtê-lo deve-se separar as partículas de argila, reduzindo-as a lâminas de espessura nanométrica, espalhadas dentro de um plástico ou borracha, para depois orientar as lâminas, deixando-as paralelas embora separadas. O resultado é que o nanocompósito apresenta propriedades muito diferentes das do polímero original", informa. "A permeabilidade a gases é muito menor, portanto ele pode ser usado em embalagens que protegem melhor o conteúdo do que o simples plástico. A resistência do nanocompósito a impactos e solicitações mecânicas é muito superior à do plástico e também ele se comporta melhor sob altas temperaturas", acrescenta. Os resultados dessas descobertas viraram patentes, compartilhadas com a Pvhodia-Ster. Elas tratam da obtenção de nanocompósitos de poli (tereftalato de etileno), um plástico bastante comum, usado nas garrafas de refrigerante e água mineral, conhecido


como PET. "A rota utilizada foi totalmente nova, mostrando que é possível competirmos com grupos poderosos, e com sucesso", festeja Galembeck. Em parceria com a empresa Genesearch Fomento para Pesquisa, que opera atraindo investidores de capital de risco para projetos de inovação tecnológica, pesquisa do doutorando da Unicamp Anderson Ferreira da Cunha, sob coordenação de Gonçalo Amarante Guimarães Pereira, do Laboratório de Genômica e Expressão do Instituto de Biologia, aperfeiçoa patente que beneficiará o processo de fabricação de álcool. É a biologia molecular a serviço das destilarias, acelerando o processo de fermentação do caldo de cana. "Optamos pelo modelo mais freqüente nos meios universitários do exterior, em que se incentiva a busca de parceiros para dar aporte financeiro à continuidade do projeto, antes mesmo que ele se viabilize industrialmente", informa Pereira. Uma das formas de redução das emissões de monóxido de carbono dos carros exigidas no Protocolo de Kyoto

dá ao Brasil a perspectiva de crescimento da demanda de álcool combustível como alternativa à gasolina. Tecnologias que venham a acelerar o desempenho da atual produção do setor sucroalcooleiro ganham relevância. Os usineiros acreditam que poderão vir a ser supridores mundiais de álcool combustível e de tecnologias modernas para montagem de destilarias em outros países do mundo. Ganhos de eficiência são fatores preponderantes para competitividade em mercados mundiais. A invenção criada na Unicamp permite acelerar o processo industrial, eliminando uma das etapas, a centrifugação do material após a fermentação. A centrifugação é a forma mais rápida utilizada atualmente pelas destilarias para a separação do mosto e do material sólido, a levedura. Pelo processo convencional em voga são despendidas oito horas, em média. A levedura criada em laboratório consegue reduzir esse tempo para apenas duas horas. Na indústria canavieira, a geração de álcool se dá por meio de um grande tanque que é reservado para as leveduras, responsáveis pela fermentação do

açúcar em etanol, misturarem-se ao caldo de cana. Finalizado esse processo, a mistura passa por centrífugas a fim de separar as leveduras do mosto fermentado que irá para as colunas de destilação. "A passagem pelas centrífugas, a parte mais dispendiosa desse processo, pode ser eliminada", esclarece Pereira. "Para a obtenção desse resultado, pegamos um gene que, enquanto trabalha na célula, a faz coagular. Colocamos esse gene sob o efeito de um fragmento de DNA que o torna sensível à presença do açúcar. Sendo assim, a levedura modificada com a inclusão do gene da floculação (aglutinação) sob o controle de um promotor faz com que somente a levedura se aglutine após a exaustão do açúcar", acrescenta. A comprovação em laboratório, que resultou na patente, passa agora pelo aprofundamento da pesquisa para fazê-la funcionar em leveduras industriais. Acelerar a comercialização de patentes exigiu profissionalização da área de propriedade intelectual. Não apenas elegendo as que apresentavam condições de atrair interessados, como preparando quem vai a campo apresentar a novidade. "Temos uma equipe multidisciplinar, formada por oito profissionais terceirizados e que já trabalharam com as 70 patentes selecionadas para a atual fase, que saem a campo atraindo investidores" diz a diretora da Inova. A maioria das patentes registradas pela Unicamp é referente à área química, cerca de 50% do total. Alimentos e fármacos vêm na seqüência. Para valorizar esse universo para efeitos de negociação, Rosana tomou como referência o tempo de existência da patente, considerando que seu registro vale por 20 anos e levando ainda em conta que nem sempre é possível recuperar todos os investimentos em pesquisa feitos no passado, prática comum nos grandes grupos empresariais. "Nos contratos de royalties, operamos com um percentual sobre o faturamento. Dependendo do alcance da patente, esse índice pode oscilar entre 3% e 10% sobre as vendas que a empresa vier a ter com a comercialização do produto, por um prazo de até 15 anos de exclusividade", informa. Se efetivamente conseguir licenciar dez patentes por ano, a Inova estará engordando o caixa da Unicamp para incentivar outras pesquisas. • PESQUISA FAPESP 97 ■ MARÇO DE 2004 ■ 73


ITECNOLOGIA

ALIMENTOS

De vilão

herói

*\ ,

Salgadinhos enriquecidos com farinha de pulmão bovino ajudam no combate à anemia

Os salgadinhos industrializados sempre exerceram uma irresistível atração sobre as crianças, apesar do baixo valor nutritivo. Imagine, porém, se esse vilão pudesse ser rico em vitamina A, isento de gorduras saturadas e com alto teor de ferro - elemento essencial para combater a anemia, doença presente em muitas crianças em idade escolar. O que parece ser o sonho de mães, na verdade, não está longe de ser alcançado. A fim de aliar o gosto infantil por alimentos de conteúdo nutricional duvidoso à necessidade de uma alimentação equilibrada, principalmente para as classes mais pobres, pesquisadores do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP) desenvolveram um tipo de salgadinho que utiliza em sua composição o ferro obtido a partir do pulmão bovino. 74 ■ MARÇO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 97

A escolha ocorreu porque esse produto normalmente é descartado por não possuir apelo culinário. Ele também foi eleito porque a quantidade de ferro que possui é três vezes superior à encontrada no fígado do animal. Com esse conhecimento, os pesquisadores desenvolveram um produto com padrão aceitável de textura, aroma e sabor e promoveram avaliação sensorial com crianças e adultos, que indicou a necessidade da presença de outros elementos na composição do produto, como milho, grão-de-bico e aromas naturais, garantindo ao salgadinho os mesmos atrativos dos snacks disponíveis no mercado. Para o professor José Alfredo Gomes Arêas, chefe do Departamento de Nutrição da FSP e coordenador do projeto de pesquisa, os resultados alcançados foram satisfatórios, porque o ferro obtido do pulmão bovino mostrou-se altamente eficaz na reversão de quadros de anemia. "Após texturização, esse mi-

neral apresenta alto valor biológico com 140% de absorção em relação ao sulfato ferroso, ou seja, além da grande quantidade, o ferro encontrado revelou-se de alta qualidade alimentar, bastante apropriado para combater a anemia, deficiência que inibe oicrescimento e o desenvolvimento neurológico por diminuir os níveis de oxigenação sangüínea", explica. Composição equilibrada - Os vegetais foram essenciais para o desenvolvimento do produto. "Adicionamos o grão-debico à formulação do salgadinho para ele ser mais bem aceito, sem deixar de lado os aspectos nutricionais", explica Arêas. Transformado em farinha, o grãode-bico apresenta apenas 2% de gordura e cerca de 20% de proteína. Após a adição da farinha do pulmão bovino e texturização do produto via extrusão, o produto final apresentou uma composição equilibrada de proteínas (20%),


Proteínas, lipídios e carboidratos em equilíbrio no produto final

lipídios (15%) e carboidratos (60%), ao contrário dos salgadinhos convencionais, com 20% a 25% de gordura saturada e apenas 4% de proteína, de má qualidade biológica. Outro ingrediente pesquisado para a composição de salgadinhos é o amaranto, cujas sementes são usadas como cereal. De origem andina, a planta possui propriedades nutricionais e fisiológicas capazes de reduzir os níveis de colesterol e, conseqüentemente, os riscos de doenças cardiovasculares, conforme apontam as pesquisas desenvolvidas pela equipe. A Embrapa Cerrados, de Planaltina (DF), tem feito o trabalho de seleção e adaptação de variedades de amaranto. De nada adianta ter alimentos mais nutritivos se os salgadinhos não forem atrativos para o consumo. "Para a aromatização, utilizamos cerca de 10% de óleo de canola ou girassol, em vez dos 23% de gordura vegetal hidrogenada utilizada nos produtos convencionais",

afirma o pesquisador. O equipamento utilizado para a fabricação dos salgadinhos é do mesmo tipo daqueles empregados na indústria. Em um tubo equipado com uma rosca, são introduzidos os ingredientes. Depois de comprimidos, a massa que se forma é empurrada 0 PROJETO Nutrição e Saúde: Uma Abordagem Integrada para a Avaliação Nutricional, Desenvolvimento de Alimentos para Fins Especiais e Intervenção Nutricional MODALIDADE Projeto Temático COORDENADOR Faculdade de Saúde Pública da USP

