O câncer desafia a ciência

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Uma fêmea de camundongo nascida no Japão é o primeiro mamífero concebido a partir de duas células femininas, sem a contribuição de material genético masculino.

PESQUISA FAPESP 99 • MAIO DE 2004 • 3


www. revistapesq uis a.fapesp .br

46

CAPA

Avanços na pesquisa do câncer salvam muitas vidas, mas a doença ainda desafia a ciência

10

HOMENAGEM

REPORTAGENS POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

28

POLITICA INDUSTRIAL

Apoio à inovação tecnológica procura resgatar o papel da Finep e do BNDES

32

36

POLITICA PUBLICA

Nogueira Neto, aos 82 anos, estuda manejo e gestão ambiental

CIÊNCIA

54

BIOQUIMICA

Governos federal e paulista têm planos de construir fábrica de hemoderivados

34

FOMENTO

Instituto Uniemp cria agência para estimular a produção de fármacos

35 O adeus a Francisco Romeu Landi (1933-2004) 4 • MAIO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 99

AGRONOMIA

Pesquisadores concluem primeira fase do seqüenciamento do genoma do café

Descoberta nova função de triturador de moléculas no interior das células: criar novas proteínas


REPORTAGENS

56

BIOLOGIA

80

FARMACIA

93

PERSONALIDADE

A contribuição do sociólogo Octavio Ianni, morto no mês passado

94

LITERATURA

Editora carioca recupera com criatividade obras esquecidas no passado

Produção antecipada de enzimas reduz riscos de danos celulares causados pelo excesso de oxigênio no retorno da hibernação

59

82

FISICA lván lzquierdo fala sobre a arte de lembrar e esquecer

SEÇÕES

TECNOLOGIA

IMAGEM DO MÊS ........... .. ... 3

ZOOTECNIA

Novas linhagens de rã-touro utilizadas em cativeiro asseguram maior produtividade

74

NOVOS MATERIAIS

Sensores ultra-sensíveis, em escala nanométrica, diferenciam nuances na composição de líquidos e gases

78

ENTREVISTA

FESTIVAL

Experimentos aprofundam o conhecimento sobre a estrutura dos núcleos dos átomos

70

16

HUMANIDADES AGRICULTURA

Pulgões podem espalhar vírus suspeito de causar a morte súbita dos citros

60

Látex de pequeno mamão contém substâncias cicatrizantes para diferentes tipos de feridas da pele

ENGENHARIA

Empresa domina ciclo completo de produção de painéis solares que fornecem energia para satélites artificiais

CARTAS ........... . ....... ... . 6

Alunos e professores de São Paulo se reúnem em Minas para celebrar a música barroca

86

MEMÓRIA .. . .. .. ......... . .. . 14 ESTRATÉGIAS . .... . .......... . 22

MI DIA

Estudo avalia documentários sobre a natureza a partir de Amaral Netto, o Repórter e do Globo Ecologia

90

CARTA DO EDITOR . .............. 9

LABORATÓRIO ... . ...... .. ..... 42 SCIELO NOTÍCIAS . ........... .. 64 LINHA DE PRODUÇÃO .... .. ... .. 66 RESENHA .......... . .. .. .... . . 96 LIVROS ... .. .............. .. . .97

CULTURA

Estudo traz arqueologia da origem do debate sobre as artes no Brasil

Capa: Hélio de Almeida Foto: Miguel Boyayan Tratamento de imagem : José Roberto Medda

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cartas@fapesp .br

Versão on line Desculpem-me se a iniciativa já existe há algum tempo. Mas somente na edição no 98 tomei conhecimento da versão on line da revista Pesquisa FAPESP. Parabéns à FAPESP e à revista por esta extraordinária iniciativa de disponibilizar na Internet (a todos, indistintamente) a íntegra de tão conceituada publicação. Hoje em dia, em uma sociedade na qual a ótica principal é o lucro máximo (não é errado ter lucro; ele é necessário para que a empresa possa crescer e melhorar seus serviços e produtos) em detrimento do bem-estar e do desenvolvimento social e humano, é espantoso que uma publicação disponibilize na Internet, sem a tradicional cobrança da assinatura, seu rico conteúdo. Vale o exemplo de vocês. Que um número cada vez maior de assinantes (que pagam por sua assinatura, como eu) continue contribuindo para que a FAPESP e a Pesquisa FAPESP possam continuar a desempenhar este inestimável serviço para toda a sociedade. Se uma empresa age com consciência é porque as pessoas que a fazem também têm bom nível de consciência. Parabéns à FAPESP e à revista pela qualidade e pelo compromisso social e humano que seus ftmcionários e colaboradores têm. A NTONIO }OS" SAMPAIO C OUTO

São Paulo, SP

Revista Estou no terceiro ano do ensino médio e no mês de março tornei-me assinante de Pesquisa FAPESP. Congratulações à equipe responsável pela publicação, pois os assuntos abordados e as reportagens bem elaboradas vêm me auxiliando a compreender 6 • MAIO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 99

melhor as disciplinas escolares e me é possível adquirir informações além do que consta no material didático. L A!S ALVES RI CCI

São Sebastião do Paraíso, MG

Sei ELO Não sejam egoístas: nós também estamos comemorando a marca dos 120 periódicos disponíveis no SciE-

EMPRESA QUE APÓIA A PESQUISA BRASILEIRA

lJ) N OVART IS TroptNet.org

LO. Parabéns a todos: os que fazern.e os que usam o SciELO; com ele nosso trabalho ficou melhor e mais fácil. A sociedade ganhou. }ORG INO P OM PEU JúN IOR

Centro de Citricultura Sylvio Moreira Cordeirópolis, SP

Integração brasileira

sobre as sociedades indígenas complexas que existiram na região do Alto Xingu (que foram dizimadas pelo branco dito civilizado), sou obrigado a ler nome de brasileiro como "Afukaká Kuikuro" e "Urissapá Tabata Kuikuro". Estive no cartório e me informaram que aceitam nomes estrangeiros com W, K e Y. Será que índio brasileiro é estrangeiro? Um professor da Universidade de São Paulo disse-me que se escreve nome indígena com W, K e Y baseado em uma convenção da Sociedade Brasileira de Antropologia, ocorrida em 1953, na qual foi imposta a nós, brasileiros, essa norma, provavelmente para agradar às pessoas de língua inglesa e para tornar mais fácil para um norte-americano ler Kuikuro em vez de Cuicuro. Não sou contra norte-americano, mas espera um pouco. Aprendi que, quando um país ou um povo começa a perder sua língua, seus costumes, sua religião, sua música, seu folclore, suas tradições, está começando a perder sua identidade e sua soberania está sendo solapada. Escrever o nome de brasileiro usando alfabeto alienígena, pondo de lado o nosso, significa que estamos começando a perder o alfabeto que herdamos de nossos antepassados. C ESÁRI O L ANGE DA SILVA PI RES

São Paulo, SP Durante toda a minha vida, variadas vezes, tive de ver o nome de índio brasileiro escrito com as letras W, K e Y, letras estas que não existem em nosso alfabeto, como pode atestar qualquer aluno do curso primário. É intuitivo: se não existe no alfabeto, não pode ser empregado em nomes brasileiros. Alfabeto de índio brasileiro é o mesmo de meu netinho. Lendo a reportagem "A luz que o homem branco apagou" (edição no 92),

Febre reumática Tomo a liberdade de apontar impropriedades publicadas pela revista em sua edição no 98. No artigo intitulado "Cirurgia sem sangue" afirma-se que a febre reumática causa dor de garganta. Na verdade, o correto é o inverso: a febre reumática costuma resultar de infecções de garganta (amigdalites), quando estas são causadas


pelo Streptococo do grupo B, em pessoas com predisposição constitucional, de base genética, para desenvolver uma resposta imunológica anômala a antígenos daquela bactéria. Em seguida é afirmado que em estágios mais avançados a febre reumática pode atingir o sistema nervoso central, produzindo coréia de Sydenham. A coréia não ocorre em estágio mais avançado da febre reumática, mas é uma manifestação tardia (em geral meses depois do surto de febre reumática), em geral de evolução benigna, mesmo que demorada. Não existe relação entre a gravidade da febre reumática e o aparecimento ou não de coréia. Tanto quanto se sabe, a coréia sara sem deixar seqüelas. Valho-me da oportunidade para cumprimentar a FAPESP e o corpo de redação da revista pela habitual excelência da qualidade nas informações divulgadas. E DER TREZZA

Faculdade de Medicina da Unesp Botucatu, SP

Correções Em 7 mil exemplares da edição no 98 foi suprimida uma linha na reportagem "Cirurgia sem sangue", à página 55. A frase completa cuja linha não aparece é a seguinte: "No primeiro grupo, quase metade das crianças sofria de TOCou apresentava sintomas obsessivo-compulsivos, mas ainda não intensos o bastante para caracterizar o quadro típico de TOC': O nome científico correto do mexilhão dourado é Limnoperna fortunei e não Limnoperma fortunei como consta na reportagem "Um estranho nas geleiras do sul" (edição no 96).

Cartas para esta re vista devem ser enviadas para o e-mail cart as@fapesp.br, pelo fax (l l) 3838-41 81 ou para a Rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP, CEP 05468-90 1. As cart as poderão ser resumi das por moti vo de espaço e clareza.

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CURTA DO EDITOR

Pesquisa CARLOSVOGT PRESIDENTE

Reflexões sobre a morte e a vida

PAULO EDUARDO DE ABREU MACHADO VICE-PRESIDENTE CONSELHO SUPERIOR ADILSON AVANSI DE ABREU, CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, CARLOS VOGT, CELSO LAFER, HERMANN WEVER, HORÁCIO LAFER PIVA, MARCOS MACARI, NILSON DIAS VIEIRA JÚNIOR, PAULO EDUARDO DE ABREU MACHADO, RICARDO RENZO BRENTANI,VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO CONSELHO TÉCN1CO-ADM1NISTRAT1VO FRANCISCO ROMEU LANDI DIRETOR PRESIDENTE JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER DIRETOR ADMINISTRATIVO JOSÉ FERNANDOPEREZ DIRETOR CIENTIFICO PESUUISA FAPESP CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADORCIENTÍFICO, EDGAR DUTRA ZANOTTO, FRANCISCO ANTÔNIO BEZERRA COUTINHO, FRANCISCO ROMEU LANDI, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, JOSÉ FERNANDO PEREZ, LUIZ EUGÊNIO ARAÚJO DE MORAES MELLO, PAULA MONTERO.WALTER COLLI DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA EDITOR-CHEFE NELDSON MARCOLIN EDITORA SÊNIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS DIRETOR DE ARTE HÉLIO DE ALMEIDA EDITORES CARLOS FIORAVANTI (tlÍKCIA), CARLOS HAAG (HUMANIDADES), CLAUDIA IZIQUE (POLÍTICACS.T), HEITOR SHIMIZU (VEBSÃOON-LINE), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA) EDITOR ESPECIAL MARCOS PIVETTA EDITORES-ASSISTENTES DINORAH ERENO, RICARDO ZORZETTO CHEFE DE ARTE TÂNIA MARIA DOS SANTOS DIAGRAMAÇÃO JOSÉ ROBERTO MEDDA, LUCIANA FACCHINI FOTÓGRAFOS EDUARDO CÉSAR, MIGUEL BOVAYAN COLABORADORES ANA MARIA FERRAZ, ANDRÉ SERRADAS, BRAZ, EDUARDO GERAQUE (ON-LINE), FABRlCIO MARQUES, FRANCISCO BICUDO, LAURABEATRIZ, LILIANE NOGUEIRA, MARCELO HONÓRIO (ON-LINE), MARGÔ NEGRO, MARILI RIBEIRO, MARISA LAJOLO, MAYUMI OKUYAMA, NEGREIROS, SAMUEL ANTENOR, SÍRIO J. B. CANÇADO, RENATA SARAIVA, THIAGOROMERO (ON-LINE), YURI VASCONCELOS ASSINATURAS TELETARGET TEL. (11) 3038-1434 - FAX: (11) 3038-1418 e-mail: fapesp@teletarget.com.br APOIO DE MARKETING SINGULAR ARQUITETURA DE MÍDIA Sin9ular@slng.c0m.br PUBLICIDADE TEL: (11) 38384008 e-mail: mpiliadis@fapesp.br (PAULA 1LIADIS) PRÉ-IMPRESSÃO GRAPHBOX-CARAN IMPRESSÃO PLURAL EDITORA E GRÁFICA TIRAGEM: 44.000 EXEMPLARES DISTRIBUIÇÃO DINAP CIRCULAÇÃO E ATENDIMENTO AO J0RNALE1R0 LMX (ALESSANDRA MACHADO) TEL: (11) 3865-4949 atendimento@lmx.com.br GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP FAPESP RUA PIO XI, N" 1.500, CEP 05468-901 ALTO DA LAPA - SÃO PAULO - SP TEL. (11) 3838-4000 - FAX: (11) 3838-4181

http://www.revistapesquisa.fapesp.br cartas@fapesp.br NÚMEROS ATRASADOS TEL. (11) 3038-1438

Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAPESP É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

FUNDAÇÃO DE AMPARO A PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO SECRETARIA DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA, DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E TURISMO GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

AFAPESP viveu pela primeira vez, em seus 42 anos de existência, b> a dura experiência da morte inesperada de um dirigente da instituição em pleno exercício do mandato. Seu diretor-presidente, Francisco Romeu Landi, trabalhou normalmente ao longo da quinta-feira, 22 de abril, e quando voltava para casa no começo da noite, morreu, vítima de infarto. O professor Landi, como o chamavam todos na Fundação, jeito sempre afável, alegremente brincalhão com os mais próximos, mas de uma obstinação a toda prova ainda que suave na defesa de seus pontos de vista, estava no cargo desde 1997, depois de ter sido entre 1995 e, 1996 presidente do Conselho Superior da FAPESP. Atravessava seu terceiro mandato, que só terminaria em agosto de 2005. Assim, entre perplexidade e tristeza, a Fundação faz agora a necessária travessia do luto. E nela cabem inúmeras homenagens a quem se dedicou tanto aos problemas da ciência e tecnologia no Brasil. Entre elas, alinhamos o texto que começa na página 10 desta edição de Pesquisa FAPESP- que, aliás, sob o comando do professor Landi, transitou de modesto boletim de notícias a revista de divulgação científica. A reportagem de capa desta edição, a partir da página 46, também leva a inevitáveis reflexões sobre vida e morte. O editor especial, Marcos Pivetta, mergulhou profundamente no assunto e trata ali de circunscrever os limites dos atuais tratamentos do câncer, doença que é hoje a segunda grande causa de morte no país, já que dela decorrem nada menos que 13,2% de todos os óbitos. Procura verificar os avanços efetivos da pesquisa científica nesse campo, após algumas décadas de investigação transcorridas entre momentos de euforia e desesperança, e os desafios que estão postos para os pesquisadores, no Brasil inclusive, para que um diagnóstico de câncer mais e mais deixe de soar para cada paciente como algo muito próximo de uma sentença de morte. Nem só das revoluções sombrias do corpo humano, contudo, trata a edita-

ria de Ciência nesta edição. A entrevista com o neurologista Ivan Izquierdo, a partir da página 16, caminha luminosa por entre as descobertas dos mecanismos de omissões, ocultamentos, esquecimentos, lembranças e relembranças que vão compondo essa fascinante propriedade humana chamada memória. E é de extraordinário interesse o trecho em que o pesquisador se refere à recente retomada, no âmbito da neurociência, do conceito, tão importante na teoria freudiana, de repressão ou memória reprimida, graças à constatação científica de sua veracidade. Uma sensação luminosa, algo celestial, também pode resultar da leitura sobre o festival de música da pequena cidade mineira de Prados, realizado em meados de julho, há 26 anos. Idealizado pelo maestro Olivier Toni, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, hoje aposentado, trata-se de um festival muito singular, como relata a partir da página 82 o editor-chefe da revista, Neldson Marcolin. Primeiro, ele se desenvolve numa completa interação entre músicos de fora e população local e, segundo, está centrado em antigas e mal conhecidas peças sacras brasileiras, escritas por negros e mulatos. É bela a música do século 18 que ali se ouve e a cada ano podem vir à luz raridades que não são executadas há mais de 200 anos. Para finalizar, a reportagem do editor de Humanidades, Carlos Haag, a partir da página 86, a respeito de um estudo que avalia documentários sobre a natureza produzidos para a televisão brasileira, nos traz de volta e finca bem nossos pés no chão da cultura contemporânea do espetáculo. E nela, esse estudo percebe, as questões ambientais tendem a ser tratadas com recursos bem mais próprios do campo ficcional que do jornalismo, os animais podem ser antropomorfizados até a náusea, a narrativa parece ganhar cores de relatos vivos de guerra. Vale conferir.

MARILUCE MOURA

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DIRETORA DE REDAçãO

PESQUISA FAPESP 99 ■ MAIO DE 2004 ■ 9



OMENHGEM

Construtor obstinado Francisco Romeu Landi, diretor da FAPESP, era um especialista em reunir talentos para equacionar questões de C&T Francisco Romeu Landi, diretor-presidente do Conselho Técnico-Administrativo da FAPESP, morreu no dia 22 de abril, aos 71 anos. Deixou uma extensa e bem-sucedida biografia, uma agenda ainda repleta de compromissos, e muitas saudades. Landi foi fundador e era presidente do Fórum Nacional das Fundações de Amparo à Pesquisa (FAPs) e membro do Conselho de Administração do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). A convite do ministro Eduardo Campos, da Ciência e Tecnologia, preparava-se para integrar a equipe responsável pela organização da 2a Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia; negociava a representação das FAPs no Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia; e acompanhava de perto a produção e a edição dos Indicadores de Ciência Tecnologia e Inovação no Estado de São Paulo 2003, que será lançado pela FAPESP nos próximos meses. Cuidava, pessoalmente, da homenagem que a FAPESP prestará a Alberto Carvalho da Silva, no dia 13 de maio, que, como Landi, foi diretor-presidente da Fundação. Em agosto, deveria abrir, em Londres, como convidado especial, o congresso mundial da União Internacional das Instituições de Defesa Ambiental e Controle da Poluição (Iuappa). Uma semana antes de sua morte, esteve no Chile, representando a Fundação na cerimônia de inauguração do telescópio Soar (sigla de Southern Observatory for Astrophysical Research), projeto que contou com o financiamento da FAPESP. Na tarde do dia 22, participou de uma reunião do Conselho Técnico-Administrativo da Fundação, em que se detalhou a portaria do Conselho Superior flexibilizando a dedicação exclusiva de bolsistas (ver nota à página 27). Deixou a FAPESP no começo da noite, comprou pão na padaria e morreu, vítima de infarto, a caminho de casa, onde vivia com a esposa Marísia. Sem tergiversar e discretamente, como sempre. Seu corpo foi velado na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), instituição na qual se formou e da qual foi professor titular e diretor. Centenas de amigos lhe prestaram a última de tantas homenagens que ele teve em vida. Em 2003, os seus 70 anos foram comemorados com um simpósio, organizado pelo Centro Interunidade de História da Ciência da USP, que tinha como tema uma de suas obsessões: Financiamento da pesquisa e desenvolvimento da nação brasileira, cujos anais serão, em breve, publicados PESQUISA FAPESP 99 ■ MAIO DE 2004 ■ 11


pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), instituição da qual Landi foi vice-presidente. Em 2000, recebeu o título de Eminente Engenheiro do Ano, do Instituto de Engenharia; em 1999, o de Chevalier dans TOrdres de Palmes Académiques, do Ministério da Educação Nacional da Pesquisa e da Tecnologia da França, além do prêmio Professor do Ano, conferido pela Poli; em 1998, recebeu o Troféu Personalidade de Pesquisa e Educação, do Sindicato dos Engenheiros do Estado de São Paulo; e em 1992, o de Cavaleiro da Ordem do Mérito Naval, da Marinha brasileira. Engenheiro especializado nos aspectos da física das construções e da termodinâmica, Landi, paulistano nascido a 22 de março de 1933, dedicou mais de 50 anos de sua vida à Escola Politécnica. Educador, formou gerações de estudantes, inclusive seus três filhos, Paula, Fernando e Francisco, todos engenheiros. Sempre se pautou pelo princípio de que a tecnologia tem profunda repercussão na sociedade e é elemento crucial para as mudanças sociais. Reconhecia o papel indispensável do Estado na formulação de políticas públicas que estimulassem a inovação. E sonhava com a sociedade do conhecimento "sem fronteiras, dinâmico, democrático". "Será uma sociedade de sêniores e de juniores e não de chefes e subordinados", previu em sua palestra durante o seminário que comemorou seus 70 anos, juntando suas idéias às de Peter Drucker. "Os engenheiros necessitarão de uma visão de dupla ou até múltipla cultura", alertou. "Preocupa-me a formação do engenheiro em uma sociedade que se transforma tão rapidamente. Como organizar um curso de engenharia no qual devemos ensinar tecnologias que ainda não foram criadas? De que maneira devemos completar a formação do engenheiro com psicologia comportamental, criatividade, trabalho em equipe, empreendedorismo, cidadania, de maneira a poder enfrentar os novos desafios que se apresentam?", indagava-se. E foi atrás de resposta: mergulhou de cabeça no projeto Poli 2015, que tem como meta transformar a Escola Politécnica para mantê-la como referência nacional e internacional em ensino, pesquisa e extensão universitárias. Landi, ele próprio, era um humanista. Fazia "uma espécie de ponte" entre as ciências humanas e a engenharia, nas palavras de Shozo Motoyama, diretor do Centro Interunidade de História da Ciência da USP. Projetava a educação no mesmo cenário da ciência e da tecnologia. Daí a sua agilidade de transitar em áreas aparentemente tão díspares. "A história da consolidação das instituições de ensino superior no Brasil, e particularmente em São Paulo, está profundamente ligada à atuação de Landi", afirma Carlos Vogt, presidente da FAPESP. "Isso refletiu no seu trabalho como diretor da Poli e na sua presença em quase todas as funções de direção da FAPESP, onde teve papel destacado no cumprimento 12 ■ MAIO DE 2004 ■ PESUUISA FAPESP 99

dos objetivos sociais da instituição, ou seja, no apoio regular e sistemático ao desenvolvimento da ciência e tecnologia." Sua determinação e extrema simpatia pautavam sua agenda de trabalho, dentro e fora da FAPESP. Landi era um obstinado. Em 1996, atendendo a um pleito da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), iniciou a organização do Fórum das Fundações de Amparo à Pesquisa. "Na época, eram dez FAPs em todo o país, hoje são 22. Só faltam Roraima, Rondônia, Amapá, Tocantins e Espírito Santo", contabilizou Landi, na última entrevista à revista Pesquisa FAPESP, em março. Ao mesmo tempo que implantava o sistema, lutava pela autonomia administrativa e financeira das fundações e pelo respeito aos repasses dos recursos previstos nas Constituições estaduais. "É preciso respeitar a lei", indignava-se. Para Jorge Bounassar Filho, presidente da Fundação Araucária (FAP do Paraná), a facilidade de relacionamento e de liderança contribuiu para que ele organizasse as fundações em nível nacional. Landi era "o homem certo, no lugar certo". Tanto que foi eleito por unanimidade para o seu segundo mandato no comando do Fórum das FAPs. "Landi era o grande líder. Tinha sensibilidade para agregar questões sociais e compreender as dificuldades do setor. Determinado, sempre vislumbrava resultados permanentes", afirma Acácio Salvador Veras e Silva, presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Piauí (Fapepi). "Tinha o perfil de um engenheiro, mas era um humanista", completa José Geraldo de Freitas Drumond, presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig). "O nosso Fórum nunca mais será o mesmo", afirma Marcos Brasileiro, presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Paraíba. Landi foi membro do Conselho Superior da FAPESP por cinco anos e seu presidente, em 1995 e 1996, antes de assumir o cargo de diretor-presidente, naquele ano. "O cargo de diretor-presidente requer qualidades pessoais que eram dele: articulação e poder de integração", diz José Fernando Perez, diretor científico da FAPESP. No período em que esteve na linha de frente da Fundação, Landi pautou a sua ação tendo por base duas das atribuições da instituição previstas em seus estatutos: a divulgação do conhecimento científico e a promoção periódica de estudos sobre o estado geral da pesquisa em São Paulo e no Brasil, bem como de estudos históricos e de avaliação do impacto das pesquisas na sociedade que pudessem servir como instrumento de formulação de política científica e tecnológica. Um resultado da primeira dessas atribuições divulgação do conhecimento científico - é a própria revista Pesquisa FAPESP. Iniciada em 1995 como o boletim Notícias FAPESP, com quatro páginas e tiragem de mil exemplares dirigidos a pesquisadores


paulistas, foi na gestão Landi na diretoria da presidência, à qual o setor de comunicação estava subordinado, que a publicação se transformou efetivamente e, como tal, começou a crescer. Nos quatro anos em que foi o Notícias FAPESP - antes que se constituísse um conselho editorial e que a revista se tornasse projeto especial ligado à Diretoria Científica - era ele quem lia todas as edições do informativo. As reportagens, a seu ver, estariam boas quando ele fosse capaz de ler com gosto sobre qualquer assunto e sem nenhuma dificuldade de compreensão. Esse critério guiou os passos da revista no seu crescimento. Também coordenou a edição dos livros Vigor e inovação na pesquisa brasileira e Do laboratório à sociedade, trazendo reportagens sobre resultados de projetos temáticos financiados pela FAPESP. Também foi Landi quem incentivou estudos na área de história da ciência e promoveu a publicação de livros como FAPESP: uma história de política científica e tecnológica e FAPESP: marcos documentais, que reconstitui a criação e a atuação da Fundação até 1998. "...Documentar a história da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo" - escreveu ele no prefácio do livro - "é uma maneira de conhecer e preservar a memória dos homens que, desde o começo da década de 40, pensaram e conceberam essa instituição - cientistas, engenheiros, políticos, administradores públicos. É uma forma de rever as idéias que nortearam sua criação e consolidação. É também uma forma de reflexão sobre um modelo

V

Landi sonhava com a sociedade do conhecimento "sem fronteiras, dinâmico e democrático"

vitorioso de administração de política de ciência e tecnologia proposta pelos próprios cientistas." Mas Landi pensava o Brasil. Os livros 50 anos do CNPq contados pelos seus presidentes, com depoimentos e entrevistas com dirigentes do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, e Prelúdio para uma história: ciência e tecnologia no Brasil - a ser lançado em breve numa co-edição FAPESP/Edusp - são exemplos disso. "Editar os depoimentos de pessoas que estiveram no centro dos acontecimentos ajuda a entender o porquê dos objetivos definidos por aquelas instituições. Tem o sabor de entender as lutas internas e externas que se estabeleceram e, acima de tudo, perceber que essas lutas foram ganhas, ou melhor, por que foram ganhas", afirmou no prefácio do livro 50 anos do CNPq. A implantação na FAPESP de um setor responsável pela produção de indicadores paulistas de ciência e tecnologia também foi obra sua. Achava que a organização de uma ampla base de dados sobre a situação da ciência e da tecnologia permitiria planejar as ações de política e de investimento. Coordenou a produção e edição dos Indicadores de 1998 e de 2001 e acompanhava a edição de 2003. Coube a Landi, também, desenvolver e coordenar o Programa Biblioteca Eletrônica (ProBE), que deu origem ao Portal de Periódicos da Capes Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Também foi ele quem coordenou o projeto de criação do Centro de Documentação e Informação (CDI), informatizado e em implantação, que reúne banco de dados contendo toda a memória da FAPESP. •


MEMóRIA

União pela ciência CERN completa 50 anos como um bem-sucedido exemplo de cooperação internacional NELDSON MARCOLIN

N

o final dos anos 1940, quem olhasse para a Europa veria um cenário desolador. Mal saídos da Segunda Grande Guerra, os países europeus estavam em frangalhos, lutando pela própria reconstrução à sombra do esmagador poderio econômico e bélico de norte-americanos e soviéticos. Na ciência, a situação não era melhor. Os Estados Unidos atraíam alguns dos principais pesquisadores do mundo, seduzidos pelas excelentes condições de trabalho e perspectivas de realização de projetos importantes. Mas, como sonhar nunca foi proibido, um grupo de físicos que incluía Isidor

14 ■ MAIO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 99

Isaac Rabi, Ugo Amaldi, Pierre Auger e Denis de Rougemont percebeu e passou a pregar - que a cooperação entre as nações européias era o único caminho para se fazer pesquisa de ponta naquelas condições precárias. Nenhum país conseguiria, sozinho, bancar um grande programa de pesquisa nuclear, tema sobre o qual estavam voltadas as atenções. Sensibilizada, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) recomendou, em 1950, a instalação de um laboratório europeu e, três anos depois, uma convenção foi assinada por 12 países criando o Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (CERN, na sigla

em francês). Apenas um ano depois, em 1954, começaram as escavações em Genebra, na Suíça, para a construção da instituição, um laboratório de física debaixo da terra com gigantescos aceleradores de partículas, essas grandes máquinas circulares que provocam choques entre elas - o maior deles, o Large Hadron Collider, tem 27 quilômetros de circunferência. A colisão entre partículas serve a objetivos diversos: entender algo tão grandioso como a origem do Universo ou tão corriqueiro (nos dias de hoje) como desenvolver melhores equipamentos médicos, para pesquisa ou para a indústria. São as partículas atômicas que formam os átomos, que por


Integrantes do CERN observam começo da escavação, em 1954 (esc/.). Acima, o círculo de 27 km mostra onde fica o túnel do acelerador LHC

sua vez compõem toda a matéria que se conhece. Algumas dessas partículas são estáveis e conhecidas. Outras vivem por frações de segundos e se transformam. De acordo com as teorias mais aceitas, todas elas conviveram por alguns instantes depois do Big Bang, a grande explosão que teria dado origem ao Universo. Somente uma enorme concentração de energia, como a que ocorreu naquele momento, poderia recriá-las. Um acelerador faz isso: simula condições semelhantes ao ambiente de cerca de 13,5 bilhões de anos atrás, quando tudo teria começado. É como se fosse possível voltar no tempo e estudar detidamente quais partículas existiram e como

Engenheiros em uma das câmaras do CERN (acima). Ao lado, a descoberta das partículas W e Z, que deram um Nobel a Rubbia eVan der Meer

foram geradas. Experimentos como esse deram o Nobel de Física de 1984 para Cario Rubbia, italiano, e Simon van der Meer, holandês, pela descoberta das partículas W e Z. O trabalho confirmou a unificação das forças eletromagnética e fraca, que regem o comportamento do átomo. Foi também no CERN que o inglês Tim Berners-Lee criou, em 1990, a World Wide Web, o www que possibilitou a Internet tornar-se algo muito fácil

de usar. O CERN cresceu e hoje tem 20 países integrando a instituição em caráter permanente: Alemanha, Áustria, Bélgica, Bulgária, Dinamarca, Espanha, Eslováquia, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Hungria, Itália, Noruega, Polônia, Portugal, Suécia, Suíça, Reino Unido e República Tcheca. Há também outros países, como o Brasil, que participam de programas do centro. O brasileiro Roberto Salmeron foi um

dos dez primeiros físicos experimentais contratados pelo CERN, poucos meses depois de ter sido fundado, onde trabalhou por 37 anos e meio entre idas e vindas. "O CERN é o mais bem-sucedido exemplo de colaboração internacional, não somente em ciências, mas em qualquer domínio", afirma Salmeron. "É um exemplo de sucesso e tem sido tomado como modelo para a organização de outras instituições internacionas e nacionais."

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ENTREVISTA: IVAN IZQUIERDO

Lembranças e omissões Neurocientista fala sobre a importância das memórias e também do esquecimento

MARCOS PIVETTA

Com um sotaque carregado que ainda trai a sua terra natal, a platina Buenos Aires, o médico e neurocientista Ivan Izquierdo, 66 anos, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é um dos maiores especialistas em fisiologia da memória do mundo. Produtivo como poucos, dono de um currículo com mais de 500 artigos científicos, que já foram citados quase 8 mil vezes em trabalhos de outros pesquisadores, Izquierdo conduziu estudos que, nas últimas três décadas, ajudaram a entender o papel desempenhado por substâncias químicas e estruturas cerebrais na formação, preservação e perda das recordações e lembranças. Uma de suas contribuições mais importantes foi a demonstração de que existem duas divisões da memória, a de curta e a de longa duração, que se formam em paralelo, mas de maneira diferente. "Somos exatamente o que nos lembramos e também somos aquilo que não queremos lembrar", diz esse leitor assíduo de seu compatriota lorge Luis Borges. Casado com uma gaúcha e com amigos deste lado da fronteira, Izquier16 ■ MAIO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 99

do deixou a Argentina em 1973, "quando a situação política era muito ameaçadora", e rumou para pátria de sua mulher. Morou três anos em São Paulo, onde trabalhou na Escola Paulista de Medicina (hoje Universidade Federal de São Paulo), antes de se fixar em Porto Alegre. Achava que o Brasil era apenas uma escala em sua vida, mas estava enganado. Acabou ficando porque, entre outras razões, aqui a ditadura militar acenava com a perspectiva de uma abertura lenta e gradual do regime. "E na Argentina veio um fechamento súbito e total", afirma. Em 1981, quando se sentiu "mais um da casa" no novo país, naturalizou-se brasileiro. Hoje, se define como um "Meligeni da ciência", numa referência ao tenista Fernando Meligeni, nascido na Argentina e também naturalizado brasileiro. Izquierdo, aliás, recorre com freqüência a ídolos do esporte - e da literatura - para explicar conceitos das neurociências, como o leitor verá nesta entrevista. Formalmente aposentado desde o ano passado, continua na ativa, à frente do Centro de Memória do Instituto de Biociências da UFRGS.

■ Por que o senhor resolveu estudar os mecanismos da memória? — Porque achei - e acho ainda - que é um mecanismo que tem sempre algo de misterioso por trás, algo que diz respeito a quem somos. Somos indivíduos porque temos memória. Somos exatamente aquilo que lembramos. Cada um de nós tem um certo acervo de memória que é peculiarmente nosso, que não compartilhamos com ninguém. Tudo isso me pareceu suficientemente interessante para eu me dedicar a esse tema para o resto da vida. ■ Hoje quanto ainda há de mistério para a ciência sobre a questão da memória? — Bem, sempre haverá um mistério, que é o fato de a memória envolver, de certa forma, transformações da realidade que a gente enxerga, ou que a gente sente, em um código neuronal. E, depois, eventualmente esse código neuronal - que é elétrico e é químico, as duas coisas - se retransforma em expressões daquilo que nos lembramos, se transforma em lembranças, recordações. Sempre haverá algo que fará com que isso seja eternamente misterioso.


