O verde real

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Nº 145 ■

EXEMPLAR DE

Março 2008

Março 2008 Nº 145 ■

A multiplicacao das INCUBADORAS DE EMPRESAS

PESQUISA FAPESP

CAMINHOS PARA O MAL DE ALZHEIMER SOLTEIRAS HOJE: MORAR SO´ E´ OPCAO ENTREVISTA

ALEXANDRE KALACHE

MAIS VIDA NA VELHICE

O verde real O PAÍS PERDEU 30% DE SUAS MATAS capa pesquisa assina-145.indd 1

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IMAGEM DO MÊS

O totem da vida

EDUARDO CESAR

“Gostaríamos de sugerir a estrutura para o sal do ácido desoxirribonucléico (DNA). Essa estrutura tem detalhes novos que são de considerável interesse biológico”, anunciava o artigo assinado pela dupla Francis Crick e James Watson, publicado em 1953 na revista Nature. A elegante estrutura em forma de dupla hélice, uma das maiores descobertas da história da ciência, mostrou como a vida poderia ser explicada física e quimicamente. A maquete da estrutura do DNA (foto), cedida pelo Cold Spring Harbor Laboratory, dos Estados Unidos, está em exibição na exposição Revolução genômica, em cartaz até 13 de julho no Parque do Ibirapuera, em São Paulo (leia reportagem na página 42).

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LALO DE ALMEIDA

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LÉO RAMOS

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CAPA

42 > CAPA

> ENTREVISTA

20 O país consumiu

30% de sua vegetação natural, a maior parte nos últimos 50 anos 26 Os satélites Landsat,

Cbers e Terra monitoram o polêmico desmatamento

14 Criador das cidades

amigas do idoso, Alexandre Kalache diz que uma política para o bem-envelhecer é importante para o desenvolvimento do país

> POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

42 DIFUSÃO

Exposição desvenda o DNA, da biodiversidade até o núcleo da célula 44 BIOTECNOLOGIA

Conselho de Ministros confirma liberação comercial de milho geneticamente modificado 45 CONVÊNIO

38 MEDICAMENTOS

Ação entre universidades, empresas e governo facilita a descoberta e o desenvolvimento de fármacos na Inglaterra

> SEÇÕES

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FAPESP e Braskem vão investir R$ 50 milhões em polímeros verdes

> AMBIENTE 48 BIODIVERSIDADE

No Cerrado, descampado exibe riqueza biológica inesperada

> CIÊNCIA 56 FARMACOLOGIA

Equipe identifica como proteína essencial ao cérebro causa morte celular no paciente de mal de Alzheimer

3 IMAGEM DO MÊS 6 CARTAS 11 CARTA DA EDITORA 12 MEMÓRIA 32 ESTRATÉGIAS 52 LABORATÓRIO 62 SCIELO NOTÍCIAS ........................

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> POLÍTICA C&T

> AMBIENTE

> CIÊNCIA

> TECNOLOGIA

> HUMANIDADES

WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR

EDUARDO CESAR

> EDITORIAS

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50 REPR

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DO UÇÃO

LIVR

O KA

FKA

DE C

RUM

B

90 60 BIOLOGIA MOLECULAR

Com 210 cromossomos, genoma do guaraná fornece pistas sobre suas propriedades terapêuticas

> TECNOLOGIA

76 ENGENHARIA ELÉTRICA

Empresa de Bauru usa redes neurais artificiais para fabricar brake lights automotivos, que acendem quando o freio é acionado

> HUMANIDADES

90 LITERATURA

80 SOCIOLOGIA

Estudo sobre mulheres sós sugere que é “possível ser feliz sozinho” e ainda ter amor

Franz Kafka foi lido como escritor que poderia lançar luzes sobre a vida nacional no regime militar

86 HISTÓRIA 68 EMPREENDEDORISMO

Incubadoras tecnológicas, que hoje somam 393, querem atingir novo patamar de desenvolvimento econômico e empresarial

78 AGRICULTURA

Técnica permite traçar todo o caminho percorrido dentro da planta pelo silício aplicado como fertilizante

As Farc podem ter se transformado em “gigante militar, mas anão político e democrático”

................................ 64 LINHA DE PRODUÇÃO 94 RESENHA 95 LIVROS 96 FICÇÃO 98 CLASSIFICADOS

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CAPA MAYUMI OKUYAMA

FOTO FÁBIO COLOMBINI

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CARTAS cartas@fapesp.br

As reportagens de Pesquisa FAPESP mostram a construção do conhecimento essencial ao desenvolvimento do país. Acompanhe essa evolução. ■

deve chegar ao fim, assim como também chegou ao fim a violência contra os negros, no passado escravocrata, violência esta plenamente justificável, segundo a visão da época. Outra omissão importante da reportagem é que o teste – exaustivo – em animais, quando chega ao fim, deve passar por uma segunda bateria de testes – mais “seguros”, mais apurados – em seres humanos. Falta ainda discutir quem são as pessoas que se submetem a tais testes, e quais as suas razões.

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Site da revista No endereço eletrônico www.revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP na íntegra e um arquivo com todas as edições da revista, incluindo os suplementos especiais. No site também estão disponíveis asreportagens em inglês e espanhol.

Opiniões ou sugestões

MIGUEL BOYAYAN

Envie cartas para a redação de Pesquisa FAPESP Rua Pio XI, 1.500 São Paulo, SP 05468-901 pelo fax (11) 3838-4181 ou pelo e-mail: cartas@fapesp.br

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JULIANA VERGUEIRO Campinas, SP

Experiência com animais Sobre a reportagem de capa da revista Pesquisa FAPESP “Sem eles não há avanço” (edição 144), existem vários livros e vídeos (como por exemplo o Não matarás, do Instituto Nina Rosa) provando o quanto são desnecessários os testes em animais. Em países da Comunidade Européia a partir de 2009 não serão mais aceitos os produtos testados em animais. Isso não é um modismo, é uma tendência mundial totalmente passível de ser posta em prática sem emperrar a ciência.

Quero manifestar meu repúdio à revista Pesquisa FAPESP, que na contramão da história defende uma ciência retrógrada e jurássica com o uso de animais para experimentação. A frase “Experiências com animais seguem imprescindíveis”, trata-se de um pensamento que beira um dogma religioso. Em vez de procurar avanços na ciência por meio do uso de métodos substitutivos ao uso de animais, a revista prefere uma ciência que não evolui no tempo. JOÃO MANOEL AGUILERA JUNIOR Campinas, SP

LARISSA OTTATI CAVALHEIRO São Bernardo do Campo, SP

São muitos os preconceitos reproduzidos e os argumentos covardemente levantados na reportagem “Sem eles não há avanço”. Gostaria de me concentrar apenas em um ponto, defendido com insistência pela revista: a de que a aprovação recente de leis em diferentes estados brasileiros – São Paulo, Rio de Janeiro e Santa Catarina – é fruto de pura ignorância daqueles que a defendem. Este argumento é tendencioso e omite a crescente luta política em favor dos animais e do respeito por suas vidas. Não se trata de sentimentalismo, mas de posições conscientes de pessoas que entendem que o abuso dos animais

Percebi que aqueles que se opõem e acreditam na possibilidade de um avanço científico sem o uso de animais foram enquadrados somente como “ativistas” por Pesquisa FAPESP, pessoas sentimentais e egoístas, já que não pensam nos benefícios que os experimentos podem trazer para a sociedade. Foram apresentados também na reportagem vários comentários de professores e cientistas de grandes instituições brasileiras fundamentando o argumento de que existem pesquisas que não podem ser feitas sem animais, principalmente as sobre câncer e Aids. Bom, mesmo sabendo qual “partido” a revista apóia (de acordo com a Carta da Editora), gostaria de ver uma reportagem sobre os

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“ativistas”, quais pesquisas são possíveis sem o uso de cobaias, profissionais da área que sustentam esse tipo de procedimento e casos em que a pesquisa em animais não adiantou. Sim, é verdade. Existem muitos casos de remédios que tiveram o efeito esperado em animais e, quando utilizados por humanos, falharam terrivelmente. Gostaria de ressaltar a importância de um estudo ético mais profundo. Usar animais como bem quisermos e depois matá-los sem dor não me parece uma forma ética de tratar outro ser vivo independentemente da sua estrutura mental e emocional. Recomendo o livro de Sônia T. Felipe, Ética e experimentação animal; fundamentos abolicionistas. Ela apresenta um panorama bem completo sobre o uso atual dos animais na nossa sociedade. Será uma boa fonte para uma próxima reportagem. FABÍOLA DE CASTRO CARDOSO Florianópolis, SC

Sobre animais de laboratório, é certo que a ciência precisa deles e os códigos de ética estão melhorando muito. Contudo, hospedo em casa, há 2 anos, uma ratinha de laboratório entre as centenas que o curso de psicologia do Mackenzie, em São Paulo, usa anualmente em experimentos pseudocientíficos e que alguns alunos, ao final do “experimento”, trazem para casa. Nossa Rata-Ana, trazida por minha filha, come maçãs, castanhas, queijo, é muito bem tratada, mas está há 2 anos sozinha em uma gaiola! Quando a maioria dos cursos de psicologia usa programas de computador para reproduzir o comportamento animal e, assim, ensinar aos alunos o que já é arqui-sabido pela ciência, usar e descartar esses animaizinhos apenas para fazer de conta que os alunos estão fazendo uma “experiência” é, a meu ver, apenas logro e desfaçatez. MARLENE SUANO FFLCH-USP São Paulo, SP

Como pode haver avanço com sofrimento e morte? Sempre acreditei que essa revista fosse criteriosa quanto às reportagens por ela apresentada. Mas qual foi minha decepção ao ver que estão dando apoio à matança de animais. Chego a compará-la (como apoio) aos Centros de Controle de Zoonoses, que, na minha opinião, são campos de concentração dos animais. Não há critérios, tanto que a própria reportagem, quando se refere à Unifesp, diz que depois que a universidade passou a cobrar pelos animais de laboratório a procura caiu 50%, deixando claro que o uso é realmente indiscriminado. Deixo aqui meu protesto por essa revista dar apoio à matança “para o bem da pesquisa”. Realmente, este é um país que não vai pra frente! MARIA LUCIA TRISTÃO Bauru, SP

Como não dizer que os cientistas que realizam experimentos em animais são frios e calculistas, se a própria reportagem de Pesquisa FAPESP escancara a mais pura verdade? “O imbróglio do Rio de Janeiro preocupa pesquisadores de todo o país porque não é um caso isolado. (...) Em 2005, a Assembléia Legislativa paulista aprovou uma lei que, além de coibir os rodeios e cercear os abatedouros, proíbe o uso de animais em pesquisa caso haja dor.” Para mim esta matéria é mais uma pérola que coleciono sobre os “pesquisadores tão dedicados a salvar vidas”. É fácil lidar com animais, principalmente porque não falam e não podem processar. É óbvio que todos os envolvidos na indústria farmacêutica não estão preocupados com a saúde de ninguém e sim com lucros imediatos. Muita gente já ignora os produtos dessa indústria préhistórica, paliativa e não curativa, que tortura animais, testa medicamentos destinados a seres humanos em animais que são completamente diferentes um do outro. Portanto são testes inválidos, e, ainda por cima, cada teste não acrescenta nada ao “conhecimento” dos

cientistas. Inválidos por serem realizados em animais e, também, por estes estarem confinados, significando que os resultados nunca serão reais, pois o medo e todos os sentimentos negativos que lhes são impostos produzem resultados bem duvidosos... Quando os avançados cientistas perceberem quantas vidas desperdiçaram à toa, acredito que cometerão um suicídio coletivo. Sugiro à classe científica que, para recuperar a imagem de benfeitores da humanidade, coloque-se ela própria à disposição como cobaias de seus cruéis experimentos. Muito em breve a grande massa populacional saberá que essa indústria que escraviza e mata animais e humanos é completamente desnecessária. Quero ainda registrar minha total admiração pelo vereador, ator e ser humano maravilhoso Cláudio Cavalcanti, pois não valeria a pena viver num mundo sem pessoas como ele. CLÁUDIA BASSO São Paulo, SP

É bom ressaltar que muitas vezes na pesquisa de novos medicamentos os efeitos nos animais não se repetem em seres humanos. O que faz mal para o ser humano é inócuo aos animais, pois os organismos diferentes reagem de forma diferente às mesmas substâncias. Aspirina pode matar gatos; coelhos e cabras podem comer beladona à vontade, já o ser humano não. Não podemos esquecer os efeitos da talidomida nos anos 1960 e de outros remédios, como o Selacryn e o Domperidone, que nos testes em animais não causaram mal nenhum, ao contrário do que fizeram no homem. O fato de ainda nos alimentarmos de animais não justifica as pesquisas assassinas. Pesquisas comprovam que o ser humano não necessita comer carne para sobreviver. Existem alternativas. Portanto, discordo dos pesquisadores Luiz Eugênio Mello e Marcel Frajblat. MARCOS FERNANDES DE CARVALHO São Paulo, SP

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> mande sua carta para cartas@fapesp.br

TIBOR RABÓCZKAY INSTITUTO DE QUÍMICA/USP São Paulo, SP

Gostei de saber que desde 1990 já existem comitês de ética. Se não põem termo, ao menos limitam o uso abusivo de animais no ensino e na pesquisa. Fui graduada numa época em que tais 8

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comitês não existiam e algumas disciplinas, principalmente a fisiologia, foram recheadas de crueldade. Ainda hoje me lembro dos gritos de dor dos animais usados em aulas práticas. E nas aulas práticas de farmacologia os camundongos eram sacrificados segurando-se a parte posterior do animal com a mão, levantando o braço com o animal vivo, consciente e sem anestesia, e batendo violentamente a parte anterior do corpo do animal contra a bancada. Os ossinhos e pedaços de tecidos espalhavam-se sobre a bancada e o chão do laboratório. E o técnico ainda achava tudo isso normal. Para mim nunca foi. MARA BEATRIZ COSTANTIN Igarapava, SP

Os retrógrados sempre estão presentes em nossa sociedade, desde quando “a Terra era quadrada”. Essa gente deveria abdicar dos benefícios do progresso da ciência. Mas isso não acontece. CRISNAMURTI GARCIA Santos, SP

Com relação à entrevista do presidente da Sociedade Brasileira de Biofísica, Marcelo Morales, ao programa de rádio Pesquisa Brasil, tenho a dizer que a aprovação da lei no Rio de Janeiro, que proíbe o uso de animais em experimentos científicos, é só uma prova de que o nosso Poder Legislativo não tem a menor noção do que faz. Ou então, de uma forma irresponsável, prefere agradar a opinião pública, que, mergulhada no desconhecimento sobre a importância da ciência, talvez esteja a favor desta lei. Será que esses políticos não têm noção do impacto negativo de tal lei no desenvolvimento científico nacional? Na busca por curas de doenças? Que ignorância. Acho que este vereador tem problemas importantes no Rio para combater, como a violência, por exemplo. Ele

deveria prestar serviço à comunidade e não atrapalhar o desenvolvimento científico. Será que a próxima lei de autoria desse vereador vai obrigar todo mundo no Rio a ser vegetariano para evitar o sacrifício de animais? Provavelmente uma lei como esta não seria aprovada, pois a maioria da população não vai querer abrir mão do churrasco no fim de semana. PAULO SÉRGIO BRANDÃO DO NASCIMENTO Recife, PE

A Sociedade Brasileira de Fisiologia parabeniza Pesquisa FAPESP pela importante reportagem de autoria de Fabrício Marques. Trata-se de uma valorosa contribuição para o esclarecimento do público em geral sobre a utilização de animais na pesquisa científica e que conta com depoimentos de alguns dos mais renomados cientistas que atuam em diferentes áreas da biologia experimental. O texto, didático e elucidativo, mostra claramente a imprescindível utilização desses animais no desenvolvimento, validação e certificação de novos fármacos, vacinas e técnicas cirúrgicas, entre outras atividades. Estas visam benefícios à saúde e ao bem-estar do ser humano e dos próprios animais se considerarmos que os resultados das pesquisas são também aplicáveis na medicina veterinária. Graças à experimentação animal, a expectativa de vida das populações tem aumentado, pois muitas enfermidades têm sido mais bem conhecidas, prevenidas e tratadas. Embora ainda não havendo no Brasil uma legislação normativa sobre a utilização de animais em laboratório, os protocolos experimentais desenvolvidos nas universidades e centros de pesquisa são rigidamente analisados pelos seus comitês de ética em experimentação animal que seguem a normatização do Colégio Brasileiro de Experimentação Animal (Cobea). A proibição do uso de animais em pesquisas, como querem os ativistas defensores dos animais, re-

GHEYN, JACOB DE II, FOUR STUDIES OF FROGS, C. 1600, RIJKSMUSEUM

Em relação à matéria “Experiências com animais continuam a ser imprescendíveis, ao contrário do que dizem ativistas”, convém esclarecer que há cientistas que fortemente questionam a validade do uso de modelos animais para a previsão de reações do organismo humano a medicamentos etc. Entre as razões enumeradas: os mamíferos manifestam diferentes respostas diante de estímulos devido a diferenças com respeito aos genes presentes, diferenças relativas a mutações do mesmo gene, diferenças quanto às proteínas e sua atividade, diferenças na regulação genética e na expressão genética, diferenças no que diz respeito à história evolucionária etc. (N. Shank, Greek, R., Nobis, N. & Swingle-Greek, J. 2007. Animals and medicine - Do animal experiments predict human responses?. Skeptic 13(3), 44-51.) Por outro lado, o posicionamento dos mencionados ativistas não é contra a ciência, mas a favor do respeito à vida – num âmbito que ultrapassa a moral antropocêntrica, o que dificulta o diálogo.

