Era uma vez na América do Sul

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Ciência eTecnologia

Abril 2004 • N° 98

FAPESP

Grandes mamíferos

Era

uma vez na América do Sul


RIMRGEM DO MÊS ~

As mais antigas galáxias já vistas, fotografadas em março pelo telescópio Hubble, surgiram há 13 bilhões de anos, pouco depois do Big Bang. PESQUISA FAPESP 98 • ABRIL DE 2004 • 3


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SEÇÕES A IMAGEM DO MÊS .................. 3 CARTAS ........................... 6 CARTA DO EDITOR ................... 9 MEMÓRIA ....................... . 10 As sete vidas do Museu Emílio Goeldi

ESTRATÉGIAS Osonho da grama mais verde ........... 20 Oásis une Israel e Jordânia ........ . .. . 20

REPORTAGENS CAPA Teoria associa a extinção dos grandes mamíferos na América do Sul a alterações na vegetação causadas pelo excesso de umidade ..... 36

Revolta da vacina na Nigéria ............ 21 Os trópicos na zona de luz ..... .. . .. ... . 21 Editores na mira da ética .............. 22 Em busca da diferença ... ..... ... . .. .. 22 Vizinhos que se ajudam ................ 22 Ciência na web ...................... 22 Software livre na pesquisa agrícola ....... 23 Dupla jornada autorizada .............. 23 A marca dos 120 periódicos . ... . .. ... .. 23 A máscara carioca do carnaval paulistano .. 24

FAPs

4 • ABRIL DE 2004 • PESQUISA FAPESP 98

Piranhas não são tão agressivas como se imagina e, em geral, atacam em defesa da prole ............ 44

NEUROCIÊNCIAS

As lições de literatura de Roberto Schwarz ........ 12

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

Vez da genética e do desenvolvimento ..... 24 Conhecimento compartilhado .. .. . .. .. ... 24 Lições da guerra do cupuaçu .... .... ... . 25 À procura do parceiro ideal ............ 25 Receita para vencer a poluição ....... .. . 25

AMBIENTE

Experimento em pacientes com Parkinson mostra que sinais do cérebro podem mover próteses ......... ... 46

Pesquisadores se mobilizam por mais recursos para a pesquisa ........... 26

Novos compostos reduzem danos da doença de Alzheimer ............. 50

PROGRAMA ESPACIAL

Radiação gama ajuda a tratar transtornos obsessivo-compulsivos .. ..... 53

Falta de recursos foi responsável pelo acidente com o VLS-1 ...... . 29

INOVAÇÃO Pesquisadores criam empresa de base tecnológica ......... 30

MEDICINA Primeiras cirurgias de correção de coluna em bebês ainda no útero mostram resultados promissores ...... 56


REPORTAGENS

SEÇÕES

ASTROFÍSICA

ENGENHARIA ELÉTRICA

LABORATÓRIO

O telescópio Soar começa a funcionar no Chile e inaugura uma nova etapa da pesquisa brasileira .. . . ... 58

Sensor eletrônico elimina prejuízos no processo de secagem da pasta de celulose, usada para fabricar papel ......... 82

Amazônia mutante . .. ..•.. . . . ........ 32 Dieta reprovada ........ . . . .. ... .... . 32 Quando a alergia está no ar .. . .. .. .. .... 33 Além das aparências . .. .. . .... .. ...... 33

USP 70 A trajetória centenária da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz ... 62

HUMANIDADES ARTES CÊNICAS

TECNOLOGIA ENGENHARIA CIVIL Os impactos sutis do ecoturismo ....... . . . 34 Problemas com as células-tronco . ... . .. . . 34 Ogás da evolução . . ........... .. ..... 35 Os terremotos e os dados viciados .. . .. . . . 35 Genética contra a malária ........... . . . 35

SCIELO NOTÍCIAS .................. 68

Novas técnicas de construção e tratamento especial da matéria-prima resgatam as tradicionais pontes de madeira .......... . .... 74

METALURGIA

Tese revela a evolução da importância dos figurinos no desenvolvimento do teatro moderno ..... . .. . 84

CULTURA Estudo revela importância do Pensionato Artístico, bolsas de estudos que levaram modernistas à Europa ...... . 88

CBA e Poli-USP desenvolvem chapas de alumínio mais finas e resistentes ...... 78

LINHA DE PRODUÇÃO Declaração mundial dos robôs . .. . .. . .. . . 70 Esterilização elimina agentes biológicos .... 70 Rosto é senha de acesso . . ......... . . . . 70 Ônibus limpos e silenciosos ... . .. .... ... 71 Primeiro vôo do maior avião . .. . .. . .. . . . 71 Parceria entre Genius e Unicamp ..... ... 71 ~Telhas com fibras .... . .. .. .. ..... .... 72 Usina móvel visita fundições ............ 72 Carne preservada por mais tempo . . . .. ... 72 ......... 73

QUÍMICA

Patentes . ... .. ... . .... ......... .. . 73

Livro traz radiografia das festas religiosas nacionais ......... 92

Empresa cearense transforma rejeitas de crustáceos em medicamentos .. .. ... .. . 80

Capa: Hélio de Almeida Foto: Art Wolfe I Getty Images Tratamento de imagem: José Roberto Medda

RESENHA ......................... 94 Gilberto Freyre em quatro tempos, organizado por Ethel Volfzon l<osminsky, Claude Lépine e Fernanda Arêas Peixoto

LIVROS .................. . ........ 95 CLASSIFICADOS ................. . . 96 PESQUISA FAPESP 98 • ABRIL DE 2004 • 5


REPORTAGENS

SEÇÕES

ASTROFÍSICA

ENGENHARIA ELÉTRICA

O telescópio Soar começa a funcionar no Chile e inaugura uma nova etapa da pesquisa brasileira ....... 58

Sensor eletrônico elimina prejuízos no processo de secagem da pasta de celulose, usada para fabricar papel . . ..... .. 82

USP 70 A trajetória centenária da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz ... 62

LABORATÓRIO Amazônia mutante ................. .. 32 Dieta reprovada .. . .. . .. . ... . . ....... 32 Quando a alergia está no ar . . ...... ... . . 33 Além das aparências . .. . . ..• .. ..... . .. 33

HUMANIDADES ARTES CÊNICAS

TECNOLOGIA ENGENHARIA CIVIL Os impactos sutis do ecoturismo . . ........ 34 Problemas com as células-tronco . .. ...... 34 Ogás da evolução ... .... .. . .......... 35 Os terremotos e os dados viciados . . .. .. . . 35 Genética contra a malária .... . .. .. ..... 35

SCIELO NOTÍCIAS .................. 68

Novas técnicas de construção e tratamento especial da matéria-prima resgatam as tradicionais pontes de madeira ............... 74

METALURGIA

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Tese revela a evolução da importância dos figurinos no desenvolvimento do teatro moderno . .. . .. .. . 84

CULTURA Estudo revela importância do Pensionato Artístico, bolsas de estudos que levaram modernistas à Europa .. ..... 88

CBA e Poli-USP desenvolvem chapas de alumínio mais finas e resistentes .. .... 78

LINHA DE PRODUÇÃO Declaração mundial dos robôs . . ......... 70 Esterilização elimina agentes biológicos .... 70 Rosto é senha de acesso .... .. . .. . . .... 70 Ônibus limpos e silenciosos .. .. . .. ...... 71 Primeiro vôo do maior avião .. . ... . .. ... 71 Parceria entre Genius e Unicamp . ... . . .. 71 ~Telhas com fibras ................. ... 72 Usina móvel visita fundições .. . . . .. .. .. . 72 Carne preservada por mais tempo ........ 72

.... .... . 73

QUÍMICA

Patentes . ... .. ... . .... .. . . ... . .. . . 73

Livro traz radiografia das festas religiosas nacionais .. . ...... 92

Empresa cearense transforma rejeitas de crustáceos em medicamentos .......... 80

Capa: Hélio de Almeida Foto: Art Wolfe I Getty Images Tratamento de imagem : José Roberto Medda

RESENHA .... . .. . ................. 94 Gilberto Freyre em quatro tempos, organizado por Ethel Volfzon l<osminsky, Claude Lépine e Fernanda Arêas Peixoto LIVROS ........................... 95 CLASSIFICADOS ............. . ..... 96 PESQUISA FAPESP 98 • ABRIL DE 2004 • 5


ca rt as@ fapes p.br

Biossegurança

Água-viva

Em Pesquisa FAPESP no 97, li o texto intitulado "Carta da FAPESP aos senadores", parte da reportagem "Lei polêmica", que fala sobre a Lei de Biossegurança, em trâmite no Congresso. Não sou da área científica, mas por viver próxima a pessoas que vivem o drama da direção que a pesquisa vem tomando no nosso país (meu marido é aposentado da USP, mas continua trabalhando como pesquisador, tenho uma filha que faz doutorado na USP/São Carlos e um filho que faz mestrado na USP/Ribeirão Preto) graças às leis inconsistentes e arbitrárias existentes no Brasil, é com muita admiração que li essa reportagem. Está de parabéns o Conselho Superior da FAPESP, pelo manifesto feito aos senadores. Aproveito para agradecer o recebimento desta digna revista, que traz sempre em suas reportagens assuntos tão polêmicos e relevantes. Aguardo-a sempre com muita expectativa, pois a utilizo no programa de rádio diário que faço juntamente com um consultor ambiental (mateiro). Posso assim diversificar, colocando no ar uma pessoa que entende muito de ecossistema, mas que não é pesquisador. A revista Pesquisa FAPESP faz isso muito bem, além de ter confiabilidade, pois as reportagens são escritas baseadas em pesquisas científicas. Sabem de uma coisa? Quando vejo esmorecer todo e qualquer argumento na tentativa de educar nosso povo, lembro que nem tudo está perdido. Ainda temos os senhores para defenderem com propriedade nossas riquezas naturais. Parabéns e muito obrigada.

Cumprimento o Conselho Editorial e toda a sua equipe pelo excelente trabalho de divulgar o conhecimento científico gerado no nosso país. Isso é extremamente importante para valorizar a qualidade crescente da ciência produzida no Brasil. Gostaria de aproveitar a oportunidade para comentar uma nota que saiu

NICETE CAMPOS

São Carlos, SP 6 • ABRIL DE 2004 • PESQUISA FAPESP 98

autores (MBARI) e acredito que o texto original pode não ser claro o suficiente para uma pessoa não familiarizada com o grupo. Parabéns novamente pelo excepcional trabalho na revista. AND~ CARRARA MORANDINI

Departamento de Zoologia Instituto de Biociências/USP São Paulo, SP

Dinossauros do Maranhão EMPRESA QUE APÓIA A PESQUISA BRASILEIRA

lJ)

N O V A RT I S Trop1Net.org

na edição no 97 de Pesquisa FAPESP, na seção Laboratório. A notícia trata de uma nova espécie de água-viva encontrada nas profundezas do litoral da Califórnia ( Stellamedusa ventana). O texto inicia-se com a frase: "Por apresentar quatro braços em vez de tentáculos ... a ponto de inaugurar uma nova subfamília ...". Ressalto que essas características (quatro braços e ausência de tentáculos) não são exclusivas dessa espécie e que alguns outros membros do grupo das águas-vivas em questão (filo Cuidaria, classe Scyphozoa, ordem Semaeostomeae) também compartilham esta morfologia. A decisão dos autores para definir a espécie como nova está calcada em uma série de outras características adicionais. Tomei a liberdade de checar o press release divulgado pela instituição dos

Com relação à reportagem "Sob as palmeiras" (edição no 96), fico contente em saber que existem pesquisadores como o professor Vitorino Coelho de Sousa que, com o verdadeiro feeling cientifico, são capazes de fazer ciência, de investigar, de orientar, de educar, aqui, ali, em qualquer lugar. Isso é possível devido à criatividade e à curiosidade que instiga o bom pesquisador. Quem diria que de uma aparente simples conversa algo tão valioso poderia ser encontrado. Parabéns à revista pelo artigo e também ao professor e demais envolvidos pela descoberta. Como aluno de licenciatura em Ciências Biológicas fico especialmente entusiasmado com notícias dessa natureza. LUCIANDRO SODRt

Ciências Biológicas/Unesp Botucatu, SP

Mapas de São Paulo Manifesto minha surpresa e tristeza diante dos erros que aparecem no mapa "Evolução da área urbanizada- de 1949 a 1992" publicado à página 10 do suplemento especial São Paulo 450 anos. Pelo mapa, inexistia área urbanizada no ABC em 1949. No entanto, em 1950 (apenas


um ano depois), a cidade de Santo André tinha uma população recenseada de 97.944 habitantes (população urbana do distrito de Santo André) e São Caetano do Sul, 55.399 habitantes. Com essas populações, as áreas urbanizadas dessas cidades não podiam ser desprezíveis. Ainda segundo o mapa, a quase totalidade da área urbanizada do ABCD surgiu nos 13 anos compreendidos entre 1949 e 1962 e o crescimento entre 1962 e 1980 (18 anos) foi mínimo. Isso é incompatível com o crescimento demográfico da região, cuja população urbana mais que dobrou entre 1960 e 1980. Por outro lado, o crescimento em termos absolutos que deve se expressar na extensão da área urbanizada - nessas duas décadas foi muito maior que entre 1949 e 1962. Pelo mapa, Mogi das Cruzes, em 1985, também tinha área urbanizada zero. No entanto, a população da cidade em 1980 (população urbana do distrito da sede) não era nada desprezível, ou seja, 122.434 habitantes! Pelo mapa, toda a área urbanizada da cidade de Mogi das Cruzes só surgiu- toda ela, de repentedepois de 1985, o que é evidentemente um disparate. Outro erro evidente: o Parque do Estado aparece com área urbanizada em 1992! Também não são citadas as fontes desse mapa: nem o autor da delimitação dessas áreas urbanizadas, nem os mapas ou fotos aéreas por ele utilizados nas suas delimitações.

mam as fontes básicas consultadas. Esse procedimento prejudicou a apresentação do trabalho. As fotos aéreas das páginas 8 e 9 eram parte integrante do mapa temático "Vetor de expansão de atividades do terciário" (páginas 184 e 185 do livro ). Na reportagem foram incluídas apenas as imagens das fotos aéreas cuja compreensão depende da conjugação com o mapa temático omitido e que as explicaria. Também foram omitidas as fontes básicas utilizadas. Os mapas que constam das páginas 10 e 11 foram reproduzidos na revista sem a legenda, parte fundamental deles, fato que impediu a verificação da origem da informação mapeada. As tabelas de dados demográficos e socioeconômicos incluídas no livro fornecem os parâmetros necessários para corrigir possíveis desvios das informações espacializadas. Os dados populacionais apontados pelo professor Flávio Villaça em sua carta constam justamente das tabelas incluídas no livro. Essas tabelas respondem às observações sobre a área urbanizada de Mogi das Cruzes e do ABC. Lembramos que conforme consta na legenda do mapa publicado de forma incompleta que a fonte básica utilizada no mapa da página 10 "Evolução da área urbanizada de 1949 a 1992" é um layer fornecido pela Emplasa. O erro apontado pelo professor da área do Parque do Estado estar indicada como urbanizada já foi corrigido no livro.

FLAVIO VILLAÇA

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo/USP São Paulo, SP Resposta das pesquisadoras Regina Maria Prosperi Meyer e Marta Dora Grosteín:

A matéria foi ilustrada com imagens retiradas de mapas temáticos do livro São Paulo metrópole, porém publicadas de forma incorreta, isto é, sem as legendas nas quais se infor-

Nota da Redação: Os mapas foram

usados apenas como exemplo para ilustrar a reportagem sobre o trabalho das pesquisadoras. Não houve preocupação em reproduzir o que já consta do livro São Paulo metrópole.

Cartas para est a revista devem ser enviadas para o e-mail car tas@fapesp.br, pelo f ax (11) 3838-41 8 1 ou para a Rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP, CE P 05468-901. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e cl areza.

PESQUISA FAPESP 98 • ABRIL DE 2004 • 7


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EDITOR

Pesquisa CARLOSVOGT PRESIDENTE

Cenas do passado e do futuro

PAULO EDUARDO DE ABREU MACHADO VICE-PRESIDENTE CONSELHO SUPERIOR ADILSON AVANSI DE ABREU, CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, CARLOS VOGT, CELSO LAFER, HERMANN WEVER, HORÁCIO LAFER PIVA, MARCOS MACARI, NILSON DIAS VIEIRA JÚNIOR, PAULO EDUARDO DE ABREU MACHADO, RICARDO RENZO BRENTANI.VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTR ATIVO FRANCISCO ROMEU LANDI DIRETOR PRESIDENTE JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER DIRETOR ADMINISTRATIVO JOSÉ FERNANDO PEREZ DIRETOR CIENTÍFICO PESQUISA FAPESP CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADORCIENTÍFICO), EDGAR DUTRA ZANOTTO, FRANCISCO ANTÔNIO BEZERRA COUTINHO, FRANCISCO ROMEU LANDI, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, JOSÉ FERNANDO PEREZ, LUIZ EUGÊNIO ARAÚJO DE MORAES MELLO, PAULA MONTERO,WALTERCOLLI DIRETORA OE REDAÇÃO MARILUCE MOURA EDITOR CHEFE NELDSON MARCOLIN EDITORA SÊNIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS DIRETOR DE ARTE HÉLIO DE ALMEIDA EDITORES CARLOS FIORAVANTI (CIÊNCIA), CARLOS HAAG (HlnUHMDES), CLAUDIA IZIQUE (POLÍTICAC&T), HEITOR SHIMIZU («ERSÃOON-LINE), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA) EDITOR ESPECIAL MARCOS PIVETTA EDITORES-ASSISTENTES D1NORAH ERENO, RICARDO ZORZETTO CHEFE DE ARTE TÂNIA MARIA DOS SANTOS OIAGRAMAÇÃO JOSÉ ROBERTO MEDDA, LUCIANA FACCHIN1 FOTÓGRAFOS EDUARDO CÉSAR, MIGUEL BOYAYAN COLABORADORES ALESSANDRA CHAVES PEREIRA, ANA MARIA FERRAZ, BRAZ, EDUARDO GERAQUE (ON-LINE), FABRtCIO MARQUES, FRANCISCO BICUDO, JOANA MONTELEONE, LAURABEATRIZ, LUCÍLIAATAS, MARCELO HONORIO (ON-LINE), MARGÔ NEGRO, MARILI RIBEIRO, MARONI SILVA, SAMUEL ANTENOR, SlRIO J. B. CANÇADO, RENATA SARAIVA,THIAGO ROMERO (ON-LINE) ASSINATURAS TELETARGET TEL. (11) 3038-1434 - FAX: (11) 3038-1418 e-mail: fapesp@teletarget.com.br APOIO DE MARKETING SINGULAR ARQUITETURA DE MlDIA Slngular@sln9.c0m.br PUBLICIDADE TEL: (11) 3838-4008 e-mail: mpiliadis@fapesp.br (PAULA ILIADIS) PRÉ-1MPRESSÃ0 GRAPHBOX-CARAN IMPRESSÃO PLURAL EDITORA E GRAFICA TIRAGEM: 44.000 EXEMPLARES

CIRCULAÇÃO E ATENDIMENTO AO JORNALEIRO LMX (ALESSANDRA MACHADO) TEL: (11) 3865-4949 atendimento@lmx.com.br GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP FAPESP RUA PIO XI, N' 1.500, CEP 05468-901 ALTO DA LAPA - SÃO PAULO - SP TEL. (11) 3838-4000 - FAX: (11) 3838-4181

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Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAPESP É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

FUNDAÇÃO DE AMPARO A PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO SECRETARIA DA CIÊNCIA,TECNOLOGIA, DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E TURISMO GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Areportagem de capa desta edição de Pesquisa FAPESP aborda uma „ nova e fascinante teoria ecológica elaborada no Brasil. Ela propõe que uma significativa mudança climática no meio do Holoceno, época geológica iniciada há cerca de 11 mil anos, seria o elemento-chave para explicar o desaparecimento, na América do Sul, e a razoável preservação, na África, de algumas das linhagens dos grandes mamíferos que geraram, entre outras espécies, os atuais elefantes, girafas e rinocerontes. Nos dois continentes, choveu horrores naquele período. Mas, segundo a nova teoria, que o editor especial Marcos Pivetta detalha a partir da página 36, enquanto na África os formidáveis bichões conseguiam escapar das antigas áreas de savana-cerrado - seu habitat por excelência, que o excesso de água tornara inóspito e migrar para novas zonas de vegetação aberta nas extremidades norte e sul do continente, na América do Sul eles não tiveram essa chance - não encontraram nenhum ambiente próximo compatível com seu estilo de vida e pereceram. O resultado é que hoje o maior mamífero no continente em que nos encontramos é a anta, grande, sem sombra de dúvida, com seus até 300 quilos, mas apenas um bichinho diante do imponente elefante africano, que pode ser 20 vezes mais pesado que ela. A teoria é, claro, polêmica, mas até por isso vale a pena mergulhar no delicioso texto que a apresenta. Fronteiras que desafiam o desejo muito humano de conhecer e transformar a realidade nem sempre estão situadas a enormes distâncias no tempo ou no espaço. Às vezes é o mais próximo, mesmo o que nos constitui, que longamente resiste às investidas da razão científica. Um bom exemplo? O cérebro humano. Mas talento, persistência e uma determinação quase obsessiva de decifrar o que de fato se guarda por trás da fortaleza da caixa craniana vêm lançando novas luzes sobre a fisiologia, a potência e os males que acometem com freqüência o mais nobre dos órgãos do corpo humano. É de algumas dessas luzes que trata o bloco de reportagens sobre neurociên-

cias, a partir da página 46. Na primeira, Pivetta, que no começo de março esteve em Natal acompanhando o simpósio de lançamento do ambicioso projeto de construção de um instituto internacional de neurociências naquela cidade, capitaneado por Miguel Nicolelis, relata as experiências de ponta desse cientista paulistano, radicado há 15 anos nos Estados Unidos, onde comanda um laboratório com 40 pesquisadores na Universidade de Duke, Carolina do Norte. A mais recente e fantástica delas, já divulgada pela imprensa brasileira, sugere que o homem, em tese, pode controlar robôs e próteses por meio da atividade elétrica de seus neurônios. Na segunda reportagem, o editor-assistente de Ciência Ricardo Zorzetto mostra avanços promissores na pesquisa brasileira de novos compostos destinados a reduzir os danos provocados pelo mal de Alzheimer, doença que devasta o cérebro e a vida de 5% dos homens e 6% das mulheres com mais de 60 anos no mundo inteiro, atingindo 40 milhões de pessoas, das quais 1,5 milhão no Brasil. Na terceira reportagem do bloco, o repórter Francisco Bicudo narra as experiências cirúrgicas que, valendo-se dos raios gama, vêm sendo feitas desde dezembro passado no país para tratar portadores de manifestações graves do transtorno obsessivo-compulsivo. Mais conhecido por TOC, esse problema psiquiátrico que transforma em inferno o cotidiano de seus portadores, afeta cerca de 3 milhões de pessoas no Brasil. Para finalizar, é leitura altamente recomendável, para não dizer obrigatória, a entrevista com o crítico de literatura Roberto Schwarz (pag. 12), feita por Luiz Henrique Lopes dos Santos, professor de filosofia da USP, coordenador científico do projeto da revista Pesquisa FAPESP, e por mim. A lucidez, o vasto conhecimento, a inteligência aguda de Schwarz, que lhe permitem atravessar questões polêmicas modulando com mestria o tom de sua fala entre o incisivo e o suave, transformam em genuíno prazer o ato de ouvi-lo - ou ler suas palavras. MARILUCE MOURA

- DIRETORA DE REDAçãO

PESQUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 • 9


MEMóRIA

useu

com sete vidas

Pioneira na Amazônia, o Emílio Goeldi renasceu várias vezes em 138 anos NELDSON MARCOLIN

Prédio da Rocinha, sede do museu desde 1895, hoje é local de exposição permanente

10 ■ ABRIL DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 98

A lém dos conhecidos estudos sobre fauna, i^L flora e minerais, todos aqueles naturalistas L^k estrangeiros que percorreram o Brasil i ^ no século 19 deixaram uma importante ^Lm -A. contribuição para a ciência do país - a motivação para a criação de um museu de história natural na Amazônia, que poderia servir como apoio às expedições e até formar pesquisadores. Assim começou a trajetória pioneira e errática da primeira instituição científica da região e o segundo mais antigo museu de ciências do país (o primeiro é o Museu Nacional, no Rio de Janeiro). Em 1861, foi proposto um artigo aditivo à Lei do Orçamento Provincial para a criação de uma instituição desse tipo em Belém, fato só


Visitantes no Parque Zoobotânico, em 1905, e Emílio Goeldi (ao lado): educação e lazer para o público

Aquário do parque, em 1911: ciclos de investimento e abandono marcam a história do museu

concretizado em 1866 com o nome de Museu Paraense. O momento era propício: a borracha estava em alta e havia uma classe emergente interessada em ciências, publicações, e nas visitas de naturalistas e artistas estrangeiros à Amazônia. Essa atenção e apoio do governo e da sociedade para o museu duraram pouco. Extremamente dependente de seu primeiro diretor, Domingos Soares Ferreira Penna, a instituição foi fechada logo após sua morte, em 1888. Três anos depois, o museu renascia - o primeiro de vários renascimentos. Em 1894, assumiu a direção o zoólogo suíço Emílio Goeldi (1859-1917), que posteriormente viria a lhe dar o nome e a transformar o centro em uma instituição científica de fato, com uma estrutura recheada de cientistas e técnicos muito produtivos. Foram criados o Parque Zoobotânico e o Serviço Meteorológico. Goeldi iniciou a publicação de boletins científicos, excursões por toda a região amazônica e a coleta para formar as primeiras coleções zoológicas, botânicas, geológicas e etnográficas. O suíço incorporou-se à luta contra a febre amarela publicando, a partir de 1902, vários artigos sobre a classificação e biologia dos mosquitos transmissores da doença - simultaneamente, portanto, aos trabalhos de Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro. O museu tornou-se pioneiro ao contratar uma mulher para uma instituição pública no Pará, em 1905, a zoóloga alemã Emília Snethlage, a última pesquisadora a sair antes da crise econômica da década de 1920. Até 1930, o museu ficou em total abandono. A partir daí começou a se reerguer e ganhou definitivamente o nome de Museu Paraense Emílio Goeldi. Outras graves crises vieram, mas a instituição se manteve ativa, criando novos programas, intensificando os estudos sobre etnologia e apostando em pesquisas arqueológicas sistemáticas. Nas últimas duas décadas do século 20, o museu recebeu investimento público, mas também buscou se expandir por meio de ajuda internacional e, em 2003, pelo segundo ano consecutivo, os recursos extra-orçamentários (R$ 6,7 milhões) superaram os repassados pelo Tesouro (R$ 4,4 milhões). PES0UISA FAPESP <

ABRIL DE 2004 ■ 11


1 na periferia do capitalismo Luiz

HENRIQI

oberto Schwarz, 65 anos, é indiscutivelmente um crítico à altura de Machado de Assis. Foi com ferramentas cuidadosamente cinzeladas por ele que o grande escritor brasileiro, lido até então por muitos como uma espécie de inglês deslocado, emergiu para os leitores contemporâneos, em dois ensaios magistrais - Ao vencedoras batatas, de 1977, e Um mestre na periferia do capitalismo, de 1990 -, como o autor de uma obra poderosa, cujas soluções formais são profunda e intrinsecamente revcladoras do processo social brasiséculo 20. Mas se o bruxo do Cosme Velho está no centro do trabalho crítico de Roberto Schwarz, não o esgota entretanto. Ensaísta orientado pela busca tenaz de uma idéia objetiva de forma, ao mesmo temcura deter seu olhar tanto em Osvvald de Andrade quanto no poeta marginal Francisco Alvim. Observador atento e preocupado com o que se passa hoje na literatura do país, que se mantém a larga distância de uma produção contínua e vigorosa de bons livros, decorrência talvez de

entretanto assinalou de pronto a força poderosa de Cidade de Deus, "o grande achado" de Paulo Lins. E chama a atenção para Valdo Motta, um poeta quase desconhecido do Espírito Santo, trazido ABRIL DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 98

MOURA

à luz num belo ensaio de Iuma Simon, e que "é um ponto de força novo, diferente, na cultura brasileira". Tranqüilo até quase a suavidade na exposição de seus pontos de vista, por mais radicais que sejam, elegante, ainda que sempre incisivo, na elucidação das polêmicas em que se envolveu no camse, nesta entrevista, e no melhor sentido da expressão, o intelectual engajado que sempre foi - o que lhe valeu o exílio de 1969 a 1977, período que cobre alguns dos anos mais dramáticos da ditadura militar no país. Além de engajado, extrecido em Viena, Áustria, professor titular de Teoria Literária da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), aposentado formalmente em 1992, mas que se manteve em atividade docente como titular convidado até 1997, é autor de uma dúzia de livros, entre eles dois de poesia e um de dramaturgia, mais de uma centena de artigos e assina a tradução de uma dúzia de outras obras. I Gostaria que você falasse um pouco sobre sua formação e personagens que mais o influenciaram nessa fase. — Meus pais eram austríacos, intelectuais de esquerda, ateus e judeus. Quando a Alemanha anexou a Áustria, tivepai, que era um homem completamente literário, teria sido escritor e professor. Embora tivéssemos chegado ao Brasil sem nada, ele logo começou a refazer

uma boa biblioteca alemã, que tenho até hoje. Ele morreu cedo, quando eu tinha 15 anos. O Anatol Rosenfeld, que era amigo dele e da família, passou a acompanhar os meus estudos e a sugerir leituras. Durante muitos anos ele jantou em casa aos domingos, que passaram a ser um dia obrigatório de revisão da semana e discussões. Apesar da grande diferença de idade, ficamos muito amigos. U Anatol Unha um grupo... — Sim, ele dava um curso de filosofia na casa do Jacob Guinsburg. O grupo se reunia uma vez por semana, e eu comecei a participar também quando tinha 18 anos, pouco antes de entrar na faculdade. Isso durou muitos e muitos anos, os alunos liam um trecho de algum filósofo uma vez por semana e o Anatol comentava. Foi interessante essa sua maneira de arranjar a vida: em alguns cursos ele antes ia jantar, o que era bom para a dona da casa, que tinha o jantar animado intelectualmente, e era bom para ele, que... jantava. E depois ele dava o curso. E aí você entrou no curso de Ciências Sociais da USP. — Foi, em 1957, por sugestão também do Anatol. Eu estava no último ano do secundário, um pouco incerto se fazia Letras, Filosofia ou Ciências Sociais. O Anatol, muito objetivo, me disse que fosse à faculdade assistir a algumas aulas antes de decidir. Assisti a uma aula



de literatura, de um professor cujo nome não vou dizer, e desisti de fazer Letras. Assisti a uma aula do Cruz Costa, que fazia piada atrás de piada e me deixou um pouco assim... E assisti a uma aula da Paula Beiguelman, em Política, muito bem preparada e interessante. Aí me decidi pelas Ciências Sociais. ■ Já no curso de Ciências Sociais você participou daquele grupo do seminário do Capital? — O seminário começou em 1958. Foi iniciativa de um grupo de professores jovens, vindos das Ciências Sociais, da Filosofia, da História e da Economia, que tiveram a boa idéia de incluir também alguns alunos. Com isso o seminário já nasceu multidisciplinar e espichado para a geração seguinte. Marx na época era pouco ou nada ensinado, embora muitos professores nessa área fossem de esquerda. De modo que a decisão de estudar a sério a sua obra tinha alcance estratégico. No núcleo inicial estavam Ruth e Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni, Fernando Novais, Paul Singer e Giannotti. Os alunos mais assíduos eram Leôncio Martins Rodrigues, Francisco Weffort, Gabriel Bollaffi, Michael Lõwy, Bento Prado e eu. ■ E qual foi o peso do seminário em sua formação, em sua visão de mundo? — Foi decisivo. Ao contrário do que diz meu amigo Giannotti, estudar Marx na época não era assimilar um clássico entre outros. Por um lado, tratava-se de apostar na reflexão crítica sobre a sociedade contemporânea. Por outro, tomava-se distância da autoridade dos Partidos Comunistas na matéria, que promoviam uma compreensão bisonha de Marx, imposta como um dogma. Havia também a excitação de descobrir e afirmar a superioridade intelectual de um autor profundamente incômodo para a academia bem-pensante e para a ordem em geral. Na iniciativa do seminário havia algo de inusitado e também de precário, além de premonitório. Poucos sabiam alemão, não tínhamos familiaridade com o contexto cultural de Marx, a bibliografia moderna não estava disponível, para não dizer que estava desaparecida. De um ponto de vista universitário "normal", não estávamos preparados para a empreitada. Em compensação havia a sintonia com a progressiva radicalização do país, que entrara em movimen14 • ABRIL DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 98

to, e talvez com a corrente de fundo que levaria o mundo a 1968. Até certo ponto o despreparo foi uma vantagem, pois permitiu que enfrentássemos com espírito livre as dificuldades que a experiência brasileira opunha aos esquemas marxistas. ■ Como era a dinâmica do seminário? — O grupo se reunia de quinze em quinze dias e discutia mais ou menos 20 páginas por vez. A discussão ia de questões elementares de compreensão a problemas cabeludos, com conseqüências teóricas e políticas. Como os professores estavam em idade de escrever as suas teses, que no geral foram de assunto brasileiro, começou a se configurar no seminário a distância entre a construção marxista e a experiência histórica do país. O seminário teve a força de não desconhecer a discrepância e, também, de não considerar que ela anulava a melhor teoria crítica da sociedade contemporânea. Era preciso refletir a respeito, ver o desajuste como um problema fecundo e, talvez, como parte das desigualdades do desenvolvimento do capitalismo. Marx não podia ser aplicado tal e qual ao Brasil, que entretanto fazia parte do universo do capital. Estava surgindo o tema da reprodução moderna do atraso, segundo o qual há formas sociais ditas atrasadas que na verdade fazem parte da reprodução da sociedade contemporânea, em âmbito nacional e internacional. Embora a obra correspondente não tenha sido escrita, estas observações ligadas à experiência das nações periféricas têm relevância histórico-mundial, para uma apreciação sóbria e não-ideológica das realidades do progresso, o qual é mais perverso do que consta. Quando chegou a minha vez de fazer tese e de analisar os romances de Machado de Assis, eu me havia impregnado muito deste modo de ver. ■ Já havia seu interesse pela literatura, mas em termos formais como se deu sua ida para a teoria e a crítica literária? — Fui aluno de Antônio Cândido no segundo ano de Ciências Sociais, em 1958, no último ano em que ele deu Sociologia. No ano seguinte comecei a ficar abatido com o lado empírico da pesquisa sociológica, os levantamentos e as tabulações não eram comigo. Nessa altura, Antônio Cândido passara da Sociologia para as Letras e estava ensi-

nando Literatura Brasileira em Assis. Ruminei o exemplo e fui até lá me queixar da vida e pedir conselho, pois gostava mesmo é de literatura. Ficou mais ou menos combinado que quando eu terminasse o curso faria um mestrado em Literatura Comparada no exterior e depois iria trabalhar com ele na USP. Nessa época eu já escrevia um pouco de crítica literária para jornal. ■ Qual jornal? — Um suplemento literário da Última Hora, onde publiquei um artigo sobre O amanuense Belmiro, romance sobre o qual o Antônio Cândido havia escrito anos antes. Uma amiga espoleta levou o trabalho ao professor, contando que eu achava o artigo dele parecido com o meu. Ele achou graça, leu e me convidou para colaborar no Suplemento Literário do Estadão, que era dirigido pelo Décio de Almeida Prado. Assim, quando fui a Assis procurar conselho, ele tinha idéia do que eu andava fazendo. ■ A ida para o exterior era porque na época não havia mestrado aqui? — A pós-graduação estava começando. Na época só fazia mestrado e doutorado o pessoal que já estava trabalhando nalguma cadeira. Como eu vinha de Ciências Sociais, para ensinar em Letras precisava de um título apropriado. Fui aos Estados Unidos fazer um mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada, na Universidade de Yale. Na volta, em 63, pouco antes do golpe, comecei a trabalhar na Teoria Literária, que era uma novidade na USP. ■ E, nesse começo de trabalho com Antônio Cândido, como é que se delineiam seus temas de trabalho? — Os primeiros anos são sempre suados. Preparar cursos, aprender o suficiente para ensinar, no começo não é fácil. Mas a idéia básica de meu trabalho eu tive cedo. Foi mais ou menos o seguinte: eu lia Machado de Assis e achava a ironia dele especial. Tinha a impressão de que havia naquele tipo de humorismo, de gracinha metódica, alguma coisa brasileira. Então eu saí atrás disso. Combinei a tentativa de descrever a ironia de Machado com a intuição de que ela seria nacional - o que restava explicar. Combinei um dose reading dessa ironia com a teoria do Brasil do seminário do Capital. A idéia de que a substância da


■ Ao contrário do que dizem os detratores dessa crítica. — É isso. Ela parte da análise estética e busca o não-evidente, o resultado do que o trabalho formal do artista configurou. Ao passo que a posição tradicional, ou positivista, que também vai se renovando e continua presente com outros nomes, se limita aos conteúdos brutos, procurando o mesmo na sociedade e nas obras, vistas em termos redundantes, de confirmação recíproca direta.

ironia machadiana tinha a ver com a mistura de liberalismo e escravismo no Brasil me veio cedo, antes de 64. Agora, daí a escrever sobre isso, vai um pedaço. ■ E quanto ao doutorado? — Fiz na Universidade Paris III, Sorbonne. O meu tema lá foi Ao vencedor, as batatas. O livro é de 1977. Quando voltei, já estava publicado. ■ A sua ida para a França decorreu, na verdade, da repressão política que a ditadura instaurou no pais. Como foi sua experiência de exílio7. — A França foi camarada com os refugiados, que foram chegando por ondas, conforme as ditaduras iam tomando conta da América Latina. Dentro do desastre geral, a verdade é que o exílio era também muito interessante, apresentava os latino-americanos uns aos outros, e mesmo os brasileiros das diferentes regiões. O ar estava cheio dos événements de mai, os acontecimentos de 1968. Para quem não estivesse com a vida quebrada, ou sob pressão material excessiva, e para quem tivesse disciplina para retomar os estudos, foram anos bons. ■ Para chegar ao ápice de sua investigação sobre a relação entre a ironia de Machado de Assis, o comportamento da elite brasileira e, enfim, a estrutura social do país, Ou em outras palavras, para chegar a Um mestre na periferia do capitalismo, você gastou mais uns 11 anos, não é verdade? — Sou mais lento do que devia. ■ Em alguma medida há pioneirismo no trabalho de Antônio Cândido quando ele lança um olhar para a literatura atravessado por uma visão mais sociológica do país? Ou isso é uma prática geral na crítica, que ele explicita melhor? — Eu inverteria os termos da questão: Antônio Cândido lança à visão histórico-sociológica do país - que conhece como poucos - um olhar atravessado pela experiência e pela análise literárias, em cujo valor de revelação ele acredita e a que deve as suas descobertas. O pioneirismo está aí, nessa inversão, que dá cidadania plena ao ângulo estético. Vamos por partes. Que a literatura faça parte da sociedade ou que se conheça a literatura através da sociedade e a sociedade através da literatura, são teses capitais do século XIX, sem as quais,

aliás, a importância especificamente moderna da literatura fica incompreensível. Elas estão na origem de visões geniais e dos piores calhamaços. Em seguida se tornaram o lugar-comum que sustenta a historiografia literária convencional. Dentro desse quadro, o traço que distingue a crítica dialética, e que a torna especial, é que ela desbanaliza e tensiona essa inerência recíproca dos pólos, sem suprimi-la. O que for óbvio, para ela não vale a pena. Se não for preciso adivinhar, pesquisar, construir, recusar aparências, consubstanciar intuições difíceis, a crítica não é crítica. Para a crítica dialética o trabalho da figuração literária é um modo substantivo de pensamento, uma via sui generis de pesquisa, que aspira à consistência e tem exigência máxima. O resultado não é a simples reiteração da experiência cotidiana, a cuja prepotência se opõe, cujas contradições explicita, cujas tendências acentua, com decisivo resultado de clarificação. Em suma, em termos de método, o ponto de partida está na configuração da obra, com as luzes que lhe são próprias, e não na sociedade.