■ Quais são as principais contribuições dadas pelo seu grupo de pesquisa para o melhor entendimento de como se forma a memória? — A primeira grande contribuição nossa, junto com outros grupos, foi a determinação dos grandes mecanismos cerebrais que modulam a memória, de diversos mecanismos mediados por neurotransmissores, como a serotonina, a dopamina e a noradrenalina, ou por hormônios, como a adrenalina, a betaendorfina, a vasopressina e os corticóides. Isso foi nos anos 1970. Nessa linha de trabalho, destacaria a descoberta dos mecanismos de ação da nicotina e da anfetamina e, mais tarde, da beta-endorfina sobre a memória. A modulação da memória por todas essas substâncias faz com que a formação e a evocação da memória sejam tão sensíveis às emoções e aos estados de ânimo. Mais recentemente identificamos sobre quais substratos moleculares das áreas cerebrais, que fazem e evocam memórias, atuam essas substâncias, e de que maneira (elas atuam). A segunda contribuição importante foi o estudo dos mecanismos moleculares reais da memória,

sobretudo no hipocampo. Isto se iniciou em meados dos anos 1980, quando começou a haver modelos úteis sobre os quais se podia trabalhar. Essa linha de pesquisa nos permitiu conhecer em detalhe a seqüência molecular dos processos de formação das memórias no hipocampo e em outras regiões cerebrais. A terceira grande contribuição foi a divisão da memória em memória de curta e de longa duração. Ao contrário do que se pensava, demonstramos que as divisões da memória são dois processos paralelos e diferenciados. Demonstramos que a memória de curta duração não era a parte inicial da outra, a memória de longa duração. Isso é de grande importância na patologia da memória. As contribuições mais recentes nossas consistiram em identificar os mecanismos envolvidos na evocação, em várias regiões cerebrais, os mecanismos moleculares da extinção das memórias e, ultimamente, os mecanismos do que resultaram ser uma forma diferente de memória: a memória de aprender novamente. É diferente da memória de aprender mais e diferente da evocação.

■ O senhor poderia explicar em mais detalhes o funcionamento dessas duas divisões da memória, a memória de curta e a de longa duração? — São duas memórias que se disparam ao mesmo tempo, que se formam nas mesmas células nervosas, mas utilizam mecanismos moleculares separados. Você aprende algo e a memória definitiva dessa coisa que você (ou qualquer animal) aprendeu leva várias horas para ser formada. Ainda assim, enquanto essa memória de longa duração não está construída, você consegue responder (a uma questão que envolva esse aprendizado). Para podermos conversar durante esta entrevista, você não tem por que esperar que se consolide a memória da frase anterior, que levará várias horas. Não é preciso fazer isso. Você na hora responde ao que eu digo e eu respondo ao que você diz. Para fazermos isso, utilizamos um sistema paralelo à memória de longa duração, um sistema mais simples, um pouco mais elementar e menos estável, que se denomina memória de curta duração. Ela se parece com a memória de trabalho (RAM) dos computadores. PESQUISA FAPESP 99 ■ MAIO DE 2004 ■ 17


■ Essa memória de curta duração subsiste por quanto tempo? — Mais ou menos de três a seis horas. A melhor analogia que conheço para diferenciar essas duas memórias é a situação de quando vamos morar num hotel enquanto constróem a nossa casa. O hotel é a memória de curta duração, provisória, e a casa será a de longa duração. ■ Hoje qual é a sua principal linha de pesquisa? — A partir da década de 1990, mais ou menos, começamos a trabalhar em colaboração com o grupo de Jorge Medina, da Faculdade de Medicina da Universidade de Buenos Aires, nos mecanismos que realmente participam da memória. Nessa época, começou a ficar claro no mundo que o principal neurotransmissor não é nenhum dos que mencionei antes, mas sim o ácido glutâmico. A grande transmissão excitatória do cérebro é glutamatérgica, e a grande transmissão inibitória é pelo aminoácido gama-amino-butírico. Então começamos a estudar os mecanismos que são promovidos ou postos em ação por esses compostos. Enquanto Eric Kandel (prêmio Nobel de Medicina em 2000), por exemplo, demonstrava os mecanismos moleculares da plasticidade neuronal em moluscos, passamos a estudar os mesmos processos, ou outros parecidos, em memória de mamíferos. ■ Mais especificamente, qual é o tema de seus trabalhos mais recentes? — Ainda nem terminamos de escrever o trabalho, mas estamos demonstrando que, quando a gente aprende duas vezes, utiliza mecanismos diferentes dos usados para aprender uma coisa uma vez. É diferente aprender em uma ou em duas lições. Você utiliza outro lugar do cérebro. Para aprender duas vezes, você utiliza o mesmo mecanismo que está envolvido com os hábitos, localizado no corpo caudato. Para aprender uma vez, seja para aprender muito ou pouco, utiliza-se mais o hipocampo. Isso talvez seja muito importante, porque a maioria das coisas nós não aprendemos bem de cara, senão em várias sessões. ■ Essa distinção vale para o aprendizado de conceitos? — Não sei. Por enquanto, sabemos que essa diferença aparece no rato que aprende a não descer uma plataforma para 18 ■ MAIO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 99

não receber um choque. É o aprendizado de um comportamento induzido, de um reflexo condicionado. Mas, veja, todos os aprendizados são reduzíveis a comportamentos ou seqüências de comportamentos. Todos. ■ O senhor poderia explicar os dois grandes tipos de memória, a declarativa e a de procedimentos? — Em geral, as memórias declarativas são aquelas que o humano pode expressar, pode declarar que existem. Por exemplo, a memória da medicina. Eu posso dizer e demonstrar que me lembro das coisas da medicina. Em animais é mais difícil identificar esse tipo de memória. Neles, a gente utiliza memórias que se assemelham àquelas que o humano pode declarar. As memórias declarativas podem ser semânticas ou episódicas. Nós nos lembramos de episódios da própria vida, o animal também. Nós nos lembramos de conceitos de grandes coisas, como a medicina, e o animal também. Já as memórias de procedimentos são aquelas que envolvem hábitos, por exemplo, saber tocar um teclado, saber nadar, andar de bicicleta. Esses são procedimentos. É difícil explicar esse tipo de memória, declarar que existe; só se pode demonstrar através da prática de um procedimento: tocar um teclado, nadar efetivamente, andar mesmo de bicicleta. ■ Por que, com o tempo, a gente vai perdendo as memórias, mesmo as de longa duração? — Há várias formas de perder memórias. Uma é a perda mesmo, que ocorre quando uma sinapse se atrofia pela falta de uso, ou desaparece por dano ou morte celular. Esse é o esquecimento propriamente dito; nele, as memórias efetivamente desaparecem, porque desaparecem as células que as (con)tinham. Más há outras formas de perder memórias, pelo menos perdê-las na aparência. Uma delas é a extinção, na qual as memórias não se perdem; são escanteadas para um lugar menos acessível do cérebro. Em algum canto, elas estão. Sua representação existe, mas é anulada pela imposição de um aprendizado novo em cima do anterior. O animal aprende literalmente a não responder como respondia, a não pensar como pensava, a não fazer o que fazia.

■ Quer dizer que as memórias extintas podem ser recuperadas? — Em tese, sim. Muitas vezes podem ser recuperadas, mas nem sempre. Suponha, por exemplo, que você está acostumado a ir todos os dias a um guichê para pegar dinheiro. Um dia vai e o guichê está fechado. Você, então, muda o comportamento. Em vez de ir pegar dinheiro, dá meia volta quando vê o guichê fechado. Faz isso três, quatro dias. Quando finalmente se dá conta de que o guichê continua fechado, deixa de ir lá. Extingue esse comportamento. Mas, se um dia, por acaso, você passa pelo guichê e nota que ele está aberto, você vai lá e pega o seu dinheiro. A extinção é uma das formas de varrer para baixo do tapete uma memória. É útil, é necessária. Sem ela, a gente não teria espaço físico no cérebro para pensar. Não seria possível comparar as coisas, pois estaríamos sempre nos lembrando de que são parecidas e nunca poderíamos notar as diferenças. Ou de que são diferentes e nunca notaríamos as semelhanças. ■ Quais são as outras formas de perder memórias? — Outra forma interessante é a repressão freudiana, da qual ninguém falou durante 70 ou 80 anos, fora os freudianos. Mas agora ela voltou à cena como um processo fundamental. Um grupo americano encontrou o mecanismo da repressão freudiana, que é diferente da extinção. O grupo de John Gabrieli (da Universidade Stanford) descobriu que a área pré-frontal do cérebro, bem na ponta do lobo frontal, manda inibir o hipocampo, que é a região mais envolvida na evocação da memória. Manda frear a evocação de, por exemplo, uma certa palavra. Isso pode ser feito até que o hipocampo finalmente aprenda a não responder mais. Na prática, é como se a memória reprimida estivesse ausente, embora não esteja e possa sempre voltar. A repressão freudiana e a extinção da memória são duas armas fundamentais para podermos sobreviver. Acabo de escrever um livro chamado A arte de esquecer, em que digo que o esquecimento é uma coisa boa, necessária. Somos o que lembramos - e também aquilo que não queremos lembrar. ■ Mas nós não temos controle total sobre esse processo. Quer dizer, muitas vezes lem-


bramos coisas que queríamos esquecer e esquecemos outras que queríamos lembrar. — Não somos perfeitos. Na medida em que passam os anos, o número de memórias que temos se torna cada vez maior. Então, algumas a gente extingue ou reprime. A depressão é a causa mais freqüente, mas menos grave, de amnésia, que é a falha ou falta em geral da memória declarativa. No esquecimento real, como vimos, as bases das memórias se perdem pela inatividade de circuitos nervosos envolvidos em uma ou outra memória ou pela perda real de neurônios, que acontece com a idade, com as doenças degenerativas etc. No mal de Alzheimer, por exemplo, morrem neurônios, sinapses — e morrem as memórias que estavam contidas neles. ■ Hoje há algum tratamento eficaz contra problemas de memória? Por exemplo, contra o Alzheimer? — Ainda não há tratamento para Alzheimer. Nessa situação, há morte neuronal, e os neurônios perdidos não podem ser repostos com a informação original. ■ A saída seria a reposição desses neurônios? — Para recuperar a função geral, sim; mas não para recuperar cada memória, é claro. Nos últimos anos, descobriu-se que alguns lugares do cérebro têm capacidade de reposição neuronal, entre eles o hipocampo. Mas, pelo que se viu até agora, essa capacidade nunca vai reintegrar uma memória desaparecida. Poderá permitir que a máquina se reinstale para poder fazer uma nova memória. ■ Epara perdas de memória mais leves e em pessoas mais jovens, há tratamentos? — Sim, mas não há remédios. O que há são formas de treinamento da memória, baseadas geralmente na leitura. Os remédios não adiantam porque o cérebro, em cada momento peculiar, já está fazendo tudo o que pode, dadas as circunstâncias de sentimentos e de emoções inerentes a cada momento. E as memórias que tenha aprendido ou evocado nos momentos anteriores ■ Por que o senhor costuma dizer que o esquecimento é necessário para o homem? — Fundamental, porque senão literalmente não haveria lugar no cérebro (para tanta informação). Há vários es-

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tudos recentes aos quais se deu pouca importância, mas que são fundamentais para entender isso. Um grupo norueguês, em colaboração com um pesquisador inglês, mostrou que o hipocampo é a principal região do cérebro que faz e evoca as memórias declarativas. Um animal utiliza 40% da estrutura total do hipocampo para aprender uma determinada noção espacial. Para evocar esse aprendizado, usa 60% do hipocampo. Durante o tempo em que está aprendendo, ou evocando esse aprendizado espacial, o animal não pode fazer outra coisa. Ele, por exemplo, não pode fazer uma boa potenciação de longa duração ou reconhecer uma novidade, que são outras coisas que o hipocampo faz. Então, isso quer dizer que a capacidade instalada no cérebro não é infinita, não é tão grande assim. Ela é rapidamente saturada no rato e certamente no ser humano. Nós temos até experiências físicas dessa saturação. Vamos a um congresso, assistimos a duas ou três palestras seguidas e ficamos com a impressão de que não cabe mais nada no cérebro. Realmente, naquele momento não cabe mais nada. Então, saímos (da sala de palestras), damos uma ventilada, tomamos um cafezinho. Depois que baixou um pouco a poeira, que o hipocampo voltou a ser um pouco menos utilizado, podemos voltar para a sala e ouvir mais uma palestra. ■ Não faz sentido, portanto, aquele ditado popular de que o saber não ocupa espaço? — Ocupa, sim. Adquirir o conheci-

mento e evocar o conhecimento ocupa muito espaço. Geralmente o cérebro tende a usar todos os recursos disponíveis para essa tarefa. ■ Quer dizer que aquela história de que o ser humano só usa uma pequena porcentagem do cérebro é uma grande bobagem? — Na verdade, não dá para saber se isso é certo ou não. Isso porque não sabemos quantos neurônios e sinapses temos. Até vinte anos atrás, pensava-se que tínhamos, creio, 10 bilhões de neurônios. Hoje, sabemos que são pelo menos 200 bilhões, talvez 300 bilhões. E entre essas duas estimativas há uma diferença de 100 bilhões de neurônios. ■ É possível treinar o cérebro para esquecer traumas ou passagens da vida que a gente não gostaria de evocar mais? — Às vezes, o cérebro faz isso automaticamente. Quando ele falha, temos o que se chama justamente estresse póstraumático ou as fobias. Mas há terapias nas quais se utiliza precisamente a extinção e que são aplicadas para que um indivíduo extinga o estresse. O país onde isso foi mais estudado, por incrível que pareça, é a Turquia. ■ Turquia? — Sim. É que eles tiveram, em anos recentes, dois terremotos tremendos lá. E, num deles, morreram dezenas de milhares de pessoas, um número muito elevado. Depois das catástrofes, os neurologistas e psiquiatras turcos viram que havia um monte de pacientes PESUUISA FAPESP 99 ■ MAIO DE 2004 ■ 19


com estresse pós-traumático, de pessoas que tinham estado nos lugares dos terremotos, mas haviam sobrevivido. Eles, então, puseram em prática o que se podia fazer para tratá-los e viram que se podia utilizar a extinção descoberta por Pavlov e prescrita por Freud. Alguns complementam as sessões de extinção com drogas ansiolíticas, mas geralmente isso não é necessário. Depois do (atentado de) 11 de setembro de 2001, um pouco por influência dos turcos, os americanos passaram a utilizar mais a técnica da extinção, que estava até um pouco esquecida nos Estados Unidos. ■ Qual é a explicação para o chamado "branco de memória"? Esquecer-se, por exemplo, do telefone de casa? — Pode ser muitas coisas, mas geralmente é por distração. Quando é um esquecimento mais sério, como o do aluno que estudou para o vestibular e não lembra nada no dia da prova, esse branco é causado pelo estresse. No estresse liberam-se grandes quantidades de corticóides secretados pela glândula supra-renal; eles inibem a evocação, atuando no hipocampo e na amígdala. Comigo, ou com outras pessoas que de vez em quando são cercadas por alunos ou por repórteres, o branco acontece quando sou submetido a perguntas por muita gente ao mesmo tempo. Aí eu dou um branco. É um ato defensivo. ■ Por que algumas pessoas têm ou dizem ter uma memória melhor para rostos e outras para nomes ou números? — Isso em geral se deve à prática. Os bancários são bons para números, os literatos são bons para palavras, os médicos são bons para rostos, para nomes. Os músicos são bons para música. Isso sem contar a situação de pessoas que apresentam alguns defeitos congênitos. Quem nasce com uma visão não muito boa vai ser inferior para adquirir memórias visuais em relação a uma pessoa sem essa limitação. Mas existe um certo sistema de compensação nesses casos. Desenvolve mais a memória olfativa quem não tem visão, por exemplo. ■ Gostaria que o senhor falasse um pouco sobre a questão de os mais velhos evocarem as suas memórias de uma forma romanceada e, muitas vezes, centrada nos melhores anos na juventude 20 ■ MAIO DE 2004 ■ PES0UISA FAPESP 99

— Há várias pontos nessa questão. Os velhos vão perdendo memórias porque morrem neurônios com o passar dos anos — e morrem as memórias que eles carregavam. Mas, ao mesmo tempo, vão formando muitas memórias mais. Cada dia que uma pessoa permanece viva, mais memórias vai tentar ter. Então, ela vai perder muitas memórias, mas vai ganhar outras. Pode ocorrer uma confusão que é própria de quem tem muita informação para manusear, em alguns casos maior, em outros menor. Esse é um aspecto da questão. Outro é que a gente, no decorrer dos anos, começa a mudar as memórias, começa a falsificá-las. Tem um livro fantástico escrito por um grande psicólogo norteamericano, Daniel Schacter, que se chama Os sete pecados capitais da memória. Ele conta como se falsifica a memória. A gente faz muito isso. ■ Mas quase sempre de forma inconsciente? — Sim, sim, geralmente de forma inconsciente. Minha mãe me confundia com um irmão dela, que era vagamente parecido comigo. Os dois eram homens na família, um era irmão, outro era filho... Então ela atribuía a mim coisas que meu tio tinha feito. Isso é muito comum nas pessoas em geral, e muito comum nas pessoas velhas em particular. Na verdade todo mundo faz isso. ■ O senhor disse, numa entrevista, que o próprio evocar da memória acaba levando a uma certa perda de detalhes? — Talvez isso se deva ao fato de que a forma de extinguir memórias seja através da evocação. Evocando sem reforçar a evocação. Volto àquela história do guichê e do dinheiro. Você evoca a situação e vai lá, vai no guichê. Agora, quando você vai lá e não recebe o dinheiro, pois o guichê está fechado, é o momento em que você começa a extinguir essa memória. Para extinguir, precisa evocar. ■ É um paradoxo? — É. Você precisa evocar e ver que a informação que você tinha não presta. Sem fazer essa experiência, é difícil extinguir a memória. ■ A leitura é a melhor forma de preservar a memória? — Disparada, é a melhor forma. Não tem nada que chegue perto. Lendo, vo-

cê exercita a memória visual, a memória verbal, a memória de outras línguas que você porventura conheça, a memória de sinônimos, a memória de imagens. Você lê a palavra árvore e passam infinitas imagens de árvores em sua cabeça. A leitura é a que evoca mais tipos de memória, mais formas de memória. Ler muito e ter bons níveis de escolaridade também ajudam a prevenir ou minorar os sintomas do mal de Alzheimer. Para aqueles que não têm vista para ler, ouvir alguém contar uma história é ótimo para a memória. Famosos escritores cegos fizeram isso e funcionou muito bem, como (o argentino Jorge Luis) Borges e o inglês John Milton. ■ O senhor deve ser um grande leitor de Borges, porque sempre o cita em suas entrevistas. — Leio muito Borges. Ele chamava muito a atenção para a memória. Borges escreveu um conto que é definitivo sobre a questão de que precisamos esquecer para poder aprender. O conto de chama Funes, o memorioso. Funes era um indivíduo que tinha uma memória perfeita, decorrente provavelmente de um acidente. Funes podia se lembrar de um dia inteiro de sua vida. Mas, para fazê-lo, precisava novamente de um dia inteiro de sua vida, durante o qual não podia fazer mais nada. Essa situação, claro, era uma impossibilidade, uma demonstração, pelo absurdo, de que o cérebro se satura. ■ Qual é a avaliação que o senhor faz dos estudos sobre a memória feitos no Brasil e no exterior? — Aqui, há poucos grupos, mas os que existem são bons, de nível internacional. Além do meu grupo que estuda a memória, talvez o maior do Brasil nesse campo de trabalho, há vários outros em Curitiba, São Paulo, Ribeirão Preto, Rio de Janeiro, Fortaleza etc. Há agora um novo núcleo se instalando em Natal. Esse grupo vai ser chefiado em parte pelo pesquisador Sidarta Ribeiro (da Universidade de Duke), que, no momento, está nos Estados Unidos, mas está voltando. ■ Recentemente ele publicou um artigo científico sobre a importância do sono para a formação da memória. — Se alguém formulou uma hipótese realmente interessante sobre esse tema,


talvez tenha sido o Sidarta. Há ainda várias pessoas e muitos grupos nacionais, da psiquiatria ou neuropsicologia, que estudam a memória muito bem. Há 15 ou 20 anos, essa disciplina praticamente não existia no Brasil. Agora, cada dia aparece um grupo novo. A quantidade e a qualidade desses grupos me surpreendem. ■ As outras áreas das neurociências também vão bem no Brasil? — Estão muito bem. Acho que, dentro das ciências no Brasil, as neurociências são um dos ramos que deram mais certo. Em São Paulo, há um grupo interessantíssimo no Instituto Ludwig de Pesquisa sobre Câncer, com o qual colaboramos. Eles estudam neuroquímica. Nós fazemos (com eles) muita coisa em comum sobre a memória. Esse grupo começou seus trabalhos muito depois dos demais, mas já é um dos grupos de ponta. Há vários grandes grupos de neuroquímica de primeiríssimo nível no Rio de Janeiro. O meu grupo mesmo está se diversificando. Já há várias pessoas que são pesquisadores independentes. Tem o Frederico Graeff, da USP de Ribeirão Preto, que tem uma turma grande trabalhando com ansiedade. Existem muitos grupos, eu não gostaria de comentar nomes, porque a lista é grande e correria o perigo de esquecer alguns, já que são tantos. ■ Por que as neurociências deram certo? — Porque... Talvez porque (nós, neurocientistas) éramos muitos entusiasmados e demos muita corda uns aos outros (risos). Eu, o Esper Cavalheiro, o Cícero Coimbra (ambos da Universidade Federal de São Paulo), o Roberto Lent, o Rafael Linden (ambos da Universidade Federal do Rio de Janeiro), o Luiz Roberto Giorgetti de Britto, o Menna Barreto (da Universidade de São Paulo) sempre nos demos muito bem. ■ O senhor mencionou Natal. O senhor é a favor do projeto do Instituto Internacional de Neurociências na capital do Rio Grande do Norte? — Se conseguirem concretizar o instituto, pode ser uma magnífica iniciativa. Vai trazer gente de excelente nível e vão estar todos juntos, o que seria muito bom. Agora, eu fico um pouco com o pé atrás porque o Brasil é o país dos grandes projetos que depois não têm

continuidade. Costumo dizer que a ciência no Brasil é mais ou menos como o Ayrton Senna no início de sua carreira: saía na frente, deixava todo mundo para trás, mas não terminava a corrida. Nós tivemos grandes projetos no Brasil. O maior deles que não teve continuidade é o Pronex. O Programa Nacional de Núcleos de Excelência durou dois editais. E ia ser anual. Teve dois editais no primeiro ano, depois nunca mais. Agora, o Pronex voltou, mas com uma forma extraordinariamente diminuída. Voltou com um décimo do valor inicial. E alguns estados estão de fora do edital, como o Rio Grande do Sul. O projeto do instituto de Natal é um desafio. Acho que vão conseguir alguma coisa do que eles propõem. Mas não sei se tudo. Qualquer coisa que eles consigam vai ser mais do que bem-vinda, vai ser um acréscimo importante. Eles propõem integrar a iniciativa privada ao apoio das ciências. A iniciativa privada no Brasil não tem o hábito de contribuir com a ciência. ■ Por que o senhor se naturalizou? — Por que me naturalizei? Porque me senti mais um da casa. Isso foi em 1981. ■ Mas o senhor se vê mais como argentino ou brasileiro? — É difícil definir porque as raízes nunca se perdem, mas elas se transformam muito tempo depois, em conseqüência do que cresceu em cima. Devo ser uma mistura, uma espécie de (rindo) Meligeni da ciência (o ex-tenista Fer-

nando Meligeni nasceu na Argentina e se naturalizou brasileiro). ■ Voltando a falar de memória, mas num outro sentido, costuma-se dizer que o Brasil é um país sem memória, com amnésia social? O senhor concorda com essa afirmação? — Isso é uma enorme característica brasileira, e um defeito grave. Ninguém se lembra do candidato em que votou para deputado estadual na eleição passada. Ninguém. Isso foi há menos de dois anos e ninguém se lembra. É um traço que, eu acho, permite se levar uma vida mais ligeira, aparentemente mais fácil. Mas, na verdade, é mais difícil, porque se tende a incorrer nos mesmos erros e a não dar importância a coisas devidas. O brasileiro tende a levar tudo com um ar de superficialidade, o que às vezes é bom. Durante uma festa, é bom. Mas na vida real... Veja, temos 33% de miseráveis no país, segundo acaba de se tornar público. Gente que ganha menos de R$ 79 por mês. Pergunte o que tem de superficial e de divertido para esse pessoal? Nada. Nada é alegre nem divertido na vida desse pessoal, porque não comem o suficiente, não têm o suficiente para vestir. Então esse ar de leveza é muito bom para algumas coisas, mas não é bom para todas. E, quando chega ao nível das coisas sérias, como fazer ciência e dar de comer ao povo, eu acho que é melhor ter seriedade que leveza. A leveza do ser, como disse (o escritor) Milan Kundera, acaba sendo insustentável. • PESQUISA FAPESP 99 ■ MAIO DE 2004 ■ 21


I POLÍTICA CIENTIFICA E TECNOLÓGICA

ESTRATéGIAS

MUNDO -,Y

Vigor argentino

■ Os ecologistas do ano de 2004 O Prêmio Goldman, concedido todos os anos a ativistas da causa ecológica, destacou em sua edição de 2004 o trabalho de Rudolf AmengaEtego, um advogado de Gana que lidera uma campanha contra a privatização da distribuição de água no país. Com a privatização, a água receberia um tratamento mais adequado e ganharia qualidade, mas seria comer-

A ciência da Argentina começa a superar um longo período de estagnação. Numa iniciativa audaciosa, o governo do presidente Néstor Kirchner lançou um programa voltado para aumentar o número de pesquisadores em atividade, melhorar seus salários e reforçar os recursos para projetos regionais. A primeira instituição contemplada é a maior agência argentina de pesquisas, o Conselho de Investigações Científicas e Técnicas (Conicet), que vai contratar 1.400 pesquisadores com nível de doutorado e pós-doutorado, além de 550 assistentes de pesquisa. Todos os atuais pesquisadores do Conicet terão aumento salarial de 45% (doutores), 37% (pós-douto-

res) e 42% (assistentes). Nos últimos anos, orçamentos magros impediram a agência de renovar seus quadros, que foram envelhecendo. A média de idade dos pesquisadores hoje é de 50 anos. Com as novas contratações, deve baixar para 32 anos. A mudança radical é lastreada por um reforço no orçamento (cerca de US$ 10 milhões), aprovado pelo Congresso argentino em 2003, e por outros US$ 2,4 milhões retirados de outras áreas. "Não vai resolver nossos problemas, mas certamente é um passo tremendo para a reconstrução da política científica nacional", disse a secretária de Pesquisa da Universidade de Quilmes, Anahí Ballot (SciDev.Net).

cializada a preços de mercado, mais altos que os cobrados hoje. "Cerca de 70% da população de Gana não tem dinheiro para comprar água limpa. Cobrar mais caro seria desastroso", diz o laureado. O projeto foi suspenso em 2003, em meio a uma onda de protestos, mas o governo ganense está tentando resgatá-lo. A privatização é estimulada pelo Banco Mundial, que tratou de se defender quando soube da premiação. "Não é questão ideológica. O banco

se preocupa em garantir a oferta de água limpa, e com preços acessíveis, para populações pobres", informou um porta-voz da instituição. Também foram premiados as indianas Rashida Bee e Champa Shukla, sobreviventes da explosão de gás em Bhopal que matou 20 mil pessoas em 1984; Demétrio de Carvalho, presidente da primeira entidade ambiental do recémliberto Timor Leste; Libia Grueso, artífice de uma terra a comunidades negras da Co-

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lômbia; Manana Kochladze, da ONG Green Alternative, da Geórgia, antiga república soviética; e a norte-americana Margie Eugene-Richard, ativista que obrigou a Shell a indenizar vítimas de vazamentos tóxicos na Califórnia. Dois brasileiros já ganharam o Prêmio Goldman: a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, em 1996, e Carlos Alberto Ricardo, fundador do Centro Ecumênico de Documentação e Informação (Cedi), em 1992. •


■ Alarmes falsos do bioterrorismo

■ No buraco negro da Internet

Em setembro de 2001, depois dos ataques às torres do World Trade Center e ao Pentágono, o governo norteamericano colocou em uso kits para identificar ameaças de bioterrorismo, capazes de detectar substâncias perigosas, como o antraz. Os aparelhos agora estão sob investigação. Será gasto US$ 1,5 milhão para avaliar até que ponto os detectores são eficazes. Os testes serão feitos pelo FBI e pelos Centros de Controle e Prevenção de Doenças de Atlanta. O alerta foi dado em julho de 2002 por John Marburger, chefe do Escritório de Política de Ciência e Tecnologia da Casa Branca. Segundo ele, defeitos técnicos dos detectores levavam a falsos resultados positivos, provocando gastos e a decretação de quarentenas totalmene desnecessárias. O anúncio irritou os técnicos que utilizam os kits. Eles alegam que conhecem os limites do aparelho. Por isso, associam outras técnicas para eliminar os riscos de falsos positivos. •

Quem imaginava que a reprodução na Internet de um artigo científico garantisse sua perenidade pode ter más surpresas. Jonathan Wren, do Centro Avançado de Tecnologia Genômica da Universidade de Oklahoma, constatou o que muitos já desconfiavam. A pesquisa começou quando o próprio cientista foi vítima do "buraco negro" da Internet.

Ao procurar um artigo de sua autoria que deveria estar no serviço de consulta do governo norte-americano, o Medline, Wren descobriu que o documento simplesmente havia desaparecido (Nature, 8 de abril). Wren foi investigar e descobriu que um quinto dos endereços da Medline estava no limbo. Robert Dellavalle, da Universidade do Colorado, fez pesquisa semelhante e observou que 12% dos endereços mencionados

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em prestigiados órgãos de divulgação científica como The New England Journal of Medicine e Science viraram poeira dois anos após a publicação. Teme-se que o problema gere fraudes: com o buraco negro, fica difícil averiguar se uma citação de artigo científico é real ou não. •

■ Aliança contra a tuberculose Uma grande operação de combate à tuberculose foi deflagrada pela Comissão Européia. A pesquisa de uma nova vacina contará com investimento de € 32 milhões. Serão mobilizadas 52 equipes de 15 países europeus e africanos. O esforço é mais do que justificado: a tuberculose mata 2 milhões de pessoas por ano e a maioria dos casos fatais ocorre em países pobres. Acabar com a doença só será possível com o advento de uma nova vacina. A que existe hoje, a BCG, já não evita a tuberculose contagiosa em adultos nem é segura para portadores do HIV, alvos da moléstia na forma de infecção oportunista. •

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ESTRATéGIAS

MUNDO

Ciência na web Envie sua sugestão de site científico para cienweb@trieste.fapesp.br

■ O país em que a ciência não é notícia A imprensa da África do Sul dá pouco destaque à ciência. Pesquisa feita pelo departamento de Jornalismo da Universidade de Stellembosch chegou a um número desalentador: menos de 2% do espaço editorial das principais publicações do país é dedicado a assuntos científicos e tecnológicos. O relacionamento precário entre mídia e ciência no mundo inteiro freqüenta o debate internacional desde a realização do Congresso Mundial de Comunicação Pública de Ciência e Tecnologia, no início dos anos 1990. Mais de uma década se passou, constata a autora da pesquisa, Carine van Rooyen, e a situação permanece a mesma. O estudo avaliou 15 publicações, entre jornais diários, comunitários e revistas. Aparentemente, crê a pesquisadora, a pouca cobertura se deve à falta de jornalistas familiarizados com temas científicos. Nas poucas vezes em que a ciência ocupou as páginas dos jornais sul-africanos, a ênfase foi para

aspectos positivos (70%), contrariando a tese de que a mídia privilegia o lado sensacionalista e bizarro da ciência. (Science in África, abril). •

■ Austrália repensa sua pesquisa As políticas que norteiam a atividade científica na Austrália serão revistas. O governo deve gastar 500 milhões de dólares australianos (US$ 375 milhões) para aperfeiçoar o sistema, por meio de um comitê de alto nível. Um dos objetivos é reavaliar a distribuição de 540 milhões de dólares australianos por ano em treinamento de pesquisadores. É desse orçamento que sai a verba para os estudantes de pós-graduação. Existe a queixa de que os critérios de distribuição de verbas são injustos e punem as universidades cujos alunos concluem suas pesquisas rapidamente. As mudanças nem começaram, mas críticas já despontam. Para cientistas como Snow Barlow, da Universidade de Melbourne, a mudança é tão complexa que pode criar mais burocracia (Nature). •

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http://www.ib.unicamp.br/plant-aq-SP/ Guia de campo, com fotos e breves descrições, para ser utilizado tanto por botânicos como por leigos.