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FRANCISCO TADEU RANTIN PRESIDENTE DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE FISIOLOGIA - SBFIS São Carlos, SP

Gostaria de parabenizá-los pela reportagem, uma vez que é de suma importância abrir o debate sobre o uso de animais de laboratório. Essa discussão já alavancou mudanças importantes que culminaram na preocupação crescente em torno do uso consciente desses seres vivos. É fato que a ciência deve muito do seu conhecimento aos trabalhos desenvolvidos in vivo e é fato também que isso continuará a ser necessário como foi exposto no texto em diversos exemplos (vacinas, transplantes, células-tronco, dentre outros). Certamente não devemos visualizar os cientistas como frios e indiferentes ao sofrimento dos animais, mesmo porque, sempre que possível, utilizamos outros meios para responder às per-

MIGUEL BOYAYAN

presenta um enorme atraso científico e tecnológico. Isso, em curto prazo, levará o Brasil a uma total dependência de outros países, sendo forçado a importar medicamentos e tecnologias para a área médica, além do impedimento do nosso avanço científico que, a duras penas, vem melhorando seus índices internacionais nas últimas décadas. O artigo também contribui para a desmistificação do cientista como sádico, torturador de animais, pecha que os ativistas contrários ao uso de animais de laboratório tentam imputar aos que desenvolvem pesquisas em biologia experimental. A utilização racional e ética dos animais é parte intrínseca da formação acadêmica dos pesquisadores dessas áreas, sempre visando benefícios à humanidade e aos próprios animais. Deve-se ressaltar também que os próprios cientistas têm se empenhado na busca de métodos alternativos. Porém esses métodos ainda não são suficientemente acurados para reproduzir as complexidades próprias do funcionamento dos organismos vivos.

guntas científicas. Vale ressaltar que as comissões de ética hoje são muito mais rigorosas quanto ao tipo de pesquisa para qual os animais são previstos, avaliando-se a quantidade de indivíduos e as reais necessidades de uso desses para responder aos quesitos da pesquisa. Devemos sempre buscar meios que substituam o trabalho in vivo, mas não podemos e não devemos barrar o seu uso consciente porque aí sim estaremos barrando principalmente o progresso da ciência. Enquanto outras formas de pesquisa para determinadas áreas não são possíveis, não podemos ficar parados esperando que o progresso venha até nós. A nossa sociedade deve muito da sua tecnologia ao conhecimento adquirido pelo estudo da fisiologia animal desenvolvido por grandes cientistas pioneiros. Ainda hoje tentamos, por exemplo, entender nosso cérebro e construir máquinas que sejam tão rápidas quanto ele. Certamente não conseguiremos isso se os animais não puderem ser utilizados. É de suma importância que esses seres vivos sejam respeitados, mantidos em condições dignas e não desperdiçados, mas não é possível, por hora, retirá-los de nossas vidas científicas se almejamos o progresso tecnológico que beneficia não só os humanos, mas também os animais. CECÍLIA C. CAFÉ MENDES MESTRANDA FMUSP São Paulo, SP

Como cientista devo fazer algumas observações sobre a matéria de capa de Pesquisa FAPESP. Realmente nossos políticos, em sua maioria, possuem conhecimento no mínimo medíocre sobre qualquer tema. No caso do vereador Cláudio Cavalcanti, do Rio de Janeiro, uma coisa ele deve saber fazer, que é interpretar. Afinal é ator. Como a própria palavra diz, ator é a pessoa que cria, interpreta e representa uma ação dramática baseandose em textos, estímulos visuais, sonoros e outros, previamente concebidos na maioria das vezes por outros. Tal representação pode ser notada em sua frase: “Um ser humano que tortura seres dominados e incapazes de se defender, seres que gritam e choram de dor – seja esse ser um pesquisador ou um psicopata –, representa o rebotalho da Criação”. Se o termo “rebotalho” encontra-se empregado como resíduo, a coisa se complica. Pois não vejo muita diferença com muitos políticos. O que são a maioria daqueles que nos representam? Que foram designados pelo povo para melhorar “nossas”, e não “suas”, condições de vida? Esse vereador se esquece de que para que ele possa seguir com tais colocações ele necessita destes animais. Duvido muito que ele já não tenha necessitado de algum medicamento. Ou que, se entrar um rato na casa dele, ambos dividirão o espaço de forma harmoniosa. Para não ser muito cansativo, cito os experimentos que realizamos em que necessitamos utilizar ventilação mecânica. Pergunto: como testar hipóteses em modelos plásticos ou virtuais? Os animais em PVC são ótimos para dar base de microcirurgia, mas é muito diferente ter um animal estático, completamente parado, e outro no qual o coração, vasos, pulmões etc.estão em funcionamento. ITAMAR S. DE OLIVEIRA-JUNIOR DISCIPLINA DE GERIATRIA E GERONTOLOGIA/ UNIFESP São Paulo, SP

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educacional brasileira que integra a pauta de luta que os movimentos sociais e políticos organizados estão lançando em torno das reformas democráticas (saúde, trabalhista, educacional, entre outras). No debate que as mesmas suscitam e suscitarão, certamente estará presente o aproveitamento de mestres e doutores que atualmente estão servindo para rebaixar o nível salarial nas IES (sobretudo articulares) e do próprio nível de qualidade por conta do excesso de especialistas, que também fazem parte da pós-graduação.

Doença de Chagas Com relação à reportagem “Composto contra Chagas” (edição 144), o texto diz, referindo-se ao mecanismo de transmissão pelos barbeiros: “Na medida em que suga o sangue, ele defeca no local, contaminando sua vítima com o protozoário. Ao entrar na corrente sangüínea do hospedeiro, o tripomastigota invade as hemáceas ou tecidos musculares e assume sua terceira e última forma, chamada de amastigota, sem flagelo, que tem grande poder de se multiplicar dentro das células”. Neste trecho há dois erros importantes que devem ser corrigidos. Em primeiro lugar, o tripomastigota (chamado metacíclico) eliminado com as fezes do barbeiro não “entra na corrente sangüínea” como sugere o texto. Esta forma infectiva do parasita, uma vez inserida no local da picada ou através de mucosas, invade células próximas e, apenas após alguns ciclos de multiplicação intracelular (sob a forma amastigota), irá se transformar em tripomastigotas que, estes sim, poderão então “entrar na corrente sangüínea”, onde são chamados de tripomastigotas sangüíneos. O segundo erro é que os tripomastigotas, sangüíneos ou metacíclicos, não invadem hemáceas, mas são capazes de penetrar e se multiplicar em uma grande variedade de tipos celulares (como tecido cardíaco).

“Um corte na história do Brasil” começa de forma muito interessante e caminha bem até iniciarem-se as citações do trabalho da pesquisadora Laura de Mello e Souza. Daí para a frente é como se entrássemos num terreno de areia movediça em que se caminha com extrema dificuldade e com poucos resultados. Há um tanto de frases e raciocínios rebuscados certamente inatingíveis para o público comum. Afinal, para quem fazem história os historiadores? Para si mes mos? Para seus pares? Será que não é possível contar a história de forma clara e compreensível? Não será por este hermetismo de linguagem que a história, como disciplina escolar, é tão pouco apreciada? SÉRGIO DE PADUA IATCHUK São Paulo, SP

RENATO A. MORTARA

Nota da redação: De fato, houve estes dois erros na reportagem.

A Corte no Brasil Há tempos sou assinante de Pesquisa FAPESP e me interesso praticamente por todos os assuntos nela publicados. Na edição 143, a reportagem ■

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Biocombustíveis Sobre a reportagem “Proteína no óleo” (edição 142), a idéia de produzir biocombustíveis menos poluentes por meio de reações compartilhadas com catalisadores protéicos como a lipase é muito importante, pois possibilita a redução de poluentes na atmosfera terrestre. Pode-se favorecer a melhoria na qualidade de vida, reduzindo e combatendo o impacto ambiental e conseqüentemente o processo de aquecimento global do planeta. MARTE FERREIRA DA SILVA Atibaia, SP

Correção

DISCIPLINA DE PARASITOLOGIA/UNIFESP São Paulo, SP

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JOSÉ CARLOS ABRÃO Ribeirão Preto, SP

Léa Velho Na entrevista à Pesquisa FAPESP (edição 143), Léa Velho retoma pontos de que a grande mídia reiteradamente vem se ocupando, principalmente o do aproveitamento de mestres e doutores no mercado de trabalho. Embora na entrevista ela aprofunde alguns tópicos, o essencial não se diferencia. Infelizmente nota-se a ausência do novo (sem trocadilho), do principal. Refiro-me à reforma

O crédito correto da foto que ilustra a reportagem “Composto contra Chagas”, na página 79 (edição 144), é Centro de Microscopia Eletrônica (Ceme) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br, pelo fax (11) 3838-4181 ou para a rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP, CEP 05468-901. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

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CARTA DA EDITORA

Revoluções: genômica, de idéias e comportamentos

FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CELSO LAFER

PRESIDENTE

MARILUCE MOURA - DIRETORA DE REDAÇÃO

JOSÉ ARANA VARELA

VICE-PRESIDENTE CONSELHO SUPERIOR

CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO RICARDO RENZO BRENTANI

DIRETOR PRESIDENTE CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ

DIRETOR CIENTÍFICO JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER

DIRETOR ADMINISTRATIVO

ISSN 1519-8774

CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADOR CIENTÍFICO), CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTONIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, MÁRIO JOSÉ ABDALLA SAAD, PAULA MONTERO, RICARDO RENZO BRENTANI, WAGNER DO AMARAL, WALTER COLLI DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA

EDITOR CHEFE NELDSON MARCOLIN EDITORA SÊNIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS EDITORES EXECUTIVOS CARLOS HAAG (HUMANIDADES), CLAUDIA IZIQUE (POLÍTICA), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA), RICARDO ZORZETTO (CIÊNCIA) EDITORES ESPECIAIS CARLOS FIORAVANTI, FABRÍCIO MARQUES, MARCOS PIVETTA (EDIÇÃO ON-LINE) EDITORAS ASSISTENTES DINORAH ERENO, MARIA GUIMARÃES REVISÃO MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO EDITORA DE ARTE MAYUMI OKUYAMA ARTE ARTUR VOLTOLINI, JÚLIA CHEREM, MARIA CECILIA FELLI FOTÓGRAFOS EDUARDO CESAR, MIGUEL BOYAYAN SECRETARIA DA REDAÇÃO ANDRESSA MATIAS TEL: (11) 3838-4201 COLABORADORES ANA LIMA, ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS), CARLOS EDUARDO M. VIEGAS, GEISON MUNHOZ, GONÇALO JÚNIOR, LAURABEATRIZ, LUANA GEIGER E YURI VASCONCELOS

OS ARTIGOS ASSINADOS NÃO REFLETEM NECESSARIAMENTE A OPINIÃO DA FAPESP É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

GERÊNCIA DE OPERAÇÕES PAULA ILIADIS TEL: (11) 3838-4008 e-mail: publicidade@fapesp.br

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DISTRIBUIÇÃO DINAP

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SECRETARIA DO ENSINO SUPERIOR GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

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randes exposições de divulgação científica podem ser altamente ilustrativas da extraordinária capacidade humana de fazer o pensado. Tome-se por exemplo a Revolução genômica que está desde o dia 29 de fevereiro no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, e lá permanecerá até 13 de julho: um neófito em montagens desse tipo de mostra sairia convencido de que seria impossível ela ficar pronta a tempo, ao visitar, apenas 2 ou 3 dias antes da data marcada para a inauguração, o belo prédio projetado por Niemeyer que a abriga, e cuja arquitetura original foi recuperada no tempo recorde de 60 dias. Entre sons irritantes produzidos por serras, serrotes, furadeiras e martelos, um mar impressionante de caixas de madeira de todos os tamanhos esvaziadas dos materiais que vieram dos Estados Unidos para compor a exposição, operários por todo lado a trabalhar em pisos, paredes, instalações elétricas e montagens de equipamentos e peças, talvez nosso hipotético visitante balançasse cético a cabeça com um desanimado “não vai dar!”, em contraste absoluto com a certeza dos comandantes de toda essa azáfama, expressa num taxativo “é claro que vai dar”. Deu tempo, sim. A exposição vinda do Museu de História Natural de Nova York, mas com bons acréscimos brasileiros, promovida pelo Instituto Sangari, com múltiplos apoios empresariais e institucionais, o da FAPESP inclusive, foi inaugurada na noite de 28 e aberta ao público em 29 de fevereiro (página 42). Pronta – ainda que os próprios organizadores explicassem que restavam algumas coisas por finalizar e outras para aperfeiçoar. O que não chega a ser um problema, já que exposições podem funcionar como um processo, de certa maneira – um processo de fazer pensar e produzir novas interrogações, mudar as perguntas, conforme observação do diretor científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz. Aliás, é nesse propósito de produzir novas perguntas – e discussões – que Pesquisa FAPESP se junta aos promotores da exposição e começa a cuidar da programação de palestras e debates que integra Revolução genômica. Personagens importantes na construção contem-

porânea do conhecimento científico, brasileiros e estrangeiros, vão contribuir de março a julho para dar vitalidade ao debate de questões essenciais ao desenho presente e futuro das sociedades humanas, e que se desdobram em grande parte no âmbito da produção de ciência e tecnologia. Mas vamos enfim a algumas mais que merecidas palavras sobre esta edição. Primeiro, a reportagem de capa é para ler com muita atenção: um amplo levantamento sobre os vários ecossistemas brasileiros, da Floresta Amazônica à Caatinga e aos Pampas, que inexplicavelmente se manteve na sombra por quase 1 ano, deixa claro que até aqui o país consumiu 30% de sua vegetação natural, e a maior parte disso ocorreu nos últimos 50 anos, como mostra o editor de ciência, Ricardo Zorzetto. É muito? É pouco? O leitor terá dados suficientes para tirar suas próprias conclusões. Faz parte também do tema da capa a reportagem da editora de política, Claudia Izique, detalhando com precisão os sistemas que permitem monitorar o desmatamento da Amazônia, objeto de intensas polêmicas e celeumas políticas há coisa de 2 meses. Tudo isso a partir da página 20. Outra reportagem de fôlego na revista foi produzida pelo editor de tecnologia, Marcos de Oliveira, e pelo editor especial Fabrício Marques sobre a expansão e o significado das incubadoras de empresas para a economia brasileira e para seu potencial inovativo. Alguns exemplos concretos de empresas que em diferentes partes do país saíram das incubadoras para se afirmar no mundo dos negócios dão um sabor especial ao relato dos dois jornalistas. Imperdíveis são também a entrevista com Alexandre Kalache, defendendo uma consistente política para o bem-envelhecer, feita pelo editor chefe, Neldson Marcolin, e, no mês em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, a reportagem do editor de humanidades, Carlos Haag, sobre um estudo que mostra que mulheres que vivem sozinhas por opção, muito longe do velho mito da solteirona, podem ser felizes e bem-amadas. Por fim, vale conferir na seção de cartas a impressionante polêmica provocada pela capa do mês passado. MO

CELSO LAFER, EDUARDO MOACYR KRIEGER, HORÁCIO LAFER PIVA, JACOBUS CORNELIS VOORWALD, JOSÉ ARANA VARELA, JOSÉ DE SOUZA MARTINS, JOSÉ TADEU JORGE, LUIZ GONZAGA BELLUZZO, SEDI HIRANO, SUELY VILELA SAMPAIO, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO

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Ford guiado por Heraldo de Souza Mattos em agosto de 1925: testes pelas estradas do Rio

Era quase aguardente Em 1925 pesquisadores testavam álcool 70% em motor a explosão NELDSON MARCOLIN

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m Ford empoeirado de quatro cilindros com faixas toscas amarradas na lateral, dirigido por um motorista de capuz, óculos de proteção e guarda-pó, é o carro mais antigo que se tem notícia a rodar com álcool no Brasil. Em agosto de 1925 o Ford percorreu 230 quilômetros (km) em uma corrida no Circuito da Gávea, no Rio de Janeiro, na primeira prova automobilística realizada pelo Automóvel Clube do Brasil. O consumo foi de 20 litros por 100 km. No mesmo ano, o Ford fez os percursos Rio–São Paulo, Rio– Barra do Piraí e Rio–Petrópolis. O combustível era álcool etílico hidratado 70% (com 30% de água). “Era quase aguardente”, diz o químico Abraão Iachan, assessor da diretoria do Instituto Nacional de Tecnologia (INT). A cachaça tem entre 38% e 54% de álcool na sua composição.

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carburantes alcoólicos; consumo específico e fatores interferentes no rendimento térmico do motor”, escreveu Fonseca Costa no prefácio do livro Álcool motor e motores a explosão, de Eduardo Sabino de Oliveira (Instituto do Açúcar e do Álcool, 1942). A prioridade da EECM era como tornar viável a mistura do álcool com a gasolina importada e não substituir inteiramente um combustível pelo outro. Essa mistura passou a ocorrer obrigatoriamente na década de 1930, com várias leis municipais, estaduais e federais que estabeleciam a adição de 5% a 10% de álcool à gasolina. Nos anos 1920 o Brasil produzia 150 mil

litros do combustível derivado da cana, fabricado em pequenas destilarias de aguardente. Nas décadas seguintes o país investiu na produção de álcool anidro (com pequena quantidade de água), mais adequado à mistura para motores a explosão. O uso do álcool como combustível já estava na mira de diversas empresas e governos desde o início do século XX. O próprio Henry Ford, criador da indústria automobilística nos Estados Unidos, rodou com um Ford de 1914 abastecido com álcool. Fusca com motor a álcool da antiga Telesp: experiências duradouras e sucesso econômico

É famosa sua previsão para o New York Times, em 1925: o álcool seria o “combustível do futuro”. Na França havia pesquisas alentadas sobre o poder carburante do álcool em motores a explosão. E outros países, como Inglaterra, Alemanha, Holanda e África do Sul, tiveram experiências semelhantes, todos antes do Brasil. Foi na segunda metade dos anos 1970 que o investimento científico e governamental no Programa Nacional do Álcool, o Proálcool, levou o país a tornar-se a principal referência mundial nesse combustível por meio de experiências duradouras e economicamente bem-sucedidas.

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As primeiras experiências com esse carro ocorreram na Estação Experimental de Combustíveis e Minérios (EECM), organismo governamental de pesquisa que se transformou no INT, em 1933. A motivação da época não era muito diferente da de hoje. O então presidente Epitácio Pessoa (1919-1922) já reclamava em 1922 da “colossal importação de gasolina no Brasil”, aludia ao “uso do álcool em seu lugar” e previa o “amparo que a solução prestaria à indústria canavieira”. O governo seguinte, de Arthur Bernardes (1922-1926), encomendou à EECM um projeto de desenvolvimento de motores a álcool, que pudesse também servir de base para legislação sobre o assunto. O diretor e um dos criadores da EECM, o engenheiro geógrafo e civil Ernesto Lopes da Fonseca Costa, era um entusiasta do projeto. A coordenação dos trabalhos foi do engenheiro Heraldo de Souza Mattos, dublê de pesquisador e piloto de testes do velho Ford, obtido por empréstimo. “Essas experiências tiveram por objetivo elucidar, entre outros, os seguintes pontos ainda mal conhecidos naquela época: causas prováveis das corrosões freqüentemente observadas nas diversas peças do motor alimentado com álcool; condições indispensáveis à perfeita carburação dos

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ENTREVISTA

Alexandre Kalache Uma política para o bem-envelhecer Criador das cidades amigas do idoso diz que tema é importante para o desenvolvimento do país | N E L D S O N M A R C O L I N

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ro (UFRJ). Durante 4 anos foi instrutor de clínica médica e nos meados dos anos 1970 partiu para a Europa, onde ficou 33 anos, os últimos 13 dirigindo o Programa Global de Envelhecimento e Saúde da OMS. Os dois filhos (um nascido no Rio e a filha na Inglaterra) e uma neta cresceram e ficaram em Londres. No mês passado, Kalache deu por terminado seu ciclo na OMS e agora trabalha como assessor para envelhecimento global da presidência da Academia de Medicina de Nova York. Tem a ambição de criar um Centro Internacional de Políticas para o Envelhecimento no Rio para continuar a pesquisar e sugerir melhorias na qualidade de vida dos idosos. No dia seguinte ao seu retorno ao Brasil, no amplo apartamento da mãe, Lourdes Kalache, no coração de Copacabana, bairro onde nasceu e foi criado, ele falou à Pesquisa FAPESP. ■ O senhor voltou ao Brasil em definitivo para criar o Cen-

tro Internacional de Políticas para o Envelhecimento? — Não. Vou me dividir entre Nova York e Rio com a intenção de estabelecer aqui esse centro, muito voltado para o envelhecimento como um tema de desenvolvimento. Ou seja, como o Brasil e países semelhantes, que tiveram um envelhecimento rapidíssimo se comparado com o que foi experimentado nos países mais desenvolvidos, podem enfrentar os desafios decorrentes. ■ O que isso tem a ver com o trabalho em Nova York?