■ Isso você já dizia com 23 anos, no artigo sobre o psicologismo na poética de Mário de Andrade. — A verdade é que não lembro. Retomando o fio, há uma fórmula de Lukács, segundo a qual o social na obra está na forma. Não que os conteúdos não sejam sociais, mas a forma, ao trabalhá-los e organizá-los, ou também ao ser infletida por eles, configura algo de mais geral, análogo à precedência da sociedade sobre os seus conteúdos separados. Se as obras interessam, é porque se organizam de um modo revelador, que algum fundamento tem na organização do mundo - fundamento a descobrir caso a caso. Como a maior parte da historiografia literária é de inspiração nacional e como a nação até outro dia era um horizonte quase auto-evidente, criou-se uma espécie de certeza infundada, segundo a qual o espaço a que a literatura e as formas literárias se referem é também ele nacional. Ora, a literatura mais audaciosa, justamente por ter aversão às mentiras do oficialismo e do nacionalismo, e por adivinhar o avanço de dimensões extranacionais da civilização burguesa, não cabe nesse quadro. No caso brasüeiro, a referência nacional tem uma realidade própria, de tipo diverso, que continuou efetiva (até hoje?) e catalisou uma parte importante da invenção formal. Em parte por causa do complexo de país novo, que fazia da criação de uma literatura nacional um projeto deliberado. Basta lembrar o pitoresquismo programático dos românticos, ou a tentativa machadiana - descoberta por John Gledson - de maquinar intrigas com relevância nacional, ou o Naturalismo com o seu trópico científicoalegórico, ou a invenção modernista de logotipos nacionais, como o Pau Brasil, a Negra e Macunaíma. A questão fica mais interessante quando a reconhecePESQUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 15


mos fora da esfera do projeto nacional assumido, numa certa gama de inflexões, problemas, reações etc. É como se a matriz nacional se impusesse inconscientemente, pela força das coisas, ou melhor, como conseqüência da peculiaridade da estrutura social do país, que gera uma problemática social, lingüística, política e histórica singular, com a qual nos debatemos e à qual nos cabe responder, queiramos ou não. Ao deixar de lado ou ao fazer da intenção do autor um ingrediente entre outros, a análise histórico-estrutural coloca-se no terreno das configurações e dos funcionamentos objetivos, cuja dinâmica não corre em trilhos previstos, podendo levar aonde o autor não imaginava. A referência é nacional, mas sem garantia de final feliz. Essa é uma consciência crítica adulta, segundo a qual não fazemos o que queremos, ou fazemos o que não queremos, e não obstante pagamos a conta. Uma posição esclarecida e desabusada, que se torna modelo para a compreensão estética e social quando fica evidente que a sociedade burguesa não se governa a não ser superficialmente, ao passo que a sua superação não está à vista. Ainda aqui o passo à frente foi dado por Antônio Cândido, no admirável ensaio sobre O cortiço, ainda não devidamente explorado. Ele mostrou que o autor pensava estar romanceando o processo brasileiro de guerra e acomodação entre as raças, em conformidade com as teorias racistas do Naturalismo, mas que na verdade, conduzido pela lógica da ficção, mostrava um processo primitivo de exploração econômica e formação de classes, que se encaminhava de um modo bárbaro e desmentia as ilusões raciais e nacionais do romancista. O curso das coisas é nacional, mas difere do previsto pelo escritor. ■ O que significa sua interrogação "até hoje?" quando aborda a pretensão de fundação nacional dos grandes textos brasileiros? — A crítica dialética supõe obras que sejam mais ou menos fechadas e altamente estruturadas. Na literatura brasileira não há muitas que convidem a uma análise desse tipo. Quando Antônio Cândido resolveu estudar nessa veia as Memórias de um sargento de milícias, estava escolhendo o caminho difícil e levando ao extremo uma posição crítica de ponta. A ousadia foi pouco notada, porque o 16 ■ ABRIL DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 98

romance - divertido e despretensioso não faz pensar nessa ordem de tentativas. Manoel Antônio de Almeida não só não queria fazer o que o crítico descobriu, como se movia num plano incomparavelmente mais modesto. Essa desproporção é um erro? Pelo contrário, ela tira as conseqüências de uma certa idéia de forma objetiva, que não coincide com as intenções do autor, as quais pode exceder e contrariar amplamente. Uma idéia de forma e de análise que o crítico compartilha com uns poucos mestres da crítica dialética. Os dois ensaios centrais de Antônio Cândido, sobre o Sargento de milícias e O cortiço, sendo rigorosamente apoiados na análise das obras, descobrem a sua força e relevância num plano que não teria ocorrido aos respectivos autores. ■ Essa é uma visão propriamente marxista, não? — No essencial, penso que é, embora a terminologia não seja, ou seja só em parte. A parte boa da tradição marxista manda acreditar mais na configuração objetiva das obras que nas convicções ou posições políticas dos escritores. Há uma afirmação célebre de Marx, em que ele diz ter aprendido mais com os romances de Balzac do que com a obra dos economistas, isso embora Balzac seja conservador. Para além das preferências, há sobretudo uma afinidade de fundo na concepção da forma objetiva, seja social, seja estética: conforme o caso, o seu dinamismo interno se realiza não só contra, mas também através das ilusões dos interessados (o racismo de Aluísio, por exemplo, faz parte da força com que O cortiço mostra que o problema é de classe, e não de raça). O modelo é o ciclo do capital, que se realiza - na expressão de Marx - "atrás das costas" dos participantes, levados à crise contra a sua vontade. Mas voltando à sua pergunta: esse tipo de crítica supõe obras e sociedades muito estruturadas, com dinamismo próprio. Trata-se de enxergar uma na outra as lógicas da obra e da sociedade, e de refletir a respeito. Acontece que vivemos um momento em que essa idéia de sociedade, como algo circunscrito, com destino próprio, está posta em questão, para não dizer que está em decomposição. Já ninguém pensa que os países de periferia têm uma dialética interna forte - talvez alguns países do centro tenham, talvez nem eles. E no

campo das obras, com a entrada maciça do mercado e da mídia na cultura, é voz corrente que a idéia de arte mudou, e é possível que o padrão de exigência do período anterior tenha sido abandonado. Talvez os pressupostos da crítica dialética estejam desaparecendo... ■ Penso que existe ainda a intenção dos escritores de produzirem alguma coisa que traga até as palavras o sentimento desse presente de relações e valores tão esgarçados, confuso, violento etc. Por que, então, não se chega a essa obra capaz de apresentar uma relação bem íntima entre forma do texto e forma social? — Também não me convenço de que não seja mais possível. Mas é fato que o processo social mudou de natureza. A circunscrição dele, no sentido em que você podia dizer "essa é a sociedade brasileira", está deixando de ser efetiva, de ser verdadeira. Por exemplo, o caso... ■ Vamos pegar o caso de Cidade de Deus. — Antes disso, para não perder o fio, quero falar do ensaio de Adorno sobre Beckett, para o meu gosto um dos mais brilhantes que já se escreveram sobre a literatura moderna. Em Fim de partida as personagens são figuras metidas numa lata de lixo, mutiladas e falando uma linguagem limitada a quase nada, um resíduo. Isso costuma ser considerado uma redução ao essencial, um minimalismo atemporal, para mostrar que o ser humano, mesmo na situação mais precária, conserva inteira a sua grandeza. Mas Adorno desloca a cena, lhe põe uma data e diz que, muito ao contrário, o que Beckett está descrevendo é uma sociedade "pós-catástrofe". Pós-catástrofe nuclear, pós-Segunda Guerra Mundial, enfim, a época em que a civilização moderna mostrou que a sua capacidade de autogoverno ou de auto-superação não é o que se dizia. Dentro desse universo, os farrapos de filosofia, os resíduos de iniciativa, de desejo de progresso, os cacoetes da esperança, representam na verdade lixo intelectual, água servida. Assim, a operação crítica consistiu em deslocar para um momento histórico preciso e bem explicado, embora imaginado, o que se costumava alegorizar como a condição humana. O deslocamento confere uma incrível vivacidade e particularidade artística ao que pareceriam alegorias e generalidades insossas. Do lado do referente também há des-


locamento: a sociedade não é nacional, regional ou municipal, ela é o planeta depois do desastre. O ensaio de Adorno muda a leitura de Beckett e é um grande achado crítico. É um exemplo de como o referente social e histórico tem âmbitos inesperados e pode ser de diferentes tipos. Retomando a sua pergunta, no caso do Paulo Lins há de fato um universo circunscrito, por assim dizer policialmente segregado. Um universo fechado por circunstâncias "modernas", desastrosas, altamente preocupantes, que permite escrever um romance "à antiga". Mas o romance não é antigo de jeito nenhum. ■ O que despertou mais a sua atenção foi exatamente essa possibilidade? — Não. Foi, primeiro, a extrema vivacidade da linguagem popular, dentro da monotonia tenebrosa das barbaridades, que é um ritmo da maior verdade. Depois, a mistura muito moderna e esteticamente desconfortável dos registros: a montagem meio crua de sensacionalismo jornalístico, caderneta de campo do antropólogo, terminologia técnica dos marginais, grossura policial, efusão lírica, filme de ação da Metro etc. E sobretudo o ponto de vista narrativo, interno ao mundo dos bandidos, embora sem adesão, que arma um problema inédito. Há ainda o conhecimento pormenorizado, sistematizado e refletido de um universo de relações, próximo da investigação científica, algo que poucos romances brasileiros têm. Enfim, é um mix poderoso, representativo, que desmanchou a distância e a aura pitoresca de um mundo que é nosso. É um acontecimento. ■ Em paralelo ao desenvolvimento de uma crítica dialética, florescia uma outra crítica bem diferente no Brasil, comandada pelos concretistas, em especial pelos irmãos Campos, e entre as duas se estabeleceu uma intensa polêmica. Gostaria que você situasse um pouco essa questão. — A oposição existe, mas no que importa ela não é fácil de fixar, porque foi recoberta por um fla-flu, errado em relação às duas partes. Até onde entendo, as versões que ficaram foram determinadas pelos anos da ditadura. Numa delas, os críticos ligados à Teoria Literária da USP seriam múmias conteudistas, professores atrasados, cegos para as questões de forma, praticantes do sociologuês, nacionalistas estreitos, além de censores stalinistas. Ao passo que no

campo concretista estariam os revolucionários da forma, atualizados com o estruturalismo francês, o formalismo russo e a ciência da linguagem, conscientes de que o âmbito literário não se comunica com a vida social. Naturalmente a versão do campo em frente trocava os sinais desses mesmos termos e opunha, para abreviar, engajados a alienados, um pouco em paralelo - como me indicou uma amiga - com as polarizações dos festivais da canção da época. Ora, nada disso corresponde. Os críticos dialéticos eram formalistas de carteirinha, empenhados justamente na reflexão sobre o problema. Seu ângulo era estético, as suas simpatias eram modernistas e sua posição era anti-stalinista de longa data. As linhas teóricas a que se contrapunham eram a historiografia positivista, o psicologismo, o marxismo vulgar e a classificação das obras segundo as convicções políticas de seus autores. Para dar idéia da independência conceituai e crítica com que então se trabalhava na USP (em certos setores), não custa acompanhar alguns passos de um percurso característico. Talvez se possa dizer que Anto-

Cidade de Deus é um acontecimento. Desmanchou a distância e a aura pitoresca de um mundo que é nosso

nio Cândido foi buscar no dose reading do New Criticism - uma técnica formalista, desenvolvida nos States, na década de 30, com sentido conservador - um instrumento para fazer frente ao sociologismo e ao marxismo vulgar correntes na esquerda brasileira dos anos 40. Só que ele reelaborou o procedimento e o abriu em direção da história, com vistas na historicização das estruturas, o que lhe permitiu uma sondagem de novo tipo da literatura e da sociedade brasileiras. Sem alarde de terminologia, e muito menos de griffes internacionais, os ensaios de Antônio Cândido que vêm ao caso aqui são seguramente as peças mais originais de análise estrutural já feitas no Brasil. Também no campo dos concretistas a história não cabe no chavão. É falsa a idéia de que fossem "alienados" ou desinteressados do rumo da história extraliterária. Como vanguardistas, entendiam a sua revolução formal como parte de uma revolução social em curso. Eram de esquerda e Haroldo se considerava próximo do marxismo, não sei se também nos últimos tempos. Se a pecha de pouco sociais colou neles no pré-64 foi devido aos preconceitos antiexperimentalistas do Partido Comunista, que na época dispunha de autoridade e denunciava o "formalismo" da arte moderna. O que não impediu os concretistas de disputar com galhardia o seu lugar dentro da esquerda e de anunciar, num congresso de crítica literária em Assis, em 1961, o seu "salto participante". Procuravam articular a invenção formal com a radicalização política do Brasil. Em suma, contrariamente ao lugar comum, os dialéticos eram formalistas, os concretistas eram engajados, e o que nos movia a todos era a aceleração histórica do país. ■ Os concretistas desenvolviam a linha de Oswald de Andrade? — É o que eles dizem, embora eu ache difícil reconhecer o ar de família. Ainda quanto aos chavões, é interessante notar que ao contrário do que eles afirmam, e os outros repetem, eles são de longe os escritores brasileiros que mais se valeram da sociologia para a sua autojustificação e para explicar a própria primazia. Entre nós, não há outros que dependam tanto da teoria social para garantir a posição a que aspiram para a sua obra. A teoria deles vale o que vale, mas a contradição merece registro. PESQUISA FAPESP 98 • ABRIL DE 2004 ■ 17


Voltando à polêmica, não é fácil encontrar grandes razões para ela. De um lado, críticos-professores tentando uma interpretação histórico-estrutural da literatura brasileira, puxando para a esquerda. Do outro, à esquerda também, o grupo dos poetas concretistas, que militavam para impor a sua obra, em que viam a revolução, além de teorizarem em causa própria, o que é natural igualmente, mas nem sempre convence. Para que a história fosse outra (e ninguém fosse chamado de "vermina pestilente" ou chefe de uma "campanha de caça aos concretistas"), talvez bastasse que os professores da USP não tivessem torcido o nariz para a "tese" dos poetas, segundo a qual a linha nobre da poesia moderna, que vem de Mallarmé, passa por Oswald de Andrade, Drummond e João Cabral, culmina neles próprios. Mas pode-se imaginar também que o antagonismo tenha fundamento em idéias diferentes no que respeita à evolução das formas. Do ponto de vista dialético, a modernização formal existe, não significa o que pretende, e deve ser analisada não só como solução, mas também como problema. Do ponto de vista dos poetas concretos, que a buscam numa espécie de iconização e aceleração da linguagem, ela é a linha reta e positiva que leva a um indiscutível plano superior. Para reflexão, não custa notar que o Movimento Concreto foi lançado na mesma época em que Adorno assinalava, como um marco, o envelhecimento da Música Nova, ou seja, o esvaziamento da tensão vanguardista. ■ Mas o concretismo também mudou. — A partir de 1964/68, quando a revolução saiu da ordem do dia no Brasil, uma parte dos escritores passou a considerar a linguagem como a sua única trincheira. Foi a época em que a crítica literária falava de subversão da sintaxe, das formas, dos gêneros, revolução textual etc. Haveria um estudo engraçado a escrever sobre essas substituições. ■ E isso com alguns apoios teóricos internacionais, não? — Claro, claro. Foi o auge do estruturalismo de base lingüística, e logo do neo-estruturalismo, este especializado na dissolução das estruturas positivas. Ao passo que o estruturalismo buscado por alguns na Teoria Literária da USP era de base histórica e estava descobrindo a potência formal, no plano estético, 18 ■ ABRIL DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 98

da estrutura de classes do país. Pensando melhor, talvez houvesse mais antagonismo do que ficou dito até aqui. ■ E depois essa guerra repercutiu também em espaços de maior reverberação do discurso, como o da música popular brasileira, não é? — É um ponto que merece atenção. O livro de Caetano Veloso, Verdade tropical, é muito valioso e interessante nesse sentido. Caetano tem idéia clara do que estava em jogo e tem grande capacidade de sintetizar debates intelectuais. O livro está sempre polemizando com a esquerda, mas descreve o processo de maneira realista. A idéia de que naquilo tudo só se tratasse de linguagem não passa pela cabeça dele. ■ Passada a fase mais furiosa do embate entre críticos dialéticos e concretistas, aparentemente algumas linhas de trabalho de crítica literária no país buscam uma certa síntese entre proposições das duas tendências. Em certa medida Silviano Santiago não faz isso? — Não penso que síntese seja a palavra. Mas Silviano escreveu na década de 70 O entre-lugar do discurso latinoamericano, um ensaio de grande habilidade estratégica, a primeira mobilização importante da obra de Derrida no quadro brasileiro. Ele usa a desconstrução para descrer das categorias da opressão e fazer dela um jogo de linguagem, que certamente ela também é. Mas ela não será mais do que isso? Seja como for, também aqui não se tratava só de linguagem, pois o ensaio, até onde vejo, deveu a repercussão aos poderes a que se opunha: à prepotência dos militares, ao autoritarismo na esquerda armada, às presunções do imperialismo americano, a nosso sentimento de inferioridade diante da primazia cultural dos grandes centros etc. Mais adiante Silviano afinou a desconstrução de Derrida com o jogo ou conflito entre os gêneros, fazendo dela um elemento de liberação sexual, em especial da homossexualidade. Que eu saiba, foi o primeiro crítico a fazer da liberação da homossexualidade um elemento importante de periodização da história do Brasil, ao fazer que ela convergisse com o tema da abertura política e da redemocratização, de que seria uma pedra de toque. Na minha opinião é um grande lance, embora a construção me pareça conformista por outro lado.

■ Como você descreveria o panorama atual da crítica literária no Brasil? Quais são seus pontos de força teóricos? — As linhas teóricas internacionais estão representadas e funcionando, há pós-graduações numerosas, com bolsas de estudo, e, não obstante, há um certo esgotamento. Com perdão da mania, o que falta é espírito dialético. Como os momentos notáveis da cultura brasileira estão consagrados, não lembramos até que ponto dependeram do contato com o avesso da sociedade. Essa é uma verdade insuficientemente considerada. A reflexão hoje tem que se redimensionar através do mundo que está se formando à revelia do discurso oficial sobre a modernização e o progresso. Basta subir ao Alto de Santana e olhar São Paulo para saber que o que está acontecendo está fora de controle e tem pouco a ver com as grande linhas incorporadas em nossa organização mental. Nesse sentido, os cultural studies, com a sua falta de hierarquia, não deixam de ser uma resposta, embora - até onde sei - pouco crítica do capitalismo e pouco interessada em questões de estética, o que diminui muito o seu alcance. Um trabalho que acho admirável e não teve repercussão nenhuma é o ensaio de Iumna Simon, que saiu na revista Praga n° 7, sobre a poesia de Valdo Motta. Ele é um poeta negro do Espírito Santo, homossexual militante, muito pobre e dado a especulações teológicas. É uma poesia que toma o ânus do poeta como centro do universo simbólico. A partir daí, mobiliza bastante leitura bíblica, disposição herética, leitura dos modernistas, capacidade de formulação, talento retórico e fúria social. O ponto de vista e a bibliografia fogem ao corrente, mas o tratamento da opressão social, racial e sexual não tem nada de exótico. Bem, a Iumna leu o poeta por acaso, numa revista, percebeu a força e a importância do que estava ocorrendo, procurou saber mais, e acabou organizando um volume de poemas para a editora da Unicamp, juntamente com Berta Waldman (Valdo Motta, Bundo e outros poemas,\996). Para fazer justiça ao poeta, que é perfeitamente contemporâneo, ela teve que se enfronhar em áreas que desconhecia e, sobretudo, compará-lo a seus pares, refletir sobre a sua inserção na cultura atual e tirar as conseqüências estéticas que cabem. É de trabalhos assim - sem desmerecer outras linhas possíveis - que


sia mais minimalista dos últimos tempos é também - na minha opinião - a mais reflexiva e complexa - estou pensando no Elefante, de Francisco Alvim.

a crítica depende para recobrar vitalidade e estar à altura da realidade. ■ Vou voltar a um ponto anterior: por que o New Criticism, como empreendimento nos Estados Unidos, era conservador? — O New Criticism nasceu com uma teoria de professores de Letras do sul dos Estados Unidos, o Old South antiianque. Eles viam o poema como um campo de complexidade singular, onde a linguagem não tem finalidade utilitária e não é abstrata, o que, de certo modo, simboliza uma oposição ao capital, ao mundo do Norte. Para consubstanciar essa posição, desenvolveram uma técnica de análise centrada em ambigüidade, tensão e ironia, atributos estranhos à funcionalidade moderna. Há uma carta de Allan Tate, uma das grandes figuras do movimento, em que ele diz que acabava de ler o artigo de um alemão que descrevia a obra de arte como eles, embora infelizmente fosse marxista. O alemão era Adorno, que era refugiado de guerra nos Estados Unidos. A anedota é interessante porque mostra que o anticapitalismo de Adorno, com horizonte socialista, até certo ponto convergia com o anticapitalismo de um sulista católico e tradicionalista - na posição contrária à instrumentalização da linguagem. A análise cerrada que o New Criticism praticava representou de fato um patamar novo em matéria de compreensão da complexidade interna da poesia. A técnica podia ser usada, é claro, de muitas maneiras. Anatol Rosenfeld, por exemplo, dizia explicitamente que praticava o dose reading, mas informado por sua cultura filosófica, que não tinha nada que ver com a dos new critics americanos. Eles talvez fossem provincianos, mas desenvolveram uma coisa genial. ■ O New Criticism foi bem assimilado no Brasil? — É um bom tópico de pesquisa. Nos anos 50 houve militância, em especial de Afrânio Coutinho, hoje difícil de ler. Como sempre, aproveitaram bem os que tinham projeto próprio e souberam guardar distância, como Sérgio Buarque e Antônio Cândido. ■ Não lhe parece que o mundo contemporâneo, midiatizado, espetacularizado, oferece um ambiente pouco adequado à literatura como um exercício insistente e forte? O fenômeno é só brasileiro?

Um trabalho que acho admirável é o ensaio de Iumna Simon sobre a poesia de Valdo Motta, cuja força ela percebeu

— Certamente não. Mas de alguma maneira os intelectuais brasileiros estão cavando pouco o seu próprio terreno. Conhecemos pouco as coisas das quais dependemos nesse momento. Se você pensar no conhecimento que tinham da sua matéria Guimarães Rosa, Mário de Andrade, Machado de Assis, vai ver que a escrita deles estava associada a um processo tenaz de aquisição de conhecimento, de verificação social e moral, de experimentação. No fim de contas, uma das coisas que mais distingue o livro de Paulo Lins é que, como ele foi assistente de pesquisa de uma antropóloga, tem o conhecimento exaustivo e articulado do universo dele. Isso dá ao livro uma potência própria, que falta aos colegas. O sumiço da exigência intelectual não precisava ter ocorrido, foi uma falta de pique. Também na poesia aconteceu uma coisa assim, ela abriu mão de falar do mundo contemporâneo de maneira sustentada. No Brasil, por uma razão que não sei, de repente começou a surgir uma poesia curtinha, pouco reflexiva, pouco ousada. Digo isso sabendo que não é tudo, pois a poe-

■ Quando você diz que não sabe, é ironia, ou não sabe mesmo? — Eu diria que o predomínio do concretismo, que atravessou a segunda metade do século passado, tornou a poesia impermeável ao pensamento, com muito prejuízo para ela. A culpa não é dos concretistas, acho natural que todo grupo poético procure se promover e valorizar. O que aconteceu de incrível foi que o mundo intelectual brasileiro pouco ou nada opôs àquele padrão. Marx diz a certa altura que o segredo da vitória de Luis Napoleão não está na força dele, mas na fraqueza da sociedade francesa do tempo. Analogamente, acho mesmo o caso de perguntar pelo que aconteceu à vida cultural brasileira do último meio século para que algo tão limitado como a poesia concreta pudesse alcançar tanta eminência. É uma questão mais profunda do que pode parecer. Tem a ver com a credulidade subdesenvolvida diante do progresso. ■ Queria que você contasse o caso curioso de Bertha Dunkel, que pouca gente conhece. — Foi o seguinte: mais ou menos em 1966 me encomendaram uma explicação didática da idéia marxista de maisvalia, para ser usada em aulas para um grupo operário, clandestino na época. Escrevi com a maior clareza de que era capaz. Como não saiu ruim, houve interesse em divulgar o folheto em âmbito maior, e o grupo da Teoria e Prática resolveu publicá-lo na revista. Inventei uma personagem para assinar o "artigo", que era essa Bertha Dunkel. Bertha para Roberto, e Dunkel, que quer dizer escuro, para Schwarz, que é preto. Escrevi uma pequena biografia como introdução, explicando que ela era uma escritora alemã de vanguarda, que nos anos 20, tocada pela proximidade da revolução, resolvera se dedicar ao didatismo político, no qual via uma forma literária e um problema estético. É claro que eram questões que estavam interessando a mim. A coisa teve um desdobramento engraçado porque um intelectual de renome, que conhecia tudo do movimento operário alemão, tinha lembrança de Bertha. • PESQUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 19


■ POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

ESTRATéGIAS

■ O sonho da grama mais verde Uma onda de protestos varreu as universidades européias e culminou no afastamento voluntário de cerca de 2 mil pesquisadores franceses de seus cargos administrativos. Os motivos alegados nas manifestações foram os salários estagnados, a falta de perspectiva na carreira acadêmica, cortes e queixas contra a forma negligente como os governos vêm tratando a educação superior. O protesto começou na Inglaterra com uma greve convocada pela Associação dos Professores Universitários, entidade que congrega 48 mil membros. A paralisação, ocorrida em fevereiro, teve 90%

MUNDO

de adesão. Os franceses apresentaram suas reivindicações por meio de um abaixo-assi-

nado que obteve 65 mil assinaturas para a causa "Salve a pesquisa!". Reclamavam do

Oásis une Israel e Jordânia Num esforço para estimular a colaboração científica entre árabes e israelenses, os governos de Israel e da Jordânia reservaram uma área, na fronteira dos dois países, para construir um centro de pesquisa ambiental, em parceria com as universidades Stanford e Cornell (Nature, 4 de março). Quando o Bridging the Rift Center estiver pronto, dentro de cinco anos, um pedaço do deserto será transformado em megainstituto

de pesquisa, especializado em ecologia do deserto. A primeira tarefa do instituto será compilar um catálogo de micróbios, insetos e vertebrados que habitam a região do mar Morto. A Bridging the Rift Foundation, criada por Mati Kochavi, israelense com interesse em investir em tecnologia, já levantou dinheiro suficiente para construir laboratórios e cobrir os custos da empreitada por cinco anos. •

corte de 30% no orçamento da pesquisa em 2002. O silêncio das autoridades levou diretores de institutos e pesquisadores a abandonar suas funções burocráticas. O afastamento dos cargos deve resultar em lentidão nas pesquisas, pois os diretores são responsáveis pela coordenação do trabalho. A crise, de acordo com os pesquisadores, tem provocado uma fuga de cérebros, sobretudo para os Estados Unidos, onde os salários são maiores, assim como as chances de fazer carreira. "A grama é mais verde nos Estados Unidos", disse à revista Nature (11 de março) Peter Cotgreave, diretor do grupo Salve a Ciência Britânica. •

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■ Revolta da vacina na Nigéria A campanha da Organização Mundial da Saúde (OMS) para erradicação total da poliomielite até o final de 2004 sofreu um sério revés na Nigéria, com o boicote à vacinação em dois estados, Kano e Zamfara. Religiosos muçulmanos inventaram que a vacina, que tem como alvo 63 milhões de crianças, está contaminada com contraceptivos, contém HIV e é um complô ocidental contra a população. O porta-voz da OMS, Oliver Rosenbauer, reconhece que a controvérsia segundo a qual a Aids teria se originado da vacina, hipótese descartada, povoa a imaginação de líderes comunitários. Atribui-se ao boicote a eclosão de um número crescente de casos na Nigéria, 347 do início de 2003 a fevereiro de 2004, quase metade de todas as ocorrências no mundo (Nature, 11 de março). Desde que o boicote começou, surgiram 20 casos da doença em oito países africanos que pareciam livres da pólio: Benin, Burkina Fasso, Camarões, República Centro-Africana, Chade, Costa do Marfim, Gana e Togo. •

■ Os trópicos na zona de luz Os trópicos começam a sair da zona de sombra a que têm sido relegados pela indústria farmacêutica. Em parte, os responsáveis pela mudança são grupos sem fins lucrativo que vêm se dedicando ao combate de doenças tropicais, ao mesmo tempo que denunciam o descaso das multinacionais com as moléstias do Terceiro Mundo Em fevereiro, voluntários da St. Louis University, no Missouri, Estados Unidos, receberam doses de um novo tipo de vacina contra a tuberculose (Financial Times, 2 de março). A experiência é coordenada pela Fundação da Vacina contra Tu-

berculose Aeras Global, que recebeu subvenção de US$ 83 milhões da Fundação Bill & Melinda Gates para conduzir o estudo. "A doação é para o desenvolvimento de um produto e não para a pesquisa básica que normalmente ganha as manchetes", diz Jerry Sadoff, presidente da Aeras. Esses grupos tentam compensar uma terrível mazela do mercado. Segundo a organização Médicos Sem Fronteiras (MSF), apenas 13 dos 1.400 remédios desenvolvidos entre 1975 e 2000 tinham como alvo doenças tropicais - na lógica da indústria, não vale a pena investir em drogas para doentes que não têm dinheiro para comprá-las. A tuberculose, por exemplo, caiu

nesse limbo, embora tenha matado 2 milhões de pessoas em 2003. Como o tratamento é o mesmo há 30 anos, as vacinas e as drogas já não têm o mesmo poder de antes. A Aeras congrega parceiros públicos e privados que levantam doações e financiam projetos. A condição para receber a verba é garantir que o produto final seja vendido a preços baixos nos países em desenvolvimento. As acusações de descaso incomodaram algumas indústrias farmacêuticas - e a boa notícia é que algumas delas tentam combater a má fama. A GlaxoSmithKline e a AstraZeneca abriram laboratórios para combater doenças infecciosas tropicais, enquanto a Novartis contratou um instituto de pesquisa em Cingapura para trabalhar com tuberculose e dengue. "Está havendo uma mudança de mentalidade", garante Paul Herring, executivo da Novartis responsável pelo centro de Cingapura. "Percebemos que não podemos ignorar o que está acontecendo nos trópicos ou isso se voltará contra nós, uma visão que a epidemia de pneumonia asiática veio reavivar." •

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PESQUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 • 21


ESTRATéGIAS

MUNDO

■ Editores na mira da ética

■ Vizinhos que se ajudam

Os editores de revistas médicas estão na alça de mira do Comitê de Ética nas Publicações (Cope), organismo baseado em Londres, na Inglaterra. O Cope delineou um código de conduta ética estabelecendo que os editores têm tanta responsabilidade pelo que é publicado quanto os autores. "Parecemos mais interessados na culpa dos outros do que na nossa", disse Richard Smith à revista Nature (4 de março). Ele é editor do British Medicai Journal e ajudou a redigir o código. O manual pede rigidez no caso de suspeita de procedimentos antiéticos. Relatório do Cope informa que essas situações ocorrem com freqüência, como num estudo que utilizou amostras de sangue de bebês sem autorização. Ou de um paciente grave tratado com extrato de plantas, quando a terapia convencional e eficaz estava disponível. •

índia e Paquistão, vizinhos que vivem às turras e até ameaçam a segurança do planeta com pesquisas nucleares, decidiram estabelecer projetos conjuntos na área de biotecnologia. Durante o encontro BioAsia 2004, a delegação paquistanesa assinou cinco acordos, três com companhias de biotecnologia indianas e dois com a Ali índia Biotech Association (Aiba). "Queremos colaborar com as companhias indianas nas áreas de vacinas, kits de diagnóstico e agricultura transgênica", disse à revista Nature (11 de março) o presidente da Comissão Nacional Paquistanesa de Biotecnologia, Anwar Nasim. A parceria deverá beneficiar ambos os países. A tecnologia indiana ajudará a reduzir os preços dos medicamentos paquistaneses até sete vezes mais caros que no país vizinho. Para os indianos, o acordo abre um novo mercado. •

■ Em busca da diferença O Instituto Norueguês de Ecologia do Gene (GeneOk), baseado na Universidade de Tromso, e o Instituto de Ecologia do Gene da Nova Zelândia, da Universidade de Canterbury, em Christchurch, assinaram um acordo com o Programa Ambiental das Nações Unidas a fim de ajudar os países pobres a ter infraestrutura necessária para testar organismos modificados geneticamente e avaliar se são seguros. Ambos os institutos

são pioneiros nessa nova disciplina, que inclui o estudo de como o consumo de alimentos transgênicos afeta os genes e, a longo prazo, a saúde dos animais. "Procuramos as diferenças onde outros grupos acham que tudo será igual", diz Terje Traavik (Nature, 4 de março), diretor científico do GeneOk. A área do conhecimento combina genética, bioquímica, ecologia e ciências sociais. Os participantes do projeto receberam do governo norueguês US$ 700 mil para o primeiro ano de pesquisas. •

Ciência na web Envie sua sugestão de site científico para cienweb@trieste.fapesp.br

janus.astro.umd.edu/ Site sobre astronomia para todas as idades, cheio de informações e curiosidades. Em inglês.

22 ■ ABRIL DE 2004 ■ PESQ.UISA FAPESP 98

wwwp.fc.unesp.br/~edvaldo/ Apresentação de tecnologias desenvolvidas a partir de software para o auxílio à aprendizagem.

www.sbmp.org.br/ Novo portal da Sociedade Brasileira de Melhoramento de Plantas, com rtigos sobre OGMs, entre outros.


ESTRATéGIAS

BRASIL

Software livre na pesquisa agrícola

A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) acaba de lançar a Rede de Software Livre para Agropecuária (AgroLivre), que coloca à disposição de pesquisadores e produtores, gratuitamente, aplicativos de gestão, controle e de apoio à pesquisa científica. "Tivemos de investir em recursos humanos para desenvolver esses programas, que são de alta qualidade técnica. E eles são apenas o começo do projeto. Vamos oferecer outras ferramentas", diz

■ Desenvolvimento do semi-árido O Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) vai aportar R$ 1 mihão do CT-Mineral para o desenvolvimento em rede do Arranjo Produtivo Local para o desenvolvimento do semi-árido dos estados da Paraíba e do Rio Grande do Norte. O projeto tem como objetivo promo-

Sônia Temes, chefe-adjunta de pesquisa e desenvolvimento da Embrapa Informática Agropecuária. Os usuários podem entrar no site da Rede AgroLivre (www.agrolivre. gov.br) e baixar os códigos-fonte dos programas. Como se enquadram no conceito de software livre, é possível copiá-los e distribuí-los, além de modificar e aperfeiçoar seus códigosfonte, sem necessidade de autorização prévia dos autores. Os programas disponíveis para utilização são

ver o aproveitamento de todos os minerais de valor econômico contidos nas rochas pegmatíticas - como os industriais, metálicos e gemas - por meio da transferência de tecnologias adequadas ao contexto social e econômico local e não agressivas ao meio ambiente. O projeto terá como parceiros universidades, empresas, cooperativas, municípios, entre outros. •

os aplicativos Lactus, sistema para gerenciar e controlar o rebanho de gado leiteiro, o HiperEditor e o HiperVisual, que permitem organizar e visualizar informações na web, e o Software Científico, que tem módulos para tratamento de dados, tabelas de freqüência e gráficos. Para desenvolver o HiperEditor e o HiperVisual, a Embrapa chegou a negociar uma parceria com uma empresa norte-americana que já dispunha de ferramentas nos moldes desejados.