JOSé ALFREDO GOMES ARêAS

INVESTIMENTO R$ 270.203,26 e US$ 125.983,00

para pequenos orifícios que regulam a pressão interna do equipamento, num processo que recebe o nome de extrusão. Após a liberação pelo orifício, a água contida na massa evapora, provocando expansão do produto, que ganha a forma definitiva. O projeto, que envolveu vários pesquisadores, teve produção final de 300 quilos de salgadinhos, aromatizados e com sabor similar aos disponíveis no mercado, mas com características próprias na composição: 14,85% de lipídios, 61,33% de carboidratos, 18,69% de proteínas, 7,41 miligramas de ferro em cada 100 gramas de produto, além de vitamina A e isento de gorduras saturadas, que quando consumidas elevam o colesterol danoso ao organismo. O salgadinho passou por avaliação nutricional feita em crianças de 2 a 6 anos, em duas creches públicas municipais de Teresina (PI), onde foram constatados altos índices de anemia moderada, causada pela deficiência alimentar em ferro. O produto foi servido em uma das creches a um grupo de 130 crianças que apresentavam anemia, substituindo os biscoitos tradicionais em um dos lanches, de modo a garantir a mesma quantidade de calorias. Com 30 gramas de salgadinho ao dia, três vezes por semana, durante dois meses, foi feito um aporte de ferro entre 30% e 40% das necessidades das crianças. No mesmo período, outra creche, com as mesmas características, também foi monitorada, mas sem intervenção na dieta. Ao final do período de intervenção, a incidência de anemia no grupo que recebeu os salgadinhos, antes em 61,5%, caiu para 11% nas crianças acima de 6 anos, enquanto nas crianças abaixo dessa idade o índice foi zerado. No grupo que não passou por intervenção alimentar, a prevalência de anemia, de 62%, manteve-se inalterada. "Suprindo 30% a 40% das necessidades diárias de ferro, foi possível acabar com a anemia", conclui Arêas. Ele já apresentou os resultados da pesquisa a algumas empresas do setor alimentício com o objetivo de transferir a tecnologia de produção, mas ainda não tem respostas positivas quanto à produção em escala industrial. • PESUUISA FAPESP 97 ■ MARÇO DE 2004 ■ 75


ECNOLOGIA ENGENHARIA ESPACIA

no espaço Pesquisadores da UnB constróem nova versão de propulsor para satélites

Emissor de elétrons: acerto de órbita com alta eficiência

uando chegam ao espaço, os satélites precisam de pequenos mecanismos chamados de propulsores que fazem o posicionamento inicial e as correções de órbita, de tempos em tempos. O combustível usado nesses casos é formado por um conjunto de substâncias químicas sólidas ou líquidas que, quando sofrem um processo de expansão térmica, soltam jatos de gases para fora do satélite para posicioná-lo com precisão na direção desejada. O problema é que o acionamento desses combustíveis gera muito gasto de energia elétrica, diminuindo o tempo de vida útil do satélite. Enquestão é tema de vários grupos de pesquisa ao redor do planeta, que buscam alternativas para tornar mais duradouro o uso dos propulsores em satélites. Um desses grupos está no Laboratório de Plasma do Departamento de Física da Universidade de Brasília (UnB), que desenvolveu um novo propulsor, que utiliza plasma como combustível. Chamado de o quarto estado da matéria, o plasma é uma espécie de gás ionizado porque perde elétrons de parte de seus átomos c obtém propriedaMARÇO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 97

des distintas dos estados sólido, líquido e gasoso. "Estrelas, raios e auroras se encontram em estado de plasma", exemplifica o professor José Leonardo Ferreira, coordenador da equipe. Eletricidade com ímãs - O protótipo do propulsor a plasma, batizado de Phall-01, desenvolvido na UnB, possui 20 centímetros de diâmetro e 10 centímetros de altura. "Ele deverá ser menor ainda, conforme avança nosso desenvolvimento em laboratório", diz Ferreira. O propulsor brasiliense já se mostrou eficaz quando comparado com equipamentos similares construídos em outros países. "Ele reduz o funcionamento de um satélite, além de aumentar em até duas vezes a vida útil de veículos espaciais em órbita, que oscila, atualmente, entre dois e quatro anos." Um desempenho que está ligado diretamente à inovação proposta pelos pesquisadores da UnB: um arranjo de ímãs com campo magnético permanente, acoplados (como ímãs de geladeira) a um dos lados do propulsor que dispensa o uso de baterias como fontes de eletricidade. A energia elétrica de um satélite, segundo Ferreira, é muito pequena. Um artefato


Câmara de vácuo: testes com plasma em ambiente espacial

de médio porte (500 quilos), por exemplo, não deve despender mais que 1,5 quilowatt (kW) (o equivalente a 25 lâmpadas caseiras de 60 watts acesas) com o sistema de propulsão, porque ele não gera muito mais que essa potência. A pouca disponibilidade de energia é uma preocupação constante desde a década de 1960 para os pesquisadores de laboratórios e de centros de pesquisa espacial. "A propulsão a plasma nos satélites é fornecida por propulsores que aceleram íons (átomos com perda de elétrons) de gás xenônio a grandes velocidades. O mecanismo consiste em uma câmara de ionizaçâo em que o xenônio é injetado", explica Ivan Soares Ferreira, físico e doutorando do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que trabalhou no desenvolvimento do Phall-01. Em todas as versões de propulsores a plasma, os elétrons são emitidos por um emissor de elétrons de alta eficiência e colidem com o gás xenônio, criando íons positivos, empurrando a nave na direção oposta. O acerto da ór-

bita é feito com o acionamento dos diferentes propulsores existentes na espaçonave. Os íons são acelerados e ejetados por segundo (m/s). "Nos propulsores convencionais,; cas, a aceleração é de 700 m/s", compara o professor Leonardo. Os testes com

as pressões da atmosfera residual da TerIhão de vezes menores se comparadas

te ha pouco tempo, apenas os russos haviam utilizado a propulsão a plasma do tipo Hall na versão com ele~JL~ Jk. troímãs. A agência espacial norte-americana, após o fracasso de vários testes em satélites e sondas espaciais, conseguiu colocar o seu propulsor a plasma em funcionamento no espaço em 1998, com o lançamento da ximou do cometa Borrelly e forneceu

imagens e dados científicos jamais obtidos sobre esse tipo de astro. Os europeus estão investindo cada vez mais na área espacial e tiveram sucesso em várias missões, inclusive com a Small Missions for Advanced Research in Technology (Smart), satélite lançado dia 25 de setembro de 2003, na Guiana Francesa, como a primeira missão da Agência Espacial Européia (ESA) a visitar a Lua. A viabilidade econômica e a eficiência do modelo Phall faz dessa tecnologia uma alternativa importante para o Programa Espacial Brasileiro, porque o Brasil necessita utilizar vários satélites, em razão das demandas crescentes vindas dos setores de telecomunicações, meteoblema para o avanço da pesquisa está na 1999, as pesquisas são apoiadas somente pelo Departamento de Física da UnB e por recursos obtidos nas fundações associadas â universidade. "Recebemos uma ajuda anual da universidade da ordem de RS 2 mil para todas as atividades de pesquisa", completa José Leonardo. • PESQUISA FAPESP 97 ■ MARCO DE 2004 ■ 77


■ TECNOLOGIA ENGENHARIA MECÂNICA

Leveza no ar Estrutura da asa de avião da Embraer foi desenvolvida com apoio de pequena empresa