— O centro estará ligado à Academia de Medicina de Nova York e à Universidade de Londres. A idéia é formar um grupo de organizações não-governamentais, governamentais, acadêmicas e até de iniciativa privada para poder, debaixo desse guarda-chuva, criar um consórcio voltado para o estabelecimento de políticas pautadas no conceito de envelhecimento ativo, que criamos na OMS. Como, por exemplo, o movimento global das cidades amigas dos idosos. O Programa Cidade Amiga do Idoso foi a grande e última atividade que desenvolvi dentro da OMS. E quero dar continuidade a ele mesmo fora da OMS. Agora é a hora de executar. Por exemplo, a go-

FOTOS LÉO RAMOS

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os 62 anos, o médico e pesquisador em saúde pública Alexandre Kalache tem como projeto de vida envelhecer melhorando a vida dos idosos. Antes que tal idéia pareça puro oportunismo – dada a sua idade –, é preciso dizer que Kalache trata do assunto há mais de 30 anos. Foi ele um dos primeiros especialistas a enxergar o enorme desafio que os países em desenvolvimento terão pela frente se não começarem a pensar e agir sobre o envelhecimento da população imediatamente. “Trata-se de encarar o que poderá se transformar em um problema como uma oportunidade de tornálo um importante tema da política de desenvolvimento”, alerta. Em 2050 o mundo terá 2 bilhões de idosos segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS). Mais de 80% deles estarão vivendo em países como o Brasil. Aqui a porcentagem de pessoas idosas irá de 9% a 18% em apenas 17 anos (2005 a 2022). Como adequar a sociedade a essa mudança demográfica brutal? “Começando a pensar e a planejar já”, responde Kalache. Sua percepção de que essa explosão se daria ocorreu em 1976, no período em que fazia mestrado em saúde social na Universidade de Londres. Posteriormente, ele seguiu para o doutorado na Universidade de Oxford, onde foi professor assistente. Kalache é médico formado pela então Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de JaneiPESQUISA FAPESP 145

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vernadora do Rio Grande do Sul, Yeda Crusius, quer fazer de seu estado um estado amigo do idoso. Vou passar uma semana lá para discutir o desenvolvimento de políticas que busquem fazer do Rio Grande do Sul talvez um estado modelo. Para isso, uma força-tarefa envolvendo todas as secretarias de Estado já foi criada. Percorrerei todo o estado, discutirei com grupos acadêmicos, organizações não-governamentais e com o setor privado. E, principalmente, organizarei grupos com os idosos gaúchos para que eles nos contem quais as dificuldades, sugestões e expectativas. Será um processo de baixo para cima. ■ De acordo com o Guia Global da Cidade Amiga do Idoso, da OMS, hoje há 35 cidades dentro do programa. — Sim, começamos com 35, mas esse número está crescendo – somente em janeiro várias cidades da Europa e do Japão se incorporaram ao programa. Agora, com o Rio Grande do Sul, o número vai crescer porque começaremos com 12 cidades gaúchas como piloto

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para depois ampliar para todo o estado. E a idéia desde o início era mesmo essa. Para entender como fizemos esse projeto é preciso contar a história pelo começo. Na minha infância e adolescência, Copacabana era um bairro de jovens. Nasci na maternidade Arnaldo de Moraes, aqui perto, que hoje é virtualmente um hospital geriátrico, o São Lucas. Ou seja, ao longo do meu tempo de vida, 62 anos, Copacabana se transformou de um bairro com muita criança em um bairro de idosos. Hoje já não nascem mais crianças em Copacabana. A grávida daqui terá de dar à luz em Botafogo. Hoje Copacabana tem mais idosos, proporcionalmente, do que o Japão ou a Suécia. Quem são eles? Pessoas como minha mãe, de 89 anos. São os que vieram para cá quando Copacabana se urbanizou e se desenvolveu nos anos 1920, 1930. Mas explodiu nos anos 1940 e 1950. Todos queriam morar em Copacabana. ■E

não saíram mais daqui. — Os filhos foram embora e os netos nem pensam em Copacabana – para eles o bairro é um corredor, eles “passam” por aqui. Ficaram os idosos. E ficaram porque aqui sempre existiu uma grande concentração de serviços. Quando meu pai morreu, minha mãe me perguntou, “Você acha que eu devo mudar daqui?”. Eu falei, “Pense bem antes de fazer essa mudança, porque aqui é onde você está familiarizada, ambientada, você tem tudo na porta, a farmácia, o táxi, os restaurantes, os bancos”. Além do mais, o velho ativo vai para o calçadão, se sociabiliza, é agradável. Mas, note: para cada idoso ativo do lado de fora, temos dois ou três com dificuldade de andar, com problemas de doenças não-preveníveis, muitas vezes mal gerenciadas, malcuidadas porque os próprios médicos com freqüência não têm uma formação adequada, embora existam cada vez mais geriatras trabalhando em Copacabana. De cada três habitantes, um tem mais de 60 anos, o que é muito alto. Higienópolis, em São Paulo, tem esse perfil. Há uma sigla para isso. São os NOEPs, ou seja, naturally ocurring eldery population. São populações que por uma série de fatores, como essa de Copacabana, vão concentrando idosos de uma forma natural. Não é por política, mas por acidente.

■ Daí a escolha de Copacabana ser a pri-

meira cidade amiga do idoso? — Houve um Congresso Internacional de Gerontologia em junho de 2005, no Rio, e os organizadores me convidaram para fazer a conferência de abertura. Mas pediram uma idéia nova, para chamar a atenção da mídia. Foi aí que pensei em fazer um estudo piloto que é Copacabana Amiga do Idoso e lancei isso no congresso. Deu certo. Saiu no Fantástico, Jornal Nacional, Globo Repórter e nos jornais. Como falei para uma audiência internacional, depois disso as pessoas começaram a me perguntar, “Por que só Copacabana? Por que não Buenos Aires, Genebra, Xangai?” Eu respondia, “E por que não?”. Rapidamente recrutamos na OMS essas 35 cidades, que foram as que fizeram parte do estudo piloto. Fechei com 35 porque queria ter minar o projeto antes de sair daOMS. E esse já era um número grande para trabalhar. Fechamos com Xangai, Tóquio, Moscou, Londres, Nova York, Melbourne, Genebra, Liverpool, Nova Délhi, Nairóbi, Istambul, Buenos Aires, Cidade do México, Rio... ■ Os relatórios do estudo se constituíam em quê? — Fizemos primeiro uma pesquisa básica para ver quais são, de acordo com a literatura especializada, os elementos principais que fazem com que um ambiente possa ser mais amigo do idoso. Coisas como moradia, transporte, participação cívica, acesso a informação, acesso a serviços médicos, acesso a serviços sociais, engajamento na vida pública, questão de comunicação e de adaptação na vida da informática para uma população envelhecida. Pegamos estes oito temas e realizamos estudos qualitativos, de grupos focais e com idosos mais jovens, com idosos mais idosos, dos diversos níveis socioeconômicos, em grupos só de mulheres, só de homens, mistos, e depois com prestadores de serviços e com cuidadores do idoso. Depois fizemos outro estudo, usando a mesma metodologia, em torno dos oito temas, que foram aplicados nas 35 cidades. Quando os relatórios retornaram, juntamos todos para encontrar os denominadores comuns do que se pode fazer para um meio urbano se tornar mais amigo do idoso.

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Isso depois de 5, 6 horas de espera. Os letreiros são pouco visíveis, tudo é ruim. É como alguns aeroportos que não estamos familiarizados e não sabemos para onde ir. De repente, uma voz anuncia alguma coisa que você não ouve bem. A gente acaba se irritando. Mas o idoso, não. Ele se sente diminuído, humilhado, culpado de não estar conseguindo entender esse sistema. Nosso objetivo é tornar esse sistema mais amigo do idoso por um lado. Por outro, é preciso treinar o trabalhador de atenção primária, desde o médico de família até o enfermeiro e nutricionista, de um modo que eles ajam de modo mais adequado. Este é um grave problema da transição demográfica. Os trabalhadores da saúde continuam sabendo tudo sobre atenção infantil e muito pouco sobre usuários mais velhos.

■ Foi

esse estudo que resultou no guia? — Sim. O guia foi lançado em outubro do ano passado. Agora está se transformando num movimento internacional ainda maior. ■ Mas isso, por enquanto, é uma tendência. O senhor já tem resultados visíveis desse movimento? — Em Nova York já. Estive lá na primeira semana de fevereiro e o prefeito Michael Bloomberg fez o State of the City – a prestação de contas anual – centrado no projeto Age Family in New York. Ele estabeleceu oito comitês, cada um deles voltado para um dos temas do Guia da Cidade Amiga do Idoso. Há o comitê house, sobre a questão de moradia, o de parques abertos, sobre a questão de acessibilidade aos parques, de como fazer com que sejam mais adequados para o idoso. No Central Park há pistas de patinação, de skate, pessoas correndo. Isso não é voltado para o idoso. O que foi mostrado no estudo das 35 cidades é que se deveriam criar vias específicas para quem deseja correr, andar de skate ou bicicleta. Assim o idoso também teria uma via segura para caminhar, sem medo de ser abalroado por quem está praticando esportes. Eles pedem banco a cada 200 metros para poder descansar. Em Nova York, no Central Park, não há ainda um número suficiente deles. Mas há mais do que, digamos, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, ou no Aterro do Flamengo, no Rio. Portanto, tudo é relativo e há que respeitar a percepção do idoso que vive naquela localidade específica. Por exemplo, a pesquisa mostrou que os idosos de Genebra acham que a cidade não está suficientemente limpa. Vá explicar isso para um visitante da periferia de uma de nossas cidades. No entanto, o que vale é como se sente o idoso local. O guia tem uma lista com itens que devem ser checados por quem é o responsável por políticas de segurança, de vias públicas, de espaços abertos, de transporte, de moradia etc. É um instrumento para o desenvolvimento de políticas para aquele setor específico e deve ser contextualizada para a realidade local. Por isso farei a peregrinação pelo Rio Grande do Sul. ■ O senhor já sente alguma dessas melhorias em Copacabana?

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— Há duas coisas imediatas que foram feitas com base no estudo. A primeira foi a criação de um posto policial, 24 horas por dia, 7 dias por semana, dedicado ao idoso. É para resolver problemas de segurança, como as pequenas infrações em geral. A segunda iniciativa, também baseada no Copacabana Amiga do Idoso, será a inauguração em março de um posto de saúde, também aberto 24 horas por dia, 7 dias por semana, perto do metrô, numa área central. ■ Essas reivindicações foram dos próprios

idosos? — Também. Em Copacabana hoje se um idoso tem um problema de saúde urgente as pessoas não sabem o que fazer. Geralmente acaba sendo levado para algum pronto-socorro e, às vezes, quando chega lá leva uma bronca, porque PS é lugar para emergências. Queremos fazer agora um Centro de Saúde Amigo do Idoso, com base num outro estudo da OMS, que desenvolvi nos últimos 5 ou 6 anos. Normalmente nos centros de saúde não há um lugar adequado para o idoso esperar, às vezes nem onde sentar, mal tem banheiro. Não raro ele chega cedo, recebe uma senha e, depois de algumas horas, a recepcionista grita, sem o menor respeito, avisando que o atendimento já acabou.

aplicação do programa leva as diferenças sociais em conta? — Deste prédio onde estamos, em Copacabana, é possível ver a favela de Pavão-Pavãozinho muito perto da gente. Todos os contrastes e as contradições do Brasil estão presentes aqui no bairro. Em 150 metros em linha reta é possível ir ao coração da favela, onde há uma das grandes bocas de tráfico do Rio. O Rio está cercado de favelas e o estudo foi feito também com o morador favelado. Vale para todos. ■ É fato que o idoso rico vive mais do que o idoso pobre mesmo quando este tem toda a assistência médica? — Esse é um bom tema para discussão hoje. Michael Marmot, da Universidade de Londres, é provavelmente o maior especialista em saúde pública atualmente. Ele deu uma grande contribuição ao tema ao medir cientificamente essa situação. Mamort demonstrou que se pegarmos um ônibus, daqueles vermelhos de Londres, e rodarmos de Kilburn, que é um bairro pobre, para Hamstead, que é um bairro de rico, a cada 200 metros se ganha 1 ano de vida. ■ Quanto mais perto do bairro rico, maior a expectativa de vida? — É isso aí. Há uma diferença de 10 anos na esperança de vida. Isso mesmo depois de ajustarmos os dados para excesso de peso, dieta inadequada, consumo de fumo e álcool, tudo o que há de

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ruim para a saúde, que são os fatores importantes para as doenças crônicas, majoritariamente as dos adultos. Ainda assim continuamos com uma diferença de esperança de vida maior para os ricos. Por que isso ocorre não se compreende muito bem ainda. Mas a suspeita é que tenha a ver com a auto-estima. É aí que entra a cidade amiga do idoso valorizando a cidadania e o auto-respeito. Não é apenas aos 65 anos que uma pessoa se dá conta das desigualdades que se dão ao longo da vida. É duro chegar à velhice. É quando percebemos que nosso tempo passou e a esperança de antes se transforma em desespero. É importante atuar nas sociedades que estão envelhecendo, de modo a poder oferecer alguma segurança de que estaremos amparados quando mais precisarmos de amparo – e não só para conhecer os fatores que indicam quem é que vai morrer mais cedo ou mais tarde. À medida que envelhecemos, nosso interesse é não somente somar mais anos de vida, mas sim mais vida aos anos. É como assegurarmos um mínimo de qualidade de vida a nossos últimos anos. Este é o grande desafio.

À medida que envelhecemos, nosso interesse é não somente somar mais anos de vida, mas sim mais vida aos anos

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■ É a isso que se refere o termo envelhecimento ativo? — A definição precisa de envelhecimento ativo é o processo de melhorar as oportunidades de saúde, participação, segurança, de forma a aumentar a qualidade de vida à medida que se envelhece. É um processo de otimização. As oportunidades estão sempre lá. Na sua idade, na minha, na de um jovem de 16 anos ou na de uma criança de 5 anos. Quanto mais cedo e com mais eficácia se aproveitar essas oportunidades, maiores serão os efeitos para a saúde. O segundo pilar do envelhecimento ativo é a participação. A saúde é a chave que lhe permite participar da vida da sociedade. Quer dizer, não é só a saúde pelo fato de estar saudável, mas para aproveitar, estar com energia, participar da vida da sua sociedade, pegar um ônibus quando for preciso, ter acesso a uma biblioteca, a um show ou ir à praia quando se tem vontade; estar inserido, e não ser excluído como ocorre tantas vezes com o incapacitado. ■ A estimativa de um aumento da população idosa no mundo, de 11% em 2006 para 22% em 2050, era esperada? — Depende para quem você pergunta. Os demógrafos, em geral, se surpreenderam. As pessoas estão vivendo mais. Quando eu nasci, em 1945, em Copacabana existia uma maternidade porque tinha muita criança e uma esperança de vida de 43 anos. No meu tempo de vida, ganhamos 30 anos de esperança de vida. Alguns países da América Latina, que podemos comparar com o Brasil, ganharam muito mais. Chile, Costa Rica, Cuba, além dos uruguaios e dos argentinos, estão com uma esperança de vida ainda maior. A do Chile e da Costa Rica era pior do que o Brasil nos anos 1940. E hoje estão com níveis europeus, por volta de 78 anos de esperança de vida, acima da nossa, que é de 73,2 anos. Estamos vivendo mais, mas isso tem um preço. Temos de nos preparar. Se não, condenamos essas pessoas. Viver mais passa a ser um prêmio vazio. Sobreviver em péssimo estado de saúde, sem qualidade de vida, não dá. A discussão, quando eu era estudante de medicina, era sobre o boom demográfico. A taxa de fecundidade total da brasileira em 1975 era de 5,8 filhos. Quase seis filhos na média. Hoje está em dois.

■ Inclusive

nos estados mais pobres? — A queda da fecundidade ocorreu em paralelo. Quando a da classe média caiu, em paralelo caíram as faixas mais pobres, nas zonas rurais, nas zonas urbanas e semi-urbanas, no Nordeste, no Amazonas, no Rio Grande do Sul, tudo em paralelo. Estamos falando de 1975. É muito pouco tempo para essa queda. Claro, houve o impacto dos métodos contraceptivos, que não existiam antes. Mas o que contribuiu para essa tremenda baixa na fecundidade é o fato de o Brasil ser um país muito aberto a mudanças de comportamento. Percebi em 1975 que o envelhecimento da população ocorreria mais rápido no Brasil do que vinha acontecendo no resto do mundo. Todos me perguntavam no exterior como é que tinha essa certeza e eu dizia que o país estava se modernizando. A mesma novela que era assistida em Copacabana era vista na periferia do Rio ou na zona rural do Maranhão. No final dos anos 1970 passou o seriado Malu Mulher, sobre uma mulher divorciada e emancipada, de grande sucesso, que virou mãe solteira e superava as dificuldades. Aquela heroína da classe média da Zona Sul do Rio teve seus valores disseminados. Era natural pensar, “Se a Malu tem um filho só, por que é que eu vou ter 3? Ou 6, como a minha mãe, ou 18 como a minha avó?”. Esses elementos que mudam comportamentos são importantes, mas não eram enxergados naquela época. A França levou 115 anos para dobrar a proporção de idosos de 7% para 14%. O Brasil vai dobrar de 9% para 18% em 17 anos, de 2005 ao início da década de 2020. Agora, a grande diferença é que os franceses levaram mais de 1 século para ir se adaptando ao envelhecimento, como outros países ricos. Para a França envelhecer foi necessário que a francesa do final do século XIX alcançasse um nível de educação mais alto, para poder fazer uso dos métodos rudimentares de controle da natalidade. Era difícil. Mas, pouco a pouco, de geração em geração, elas conseguiram controlar o número de crianças e aumentar a esperança de vida e, em 115 anos, dobrou a proporção de idosos. No Brasil isso tudo foi comprimido em uma geração. ■ Como

vencer esse desafio? — Para nós, profissionais e pesquisadores da saúde, para os responsáveis pelo

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desenvolvimento urbano, planejamento, seguro social, comunicação, informática, é se adaptar ao mundo que envelhece muito rápido. Em 2050 teremos mais de 85% dos 2 bilhões de idosos em países como o Brasil. ■ Mais

de 80%? — Por volta de 85%. É 1,7 bilhão de pessoas. E estarão em países em desenvolvimento. A grande diferença da França é que primeiro eles enriqueceram e depois envelheceram. ■O

Brasil tem quantos idosos hoje? — Em torno de 18 milhões. E vamos para 33 milhões em 2022. Não dá para esperar até chegar a 20% da população de idosos. Teremos de adaptar e desenvolver as políticas já. Inclusive discutir seriamente e sem medo a questão da Previdência Social e a idade da aposentadoria, que precisa ser revista. ■ A definição de idoso é de 60 ou mais. Ela não está superada quando vemos pessoas na faixa dos 60 anos ainda muito dispostas física e mentalmente? — Essa é uma definição antiga da Organização das Nações Unidas. Os países mais pobres não querem que seja atualizada. Alguém que tenha sido um trabalhador braçal, carregado peso acima da sua capacidade, mal alimentado, com uma infância subnutrida e infecções repetidas, além de trabalhar 12 horas por dia, não vai chegar aos 60 anos, muito menos aos 75, tão bem disposto quanto um nova-iorquino.

Isso comprovaria que o peso do ambiente é maior do que o da genética? — Só de 20% a 25% da velhice bemsucedida se deve a fatores hereditários ou genéticos. O que determina realmente o sucesso na velhice são o ambiente e o estilo de vida. Não só o estilo de vida como praticar esporte ou ter boa dieta. Há três outros fatores de personalidade que são muito importantes. São eles: otimismo, auto-eficácia e auto-estima. Ser otimista por natureza é importante. Ter auto-eficácia também, ou seja, essas são aquelas pessoas que conseguem comandar bem os próprios recursos – pode-se ter poucos, mas deve-se usar com eficácia aquilo que se tem, inclusive a saúde. E uma boa autoestima, se querer bem. De alguma for-

Não há nada provado, que tenha sido demonstrado, com base empírica e em evidências, que evite o envelhecimento. Nada que tenha convencido pesquisadores sérios ma esses três fatores refletem no futuro e talvez sejam a chave para entender os determinantes sociais de saúde. Se alguém foi sempre maltratado pela sociedade, essa pessoa não terá auto-eficácia e muito menos auto-estima. Ser otimista nessa situação é duro. E isso acaba por influir não só no número de anos que se vai viver, mas também na forma e na qualidade de vida que se terá.