■ A marca dos 120 periódicos A FAPESP e o Centro LatinoAmericano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (Bireme) comemoram em abril a marca de 120 periódicos disponíveis no programa Scientific Electronic Library Online (SciELO). Como parte da comemoração, as duas instituições apresentaram o

"Quando soubemos que o custo de um kit seria de US$ 20 mil, resolvemos começar do zero e fazer por nossa conta", diz Sônia. "Os softwares ficaram mais leves e fáceis de executar que o similar norte-americano." O programa de computador Lactus atende a uma necessidade dos pecuaristas. Os outros três softwares são voltados para pesquisadores. "Nossa intenção é de que a Rede AgroLivre se torne um repositório de softwares livres desenvolvidos por outras instituições." •

primeiro artigo com um mapa genético completo já publicado por um periódico brasileiro. Trata-se do Genome features of leptospira interrogam serovar Copenhageni, sobre um dos tipos de bactéria causadores da leptospirose. O mapa é divulgado pela revista Brasilian Journal of Medicai and Biological Research, editada pela Associação Brasileira de Divulgação Científica. •

PESQUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 23


ESTRATéGIAS

BRASI-

A máscara carioca do carnaval paulistano sou-se em publicá-la devido ao alto custo de impressão das imagens. "O mercado editorial mudou e agora há uma demanda por obras bem ilustradas, voltadas para um leitor habituado à Internet", diz. Entre outras curiosidades, a tese mostra como o carnaval de São Paulo inspirou-se no formato dos desfiles do Rio de Janeiro. Em 1968, o então prefeito paulistano Faria Lima, que era carioca, instituiu uma subvenção para os desfiles e convocou um carnavalesco carioca para criar as regras do carnaval paulistano. Foi assim que os antigos cordões migraram para o formado das atuais escolas de samba. A Nenê de Vila Matilde venceu os primeiros desfiles - seu presidente, carioca, tinha familiaridade com as regras. •

Na primeira metade do século 20, o carnaval popular de São Paulo dividia-se entre os cordões dos descendentes de escravos e dos imigrantes que habitavam os bairros do Brás, da Mooca e da Lapa, na maioria italianos. A evolução das manifestações populares desde o século 19 até o atual desfile de escolas de samba será abordada num livro, Carnaval em branco e negro, que a Editora Unicamp prepara-se para publicar. A obra, ilustrada com imagens e fotos de várias épocas, é o resultado de uma tese da doutorado de Olga Rodrigues de Moraes Von Simson, do Centro de Memória da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), defendida em 1990. Na época em que foi feita, nenhuma editora interes-

■ Vez da genética e do desenvolvimento A genética e o desenvolvimento sustentável são as áreas contempladas pelo 49° Prêmio Moinho Santista e o 25° Prêmio Moinho Santista Juventude. Universidades e entidades científicas e culturais podem indicar candidatos para a Fundação Bunge até 30 de maio. Em agosto, saem os vencedores. O Prêmio Moinho Santista homenageia personalidades que se destaquem no universo das ciências, letras ou artes - o

tema muda a cada ano. No Prêmio Moinho Santista Juventude, os laureados têm no máximo 35 anos de idade. •

■ Conhecimento compartilhado A Cooperativa de Produtores de Cana, Açúcar e Álcool do Estado de São Paulo (Copesucar) está abrindo o seu Centro de Tecnologia à participação do mercado. A instituição, rebatizada de Centro de Tecnologia Canavieira (CTC), ganha status de entidade de direito privado e será

24 ■ ABRIL DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 98

mantida com a contribuição de produtores de todo o país, além de convênios, prestação de serviços, direitos autorais e royalties de patentes. A proposta de orçamento prevê aporte de R$ 42 milhões, ao longo de cinco anos, a partir da safra 2004/2005. A maior parte dos recursos será destinada a pesquisas na área agrícola, com R$ 31,5 milhões. "A vantagem de operar como associação civil é a garantia de acesso a novos recursos, inclusive dos fundos setoriais", diz Cássio Domingues, diretor-presidente da Copersu-

car. Criado há 25 anos, o CTC teve papel importante no desenvolvimento de variedades de cana que permitiram aumentar a produtividade dos canaviais. O centro é parceiro da FAPESP no mapeamento da cana e inicia, também com apoio da Fundação, pesquisas sobre o genoma funcional da planta. "A Copersucar chegou a investir no Centro R$ 60 milhões por ano, quando era responsável por 80% da produção nacional. Hoje, temos 20% do mercado e não é justo bancar tudo", diz Cássio Domingues. •


■ Lições da guerra do cupuaçu Ambientalistas tiram lições da vitoriosa batalha do cupuaçu, fruta amazônica que virou marca em vários países, mas teve o registro cassado em um deles, o Japão. A campanha, liderada pela rede Grupo de Trabalho Amazônico (GTA), teve sucesso porque contou com o empenho do governo brasileiro e conseguiu reunir US$ 20 mil para as despesas nas cortes nipônicas. Em parceria com a ONG Amazonlink, o GTA estuda a viabilidade de novas batalhas. Entre os alvos possíveis, há o caso da empresa norte-americana ZymoGenetics, que detém a patente de dois princípios ativos, um analgésico e outro vasodilatador, retirados da secreção de um sapo da Amazônia. A empresa extraiu as substâncias do animal e patenteou-as, passando a produzi-las sinteticamente. Mas as dificuldades são grandes na Justiça dos Estados Unidos, país que não ratificou a Convenção da Diversidade Biológica e não se dispõe a pagar pelo conhecimento tradicional de que se apropriou. "Procuramos um escritório de advocacia americano que nos pediu US$ 150 mil só para iniciar a ação. Está fora das nossas possibilidades", diz Eugênio Pantoja,

■ Receita para vencer a poluição

Após a campanha do cupuaçu; ecologistas buscam novos alvos

da Amazonlink. Outras possibilidades são as patentes do cunani, substância anestésica usada em ferramentas de pesca de índios, e do jambu, erva que serve de matéria-prima para um creme dental. •

■ À procura do parceiro ideal A Rede Brasil de Tecnologia (RBT) foi criada em 2003 pelo Ministério da Ciência e Tecnologia para promover parcerias entre empresas e pesquisadores - e estimular o desenvolvimento de tecnologia nacional para substituir importações. Em poucos meses, já se cadastraram na rede 239 empresas e 355 laboratórios. O cadastro está aberto para consulta no site www.redebrasil.gov.br. A RBT prepara agora o lançamento de suas ferramentas. Em breve,

empresas com demandas tecnológicas poderão encaminhar pedidos para a Rede, que procurará centros de pesquisa capazes de desenvolver os produtos almejados. Para evitar o vazamento de segredos industriais, os pesquisadores mobilizados pela RBT só conhecerão o nome da empresa depois de a parceria se mostrar viável. Outra iniciativa será a intermediação de eventuais pedidos de empresas ou instituições estrangeiras, que queiram ajuda de instituições brasileiras para desenvolver produtos. "Mas essa ferramenta só servirá para vender tecnologia, não para comprá-la", diz Marcelo de Carvalho Lopes, secretárioexecutivo da RBT. O objetivo da Rede, além de substituir importações, é agregar valor às exportações brasileiras. •

Uma boa notícia emerge das águas da baía de Santos, que por décadas sofreu com a poluição. Uma pesquisa do professor Eurico Cabral de Oliveira Filho, da Universidade de São Paulo (USP), revela que algumas espécies vegetais estão reaparecendo na baía. Dois estudos que avaliaram a flora marinha em 1957 e em 1977 mostraram que o número de espécies caiu de 105 para 69 no período. Mas a repetição dessa pesquisa, entre 1998 e 1999, registrou a presença de mais de uma centena de espécies, inclusive sete tipos de algas marrons observadas em 1957, mas sumidas desde então. O mérito é de uma articulação do poder público em vários níveis. Foi construído um emissário submarino para lançar o esgoto em alto mar. A prefeitura colaborou controlando a passagem para o mar da água dos canais da cidade, contaminada por esgoto clandestino. Até mesmo a melhoria da qualidade do ar da vizinha Cubatão teve um papel, uma vez que as chuvas levavam a sujeira do ar para o mar. "O mais importante é mostrar que, com uma ação do poder público articulada, é possível reverter os danos da poluição", diz o professor Eurico. •

PESQUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 25


POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA FAPs

Hora de cobrar Pesquisadores se mobilizam para exigir dos estados repasses definidos em lei CLAUDIA IZIQUE

Há sete anos, as Fundações de Amparo à Pesquisa (FAPs) estavam implantadas em apenas dez estados brasileiros. Hoje, estão organizadas em 22 estados. Essa rede começa - ainda com grandes diferenças entre elas - a consolidar sua articulação com o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) e está preparada para respaldar o desenvolvimento científico regional. Seu maior problema, entretanto, é que, na grande maioria dos casos, os governos estaduais não cumprem as exigências constitucionais e não repassam às fundações os recursos previstos na lei. Esse não é o caso da FAPESP, já que o repasse de 1% da receita tributária é regularmente transferido. Nos demais estados, a comunidade científica já se mobiliza para garantir orçamentos compatíveis com as exigência da pesquisa e as demandas das empresas por inovação. A Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (Fapemig), por exemplo, negocia a conversão de uma dívida de R$ 300 milhões em ações ou participação em empresas do governo estadual. Esse valor corresponde à diferença acumulada do percentual de 1% dos recursos tributários do estado que não são repassados desde 1986, quando foi criada a fundação. No ano passado, de um orçamento previsto de R$ 91 milhões, a Fapemig recebeu apenas R$ 25 milhões. "As novas bolsas estão congeladas, assim como os auxílios a projetos de demanda espontânea de pesquisadores já aprovados. Só temos recursos para material de consumo", diz José Geraldo Freitas Drumond, presidente da Fapemig. Em Pernambuco, a comunidade científica também começa se articular para pedir ao Tribunal de Contas uma interpretação definitiva da lei que regulamentou o repasse do governo estadual à Fundação de Amparo à Ciência e 26 ■ ABRIL DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 98

Tecnologia do Estado de Pernambuco (Facepe). A Constituição estadual estabeleceu em 1988 esse valor em 1% da receita tributária, mas a lei - editada no ano seguinte - excluiu do cálculo os valores relativos a 25% do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), 50% do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), recursos de convênios e receitas próprias, reduzindo o orçamento da Facepe a um décimo do que lhe seria devido. "Vivemos a seguinte situação: ou a lei que regulamentou o repasse é constitucional e precisa ser reformulada, ou o estado tem que repor o que deve", afirma Fernando Machado, diretor de Ciência, Tecnologia e Inovação da Facepe. Mobilização de pesquisadores - Em todo o país, pesquisadores ligados às FAPs começam a se mobilizar para garantir acesso aos recursos constitucionalmente estabelecidos e a consolidar um sistema nacional de ciência e tecnologia no país. "É preciso fortalecer as FAPs, que são responsáveis pela operação desse sistema", afirma Francisco Romeu Landi, diretor-presidente da FAPESP e presidente do Fórum das FAPs. Além de um efetivo repasse de recursos, sublinha Landi, o principal pleito das fundações é a autonomia financeira e administrativa e o respeito ao mandato dos seus conselheiros e diretores. "A substituição desses cargos não deveria coincidir com as eleições", ele diz. A expectativa é de que o MCT interceda junto aos governos estaduais para fazer cumprir os repasses legais de recursos de forma a superar situações consideradas "dramáticas", como a da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs). A fundação, que deveria contar com 1,5% da receita tributária do estado - algo em torno de R$ 94 milhões, em valores atuais -, nunca recebeu mais


que 30% desse valor. "Estamos apresentando proposta para o governo do estado, sugerindo um patamar fixo de repasse, mesmo que inferior ao percentual legal", diz Carlos Nelson dos Reis, diretor científico da entidade. A estratégia é garantir um orçamento de R$ 40 milhões, de forma a cobrir "alguns programas", como diz Reis. "Mas, até o presente momento, não temos respostas." Para assegurar um melhor fluxo de recursos à Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) e garantir o cumprimento da lei, o Rio de Janeiro aprovou, no final do ano passado, emenda constitucional alterando o percentual de repasse de 2% - que jamais foi cumprido - para 1% da receita. Neste ano, a fundação espera ter a maior execução orçamentária de sua história: R$ 120 milhões. Os pesquisadores também se mobilizam por uma melhor estruturação das fundações. No Ceará, por exemplo, os repasses - correspondentes a 2% da receita líquida do estado - são cumpridos, "ainda que com alguns contingenciamentos", como diz o diretor científico da Fundação Cearense de Amparo à Pesquisa (Funcap). O problema é que esses recursos, que somam algo em torno de R$ 27 milhões, têm que ser compartilhados, desde 2001, com 41 centros de formação em tecnologia. "Estamos nos esforçando para conseguir que todo o percentual seja gasto em pequisa", diz Souza, garantindo que a proposta tem boa receptividade do estado. Pressão e diálogo - Os diretores das fundações consultadas reconhecem que os governos estaduais sofrem com a falta de recursos. "No Rio Grande do Sul, o governo teve que parcelar o pagamento de salários", justifica o diretor científico da Fapergs. "A pesquisa, no entanto, deveria ser prioridade. Em 2003, recebemos R$ 12 milhões e tivemos que cortar tudo. Só mantivemos as bolsas, eventos e auxílio a congressos, queremos abrir editais para outros projetos, mas não adianta nem tentar." Em Minas Gerais, o governo do estado opera com um déficit de R$ 1,7 bilhão, reconhece Drumond. "Mas já estamos no segundo ano de governo e é tempo de resolver a situação financeira do esta-

do", ressalva. A comunidade científica mineira, afirma, "faz pressão" e pede para que seja cumprido 40% a 50% do orçamento. "Estamos preocupados com a contrapartida do estado nos convênios firmados com o MCT, como os do Pronex, por exemplo. O Estado não pode deixar de cumprir sua parte", observa. Para o presidente do Fórum das FAPs, aos poucos, a comunidade acadêmica dos diversos estados começa a se dar conta de que será preciso "pressão e diálogo" para ampliar os recursos destinados à pesquisa. "Essa consciência precisa ser ampliada para acadêmicos e empresários, afinal eles são os principais interessados na inovação", afirma. Agências federais - Para grande parte das fundações, os convênios com a Fi-

nanciadora de Estudos e Projetos (Finep) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) firmados no ano passado diante das dificuldades orçamentárias tiveram efeito de solução de emergência. Foi o caso da Facepe. Ali, os acordos firmados no âmbito do Programa de Apoio à Pesquisa em Empresas (Pappe), da Finep, acrescentarão mais R$ 15 milhões ao orçamento nos próximos três anos. Outro programa, o PPP, garantiu mais R$ 7 milhões, também para os próximos três anos. E uma parceria entre o estado e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), para o programa Promata, de apoio à pesquisa, desenvolvimento tecnológico e difusão na Zona da Mata, trará outros R$ 8 milhões para garantir o melhor apro-

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veitamento da produção caprina e ovina, e da agricultura familiar. "Mas, ainda assim, a situação está complicada, já que a pesquisa de balcão está comprometida, apesar dos bons projetos em parceria", diz o diretor de Ciência, Tecnologia e Inovação da Facepe. A Faperj também procura ã^L ampliar, neste ano, os conL^^ vênios firmados com o È m MCT, no ano passado, ^L JL. para duplicar os recursos a serem aplicados em programas como o de Apoio a Núcleos de Excelência (Pronex), de Apoio à InfraEstrutura de Ciências, Tecnologia e Inovação para Jovens Pesquisadores (Primeiros Projetos), de Rede de Proteômica e do Programa Rio Inovação, lançado em parceria como a Finep. "A proposta é obter contrapartidas no mesmo valor aplicado pela Faperj", afirma Pedricto Rocha Filho, diretor-presidente da entidade. Além de complementar o orçamento com verbas do governo federal, algumas FAPs buscam novas fontes de recursos. "Pretendemos buscar parcerias com instituições internacionais e com os municípios fluminenses", conta Rocha Filho. Em Pernambuco, considerase a possibilidade de criar "fundos setoriais regionais", reunindo empresas que atuam no estado em setores como, por exemplo, o sucroalcooleiro ou de gesso, para financiar projetos de pesquisa, segundo revela o diretor da Facepe. Parcerias estratégicas - Apesar dos problemas orçamentários decorrentes do não cumprimento da legislação por par-

te dos governos estaduais, a representação das FAPs no país cresce significativamente. Quando foi criado o Fórum das FAPs, em 1997, elas não passavam de dez. "Hoje são 22", diz o presidente do Fórum das FAPs. Só falta organizar as fundações em Roraima, Rondônia, Amapá e Espírito Santo. "Foi um crescimento significativo", ele reconhece. As novas fundações, como a da Bahia, por exemplo, nascem com bastante fôlego. A lei que criou a Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb), em 2001, previa que, no primeiro ano de operação, a fundação contaria com 0,6% da receita estadual. Este percentual cresce, gradativamente, até chegar a 1%, em 2007. "Neste ano, o orçamento previsto é de R$ 25,8 milhões", diz Alexandre Pauperio, diretor-geral da Fapesb. No ano passado, ele comemora, o estado cumpriu integralmente o repasse. O resultado é que, diferentemente do Rio Grande do Sul, a pesquisa na Bahia "vive um grande crescimento", como ele diz. O número de solicitações de bolsas, em 2004, por exemplo, triplicou em relação ao ano passado. Os recursos também permitiram à fundação criar mais três modalidades de apoio: produtividade de pesquisa, apoio técnico e gestão de ciência e tecnologia em projetos estratégicos. Dentre as 14 modalidades de apoio oferecidas, a mais procurada foi a de iniciação científica, com 451 inscritos na disputa de 70 bolsas. "Mas isso ainda não é suficiente", ressalva Pauperio. As parcerias firmadas com o CNPq e a Finep injetaram mais R$ 9 milhões no orçamento do ano passado. Este ano, a expectativa é ampliar o convênio para

Fundações de Amparo à Pesquisa (FAPs) Repasses dos governos estaduais 2003 [em R$) Realizado Previsto em lei

% sobre a rece ita tributária Previsto em lei Realizado

2004 (em R$) Previsto em lei

Funcap

27 milhões

24 milhões

2

1,8

30 milhões

Facepe

30 milhões

3 milhões

1

0,1

3 milhões

Fapesb

23 milhões

23 milhões

0,7

0,7

25,8 milhões

Faperj

260 milhões

80 milhões

2

0,6

120 milhões

Fapemig

91 milhões

25 milhões

1

0,2

FAPESP

315 milhões

320 milhões

1

1

Fapergs

94 milhões

12 milhões

1,5

0,34

28 ■ ABRIL DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 98

" 339 milhões 40 milhões

garantir um volume maior de aporte das agências federais. Indicadores de C&T - O quadro da situação das fundações, portanto, contém boas e más notícias. A primeira boa notícia é que, em oito anos, foi possível criar e implantar um sistema de apoio estadual à pesquisa em quase todo o país e estimular a investigação regional. A segunda, é que, na expectativa de ver funcionar o modelo e fazer avançar a pesquisa, os pesquisadores começam a se mobilizar para reivindicar dos estados a transferência dos recursos devidos. Os acordos com o MCT, por meio de programas do CNPq e da Finep - alguns deles com exigência de contrapartidas estaduais -, também foram positivos, principalmente para as fundações dos estados do Nordeste, já que promoveram um arranque no desenvolvimento de projetos, principalmente na área de inovação e de formação de doutores. "As ações de cooperação entre o MCT e os estados permitiram a consolidação dos sistemas estaduais, constituindo-se em elemento decisivo para a criação de novas FAPs e o aumento dos repasses de recursos", consta no documento elaborado pelas fundações do Nordeste que foi entregue ao ministro da Ciência e Tecnologia, Eduardo Campos. Mas, para a efetiva operação do sistema, elas reivindicam que o ministério priorize os projetos regionais e projetos estratégicos estaduais. Solicitam ainda o apoio para a implantação de um sistema único integrado de informações e indicadores de Ciência, Tecnologia e Inovação. "Com isso, seria possível criar uma forma de comparar desempenho, carências, além da evolução do trabalho das FAPs e das demandas regionais", detalha Acácio Salvador Veras e Silva, presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Piauí (Fapepi). Para o presidente do Fórum das FAPs, no entanto, é preciso articular um sistema nacional de inovação. "O sistema atual é centralizado, apoiado no CNPq e na Finep. Os recursos precisam ser mais bem distribuídos, já que são os operadores locais que conhecem a clientela", observa. "É preciso pensar em parcerias de grupos de pesquisa organizados, com grupos em organização. Ao invés de desconcentração, deveríamos pensar em integração." •


■ POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA PROGRAMA ESPACIAL

Radiografia de uma tragédia Escassez de recursos humanos e materiais foram responsáveis pelo acidente com o VLS-1 O relatório sobre as causas do acidente com o Veículo Lançador de Satélites (VLS) - ocorrido em 22 de agosto do ano passado no Centro de Lançamento de Alcântara no Maranhão - expôs a fragilidade do Programa Espacial Brasileiro. A comissão responsável pela investigação concluiu que o acidente teve início com o funcionamento "intempestivo" de um propulsor do primeiro estágio, acionado por corrente elétrica ou descarga eletrostática, sem no entanto identificar "falha ativa", ou seja, erros ou violação com resultados imediatos. Constatou, no entanto, que "falhas latentes", relacionadas a medidas tomadas antes do acidente, além da escassez de recursos humanos e materiais, contribuíram fortemente para a consumar a tragédia que matou 21 técnicos. A comissão fez uma série de recomendações para a retomada do projeto e a continuidade do programa espacial, como, por exemplo, maior investimento em especialização, treinamento e reciclagem de servidores, intercâmbio com instituições externas, entre outras. Recomenda, "obrigatoriamente", o aperfeiçoamento do modelo de gestão integrada de sistemas e a análise organizacional do Instituto de Aeronáutica e Espaço (IAE), vinculado ao Centro Técnico Aeroespacial (CTA). "Alguns dos órgãos que fazem parte do programa, como o IAE, se beneficiariam se tivessem um relacionamento de maior intensidade com outros institutos, universidades e empresas no nível de projeto. Isso ajudaria a avançar mais rapidamente e a identificar dificuldades antes de ocorrerem problemas", diz Carlos Henrique de Brito Cruz, reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que integrou a comissão de investigação.

Explosão do VLS-1 em agosto do ano passado, matou 21 técnicos em Alcântara, no Maranhão

Brito acrescenta que também seria "desejável" que a Agência Espacial Brasileira (AEB) tivesse uma posição de "mais destaque" no programa espacial brasileiro. E sugere que a agência, que hoje integra o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), fique vinculada à Presidência da República. "Fica complicado gerir órgãos de outros ministérios", argumenta Brito Cruz. Modelo defasado - O modelo institucional do programa brasileiro está defasado, avalia Carlos Américo Pacheco, que foi secretário-executivo do MCT no governo de Fernando Henrique Cardoso, quando também fracassaram duas tentativas de lançamento do VLS. "O desenho do CTA tem que ser reavaliado, já que há uma obsolescência institucional. É preciso avaliar quais novas instituições poderiam estar a ele vinculadas", ele diz. Sugere a institucionalização de um plano de carreiras de

ciência e o desenvolvimento de projetos em conjunto com empresas. Discorda, no entanto, da sugestão de Brito Cruz sobre as mudanças de vínculo institucional da AEB. "Assisti à migração da agência, antes ligada à Presidência da República, para o MCT. Na presidência havia grandes dificuldades de orçamento porque ali as restrições fiscais são enormes. É ilusão imaginar que funcionaria melhor lá." A AEB conta com a liberação de R$ 100 milhões para retomar o projeto e reconstruir a infra-estrutura do Centro de Alcântara. Algumas medidas já estão sendo tomadas: o governo abriu concurso para preencher 167 vagas no CTA para completar o quadro de funcionários e repor a mão-de-obra perdida com o acidente. "O caminho é investir mais recursos em tecnologia e material humano, além de dar continuidade aos programas de cooperação com outros países", diz o ministro da Defesa, José Viegas. • PESQUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 29


I POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA INOVAÇÃO

O conhecimento imeriiu eé uo ■ i

capital Pesquisadores se associam para criar empresa de base tecnológica MARILI RIBEIRO

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Uma empresa de tecnologia e consultoria com nítidos contornos comerciais e ambições de conquistar fatias de mercado, constituída apenas por mestres e doutores dedicados à pesquisa, começa a mostrar a que veio. Em abril, três protótipos de projetos em desenvolvimento pelos pesquisadores ligados a Cientistas Associados serão apresentados aos potenciais clientes, alguns deles já contatados ainda durante a fase de experimentação. Fundada há pouco mais de um ano por iniciativa de cinco jovens doutores com experiências profissionais em empresas de tecnologia, a Cientistas Associados, com sede e parceria da Fundação Parque de Alta Tecnologia de São Carlos (ParqTec), já reúne 33 membros e pretende trabalhar com diferentes áreas para o desenvolvimento de produtos e serviços em robótica, automação, sistemas interativos, sistemas inteligentes, óptica, fotônica, engenharia biomédica e bioengenharia. "O maior capital da nossa empresa é o conhecimento", enfatiza empolgado o gerente da Divisão de Sistemas Interativos da Cientistas Associados, Antônio Valerio Netto, doutor em Ciência 30 • ABRIL DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 98

da Computação e Matemática Computacional pela Universidade de São Paulo (USP) e um dos fundadores da iniciativa. "Tenho 31 anos e acredito que devo apostar no sonho de viabilizar idéias aqui no Brasil em vez de ir para o exterior, ou me limitar à carreira acadêmica", acrescenta. E, como sonhar não paga imposto, Valerio, demonstrando sua fé no atual projeto, prevê que se tudo se encaminhar bem em dez anos a Cientistas Associados poderá fazer frente às grandes multinacionais do segmento de alta tecnologia. "Quem sabe não nos tornaremos uma IBM nativa?", fantasia, levando em consideração não apenas o seu empenho pessoal, mas o fato de a Cientistas Associados incentivar uma política de valorização do capital humano entre seus colaboradores, de forma a agregar intelectos, incentivando o crescimento da instituição paralelamente. A empresa possui uma estrutura hierárquica composta por uma gerência técnica e por equipes de desenvolvimento em cada especialidade. Cada equipe é responsável pelo desenvolvimento de um produto ou serviço e conta com um coordenador técnico responsável. A sustentação dessa estrutu-

ra se dá por meio das diretorias jurídica, financeira e gestão de pessoas, além da diretoria de negócios, marketing e inteligência de mercado. Esta última é responsável por ir ao mercado em busca de interessados no que a empresa tem a oferecer. Entre as características administrativas que a Cientistas Associados estimula está o cooperativismo competitivo entre seus colaboradores. Para o ocupar o cargo de diretor-presidente o candidato precisa ter título de doutor e condição de sócio-fundador ou emérito. O cargo, escolhido por aclamação pelo Conselho de Associados, tem mandato de três anos. Ao final desse prazo, há nova eleição, da qual participam os membros do Conselho de Associados. Dos atuais 33 membros, cinco são doutores, seis doutorandos, sete mestres e 15 mestrandos e graduandos. Dos projetos em fase avançada estão propostas desenvolvidas com o apoio do Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE), da FAPESP, assim como com o apoio de parcerias com o Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação, da USP, com a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), com a Escola de Enge-


nharia de São Carlos, também da USP, e ainda com a colaboração da Absolut Technologies, empresa nacional fornecedora de hardware e software na área de realidade virtual e sistemas. Os três projetos, que inauguram a atuação da Cientistas Associados, propõem inovações nas áreas de energia, treinamento e robótica. Energia elétrica - O projeto relacionado com o mercado de energia pretende oferecer a empresas do porte de uma Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL) sistemas computacionais para redução de perdas em redes de distribuição de energia com interface em realidade virtual. O enfoque está em trabalhar com avançados algoritmos computacionais de reconfiguração de circuitos. Entre os resultados decorrentes da aplicação do sistema proposto estão desde o aumento do faturamento para as companhias distribuidoras de energia até a melhora da qualidade da energia fornecida ao consumidor. A proposta busca uma interface que permita manipulação dos recursos do sistema, tornando o aplicativo atrativo comercialmente. Para alcançar o objetivo, foi utilizada uma solução baseada em ambientes virtuais, que têm permitido grandes revoluções no que se refere a relação homem-máquina, tanto na solução de problemas científicos quanto industriais. Além da facilidade para lidar com grandes quantidades de dados, uma interface como a proposta permite uma maior contextualização do sistema elétrico. Dados como localização de auto-estradas, ferrovias, rios, pontes, hospitais, grandes indústrias etc. são importantes na operação de um sistema elétrico de distribuição de energia. Para ilustrar a importância desse tipo de informação, Valerio lembra que é preciso considerar os dados sobre a localização de hospitais. "A qualidade da energia na região de um hospital não pode ser degradada, em hipótese nenhuma, em benefício de uma redução de perdas energéticas. Equipamentos caros e de alta tecnologia poderiam ser danificados e, por conseqüência, tratamentos poderiam ser prejudicados, colocando pacientes em risco. Portanto, o desenvolvimento de uma interface interativa produzirá avanços técnicos na manipulação de sistemas elétricos de distribuição tan-

to com relação à quantidade de informação a ser considerada quanto à qualidade", explica ele. O principal resultado esperado com esse projeto é a criação de condições para comercialização não apenas no mercado interno, mas também na exportação para América Latina no final dos dois anos. Há ainda a possibilidade de, como subprodutos, vislumbrar a utilização dos módulos do sistema inteligente e da interface gráfica para otimizar e manipular diversos tipos de informações relacionadas a outros serviços públicos, como água e esgoto, telefonia e tráfego rodoviário, com o objetivo de planejamento desses sistemas. O trabalho da Cientistas Associados focado em treinamento é voltado para empresas de segurança em geral e também para órgãos públicos de prestação de serviços na área de segurança pública. O projeto desenvolve um sistema interativo que "transporta" os profissionais da área para uma realidade mais próxima do cotidiano de trabalho, permitindo assim um desempenho das funções de forma "real" com medida mais eficiente das condições de segurança. Esse sistema promove um grau de assimilação muito maior do conhecimento transmitido, pois um sistema que promove estímulos visuais, sonoros e interativos viabiliza um ganho de qualidade no aprendizado do usuário. Os sistemas de treinamento na área de segurança utilizados atualmente não permitem muita interatividade. Os profissionais são colocados em situações onde os alvos são fixos ou imóveis, não transmitindo a sensação de realidade com a qual o profissional irá realmente se defrontar no momento em que estiver prestando seus serviços. Sistemas mais sofisticados são encontrados apenas nos Estados Unidos e Europa a preços ainda muito altos para o mercado nacional. Dados do Sindicato das Empresas de Segurança Privada, Segurança Eletrônica, Serviços de Escolta e Cursos de Formação do Estado de São Paulo indicam a existência de cerca de 1.600 empresas de vigilância patrimonial, segurança e escolta armada, sendo 25% concentradas no Estado de São Paulo.

Na área de robótica, as ambições da Cientistas Associados é atingir o mercado de entretenimento e educação num primeiro momento. "O projeto prevê um ambiente integrado com robôs móveis e software de apoio à programação e ao desenvolvimento de suas aplicações. Esse ambiente envolverá o desenvolvimento, a aplicação e a transferência de tecnologia de três subáreas da Tecnologia da Informação, que são: Robótica Inteligente (RI), Visão Artificial (VA) e Processamento Automático da Fala (PAF). Nessas áreas, pesquisam-se as tecnologias mais avançadas com relação à comunicação homem-máquina pela voz e visão artificial para o meio científico e industrial. A relevância desse projeto consiste na combinação inovadora de tecnologias no estado-da-arte de RI, VA e PAF para o desenvolvimento de um kit nacional de software e hardware aplicado à robótica educacional e de entretenimento", explica Valerio. Entretenimento - Robôs têm sido fabricados há bastante tempo para aplicações industriais. Porém, devido ao alto grau de autonomia necessário, somente nos últimos anos essa tecnologia está sendo aplicada ao desenvolvimento de robôs domésticos. O produto pretendido pela Cientistas Associados compõe-se, inicialmente, de um pacote de software e uma plataforma básica, constituída de um robô móvel autônomo com processador de 16 bits e 8 MHz, um rádio-modem de 160Kbps e motores. O robô poderá ser configurado pelo usuário por meio de outros módulos com diferentes sensores, atuadores, garras, mecanismos de chute para o futebol de robôs e câmera de vídeo, entre outros. O software de controle será baseado em uma interface gráfica, concebida para permitir a programação do controle dos robôs por usuários leigos, mas com grau de liberdade tal que tornará possível a utilização de técnicas de Inteligência Artificial por usuários mais experientes. Este fato facilitará a aplicação do produto em ambientes tanto educacionais quanto de pesquisa. O sistema permitirá a utilização de vários robôs, que se conectarão uns aos outros e a um computador central por meio de rádio-modem. Do computador central, o usuário poderá programar e controlar remotamente os robôs por meio de uma interface computacional. • PESQUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 31


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LABORATóRIO

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Amazônia mutante Mesmo em regiões intocadas pelo homem, a composição da Floresta Amazônica está mudando. Cresceu a densidade dos representantes de alguns gêneros de árvores como o Parkia, ao qual perti gueiro e a faveira-benguê, e o Sclérolobium, com as árvores conhecidas como tachi ou taxi. Ao mesmo tempo, é hoje menor o espaço ocupado por outros gêneros, como o Croton, que abriga a dima, e o Oenoi carpus, com a palmeira bacaba. Essas alterações aparecem em um estudo realizado ao longo de 20 anos sob a coordenação de William Laurance, do Instituto ISmithsonian, Estados Unidos, com a participação de pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e da Universidade de São Paulo (USP) (NatuiT, 11 de março). Os pesquisadores acompanharam a taxa de crescimento e de mortalidade de 13.700 árvores. Dos 115 gêneros estudados, houve mudanças em 31, dos quais 13 encorparam e ocuparam mais espaço, enquanto outros 13 encolheram. Houve avanços e recuos expressivos: a densidade das ', árvores do gênero Croton caiu 35% e a do Oenocarpus, 32,3%; já a dos representantes do gênero Sderobium cresceu 76% e a do Parkia, 22%. Esse fenômeno parece refletir as secas decorrentes do El Nino, as alterações nos regimes de chuva ou, o mais provável, a crescente participação de gás carbônico (CO,) na atmosfera, cuja quantidade aumentou 30% nos últimos 20 anos ' como resultado das emissões de automóveis e indústrias e queimadas. Uma das conseqüências mais importantes é a diminuição na capacidade de retenção de CO,. "As árvores cuja população está aumentando têm em geral madeiras menos densas, que retêm menos carbono", comenta Alexandre Oliveira, da USP, i que participou do estudo. Segundo ele, tende a se reduzir a diversidade de polinizadores, dispersores, her-

Dieta reprovada Os estudantes mineiros não estão se alimentando direito. Uma equipe da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) visitou seis municípios do estado e entrevistou 1.807 alunos de escolas públicas, com idade entre prevalência de possíveis distúrbios ahmentares e de hábitos de alimentação inapropriados. Desse total, 1.059 (59%) estavam insatisfeitos com sua imagem corporal, 1.014 (56%) exercitavam-se para perder peso e 731 (40%) faziam dieta, nem sempre com acompanhamento médico. De acordo com esse estudo, publicado no Jornal de Pediatria, 241 (13,3%) estudantes, maioria mulheres, apresentaram hábitos inapropriados de alimentação, 175 (10%) usavam métodos purgativas como forma de reduzir peso e 19 (1,1%) apresentaram suspeita de bulimia nervosa. •

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vivem à sombra de outras.

Efeitos das mudanças climáticas: umas árvores crescem mais, outras menos

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Quando a alergia está no ar | 330 pessoas que trabalhavam ', em três edifícios do Centro de São Paulo, um deles com os aparelhos e os dutos de ventilação com mais de 20 anos de uso, outro com o equipamento antigo, mas a tubulação com menos de dois anos, e o terceiro com aparelho e dutos trocados havia menos de dois anos. Duas de cada três pessoas do primeiro prédio tinham rinite ou sinusitc. O sistema de ventilação mais antigo não

Trabalhar com ar-condicionado aumenta em 40% o risco de uma pessoa apresentar irritação nos olhos, no nariz e na garganta ou inflamações como rinite e conjuntivite. As conclusões são de um estudo feito por Gustavo Graudenz, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), com 2 mil paulistanos - dois tcrtilação artificial e os demais com ventilação natural. Há algumas pistas sobre as causas desses problemas. Em outro estudo, a equipe da USP avaliou as queixas de

Temperatura e umidade em ambientes fechados: irritações e inflamações

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filtrava o ar direito e lançava uma quantidade maior de fragmentos de fungos capazes de provocar alergia. Mas só a quantidade de partículas não explicava os sintomas: nos edifícios com aparelhos mais novos havia menos fungos que no ambiente externo. Como a temvariavam muito mais no editilação antigo que nos outros dois, Graudenz concluiu: "Aparentemente, os indivíduos alérgicos são mais sensíveis às variações de temperatura e umidade". •

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Além das aparências

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Há diferenças externas visíveis entre um pé de milho e um tomateiro ou entre uma cana-de-açúcar e um feijoeiro. No entanto, o material genético das plantas classificadas como monocotiledôneas (milho, cana, trigo, aveia e arroz) e o das dicotiledôneas (tomate, feijão, soja e batata) apresenta uma similaridade de 72,5%, mesmo depois de 200 milhões de anos, quando se separaram de um único ancestral, de acordo com um estudo feito por pesquisadores paulistas a ser publicado na Plant Physiology. Em relação à Arabidopsis thatiana, uma dicotiledónea usada como planta-modelo, as proteínas da cana mostraram uma similaridade de 70,5%. "Os 2% encontrados apenas em outras dicotiledóneas cor-

Angiospermas: 72,5% do material genético em comum

respondem a genes perdidos da Arabidopsis, que provavelmente não são essenciais, mas constituíram uma vantagem evolutiva para outras espécies" diz Michel Vincentz, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Da parte restante, 14% são genes ou conjuntos de genes específicos das mo-

nocoüledôneas, alguns com alta taxa de evolução. "Podemos agora trabalhar melhor as hipóteses sobre os processos específicos que governam as monocotiledôneas", comenta Carlos Menck, da Universidade de São Paulo (USP). Os 13,5% finais são exclusivos da cana e, de certo modo, respondem a per-

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gunta que motivou essas comparações - o que faz da cana uma cana? -, embora ainda não se conheça a função desses 5.812 grupos de genes. Os pesquisadores também descobriram cerca de 800 genes ainda não descritos de Arabidopsis, a planta mais estudada em genética, com estimados 26 mil genes. Constataram ainda que o genoma da cana é 30 vezes maior que o da Arabidopsis e que o genoma das angiospermas - as plantas com flores, com cerca de 250 mil espécies, divididas em mono e dicotiledóneas deve ser constituído de um valor entre 35 mil e 38 mil e dinâmico", diz Menck,"mas tura básica, com um número similar de genes." «

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LABORATóRIO

Os impactos sutis do ecoturismo O turismo ecológico, cujo pressuposto é a preservação dos recursos naturais, tem um custo alto. E quem paga são os animais, que, a princípio, deveriam ser protegidos. Biólogos e ecólogos, preocupados com o crescimento dessa atividade, afirmam que o assédio à fauna provoca prejuízos já observáveis em diversas espécies: a presença de turistas tem estressado ursos polares e pingüins, nas regiões polares, pássaros das florestas tropicais e até os dingos, uma espécie de cachorro selvagem da Austrália. A influência da ação humana nos ambientes selvagens se faz notar por meio de mudanças nos batimentos cardíacos, nos ní-

veis hormonais e no comportamento dos bichos. Resultado: os animais perdem peso e muitos morrem. É claro que não há só prejuízo. Países pobres, mas ricos em biodiversidade, dão as boas-vindas ao dinheiro dos turistas que visitam suas belezas naturais, supostamente sem prejudicar o ambiente. Com o tempo, porém, a presença crescente dos observadores pode colocar em perigo aquilo que eles tanto desejam preservar. "O ecoturismo é uma atividade alternativa ao uso indiscriminado dos recursos naturais", diz Geoffrey Howard, do escritório da União de Preservação Mundial (IUCN) em Nairóbi, Quênia (New Scientist,

4 de março). Enquanto a IUCN e governos, como da Austrália e da Nova Zelândia, sustentam que seus projetos de ecoturismo são viáveis do ponto de vista ecológico, vários pesquisadores chamam a atenção para os impactos mais sutis dessa atividade. "A transmissão de doenças aos animais silvestres ou as alterações de saúde causadas pela perturbação das rotinas diárias ou pelo aumento do nível de estresse podem não ser aparentes para um observador casual, mas se traduzem em uma redução da capacidade de sobreviverem e procriarem", lembra Philip Seddon, da Universidade de Otago, na Nova Zelândia. •

Pingüins: estresse causado pelas incessantes visitas

34 ■ ABRIL DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 98

■ Problemas com as células-tronco Estudos feitos nos últimos anos mostram que o implante de células-tronco no coração de pessoas que sofreram infarto ajuda a regenerar a área danificada. Agora, pesquisadores da Universidade Nacional de Seul, na Coréia do Sul, descobriram que esse tratamento também provoca efeitos indesejados, graves o suficiente para encerrar um estudo antes de sua conclusão. A equipe de Hyo-Soo Kim aplicou em 20 pacientes uma substância chamada fator de estimulação de colônia de granulócitos (G-CSF), que estimula a medula dos ossos a liberar células-tronco, capazes de se transformar em células de diversos tecidos do corpo. Em metade dos casos, os médicos filtraram e purificaram as células-tronco dos pacientes e as injetaram na coronária, a artéria que irriga o coração. Passados seis meses, os que receberam o implante de células apresentaram desempenho físico invejável, com batimento cardíaco mais forte que os do grupo tratado só com G-CSF (Lancet, 6 de março). Mas, nos voluntários que receberam G-CSF, notou-se um crescimento anormal de células no interior dos stents, pequenas malhas metálicas em forma de cilindro que mantêm a coronária aberta de forma apropriada. Estimuladas pelo G-CSF, as células-tronco podem ter se acumulado no interior dos stents. "É preocupante", diz John Martin, da University College London, que também conduz experimentos com células-tronco. •


■ Genética contra a malária

O gás da evolução As formas de vida mais complexas demoraram bilhões de anos para surgir, provavelmente porque os oceanos primitivos continham menos oxigênio, que pode ter se tornado comum um bilhão de anos mais tarde do que se imaginava (Science Express, 4 de março). Pesquisadores das universidades de Rochester e de Missouri, Estados Unidos, chegaram a essa conclusão após analisar o teor de outro elemento químico retirado de rochas do fundo do oceano, o molibdênio, um excelente indicador por permanecer dissolvido durante milhões

■ Os terremotos e os dados viciados Os terremotos seguem a lei das probabilidades, de acordo com o físico Álvaro Corral, da Universidade Autônoma de Barcelona. Após analisar os catálogos de ocorrências dos tremores, Corral constatou que o risco de um terremoto voltar a sacudir uma região diminui conforme aumenta o tempo transcorrido desde o último tremor (Physical Review Letters, 12 de março). A lógica é similar à que governa os dados viciados. Para quem joga um dado desses uma única vez, é impossível prever o resultado, que se dará ao acaso, mas, se os dados forem rolados muitas vezes, prevalecerá um resultado específico. Embora o processo seja aleatório, há uma distribuição de probabilidades que favorece um resultado sobre os demais. Com os tremores de

de anos. Oceanos sem oxigênio trazem sérias conseqüências à evolução. Os representantes mais simples de eucariontes - organismos formados por células com núcleo - surgiram há 2,7 bilhões de anos, mas os multicelulares, ancestrais das plantas e animais, só apareceram meio bilhão de anos atrás, quando os oceanos se tornaram ricos em oxigênio. A explicação é o extenso período que os oceanos passaram desprovidos de oxigênio. • Oceano primitivo: oxigênio favorece seres multicelulares

terra, a distribuição de probabilidades é semelhante: favorece a ocorrência de eventos em intervalos de tempo pequenos, mas só se torna evidente quando se analisam os registros de períodos longos. Os pesquisadores ana-

lisavam os intervalos entre os sismos diferenciando o tremor principal de suas réplicas. Corral tratou os dois tipos como sendo um só e concluiu que, apesar de aleatórios, eles obedecem a uma lei universal. •

San Fernando, Califórnia, 1971: o próximo deve demorar

Pesquisadores do Laboratório Europeu de Biologia Molecular (EMBL), um instituto que congrega especialistas de 17 países-membros, identificaram quatro novos genes que regulam a habilidade do protozoário da malária, Plasmodium, de sobreviver e desenvolver-se em uma espécie de mosquitos transmissores, o Anopheles gambiae, responsável pela maioria dos casos registrados na África, a região mais atingida - no mundo todo, a malária mata anualmente cerca de 1 milhão de pessoas. As descobertas, descritas nas revistas Cell (5 de março) e Science (26 de março), poderiam ser usadas para bloquear a propagação dos parasitas, que se reproduzem no interior dos insetos antes de contaminar os seres humanos. Dois dos quatro genes, chamados de TEP1 e de LRIM1, matam o parasita no intestino do inseto. Os outros dois, CTL4 e CTLMA2, protegem o parasita - se esses genes são inativados, os parasitas morrem. "Muitos pesquisadores se concentram nos efeitos do Plasmodium no organismo humano, mas o inseto transmissor é um campo de batalha igualmente importante na luta contra a malária", comentou Fotis Kafatos, diretor-geral do EMBL e coordenador do grupo de trabalho sobre malária. "Agora", diz George Christophides, chefe da equipe, "há a possibilidade de desenvolver medicamentos que possam bloquear a atividade das proteínas que protegem o protozoário." No total, os pesquisadores descobriram 242 genes responsáveis pela defesa do inseto contra o protozoário causador da malária. •

PESQUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 35


CAPA CIÊNCIA

Extinção

peso

Teoria propõe que umidade excessiva alterou vegetação e eliminou grandes mamíferos na América do Sul, mas os preservou na África

MARCOS PIVETTA

Dê uma boa olhada nos dois paquidermes desta página, uma anta e um elefante. Apesar da visível diferença de porte, ambos são animais superlativos em seus continentes. Com no máximo 300 quilos e 2 metros de comprimento, a anta é o maior mamífero terrestre da América do Sul. Em seu habitat natural, suas medidas não são igualadas por ninguém. Ainda assim, sua configuração física é tímida perto da exibida por seu vizinho de página. Até 20 vinte vezes mais pesado que seu colega sul-americano, e com pelo menos o triplo do seu tamanho, o elefante é o ser nãomarinho mais colossal da África - na verdade, de todo o mundo. Na savana, a pescoçuda girafa é mais alta, o

A anta e o elefante: depois da chuva abundante de cerca de 5 mil anos atrás, os maiores mamíferos terrestres de cada lado do Atlântico



feroz leão carrega o título de rei dos animais, mas majestoso mesmo é o elefante. Por que o maior mamífero terrestre da América do Sul é tão menor do que o seu congênere africano? Porque aqui, como na maior parte do planeta, a chamada megafauna se extinguiu por completo, de forma ainda não muito bem explicada, em algum momento da história recente, enquanto lá algumas de suas linhagens, como as que geraram os atuais elefantes, girafas e rinocerontes, encontraram formas de se preservar ao longo do tempo. Certo, mas aí vem a verdadeira pergunta: se a América do Sul tinha, há uns 15 mil anos, uma fauna de mamíferos com diversidade e porte semelhantes à da África, por que, afinal, nossa megafauna pereceu e a deles não?