DlNORAH ERENO

Cores representam diferentes espessuras de placas de satélite

Aentrega da primeira asa do jato Embraer 190 pela subsidiária brasileira da Kawasaki, uma das prinL. cipais indústrias aeronáuticas do Japão, foi comemorada com uma cerimônia especial no final do ano passado. Afinal, é grande a expectativa de que a aeronave para até cem passageiros, apresentada oficialmente em fevereiro deste ano, conquiste uma expressiva fatia do mercado mundial de jatos comerciais. Entre os parceiros que trabalham no desenvolvimento e na construção do avião encontra-se a Fibraforte, uma pequena empresa de São José dos Campos (SP). Ela foi a responsável por aplicar ferramentas computacionais no desenvolvimento da estrutura da asa com o objetivo de torná-la mais leve, requisito essencial no setor aeronáutico. É uma metodologia de 78 ■ MARÇO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 97

ampla aplicação que pode ser utilizada também em projetos de estruturas de satélites com o intuito de reduzir peso e diminuir os custos de produção. Antes de ganhar a confiança da empresa, a Fibraforte trabalhou inicialmente para a Embraer em um programa destinado a automatizar os processos de desenvolvimento de produtos. Jadir Nogueira Gonçalves, presidente da empresa, explica que o projeto abarca desde a concepção do produto, passando pela etapa de análise de estrutura, seguindo regras de manufatura, até a geração do modelo, que é a tradução matemática da peça em uma ferramenta virtual, transferida depois para um equipamento de fabricação. Essa metodologia, chamada de engenharia baseada no conhecimento, do inglês knowledge based engineering, tem como filosofia eliminar tarefas re-

petitivas realizadas pelos engenheiros. Ela se traduz pela montagem de uma base de dados, pela criação de softwares e pela integração de ferramentas de outros projetos existentes. "O resultado é uma base de treinamento que cria e estabelece as regras dos projetos adotadas pela empresa", ressalta Gonçalves. Rotinas simplificadas - O convite para prestar serviços à Embraer foi feito no final de 1999, período em que a empresa iniciava o projeto dos jatos da família 170/190 e a Fibraforte começava a desenvolver um projeto na área de otimização de estruturas financiado pela FAPESP e coordenado pela engenheira civil Susana Angélica Falco Meira, que atualmente trabalha em uma consultoria naval no Rio de Janeiro. Para a pequena empresa dirigida por dois engenheiros aeronáuticos, esse


MSCNastran, comercializado pela norte-americana MSC Software. Segundo Gonçalves, a definição de um problema de otimização de estrutura no MSCNastran é uma tarefa complexa por exigir muito conhecimento teórico do assunto, o que limita seu uso. Normalmente os cálculos ainda são feitos manualmente porque mesmo o programa da MSC exige uma série de intervenções do usuário.

Estrutura de satélite composta por oito painéis

envolvimento teve desdobramentos e resultou em um promissor relacionamento comercial com empresas estrangeiras parceiras da fabricante de aviões. Antes disso, a empresa tinha como foco a prestação de serviços de engenharia e fabricação para o setor aeroespacial, entre eles o fornecimento de componentes para o Satélite Sino-Brasileiro de Recursos Terrestres (CBERS), encomendados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). "Em um primeiro momento, os negócios conquistados no setor aeronáutico eram na área de cálculo estrutural e projeto de produto e, com o passar do tempo, começamos também a aplicar nossos conhecimentos na área de otimização de estruturas", relata Gonçalves. Esses conhecimentos foram adquiridos a partir de uma proposta que tinha como objetivo inicial desenvol-

ver um software para otimização de estruturas com rotinas de trabalho simples e fáceis de serem entendidas e executadas pelos engenheiros projetistas. O sistema deveria ser utilizado junto com outros já existentes, como o 0 PROJETO Desenvolvimento de Ferramenta para Otimização de Estruturas MODALIDADE

Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE) COORDENADORA SUZANA ANGéLICA FALCO MEIRA

-

Fibraforte INVESTIMENTO

R$ 227.593,00 e US$ 26.000,00

A observação de que essa tag^L refa repetitiva demanda L^^ grande gasto de tempo i M para projetos que nor^L. -^L. malmente têm curto prazo de execução inspirou os engenheiros da Fibraforte a trabalhar em uma ferramenta que automaticamente desse a resposta procurada, bastando ao usuário seguir os passos propostos. Para isso, um dos programas escolhidos para ser inserido ao MSCNastran foi o Faipa, um algoritmo (metodologia para resolver um problema em um número finito de etapas) de otimização criado pelo professor José Herskovits, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A união das duas ferramentas mostrou-se realmente mais eficiente na resolução de alguns problemas de estrutura, mas o tempo gasto e a maneira de resolvê-los não eram exatamente o que os pesquisadores esperavam. Mas foi esse processo que mostrou a existência de um mercado promissor para o desenvolvimento de ferramentas automatizadas para otimização de estruturas tendo como base programas comerciais. "No decorrer dos contatos com a MSC descobrimos que o software MSCAcumen, utilizado para criar um modelo sob medida da estrutura para análise, tem interface com outros produtos da empresa, como o Nastran, e possibilita automatizar as rotinas dentro de um ambiente de engenharia", relata Gonçalves. Essa descoberta levou ao desenvolvimento de um programa base, que sistematiza a seqüência de funções executadas desde a concepção até a geração do relatório do projeto, demonstrando que cumpre todos os requisitos de desempenho e de segurança. Adaptado às necessidades do cliente, ele poupa o tempo do usuário, que apenas precisa seguir os passos indicados para encontrar a melhor estrutura para o seu projeto. • PESQUISA FAPESP 97 ■ MARÇO DE 2004 ■ 79


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HUMANIDADES HISTORIA

WJmMvm dos índios Centro de estudos analisa o passado das Missões não apenas a partir da visão dos jesuítas, mas daqueles nativos que foram influenciados pelos religiosos

Missões: "Precisamos ouvir o que os índios, vivos ou mortos, têm a dizer", diz padre


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omens de idéias se manifestaram sobre a saga missioneira protagonizada por religiosos e nativos da América, em tempos coloniais. Voltaire afirmou —» que as reduções jesuíticas dos séculos 16,17 e 18 foram o triunfo da Humanidade. Montesquieu comparou-as ao sistema político-filosófico imaginado por Platão, em A república. Hegel salientou a fraternidade entre os diferentes. E assim, em meio a finas analogias, construiu-se a convicção de que aos discípulos de Santo Ignácio, formados nos rigores da Companhia de Jesus e investidos de mandato divino, coube a missão de resgatar indivíduos do período neolítico em que viviam, introduzindo-os no Renascimento - num salto civilizatório sem escalas. Não fosse a História fonte de constantes revelações, a tese seria satisfatória. Mas o passado insiste em emergir nas ruínas das Missões que tiveram lugar no Brasil, na Argentina e no Paraguai. E emerge de maneira pulsante, até inesperada. "Estamos vivendo um tempo de relativizações. Não podemos ver as Missões só com os olhos da gloriosa Companhia de Jesus. Pre-

cisamos ouvir o que os índios, vivos e mortos, têm a nos dizer." Curiosamente, a recomendação é de um jesuíta - padre Pedro Ignácio Schmitz, de 76 anos, um dos pioneiros da arqueologia no Brasil, professor de antropologia, conselheiro do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e diretor do Instituto Anchietano de Pesquisas, em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul. Nesse centro ligado á Universidade Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), o passado é escavado em sucessivas investigações - seja na análise de relatórios assinados por jesuítas e leigos, seja nas buscas aos sítios arqueológicos, seja na reconstrução das Missões, via computação gráfica. Nos últimos anos, o centro dirigido por padre Schmitz. vem fomentando teses acadêmicas que realçam aspectos ainda pouco conhecidos cm relação tos coloniais. A clássica pergunta - por que certas Missões deram certo, e outras não? - ganha, a partir desses estudos, uma complexidade imprescindível à compreensão do passado. Além disso, convenhamos: o que significa dar certo ou errado em termos históricos? "Aprendemos que as reduções do sul foPESQUISA FAPESP 97 ■ MARÇO DE 2004 ■ 81


A fachada de São Miguel: imitando a Igreja do Gesü, em Roma, era forma de cultivar fiéis para uma igreja universal

ram bem-sucedidas por lidar com os guaranis, índios pacíficos, trabalhadores, bons para catequizar ou escravizar. Eram os bons selvagens", lembra padre Schmitz, hoje muito mais preocupado em decifrar as condições em que estes índios aceitaram as "regras do jogo" das Missões. Senha - Tais condições colocam em xeque a tese da docilidade dos nativos e nos remetem à situação de exclusão dos povos indígenas no Brasil, nos dias que correm. Sabe-se, pois, que os guaranis não tiveram escolha: ou eram dominados pela truculência do colonizador espanhol, ou eram caçados por bandeirantes paulistas, ou seguiam para as reduções. Eleita a terceira alternativa, muitas vezes o cacique mandava construir uma palhoça na mata, a título de igreja, com a cruz à frente. Era a senha para que os missionários viessem reduzir a comunidade, num processo de aldeamento inevitavelmente radical. 82 ■ MARÇO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 97