Opnenheimer Cenfeimial

at Berkeley Oppenheimer: A Life

ohst.berkeley.edu/oppenheimer/exhibit/ Um bom site com vida e obra do físico Robert Oppenheimer, por ocasião dos 100 anos de seu nascimento. dasàcs in the Hktory oi fsycnohgy

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psychclassics.yorku.ca Alguns textos clássicos da história da psicologia (em inglês) de pioneiros como Freud, Skinner e W. James,


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■ Incompreendidos tubarões do Recife Os tubarões que atacam surfistas nas praias da Região Metropolitana do Recife terão seu comportamento investigado por pesquisadores da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), graças a uma verba de R$ 200 mil da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). O projeto, batizado de Protuba, vai capturar tubarões no trecho entre o Porto de Suape e a Praia do Pina, onde ocorreu a maioria dos 14 ataques com mortes registrados desde 1992.0 objetivo é estudar os ciclos biológicos, os hábitos alimentares e os movimentos migratórios dos animais. Também serão analisados fatores ambientais que podem ter vínculo com os ataques, como a temperatura e a salinidade da água. O interesse primordial da pesquisa é o tubarão cabeça-chata, identificado como o principal agressor dos surfistas. Não se conhece muita coisa sobre essa espécie, mas se acredita que os ataques estejam relacionados à entrada de fêmeas no estuário para dar cria. "Se

pudermos identificar quando ocorre essa fase, na qual as fêmeas se aproximam da praia e ficam mais agressivas, será mais fácil prevenir os ataques e proteger animais e surfistas", diz Fábio Hazin, diretor do Departamento de Pesca da UFRPE e coordenador do Protuba. Também é provável que a onda de ataques tenha a ver com a construção do Porto de Suape, que mudou a configuração do estuário e pode ter empurrado os tubarões em direção ao Recife. A pesquisa deve durar dois anos. A intenção do grupo, porém, é transformar a iniciativa num trabalho de monitoramento permanente da costa. •

■ 0 trauma nos tempos do cólera O comportamento das vítimas da epidemia do cólera em Belém, em 1991, despertou a curiosidade da antropóloga Jane Felipe Beltrão, da Universidade Federal do Pará (UFPA). Alguns dos doentes recusavam-se a deixar o hospital depois de curados, mesmo correndo o risco de nova contaminação devido ao con-

tato com outras vítimas. Eles não acreditavam que, após algumas horas de hidratação e um tratamento com antibióticos, estavam livres do vibrião. Alguns citavam relatos de antepassados sobre uma epidemia de cólera no século

19, que matou 10% da população de Belém. Jane saiu a campo e constatou que o flagelo de 1855 estava vivíssimo na memória coletiva. "Quase todas as famílias perderam alguém na epidemia, que matou até o presidente da Província, Ângelo Custódio", diz. A morte de Custódio, um dos líderes da Cabanagem, revolta popular ocorrida na década de 1830, marcou o imaginário da população pobre, que viu na tragédia significados profundos. O fenômeno não foi só brasileiro. Camponeses russos achavam que o cólera era um artifício para eliminá-los. Trabalhadores ingleses suspeitaram de envenenamento. A pesquisa da antropóloga transformou-se em tese de doutorado em 1999 e agora está sendo lançada no livro Cólera, o flagelo da Belém do Grão-Pará, editado pelo Museu Emílio Goeldi. Jane traça um paralelo entre a Belém de 1855 e a de 1991. "Ambas as populações eram muito pobres. As condições de saneamento de alguns bairros em 1991 pouco se diferenciavam daquelas em que viviam escravos e libertos do século 19", conta. •

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ESTRATéGIAS

BRASIL

A mais-valia do Terceiro Mundo para um brasileiro. Um quilo de extrato de levedura da Sigma-Aldrich sai por US$ 202 nos Estados Unidos e US$ 340 no Brasil. Na comparação entre Alemanha e Polônia, foram estudados 18 produtos. A Polônia pagava mais caro por 16 deles. As indústrias culpam as tarifas de importação dos países pobres como a causa da distorção, mas se sabe que isso não explica toda a diferença. Os laboratórios cobram mais porque o mercado dos países pobres é menor e não apresenta o mesmo ambiente de competitividade entre os fabricantes. "Tudo é tão caro na Polônia que precisamos ter 75% mais dinheiro", diz o microbiologista Jan Potempa, da Universidade Jageloniana, de Cracóvia, e da Universidade da Geórgia, nos Estados Unidos. •

Um levantamento feito pela revista Nature comprovou o que a maioria dos pesquisadores já sabia: os países pobres chegam a pagar 70% mais caro por equipamentos e insumos importados, em relação aos preços cobrados em nações desenvolvidas. A revista científica comparou os preços praticados em dois países europeus com graus de desenvolvimento diferentes: a Alemanha e a Polônia. Fez a mesma coisa com aparelhos e matérias-primas vendidos no Brasil e nos Estados Unidos. Dos 12 produtos avaliados, só um era mais barato no Brasil - os outros 11 saíram mais caros que nos Estados Unidos. Segundo o levantemento, uma centrífuga 5415D Eppendorf, por exemplo, custa US$ 1.950 para um cientista norteamericano - e US$ 3.110

■ Agruras de um centro de excelência As crônicas dificuldades financeiras do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), mantido pela Universidade Cândido Mendes, tiveram um amargo desdobramento no início de abril. Os 18 pesquisadores da instituição aceitaram um corte nos salários para impedir que a instituição feche as portas. A redução vai de 15%, para quem ganha de R$ 3.161, a R$ 4.610, e alcança 50%,

para contracheques superiores a R$ 13.571. A crise do Iuperj é reflexo da crise que atinge sua mantenedora. A Cândido Mendes se ressente da concorrência de universidades privadas criadas nos últimos tempos no Rio de Janeiro e já não tem fôlego para manter a folha salarial do Iuperj, compromisso que assumiu desde a criação do instituto, nos anos 1960. As dificuldades começaram há três anos, mas, até agora, só haviam provocado atrasos no pagamento de salários. •

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■ Homenagem a Alberto Carvalho A FAPESP vai homenagear Alberto Carvalho da Silva, exfundador e ex-diretor-presidente, com o lançamento de dois livros. O primeiro - Atividades de fomento à pesquisa e formação de recursos humanos desenvolvidas pela FAPESP entre 1962 e 2001 -, obra póstuma do próprio Carvalho da Silva, faz uma revisão dos programas de investimento da Fundação. Nesse período, a FAPESP re-

cebeu 160 mil solicitações de apoio de pesquisadores e aprovou certa de 110 mil. O segundo livro - O crescimento da agricultura paulista e as instituições de ensino, pesquisa e extensão numa perspectiva de longo prazo - reúne coletânea de artigos de vários autores e foi supervisionado pelo ex-diretor-presidente da FAPESP. O lançamento dos livros será no dia 13 de maio. Na mesma data, será descerrada uma placa em homenagem a Carvalho da Silva. •


■ Por que a floresta está ardendo A divulgação dos dados sobre o desmatamento da Amazônia no ano 2003, o segundo maior de toda a história, evidenciou os limites do governo federal na preservação da floresta. Uma auditoria feita pelo Tribunal de Contas da União (TCU) sugere que a exploração ilegal de madeira pode estar sendo estimulada pela lerdeza dos órgãos ambientais em aprovar planos de manejo sustentável (variação sobre o mesmo tema da queixa dos pesquisadores que não conseguem licença ambiental para estudar produtos geneticamente modificados). "O desmatamento e a exploração ilegal de madeira são, de certa forma, estimulados pelos órgãos ambientais à medida que o excesso de burocracia para aprovação dos planos de manejo e a falta de fiscalização não incentivam as empresas a investir no manejo florestal sustentável", informa o relatório do TCU. A análise dos planos de manejo deveria durar 60 dias, mas o Instituto Nacional do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama) chega a demorar oito meses para dar um veredicto. Mas nem só de exploração de madeira se fez a devastação de 23.750 quilômetros quadra-

dos de floresta em 2003. Os Estados de Mato Grosso, Rondônia e do Pará foram os campeões do desmatamento, num efeito colateral da abertura de novas fronteiras agrícolas. Eis outro desafio para a política ambiental: evitar a substituição da floresta por pastos e plantações num momento em que o país amarga uma recessão e aposta na lavoura como salvação da economia. •

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■ Programa será reativado A FAPESP vai reativar o Programa de Equipamentos Multiusuários, que tem o objetivo de financiar a aquisição de equipamentos de valor elevado e de uso compartilhado por pesquisadores e instituições. Os custos de manutenção dos equipamentos deverão ser cobertos por outras fontes. As normas e formulários para a apresentação das propostas, bem como as informações sobre os itens financiáveis, estão disponíveis na página da FAPESP. As propostas deverão ser apresentadas até o dia 30 de julho de 2004 e serão submetidas a análise comparativa. Os projetos aprovados entrarão em vigência a partir de Io de novembro de 2004. Os recursos destinados ao programa são da ordem de R$ 60 milhões. •

■ FAPESP flexibiliza dedicação exclusiva Atendendo a uma reivindicação dos pesquisadores, o Conselho Superior da FAPESP decidiu flexibilizar a exigência de dedicação exclusiva na concessão de bolsas. Segundo portaria de 22 de abril, os bolsistas de mestrado, doutorado e pós-doutorado poderão ser autorizados pela FAPESP a dedicar um máximo de oito horas semanais a atividades científicas e profissionais, desde que sejam compatíveis com o projeto da bolsa. Um número crescente de pesquisadores pedia a flexibilização, com o argumento de que a dedicação exclusiva podia prejudicar a formação do bolsista e atrapalhar sua inserção futura no mercado de trabalho. A autorização deve ser solicitada por meio de carta, descrevendo as atividades a serem realizadas, justificando sua importância para a formação do pesquisador e garantindo que elas não causarão prejuízo para o desenvolvimento do projeto da bolsa. Se quiser lecionar, o bolsista poderá ministrar no máximo quatro horas-aula semanais. Caso a autorização seja concedida, o relatório científico do bolsista deverá prestar informações sobre as atividades realizadas. •

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POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA

POLíTICA INDUSTRIAL

De novo, na linha de frente Apoio à inovação resgata papel da Finepedo BNDES

CLAUDIA IZIQUE

A aposta na inovação coloca na linha de t^L frente da política industrial, tecnológiL^L ca e de comércio exterior a Financiai m dora de Estudos e Projetos (Finep) e JL. .^^ o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Ao lado do Banco do Brasil, a Finep e o BNDES serão os principais agentes de fomento da nova política industrial. Juntos, deverão injetar R$ 14,5 bilhões na modernização do parque produtivo, na inovação e apoio à pesquisa e desenvolvimento em universidades e empresas, por meio de linhas de crédito, financiamento de risco, parcerias, entre outros. "A Finep foi essencial para o desenvolvimento da ciência e tecnologia no país nos anos 1970 e 1980, quando tinha apoio institucional", afirma Sérgio Machado Resende, presidente da Finep. "Na década de 1990, a situação complicou e as 28 ■ MAIO DE 2004 ■ PESHUISA FAPESP 99

verbas encolheram." Neste período, ele comenta, a Finep deixou de apoiar a infra-estrutura das universidades e institutos de pesquisas e o estímulo à inovação na empresa também foi reduzido, não apenas em função da falta de recursos, mas também pela contração da demanda por parte dos interessados. "Agora, retomamos uma posição estratégica: a inovação é com a Finep, o que não ocorre há uma década", ele afirma. A proposta é não só fomentar pesquisas e a ligação com o setor produtivo, mas também atuar na formação de recursos humanos, via, inclusive, bolsas de estudo. O BNDES, entre 1964 e 1974, também teve um papel histórico nos primeiros esforços na direção da inovação no país, por meio do Fundo Científico e Tecnológico, matriz do atual Fundo Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), que abriga os recursos dos


fundos setorias, geridos pela Finep. "Entre 1971 e 1979, a Finep foi dirigida pelo pessoal egresso do BNDES. Estamos, agora, reorientando o banco para o desenvolvimento, já que o apoio à inovação não pode ficar de fora dos investimentos", diz Fábio Erber, diretor de política industrial do BNDES. Investimentos de risco - A proposta de política industrial, anunciada pelo governo em 31 de março, é formada por um cardápio com 57 medidas com as quais se pretende dar início à recuperação de um atraso histórico que comprometeu o desenvolvimento de novos produtos e processos, a geração de patentes e a competitividade do país.

Este conjunto de ações tem como foco quatro setores definidos como estratégicos por seu potencial de arraste sobre as demais áreas de economia: bens de capital - traduzidos por máquinas e equipamentos -, semicondutores, softwares e fármacos. O programa prevê impulsionar também a biotecnologia, nanotecnologia e biomassa, áreas em que a pesquisa brasileira é competitiva e tem destaque internacional. Os programas de inovação na área de semicondutores, softwares e fármacos foram formulados em 16 câmaras setoriais constituídas pela Finep no início deste ano, antes de serem aprovados pelo comitê de política industrial vinculado ao Ministério do Desenvolvi-

mento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC). "Na área de semicondutores, já identificamos um conjunto de centros de pesquisa públicos e privados que deverão trabalhar em rede para apoiar o desenvolvimento industrial", adianta Resende. Ele cita o exemplo do Instituto Genius, em Manaus - que tem como clientes a Siemens e a Gradiente, entre outros; o Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (César); a Fundação CPQd, em Campinas; e o Centro de Excelência em Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec), em Porto Alegre, este último voltado para a produção de chips de aplicações específicas. Esses centros, que vão integrar o Programa Nacional de MicroeletrôniPESUUISA FAPESP 99 ■ MAIO DE 2004 ■ 29


ca, contarão com financiamento direto da Finep. A agência já disponibilizou, por exemplo, uma linha de crédito de R$ 10 milhões, com prazo de financiamento de 18 meses, para incentivar a produção de chips no Ceitec. O apoio às empresas poderá ainda ser feito por meio de fundos de risco ou investimento na empresa, detalha Resende. No caso da participação direta, a Finep deverá adquirir debêntures da empresa e negociar sua venda com o BNDES. "No ano passado, adquirimos R$ 10 milhões de debêntures. Neste ano, serão R$ 30 milhões", aposta Resende. A expectativa do presidente da Finep é de conseguir, em 2004, um desempenho melhor que o do ano passado, quando a agência realizou quase todo o orçamento: investiu R$ 630 milhões dos fundos setoriais - "dobramos os investimentos, apesar do contingenciamento", sublinha Resende - e ainda emprestou R$ 150 milhões. "Ainda é pouco, mas já aponta uma retomada", ele diz.

milhões do BNDES neste ano. O objetivo é ampliar a participação das empresas no mercado interno e promover o crescimento das exportações. O Brasil conta com 5 mil empresas de software, quase todas pequenas. "As de porte médio não chegam a dez", contabiliza o ministro Eduardo Campos. A pulverização inviabiliza a com-

Metas de exportação - Ao Programa para o Desenvolvimento da Indústria Nacional de Software e Serviços Correlatos (Prosoft), previsto na política industrial, serão destinados R$ 100

petitividade e o cumprimento de metas de exportação. "Precisamos dar suporte para uma política de aglutinação de empresas", avalia o ministro. A fusão de empresas será estimulada pelo banco. As ações de suporte às empresas de base tecnológica contemplarão também empresas em fase de gestação. Em parceria com o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) e a Finep, o BNDES vai lançar, provavelmente neste mês, de acordo com Erber, o programa Criatec para financiar desde empresas ainda incubadas até as de porte médio. "Esse apoio também pode ser feito por meio de empréstimos, mas o instrumento mais eficaz, certamente, será o aporte de risco", diz Erber. Para facilitar o acesso de empresas aos recursos e agilizar os procedimentos requeridos pelo banco, está prevista a criação de instâncias institucionais, em âmbito regional. Outro programa patrocinado pelo BNDES é o Apoio ao Desenvolvimento da Cadeia Produtiva Farmacêutica (Profarma), que contará com uma linha de financiamento para a produção de medicamentos e insumos, estímulo à pesquisa e fusão de empresas. "O Profarma está dividido em três subprogramas", detalha Erber. O primei-

A nova Lei de Inovação Algumas das medidas previstas na política industrial, tecnológica e de comércio exterior terão apoio legal na Lei de Inovação que, durante dois anos, tramitou no Congresso Nacional e que, agora, com novo formato, está sendo novamente enviada ao Legislativo. A nova lei prevê uma série de ações que têm como objetivo aproximar universidades e institutos de pesquisa das empresas privadas, condição sem a qual não se incrementará o desenvolvimento da pequisa e de novos produtos no país. Para tanto, a lei autoriza a participação direta da União em empresas privadas para o desenvolvimento de projetos científicos ou tecnológicos e abre espaço para a transferência de tecnologia das universidades públicas para empresas, flexibilizando as regras

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da Lei de Licitações n° 8.666/93, permitindo às instituições públicas de pesquisa contratar pesquisadores e empresas, sem licitação. O governo também se beneficiará disso: poderá contratar empresas ou consórcios de empresas e entidades de pesquisa sem fins lucrativos, de reconhecida capacitação tecnológica no setor, para realizar atividades de pesquisa e desenvolvimento "que envolvam risco tecnológico, para solução de problema técnico específico ou obtenção de produto por processo inovador". "A lei é o primeiro passo. Ela é importante para criar um contexto que estimule uma relação mais intensa e produtiva entre universidades e empresas, no que diz respeito à inovação", diz José Fernando Perez, diretor

científico da FAPESP. "O arcabouço institucional que ainda existe é inibidor, tornando muito difícil estabelecer parcerias, seja para o desenvolvimento de projetos inovadores, seja para o licenciamento da inovação ou para a implementação da propriedade intelectual." O projeto, em seu capítulo VI, autoriza a instituição de fundos de investimentos em empresas inovadoras, "caracterizados pela comunhão de recursos captados por meio do sistema de distribuição de valores mobiliários", cuja regulamentação, funcionamento e administração será de responsabilidade da Comissão de Valores Mobiliários. Também prevê, nas Disposições Finais, que no prazo de 90 dias após a publicação da lei o Executivo envie ao Con-


ro financiará a compra de equipamentos, obras de infra-estrutura, software e as despesas necessárias para cumprir as exigências da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa); o segundo tem como meta promover a competitividade da empresa nacional e o terceiro - a ser lançado em breve - patrocinará a aquisição de equipamentos eletrônicos para uso médico. O Profarma vai operar prioritariamente com investimentos de risco, explica Erber, já que as empresas brasileiras de fármacos são pequenas e têm dificuldades de investimentos substantivos em pesquisa, desenvolvimento ou marketing. "Se estas empresas desejarem se fundir, o banco vai apoiar", afirma. Também está previsto o financiamento de atividades em laboratórios públicos e privados e o uso do poder de compra do Estado como forma de fomento. "Não há restrições", diz Erber. Entre as empresas que contarão com recursos do BNDES estará a Hemobrás, um fábrica de hemoderivados para a produção de albumina, imunoglobulina, entre outros (ver reportagem à página 32) Erber garante que o orçamento do BNDES para as ações de política industrial são "flexíveis". "Temos um orçamento de desembolso de R$ 47,3 bi-

gresso projeto de lei estabelecendo critérios para o fomento à inovação na empresa nacional, "mediante regime fiscal favorável à consecução de objetivos estabelecidos em programas e ações governamentais". O projeto de lei formaliza a parceria entre institutos públicos de pesquisa e empresas nacionais, permitindo, por exemplo, a utilização de laboratórios públicos para a incubação de novos empreendimentos, mediante compensação, contrapartida ou participação nos resultados - desde que não interfira diretamente na sua atividade-fim. O pesquisador envolvido nessa atividade de prestação de serviços poderá receber retribuição pecuniária, diretamente da instituição pública ou da empresa parceira, sempre sob a forma de adicional variável e desde que custeado exclusivamente com recursos arrecadados no âmbito dessa atividade.

Programa Criatec, do BNDES, vai financiar empresas incubadas

lhões neste ano. Os investimentos previstos, considerando este total, são pequenos", diz. O problema, ele sublinha, pode ser a falta de demanda. Recursos contingenciados - Se há disponibilidade de recursos do lado do BNDES, não se pode dizer o mesmo da Finep. A agência já tem em caixa

Professores e pesquisadores vinculados a universidades e institutos de pesquisa que atuarem em projetos em parceria com empresas privadas poderão ser remunerados por seu trabalho. Eles estão autorizados, inclusive, a licenciar-se da instituição - por um período de três anos, renovável por mais três - para criar empresas com atividades relacionadas a projetos de inovação tecnológica. Ainda de acordo com o projeto, a instituição científica e tecnológica poderá ceder seus direitos sobre a criação, a título não oneroso, "para que o criador os exerça em seu próprio nome". Assegura ao criador, "a título de incentivo e limitada a um terço do total", a participação nos ganhos econômicos auferidos pela instituição, resultantes de contratos de transferência de tecnologia ou de exploração de criação protegida, da qual tenha sido o inventor.

R$ 300 milhões para apoio a projetos no âmbito da política industrial, mas espera contar, neste ano, com R$ 640 milhões dos fundos setoriais. Outros R$ 800 milhões dos fundos estão contingenciados no orçamento da União para garantir superávit primário - a diferença entre receitas e despesas da União, estados e municípios, sem contar os juros - das contas públicas. Sua liberação depende da retomada do crescimento da economia, reconhece Resende. Otimista, ele aposta no sucesso da mobilização da comunidade científica e tecnológica para resgatar esses recursos. No dia 2 de abril, 46 entidades encaminharam manifesto ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, apoiando o pleito do Brasil no Fundo Monetário Internacional (FMI) e organismos bilaterais - de que os investimentos em infra-estrutura não sejam contabilizados como superávit primário - e propondo que os gastos com ciência, tecnologia e inovação sejam igualmente excluídos dessa conta e portanto poupados de contingenciamento. O manifesto foi encabeçado pelo Fórum Nacional de Secretários Estaduais de Ciência e Tecnologia e o Fórum Nacional das Fundações de Amparo à Pesquisa (FAPs). •

Algumas das medidas, na avalição de Perez, têm efeito prático e removem obstáculos para a transferência do conhecimento. Mas há aspectos que ele qualifica como "culturais" que são um conjunto de recomendações para a agenda de ciência e tecnologia no país e que possibilitarão a remoção de barreiras legais e entraves jurídicos ao desenvolvimento de novos produtos e processos. "A lei atende ao desafio de fazer inovação no Brasil", avaliza o ministro da Ciência e Tecnologia, Eduardo Campos. Mas o projeto de ampliação do poder de compra do Estado - intervenção considerada fundamental para consolidar empreendimentos inovadores e garantir o mercado para novos produtos - está condicionado à revisão da Lei de Licitação n° 8.666/93, o que, segundo Campos, já está em curso no Ministério do Planejamento.

PESQUISA FAPESP 99 ■ MAIO DE 2004 ■ 31


POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA

POLíTICA INDUSTRIAL

Os caminhos do sangue Governos federal e paulista planejam a instalação de fábrica de hemoderivados

O Brasil gasta, anualmente, US$ 150 milhões com a importação de hemoderivados - proteínas obtidas a partir do plasma, utilizadas no tratamento de doenças como a hemofilia A e B e como matériaprima na produção de vacinas. A única fábrica brasileira, instalada em Pernambuco, produz apenas a albumina humana e atende só 7% do mercado. Desde 2000, o país faz planos de construir uma fábrica para substituir importações e atender a demanda do mercado. Dois projetos concorrentes um da União e o outro de São Paulo estão sendo arquitetados. O primeiro deles - previsto na política industrial, tecnológica e de comércio exterior - é da Empresa Brasileira para o Fracionamento do Plasma, já batizada de Hemobrás, orçada em US$ 60 milhões. A futura empresa vai produzir albumina humana, imunoglobulina, complexo protombínico, fator VIII e fator IX - utilizando tecnologia de fracionamento do plasma sangüíneo - para atender parte da demanda do Sistema Único de Saúde (SUS), de acordo com Beatriz Macdowell, gerente-geral da área de sangue, outros tecidos, células e órgãos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. "Estamos preparando edital para a transferência de tecnologia de fracionamento de plasma no país. A fábrica de hemoderivados deve estar em operação em três ou quatro anos", prevê. O segundo projeto é do Instituto Butantan, em São Paulo. A fábrica pau32 ■ MAIO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 99

lista utilizará a cromatografia para obter hemoderivados, uma tecnologia distinta da do fracionamento de plasma adotada pela Hemobrás. "Será a primeira fábrica a utilizar esse modelo em todo o mundo", garante Otávio Mercadante, diretor do Butantan. A produção por cromatografia foi "adaptada do exterior", como diz Mercadante, e "possibilita maior rendimento e competência tecnológica". O projeto, no valor de R$ 100 milhões, está previsto no Plano Plurianual do governo estadual e poderá estar pronto em dois anos. De acordo com o diretor do Butantan, este projeto terá escala para suprir toda a demanda nacional e deverá ser submetido ao Ministério da Saúde Plasma descartado - O projeto da Hemobrás começou a ser arquitetado em 2000, quando o Ministério da Saúde realizou um levantamento e constatou que, no Brasil, se descartavam 160 mil litros de plasma por ano, um volume suficiente para justificar a produção local. Em 2002, foram contratadas duas empresas, selecionadas por concorrência internacional - uma francesa e outra austríaca -, para fracionar o plasma recolhido em centros nacionais devidamente selecionados e transformá-lo em hemoderivados. "Trata-se de uma exportação passiva para beneficiamento de matéria-prima com retorno do produto final, que fica mais barato", diz Beatriz. Este intercâmbio atende toda a demanda por imunoglobulina e fator IX

- utilizado em portadores da hemofilia tipo B - do SUS. "Mas só responde por 10% do fator VIII, destinado aos casos de hemofilia do tipo A", diz Beatriz. O que falta é importado. A Hemobrás começou a ganhar forma em 2003, quando foi criado um grupo de trabalho para analisar aspectos legais, para compatibilizar a produção de hemoderivados com a Constituição Federal, que impede a comercialização do sangue no país. O projeto de lei que cria a nova fábrica já está no Congresso e, segundo Beatriz, deve ser aprovado até novembro. A fábrica não cobrará do SUS pelo produto, mas pelo serviço de fracionamento do sangue. Uma parte dos recursos para o empreendimento - R$ 120 milhões ou US$ 40 milhões, em quatro anos - está garantida no Plano Plurianual do Sangue, elaborado pelo governo federal. "Isso garante dois terços da Hemobrás", calcula. "Mas o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) poderá entrar como sócio e completar o valor do negócio", diz Beatriz. Há ainda uma terceira alternativa tecnológica - a biotecnologia - adotada pela maioria dos países desenvolvidos para produção de hemoderivados. Por esse processo, a albumina, complexo protombínico, imunoglobulina e os fatores VIII e IX podem ser sintetizados a partir de fatores recombinantes, sem os riscos dos processos de contaminação que podem ocorrer no fracionamento do plasma. A nova tecnologia está sendo desenvolvida pela


O custo de produção de hemoderivados é semelhante, independentemente da tecnologia utilizada

Rede Brasileira para Clonagem e Expressão de Fatores de Coagulação formada por quatro laboratórios públicos nacionais. As pesquisas, iniciadas em 2001, contaram com US$ 900 mil da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). "Já atingimos os objetivos básicos de clonagem e expressão dos genes dos fatores de coagulação VIII e IX e clones celulares que expressam quantidades razoáveis desses fatores", conta Dimas Covas, pesquisador do Laboratório de Clonagem e Expressão do Centro de Terapia Celular, diretor do Hemocentro de Ribeirão Preto, vinculado à Universidade de São Paulo (USP), e coordenador da rede. Os pesquisadores precisam de mais US$ 5 mil para realizar testes em outras linhagens celulares e em células modificadas em biorreatores e para desenvolver novos vetores. A construção da unidade de produção está orçada em US$ 20 milhões e sua operação atenderia toda a demanda de hemoderivados no país, de acordo com Covas. A produção do fator VIII por i^L tecnologia do DNA recomL^L binante, por exemplo, rei M presenta, atualmente, 10% .^L. -A. da demanda total mundial de 2 bilhões de unidades/ano. Mas a participação do produto obtido por biotecnologia é crescente. "A Baxter, da Suíça, está finalizando a construção de uma fábrica que vai atender toda a demanda", diz ele. "O custo de produção da unidade obtida por fracionamento do plasma ou por fator recombinante é praticamente o mesmo, de US$ 0,5 por unidade", calcula Covas. Ele teme que o país esteja investindo US$ 60 milhões numa tecnologia - a do plasma - que corre o risco de ficar obsoleta em quatro ou cinco anos. Integram a rede coordenada por Covas, além do Hemocentro de Ribeirão Preto, os laboratórios de Biologia Celular e Molecular do Instituto de Química da USP; de Biologia Molecular da Universidade de Brasília (UnB); e de Bioquímica e Biologia Molecular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). . PESUUISA FAPESP 99 ■ MAIO DE 2004 ■ 33


I POLíTICA

CIENTIFICA E TECNOLóGICA

FOMENTO

À procura do parceiro ideal Instituto Uniemp cria agência para agilizar produção de novos fármacos A grande gra: maioria das empresas brasilei/\n ras de fármacos e medicamentos tem porte médio, está capitalizada, mas investe pouco em pesquisa capaz de gerar uma inovação radical. Trabalham basicamente com genéricos e na incrementação de produtos com patentes vencidas. As investigações desenvolvidas nas universidades e institutos de pesquisa podem oferecer alternativas de inovação para as empresas nacionais A Agência de Gestão e Inovação Farmacêutica (Agif) aposta na aproximação entre os dois setores. "Temos grupos de excelência nos institutos de pesquisa investigando moléculas interessantes que precisam se transformar em inovação e ir para o mercado", diz Saul d' Ávila, coordenador da Agif. Criada em 2002 como um núcleo temático do Instituto Uniemp — Fórum Permanente das Relações Universidade e Empresa -, a Agif busca estabelecer uma canal de comunicação entre a academia e a indústria, identificar oportunidades de inovações famarcêuticas, assessorar pesquisadores nos processos de transferência de tecnologia ou registro de patentes, entre outros. O primeiro projeto gerido pela Agif foi de desenvolvimento do Evasins, um protótipo molecular que será utilizado na produção de um fármaco com propriedades anti-hipertensivas. O novo 34 ■ MAIO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 99

produto foi identificado pelo Centro de Toxinologia Aplicada (CAT), no Instituto Butantan — um dos dez Centros de Pequisa, Inovação e Difusão patrocinados pela FAPESP -, e está sendo desenvolvido pelo Consórcio Farmacêutico Nacional (Coinfarma), formado pelos laboratórios Biolab-Sanus, Biosintética e União Química. O projeto já tem duas patentes com a participação das indústrias. "Identificamos o gene que produzia a molécula, constatamos que algumas delas tinham propriedades anti-hipertensivas e que poderíamos entrar num ni-

cho de mercado com grande potencial. Mas pouco sabíamos sobre Direito e Propriedade Intelectual", lembra Antônio Martins de Camargo, diretor do CAT e da Agif. "Foi quando pensamos em criar a agência para apoiar o pesquisador e aproximá-lo das empresas que se interessem pelo produto", conta. A Agif também está prospectando mercado para projetos como o do medicamento Lovap, um antitrombótico; um kit diagnóstico para marcação de desintegrinas que têm potencial para se tornar um marcador de células tumorais; além do marcador de ECA em hipertensos. Outro gargalo no processo de desenvolvimento de novas drogas são os testes pré-clínicos. "O Brasil já conta com equipes qualificadas para realizar exames clínicos com protocolos rigorosos, mas faltam laboratórios para os testes préclínicos", afirma Camargo. Para suprir essa carência, a Agif decidiu organizar um laboratório que vai terceirizar o tipo de ensaio fundamental para verificar a segurança e a formulação dos medicamentos. "O novo laboratório - batizado de Lachesis - será uma Contrate Research Organization (CRO), ou seja, um centro de investigação préclínica para pesquisas farmacêuticas", conta d'Ávila. O laboratório terá o apoio do Ministério da Saúde, R$ 3 milhões do Banco Mundial (Bird) e será instalado no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen). •


POLíTICA CIENTIFICA E TECNOLóGICA

Grãos de café: movimento de R$ 10 bilhões

AGRONOMIA

Hora do café Pesquisadores concluem primeira fase do seqüenciamento do genoma da planta

Chegou a vez do café. O agronegócio que movimenta US$ 91 bilhões por ano em todo o mundo R$ 10 bilhões só no Brasil -, e é responsável por 2% das exportações, teve parte de seu seqüenciamento concluído. O objetivo do trabalho é contribuir para ampliar a produtividade do setor, com plantas mais resistentes a doenças e grãos com uma qualidade melhor. O projeto é um investimento conjunto da FAPESP com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa Café), que começou em 2003 e acaba de ter a sua primeira fase encerrada. O trabalho realizado pelos grupos ligados ao Agronomical and Environmental Genome (AEG), da FAPESP, e o Centro Nacional de Recursos Genéticos (Cenargen), da Embrapa, gerou 155 mil seqüências de genes. "São praticamente 25 mil genes com grande potencial", diz o cientista Carlos Colombo,

coordenador do Genoma Café em São Paulo e pesquisador do Instituto Agronômico de Campinas. Por enquanto, as 100 mil seqüências geradas em São Paulo e as 55 mil feitas pelos pesquisadores da Embrapa estão em bancos de dados separados. O próximo passo do projeto será unir todas essas informações em um único lugar. O banco de dados obtido pelos pesquisadores brasileiros é o resultado do seqüenciamento de várias bibliotecas de cDNA, ou seja, seqüências de DNA correspondentes aos genes expressos nos vários tecidos da planta (folhas, raízes, frutos, flores e ramos sadios e submetidos a estresses bióticos e abióticos, pragas, doenças, frio, calor, seca) em diversos estágios de desenvolvimento. A equipe científica do genoma do café optou pelo seqüenciamento de Etiquetas de Seqüências Expressas (EST) Expressed Sequence Tags -, onde apenas os genes expressos pelo organismo são seqüenciados.