■ O que existe hoje de procedimentos antienvelhecimento na área médica? — Durante os 13 anos em que dirigi o programa da OMS cada vez que chegava e-mail com o assunto anti-ageing ou antienvelhecimento, eu nem abria. Se viesse por carta, para o lixo. ■ Por

quê? — Não há nada provado, nada que tenha sido demonstrado, com base empírica e em dados e evidências, que evite o envelhecimento. Nada que tenha convencido a mim ou pesquisadores sérios, que respeito. Na verdade, é uma contradição de termos... Antienvelhecimento? Só existe uma alternativa a ele e eu com certeza prefiro envelhecer se a única es-

colha for morrer cedo. Coisas como esses tratamentos ortomoleculares, por exemplo. Dá muito lucro para quem vende essa ilusão e muita esperança para aqueles que acreditam. É muito mais fácil acreditar numa pílula mágica que se toma pela manhã do que caminhar uma hora todos os dias. ■ Como vê o recente estudo internacional

que mostrou que se as pessoas chegam aos 70 anos em boa forma física em média são tão felizes e saudáveis em termos mentais quanto alguém de 20 anos? — Não é de estranhar, porque o idoso que chega bem aos 70 anos normalmente tem boa alimentação e aproveita seus recursos da forma mais eficaz, ganha a tal da auto-eficácia. Mas há muitos outros que não a têm. ■ Por

que tanto empenho em trabalhar com idosos? Isso não é uma tarefa para jovens? — Eu tive velhos fantásticos na minha família. A parte do meu pai é sírio-libanesa, com aqueles valores intensos. A parte de mãe é italiano-portuguesa, bem mediterrânea. Quando era criança, não tinha televisão. Os idosos da família eram velhos apaixonados, que guardavam e contavam histórias, que vinham do Líbano, da Grécia, da Itália, em primeira mão, do povo. E eu ficava fascinado, gostava de estar entre eles. E fui muito mimado por eles. Só tive carinho, não recebi nada de mau. ■ Sempre

pensou em ser pesquisador? — Sempre quis fazer saúde pública, sem estar necessariamente em hospital ou consultório. Foi muito interessante quando cheguei em Londres e vi aquela sociedade cheia de velhos, coisa que ainda não existia aqui, nem em Copacabana quanto mais no Brasil. Pensei, “Que incrível, deve ser ótimo envelhecer aqui, tem tantos serviços disponíveis”. Dois meses me peguei pensando, “Deve ser péssimo envelhecer aqui, não tem vida familiar como eu tive com aqueles velhos todos integrados, aqui tanta gente está isolada, deprimida...” ■

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É possível baixar o Guia Global da Cidade Amiga do Idoso no endereço www.who.int/ageing/publications/Global_ age_friendly_cities_Guide_English.pdf

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CAPA

CANA-DE-AÇÚCAR Plantações ocupam vastas áreas da Mata Atlântica e do Cerrado

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Mais verde do que imaginávamos O país consumiu 30% de sua vegetação natural, a maior parte nos últimos 50 anos

R I C A R D O Z O R Z E T TO |

F O TO S

L A LO

DE

A L M E I DA

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N

os últimos 2 meses, enquanto todo mundo olhava para a Amazônia e o presidente da República questionava os dados sobre o avanço do desmatamento na Região Norte obtidos pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, permanecia escondido na página do Ministério do Meio Ambiente (MMA) na internet um documento mostrando o quanto já se desmatou no país em razão da ocupação humana e o que resta das vegetações naturais. A área desmatada da Floresta Amazônica corresponde a 21% do que já foi transformado em pastagens, plantações e cidades no país. De acordo com esse documento, o Mapa da cobertura vegetal dos biomas brasileiros, já se derrubaram no Brasil 2,5 milhões de quilômetros quadrados (km2) de vegetação nativa desde o início da colonização pelos europeus. É o equivalente a 30% do território nacional ou 4,5 vezes o da França, um dos maiores países da Europa. Elaborado a partir de imagens de satélite de 2002, o documento representa a versão mais atual e abrangente do

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estado da vegetação que cobre o país. Pode ser útil por diversos motivos. Em primeiro lugar, porque permite conhecer o quanto cada um dos seis principais ecossistemas (Amazônia, Mata Atlântica, Cerrado, Pantanal, Pampas e Caatinga) ainda preserva de vegetação suficiente para manter condições de chuva, qualidade do solo e clima adequados para abrigar vida humana ou animal. Em segundo lugar, a identificação de quanto ainda existe de cada ecossistema deve auxiliar o Brasil a cumprir compromissos internacionais assumidos nos últimos anos, como a Convenção sobre Diversidade Biológica, que prevêem que até 2010 pelo menos 10% de cada região ecológica do mundo esteja efetivamente conservada. “Só é possível alcançar essa meta quando se conhece a área ocupada por cada tipo de vegetação”, diz a agrônoma Maria Cecília Wey de Brito, secretária de Biodiversidade e Florestas do MMA. Além de orientar a fiscalização das áreas naturais mais ameaçadas do país e a criação de unidades de conservação, esse levantamento, se repetido no futuro,

GADO BOVINO Introduzido inicialmente na Caatinga e nos Pampas, hoje é criado em todo o país

pode mostrar o impacto do desmatamento na emissão de gás carbônico, associado ao aumento da temperatura do planeta – os dados disponíveis atualmente se baseiam nas emissões de meados da década de 1990. O levantamento feito pelo ministério reflete 5 séculos de história da ocupação do país moldados pelos desejos e possibilidades dos governantes, dos empresários e dos cidadãos comuns. Representa o que o historiador Caio Prado Júnior chamou de sentido da evolução geopolítica de um povo em seu clássico Formação do Brasil contemporâneo e deveria servir de base para a discussão e o planejamento do que se quer para o Brasil nas próximas décadas. “A colonização do país adotou um padrão predatório de ocupação que, em parte, prevalece ainda hoje, baseado no uso do fogo e na sensação de que os recursos naturais são inesgotáveis”, afirma o historiador ambiental José Augusto

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Pádua, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador visitante da Universidade de Oxford, na Inglaterra. “Na Amazônia estamos vendo a trágica repetição dessa forma arcaica de fazer as fronteiras avançarem. O predomínio de queimadas se justificou no passado, por ser a forma mais eficiente disponível à época, que aumentava a produtividade do solo por um curto período. Hoje não se justifica”, explica Pádua. Evidentemente não são apenas partes da Floresta Amazônica que desaparecem, consumidas pelo fogo e pelas motosserras. Ao reunir informações sobre todo o país, o levantamento do ministério também mostra que houve perdas até mesmo maiores em outros ecossistemas, ainda que em ritmos diferentes. O primeiro a sentir o peso dos machados, a Mata Atlântica, é também o mais devastado. Já caíram 751 mil km2, ou 30% do que se derrubou até hoje no Brasil. Inicialmente explorada de modo seletivo, pois só o pau-brasil interessava, essa floresta que se estendia por uma estreita faixa da costa que vai do Rio Grande do Norte ao Rio Grande do Sul foi lentamente substituída – primeiro por engenhos de açúcar e, mais tarde, pelas principais cidades brasileiras – e quase desapareceu. O que resta sobrevive em áreas de relevo montanhoso e difícil acesso, como as encostas da serra do Mar, no litoral Sudeste e Sul, ou em unidades de conservação.

do planeta, capaz de influenciar o clima no mundo –, o que sobrou dos outros ecossistemas é igualmente importante do ponto de vista da biodiversidade. “Talvez mereçam até mais atenção, uma vez que abrigam muitas espécies que se tornaram raras por causa da extensão do desmatamento”, afirma Giselda Durigan, pesquisadora do Instituto Florestal de São Paulo. No Cerrado cada área de 10 mil m2 pode conter até 400 espécies de plantas, cuja sobrevivência pode ser fundamental para manter as características do solo e do clima da área em que se encontram. Também a Caatinga, o único ecossistema inteiramente brasileiro, exibe uma variedade de vida que vai muito além dos mandacarus e xique-xiques. Cerca de 900 espécies de árvores, arbustos, cactos e bromélias vivem nessa vegetação quase sempre seca e cinzenta que se espalha pelo Nordeste brasileiro. Nessa região a vegetação também não escapou ilesa da ocupação humana, que data do início da colonização. A Caatinga perdeu 300 mil km2 de vegetação natural (12% do que se derrubou no país) para a agricultura, a criação de cabras, a exploração de gesso, a siderurgia e mais recentemente o cultivo de frutas às margens do rio São Francisco. Ainda que esteja ocupada em quase toda a sua extensão, afinal 20 milhões de pessoas vivem numa área que corresponde a pouco mais que o

“O exemplo da Mata Atlântica, possivelmente o caso mais impressionante de devastação da história moderna, tem de ser debatido para que a sociedade brasileira pense se deseja o mesmo destino para os outros ecossistemas”, diz Pádua. Com o avanço tecnológico do século passado, a capacidade de o ser humano interferir no ambiente aumentou muito. Brasil Central - A transformação da paisagem foi muito mais rápida no Cerrado, o segundo mais extenso ecossistema brasileiro, menor apenas que a Amazônia. Em 40 anos perdeu 800 mil km2 de sua fisionomia, que varia de campos a florestas impenetráveis. A construção de Brasília no final da década de 1950 incentivou o povoamento do Brasil Central, então visto como prioritário pelo governo federal. Pesquisadores da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) desenvolveram sementes resistentes ao clima mais seco e técnicas para reduzir a acidez do solo, transformando as terras do CentroOeste, antes desfavoráveis à agricultura, numa das regiões mais produtivas do país. Hoje, além de extensas fazendas de gado, o Cerrado concentra mais da metade da produção nacional de milho, soja e feijão. Embora as atenções ainda se voltem para a Amazônia – e com certa razão, afinal, é a maior floresta tropical úmida

Território em transformação Cerrado, Pampas e Mata Atlântica são os ambientes mais alterados e o Pantanal, o mais preservado área total original

área remanescente

rios e lagos

área desmatada

total

Ecossistema

mil km2

%*

mil km2

%**

mil km2

%**

mil km2

%**

%***

Amazônia

4.230,5

49,8

3.595,2

84,98

107,8

2,55

527,5

12,47

21,14

Cerrado

2.047,2

24,1

1.236,8

60,41

12,4

0,61

798

38,98

31,99

Mata Atlântica

1.059

12,5

285,6

26,97

15,4

1,45

751,4

70,95

30,68

Caatinga

825,8

9,7

518,3

62,76

7,8

0,94

299,6

36,28

12,01

Pampas

178,2

2,1

73,7

41,36

17,8

9,99

86,8

48,71

3,48

Pantanal

151,2

1,8

131,2

86,77

2,6

1,72

17,4

11,51

0,70

8.491,9

100

5.840,8

68,78

163,8

1,93

2.480,7

29,21

100

Área do país

* sobre a área do país

*** sobre total desmatado

** sobre a área total

FONTE: MMA / Pesquisa FAPESP

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território de Portugal e Espanha juntos, é um dos poucos ecossistemas que apresentaram uma pequena recuperação de área nos últimos tempos, segundo o geógrafo Jurandyr Ross, professor da Universidade de São Paulo (USP). “É que a agricultura cabocla e a pecuária extensiva alteram pouco o ambiente”, afirma Ross, que mostrou essas transformações no livro Ecogeografia do Brasil, de 2006. Do levantamento do ministério, também emergem diferentes formas de ocupação e de relação humana com os espaços naturais. Grandes propriedades agropecuárias exploram as terras no Centro-Oeste e no sul da Amazônia, enquanto cidades apinhadas de gente crescem sobre as áreas litorâneas antes cobertas pela Mata Atlântica. No sul do país, cidades menores dividem o espaço com pequenas propriedades de produção intensiva. Palco de disputa de terras entre portugueses e espanhóis no início da colonização, os Pampas, um dos menores ecossistemas do país, abrigaram mais tarde levas de imigrantes que exploraram a madeira de suas matas de araucária e as pastagens naturais. “As florestas e os campos úmidos são as áreas dos Pampas mais destruídas pela ocupação humana”, conta o geógrafo Heinrich Hasenack, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que coordenou o mapeamento dos Pampas. “Ainda hoje se cria gado como há 200 anos, sem manejo adequado nem controle do número de animais nos campos de vegetação natural”, afirma Hasenack. Por essa razão, os Pampas, hoje totalmente ocupados, perderam 87 mil km2 de sua vegetação original, 3,5% do que se devastou em território nacional, para a indústria, a pecuária de corte e as plantações de milho, soja, uva e arroz, que contaminam as bacias dos rios Ibicuí e Jacuí, de modo semelhante ao que ocorre em outras partes do Brasil. O ecossistema que permanece mais íntegro é também o que ocupa a menor área do país: o Pantanal, protegido pelas águas que periodicamente cobrem campos e florestas durante vários meses do ano. Alimentado pelas fartas chuvas que caem em sua cabeceira, na transição entre o Cerrado e a Amazônia, o rio Paraguai manteve cidades e cerca de 3 mil fazendas de gado restritas às bordas sul e 24

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leste do Pantanal. Desde o início da colonização no século XVIII, ali foram consumidos 17 mil km2, menos de 1% da área desmatada no Brasil (veja tabela). “A vegetação do Pantanal se mantém conservada porque o pantaneiro usa a terra de modo sustentável”, comenta João dos Santos Vila da Silva, especialista em monitoramento por satélite da Embrapa que coordenou o mapeamento do Pantanal. Ao menos nesse ecossistema, que se estende pelo sul de Mato Grosso e por todo o Mato Grosso do Sul, o uso mais adequado da terra não se deve à consciência ecológica, mas à experiência prática. “Os proprietários sabem que, se plantam pasto com espécies exóticas, como a braquiária, a alagação do ano seguinte destrói tudo”, explica. Disparidades - Ainda que represente a

situação dos campos e florestas brasileiros em 2002, o levantamento do MMA atualiza e detalha as informações coletadas entre 1970 e 1985 pelo Radam Brasil, o maior projeto nacional de mapeamento da vegetação, do relevo e do uso do solo. Alguém pode se perguntar por que um documento que custou ao ministério R$ 3 milhões e parece tão importante permaneceu desconhecido, sem ser amplamente divulgado nem debatido, por tanto tempo. Nem Bráulio Dias, diretor do Programa Nacional de Biodiversidade do ministério e coordenador do levantamento, sabe responder, mas reconhece que poderia ter sido diferente: “Esse trabalho não ganhou divulgação à altura da que merecia”. Quem examinou o levantamento surpreendeu-se com o fato de, em alguns casos, as taxas de desmatamento serem menores que as apontadas por outros estudos. No Cerrado, os dados do MMA indicam que 40% da área original foi alterada, enquanto um estudo publicado em 2006 pela organização nãogovernamental Conservação Internacional do Brasil sugere que a proporção degradada é de 60%. Parte da divergência se explica pela metodologia adotada em cada estudo. O MMA considerou vegetação natural áreas em recuperação ou usadas para a criação de gado nas quais os pastos não foram plantados. Mas, para os especialistas, muitas dessas áreas não deveriam ser contabilizadas como vegetação natural, pois, se fossem abandonadas, dificil-

mente voltariam a se regenerar e abrigar vida animal. “Nossos números não indicam que as áreas preservadas de cada ecossistema estejam em bom estado de conservação”, afirma Bráulio Dias. Disparidade semelhante também pode ser observada quando se avaliam os remanescentes da Mata Atlântica. Para o ministério, 71% dessa vegetação já foi destruída e restam quase 27%. Nas contas da Fundação SOS Mata Atlântica, que há quase 20 anos acompanha e mede a degradação desse ecossistema, só estão preservados 7%. Jean Paul Metzger, ecólogo da USP que investiga as conseqüências da alteração da Mata Atlântica para animais e plantas, comparou os dados do ministério relativos a São Paulo com os da SOS Mata Atlântica. Concluiu que em ambos os casos há erros. “O mapeamento do MMA superestima a cobertura florestal, em particular por incluir vegetação em estágio muito inicial de regeneração na categoria de floresta. Já o levantamento da SOS Mata Atlântica subestima a área de vegetação remanescente”, diz Metzger. Pelas contas de Metzger, cerca de 10% da floresta se mantém bem conservada. Francisco Kronka, coordenador do Inventário Florestal de São Paulo de 2003, que mapeou os remanescentes de vegetação natural no estado, diz-se preocupado com a possível superestimação das áreas conservadas. “Esse documento deve servir de base para um inventário nacional que, a partir de uma mesma metodologia e de informações de um mesmo período, tentaria acertar as estatísticas sobre a cobertura vegetal do país, que cada autor cita de modo diferente”, comenta Kronka. Pesquisadores da área ambiental vêem nos dados mais otimistas uma armadilha. “Muita gente pode fazer um raciocínio simplista e pensar que, se em 500 anos desmatamos apenas 30%, ainda é possível derrubar muito mais floresta até se chegar ao limite legal de 80% estabelecido pelo Código Florestal Brasileiro para a maior parte do país”, diz Giselda, autora de estudos sobre o Cerrado. “De forma alguma esses números significam autorização para desmatar”, afirma o geólogo Edson Sano, da Embrapa, responsável pelo levantamento no Cerrado. Bráulio Dias, coordenadorgeral do trabalho, concorda. “Algumas

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pessoas acreditam que os nossos dados estão diminuindo o grau de ameaça aos ecossistemas. Mas não queremos pintar uma situação nem melhor nem pior do que de fato é. Todo mapeamento tem limitações de escala”, diz. “Muitas áreas que hoje se encontram protegidas em unidades de conservação do Cerrado eram usadas para pastagem até 20 anos atrás, antes de serem desapropriadas. Se não tivessem sido consideradas como vegetação natural, várias dessas áreas de proteção não existiriam.” Crescimento - Os 30% das matas brasileiras consumidos nos últimos 500 anos contribuíram para que o Brasil se tornasse uma das dez maiores economias do mundo, com um PIB de R$ 2 trilhões, ainda que em grande parte dependente de produtos agropecuários. Será que o país, para se desenvolver economicamente e reduzir desigualdades sociais, terá de seguir o exemplo de nações mais desenvolvidas que puseram abaixo integralmente suas florestas? A resposta dependerá das escolhas feitas agora. E há quem acredite em uma saída mais harmoniosa, na qual o aumento da geração de riquezas não signifique a destruição de áreas verdes como a Amazônia. “Precisamos superar o padrão de uso extensivo do solo e criar formas intensivas que se valham da tecnologia para aumentar a produtividade com o mínimo de ocupação do espaço”, diz Pádua. Uma saída seria aproveitar melhor as terras desmatadas que não produzem tudo o que poderiam. Nas terras férteis de São Paulo ou do Paraná, por exemplo, a produtividade agropecuária se encontra no limite permitido pelo estágio atual de desenvolvimento científico, mas em outras áreas ainda é possível aumentar a produção. Vários estudos mostram uma enorme proporção de áreas desmatadas e subutilizadas no país. O desempenho do próprio Cerrado poderia melhorar. “Atualmente usamos 80 milhões de hectares do Cerrado para produzir 120 milhões de toneladas de grãos”, afirma Sano. “É possível dobrar essa produção sem derrubar 1 hectare a mais de floresta.” ■

GERAÇÃO DE ENERGIA Represa de hidrelétrica alaga buritizal no Tocantins

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Exploração seletiva da madeira, sem manejo adequado, deixa o solo exposto. Para o Prodes não é desmatamento, mas para o Deter trata-se de um ato ilícito