"Nossa sociedade demorou a absorver o valor das Missões implantadas em território pertencente à coroa espanhola, mas ambicionado pelos portugueses e seus filhos brasileiros", diz o padre. Mas a distinção entre a Missão espanhola e a Missão portuguesa é o ponto-chave para a reviravolta das interpretações. Na primeira categoria, contatos feitos pelos "companheiros de Jesus" anunciavam um projeto de autonomia para os índios. Ou seja, além do envolvimento via catequese, se os nativos produzissem e pagassem impostos à Coroa, ganhariam status de cidadãos do império. Na Missão portuguesa, contudo, eram tratados como mão-de-obra disponível para o sistema colonial, recrutados aos bandos em feitorias ou instalações militares. Na Missão espanhola, a administração das aldeias estava nas mãos das lideranças indígenas - e caciques guaranis gozaram de amplos poderes. Também os jesuítas se diferenciavam. Eram, muitas

vezes, filhos da elite local. Padre Antônio Ruiz de Montoya, que no século 17 organizou o primeiro dicionário da língua guarani, era filho de um rico comerciante do Peru. á em território brasileiro, os jesuítas vieram da Europa e estavam submetidos às leis portuguesas. Se na Missão espanhola o trabalho de aldeamento acontecia preferencialmente no lugar onde os grupos viviam, e onde seus ancestrais estavam enterrados, na portuguesa houve o deslocamento para locais estipulados pelos colonizadores. Assim, se os jesuítas submetidos a Portugal lograram resultados com os tupinambá, na costa brasileira, tiveram dificuldades intransponíveis com vários outros grupos, como os pataxó, por exemplo. Nos anos 1940, Lúcio Costa, autor do projeto urbanístico de Brasília, fez o primeiro levantamento arquitetônico das Missões no sul do país, a partir


Detalhe da construção: relato de jesuíta fala em reduto com 50 carpinteiros, seis escultores, dez pintores, 12 oleiros

das ruínas de São Miguel Arcanjo, a 490 quilômetros de Porto Alegre. Meio século mais tarde, todo o conjunto remanescente das Missões (além de São Miguel, há San Ignacio Mini, na Argentina, e Trinidad, no Paraguai) foi elevado à categoria de Patrimônio Cultural da Humanidade, pela Unesco. Entre uma data e outra, padre Schmitz trabalhou com inúmeras equipes, buscando vestígios desse rico passado. Ao mesmo tempo, pipocavam no campus da Unisinos novas frentes de investigação. Numa primeira safra de estudos, por exemplo, foi possível recompor a organização socioadministrativa da redução em meio guarani, o primeiro ensaio de planejamento urbanístico da Idade Moderna. Os aldeamentos tinham administração autônoma, como se fossem municípios, com seus alcaides, conselheiros, juizes, chefes de segurança, representantes da comunidade. A população variava em torno de 4,5 mil índios por

núcleo, assistidos por pouquíssimos jesuítas (eles eram numerosos nos colégios da Ordem, não nas reduções). E, assim organizados, tais núcleos tornaram-se auto-suficientes na produção, distribuição e administração de bens. Num dos relatórios enviados aos superiores, um jesuíta conta que, na redução que ajudara a fundar, havia 50 carpinteiros, 20 tecelões, quatro construtores, 12 armeiros, seis escultores, dez pintores, oito pedreiros, 12 oleiros com mais de 80 ajudantes, dois padeiros, dois cozinheiros, seis enfermeiros, quatro ajudantes de sacristia, um sapateiro, 12 curtidores, dois ceramistas, dois torneiros, três toneleiros, dois fabricantes de alaúdes e harpas, um tipógrafo... Isso nos primeiros anos do século 17! Nessa pequena cidade, coros e orquestras chegaram a ser formados, prova de que as Missões não só obedeciam ao projeto de formar súditos para o império, mas de cultivar fiéis para uma igreja universal. Daí os cultos locais, como a Santo Izidro,

protetor das lavouras, e o intenso calendário religioso com rezas diárias, missas solenes e procissões. Vale lembrar: em várias reduções, esse calendário girava em torno de igrejas projetadas por arquitetos de renome e construídas pela mão do índio. Buscas nos arquivos da Companhia de Jesus possibilitaram o acesso às Cartas Anuas, relatórios dos jesuítas aos provinciais da Ordem - algumas delas compõem o acervo de documentos do Instituto Anchietano. Nesses relatórios, entre descrições de costumes, prestações de contas e solicitações variadas, encontra-se tanto o dia-a-dia das comunidades que prosperaram quanto a seqüência de atropelos de reduções que tiveram vida efêmera. Foi justamente essa outra categoria, a do trabalho missionário malogrado, que intrigou a antropóloga Dóris de Araújo Cypriano, aluna do paPESQUISA FAPESP 97 ■ MARÇO DE 2004 ■ 83


Santa Ana: mistura de civilização e natureza ainda permanece como nos tempos em que padres catequizavam

dre Schmitz, levando-a a analisar as Missões no Chaco - região que ocupa o centro da América Meridional, abrangendo os territórios da Argentina, do Paraguai, da Bolívia e do Brasil. Dóris concentrou-se nos índios toba, do tronco lingüístico guaicuru, caçadores-coletores da região chaquenha. / Índios toba reagiram à investida evangelizadora. Tinham histórico de resistência: entre 1526 e 1550, europeus fizeram tentativas de pacificação no Chaco, em campanhas militares. Perderam feio. Organizaram frentes de penetração, que resultariam em trabalho de ocupação e povoamento. Bateram em retirada. Reagiram com expedições militares punitivas. Foram massacrados. Diante de tantos transtornos, optaram pela pacificação via ação missionária, em 1591. Padres Bárcena e Anasco lançaram as excursões apostólicas, as quais deram origem à primeira gra84 ■ MARÇO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 97

mática toba - o que, em tese, facilitaria a vida dos missionários. Não foi bem o que aconteceu. As reduções no Chaco tinham caráter militar, pois a vida dos padres estava permanentemente em risco - e muitos foram mortos. Não bastasse isso, grupos indígenas guerreavam entre si, em prol de rivalidades insuperáveis. Em 1756, chegou a ser construído um forte para acomodar soldados e missionários. Do lado de fora, acampavam os toba. Os jesuítas tentaram lhes ensinar o manejo da terra, mas eles não queriam saber de plantar trigo e leguminosas. Nômades, conseguiam o sustento na natureza abundante, como observa Dóris em sua dissertação de mestrado, concluída em 2000: "A diversidade biológica do Chaco oferecia múltiplas possibilidades para a subsistência dos grupos que o habitavam. Esta capacidade potencial não foi aproveitada pelos espanhóis, que preferiram impor conhecimentos e prá-

ticas adequadas à Europa, em um ambiente de características totalmente diversas". Os toba não só reagiam ao militarismo das empreitadas como impunham limites aos missionários, em duríssimas negociações. Não queriam ser tratados como escravos. Não queriam que seus filhos fossem catequizados. Não queriam ser transferidos de área. Quando os jesuítas foram expulsos da América, coube aos franciscanos a missão de estabelecer novos contatos com a brava gente. Pele - Estudos como este cruzam-se com outras investigações, como a da historiadora Elaine Smaniotto, outra aluna de Schmitz, que tratou de analisar as relações de gênero das populações do Chaco, publicando interessante trabalho em 2003. Enquanto nas reduções guaranis as mulheres tiveram de se enquadrar a uma divisão social do trabalho importada da Europa, entre as sociedades caçadoras-coleto-


Marca da presença da Companhia de Jesus nas Missões: historiadora revelou trabalho missionário malogrado

ras esse fenômeno não ocorreu. A pauta cultural de mulheres e homens toba não se alterou com as Missões e a diferenciação de gênero obedecia a um sistema próprio de relações: o corpo é que definia sexo, idade, posição social e função do indivíduo na comunidade. A lei era a do índio. E estava inscrita na pele. A monogamia prevalecia, o ã^L adultério não era tolerado, LjL e a viúva, após cumprir È ^k luto, podia se casar no~A~ Mi vãmente. Celebrava-se o nascimento do filho do cacique, mas também a primeira menstruação das índias. Praticava-se o aborto. Quando os grupos passaram a adotar o cavalo, a mobilidade feminina aumentou. E assim surgiram as cacicas. "Ambos, mulher e homem, utilizavam o cavalo. Mas a montaria variava de acordo com a classe social e o gênero", conclui a pesquisadora.