Macrauchenia

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Segundo uma nova teoria, formulada pelo pesquisador Mario de Vivo, do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP), com a colaboração da bióloga e estudante de doutorado Ana Paula Carmignotto, uma significativa mudança climática pode ter sido o elemento-chave para explicar tanto o desaparecimento da megafauna na América do Sul como a sua razoável preservação na África: a quantidade acima do normal de água que despencou sobre os dois continentes no meio do Holoceno, época geológica (mais quente) iniciada há cerca de 11 mil anos, após o fim da última Era do Gelo, e que se estende até os dias de hoje. Choveu demais, as antigas áreas de savana-cerrado - o habitat por excelência

dos grandes e médios mamíferos, geralmente situado em áreas tropicais de umidade moderada para baixa - tornaram-se extremamente densas e fechadas, com muitas árvores, e praticamente viraram extensões das vizinhas florestas tropicais. Na África, a maioria dos mamíferos de grande porte, geralmente herbívoros que viviam em bandos, conseguiu migrar para novas zonas de vegetação aberta, com poucas árvores e alguma pastagem. Em função da alteração climática, esse tipo de formação vegetal surgiu em áreas hoje desérticas, situadas nas extremidades norte e sul do continente. Aqui os maiores bichos, concentrados na porção centro-norte da América do Sul, não encontraram um ambiente próximo compatível com seu estilo de vida. Fal-


tou savana para eles. "A maioria dos autores costuma dizer que a manutenção de exemplares da megafauna na África se deu por um motivo que não teve nada a ver com o seu desaparecimento na América do Sul", afirma De Vivo. "Discordo dessa visão e acho que os dois processos foram conseqüência da mesma causa, o excesso de umidade que alterou a vegetação em ambos os continentes." Clima e vegetação - Para bolar sua teoria sobre a megafauna, que será publicada em breve num artigo científico no Journal ofBiogeography, professor e aluna da USP fizeram uma detalhada pesquisa multidisciplicar sobre os mamíferos, extintos e vivos, da América do Sul e da África. Também levantaram dados

sobre como eram - ou podem ter sido - o clima e a vegetação nesses dois continentes nos últimos 20 mil anos. Grande parte dos trabalhos se deu no âmbito de um projeto temático financiado pela FAPESP e coordenado por De Vivo, que estuda a evolução e a conservação dos mamíferos presentes atualmente no leste do Brasil. O zoólogo é o primeiro a admitir que seu modelo não é perfeito, tampouco é capaz de responder a todas as perguntas sobre a megafauna. Ainda assim, acredita que sua teoria, apesar das limitações, pára em pé. "A explicação faz sentido quando se olha para o passado e o presente dos mamíferos na África e na América do Sul", diz ele. A lógica do ponto de vista defendido pela dupla da USP baseia-se numa seqüência relativamente simples, mas

engenhosa, de deduções e conclusões a partir da análise de uma série de dados e trabalhos sobre as megafaunas sul-americana e africana. De Vivo viu que os maiores mamíferos terrestres de ambos os continentes - aqueles extintos na América do Sul e os de grande porte ainda presentes na África, como elefantes, rinocerontes e girafas precisam de grandes áreas abertas, com pastagem e sem muitas árvores, para manter o seu modo de vida. "Na África, ainda existem espécies de elefantes e de búfalos que moram dentro da floresta, na verdade em áreas de clareiras no meio da mata fechada", pondera o zoólogo. "Mas esses animais vivem em bandos pequenos e são bem menores do que os típicos elefantes e búfalos da savana." Portanto, se hoje os gran-

Grandes mamíferas sul-americanos extintos, em representação artística: expulsos da savana


Antes e depois da grande chuva Megafauna teria sido eliminada da América do Sul pelos efeitosda forte mudança climática

cv

Savana aberta

Floresta aberta com f

enclaves de savana

Entre 20 mil e 13 mil anos

esta aberta com enclaves de savana

Os dois continentes eram extremamente secos, com vastas áreas de savanas e florestas formadas por árvores esparsas e gramíneas. Clima e vegetação eram ótimos para os grandes mamíferos terrestres.

Fonte: Mario de Vivo/USP

des mamíferos habitam pradarias com árvores esparsas, esse também deve ter sido há alguns milhares de anos o ambiente natural da megafauna. Até aí não há nada de muito novo. Todos os registros fósseis levam a esse tipo de raciocínio. O passo seguinte foi criar um modelo climático-vegetativo razoavelmente confiável que indicasse onde pode ter havido savanas, ou algo próximo disso, na África e na América do Sul entre o final da época geológica chamada Pleistoceno - mais ou menos entre 20 e 13 mil anos atrás, no auge da última grande glaciação - e o meio do Holoceno, há cerca de 5 mil anos. O único parâmetro encontrado por De Vivo foram os índices de umidade, de pluviosidade, dos dois continentes, um dos fatores, ao lado da temperatura, mais importantes na caracterização do clima - e, por extensão, da vegetação de uma região durante um período de tempo. Com os indícios pré-históricos sobre a quantidade de chuva que atingiu os dois blocos de terra firme sepa40 ■ ABRIL DE 2004 ■ PES0.UISA FAPESP 98

rados pelo Atlântico sul, o pesquisador construiu dois cenários esquemáticos e radicalmente opostos sobre como as variações climáticas podem ter promovido mudanças radicais em seus tipos de vegetação. Essa é grande contribuição do seu trabalho. O primeiro cenário se situa no chamado Último Máximo Glacial, entre aproximadamente 20 mil e 13 mil anos atrás, no final do Pleistoceno. Dentro da Era do Gelo, quando boa parte do globo foi coberta por geleiras, esse é o momento em que, tomando por base os índices contemporâneos de pluviosidade, registrou-se a menor quantidade de umidade na África e na América do Sul. Foi o ápice da estiagem (e do frio). O ambiente extremamente seco garantia a existência de vastas áreas de savana aberta, com árvores esparsas e muitas gramíneas, e de mosaicos de floresta aberta com enclaves de savana na maior parte do território dos dois continentes (veja mapas acima). Se em algumas regiões

a seca foi extremamente forte, em outras ainda choveu bastante para manter muita vegetação, mesmo que aberta. Não faltavam, portanto, comida e espaço para a manutenção do estilo de vida da megafauna tanto na África como na América do Sul. "Não é possível precisar qual era o nível exato de umidade no último Glacial Máximo", comenta De Vivo. "Mas deve ter chovido anualmente menos do que 1.500 milímetros em muitas áreas." Hoje áreas com esse índice de pluviosidade não comportam florestas tropicais extremamente densas - e o mesmo deve ter acontecido no passado. Alguns autores acham que o frio e a seca ainda mais intensa dessa fase glacial podem ter sido os responsáveis pela morte da megafauna na América do Norte. Para o pesquisador da USP, isso pode ter sido verdade lá em cima, mas não aqui em baixo. Na verdade, ele pensa


Entre 8 mil e 3 mil anos O clima tornou-se mais quente e úmido. Foi a época em que mais choveu em ambos os continentes.

Na América do Sul, a vegetaçãose adensou e se tornou imprópria para os grandes mamíferos. No sul, surgiu um refúgio de savana, mas era muito frio e de difícil acesso Sem ter para onde fugir, as espécies de maior porte foram extintas.

justamente o contrário. "Nessa fase, as condições de vida para os grandes mamíferos na América do Sul e na África devem ter sido ótimas, pois deveria haver muitas áreas de savana para esses animais", diz De Vivo. Não se deve esquecer que, devido à sua posição geográfica eminentemente entre os trópicos, os dois continentes austrais foram menos afetados pela glaciação do que, por exemplo, a Europa e a América do Norte, situadas em zonas temperadas. O segundo cenário localiza-se no Ótimo Climático do Holoceno, entre 8 mil e 3 mil anos atrás. Nesse momento, tudo mudou em relação à fase anteriormente descrita: o clima é úmido como nunca, talvez uns 30% a mais do que hoje, e a vegetação da América do Sul e da África sofre mutações radicais. Segundo De Vivo, é agora que o cerco sobre a megafauna se fecha de vez, em especial aqui. O excesso de umidade transformou a América do Sul, quase de ponta a ponta, num con-

tinente com formações vegetais tão densas e fechadas que inviabilizaram a manutenção das maiores linhagens de mamíferos terrestres. Expulsa de seu ambiente original pelo avanço da mata cerrada, a megafauna teve de procurar novas áreas de savana para garantir a sua sobrevivência. "Mas na América do Sul, ao contrário do que ocorreu na África, não restaram áreas de cerradosavana próximas aos locais onde viviam os grandes mamíferos", afirma a bióloga Ana Paula Carmignotto. "Nessa fase, a única região com essas características era a Patagônia, no sul da Argentina e Chile, mas essa área era muito fria e de difícil acesso." E os maiores mamíferos não devem ter conseguido fazer a migração e ficaram pelo caminho. Por falta de espaço físico para se mover e de gramíneas para comer, fabulosos animais pereceram em terras sul-americanas. Adeus preguiças gigantes, gliptodontes (que lembravam grandes tatus), mastodontes e tigresdentes-de-sabre. Sobraram apenas bi-

A vegetação também se adensou na África, mas linhagens de grandes mamíferos encontraram refúgio em antigas áreas desérticas como o Saara, ao norte, e o Kalahari, ao sul, que se transformaram em savanas com a umidade elevada.

chos de tamanho médio para baixo, o que explicaria o fato de a modesta anta ser atualmente o maior mamífero do continente. Salvos pelo Saara - Na outra margem do Atlântico Sul, houve um processo semelhante, mas as conseqüências foram bem menos trágicas. Na África Central, a chuva abundante do Holoceno médio também metamorfoseou as savanas e florestas abertas em matas mais cerradas, impróprias para a vida das espécies que compunham a megafauna. Mas, em compensação, a umidade extra do período conferiu feições mais amenas, de savana, a duas áreas então áridas e semi-áridas do continente, os desertos do Saara, ao norte, e do Kalahari, ao sul. Na prática, sempre segundo o modelo proposto por De Vivo, as extremidades da África serviram de refúgio, durante esse período mais chuvoso, para os mamíferos de maior porte que tinham sido expulsos da porção central do continente pelo PESQUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 41


avanço da floresta sobre as antigas savanas. "Uma série de pinturas rupestres de até 8 mil anos de idade mostra que o Saara (com áreas de savana) já abrigou populações de girafas", comenta De Vivo. Anos mais tarde, quando a umidade deixou de ser excessiva, e o clima assumiu feições parecidas com as atuais, os desertos que haviam virado savana voltaram a ser desertos e as savanas que haviam se transformado em floresta retornaram à condição de savana. Então, as linhagens sobreviventes de megafauna e de outros mamíferos de porte médio, que haviam encontrado seu oásis nos desertos do Ótimo Climático do Holoceno, puderam retornar ao seu ambiente clássico, as savanas da África Central. Segundo o modelo de Vivo/Carmignotto, é por isso que hoje há elefantes, rinocerontes, girafas, hipopótamos na África - e não na América do Sul.

excesso de umidade do meio do Holoceno, época em que vivemos hoje - e não a sua falta do final do Pleistoceno, como advogam outros pesquisadores. "Muitos pesquisadores acreditam que foi o período mais seco e frio (do Pleistoceno) que matou a megafauna da América do Norte, mas acreditamos que, na América do Sul, ocorreu justamente o contrário", afirma Ana Paula. As hipóteses formuladas para explicar a extinção da megafauna na maior parte do globo podem ser agrupadas em três grandes categorias, que formam um jogo de palavras em inglês: overkill (os homens caçaram em demasia os bichos), overill (a culpa foi do surgimento de novas e letais doenças) e overchill (o intenso frio seco no fim da última glaciação congelou os bichos). No Brasil, é difícil encontrar quem defenda as duas primeiras teorias. "Já vi

N

ão e a primeira vez que um especialista atribui o desaparecimento da megafauna sul-americana a alterações climáticas - e não a outras razões, como a chegada do homem ou de novas doenças ao continente. Isso não quer dizer que as idéias dos pesquisadores da USP sejam exatamente iguais às de outros estudiosos do assunto. Na verdade, pelo menos dois pontos em sua teoria são distintos das demais hipóteses que apontam o clima como maior vilão dessa história. Diferença número um: o momento em que foi dado o golpe final nos grandes mamíferos da América do Sul. Para De Vivo, o último sopro de vida desses animais ocorreu entre 8 e 3 mil anos atrás, no meio do Holoceno, depois do término da última grande glaciação. Para outros autores, a extinção se deu um pouco antes, há mais de 11 mil anos, ainda no Pleistoceno, época geológica que antecedeu ao Holoceno e popularmente é chamada de a Era do Gelo. Diferença número dois: a mudança climática que inviabilizou a vida da megafauna daqui foi o

42 ■ ABRIL DE 2004 ■ PESQ.UISA FAPESP 98

Tigre-dentes-de-sabre: carnívoro entre herbívoros

0 PROJETO Sistemática, Evolução e Conservação de Mamíferos do Leste do Brasil MODALIDADE

Projeto Temático COORDENADOR MARIO DE VIVO

- Museu de

Zoologia/USP INVESTIMENTO

RS$ 789.083,78

150 mil peças (ossos e artefatos) do Pleistoceno brasileiro e só encontrei indícios de marcas intencionalmente causadas pelo homem em uma delas", diz o paleontólogo Castor Cartelle, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Pontifícia Universidade Católica de Minas (PUC-MG), um dos maiores especialistas em megafauna do país. "Honestamente, essa história de overkill é uma idiotice. Também não conheço nenhum caso histórico de zoonose que tenha eliminado uma espécie (de megafauna) de um continente inteiro." Paleontólogo aposentado da Universidade Federal do Acre (Ufac), Alceu Ranzi acredita, a exemplo de Cartelle, que o elemento - chave para o sumiço da megafauna sul-americana foi algum tipo de alteração climática, durante o Pleistoceno ou na transição desta época para o Holoceno. "Como a entrada do homem nas Américas (há cerca de 11 mil anos) foi mais ou menos contemporânea à extinção dos grandes mamíferos, alguns pesquisadores dizem que uma coisa levou necessariamente à outra", afirma Ranzi. "A megafauna até pode ter sido alvo de caça, mas não deve ter sido isso que a levou à extinção. Não há cemitério desses bichos cheios de flechas humanas." Anos atrás, Ranzi encontrou camelídeos (guanacos, alpacas, lhamas) de 18 mil anos de idade na Amazônia, uma evidência de que deve ter havido ali, pouco antes do fim do Pleistoceno, um tipo de ambiente mais próximo


das savanas do que da atual floresta tropical. Mais ou menos como afirma De Vivo em seu modelo climáticovegetativo para a América do Sul e África. Os mamíferos surgiram provavelmente há cerca de 220 milhões de anos, no período geológico denominado Triássico Superior, mais ou menos no mesmo momento da préhistória em que apareceram os dinossauros. Seus primeiros exemplares eram animais muito pequenos, de uns poucos centímetros, parecidos com modernos ratos ou esquilos selvagens. Aparentemente comiam insetos e ti-

nham hábitos noturnos. Sua evolução foi lenta e durante aproximadamente 150 milhões de anos viveram aos pés dos grandes répteis. Somente depois do misterioso desaparecimento dos dinossauros, há 65 milhões de anos, no final do período Cretáceo, passaram a assumir formas e tamanhos variados. Com o tempo, os maiores se transformaram em criaturas quase tão avantajadas quanto os colossais répteis que os precederam, como preguiças e camelídeos gigantes, mamutes, mastodontes e gliptodontes, às vezes com alguns metros de altura e toneladas de peso.

Preguiça gigante: hábitos terrestres

A literatura científica mostra i^L que, embora sempre tenham ^^A contado com espécies parm ^ ticulares, próprias de seus -JL. _m^ continentes, a América do Sul e a África tiveram faunas de mamíferos terrestres com semelhante grau de diversidade até um passado relativamente recente. Ao longo de todo o período Terciário (entre 65 milhões e 1,8 milhão de anos atrás) e de boa parte do Quaternário (entre 1,8 milhão de anos atrás até os dias de hoje), havia até, segundo alguns autores, mais formas de mamíferos não-voadores e não-aquáticos aqui do que lá. "A América do Sul tinha 20 ordens de mamíferos (terrestres) e a África, apenas 13", conta De Vivo. Na linguagem dos taxonomistas, uma ordem é uma categoria de classificação de organismos que compreende uma ou várias famílias similares ou intimamente relacionadas de seres vivos. Dentro da ordem dos primatas, por exemplo, figuram várias famílias de mamíferos, como a dos Hominidae (grandes macacos e humanos), dos Callitrichidae (sagüis e micos) e dos Lemuridae (lêmures), entre outras. Hoje, a África apresenta 11 ordens de mamíferos terrestres, uma a menos do que a América do Sul. Por algum motivo, ou mesmo vários, oito ordens desaparecem da margem esquerda do Atlântico Sul, sobretudo as de animais de grande e médio porte que moravam em áreas de vegetação aberta, e somente duas na margem direita. Não por acaso, se for adotado o peso dos animais como um indicador de seu tamanho, a categoria dos mamíferos terrestres com menos de 5 quilos é a única em que há mais espécies na América do Sul do que na África (622 contra 587). Em todas as demais, o continente das girafas e elefantes apresenta mais espécies de animais de sangue quente do que o Brasil e seus vizinhos hispânicos. "Ficamos basicamente com os bichos de floresta, pequenos, e eles com os de savana, maiores", resume De Vivo. • PESOUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 43


i CIÊNCIA AMBIENTE

Mordidas de mãe Piranhas não são tão agressivas como se imagina e, em geral, atacam em defesa da prole

D

epois de assistir a Piranha, filme de terror norte-americano lançado em 1978, é fácil deixarse dominar pelo medo de mergulhar mesmo em um rio tranqüilo como o Tietê, o maior rio paulista, que a menos de 200 quilômetros da capital deixa de ser poluído e volta a ter peixes. No cinema, as vorazes piranhas, com seus dentes triangulares e pontiagudos, devoram os desavisados banhistas em minutos e a água se torna turva de sangue. É impossível não pensar no risco de ser a próxima vítima mal se molhe os pés no rio. Mas pesquisas recentes mostram que essa imagem de devorador sanguinário é mesmo infundada. Vidal Haddad Júnior, médico dermatologista da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Botucatu, estudou os ataques de piranhas a banhistas no interior de São Paulo e, em parceria com o zoólogo Ivan Sazima, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), chegou a conclusões que desfazem o preconceito contra esses peixes carnívoros, de corpo oval e achatado, encontrados apenas na América do Sul. Embora estejam se espalhando pelos rios do estado, elas geralmente atacam para defender a prole (ovos e larvas) e suas mordidas não causam grandes ferimentos. Os casos estudados até agora consistem apenas de uma única mordida na perna ou no pé - o ferimento 44 ■ ABRIL DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 98

sangra, mas o membro continua inteiro. Até agora não há registro confiável da morte de uma só pessoa provocada por ataque de piranhas. Mesmo assim, é bom ficar longe delas. Fama indevida - O interesse de Haddad pelos acidentes provocados por animais aquáticos surgiu há dez anos, quando percebeu que pouco se sabia sobre como cuidar dos ferimentos que eles causavam. Só depois de publicar em 2000 o Atlas de animais aquáticos perigosos do Brasil: Guia médico de identificação e tratamento (160 páginas, Editora Roca), em que trata principalmente das espécies marítimas como ouriço e água-viva, é que ele começou a se dedicar às de água doce e conseguiu demonstrar que as investidas das piranhas eram menos graves do que se supunha. Em março e abril de 2002, Haddad foi a Santa Cruz da Conceição, cidade de 3.500 habitantes a 200 quilômetros da capital, investigar os ataques de piranhas aos banhistas que tiravam o domingo para se divertir na praia de águas calmas e rasas, às margens do

Filhote de piranha entre os aguapés: a razão dos ataques aos banhistas. Ao fundo, a Serrasalmus, em desenho de Alfred Wallace feito em 1851

rio Mogi-Guaçu. Em cinco domingos, em um posto de saúde próximo à praia, ele atendeu 38 pessoas mordidas por esses peixes enquanto nadavam. Em geral, quem chegava ao posto de saúde apresentava um único ferimento, com cerca de 2 centímetros de diâmetro - o mesmo da mandíbula da piranha -, em forma de uma cratera. Sangrava bastante e os banhistas se impressionavam, o que certamente contribuiu para alimentar o mito da ferocidade desses peixes. Mas não houve caso fatal. Metade das pessoas feridas fora mordida na perna e outros 40%, no pé, próximo ao calcanhar. Apenas um banhista foi ferido no braço e outros três, na mão. Das 38 pessoas mordidas, cinco precisaram ser transferidas para a cidade vizinha, Leme, por apresentarem sangramento mais intenso, e apenas uma sofreu a amputação de um dedo. O maior número de acidentes (16) ocorreu justamente no


final de semana em que mais banhistas entraram na água. De modo geral, o tratamento indicado é bastante simples e inclui a limpeza do ferimento por cerca de dez minutos com água e sabão, para eliminar a possibilidade de contaminação por bactérias. Em caso de mordidas mais profundas, recomenda-se tomar vacina antitetânica.

0 PROJETO História Natural, Ecologia e Evolução de Vertebrados Brasileiros MODALIDADE Projeto Temático COORDENADOR MáRCIO ROBERTO COSTA MARTINS

Sinal de alerta - "Os ferimentos causados pelas piranhas são menos graves que os provocados pelo ferrão de peixes como o mandi ou a arraia", diz Haddad. Formado também em biologia, ele identificou a espécie que rondava as águas de Santa Cruz da Conceição: piranha-pequena, piranha-doce ou pirambeba (Serrasalmus spilopleura ou Serrasalmus maculatus). Comum em todo o país, essa espécie, quando jovem, apresenta a cauda amarela com uma listra negra, o dorso de prateado a dourado e o ventre amarelado, coberto de pintas escuras. Já adulta, o corpo se torna cinza escuro, com até 26 centímetros de comprimento. Mas faltava saber por que a Serrasalmus spilopleura - hoje comum nas praias que se formaram ao longo do rio Tietê após seu represamento - estava atacando as pessoas. A resposta veio pouco tempo depois, quando Haddad conheceu Ivan Sazima, especialista no comportamento de peixes que, desde a década de 1980, estuda os hábitos das piranhas como parte de um projeto temático coordenado por Mareio Roberto Costa Martins, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP). Sazima já havia investigado a fama de devoradores de pessoas atribuída a esses peixes por meio do relato de três casos em que corpos humanos haviam sido encontrados com mordidas e até mesmo inteiramente descarnados por piranhas. Em todos eles, porém, a pessoa já havia morrido por afogamento ou infarto antes do ataque dos peixes. Após um ano de visitas a Santa Cruz da Conceição, os pesquisadores conseguiram associar as características dos ferimentos às do ambiente em que ocorreram. Com apenas 300 metros de extensão, a praia do município fica em um trecho de águas calmas do rio Mogi-Guaçu, onde proliferam os aguapés (Eichhornia crassipes), plantas aquáticas flutuantes de folhas arredondadas verde-escuro e flores lilás. Não foi difí-

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Universidade de São Paulo INVESTIMENTO R$ 851.027,74

cil estabelecer a relação. Em 1985, Sazima havia descoberto que a Serrasalmus spilopleura deposita seus ovos próximos ou em meio às raízes dos aguapés, que, mais tarde, fornecem abrigo e alimento para a cria. Outros estudos também mostravam que, para proteger a prole, o macho ou a fêmea dessa espécie atacam os possíveis predadores da cria com uma mordida de advertência. "É apenas um alerta", diz Sazima, co-autor de Haddad no artigo sobre os ataques de Santa Cruz da Conceição publicado no final do ano passado na revista Wilderness and Environmental Medicine. "As piranhas estão indicando: afaste-se do ninho", afirma o zoólogo da Unicamp. Pouco agressiva, a S. spilopleura é em geral um animal solitário, que se alimenta de pequenas porções de nadadeiras e músculos de outros peixes. Além de comerem insetos, crustáceos e pedaços de aves, rãs e cobras, as pirambebas costumam roubar a isca de pescadores, por vezes levando linha, anzol e isca numa só mordida. De acordo com Sazima, somente em casos extremos uma pessoa correria o risco de ser devorada - por exemplo, se entrasse com um ferimento sangrando em um trecho de rio isolado pela seca e com cardumes de piranhas ou em uma porção de um rio na qual há descarte de carcaças de matadouros. Mesmo assim, o mais provável é que o ataque fatal fosse provocado por outra espécie, maior e mais robusta, a Pygocentrus nattereri ou piranha-queixuda, cujo ventre avermelhado lhe valeu o nome de piranha-caju, encontrada em cardumes maiores.

Antes incomuns no Estado de São Paulo, os ataques de pirambebas a banhistas se tornaram freqüentes nos últimos cinco anos. Os pesquisadores atribuem esses episódios à soma de uma série de fatores. Um dos mais importantes é o represamento dos rios paulistas para navegação, produção de energia elétrica e abastecimento de cidades, que origina os remansos - lugares favoráveis à procriação de peixes e à proliferação dos aguapés, onde as piranhas depositam seus ovos -, e as praias. Além disso, o ciclo de reprodução das piranhas coincide com o verão, quando aumenta a freqüência de banhistas nas praias de rio. Arraias nos rios - Depois dos ataques em Santa Cruz da Conceição, Haddad constatou pessoalmente cerca de cem outros acidentes por mordida de pirambeba nos municípios de Iacanga e Itapuí, próximos a Bauru, na região noroeste de São Paulo. Em cada uma dessas cidades banhadas pelo rio Tietê, o pesquisador da Unesp observou 50 ataques a banhistas em apenas dois finais de semana. Haddad e Sazima alertam para o risco de um outro tipo de acidente muito mais grave: os provocados pelo ferrão de arraias de água doce do gênero Potamotrygon. Peixes cartilaginosos aparentados dos tubarões, as arraias apresentam o corpo em forma de um disco de até 50 centímetros de diâmetro. Sua cauda longa tem um ferrão ósseo serrilhado, rodeado por gládulas produtoras de um potente veneno que provoca a morte dos tecidos. As arraias migraram há 20 milhões de anos da região Amazônica para os rios do interior do país. Os pesquisadores acreditam que a construção de barragens, como a de Itaipu, favoreceu a proliferação e a migração de arraias, permitindo que atingissem o rio Paraná. Haddad, que no ano passado detalhou o tratamento de ferimentos por arraias no livro Animais peçonhentos no Brasil: Biologia, clínica e terapêutica dos acidentes (468 páginas, Editora Sarvier), já ouviu pescadores relatando a captura de arraias em Ilha Solteira, próximo à região em que o rio Paraná recebe as águas do Tietê. "Em poucos anos", diz ele, "as arraias podem se tornar comuns nos rios paulistas." • PESQUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 45


■ CIÊNCIA 'EUROCIÊNCIAS

O cérebro „

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Experimento em pacientes com Parkinson sugere que atividadade elétrica dos neurônios pode mover próteses

adicado há uma década e meia nos Estados Unidos, onde se destaca como um dos expoentes da criação de interfaces para o controle de próteses e máquinas por sinais do cérebro, o paulistano Minguei Nicolelis, 43 anos, viu no mês passado dois dos seus maiores sonhos darem um passo à frente para se tornar realidade. No começo de março, o cientista promoveu um bem-sucedido simpósio sobre neurociências em Natal que reuniu cerca de 700 participantes, daqui e do exterior, entre os quais o alemão Erwin Neher, do Instituto Max Planck de Química Biofísica, ganhador do Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia em 1991. Na prática, o evento serviu para lançar oficialmente o seu projeto de construção de um instituto internacional de neurociências na capital do Rio Grande do Norte. No dia 23, já de volta à Universidade de Duke, na Carolina do Norte, onde comanda um laboratório com 40 pesquisadores, o neurologista anunciou os resultados de um experimento feito recentemente em seres humanos por sua equipe. Tema de um artigo científico a ser publicado em julho na revista Neurosurgery, o trabalho sinaliza que o homem, a exemplo do já demonstrado concretamente em macacos, também pode, em tese, controlar robôs e próteses por meio da atividade elétrica de seus neurônios. Pela força do pensamento, diria um leigo.



raças a 32 microeletrodos temporariamente implantados numa região do cérebro de 11 indivíduos com mal de Parkinson que se submetiam a uma neurocirurgia destinada a reduzir os sintomas da doença, os pesquisadores conseguiram registrar, durante cinco minutos em cada doente, os sinais emitidos por até 50 células nervosas enquanto os pacientes acionavam com uma das mãos o controle de um videogame muito elementar. "Aproveitamos essa operação de rotina, na qual os pacientes ficam acordados e conscientes, para realizar nosso experimento", conta Nicolelis. O conjunto de sinais gravados é a assinatura elétrica que antecede e direciona os movimentos feitos pela mão dos doentes para executar a tarefa em questão. Em termos nada científicos, poderia ser descrito como a ordem - ou as ordens - que uma porção do sistema nervoso envia quando quer mover uma determinada parte do corpo. Segundo o brasileiro, eis a boa notícia: a gravação da atividade elétrica dessa meia centena de neurônios, situados numa região profunda do cérebro chamada núcleos da base, carrega informação suficiente para que um computador, municiado com os programas matemáticos criados pela equipe da Duke, consiga antever o tipo de movimento mecânico ordenado pelo cérebro. "Com isso, a gente mostrou que o nosso método também pode funcionar em seres humanos", afirma Nicolelis. Existe uma ínfima diferença de tempo, de alguns milissegundos, entre o momento em que a ordem deixa o sistema nervoso central e o gesto motor, requisitado pelo cérebro, é efetivamente executado. Para que uma prótese implantada num ser humano, digamos um braço mecânico, funcione de forma semelhante ao órgão substituído, a interface entre o cérebro e a máquina precisa prever com exatidão os movimentos requisitados e repassar, quase 48 ■ ABRIL DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 98

instantaneamente, adiante o pedido. Aparentemente, o experimento com os pacientes com o mal de Parkinson mostrou que a quantidade de informação fornecida pela atividade elétrica de meia centena de neurônios humanos, captada pelo arranjo de microeletrodos, basta para que o sistema funcione a contento. O passo seguinte será repetir em humanos o que já foi feito em macacos: movimentar, em tempo real, um braço mecânico apenas com a atividade elétrica de um grupo de células nervosas. Nos animais, os microeletrodos de Duke captaram os sinais de 300 neurônios do córtex motor, que se mostraram eficientes em mover um braço mecânico necessário para jogar um videogame. A autorização para a realização de um experimento semelhante com voluntários humanos deve sair até o final deste ano. Otimista e entusiasmado por natureza, Nicolelis acredita que, em menos de uma década, tetraplégicos ou pessoas com paralisias decorrentes de problemas de saúde, como um derrame, poderão se beneficiar de próteses e máquinas que serão movidas por sinais do cérebro. "Dois anos atrás, achava que isso só iria acontecer daqui a dez anos. Agora estimo esse prazo em cinco anos", diz o brasileiro. Em sua visão, as maiores dificuldades para que o homem comece a comandar máquinas com o seu cérebro no futuro próximo residem hoje mais no campo da bioengenharia do que propriamente da neurologia. A miniaturização ainda maior dos microeletrodos e a criação de interfaces máquina-homem sem fios são pontos a ser atacados com mais ênfase daqui para frente. Afinal, ninguém imagina que os candidatos a usuários de hipotéticos artefatos movidos por sinais cerebrais sejam constrangidos a sair à rua com a cabeça repleta de fios à mostra. O implante de arranjos de microeletrodos em regiões do cérebro, um procedimento invasivo

numa área delicada do corpo humano, pode provocar algum tipo de reação adversa, infeção ou danificar alguma função nervosa. Ainda assim, Nicolelis está convencido de que esse problema também será superado. "Os implantes (de eletrodos) serão considerados tão invasivos como um dia também o foram os marcapassos", argumenta o neurologista. Neurociências em Natal - Pode parecer que o sonho de movimentar máquinas com a atividade elétrica dos neurônios, um objetivo igualmente perseguido por outros grupos de pesquisa nos Estados Unidos, fora da Universidade de Duke, não tenha nada a ver com a idéia de criar um instituto internacional de neurociências na capital do Rio Grande do Norte, um sonho de Nicolelis de ordem mais pessoal. O pesquisador Idan Segev, da Universidade Hebraica de Jerusalém, que participou do simpósio de neurociências realizado mês passado em Natal, acha que uma coisa tem tudo a ver com a outra. "As pessoas só levam a sério o projeto de criar um instituto aqui porque respeitam e admiram o trabalho do Miguel", disse Segev, durante sua estada no Nordeste. "Com pouco mais de 40 anos, ele é um cientista fantástico. Ninguém daria muito atenção a ele se as suas pesquisas não fossem brilhantes." A opinião de Segev é a de um renomado colega de profissão - e também a de um amigo muito próximo do brasileiro. Além de exibir uma eloqüência contagiante, Nicolelis tem muitas conexões. Não só as do cérebro, mas também as da vida social. Sabe fazer amigos e influenciar as pessoas, para usar uma expressão surrada. O israelense Segev, por exemplo, foi quem convenceu Erwin Neher, o prêmio Nobel alemão, que nem conhecia pessoalmente o brasileiro, a pegar um avião até Natal para participar do simpósio e emprestar seu apoio ao projeto do instituto de neuro-


ciências. "É uma idéia ousada", opinou Neher. "Já vi um projeto semelhante no Chile, mas lá não havia todo esse lado social." O lado social é a escola para crianças carentes e o centro de saúde mental previstos para funcionar na mesma área que deverá abrigar o centro de pesquisas em neurociências. Isso se o projeto realmente sair do papel daqui a três anos, como prevê seu idealizador. De acordo com Nicolelis, o custo de implantação da empreitada gira em torno de US$ 30 milhões, uma verba considerável no mundo da ciência brasileira.