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FOTOS JEFFERSON RUDY/MMA

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A arte de varrer nuvens Três satélites, Landsat, Cbers e Terra, monitoram o polêmico desmatamento da Amazônia 5 milhões de quilômetros quadrados (km2) da Amazônia Legal qualificado de “invejável” pela revista Science nº 316, de 27 de abril de 2007. Nesse período, a tecnologia de monitoramento evoluiu de um sistema analógico, com resolução de 1:500 mil com imagens em branco e preto, para um sistema digital na escala 1:250 mil. “A partir da década de 1990 passamos a desenvolver softwares e a fazer o monitoramento não mais com base na interpretação visual, mas em processamento de imagem”, lembra Dalton de Morisson Valeriano, coordenador do Programa Amazônia do Inpe. A matéria-prima dessa análise são imagens enviadas pelo Landsat-5 e pelo satélite sino-brasileiro Cbers, com resolução espacial de 30 metros. As três ban-

INPE

O

processo de desflorestamento da Amazônia se acelerou a partir da segunda metade do século XX com a expansão da fronteira agrícola, da construção de estradas e instalação de pólos de desenvolvimento regionais. No final dos anos 1970 – depois da inauguração da rodovia Transamazônica e a pedido da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) –, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) fez o primeiro balanço do estrago com o auxílio das imagens enviadas pelo Landsat-1, satélite da Nasa, a agência espacial norte-americana. Constatou-se que 2,5% da região já estava degradada. Dez anos depois, quando as queimadas na região passaram a chamar a atenção internacional – consta que a fumaça sobre a floresta pôde ser observada desde a escotilha do ônibus espacial Columbia – e a taxa de desflorestamento saltou para 10%, o país decidiu adotar uma política de controle do desflorestamento e criou, em 1988, o Programa de Monitoramento do Desmatamento da Amazônia (Prodes). Ao longo de 20 anos – e ao preço da devastação de 17% do bioma da Amazônia – o Brasil desenvolveu um sistema de rastreamento dos aproximadamente

C L AU D I A I Z I Q U E

das dos dois satélites captam a quantidade de radiação refletida na superfície do solo, discriminada por faixa de espectro – visível e vermelho próximo e infravermelho médio. Essas informações – que, devidamente modeladas, permitem identificar plantas verdes, solo, sombra e água – são processadas por algoritmos que dão a proporção da presença de cada um desses componentes em cada pixel da imagem. O algoritmo para transformação dos dados dos satélites – desenvolvido na década de 1980 por Yosio Shimabukuro, pesquisador do Inpe – segue o modelo conhecido como mistura linear (liner mixture model). “Linear porque parte do pressuposto de que os elementos que compõem a imagem são independentes e mistura porque lá embaixo, de fato, eles estão todos misturados”, explica Valeriano. Nessa classificação de imagens, a vegetação lisa e homogênea corresponde a um tom verde-claro; a floresta aparece em verde-escuro porque tem um componente de sombra mais forte; o solo em tom róseo, já que mescla o azul e o vermelho; e água em preto. A metodologia de análise das imagens é baseada na segmentação, classificação e edição, de forma a identificar desmatamentos com área mínima de 6,25 hectares.

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Esse conjunto de informações forma um mapa com 229 imagens digitais, cada uma delas correspondente a uma área de 160 x 160 km. Desse total, 213 imagens são interpretadas, já que o Prodes não avalia a situação das áreas de Cerrado. “O Cerrado pega fogo e fica preto, como as áreas de desmatamento. No ano seguinte volta a ser Cerrado e induz a taxas de erro muito grandes”, explica Valeriano. Os dados são processados por meio do software de informação georreferenciada batizado de Spring, desenvolvido pelo Inpe, pela IBM e pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), interpretados e auditados por especialistas do Inpe. “Feito isso, as informações são colocadas sobre uma máscara do passado e o desmatamento é identificado”, resume Valeriano. As conclusões de cada levantamento são publicadas anualmente em dezembro. Foi através do Prodes que o planeta tomou conhecimento do desmatamento recorde de 1995, quando foram abatidos 29,1 mil km2 de floresta e constatou que a situação ainda estava fora do controle em 2004, quando a Amazônia perdeu

30% e em 2006 o Inpe registrou redução de 14 mil km2 de floresta. O Prodes, apesar de “invejável”, tem limitações. Uma delas é a quantidade de nuvens que recobrem a região. “A janela de observação da Amazônia vai de maio a outubro. Fora desse período é difícil observar porque fica tudo nublado”, explica Valeriano. Outro problema é o risco da dependência do Landsat5, satélite lançado em 1984 para operar durante 5 anos, mas que ainda está ativo depois quase um quarto de século. “A saída é recorrer também às imagens do Cbers”, comenta Valeriano. O Landsat cruza a Amazônia a cada 16 dias e o Cbers, a cada 26. O Inpe também compra dados do DMC – um consórcio de microssatélites liderado pela Inglaterra –, do Spot e do ResourceSat. Esses satélites funcionam como uma espécie de back-up das informações coletadas pelo Prodes e também são utilizados para “ varrer nuvens”, como ele diz. “Quando se calcula o desmatamento, é preciso estimar também quanto de floresta não foi possível observar por causa das nuvens e projetar a taxa de desmatamento na área”, diz Valeriano. O percentual de “não-observação”, como ele sublinha, varia de 10% a 15%.

27,4 mil km2 do seu bioma. O último relatório mostrou uma redução de 20% no desmatamento no período 2006-2007, comparado ao ciclo 2005-2006. Desde 2003, “em prol da transparência”, as informações do Prodes foram colocadas na rede. “A medida provocou um impacto interessante”, conta Valeriano. Jogou, por exemplo, por terra algumas “teses”, como a da ineficiência das áreas de conservação para conter o desmatamento ou a de que as áreas indígenas estavam degradadas, ele exemplifica. “Mostramos que isso não era verdade”, afirma, mostrando o exemplo da região de Marabá, no Pará, onde o desflorestamento contorna as terras indígenas. Em 2005 a taxa caiu

Na imagem do Cbers, Manaus aparece próxima dos rios Negro (em preto) e Solimões (em roxo). O verde mais escuro é floresta, e o verde mais claro e o lilás são áreas de ex-florestas

INPE

Deter - O terceiro problema é que as

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informações do Prodes são uma “imagem póstuma” da floresta, do desmatamento consumado, e não fornecem uma base para que a ação governamental se antecipe à dinâmica do desflorestamento. Foi para suprir essa carência que o Inpe iniciou, a partir de 2004, o projeto Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter), que utiliza imagens do sensor Modis do Satélite Terra, lançado em 1999 no âmbito do programa Earth Observing System (EOS), e do sensor WFI instalado a bordo do Cbers2, para dar informações quinzenais ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). “O Deter foi concebido para dar suporte à fiscalização”, diz Valeriano. A resolução espacial do sensor do Modis e do Cbers, de 250 metros, não é tão boa quanto a do Landsat, com 30 metros. “Com essa resolução, estamos no limite da tecnologia para esse tipo de aplicação”, reconhece Valeriano. A principal função do Deter, no entanto, não é calcular o desmatamento, mas “apon-

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As informações dos satélites formam um mapa com 229 imagens digitais, cada uma delas correspondente a uma área de 160 x 160 quilômetros. Desse total, 213 imagens são interpretadas, já que o Prodes não avalia a situação das áreas de Cerrado

tar” situações de risco com o objetivo de subsidiar a decisão do que deve ser fiscalizado, observa o coordenador do programa. As informações são transmitidas quinzenalmente ao Ibama e mensalmente publicadas no site do Inpe. Com essa missão, o Deter operou de janeiro a outubro de 2004 e de 2005, com recursos do Inpe. Em 2006 contratou a Fundação de Ciência, Aplicações e Tecnologia Espaciais para colaborar no processamento dos dados. Os resultados até agora mostraram-se compatíveis com os levantamentos do Prodes. “Em 2006/2007 o Prodes apontou uma queda no desmatamento de 27 mil para 19 mil km. O Deter observou 12 mil desses 19 mil km2. O Deter vê entre 40% e 60% do que o Prodes enxerga”, compara Valeriano. Em 2007 o levantamento do Deter se estendeu de março a dezembro. “Pegamos várias imagens do Modis e observamos cinco por quinzena, uma a cada 3 dias, que é a freqüência de cobertura do satélite. Selecionamos e interpretamos por meio do modelo de mistura linear e divulgamos o dado em

janeiro ”, ele conta. As estimativas apontaram que, entre agosto e dezembro de 2007, as áreas degradadas na Amazônia somavam 3.235 km2. Como o Deter só “lê” de 40% a 60% do desmatamento registrado pelo Prodes, o desflorestamento pode ter atingido 7 mil km2. Confirmado esse número, o desmatamento estaria agregando uma média de mais de mil km2 por mês. A notícia provocou reações distintas de várias áreas do governo federal e dos estados e o levantamento do Inpe foi colocado sob suspeita. “O objetivo do Deter não é estimar a área total desmatada na Amazônia”, insiste Valeriano. Por conta da resolução dos sensores Modis e WFI/Cbers, há risco de erro. “Para calcular a área desmatada, o Inpe continuará a utilizar imagens de melhor resolução dos sensores do Landsat e Cbers“, afirma. O Deter, entretanto, fornece o tamanho de cada polígono desmatado, o que permite uma “hierarquização da fiscalização”. Valeriano explica que, além da resolução espacial dos satélites, os dois projetos têm “leituras” distintas do desmatamento: o Prodes identifica o corte raso – ou seja, o desmatamento rápido –, enquanto o Deter capta também as áreas desmatadas em processo de degradação continuada, por corte seletivo de madeira e queimadas recorrentes. “Estamos apontando potenciais indícios de desmatamento, que não são contabilizados como tal. No leste do Pará e no Mato Grosso há exploração seletiva da madeira e o solo fica exposto. Para o Prodes, isso não é necessariamente desmatamento, dependendo da fração do solo exposto. Mas, para o Deter, trata-se de desmatamento. É uma forma de converter a floresta sem corte raso”, sublinha. “Se o Deter se ocupasse apenas de corte raso, não acompanharia a dinâmica do desmatamento, e a contribuição do Ministério da Ciência e Tecnologia no Grupo Interministerial de Combate ao Desmatamento, coordenado pela Casa Civil, perderia sentido.” O Inpe faz planos de avançar ainda mais a tecnologia de monitoramento. “Estamos negociando com a Índia para ter acesso aos dados do ResourceSat. O nosso plano é conseguir fazer um levantamento multitemporal com uso de múltiplos sensores de melhor resolução, na casa dos 50 metros.” ■

Pixels sem nuvens O Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) opera um Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD) que utiliza o processamento digital IDA (interactive data language) para analisar imagens do sensor Modis. O modelo de análise é o mesmo adotado pelo Inpe. O SAD monitora os estados do Mato Grosso, desde 2000, e do Pará, desde o ano passado. A partir deste ano começará a rastrear toda a Amazônia Legal. No entanto, o Inpe detectava recrudescimento no desmatamento no período entre agosto e dezembro de 2007, o Imazon observou redução de 21% no desflorestamento em Mato Grosso e aumento de 74% no Pará, em comparação com os dados de 2006. “Não trabalhamos com a mesma imagem. O Inpe escolhe a melhor imagem do período. E a gente consegue filtrar substituindo as áreas de nuvens por pixels sem nuvens“, explica Carlos de Souza Júnior, pesquisador e secretário executivo do Imazon. Cada pixel corresponde a uma área de 250 x 250 metros. Em áreas de floresta, 60% dos pixels equivalem a vegetação e 40% são sombra. “Quando há desmatamento, perde o percentual de vegetação e aparecem sinais de solo que deveria ser zero”, ele explica. “Se o percentual de vegetação cair até 25% e o de solo aumentar mais de 20%, então esse pixel sofreu alteração.” O sistema de medição utilizado pelo Imazon, como ele diz, é conservador. “Há zonas de confusão”, reconhece, referindo-se às áreas queimadas, mas ainda não convertidas para a pecuária ou a agricultura. “Há controvérsias sobre como tratar essas áreas degradadas”, pondera, oferecendo uma segunda explicação para a discrepância entre os dados.

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O Congresso norteamericano quer explicações do governo sobre um programa que dá uma espécie de bolsa a cientistas nucleares da extinta União Soviética para evitar que ajudem países com ambições atômicas. As Iniciativas para Prevenção da Proliferação (IPP), um programa coordenado pelo Departamento de Energia, já destinaram US$ 309 milhões desde 1994 a 17 mil pesquisadores comprometidos em trabalhar em tecnologias pacíficas, oriundos de países como Rússia, Ucrânia, Casaquistão e Usbequistão. O programa foi idealizado para atenuar um problema emergencial – o desemprego em massa de pesquisadores após a desintegração soviética –, mas acabou se desvirtuando. Segundo reportagem da revista Nature, menos da metade dos cientistas patrocinados atualmente tem expertise em armas e o programa vem recrutando novos especialistas, muitos deles jovens demais para terem participado da corrida armamentista dos tempos da Guerra Fria. Elena Sokova, do Centro James Martin para Estudos sobre NãoProliferação Nuclear, apóia o programa e diz que pagar os cientistas ajuda efetivamente a evitar que trabalhem com armas. Segundo ela, uma pesquisa feita em 2003 com 600 cientistas russos concluiu que 20% deles cogitavam trabalhar para governos acusados de dar apoio a grupos terroristas.

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LAURABEATRIZ

BOLSA ANTIARMAMENTISTA

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> Conselhos desautorizados O governo canadense decidiu abolir o cargo de conselheiro nacional em ciência a partir deste mês, após 4 anos de serviços prestados por Arthur Carty, pesquisador da área de química. No lugar será criado um comitê assessor de ciência, tecnologia e inovação composto por 17 executivos da indústria,

ministros e cientistas. David Anderson, diretor de um instituto ambiental em Ontário e ex-ministro do Meio Ambiente, disse que a mudança mostra o desinteresse do governo por assuntos científicos. E lembrou que Carty deve ter passado maus bocados dando conselhos a autoridades que tentaram desacreditar pesquisas sobre mudanças climáticas.

“Não considero que, nestes 4 anos, o governo tenha compreendido o papel que um conselheiro de ciência pode desempenhar”, disse Carty à revista Nature.

> Acesso livre em Harvard A Universidade Harvard, nos Estados Unidos, deu uma contribuição

O acoplamento do módulo europeu ColumAFIRMAÇÃO bus à Estação Espacial Internacional (ISS, EUROPÉIA na sigla em inglês), em meados de fevereiro, conferiu à Agência Espacial Européia (ESA) um novo status na estação. “Estamos passando do estágio de passageiro para o de um parceiro totalmente apto”, disse JeanJacques Dordain, diretor-geral da ESA, segundo o site da agência. Com o Columbus, a Europa poderá realizar seus próprios experimentos, além de manter astronautas na equipe residente, sem precisar fazer acordos com as agências da Rússia e dos Estados Unidos – as únicas a instalarem módulos na ISS até então. O módulo será operado e controlado por um centro da ESA em Oberpfaffenhofen, na Alemanha. O laboratório Columbus tem 6,8 metros de comprimento e 4,4 metros de largura. Leva 2,5 toneladas em equipamentos científicos. A ESA gastou US$ 2 bilhões em seu desenvolvimento e construção, iniciados em 1992, e espera que o Columbus tenha uma vida útil de pelo menos 1 década.

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NASA

O módulo Columbus chega à estação

A revista de saúde The Lancet suspendeu temporariamente a publicação de artigos de autores da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF), em resposta a uma polêmica envolvendo uma série de estudos sobre desnutrição divulgados em janeiro na revista e produzidos por um grupo de pesquisadores. Patrocinado pela Fundação Bill e Melinda Gates, o grupo explorou as causas e as conseqüências da desMédicos sem Fronteiras: polêmica nutrição e avaliou vários tipos de intervenção. Logo que os estu> Botânicos dos saíram, os dirigentes da MSF publicaram uma crítica violenta em seu website. A queixa: os artigos pouco falaram dos alimentos amordaçados terapêuticos feitos à base de amendoim, que têm alto teor calórico e protéico e podem ser usados em tratamentos domiciliares. Estudo publicado por “Ao deixar de endossar essa estratégia, os autores estão minanum grupo de botânicos do o apoio a uma intervenção capaz de salvar vidas”, declarou o indianos sugere que a MSF. Um dos membros do grupo de pesquisa, o paquistanês Zullegislação restritiva do país sobre biodiversidade está fiqar Bhutta, enviou um e-mail à revista Science lembrando que sufocando a pesquisa neste os estudos recomendam o tratamento da desnutrição em domicílio. O problema, diz, é que não foram encontrados estudos clícampo. O artigo, publicado na revista Current Science, nicos capazes de avaliar os efeitos dessa estratégia na mortalida Academia de Ciências dade. Richard Horton, editor do The Lancet, reclamou que a polêmica teve o dom de abortar o debate de alto nível que a revista da Índia, diz que os esperava criar com os artigos. “Isso é imperdoável”, afirmou. pesquisadores vivem uma

PRATO DE RESISTÊNCIA

MÉDICOS SEM FRONTEIRAS

importante ao movimento que propõe o acesso livre e gratuito a publicações científicas. A Faculdade de Artes e Ciências (FAS, na sigla em inglês) da universidade decidiu tornar públicos todos os artigos divulgados por seus pesquisadores a partir do mês passado. “Isso deve servir como uma mensagem para a comunidade acadêmica no sentido de que devemos ter maior controle sobre como nosso trabalho é usado e disseminado”, disse Stuart Shieber, professor da FAS. Os artigos ficarão disponíveis numa base de dados da internet. A decisão obriga os pesquisadores a publicar seus artigos em revistas que não ofereçam restrições ao acesso livre. A Escola Médica Harvard também está trabalhando numa iniciativa para levar o modelo de acesso aberto a todos os artigos resultantes de pesquisas apoiadas pelos Institutos Nacionais de Saúde.

situação de isolamento devido à proibição de enviar amostras para bancos internacionais e trocar material de pesquisa com colegas de outros países. “Embora combater a biopirataria seja uma preocupação legítima, também é importante proteger os interesses dos cientistas engajados em pesquisas fundamentais”, disse K. D. Prathapan, da Universidade Agrícola Kerala. As restrições são especialmente prejudiciais no campo da taxonomia, em que a identificação

precisa de plantas e animais exige comparações com espécies semelhantes presentes em diferentes países.

> Fontes alternativas Em busca de parcerias, o governo do Peru vai apresentar a investidores privados 35 grandes projetos no campo de energias renováveis, com o objetivo de reduzir a dependência do país em petróleo. As iniciativas

vão exigir investimentos de US$ 35 bilhões ao longo de 15 anos. Quinze projetos prevêem a construção de hidrelétricas. Outros incluem o aproveitamento de energia das marés e do Sol. “Queremos enviar uma mensagem clara: o Peru vai fazer de tudo para diversificar suas matrizes energéticas e tirar partido de todas as fontes que puder”, disse à agência SciDev.Net Pedro Gamio, representante do Ministério da Energia peruano.

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BORIS ARTZYBASHEFF

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ESTRATÉGIAS MUNDO

Qual foi o exato papel dos cientistas À SOMBRA alemães no apoio ao regime nazista? DO NAZISMO Num esforço para responder a essa pergunta, o Conselho de Pesquisa da Alemanha (DFG) patrocinou uma investigação de sua própria história, que está sendo concluída. Em entrevista à revista Nature, o historiador Ulrich Herbert, da Universidade Freiburg, disse que nenhum novo crime foi descoberto. Mas informações sobre pedidos de bolsas e de apoio mostram que muitos professores ajudaram a traçar planos expansionistas para o pósguerra de uma Alemanha vitoriosa — planos que teriam matado mais de 30 milhões de pessoas. Também se constatou que o expurgo de um quarto dos docentes das universidades, entre judeus e opositores, atrasou o desenvolvimento da biologia celular e molecular no país. A investigação mostrou que certas atrocidades, como a eutanásia de deficientes mentais, basearam-se em idéias que vicejaram em vários países nos anos 1920 e 1930. “Mas tais idéias ganharam forma apenas na Alemanha de Hitler”, disse Herbert.