Atualmente, Dóris Cypriano está debruçada sobre as Missões na Amazônia entre os séculos 16 e 18. Trata-se de ação evangelizadora empreendida por jesuítas portugueses junto aos grupos tupi, numa região que abrange porções do Maranhão e do Pará. O levantamento desses grupos, feito agora, em pleno século 21, revela cicatrizes do passado: os índios foram arrancados de suas terras de origem, transferidos para lugares considerados estratégicos ao colonizador (próximos à margem dos rios e das fortificações militares). Outro aspecto crucial, no processo amazônico, foi o fato de os jesuítas terem estabelecido uma "língua geral" como forma de comunicação - na verdade, uma língua estrangeira aos nativos. "A presença leiga, seja do caçador de escravos, seja do militar que deveria defender fronteiras, estava tão imbricada na ação missionária que ficou difícil delinear análises em separado", comenta a pesquisadora. Dóris elegeu como foco do estudo a Residên-

cia do Rio Negro, redução fundada às margens do rio que lhe deu nome, em 1692. Ao que parece, a iniciativa não teria durado mais que um ano: foi desativada em virtude da morte de vários jesuítas e da impossibilidade de substituí-los. O estudo explica a drástica redução da população indígena, por confrontos com caçadores de escravos e epidemias introduzidas nas comunidades, com efeitos devastadores. À maneira do antropólogo inglês Terence Turner, as novas investigações pedem a reinterpretação do passado: o contato entre o nativo e o agente da sociedade colonial modificou os dois atores de um sistema de interações com estrutura própria. Como conclui Dóris Cypriano, "as sociedades envolvidas colocaram suas pautas culturais em situação de risco, igualmente". Quando se lida com os sujeitos da História, dividir o mundo entre dominadores e dominados pode ser uma fórmula simplista. Além de enganosa. • PESQUISA FAPESP 97 ■ MARÇO DE 2004 ■ 85


■ HUMANIDADES

LITERATURA

Hilda Hilst morreu.

Perda da escritora é bom momento para refletir sobre a densidade de sua obra poética ALCIR PéCORA

* AkirPécora é professor de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas. E responsável pela organização da obra completa da autora para a Editora Globo

*

A morte de Hilda Hilst (1930-2004) encontra ainda en/% gatinhando a questão da literatura de Hilda Hilst. L^^ Embora a autora tenha alcançado grande notorieÊ % dade pessoal, por conta de uma inteligência inco^L ^ mum, de um temperamento verdadeiramente exuberante e de uma prontidão de espírito capaz de surpreender as pautas banais das entrevistas, a sua obra, de rara extensão e variedade, ainda é largamente desconhecida. A rigor, ela jamais obteve uma única crítica suficientemente abrangente e esclarecedora, a despeito de ter havido uma ou outra leitura bem feita de textos particulares. O mais foi atribuir-lhe isso mesmo que se confirmou amplamente no noticiário de sua morte: mulher ousada, original, avançada para a sua época, louca refinada, explosiva etc. Pode-se levantar hipóteses para a fixação desse quadro em que a imagem pública da artista como tipo excêntrico predominou largamente sobre o conhecimento da obra: o comportamento liberal de Hilda em face dos padrões morais vigentes em certos tempos e lugares sociais; a célebre beleza da autora; a distância que a sua obra mantém dos valores modernistas predominantes no Brasil e ainda mais em São Paulo, sobretudo no que toca à questão do conteúdo "nacional", que simplesmente não se põe para Hilda; a dificuldade de leitura básica de seus textos, dada a sua exigência de erudição literária, filosófica e até científica, que acaba gerando o emprego de um "vocabulário final" altamente idiossincrático; o seu afastamento radical dos centros de convívio intelectual predominantes no país, vivendo desde os anos 1960 praticamente reclusa num sítio próximo a Cam-

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Hilda Hilst: escritora jamais recebeu crítica que fosse abrangente e esclarecedora o bastante


Venho de tempos antigos I/À

Deus pode ser a grande noite escura E de sobremesa 0 flambante sorvete de cereja. Deus? Uma superfície de gelo ancorada no riso.

iho de tempos antigos. Nomes extensos: 'az Cardoso, Almeida Prado ■ Dubayelle Hilst... eventos. I Venho de tuas raízes, sopros de ti. E amo-te lassa agora, sangue, vinho Taças irreais corroídas de tempo. Amo-te como se houvesse o mais e o descaminho. Como se pisássemos em avencas E elas gritassem, vítimas de nós dois: Intemporais, veementes. Amo-te mínima como quem quer MAIS Como quem tudo adivinha: Lobo, lua, raposa e ancestrais Dize de mim: És minha.

™»»HIHMHK!


a cena minimalista de Beckett, o sensacionismo de Pespinas (SP); a estratégia escandalosa de chamar atensoa, apenas para referir uma quadra de escritores fação para a sua obra por meio da suposta adesão ao cilmente reconhecíveis em seus escritos. Além desse registro pornográfico, que evidentemente contraria a poligrafismo, Hilda Hilst funde num só texto todos pudicícia acadêmica e a hierarquização vigente dos os gêneros que pratica, como faz exemplarmente em gêneros literários; a produção prolífica e errática enA obscena senhora L>. poesia lírica (seja pela inclusão tre gêneros literários muito diversos e mesmo a misde versos na narrativa, seja imprimindo ritmo à protura sem precedentes deles todos no interior de cada sa, o que adquire dicção particularíssima nela), teatexto; a publicação de praticamente toda a obra em tro (fazendo com que, por exemplo, o chamado fluxo edições artesanais, em geral muito bonitas, produzide consciência tome forma diadas por artistas amigos, mas lógica) e mesmo crônica (ao insem nenhum alcance de distriserir na ficção comentários de buição; o desinteresse da autoacontecimentos ou personagens ra pelo que dissesse respeito a obsceno históricas conhecidos). aspectos contratuais das edi.ticula-se Há outras questões imediações; enfim, não é preciso ir tamente relevantes a estudar: a além. Está perfeitamente claro na obra questão do esquematismo das que muitas são as explicações de Hilda com situações narrativas (que parpossíveis para a pouca crítica e tem de situações polarizadas, o parco conhecimento público um traço quase maniqueístas, e evoluem de Hilda Hilst enquanto quesostensivo na direção de implodir as duas tão literária. Mas nada disso pontas da oposição) e da inpode justificar a esplêndida igde crueldade, completude das personagens norância que daí resulta, explicujo efeito (que vão proliferando em nocada ou não. mes esquisitos e inverossímeis, primeiro é o Assim, mais relevante do a maioria iniciada com H, sem que relacionar essas hipóteses riso com ' adquirir, nelas mesmas, nea respeito de por que a leitura nhum tipo de profundidade da obra hilstiana acabou não psicológica). Itens como esses acontecendo até agora, talvez são todos recorrentes na proseja referir aspectos fecundos dução de Hilda Hilst e precisam ser investigados a que possam ser explorados por hipóteses de trabalho fundo. A título de exemplo, apresento resumidamendirigidas doravante à obra, deixando estrategicamente alguns problemas cristalizados à roda da primeira te a artista mais ao fundo. Isso significa, em outros questão da lista, a do obsceno. termos, que o principal esforço da crítica de Hilda Alguma noção de obscenidade parece justa de ser Hilst, hoje, é justamente esquecer, ainda que estrateaplicada ao conjunto da obra de Hilda Hilst, e não gicamente, a extraordinária pessoa (e amiga adoráapenas à trilogia dita pornográfica, em prosa, à qual vel, se me é permitido uma nota pessoal) que ela foi, se acrescenta a poesia impagável de Bufólicas. Mas o durante toda a vida, e ainda mais ao longo de seu diprimeiro ponto a deixar claro é que essa noção poufícil final —, que é quando mais se afere o valor de co ou nada tem em comum com a idéia de literatura um caráter, segundo a velha tópica seiscentista do úlerótica, ao contrário do que tantas vezes se tem putimo combate, no qual, dependendo de como se perblicado. Esta tetralogia obscena, aliás, é seguramente de, e necessariamente se perde, então se vence. a parte menos erótica de toda a sua escrita. A idéia de Garantida a prevalência das articulações textuais erotismo não ficaria mal, por exemplo, aplicada a lisobre as biográficas, pode-se levantar, enfim, uma pauvros como Júbilo, memória, noviciado da paixão, ta nada pequena de aspectos de sua obra a ser consiCantares de perda e predileção ou Da morte, desde que derada em trabalhos de fôlego, como, por exemplo, a se ajustasse a uma concepção de erotismo construída questão dos vários usos do obsceno ou a questão da por matrizes místicas tradicionais, como a poesia de anarquia dos gêneros interna aos seus textos de qualSor Juana Inés, San Juan de La Cruz ou Santa Teresa, quer gênero. Neste último aspecto, pode-se considerar mas é francamente estapafúrdia se aplicada a O que os textos de Hilda Hilst se efetuam como exercícaderno rosa de Lory Lambi, Cartas de um sedutor, ou cios de estilo, isto é, eles fazem ou dizem o que lhes é Contos d'escárnio. Quer dizer, há certamente erotispróprio a partir do emprego de matrizes canônicas nos mo na produção poética de registro mais elevado, na diferentes gêneros da tradição, como, por exemplo, qual Hilda faz imitação deliberada da maneira antios cantares bíblicos, a cantiga galaico-portuguesa, a ga. O movimento que então descreve, articulado encanção petrarquista, a poesia mística espanhola, o idítre o sublime e o rebaixado, estabelece as balizas de lio árcade, a novela epistolar libertina etc. Essa imitaum desejo de aspiração metafísica, que emula modeção à antiga, contudo, jamais se pratica com purismo los poéticos de erotismo ao divino, como as dos canarqueológico, mas, bem ao contrário, submetida à metares bíblicos e da poesia mística seiscentista da Pediação de autores decisivos do século XX: a imagétinínsula Ibérica. Mas não há como propor seriamente ca sublime de Rilke; o fluxo de consciência de Joyce, 88 ■ MARÇO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 97