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or ora, o brasileiro já conseguiu alguns apoios de peso para a iniciativa, que visa descentralizar a produção científica na área de neurociências do Sul-Sudeste. O governo do Rio Grande do Norte se comprometeu a implantar a infra-estrutura necessária (luz, água, estrada) no local onde deverá funcionar o instituto. A Universidade do Rio Grande do Norte (UFRN), que possui um núcleo de pesquisa em neurociências, cedeu um terreno de 100 hectares vizinho à sua escola agrícola. O lugar não se situa exatamente de frente para o mar. Fica no município de Macaíba, na região metropolitana de Natal, a meia hora da capital potiguar. Juntando toda a verba obtida junto a agências de fomentos e ministérios do governo federal, Nicolelis contabiliza R$ 4,5 milhões para o projeto do instituto. Certamente influenciado pelo exemplo de fundações norte-americanas de pesquisa, que obtêm gordas

Nicolelis com braço mecânico: uso de sinais elétricos do cérebro para mover próteses

doações de empresas privadas e particulares para os seus cofres, o brasileiro criou a Fundação Alberto Santos Dumont, entidade privada sem fins lucrativos, e aposta na captação de recursos não-públicos para o seu projeto. Até agora, a maior doação privada conseguida foi da Universidade de Duke, o empregador de Nicolelis, que deu US$ 50 mil. Conta com assento no conselho da fundação o presidente do Banco Central do Brasil, Henrique Meirelles, que tem laços de amizade com o neurocientista brasiliense Cláudio Mello, da Universidade de Saúde e Ciência do Oregon. Radicado há 15 anos nos Estados Unidos, Mello é uma espécie de braço direito de Nicolelis no projeto de criação do instituto internacional em Natal, ao lado do também brasiliense Sidarta Ribeiro, da Universidade de Duke. Numa prova do prestígio de Nicolelis, Meirelles esteve no simpósio de neurociências na capital potiguar. O ministro

da Ciência e Tecnologia, Eduardo Campos, também compareceu ao evento. E, poucos dias após o término do simpósio, Nicolelis foi recebido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Palácio do Planalto, em Brasília. Além de ciência, devem ter falado de uma paixão comum, o futebol. O pesquisador é torcedor fanático do Palmeiras. Lula é corintiano roxo, mas isso não deve ter sido motivo de divergência grave. Por sua inegável competência científica, personalidade envolvente e ótimas conexões, dentro e fora do laboratório, o brasileiro que faz macacos jogarem em videogame com a força do pensamento aposta incondicionalmente na concretização do sonho de se fazer um instituto internarcional de neurociências em solo potiguar. Às vezes, fala como se o projeto já fosse realidade. Anunciou até que pretende fazer uma rede de institutos pelo Norte-Nordeste, especializados em outras áreas científicas. Antes disso, no entanto, alguns detalhes sobre o (possível) funcionamento do centro de neurociências em Natal terão de ser debatidos e esclarecidos com a comunidade científica. Quais serão as suas linhas de pesquisa? Quem vai trabalhar no instituto? Como vai ser a sua relação com a UFRN, que estará ali ao lado, e com outros centros de pesquisa do Brasil e do exterior? "O Nicolelis é muito persistente e nós apoiamos o seu projeto", diz Maria Bernadete de Sousa, pró-reitora adjunta de Pesquisa da UFRN. "Mas ainda precisamos discutir muito como vai funcionar o instituto." • PESQUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 49


Lembranças preservadas Novos compostos reduzem danos da doença de Alzheimer RICARDO ZORZETTO*

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esde o nascimento, o cérebro humano encolhe um pouquinho a cada dia, com a morte de quase 400 mil células nervosas que não são repostas. É uma taxa normal que, sem que se note, consome 10 bilhões delas até o final da vida. Comum no envelhecimento normal, a perda dessas células conhecidas como neurônios só se torna mais evidente quando se instala no organismo uma doença tão sorrateira quanto cruel: o Alzheimer, que acelera brutalmente a morte das células do sistema nervoso. Devastadora, essa doença se anuncia de modo sutil, na forma de pequenos esquecimentos, como não se lembrar do local em que deixou os óculos ou as chaves do carro, mas, em questão de anos, pode levar uma pessoa ainda produtiva aos 70 anos a perder progressivamente sua capacidade intelectual e apresentar níveis de habilidade semelhantes aos de recém-nascidos - a pessoa se torna incapaz de andar, alimentar-se sozinha, reconhecer familiares e amigos e até ^Colaborou Francisco Bicudo 50 ■ ABRIL DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 98

de falar. Descrita em 1906 pelo médico alemão Alois Alzheimer, essa enfermidade atinge 5% dos homens e 6% das mulheres com mais de 60 anos - num total de 40 milhões de pessoas no mundo e cerca de 1,5 milhão no Brasil -, e ainda hoje permanece sem cura. Até o ano passado, os únicos medicamentos disponíveis para tratar essa enfermidade que destrói de modo progressivo o sistema nervoso central agiam apenas de modo paliativo: ajudavam a reduzir de forma temporária a perda de memória, mas sem evitar a eliminação dos neurônios. Mas estudos recentes apontam o surgimento de compostos com uma ação complementar, capazes de reduzir ou mesmo impedir a morte das células nervosas. E parte importante desse progresso se deve ao trabalho de pesquisadores brasileiros. Na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a equipe do bioquímico Sérgio Teixeira Ferreira identificou nos últimos três anos nove substâncias - algumas delas produzidas pelo próprio organismo, como a melatonina e a taurina - que, em testes de laboratório, retardaram ou mesmo bloquearam a eliminação dos neurô-

nios. Na Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Araraquara, no interior de São Paulo, a equipe da farmacêutica Vanderlan da Silva Bolzani extraiu da Senna spectabilis - uma árvore de até 6 metros de altura, com folhas verdes miúdas e flores amarelo-ouro, conhecida como cássia-do-nordeste ou tulade-besouro - uma substância chamada spectalina, cujos derivados atuam contra o Alzheimer. Mais acetilcolina - Embora não impeçam a morte das células nervosas, três compostos derivados da spectalina impedem a destruição de uma substância que faz a comunicação entre os neurônios - o neurotransmissor acetücolina, associado à formação da memória -, aumentando sua quantidade no sistema nervoso. A vantagem é que esses compostos não são tóxicos como a tacrina e a rivastigmina, dois dos medicamentos ainda usados no combate aos danos do Alzheimer. Como agem sobre a enzima que degrada a acetilcolina, esses compostos podem ainda auxiliar no tratamento de outras doenças neurológicas, como o mal de Parkinson.


"O Alzheimer é uma doença complexa, cujo tratamento exigirá o uso de estratégias múltiplas. Não acredito que seja dominada com um único medicamento", diz Ferreira, coordenador da equipe, que, nos últimos dois anos, descobriu o papel protetor da taurina e desvendou como esse composto e o hormônio melatonina evitam a destruição dos neurônios: ambos combatem a ação tóxica disparada por uma molécula fabricada em grande quantidade no cérebro de pessoas com Alzheimer, o peptídio beta-amilóide. No estudo mais recente, publicado no mês passado no Faseb Journal, a revista da Federação Americana de Sociedades de Biologia Experimental, a equipe do Rio de Janeiro constatou que a taurina, um aminoácido encontrado em geral em grande quantidade no sistema nervoso, reverte o desequilíbrio químico característico dessa doença. É um efeito semelhante ao obtido com a memantina - composto cujo uso contra o Alzheimer foi liberado em 2003 na Europa e, somente neste ano, nos Estados Unidos - que, no entanto, funciona de forma diferente.

Essencial para a absorção de gorduras pelo intestino, a taurina funciona no sistema nervoso como um antídoto contra os efeitos do peptídio beta-amilóide, que em baixíssimas quantidades, aparentemente estimula o crescimento dos neurônios, mas, no Alzheimer, sua produção foge ao controle e gera danos que atingem milhares de células nervosas. Gerado pela degradação anormal de uma proteína importante para o funcionamento dos neurônios - a proteína precursora de amilóide ou simplesmente APP, na sigla em inglês -, o peptídio beta-amilóide se liga com outras moléculas iguais a ele no exterior das células. Dessa união, surgem inicialmente agregados quase esféricos, os oligômeros, e, numa fase seguinte, longos cordões conhecidos como fibras amilóides. Em contato com a superfície externa das células nervosas, as fibras de beta-amilóide se conectam a várias proteínas, uma delas em especial, o receptor de glutamato, associada à aprendizagem e à formação da memória. É o início de uma reação fatal: essa conexão provoca a abertura de peque-

nos canais nas paredes dos neurônios e permite a entrada nessas células de íons de cálcio, de carga elétrica positiva. Essa enxurrada de partículas positivas altera por um período prolongado a carga elétrica do interior dos neurônios (normalmente negativa), matando-os. Diante desse curto-circuito celular, Ferreira decidiu procurar compostos capazes de restabelecer o equilíbrio de cargas elétricas dos neurônios e encontrou a taurina, aminoácido componente das bebidas energéticas, em moda nos últimos anos. Estudos realizados em outros países já sugeriam que a taurina se ligava a um outro tipo de proteína da superfície dos neurônios: os receptores do ácido gama-aminobutírico (Gaba) que regulam a entrada na célula de partículas de carga elétrica negativa, os íons cloreto. O grupo do Rio decidiu ver como as previsões teóricas se confirmavam na prática. Sob a coordenação de Ferreira, os pesquisadores Paulo Louzada, Andréa Paula Lima, Dayde Silva, François Noêl e Fernando de Mello realizaram uma bateria de testes de laboratório com neurônios da refina de pintinhos, cultivados em pequenas placas PESQUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 51


de vidro. Os achados são estimulantes: os efeitos tóxicos do beta-amilóide eliminaram apenas 15% das células nervosas tratadas com pequenas doses de taurina, enquanto 65% dos neurônios que não receberam o aminoácido morreram. Essa ação protetora também foi observada com a substituição da taurina por uma droga usada no combate à epilepsia, o fenobarbital, que tem a desvantagem de provocar dependência e efeitos indesejados como sonolência e confusão mental. É claro que não se deve sair por aí ingerindo bebidas energéticas na expectativa de prevenir o Alzheimer. Ainda é necessário identificar a dose adequada e a melhor forma de administrá-la em uma série de estudos com seres humanos, antes que o uso da taurina seja indicado para combater essa doença neurológica. Mesmo assim, Ferreira está otimista. "Como a taurina não é tóxica para os seres humanos, será possível iniciar ensaios clínicos em uma escala de tempo relativamente curta, possivelmente no próximo ano", explica o bioquímico. Essa não é a única alternativa para contrabalançar o desequilíbrio de cargas elétricas gerado pelo beta-amilóide. Em outro artigo, publicado em dezembro de 2003 na Neurotoxicity Research, a equipe da UFRJ demonstrou que a melatonina - hormônio respon-

sável pela indução ao sono, liberado principalmente à noite pela glândula pineal e vendido em alguns países como complemento alimentar, ou seja, sem receita médica - também evita a morte dos neurônios por agir de modo semelhante à taurina. Ferreira tenta ainda estratégias complementares que possam frear o progresso do Alzheimer em outros estágios, antes que o beta-amilóide se conecte aos receptores de glutamato. Em parceria com Fernanda De Felice, Jean-Christophe Houzel, José Garcia-Abreu, Vivaldo Moura Neto e Roberto Lent, o bioquímico da UFRJ revelou em 2001, também no Faseb Journal, dois compostos orgânicos - o 2,4-dinitrofenol (DNP) e o 3-nitrofenol (NP) que impedem a morte dos neurônios por bloquear a formação das fibras betaamilóide ou mesmo por desfazê-las depois de prontas. Há três meses, o escritório de patentes dos Estados Unidos concedeu a patente de uso de um deles, o 2,4 dinitrofenol, para a UFRJ. A universidade carioca licenciou a exploração da patente para o laboratório farmacêutico nacional Eurofarma, que se prepara para iniciar a avaliação da toxicidade desse composto em animais. Nos próximos meses, a equipe do Rio pretende

OS PROJETOS Conservation and Sustainable Use of the Plant Biodiversity from the Cerrado and the Atlantic Forest: Chemical Diversity and Prospecting for Potencial Drugs

Abordagens Terapêuticas Inovadoras em Doenças Amiloidogênicas Humanas COORDENADOR SéRGIO TEIXEIRA FERREIRA

- UFRJ MODALIDADE

INVESTIMENTO

US$ 350.000,00 (Howard Hughes Medicai Institute) R$ 310.000,00 (Finep, Fundo Verde-Amarelo e Eurofarma) R$160.000,00 (CNPq) R$ 72.000, 00 (Faperj) 52 ■ ABRIL DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 98

Programa Biota COORDENADOR VANDERLAN DA SILVA BOLZANI INVESTIMENTO

R$ 1.659.568,47 (FAPESP)

- Unesp

apresentar outros cinco compostos que se mostraram capazes de impedir a formação tanto das fibras longas de betaamilóide como dos oligômeros, que, apesar de menores, são muito mais tóxicos. Analgésico - Os compostos identificados pela equipe do Rio devem ainda ganhar o reforço das moléculas descobertas pela equipe da Unesp em Araraquara. Nos últimos cinco anos, a equipe de Vanderlan da Silva Bolzani analisou 1.677 extratos de 709 espécies de plantas da flora paulista, coletadas em um projeto que integra o Biota-FAPESR programa que realiza o levantamento da biodiversidade de São Paulo. Entre as 150 substâncias já isoladas estão a spectalina e seus derivados que, em experimentos de laboratório e em testes com ratos, apresentaram ações bastante específicas. No sistema nervoso, dois derivados de spectalina impedem a eliminação da acetilcolina e, como conseqüência, melhoram a capacidade de reter informação sem interagir com outras substâncias do sistema nervoso central - mecanismo semelhante ao de outro composto natural, a galantamina, isolada da Galanthus nirvalis, uma planta de até 1 metro de altura e flores brancas, hoje usada no tratamento do Alzheimer. Já no restante do organismo, as moléculas da Senna spectabilis funcionam como um potente analgésico. "O mais interessante é que, além de melhorar a memória, os derivados da spectalina não são tóxicos como a tacrina, o medicamento mais utilizado no tratamento do Alzheimer", afirma Vanderlan. Recentemente, a equipe da Unesp obteve o registro provisório de patente no Brasil do uso de todos os derivados de spectalina. Em conjunto com duas equipes da UFRJ, a de Eliezer Barreiros e a de Newton de Castro, Vanderlan trabalha agora no desenvolvimento de um medicamento à base dos derivados de spectalina que possa ser testado em seres humanos. •


Cirurgia

sem sangue

Raios gama ajudam a tratar transtornos obsessivo-compulsivos FRANCISCO BICUDO

J^ cirurgia durou cerca de 12 hog^L ras. Os preparativos para a £^^k cirurgia começaram logo i ^L pela manhã, quando os ■JL JL. últimos exames de ressonância magnética determinaram a área exata do cérebro a ser atingida. Com o mapa em mãos, os médicos levaram o paciente à sala de operações: era um portador de um sério problema psiquiátrico, o transtorno obsessivo-compulsivo, mais conhecido como TOC, que não era controlado de nenhuma outra forma. O paciente deitou-se na maça de uma câmara de cobalto radioativo, parecida com um aparelho de ressonância magnética, e foi sedado. Já estava dormindo quando lhe colocaram uma redoma de metal que lembra um capacete, com 201 furos milimétricos. Por

esses orifícios é que passaram os raios gama vindos do aparelho, em direção a um único ponto do cérebro. A radiação, em intensidades variáveis, eliminou um grupo específico de neurônios envolvidos no problema. O paciente voltou para casa no dia seguinte, sem ter sofrido nenhum corte. Desde dezembro, quando cinco cirurgias desse tipo foram feitas pela primeira vez no Brasil em pessoas cujos nomes são mantidos em sigilo, uma mistura de sentimentos - cautela, ansiedade e satisfação - acompanha a equipe de Eurípedes Constantino Miguel no Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Embora as cinco operações tenham sido seguidas por especialistas da Universidade de Brown, nos

Estados Unidos, onde pelo menos 50 pessoas já passaram por esse mesmo procedimento, persiste a dúvida: será que vai dar certo? Até agora, de acordo com os primeiros exames, todos os pacientes operados passam bem. Mas os resultados definitivos só serão conhecidos no final do ano, uma vez que os efeitos da radiação só se tornam mais marcantes a partir do terceiro mês após a operação. Se tudo correr bem nesses estudos experimentais, o grupo da USP poderá anunciar uma alternativa de tratamento para os portadores das manifestações mais graves do transtorno obsessivo-compulsivo, que afeta cerca de 2% da população mundial - no Brasil, são pouco mais de 3 milhões de pessoas com esse problema. Os pacientes operados pertencem ao grupo de cerca PESQUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 53


de 10% dos casos diagnosticados que, por alguma razão desconhecida, haviam passado por pelo menos cinco anos de tratamento sem nenhum resultado positivo. O cotidiano dos portadores de TOC é um sofrimento contínuo. Perseguidos por pensamentos irrefreáveis, são capazes de dar voltas no quarteirão durante horas, com medo de terem atropelado alguém sem perceber. Por vezes, sentem necessidade de lavar as mãos centenas de vezes, até elas sangrarem, pois acham que estão sempre sujas. Têm mania de arrumação e não podem ver objetos desalinhados ou fora do lugar. Colecionam pilhas de papel sem valor. No auge do desespero e do descontrole, chegam a pensar em suicídio. "As obsessões, que são os pensamentos estranhos e as imagens absurdas que se manifestam constantemente, causam intenso tormento e levam às práticas repetitivas", diz Antônio Carlos Lopes, um dos médicos da equipe da USP Segundo ele, os portadores de TOC têm consciência dos exageros, mas não conseguem se livrar deles. Por essa razão, normalmente param de estudar, deixam de ter vida social e vivem brigando com os familiares, que nem sempre compreendem a necessidade de seus rituais. Com as outras possibilidades de tratamento esgotadas, a alternativa ainda experimental para os casos mais resistentes é um tipo de neurocirurgia conhecida como capsulotomia anterior estereotáxica por Gamma-knife: pequenas doses de radiação gama, por si só incapazes de danificar as células do sistema nervoso, convergem para um ponto, que, de acordo com os exames, tem um padrão de funcionamento anormal. Aí sim, ao se cruzarem, esses raios se tornam letais. Colocado em prática para casos de TOC há quase dez anos na Universidade de Brown, esse tipo de radiocirur54 ■ ABRIL DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 98

ê ê ê UMÍKM'*

gia tem sido utilizada no combate a tumores, com quase 200 mil casos já tratados, e como alternativa para tratar epilepsia e doença de Parkinson resistentes às terapias convencionais. Confiantes nos resultados, os pesquisadores da USP começam a pensar na próxima etapa: um estudo em larga escala, com pelo menos 48 portadores de TOC divididos em dois grupos - um seria submetido à neurocirurgia e outro, a uma falsa operação, com todos os procedimentos, mas sem a liberação dos raios gama. As conclusões definitivas sobre a eficiência dessa abordagem só poderão ser conhecidas em cinco anos. Acredita-se que os transtornos obsessivo-compulsivos resultem do funcionamento anormal de circuitos que conectam estruturas localizadas próximas à base do cérebro (os núcleos da base) ao córtex, a camada mais externa. Outra possível causa são falhas na comunicação entre os neurônios feita por meio da serotonina, um dos neurotransmissores existentes no sistema nervoso. Quando se constata a ineficácia das duas abordagens convencionais - à base de medicamentos antidepressivos, que aumentam a quantidade de se-

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rotonina nas conexões nervosas, ou de terapia comportamental -, outra técnica cirúrgica adotada com freqüência é a chamada cingulotomia anterior: por uma abertura no crânio, coloca-se um eletrodo com o formato de um fio, que, por meio de ondas de rádio, queima os neurônios de um trecho específico do cérebro integrante do circuito envolvido no TOC, como giro do cíngulo. Já a técnica de Gamma-knife atua sobre áreas profundas do cérebro. Os raios gama eliminam as células de uma estrutura chamada cápsula interna, formada por fibras nervosas que atravessam os núcleos da base e ligam o tá0 PROJETO Patogênese e Tratamento do Transtorno Obsessivo-Compulsivo MODALIDADE

Projeto Temático

COORDENADOR EURIPEOES CONSTANTINO MlGUEL FILHO

- Universidade de São Paulo

INVESTIMENTO

R$ 677.449,05


lamo (responsável por interpretar as sensações de tato, dor e temperatura) ao córtex frontal. A intenção é a mesma - destruir neurônios que antes funcionavam em excesso -, com a vantagem de que o crânio não precisa ser aberto e os efeitos colaterais são menores. "Nos pacientes operados, não observamos hemorragias, infecções nem convulsões, que podem ocorrer em outras neurocirurgias", relata Miguel Canteras, o neurocirurgião do projeto. O efeito mais temido é o inchaço do cérebro, controlado com antiinflamatórios. Canteras preocupa-se em desfazer qualquer associação desses dois procedimentos com a lobotomia, a primeira técnica cirúrgica empregada para tratar problemas mentais. Criada na década de 30 do século passado, foi empregada amplamente em indivíduos com esquizofrenia ou mesmo com ansiedade ou agressividade exacerbada. A lobotomia consiste na lesão de áreas extensas que ligam os lobos frontais ao restante do sistema nervoso, com impactos graves: era quase impossível evitar alterações de personalidade e distúrbios cognitivos. "Não havia noção das conseqüências das lesões provocadas pela loboto-

mia", diz ele. "Hoje estamos em outro estágio e as neurocirurgias são feitas de acordo com as normas clínicas e éticas." Origens - Além de buscar opções de tratamento, a equipe da USP tem estudado a própria origem do TOC. Um dos principais trabalhos desse grupo confirmou a relação, até então apenas suspeitada, entre os sintomas obsessivo-compulsivos e a febre reumática, doença auto-imune provocada por anticorpos produzidos pelo próprio organismo para combater bactérias. A febre reumática causa dor de garganta, vermelhidão da pele e, em estágio mais avançado, pode atingir o sistema nervoso central - é quando está associada a outro problema neurológico, a coréia de Sydenham, com movimentos involuntários de braços e pernas, associado ao mau funcionamento dos núcleos da base. Os pesquisadores avaliaram 22 crianças que apresentavam febre reumática e coréia e outras 20 apenas com febre reumática. Depois, compararam os dados com os de 20 integrantes do grupo controle, crianças sem doenças auto-imunes. No primeiro grupo, quase metade das crianças sofria de TOC

ou apresentava sintomas obsessivocompulsivos, mas ainda não intensos o bastante para caracterizar o quadro típico de TOC. No grupo com febre reumática, também foi elevada (35%) a taxa de portadores de TOC ou traços obsessivo-compulsivos, enquanto não houve casos dessa doença psiquiátrica entre as crianças sem doença auto-imune. "A febre reumática, associada ou não à coréia de Sydenham, é um fator de risco para o TOC", diz Marcos Mercadante, outro pesquisador do grupo. Sua colega Ana Hounie constatou que, em famílias de crianças com febre reumática (com ou sem coréia), a probabilidade de encontrar um parente de primeiro grau também com obsessões e compulsões era três vezes maior do que no grupo de controle, formado por familiares de crianças sem febre reumática. "O trabalho sugere que a febre reumática pode estar geneticamente ligada ao TOC", afirma Ana, cujos resultados devem sair em breve no Journal of Clinicai Psychiatry. Em outra linha de trabalho, a equipe de Euripedes primeiro desconfiou, e depois confirmou, que o TOC não é uma doença única, mas um grupo de enfermidades semelhantes, que diferem na intensidade e no tipo de sinal apresentado. Os pesquisadores da USP acompanharam 42 pacientes com TOC, divididos em dois grupos, de acordo com a idade de início dos sintomas. Nos pacientes chamados precoces (início da doença até os 10 anos), a intensidade e a gravidade dos problemas eram bem maiores do que no chamado grupo de início tardio, a partir dos 17 anos. "Nos mais jovens, manias como o colecionismo e as repetições eram mais intensas, os tiques eram constantes e a resposta ao tratamento com medicamentos, menor", explica Maria Conceição Rosário Campos. Os resultados reforçam a hipótese de que não existe um único tipo de TOC, mas subgrupos específicos, com características e manifestações diversas. ■ PESQUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 55


1 CIÊNCIA MEDICINA

Alternativa

em gestação

Primeiras cirurgias de correção de coluna em bebês ainda no útero mostram resultados promissores

A ntes de agosto de 2003, Rag^L quel, Nicole, Verônica, GaL^L briel, Lucas, Vitória e GaÈ ^ briela seriam crianças com ^L. JL. grande risco de apresentar retardo mental e paralisia total ou parcial das pernas. Esses problemas resultam de uma malformação que pode ser identificada pelos médicos durante a gravidez, a mielomeningocele, que impede o desenvolvimento completo da coluna e deixa a medula espinhal do feto exposta. Em uma cirurgia de uma hora e meia, o obstetra faz um corte como o de uma cesárea no ventre e outro de 9 centímetros no útero materno. Em seguida, por meio dessa abertura, outro médico, um neurocirurgião, corrige o defeito na coluna do bebê, que continua na barriga da mãe até o nascimento. O Brasil é o segundo país, além dos Estados Unidos, a fazer esse tipo de operação, chamada de cirurgia fetal a céu aberto. Feito pela primeira vez no país no ano retrasado, o procedimento é experimental: nem os médicos brasileiros nem os norte-americanos têm certeza de que seus benefícios sejam maiores que os riscos. Duas equipes distintas, uma da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e outra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), já realizaram oito cirurgias a céu aberto: seis bebês nasceram e estão bem e um deve nascer ainda este mês. O outro, o primeiro que passou por esse tipo de cirurgia no Brasil, em 2002, morreu. Mesmo que o sucesso não tenha sido total, os resultados obtidos até agora podem ser considerados promissores. As complicações existem, mas 56 ■ ABRIL DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP'

são muito mais amenas do que se os bebês só tivessem passado pela cirurgia para corrigir o defeito na coluna após o nascimento, a única alternativa de tratamento possível até nove meses atrás. Além dessa correção da coluna, feita no dia do parto, a maior parte dessas crianças provavelmente necessitaria de outra cirurgia, três dias depois, para implantar uma válvula permanente no cérebro, destinada a eliminar o acúmulo no crânio do líquido que banha o sistema nervoso central, a chamada hidrocefalia, a principal conseqüência da mielomeningocele, uma doença comum que afeta uma em cada mil crianças - o equivalente a 300 bebês por ano apenas no município de São Paulo. Passos firmes - No hospital da Unifesp, a equipe do obstetra Antônio Fernandes Moron operou seis bebês, dos quais cinco já nasceram. Quatro deles movimentam bem as pernas e estão livres da hidrocefalia, que prejudica o desenvolvimento do sistema nervoso e pode provocar retardo mental. O quinto bebê apresenta um nível moderado de hidrocefalia e recebeu o implante de uma válvula, segundo o neurocirurgião infantil Sérgio Cavalheiro. Por si só, esses resultados são um indício de viabilidade da nova técnica, pois de 85% a 90% dos bebês que nascem com a coluna aberta têm hidrocefalia e precisam do implante de um dreno no cérebro para restabelecer a circulação normal desse líquido, conhecido como líquor ou líquido cefalorraquidiano. A colocação desse dreno não é inofensiva: reduz em 20% a capacidade mental da criança, segundo estudos de Joseph Bruner, da Universidade Vanderbilt, nos Esta-

dos Unidos, coordenador de uma das três equipes norte-americanas capacitadas para tratar bebês dentro do útero. Por fechar mais cedo a abertura na coluna, a cirurgia a céu aberto diminui a exposição da medula espinhal e dos nervos ligados à mobilidade das pernas ao líquido que envolve o bebê no útero - o líquido amniótico, que, por razões desconhecidas, pode danificar a medula e os nervos. Assim, é possível reduzir o risco de paralisia desses membros. É por essa razão que Raquel, o primeiro bebê brasileiro nascido após uma cirurgia a céu aberto, talvez consiga andar sem precisar de aparelhos. Se passasse pela cirurgia só após o nascimento, teria uma chance de 45% de conseguir se locomover com cadeira de rodas e de apenas 7% de andar sem a ajuda de um andador ou de muletas. "Se o benefício não é total, ao menos as complicações foram amenizadas", afirma Moron, que, com o médico Carlos Almodin, da equipe da Unifesp, desenvolveu uma versão brasileira e reutilizável do trocáter, equipamento usado para fazer a abertura no útero, atualmente importado a um custo de até US$ 500. No dia Io de março, Lucas nasceu em Campinas, quatro meses depois de ser operado pela equipe do obstetra Ricardo Barini, da Unicamp. A primeira cirurgia feita pelo grupo, em dezembro de 2002, não foi bem-sucedida: a placenta descolou e o feto morreu logo após o parto. No caso de Lucas, a cirurgia reduziu o dano causado pela mielomeningocele e impediu o avanço da hidrocefalia. Ele nasceu na 35a semana da gravidez, com quase nove meses, enquanto a maioria das crianças com esse defeito congênito nasce ainda mais pre-


matura, com cerca de 32 semanas - o risco de parto prematuro é uma das razões que levam os médicos a hesitar em fazer a cirurgia a céu aberto. "Se a lesão inicial não fosse corrigida, Lucas certamente nunca movimentaria as pernas", diz Lourenço Sbragia Neto, coordenador cirúrgico da equipe. "Agora, temos esperança até de que ele possa andar." Embora persigam o mesmo objetivo, as duas equipes adotam critérios distintos para selecionar os bebês que cumprem os requisitos necessários para a operação. O grupo da Unicamp segue as normas estabelecidas pelos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos, que só recomendam a cirurgia a céu aberto para mielomeningocele quando a mãe é saudável e se encontra entre a 19a e 25a semana de gestação (final do quarto e o início do sexto mês). No caso do bebê, a lesão da coluna deve localizar-se entre a primeira vértebra torácica, na altura dos ombros, e a primeira sacral, próxima à cintura. "A melhora da hidrocefalia é pequena após as 25 semanas", diz Sbragia. "Depois desse período, é melhor esperar o bebê nascer para operar", acrescenta o pesquisador, que dirige o laboratório de cirurgia experimental fetal da Unicamp - ali, um dos estudos em andamento trata do efeito inflamatório do líquido amniótico sobre a medula espinhal de fetos de ratas. Em um estudo feito com 104 crianças submetidas à cirurgia fetal a

Um dos recém-nascidos já operados: perspectiva de uma vida quase normal

céu aberto e outras 189 tratadas da maneira convencional, médicos norte-americanos da Universidade Vanderbilt e do Hospital Infantil da Filadélfia constataram que a incidência da hidrocefalia é similar entre os bebês operados no útero depois de 25 semanas de gravidez e os submetidos à cirurgia para corrigir a coluna após o nascimento. Outra conclusão: 75% dos fetos operados na barriga da mãe depois da 25a semana necessitaram do implante da válvula no cérebro depois do nascimento, enquanto só metade dos operados antes da 25a semana de gravidez precisou passar pela segunda cirur0 PROJETO Avaliação Morfológica, Histológica e Bioquímica de Fetos de Ratas Spreague-Dowley, Submetidos a Gastrosquise Experimental Intra-útero, em Diferentes Idades Gestacionais MODALIDADE

Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa COORDENADOR LOURENçO SBRAGIA NETO INVESTIMENTO

R$ 226.889,18

- Unicamp

gia. Esse número sobe para 85% entre os bebês que só são operados depois do nascimento. Já os médicos da Unifesp realizam a cirurgia do feto no útero materno até a 27a semana de gestação (final do sexto mês). Em avaliação - Nos Estados Unidos, os Institutos Nacionais de Saúde estão financiando um estudo de porte, com um orçamento de US$ 25 milhões, destinado a desfazer as dúvidas sobre qual tipo de cirurgia - a céu aberto ou após o nascimento - é mais eficaz para corrigir a mielomeningocele. O projeto Management of Myelomeningocele Study (Moms) deve avaliar até agosto de 2008 os resultados apresentados por cem crianças que passaram pela correção da coluna no útero e outras cem operadas após o parto. Enquanto não saem os resultados do Moms, melhor do que tentar minimizar os danos provocados pela mielomeningocele é prevenir seu aparecimento, associado a defeitos genéticos e à dieta pobre em ácido fólico, encontrado em verduras e em carnes vermelhas. Por essa razão, os médicos aconselham às mulheres que desejam ter filhos que, dois meses antes de engravidar, tomem doses suplementares de ácido fólico, numa terapia preventiva que deve durar até o final do primeiro trimestre da gestação. O consumo extra de ácido fólico evita a recorrência da mielomeningocele em até 72% dos casos de famílias que já tiveram um bebê com o problema. • PESQUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 57


i CIÊNCIA ASTROFÍSICA

Em boa companhia 0 telescópio Soar começa a funcionar e põe o país lado a lado com os maiores centros de observação do mundo CARLOS FIORAVANTI

A lexandre Soares de Oliveira /% mudou-se com a mulher e o L^k filho de 3 anos para o Chile È % há duas semanas. Junto com *Á_m_ seu colega Eduardo Cypriano, também casado, mas sem filhos, que embarcou para lá em janeiro, Oliveira vai formar a equipe brasileira de apoio do Soar, um telescópio financiado por instituições brasileiras e norte-americanas que começa a funcionar este mês. Ainda em fase experimental, está instalado no alto de uma montanha dos Andes chilenos, a 2.701 metros de altitude, no começo do deserto do Atacama, e tomou dez anos de projeto e construção. Os dois jovens físicos - Oliveira tem 34 anos e Cypriano, 30 - sabem que estão mergulhando em um projeto histórico, que representa um notável salto de qualidade para a pesquisa astrofísica brasileira. Em dois ou três meses, quando estiver em operação, o Soar - sigla de Southern Observatory for Astrophysical Research ou Observatório do Sul para Pesquisa Astrofísica - deverá fornecer imagens muito mais precisas e abundantes que as obtidas até agora pelos equipamentos em uso no país para estudar o Universo. Provido de um espelho principal de 4,2 metros de diâmetro, o Soar será 1.600 vezes mais potente que o maior dos telescópios brasileiros, com um espelho de 1,6 metro de diâmetro, em operação desde fevereiro de 1981 no Observatório do Pico dos Dias, no município de Brasópolis, Minas Gerais, a 1.860 metros de altitude. Além de eliminar a defasagem da instrumentação básica da pesquisa dessa área 58 ■ ABRIL DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 98

no Brasil, que já durava dez anos, o Soar põe o país literalmente ao lado dos maiores centros de observação astronômica do mundo. Distante 400 metros, na mesma montanha, o Cerro Pachon, encontra-se uma das unidades do Observatório Gemini, com um dos mais potentes telescópios do mundo, que começou a operar há quase três anos como resultado de acordo entre sete países, incluindo o Brasil, com uma participação modesta, que dá direito a no máximo 17 noites de observação por ano. Dessa montanha de solo pedregoso e sem nenhuma vegetação, ao menos alguns dias por ano coberto de neve, pode-se ver também, a cerca de 15 quilômetros a noroeste, o Observatório Inter-Americano Cerro Tololo (CTIO), administrado pelos Estados Unidos, dotado de quase uma dezena de telescópios - o maior deles do mesmo porte que o do Soar, mas com recursos tecnológicos de 40 anos atrás. O telescópio que será inaugurado no dia 17 deste mês, em uma cerimônia com cerca de cem convidados, iguala-se também, em muitos aspectos, aos telescópios espaciais: seu espelho é quase duas vezes


Nos Andes, a 2.701 metros: entre os maiores centros de observação do Universo

maior que o do Hubble e a imagem, de qualidade equivalente. Devido a um conjunto de espelhos complementares, o Soar deverá eliminar as distorções da luz causadas pela atmosfera terrestre, das quais o Hubble consegue escapar por estar no espaço, em órbita a 500 quilômetros da Terra - uma vantagem obtida a um custo próximo a US$ 2 bilhões. O Soar, evidentemente, custou bem menos: US$ 28 milhões. O Brasil contribuiu com US$ 12 milhões, divididos entre o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que destinou US$ 10 milhões ao projeto, e a FAPESP, que participou com US$ 2 milhões. Em conseqüência da participação nos custos, os pesquisadores brasileiros terão direito a 34% do tempo de uso, o equivalente a 127 noites por ano de observação em um céu quase sempre claro, seco e limpo outra vantagem sobre os três telescó-

pios do Pico dos Dias, sujeito a chuvas freqüentes no verão. Os outros três parceiros são norte-americanos: a National Optical Astronomy Observatories (Noao), a mesma instituição responsável pelo observatório vizinho, em Cerro Tololo, que terá 33% do tempo de uso do Soar; a Universidade da Carolina do Norte (UCN), com 16% do tempo; e a Universidade Estadual de Michigan (MSU), com 14%. Cada participante doará 10% de seu tempo para os astrônomos do Chile, em troca da cessão do território, como é comum em quase uma dezena de telescópios estrangeiros construídos nos Andes. Instrumentos complementares - "Com o início da operação do Soar e o acesso ao Gemini, a comunidade científica brasileira contará com um leque de instrumentos que permitirão a integração e a complementação dos projetos de pesquisa", diz Albert Bruch, diretor do Laboratório Nacional de Astrofísica (LNA), a instituição responsável pela administração dos três telescópios de

Brasópolis que gerencia também a participação brasileira no Gemini e no Soar. O Observatório do Pico dos Dias, que ajudou a criar a base da astrofísica brasileira, não será esquecido, assegura ele: "Vamos precisar de todos os telescópios para satisfazer as necessidades da pesquisa astronômica no Brasil". Construído para atender as necessidades dos cerca de 200 grupos brasileiros de pesquisa em astrofísica, distribuídos por universidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Santa Catarina, Bahia, Rio Grande do Norte, Espírito Santo e Paraná, o Soar, que Bruch define como "um salto quântico para a pesquisa brasileira", vai investigar o céu na faixa de luz visível ao começo do infravermelho, em comprimentos de onda de 6 mil a 22 mil angstrons (1 angstrom corresponde a 1 bilionésimo do metro). E deverá ser bastante útil, em primeiro lugar, no estudo da origem de estrelas, galáxias e do próprio Universo. Deverá ser usado também na pesquisa sobre buracos negros PESQUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 59


corpos celestes que se comportam como arquétipos de monstros famintos, capazes de devorar tudo o que encontram, até mesmo a luz. Investigados intensamente por equipes gaúchas, paulistas e catarinenses, parecem ser mais numerosos do que se pensava e capazes até mesmo de influenciar o destino das galáxias (ver Pesquisa FAPESP n° 96, de fevereiro de 2004). Outro provável tema de trabalho são as lentes gravitacionais, como são chamadas as galáxias que desviam a luz emitida por outras galáxias ainda mais distantes. Só depois de se conhecer o efeito das lentes gravitacionais é que se pode determinar com precisão a origem das distorções da luz que chega à Terra. novo telescópio será especialmente útil em pesquisas que exijam observações contínuas ou de uma ampla área do céu e em projetos de fôlego, a Empreitada nos Andes: anel com 20 metros. exemplo dos levantamentos de estrelas ou de galáxias de uma região, independentemente do tipo a alvos para observações mais detalhaque pertencem. O Gemini, constituídas, em telescópios maiores, cuja noite do por dois telescópios mais potentes, de observação é concorrida e cara, como com espelhos de 8,1 metros - um no no VLT (Very Large Telescope, no ChiChile e outro no Havaí, a 4.220 metros le) ou no Gemini", comenta Silvia. de altitude -, vai complementar as pesquisas, mas dificilmente permitiOrgulho e estresse - "Entramos na rá observações repetitivas ou abranprimeira divisão da pesquisa mundial. gentes, porque seu tempo é dividido Até agora tínhamos excelentes jogadopor equipes dos sete países que finanres, mas permanecíamos na segunciaram a construção - Estados Unidos, da divisão", comemora o astrofísico Reino Unido, Canadá, Chile, AustráJoão Evangelista Steiner, pesquisador lia, Argentina e Brasil. da Universidade de São Paulo (USP) e É comum, hoje, uma mesma pespresidente do Consórcio e do Consequisa exigir o uso de mais de um teleslho Diretor do Soar. A palavra é exacópio. Só foi possível descobrir a estrela tamente essa - comemorar -, porque de mais baixa quantidade de elemenSteiner participou do projeto do telestos químicos com massa maior que a cópio, em 1993, "desde as primeiras do hidrogênio ou hélio - a mais antiidéias", como ele próprio diz. Pouco ga já encontrada, com 12 a 15 bilhões mais de uma década mais tarde, aos de anos - porque uma equipe multi54 anos, depois de ajudar a vencer as nacional de pesquisadores, incluindo a dificuldades de logística, de projeto e brasileira Silvia Rossi, espalhou-se por de contratação de empresas e equipaquatro telescópios, nos Estados Unidos, mentos, ele agora não disfarça a satisno Chile e na Austrália (ver Pesquisa fação e o orgulho de ver o projeto fiFAPESP n° 83, de janeiro de 2003). "As nalmente concluído. "Construir um observações feitas em telescópios com telescópio como esse", diz ele, "é expeespelhos de 2,2 ou 4 metros selecionam riência única na vida." Mas, claro, teve 60 ■ ABRIL DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 98

um preço. Em março de 1999, quando as obras do Soar ainda estavam no meio, o que ele chama de "uma quantidade indescritível de problemas" corroeu sua habitual paciência e o levou ao hospital, vítima de severo estresse. Em 1993, ainda com a saúde em dia, Steiner era o representante brasileiro do projeto Gemini numa reunião realizada em Tucson, Arizona, Estados Unidos. Num dos intervalos, ele apresentou à astrofísica Sidney Wolff, que estava ali em nome do Noao, a idéia de construir outro telescópio para não deixar a pesquisa brasileira ficar para trás. "O Observatório do Pico dos Dias era a base e o Gemini, o topo, mas faltava o corpo, que atendesse às demandas futuras da pesquisa no Brasil", conta Steiner. "Não seria possível sustentar os programas de pós-graduação no Brasil a longo prazo apenas com esses telescópios." Sidney gostou da idéia. Ela já havia feito um projeto semelhante com uma universidade norte-americana, mas não haviam avançado. De volta ao Brasil, Steiner levantou argumentos para convencer as agências de financiamento da importância desse novo telescópio para a pesquisa brasileira. "Não encampamos projetos preexistentes, mas definimos um a partir das necessidades dos grupos de pesquisa do Brasil e os parceiros norte-americanos aceitaram, porque também atendia ao que eles queriam", diz ele. "Não abrimos mão de nada no desenho do projeto." Aprovados o anteprojeto e os pedidos de financiamento, começou a construção, no final de 1997. A primeira tarefa era preparar o terreno - algo não muito simples por se tratar do topo de uma montanha, distante 80 quilômetros de La Serena, a cidade mais próxima, à beira do oceano Pacífico, com aeroporto próprio e escalas diárias para Santiago, a capital. Ao longo de um ano, os tratores cortaram a ponta do cone, removeram 13 mil metros cúbicos de pedra e criaram uma área plana de 3.600 metros quadrados. Ali tomou forma o


prédio com o telescópio e as salas de controle, dotado de paredes de aço - aço brasileiro, por sinal - para evitar a interferência de fontes de calor na luz que vem das estrelas e, ao mesmo tempo, resistir à variação de temperatura, que por lá oscila de 25 °C negativos a 30 °C positivos, e mesmo a terremotos. Sobre a estrutura metálica assentou-se um anel de 20 metros de diâmetro e 50 toneladas, fabricado pela Santin, de Piracicaba, interior paulista, usinado na Metalúrgica Atlas, na capital, e transportado para o alto do Cerro Pachon em partes, de uma só vez, em quatro carretas. Foi sobre esse anel que os guindastes, cuidadosamente, depositaram a cúpula - ou domo -, uma semiesfera com 14 metros de altura, cuja produção foi coordenada pela Equatorial, de São José dos Campos. Na última quinta-feira de fevereiro, dois dias depois do Carnaval, foi colocado sobre outra estrutura metálica, debaixo da cúpula, o espelho principal, com 4,2 metros de diâmetro e apenas 10 centímetros de espessura, fabricado e polido nos Estados Unidos. É uma peça fascinante. Em forma de uma gigantesca lente de contato, é quase perfeitamente liso: a rugosidade é tão insignificante que, se fosse esticado a ponto de ficar com uma área equivalente à do Brasil inteiro, a maior elevação não teria mais de 2 centímetros. O espelho principal do Soar é tão fino para evitar que as dilatações e contrações do vidro possam interferir na luz que chega das estrelas, um problema comum em outros espelhos de telescópio, alguns com até meio metro de espessura. Por ser tão fino, é flexível, outra característica igualmente indesejável, mas contornada por meio de 220 apoios - ou atuadores - sobre os quais descansa a delicada peça de vidro. Os apoios procuram assegurar, com uma precisão admirável, a forma ideal do espelho: o máximo que cada um desses pontos pode se mover eqüivale a cem milionésimos da espessura de um fio de cabelo.

tar no espaço. A partir do próximo ano, o Soar deverá contar também com um aparelho que decompõe e analisa a luz - um espectrógrafo -, que está sendo construído por uma equipe da USP e do LNA, no âmbito de um projeto temático coordenado por Beatriz Barbuy e apoiado pela FAPESP, com um financiamento de cerca de US$ 1 milhão. De acordo com o projeto, realizado sob a responsabilidade técnica de Jacques Lepine, diretor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, a versão final desse espectrógrafo - cujo protótipo está em operação, desde o ano passado, no Pico dos Dias - terá cerca de 1.300 pontos de captação, constituídos por fibras ópticas, que a cada instante vão mostrar as variações de cada freqüência de luz de galáxias, aglomerados de galáxias e nebulosas, entre outros objetos astronômicos.