> Guerra nas Estrelas? O uso de um míssil para destruir um satélite espião defeituoso norte-americano foi duramente criticado por autoridades russas e chinesas. O governo dos 34

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Estados Unidos sustenta que a derrubada foi necessária porque o satélite estava descontrolado, carregava combustível tóxico e podia representar uma ameaça quando reentrasse na atmosfera. Para a Rússia e a China, a operação

foi um pretexto dos norte-americanos para promover testes de armas de defesa. A China exigiu que os Estados Unidos ofereçam todas as informações disponíveis a respeito da destruição do satélite. “Continuamos monitorando o possível dano à segurança no espaço e o possível dano à segurança de outros países”, afirmou o porta-voz do Ministério do Exterior chinês, Liu Jianchao, de acordo com a agência BBC. Para o Ministério do Exterior russo, a operação foi uma resposta dos Estados Unidos à China, que no ano passado destruiu um satélite de forma semelhante – e foi duramente criticada pelos norte-americanos. Segundo os russos, a ameaça representada pelo satélite não justificava o uso de um míssil.

> Sacrifício de elefantes Para controlar o excesso de elefantes em seu território, a África do Sul retomará em maio o sacrifício seletivo desses animais, que vigorou entre 1967 e 1994 matando 14.562 deles, de acordo com dados oficiais. “Vamos permitir o sacrifício em algumas partes do país, mas não há intenção que se transforme em um massacre de grande escala”, afirmou o ministro do Meio Ambiente, Marthinus van Schalkwyk, de acordo com a agência EFE. Na África do Sul há muito mais elefantes – cerca de 20 mil – do que seu ecossistema pode permitir. A maioria, perto de 14 mil, vive no Parque Nacional Kruger, cuja capacidade é de 7.500 animais. A superpopulação dos vorazes elefantes arrasa a vegetação natural e faz faltar comida para outros animais que habitam o parque. Outras estratégias foram articuladas, como a esterilização ou a transferência de animais para outras regiões, sem resultados satisfatórios. O sacrifício será feito por meio de rifles, mas o governo descarta abrir os parques públicos para caçadores, como acontece em parques privados. “As práticas cruéis não serão permitidas”, afirmou o ministro Van Schalkwyk.

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ESTRATÉGIAS BRASIL

> Inovação

O Prêmio FCW de Ciência e PRÊMIO Cultura, concedido pela FunDOBRADO dação Conrado Wessel (FCW), aumentou de R$ 100 mil para R$ 200 mil o valor individual de premiação concedido Troféu criado pelo artista para cada uma de suas quatro categorias: Medicina, plástico Ciência Geral, Ciência Aplicada e Literatura. A muVlavianos dança vale para os vencedores de 2007, que serão conhecidos em meados de abril e receberão o prêmio numa festa, em São Paulo, no dia 2 de junho. Criado em 2002, o Prêmio FCW é considerado um dos mais importantes da área acadêmica e já foi oferecido para nomes como o cirurgião Adib Jatene, o poeta Ferreira Gullar e o cientista Isaias Raw, entre outros. A FCW é uma instituição filantrópica criada de acordo com o testamento de Ubaldo Conrado Wessel, argentino de origem alemã que se radicou no Brasil no início do século XX. Fotógrafo e químico, Wessel inventou o primeiro papel fotográfico brasileiro, que tomou o lugar dos importados no mercado nacional em meados da década de 1920. A FAPESP é uma das entidades parceiras do Prêmio FCW e auxilia na avaliação dos candidatos.

no valor de R$ 32 milhões com o Instituto Butantan para financiar o desenvolvimento e os testes clínicos de vacinas contra o rotavírus, a dengue e a leishmaniose canina. As vacinas farão parte do Programa Nacional de Imunização (PNI),

do Ministério da Saúde. O projeto será financiado com recursos não reembolsáveis do Fundo Tecnológico (Funtec) do BNDES, que apóia iniciativas de interesse estratégico do país. O objetivo do BNDES é reduzir as importações EDUARDO CESAR

A Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) criou um fundo para investir R$ 12 milhões em empresas nascentes de base tecnológica de Santa Catarina. Em parceria com a BZPlan Administração de Recursos e a Fir Capital Partners, a Finep lançou o Fundo SC, com recursos de R$ 12 milhões. A iniciativa prevê investimentos em até dez empresas inovadoras do estado com atuação nos setores de tecnologia da informação, biotecnologia e nanotecnologia. Do total dos recursos, a Finep participa com 40%, ou seja, R$ 4,8 milhões, e tem direito a voto na tomada de decisão sobre qual empresa deverá receber investimentos. O restante da verba virá de parceiros privados e do governo catarinense. O Fundo SC deve começar a operar a partir de julho deste ano. Trata-se do segundo fundo constituído no país em menos de 2 meses pelo Programa Inovar Semente, da Finep. O primeiro, o Horizont TI, voltado para empresas de tecnologia da informação, foi lançado em Belo Horizonte em janeiro.

MIGUEL BOYAYAN

catarinense

> BNDES apóia Butantan O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) assinou contrato

Produção de vacinas: interesse estratégico

de vacinas e reduzir cursos do PNI. A infecção por rotavírus atinge anualmente 10 milhões de pessoas na América Latina, com 15 mil mortes. A dengue está presente em mais de cem países tropicais, com incidência de 50 milhões de casos por ano – e 20 mil mortes. A leishmaniose afeta cerca de 2 milhões de pessoas no mundo. Transmitida sobretudo por insetos que picam cães infectados, a leishmaniose é considerada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) uma das seis maiores endemias do planeta. O projeto do Instituto Butantan pretende desenvolver uma vacina combinada de leishmaniose e raiva canina. O Instituto Butantan, vinculado à Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo, é responsável pela produção de mais de 80% do total de soros e vacinas consumidos no Brasil.

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ESTRATÉGIAS BRASIL

Foram anunciados os três vencedores – ou meAS TESES lhor, vencedoras – do Grande Prêmio Capes de DO ANO Teses, atribuído a trabalhos defendidos por doutores em programas de pós-graduação avaliados pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). As laureadas foram María Laura Schuverdt, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), na categoria que engloba engenharias, ciências exatas e da terra; Solange Maria Teixeira, da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), em ciências humanas e ciências sociais aplicadas; e Ana Lia Parra-Pedrazzoli, da Universidade de São Paulo (USP), em ciências biológicas, da saúde e agrárias. A tese de María Laura, 32 anos, teve como produto final foi um método capaz de solucionar problemas com um número enorme de variáveis e restrições. Ana Lia, 34 anos, isolou e identificou o feromônio sexual do minadordos-citros Phyllocnistis citrella, causador de uma praga da citricultura. A preocupação com o envelhecimento do trabalhador brasileiro levou Solange Teixeira, 42 anos, a estudar as conseqüências sociais do problema. Elas receberão uma bolsa de pós-doutorado no exterior e premiação em dinheiro de uma parceria entre a Capes e a Fundação Conrado Wessel. Em 2007 foram inscritas 417 teses.

> Desenvolvimento da Amazônia Estão abertas até 20 de junho as inscrições para a edição 2008 do Prêmio Professor Samuel Benchimol, que busca reconhecer pesquisadores e pesquisas ligados ao desenvolvimento sustentável da Amazônia. Promovida pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), o prêmio divide-se em duas categorias. Uma delas vai selecionar projetos nas áreas social, econômica, tecnologia e ambiental. O primeiro colocado recebe um prêmio no valor de R$ 30 mil, o segundo, de R$ 20 mil, e o terceiro, de R$ 15 mil. A outra categoria irá homenagear o esforço de pessoas ou instituições 36

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comprometidas com a desenvolvimento da região. O julgamento será feito no dia 16 de setembro. Mais informações estão disponíveis no site www.amazonia. desenvolvimento.gov.br.

> Esforço baiano A Bahia anunciou investimentos de R$ 100 milhões em inovação tecnológica até 2010. O dinheiro será distribuído por três editais e dois programas lançados no mês passado. Do total, R$ 16,5 milhões virão do edital do Programa de Apoio à Pesquisa em Empresas, o Pappe Subvenção. Foi também lançado o edital Pesquisadores nas Empresas, que vai distribuir R$ 1,5

milhão na concessão de bolsas a pesquisadores que atuarão em pequenas e médias empresas baianas. Serão contemplados projetos voltados para aumentar a competitividade das empresas. Outro edital, este com recursos de R$ 1 milhão, destina-se a apoiar sistemas locais de inovação em instituições científicas. Até 2010, o Programa Estadual de Incentivo à Inovação Tecnológica

(Inovatec) terá recursos de R$ 60 milhões para ampliar a infra-estrutura de base tecnológica da Bahia. “O objetivo é melhorar a qualidade das pesquisas e propiciar o desenvolvimento de produtos e processos”, disse o secretário de Ciência, Tecnologia e Inovação da Bahia, Ildes Ferreira. Por fim, o Programa Juro Zero disporá de R$ 20 milhões para financiar inovação em micro e pequenas empresas.

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na internet

> A preparação do encontro A Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) colocou no ar o site da 60ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), que acontecerá em seu campus entre os dias 13 e 18 de julho. O site www. sbpc2008.unicamp.br:81/ disponibiliza informações e um formulário para o cadastro de propostas e comentários. O evento terá 60 conferências, 60 simpósios, 40 mesasredondas, 40 minicursos, 40 encontros, 10 assembléias, 40 comunicações orais e algumas sessões

especiais, com concursos e entregas de prêmios. Também serão apresentados por volta de 3 mil trabalhos de pesquisa em painéis, com participação de autores brasileiros e estrangeiros. Entre as atividades

paralelas, destacam-se a 15a Jornada Nacional de Iniciação Científica, o Concurso Cientistas de Amanhã, a Exposição de Tecnologia e Ciência e a SBPC Jovem, voltada para os estudantes do ensino básico.

ILUSTRAÇÕES LAURABEATRIZ

A Pró-Reitoria de PósGraduação da Universidade Estadual Paulista (Unesp) lançou um endereço na internet (www. machadodeassis.unesp.br) para homenagear o escritor Machado de Assis (1839-1908) no centenário de sua morte. O site reúne textos de jornais e revistas para os quais o escritor carioca contribuiu na segunda metade do século XIX. Num primeiro momento, está sendo oferecida parte dos periódicos que representam os pouco mais de 10 anos de iniciação literária do escritor, de 1855 a 1869. São textos publicados em O Futuro – Periódico Literário, Marmota Fluminense – Jornal de Moda e Variedades, Semana Ilustrada, Diário do Rio de Janeiro, Jornal do Povo e A Saudade. O site, que traz imagens digitalizadas dos textos originais, teve origem no projeto A Trajetória de Machado de Assis pelos Periódicos, coordenado pelas professoras Silvia Maria Azevedo, da Faculdade de Ciências e Letras, em Assis, e Lúcia Granja, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, em São José do Rio Preto.

Autoridades brasileiras e argentinas participaram em meados de fevereiro em Buenos Aires de uma reunião para discutir os termos da retomada do projeto de construção de um satélite conjunto, o Sabia (Satélite Argentino-Brasileiro de Informação em Água, Alimentos e Ambiente). O grupo discutiu uma declaração de cooperação na área espacial que deverá ser assinada pelos presidentes dos dois países. Apresentado pela primeira vez em 1996, o projeto havia sido suspenso em 2000, em decorrência da aguda crise econômica que atingiu a Argentina e da saída de um terceiro parceiro da iniciativa, a Espanha. Orçado em US$ 70 milhões, o Sabia prevê aplicações na previsão de safras e no monitoramento de recursos naturais, com destaque para a prospecção mineral e a proteção ao meio ambiente. Propõe-se a reduzir a dependência dos dois países de informações fornecidas pelo satélite norte-americano Landsat. A parceria aproveita potencialidades complementares dos dois vizinhos. Enquanto o Brasil desenvolveu bastante nos últimos 10 anos a engenharia estrutural dos satélites, a Argentina avançou no desenvolvimento de sensores ópticos avançados.

BOA VIZINHANÇA

> Centenário

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Remadoras no T창misa em Oxford: cultivando o senso de equipe

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POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

MEDICAMENTOS

Febre criadora Articulação entre universidades, empresas e governo facilita a descoberta e o desenvolvimento de fármacos na Inglaterra

CARLOS FIORAVANTI

C A R LO S F I O R AVA N T I ,

DE

OXFORD*

A PENICILINA NÃO É SÓ UM DOS MEDICAMENTOS MAIS cialização da pesquisa acadêmica. Os cientistas ainda têm de fazer sacrifícios e, de vez em quando, pôr uma USADOS DO MUNDO . É TAMBÉM O RESULTADO DE UMA roupa um pouco mais formal que o guarda-pó quase ABORDAGEM PIONEIRA , DESCRITA POR R OBERT B UD , branco de todo dia e gastar algumas horas conversandiretor de pesquisa do Museu da Ciência, em Londo com empresários. Pelo menos duas vezes por ano dres, no livro Penicillin – Triumph and tragedy, lançaa Isis Innovation, a empresa de transferência de tecdo no ano passado pela Editora da Universidade de nologia da Universidade de Oxford, promove jantares Oxford. A transformação de um extrato de fungo em que não faltam encorpados vinhos tintos francedescoberto em um modesto hospital de Londres em ses regando as esperanças de transformar as idéias um pó que começou a ser usado durante a Segunda nascidas em laboratórios em produtos comerciais. Guerra Mundial, desde então salvando milhões de Tanto os pesquisadores quanto as instituições vidas, representa o primeiro trabalho coletivo de decontam com um forte apoio do governo. Os investisenvolvimento de fármacos no mundo. mentos em pesquisa pública devem ter chegado a As articulações entre as forças científicas, econôquase US$ 4 bilhões por ano em 2005/2006, embora micas e políticas, tecidas com dificuldade naquela époa maior parte desse dinheiro se destine à ciência báca, hoje são comuns na Inglaterra. A engrenagem de sica e a pesquisa clínica ainda seja relativamente mal pesquisa e desenvolvimento de medicamentos foi se servida. Quem não quiser dinheiro público pode reajustando e hoje é razoavelmente articulada, coneccorrer a alguma das 25 fundações independentes, as tando universidades, empresas, governo e agências de charities. A Wellcome Trust, a maior delas, criou um financiamento. A pesquisa de novos medicamentos fundo extra – de até £ 700 ocorre em 62 laboratórios de hospitais ou de universidades e em boa parte das quase 500 * Esta reportagem integra o milhões (£ 1 equivale a cerca empresas farmacêuticas instaladas no Reino estudo New Perspectives on de R$ 4) por projeto durante Unido. Como resultado, 15 dos 75 medicamen- Drug Development in Develo- 3 anos – para estimular a inotos mais vendidos no mundo nasceram e cres- ping Countries: a Case Study vação biomédica até o ponto ceram no Reino Unido, incluindo o Viagra. Só of the Brazilian Compound de ser apoiada pelos mecaos Estados Unidos, com empresas mais atiradas P-MAPA, desenvolvido em nismos habituais de financiaaos lucros, conseguiram mais. 2007 como parte de um pro- mento. Nich Dunster, da O governo britânico criou um ambiente grama de estudos oferecido pelo Wellcome Trust Technology favorável à inovação em fármacos, incentivan- Reuters Institute for the Study Transfer, apresentou esse do a formação de pesquisadores, a aproxima- of Journalism na Universidade fundo na BioTrinity, uma feira de negócios que reuniu ção entre universidades e empresas e a comer- de Oxford, Inglaterra.

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epresentantes do governo que compareceram a um seminário realizado em novembro na Câmara Britânica de São Paulo mostraram interesse em estimular a criação de um ambiente de inovação em fármacos também no Brasil, de modo a superar a antiga desarticulação entre universidades, empresas e governo. Uma das novas forças é o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que liberou R$ 1 bilhão para empresas de todos os portes investirem na produção de princípios ativos e em inovação. “Sem inovação, estamos assumindo que somos periferia ad eternum”, comentou Pedro Lins Palmeira Filho, chefe do departamento da área industrial do BNDES. A história mostra que pode ser difícil. Há duas décadas a Companhia de Desenvolvimento Tecnológico (Codetec), apoiada pelo governo, pretendia promover a síntese de fármacos e reduzir a dependência externa, mas perdeu fôlego por falta de investimentos. Em Oxford essa engrenagem fluida começou a tomar corpo em 1997, quando Tim Cook entrou na Isis depois de 7 anos como diretor administrativo de empresas de base tecnológica e outros 7 como investidor privado. Segundo

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ele, o movimento de criar empresas e levantar outras fontes de financiamento emergiu porque a universidade decidiu não só ser útil, formando empresários e políticos, mas também parecer útil e se tornar uma força econômica. Parece ter funcionado: o retorno financeiro foi dez vezes maior que o investimento. Cook e sua equipe avançaram à medida que estimularam a comunicação e as relações de confiança entre pesquisadores e empresários e evidenciaram o valor social e econômico dos cientistas. “Tudo que fazemos aqui é sociologia aplicada”, disse. Qualquer um dos 4 mil pesquisadores da universidade pode contar com a Isis para elaborar o plano de negócios, obter financiamento e gerenciar a empresa. Para Graham Richards, diretor do departamento de química da Universidade de Oxford, um aspecto notável desse modelo é que os pesquisadores não precisam deixar o laboratório: como as novas empresas normalmente têm seus próprios gerentes, que não são os cientistas que as fundaram, quase nada muda na vida acadêmica. Não é o bastante, porém, para mudar a cultura acadêmica: “Precisamos (também) de campeões”, comentou. “Duas ou três pessoas fazem toda diferença.” Ao lado de Cook, Richards faz a diferença. Além das empresas que ele criou ou ajudou a criar, articulou a construção de um novo laboratório de química, de £ 64 milhões, sem nenhum apoio financeiro da universidade. O departamento de química exibe o recorde de 18 spin-offs, que trouxeram £ 80 milhões para a universidade. De toda a universidade saíram cerca de 60 empresas, principalmente a partir de 1987, quando uma nova lei concedeu às universidades o direito de explorar a propriedade intelectual. Quem provocou a mudança foi a então primeiraministra Margareth Thatcher, que não gostou nada da história de um anticorpo monoclonal desenvolvido em Cambridge que não fora patenteado e gerou muito dinheiro quando começou a ser explorado pela indústria. Quase 50 empresas, incluindo muitas das maiores dos Estados Unidos, Europa e Japão, coordenam os testes clínicos de cerca de 500 potenciais medicamentos no Reino Unido. Os testes são feitos principalmente nos hospitais

MUSEU FLEMING

durante 2 dias em Oxford empresas que pesquisam, produzem ou ajudam empreendedores a elaborar os planos de negócios a encontrar parceiros, a licenciar tecnologias, a conseguir financiamento ou a se tornar mais conhecidos no Reino Unido, na Europa ou nos Estados Unidos. Muitos diretores das pequenas e médias empresas que compareceram à BioTrinity afirmaram que pretendiam concluir os estudos clínicos iniciais dos candidatos a medicamentos em que trabalhavam e depois fazer uma parceria com grandes empresas farmacêuticas, já que não tinham dinheiro suficiente para eles próprios produzir e vender os novos produtos.