erotismo na trilogia (ou tetralogia) obscena, depois que se a lê realmente, e não se fique na platitude dos comentários a respeito das "loucuras" de Hilda. A sugestão de pornográfica, a rigor, também deve ser afastada como imprópria, pois a crueza dos textos em questão não tem jamais como efeito ou propósito a excitação do leitor, a não ser que se trate (como me esforcei para imaginar certa vez) de um tarado lexical, de um onanista literário - tipo de esquisitice que, temo, exista. Pois os textos de Hilda Hilst ditos pornográficos revertem todo o tempo para si mesmos e para literatura inovadora que produzem. São narrativas penetradas de um forte viés ensaístico, a escarafunchar perversamente os intervalos entre a invenção do autor e os interesses dos outros, cujo signo é o leitor comum ou o não-leitor, que, na literatura exigente de Hilda, dá exatamente no mesmo. O conceito de obsceno, aqui, se aplica basicamente à identificação forçada entre a criação e o seu usufruto mercadológico banal, ou, de outro modo, à percepção inconseqüente da invenção, sem que se busque ou viva nela uma experiência radical de destruição e catástrofe que os textos parecem pressupor na criação genuína. Pode-se dizer, portanto, que os textos obscenos encenam o confronto entre a arte e a sua normalização no mundo, o que se pode dar tanto pelas expectativas rasteiras dos leitores, pelas contas dos editores desinteressados de tudo que não seja as contas dos editores, quanto pelos ridículos próprios do autor, macaco vaidoso de si mesmo. Ora, nesse caso, é forçoso reconhecer que esse cenário básico não é exclusivo dos livros ditos pornográficos, ao contrário do que muitas vezes é dito por críticos apologéticos de Hilda, que julgam possível isolar a pornografia da tetralogia do restante de sua obra séria. Nada mais improvável. Os escritos ostensivamente obscenos apenas manifestam, com a crueza do calão, do sarcasmo, do nonsense ou do bestialógico, um núcleo forte que percorre todos os textos hilstianos como uma espécie de interdito de significação. A onipresença incestuosa do pai em sua literatura, por exemplo, renderia muito mais se lida nesta chave metalingüística e existencial do que em termos de revelações biográficas. Além disso, o que estou chamando de interdito de significação, tendo em mente o conceito de obsceno discutido por Georges Bataille, articula-se na obra de Hilda Hilst com um traço ostensivo de

crueldade, cujo efeito primeiro é o riso com dor, o riso satírico que busca ofender e ferir, não o riso polido e pedagógico da comédia aristotélica. Pica-se agressivamente tudo o que se entende como agressivamente estúpido, mesquinho e estreito, compondo, então, um decoro de desproporções proporcionadas. Ri-se maldosamente, por exemplo, da moral carola e autoritária, amplificada até o nonsense de um mundo irremediavelmente grosseiro e idiotizado. Visto por outro ângulo, o ataque brutal à idiotia galopante e generalizada proclama uma espécie de resistência bem-humorada da invenção e da autocriação, que não admitem renunciar à busca de autonomia e independência no pior dos mundos. Isso também quer dizer que, ainda que o tom desses escritos obscenos seja, por vezes, de uma hilaridade destrambelhada, de uma imaginação frenética a alimentar-se do mau gosto e da bizarria, ele nunca chega a tornar-se verdadeiramente triunfal. Em Bufólicas, por exemplo, o mais delicadamente engraçado que pode ser encontrado nos livros de Hüda Hilst, a moral das fábulas reinventadas termina sempre na formulação de uma outra: a de que a liberdade de alguém é a certeza da vingança odiosa dos outros. Nas descrições agônicas do mundo feitas pelos seus textos, a obscenidade básica está aí, nesse desajuste de raiz entre os desejos mais sinceros, criativos e generosos, de um lado, e as práticas adotadas voluntariamente pelo comum dos homens, de outro. Os homens simplesmente não combinam consigo mesmos, nem em termos pessoais, nem coletivos. Resta a esperança de Deus, mas em geral ela não se realiza senão no estigma e no êxtase doloroso, em que a maldade e a vileza são os atributos divinos mais evidentes. Por sua vez, quando os homens são pensados em comum, nada parece mais comum neles do que a baixeza que emulam: a vizinhança é sempre horrenda, a autoridade é arbitrária e >»< burra, quando não assassina, o revolucionário está estupidamente enganado sobre sua « vontade, sobre a ideologia que defende e sobre o efeito de sua ação. E, em relação ao mundo dos livros, o quadro não é melhor: o editor é rematado ladrão, o artista em geral é picareta, vaidoso e venal, e, por isso mesmo, vive no âmbito da dependência. Há, pois, nos textos mais duramente obscenos, um existencialismo niilista contundente, que, entretanto, também não se cristaliza de maneira hegemônica ou exclusiva, pois é temperado por um ânimo político e uma inquietude metafísica e mística de rara intensidade na literatura brasileira do último quarto do século XX. Isto posto, a morte de Hilda Hilst - é o que simplesmente pretendia dizer - é apenas o início da longa vida de Hilda Hilst. PESaUISA FAPESP 97 ■ MARÇO DE 2004 ■ 89


I HUMANIDADES

CULTURA

Um museu

portátil para o Modernismo Caixa modernista reúne os documentos mais importantes do movimento CARLOS HAAG

Qual é o tamanho ideal de um museu? Quem só se contenta com as grandes proporções arquitetônicas de um Guggenheim ou de um MAM vai aprender a se contentar com menos forma, mas bastante conteúdo, com a Caixa modernista, um verdadeiro museu portátil da produção das vanguardas artísticas brasileiras que, embora meça apenas 38,5 cm x 30 cm, traz 30 dos mais importantes livros e documentos sobre a Semana de Arte Moderna de 22, alguns em edição fac-similar. Lançada pela Edusp, Editora da Universidade Federal de Minas Gerais e Imprensa Oficial, tem organização de Jorge Schwartz (professor de literatura hispano-americana na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo). "A idéia de um arquivo vivo do Modernismo é organizar um repertório por mim considerado essencial, de forma concentrada e caleidoscópica, para o conhecimento desse movimento, colocando-o frente à frente com o leitor", explica Schwartz. A Caixa modernista é um desdobramento da exposição Da Antropofagia a Brasília, realizada no Instituto Valenciano de Arte Moderna, na Espanha, em 2000, e repetida no Museu de Arte Brasileira da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), de São Paulo, em 2002, ambas com curadoria de Schwartz, que acabaram rendendo um precioso catálogo editado naquele ano pela Cosac & Naify. Mas o lançamento traz "fetiches" inéditos. "Como toda operação museográfica, há o desejo de colocar à disposição do público verdadeiros tesouros, obras de rara beleza que somente alguns colecionadores ou bibliotecas especializadas têm condições de possuir", diz. Entre os destaques da Caixa, edições fac-similares da Paulicea desvairada, de Mario de Andrade, e de Pau Brasil, de Oswald de Andrade, "peças fundamentais na estruturação da nova 90 ■ MARÇO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 97