"Agora, vamos convocar os interessados em participar da fase de análise funcional das seqüências geradas", disse Colombo. Segundo o pesquisador, os cientistas paulistas devem se reunir ainda em maio para discutir os resultados do seqüenciamento e preparar as próximas pesquisas que devem ser desencadeadas nas fases seguintes. O café é um dos principais produtos da agricultura paulista, ao lado da laranja e da cana-de-açúcar. Segundo dados fornecidos pela Embrapa, a área do café no país hoje ocupa 2,7 milhões de hectares, com aproximadamente 6 bilhões de pés, e está presente em mais de 2 mil municípios de 16 estados brasileiros, do Paraná ao Amapá, o que possibilita uma diversificada disposição espacial da produção. A cultura cafeeira também tem grande importância em termos de geração de emprego no Brasil: emprega 8 milhões de pessoas. • PESQUISA FAPESP 99 ■ MAIO DE 2004 ■ 35


POLÍTICA CIENTIFICA E TECNOLÓGICA POLÍTICA PÚBLICA

Em defesa da floresta Nogueira Neto, aos 82 anos, estuda manejo e gestão ambiental MARILI RIBEIRO

sabor de descobertas ambientais como a inexplorada e possivelmente única "floresta de buritis" no mundo, localizada em sobrevôo na região amazônica ocidental, segue causando emoção. O empenho na elaboração até o final deste ano de um "dicionário das abelhas indígenas", tema que tem sido uma paixão desde os 18 anos quando teve o primeiro contato com o inseto, merece revisões e aprimoramento a cada nova releitura. O acompanhamento da formulação de políticas públicas relacionadas à conservação do patrimônio natural - caso do projeto apresentado à FAPESP, em parceria com a Fundação Florestal para a Conservação e a Produção Florestal do Estado de São Paulo, denominado Áreas especialmente protegidas no Estado de São Paulo: levantamento c definição de parâmetros para administração e manejo como subsídio a políticas públicas de gestão ambienta permanece dominando sua biogra Inquieto, ativo e participante. São 1 cetas da rica personalidade de Paul Nogueira Neto que, aos 82 anos, se orgulha de ter a própria vida embaralhada com a história do ambientalismo no Brasil. Professor titular aposentado pela Universidade de São Paulo (USP), do departamento de Ecologia do Instituto de Biociências, Nogueira

MAIO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 9



Neto dedicou-se com afinco às abelhas sem ferrão, produtoras de mel, e, paralelamente, sempre cultivou as questões ambientais, então ainda sem foco definido na produção científica e social no Brasil. Os dois temas vão ocupar lugar de destaque em sua carreira e em sua vida pessoal e familiar. O professor Nogueira Neto tornou-se responsável pela demarcação de áreas ambientais no país. Organizou e dirigiu por 12 anos consecutivos, até 1986, a Secretaria Especial do Meio Ambiente (Sema), instalada no âmbito do Ministério do Interior. A frente da Sema, criou e estabeleceu 3,2 milhões de hectares em 26 estações e reservas ecológicas. Assumiu postos e mantém vínculos como membro de importantes entidades e associações relacionadas com o meio ambiente, entre as quais o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama); o Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema); o Conselho de Administração da Cetesb. Continua na vice-presidência da S.O.S - Mata Atlântica, da WWF-Brasil, e do International Bee Research Association. Preside a Associação de Defesa do Meio Ambiente (Adema-SP) e a Fundação Florestal do Estado de São Paulo. Quando assumiu a coordenação do projeto de Políticas Públicas encaminhado à Fapesp, Nogueira Neto apostou que a pesquisa poderia oferecer elementos sólidos não só para tomadas de decisões das instituições responsáveis pela proteção de áreas naturais, mas também para pautar as ações de representantes do Executivo e do Legislativo. "Não se trata somente de como administrar melhor as unidades de conservação, mas também de como salvar os últimos fragmentos florestais relevantes do Estado de São Paulo, ainda sem proteção ambiental", explica ele. "De Jundiaí a serra do Japi, até o rio Paraná, temos cerca de 800 quilômetros de quase um vazio, uma imensa área devastada", salienta. O Estado de São Paulo possui apenas cerca de 7% de sua cobertura vegetal preservada. O trabalho pioneiro da equipe coordenada pelo professor já mapeou e propõe a criação de novas áreas protegidas a partir da indicação de 109 fragmentos prioritários, remanescentes de 38 ■ MAIO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 99

ecossistemas. "O primeiro deles está em vias de virar realidade, na área de confluência do rio Tietê e Piracicaba, em Barreiro Rico", festeja. O tombamento dessas áreas, decretadas como Área de Relevante Interesse Ecológico (Arie), determina o que pode e o que não pode se fazer nesses espaços. O maior problema está em estabelecer cooperação para o enriquecimento dessas áreas, oferecendo informações aos proprietários sobre o potencial de compensação ambiental. Os fragmentos prioritários escolhidos, como esclarece a bióloga Lélia Marino, da Fundação Florestal, envolvida no projeto, levam em consideração as condições de conectividade dos fragmentos, ou seja, como eles se comunicam com os outros e também com a sua vizinhança. Trata-se de hierarquizar qual a importância de um fragmento em relação a outro selecionado, em questões como a preservação da fauna e flora. Uma área urbana é menos permeável para fauna do que um pasto, porque tem trânsito de mamíferos. O mesmo ocorre em um canavial, exemplifica Lélia. A conectividade permite aumentar a área ambiental preservada com melhor e maior qualidade. "Uma floresta isolada restringe geneticamente as espécies, o que não quer dizer que pequenas populações não possam resistir, apenas que fica bem mais difícil", acrescenta o professor. Abelhas, no terraço do casarão - Nascida quase acidentalmente - um vez que a opção inicial de carreira de Nogueira Neto foi o curso de Direito concluído em 1945 na USP -, a vocação para as questões ambientais teve inicio durante as visitas à fazenda da família da esposa. "Meu sogro tinha uma caixa de abelhas indígenas no terraço do casarão. Fui ler a respeito e vi que era um inseto pouco estudado", relembra ele. "Nos últimos anos da faculdade de Direito já publicava artigos sobre abelhas em revistas científicas", acrescenta. Foi nesse período que o grande amigo Paulo Vanzolini (doutor em Zoologia, professor na USP) aconselhou-o a tornar a paixão objeto regular de estudos. Oito anos depois de formado, prestou novo vestibular, dessa vez para História Natural na Faculdade de Filosofia da USP, curso que concluiu em 1959. Nesse período, Nogueira Neto já havia fundado

talvez a primeira entidade conservacionista no país, a Defesa da Flora e da Fauna, hoje Associação de Defesa do Meio Ambiente. A conceituação de meio amg^L biente, percebido com a reL^L levância que tem hoje para i ^ a qualidade de vida em ^L. ^^. geral, inexistia no Brasil. Havia uma compreensão da importância da preservação dos parques nacionais, desde a criação do código florestal, em 1934. A concepção mais ampla viria com a divulgação dos grandes eventos internacionais, como a reunião sobre meio ambiente em Estocolmo, em 1972, da qual Nogueira Neto participou. Ainda no final do governo militar, ele foi convidado a comandar um órgão federal que cuidasse do tema, que viria a ser a Sema. "Me deram três salas e cinco funcionários apesar das dimensões continentais do país", conta ele. "Engajei-me porque vi um grande futuro a ser construído nessa área tão carente. Permaneci no cargo por quatro governos. Foram mais de 12 anos como secretário federal", acrescenta. Longe das disputas político-partidárias, Nogueira Neto conseguiu difundir a importância do ambientalismo no Brasil. Durante diversos anos Nogueira Neto deu cursos sobre o comportamento dos animais sociais e sobre as mudanças climáticas e os ecossistemas terrestres. Foi um dos fundadores do Departamento de Ecologia Geral, no Instituto de Biociências da USP. Construiu uma carreira reconhecida interna e externamente. Pertenceu, entre 1983 e 1986, à Comissão Brundtland das Nações Unidas, sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento. Era um dos dois únicos representantes da América Latina. Chefiou e participou de várias delegações oficiais ao exterior, recebendo a Ordem de Rio Branco, primeiro como oficial e depois como comendador. Foi duas vezes eleito vice-presidente do programa O homem e a biosfera, da Unesco, órgão das Nações Unidas responsável pela educação e cultura, com sede em Paris. Recebeu, em 1981, juntamente com Maria Thereza Jorge Pádua, o prêmio Paul Getty, a principal láurea mundial no campo da conservação da natureza, e também o Prêmio Duke of Edinburgh, em 1997, da WWF Internacional. Foi distinguido com a


Nogueira Neto, na sua chácara no bairro do Morumbi, brinca com seu labrador

comenda da Arca Dourada (1983), dos Países Baixos, também pela sua atuação conservacionista. Nogueira Neto conta com gosto descobertas como a da floresta de buritis, feita ainda na década de 1980 e até hoje impenetrável. "Nunca ninguém pôs os pés lá. Mandamos uma expedição, mas não foi possível chegar perto. Calculamos, em vôos rasantes, que a área, no máximo a 40 quilômetros do rio Amazonas, tenha uns 30 mil hectares de palmeiras, o que somaria cerca de 10 milhões de buritis. Não há nada similar no mundo", empolga-se. O conhecimento sobre a biodiversidade nacional é bastante razoável nas regiões Sul e Sudeste do país. Elaborou projetos para compatibilizar o desenvolvimento e a manutenção da floresta amazônica com a exploração do cupuaçu e para compatibilizar o trabalho dos seringueiros com outras técnicas. Acabou por patrocinar a criação da reserva extrativista Nova Esperança, na região de Xapuri, no Acre. Criou vínculos pessoais com moradores da região, tornando-se o que ele mesmo define como uma "espécie de

conselheiro" de um grupo de 50 famílias que estão fora da reserva Xico Mendes. Adquiriu uma pequena propriedade em que também mantém um apiário experimental. Outros similares, que visita regularmente com enorme satisfação, estão instalados no interior de São Paulo, em Campinas e em Ribeirão Preto, assim como em Luziânia, em Goiás. São abelhas diferentes. As do Acre são típicas da região e diferentes das outras criações de Nogueira Neto. A observação dessas colônias está trazendo novas informações ao já vasto conhecimento do professor sobre o tema, afinal são três livros publicados e até o final do ano um dicionário. Portinari e os mateiros - Na época em que era morador na região dos Jardins há quase 50 anos, em São Paulo, adquiriu uma área de cerca de 2 mil metros quadrados do outro lado do rio Pinheiros, hoje o bairro do Morumbi, onde cultivava seu prazer de observar a natureza. "Aqui era considerado 'fora da cidade', tanto que fiz uma chacrinha, adubei as mudas, melhorei a qua-

lidade da terra. Animais, como vacas, passeavam soltos pelas ruas", ri da lembrança de uma cidade que desapareceu em poucas décadas. Atualmente, reside ali, na ampla casa que construiu e onde gosta de receber seis netos e, por enquanto, o único bisneto. "Acho que quando se faz o que se gosta o trabalho rende frutos e se multiplica em boas lembranças", pondera. A casa confortável e ampla reflete a paixão primordial de seu proprietário. Logo no saguão de entrada, uma abelha estilizada pelo artista plástico Aldemir Martins em cerca de 5 metros de comprimento domina o chão, montada em pastilhas de cerâmica. Numa das paredes principais na passagem para as salas, um quadro de Portinari feito por encomenda retrata os mateiros retirando mel de abelhas indígenas. "Num rasgo de ousadia dei a ele umas fotos, já que desconhecia o tema, para que pintasse o quadro", lembra divertido. "Ainda bem que Portinari era acessível. Hoje é um exemplar raro, porque é o único quadro dele sobre o assunto". O óleo de Portinari é de 1958. • PESQUISA FAPESP 99 ■ MAIO DE 2004 ■ 39


I CIÊNCIA

LABORATóRIO

BRASIL

Risco de câncer no fogo dos canaviais

Hidrocarbonetos aromáticos: concentrações maiores do que em algumas metrópoles

Parece uma chuva de filetes de carvão. No interior paulista, entre maio e novembro, o fogo nos canaviais, adotado há séculos como forma de facilitar o corte da cana-de-açúcar, produz uma fuligem que fecha o céu, suja as roupas no varal e atormenta a vida de quem tem asma e bronquite. Não bastassem esses problemas, as queimadas liberam material particulado que contém compostos químicos conhecidos como hidrocarbonetos policíclicos aromáticos (PAHs, sigla em inglês), de acordo com um estudo realizado por pesquisadores da Universidade de Antuérpia, na Bélgica, e do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara. "Mesmo

em concentrações reduzidas, a presença dos PAHs no ar preocupa, pois, além de agravar problemas respiratórios, alguns deles são potencialmente cancerígenos", comenta Ana Flavia Godói, autora do estudo que identifica essas substâncias, publicado no Journal of Chromatography A, complementado por outro, de Ricardo Godói, recém-publicado no Mikrochimica Acta. A equipe belga, coordenada por René Van Grieken, na qual Ana Flavia trabalha há três anos, e a da Unesp, chefiada por Mary de Marchi, coletaram amostras de material particulado durante dez dias em Araraquara, no centro da região produtora de cana em São Paulo. Por meio de uma nova técnica que re-

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duz o tempo de análise em até dez vezes (o resultado sai em 40 minutos), encontraram quantidades expressivas de PAHs, como fenantreno, fluoranteno e pireno, emitidos pela queima de cana. Segundo esse estudo, a concentração média de PAHs em Araraquara durante a queimada é maior que a encontrada normalmente em capitais como Santiago, no Chile, e Seul, na Coréia do Sul, com uma população pelo menos cinco vezes maior e a poluição típica das metrópoles. A concentração média de um deles, o benzo[a]pireno, composto com alto potencial de causar câncer, com um tempo de vida de 5 a 15 dias, é maior que a encontrada em Londres, na Inglaterra. •

■ Calendários de pedra No Brasil também há menires - os blocos de rocha que Obelix adorava carregar e atirar sobre os romanos que queriam conquistar a Gália. Estão em Florianópolis, capital de Santa Catarina: são cerca de 40 colunas, de 2 a 9 metros de altura, apoiados por três pedras menores, espalhadas a leste da ilha, algumas vezes à beira do mar. Os blocos fazem parte de dois observatórios astronômicos - um na planície e no outro no alto dos morros -, que eram usados para acompanhar o movimento do Sol, da Lua e das estrelas. Dois estudiosos dessas obras, Adnir Ramos, pesquisador das Faculdades Integradas da Associação de Ensino de Santa Catarina, e Germano Bruno, da Universidade Federal do Paraná, descobriram que algumas pedras marcam o ponto onde nasce a constelação de Escorpião, que permanece no céu noturno durante o inverno, enquanto outras apontam para a de Órion, assídua nas noites de verão. "Os povos antigos regulavam o cotidiano com essas pedras", diz Ramos. Os menires indicavam a melhor época de plantar, de pescar ou mesmo de ter filhos, para que os nascimentos coincidissem com os tempos de alimento farto. Mas quem os criou? Talvez os homens de sambaqui, que viveram há 3 mil anos nas proximidades da atual cidade catarinense de Laguna, onde foi encontrado um relógio de sol semelhante, feito


do Paraná (UFPR). Fernandes e os paleontólogos Fernando Sedor, também da UFPR, e Rafael Silva, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com apoio da Companhia Energética de São Paulo (Cesp), localizaram as pegadas no final de março em lajes de arenito que formavam grandes dunas. Até agora, haviam sido identificados vestígios de animais do Cretáceo apenas nas bordas desse deserto, mais úmidas a ponto de abrigarem lagos, nas imediações das cidades de Presidente Prudente, ainda à beira do Paraná, ou de Marília, noroeste paulista. •

O prazer da gordura Agora se sabe por que um sorvete de chocolate ou uma fatia de picanha parecem mais apetitosos que um prato de ervilhas: alimentos ricos em gordura acionam a mesma área do cérebro ativada pelas sensações prazerosas como um toque carinhoso, um perfume ou um gole de água gelada num momento de sede. Ivan de Araújo e o britânico Edmund Rolls, da Universidade de Oxford, na Inglaterra, chegaram a essa conclusão, que pode ajudar a aperfeiçoar as dietas, com um teste com 12 pessoas com fome. Cada voluntário, deitado no interior de um aparelho de ressonância magnética nuclear, recebeu uma dose de cinco líquidos sem cor, cheiro ou sabor. Enquanto mapeavam

a atividade do sistema nervoso de cada participante, os pesquisadores pediam que eles classificassem as amostras com respeito à viscosidade e à presença ou ausência de gordura. Rolls e Araújo, que terminou este ano o doutorado em Oxford, viram que as amostras mais viscosas despertaram uma porção de uma área do cérebro ligada à percep-

ção de sabor - uma indicação de que viscosidade e sabor permitem ao cérebro descobrir o tipo de alimento consumido. Só o líquido rico em gordura (óleo de canola) acionou o córtex cingulado, região do cérebro ligada à percepção de sensações prazerosas, revelaram os pesquisadores em artigo no Journal ofNeuroscience de 24 de março. •

■ Vírus novo no Brasil

Equivalência: o mesmo que um carinho

de pedra. Ramos, em parceria com a prefeitura, luta para preservar os blocos de rocha, alguns situados em áreas residenciais. "Já acompanhei a destruição de dois deles", diz ele, "e não consegui convencer os donos das casas da importância desses monumentos." •

margens do rio Paraná, na divisa entre São Paulo e Mato Grosso do Sul. É a primeira vez que se vêem sinais de animais dessa época por lá. A descoberta é ainda mais surpreendente por se tratar do

centro do antigo deserto que ocupou essa região. "É muito difícil haver vida e mais difícil ainda encontrar vestígios em ambientes tão secos e áridos", comenta Luiz Fernandes, geólogo da Universidade Federal

■ Dinossauros nas dunas Pesquisadores do Paraná, do Rio de Janeiro e de São Paulo encontraram pegadas de mamíferos e de dinossauros do período conhecido como Cretáceo Superior (90 milhões a 60 milhões de anos atrás) no Pontal do Paranapanema, às

Na margem esquerda do Paraná: pegadas no antigo deserto

Chegou ao país um tipo de vírus descoberto na Holanda há dois anos: o metapneumovírus, que causa sintomas semelhantes aos de uma gripe e, algumas vezes, pneumonia. Pesquisadores da Universidade de Liverpool, Inglaterra, e da Universidade Federal de Sergipe detectaram o metapneumovírus em 19 crianças com menos de 3 anos internadas com problemas respiratórios em dois hospitais de Aracaju, capital de Sergipe. Das 111 examinadas, outras oito apresentavam esse microrganismo associado com o vírus respiratório sincicial (RSV), também ligado a tosse, chiado no peito e infecções nos pulmões, e 53 apenas o RSV, de acordo com o estudo publicado na revista Emerging Infectious Diseases. Já encontrado na Europa, na Ásia e na América do Norte, o metapneumovírus é considerado em alguns países como uma das principais causas de internações hospitalares de crianças com menos de 5 anos de idade. •

PESQUISA FAPESP 99 ■ MAIO DE 2004 ■ 43


LABORATóRIO

MUNDO

0 buraco negro mais próximo | bork, na Holanda, integrante da equipe, que usou o Bfl ,|^SH^K: radiotelescópio do ObservaVft^-J^^ ^ ' Hfl tório Nacional de Radioas" B| tronomia, dos Estados Unidos (Science Express). Já se sabe que a massa total do Sagitário A* é muito concentrada: ele ocupa o espaço equivalente ao da órbita da Terra ao redor do Sol. Continua, porém, o mistério sobre sua forma, que os Hj astrônomos pretendem desJMfe. cobrir assim que possível. Em2003, astrônomos norte-americanos, examinando as emissões de raios X : :\,. registradas pelo telescópio Chandra, verificaram que o 9 Sagitário A* é bastante ati: vo, com explosões que libeB RSj * „ ram jatos de gás a uma veH^SB^HBHEHI■'•- .--á!^£ locidade próxima à da luz -^HHBSHBHBSG T ■ e temperaturas de quase 20 Sagitário A*: além da neblina, no centro da Via Láctea milhões de graus. •

Que ele estava lá já se sabia, mas não que tem 22 milhões de quilômetros de extensão e uma massa 4 milhões de vezes maior que a do Sol. Havia 30 anos que os astrônomos tentavam descobrir as dimensões do buraco negro mais próximo da Terra, chamado Sagitário A* (o asterisco significa estrela). Ele está no centro de nossa galáxia, a Via Láctea, a quase 250 quatrilhões de quilômetros de distância. O maior desafio da equipe de físicos que fez essa descoberta foi enxergar além da poeira que tolda a galáxia, algo como a bruma que confunde a visão dos faróis em alto-mar. "Conseguimos afastar o fog e ver o que está acontecendo", disse Heino Falcke, do Rádio Observatório Wester-

■ Churrasco de 1 milhão de anos O primeiro churrasco da história da humanidade pode ter ocorrido há 1 milhão de anos, na África, com carne de antílope. A suspeita de que os hominídeos habitantes das cavernas de Swartkrans, um dos sítios arqueológicos mais ricos do planeta, foram pioneiros no uso controlado do fogo foi levantada por dois pesquisadores sul-africanos e dois norte-americanos (Science in África). Os exames feitos por meio da técnica de ressonância de elétrons mostraram que os ossos queimados foram

HBHHB

submetidos a temperaturas que excederam 500 graus Celsius, o equivalente ao calor produzido por fogo em áreas confinadas. Os restos do antílope que virou churrasco foram achados em 1984 por Bob Brain, então diretor do Museu Transvaal, da África do Sul, junto com outros 250 ossos queimados de animais. Brain trabalhou com o químico Andy Sillen no laboratório de arquiometria da Universidade da Cidade do Cabo para detectar a temperatura à qual os fósseis foram submetidos. A hipótese do fogo era plausível, mas a idade dos ossos permanecia incerta

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até o material ser reexaminado. As equipes de Francis Thackeray, do Museu Transvaal, e de Anne Skinner, do Williams College, Estados Unidos, confirmaram as idéias de Brain de 20 anos atrás: os ossos realmente foram submetidos a calor intenso. "Não estamos dizendo que parentes distantes do homem como o Homo ergaster ou o Homo erectus faziam fogueiras, mas que no mínimo provavelmente usavam o fogo de modo controlado", comentou Thackeray. "Eles podem ter recolhido galhos em chamas de árvores atingidas por raios após invernos secos." •

■ Benefícios extras do açafrão O açafrão é um tempero usado sem parcimônia na índia, para dar cor aos alimentos ou acrescentar sabor picante ao molho de curry. Agora o açafrão - já recomendado para pessoas com Aids e câncer, por causa de suas propriedades antioxidantes e antiinflamatórias - entrou na lista das substâncias que ajudam a evitar uma doença degenerativa incurável, o Alzheimer (Science in África). O baixo índice de idosos vítimas da doença na índia, quando comparado ao Ocidente, pode es-


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Madagascar: plantas invasoras avançam após desmatamento

tar associado à dieta à base de açafrão. Em um estudo relatado no Journal of Inorganic Biochemistry, Sheril Daniel, Santy Daya e Janice Limson, da Universidade Rhodes, da África do Sul, mostraram que o princípio ativo do açafrão, a curcuma, protegeu o cérebro de ratos contra danos oxidativos causados por cianeto e metais tóxicos como chumbo e cádmio, aos quais estão associadas doenças degenerativas como Parkinson e Alzheimer. O chumbo afeta o hipocampo, uma região do cérebro que controla o comportamento e as atividades intelectuais, causando perda de memória e incapacidade motora. Os testes feitos com ratos mostraram que o princípio ativo do açafrão protegeu o hipocampo da ação deletéria do chumbo. Acredita-se que sua propriedade antiinflamatória ajude a reduzir o inchaço observado nas células neuronais. •

■ Espécies nativas perdem espaço Desmatar uma área tem claras conseqüências negativas para a biodiversidade, mas quais danos reais podem ocorrer quando essa prática se dá por longos períodos? As plantas invasoras que crescem com a retirada da madeira nas florestas tropicais persistem ou são substituídas ao longo do tempo por espécies nativas? Com essas perguntas, biólogos da Universidade de Stony Brook (EUA), percorreram o Parque Nacional Ranomafana, a sudoeste de Madagascar, país insular próximo à costa sul da África, escolhido por pos-

suir um dos maiores índices de biodiversidade do mundo. Eles analisaram a diversidade de espécies em uma área abandonada após a madeira ter sido retirada em 1885, em outra onde a retirada de árvores foi seletiva, ocorrida em 1947, e em uma terceira, nunca desmatada, mas devastada por um ciclone três anos antes do estudo, além de lugares poupados de retirada de madeira. A conclusão é que o estabelecimento de espécies invasoras em florestas desmaiadas impede a recolonização de espécies nativas, mesmo após 150 anos. Ou seja, há perda de diversidade biológica. Na área devastada naturalmente, há possibilidades de recuperação, o que não ocorre naquelas em que a

derrubada da vegetação é contínua. Segundo o estudo, publicado em 20 de abril no Proceedings National ofAcademy of Science, as plantas invasoras permanecem longo período após a colonização inicial e alteram drasticamente a sucessão de espécies de plantas na floresta. •

■ Equívocos na terra do Big Ben Eles têm pose, pompa e uma rainha, além da famosa fleuma britânica, que tudo cobre com um véu de distanciamento. Mas algo destoa nesse reino: o conhecimento científico da população do Reino Unido deixa muito a desejar. Pesquisa promovida pelo Instituto de Física (IoP) mostrou que 98% dos adultos britânicos ignoram do que é feito o núcleo de um átomo. Só 2% dos 504 entrevistados (232 homens e 272 mulheres) acertaram a resposta: os constituintes básicos de toda a matéria do Universo são os quarks. Para 31,3%, o núcleo atômico é formado por elétrons (partículas que, na verdade, orbitam o núcleo), 10,2% acreditam que é por prótons (sim, o núcleo é formado por prótons, mas há também os nêutrons). Dos entrevistados, 1,2% simplesmente confundiu átomos com células e disse que o DNA é que ocupa o núcleo atômico. Os organizadores da pesquisa, conduzida pela Nems Market Research, mostraramse preocupados porque a energia nuclear gera quase um quarto da eletricidade utilizada no Reino Unido e fornece isótopos para cerca de 27 mil exames médicos diários. •



Câncer, esperanças divididas Avanços na pesquisa médica salvam muitas vidas, mas a doença ainda desafia a ciência

MARCOS PIVETTA


No Brasil rural da década de 1930, um recém-nascido tinha uma expectativa média de vida de menos de 40 anos e quase metade das mortes era causada por doenças infecto-parasitárias. De cada 37 óbitos, apenas um se devia ao câncer. No Brasil urbano do século 21, sete décadas mais tarde, os bebês exibem uma esperança de vida de 70 anos e menos de 5% das mortes entram na conta das moléstias infecto-parasitárias. Um em cada oito óbitos é provocado por tumores malignos. Hoje, o câncer deixou para trás todas as causas de morte, a não ser os problemas cardiovasculares, basicamente ataques do coração e derrames, que, desde a década de 1960, lideram as estatísticas de óbitos. Em 2002, cerca de 400 mil novos casos de câncer foram registrados e quase 130 mil brasileiros morreram em razão da doença. Quatro de cada cinco vítimas fatais tinham mais de 50 anos, com ligeiro predomínio de baixas entre os homens. As mortes por câncer representaram 13,2% de todos os óbitos do país, quase a metade do percentual atingido pelas vítimas fatais de problemas no aparelho circulatório. De acordo com o Instituto Nacional do Câncer (Inca), órgão do Ministério da Saúde sediado no Rio de Janeiro, pouco mais de 2 milhões de brasileiros morreram da doença entre 1979 e 2002. Nesse período, as taxas ajustadas de mortalidade dos oito principais tipos de câncer no país - pulmão, estômago, mama, próstata, cólon e reto, esôfago, leucemias e colo do útero - mantiveram-se estáveis ou aumentaram na maioria dos casos (veja gráficos à página 51). Quedas significativas, em ambos os sexos, ocorreram somente com os índices de óbitos referentes ao câncer de estômago, tendência também verificada em outros países. "Estão em ascensão o câncer de mama, de pulmão em mulheres e de próstata", afirma Guinar Mendonça, coordenadora de Prevenção e Vigilância do Inca. A elevação no número de óbitos não significa que todo tipo de câncer permanece incurável, como muita gente ainda acredita. No Hospital do Câncer - A. C. Camargo, de São Paulo, um dos centros nacionais de referência no tratamento da doença, por exemplo, dois terços dos cerca de 5 mil pacientes 48 ■ MAIO DE 2004 ■ PESUUISA FAPESP 99

atendidos anualmente se curam. Isso sem se levar em conta idade, sexo, tipo de tumor ou estágio da doença que essas pessoas apresentavam no momento em que iniciaram o tratamento. índices semelhantes podem ser encontrados nos principais centros oncológicos do Brasil e de fora. Nos Estados Unidos, onde há muitas estatísticas, metade dos doentes de câncer vencia a doença 30 anos atrás. Hoje, a taxa média chega a 63%. Para alguns, foi um progresso pífio, perto de reduções da ordem de 60% no número de mortes por infarto e derrame no mesmo período. Para outros, foi um avanço não desprezível. Um obstáculo na luta contra o câncer continua de pé: o processo de metástase, a disseminação das células anormais do tumor para outras partes do corpo além do local original em que elas apareceram. "As metástases são um divisor de águas", afirma Ricardo Brentani, presidente do Hospital do Câncer e diretor da filial paulista do Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer. Contra elas, os recursos terapêuticos ainda são limitados e os prognósticos para os pacientes, reservados. Epidemia - O câncer é uma epidemia em praticamente todo o mundo, onde encurta anualmente a existência de 6 milhões de indivíduos, provocando 12% das mortes. No Japão e na Austrália, o câncer já responde pela maioria dos óbitos. Nos Estados Unidos, as mortes por problemas cardiovasculares ainda ocupam o topo da lista, embora sua fatia de vítimas venha decaindo. A taxa de mortes por câncer, por sua vez, mantém-se estável ou crescendo. Os anos de sobrevida aumentaram para os pacientes com tumores diagnosticados e tratados em seus estágios iniciais, mas o prognóstico para os casos em que a doença já se mostra disseminada pelo organismo praticamente não se alterou. As perspectivas para os doentes com metástases de câncer de pulmão, mama, próstata e cólon/reto - os que mais matam nos Estados Unidos - são quase as mesmas hoje e há três décadas. O melhor prognóstico é dos pacientes com câncer de próstata em estágio avançado: pouco mais de 30% se mantêm vivos por mais de cinco anos. No país que é a meca da ciência, é possível que em breve o câncer se transforme no principal matador de sua população.

O mesmo pode acontecer em boa parte do globo. A incidência de câncer cresce por várias razões, algumas, paradoxalmente, estão diretamente ligadas à melhoria das condições de saúde e higiene de grandes fatias da população mundial e ao progresso da ciência. As pessoas hoje vivem muito mais do que no passado. "Quanto mais velho e desenvolvido um país, maior o seu número de óbitos por câncer", comenta a estatística Marceli de Oliveira Santos, da coordenação de Vigilância e Prevenção do Inca. Nas últimas décadas, a pesquisa médica acumulou um saber tremendo sobre esse vasto e diversificado grupo de condições clínicas, originadas pelo crescimento descontrolado de células em alguma parte do corpo, que recebe o nome genérico de câncer. Tais avanços, somados à maior informação sobre a doença entre os leigos, ajudaram no diagnóstico precoce de vários tipos de câncer. Tudo isso faz com que figurem nas estatísticas mais casos e mortes atribuídas à doença. Essas são, por assim dizer, as "boas" causas, os progressos da humanidade, que, infelizmente, favorecem a incidência do câncer. Agora vêm os motivos intrinsecamente ruins. O estilo de vida do homem moderno o expõe a muitos fatores de risco que predispõem ao câncer, como fumar (o mais perigoso de todos), tomar sol em excesso, beber demais e ter contato prolongado com produtos químicos potencialmente carcinogênicos ou vírus. Há também a questão genética. "Cerca de 15% das causas de câncer são hereditárias", diz Brentani. E, para piorar ainda mais, surge uma questão que causa um certo desconforto e polêmica entre os pesquisadores e oncologistas: nas últimas três décadas, os avanços realmente significativos para tratar o câncer foram mais lentos e localizados do que todo o talento, tempo e dinheiro investidos em estudos e testes clínicos sobre a doença poderia fazer supor. "Para os tipos de câncer mais comuns, que matam muito, como pulmão e mama, nosso progresso foi praticamente zero. Ainda tratamos os doentes basicamente da mesma forma que fazíamos décadas atrás", afirma o bioquímico Andrew Simpson, do Instituto Ludwig em Nova York, que morou durante anos no Brasil, onde chefiou projetos de seqüenciamento genético. "Houve, sim, avanços


A ascensão do câncer O peso proporcional das principais causas de morte no país

Distribuição proporcional das principais causas de morte no Brasil - 2002 Grupos de causas

Total

%

Aparelho circulatório

267.290

27,2

Câncer

129.850

13,2

Causas Externas

126.426

12,9

Aparelho Respiratório

94.672

Infec. Parasitárias

45.141

9,6 4,6 4,7

Digestivas

1930

1940

1950

1960

1970

1980

1990

2000

2002

46.146

Outras

318.521

27,8

Total

981.900

100,00

Em 1930, de acordo com os parcos dados disponíveis, o câncer era responsável por 1 em cada 37 mortes no país. Hoje, sete décadas mais tarde, 1 em cada 8 óbitos se deve à doença.

Fonte: MS/SVS/DASIS/CGIAE/Sistema de Informação sobre Mortalidade - ENSP/Fiocruz Obs.: Os dados anteriores a 1980 referem-se às principais capitais brasileiras.

significativos no tratamento de cânceres pediátricos, de adolescentes, linfomas de Hodgkins, leucemias e algumas formas raras de tumor." Em algumas dessas condições, a taxa de cura - aí entendida como uma sobrevida de pelo menos cinco anos sem o retorno do tumor - supera os 90%. Os céticos dirão que, nas últimas décadas, poucas novidades de peso se juntaram ao clássico arsenal terapêutico anticâncer. De fato, ainda hoje, o uso combinado ou não de cirurgia, radioterapia e quimioterapia - o primeiro procedimento tenta extirpar as células do tumor do organismo enquanto os outros dois almejam matá-las - forma o alicerce de base sobre o qual se assenta a quase totalidade dos tratamentos contra os mais variados tipos de câncer. Com certeza, não apareceu nenhuma bala de prata que fosse capaz de dar fim à maioria dos tumores, mas não se pode esquecer de que mesmo essas três

abordagens foram sendo aprimoradas, a fim de serem mais efetivas e menos agressivas. A adoção dos transplantes de células-tronco periféricas do sangue e de medula óssea possibilitou, por exemplo, o emprego de doses mais elevadas de químio ou radioterapia contra alguns casos graves de câncer. "Antes o tratamento era mais empírico", afirma o oncologista Gilberto Schwartsmann, da Faculdade de Medicina de Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). "Hoje podemos adotar abordagens mais refinadas." Surgiram também novas famílias de tratamentos que, aos poucos, ganham espaço como terapias alternativas ou complementares. Esse é o caso da imunoterapia, que, ao ministrar anticorpos monoclonais ou vacinas nos pacientes, procura reforçar o sistema de defesa do próprio organismo e, assim,

minorar os efeitos colaterais das abordagens mais tradicionais ou mesmo combater diretamente os tumores. Já há anticorpos monoclonais, como o Herceptin, do laboratório Roche, sendo usados contra alguns tipos agressivos de câncer de mama. No Hospital das Clínicas de São Paulo, uma vacina gênica desenvolvida no país, com DNA modificado, está sendo testada em pacientes com tumores de cabeça e pescoço em estágio bastante avançado, contra os quais os recursos tradicionais da oncologia não deram resultado. Outras apostas da ciência contra o câncer são as drogas antiangiogênese. Esses compostos têm como objetivo cortar a fonte de nutrientes que, via vasos sangüíneos, abastecem os tumores. Esse tipo de fármaco funcionou bem em ratos, mas seu desempenho em humanos é, por ora, decepcionante. A compreensão dos mecanismos biológicos que fazem um câncer reincidir mesmo depois do emPESQUISA FAPESP 99 ■ MAIO DE 2004 ■ 49


prego de altas doses de quimioterapia é um dos objetivos mais perseguidos pela ciência. Trabalhos recentes, como os de Michael Clarke, da Universidade de Michigan, sugerem que células-tronco tumorais, de crescimento muito lento e difíceis de matar, seriam as responsáveis pelo reaparecimento de algumas formas de câncer e por parte dos insucessos dessa forma de tratamento. uma visão pouco otimista sobre a situação da doença em seu país, a revista norte-americana Fortune, uma publicação especializada em notícias de economia e negócios, dedicou sua capa de 22 de março ao tema "Por que estamos perdendo a guerra contra o câncer (e como ganhá-la)". Entre os culpados por esse quadro aflitivo, a publicação reserva um lugar de destaque para a pesquisa científica feita nos Estados Unidos. Segundo a Fortune, uma série de equívocos ou incompetências tem feito a pesquisa sobre câncer pedalar, pedalar, pedalar e quase não sair do lugar. A lista é realmente grande: a ciência foi boa até aqui para gerar conhecimento aprofundado sobre o câncer, mas não soluções; os grupos de pesquisa trabalham de forma isolada, sem colaboração, e por vezes estudam aspectos extremamente específicos da doença; pouca gente estuda o processo de metástase, que, em última instância, é o responseavel pela morte dos doentes; o rato é um péssimo modelo animal para se estudar o câncer, induzindo os cientistas a conclusões precipitadas ou erradas; as candidatas a novas drogas são testadas em pacientes em estágio terminal, quando nenhum outro tratamento funciona mais, num tipo de experimento fadado a não produzir bons resultados. A Fortune estima que foram canalizados US$ 200 bilhões em pesquisa sobre câncer nos Estados Unidos desde 1971 até hoje. Diante dessa cifra e dos modestos resultados em termos de novos tratamentos, a revista sugere que o retorno do investimento para o contribuinte norte-americano não foi dos melhores. No Brasil, não há estimativas sobre o tamanho da verba alocada para a pesquisa de câncer. Com certeza, o valor total, seja qual for, é uma gota no oceano perto dos bilhões de dólares investi50 • MAIO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 99

dos internacionalmente. Grande parte da pesquisa nacional em oncologia está centrada no Rio de Janeiro, em torno de projetos tocados ou apoiados pelo Inca, e em São Paulo, onde a FAPESP apoia algumas iniciativas de peso. Uma delas é o programa Genoma Clínico do Câncer, iniciado há dois anos. Essa iniciativa analisa o comportamento de 20 mil genes humanos em tecidos sadios e em nove diferentes tipos de tumores. Seu orçamento é de US$ 1 milhão, oriundo, em partes iguais, da FAPESP e do Instituto Ludwig. "A idéia é produzir dados que possam gerar ferramentas para melhorar o diagnóstico ou tratamento dos tumores e ver como o ativamento dos genes altera parâmetros como a sobrevida e a propensão a metástases dos doentes ", explica Marco Antônio Zago, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), coordenador do programa. Teste de risco - O Genoma Clínico, aliás, é um desdobramento de outro programa conjunto da FAPESP e do Instituto Ludwig, o Genoma Humano do Câncer, encerrado recentemente. O Genoma Humano do Câncer produziu 823 mil ESTs (etiquetas de seqüências expressas) derivadas de tecidos humanos, sadios e com câncer. Cada EST é um fragmento de gene ativado num determinado tecido. A quantidade de ESTs produzida pelos pesquisadores brasileiros eqüivale a 40% de todas as seqüências expressas extraídas de tecidos humanos e depositadas nos bancos de dados públicos. O feito merece destaque em dobro, pois foi obtido com o emprego de uma metodologia alternativa - e brasileira - para encontrar pedaços de genes ativos, a técnica Orestes. Além de ser um centro de referência no tratamento da doença, o Hospital do Câncer - A.C. Camargo também faz ciência de ponta na área oncológica, quase sempre em conjunto com o Instituto Ludwig. Em 15 de fevereiro deste ano, a revista norte-americana Câncer Research deu destaque de capa para um trabalho feito por pesquisadores das duas instituições. A equipe do bioquímico Luiz Fernando Lima Reis, ligado tanto ao hospital quanto ao instituto, viu que a ocorrência de um tipo de lesão benigna no estômago, a metaplasia intestinal, pode ser um fator que pre-

dispõe à ocorrência de câncer do estômago. Não é que todas as lesões desse tipo vão virar câncer, mas algumas, aquelas com uma determinada assinatura molecular (com um dado padrão de funcionamento de alguns genes), parecem ser um prenuncio da formação de tumores malignos. "Se nossos resultados se confirmarem em estudos posteriores, talvez consigamos criar um teste para apontar a população com mais riscos de desenvolver câncer de estômago", afirma Lima Reis. Grande parte dos trabalhos científicos do Hospital do Câncer é financiada pelo programa Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid), da FAPESP. Uma das ramificações mais interessantes das pesquisas do Inca são os estudos em farmacogenômica. Nesse tipo de esforço científico, os pesquisadores procuram, no DNA de brasileiros, por mutações em genes que podem estar relacionados a uma melhor ou pior resposta aos tratamentos contra o câncer. Outra linha da farmacogenômica é o estudo da prevalência de alterações genéticas que favoreçam o hábito de não fumar ou de fumar menos. Sabe-se, por exemplo, que certas mutações no gene CYP2A6 podem facilitar o abandono do cigarro. "De verbas próprias, investimos R$ 4 milhões em estudos e trabalhos científicos", afirma Guilherme Kurtz, coordenador-geral do setor de pesquisas do Inca. "Mas o valor não inclui os financiamentos externos, das agências de fomento, que também bancam nossos trabalhos." Fora do eixo Rio-São Paulo, também produzem trabalhos de ponta sobre o câncer a Universidade Federal do Paraná (UFPR), sobretudo na área de leucemias e transplantes de medula óssea, e a UFRGS. Apesar de todas essas notícias vindas apenas da pesquisa sobre câncer feita num país periférico como o Brasil (imagine o que não deve estar sendo feito agora mesmo nos laboratórios dos Estados Unidos e Europa), ainda faz sentido falar em "derrota para o câncer" como diz a Fortune'? Seria exagero? Pessimismo? Talvez. Ninguém que lida com doentes ou faz pesquisa concorda abertamente com esse veredicto, mas a maioria dos cientistas e médicos entrevistados para esta reportagem admite que os avanços na luta contra a doença se dão num ritmo mais vagaroso do que se esperava. "Não acredito