.de diâmetro e domo com 14 metros de altura

Esse espelho vai funcionar em conjunto com outros dois, que podem ser ajustados, em busca de uma melhor qualidade de imagem, de acordo com um mecanismo conhecido como óptica ativa. Há ainda mais dois espelhos complementares, capazes de corrigir a luz estelar das distorções geradas pela atmosfera terrestre. Por meio desse segundo jogo de espelhos - a chamada óptica adaptativa, já adotada em outros telescópios, como o Gemini - pretende-se chegar à mesma qualidade de imagem do Hubble, que escapa da interferência da atmosfera pela simples razão de es0 PROJETO Telescópio Soar MODALIDADE Projeto Especial COORDENADOR JOãO STEINER-IAG/USP

INVESTIMENTO US$10 milhões (CNPq) e US$2 milhões (FAPESP)

0 imprevisível à vista - As primeiras imagens do Soar servirão apenas para ajustes dos equipamentos, dos espelhos e dos programas de computador - o chamado comissionamento, no qual os dois brasileiros que já estão lá deverão trabalhar, além de dar apoio às equipes que chegarem e, quando possível, cuidar de suas próprias pesquisas. Só em dois ou três meses é que o observatório começará a atender diretamente os projetos de pesquisa, de acordo com uma programação a ser definida pelo LNA, a partir das solicitações dos físicos. Por ano, Segundo Bruch, o Soar deverá abrigar cerca de 50 projetos, a metade do volume de trabalho no Pico dos Dias, enquanto o Gemini atende cerca de 15 projetos de pesquisadores brasileiros. Para Steiner, o Soar representa a perspectiva de ampliar, sobretudo em qualidade, a produção científica brasileira, hoje responsável por 2% da pesquisa astrofísica mundial, o equivalente a 250 artigos. Mas há algo ainda mais atraente: a perspectiva de descobrir o que nem sequer foi imaginado. "Estamos diante do imprevisível", diz ele, "sem a menor idéia do pode surgir, e geralmente surge, quando um telescópio com novas tecnologias começa a funcionar." • PESQUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 61


USP

ru

Terra produtiva Na série de reportagens sobre os 70 anos da Universidade de São Paulo, Pesquisa FAPESP mostra a trajetória da centenária Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, a Esalq, que mudou hábitos alimentares dos brasileiros e hoje lidera pesquisas em biotecnologia

FABRíCIO MARQUES

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São européias as raízes da centenária Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), unidade da Universidade de São Paulo (USP) que se tornou a principal referência em ensino de Ciências Agrárias no país. O conceito acadêmico, com prédios de arquitetura refinada entremeados por campos experimentais, foi inspirado nas escolas agrícolas de Grignon, na França, e de Zurique, na Suíça, freqüentadas na segunda metade do século 19 por Luiz de Queiroz (1849-1898), riquíssimo herdeiro paulista. De volta ao Brasil formado em Agronomia, ele decidiu fundar uma escola seguindo os moldes europeus. Comprou uma fazenda para erguê-la, nos arredores do município de Constituição, hoje Piracicaba, e pediu ajuda ao governo republicano para construir os prédios. A subvenção, porém, foi negada. Para não deixar a idéia morrer, Luiz de Queiroz decidiu doar a fazenda ao governo com a condição de que a escola, pública, surgisse ali. Ela seria fundada como escola prática de nível médio, em 1901, já depois da morte do idealizador, mas respeitou o sonho europeu. Em 1907, a fazenda transformou-se em parque, raro exemplo do estilo inglês de paisagismo no Brasil. Os grandes gramados, alamedas de linhas curvas e maciços de árvores em pontos estratégicos são hoje uma jóia do ambiente urbano de Piracicaba. É assinado pelo belga Arsênio Puttemans, também criador dos jardins do Museu do Ipiranga, em São Paulo. Transformada em escola superior e integrada à estrutura da USP quando a instituição foi fundada há 70 anos, a Esalq seguiu bebendo da fonte européia. Seu patriarca acadêmico é o geneticista Friedrich Gustav Brieger, judeu alemão que migrou para o Brasil na leva de pesquisadores estrangeiros que fundaram a USP. Pois foi nesse cenário de país temperado que se consolidou um panteão científico da agricultura tropical. Sobretudo nos primeiros 60 anos de atividade, a Esalq liderou pesquisas que mudaram os hábitos alimentares dos brasileiros. Muitas hortaliças, por serem de variedades européias, produziam bem no inverno, mas eram escassas e caras no verão. O brasileiro passou a comer salada o ano inteiro graças a pesquisas de melhoramento genético de alface, repolho, brócolis, couve-flor, cebola e berinjela feitas na Esalq. A instituição teve papel-chave no desenvolvimento de variedades de milho mais nutritivas e ricas em aminoácidos. E também na pesquisa de propriedades do solo e nutrição de plantas que transformou o cerrado brasileiro, antes imprestável para o plantio, em celeiro de 30% da pro-


Ceres, deusa da agricultura, orna a sala da diretoria da Esalq, em pintura de 1916

dução de grãos. Não dá para escapar do clichê: a Esalq muitas vezes foi a salvação da lavoura para os agricultores. Certa vez, no final dos anos 1950, um grupo de produtores do cinturão verde de Mogi das Cruzes, de origem nipônica, levou ao então governador Jânio Quadros um pedido inusitado. Queriam que o governo concedesse o regime de tempo integral - e o respectivo salário maior - ao professor Marcílio de Souza Dias, artífice de pesquisas de melhoramento genético. Figura lendária, Marcílio foi escolhido o Pesquisador do Centenário da Esalq, em 2001. Avesso aos trâmites normais da carreira acadêmica, vivia nos campos, fazendo cruzamentos de plantas e avaliando os resultados. Com produção científica escassa, nem sequer tinha doutoramento. Jânio promoveu o professor. O perfil da escola mudou nas últimas décadas. O ensino, é certo, continua de boa qualidade. Os seis cursos de graduação oferecidos (Agronomia, Engenharia Florestal, Ciências Econômicas, Ciências Biológicas, Ciências dos Alimentos e Gestão Ambiental) são freqüentados por 1.830 alunos. No último Provão, Éverton Yoshiaki Hiraoka, da Esalq, recebeu a nota mais alta entre todos estudantes de Engenharia Agronômica do país. Mas a escola já não é um celeiro isolado de bons profissionais, como chegou a acontecer no passado. Divide o topo da graduação com instituições como a Universidade Federal de Viçosa (UFV) ou as unidades da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Botucatu e Jaboticabal. Aquele tipo de trabalho de campo em que se destacava o professor Marcílio de Souza Dias passou a ser liderado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, a Embrapa (onde, aliás, centenas de ex-alunos da Esalq atuam como pesquisadores). A pesquisa aplicada da Esalq PESQUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 63


O Departamento de Genética conseguiu desenvolver eucaliptos transgênicos, que prometem mais celulose por árvore

tem espaço agora em áreas emergentes como controle biológico de pragas. A escola desenvolveu uma armadilha natural para capturar mariposas conhecidas como bicho-furão, que na fase de lagarta ataca frutas cítricas. A armadilha revela o grau de infestação dos cítricos e aponta a hora adequada de aplicar inseticidas. Esta pesquisa foi desenvolvida por José Roberto Postali Parra, atual diretor da escola, e José Maurício Simões Bento, em colaboração com a UFV e a Universidade da Califórnia, Davis. escola passou a investir fortemente em outra vocação: a pós-graduação, que já conferiu 5.300 títulos de mestrado e doutorado desde 1964, quando foi criada. Seus 16 programas, atualmente freqüentados por 1.117 alunos, foram responsáveis pela formação de 70% dos doutores brasileiros em Ciências Agrárias. No campus de Piracicaba, surgiria nos anos 1960 outra instituição de pesquisa e pós-graduação, o Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena), também vinculado à USP, mas com administração própria. O resultado dessa nova estratégia na Esalq foi a expansão de laboratórios e o investimento em fronteiras do conhecimento que nem sempre geram aplicações imediatas. O exemplo mais eloqüente é o da área de biotecnologia. "No início dos anos 1990, tivemos a sensibilidade de atrair um grupo de jovens doutores que voltavam do exterior e, com eles, avançamos em biotecnologia" diz Raul Machado Neto, 64 ■ ABRIL DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 98

vice-diretor da Esalq e presidente da Comissão de Pesquisa. Apoiados no Núcleo de Apoio à Pesquisa em Biologia Celular e Molecular na Agropecuária, os pesquisadores participaram dos projetos Genoma da Xylella, da cana-de-açúcar, da Xanthomonas, do câncer, do café e do eucalipto, entre outros. Há dez anos, a Esalq foi pioneira na pesquisa de biotecnologia aplicada a animais. Hoje, o Departamento de Zootecnia está integrado a dois grandes projetos de seqüenciamento genético. Um deles é o Genoma Frango, em parceria com a Embrapa Suínos e Aves. O projeto começou há três anos e já identificou diversos genes relacionados ao desenvolvimento muscular do frango. O objetivo é encontrar a raiz genética que leva frangos a acumular mais proteína do que gordura, a fim de melhorar a qualidade da carne. O outro projeto é o Genoma Funcional do Boi, realizado em colaboração com a Unesp de Botucatu, financiado pela FAPESP e a Central Bela Vista Genética Bovina, empresa que comercializa sêmen e embriões bovinos. O projeto está concluindo a fase de seqüenciamento e sairá em busca da identificação de genes relacionados à resistência a parasitas, à eficiência reprodutiva e à qualidade do couro. O único laboratório de biotecnologia animal a participar da rede que seqüenciou o genoma da Xylella fastidiosa, a praga do amarelinho nos laranjais, foi a Zootecnia da Esalq. "A oportunidade de participar do projeto em parceria com outras instituições nos ajudou a criar competência na área genômica, que agora compartilhamos com outras instituições", diz Luiz Leh-


O vitral no prédio principal virou logomarca da Esalq e pôsteres com a imagem espalham-se pela instituição

mann Coutinho, professor-associado da Esalq e responsável pelo laboratório, referindo-se a professores, pesquisadores e estudantes de pós-graduação de várias instituições que passam pela Esalq. Lehmann é um dos pesquisadores que chegaram à escola no início dos anos 1990, depois de fazer mestrado e doutorado em Zootecnia na Universidade de Michigan e pós-doutoramento em genética molecular. Nem só de pesquisa básica vive o laboratório. São oferecidos a produtores diversos testes genéticos antes disponíveis apenas no exterior. Suinocultores enviam à Esalq amostras de pêlo ou sangue de seus animais, para pesquisar a incidência de um gene relacionado à má qualidade da carne e outro ligado à capacidade de gerar mais filhotes em cada gestação. O resultado dos testes determina a escolha dos porcos para reprodução. O laboratório também faz exames de DNA em bois. Para quê? Para garantir que um boi é mesmo o filho de animais reconhecidamente superiores, pois isso tem alto valor comercial. O erro no diagnóstico de paternidade chega a 30% nas fazendas de corte. utro projeto de destaque é o desenvolvimento de eucaliptos modificados geneticamente. Uma equipe do Departamento de Genética da Esalq conseguiu introduzir no eucalipto, matéria-prima da celulose, um gene de ervilha ligado à fotossíntese. O objetivo é melhorar a captação de luz solar, aumentar a biomassa da árvore e produzir mais celulose. A Companhia Suzano de Papel e Celulose, que tem interesse nessa investigação, doou R$ 585 mil para reforma e compra de equipamentos do Laboratório de Genética de Plantas (rebatizado como Max Feffer, pioneiro no uso do eucalipto para produção de celulose e filho do fundador da Suzano, Leon Feffer). "A produtividade do eucalipto pode aumentar em 2% a 3 % e será possível obter mais celulose com menos processos químicos e custo reduzido", diz Carlos Alberto Labate, professor do Departamento de Genética e coordenador do laboratório. As primeiras avaliações sobre a eficiência do processo devem despontar PESOUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 65


USP

7G

em 2005. A Esalq aguarda autorização da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) para levar as mudas transgênicas a campos experimentais. O laboratório tem objetivos de longo prazo: buscar genes envolvidos na formação e na qualidade da madeira. Não é novidade o interesse da iniciativa privada na massa crítica gerada pela Esalq. Mas as parcerias, que se concentravam na área de assistência técnica, andam cada vez mais sofisticadas. Na pesquisa do eucalipto, busca-se um produto - a madeira com mais celulose. E, para chegar a ele, desenvolve-se pesquisa básica e aplicada. "As coisas andam juntas", diz Labate. "Para alcançar a aplicação é preciso fazer pesquisa básica e a empresa que nos patrocina sabe disso. Nossos alunos de iniciação científica e de doutorado enriquecem sua formação nesse ambiente." A escola tem outras parcerias ^^ célebres. A Bolsa de Merm ^^ cadorias & Futuros fiÈ ^ nanciou a construção F^^^^L do prédio do Centro È ^^ de Estudos Avança^L> «^^^ dos em Economia Aplicada (Cepea), da Esalq, com a qual mantém um acordo para produção de indicadores agrícolas. Outro trabalho importante é o monitoramento de microbacias hidrográficas, coordenado pelo professor Walter de Paula Lima, do Departamento de Ciências Florestais, em convênio com o Instituto de Pesquisas e Estudos Florestais (Ipef). Esse programa teve início em 1987 e já estabeleceu estações em vários estados, a pedido de empresas florestais, como a Votorantim Celulose e Papel, Aracruz, Eucatex e Copebrás. O objetivo é acompanhar o impacto da exploração nas bacias atingidas e obter indicadores para subsidiar o manejo sustentável das florestas. Esse trabalho, que permite às empresas corrigir agressões ao ambiente, também produz conhecimento científico. Com informações colhidas numa área explorada pela Votorantim Celulose e Papel, os pesquisadores da Esalq e do Ipef concluíram que a falta de cálcio numa área de reflorestamento de eucaliptos podia ser resolvida com uma medida simples: deixando-se a casca das árvores, que é rica em cálcio, no solo, em vez de levar embora as árvores com casca. "Nosso trabalho permite às empresas calibrar seus indicadores ambientais", diz o professor Walter de Paula Lima. A mudança no perfil da Escola Luiz de Queiroz reflete, de certo modo, a transformação do mercado de trabalho das Ciências Agrárias. Até 20 anos atrás, os agrônomos formados pela escola tinham o clássico perfil do extensionista, aquele que visita propriedades e dá assis66 ■ ABRIL DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 98

tência individualizada. Essa formação generalista, hoje, está longe de ser suficiente. De um lado, a proliferação de escolas de agronomia tornou a competição entre os profissionais mais acirrada. De outro, a agricultura mudou numa velocidade enorme, ganhou produtividade e escala econômica, e se tornou mais dependente de tecnologia. Isso exige do profissional uma especialização muito maior. A Esalq começa a apostar, por exemplo, na agricultura de precisão, conceito que balança alicerces da pesquisa agronômica. A agricultura de precisão pontifica que cada região de uma área de plantio carece de quantidades peculiares de adubos e corretivos. Essa idéia, que já existe há muito tempo, tomou forma na Europa, em especial na Dinamarca, devido a uma limitação legal da aplicação de fertilizantes. Avaliam-se essas necessidades medindo a produtividade de cada pedaço do terreno. Depois, aplica-se mais adubo nas partes que renderam mais (pois elas tiraram mais nutrientes do solo). Colheitadeiras ligadas a um sistema de geoprocessamento por satélite, o GPS, marcam os locais em que a produção é maior e registram esse desempenho num mapa, que servirá de guia para a aplicação do adubo. A agricultura de precisão já produziu economia de até 30% em insumos e vem ganhando espaço nos Estados Unidos e na Europa. Mas desafia, de certo modo, toda a pesquisa agronômica, pois ela tira conclusões partindo do pressuposto de que um terreno contínuo tem necessidades uniformes de nutrientes.


José Paulo Molin, professor do Departamento de Engenharia Rural, lidera a pesquisa em agricultura de precisão na Esalq, que, com a ajuda de outros departamentos e instituições, busca desenvolver uma tecnologia mais barata e adaptada à realidade nacional. Uma das alternativas é delimitar pedaços do terreno e avaliar a quantidade de nutrientes em cada um deles, sem a necessidade do GPS. Com base nas informações, criam-se mapas para lançar adubo. "A agricultura de precisão teve altos e baixos nos Estados Unidos, devido ao excesso de promessas. Não é uma panacéia, mas não se pode fechar os olhos para ela", diz Molin, que participa da organização do Io Congresso Brasileiro de Agricultura de Precisão, programado para maio. O interesse pela Matemática e Estatística, inaugurado na Esalq pelo geneticista Friedrich Gustav Brieger nos anos 1930 e difundida por Francisco Pimentel Gomes, hoje produz ferramentas na área de Logística. Professores e alunos do Grupo de Pesquisa e Extensão em Logística Agroindustrial (Esalq-Log) dedicam-se a criar sistemas de informação e modelos matemáticos que auxiliem na gestão dos agronegócios. Liderado por José Vicente Caixeta Filho, a equipe desenvolveu, em meados dos anos 1990, o pioneiro Sistema de Informações sobre Fretes (Sifreca), disponibilizando os preços de fretes de 50 produtos agrícolas praticados em mais de 5 mil rotas. Até o advento do Sifreca, os preços de frete no Brasil

eram acompanhados por meio de tabelas de sindicatos patronais e de caminhoneiros. Os valores tornaram-se a principal referência em modelos matemáticos para racionalizar roteiros de cargas agrícolas. O levantamento é publicado gratuitamente num pequeno jornal e disponibilizado no site do Esalq-Log, no endereço eletrônico http:// log.esalq.usp.br. O grupo trabalha em outras frentes. Um caso exemplar foi o modelo criado para uma empresa produtora de lírios em Holambra, interior paulista. A logística do negócio envolvia a melhor hora de importar os bulbos da Holanda e cultivá-los em estufa em quantidade maior para a demanda atípica das datas comemorativas. O modelo matemático, com 120 mil variáveis e 400 mil restrições, gerou um mapa diário com ordens de importação e de produção que levou a um aumento de faturamento de 26% na empresa, sem novos investimentos. "Nosso desafio é mostrar aos profissionais de Ciências Agrárias que eles podem gerar ganhos até com modelos matemáticos muito simples", afirma Caixeta Filho. Aposentado há 20 anos, o professor de Genética Ernesto Paterniani, hoje ouvidor do campus Luiz de Queroz, que congrega a Esalq e o Cena, lembra com certa nostalgia dos tempos em que pesquisa se fazia nos campos experimentais, não nos laboratórios ou na frente de computadores. "Corríamos um risco maior", brinca ele. "Quando apresentávamos uma novidade a ser aplicada a um legume ou hortaliça, ela era testada imediatamente por milhares de agricultores e, se estivéssemos errados, as reclamações vinham de todo lado." Paterniani teme que o futuro da pesquisa agrícola brasileira esteja ameaçado, devido à limitação de recursos da Embrapa e à escalada de restrições legais aos produtos biotecnológicos. Acha que a Esalq deveria calibrar melhor seus esforços de pesquisa para impedir que isso aconteça. "Se a pesquisa no Brasil parasse hoje, isso só seria sentido em alguns anos, quando viesse uma praga nova ou a produtividade de outros países aumentasse", afirma ele. Caso o cenário se confirme, os agricultores sabem onde procurar ajuda, como os hortelões japoneses que foram bater à porta do governador Jânio Quadros. . PESQUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 67


Biblioteca de Revistas Científicas disponível na Internet www.scielo.org

Notícias ■ Obesidade

Epidemia de gordura O título de uma canção escrita por John Lennon e Paul McCartney, Here, there and everywhere, serviu de inspiração para um estudo que revelou o quanto a obesidade se encontra presente na sociedade brasileira. Atualmente, esse é um dos mais graves problemas de saúde pública no mundo, e está avançando de forma rápida e progressiva, sem diferenciar raça, sexo, idade ou nível social. O assunto, que vem cada vez mais chamando a atenção da comunidade científica, é o fio condutor do artigo Prevalência, riscos e soluções na obesidade e sobrepeso: Here, there and everywhere, de Giuseppe Repetto, presidente da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade (Abeso), Jacqueline RizzoUi, médica endocrinologista do Centro de Obesidade Mórbida, em Porto Alegre, e Cassiane Bonatto, médica residente do Serviço de Endocrinologia do Hospital São Lucas, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS). "Ao longo da história da Humanidade, ganho de peso e depósitos exagerados de gordura foram vistos como sinais de saúde e prosperidade", aponta o estudo. Porém o artigo revela que, nos últimos anos, a obesidade deixou de ser um mero problema estético para tornar-se uma questão de saúde. "Como existe facilidade para se obter alimentos e o padrão de vida está cada vez mais sedentário, as pessoas comem cada vez mais e se movimentam cada vez menos, levando a um superávit calórico e favorecendo a obesidade nas pessoas predispostas geneticamente." Hoje no Brasil, principalmente nas classes menos favorecidas, a população está passando da desnutrição para o excesso de peso e obesidade. "Se não forem tomadas atitudes eficientes para conter este surto, dentro de 20 anos os brasileiros estarão na atual circunstância dos Estados Unidos, onde a obesidade e suas complicações constituem um dos maiores problemas de saúde pública do país", alertam os pesquisadores. ARQUIVOS BRASILEIROS DE ENDOCRINOLOGIA E METABOLOGIA - VOL. 47 - N° 6 - SãO PAULO - DEZ. 2003

www,scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S000427302003000600001&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

68 ■ ABRIL DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 98

■ Emprego

Trabalho adolescente Analisar as conseqüências do trabalho para as condições de vida, saúde e desenvolvimento psicossocial de adolescentes, alunos do ensino médio de uma escola pública estadual do município de São Paulo foi o objetivo do estudo Efeitos do trabalho sobre a saúde de adolescentes, desenvolvido em conjunto por pesquisadores da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). "A presença de adolescentes na força de trabalho tem sido encorajada pela sociedade, inclusive sendo prática incentivada pela política governamental expressa no Programa Primeiro Emprego. O ingresso precoce de jovens no trabalho é legalizado pela legislação brasileira", lembra o estudo. Participaram da pesquisa 354 estudantes de 14 a 18 anos, do período noturno. A pesquisa verificou que no trabalho dos adolescentes freqüentemente prevalece o aspecto produtivo sobre o educativo. "Em metrópoles como São Paulo, muitos adolescentes que freqüentam o ensino público precisam trabalhar para ajudar a compor o orçamento familiar, colocando a atividade escolar em segundo plano." O estudo sugere a necessidade de intervenção na estrutura social, principalmente na organização escolar. Alterações nos horários escolares, como, por exemplo, aulas aos sábados para os estudantes trabalhadores e início mais tardio das aulas no período noturno, são importantes para o melhor aproveitamento escolar. CIêNCIA E SAúDE COLETIVA JANEIRO

VOL.

8 - N° 4 - Rio DE

- 2003

www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S141381232003000400019&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Turismo

Conversão do patrimônio O artigo O mar por tradição: o patrimônio e a construção das imagens do turismo, de Elsa Peralta, da Universidade Técnica de Lisboa, em Portugal, mostra como o patrimônio cultural tem um valor que é debitado pelos seus usos simbólico, político e econômico. O estudo tem como base a argumentação de que os turistas são "estruturalistas arquetípicos" em busca de imagens autênticas de um tempo mítico. "Existe uma


reciprocidade entre estes usos, porque não existe patrimônio simbólico que não seja também político. Além disso, o patrimônio só terá um valor econômico, por via da sua comercialização no mercado turístico, se tiver um valor simbólico elevado", diz Peralta. São analisadas na pesquisa as formas como o patrimônio é utilizado para fornecer o suporte cenográfico necessário à construção dos destinos turísticos. A autora utiliza como exemplo um caso de ativação patrimonial numa localidade de forte tradição do litoral português. Ao definir-se como a terra que tem o "mar por tradição", a região de Ilhavo se apresenta como um destino onde todos os portugueses podem reinventar o "eu autêntico" que os liga às suas origens e que desejam ser para o futuro, como num jogo de espelhos, que põe em confronto a imagem que temos e a imagem que julgamos e desejamos ter. Nesse sentido, ao ser integrado no mercado turístico, o patrimônio marítimo é resgatado e reinventado, se adequando em outras dinâmicas e significações. HORIZONTES ANTROPOLóGICOS PORTO ALEGRE - OUT. 2003

VOL.

9 - N° 20 -

www.scielo.br/scielo.php?script=scLarttext&pid=S010471832003000200005&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Enfermagem

Acidentes de trânsito O objetivo do artigo Acidentes de trânsito: uma análise a partir da perspectiva das vítimas em Campinas, de Marcos Queiroz e Patrícia Oliveira, pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é abordar o problema dos acidentes de trânsito a partir da visão de 20 vítimas hospitalizadas na Enfermaria do Trauma do Hospital das Clínicas da Unicamp. Foram analisados dados obtidos por meio de entrevistas, características sociais do acidentado e as circunstâncias gerais do acidente. A pesquisa focalizou as representações sociais do acidentado sobre vários temas, tais como o hospital, as causas do acidente, o trânsito, o trabalho, o sistema de transporte coletivo e as perspectivas para o futuro. O roteiro das entrevistas limitouse ao próprio acidente de trânsito e à crise pessoal proporcionada por ele. Ao serem perguntados sobre a causa principal do acidente, 11 entrevistados consideraram imperícia ou falha humana, seis falta de sorte e três "inveja ou mau-olhado de outras pessoas". O estudo alerta que mudanças de atitudes em relação à segurança no trânsito implicam mudanças em outras áreas do comportamento, como o uso de bebida alcoólica e o consumo de drogas, especialmente entre adolescentes. "Há estudos indicando que 50% dos acidentes graves de trânsito se associam com o uso de drogas ou

de álcool", apontam os pesquisadores. A solução para o problema dos acidentes de trânsito requer a implementação de políticas públicas que levem em conta a dimensão cultural dos envolvidos e enfatizem programas de educação. "Seria necessário um conhecimento maior dos contextos socioculturais e psicológicos para o desenvolvimento de programas de capacitação, reabilitação e educação, que promovam um comportamento mais adequado no trânsito, tendo em vista as graves conseqüências dos acidentes e o alto custo social que eles representam." PSICOLOGIA B SOCIEDADE - VOL. GRE - JUL./DEZ. 2003

15 - N° 2 - PORTO ALE-

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010271822003000200008&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

Adolescência

Grávidas pré-maturas O estudo Adolescência e reprodução no Brasil: a heterogeneidade dos perfis sociais, realizado por pesquisadores das universidades Federal da Bahia, do Estado do Rio de Janeiro, Federal do Rio Grande do Sul e do Institut National d'Études Démographiques, em Paris, na França, mostrou os resultados de uma estimativa sobre a prevalência de gravidez na adolescência (GA). A pesquisa foi feita em três capitais brasileiras: Salvador, Rio de Janeiro e Porto Alegre, cidades com contextos socioculturais distintos. O estudo, que analisou o perfil de quem engravida e os resultados da gestação, realizou um inquérito domiciliar, com entrevistas de uma amostra de homens e mulheres entre 18 e 24 anos, para a avaliação retrospectiva da GA. "A gravidez na adolescência não é um fenômeno recente. Historicamente, as mulheres vêm tendo filhos nessa etapa e, mesmo em um contexto de intensa redução da fecundidade, não se constatou no Brasil um deslocamento correspondente da reprodução para faixas etárias mais velhas, tal como ocorreu em países industrializados", diz o artigo, sendo que a maioria das mulheres brasileiras vem tendo dois filhos em média. Ao todo, foram entrevistados 4.634 jovens (47,2% homens e 52,8% mulheres), sendo que a gravidez entre adolescentes foi relatada por 55,1% dos homens e 27,9% das mulheres. A maioria das mulheres engravidou em relacionamento estável com parceiro mais velho (79,8%). O estudo verificou que a experiência de gravidez antes dos 20 anos foi relatada por 21,4% dos homens e 29,5% das mulheres. E, para piorar a situação, a maior parte das gestações se deu fora de uma união conjugai: 86,6% dos homens e 74,2% das mulheres, que moravam ainda com suas famílias de origem. CADERNOS DE SAüDE PUBLICA DE JANEIRO - 2003

- VOL. 19 - SUPL. 2 - Rio

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102311X2003000800019&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

PESQUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 69


ITECNOLOGIA

LINHHBE PRODUçãO

j

MUNDO

Declaração mundial dos robôs A proliferação de robôs nas indústrias ou como concorrentes dos bichos de estimação levou o comitê organizador da Feira Internacional de Robôs (International Robot Fair 2004), realizada no final de fevereiro na cidade japonesa de Fukuoka, a formu-

■ Esterilização elimina agentes biológicos Os agentes biológicos que se disseminam pelo ar, como antraz, gripe, síndrome respiratória aguda grave (Sars) e tuberculose, agora podem ser eliminados em minutos. Uma equipe da Universidade de Buffalo, dos Estados Unidos, criou um equipamento, denominado BioBlower, que destrói os organismos tóxicos ao aquecer rapidamente o ar contaminado. O aparelho pode ser usado como unidade portátil de esterilização no caso de ataque biológico ou mesmo ser instalado em sistemas de ar de edifícios e ativado assim que toxinas sejam detectadas. "O BioBlower destrói agentes biológicos esterilizando o ar", explica Jim Garvey, professor

lar uma curiosa Declaração Mundial do Robô (Agência PRNewswirè). Confiantes nas contribuições futuras desses engenhos à espécie humana, os organizadores dividiram o documento em dois capítulos que indicam as expectativas em relação aos robôs

de Química da Universidade de Buffalo. O ar é rapidamente comprimido e aquecido entre 200 e 250 °C, depois é expandido e esfriado antes de ser devolvido ao ambiente. O aparelho simplesmente reduz os microorganismos a cinzas, comparou o pesquisador. Numa série de testes, o equipamento destruiu 99,9% dos esporos (células reprodutivas)

e à criação de novos mercados por meio das tecnologias robóticas. No primeiro, a declaração diz que os robôs da próxima geração vão coexistir e serão parceiros dos humanos, além de auxiliá-los em atividades físicas e no apoio psicológico. No âmbito

do Bacillus globicii (Bg), bactéria que simula o antraz. "Esporos de Bg são o grande referencial dos biotestes", afirma Garvey. "Agora que conseguimos eliminar completamente uma bactéria tão difícil, podemos matar qualquer outra toxina biológica aérea." Segundo o pesquisador, o aparelho está um passo à frente em relação ao sistema existente: fil-

Esporos da bactéria Bacillus globicii (Bg)

70 ■ ABRIL DE 2004 ■ PES0.UISA FAPESP 98

do mercado, a declaração indica que a resolução de questões técnicas deve ser feita por meio de Zonas Especiais para o Desenvolvimento e Teste de Robôs. Os humanos deverão também estimular a adoção de robôs em organizações públicas. •

tros usados para capturar os esporos disseminados pelo ar, que têm de ser trocados com freqüência, armazenados com cuidado e destruídos. •

■ Rosto é senha de acesso A cena pode parecer futurista, mas não é. Você entra no carro e uma câmera reco-

Resíduos após aplicação de ar esterilizado


nhece seu rosto. Em seguida, automaticamente são feitos os ajustes de assento, espelhos, ar-condicionado e estação de rádio favorita. Tudo isso pode ser feito com o sistema de identificação visual que acaba de ser desenvolvido pela OmniPerception, empresa inglesa especializada em segurança formada por três engenheiros do Centro de Visão, Fala e Processamento de Sinais da Universidade Surrey. A novidade, batizada de Affinity, marca o início de uma nova era da biometria facial, a identificação de pessoas por meio da codificação e da gravação, em um computador,

cionais logo se tornarão coisas do passado. O rosto de cada um será um passaporte único", prevê o executivo-chefe da companhia, David Mclntosh, em entrevista à London Press Service. O grande feito da OmniPerception foi quebrar a barreira da tecnologia de reconhecimento facial, que chegou a um nível só comparável à técnica de checagem de digitais. O interesse da comunidade internacional já se manifestou, diz o diretor de marketing da companhia, Martyn Gates. "Vai de passaportes a computadores e controles de acesso seguros." Outra vantagem da identificação facial é que basta um clique e o viajante não precisa perder tempo em aeroportos, por exemplo. •

■ Ônibus limpos e silenciosos

das características faciais. A tecnologia deve revolucionar cartões de crédito, identidades e passaportes. Ela abre as portas para muitas possibilidades, mas sua maior atração é o mercado de segurança, com o rosto tornando-se a própria senha NIP (número de identificação pessoal). "O OmniPerception Facial NIP é um código digital tão longo e complexo que seria impossível memorizá-lo. Ao mesmo tempo, não há como esquecê-lo e ele sempre estará com você. Assim, as formas de identificação conven-

Um ônibus que para se locomover joga no ar apenas vapor de água. Assim é o veículo experimental movido a célula a combustível, equipamento que transforma o hidrogênio em energia elétrica, que está em teste em Londres, na Inglaterra, como parte de um projeto europeu destinado a reduzir a poluição e o barulho em dez cidades (London Press Service). O Transporte Urbano Limpo da União Européia é o maior experimento do tipo no mundo. A frota vai operar em estradas européias e nas cidades de Londres, Amsterdã, Barcelona, Hamburgo, Luxemburgo, Madri, Porto, Reykjavik, Estocolmo e Stuttgart. Os veículos possuem seis cilindros de hidrogênio no teto. "Esses são os ônibus mais ambientalmente corretos, limpos e silenciosos que já rodaram até hoje", comentou o prefeito londrino, Ken Livingstone. •

BRASIL

Primeiro vôo do maior avião

190: transporta até 108 passageiros em 36 m de comprimento

O primeiro exemplar do maior avião a jato já construído no Brasil fez seu vôo inaugural no dia 12 de março. O 190, aeronave para atender até 108 passageiros, é o terceiro de uma família de quatro membros (170, 175, 190 e 195) desenvolvida pela Embraer em São José dos Campos (SP). O novo avião possui 36,2 metros (m) de comprimento, 10,5 m de altura e 3,01 m de largura máxima da fuselagem. Só vai perder no item comprimento para seu irmão, o 195, que terá 38,6 m e deverá estar pronto no terceiro trimestre deste ano. O 190 já possui 110 pedidos de companhias européias e norte-americanas. A entrega das primeiras unidades deverá ocorrer no final de 2005. Enquanto isso, a aeronave passa por uma série de testes de vôo no Brasil e no exterior. No mesmo mês de março, a Embraer entregou a primeira unidade comercial do 170 à empresa Alitalia. Com 70 assentos, a empresa

vai começar a usar, a partir deste mês de abril, o avião em vôos dentro da Europa. •

■ Parceria entre Genius e Unicamp O Genius Instituto de Tecnologia e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) assinaram, no início de março, um convênio para desenvolvimento conjunto de inovações tecnológicas. O primeiro aditivo ao convênio prevê um projeto com a área de lingüística da Unicamp para aprimorar dispositivos de reconhecimento de voz. Outros estão sendo estudados para o desenvolvimento de tecnologia nas áreas de multimídia, terminais móveis, TV digital e nanotecnologia. Instalado em Manaus, o Genius foi fundado em 1999 pela Gradiente, que hoje é sua principal cliente. O instituto atua nos campos da eletrônica de consumo, computação e telecomunicações. •

PESQUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 71


nhece seu rosto. Em seguida, automaticamente são feitos os ajustes de assento, espelhos, ar-condicionado e estação de rádio favorita. Tudo isso pode ser feito com o sistema de identificação visual que acaba de ser desenvolvido pela OmniPerception, empresa inglesa especializada em segurança formada por três engenheiros do Centro de Visão, Fala e Processamento de Sinais da Universidade Surrey. A novidade, batizada de Affinity, marca o início de uma nova era da biometria facial, a identificação de pessoas por meio da codificação e da gravação, em um computador,

cionais logo se tornarão coisas do passado. O rosto de cada um será um passaporte único", prevê o executivo-chefe da companhia, David Mclntosh, em entrevista à London Press Service. O grande feito da OmniPerception foi quebrar a barreira da tecnologia de reconhecimento facial, que chegou a um nível só comparável à técnica de checagem de digitais. O interesse da comunidade internacional já se manifestou, diz o diretor de marketing da companhia, Martyn Gates. "Vai de passaportes a computadores e controles de acesso seguros." Outra vantagem da identificação facial é que basta um clique e o viajante não precisa perder tempo em aeroportos, por exemplo. •