Heroínas anônimas: as garotas da penicilina cuidando da produção dentro da universidade. Acima, a placa de Petri com o fungo que originou o medicamento mais usado no mundo

do National Health Service (NHS), o sistema público de saúde inglês. Os compostos aprovados nos testes serão depois novamente avaliados pela autoridade regulatória, a European Agency for the Evaluation of Medicinal Products (Emea), que pode fornecer uma licença única para venda em todos os Estados membros da União Européia. Esse modelo daria outro final para histórias como a da penicilina. “Fleming ficava aqui, com outros três médicos, fumando 60 cigarros por dia”, conta uma senhora sexagenária muito magra e falante, ao exibir uma pequena mesa de madeira coberta por vidros, potes e um microscópio, no segundo andar de um dos prédios do Hospital St. Mary, em Londres. Foi nessa sala em que o médico escocês Alexander Fleming em setembro de 1928, ao voltar de férias, encontrou em uma placa de Petri um fungo que exterminava bactérias. No início Fleming trabalhou com entusiasmo. Em 1929 publicou um artigo na British Journal of Experimental Pathology, mas alguns meses depois perdeu o interesse: nem ele nem sua equipe

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SIR WILLIAM DUNN SCHOOL OF PATHOLOGY, UNIVERSIDADE DE OXFORD

haviam conseguido purificar a penicilina. Além disso, seu chefe imediato, Sir Almroth Wright, não gostava de bioquímicos, que poderiam resolver esse problema, e não os queria por perto.

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m dos editores da British Journal, o patologista australiano Howard Florey, que anos depois teria um papel fundamental no desenvolvimento da penicilina, deve ter visto o trabalho de Fleming, mas não o medicamento que poderia nascer dali. Nove anos depois, foi o bioquímico Ernst Chain, um refugiado judeu da Alemanha nazista, quem abriu os olhos de Florey ao encontrar o estudo de Fleming em uma biblioteca da Universidade de Oxford e desconfiar que ali havia algo precioso. Como professor da Universidade de

Oxford, Florey iniciou então a transformação do extrato de Fleming em medicamento. A equipe que ele formou trabalhava ao mesmo tempo nos testes em animais, na purificação e na produção da penicilina – inicialmente em urinóis – em quantidade suficiente para fazer testes em seres humanos. Mesmo mostrando que a penicilina aplacava infecções bacterianas em camundongos, Florey não conseguiu atrair o interesse das indústrias farmacêuticas britânicas, preocupadas em sobreviver à Segunda Guerra Mundial. Mas atravessou o mar e conseguiu apoio do governo dos Estados Unidos. As empresas farmacêuticas norte-americanas se uniram e priorizaram a produção da penicilina, enquanto as britânicas custavam a chegar a um plano comum. Mais tarde, a Inglaterra teve de comprar dos Estados Unidos a patente sobre os métodos de produção de penicilina. Fleming, Florey e Chain dividiram o Prêmio Nobel de Medicina de 1945. Hoje Florey não teria de ir aos Estados Unidos para completar o desenvolvimento da penicilina. Poderia abrir uma empresa, pedir uma patente, con-

seguir financiamento, concluir a pesquisa e ganhar muito dinheiro recebendo royalties de multinacionais que produziriam penicilina e a venderiam para todo o mundo. Ao chegar à Emea é que perceberia que os ventos não estavam mais a favor. Diferentemente dos anos 1940, quando quase não havia regulação para registro de medicamentos, no atual ambiente regulatório os técnicos da Emea não aprovariam a penicilina por causa dos 3% ou mais de risco de reações alérgicas que pode causar. Nada pessoal, claro: muitos outros medicamentos seriam hoje vetados. Os europeus estão mais cautelosos também porque, como demonstrou uma exposição do Museu de Ciência que manteve o título do livro de Robert Bud, a penicilina foi uma história de triunfo sobre as infecções, mas seu uso descontrolado deixou o caminho livre para a propagação de bactérias e de vírus. Neste momento um dos maiores medos de quem vive na Inglaterra são as superbactérias, como as que causam infecção hospitalar ou tuberculose e resistem a qualquer medicamento à mão. ■ PESQUISA FAPESP 145

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DIFUSÃO

A apoteose

da

dupla

hélice

Exposição desvenda o DNA, da biodiversidade até o núcleo da célula FABRÍCIO MARQUES

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stá no Brasil a exposição Revolução genômica, exibida em 2001 pelo Museu de História Natural de Nova York. Depois de ser vista por 800 mil pessoas nos Estados Unidos, China e Nova Zelândia, a mostra ficará em cartaz até 13 de julho no recém-reformado Pavilhão Armando Arruda Pereira, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo. O Instituto Sangari, responsável pela vinda da exposição, espera uma audiência de 500 mil visitantes apenas na capital paulista. Ela também deve percorrer várias cidades brasileiras – a exemplo do que aconteceu com a exposição Darwin - Descubra o homem e a teoria revolucionária que mudou o mundo, também trazida pelo Instituto Sangari, que pode ser vista até abril no Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro, após 3 meses em cartaz no Museu de Arte de São Paulo. Espalhada por uma área de 2 mil metros quadrados, a exposição sofreu adaptações em sua versão para o Brasil. Logo na primeira das três alas da exposição, batizada de Grande Salão do DNA, o visitante ingressa num ambiente repleto de plantas e animais vivos, contidos por paredes de vidro entremeadas por televisores com imagens da fauna e da flora. “Conseguimos reunir mais animais silvestres vivos na exposição do que esperávamos a princípio, tais como sagüis, tucanos, ta-

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FOTOS EDUARDO CESAR

rântulas e jibóias, que são um grande atrativo para o público infantil”, afirma Bianca Rinzler, diretora executiva do Instituto Sangari. O paleontólogo Niles Eldredge, um dos curadores do Museu de História Natural de Nova York, se disse bem impressionado com o acréscimo brasileiro. “A importância da biodiversidade associada à revolução genômica tornou singular a exposição brasileira”, disse. No ambiente seguinte, animais empalhados dividem espaço com desenhos sobre a biodiversidade brasileira do botânico alemão Carl von Martius (1794-1868). A ala traz uma projeção de imagens mostrando que o DNA está presente tanto em seres humanos como em plantas e anfíbios – a idéia de que o DNA está em tudo é o grande mote da exposição – e se encerra numa grande redoma que simula o interior de uma célula. A exposição tem outras duas grandes alas: A Era do Genoma, que aborda conceitos da genética e doenças, e a Genética dos Alimentos, que trata da importância da genômica para a agricultura e os alimentos transgênicos. A interatividade está presente em toda a exposição. Num equipamento, o visitante tem o rosto fotografado e projetado numa grande tela, que recebe a legenda “humano”. Ao lado, surge a foto de uma outra espécie, como um chimpanzé, um peixe ou um roedor. Em instantes, informa-se a porcentagem de genes dessa espécie com os humanos. Uma instalação em forma de dupla hélice convida o visitante a tocá-la. Ao fundo, vê-se uma mosca projetada numa tela. Num jogo de erros e acertos, é preciso tocar em pontos da estrutura até encontrar pontos do DNA capazes de abrigar mutações genéticas que produzam anomalias – que incluem a alteração da cor da mosca, a atrofia das asas ou o surgimento de um membro extra. As crianças serão convidadas a participar de um experimento de extração de DNA de morangos. Uma preocupação dos organizadores foi tornar o conteúdo da exposição mais acessível ao público brasileiro. Mônica Teixeira, uma das curadoras, levou 5 meses para adaptar os textos da exposição norte-americana e acrescen-

Cenas: genética dos alimentos (esq.), célula gigante (dir.) e Francis Crick, ao apresentar o DNA (abaixo)

tar textos novos, como os que tratam de chips de DNA, da síndrome do cromossomo X frágil e da distrofia muscular, além de conteúdos sobre culturas agrícolas como o café, a cana, a soja e a laranja, que não existiam no original. “Foi, sem dúvida, a parte mais complexa e trabalhosa”, diz Mônica. Banco de reservas - A seleção dos mo-

nitores que acompanharão visitantes e alunos de escolas públicas foi rigorosa. Dos 220 candidatos, 50 foram escolhidos – mas só 25 atuarão efetivamente na exposição. Os demais permanecerão num banco de reservas, sendo convocados caso haja desistências ou ausências. Embora todos sejam estudantes de biologia, cumpriram 9 horas de aulas teóricas e mais 9 horas de treinamento em mediação. “É que eles precisam estar preparados para responder no tom certo a cada tipo de público”, explica Eliana Dessen, geneticista da Universidade de São Paulo e co-curadora da exposição. Em paralelo, dois ciclos de palestras sobre genômica e temas científicos, organizados por Pesquisa FAPESP, vão movimentar o Pavilhão Armando Arruda Pereira até julho. O ciclo “Genômica: modelando a biologia do século XXI” terá conferências de especialistas como Oliver Smithies, Nobel de Medicina de 2007; Alan Templeton, biólogo da Universidade de Michigan; Jane Gitschier, médica e bióloga da Universidade da Califórnia em São Francisco; Fernando Reinach, pesquisador da USP e diretor

da Votorantim Novos Negócios; Jan Hoeijmakers, da Universidade Erasmus, em Roterdã, estudioso das bases moleculares do envelhecimento; Robin Buell, biólogo da Universidade Estadual de Michigan; e Wen-Hsiung Li, da Universidade de Chicago. O segundo ciclo, “As ciências do século XX e as novas fronteiras do conhecimento no século XXI”, trará nomes como dos neurocientistas Miguel Nicolelis, Esper Cavalheiro e Sidarta Ribeiro, os físicos José Fernando Perez e Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP, o parasitologista Luiz Hildebrando Pereira, o botânico Carlos Joly, a arqueóloga Niéde Guidon, o psiquiatra Mario Costa Pereira, o jornalista e sociólogo Muniz Sodré e o meteorologista Carlos Nobre. Após o encerramento da Revolução genômica, o Instituto Sangari promete trazer ao pavilhão do Parque do Ibirapuera novas atrações do Museu de História Natural de Nova York, como as exibições sobre Albert Einstein, Água (atualmente em cartaz nos Estados Unidos) e Dinossauros. ■

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BIOTECNOLOGIA

Sementes da

discórdia

EDUARDO CESAR

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ma semana depois de o Conselho Nacional de Biossegurança ter confirmado, pela primeira vez no país, a comercialização de duas variedades de milho transgênico, o médico e bioquímico Walter Colli foi reconduzido à presidência da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) para um mandato de mais 2 anos. A comercialização das duas variedades de milho – a MON810 e a Bayer LL – produzidas pela Monsanto e pela Bayer, respectivamente, já tinha sido autorizada pela CTNBio no ano passado. Mas essa decisão foi questionada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e teve que ser confirmada pelo conselho formado por 11 ministros e seus representantes. “Do ponto de vista técnico, as decisões da CTNBio são terminativas, desde a produção até a comercialização de organismos geneticamente modificados. O Conselho de Ministros avalia questões econômicas, sociais e políticas e é uma instância de julgamento de recursos”, explica Colli. Colli foi reconduzido ao cargo pelo ministro da Ciência e Tecnologia, Sérgio Rezende, tendo sido escolhido a partir de uma lista tríplice indicada por votação pelos demais membros da comissão. Recebeu 18 votos dos 22 membros presentes. “Vamos continuar atuando da mesma forma que no ano passado. Há muita coisa acumulada, entre pedidos de pesquisa e de liberação comercial”, afirmou. Colli é assessor da FAPESP e integra o conselho editorial da revista Pesquisa FAPESP. A vice-presidência ficará com o cientista Edílson Paiva, pesquisador da Embrapa de Sete Lagoas, Minas Gerais. No Conselho de Ministros, a liberação comercial do milho transgênico teve quatro votos contrários dos represen-

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tantes dos ministérios do Meio Ambiente, Desenvolvimento Agrário, Saúde e da Secretaria de Aqüicultura e Pesca, que recomendavam a realização de novos estudos sobre o impacto desses produtos. “O Ministério da Saúde não é contra os transgênicos”, sublinha o secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos da pasta, Reinaldo Guimarães. Pondera, no entanto, que nas propostas de comercialização de qualquer produto – transgênico ou não – há forte interesse das empresas. “Nesse caso específico, a CTNBio considerou o dossiê preparado pelas empresas como evidência para a sua liberação comercial. A Anvisa entende que isso não é evidência e o ministério entende que a posição correta deveria ser a de cautela e prevenção.” Para Guimarães, posições políticas e ideológicas distintas “envenenaram” a CTNBio, polarizando os debates. “De um lado, está o grupo que se coloca contra os transgênicos e, de outro, pesquisadores eminentes, com uma posição excessivamente liberal em relação à liberação comercial dos transgênicos”, afirmou. Para ele, é preciso haver uma posição de equilíbrio que permita o diálogo entre as partes. Contestação - Colli refuta essa análise. “A polarização não foi a maioria que criou. Aliás, essa divisão está em outras instâncias. Basta ver que na reunião de ministros houve sete votos a favor da decisão da CTNBio e quatro contrários. Isso mostra que até o governo está dividido.” Ele argumenta que as liberações comerciais seguem um rito: avaliar vários pareceres ad hoc solicitados a cientistas da área, a depender do caso, entre quatro e oito membros da CTNBio. A Comissão, sublinha, tem tomado as decisões por maioria, em geral, de 16 a 18 votos contra 4 ou 5. “É difícil aceitar a insinuação de que essa maioria está

Conselho de Ministros confirma liberação comercial de milho transgênico

atendendo a interesses das empresas da mesma forma que não acredito que o Ministério da Saúde, por exemplo, aprova medicamentos para uso da população levando em conta o interesse das empresas, em geral, multinacionais.” Colli diz compreender as reações contrárias das organizações não-governamentais (ONGs) à liberação comercial de transgênicos como “um certo saudosismo”. “A legislação anterior deixava uma brecha para a constestação. Hoje, a única instância superior é o Conselho de Ministros que avalia aspectos econômicos, sociais e políticos e julga recursos”, explica. Mas “estranha” o voto contrário da Saúde no Conselho Nacional de Biossegurança. “O ministro tem afirmado que quer introduzir conteúdos de tecnologia nos insumos de saúde. E quando se fala de alta tecnologia, está se falando de transgênicos que deveriam por lei ser submetidos à CTNBio.” Sublinha que a decisão de liberar a comercialização das duas variedades de milho foi tomada após exaustiva análise de risco. “Os riscos são os mesmos do milho híbrido convencional. São tão pequenos, talvez iguais ao de se tomar uma aspirina e certamente menores do que os riscos de muitos medicamentos liberados para comercialização pelo órgão responsável.” A polêmica continua. Menos de 10 dias depois da reunião dos ministros, a Anvisa ingressou com um novo recurso no Conselho Nacional de Biossegurança, agora contra a liberação comercial de uma variedade de milho transgênico produzido pela Syngenta, já concedida pela CTNBio, argumentando que não foram apresentados estudos toxicológicos que comprovassem a sua segurança. Colli rebate: “O milho da Syngenta é cópia do milho da Monsanto”. ■

C L AU D I A I Z I Q U E

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> CONVÊNIO

Ruptura de padrões

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FAPESP e a Braskem – a 11ª petroquímica mundial pelo critério do valor da empresa, depois da conclusão da aquisição da Ipiranga – firmaram convênio de cooperação para o desenvolvimento de pesquisas em biopolímeros. Os investimentos, de R$ 50 milhões ao longo de 5 anos, serão divididos entre os dois parceiros. O acordo é parte da estratégia da Fundação de apoiar pesquisas aplicadas desenvolvidas conjuntamente por empresas e institutos de pesquisa, no âmbito do Programa Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite). “O objetivo é apoiar projetos de pesquisa exploratória com potencial de criar tecnologia de ruptura, na fronteira do conhecimento”, explicou o diretor científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz, deixando claro não se tratar de inovações incrementais. Para a Braskem, a parceria se alinha à estratégia da empresa de ampliar a sua competitividade por meio da adoção de novas tecnologias e da inovação. “Não podemos ter entraves por restrição tecnológica”, afirmou o presidente da Braskem, José Carlos Grubisich. “Por isso, vamos investir em projetos de ruptura nas áreas de nanotecnologia e de biopolímeros”, completou. A empresa tem 18 indústrias espalhadas pelo país e é pioneira na área de polímeros verdes. Em 2007 lançou o primeiro polietileno certificado que tem como matéria-prima o etanol de cana-de-açúcar. Além do etanol, a companhia desenvolve pesquisas na rota da biomassa que já resultaram no depósito de cinco patentes. “Investimos R$ 300 milhões em pesquisa e desenvolvimento (P&D) e na instalação de modernos laboratórios de pesquisa”, enfatiza Grubisich. Essa tradição da empresa de investir em pesquisa “agilizou” a tramitação do convênio. “Quando a empresa tem pesquisa, é mais fácil por-

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FAPESP e Braskem vão investir R$ 50 milhões em polímeros verdes

Da esquerda para a direita: Brito, Vogt, Goldman, Serra, Lafer e Grubisich

que ela sabe falar a linguagem da ciência e tecnologia”, comentou Brito. O convênio foi assinado no dia 27 de fevereiro, na sede da Fundação, em cerimônia em que também estiveram presentes o governador José Serra; o secretário de Desenvolvimento e vicegovernador, Alberto Goldman; o secretário de Ensino Superior, Carlos Vogt; o presidente da FAPESP, Celso Lafer; o diretor-presidente da Fundação, Ricardo Brentani, entre outros. “Precisamos aumentar a vantagem do estado de São Paulo em nível internacional”, disse o governador. “Por isso o programa tem o aplauso do governo do estado.” A primeira chamada pública, cujo prazo se encerra no dia 22 de abril, selecionará projetos relacionados a pesquisas em processos de síntese de intermediários, monômeros e polímeros a partir de matérias-primas renováveis (açúcares, etanol, biomassa, entre outras) e investigação das propriedades físico-químicas desses polímeros verdes que permitam sua utilização em diferentes aplicações. A seleção dos projetos será feita em duas fases. Na primeira, o Comitê Gestor da Cooperação, forma-

do por representantes da FAPESP e da Braskem, vai analisar as propostas entregues e selecionar aquelas que, numa segunda fase, terão o seu mérito analisado de acordo com as normas usualmente adotadas pela Fundação. Outros convênios -A Fundação já mantém convênios semelhantes com a Microsoft Research, Dedini, Padtec, Telefônica, Oxiteno, Digital Assets, Instituto Fleury, Imprimatur e Ouro Fino Saúde Animal. No dia 18 de fevereiro firmou parceria também com as empresas Ci&T Software e DigitalAssets, num total de R$ 3,6 milhões – também divididos entre a FAPESP e as duas empresas – destinados a apoiar pesquisas aplicadas nas áreas de tecnologia da informação, engenharia de softwares, psicologia e administração de empresas. O prazo para o encaminhamento das propostas se encerra no dia 14 de abril. A chamada pública abrange algumas linhas de pesquisa, como tecnologia, padrões e frameworks emergentes em web 2.0, usabilidade de aplicações web, reúso de softwares, entre outras. Mais informações: www.fapesp.br ■ PESQUISA FAPESP 145

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R EVO LUÇÃO GENÔMICA programação cultural | organização PESQUISA FAPESP Genômica: modelando a biologia do século XXI

As ciências do século XX e as novas fronteiras do conhecimento no século XXI

NILES ELDREDGE

MIGUEL NICOLELIS

01/03, sábado, às 15:00

11/03, terça-feira, às 17:00

(Paleontólogo, é um dos curadores do Museu de História Natural de Nova York desde 1969)

(Neurocientista da Universidade Duke, Estados Unidos, e criador do Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra)

> Biodiversidade e a sexta extinção OLIVER SMITHIES

> Genes, circuitos e comportamentos: navegando na fronteira da neurociência

09/03, domingo, às 11:00 (Geneticista da Universidade da Carolina do Norte, Estados Unidos. Ganhou o Nobel de Fisiologia e Medicina em 2007, com Mario Capecchi e sir Martin Evans)

> A experiência de ser geneticista durante 60 anos ALAN TEMPLETON

ESPER ABRÃO CAVALHEIRO

01/04, terça-feira, às 17:00 (Neurocientista, é assessor do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, CGEE. Foi presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq)

> Tecnologias convergentes e a construção do novo homem

29/03, sábado, às 15:00, e 30/03, domingo, às 11:00 (Pesquisador da Universidade de Michigan, Estados Unidos)

> A evolução humana nos últimos 2 milhões de anos: genes (sábado) > Usando a biologia evolutiva para estudar doenças arteriais coronarianas (domingo) JANE GITSCHIER

06/04, domingo, às 11:00

DEBATE

CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ (SEGUNDO NOME A CONFIRMAR)

08/04, terça-feira, às 17:00 (Físico, diretor científico da FAPESP. Foi reitor da Unicamp entre 2002 e 2005)

> O avanço da ciência faz a humanidade melhor? Por quê?