As vítimas de cada tumor Taxa ajustada de mortalidade dos principais tipos de câncer por 100 mil homens

18

i" H— Pulmão

16 14 12

|1— Estômago

10 H— Próstata 8 H— Esôfago 6 W— Colou e Reto 4

-^

3 53

Leucemias

2

1980

1982

1984

1986

1988

1990

1992

1994

1996

1998

2000

2002

Taxa ajustada de mortalidade dos principais tipo de câncer por 100 mil mulheres

■—Mama

» Pulmão Cólon e Reto 5,03

Colo do útero

H— Estômago 2,51

Leucemias

H— Esôfago

1980

1982

1984

1986

1988

1990

1992

1994

1996

1998

2000

2002

Fonte: Inca Otas.: Taxas ajustadas, descontado o efeito da distribuição etária da população ao longo do tempo

PESQUISA FAPESP 99 ■ MAIO DE 2004 ■ 51


que estejamos perdendo a luta contra o câncer", afirma Carlos Gil Ferreira, chefe do setor de pesquisa clínica do Inca. "Na verdade, estamos fazendo progressos muito mais lentamente do que desejaríamos." ambém há um consenso de que a ciência tem dificuldades em transformar o conhecimento gerado no laboratório sobre os mecanismos biológicos do câncer em novas práticas, testes e tratamentos que possam efetivamente ser úteis aos pacientes. "Há muita pesquisa sobre câncer, mas falta enfoque. Precisamos produzir conhecimento para gerar novos tratamentos e alvos terapêuticos", comenta Zago. Falta o que, no jargão da ciência, se chama pesquisa translacional, aquela que transforma a descoberta da academia numa ferramenta de uso médico. Essa é uma das metas do Genoma Clínico do Câncer. Mudar a forma de fazer pesquisa pode acelerar a busca por tratamentos realmente mais eficazes contra o câncer? Em tese, sim. Mas não é fácil promover essa revolução. Há dificuldades práticas, quase intransponíveis. Os críticos do modelo atual de gerar conhecimento sobre a doença dizem que o roedor não é capaz de reproduzir toda a complexidade de um câncer humano. Às vezes, um tumor só aparece numa pessoa após uma exposição prolongada, de anos, a um fator carcinogênico, como o cigarro. Como reproduzir essa situação num bicho que vive apenas dois anos? "OK, o rato é um mau modelo. Mas então vou estudar o quê?", pergunta Brentani. "Cabe ao pesquisador conhecer as limitações do modelo e fazer perguntas que esse modelo pode efetivamente responder." Sem o auxílio do rato, seria praticamente impossível fazer pesquisa nas áreas biológicas. Outro entrave, esse de ordem moral, é o processo de testes de novas drogas contra o câncer em humanos. É preciso encontrar algum jeito que não fira a ética e permita maior flexibilidade para fazer experimentos com compostos em pacientes em estágios iniciais da doença, quando as chances de cura são maiores. O problema é que ninguém sabe como e se isso pode ser feito. "Todo médico está obrigado eticamente a dar ao seu paciente o melhor tratamento disponível", comenta Lima Reis. 52 ■ MAIO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 99

Se há uma droga de criação recente que entusiasma médicos e cientistas, e sempre é citada como uma prova de que a moderna pesquisa contra o câncer dá sim resultados práticos, esse fármaco é o Glivec, fabricado pela multinacional Novartis. A droga foi especialmente desenhada para neutralizar a causa molecular, o defeito genético, que causa a leucemia mielóide crônica (LMC), um tipo de câncer de sangue e da medula óssea que responde por 14% das leucemias em adultos e de 3% a 5% em crianças. Em 2001, seu uso contra essa forma de leucemia, cuja terapia

convencional consiste na realização de um transplante de medula óssea e, em alguns casos, com doses de quimioterapia, foi aprovado pela agência norteamericana que regula o uso de medicamentos, o FDA. Dessa maneira, alguns pacientes conseguem hoje controlar a doença sem ter de fazer transplantes. O inconveniente é que o paciente tem de tomar a droga a vida inteira - o Glivec neutraliza o defeito molecular que leva à LMC, mas não o suprime. "Os resultados dessa droga são bons mesmo, mas ainda é cedo para sabermos se os benefícios vão se manter a longo pra-


zo", pondera Zago. Em 2002, o Glivec deu outra prova de sua eficiência: seu emprego foi aprovado no tratamento de metástases de um tipo raro de tumor gastrointestinal, conhecido pela sigla Gist. Em 80% dos casos, o remédio funciona. Caso a ciência obtenha sucesso em desenhar compostos como o Glivec para combater outros tipos de tumores, sobretudo os mais comuns, o arsenal de tratamentos contra o câncer vai realmente se ampliar e se tornar mais eficiente no futuro. Mas, por enquanto, isso é ainda uma promessa. Não será fácil pro-

duzir um série de Glivecs de uso mais amplo, pois poucos tipos de câncer derivam de um único defeito genético, como acontece com a leucemia mielóide crônica. Em geral, uma sucessão de mutações, para não mencionar os fatores ambientais, estão implicadas na gênese de muitos tumores. Para Andrew Simpson, do Instituto Ludwig de Nova York, os cientistas, sobretudo nos Estados Unidos, que ditam a moda e os rumos da ciência, precisam aprender a trabalhar em grupo e a estabelecer objetivos claros e práticos para seus estudos com câncer. "O excesso de com-

petitividade dos grupos de pesquisa nos Estado Unidos é bom para gerar descobertas, mas não é suficiente para gerar impacto na área clínica", diz Simpson. "É preciso um esforço coordenado em busca de um objetivo comum. Mais ou menos como a Nasa fez quando resolveu viabilizar a ida do homem à Lua. Os brasileiros sabem trabalhar em equipe, como provaram no projeto Genoma Humano do Câncer e no seqüenciamento do genoma da bactéria Xylella fastidiosa. Acho que o país pode ter um impacto na pesquisa sobre o câncer." •

PESQUISA FAPESP 99 ■ MAIO DE 2004 ■ 53


1 CIÊNCIA BIOQUÍMICA

Trabalho extra Triturador de moléculas dentro das células também cria proteínas que reduzem eficiência de vacinas

A natureza não pára de dar ã^k exemplos de que pode ser L^^ bem mais complicada do i M que parece. Dois artigos ^L. Jkk. recentes, um publicado na Nature e outro na Science, revelam um fenômeno que dificulta um pouco mais a já atribulada vida dos pesquisadores que estudam proteínas - no Brasil, há cerca de 300 grupos dedicados a essa área. Ao redor do núcleo da célula, na porção chamada citoplasma, há uma estrutura cilíndrica, formada por proteínas, que age como um triturador: desfaz as proteínas velhas e defeituosas em suas unidades, os aminoácidos. Pensava-se que esses aminoácidos ficassem livres e fossem reaproveitados na produção de novas proteínas - que formam as células e os tecidos, enfim o organismo de plantas e animais somente em outro compartimento celular, o ribossomo, a partir de receitas contidas no material genético das células, a molécula de ácido desoxirribonucleico (DNA). O que agora aparece claramente é que as proteínas responsáveis por essa desmontagem também são capazes de formar outras proteínas. Essa produção paralela identificada este ano mostra que as proteínas que se acreditava fossem capazes apenas de cortar outras proteínas por inteiro não executam o serviço completo. Algumas delas, além de cortar, também reagrupam trechos distantes da proteína parcialmente desmontada, modificando-a antes que entre em ação. 54 ■ MAIO DE 2004 • PESQUISA FAPESP 99

A recombinação ou splicing de proteínas, como é chamado o processo recém-descoberto, ajuda a entender por que algumas vacinas não funcionam como deveriam. As vacinas são feitas a partir de antígenos, fragmentos de proteínas que acionam as células de defesa e preparam o organismo para enfrentar os vírus e as bactérias que os produzem. Mas, como é amplo o conjunto de possibilidades de recombinação dos trechos de proteínas, podem surgir antígenos contra os quais o organismo não está preparado. "Esse mecanismo exerce uma clara influência sobre os antígenos, cuja diversidade deve aumentar de modo significativo", disse a Ricardo Zorzetto, de Pesquisa FAPESP, Benoit Van den Eynde, do Instituto Ludwig para Pesquisa do Câncer, em Bruxelas, Bélgica, coordenador do estudo publicado on-line pela Science em 4 de março e apresentado na versão impressa da revista em 23 de abril. "Certamente esse não é um fenômeno raro, uma vez que dois outros exemplos já foram descritos desde a publicação de nosso artigo", disse a Pesquisa FAPESP James Yang, do Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos (NCI), o primeiro a identificar esse mecanismo no organismo humano. Depois de seu estudo, feito com células de tumores de rim e noticiado em 15 de janeiro na Nature, essa forma alternativa de produção de proteínas foi observada pela equipe de Van den Eynde em células de tumor de pele e por outro

grupo de pesquisadores do NCI, em um estudo a ser publicado em breve. Descrito há quase 20 anos em células de plantas e, mais tarde, em organismos unicelulares, só agora o splicing de proteínas foi observado em animais. É uma descoberta que ajuda a explicar por que o organismo humano produz cerca de 90 mil proteínas distintas, embora possua apenas cerca de 30 mil receitas registradas no DNA. Mas, por ora, a identificação do splicing de proteínas gera mais dúvidas que respostas, afirma o imunologista Hans-Georg Rammensee, da Universidade de Tübingen, Alemanha, em comentário sobre o trabalho de Yang, publicado também na Nature de janeiro. Regra ou exceção? - "Ainda não sabemos se, em mamíferos, os peptídios (fragmentos de proteínas) produzidos dessa forma têm uma função diferente (daqueles fabricados a partir do DNA)", reconheceu Yang. Mesmo assim, Rammensee aponta outra possível conseqüência do mecanismo recém-descrito: embora não se conheça a freqüência da produção de proteínas a partir da quebra de uma molécula original e a ressoldagem de suas partes, existe a possibilidade de que essa recombinação ocorra não apenas com proteínas de células tumorais, mas também com as proteínas de células normais, de vírus e de bactérias que infectam o organismo, tornando mais difícil a obtenção de vacinas contra algumas doenças.


Representação do splicing: proteínas novas com retalhos das antigas

A descoberta desse mecanismo sugere que as exceções ao modelo criado há 40 anos - a produção de proteínas a partir, tão-somente, do DNA - são mais comuns do que se poderia imaginar. Uma pista da complexidade da fabricação de proteínas surgiu há mais de duas décadas, com a identificação do splicing de RNA. Copiada do DNA, a molécula de RNA, ou ácido ribonucleico, transporta a receita de produção de proteínas do núcleo para o citoplasma. No caminho, pode perder alguns de seus segmentos internos. Como resultado, a proteína feita sob o comando desse RNA encurtado não poderia ter sido antecipada apenas pelo exame do trecho do DNA que lhe originou. Foi por acaso que Yang chegou ao splicing de proteínas. Há alguns anos, ele verificou que os linfócitos T, um tipo de célula do sistema imunológico, estavam bastante ativos em uma pessoa com câncer de rim. Os linfócitos T reconheciam um fragmento de uma proteína fabricada em quantidades elevadas pelas células cancerosas, o fator de crescimento de fibroblastos 5 (FGF-5). Com o objetivo de chegar a um medicamento contra tumores, Yang decidiu investigar quais aminoácidos compunham esse fragmento do FGF-5. Ele constatou que esse trecho resultava da quebra e reorganização aleatória da molécula depois de pronta: de um segmento de 49 aminoácidos, 40 aminoácidos da porção intermediária foram excluídos e cinco de uma extremidade foram unidos a quatro da outra. Pesquisadores do Instituto Ludwig, em Bruxelas, e da Universidade de Liège, também na Bélgica, concluíram que essa recombinação ocorre no triturador de proteínas - o proteassomo. Van den Eynde observou esse fenômeno ao estudar um fragmento - peptídio - derivado de um antígeno produzido por células de melanoma, o mais agressivo dos tumores de pele. Depois de prontos, só um em cada 10 mil peptídios sofre splicing, que aproveita a energia gerada na própria quebra das proteínas descartadas pelo organismo. • PESOUISA FAPESP 99 ■ MAIO DE 2004 ■ 55


I CIÊNCIA

BIOLOGIA

Devolta à Produção antecipada de enzimas reduz os perigos da saída da hibernação

Biólogos de Brasília conseguiram explicar como répteis e anfíbios resistem à brutal transformação por que passam ao sair da hibernação, após muitas semanas vivendo congelados. É um momento delicado. Os animais descongelam em poucas horas, acompanhando o aumento da temperatura, que sobe de alguns graus negativos para cerca de 20° Celsius (C). O oxigênio volta a circular pelo corpo, mas em quantidades elevadas, e gera formas muito reativas, os radicais livres, prejudiciais ao organismo. Marcelo Hermes-Lima e sua equipe da Universidade de Brasília (UnB) descobriram que os animais se preparam durante a hibernação de modo a reduzir os prejuízos causados pelo excesso momentâneo de radicais livres. Mesmo congelado, funcionando num ritmo lento, o organismo de algumas espécies de sapos, tartarugas, cobras e moluscos produz e armazena enzimas antioxidantes, em especial a catalase, o superóximo dismutase e a glutationa peroxidase, que desfazem compostos como o peróxido de hidrogênio (H2O2), formados em abundância em conseqüência da enxurrada de oxigênio. As pesquisas que explicam a tolerância ao frio extremo ou à falta de oxigênio estão ajudando a aperfeiçoar as técnicas de conservação de órgãos, que ainda têm de ser transplantados em poucas horas, após serem, retirados do doador, para evitar a morte dos tecidos. Os seres humanos passam por uma situação semelhante à de um sapo que descongela no fim da hibernação, quando a circulação sangüínea do cora56 ■ MAIO DE 2004 ■ PESGWISA FAPESP 99

ção ou do cérebro fica obstruída momentaneamente. Com a volta do oxigênio, há um risco alto de surgirem radicais livres em excesso e danos graves durante um infarto ou um derrame. "O organismo humano faz o possível para se defender dos radicais livres, mas não contamos com uma resposta antecipada, como outros animais", diz Hermes-Lima. Neve e deserto - Répteis, anfíbios e moluscos produzem enzimas com antecedência quando passam com regularidade por três tipos de situações extremas, segundo Hermes-Lima. A primeira está ligada ao frio intenso, que leva os animais, em especial os do Hemisfério Norte, a hibernarem, como forma de economizar energia. A outra é o calor exagerado, na chamada estivação ou hibernação de verão: diante da falta de água, caramujos das terras semi-áridas do norte da África, entre elas algumas espécies comestíveis de escargot, escondem-se na concha - e lá ficam por até dois anos, com o organismo parcialmente ressecado, até a chuva voltar. Por fim, alguns vertebrados como a tartaruga-da-orelha-vermelha (Trachemys scripta elegans) ou a rã-leoparda (Rana pipiens) enfrentam a escassez ou mesmo a falta completa de oxigênio, juntamente com o inverno e a hibernação em lagoas congeladas. Répteis como os jacarés e mesmo mamíferos como focas e leões-marinhos passam por uma situação mais corriqueira a falta de oxigênio nos músculos e órgãos como rins e fígado - quando mergulham e ficam até uma hora sem respirar embaixo d'água.


Em resposta às temperaturas extremas e à falta de oxigênio, o organismo começa a funcionar em ritmo lento, um estado conhecido como depressão metabólica. Nessas horas, a síntese de proteínas, a queima de açúcares, a freqüência de batimentos cardíacos e o ritmo da respiração caem bastante: num caso extremo, o metabolismo do esquilo ártico (Spermophüus parryii) permanece em 5% e o consumo de oxigênio em 2% do habitual durante o inverno. "Mesmo que quase tudo esteja parado, as enzimas antioxidantes são uma prioridade e continuam a ser produzidas", diz Hermes-Lima. Essa capacidade é resultado da evolução: só sobreviveram os animais que conseguiram estocar enzimas capazes de deter a inundação de oxigênio. "Descobrimos uma tendência na natureza", diz Hermes-Lima. Seus estudos - feitos em conjunto com o grupo de Kenneth Storey, especialista em depressão metabólica da Universidade Carleton, no Canadá - mostraram que a enzima produzida em maior intensi-

il ma tartaruga do Canadá e a rã-da-floresta: enxurrada de oxigênio quando chega a primavera

dade antes de o oxigênio voltar é a glutationa peroxidase. A conclusão se apoia na análise dos mecanismos de defesa antioxidante desenvolvidos por animais como a cobra-garter (Thamnophis sirtalis parietalis), a rã-leoparda e a rã-dafloresta {Rana sylvatica), o peixe-dourado (Carassius auratus) e em dois tipos de escargots, os caramujos terrestres Otala latea e Helix aspersa. Às vezes, algumas enzimas são produzidas menos intensamente. Em um estudo publicado no ano passado no Canadian Journal ofZoology, Hermes-Lima e seus alunos Marcus Ferreira e An-

tonieta Alencastro demonstram que em uma espécie de caramujos de água doce, os Biomphalaria tenagophila, há uma produção menor da enzima catalase quando os animais ficam sem oxigênio por 24 horas, no fundo de um frasco com água, e de superóxido dismutase quanto passam 15 dias em estivação, sob uma temperatura contínua de 26 °C. Em ambos os casos, houve um pequeno aumento da quantidade da enzima glutationa peroxidase. "Ninguém consegue explicar muito bem por que aumenta a produção de algumas enzimas e a de outras cai", diz Hermes-Lima. "Mas uma delas subindo deve ser o bastante." Cobras do gelo - Hermes-Lima começou a conviver com animais congelados no final de 1990. Foi quando visitou Storey em seu laboratório no Canadá, meses depois de o ter conhecido em PESUUISA FAPESP 99 ■ MAIO DE 2004 ■ 57


São Paulo, e lhe propôs a busca de mecanismos antioxidantes assoaciados ao congelamento e à falta de oxigênio, algo que o biólogo canadense ainda não havia estudado. Storey gostou da proposta. No ano seguinte, o pesquisador brasileiro desembarcava em Ottawa, a capital do país, para uma temporada de dois anos e meio. Começou trabalhando com as cobras-garter, encontradas em quase toda a América do Norte, até ao norte das províncias canadenses. São os primeiros répteis a acordarem da hibernação, no final do inverno. Só que, quando chega a primavera, os rios descongelam em poucos dias e muitas vezes cobrem os buracos em que as cobras haviam se alojado. Mas elas podem ficar até dois dias sem oxigênio antes de saírem de suas tocas inundadas. Também suportam algumas horas congeladas Hermes-Lima imaginou que haveria enzimas antioxidantes em abundância nesses animais, como forma de evitar os danos do excesso de oxigênio. Mas não foi o que descobriu. As cobras tinham, na verdade, pequenas quantidades de enzimas antioxidantes, quando comparadas com os ratos, mas essas quantidades aumentavam, de acordo com a situação. A glutationa peroxidase era a predominante sob um congelamento de cinco horas a 2,5 °C, enquan-

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0 PROJETO Fisiologia Molecular de Radicais Livres em Sistemas-modelo COORDENADOR MARCELO HERMES-LIMA-

UnB

INVESTIMENTO R$97.000,00 (CNPq)

to no experimento seguinte, com as cobras sob ausência de oxigênio durante dez horas a 5 °C, a enzima encontrada em maior quantidade era o superóxido dismutase. Storey, no início, não acreditou. "Ele dizia 'Too cola, it's notpossible e passou meses sem me dar atenção, por achar que eu tinha feito tudo errado", recorda Hermes-Lima. Refeito o experimento, emergiram os mesmos resultados. Finalmente convencido, mas ainda intrigado, por achar que toda célula deveria ter uma quantidade menor dessas enzimas nessas condições extremas, Storey aceitou assinar com o brasileiro o artigo com essas descobertas, publicado em 1993 no American Journal of Physiology. Vinte minutos sem ar - Desde 2001 a equipe de Brasília estuda o estresse do

mergulho em animais da fauna brasileira. Em duas expedições ao Pantanal, os pesquisadores coletaram amostras de tecidos de embriões de jacarés-dopantanal {Caiman yacare) e também de animais recém-nascidos, jovens e adultos. Quando mergulham e param de respirar, esses répteis priorizam a circulação do oxigênio, que se torna escasso. O sangue deixa de ir para os músculos e órgãos como o fígado e segue para alvos prioritários como o coração e o cérebro, de modo a maximizar o tempo que ficam lá embaixo até 20 minutos. Impossibilitada de fazer experimentos com os jacarés em laboratório, já que se trata de animais um tanto maiores que os habituais camundongos, a equipe da Universidade de Brasília construiu um mapa dos danos causados pelo excesso de radicais livres em lipídeos (gorduras) e proteínas ao longo do desenvolvimento desses répteis. "Os danos são maiores em tecidos com maior taxa metabólica, como cérebro, fígado e rim", informa Hermes-Lima. Sua equipe trabalha ainda, desde o ano passado, com amostras de pele e da capa gordurosa de baleias jubarte {Megaptera novaengliae), que passam uma parte do ano ao longo do litoral do sul da Bahia e ficam embaixo d'água, sem respirar, por até 20 minutos. •


1 CIÊNCIA

AGRICULTURA

As pernas dos vírus Pulgões podem espalhar o possível agente causador da morte súbita dos citros

Pesquisadores da Alellyx Genomics descobriram dois insetos conhecidos como pulgões que transmitem vírus que eles acreditam ser o responsável pela morte súbita dos citrus, praga que motivou a eliminação de cerca de 400 mil pés de laranjas doentes no Estado de São Paulo - por enquanto essa é a única forma de deter seu avanço. Em experimentos realizados nas estufas do Fundo de Defesa da Citricultura (Fundecitrus) pela equipe dessa empresa, os pulgões Aphis spiraecola e Aphis gossypii infectaram micromudas e laranjeiras com o Citrus Suâden Death Virus ou Vírus da Morte Súbita dos Citros (CSDV), que a Alellyx apresentou em outubro do ano passado como o possível agente causador da morte súbita. Os pesquisadores verificaram que uma terceira espécie, o Toxoptera citricida, como as outras duas, também pode carregar o vírus identificado pela empresa, mas os testes feitos até agora não indicaram que esse pulgão seja igualmente capaz de transmitir o microrganismo. "Não descartamos a possibilidade de o Toxoptera também transmitir o vírus que nós acreditamos que esteja associado à morte súbita", diz Ana Cláudia Rasera da Silva, pesquisadora da Alellyx. Ainda não há evidências que permitam afirmar que seja realmente esse o agente causador da morte súbita, mas nos últimos meses a equipe da empresa tem mostrado uma relação direta entre a doença e esse vírus, en-

Laranjeira com Aphis spiraecola: dois milhões de árvores infectadas

contrado apenas em árvores de regiões atingidas pela morte súbita, no norte de São Paulo e no Triângulo Mineiro. Por enquanto, considera-se a possibilidade de o CSDV atuar em conjunto com o vírus responsável por outra doença, a tristeza dos citros, que há 60 anos quase dizimou os laranjais paulistas e hoje, em versões mais atenuadas, tornou-se praticamente endêmica. Um dos transmissores do vírus da tristeza são justamente os pulgões - insetos de corpo mole e sem asas, encontrados às dezenas sugando a seiva dos pés de algodão, trigo, cana-de-açúcar e maçãs ou na folhagem de hortaliças como a couve. Detectada pela primeira vez em 1999 no município mineiro de Comendador Gomes, a morte súbita consiste no entupimento gradativo do floema, vasos

que conduzem nutrientes e água da raiz para a copa, causando uma espécie de infarto. Seu avanço tem sido bastante rápido, de acordo com um levantamento do Fundecitrus. Em 2002, havia cerca de 22 mil plantas com sintomas da morte súbita em cinco municípios paulistas. Um ano depois, a área afetada expandiu-se 60 quilômetros e 44 mil laranjeiras de 18 municípios do estado apresentavam sinais dessa doença. Incluindo Minas, há cerca de 2 milhões de árvores infectadas em 30 municípios, com uma perda de produtividade próxima a US$ 40 milhões. A doença se espalhou, muito provavelmente, por meio de insetos como os pulgões, cuja erradicação é praticamente impossível, de tão abundantes que são. • PESQUISA FAPESP 99 ■ MAIO DE 2004 ■ 59



&

CIÊNCIA

FÍSICA

No cerne ,-do Experimentos aprofundam o conhecimento sobre trutura da matéria

>

Câmara onde as partículas colidem: detalhando a anatomia e o comportamento de núcleos instáveis

oi uma aposta de alto risco. A maquina capaz , de produzir núcleos atômicos exóticos - partículas instáveis, que duram apenas 1 segundo e não existem na natureza - ainda não havia _ sido testada. Os pesquisadores do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP) não tinham certeza de que funcionaria. Mesmo apreensivos, sentindo um frio na barriga, decidiram manter a data de estréia, 2 de fevereiro. Era o início da 13a Escola de Verão de Física Nuclear Experimental e, na platéia, havia 50 estudantes de pós-graduação de nove estados do Brasil, da Argentina, Colômbia e Cuba. "Os alunos sabiam que aquela era a primeira vez que a máquina iria funcionar e estavam tão curiosos quanto nós", conta Alinka LépineSzily, uma das responsáveis pelo projeto. Foram algumas horas checando os componentes da máquina de 7 metros de comprimento, cujas estruturas principais - dois grandes cilindros horizontais - lembram vagões de um trem. E alguns longos segundos até os computadores registrarem as primeiras informações sobre os núcleos exóticos gerados ali dentro. Funcionou!, PESQUISA FAPESP 99 ■ MAIO DE 2004 ■ 61


comemoraram os pesquisamar a idéia de que é possível Recém-formados dores. A tensão deu lugar à encontrar matéria nuclear Os primeiros núcleos exóticos produzidos no Ribras satisfação. Os resultados obcom densidades diferentes", tidos devem ajudar a comafirma Rubens Lichtenthaler preender com mais detalhes Filho, membro da equipe do como surgiram os elementos Ribras. "Poderemos ajudar a químicos tanto no início do reformular e a aperfeiçoar universo, minutos após o Big antigos modelos sobre o núBang, quanto nas explosões cleo atômico", completa. de estrelas supernovas, 1 biNo laboratório, a partir lhão de anos depois. Cada dos dados obtidos, o grupo explosão de uma estrela gera de físicos procura detalhar a milhares de núcleos exótiformação de elementos quícos, que atuam como faíscas micos no interior das estree induzem à formação de tolas. Foi nesse momento que, :""%l" «."•* • -vera tJ-*^" dos elementos químicos esa partir dos gases leves — hitáveis conhecidos. drogênio, hélio e lítio -, insO novo equipamento, táveis e estáveis, começaram chamado de Projeto Ribras a se formar elementos mais (na sigla em inglês), ou Feipesados, como carbono, oxixes de lons Radioativos, no gênio e nitrogênio. É como *■«*.:* ■ > Brasil, é único no Hemisfése os pesquisadores estivesrio Sul - há outro, bastante sem subindo uma escada semelhante, na Universidade cuja base é formada pelos de Notre Dame, nos Estados elementos químicos primorEste gráfico simplificado representa a relação entre Unidos, construído há cerca diais e o topo, pelos derivaa energia (na horizontal) e a carga elétrica do núcleo de dez anos. Instalado em dos mais complexos. (na vertical). As cores indicam a quantidade de núcleos um enorme galpão blindade lítio 8 (elipses concêntricas do alto) e de hélio do, o Ribras está acoplado ao Apenas um segundo - Cada 6 resultantes das colisões entre as partículas. acelerador de partículas insdegrau que se avança faz talado no instituto há cerca surgir uma nova combinaFonte: Grupo de Exóticos/USP de 30 anos. No experimento ção de elementos que, aos do início de fevereiro, o acepoucos, torna mais nítido o lerador gerou um feixe estácomplexo cenário do univel de lítio 7, um elemento químico naNa experiência de estréia, os pesverso. Curiosamente, os físicos têm de tural, que se chocou contra um alvo quisadores do Instituto de Física da ser bastante rápidos para entenderem fixo de berílio 9, também estável. USP produziram aproximadamente 10 o que se passou há bilhões de anos: o mil partículas por segundo de hélio 6 tempo de vida das partículas exóticas reação nuclear produziu uma um núcleo exótico, com dois prótons e geradas em laboratório é muito curto série de partículas, estáveis e quatro nêutrons (o hélio normal tem - apenas um segundo. Mas eles não se instáveis, que continuaram dois prótons e dois nêutrons). Segundo preocupam. "Nesse caso, é muito temse propagando. A exceção Alinka, os dois nêutrons extras ficavam po, mais do que suficiente para que ficou por conta do pródistantes do núcleo, formando um todas as informações cheguem ao prio lítio 7, que, por ser o feixe primário halo, uma espécie de anel que determicomputador e sejam analisadas", gade partículas, foi bloqueado por um anna um raio atômico muito maior que rante Valdir Guimarães, pesquisador teparo, chamado Copo de Faraday, cono hélio comum. do projeto. locado à sua frente. As outras partículas A idéia de construir o Ribras nasceu produzidas na colisão inicial, antes do Exóticos e rebeldes - Essa peculiaridaem julho de 1995, quando o físico teólítio parar no Copo de Faraday, por caude chamou a atenção: núcleos estáveis, rico Mahir Saleh Hussein regressou de sa de suas direções divergentes do feixe mesmo de elementos químicos diferenuma temporada de um ano e meio no principal, escaparam desse bloqueio e tes, têm a mesma densidade no centro, Instituto de Tecnologia de Massachusetentraram nos solenóides - bobinas com uma superfície pouco difusa e contorts (MIT) e na Universidade Harvard, 1 metro de comprimento, localizadas nos bem definidos. O hélio 6 apresennos Estados Unidos. Convicto de que o dentro dos cilindros e imersas em hélio tava uma extensa região - compreendiBrasil poderia ocupar lugar de destaque líquido. Os solenóides produzem um da entre o núcleo e o anel -, na qual a nos estudos sobre núcleos exóticos, campo magnético bastante intenso, por densidade média era bastante baixa, Hussein organizou um encontro na meio do qual é possível selecionar os além de uma superfície não definida. USP que, em fevereiro de 1997, reuniu núcleos exóticos, que são identificados "Com os núcleos exóticos, ocorrem sialgumas das maiores autoridades cienno detector final, um cristal de silício tuações que não se manifestam nos estíficas da área, como Richard Casten, com 2 centímetros de diâmetro. táveis. Nossos estudos poderão confirda Universidade Yale, James Kolata, da 62 ■ MAIO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 99


Ribras: equipamento único no Hemisfério Sul ajuda a entender as reações ocorridas há bilhões de anos nas estrelas supernovas

Universidade de Notre Dame, ambas dos Estados Unidos, e Antônio Villari, físico brasileiro que trabalha no Grande Acelerador Nacional de íons Pesados (Ganil), da França. Feito com a ajuda desses especialistas, o projeto brasileiro, então sob a responsabilidade de Hussein, foi aprovado ainda em 1997. Os solenóides, que formam o coração do equipamen-

'

to, chegaram só cinco anos depois, em abril de 2002, vindos dos Estados Unidos. Como a montagem só terminou em dezembro de 2003, não houve tempo de testar a máquina antes da Escola de Verão. "Resolvemos correr o risco e realizar o primeiro experimento científico como ele ocorre na vida real, sujeito a acertos e erros", reforça Lichtenthaler.