PESQUISA FAPESP 97 • MARÇO DE 2004 ■ 91


Acima, Eu vi o mundo... Ele começava no Recife, de Cícero Dias

palavra poética", porém, hoje, pouco acessíveis ao público. O ideal que orientou a Caixa foi respeitar o caráter interdisciplinar da Semana, reunindo objetos referentes à literatura, às artes plásticas, à fotografia, ao cinema, à arquitetura, às artes decorativas, à música e à escultura. Daí, além dos livros já citados, encontramos reproduções do primeiro número da Revista de Antropofagia, de 1928; cartões postais com obras de Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Anita Malfatti; fotografias ligadas à Semana de 22; um CD, Música em torno do Modernismo, produzido por José Miguel Wisnik e Caca Machado, com obras de Villa-Lobos, Guarnieri e Nazareth, incluindo-se gravações originais e um inédito de Villa, recuperado e executado por Wisnik; bem como o convite e o catálogo da exposição de Tarsila na Galerie Percier, de Paris, em 1926. De quebra, um inédito importante, "uma avis rara do Modernismo": um datiloscrito do programa da Semana, em papel timbrado do Automóvel Clube e pertencente ao acervo de Paulo Prado, onde está registrada, à máquina, uma prévia das três noites da Semana. Schwartz também se preocupou em tentar descentralizar ("apesar das dificuldades") o papel de São Paulo no movimento modernista sem, no entanto, diminuir seus méritos fundadores, ressaltando igualmente a importância da presença estrangeira (Marinetti, Cendrars, Milhaud, entre outros). "Na década de 1920, o Modernismo já tinha se espalhado pelo país inteiro. Mario de 92 ■ MARÇO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 97

Andrade, no prefácio a Macunaíma, luta pela 'desregionalização' do movimento", lembra o pesquisador. Em meio aos 450 anos da cidade e a uma minissérie de televisão (Um só coração, da TV Globo), que retrata o Modernismo na capital paulista, a discussão "bairrista" ganha novas tintas. "É indiscutível que, em 1922, São Paulo era uma cidade provinciana comparada à capital da República que havia sido modernizada a partir de 1905, seguindo o modelo parisiense de Hausmann. Mas é muito diferente ter apenas espírito ou artistas modernizantes da atitude agressivamente programática, revolucionária e grupai como foi o mo-

Ao lado, Cabeça de Cristo, de Brecheret; na página seguinte, Estudo para a negra, de Tarsila

vimento de 22", nota Schwartz. Para quem a polêmica pode ser resolvida dando-se a palavra a Manuel Bandeira, num comentário feito sobre o Salão de 1931, no Rio de Janeiro, organizado por Lúcio Costa, visto por muitos como uma comprovação do pioneirismo modernista carioca. "É me grato constatar que o sucesso do 'Salão' contou com um elemento decisivo na contribuição paulista. Lúcio Costa compreendeu desde o primeiro momento que em matéria de boa diretriz artística São Paulo é quase todo o Brasil. Foi de São Paulo que partiu o movimento moderno. Os maiores nomes vieram daí, e aí é que poetas, músicos, pintores e escultores de outros estados encontraram o ambiente em que foram mais bem compreendidos e definitivamente consagrados", disse o poeta ao Diário Nacional. Se o epicentro ainda é controverso, a dimensão da ruptura é clara. "Os próprios participantes ficariam 'abestalhados' com seus destinos. Mas quando vemos, por exemplo, nossos medalhões numa minissérie da Globo, de alcance nacionalpopular, podemos afirmar que a profecia de Oswald, de que a massa haveria de comer o seu biscoito fino, acabou se concretizando. O que a cultura brasileira deve ao movimento? Mais do que a vã imaginação supõe", observa Schwartz. Ele lembra, por exemplo, o débito da poesia concreta ao Modernismo, tendo construído parte de seu ideário nos pressupostos antropofágicos de Oswald; ou, ainda, o Cinema Novo como


beneficiário direto do ideário modernista. Ainda, segundo ele, são reflexos de 22: o Tropicalismo; a revitalização da dramaturgia brasileira para além de Nelson Rodrigues; o desenvolvimento da arquitetura brasileira que, embora culmine com Brasília, se inicia com os projetos de Warchavchik em São Paulo, autor, em 1925, do Manifesto acerca da arquitetura moderna. "Se nesse preciso momento podemos ver com tranqüilidade e admiração uma exposição sobre Arte Africana em São Paulo, bem como uma retrospectiva de Picasso, penso que, em última instância, isso se deve aos caminhos abertos pela geração de 22, possibilitando um olhar em direção aos, nem sempre fáceis, códigos abstratos da modernidade. É pouco?" Ruptura - Mas as conquistas podem vir acompanhadas de males. "O 'novo' como ruptura com a tradição, como oposição ao passado, e todos os pressupostos vanguardistas embutidos nesse conceito acabaram, com o tempo, migrando para a esfera do consumo. O mercado é inconcebível sem essa aliança, nefasta a meu ver, com a ideologia do novo", nota Schwartz. Na raiz do movimento alojava-se, sem que esse o desejasse, a sua banalização. "Entramos no consumo do 'novo pelo novo' ou do novo como fetiche. Bem diferente das rupturas propostas pelos modernistas, num momento crucial em que se propuseram a internacionalizar a sua linguagem." Alguns críticos do Modernismo também notam que o movimen-

to passou como um trator sobre a arte acadêmica então produzida no Brasil, que teria impedido uma harmonização entre futuro e passado. "A Semana, para ter contornos revolucionários, deveria opor-se ferrenhamente a toda uma opulenta tradição. Mas a história do movimento mostra que os departamentos não foram tão estanques assim: Anita só foi radicalmente expressionista durante um breve período; a etapa cubista, 'paubrasilizante' e antropófaga de Tarsila também só foi exercida durante os anos mais radicais", lembra o organizador. Para quem, um bom exemplo das ambivalências modernistas podem ser explicitadas no famoso Salão

de dona Olívia Guedes Penteado, na rua Duque de Caxias, onde conviviam o estilo acadêmico mais tradicional com o solar decorado por Lasar Segall, dedicado inteiramente às vanguardas e onde se realizavam os encontros semanais do grupo modernista. "Também quando Cendrars veio ao Brasil uma das atividades do grupo foi mostrar e festejar o nosso barroco, na famosa caravana modernista a Minas Gerais, em 1924. Ou seja, os modernistas souberam olhar para o passado, que 'é lição para se meditar, não para reproduzir', como afirmara Mario de Andrade no Prefácio interessantíssimo, de 1922", explica. Movimento elitista e revolucionário; estético, mas preocupado com o social, descambando por vezes para uma admiração pelo fascismo; seja como for, o Modernismo pode, com justeza, ser reconhecido, como disse Mario, como "a maior orgia intelectual que a história artística do país registra". Veremos algo semelhante no futuro? Schwartz não quer fazer "previsões esotéricas", mas acha preocupante a rota da globalização da arte em que a marca do nacional não aponta para o referente. "Prefiro me dedicar a resgatar documentos e papéis esquecidos ou perdidos", diz. Schwartz, aliás, já prepara uma caixa concretista e sonha com uma nova caixa modernista, com mais documentos em fac-símile, como Cobra Norato, de Raul Bopp, ou Macunaíma, com desenhos de Pedro Nava. O resto é com o leitor. Afinal, a Caixa modernista, como todo bom museu, pode conter o passado sem deixar de fustigar o futuro. • PESQUISA FAPESP 97 ■ MARÇO DE 2004 ■ 93


RESENHA

A noite dos generais, segundo Gaspari Terceiro volume sobre a ditadura mostra o desmanche do regime militar JOSé ARTHUR GIANNOTTI