■ Ônibus limpos e silenciosos

das características faciais. A tecnologia deve revolucionar cartões de crédito, identidades e passaportes. Ela abre as portas para muitas possibilidades, mas sua maior atração é o mercado de segurança, com o rosto tornando-se a própria senha NIP (número de identificação pessoal). "O OmniPerception Facial NIP é um código digital tão longo e complexo que seria impossível memorizá-lo. Ao mesmo tempo, não há como esquecê-lo e ele sempre estará com você. Assim, as formas de identificação conven-

Um ônibus que para se locomover joga no ar apenas vapor de água. Assim é o veículo experimental movido a célula a combustível, equipamento que transforma o hidrogênio em energia elétrica, que está em teste em Londres, na Inglaterra, como parte de um projeto europeu destinado a reduzir a poluição e o barulho em dez cidades (London Press Service). O Transporte Urbano Limpo da União Européia é o maior experimento do tipo no mundo. A frota vai operar em estradas européias e nas cidades de Londres, Amsterdã, Barcelona, Hamburgo, Luxemburgo, Madri, Porto, Reykjavik, Estocolmo e Stuttgart. Os veículos possuem seis cilindros de hidrogênio no teto. "Esses são os ônibus mais ambientalmente corretos, limpos e silenciosos que já rodaram até hoje", comentou o prefeito londrino, Ken Livingstone. •

BRASIL

Primeiro vôo do maior avião

190: transporta até 108 passageiros em 36 m de comprimento

O primeiro exemplar do maior avião a jato já construído no Brasil fez seu vôo inaugural no dia 12 de março. O 190, aeronave para atender até 108 passageiros, é o terceiro de uma família de quatro membros (170, 175, 190 e 195) desenvolvida pela Embraer em São José dos Campos (SP). O novo avião possui 36,2 metros (m) de comprimento, 10,5 m de altura e 3,01 m de largura máxima da fuselagem. Só vai perder no item comprimento para seu irmão, o 195, que terá 38,6 m e deverá estar pronto no terceiro trimestre deste ano. O 190 já possui 110 pedidos de companhias européias e norte-americanas. A entrega das primeiras unidades deverá ocorrer no final de 2005. Enquanto isso, a aeronave passa por uma série de testes de vôo no Brasil e no exterior. No mesmo mês de março, a Embraer entregou a primeira unidade comercial do 170 à empresa Alitalia. Com 70 assentos, a empresa

vai começar a usar, a partir deste mês de abril, o avião em vôos dentro da Europa. •

■ Parceria entre Genius e Unicamp O Genius Instituto de Tecnologia e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) assinaram, no início de março, um convênio para desenvolvimento conjunto de inovações tecnológicas. O primeiro aditivo ao convênio prevê um projeto com a área de lingüística da Unicamp para aprimorar dispositivos de reconhecimento de voz. Outros estão sendo estudados para o desenvolvimento de tecnologia nas áreas de multimídia, terminais móveis, TV digital e nanotecnologia. Instalado em Manaus, o Genius foi fundado em 1999 pela Gradiente, que hoje é sua principal cliente. O instituto atua nos campos da eletrônica de consumo, computação e telecomunicações. •

PESQUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 71


LINHA DE PRODUçãO

BRASIL

èlhas com fibras Fibras de eucalipto, sisal, bananeira e malva, misturadas ao cimento, resultaram em um novo tipo de telha, desenvolvida e patenteada pelo Grupo de Construções Rurais e Ambiência, da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos da Universidade de São Paulo (SP), em Pirassununga. A pesquisa, coordenada pelo professor Holmer Savastano Júnior, teve início em 1996 e foi financiada pelo programa Habitare, da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). Depois de selecionar as fibras vegetais, matéria-prima encontrada em grande quantidade no Brasil, foram feitos ensaios para avaliar o seu uso em conjunto com o cimento. "As fibras do eucalipto, da bananeira e do sisal foram utilizadas em forma de polpa para compor a telha, enquanto a malva foi apenas picada", explica Savastano. As empresas MMF Indústria e Comércio de Máquinas, de Mauá

(SP), e a MALVS Comércio, Manutenção, Fabricação de Máquinas e Equipamentos, de São Carlos (SP), construíram uma primeira versão do equipamento para moldagem das telhas. Os testes feitos para analisar a eficiência do produto envolveram ainda a determinação das propriedades mecânicas, físicas, químicas e microestruturais do novo material. "Para melhorar a longevidade das telhas, passamos a misturar fibras sintéticas (polipropileno, derivado do petróleo) às vegetais", diz o pesquisador. Ele explica que a fibra de eucalipto, por exemplo, tem bom desempenho durante a fabricação, o transporte e a instalação da telha, qualidades que mantém até cerca de 12 meses depois de produzida. Após esse período, por causa da possível degradação da fibra vegetal pelo meio alcalino do cimento, o reforço passa a ser garantido pelas fibras sintéticas. •

Telhado com matéria-prima vegetal ganha patente

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Miniusina: recicla areia usada na fundição de peças metálicas

■ Usina móvel visita fundições Uma pequena usina de reciclagem móvel, montada em cima da carroceria de um caminhão, começará a atender no final de junho fundições de pequeno e médio portes que descartam, no conjunto, cerca de 200 toneladas mensais de areia. Essa matéria-prima é usada na fabricação de peças fundidas em ligas com alto ponto de fusão, como ferros fundidos, aços e bronzes, utilizadas principalmente pela indústria automobilística. A miniusina, feita sob encomenda por fabricantes de Limeira e São João da Boa Vista (SP), é composta de dois módulos interligados, responsáveis pelo tratamento mecânico e térmico. "Alguns tipos de areia precisam só do tratamento mecânico, enquanto outros precisam passar pelo forno para remoção de contaminantes", explica o engenheiro metalurgista Cláudio Luiz Mariotto, pesquisador do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) e coordenador do projeto. A decisão de prestar serviços para as pequenas e médias fundições é fruto de

um longo debate que teve a participação da Associação Brasileira de Fundição (Abifa). "São empresas que não estão próximas de aterro e também não têm condições de fazer a reciclagem por conta própria", diz. •

■ Carne preservada por mais tempo Os cortes de carne bovina embalados em bandejas com filmes plásticos ganharam sobrevida de mais de um mês nos supermercados brasileiros. Isso porque um novo sistema de embalagem sob atmosfera modificada provou ser capaz de conservar a carne cortada em bifes por até 35 dias, enquanto o prazo atual é de dois dias. Adaptado para as condições brasileiras, o sistema resulta da dissertação de mestrado de Anna Cecília Venturini para o Departamento de Agroindústria e Nutrição da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo (USP), de Piracicaba. As bandejas com cortes de carne, envoltas em um filme plástico comum e um sachê absorvedor de oxigênio, são colo-


cadas em uma outra embalagem externa feita de um plástico de alta barreira que impede a passagem de gases. Em seguida, o interior da embalagem externa, sem oxigênio, é preenchido com dióxido de carbono puro, que serve como agente bacteriostático. Após a selagem, as embalagens são estocadas em câmara fria até o momento de serem expostas para consumo. •

Patentes Inovações financiadas pelo Núcleo de Patenteamento e Licenciamento de Tecnologia (Nuplitec) da FAPESP. Contato: nuplitec@fapesp.br

■ Mais latas usadas são recicladas No ano passado, o Brasil reciclou 89% de todas as latas de alumínio vendidas, correspondente a um volume aproximado de 8,2 bilhões de unidades, ou 112 mil toneladas. Com isso, o país garantiu, pelo terceiro ano consecutivo, a liderança mundial em reciclagem de latas, considerando os países em que a atividade não está prevista em lei. Em 2002, foram 9 bilhões de unidades recicladas, equivalente a 87% das latas vendidas. Segundo a Associação Brasileira do Alumínio (Abai), o aumento da participação das cooperativas e da base de coleta contribuiu para o crescimento da reciclagem. São mais de 6 mil pontos de compra de sucata de latas espalhados pelo Brasil. •

Guaçatonga: atividade antiúlcera nas folhas

■ Extrato cicatriza úlceras gástricas Processo de obtenção e utilização de extratos das folhas secas de guaçatonga (Casearia sylvestris) mostrou intensa atividade no tratamento de úlceras gastroduodenais. A guaçatonga é uma planta brasileira bastante comum, representativa da nossa biodiversidade, encontrada desde o Rio Grande do Sul até a Amazônia. Compostos químicos do grupo das casearinas com atividade antiúlcera foram isolados, identificados e avaliados em um trabalho conjunto desenvolvido entre o Departamento de Farmacologia do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP) e o Departamento de Química Orgânica do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara, coordenado pelo professor Jayme Antônio Aboin Sertié, da USP. Em testes com animais ve-

rificou-se que o extrato não interfere nos parâmetros de secreção gástrica. Além disso, a velocidade de cicatrização de úlcera crônica induzida experimentalmente foi significativamente mais rápida com o extrato da planta em comparação com medicamentos clássicos. Título: Processo de Obtenção de Extratos e de Frações de Casearia

sylvestris.

Medica-

mento e Princípio Ativo Inventores: Jayme Aboin Sertié, Ricardo Gomide Woisky do Rio, Alberto José Cavalheiro, Vanderlan da Silva Bolzani, André Gonzaga dos Santos e Aristeu GomesTininis Titularidade: USP, Unesp e

tema presente na mitocondria (estrutura que fornece energia às células), é liberado. O fato de um tecido não sofrer apoptose ou quando esse processo é exagerado pode ser indícios de patologias como câncer, doenças neurodegenerativas e reumáticas. O método baseia-se no uso de um detergente (digitonina) para colesterol, lipídio que está presente em grande quantidade na membrana externa da célula, mas é raro na mitocôndria. Quando esse detergente é aplicado, ele permeabiliza a membrana externa de células normais e em processo de apoptose. Caso o citocromo c tenha sido liberado, ele sairá da célula. Dessa forma, ele não será detectado em células em processo de apoptose, somente em células normais. Já para quantificar o citocromo c que permanece na mitocôndria, utilizam-se dois anticorpos específicos, um dos quais é ligado a uma molécula fluorescente. Assim, as células que não estão em processo de apoptose passam a ser fluorescentes. Título: Método para Quanti-

FAPESP

ficar Liberação Mitocondrial de Citocromo c e Kit para Detectar Liberação Mito-

■ Diagnóstico de morte celular

condrial de Citocromo c Inventores: Anibal Vercesi,

Nova metodologia para determinar o processo de morte celular chamado apoptose, que ocorre quando o citocromo c, uma pro-

Claudia Campos, Ricardo Cosso, Roger Castilho e Hagai Rottenberg Titularidade:

Unicamp

e

FAPESP

Sucata reaproveitada PESQUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 73


TECNOLOGIA ENGENHARIA CIVIL

Bonitas, seguras e baratas Novas técnicas de construção e tratamento químico adequado tornam as pontes de madeira uma boa opção ao concreto SAMUEL ANTENOR

A s pontes de madeira estão de volta. Agoi^L ra mais eficientes, duráveis e bonitas, LJL capazes de disputar com as pontes i ^ de concreto em igualdade de segu-JL-^. rança, unindo extensões de até 30 metros, nas cidades ou nas estradas. A madeira sempre foi o material mais utilizado para a construção das pontes brasileiras, ajudando na ocupação do território nacional ao encurtar caminhos sobre rios e riachos. Mas, ao longo dos anos, elas passaram por um processo de deterioração e substituição - muito em razão do uso de madeiras sem tratamento adequado -, cedendo lugar às estruturas de ferro e concreto. Uma trajetória que começa a mudar com novas técnicas de construção e cuidados especiais apresentados pelos pesquisadores do Laboratório de Madeiras e Estruturas de Madeira (Lamem) da Escola de Engenharia de São Carlos (EESC) da Universidade de São Paulo (USP). Os novos sistemas construtivos combinam técnicas trazidas de outros países e matéria-prima originária de reflorestamento no Brasil, especialmente tratadas para enfrentar condições locais de umidade e ataque de insetos e de fungos. Uma das vantagens também resgatadas e confirmadas pelos pesquisadores é o baixo custo dessas construções. Elas podem ser construídas pelo valor de R$ 300 a R$ 600 o metro quadrado, enquanto as pontes de concreto custam entre R$ 1 mil e R$ 1,4 mil. As novas pontes de madeira suportam cargas idênticas às similares de concreto e, em muitos casos, conferem ao ambiente uma paisagem mais agradável. Para demonstrar todas essas qualidades e expandir esse tipo de construção, sete pontes foram construídas sob a supervisão dos pesquisadores, em algumas cidades do interior paulista, de Minas Gerais e de Goiás, com repasse de tecnologia aos engenheiros do Departamento de 74 ■ ABRIL DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 98

Estradas de Rodagem (DER) da Secretaria dos Transportes do Estado de São Paulo e aos engenheiros municipais por meio de cursos de atualização. A primeira delas em meio urbano foi construída há um ano, em São Carlos, sobre o córrego Monjolinho. A mais recente, em plena serra do Mar, no chamado Caminho do Mar, a primeira estrada ligando São Paulo à Baixada Santista. "Estamos mostrando que a madeira compete muito bem com outros materiais em características de peso, resistência e durabilidade, independentemente do tamanho dos vãos que a ponte liga ou cargas que ela é obrigada a suportar", explica o professor Carlito Calil Júnior, coordenador das pesquisas no Lamem. Ele destaca também os benefícios ambientais. "O uso da madeira tem um caráter renovável, ao contrário do aço e do cimento, que demandam, inclusive, grandes quantidades de energia em sua produção. O cultivo de madeira de reflorestamento também serve ao seqüestro e armazenamento de carbono da atmosfera, que ocorre intensamente durante o crescimento da árvore até a idade adulta." Tráfego e cargas - Os novos sistemas permitem a construção de pontes em vigas e em lâminas, ou ainda mistas, combinando madeira e uma cobertura de concreto. Todas podem ser utilizadas em cidades, estradas municipais, rodovias estaduais ou federais, inclusive nas de grande tráfego, sem restrição em termos de carga, porque são projetadas segundo as mesmas normas de ações e segurança das estruturas em geral da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Entre os novos sistemas, o de pretensão (aplicação de tensões) é o mais aprimorado, com lâminas de madeira formando uma única placa, perpassada por barras rígidas de um aço especial ultra-resistente (técnica chamada de dywi-


Passarela na USP de SĂŁo Carlos: madeira laminada de pĂ­nus de reflorestamento


dag), ou por cordoalhas, um conjunto de vários fios de aço também de alta resistência. A técnica consiste em perfurar a madeira a cada metro para a inserção das barras ou fios de aço, que são tensionados e têm sua força controlada, garantindo que a placa de madeira ganhe rigidez transversal (de uma ponta a outra), e não apenas longitudinal (no sentido da largura da ponte). Para preservar o conjunto, tanto as barras quanto os fios de aço são protegidos por uma bainha de proteção e revestidos com graxa, para evitar possíveis corrosões, provocadas pelo contato do aço com os produtos químicos utilizados no tratamento prévio da madeira. Essa proteção química é fundamental para a longevidade das pontes. É feita com uma solução hidrossolúvel de sais de cobre, cromo e arsênico (CCA) e outra que utiliza boro no lugar do arsênico (CCB), livrando a madeira da ação de fungos e de insetos, preservando-a para um uso superior a 30 anos, contra apenas cinco anos de vida sem o tratamento. Desenvolvido no Canadá na década de 1970 para reforçar pontes de madeira laminadas já existentes, o sistema de pretensão começou a ser utilizado também nos Estados Unidos e, depois, no Brasil. Aqui, foram usados o pínus e o eucalipto, tratados em condições locais de umidade e de temperatura. Em São Carlos, os estudos sobre pontes de madeira nesse sistema começaram em 1992, seis anos após a construção da primeira ponte deste tipo pelo Forest Products Laboratory (FPL) ou Laboratório de Produtos Florestais, em Madison, nos Estados Unidos, onde Calil Júnior acompanhou os testes de avaliação das cargas na estrutura, além da variação de umidade e de temperatura. Após o estudo das técnicas e com o projeto temático financiado pela FAPESP, iniciado em 2001, foram avaliadas, em São Carlos, três espécies de eucaliptos {Eucaliptusgranais, E. citrioãora e E. saligna) e duas de pínus (Pinus taeâa e P. elliottii) de reflorestamento e igualmente tratadas. "O pínus utilizado na América do Norte é mais denso e, por isso, naturalmente mais resistente que o brasileiro. Com o eucalipto acontece o contrário. Aqui ele 76 ■ ABRIL DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 98

é muito mais resistente. Embora, com o sistema de pretensão, não haja necessidade de uma madeira de alta resistência, porque tanto o aço quanto o cabo transversal reforçam sua solidez", explica Calil Júnior. No sistema de pretensão, o peso da carga se distribui por toda a extensão da ponte. Todavia, para vãos de até 10 metros é conveniente que a ponte seja construída em placas de madeira - em peças serradas ou laminadas coladas -, sempre formando um elemento único. No caso de vãos entre 10 e 20 metros, as pontes devem ser feitas num sistema de placas com espaços a cada 1 metro formados por lâminas de largura três vezes maior que as demais do conjunto. Já para vãos acima de 20 metros, Ponte com passarela sobre o córrego utiliza-se o sistema caixão, Monjolinho, em São Carlos: primeira que consiste em duas placas em meio urbano construída com sobrepostas em dois planos, novas técnicas e madeira tratada um superior e outro inferior. Essas placas também devem ser ligadas entre si por lâmipartamento de Engenharia de Estrunas de maior largura, a cada 1 metro, turas, em que foi aplicada a tecnoloformando túneis fechados pelas pargia de placa de madeira laminada com tes superior e inferior da estrutura. protensão utilizando o pínus de refloNo Brasil, as duas primeiras nesse sisrestamento. tema serão construídas no campus 2 da USP de São Carlos, uma com maCobertura de concreto - Até o modeira laminada colada e outra com mento, a maioria das pontes construípeças compostas de compensado de das, como a do Caminho do Mar, é madeira colada. Outra construção já do tipo mista, em madeira e concreto, finalizada nessa cidade é uma passaporque são mais facilmente edificadas rela em curva construída na USP, lie a um custo menor. Esse sistema utigando o Laboratório de Madeira ao Deliza peças roliças (toras de árvores tratadas) na parte inferior com conexões 0 PROJETO metálicas em barras de aço comum fincadas na madeira e imobilizadas Programa Emergencial pelo concreto, que recobre a estrutudas Pontes de Madeira ra e, posteriormente, recebe asfalto. A para o Estado de São Paulo opção pelas peças roliças ocorre em razão da constituição das peças e do MODALIDADE Projeto Temático custo, duas vezes menor que o da madeira serrada. "Nesse caso, um ponCOORDENADOR to importante é o desenvolvimento de CARLITO CALIL JúNIOR - Escola de fibras retorcidas ao longo do cresciEngenharia de São Carlos - USP mento natural da árvore. No entanto, essa característica, junto com a rigidez, INVESTIMENTO é perdida, quando a madeira é serraR$ 516.094,73 e US$ 112.202,55 da", explica Calil.


(Senai), para que atuem na formação de pessoal com qualificações específicas para trabalhar com esse tipo de material. "Durante as aulas, abordamos desde as propriedades da madeira até detalhes de estruturas e construções."

Outra possibilidade é a edificação de pontes com peças roliças tratadas, de alta resistência e baixo custo, e peças laminadas treliçadas, ligadas por parafusos, ou ainda com peças de madeira laminada colada, que utilizam um tipo de resina extremamente aderente. A vantagem das laminadas coladas é a possibilidade de se construir vigas sem limitação de comprimento e com total controle do material, inclusive em extensões acima de 30 metros. Contudo, elas apresentam custos considerados altos, cerca de R$ 2 mil o metro cúbico, contra R$ 300 da madeira roliça tratada.

Legislação avançada - O Brasil lidera a tecnologia de desenvolvimento de estruturas de madeira na América do Sul. Além do Laboratório da USP de São Carlos, outros grupos também pesquisam o tema, na Universidade Estadual Paulista (Unesp), na Escola Politécnica da USP e na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a fim de formular uma norma brasileira específica para construções de pontes desse tipo, como um anexo à norma de estruturas de madeiras, também formulaNo antigo Caminho da pela EESC e pela Escola do Mar, ponte em Politécnica e adotada pela construção com ABNT, em 1997. madeira e concreto Os pesquisadores de São Carlos também solicitaram ao DER um levantamento sobre as condições das pontes de madeira no Estado de São Paulo, a fim de oferecer apoio tecnológico para a recuperação das existentes ou para a construção de novas. "A idéia é que isso passe a valer também em outros estados, a exemplo de Goiás, onde já foram construídas duas pontes, no município de Catalão, com base nos estudos desenvolvidos aqui e repassados por meio de cursos e manuais editados para auxiliar engenheiros em qualquer município do país", diz o pesquisador. "Enviamos carCalil reconhece que as estruturas tas a todos os municípios do Estado de madeira ainda sofrem de um prede São Paulo e, quando há interesse conceito relacionado à utilização, dupor parte das prefeituras, orientamos rante muitos anos, de madeiras sem o os projetos sem nenhum custo e com as tratamento adequado que garantisse devidas recomendações dos materiais, a longevidade das pontes. Esse fator, processo construtivo e de manutenção." que ainda gera desconfiança no lado O município que optar por pontes de dos construtores, somado à escassez de madeira responsabiliza-se apenas pelo mão-de-obra qualificada, impede uma custo da construção, enquanto os pesdisseminação desse tipo de construção. quisadores do Laboratório de Madeira A reviravolta na falta de profissionais se encarregam de aplicar a tecnologia especializados na edificação de pontes desenvolvida na universidade, incluside madeira foi iniciada com dois cursos ve formando mão-de-obra especializaministrados em São Carlos aos instruda. "Não queremos construir, mas entores do Serviço Nacional da Indústria sinar a construir." • PESQUISA FAPESP 98 -ABRIL DE 2004 ■ 77


TECNOLOGIA

METALURGIA

Alumínio afinado CBAePoli-USP desenvolvem chapas mais finas e resistentes

Chapas de alumínio mais finas e mais apropriadas para luminárias e para a fabricação de carrocerias de automóveis, por exemplo, estão na mira de um amplo estudo que envolve a Companhia Brasileira de Alumínio (CBA), do Grupo Votorantim, e a Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP). O estudo se baseia na análise da microestrutura de chapas de alumínio obtidas num processo chamado de Roll Caster, que faz a laminação a frio, ao contrário do processo tradicional, mais custoso, em que as chapas são laminadas a quente. Com o avanço tecnológico alcançado até agora, esse processo já consegue produzir chapas de 2,5 milímetros de espessura, contra 6 milímetros no passado recente. "Isso significa um ganho de produtividade e de competitividade, porque a bobina sai do processo com uma espessura que requer menos etapas durante a laminação", explica o engenheiro metalurgista Ricardo do Carmo Fernandes, doutorando da Poli. "Nossa estratégia é tirar maior proveito tecnológico do sistema Caster, desenvolvendo competências que levem à fabricação de produtos de menor custo e de melhor performance", diz o engenheiro Wilke Martins Parra, chefe dos departamentos de folhas e de processos tecnológicos da CBA. "Conhecendo melhor as características do processo, podemos ampliar o leque de produtos, melhorar a sua qualidade e elevar a sua vida útil, por exemplo." Nos últimos dois anos, complementa o engenheiro Jorge Valezin, coordenador geral de vendas, a CBA investiu US$ 87 milhões anuais em equipamentos, pesquisa e 78 ■ ABRIL DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 98

processos, além da expansão da capacidade de produção, passando de 240 mil para 340 mil toneladas por ano de alumínio primário. Textura ideal - Até agora, os estudos realizados entre a Poli e a CBA já atingiram, de forma inédita no Brasil, chapas que podem ser utilizadas na fabricação de luminárias e acessórios para a montagem de telhas de alumínio. O objetivo final do estudo, segundo Fernandes, é alcançar a textura ideal em chapas finas para as estampagens profundas (moldagem por meio de prensagem), processo usado, por exemplo, na produção de carrocerias de automóveis. Fernandes é orientado pelo professor Ângelo Fernando Padilha, do Departamento de Engenharia Metalúrgica e de Materiais da Poli-USP. A equipe também é formada pela doutoranda Juliana de Paula Martins e pelo pósdoutorando Márcio Ferreira Hupalo. O processo Caster estudado pelos pesquisadores utiliza o alumínio líquido que, ao passar por dois cilindros metálicos refrigerados internamente à água, resulta em uma chapa livre da laminação a quente do processo convencional. Essa técnica mais antiga parte de um material semi-acabado e fundido a partir da bauxita, a matéria-prima do alumínio, resultando em placas com espessuras que variam de 23 a 60 centímetros (cm). Depois, as chapas são formadas em uma temperatura que atinge 500 °C. O Caster elimina essa última etapa da linha de produção, deixando a infra-estrutura mais enxuta, com menos mobilização de capital. Um lami-

Chapas de alumínio mais finas e resistentes: matéria-prima inovadora


nador a quente exige investimento de US$ 150 milhões, enquanto a laminação contínua pode ser montada com US$ 40 milhões - US$ 10 milhões do Caster e US$ 30 milhões do laminador a frio. E, de quebra, elimina-se a necessidade de uma instalação com 200 metros de comprimento para abrigar o laminador a quente, sem falar nos gastos com mão-de-obra, consumo de energia elétrica e manutenção. Sob a ótica operacional, o Caster é mais versátil, ou seja, é muito vantajoso em caso de produção de várias ligas, facilitando o ajuste de composição química do metal e produzindo uma diversificada linha de produtos, com larguras maiores. Largura é um dado importante por vários motivos: inicialmente, a largura média de uma chapa de alumínio era de 85 cm. Hoje o mercado já exige 1,8 metro. Essa dimensão garante maior produtividade nas aplicações, explica Ayrton Filleti, coordenador do Comitê de Mercado da Indústria Automotiva, da Associação Brasileira do Alumínio (Abai). Segundo Filleti, por exigir 20% menos investimento em infra-estrutura de produção e proporcionar uma redução de cerca de 30% no custo operacional, o Caster já representa metade da capacidade instalada de laminação da indústria de alumínio da América Latina, com 35 máquinas em operação.

Sem deformação - "Produtos que antes sofriam um alto grau de deformação durante seu processamento são hoje obtidos nas dimensões próximas da espessura final desejada, com a microestrutura adequada." É essa característica que vai determinar se a chapa laminada pode ser submetida a condições mais severas, sem sofrer deformações que a comprometam. Contudo, o processo Caster ainda tem gargalos significativos em relação à laminação a quente. Um deles é a escala reduzida de produção 10 mil toneladas anuais por máquina -, além de problemas no resfriamento do equipamento, que leva à baixa resistência do material quando submetido à estampagem profunda, como exige, por exemplo, a indústria automobilística, que utiliza o alumínio em quantidades cada vez maiores. São exatamente as deficiências do processo Caster que Fernandes e a equipe do professor Padilha estudam nos laboratórios da empresa e da Poli. Hoje, já se sabe, por exemplo, que fatores como as temperaturas envolvidas nas várias fases do processo e a velocidade de vazamento (transporte do material para outro recipiente na produção) têm impacto na textura da chapa laminada pelo Caster. "Com a variação de velocidade e de temperatura de vazamento iremos obter características diferentes na microestrutura das chapas", diz Fernandes. A CBA, que fatura US$ 700 milhões por ano - 50% provenientes de exportações -, pesquisa o Caster há mais de dez anos e por meio dessa rota tecnológica produz folhas com espessuras abaixo de 1 milímetro, destinadas a produtos que não exigem estampagem profunda, como o material utilizado na produção de embalagens marmitex. A intenção da empresa é migrar quase toda a produção para esse processo, incluindo laminados para aplicações em trocadores de calor (radiadores, aparelhos de ar-condicionado), embalagens para a indústria de alimentos, material de transporte etc, contribuindo para aumentar a participação e o consumo de alumínio no mercado doméstico. Um mercado ainda pequeno, com o consumo per capita de alumínio na ordem de 4 quilos anuais por habitante, contra 29 quilos por ano nos Estados Unidos. Uma defasagem que pode ser diminuída com a adoção de chapas mais finas de alumínio. • PES0UISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 79


TECNOLOGIA

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Empresa fabrica suplementos alimentares com matéria-prima extraída de crustáceos

ABRIL DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 98

abeça de camarão, casca de lagosta e carapaças de caranguejo, abundantes e i rejeitadas pela indústria pesqueira do Ceará, não têm mais o lixo como destino final. Elas são transformadas em suplementos alimentares, na forma de cápsulas e comprimidos, que funcionam como coadjuvantes na redução do colesterol, na perda de peso e no controle de doenças como a artrose. As substâncias benéficas presentes nos rejeitos dos crustáceos são a quitina e a quitosana, dois biopolímeros que possuem propriedades químicas e biológicas importantes. Segundo estudos realizados nos Estados Unidos e no Japão, a quitosana promove a captura e a eliminação de gorduras por meio de um mecanismo de excreção de ácidos biliares. Além da área da saúde, a quitosana é utilizada em processos de purificação e tratamento de água, na manufatura de lentes de contato e no ramo cosmético, como ingrediente na fabricação de xampus, loções e cremes protetores. Os biopolímeros extraídos dos crustáceos são a razão do sucesso da empresa cearense Polymar. Ela já possui 11 patentes de produtos e processos que envolvem a quitina e a quitosana. Entre elas estão uma técnica desenvolvida na empresa para a obtenção dessas substâncias, os próprios alimentos funcionais com formulação e metodologia de processamento e uma membrana para uso na regeneração de tecidos e nas cicatrizações. Uma das inovações, também patenteada, desenvolvida pela Polymar, está no reaproveitamento de um dos reagentes usados para a extração da quitina e na obtenção da quitosana, o hidróxido de sódio. "A reutilização dessa substância química é perfeita dos pontos de vista ambiental e econômico, porque, além de eliminar os resíduos, o custo final de produção é reduzido em cerca de 60%", diz o químico Alexandre Cabral Craveiro, vice-presidente da empresa. Por esse desenvolvimento, a Polymar recebeu, em 1999, o prêmio nacional do Instituto Euvaldo Lodi (IEL), do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

(CNPq). Pelos resultados alcançados nos últimos seis anos, a empresa recebeu duas premiações de peso no quesipequena empresa da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e de empresa graduada da Associação Nacional de Entidades Promotoras de Empreendimentos de Tecnologias Avançadas (Anprotec), que reúne as incubadoras e parques tecnológicos do país. Produção ampliada - Criada em 1997 por Craveiro e por Danilo Queiroz, então dois doutorandos em química orgânica da Universidade Federal do Ceará (UFC), a Polymar ocupou originalmente um galpão de 80 metros quadrados no Parque de Desenvolvimento Tecnológico (Padetec), no campus da universidade. Foi lá que eles deram início às pesquisas com biopolímeros que envolveram a imobilização de células e enzimas, separação de substâncias e produção da fibra de quitina e de quitosana. Em abril de 2000, a empresa deixou a incubadora e instalou-se na periferia de Fortaleza, em uma planta industrial com mais de 1.600 metros de área construída e capacidade de processamento de 800 toneladas por ano de carapaças in natura. "No início, nós ganhamos grande impulso fornecendo quitosana para a concorrência", conta Craveiro. Como interessava à Polymar firmar-se como produtora de matéria-prima no país, a empresa começou a fornecer quitosana para outras empresas, "o que para alvista mercadológico", diz. Há dois anos, passou também a fabricar produtos com marcas específicas para seus concorrentes, e o mercado expandiu-se no país. A evolução, porém, não foi fácil. "Tudo o que é inovador paga um preço elevado, desde a confiança no produto até o processo de aprovação e uso", avalia Craveiro. No início, a empresa não conseguia obter o registro para comercializar seus produtos no país. Nesse impasse, a Polymar resolveu montar uma filial em Miami - um processo rápido e fácil, segundo seu vice-presidente - e passou a exportar a matériaprima para lá, importando depois o produto acabado e devidamente registrado. Esse fato acabou funcionando como uma pressão a mais pela regulamentação dos produtos no Brasil.


A comercialização dos produtos no varejo começou autorizada por portarias baseadas em protocolos obtidos na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), mediante a apresentação de estudos clínicos de eficácia e segurança da quitina e da quitosana, feitos no Japão, Europa e Estados Unidos. Embora ressalte que os cuidados da Anvisa são inteiramente justificados, "porque produtos para consumo humano precisam ser rigorosamente testados", Craveiro defende a implantação de um tratamento diferenciado para as

fera de ação direta da Eood and Drug Administration (EDA), a agência do governo norte-americano responsável pela liberação de novos alimentos industrializados e medicamentos. Essa medida permitiu que os fabricantes divulgassem as propriedades funcionais de seus produtos, desde que baseadas em evidências científicas. De acordo com Craveiro, vários grupos de pesquisadores em universidades e centros de pesquisa internacionais estão engajados no estudo das ações e propriedades desses alimentos.

mais agilidade dos órgãos públicos no reconhecimento de produtos originados principalmente nas empresas ligadas às universidades e parques tecnológicos. "Muitas vezes, projetos inovadores desenvolvidos por pesquisadores competentes e que poderiam trazer benefícios potenciais para a população ficam prejudicados devido à demora na aprovação." Nos Estados Unidos, essa aprovação é muito mais rápida, graças a uma lei de 1994 (Dictary Supplement Health and Education Act - Dshea - ou Procedimento de Saúde e de Educação do Suplemento Dictético) que criou uma nova categoria de produtos, denomina-

Além dos problemas de registro, a Polymar enfrentou outros obstáculos, como a falta de linhas de apoio . financeiro para empresas de pequeno porte. Para driblar as dificuldades, foi preciso criar e improvisar, como ocorreu no projeto e no desenvolvimento de equipamentos para a fabricação dos produtos. Assim, tanques de fibra de vidro foram adaptados para as etapas iniciais da produção, construíram reatores e um moinho industrial - em parceria com uma empresa de engenharia mecânica - e projetaram estufas de secagem, que aproveitam a energia solar e eólica, abundantes no Ceará.

A perspectiva atual da Polymar é desenvolver produtos em esquema de parceria com outras empresas. É o caso da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), em que foram estabelecidas duas linhas de pesquisa: a primeira estuda o uso da quitosana (também possui propriedades bactericidas e fungicidas) na proteção às sementes de trutas contra fungos invasores e a segunda desenvolve uma película protetora que aumenta a vida útil de frutas e verduras na prateleira. Em uma parceria com a Petrobras, a proposta é utilizar a quitosana no combate à poluição do mar provocada por derramamento de petróleo. Quando aplicada sobre a massa de óleo, essa substância forma um aglomerado que facilita a remoção. Os testes iniciais foram feitos pela Petrobras em 2003, e outros, em maior escala, estão previstos para este ano. A Polymar alcançou, no ano passado, um faturamento de R$ 5,4 milhões, diante dos R$ 2,55 milhões de 2002, dos quais cerca de 12% são aplicados em pesquisa e desenvolvimento. A participação das exportações nesse montante ainda é pequena e concentra-se nos países do Mercosul, mas deve ampliar-se, segundo Craveiro, que destaca negociações promissoras com Fran-

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TECNOLOGIA

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Empresa fabrica suplementos alimentares com matéria-prima extraída de crustáceos

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abeça de camarão, casca de lagosta e carapaças de caranguejo, abundantes e i rejeitadas pela indústria pesqueira do Ceará, não têm mais o lixo como destino final. Elas são transformadas em suplementos alimentares, na forma de cápsulas e comprimidos, que funcionam como coadjuvantes na redução do colesterol, na perda de peso e no controle de doenças como a artrose. As substâncias benéficas presentes nos rejeitos dos crustáceos são a quitina e a quitosana, dois biopolímeros que possuem propriedades químicas e biológicas importantes. Segundo estudos realizados nos Estados Unidos e no Japão, a quitosana promove a captura e a eliminação de gorduras por meio de um mecanismo de excreção de ácidos biliares. Além da área da saúde, a quitosana é utilizada em processos de purificação e tratamento de água, na manufatura de lentes de contato e no ramo cosmético, como ingrediente na fabricação de xampus, loções e cremes protetores. Os biopolímeros extraídos dos crustáceos são a razão do sucesso da empresa cearense Polymar. Ela já possui 11 patentes de produtos e processos que envolvem a quitina e a quitosana. Entre elas estão uma técnica desenvolvida na empresa para a obtenção dessas substâncias, os próprios alimentos funcionais com formulação e metodologia de processamento e uma membrana para uso na regeneração de tecidos e nas cicatrizações. Uma das inovações, também patenteada, desenvolvida pela Polymar, está no reaproveitamento de um dos reagentes usados para a extração da quitina e na obtenção da quitosana, o hidróxido de sódio. "A reutilização dessa substância química é perfeita dos pontos de vista ambiental e econômico, porque, além de eliminar os resíduos, o custo final de produção é reduzido em cerca de 60%", diz o químico Alexandre Cabral Craveiro, vice-presidente da empresa. Por esse desenvolvimento, a Polymar recebeu, em 1999, o prêmio nacional do Instituto Euvaldo Lodi (IEL), do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

(CNPq). Pelos resultados alcançados nos últimos seis anos, a empresa recebeu duas premiações de peso no quesipequena empresa da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e de empresa graduada da Associação Nacional de Entidades Promotoras de Empreendimentos de Tecnologias Avançadas (Anprotec), que reúne as incubadoras e parques tecnológicos do país. Produção ampliada - Criada em 1997 por Craveiro e por Danilo Queiroz, então dois doutorandos em química orgânica da Universidade Federal do Ceará (UFC), a Polymar ocupou originalmente um galpão de 80 metros quadrados no Parque de Desenvolvimento Tecnológico (Padetec), no campus da universidade. Foi lá que eles deram início às pesquisas com biopolímeros que envolveram a imobilização de células e enzimas, separação de substâncias e produção da fibra de quitina e de quitosana. Em abril de 2000, a empresa deixou a incubadora e instalou-se na periferia de Fortaleza, em uma planta industrial com mais de 1.600 metros de área construída e capacidade de processamento de 800 toneladas por ano de carapaças in natura. "No início, nós ganhamos grande impulso fornecendo quitosana para a concorrência", conta Craveiro. Como interessava à Polymar firmar-se como produtora de matéria-prima no país, a empresa começou a fornecer quitosana para outras empresas, "o que para alvista mercadológico", diz. Há dois anos, passou também a fabricar produtos com marcas específicas para seus concorrentes, e o mercado expandiu-se no país. A evolução, porém, não foi fácil. "Tudo o que é inovador paga um preço elevado, desde a confiança no produto até o processo de aprovação e uso", avalia Craveiro. No início, a empresa não conseguia obter o registro para comercializar seus produtos no país. Nesse impasse, a Polymar resolveu montar uma filial em Miami - um processo rápido e fácil, segundo seu vice-presidente - e passou a exportar a matériaprima para lá, importando depois o produto acabado e devidamente registrado. Esse fato acabou funcionando como uma pressão a mais pela regulamentação dos produtos no Brasil.


A comercialização dos produtos no varejo começou autorizada por portarias baseadas em protocolos obtidos na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), mediante a apresentação de estudos clínicos de eficácia e segurança da quitina e da quitosana, feitos no Japão, Europa e Estados Unidos. Embora ressalte que os cuidados da Anvisa são inteiramente justificados, "porque produtos para consumo humano precisam ser rigorosamente testados", Craveiro defende a implantação de um tratamento diferenciado para as

fera de ação direta da Eood and Drug Administration (EDA), a agência do governo norte-americano responsável pela liberação de novos alimentos industrializados e medicamentos. Essa medida permitiu que os fabricantes divulgassem as propriedades funcionais de seus produtos, desde que baseadas em evidências científicas. De acordo com Craveiro, vários grupos de pesquisadores em universidades e centros de pesquisa internacionais estão engajados no estudo das ações e propriedades desses alimentos.

mais agilidade dos órgãos públicos no reconhecimento de produtos originados principalmente nas empresas ligadas às universidades e parques tecnológicos. "Muitas vezes, projetos inovadores desenvolvidos por pesquisadores competentes e que poderiam trazer benefícios potenciais para a população ficam prejudicados devido à demora na aprovação." Nos Estados Unidos, essa aprovação é muito mais rápida, graças a uma lei de 1994 (Dictary Supplement Health and Education Act - Dshea - ou Procedimento de Saúde e de Educação do Suplemento Dictético) que criou uma nova categoria de produtos, denomina-

Além dos problemas de registro, a Polymar enfrentou outros obstáculos, como a falta de linhas de apoio . financeiro para empresas de pequeno porte. Para driblar as dificuldades, foi preciso criar e improvisar, como ocorreu no projeto e no desenvolvimento de equipamentos para a fabricação dos produtos. Assim, tanques de fibra de vidro foram adaptados para as etapas iniciais da produção, construíram reatores e um moinho industrial - em parceria com uma empresa de engenharia mecânica - e projetaram estufas de secagem, que aproveitam a energia solar e eólica, abundantes no Ceará.