OS PROJETOS The Brazilian Rib Fácil ity Planned for the Pelletron-Linac Cot nplex in São Paulo

Estudo de P ropriedades Nucleares com Feixes 1e Núcleos Exóticos MODALIDADE

MODALIDADE

Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa

Projeto Temático COORDENADOR RUBENS LICHTENTHALER FILHO

COORDENADOR MAHIR SALEH HUSSEIN

INVESTIMENTO

R$ 1.082.150,75

- IF/USP

IF/USP INVESTIMENTO

R$ 482.797,04

-

Ainda durante a Escola de Verão, que durou duas semanas, de 2 a 14 de fevereiro, a equipe da USP provocou a colisão entre o lítio 8, exótico, e o vanádio 51, estável, com o propósito de analisar um fenômeno chamado espalhamento elástico. Trata-se de um tipo de choque entre partículas sem perda de energia, já conhecido com os núcleos estáveis. Com o Ribras, do mesmo modo que está sendo feito em equipamentos similares nos Estados Unidos e na França, pretende-se observar melhor detalhes do núcleo exótico - se é compacto ou nebuloso e se tem uma superfície difusa ou, ao contrário, bem definida. Nesse momento, os pesquisadores da USP, com o conforto de contarem com uma máquina que funcionou direito desde o primeiro dia, se preparam para comparar o choque do lítio 7, estável, com o vanádio, para analisar se ocorrem características e manifestações diferentes em relação ao que acontece com o lítio exótico. • PESQUISA FAPESP 99 ■ MAIO DE 2004 ■ 63


Biblioteca de Revistas Científicas disponível na Internet www.scielo.org

■ Ambiente

Adolescência

Modelo teórico verde Diante de questões como desmatamento, manejo sustentável e conservação das florestas, o setor florestal brasileiro tem procurado diferentes caminhos para garantir sua eficiência e, principalmente, estar em conformidade com as expectativas do campo organizacional, que determinam a legitimidade das práticas empresariais e de seus produtos. O estudo Modelo teórico para compreensão do ambientalismo empresarial do setor florestal brasileiro, de Áurea Maria Nardelli, coordenadora do Programa de Certificação Florestal SGS Qualifor, e James Jackson Griffith, do Departamento de Engenharia Florestal da Universidade Federal de Viçosa (UFV), foi desenvolvido com o objetivo de descrever e interpretar os contextos nos quais vem sendo desenvolvido o "ambientalismo empresarial" do setor florestal brasileiro, considerando como uma de suas principais variáveis a certificação florestal. O artigo de Áurea buscou compreender a evolução do campo organizacional, identificando os atores sociais que interagem com as empresas florestais e exercem influência sobre elas, além de desenvolver um modelo teórico, utilizando a estrutura de sistemas abertos e técnicas do pensamento sistêmico para representar as inter-relações entre a dinâmica institucional e organizacional do setor. A aplicação do modelo desenvolvido foi considerada apropriada para a compreensão das dinâmicas institucional e organizacional que afetam o desempenho ambiental das empresas florestais no Brasil, permitindo descrever, identificar e inferir sobre o comportamento futuro do sistema, além de estabelecer hipóteses para novos estudos. Entretanto, deve-se considerar que cada setor empresarial está sujeito a diferentes pressões, de acordo com os impactos e riscos potenciais e com a visibilidade de suas práticas, e, assim, irá apresentar dinâmicas institucionais e organizacionais próprias. REVISTA ARVORE

VOL.

27 - N° 6 - VIçOSA - NOV./DEZ.

2003 www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010067622003000600012&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

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Impacto sobre os ossos O estudo O esporte e suas implicações na saúde óssea de atletas adolescentes, realizado por três pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Botucatu, Carla Cristiane da Silva, Altamir Teixeira e Tamara Goldberg, procurou investigar o papel do treinamento esportivo vigoroso e precoce sobre a saúde óssea de adolescentes. Os autores justificam o estudo: "A adolescência é um período fundamental para a aquisição da massa óssea. Em adolescentes atletas, o pico de massa óssea pode apresentar maior incremento, em virtude do estresse mecânico imposto aos ossos pelo exercício físico praticado". A pesquisa se baseou na revisão da literatura científica, envolvendo adolescentes atletas de diferentes modalidades e de ambos os sexos, para verificar se de fato a densidade mineral óssea dos atletas é potencializada pelos exercícios. O artigo alerta para a intensidade adequada da prescrição de exercício físico para a população adolescente, uma vez que, caso o treinamento se torne muito extenuante, os benefícios gerados pela atividade sobre a saúde dos ossos podem ser minimizados ou anulados. A conclusão dos autores é de que o grande desafio para quem orienta as atividades esportivas para jovens é convencê-los a assumir uma intensidade constante e adequada e não acima dos limites fisiológicos. "Independente do tipo de esporte praticado, o aumento do treinamento deve ser razoável e coerente com as metas, sendo enfatizado treinamento seguro e eficaz para cada uma das faixas de idade e momentos da maturação biológica, independente dos calendários competitivos", dizem os autores. REVISTA BRASILEIRA DE MEDICINA DO ESPORTE - VOL. N° 6 - NITERóI - NOV./DEZ. 2003

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www.scielo.bi7scielo.php?script=sci_arttext&pid=S151786922003000600007&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Zoologia

Corruptos à solta O artigo A extração de corrupto Callichirus major (Say) (Crustácea, Thalassinidea),para uso como isca em praias do litoral do Paraná: as populações exploradas descreve as principais características da estrutura po-


pulacional dos crustáceos Thalassinidea, conhecidos vulgarmente com o nome de corruptos, bem como as variações das densidades populacionais antes e depois do período de extração anual de maior intensidade. O estudo é de autoria de José Souza, do Departamento de Zoologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e de Carlos Borzone, do Centro de Estudos do Mar, da Universidade Federal do Paraná (UFPR). A pesquisa mostra que os corruptos vêm sendo, há mais de 20 anos, capturados e utilizados como isca ao longo das praias oceânicas do litoral brasileiro, desde a costa nordeste até a costa sul. Essa atividade, praticada por pescadores amadores, ficou muito popularizada a partir do uso de uma bomba de sucção manual de construção artesanal que permite a extração dos organismos das suas galerias. A pesca desses organismos cavadores pode ocasionar alterações, tanto na espécie-alvo como em outras espécies existentes no sedimento, devido à própria técnica de captura utilizada. "A estrutura populacional de Thalassinidea pode ter sido afetada pela pesca no litoral do Estado de São Paulo, onde foi registrada uma diminuição na média do tamanho dos indivíduos da população ao longo de seis anos de estudo", aponta o artigo. O autores citaram a ocorrência de 42 espécies de corruptos para a costa brasileira.

tanto nas práticas de ensino, aprendizagem e avaliação, quanto nos novos modelos curriculares, que abrem um extenso leque de possibilidades para aprimorar a qualidade da formação acadêmica. O pesquisador defende a necessidade de reformular a graduação médica, no sentido de formar um profissional com competência para atuar em um mundo de novas relações com o trabalho e com o conhecimento. Para ele, o graduando das escolas médicas brasileiras deve ter o perfil de um profissional "com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, capacitado a atuar pautado em princípios éticos no processo de saúde-doença, com senso de responsabilidade social e compromisso com a cidadania, como promotor da saúde integral do ser humano". Segundo Maia, em face dessa realidade, as escolas médicas já têm realizado mudanças em seus projetos pedagógicos, desde adaptações de grades e de conteúdos disciplinares até verdadeiras transformações curriculares, rompendo com estruturas fragmentadas no sentido de uma formação global do estudante, inserido permanentemente na sociedade, em contato com a prática de sua futura profissão. ARQUIVOS BRASILEIROS DE CARDIOLOGIA - SãO PAULO - MAR. 2004

- VOL. 82 - N° 3

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0066782X2004000300013&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Saúde

Eliminando os riscos REVISTA BRASILEIRA DE ZOOLOGIA CURITIBA - DEZ. 2003

- VOL. 20 - N° 4 -

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010181752003000400011 &lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Cardiologia

Perfil de qualidade "As últimas décadas do século 20 foram palco de diversas e profundas revoluções no ensino da cardiologia." Esta foi a afirmação que serviu como pano de fundo para o artigo O ensino de cardiologia na graduação médica: desafios atuais, de José Maia, do Centro de Desenvolvimento do Ensino em Saúde, da Univesidade Federal de São Paulo (Unifesp). O objetivo do estudo é focalizar os desafios no planejamento dos cursos, no sentido de atender as demandas de formação contemporâneas no Brasil. Por conta disso, o artigo aborda o perfil desejado do formando com vistas às necessidades de saúde de nossa população. O estudo defende que o conhecimento científico explodiu, tanto no conteúdo como no acesso às informações, "que se superam em velocidade impressionante". Para José Maia, esse crescimento científico se deve, em grande parte, à evolução do conhecimento das ciências da educação, refletido no campo da formação médica,

Discutir as conseqüências culturais dos discursos e práticas voltados à capacitação dos sujeitos para a escolha racional e informada de riscos, calculados com base no conhecimento científico. Este é o objetivo do artigo Ciência, técnica e cultura: relações entre risco e práticas de saúde, de Dina Czeresnia, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro. A autora promove uma abordagem do conceito de risco epidemiológico como um dos elementos centrais do estudo, especialmente no contexto das práticas de saúde: "Identificar e reduzir riscos tornou-se um objetivo central da saúde pública. A gestão de riscos é nuclear ao discurso de promoção da saúde, que busca reorientar as estratégias de intervenção". O estudo defende que a vida social é regulada pela confiança em sistemas abstratos que, baseados no conhecimento cientifico, orientam as escolhas por meio de cálculos de risco. "O conceito de risco epidemiológico é um destes sistemas abstratos", diz Dina. Para a autora, a definição de estratégias de regulação de riscos no campo da saúde é tecnicamente viabilizada pelos avanços nas técnicas de cálculo estatístico. CADERNOS DE SAúDE PúBLICA JANEIRO - MAR./ABR. 2004

- VOL. 20 - N° 2 - Rio DE

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102311X2004000200012&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

PESQUISA FAPESP 99 ■ MAIO DE 2004 ■ 65


ITECNOLOGIA

LINHA DE PRODUçãO

|

MUNDO

Microvento para um micromundo À medida que os aparelhos eletrônicos encolhem, os sistemas de refrigeração também são miniaturizados. A mais recente novidade para esse micromundo veio da norte-americana Universidade Purdue, de West Lafayette, no Estado de Indiana, onde pesquisadores desenvolveram um sistema de resfriamento - similar em conceito aos usados nos aparelhos de ar-condicionado caseiros. A diferença fica por conta do tamanho: alguns mícrons, ou milionésimos de metro. Por meio de voltagens diminutas, os aparelhos geram íons (átomos com perda de elétrons) capazes de criar pequenas brisas, perfeitas para resfriar celulares, laptops e outros equipamentos pequenos. Os eletrodos usados pelos pesquisadores são feitos de nanotubos de car-

■ Programa traça perfil das células A assinatura molecular das células - a forma como os genes se expressam diferentemente de acordo com condições como tipo de tecido e estágio de desenvolvimento é uma informação crucial tanto para o diagnóstico como para o prognóstico de certas doenças. A obtenção dessas assinaturas ficou mais fácil para os pesquisadores graças a um software que acaba de ser desenvolvido pelo Massachusetts Institute of Tecnology (MIT) em conjunto

bono e medem apenas 5 nanômetros (1 nanômetro corresponde a 1 milímetro dividido por 1 milhão). "Conforme os chips diminuem, as regiões de acúmulo de calor são confinadas a lugares menores", diz Richard Smith, especialista em energia térmica da Fundação Nacional de Ciência (NSF) que financia parte das pesquisas. Segundo Smith, conseguir resfriar equipamentos com ar é uma "solução eficiente, porque o ar é fácil de obter, não precisa ser armazenado e não é um contaminante em potencial". As novas técnicas de microrresfriamento podem se mostrar essenciais para a nova geração de laptops, celulares, sistemas de sensoriamento remoto e muitos outros aparelhos portáteis do mundo da eletrônica. •

Eletrodos distribuídos por microcanais geram íons que resfriam aparelhos portáteis

com a Universidade Harvard, nos Estados Unidos. O programa, batizado de GenePattern, permite aos pesquisadores analisar e compartilhar os inúmeros resultados dos experimentos de obtenção do perfil molecular das células, dispensando a necessidade de usar outras ferramentas para compartilhar metodologias e dados. Tudo isso utilizando uma só interface. "GenePattern é um grande passo adiante", diz o professor George Church, da Escola de Medicina de Harvard, da Divisão de Ciências da Saúde e Tecnologia Harvard-MIT e da

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Iniciativa de Sistemas Computacional e de Biologia do MIT. "Ele é muito mais flexível que outros programas e permite um grande número de análises." O software pode ser acessado no endereço eletrônico http://www.broad. mit. edu/cancer/software/genepattern. •

■ Agulha monitora transplante Uma pequena agulha de pouco mais de 1 centímetro de comprimento e menos de 1 milímetro de espessura, chamada Microtrans, pode ser a

resposta que os cirurgiões aguardavam para aumentar as taxas de sucesso dos transplantes. Ela é feita de silício e dotada de múltiplos sensores, capazes de avaliar vários parâmetros durante uma cirurgia, como temperatura, pH, potássio e a passagem de corrente elétrica no organismo humano. A sua utilidade será mais proveitosa nas isquemias, quando ocorre uma interrupção da corrente sangüínea, um fator complicador nos casos de cirurgias e transplante de órgãos. Embora os cirurgiões monitorem os batimentos cardíacos por meio


do eletrocardiógrafo, quando têm de parar artificialmente o coração durante algum procedimento, essa avaliação pode ser paralisada por até 30 minutos. Com a agulha inserida no órgão, seu monitoramento é constante, o que permite conhecer suas condições de saúde durante a cirurgia ou o transporte numa caixa de gelo, por até 24 horas. Para checar os efeitos da isquemia, os médicos costumam recorrer a diversos métodos, nenhum muito eficaz ou preciso. Assim, muitos cirurgiões acabam confiando na avaliação visual para saber se o órgão poderá ser transplantado com sucesso. "Microtrans é robusta e sensível", descreve Toni Ivorra, engenheiro eletrônico da empresa espanhola que coordenou o projeto, o Centro Nacional de Microeletrônica, de Barcelona. Além da aplicação médica, a agulha poderá monitorar a qualidade de produtos como carne, frutas e vegetais. •

■ UclaeIBM lideram patentes Os Estados Unidos detêm o maior número de registro de patentes entre todos os países. A tradição de patentear pode

ser verificada no número de patentes registradas todo ano por empresas e universidades. Em 2003, não foi diferente. A Universidade da Califórnia (Ucla), pelo décimo ano consecutivo, lidera o ranking das instituições de ensino superior que mais obtiveram patentes no ano passado, segundo o Departamento de Comércio, Patentes e Marcas Registradas dos Estados Unidos (que possui a sigla Uspto, em inglês). No total, a universidade patenteou 439 experimentos (foram 431 em 2002). Em segundo lugar, com número bem menor, está o Instituto de Tecnologia da Califórnia, com 139 patentes (110 em 2002). Na terceira posição, o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), com 127 patentes (135 em 2002). Em quarto ficou a Universidade do Texas com 96 (93 em 2002) e em quinto a Universidade de Stanford, 85 patentes em 2003 e 104 em 2002. Entre as empresas que obtiveram mais registros de patentes, a líder pelo 11° ano consecutivo foi a IBM, que depositou 3.415, seguida da Canon Kabushiki Kaisha, 1.992, Hitachi, 1.893, Matsushita Electric Industrial, 1.786, e Hewlett-Packard (1.759). •

BRHSIL

Material cerâmico substitui chumbada

Bolas cerâmicas no lugar de chumbo na vara de pescar

Argila, areia e pó de pedra são as matérias-primas utilizadas para fabricar a chumbada cerâmica, uma pequena bola que mantém a linha de náilon da vara de pesca dentro da água. O novo produto, que já está no mercado, foi desenvolvido com o objetivo de substituir a chumbada tradicional, feita de chumbo, metal pesado que quando se desprende vai para o fundo dos rios, lagos e represas, onde permanece durante décadas. A idéia de desenvolver a chumbada cerâmica, também chamada de ecológica porque é feita com materiais que não agridem o ambiente, partiu de Luís Fernando Porto, da empresa Tecnicer, de São Carlos (SP), especializada em produtos cerâmicos para fornos. Ao saber que em outros países era proibido o uso de chumbo para caça e pesca, ele decidiu pesquisar um material alternativo. Para isso procurou o Laboratório In-

terdisciplinar de Eletroquímica e Cerâmica (Liec), integrado por pesquisadores da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara, com o qual já mantém parcerias. Depois de três anos de pesquisa, a chumbada cerâmica começou a ser produzida pela empresa e vendida por quilo ou em cartelas com 150 a 200 gramas. Devido à diferença de densidade, ela é maior que a tradicional, com a vantagem de não enroscar tão facilmente como as pequenas peças de chumbo. Por enquanto, o preço ainda é o principal obstáculo para que a chumbada cerâmica se torne popular entre os pescadores. Um quilo de chumbada custa cerca de R$ 4,50 e de cerâmica, R$ 6,00. Novas pesquisas serão feitas pelo Liec para diminuir o preço das bolas de cerâmica. •

PESQUISA FAPESP 99 ■ MAIO DE 2004 ■ 67


LINHH DE PRODUçãO

BRASIL

Casa feita de garrafas usadas As garrafas de plástico, chamadas PET, desde que surgiram no mercado têm suscitado discussões e propostas sobre seu destino final. Dentre as idéias divulgadas até aqui, talvez a mais inusitada foi concebida e patenteada pelo arquiteto Sérgio Prado. Ele quer usar garrafas usadas para compor casas populares mais baratas e, de quebra, alimentar uma família com verduras produzidas pelo processo de hidroponia. projeto utiliza garrafas fixadas em telas de plástico para formar paredes e tetos. As garrafas das paredes levam água para evitar incêndios. As do teto permanecem vazias, para evitar o excesso de peso e o risco de desabamento. O sistema estrutural pode ser o tradicion;al, feito em concreto, ferro ou madeira. "Das paredes e do teto nascem plantas com estíveis, ornamentais e ervas medicinais", diz Prado. As "paredes vivas" seguem um padrão geométrico: a cada 20 garrafas, uma é usada como vaso para cultivo hidropônico, utilizando água de chuva guardada em caixas-d'água. •

S

■ Perdas reduzidas na distribuição de água Desde as estações de tratamento até chegar ao consumidor, conduzida através de reservatórios e tubulações, parcela considerável da água tratada é perdida. Para minimizar essas perdas, um gru-

Garrafas plásticas, fixadas em telas, compõem as paredes da construção

po de pesquisadores da Escola de Engenharia de São Carlos (Eesc), da Universidade de São Paulo, criou um software que simula o comportamento das redes públicas de abastecimento. O modelo desenvolvido calcula as pressões na rede, levando em conta os vazamentos e a de-

68 ■ MAIO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 99

manda. "O programa é aplicado a setores da rede e só pode ser utilizado com apoio de dados de campo", explica a professora Luisa Fernanda Ribeiro Reis, que integra o Grupo de Estudos Avançados em Sistemas de Distribuição de Água. Os dados coletados são basicamente

informações de pressão em alguns pontos e vazão em trechos da rede. "Os resultados obtidos apontam para considerável redução de vazamentos, com a instalação de válvulas redutoras de pressão em pontos mais adequados da rede de distribuição", relata Luisa. •


■ Luzes para mostrar a riqueza do Tietê Diodos emissores de luz (LEDs) de cores diferenciadas distribuídos dentro de um ônibus cujo interior foi radicalmente modificado mostram o papel biológico, físico e químico da água na bacia hidrográfica formada pelos rios Tietê e Jacaré. Logo na entrada, uma maquete iluminada aponta as 34 cidades banhadas pelos dois rios e outra simula uma estação de tratamento de esgoto. Painéis eletrônicos mostram cadeias alimentares que dependem do rio, tipos de solos, principais poluentes e até como funciona uma hidrelétrica. Toda a dinâmica que envolve a vida de um rio está representada com luzes e equipamentos de óptica, segundo Vanderlei Bagnato, do Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica (Cepof), do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo, parceiro do projeto Educando sobre as Águas, idealizado pela Organização Não Governamental (ONG) Mãe Natureza, de Barra Bonita (SP). Além dos LEDs, lentes de aumento, microscópios e lupas serão usados para enxergar as bactérias e os insetos que fazem parte do rio. "A proposta do Educando sobre as Águas, que tem como alvo cerca de 175 mil alunos distribuídos em 300 escolas de ensino fundamental no âmbito da Unidade de Gerenciamento de Recursos Hídricos Tietê-Jacaré, é conscientizá-los para que colaborem na tarefa de preservar os recursos hídricos", diz o engenheiro agrônomo Glauber José de Castro Gava, coordenador do projeto, financiado pelo Fundo Estadual de Recursos Hídricos (Fehidro). •

Patentes Inovações financiadas pelo Núcleo de Patenteamento e Licenciamento de Tecnologia (Nuplitec) da FAPESP. Contato: nuplitec@fapesp.br

Avaliação de materiais para restauração dentária ■ Aparelho simplifica teste odontológico

Dispositivo para realizar testes de resistência a tração, em que se avalia a adesão entre as estruturas dentais (esmalte ou dentina) e os diferentes materiais restauradores e suas composições, como resinas e cerâmicas, permite obter resultados mais precisos e seguros em comparação com os aparelhos usados atualmente. A estrutura principal do dispositivo, desenvolvido na Faculdade de Odontologia de Piracicaba, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pode ser construída tanto em aço inoxidável como em acrílico. No entanto, a matriz onde os materiais são fixados é feita em acrílico, o que representa vantagem porque não é um material tão rígido quanto o metal e reduz o risco de perda dos corpos-

de-prova durante o teste. Além disso, é possível realizar testes subseqüentes sem precisar montar todo o aparato para cada corpode-prova a ser avaliado. O dispositivo proporciona ainda maior facilidade de posicionamento correto das estruturas dentais para a realização do teste. Título: Dispositivo para Testes de Microtração (MT Jig) em Materiais Restau-

indanodiona, em outro composto, o (1S,2R)-1, 2indanodiol, com elevado rendimento, em um processo conhecido como biotransformação (biocatálise). O (1S,2R)-1,2-indanodiol é um produto de grande interesse sintético na indústria farmacêutica porque pode ser empregado como intermediário no preparo do Indinavir, potente inibidor de uma enzima do HIV-I e, por isso mesmo, fármaco crucial na prevenção de infecção pelo vírus HIV e no tratamento da Aids. O processo biocatalítico com as células da levedura, desenvolvido por pesquisadores da Unicamp, apresenta vantagens em relação aos métodos convencionais, que envolvem metais pesados. Na transformação de compostos químicos com microrganismos, o reagente biológico é biodegradável e o processo tem, em geral, menor custo de produção, pois o solvente é a água Título: Preparo do

radores Odontológicos

'

(lS,2R)-l,2-indanodiol

Inventor: Luiz André

através da Redução Assi-

Freire Pimenta

métrica da 1,2-indanodiona

Titularidade: Unicamp/

Mediada por Células em

FAPESP

Repouso de Trichosporon Cutaneum CCT 1903

" Levedura no preparo de droga anti-HIV

Inventores: José Augusto

Uma linhagem de levedura (Trichosporon cutaneum CCT 1903) foi selecionada para transformar um composto químico, a 1,2-

Rosário Rodrigues, Gelson José Andrade da Conceição e Paulo Samenho Moran Titularidade: Unicamp/ FAPESP

PESQUISA FAPESP 99 ■ MAIO DE 2004 ■ 69


TECNOLOGIA ZOOTECNIA

O salto

da

ra

Novas linhagens asseguram maior produtividade e amenizam impactos ambientais SAMUEL ANTENOR

A carne de rã, apreciada por seu sabor delicado t^L e qualidades nutricionais, figura progressi^^A vãmente entre as mais requisitadas da cu/M linária internacional. Apesar de a iguaria _JL JL. não ter alcançado ainda o mesmo nível de popularidade de outros tipos de carne no Brasil, a criação tem grande potencial, podendo ser alçada a um patamar mais profissional e produtivo com as novas técnicas desenvolvidas na Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Botucatu. Entre as novidades estão a técnica de produção de lotes monossexo apenas com exemplares fêmeas. A escolha se dá porque elas não disputam território, ao contrário dos machos brigões que tornam o ambiente estressante, o que resulta em menor produtividade. Os trabalhos desenvolvidos até o momento também levaram à produção de uma linhagem sem consangüinidade da população de rãs-touro


{Rana catesbeiana), a espécie mais criada no Brasil, originária da América do Norte, e que aparece no topo da preferência dos principais mercados consumidores, como França e Estados Unidos. Impacto na ranicultura - Os pesquisadores, sob a coordenação de Cláudio Ângelo Agostinho, do Laboratório de Aquicultura do Departamento de Produção e Exploração Animal da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da Unesp, também desenvolveram novos comedouros e alimentadores automáticos que estão em processo de patenteamento. São novidades

importantes para a criação de rãs no Brasil, embora esse setor tenha poucas estatísticas recentes sobre o seu impacto econômico e social. Uma das últimas informações tabuladas foi realizada pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), que estimou, em 2001, cerca de 600 ranários e 15 indústrias de abate e processamento, responsáveis pela produção de 300 toneladas de carne anuais. Dados do Instituto de Pesca de São Paulo mostram que avaliação feita em 1998 pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) identificou para a ranicultura um movimento econômico de US$ 47,8 milhões por ano.

Apesar de atualmente somente a carne - rica em proteínas, cálcio, ferro, fósforo, magnésio e potássio, com baixo teor de colesterol - ter aproveitamento comercial, o potencial de aproveitamento da rã-touro é considerado excepcional. O fígado pode ser utilizado para a fabricação de patês. A pele curtida é usada na produção de cintos, pulseiras, bolsas e sapatos. E da gordura é extraído óleo para a indústria cosmética e até mesmo as partes não comestíveis podem ser aproveitadas na composição de ração animal. Mesmo com todas as qualidades da rã-touro, o número de criadores vem caindo. "Na década de 1980 eram mais

Rã-touro: nativa da América do Norte e adaptada ao Brasil


de 2 mil, agora esse número deve girar em torno de 600", afirma Agostinho. Isso acontece em grande parte, segundo o pesquisador, devido ao uso de instalações e manejo inadequados. Os ranários necessitam, além de condições climáticas apropriadas, de terrenos com topografia adequada, abundância de água, da qual a espécie é totalmente dependente, e medidas para evitar a disputa entre os animais. Expansão total - A fim de melhorar os resultados para os criadores e expandir a ranicultura no país, os pesquisadores da Unesp desenvolveram métodos capazes de, ao mesmo tempo, aumentar a produção nos ranários e evitar a disseminação dos espécimes que fogem, por descuido dos criadores, para a natureza, trazendo problemas ecológicos, porque a rã-touro disputa alimentação e pratica o canibalismo com as espécies nativas. A análise e o controle do potencial genético de exemplares da rã-touro de diversos ranários comerciais foi o primeiro trabalho científico do grupo de pesquisa da Unesp. O principal motivo para esse controle é a prática comum da endogamia (cruzamento entre parentes) nos ranários, que já chegava a causar o aparecimento de defeitos congênitos e enfermidades, devido à falta de controle da origem do animal. Como resultado final, foi obtida uma linhagem sem consangüinidade a partir de rãs oriundas de diferentes regiões e acasaladas por fertilização artificial. Agostinho coletou indivíduos em quatro grandes ranários - nas cidades de Brasília, Viçosa, em Minas Gerais, e nas paulistas Pirassununga e Franca -, cuja população de reprodutores era superior a 200 casais e com populações sem endogamia. A partir daí, novos acasalamentos foram realizados e um exame de laparotomia (incisão abdominal) dos imagos (indivíduos com três meses de idade, ainda imaturos sexualmente) permitiu a identificação das fêmeas pela presença do ovário (estrutura alongada e lobulada, enquanto os testículos têm formato arredondado). Os imagos fêmeas podem ser masculinizados por72 ■ MAIO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 99

Produção de girinos em criadou ros na Unesp: sem consangüinidade

que, apesar de possuírem características de adulto, ainda não são capazes de se reproduzir.

u

ma vez identificadas as fêmeas, o corte é fechado e elas passam a receber o hormônio metiltestosterona, que é adicionado à alimentação na proporção de 30 microgramas para cada quilo de ração de peixe, durante 40 dias. Com esse tratamento, as fêmeas tornam-se machos fisiológicos, com testículos e produção regular de sêmen. São os machos que possuem a expressão da sexualidade controlada pelos cromossomos sexuais XX, que determinam o sexo fisiológico das fêmeas. Toda fêmea normal de rã-touro é XX, e os machos, XY. Portanto, os machos da linhagem monossexo possuem cromossomos XX e não são inférteis. Eles são usados em acasalamentos com fêmeas originais XX. "Assim, as proles resultantes serão constituídas exclusivamente por fêmeas", explica Agostinho. "Com esses resultados, mostramos que a técnica de reversão do imago fêmea em macho é possível e inédita no Brasil e no exterior." Técnica semelhante, de transformação de matrizes machos em fêmeas, já é realizada há alguns anos pelo Instituto de Pesca de São Paulo

na criação de trutas. Nesse caso, a transformação é feita na fase larval do peixe. A linhagem monossexo fêmea de rãs deve interessar aos ranicultores, sobretudo porque, em lotes mistos, ocorrem prejuízos justamente na fase de abate, quando os machos chegam à maturação e começam a brigar, ocasionando problemas de disputas por territórios e por fêmeas. "A vantagem do método é que, sem a típica disputa, o plantei se desenvolve sem estresse, de forma mais rápida e homogênea", diz Agostinho. "Além disso, são utilizados apenas como matrizes para reprodução, e não para o abate." Elimina-se assim a possibilidade de ingestão de hormônio por parte dos consumidores. Controle ambiental - A medida também procura sanar o problema da fuga de rãs dos criadouros para a natureza e os conseqüentes prejuízos para os nativos anuros - a ordem zoológica que engloba rãs, sapos e pererecas -, que no Brasil é uma das mais ricas do mundo. As constantes fugas de rãs dos ranários comerciais podem causar a extinção local de algumas espécies, devido à competição por alimentos e pela predação. A rã-touro apresenta alta fecundidade, podendo produzir de 10 mil a 20 mil girinos por desova e se acasalar por até sete vezes ao ano.


rificado num período de três meses, quando estarão prontos para o abate", afirma Agostinho.

Linhagem monossexo: filhotes fêmeas para uma criação mais produtiva

O perfil reprodutor da rã-touro facilita a sua disseminação na natureza, principalmente porque alguns produtores, ao desistirem da atividade por dificuldades técnicas de manejo, abandonam os ranários e permitem a fuga dos animais. "Para contornar esse problema, pensamos em impedir a reprodução desses animais por meio da linhagem monossexo fêmea, porque, nesse caso, a fuga impossibilita futuros acasalamentos." O repasse da linhagem monossexo aos criadores de rãs brasileiros já está previsto em um convênio entre a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e o Banco Mundial, no Projeto de Apoio ao Desenvolvimento de Tecnologia Agropecuária para o Brasil (Prodetab). As técnicas serão repassadas a produtores selecionados de acordo com o grau de experiência no setor e as condições técnicas dos ranários. Temperatura e instalações - Os trabalhos que levaram ao desenvolvimento da linhagem monossexo fêmea tiveram seqüência com os estudos da interação genótipo-ambiente em laboratório, para saber se a linhagem desenvolvida vai se adaptar em diferentes regiões do Brasil, dada a variação climática nos criadouros. Para esse estudo, o pesquisador utiliza populações que não são monossexo. As proles foram testadas nos sistemas

de criação utilizados pelos ranicultores. "O desempenho foi semelhante para todas as proles. O próximo passo será verificar como as linhagens respondem a temperaturas diferentes", diz o pesquisador. "Temos capacidade de monitorar mais de 6 mil animais, que estão sendo marcados e que serão colocados, no mês de maio, em baias com temperatura controlada a 25 °C, 28 °C e 31 °C. O desempenho de cada grupo será ve0 PROJETO 1 - Desenvolvimento de Linhagem Comercial de Rã-touro CRana CatesbeianaA' Produção de Plantei Monossexo 2 - Comedouro e Abrigo para Rãs em Recria 3 - Alimentador Automático de Ração para Rãs MODALIDADE 1 - Linha Regular de Auxílio a Pesquisa 2 e 3 - Programa de Apoio à Propriedade Intelectual COORDENADOR CLáUDIO ÂNGELO AGOSTINHO

INVESTIMENTO

1 - R$ 19.820,00 2 e 3 - R$ 12.000,00

- Unesp

A lém das pesquisas i^L em melhoramento ^^A genético, a equipe È ^ de Botucatu de-A~ -^L. senvolveu ainda dois equipamentos para otimizar a oferta de alimento nos ranários. Isso porque, após a metamorfose dos girinos, os imagos necessitam de alimentos que apresentem algum tipo de movimento. O artifício utilizado para treinar as rãs a ingerir a ração granulada consiste em servi-la dentro de um comedouro junto com uma pequena quantidade de larvas de moscas (parecidas com larvas do chamado "bicho da goiaba"), que tornam os grânulos de ração atraentes para as rãs que, na natureza, se alimentam de larvas, insetos, camundongos e pequenos pássaros. O equipamento tem capacidade de alimentar até 300 imagos. Após cerca de 15 dias de treinamento nesse comedouro, as rãs passam a consumir a ração granulada quando ela é jogada na água. O comedouro serve ainda como abrigo dentro da baia para reduzir o estresse durante o manejo diário, ajudando a acelerar o processo de crescimento e a diminuir o índice de mortalidade. Nesse momento, entra em cena o segundo equipamento, chamado pelos pesquisadores de alimentador automático. O dispositivo consiste de um reservatório contendo ração, provido de temporizadores, que libera pequenas porções de grânulos, de acordo com a programação baseada no tamanho e na quantidade dos animais na baia. "É uma idéia simples, mas que vai causar um bom impacto", diz Agostinho. "Oferecendo a ração mais vezes por dia, pode-se diminuir a mão-de-obra e reduzir a competição por alimento, já que a rã saciada não briga por comida, dando oportunidade às outras." De acordo com Agostinho, não há registro de alimentadores automáticos aplicados à ranicultura, em nível internacional. Ainda como protótipos, esses equipamentos despertaram o interesse de empresas, que já estudam sua industrialização. • PES0.UISA FAPESP 99 ■ MAIO DE 2004 ■ 73


i TECNOLOGIA

NOVOS MATERIAIS

Precisão molecular Sensores em escala nanométrica detectam e diferenciam paladares, cheiros e poluentes

YURI VASCONCELOS

Uma nova geração de sensores ultra-sensíveis capazes de diferenciar nuances na composição de líquidos e de gases deverá invadir o mercado no futuro próximo no rastro dos avanços da nanociência e da nanotecnologia. São áreas que investigam as propriedades dos materiais na escala de 1 a dezenas de nanômetros, equivalente ao nível atômico ou molecular (1 nanômetro corresponde a 1 milímetro dividido por 1 milhão). No coração desses dispositivos estão películas finíssimas chamadas de filmes nanoestruturados, com apenas algumas moléculas de protéina, por exemplo. São produtos que estão no centro dos estudos de um grupo de pesquisadores do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC-USP). "A perspectiva de uso desses dispositivos é ampla, vai de sensores para análise de paladar, de gás e de líquidos até dispositivos eletroluminescentes, como telas de computador e de televisão, memórias ópticas, materiais holográficos e nanorreatores, miniequipamentos ideais para reações químicas em ambientes muito controlados, com poucas moléculas, e que podem ser usados, por exemplo, na produção de baterias de celulares", explica o físico Osvaldo Novais de Oliveira Júnior, coorde74 ■ MAIO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 99

nador do Grupo de Polímeros do IFSC, que possui vários projetos nessa área, muitos em cooperação com instituições do país e do exterior. O campo dos sensores dotados desses filmes nanométricos é extenso, mas basicamente a maneira de seu funcionamento envolve a imobilização de uma determinada proteína (sobre um material sólido sem que perca as suas propriedades) utilizada para detecção de substâncias que reagem especificamente com ela. O material sólido no caso é um polímero chamado de dendrímero, possuidor de estruturas globulares e providas de poros que encapsulam as proteínas sem a perda de suas atividades. Com essa técnica, uma das pesquisas do grupo, em associação com o Instituto de Química da USP, levou à produção de biossensores para detecção de glicose no sangue - o estudo foi aceito para publicação na revista Biosensors and Bioelectronics, da editora holandesa Elsevier. Outra inovação da equipe, realizada em conjunto com o Grupo de Biofísica do Instituto de Física, poderá servir para uso no controle de poluentes. É um sensor baseado na proteína Cl-catecol 1,2 dioxigenase, que pode interagir especificamente com o catecol, substância organoclorada freqüentemente associada a inseticidas, presente em águas poluídas.