Este terceiro livro da série de cinco que Elio Gaspari planejou para historiar o período ditatorial brasileiro me parece ainda melhor que os anteriores. Não sei bem por que, pois continua a empregar os mesmos recursos que fizeram deles dois marcos imprescindíveis para o estudo dessa época. Recompõe os fatos com memória de elefante e paciência de camelo, conta o que aconteceu num estilo rápido e irônico, monta o cenário com técnica de teatro. O que há de novo, a não ser a narração dos acontecimentos do período, o esmiuçar a surpreendente trajetória de uma ditadura que se desfaz? O segundo livro, A ditadura escancarada, termina no momento em que o gal. Ernesto Geisel se preparava para ocupar a Presidência da República: "Receberia uma ditadura militar que apoiara, sabendo que dentro dela estava montada uma máquina de extermínio das lideranças esquerdistas. Não havia mais guerrilha, muito menos terrorismo. Sobrara a máquina". O terceiro acompanha passo a passo o desmanche desse engenho. No entanto, por que a primeira parte do novo livro, intitulada O sacerdote e o feiticeiro, que traça a biografia de Geisel e do gal. Golbery do Couto e Silva, ocupa um terço do texto? Na seqüência, a segunda parte narra a volta ao Planalto de ambos os personagens, afastados do núcleo da política depois de terem sido derrotados por Costa e Silva; a terceira e a quarta acompanham o governo de Geisel até a inesperada derrota da Arena, partido governista, em 1974, diante das forças da oposição reunidas no MDB. Essas duas partes retomam o ritmo elegante dos livros anteriores, embora os acontecimentos sejam descritos numa tonalidade mais dramática, como se o desfecho de um período negro de nossa história estivesse rondando cada acontecimento. À primeira vista, as duas biografias apenas encompridam os perfis que Elio Gaspari descreve ao longo de seus livros. A técnica é simples: a narração de cada lance do jogo político é interrompida por referências biográficas do personagem que acabou de entrar em cena. Mas a história de vida de Geisel e Golbery, além de mais detalhada, trata de apresentar o caráter, o tipo de performance por que cada ator se torna responsável. Tudo se passa como se em torno de cada individualidade se abrisse uma aura de comportamentos típicos possíveis. Aliás, basta abrir o livro para que se repare que o título da capa, A ditadura derrotada, aparece agora como subtítulo de O sacerdote e o feiticeiro. Daí o duplo registro deste terceiro volume: de um lado, narração de cada evento nos seus pormenores; de outro, montagem de dois tipos de atores políticos. O primeiro é um alemão 94 ■ MARÇO DE 2004 ■ PES0.UISA FAPESP 97

pobre que se faz general, imbuído de regras e da crença inabalável na validez das instituições militares; para ele, não Elio Gaspari há liberdade para a bagunça, a baderna ou a ação contra o governo; em princíCompanhia pio é contra a tortura, mas aceita seu das Letras emprego como último recurso da prática repressiva. O segundo é um plasma 576 páginas atrevido, vendo-se a si mesmo desligaR$ 49,50 do de tudo, embora fiel às amizades e rancoroso nas inimizades; devorador ^_ de livros e de idéias; soldado da guerra ideológica. Correndo sob a torrente dos acontecimentos, arma-se a história desses dois tipos, ligados entre si como unha e carne, mas diferentes no modo de conceber a arte da política. Essa diferença eclode no preciso momento em que ocorre a derrota da Arena e a ditadura se vê questionada nas urnas. O governo de Geisel percebera que as eleições de 1974 haviam assumido peso simbólico considerável. A oposição se organizara em torno da candidatura de Ulysses Guimarães e, pela primeira vez, depois de 1964, a esquerda retorna ao jogo eleitoral. Nas eleições de 1970, se isentara, contribuindo para o índice inédito de 30,8% de votos em branco ou nulos, mas agora parte para a luta. Do ponto de vista do governo, a situação parecia sob controle, o país em ordem e tudo anunciava uma vitória sobre o MDB, que não deveria ser acachapante, a fim de que se tornasse viável aquele bipartidarismo com que sonham as mentes bem pensantes. Uma semana antes das eleições, o governo se dá conta de que perdera a luta, mas não nas proporções em que a derrota se deu. Caiu então na armadilha que armara para evitar que qualquer idéia nova se tornasse pública. Obviamente, as diversas tendências de que se compunha esse governo começam a se mover, cada uma imaginando como seria possível, no quadro de uma legalidade postiça, fraudar a vontade expressa nas urnas. Golbery se retrai, não era aprendiz de feiticeiro, mas via sua vassoura mágica se transformar num exército de vassourinhas incontroláveis. Ora, o descontrole não era tudo o que o governo militar procurava coibir? Derramado o leite, Geisel reage: "É isso, e pronto". Agora somente podia ser fiel ao mote de sua vida, entregando-se à "lenta, gradual e segura distensão". Mas, a seu modo, como um general que, diante da fortuna inesperada e maleável dos acontecimentos, sabe agarrar o momento de sua virtude e vem a ser capaz de tocar um nervo da existência, ainda que isso consuma seu próprio ser. A ditadura derrotada

filósofo, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coordenador da área de filosofia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap)

JOSé ARTHUR GIANNOTTI,


Os peixes do rio Sorocaba A história de uma bacia hidrográfica

Montaigne contra a vaidade Um estudo sobre o ceticismo na apologia de Raimond Sebond

Welber Senteio Smith EditoraTCM Comunicação 164 páginas / R$ 25,00

Luiz Antônio Alves Eva Humanitas/FAPESP 300 páginas / R$ 20,00

Fruto, entre outros apoios, de uma bolsa da FAPESP, esse belo livro faz justiça à recuperação de um rio que se julgava praticamente morto. Hoje, o Sorocaba, o maior afluente da margem esquerda do rio Tietê, com uma bacia que abastece grandes populações à sua margem, apresenta uma grande variedade de peixes. Descritos com detalhes nesse livro ilustrado. Editora TCM Comunicação: (15) 232-8061 www.editoratcm.com.br

Comportamento animal Uma introdução à ecologia comportamental Kleber Del-Claro Livraria Conceito 132 páginas / R$ 20,00

Escrito numa linguagem muito acessível, ideal para leigos, o estudo pretende atingir o público jovem e pesquisadores e estimulá-los à análise de como se dá a ecologia do comportamento dos animais. O livro é baseado em dez anos de pesquisas no ensino de técnicas de avaliação comportamental feitas pelo autor e seus colegas. Acima de tudo, é uma obra feita na medida para ensinar a pesquisar o mundo animal. Livraria Conceito: (11) 4522-1900 www.livrariaconceito.com.br

História da fotorreportagem no Brasil Joaquim Marcai Ferreira de Andrade Editora Campus / Elsevier 304 páginas / R$ 49,00

Poucos discutem nos meios da filosofia a importância de Montaigne, ao lado de Pascal, na constituição do pensamento cético. Parte do mérito dessa aceitação deve-se ao celebrado texto de Raimond Sebond, Apologia. O que o presente estudo pretende, com argumentos sem dúvida precisos, é mostrar que Sebond, ele mesmo, usou princípios de Montaigne para sua argumentação. Humanitas FFLCH/USP: (11) 3091-2920; fax (11) 3091-4593 www.fflch.usp.br ou editflch@edu.usp.br

Ancestrais Uma introdução à história da África Atlântica Mary Del Priore e Renato Pinto Venâncio Editora Campus / Elsevier 198 páginas / R$ 34,00

Não faltam estudos de todos os matizes sobre o fenômeno da escravidão no Brasil. No entanto, boa parte deles deixa de lado o outro lado desse horror: a vida dos ancestrais africanos em sua terra natal, vistos na glória de seus reinos, na sua vida familiar, no seu cotidiano, revelando analogias que destroem de vez as especulações racistas que deram base para a escravidão entre nós. Editora Campus/ Elsevier: (21) 3970-9300 www.campus.com.br ou info@elsevier.com.br

De que amanhã... Diálogo Jacques Derrida e Elisabeth Roudinesco Jorge Zahar Editor 240 páginas / R$ 39,00

Hoje todo leitor de imprensa deseja abrir seu jornal e revista e dar de cara com fotografias que o ajudem a entender o fato explicado em palavras pelo jornalista. Essa não foi uma evolução fácil e esta obra conta justamente a história desse complexo desenvolvimento da relação entre imagem e texto na imprensa carioca, desde 1839, com o daguerreótipo, até 1900, com a consolidação dos principais jornais da República, mostrando a influência dos avanços na Europa e nos EUA.

O moto para o diálogo entre os dois famosos intelectuais franceses foi uma frase de Victor Hugo: "O amanhã é sempre o grande momento! De que amanhã se trata?" Ousadamente usando conceitos atualmente desprezados (liberdade, marxismo etc), os dois discutem o futuro e colocam ao leitor a questão de se devemos mesmo esperar o melhor para o amanhã. Uma discussão saborosa e acessível.

Editora Campus/ Elsevier: (21) 3970-9300 www.campus.com.br ou info@elsevier.com.br

Jorge Zahar Editor: (21) 2240-0226 www.zahar.com.br ou jze@zahar.com.br PES0UISA FAPESP 97 ■ MARÇO DE 2004 • 95


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