A perspectiva atual da Polymar é desenvolver produtos em esquema de parceria com outras empresas. É o caso da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), em que foram estabelecidas duas linhas de pesquisa: a primeira estuda o uso da quitosana (também possui propriedades bactericidas e fungicidas) na proteção às sementes de trutas contra fungos invasores e a segunda desenvolve uma película protetora que aumenta a vida útil de frutas e verduras na prateleira. Em uma parceria com a Petrobras, a proposta é utilizar a quitosana no combate à poluição do mar provocada por derramamento de petróleo. Quando aplicada sobre a massa de óleo, essa substância forma um aglomerado que facilita a remoção. Os testes iniciais foram feitos pela Petrobras em 2003, e outros, em maior escala, estão previstos para este ano. A Polymar alcançou, no ano passado, um faturamento de R$ 5,4 milhões, diante dos R$ 2,55 milhões de 2002, dos quais cerca de 12% são aplicados em pesquisa e desenvolvimento. A participação das exportações nesse montante ainda é pequena e concentra-se nos países do Mercosul, mas deve ampliar-se, segundo Craveiro, que destaca negociações promissoras com Fran-

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■ TECNOLOGIA ENGENHARIA ELÉTRICA

Acerto de papel Sensor eletrônico elimina prejuízos no processo de secagem da pasta de celulose DlNORAH ERENO

Sensores eletrônicos desenvolvidos com tecnologia nacional, após cinco anos de pesquisa, mostraram-se eficazes para melhorar o processo de fabricação de papel e reduzir os prejuízos decorrentes de desgaste mecânico de equipamento durante a fase de présecagem. Nessa etapa, anterior à transformação da pasta de celulose em papel, o excesso de água precisa ser eliminado. Para que isso ocorra, a pasta é colocada sobre uma tela de fibras plásticas, sustentada e transportada por grandes cilindros. A monitoração é feita por um sistema composto de um sensor mecânico, também chamado de apalpador, que funciona como uma haste retangular encostada na borda da tela, percebendo o posicionamento e os deslocamentos laterais. O controle é feito com o acionamento pneumático nos cilindros, deslocados para frente ou para trás, de forma a manter, o máximo possível, a tela centrada no equipamento. A tarefa é bastante complicada por conta das dimensões da tela, que chega a medir até 60 metros de comprimentos por 5 metros de largura. Ocorre que o permanente contato do sensor mecânico com a tela em movimento provoca atrito e, como conseqüência, tanto ela como o apalpador se desgastam. Em alguns casos, até o funcionamento de todo o equipamento fica comprometido, causando sérios prejuízos à indústria de papel no processo produtivo, não só pelo elevado custo da tela, mas, principal82 ■ ABRIL DE 2004 ■ PES0UISA FAPESP 98

mente, pelo tempo de parada da máquina para manutenção. A solução desenvolvida pela Akros Tecnologia, uma pequena empresa de São José dos Campos (SP), baseia-se em um sistema que controla automaticamente o posicionamento da tela por meio de um sistema óptico. "Dessa forma, a tela é colocada na posição desejada sem haver nenhum contato com o apalpador, evitando desgastes da tela e do equipamento", diz o engenheiro eletrônico Benedito Carlos da Silva, um dos sócios da Akros e coordenador do projeto financiado pela FAPESP dentro do Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE). O sistema, instalado junto à tela, é composto de um sensor que emite um feixe de laser e um refletor. A intensidade do feixe refletido mostra a posição da tela. Essa informação segue, via cabo de fibra óptica, até um microcontrolador que per-

0 PROJETO Sistema Óptico de Posicionamento Automático de Telas (Sopat) MODALIDADE Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE) COORDENADOR BENEDITO CARLOS DA SILVA

Tecnologia INVESTIMENTO

R$ 206.400,00

-Akros

cebe as variações e envia comandos para o módulo de acionamento pneumático, responsável pelo posicionamento da tela na condição ideal de funcionamento. Silva conta que a idéia de desenvolver o Sistema Óptico de Posicionamento Automático de Telas (Sopat) surgiu durante uma visita profissional a uma empresa fabricante de papel, em 1998, quando ouviu relatos das limitações do sistema mecânico. A Akros, nessa época, trabalhava principalmente no desenvolvimento de novos produtos e na construção de máquinas para vários nichos industriais, depois de sentir a redução dos projetos dos setores aeronáutico e aeroespacial, áreas que eram o foco da empresa quando ela foi criada em 1993. Assim, a indústria de papel interessava a Akros e Silva expôs aos seus sócios, um engenheiro naval e outro com formação mecânica e aeronáutica, a proposta de desenvolver o sistema de controle eletrônico. Os engenheiros logo perceberam que não poderiam usar os sensores existentes no mercado porque durante a fase de secagem da pasta as temperaturas médias chegam acima de 100 °C e o ambiente fica carregado de vapores químicos. Por isso, a escolha foi para o desenvolvimento de sensores com fibra óptica, imunes à interferência eletromagnética e resistentes a ambientes agressivos. As unidades eletrônicas (transmissor, receptor e microcontrolador) ficam localizadas fora da máquina, enquanto os sensores e as fibras óp-


Emissor de laser (em azul) e o refletor (abaixo): informações ao microcontrolador (ao fundo)

ticas operam dentro do equipamento porque resistem às condições adversas. Testes reais - Na época da apresentação do projeto PIPE, em 1998, a Akros voltava a prestar serviços para a Embraer, contratada para trabalhar em cálculos e projetos na nova família de jatos regionais. Mas isso não a impediu de dedicar-se ao Sopat. O sistema despertou o interesse de algumas fabricantes de papel, mas o grande obstáculo encontrado até agora para instalação do sensor nas fábricas é a condição de operação das máquinas produtoras de papel que trabalham até 50 dias sem interrupção e apenas um dia de parada, quando todos os acertos, trocas de peças e reparos têm de ser feitos. Por isso, só partes do sistema foram testadas em condições reais de uso, aproveitando-se dessas paradas. As dificuldades, no entanto, não desanimaram os sócios da Akros. Eles contataram um dos principais fabricantes do equipamento industrial, a alemã Voith. "Foi feita uma apresentação do sistema a técnicos da empresa que ficaram bastante interessados", conta Silva. "Mesmo em nível mundial, o Sopat não tem um equipamento similar, que incorpore um microcontrolador. O software usado no equipamento permite a adequação do sistema aos mais diversos tipos de máquinas." O mercado para o Sopat, segundo dados da Associação Brasileira de Celulose e Papel (Bracelpa), é bastante promissor. São 220 empresas fabricantes de papel e celulose distribuídas por 16 estados brasileiros. Como cada uma das fábricas tem de dois a seis setores de présecagem, e em cada um são necessários vários sensores (entre dois e oito), a estimativa de demanda potencial é da ordem de 5 mil equipamentos. A adoção do sistema eletrônico não significa aposentar definitivamente o mecânico, que fica desligado mas ainda instalado na máquina. Em situações de emergência, como falta de energia elétrica ou falha de componentes do Sopat, o apalpador é liberado automaticamente e o funcionamento do sistema antigo é restabelecido. • PESQUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 83


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HUMANIDADES ARTES CÊNICAS

do ator Tese revela a evolução da importância dos figurinos no teatro moderno CARLOS HAAG

Se no cotidiano, diz o ditado, o hábito faz o monge, no palco ele é capaz de criar condes, duques, mulheres do povo, ninfas e deusas, tudo o que a imaginação de um cenógrafo desejar. "Os figurinos são a ponte de ligação entre o ator e o olho do espectador. São linhas, formas, cores e significados que têm a função de ligar ator e platéia, dando pistas sobre aquele que o veste, manifestando até mesmo, externamente, formas internas de um personagem", explica Fausto Viana, que defendeu em março tese de doutorado sobre o tema O figurino das renovações cênicas do século 20: um estudo de sete encenadores. Com ela entendemos a mágica teatral dos hábitos em criar, diante dos nossos olhos, os monges. Analisando o trabalho da criação de figurinos de Appia, Craig, Stanislavski, Artaud, Brecht, Reinhardt e Mnouchkine, Viana revela a importância dos trajes no desenvolvimento da arte de atuar e de como eles foram um componente importante na busca por um teatro moderno, que procura a arte total, feita de aparente simplicidade, mas com imensa sutileza e força expressiva. O pesquisador organizou uma mostra de figurinos de seis das peças analisadas em seu doutorado. A exposição, Trajes e cena, fica em cartaz, no Theatro Municipal de São Paulo, até 21 de junho, no Salão dos Arcos. Lá estão os figurinos de Os Cenci (Artaud), 1789 (Mnouchkine), As bodas de Fígaro (Stanislavski), Sonhos de uma noite de verão (Reinhardt) e Hamlet (Craig). "A principal característica do trabalho deles é a busca pelo PESQUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 85


Roupas de Sonho de uma noite de verão (alto), Os Cenci (abaixo, a esq.) e, de novo, Sonho (abaixo, à dir.): expressividade

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todo, pela integração de todos os elementos que integram um espetáculo. O figurino faz parte dessa procura, pois, além de integrar-se ao todo, ele veste e revela o núcleo mais importante do espetáculo: o ator e seu corpo", diz. Curiosamente, todo o processo teve início com uma constatação, hoje, óbvia: o mundo e, é claro, os atores que povocam esse mundo cênico são tridimensionais. Por séculos, encenadores se contentaram com figurinos belos e vazios e com cenários compostos de telões pintados. Todos os encenadores pesquisados por Viana perceberam que havia uma necessidade de mudança: era preciso uma nova cena, mais expressiva, para tirar o espectador da passividade. Todas as artes deveriam estar a serviço de um ideal maior do que a beleza: a adequação à dramaturgia. "Era preciso expressar a verdade cênica de dentro para fora, do interior do artista para seu exterior, como uma verdade vivida e não representada falsamente." O pioneiro nesse novo caminho foi um tímido suíço que pouco contato prático teve em sua vida com o mundo teatral, embora suas idéias tenham influenciado os criadores que o seguiram: Appia. Um apaixonado por Wagner, ele percebeu os limites da encenação bidimensional e as possibilidades de se reunir as artes por meio de um jogo de luzes, formas e cores. "Tudo o que é falso no palco desagrada a Appia. O que ele desejava era redirecionar o teatro, trabalhando-o como uma obra de arte viva que reúne todas as outras para atingir os espectadores", observa Viana. Quem, em verdade, levou ao palco suas teorizações foi um ator e diretor inglês, Edward Gordon Craig, que, a partir da pintura e da escultura, pretendeu lutar contra as formas de interpretação e representação arcaicas de seu tempo. E fez um dueto (algo problemático, por sinal) com um russo genial que igualmente queria mudar o teatro, Constantin Stanislavski. Juntos, montaram um Hamlet (em 1911, no Teatro de Arte de Moscou) antológico em que Craig pôde tentar romper a relação estática entre palco e platéia e defender a universalidade e a simplicidade dos figurinos como força dramatúrgica. O passo seguinte ficou para um francês, Antonin

Artaud, que igualmente queria o novo e admirava a pintura como inspiração. A ponto mesmo de empregar um pintor (embora ele, Artaud, fosse reconhecido como "um pintor no meio de comediantes"), Balthus, para realizar a cenografia e os figurinos de seu espetáculo, Os Cenci. "O ideal da 'limpeza cênica', a ausência de excessos, o uso de elementos que sejam significativos, que tenham uma simbologia evidente são opções appianas que Artaud incorpora ao seu trabalho", nota Viana. Artaud deseja, mais do que seus antecessores, a integração do figurino na ação e, para tanto, faz opções: o figurino, por exemplo, deveria ser o menos atual possível, uma "rejeição das modas atuais no que elas encerram de exterior e passageiro." Além disso, Artaud é pioneiro em trabalhar com elementos orientais, uma característica que marcará os encenadores posteriores. Ao analisar o Teatro de Bali, traz para seu teatro o ideal do figurino como mais do que uma roupa, antes um instrumento ritual. Bertolt Brecht levará esse novo conceito ao extremo em suas peças, abertamente fincadas em análises do teatro oriental e beneficiárias de suas conquistas. Para o alemão, nada deve estar em cena que não mereça estar em cena. A simplificação é a palavra de ordem. "Mas é uma simplicidade profundamente sofisticada e surgida da interação entre todos os que compõem o espetáculo. Você vê um traje de uma peça de Brecht e pensa que poderia tê-lo feito em casa. Mas é ilusão, pois havia um planejamento cuidadoso, de meses, para que uma roupa tivesse a textura ou a cor que procurava para seus personagens", diz Viana. A razão disso? Está nas palavras 0 PROJETO 0 Figurino das Revoluções Cênicas do Século 20: Um Estudo de Sete Encenadores MODALIDADE Bolsa de Doutorado COORDENADORA INGRID D0RM1EN KOUDELA - Escola de Comunicações e Artes/USP BOLSISTA FAUSTO VIANA - Escola de Comunicações e Artes/USP

de seu grande parceiro de cenografia: "Copiar a realidade não é suficiente; a realidade precisa não só ser reconhecida, mas também entendida". Daí, por exemplo, todo o significado da colher que a protagonista de Mãe coragem carrega no bolso de seu figurino. "O traje de um personagem brechtiano não é um traje literal. É uma linguagem que a roupa fala com o homem, as memórias, as misérias, as lutas que caíram sobre ele", na definição de Roland Barthes. Embora epígonos de teatros opostos, o mesmo ideal de cuidado com o figurino está presente nas criações de Stanislavski que, segundo Viana, continua sendo mal interpretado como um mero realista-naturalista. "Eles têm, para Stanislavski, um papel vital no processo de caracterização e são importantes para ajudar na nova relação entre atores e espectadores", nota o pesquisador. "Quando vocês tiverem criado um papel, saberão o quanto a peruca, a barba, as roupas são importantes para um ator criar um personagem. Um traje deixa de ser uma coisa simples e adquire, para o ator, uma espécie de dimensão sagrada", escreveu o russo. O hábito era fundamental para que um ator pudesse criar, no seu interior, um monge em toda a sua dimensão psicológica e externa. Foi, no entanto, Max Reinhardt que soube chegar a uma medida ideal entre o que o ator pretendia e o público desejava. "O que eu tenho em mente é um teatro que vá trazer alegria às pessoas", dizia. Para tanto, aumentou o status do figurinista e o deixou em igualdade com o iluminador, o cenógrafo e todos os demais envolvidos numa produção, a fim de que se atingisse a obra perfeita, capaz de "dar alegria" ao público. Assim como ele, Ariane Mnouchkine, a única encenadora viva pesquisada por Viana, a diretora do Thêátre du Soleil, considera os figurinos "como seus amigos". "Trate bem deles. Eles são seus inimigos se são malfeitos, se não ficam bem juntos. A pele pura é difícil de usar com máscaras", costuma dizer a francesa. "Os atores têm toda a liberdade de criação, o que faz com que o projeto inicial mude. Durante todo o processo de ensaio, eles têm à sua disposição as costureiras e muitos tecidos. De acordo com a necessidade do ator e da encenação, eles pedem para que o traje seja feito", conta Viana. • PESQUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 87


Vagas para rapazes e moças

I

ia 20 de junho de 1923 foi noite de conferências na Villa Kyrial. Reunidos na residência do senador Freitas Valle, na Vila Mariana, em São Paulo, um grupo animado de artistas e intelectuais mais uma vez discutia os rumos culturais do país. De repente, durante a palestra do escritor Mário de Andrade, Freitas Valle levantou-se da cadeira que usava como um trono para comandar os debates e, num grande gesto dramático, foi em direção à pintora Anita Malfatti. Disse que ela embarcaria para a Europa com uma bolsa do Pensionato Artístico. Anita naquele momento não sabia de nada. Menos de dois meses depois, a pintora embarcava no navio que a levaria para uma longa estada na Europa. Durante cerca de 20 anos, entre 1912 e 1931, o Pensionato Artístico do Estado de São Paulo ajudou artistas plásticos e músicos


a desenvolverem suas habilidades em grandes escolas e conservatórios da Europa. Anita Malfatti, o escultor Victor Brecheret, o pintor Túlio Mugnaini, o maestro Francisco Mignone ou o maestro João de Souza Lima partiram para estadas de muitos anos fora do país, que foram decisivas para suas carreiras. Mapear a contribuição do pensionato para a história cultural e artística de São Paulo é o objetivo do trabalho de pós-doutoramento da pesquisadora Mareia Carmargos, do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP). "Quero buscar respostas para as questões sobre esse período que foi lectual paulista", diz Mareia. "Contudo, também quero mostrar como o pensionato, na figura de Freitas Valle, cerceava e impunha parâmetros estéticos aos pensionistas." Para realizar o trabalho, ela teve acesso a uma documentação inédita - o acervo do próprio Freitas Valle, que agora está em seu poder. "Infelizmente uma grande parte do acervo desapareceu depois que ele morreu", afirma a pesquisadora. O senador guardava as cartas, esboços, fotos e quadros numa torre na Villa Kyrial. Mareia Camargos é autora de Villa Kyrial, crônica da Belle Époque paulistana (Senac, 2000), resultado de sua tese de doutoramento em História Social pela USP. No livro, ela analisa o papel que a residência do senador Freitas Valle teve como centro irradiador da cultura da cidade. A Villa Kyrial funcionava seguindo os moldes dos salões franceses. Lá aconteciam conferências, recitais de música, almoços e jantares solenes, degustação de vinhos ou mesmo animadas partidas de pingue-pongue em que se misturavam artistas de diferentes tendências, jornalistas, pianistas, maestros, políticos. "É o único salão organizado, único oásis a que a gente se recolha semanalmente, livrando-se da vida chã", dizia na época o escritor Mário de Andrade sobre a chácara da Vila Mariana. "Na verdade, esse novo projeto é um desdobramento natural do livro Villa Kyriaf, conta Mar-

La rentrée (1925), de Anita Malfatti, e Porteuse de parfums (1925), ao lado, de Brecheret

cia. Recebi muitos pedidos de ajuda por parte de outros pesquisadores interessados em conhecer melhor como funcionava o sistema do Pensionato Artístico de São Paulo." Ela acaba de lançar pela Companhia das Letras Em que ano estamos?" (192 págs., R$ 29), sobre o crescimento de São Paulo. O Pensionato Artístico do Estado de São Paulo foi homologado por meio do Decreto n° 2.234, de 1912. Sua criação foi defendida em um relatório por Altino Arantes, então secretário do Interior e responsável pelas bolsas, como essencial para o desenvolvimento da produção artística do país, já que São Paulo não possuía instituto de ensino superior, nem de artes plásticas nem de música. Os artistas contemplados receberiam uma passagem de primeira classe para a Europa e bolsa de estudos no valor de 500 francos mensais para ficarem em Roma ou Paris por cinco anos, que podiam se estender por mais dois. Se o custo de vida na Europa aumentasse muito, como aconteceu durante a Primeira Grande Guerra, a pensão era reajustada. O governo ainda arcava com as despesas de envio para o Brasil das obras feitas na Europa. "No caso das esculturas de Brecheret, por exemplo, esse transporte envolvia uma enorme soma de dinheiro", diz Mareia. Em contrapartida, os artistas tinham de se comprometer a mandar para o Brasil esboços, obras originais, programas de concertos de músicas apresentados lá, inscrições em salões são de seus estudos. "Muitos remetiam o material diretamente para a Villa Kyrial", observa Mareia. "E Freitas Valle ia acumulando esse material na torre de sua casa." Não era fácil conseguir uma bolsa do pensionato. Na verdade, apesar de o decreto estabelecer que deveria haver um rodízio entre os membros da Comissão Fiscal do Pensionato - entre os participantes estavam Ramos de Azevedo, Oscar Rodrigues Filho, Olívia Guedes Penteado, João Múrcio Sampaio Viana -, a decisão de se enviar ou não um candidato ficava nas mãos de Freitas Valle. Ao contrário do que costuma acontecer nos dias de hoje, a estada na Europa dependia de um favor pes-


soai de um membro do governo. Se o senador Freitas Valle não simpatizasse ou conhecesse o candidato, as portas estavam fechadas.

M

areia Camargos recuperou um artigo publicado na Gazeta Artística de São Paulo, de janeiro de 1912, em que o sistema de distribuição de bolsas pelo governo era bastante criticado: "O Estado, para servir ao deputado X, em conluio com o secretário F, auxiliados ambos por um membro da comissão, destina o óbulo a que tem direito o mendigo da arte, o sedento de luz, a um filho de família que dispõe de recursos próprios e desbriadamente pechincha caridade, ou a um menino de bons institutos, de boa vontade, mas vazio, incapaz", dizia o articulista. Essa fusão entre a esfera privada e o poder público era vista como natural naquela época em que os membros da elite econômica do país se revezavam no poder. Esse ambiente, ao mesmo tempo conservador e de vanguarda, em que se sentavam à mesma mesa tanto um defensor da arte acadêmica, como Freitas Valle, e um dos mais conhecidos

escritores do modernismo, como Mário de Andrade, é o que torna mais importante o trabalho da pesquisadora. Interessada em buscar as contradições e ambigüidades do período, Mareia acaba trazendo de volta uma instituição fundamental da história de São Paulo. O sistema do pensionato, dessa maneira, espelha as escolhas e impasses dos que estavam preocupados em transformar a cidade numa metrópole. Para alguns artistas que freqüentavam os saraus da Villa Kyrial, a ida à Europa foi um desdobramento natural de suas carreiras. Foi o caso dos maestros Francisco Mignone e João de Souza Lima. Ambos atribuem exclusivamente suas estadias no Velho Continente a Freitas Valle. Mignone pegou o navio na última hora, em 1919, por causa da morte prematura, devido à gripe espanhola, de Romeu Pereira. "O senador costumava dizer que, neste caso, Deus fechara uma porta para abrir um portão", conta Mareia Camargos. No caso de Souza Lima, o convite veio ao final de uma recepção em homenagem a Xavier Leroux, maestro e professor de composição do Conservatório de Paris. Ao ver o jovem pianista tocando uma música para acompanhar

Modelo vivo na Académie Julien: ateliê era destino de muitos bolsistas 90 ■ ABRIL DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 98

um poema de Freitas Valle, o maestro francês encantou-se com suas habilidades. "Imediatamente, o senador ofereceu uma bolsa de estudos a Souza Lima, que partiu para uma estadia prolongada", diz a pesquisadora. Nas cartas que os músicos enviavam regularmente à Villa Kyrial, ambos contam seus progressos e se referem às noites na Villa. Souza Lima lembra o pessoal da Lyra, isto é, o grupo de músicos que se reunia às quartas-feiras em saraus musicais. Já Mignone faz referência a uma nova maneira de musicar o Hino da Villa Kyrial, que, por sinal, teve diversas versões compostas por diferentes músicos. Para os pintores brasileiros com bolsa do pensionato que iam à Europa o destino certo em Paris era a Académie Julien. Fundada em 1868 por Rodolph Julien, a escola era um grande ateliê envidraçado no qual os estudantes pintavam um mesmo modelo. Até mesmo Tarsila do Amaral visitou a Académie Julien e trouxe a experiência para o Brasil em 1922, quando se juntou a Anita no Grupo dos Cinco, que reunia, além das duas pintoras, Mário e Oswald de Andrade e Menotti dei Picchia. No caso de Victor Brecheret e Anita, as coisas não foram tão fáceis. O es-


cultor italiano teve de contar com a ajuda do embaixador Souza Dantas, que interveio em seu favor em 1919. "Brecheret já residia em Roma desde 1913, onde estudava com a mesada enviada por uma tia idosa", diz Mareia. Depois do pedido do embaixador, a bolsa veio, em 1921. "Freitas Valle concedeu a bolsa contrariando, inclusive, o presidente do Estado, Washington Luís, que era avesso à idéia."

B

recheret, que faria parte da turma dos modernistas, teve de seguir os regulamentos do pensionato para ficar na Europa. Para tanto, ele usava um estratagema peculiar. Pouco antes de pedir uma renovação ou aumento de pensão, inscrevia-se num dos salões de arte acadêmica de Paris, bem ao gosto de Freitas Valle. No resto do tempo, o escultor expunha ao lado dos amigos no Salon d'Automne, no Salon des Tuleries ou no Salon des Indépendents. Com isso, o escultor conseguiu ao mesmo tempo manter a bolsa de estudos e as boas relações com Freitas Valle - e, além disso, continuar fazendo arte moderna.

0 PROJETO 0 Pensionato Artístico (1912-1931) na Construção da História Cultural Paulistana MODALIDADE

Bolsa de Pós-doutorado COORDENADORA MARTA ROSSETTI BATISTA - Instituto de Estudos Brasileiros/USP

BOLSISTA MáRCIA CAMARGOS - Instituto de Estudos Brasileiros/USP

Anita seguiu um outro caminho. Depois da exposição de 1917, em que a pintora chocou a cidade com sua pintura moderna, ela pouco a pouco foi seguindo um caminho próprio. "O expressionismo, trágico e desesperado, forte, contundente, 'másculo' mesmo, como insiste Mário de Andrade, jamais poderia ser a fala espontânea de uma natureza tão frágil, tão feminina como a de Anita", escreveu o crítico e escritor Paulo Mendes de Almeida (De Anita ao museu, Perspectiva, 1976), que conheceu de perto todos os personagens des-

sa história. "E por isso, penso, precisamente por isso, ela recuou", concluía. E foi assim que Anita Malfatti, aos 34 anos, partiu para Europa com bolsa do pensionato em 1923. Suas preocupações já não eram as mesmas da menina que chocou a cidade em 1917. Os críticos costumam fazer uma diferença brutal entre os dois períodos da pintura de Anita. Muitos culpam o pensionato, com suas rígidas regras de estudo em ateliês acadêmicos, pelas mudanças na arte de Anita. Outros falam de uma volta à pintura acadêmica depois dos arroubos da juventude. O interessante, contudo, é pensar que Anita representava os anseios de seu tempo. Os primeiros tempos do modernismo foram confusos e contraditórios, envolveram tanto jovens corajosos e impertinentes, nas figuras de Mário e Oswald de Andrade, como um mecenas conservador, autor de poesias simbolistas, o senador Freitas Valle. Quando Anita finalmente voltou ao Brasil, os tempos eram outros. O Pensionato Artístico seria dissolvido em 11 de abril de 1931, pouco depois da Revolução de 1930. Freitas Valle sairia de cena. E o modernismo entraria numa fase radical, misturando arte e política. Afinal, eram os loucos anos 30. •

Modernistas reunidos naVilIa Kyrial: conferências, saraus e pingue-pongue PESQUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 91


I HUMANIDADES

FOTOGRAFIA

O desfile da fé

brasileira Livro faz radiografia das festas religiosas nacionais

RENATA SARAIVA

Guardam-se as plumas e os paetês usados na avenida e entra-se no período da Quaresma, criada para a penitência, o silêncio e o abandono dos prazeres mundanos. Não é preciso chegar a Semana Santa para se descobrir que as festas religiosas brasileiras são tão ou mais exuberantes quanto o mais profano dos carnavais. Lançado recentemente pela editora Metalivros, o livro Festas áefé (230 páginas, R$ 120) faz as vezes da passarela, reunindo imagens das mais distantes manifestações religiosas nacionais. Da devoção ao Padre Cícero, no Ceará, à festa da Nossa Senhora de Achiropita, dos descendentes de calabreses em São Paulo, tudo são cores, fantasias e alegorias: festa de Iemanjá, lapinha, bumba-meu-boi, Corpus Christi, festa junina, ritual de passagem dos índios. Às belíssimas fotografias, feitas no decorrer de vinte anos por Rosa Gauditano, soma-se o texto de um profundo conhecedor da arte e da cultura brasileiras, Percival Tirapeli, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), que se iniciou no assunto em 1968. A edição, bilíngüe, é amarrada pelo projeto gráfico de Dora Levy, que enfatiza o didatismo pretendido pelo autor. "A linguagem é propositalmente simples e acessível, já que está voltada também para estrangeiros. Além disso, o livro foi distribuído em bibliotecas públicas em todo o território nacional", diz Tirapeli. Seu tex92 ■ ABRIL DE 2004 ■ PESOUISA FAPESP 98


Fé bem-humorada: festas seguem ciclos naturais da colheita e do plantio

to foi desenvolvido no decorrer dos últimos quatro anos, quando, além de já ter tido contato com as fotos de Rosa Gauditano, o pesquisador saiu a campo com a fotógrafa, clicando festas e manifestações religiosas como a Festa do Divino, em São Luís do Paraitinga, São Paulo. "Embora Rosa já tivesse um grande acervo quando a Metalivros decidiu realizar o livro, ela voltou a alguns locais para registrar as transformações ocorridas nas manifestações", conta o pesquisador. "Em São Luís do Paraitinga, por exemplo, ela tinha feito as primeiras fotos em 1984." Além da preocupação com a atualidade das imagens, Festas de fé é marcado por uma divisão das festas de acordo com a origem cultural de cada uma delas. Entre as ibéricas, baseadas no cristianismo popular, estão as celebrações de Natal (folias de reis, presépios, reisados, pastoris), a Semana Santa, as procissões (Corpus Christi e as que se dão sobre as águas), a Festa do Divino, as festas juninas, roma-

rias, santuários e outras. Já entre as manifestações afro-brasileiras, estão congos, congadas, maracatus, lavagem do Bonfim e festa de Iemanjá. O legado indígena está representado pelos rituais de passagem dos Wai'a e por manifestações que mostram a permanência da aculturação feita pelos portugueses. É o caso da Dança da Santa Cruz, que remete a um hábito dos primórdios da Colônia, quando os jesuítas plantavam uma cruz no centro das aldeias indígenas, em redor da qual se deveria dançar. Para que a contribuição européia não se resumisse à presença dos portugueses e espanhóis - não se pode esquecer que o período da união das Coroas esteve bastante presente na colonização brasileira -, Festas de fé ainda apresenta algumas festas religiosas italianas, como a famosa Achiropita, além das homenagens a Nossa Senhora de Casaluce, a mais antiga festa religiosa italiana em São Paulo, datada de 1900.

"A grande curiosidade das festas religiosas no Brasil é que elas seguem o calendário religioso europeu, de um lado, e os ciclos naturais do plantio e da colheita, de outro. Acontece que, como as estações são diferentes nos trópicos e na Europa, ocorrem discrepâncias, como o hábito de associar o branco da neve ao Natal", explica Tirapeli. Se a incongruência da neve está presente em uma festa extremamente urbana como o Natal, outras características naturais se sobrepõem às origens européias quando se fala em ritos e festividades praticadas no interior do país, principalmente nas áreas rurais. São os casos das procissões fluviais e marítimas, que se realizam em quase todos os estados, e respeitam a vocação do país, voltado para o oceano e cortados por grandes rios. Exemplos são a Nossa Senhora dos Navegantes, no Rio Grande do Sul, e o Círio de Nazaré, do Pará, que passou a se estender para várias cidades ribeirinhas desde 1992. Também Iemanjá, deusa das águas, facilitou a adaptação dos ritos de origem africana por aqui. • PESQUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 93


RESENHA

Uma obra ainda fecunda sobre o Brasil Artigos reavaliam a atualidade do pensamento de Gilberto Freyre SlMONE MEUCCI

Gilberto Freyre está na moda? É o que parece. Uma das manifestações mais visíveis da "badalação" em torno do autor é a recente reedição de parte significativa da sua obra. No universo acadêmico brasileiro também verificamos a elaboração de numerosas teses acerca de seus escritos. Críticos literários, sociólogos, antropólogos e historiadores ocupam-se em compreender as idéias do polêmico pernambucano. A pergunta que segue esta constatação é inevitável: por que esse repentino interesse por Gilberto Freyre? A leitura dos artigos de Gilberto Freyre em quatro tempos pode nos ajudar a responder a esta indagação. O livro contém uma amostra significativa dos trabalhos sobre o autor que estão sendo desenvolvidos hoje no Brasil. Os textos que o compõem foram apresentados na VII Jornada de Ciências Sociais realizada pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), de Marília, em novembro de 2000. Nas páginas deste livro, o que vemos são alguns dos melhores especialistas de diversas áreas de conhecimento reinterpretando tanto os escritos mais consagrados quanto os menos conhecidos de Freyre. Procuram reconhecer suas influências e diálogos, chamam a atenção para determinados fatores explicativos explorados pelo sociólogo, investigam a recepção de suas obras, decifram conceitos, apontam paradoxos. Os textos representam muito bem o fenômeno recente de reavaliação crítica da obra de Freyre. Segundo os organizadores do livro, é possível finalmente (agora que estamos mais distantes das polarizações ideológicas) que a interpretação da obra de Freyre seja mais criteriosa. Por trás da variedade de temas e abordagens dos artigos (que atestam a complexidade do sociólogo que é objeto das análises), percebe-se um esforço para identificar a contribuição de Gilberto Freyre para revelar (e, em alguns casos, ocultar) os processos sociais no Brasil. Destaco um dos artigos que é particularmente representativo disso: o de Jessé Souza, cujo título emblemático é A atualidade de Gilberto Freyre. 94 ■ ABRIL DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 98

O autor deste artigo propõe uma leitura alternativa de Casa-Grande & Senzala e SoEthel Volfzon brados e Mucambos. Para isso, Kosminsky, Claude lança mão de uma estratégia Lépine e Fernanda interessante: a de usar os daArêas Peixoto dos descritos nas obras con(organizadores) tra os argumentos do próprio Freyre. Deseja, assim, extrair Edusc/FAPESP/Unesp uma contribuição para o en380 páginas / R$ 49,00 tendimento das razões pelas quais não existem na sociedade brasileira cidadãos, mas apenas subcidaããos ou supercidadãos. Em primeiro lugar, Souza chama a atenção para a singularidade da sociedade colonial brasileira, marcada por uma forma peculiar de escravidão caracterizada por uma identificação (socialmente condicionada) dos escravos com os valores e a vontade do senhor. Este fenômeno permitiu, entre outras coisas, que no Brasil escravocrata negros fossem feitos feitores ou capitães do mato (situação impensável na escravidão norte-americana). Em seguida, Souza busca caracterizar o processo de modernização brasileiro. Constata que o Estado racional e o mercado capitalista foram instituições que, embora tenham ferido de morte o patriarcalismo, não foram capazes de criar a homogeneização das condições e oportunidades sociais. É que, segundo Souza, uma continuidade do passado colonial dificultou a formação de uma ideologia igualitarista no Brasil: a escravidão. Ela instituiu aqui um padrão perverso de inclusão e exclusão social. Por um lado, arremessou toda uma classe social - a dos escravos - para fora da função produtiva. Por outro, criou um mecanismo de regulação da ascensão social, garantindo-a apenas para aqueles que se identificavam com os valores dominantes. Esta discussão empreendida por Jessé Souza (cujo conteúdo apenas sugerimos) revela a fecundidade da reflexão sobre a obra de Freyre para a compreensão do Brasil contemporâneo e responde por que, afinal, o interesse pela sua obra. Gilberto Freyre em quatro tempos

SIMONE MEUCCI é mestre em

Sociologia, doutoranda em Ciências Sociais pelo IFCH/Unicamp e membro do Centro de Estudos Brasileiros (CEB/Unicamp).


LlUROS A Revolução dos Cravos Lincoln Secco Alameda Casa Editorial / FAPESP / Cátedra Jaime Cortesão (U SP/Camões) 296 páginas / R$ 38,60

No aniversário dos 30 anos do movimento revolucionário de abril, que pôs fim à ditadura em Portugal quase sem derramamento de sangue, a recém-nascida editora Alameda traz esse estudo pioneiro sobre a Revolução dos Cravos. Originalmente uma pesquisa de doutorado, o livro contou com o apoio da FAPESP e analisa como acabou o império colonial. Alameda Casa Editorial: (11) 3862-0850 alameda.casa.editorial@uol.com.br

0 outro lado da família brasileira Paulo Eduardo Teixeira Editora Unicamp 288 páginas/R$34,00

Focando seu estudo na região de Campinas, o pesquisador, que teve apoio da FAPESP, retrata o papel da mulher no movimento povoador resultante das culturas do café e do açúcar. Com a ajuda de escravos e agregados, essas mulheres mantiveram a família, cuidaram de fazendas e de parentes pobres, em geral na condição de viúvas ou com os maridos em lugares distantes. Com o auxílio de exemplos reais, essas mulheres retornam à vida no estudo. Editora Unicamp: (19) 3788-7235/7786 www.editora.unicamp.br ou vendas@editora.unicamp.br

0 dilema preventivista Sérgio Arouca Unesp/ Fiocruz 272 páginas / R$ 35,00

Ultimo livro do deputado federal e secretário Nacional de Gestão Participativa do Ministério da Saúde, originalmente tese de doutorado, esse estudo pretende criar uma teoria social da saúde no Brasil. Usando elementos conceituais marxistas, Arouca quis criticar a concepção liberal e individualista de que se constituía a medicina preventiva brasileira, vista por ele como mais do que apenas uma estrutura médica e como um movimento ideológico que coloca em xeque a medicina tradicional. Editora Unesp: (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br ou feu@editora.unesp.br

Com os índios Wauja objectos e personagens de uma colecção amazônica Aristóteles Barcelos Neto Museu Nacional de Etnologia 120 páginas/€ 10,00

Resultante de uma pesquisa que contou com o apoio da FAPESP, esse livro (há também um volume em versão inglesa) foi editado em Portugal pelo Museu de Etnologia. Fruto do trabalho feito para a realização da exposição Os índios, nós, traz um fascinante retrato sobre a tribo dos Wauja, do Xingu, mostrando a trajetória dos artefatos, do campo em que foram recolhidos até a chegada ao museu. Museu Nacional de Etnologia, Portugal mnetnologia@ipmuseus.pt

RELIGIÃO

COMO TRADUÇÃO

Religião como tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil colonial

Artes e ofícios de curar no Brasil

Cristina Pompa Edusc/Anpocs 444 páginas / R$ 58,00 ARIES E

Sidney Chalhoub, Vera Regina Beltrão Marques, Gabriela dos Reis Sampaio, Carlos Roberto Galvão Sobrinho Editora Unicamp 430 páginas / R$ 44,00

Uma forma inovadora de analisar como se deu o contato civilizatório entre ameríndios e colonizadores no Brasil. A pesquisadora reavalia a colonização padrão, vista em blocos monolíticos, e revela como houve, em verdade, uma sutil negociação entre as partes, uma verdadeira dinâmica ignorada pelos historiadores. Assim, a evangelização influenciada pelas culturas nativas.

Uma coletânea de artigos que traz respostas históricas para um problema que ainda nos incomoda: o estado da saúde no Brasil. As pesquisas falam da prática da medicina rudimentar, a cura, do século 17 até o início do século 20, com um painel que inclui barbeiros e cientistas.

Edusc: (14) 3235-7111 www.edusc.com.br ou edusc@edusc.com.br

Editora Unicamp: (19) 3788-7235/7786 www.editora.unicamp.br ou vendas@editora.unicamp.br

OFÍCIOS DE CURAR NO BRASIL

PESOUISA FAPESP 98 ■ ABRIL DE 2004 ■ 95


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