r

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Ajustes para a produção e controle de nanofilmes com espessuras de 1 a 2 nanômetros


O grupo também avançou na fabricação de um sensor para detecção de paraoxon, substância tóxica que pode ser usada em armas químicas. "A relevância dessa pesquisa reside na alta sensibilidade do sensor, que só foi possível devido à imobilização bem-sucedida de uma enzima chamada hidrolase organofosforada. O trabalho contou com a participação de pesquisadores da Universidade de Miami e do Departamento de Química da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Um artigo sobre este estudo foi publicado em fevereiro do ano passado no Journal of the American Chemical Society, uma das mais importantes revistas internacionais de química. Os sensores desenvolvidos em São Carlos também funcionam de uma outra maneira, sem o reconhecimento celular entre as moléculas do filme e das substâncias a serem detectadas. Dessa forma, o sensor funciona baseado numa mudança das propriedades do filme a partir de uma interação física com a substância analisada e não na interação específica entre determinadas moléculas. As propriedades que se alteram com a interação podem ser ópticas ou elétricas. É o caso da língua eletrônica, uma das mais notáveis inovações tecnológicas surgidas a partir desses estudos. Nesse equipamento, as moléculas da substância a ser detectada não precisam necessariamente reagir com as moléculas do filme. Basta alterar as propriedades elétricas da superfície do sensor, que é extremamente sensível devido à natureza ultrafina do filme. A língua eletrônica é um sensor de paladar construído com um filme nanoestruturado de apenas uma camada de moléculas poliméricas (veja Pesquisa FAPESP n°s 73 e 90). O equipamento desempenha função semelhante à das papilas gustativas, mas com um grau de sensibilidade muito maior que o da língua humana. O invento, produzido pela unidade de Instrumentação Agropecuária da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), em São Carlos, recebeu colaboração do Grupo de Polímeros da USP e está em testes na Associação Brasileira da Indústria do Café (Abic) para a diferenciação de sabores dessa bebida. Se já existe a língua 76 ■ MAIO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 99

eletrônica, os pesquisadores agora projetam nanofilmes para um futuro nariz eletrônico, capaz de detectar e diferenciar odores. Produzidos a partir de materiais orgânicos, os filmes nanoestruturados não são auto-sustentáveis, o que significa que não podem ser manuseados. Por isso, eles são depositados sobre um substrato sólido, como um polímero, uma lâmina de vidro, de metal ou de semicondutor. A espessura desses filmes é altamente controlada e depende do número de camadas moleculares que o compõem, além do tamanho de cada molécula - em geral, elas medem de 1 a 2 nanômetros de espessura. Segundo Oliveira Júnior, o foco de sua equipe é fazer o desenvolvimento dessas nanopelículas, sempre com a preocupação de possíveis aplicações e repasses de tecnologia. "Já mantivemos contato com empresas interessadas na aplicação de métodos de nanociência e nanotecnologia para o aperfeiçoamento da produção de materiais, mas até o momento não firmamos nenhum acordo", conta o pesquisador. A busca da inovação, no entanto, já tem rendido bons resultados. O grupo tem um pedido de patente em andamento sobre armazenamento óptico de dados, em que um filme nanométrico poderá ser aplicado em um cartão de crédito, por exemplo, dificultando o roubo e a fraude. Na área de armazenamento de dados, os pesquisadores do IFSC querem ir mais longe. Eles estão empenhados no desenvolvimento de um polímero capaz de armazenar dados digitais em três dimensões. O trabalho é feito em cooperação com o Grupo de Fotônica OS PROJETOS 1- Filmes Ultra finos de Langmuir-Blodgett e Automontados 2- Filmes Langmuir-Blodgett e Automontados MODALIDADE

Linha Regular de Auxílio à Pesquisa COORDENADOR OSVALDO IMOVAIS DE OLIVEIRA JúNIOR

-IFSC-USP INVESTIMENTO

1- R$ 49.310,00 e US$ 56.050,00 2- R$ 82.621,70 e US$ 70.822,75

do Instituto de Física da USP de São Carlos. A idéia dos pesquisadores é desenvolver um bloco que receba dados em diferentes camadas, ampliando a capacidade de armazenamento. "Esse é o grande sonho dos cientistas. A principal vantagem dessa tecnologia em comparação ao que existe hoje é proporcionar o aumento da capacidade de memória", conta Oliveira Júnior. "Hoje, o armazenamento é feito apenas em duas dimensões. Já sabemos como produzir esse polímero e estamos prestes a submeter um artigo para uma revista internacional." Apesar dessa amplitude de aplicação, os filmes nanoestruturados ainda não são empregados comercialmente em larga escala. "As películas são muito caras e, por enquanto, não há um sistema de produção industrial com custo acessível." Em parte, esse problema é devido ao grande número de matériasprimas usadas na produção desses filmes. O grupo de Oliveira Júnior trabalha principalmente com polímeros condutores eletrônicos e luminescentes, moléculas fotorreativas como os azopolímeros (substâncias sintetizadas a partir do benzeno, da anilina e de outros compostos derivados do petróleo). Vale ressaltar também a importância dos estudos do grupo com a quitosana, substância extraída da casca de crustáceos, como o camarão e o caranguejo. Essas moléculas têm alto poder fungicida e bactericida e grande capacidade de se ligar a metais e outras substâncias, o que potencializa seu uso como sensor. Técnicas de fabricação - Existem duas técnicas principais para produção dos nanofilmes: a de Langmuir-Blodgett, conhecida simplesmente por LB, e a automontagem, ou layer-by-layer (LBL), que significa camada por camada. A primeira delas foi desenvolvida nos anos 1930 e tem esse nome em homenagem a dois cientistas americanos que trabalharam na General Electric, nos Estados Unidos, no início do século 20, Irving Langmuir e Katharine Blodgett. Os filmes LB são produzidos dentro de um recipiente apropriado, chamado de Cuba de Langmuir. No início do processo, o material que dará origem ao filme é dissolvido em solvente volátil, como o clorofórmio, e espalhado na Cuba de Langmuir, que contém água. Após a evaporação do solvente,


utilizam-se barreiras móveis para formar na superfície da água uma camada molecular denominada filme de Langmuir. Ela é comprimida até atingir um estado condensado. Em seguida, a película é transferida para um substrato sólido, formando o filme de Langmuir-Blodgett. A técnica de automontagem I^L (camada por camada), pro^^A posta pelo pesquisador aleÈ % mão Gero Decher no iní■JLJ^. cio da década passada, usa o princípio de adsorção (fixação) física, na qual as moléculas aderem ao substrato pela atração de cargas elétricas opostas. A principal diferença entre os filmes LB e automontados é que estes são produzidos a partir de materiais solúveis em água, enquanto os filmes LB são feitos com materiais insolúveis em água. "A vantagem da técnica de automontagem sobre a LB é a simplicida-

de experimental, pois não requer equipamentos sofisticados para a produção dos filmes", explica o físico da USP. Rede de colaboração - O pesquisador faz questão de ressaltar que os avanços obtidos por sua equipe devem-se, em grande parte, ao trabalho cooperativo com outras instituições. "Nossas pesquisas são feitas dentro de uma rede de colaboração no Brasil e no exterior, o que nos permite aproveitar a experiência de outros pesquisadores, além do uso de várias técnicas experimentais para fabricação e estudo dos nanofilmes", diz ele. Entre as instituições que trabalham com o Grupo de Polímeros destacam-se a Universidade Estadual Paulista (Unesp), Unicamp, Coppe (UFRJ), Universidade Federal de Uberlândia e Universidade Estadual de Ponta Grossa, entre outras. No plano internacional, as pesquisas contam com o apoio das universidades de Leipzig, na Ale-

manha, de Bangor, no Reino Unido, de Cracóvia, na Polônia, de Windsor, no Canadá, de Nova de Lisboa, em Portugal, de Miami e de Massachusetts, nos Estados Unidos. Segundo Oliveira Júnior, a FAPESP financiou boa parte da estrutura para fabricação dos filmes, inclusive a sala limpa (ambiente com mínima quantidade de partículas indesejadas no ar) do laboratório onde eles são processados. "Estimo que, desde 1991, a FAPESP investiu em torno de US$ 500 mil no nosso grupo, especificamente para filmes nanoestruturados", conta o físico. O apoio tem sido recompensado com a formação de profissionais especializados e de uma vasta produção científica. O Grupo de Polímeros já formou mais de 20 pesquisadores em nanofilmes e, nos últimos quatro anos, cerca de cem artigos foram produzidos para publicação em revistas indexadas internacionais. • PESQUISA FAPESP 99 ■ MAIO DE 2004 ■ 77


■ TECNOLOGIA

ENGENHARIA AEROESPACIAL

Empresa de São José dos Campos desenvolve técnica para fabricar painéis solares utilizados em satélites artificiais Célula solar: pequenas peças que, agrupadas, formam os painéis solares

A fabricação de painéis solares I^k que captam energia do Sol ^^A para fornecer energia eléi M trica para satélites que gi^L JL» ram ao redor do nosso planeta é a novidade tecnológica produzido na cidade de São José dos Campos. O mérito cabe à Orbital Engenharia, uma pequena empresa que desde o ano passado domina o ciclo completo de produção desses artefatos. "Além do Brasil, apenas países como Estados Unidos, França, Alemanha, Japão, Rússia e China têm capacidade para fabricar esses painéis", diz o engenheiro mecânico Célio Costa Vaz, diretor da Orbital. Para adquirir o conhecimento e ingressar no seleto grupo de produtores de painéis solares espaciais, a empresa contou com financiamento da FAPESP, por meio do Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE). Também conhecidos como geradores fotovoltaicos, os painéis são a forma mais eficiente de geração de energia para satélites e balões estratosféricos. Eles transformam a radiação solar encontrada no espaço em eletricidade, energia essencial para o funcionamento desses veículos espaciais. A explicação para que apenas um pequeno número de nações domine a tecnologia 78 ■ MAIO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 99

de produção desses geradores está na dificuldade de montagem de sua unidade básica, uma peça chamada de Solar Cell Assembly (SCA), ou célula solar montada, em uma tradução livre. "Se compararmos um painel a uma caixa de pilhas, cada célula seria uma pilha", conta Vaz. Ela é composta de três componentes: a célula solar, o interconector e uma cobertura de proteção, conhecida como cover glass, ou cobertura de vidro. As células solares podem ser feitas de vários materiais, entre eles o silício e o arseneto de gálio. Elas têm usualmente 0,2 milímetro (mm) de espessura e normalmente larguras que variam de 2 centímetros (cm) por 4 cm a 4 cm por 7 cm. Os interconectores são minúsculas peças de prata, com 0,012 milímetro de espessura, usadas para fazer o contato elétrico entre as células. O cover glass, por sua vez, é um vidro bem fino (entre 0,1 mm e 0,2 mm de espessura), semelhante a uma lâmina de microscópio, dotado de uma camada anti-refletora. Ele é colado sobre a célula solar e a protege das radiações existentes no espaço como prótons e elétrons. Ferramentas essenciais - Esses três componentes - célula solar, intercone-

tor e cover glass - podem ser facilmente comprados, mas o problema é fazer a montagem da célula. "À primeira vista, pode parecer um desafio simples, mas não é. Existem vários requisitos de qualidade que tornam essa montagem muito complexa. No passado, tentamos desenvolvê-la e qualificá-la, mas não conseguimos", afirma o engenheiro Célio Vaz, que trabalhou durante 18 anos no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), com sede em São José dos Campos. O complicador é o fato de o ferramental necessário para produção da SCA não ser encontrado no mercado, ao contrário dos componentes. "Tivemos que fazer o desenvolvimento dos equipamentos, dispositivos e ferramentas para fabricar a Solar Cell Assembly. Isso só foi possível com o financiamento do PIPE." Durante a primeira fase do projeto, o pesquisador desenhou os equipamentos para produção das células e do painel solar, definiu os processos e procedimentos de fabricação, esboçou o plano de garantia do produto, os programas de inspeção e testes de qualificação. Esse trabalho, iniciado em abril de 2001, levou cerca de seis meses. Na segunda fase, com duração de dois anos, os equipamentos foram efetivamente


o Inpe por um consórcio de empresas nacionais: Atech, de São Paulo, Cenic, Fibraforte e Mectron, de São José dos Campos. A plataforma é dotada de equipamentos básicos (sistema de suprimento de energia, propulsão, telecomunicações etc.) que servem para manter em operação a carga útil do satélite, como câmeras de imageamento terrestre, radares, sensores e experimentos científicos. "A plataforma encontra-se em fase de detalhamento do projeto. Iremos projetar, desenvolver e montar painéis solares para as duas asas da plataforma, cada uma deles com cerca de 80 cm por 130 cm e quase 1.500 células", explica o diretor da Orbital. A previsão é de que os painéis e a plataforma estejam prontos até o início de 2006.

produzidos, os processos, desenvolvidos e os corpos-de-prova, fabricados e testados. "Os resultados obtidos demonstram que dispomos de qualidade tecnológica e meios de fabricação qualificados para atender à demanda por equipamentos para o setor aeroespacial", afirma Célio Vaz. Segundo o engenheiro, o domínio dessa tecnologia trará grandes benefícios ao país, como a substituição de importações, a geração de empregos locais - a Orbital emprega quatro pessoas, sendo duas de nível superior - e a possibilidade de exportar produtos e serviços com alto valor agregado. Dois pedidos - Os clientes finais da Orbital são a Agência Espacial Brasileira (AEB) e o Inpe, centro de pesquisa com o qual a empresa firmou seu primeiro contrato, em dezembro de 2001. A empresa participou de uma concorrência pública e foi escolhida para fabricar quatro painéis solares para o Satélite Científico (Satec), cada um deles medindo 50 cm por 66 cm. Nesse projeto, foram utilizados 1.100 células importadas, porque até aquela data a Orbital ainda não produzia esses componentes. Cada célula, feita com silício monocristalino, media 20 mm por 40 mm. O Satec es-

tava programado para ser colocado em órbita pelo Veículo Lançador de Foguetes (VLS), que explodiu na base de lançamento de foguetes de Alcântara, no Maranhão, em agosto do ano passado. Em setembro de 2002, a empresa foi subcontratada para participar de uma empreitada ainda mais ambiciosa: projetar e fabricar os painéis solares que serão instalados num módulo de serviço comum a uma série de satélites denominado Plataforma Multimissão (PMM), com capacidade de levar, em cada vôo, cargas úteis variáveis como câmeras para captar imagens da Terra, radares ou experimentos científicos, por exemplo. Ela está sendo construída para a AEB e para

0 PROJETO Geradores Fotovoltaicos para Aplicações Aeroespaciais MODALIDADE Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE) COORDENADOR CéLIO COSTA VAZ

- Orbital

INVESTIMENTO R$ 236.700,00 e US$ 41.308,95

Qualidade internacional - Como o mercado nacional de satélites é limitado e sazonal, a Orbital está mirando clientes no exterior para crescer. "Pretendemos entrar em licitações internacionais e, para isso, estamos em processo para obter a certificação pela norma NBR 15100 Sistema de Qualidade Espacial, que corresponde à AS 9100A em nível internacional", afirma Célio Vaz. Segundo o engenheiro, os Estados Unidos fabricam algumas dezenas de satélites científicos por ano e são um ótimo mercado. "Acredito que poderemos ser bem-sucedidos por lá se tivermos preço competitivo. Além disso, países como México, Chile e Argentina têm programas espaciais e não dominam a tecnologia de fabricação desses painéis." Outra alternativa para sobreviver nesse mercado é diversificar a produção. "Pensamos em usar a tecnologia e os equipamentos desenvolvidos por nós para fabricar outros produtos, como sensores ópticos e equipamentos para armazenar e condicionar a energia captada pelos painéis", diz Célio Vaz. Os painéis solares espaciais, no entanto, não podem ser usados aqui na Terra, porque eles diferem bastante dos dispositivos similares de uso terrestre. Os painéis solares terrestres são projetados para o tipo de luz que chega na superfície da Terra, com um espectro eletromagnético diferente do existente fora da atmosfera. Outra diferença está no encapsulamento do painel. O terrestre tem que ser protegido contra umidade e choques físicos, provocados, por exemplo, por chuva de granizo. • PESaUISA FAPESP 99 ■ MAIO DE 2004 ■ 79


I TECNOLOGIA

FARMÁCIA

Mamão cicatrizante Látex de fruto existente no Chile contém substâncias curativas para diferentes tipos de feridas da pele

LILIANE NOGUEIRA

Em março deste ano, o pesquisador Carlos Edmundo Salas Bravo, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), teve, no Chile, mais uma prova de que está no caminho certo em suas pesquisas com a planta Carica candamarcensis, uma espécie de mamoeiro nativo da costa oeste da América do Sul. Ele acompanhou os resultados de uma pomada feita com o látex do pequeno mamão que cicatrizou a pele queimada de uma paciente diabética chilena que já havia tentado sem sucesso todos os tratamentos convencionais. Salas, chileno de nascimento, começou a pesquisar as propriedades cicatrizantes da planta no final da década de 1980. De lá para cá, juntaram-se a ele a pesquisadora Míriam Teresa Paz Lopes, também da UFMG, 80 ■ MAIO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 99

e o farmacêutico chileno Abrahan Schnaiderman. Os três pesquisadores entraram em 2002 com um pedido de registro de patente nos Estados Unidos das propriedades terapêuticas das substâncias existentes no látex do mamoeiro. Os princípios ativos da planta estão em algumas proteases, um tipo de proteína que tem a função de quebrar outras proteínas com o objetivo de ativá-las ou desativá-las, favorecendo, nesses casos, os mecanismos de proliferação celular. O produto já foi testado em animais. Agora os pesquisadores esperam que alguma instituição ou empresa farmacêutica se interesse pela patente e em aplicar os testes em humanos. Os estudos mostram que as substâncias encontradas no látex do fruto da C. candamarcensis têm potencial de cura para

diferentes tipos de feridas cutâneas e podem ser extremamente eficazes nas crônicas ou de difícil cicatrização, como aquelas comuns em portadores de diabetes, escaras (feridas que aparecem em pacientes que permanecem acamados ou na mesma posição por longos períodos) e as provocadas por queimaduras. Lesões gástricas - As proteases também foram testadas em lesões gástricas e demonstraram mais eficácia contra as úlceras do que o Omeprazol e a Ranitidina, medicamentos utilizados para tratamento desse problema e das gastrites. Nas feridas da pele, os estudos foram feitos em camundongos Hairless (sem pêlos), e nos ferimentos gástricos, os ensaios foram feitos com ratos. Em humanos, por enquanto, os testes são isolados, e realizados apenas em casos


como o da chilena que autorizou o uso da substância em suas feridas. O interesse pelo alto teor de proteases presentes no látex de C. candamarcensis fez Salas, com doutorado em Bioquímica pelas Universidades do Chile e de Michigan, nos Estados Unidos, iniciar os estudos com o fruto em 1988. A presença dessas substâncias no mamão - conhecido como papaya no Chile - impede o consumo in natura como o do nosso papaia (Carica papaya) e o torna indigesto se não for cozido. Na continuação dos estudos, em 1991, na Faculda de de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Salas conheceu a biomédica Míriam Lopes, professora no Laboratório de Oncologia Experimental que se dedicava às pesquisas na área de desenvolvimento celular, em especial na proliferação de células tumorais. Eles acabaram se casando e, em 1992, transferiram-se para a UFMG, em Belo Horizonte, onde são professores do Instituto de Ciências Biológicas (ICB). Com o desenvolvimento dos estudos com as proteases, os pesquisadores passaram a estudar a ação do látex do C. canáamarcensis em feridas de animais, iniciando os ensaios em camundongos. "Passamos a observar como as enzimas agiam sobre as células de mamíferos porque já tínhamos observado a coagulação que ocorre no fruto quando ele sofre um dano", conta Míriam. Nos cerca de 50 camundongos com ferimentos na pele, eles observaram que frações desse látex promoviam a cicatrização e in-

Mamoeiro Carica candamarcensis no Chile: enzimas cicatrizantes

centivavam a divisão celular nas regiões vizinhas não atingidas pela ferida, além de promover a limpeza do tecido lesionado. Os pesquisadores já haviam verificado em experimentos laboratoriais que as substâncias presentes no látex estimulam a proliferação de fibroblastos (tecido mais profundo da pele) e de células epiteliais (mais superficiais), fundamentais no processo de cicatrização. Míriam explica que o processo de cicatrização de um ferimento ocorre quando o tecido atingido é substituído

por outro. Parece simples, mas só as pessoas portadoras de feridas crônicas ou de difícil cicatrização sabem o sacrifício a que são submetidas. Normalmente, as substâncias cicatrizantes atuam na limpeza do ferimento, favorecendo o trabalho de reprodução de novas células pelo próprio organismo, que nem sempre consegue fazê-lo. "No caso da cicatrização com a protease da C. candamarcensis, o processo é mais rápido que o convencional, mas o mais importante é a boa qualidade da reconstrução do tecido lesionado", diz. Estudo toxicológico - A pesquisa foi feita quase sem apoio financeiro de agências de fomento à pesquisa científica. "Estamos levando este projeto na velocidade em que temos condições. Na fase inicial, entre 1994 e 1996, tivemos apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Grande parte do projeto foi realizada com recursos existentes nos laboratórios da UFMG", explica Míriam. Além de Schnaiderman, o parceiro chileno, há outro trabalhando na Espanha. O pesquisador Arturo Anadón, da Universidade Complutense de Madri, está realizando estudos toxicológicos em animais. A expectativa de produção do medicamento no Brasil esbarra na dificuldade de cultivo da planta, que não é típica do clima brasileiro. "A solução seria encontrar um microclima adequado ao cultivo da C. candamarcensis ou produzir a substância em laboratório, por meio da clonagem e expressão da protease em bactérias", explica Míriam. Os pesquisadores estão agora na expectativa de dar continuidade ao trabalho, especialmente a realização dos testes clínicos, em humanos. "Estamos abertos para negociações, inclusive com laboratórios farmacêuticos, porque um medicamento com esse potencial certamente terá excelente aceitação no mercado", conclui Salas. • PESQUISA FAPESP 99 ■ MAIO DE 2004 ■ 81


HUMANIDADES

FESTIVAL

usica pa/a |

eus

Alunos e professores de São Paulo se reúnem no interior de Minas para celebrar repertório barroco NELDSON MARCOLIN


Recitativo e ária, de 1759 (á esq.), e músicos de São Paulo no festival: interação real com a população

Em meados de julho, cerca de 30 músicos abandonarão suas férias da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) para internar-se em Prados, pequena cidade 500 quilômetros distante da capital paulista, no interior de Minas Gerais. Durante 16 dias, eles serão parte da localidade. Apresentarão recitais, tocarão com alguns dos 7.700 moradores e darão aulas de música para os interessados. Os eventos serão gratuitos, numa simbiótica interação entre a população e os músicos forasteiros. Entre uma atividade e outra, eles trocarão informações sobre antigas peças musicais sacras escritas por negros e mulatos, guardadas nos arquivos das velhas bandas mineiras. Ainda hoje é possível achar raridades do século 18 que não são tocadas há 200 anos. Em Prados, um parte do passado colonial brasileiro voltará à vida. Não será a primeira vez. O Festival de Música de Prados ocorre anualmente desde 1977, sempre com o mesmo espírito de integração entre visitantes e moradores. Nenhum dos músicos ganha para participar. A FAPESP banca a

maior parte dos custos de viagem e hospedagem de alunos e professores, mas não há, nem de longe, a publicidade que outros festivais têm. Aliás, não há publicidade nenhuma. O evento é conhecido apenas entre poucos estudantes e docentes da USP e em algumas cidades vizinhas de Prados, como São João del-Rei e Tiradentes. "Esse é talvez o único festival de música em que a população tem uma interação real com os músicos", diz o maestro Olivier Toni, professor titular (hoje aposentado) e um dos fundadores do Departamento de Música da ECA (1970). Ele também ajudou a criar a Orquestra de Câmara de São Paulo (1956), a Orquestra Sinfônica Jovem Municipal de São Paulo (1968), a Escola Municipal de Música de São Paulo (1969), a Orquestra Sinfônica da USP (1972) e a Orquestra de Câmara da USP (1995). Toni foi o idealizador do evento de Prados e é, ainda hoje, seu principal motor. A descoberta da cidade mineira foi resultado da curiosidade do pesquisador. O maestro e alguns alunos visitavam São João del-Rei em 1974 quando decidiram consultar o acervo da Sociedade Lira Sanjoanense. A instituição tem um arPES0UISA FAPESP 99 ■ MAIO DE 2004 ■ 83


quivo musical com grande quantidade de originais e cópias de obras religiosas antigas produzidas na região e até uma boa coleção de outras cidades do país do tempo do Brasil Colônia. Surpresos com a excelência do material encontrado, o grupo pediu autorização da instituição para microfilmar o que fosse possível. À época, a equipe de Toni sempre levava um aparelho portátil de microfilmagem no porta-malas do carro quando se embrenhava em missões exploratórias por Minas Gerais em busca de originais pouco conhecidos. Nunca se sabia o que encontrariam em igrejas e sociedades seculares e convinha estar sempre preparados para não perder a viagem. A o perguntar onde havia /% mais músicas do século L^L 18, como as encontradas M M na Lira Sanjoanense, foiJL -A. lhes indicada Prados, a 26 quilômetros dali. O pesquisador chegou na cidade com dez alunos e encontrou o maestro Ademar Campos Filho, encarregado da banda e responsável pelo arquivo. "Na Semana Santa, ele levava aquela música antiga para as procissões e tocava", conta Toni. Campos lhes mostrou documentos e peças de José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita (1746-1805) e Manoel Dias de Oliveira (1764-1837), entre outras, e tudo foi microfilmado. Depois de três dias de conversas e pesquisas, Toni sugeriu a Campos a realização do festival, idéia prontamente aceita. "Eu quis fazer um evento para que as pessoas participassem e não apenas assistissem pagando por isso", diz o maestro, ressaltando que é difícil encontrar uma família em Prados que não tenha um músico entre ela. "O projeto é tocar para os moradores, tocar junto com eles e fazer com que eles toquem sozinhos." Toni e alunos dão aulas de harmonia e música, em geral, explicam particularidades dos instrumentos e no final do festival encenam uma pequena peça teatral. Este ano o tema deverá girar em torno dos 300 anos da cida84 ■ MAIO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 99

Padre José Maurício pintado por um de seus filhos, José Maurício Nunes Garcia Júnior: compositor de renome

de. No total, a cada ano os músicos paulistas trabalham com 200 moradores, dos quais a metade é de crianças. São feitos dois concertos por semana. Todos preferem tocar em uma das duas igrejas da cidade, em especial na do Rosário, a antiga igreja dos escravos, do final do século 18. "É lá que fica o cravo e a acústica é excepcional, sem reverberação", diz Toni. O encerramento é feito na Igreja Matriz de Santo Antônio. O programa do festival é quase sempre de música barroca, que inclui, com enorme freqüência, o repertório colonial brasileiro. Nesses 26 anos de festival, foi possível descobrir alguns jovens talentos, a maioria deles hoje tocando em orquestras brasileiras. Músicos e pesquisadores de destaque já estiveram em Prados com Toni, como Sílvio Ferraz, Willy Corrêa de Oliveira, Alex Klein, Rubens Ricciard, José Eduardo Martins e Roberto Mincvuk. A cidade é atraente

porque permite tocar, ensinar e fazer pesquisa. A equipe comandada por Toni microfilmou pela primeira vez arquivos musicais de várias outras cidades mineiras, como Piranga, Aiuruoca e Itabira e de municípios paulistas, como Pindamonhangaba. Às vezes, desses estudos surgem descobertas surpreendentes, que demo3 = ram para ser aceitas. Uma das g mais importantes diz respeiI to ao período mais remoto ° em que se fez música sacra no Brasil. Até os anos 1940, 1 tinha-se como certo que o \ padre José Maurício Nunes | Garcia (1767-1830) fora o £ primeiro compositor brasileiro. De acordo com todos os especialistas, padre José Maurício, carioca, mulato e pai de cinco fihos, era um grande compositor. Mário de Andrade considerava sua Missa de réquiem como "a obra-prima da música religiosa brasileira". "No século 18, quem fazia e executava música eram escravos libertos", explica Olivier Toni. Como, em geral, os brancos brasileiros e portugueses não faziam nada (e se orgulhavam disso), negros e mulatos arrumaram um modo de ganhar dinheiro ao tocar suas músicas sacras na igreja e eventos religiosos. Isso também era usado pelo negro na tentativa de ganhar uma certa consideração na sociedade (não havia condições de se importar artistas o tempo todo da Europa). "Eles faziam uma música européia sui generis, muito característica das colônias. Era mais simples, mas espontânea", observa o pesquisador. "De qualquer modo, ela tinha de ser o mais parecida possível com a música européia, isto é, com a música de seus antigos donos." Se não fosse assim, ela não seria aceita. 0 primeiro compositor - Quem derrubou o mito do padre José Maurício como o primeiro compositor brasileiro foi Francisco Curt Lange (1903-1997), pesquisador alemão naturalizado uruguaio que realizou intenso trabalho pelo interior brasileiro. Em 1944, em uma de suas passagem pelo país, adquiriu um pequeno lote de músicas em


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Pauta de Recítativo e ária: documento achado em São Paulo confirmou pesquisas de Curt Lange

Minas Gerais. Entre elas, deparou-se com Antífona de Nossa Senhora, de Lobo de Mesquita. Inicialmente, Curt Lange pensou se tratar da obra de algum autor português e decidiu investigar. Antigamente, era comum as igrejas guardarem os documentos dos que nasciam e morriam - e Lange acabou descobrindo que Lobo de Mesquita havia sido batizado em uma igreja onde só eram registrados os pardos. "Graças a Curt Lange, a musicologia brasileira recuou 40 anos e ficou claro que houve outros compositores antes do padre José Maurício", conta Toni. Mesmo com essa prova, o pesquisador alemão foi muito contestado. Até que, em 1958, o historiador e musicólogo Régis Duprat, hoje professor titular da ECA, achou na coleção "Alberto Lamego", do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB/USP), os manuscritos originais de Recitativo e ária, datados de 1759. Escrita na Bahia, de autor anôni-

mo, a obra era profana e, mais espantoso, com texto cantado em português. Havia sido dedicada a uma autoridade enviada pelo Marquês de Pombal ao Brasil. "A obra é magnífica, escrita para voz, violino e baixo e talvez seu autor seja o padre Caetano Mello de Jesus", diz Toni, que a estreou em 1960. Com essa descoberta de Duprat, acabou-se de vez a polêmica. Recitativo e ária havia sido composta antes mesmo do nascimento do padre José Maurício. A morte da música sacra - A música religiosa começou a morrer com a Independência, em 1822. Com ela, se extingue a capela de música, uma função da Igreja para se produzir e tocar música sacra com o objetivo de acompanhar os ofícios religiosos. Com a Independência, o músico teve de passar a viver cada vez mais com a música profana, abandonando a prática da música religiosa. "A separação definitiva entre Estado e

Igreja alterou a concepção vigente até 1822. Esse é um fenômeno interessante que ocorreu após as independências de quase todas as nações latino-americanas", diz Toni. Se depender desse regente, professor, pesquisador e músico (foi fagotista), a obra sacra brasileira não será esquecida. "Tenho enorme fascínio pela música religiosa porque ela permite ao compositor se identificar dentro de uma gama enorme de expressividade em uma mesma peça", afirma. Tanto a missa como as obras religiosas musicadas propiciam grandes momentos: começam tranqüilas, ficam mais rápidas, tornam-se introspectivas e, no caso das missas, terminam doce, em paz com Deus. Tal paixão é motivo suficiente para fazer o ateu Olivier Toni amealhar alunos para continuar, aos 78 anos, todos os anos, a internar-se por 15 dias na colonial Prados para fazer e ouvir música dentro de suas igrejas. • PESQUISA FAPESP 99 ■ MAIO DE 2004 ■ 85


I HUMANIDADES

MÍDIA

Eu vi um Brasil naTV Obra avalia documentários sobre a natureza a partir de Amaral Netto, o Repórter e do Globo Ecologia

CARLOS HAAG

Se você não tem pelo menos 40 anos, não tem idade para lembrar (não lamente o fato): ao som de Aquarela do Brasil, no arranjo hediondo de Ray Coniff, um helicóptero sobrevoa, na Amazônia, o fenômeno da pororoca, descrita pelo entusiasmado locutor como "o monstro das mil faces". Era o "show da natureza do Brasil Grande", tema recorrente do (mal) afamado Amaral Netto, o Repórter, programa nascido em 1969, na Rede Globo, que, por anos, foi a fonte de conhecimento sobre o país para gerações de brasileiros. Muita coisa mudou, mas, curiosamente, a natureza na TV continua a ser tratada como um "show da vida", mistura de ficção e realidade, com direito a efeitos especiais, videoclipes e sabor de aventura. "Belas imagens contam mais do que dados, boa colocação no sistema de estrelato propicia 86 ■ MAIO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 99

Amaral Netto: olhar agressivo sobre a natureza brasileira, plenamente integrado ao momento político


Filmagem do Globo Ecologia: preocupação com o "dar certo" e linguagem de videoclipe para atrair jovens

mais legitimidade do que a participação comunitária e a proximidade social. O relacionamento com a problemática ambiental é mediado por aspectos mais próximos do campo íiccional e cada vez menos por ideários coletivos", avisa Thales de Andrade, autor de Ecológicas manhãs de sábado: o espetáculo da natureza na televisão brasileira, lançamento da Annablume/FAPESP, um estudo sobre como a telinha tratou o meio ambiente a partir de dois casos dessemelhantes na aparência, mas análogos no engano: Amaral Netto e o Globo Ecologia. Os documentários sobre natureza são um dos principais filões das televisões em todo o planeta. Só o Discovery Channel, que exibe 24 horas de programação do gênero, está presente em mais de 145 países, um índice superado apenas pela MTV e pela CNN. Com uma linhagem que pode ser traçada dos primeiros exploradores, que faziam o público leitor tremer de pavor diante dos desenhos, nem sempre realistas, do mundo exótico a que a maioria não tinha acesso, os documentários ganha-

ram novas tecnologias, mas ainda guardam a mesma essência. O fotojornalismo ajudou a consolidar a necessidade de converter o natural em espetáculo para maior assimilação popular e a ciência nem sempre consegue livrar-se da tentação do sucesso comercial. Depois, vieram Robert Faherty e, é claro, o mundo submarino de Jacques Cousteau, nos anos 1950 e 1960. Quem viu um documentário viu todos? Historinha a ser contada - Os princípios básicos, seja na reconstituição computadorizada da vida na Terra nos tempos dos dinossauros, seja no valente caçador de crocodilos, ou, ainda, nos infindos filmes sobre tubarões, permanecem inalterados: feitos para um público de classe média, uma audiência familiar, eles abusam da narrativa antropomórfica, ou seja, a imputação de qualidades humanas aos animais. Assim, a perseguição de tubarões a uma baleia e seu filhote se converte numa luta da "mamãe" baleia para livrar seu "filho" da garra dos terríveis e cruéis

predadores. Há sempre a necessidade de uma historinha a ser contada, com personagens e até mesmo uma moral final que dá o clima geral de ambientalismo romântico. Nesses filmes, não há espaço para pessoas, já que a natureza, reproduzida como espetáculo, deve dar espaço apenas para a identificação emocional do público com os animais, extintos ou vivos. A tecnologia está a serviço do show: os efeitos especiais são o grande atrativo, seja nas câmeras especiais e onipotentes que nos colocam cara a cara com grandes animais, seja no computador que dá vida ao que não pode mais ser visto. Tudo é narrativa, beirando o íiccional, um artifício agradável conseguido por meio da narração em offe da edição das imagens: cenas filmadas em ocasiões diversas são reunidas a fim de dar a impressão de uma continuidade de ações. Dessa forma, "vemos" o leão olhar a presa, pensar como atacar e, pronto, começa a grande luta pela vida na savana. Tampouco o som é real, mas fruto de pós-produção. O efeito final é PESOUISA FAPESP 99 ■ MAIO DE 2004 ■ 87


poderoso e convincente. Mudamos de canal crentes de que estamos mais ricos em conhecimento e ecologicamente conscientes. Mas as questões são muitas: é certo reconstituir eventos naturais para a câmera? Será que os abusos de efeitos especiais não tira a atenção do principal, o saber, e a desvia para o acessório, para a mera diversão? Quais são os tópicos éticos que conduzem a produção de um documentário? Não podemos nos enganar sobre a força do mercado e dos índices de audiência que pautam boa parte dos documentários da mesma forma que outros programas da TV. O impacto visual e a presença cada vez mais forte da tecnologia podem estar tirando desses filmes a sua motivação real e apresentando uma visão distorcida do mundo natural e, na contramão do percebido, deixando ainda mais distantes as fronteiras entre homens e animais. A ven ventura, perigos, homem verSU natureza, espetáculo, tui\ sus do sob a roupagem do cientificamente aprovado (daí, os depoimentos dos "homens de ciência" que legitimam tudo o que se diz na TV: quem pode duvidar deles?), a transformação do fenômeno natural em ficcional, esses perigos são ainda maiores com a imensa capacidade tecnológica atual. Pelos documentários, parece mesmo muito difícil lidar com o mundo animal, quanto mais preservá-lo num contexto real. O prazer da diversão parece estar superando o do saber. "Há o perigo da infantilização, ou seja, transformar a realidade natural num jogo e diversão, mas há que se perceber também que podemos, com os novos recursos tecnológicos, se usados de forma criativa, desmistifícar o próprio processo do conhecimento, uma direção interessante e fecunda", avalia Thales de Andrade. Mas esse não é um fenômeno novo ou mesmo internacional. Em janeiro de 1969, apenas um mês após o AI-5, estreava na Globo Amaral Netto, o Repórter. "Os seus documentários enviavam para dentro das casas imagens de um Brasil quase lenda, uma terra mal conhecida e nem sequer concebida. De certo, sabemos apenas que o repórter esteve lá. Nos confins do imaginável, mostrando a verdadeira face de regiões que permaneciam envoltas em mistério

IX

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e fantasia", diz o texto de apresentação da série televisiva, como nos revela Thales de Andrade. O clima é bem próximo do que vemos ainda agora nos filmes de natureza, com uma mistura de suspense e heroísmo, iniciado mesmo antes da chegada ao objetivo do programa, já nos percalços que esperam a equipe de Amaral ao longo de sua jornada ao mistério, com o perigo da própria vida. Amaral, porém, arrisca tudo, vence e "esteve lá". Ainda que com a ajuda de aviões da FAB, corvetas da marinha, a expertise de militares para dar a palavra "científica" final sobre o Brasil desconhecido. E, é claro, Amaral chega lá 0 PROJETO Ecológicas Manhãs de Sábado: o Espetáculo da Natureza na Televisão Brasileira

PESQUISADOR THALES HADDAD NOVAES DE ANDRADE

- Faculdade de Ciências Sociais/PUCCamp INVESTIMENTO R$ 2.509,50

com suas câmeras e aparato tecnológico. "Todos esses elementos concatenados instituíram um olhar agressivo sobre a natureza brasileira, plenamente integrado ao momento político e ao estágio de aprimoramento tecnológico que o país atravessava. Em suma, um narrador agressivo buscando tornar inteligível um espaço hostil e exuberante, uma alegoria de Brasil forjada pelas elites de então, também agressivas", nota Thales. "Essas elites acreditavam estar realizando um grande salto econômico e tecnológico, a grande modernização conservadora. Nesse ideário delirante, Amaral é quase um poeta embriagado, transmitindo informações e promessas inverossímeis e espetaculares", diz. Nesse movimento de mostrar o país como em um permanente "estado de guerra" entre natural e civilizado, Amaral, nota o pesquisador, não apenas se liga ao ufanismo militarista do momento, mas, importante, aproxima sua linguagem dos programas de auditório, a estética popular vigente da TV de então. A natureza vira espetáculo, ainda que grotesco. E, para tanto, valia tudo, até mesmo "corporificar" o natural: a pororoca vira "o monstro das mil faces" e o Atol das Rocas uma inusitada "ilha do nada". "A hidrelétrica de Itaipu, a ponte Rio-Niterói seriam elementos 'cheios', plenos de racionalidade e fun-


Cenas de documentários do Discovery Channel: os efeitos especiais de computador dão vida ao que não pode mais ser visto ou nos deixam cara a cara com a natureza selvagem

cionalidade, enquanto espaços como Rocas se definiriam pelo vazio, a despeito de sua riqueza biótica." O exagero chegou mesmo a incomodar alas do regime militar, que odiavam o ufanismo sem consistência de Amaral, que acaba por funcionar contra a propaganda oficial, cuidadosamente urdida. Exigências diferentes - Vinte anos depois, em 1990, o quadro é outro, porque as exigências do mercado e do público são diferentes. Saem de cena os perigos e as disformidades da natureza selvagem para dar lugar a uma nova consciência ecológica em que a sociedade gosta de se ver retratada na TV como agente de mudanças da cau-

sa ambiental. Como nota o autor, saem de cena os marinheiros e soldados e, em seu lugar, temos ambientalistas, cientistas, ribeirinhos e, pasmem, artistas. É o Globo Ecologia, que precisa mostrar, para um público jovem (daí o uso da linguagem do videoclipe e do rock, com programas apresentados por atores globais de novelas) e ativo, que "as coisas podem dar certo". É um novo otimismo que invade a natureza por meio do discurso da sustentabilidade moderna. "As soluções pontuais e compartilhadas, articulando setores próximos e distantes, compõem a nova condição do otimismo. 'Dar Certo' {nome de um quadro do programa) representa mais

do que um comportamento gerencial bem-sucedido, implica também esvaziar o debate de aspectos político-ideológicos, embates superados no cenário atual", observa Andrade. Tudo por meio da apologia da prática comunitária e do envolvimento, na maior parte das vezes anônimo, da sociedade civil nas causas ambientais. A elite não mais se interessa, como nos tempos de Amaral, em descobrir, com um misto de horror e admiração, o potencial monstruoso natural do Brasil. Agora é a vez das pequenas ações que dão certo. "Os rumos que nossa cultura do espetáculo vem adotando devem interferir na alocação social dos problemas da degradação ecológica. A artificialização da realidade conduz ao reino da simulação, em que as carências ecossistêmicas podem adquirir várias feições, de acordo com as metas culturais predominantes", nota o pesquisador. "É viável testarem-se novas poéticas sobre a discussão ambiental. Um olhar menos distanciado e que não se renda de forma inconteste às preferências de consumo do mercado audiovisual é a eventual meta de uma produção televisiva que incorpore a temática ambiental com sua complexidade e plasticidade", sugere. Só assim, apenas no cinema os dinossauros têm apelidos e as baleias gostam de criança. • PESQUISA FAPESP 99 ■ MAIO DE 2004 ■ 89


I HUMANIDADES

CULTURA

A razão prática

critica Estudo traz arqueologia da origem do debate sobre as artes no Brasil

RENATA SARAIVA

Foram necessários quatro anos de pesquisas intensas, financiadas pela FAPESP, para que Luís Antônio Giron chegasse a uma verdadeira arqueologia de sua profissão, a crítica musical. Obstinado em preencher a lacuna bibliográfica sobre a origem da crítica de artes no Brasil, o jornalista fez descansar a pena da escrita diária para se debruçar sobre livros, documentos e manuscritos de arquivos e bibliotecas nacionais e internacionais. O trabalho realizado no Departamento de Musicologia da Escola da Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), resultou no recém-lançado Minoridade crítica - A ópera e o teatro nos folhetins da corte (415 páginas, R$ 49,00, Ediouro e Edusp). "Literalmente, queimei pestana, lendo microfilmes e jornais de época e transcrevendo documentos raros, vedados à repro90 ■ MAIO DE 2004 ■ PESGWISA FAPESP 99


dução", diz o pesquisador sobre seu envolvimento com as fontes, que lhe permitiram algumas surpreendentes descobertas, como a de que o surgimento da crítica no Brasil ocorreu em 1826. A data era ignorada pelos pesquisadores até então, todos crentes que a atividade teria se iniciado no Romantismo, por volta de 1840. Outras boas descobertas foram os textos de crítica musical e teatral de alguns medalhões românticos como os escritores Gonçalves Dias, José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo e até Machado de Assis. Para muitos deles, o espaço nos jornais serviu como ponte para a carreira literária.

Ao estampar a origem e a evolução da crítica musical no período do Brasil independente, Giron acabou por retratar a corte no Rio de Janeiro em um tempo de transformações profundas, da Independência aos anos de D. Pedro II, cuja maioridade foi antecipada em 1840. Por meio do retrato dos espetáculos operísticos e teatrais, diversão da elite, e das críticas publicadas em jornais como Espelho Diamantino e O Espectador Brasileiro, o livro permite vislumbrar hábitos e costumes dessa sociedade palaciana, além da origem de alguns traços culturais nacionais extremamente fortes, como o Carnaval e a formação de torcidas.

A primeira crítica musical de que se tem notícia é do diário O Espectador Brasileiro, de 19 de junho de 1826, ano de inauguração do Imperial Teatro de São Pedro de Alcântara, cuja temporada operística foi aberta já respirando claramente os novos ares do império recém-emancipado. Anônimo, o crítico discorria sobre o papel da crítica em um texto intitulado "Representação dAdelina". Nem sempre foi assim, já que muitas críticas desse período destinaram-se mais a descrever detalhes da cena, do enredo e dos bastidores (brigas entre os empresários, por exemplo) do que a promover grandes debates estéticos ou musicais. "O alvorecer da crítica se processa numa polêmica entre prima-donas, no bojo daquilo que os críticos literários consideram como literatura de frivolidade e folhetinesca", escreve Giron. Os textos refletiam gostos e atitudes do público. Foi assim que, em 1827, a chegada da soprano francesa Elisa Barbieri provocou alterações na ribalta e nas gráficas. Barbieri veio rivalizar com o castrato Fasciotti e sua irmã e discípula, Maria Teresa Fasciotti, representantes do "bel canto rococó", apreciado pelos tradicionalistas e saudosos do tempo de D. João VI. A esses tradicionalistas opunham-se os receptivos às novidades parisienses, às interpretações velozes e inauditas das óperas de Rossini e às modulações revolucionárias. A rivalidade se transformou em um embate estético entre representantes da sociedade colonial e a incipiente burguesia e aristocracia nacionalista, situação retratada nas críticas dos jornais. Era também mais um exemplo de circunstância que contribuiu para o surgimento do hábito nacional de formar torcidas. Quando chegavam divas da ópera, do teatro e da dança, o público romântico da corte imperial costumava assistir aos espetáculos dividindo-se em verdadeiras torcidas. "Era uma tradição européia, que vinha das batalhas por este ou aquele castrato em Nápoles, no início do século 18", diz Giron. "No Brasil, os partidos disputavam pelo sucesso deste ou daquele artista. Isso acontecia como espécie de vaias, apupos, pateadas e até batalhas de pa-


tacões de cobre em cena aberta. Os partidos, com o passar do tempo, passaram a se organizar de acordo com as cores políticas (conservadores versus progressistas)", explica o crítico. As mulheres tiveram papel importante no surgimento da crítica. Tinham tempo suficiente para se ocupar com as particularidades das apresentações, que aconteciam uma ou duas vezes por semana. E, como muitas vezes não tinham dinheiro suficiente para freqüentar a platéia, liam tudo pelos jornais. O primeiro periódico dedicado a elas foi Espelho Diamantino, jornal quinzenal que surgiu também em 1826. Segundo seu editor-emchefe, anônimo, a influência do público feminino sobre a vida pública vinha se tornando tão grande que se fazia necessário publicar uma revista para que elas se "informassem sobre todos os problemas econômicos, os negócios e também as belas artes". Não demorou para que as publicações femininas se proliferassem, com ampla cobertura dos eventos culturais da cidade. As críticas começaram a rarear quando a companhia italiana se dissolveu, em 1829, com as mortes do empresário Fernando José de Almeida e do baixo Fabrício Piaccentini. Elisa Barbieri também retornou à França e, em 1831, com a revolta popular e a abdicação e fuga de D. Pedro I, o Teatro São Pedro foi rebatizado como Constitucional Fluminense, tornando-se palco não mais da cena lírica, mas de lutas, conturbação e interferência policial. Sem uma corte e o país governado pela Regência, a capital abdicou das óperas, as quais só voltaram em 1844, bom tempo depois da maioridade de D. Pedro II. A volta foi marcada pelo Romantismo, em que a crítica cultural se pretendia bem mais sistematizada e voltada para o debate teórico, com o surgimento dos primeiros tratados e dicionários de música. Os primeiros indícios apareceram em Paris, em 1836, com a Revista Nitheroy, em que Francisco de Salles Torres-Homem, Domingos José Gonçalves de Magalhães, Pereira da Silva e Manuel de Araújo Porto-Alegre queriam cultivar o que era "justo, san92 ■ MAIO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 99

tavam, a direita versus a esquerda, de acordo com a posição que seus membros ocupavam na platéia: a direita, candianista, contra a ala oposta, delmatrista - respectivamente partidários das cantoras Candiani e Delmastro, estrelas da nova companhia italiana. Entre os novos nomes do folhetim estavam os de Martins Pena, Gonçalves Dias, José de Alencar e, posteriormente, Machado de Assis. Enquanto Martins Pena revezava suas críticas musicais com romances nos periódicos, Gonçalves Dias parecia dar a suas críticas uma importância que a crítica literária não concedeu posteriormente. Na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, encontram-se dois cadernos com cópias de 20 críticas suas, feitas em forma de manuscrito, com títulos e datas de publicação bem evidentes. Cultura feminina: mui foram fundamentais no nascimento da crítica

to, belo e útil". Espécie de embrião dos segundos cadernos, Nitheroy se dedicava às ciências, às letras e às artes. Tinha uma tendência claramente nativista, a se perceber pelo lema: "Tudo pelo Brasil e para o Brasil". Em 1842, Rafael Coelho Machado, crítico de origem portuguesa, fundou o primeiro periódico de partituras, O Ramalhete das Damas, publicação mensal para canto e piano. Também publicou Dicionário musical, obra de divulgação do conhecimento e instrumento pedagógico. Machado foi um exemplo de intelectual a fazer da crítica um objeto e constituir um método para levar o conhecimento adiante. A sistematização desses "pensadores" da música e da cultura, porém, não impediu que a cobertura da ópera, nos anos 1840, retornasse aos partidos e aos textos folhetinescos, agora com novos nomes. A cena foi registrada em algumas obras literárias, como em O moço loiro, de Joaquim Manuel de Macedo. O primeiro capítulo, "Teatro italiano", retrata o ambiente carregado da cidade em agosto de 1844, no dia da apresentação de Anna Bolena, No teatro, os dois partidos teatrais se defron-

Já José de Alencar deixou para a história lírica nacional o primeiro libreto original escrito em português para a ópera A noite de São João, com música de Elias Álvares Lobo. A ópera estreou em 14 de dezembro de 1860, mesmo ano de seus romances Cinco minutos e A viuvinha. Machado de Assis foi folhetinista da revista semanal O Espelho, de setembro de 1859 a janeiro de 1860, ocupando-se da crônica teatral. Sua preferência se revelou pela dramaturgia, sem descuidar, no entanto, da vertente lírica. Cada um a seu modo, os folhetinistas deixaram a herança da paixão para os críticos do século 20 e 21, de acordo com Luís Antônio Giron. "Creio que, atualmente, somos tributários da paixão e da leviandade do período abordado no livro. O jornalismo literário deve muito ao folhetim", diz ele. Porém, aponta, os críticos do século 20 apoiaram-se muito mais no empirismo positivista que nos libelos românticos. "Em termos de influência direta, a crítica atual é mais positivista do que romântica. Ela destila impressões, mas consegue domesticá-las, lançando mão de método científico e de análise." Basta à sociedade de mercado dar à crítica o espaço que merece. •


I HUMANIDADES

PERSONALIDADE

Paixão e rigor em doses iguais Assim pode ser definido o trabalho do sociólogo Octavio Ianni, morto no mês passado

Ele começou analisando a questão racial em Florianópolis, uma dissertação que, em 1956, lhe deu o título de mestre na FFCL da Universidade de São Paulo, para terminar a vida dissecando a dinâmica global capitalista recente. Nessa caminhada do micro para o macro, algo nunca mudou: a paixão pela busca da "idéia de um Brasil moderno" e a certeza de que se deveria fazer sociologia com a precisão e rigor de um cientista, sem, no entanto, deixar de lado a preocupação em analisar os problemas sociais imediatos do país. A mistura de cientista e militante foi a marca de Octavio Ianni, morto no mês passado, em São Paulo, aos 77 anos. Um dos responsáveis pela sistematização da sociologia no país, Ianni, natural de Itu, fez seus estudos na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, onde obteve o título de mestre com o estudo Raça e mobilidade social em Florianópolis. Ao lado de As metamorfoses do escravo, o estudo marca o período do interesse de Ianni pelo legado da escravidão na formação da sociedade brasileira e de que forma se poderia inserir o recorte racial na análise dos processos de constituição das sociedades. Ianni, com argúcia, percebeu como a sociedade de castas aos poucos se transformou na sociedade

Ianni: rigor científico e militância por um capitalismo nacional

de classes e de que maneira a raça foi uma arma usada pelas elites nacionais com instrumento de exploração social. Durante os anos 1960, ao lado de colegas, particou do chamado Seminário Marx, da USP, um ponto de inflexão importante em sua ideologia pessoal e intelectual, levando-o a abraçar, com vigor, o ideal do tempo sobre a necessidade do engajamento dos intelectuais nos temas da atualidade. Daí, a sua guinada dos estudos raciais para a problemática do subdesenvolvimento, que gerou A industrialização e desenvolvimento social no Brasil, de 1963, e O Estado e o desenvolvimento econômi-

co no Brasil, de 1964. Ianni não via com olhos esperançosos a formação dos aparelhos de planejamento do Estado brasileiro que, para ele, estavam intimamente interligados ao capitalismo e, dessa forma, não seriam a forma de resolução de problemas nacionais que afligiam o Brasil. O Estado nacional ganhava um crítico severo e implacável. Em especial, o populismo, tema de seu O colapso do populismo no Brasil, de 1968, obra seminal de avaliação das variadas formas políticas da América Latina, que exibia as mazelas dos modelos de desenvolvimento adotados pelos políticos nacionais até o golpe militar de 1964. Os militares entenderam a mensagem e, em 1969, Ianni foi aposentado compulsoriamente da USP por causa do AI-5. Mais tarde, voltou a lecionar (e também a pesquisar no Cebrap), sua paixão, na PUC-SP e, depois, na Universidade Estadual de Campinas, onde deu aulas até 15 dias antes de sua morte. Há dez anos, descobriu o seu interesse final: a globalização e seus efeitos sobre os países do Terceiro Mundo. O professor defendia o retorno a um projeto de capitalismo nacional, pois o Brasil se transformara, rapidamente, numa província do globalismo. "Todos jogam com a hipótese de que, se o Brasil desmontar o seu projeto nacional, entrará no Primeiro Mundo. É um desastre", disse. • PESQUISA FAPESP 99 ■ MAIO DE 2004 ■ 93


I HUMANIDADES

LITERATURA

Por

livros

nunca dantes

editados

Editora carioca recupera com criatividade obras esquecidas no passado

Enquanto os editores se acotovelam para tentar descobrir um novo título, a carioca Anna Paula Martins prefere olhar para o acervo de sua livraria, um sebo no Leblon, no Rio de Janeiro, especializado em obras raras, para descobrir o que vai editar em seguida. Esse pensar o futuro com olhos no passado dá o mote para o nome tanto da loja de livros como da sua editora, a Dantes, nascida em 1997 e já com 17 títulos em catálogo, muitos deles textos esquecidos no tempo, que ela vem revelando para uma legião crescente de leitores fiéis. "Aqui as idéias surgem no balcão, no contato com o público e na pesquisa do nosso acervo, com mais de 10 mil livros e revistas", diz Anna. A editora começou bem com a publicação, pela primeira vez em forma de livro, de um manuscrito esquecido de Lima Barreto, O subterrâneo do morro do castelo, que a editora rastreou na Biblioteca Nacional, inspirada por uma entrevista de Francisco de Assis Barbosa que citava o texto, escrito em 1905 e levado aos leitores do jornal Correio da Manhã em uma série de artigos. Para manter o espírito folhetinesco do original, Anna optou por uma capa com características de pulp fiction, um achado ao mesmo tempo criativo e também dessacralizador da obra literária. "Livros não foram escritos para ficar parados num pedestal", acredita. Barreto marcou a estréia da coleção Babel, apelido borgiano que resgata livros e autores de estilo erótico, sensacionalista ou underground. Como, por exemplo, Fogo nas entranhas, do cineasta espanhol Pedro Almodóvar, escrito em 1981, com uma tiragem irrisória de mil exemplares. O romance, que reúne personagens como Diana, a indômita, Lupe, paz e amor, Mara, a cínica, entre outras, hoje é um hit da editora, com mais de 18 mil exemplares vendidos. 94 ■ MAIO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 99

"A angústia de ter um livro antigo sem vê-lo editado novamente é grande, mas, antes de escolher o que editar, sempre penso se aquele livro tem ainda algo a falar para o tempo presente. Se esse diálogo não existe, o texto não interessa", observa Anna Paula. O trabalho de edição na Dantes é, assim, uma questão de paixão a ser consumada. Não existe um grupo de pessoas em tempo integral na editora e, para cada livro, Anna Paula chama um grupo de profissionais para cuidar dos vários aspectos da criação de um novo livro, com um cuidado todo especial na diagramação gráfica de cada novo lançamento. "Nem sempre as pessoas entendem o que a gente faz, mas a Dantes tem uma história e não queremos entrar no jogo do mercado e perder esse poder de experimentar", afirma. "Acho o mercado pouco criativo e muitos editores acreditam que a solução para vencer o mercado estreito é achar a qualquer custo um best-seller, comprando-o numa feira internacional de livros", avalia. "Isso faz da edição algo parecido com um jogo de pôquer. Se fossem mais ousados, conseguiriam resultados mais ricos e interessantes para eles e para os leitores: todos sairiam ganhando." Novela escandalosa - E interesse é o que não falta na escolha de títulos da Dantes. Como, por exemplo, A mulher carioca aos 22 anos, de João de Minas (pseudônimo de Ariosto Palombo), uma novela escandalosa escrita em 1934 cujos paralelos com os textos de Nelson Rodrigues encantam leitores e críticos. Afinal, já no primeiro capítulo, a heroína, de 18 anos, é deflorada com um aparato mecânico e o resto do romance não é menos picante. Ao lado da pobre Angélica circulam tipos como o dr. Eusébio Cortes, "diretor do jornal A Honra Nacional, um barril de vômito social", ou Sebastião, dono de


um "órgão genésico cavalarmente desenvolvido". Igualmente polêmico é Memórias de um ex-morfinómano, do Repórter X, em verdade, o jornalista português Reinaldo Ferreira, um relato em primeira pessoa sobre o seu mergulho no vício, ou, em suas palavras, na sua intoxicação por alcalóides. Nem tudo, porém, são escândalos. Em seis problemas para don Isidro Parodi, temos um romance policial escrito a duas mãos e um pseudônimo (H. Bustos Domecq) por ninguém menos que Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares, escrito em 1942 e nunca antes traduzido no Brasil. Igualmente charmoso é Praia de Ipanema, de Théo Filho, com prefácio de Ruy Castro, uma história romanceada, editada em 1927, sobre o projeto de se transformar a praia carioca numa Miami, plena de cassinos e hotéis. Um detalhe: Anna precisou colocar um anúncio nos jornais para tentar encontrar descendentes de Théo Filho, pois o livro havia efetivamente se perdido no tempo e no sebo. Como não se vive só de passado, a Dantes também possui uma coleção, chamada Sebastião, que passa o Rio atual em revista, da Zona Sul a Oeste, com textos de Nei Lopes, DJ Malborough, Regina Case, entre outros, em 15 livros que pretendem dar conta das várias diferenças regionais da cidade maravilhosa. Enquanto isso, a Babel não pára: vem aí Um noivo a duas noivas, de Joaquim Manuel de Macedo, e Mistérios, reunião de contos policiais escritos alternadamente para um jornal por Coelho Neto e Viriato Correia, entre outros. A cada dia um escritor acrescentava sua palavra, remexia à vontade na história criada pelo colega na edição anterior. O passado que nos diverte hoje: o olhar para dantes nos traz o prazer do presente. •

X

Desenho de Reinaldo Ferreira, autor de Memórias de um ex-morfinómano


RESENHA

Um Bocage à flor do texto Biografia traz à luz o poeta português, incluindo a passagem pelo Brasil MARISA LAJOLO

Biografias estão na moda. Quem foi à 18a Bienal do Livro em São Paulo tinha escolha farta: livrões e livrinhos, biografados daqui e dali. De Edward Said a Adoniran Barbosa, o gênero se oferecia para todos os gostos e para todos os bolsos. Não deixa de ser curioso que esse interesse coincida com a tão apregoada morte do sujeito. Será que - morto o sujeito - a biografia acena com sua ressureição? Pode bem ser: ao contrário da ficção, no caso das personagens que povoam uma biografia, qualquer semelhança não é mera coincidência. Neste gênero, o pacto autor/leitor endossa a promessa de que a personagem de papel e tinta seja o duplo de uma figura de carne e osso. Mas também pode ser que, de tanto girar em torno de si mesma, a ficção contemporânea mais prezada pela crítica tenha enfastiado o leitor: consumidor habitual de aventuras, o respeitável público busca, na biografia, aquilo que a literatura lhe tem negado. É no horizonte desse intrigante (e bem-vindo) florescimento do gênero biográfico,que Adelto Gonçalves publica Bocage - O perfil perdido. Fruto de pesquisa universitária, o texto traz esta marca de origem à flor da pele. No caso, à flor do texto. O caso é que há vários Bocages: a começar pelo muito conhecido do anedotário popular, pornográfico e grosseirão. E tantos outros, como o êmulo de Camões, que segue as pegadas do mestre ao redor do mundo, ou ainda o sócio de agremiações poéticas convencionais e conservadoras. Mas, qualquer que seja o Bocage de cada um de nós, ele convive com todos os outros na pessoa física de Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805), cidadão português que viveu numa época em que seu país se atolava em contradições. O Portugal setecentista quase sempre ficava na contramão da modernização européia, ainda que às vezes partilhasse efemeramente da vertente iluminista. Medidas legais e episódios políticos evocados no livro ilustram o tímido vai-e-vem da modernização portuguesa, cujos retrocessos acabaram levando o poeta para a cadeia. Com muita competência, Adelto Gonçalves mergulha seu leitor nesse clima de época, cuja reconstituição é, com certeza, verossímil. E da verossimilhança a envergadura de sua pesquisa garante sua veracidade. Contribui para esse efeito a farta bibliografia que salpica as páginas do livro com abundantes rodapés. 96 ■ MAIO DE 2004 ■ PESQUISA FAPESP 99

Na tentativa de comprovar o perfil prometido de seu biografado, o autor não poupa o leitor de detaAdelto Gonçalves lhes, citações, referências cruzadas, digressões eruditas, polêmicas com Caminho outros pesquisadores. Mas o caso (editora de Portugal) é que nem sempre o leitor aprecia este esforço. Entre tese e livro, en380 páginas/€ 29,93 tre o fim da pesquisa e a publicação dos resultados, abre-se um leque de opções sobre o qual o pesquisador precisa meditar profundamente. Pois nem tudo que ele garimpou merece ser publicado, sobretudo quando o produto final da pesquisa é uma biografia cuja publicação comercial tem um olho no grande público. Num gênero narrativo como a biografia, o vai-e-vem exagerado entre fontes representa digressões nem sempre bem-vindas. Num de seus belos sonetos, Olavo Bilac aconselha o jovem poeta que Não se mostre na fábrica o suplício/do mestre. E natural, o efeito agradejsem lembrar os andaimes do edifício. Talvez o conselho sirva também para o trabalho do pesquisador. Não é, no entanto, apenas na formatação de sua biografia que o livro de Adelto Gonçalves pode desencontrar-se de um público menos cioso de minúcias. Ele também pode tropeçar em leitores que esperam uma relação menos ingênua e linear entre vida e obra de um poeta. A perspectiva da qual esta biografia é escrita toma a obra de Bocage (e de alguns de seus contemporâneos) como fiança biográfica e vice-versa. Por um lado, esta interpretação poderia sustentar-se por se tratar de um poeta (pré-romântico) para quem a poesia é (ainda) um gênero sujeito a uma escrita fortemente normatizada, e que não poucas vezes serve de capital social e moeda de prestígio. Mas não é por aí que envereda a pesquisa de que resulta este Bocage - O perfil perdido. O caminho escolhido pelo pesquisador é distinto: o aporte de algumas informações novas, a retificação de outras e, para o leitor brasileiro, uma atração extra: detalhes da passagem do poeta pelo Rio de Janeiro e a presença de um antepassado de Bocage nas forças portuguesas que lutaram contra os franceses no começo do século 18, quando estes invadiram a então colônia portuguesa que éramos. Bocage - 0 perfil perdido

é professora de Teoria Literária na Unicamp, onde coordena o projeto Memória de Leitura http://www.unicamp. brliellmemória

MARISA LAJOLO


LlUROS Flora fanerogâmica do Estado de São Paulo volume 3 Maria das Graças Wanderley, George Shepherd, Ana Giulietti eTherezinha SanfAnna Melhem RiMa Editora/FAPESP 398 páginas / R$ 70,00

Lançado o terceiro volume da Flora fanerogâmica, que reúne 38 artigos de autores nacionais e internacionais, com detalhes da taxonomia vegetal do Estado de São Paulo em minúcias. Além do uso e distribuição geográfica, o novo volume traz descrições, muitas ilustrações e comentários sobre os vários táxons. RiMa Editora: (16) 272-5269 www.rimaeditora.com.br

0 imaginário e as guerras da imprensa O IMAGINÁRIO E AS GUERRAS DA IMPRENSA

Orivaldo Leme Biagi Papel Virtual Editora 308 páginas / R$ 40,82

Fruto de pesquisa financiada pela FAPESP, este é um interesssante estudo sobre as coberturas jornalísticas realizadas pela imprensa brasileira da Guerra da Coréia e da Guerra do Vietnã. No entanto, mais do que um estudo sobre os conflitos, a tese mostra de que forma a mídia da época se apropriou dos conflitos para defender seus pontos de vista, ligados à Guerra Fria. Assim, o que surge não é uma história do real, mas de como a imprensa pode recriar essa realidade para fins diversos.

Bartolomé de Las Casas José Alves de Freitas Neto Annablume Editora 234 páginas / R$ 33,00

Em meio ao entusiasmo sanguinário da conquista da América houve uma voz dissonante no século 16: o bispo espanhol Bartolomé de Las Casas, autor de História das índias e da Brevíssima relação da destruição das índias, relatos notáveis de como se deu a trágica conquista do Novo Mundo. O autor, doutor em História Social, disseca o discurso lascasista usando elementos que engendraram, em seu tempo, esse texto de denúncia, pleno de ideais da tradição cristã. Um retrato notável cujas raízes ainda permeiam a nossa visão da história. Annablume Editora (11) 3812-6764 / 3031-9727 www.annablume.com.br

Arte rupreste na Amazônia - Pará Edithe da Silva Pereira Editora Unesp 248 páginas / R$ 160,00

Este lançamento é obra de referência para pesquisas arqueológicas, mas também serve a leigos que se interessam por pinturas e gravuras rupestres ou pelo mundo indígena. O livro traz figuras gravadas por povos primitivos que aparecem nas margens rochosas de rios e nos abrigos das serras da região amazônica, tudo ilustrado com desenhos, fotos, gráficos e mapas. Editora Unesp: (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br ou feu@editora.unesp.br

Papel Virtual Editora: (21) 3329-2886 www.papelvirtual.com.br ou editor@papelvirtual.com.br

A vida quotidiana na Roma antiga Pedro Paulo Funari Annablume Editora 146 páginas / R$ 25,00

Dia seguinte e outros dias Oswald de Andrade Filho Codex 312 páginas / R$ 30,00

Resultado de um longo trabalho, que rendeu várias teses com apoio da FAPESP, essa Vida quotidiana na Roma antiga mostra a capital do mundo antigo em toda a sua intimidade. Funari não se contenta com as informações de praxe, mas dá todo um sabor especial ao trazer à luz a vida romana das pichações, dos gladiadores, das campanhas eleitorais, dos bairros e da nobreza.

Para quem se encantou com o Oswald de Andrade da minissérie da TV, essa é uma boa chance de descobrir a criatividade igualmente irrequieta do primeiro filho do poeta, Oswald de Andrade Filho, ou Nonê. Ele acompanhou de perto as andanças do pai e sabe como poucos o que se passava na cabeça do modernista, sem deixar de nos mostrar, ao lado da amizade entre os dois, os pontos fracos de Oswald. Nonê deixou vários cadernos com essas lembranças, resgatados nos anos 1990 por seus filhos.

Annablume Editora (11) 3812-6764/3031-9727 www.annablume.com.br

Editora Códex: (11) 3061-1446 www.editoracodex.com.br PESQUISA FAPESP 99 ■ MAIO DE 2004 ■ 97


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