(Pesquisadora da Universidade da Califórnia em São Francisco e Instituto Médico Howard Hughes)

JOSÉ FERNANDO PEREZ

> Usando a genética para desvendar o segredo de uma característica da percepção – o ouvido absoluto

(Físico, presidente da Recepta Biopharma, ex-diretor científico da FAPESP e articulador dos projetos pioneiros em genômica no Brasil)

FERNANDO REINACH

13/04, domingo, às 11:00 (Pesquisador em bioquímica e biologia molecular da USP e diretor executivo da Votorantim Novos Negócios. Foi um dos coordenadores do Projeto Genoma da Xylella fastidiosa)

> Impactos da genômica na agricultura brasileira

15/04, terça-feira, às 17:00

> Samba, futebol e genômica – a saga do Projeto Genoma brasileiro LUIZ HILDEBRANDO PEREIRA

22/04, terça-feira, às 17:00 (Parasitologista, criou e dirige o Instituto de Pesquisa em Patologias Tropicais em Rondônia)

> Revolução genômica e saúde pública CARLOS JOLY

29/04, terça-feira, às 17:00 As vagas para assistir às apresentações são limitadas e as inscrições devem ser feitas pelo telefone (11) 3468 7400.

(Biólogo, pesquisador da Unicamp. Foi o idealizador e primeiro coordenador do Programa Biota-FAPESP)

> O Programa Biota-FAPESP: uma referência para estudos de biodiversidade

Outras apresentações e debates que vão ocorrer de março a julho serão divulgados no site de Pesquisa FAPESP: www.revistapesquisa.fapesp.br A íntegra das palestras também estará disponível no site.

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AMBIENTE

Exclusiva do Cerrado: a bandoleta ou Cypsnagra hirundinacea, em perigo de extinção

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BIODIVERSIDADE

Os falcões

do Cerrado C A R LO S F I O R AVA N T I F O TO S J O S É C A R LO S M O T TA

JR.

Descampado exibe riqueza biológica inesperada

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ma paisagem que parece um vasto pasto abandonado, com uma árvore aqui, outra ali, perseguida pelo sol ardente do interior paulista, emerge como uma notável reserva de aves a céu aberto. O Cerrado da Estação Ecológica de Itirapina, a 230 quilômetros da capital paulista, abriga 231 espécies de aves, entre elas delicados pássaros que cabem na palma da mão, a gralha-do-cerrado, 17 espécies de gaviões e falcões e sete de corujas, predadores do topo da cadeia alimentar como se fossem leões alados, e a ema, a maior ave brasileira, de até 1,80 metro de altura. Nos 23 quilômetros quadrados desse descampado – uma área equivalente a 1% do Distrito Federal, o coração do Cerrado brasileiro – vive uma em cada três espécies exclusivas do Cerrado, 27% do total de espécies encontradas nesse tipo de ambiente e 30% das registradas em todo o estado de São Paulo. Nem os biólogos esperavam encontrar tamanha diversidade biológica em uma vegetação antes desvalorizada por representar as formas mais peladas do Cerrado paulista – o campo limpo, raro especialmente em São Paulo, coberto por um solo arenoso em que nada mais cresce a não ser insistentes plantas rasteiras, e o campo sujo, apenas com arbustos em meio ao tapete verde. Como explicar? José Carlos Motta Jr., professor da Universidade de São Paulo (USP), conta que justamente por se tratar de um espaço aberto é que nasce, cresce e se esconde por ali tamanha variedade de seres alados, muitos na lista de ameaçados de extinção no estado de São Paulo. Quem tiver mais paciência pode ver também alguma das 33 espécies migratórias já identificadas, a exemplo da rara águia-pescadora (Pandion haliaetus), que vem do sul dos Estados Unidos. Muitas outras podem nunca ser vistas se o próprio Cerrado desaparecer, como alertaram dois especialistas em aves, Edwin O’Neill Willis e Roberto Cavalcanti, há quase duas décadas. Motta Jr., que começou aos 13 anos de idade a sair à noite para ver e ouvir as corujas das matas e cerrados daquela região, fez parte da equipe de quase 30 biólogos da USP, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e do Instituto

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composição e integraButantan que passaram ção dos blocos das madias e noites atrás do tas próximas aos rios é pulsar da vida no céu, uma das recomendanos buracos do solo ou ções que os pesquisaem árvores mortas do dores pretendem entreCerrado de Itirapina. O gar em breve à diretoria censo da vida selvagem da estação ecológica que toma forma agora, como forma de zelar depois de 10 anos de traainda mais pelo espaço balho, revela também natural do tamanduáespécies e fenômenos bandeira (Myrmeconovos. É o caso do ratophaga tridactyla), da de-espinho (Clyomys onça-parda (Puma conbishopi), roedor de 20 color) e da lontra (Loncentímetros (sem o ratra longicaudis). Eles bo) exclusivo do Cerrasugerem maior fiscalido paulista que cava zação contra os caçadotúneis interligados a res e a invasão de gado, meio metro da superfícujas fezes propagam cie. Vivendo em colôsementes de capins innias, os ratos-de-espiA ema (Rhea americana), maior ave brasileira: às vezes em bandos vasores, e mais atenção nho são possíveis espéà eliminação das árvocies-chave. O biólogo res exóticas, especialRoberto Guilherme Tromente os pinheiros, que invadem a campo aberto onde vivem algumas aves vati verificou que esses animais armaestação e crescem a partir de sementes que não aceitam outros espaços, mas de zenam e espalham frutos e sementes, trazidas pelo vento dos reflorestamenmanter os dois ambientes, porque são eles próprios servem de alimento para tos vizinhos. “Os pinheiros já avançaigualmente importantes.” Os biólogos outros animais e constroem abrigos ram bastante sobre outras áreas de desse grupo verificaram que o desmaque acolhem lagartos, cobras e sapos. preservação do Cerrado em São Pautamento prejudica a maioria das espéTambém saíram da toca conclusões lo”, observa Motta Jr. cies de animais, a exemplo da rã Leptoque podem ser úteis para rever ou fordactylus furnarius, que praticamente só talecer as estratégias de conservação da Tempos atrás, com base nas inforvive em Cerrado preservado, mas ouvegetação natural. “Perdemos o romanmações e conclusões dos levantamentras podem até se dar bem com o destismo de achar que poderia existir uma tos de campo, a administração da estamatamento, como a cascavel e a corujasolução única para preservar todos os ção e os pesquisadores decidiram em buraqueira, que se espalham e se reprogrupos de animais”, diz Márcio Marconjunto pela desativação de estradas duzem facilmente em áreas abertas. tins, professor do Instituto de Biociêninternas, em benefício da diversidade cias da USP e coordenador da equipe. biológica. Quando precisava de argu“Não se trata mais de escolher entre as mentos para batalhar pela anexação de Capins e caçadores - Os levantamenlagoas lotadas de sapos endêmicos ou o uma área vizinha de 150 hectares de tos evidenciam a delicada situação campo cerrado que pertencia ao estado, dessa área do Cerrado paulista cercada a bióloga Denise Zanchetta, ex-admipor fazendas e cidades, uma das pounistradora da estação, não hesitou em cas do país a preservar os campos limchamar os biólogos de São Paulo que pos. Em outros trechos espraiam-se andavam por lá. “Trabalhar em conjunárvores tortuosas e de cascas grossas to e tomar decisões que beneficiem a que resistem a incêndios freqüentes – é todos foi uma experiência muito rica e o campo cerrado, com árvores como fácil”, diz ela. “Na maioria das vezes há pequizeiro (Caryocar brasiliense), cujo um vácuo. O pesquisador vem e vai emfruto os moradores do Centro-Oeste bora sem deixar nada e o administrador adicionam ao arroz, e a gabirobeira é visto somente como quem vai entra(Campomanesia adamantium), cujos Raridade: o caboclinho-frade var o trabalho científico.” frutos rendiam doces e geléias. Nor(Sporophila malmente as matas que contornam os Por ali tudo parece calmo, mas é bouvreuil rios cobrem de 10% a 15% da área de um come-come irrefreável mesmo enpileata), Cerrado no Brasil, mas em Itirapina tre os representantes do alto da cadeia criticamente não chegam a 5%; e justamente nelas alimentar: um gavião grande pode em perigo é que vive boa parte das aves e a maioatacar uma coruja e uma coruja grande extinção ria dos anfíbios, além dos anfíbios que de pode comer um gavião pequeno. só se reproduzem nessas matas. A reMotta Jr. conta que uma vez assistiu a 50

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um caburé, a menor coruja brasileira, de cerca de 60 gramas (menos que um sabiá), pegando um pássaro, a tesourinha (Tyrannus savana), de 30 gramas. Mas convém não olhar só para o alto, porque as cobras por lá também são muitas. Martins, Ricardo Sawaya, biólogo do Butantan, e os demais integrantes da equipe que estudava répteis pediram aos moradores das fazendas próximas para guardarem as serpentes que encontravam nas plantações, nas pastagens e nas casas – e antes, claro, matavam. A maioria das 35 espécies vistas na reserva vivia também nas fazendas, numa indicação de que suportavam variações acentuadas de temperatura, umidade e vegetação. Só três, menos flexíveis – uma jararaca (Bothrops itapetiningae), uma falsacoral (Oxyrhopus rhombifer) e a nariguda (Lystrophys nattereri) –, viviam apenas no Cerrado preservado. Outras vezes, enquanto a equipe das aves saía atrás de bolotas de fezes, por meio das quais descobriam de que os animais se alimentavam, o grupo dos répteis abria a barriga de cobras

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OS PROJETOS História natural, ecologia e evolução de vertebrados brasileiros

MODALIDADE

Ecologia de comunidades de vertebrados terrestres em Cerrados e áreas alteradas na região de Itirapina, SP MODALIDADE

Projeto Temático COORDENADOR

MÁRCIO MARTINS – IB/USP INVESTIMENTO

R$ 815.289,80 (FAPESP)

mortas para saber o quanto comiam de sapos, lagartos e roedores. Em um dos estudos, Felipe Spina fez 900 cobras de 20 centímetros com massinha de modelar (300 com listras vermelhas, brancas e pretas intercaladas, representando as corais, as serpentes mais coloridas do mundo, 300 com listras inclinadas e outras 300 inteiramente marrons) para verificar se gaviões e corujas deixavam de atacar as cobras de massi-

Papa-mosca-canela ou Polystictus pectoralis: também criticamente em perigo

Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa COORDENADOR

MÁRCIO MARTINS – IB/USP INVESTIMENTO

R$ 4.8954,88 (CNPq)

nha com cores intensas, que representariam as espécies venenosas e seus imitadores fidedignos. Sim, evitam – e preferem as marrons, que re-presentavam as não-venenosas. Uma das conclusões desse trabalho é que no Cerrado, como já havia sido verificado em florestas tropicais da América Central, uma forma de ganhar alguns meses de vida é parecer venenoso: mesmo uma semelhança superficial com uma coral-verdadeira (venenosa) já afasta predadores. Gaviões, corujas, gralhas e garças não distinguem as cobras corais falsas (nãovenenosas) das verdadeiras, já que ambas são coloridas. Na dúvida sobre qual seria realmente venenosa – o risco de errar pode significar a morte –, os predadores vão procurar outro alimento. Assim, as corais verdadeiras, ainda que raras em Itirapina, beneficiam todas as outras coloridas. “É um altruísmo involuntário”, comenta Martins. Os biólogos descobriram também os preconceitos que acompanham algumas espécies, como o lobo-guará (Chrysocyon brachyurus). O único lobo do Brasil alimenta-se principalmente de frutas e ratos, às vezes uma perdiz, mas os moradores da região acreditam que ele adora galinhas e outros animais domésticos. Não é verdade. De acordo com um levantamento dos pesquisadores, o guará ataca uma galinha para cada 50 a 70 ratos que consome. “Se os moradores cercarem os galinheiros ou deixarem um cachorro por perto, o lobo-guará vai embora”, sugere Motta Jr. “Ele não é como o lobo-cinzento norte-americano, que pode comer até o cachorro.” ■ PESQUISA FAPESP 145

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Camaleões mudam de cor, mas não pelo motivo que se imagina. Depois de analisar coloração e comportamento de várias espécies do camaleão-anão (Bradypodion), no sul da África, os zoólogos australianos Devi Stuart-Fox e Adnan Moussalli concluíram que esses répteis não mudam de cor para se ocultar e escapar de predadores, mas para impressionar o sexo oposto e afugentar rivais. Os pesquisadores mediram o contraste entre as cores exibidas pelos camaleões e as do ambiente em que se encontravam. Viram mais mudança de cor em situações de confronto social do que diante de um predador. Machos se tornam vistosos quando querem atrair fêmeas e apagados quando as pretendidas não se interessam ou rivais se impõem. Já elas ficam com cores mais intensas para avisar a um pretendente que se afaste. As espécies estudadas muitas vezes se misturam ao ambiente, mas para Devi e Moussalli não foi esse o motor da seleção natural que levou à capacidade de mudar de cor em uma fração de segundo (PloS Biology).

Traje de gala: fêmea (verde) espia macho

> Haja coração! Quem se exalta durante um jogo de futebol já desconfiava, mas agora está confirmado: o esporte pode fazer mal à saúde. Uma equipe da Universidade de Munique coordenada pela médica alemã Ute Wilbert-Lampen fez um levantamento dos problemas cardíacos registrados em hospitais de Munique durante a última Copa do Mundo, realizada em 2006 na Alemanha. Os pesquisadores compararam o número de casos de infartos, queixas de dores no peito e arritmias em dias de jogos da seleção anfitriã com os registrados em dias sem jogos e em anos anteriores. Verificaram que torcer pela seleção nacional deixa os alemães com o coração em frangalhos: mais do que triplicaram os casos de problemas cardiovasculares 52

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entre os homens. Como no Brasil, menos alemãs sofrem com o futebol: houve um aumento de 1,8 vez na incidência de problemas cardíacos. Uma vitória suada contra a Argentina e uma derrota dramática para a Itália causaram recordes de hospitalização, deixando claro que o importante não é o resultado, mas a aflição

SAÚDE COM SABOR

da torcida. Alerta para quem sofre do coração: tome seus remédios antes do jogo. Ou vire fã de golfe.

> Mares poluídos de norte a sul Praticamente não há mais 1 quilômetro quadrado de oceano que não sinta

A carência de selênio no organismo aumenta o risco de problemas de saúde como câncer e infertilidade masculina. Um estudo neozelandês indica que, em termos de fonte desse nutriente, os brasileiros estão bem servidos: a castanha-do-pará é o alimento mais rico em selênio de que se tem notícia. Todos os dias, por 12 semanas, cada grupo de voluntários consumiu, respectivamente, duas castanhas-do-pará, um suplemento com 100 microgramas de selênio ou um comprimido inócuo (placebo). Ao fim dos testes, os grupos que consumiram castanhas ou suplemento de selênio tinham mais selênio no sangue e maior atividade de uma proteína que depende desse elemento químico para funcionar (American Journal of Clinical Nutrition). Comer castanhas produziu resultados ligeiramente melhores, embora elas contivessem menos selênio do que o suplemento.

ADNAN MOUSSALLI E DEVI STUART-FOX

LABORATÓRIO MUNDO

OLHE PARA MIM

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os efeitos da presença humana no planeta. Uma equipe internacional de pesquisadores coordenada por Benjamin Halpern, do Centro Nacional de Análise e Síntese Ecológica dos Estados Unidos, analisou as conseqüências da pesca, da poluição e das alterações climáticas sobre os mares do globo. O grupo constatou

Castanha-do-pará: fonte natural de selênio

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MIGUEL BOYAYAN

somam todos os tipos de impacto individual, surge um quadro geral que parece muito pior do que a maioria das pessoas imagina. Foi uma surpresa para mim.”

LAURABEATRIZ

que apenas 4% das águas dos oceanos permanecem em estado considerado bem conservado. Mas as atividades humanas já causaram um forte impacto sobre 40% dos mares (Science). As águas do Caribe oriental, do mar do Norte na Europa e em torno do Japão e parte da Austrália são as mais afetadas pelas atividades humanas. O gelado ambiente marinho que circunda os pólos é o mais bem preservado. Ao longo da costa brasileira, a degradação dos oceanos se situa entre o grau médio e o médio alto. “Esse projeto nos permite finalmente começar a ver como o ser humano está afetando os oceanos”, diz Halpern. “Nossos resultados mostram que, quando se

bons músicos profissionais conseguem repetir. Os físicos Jer Ming Chen, John Smith e Joe Wolfe, da Universidade de Nova Gales do Sul, na Austrália, descobriram por quê. Eles desenvolveram um equipamento que, acoplado

(cinco profissionais e três amadores) e constataram que o trato vocal não influencia muito as notas graves. Observaram, porém, que os saxofonistas profissionais usavam seu aparelho vocal para produzir as notas muito agudas, situadas numa faixa chamada altíssima, que não eram tocadas pelos amadores. Com esses resultados, publicados na Science, os físicos esperam ter colocado um ponto final a duas décadas e meia de discussões sobre a interferência do aparelho vocal para tocar instrumentos de sopro. Agora eles pretendem repetir os testes com clarinetas e outros instrumentos. Esperam encontrar resultados semelhantes.

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MARI TEFRE/GLOBAL CROP DIVERSITY TRUST

BANCO POLAR DE SEMENTES

A Noruega fez uma espécie de seguro das lavouras do mundo. Cem países já depositaram sementes em lugar bem protegido, o Domo Global de Sementes Svalbard, inaugurado no final de fevereiro. Para chegar até lá a viagem é longa. Primeiro é preciso desembarcar no aeroporto de Svalbard, arquipélago quase mil quilômetros ao norte da Noruega, o ponto mais ao norte da Europa aonde chegam vôos comerciais. Depois seguir por Teto do banco global de sementes emerge do gelo em Svalbard uma estrada onde placas alertam para o risco de encontrar um ursoao bocal dos instrumentos polar, até chegar à minúscula e gélida Longyearbyen, onde > Não basta vivem cerca de 1.800 pessoas e o sol não dá as caras durante de sopro, permite medir soprar quase 4 meses do ano. Ali, numa encosta de rochas permacomo a boca, a mandíbula, nentemente congeladas, uma imensa caverna escavada na O saxofonista nortea língua, a glote, a faringe pedra já recebeu 100 milhões de sementes. Esse banco polar americano John Coltrane e a laringe influenciam tem capacidade de abrigar, a -18ºC, até 2 bilhões de sementes recheava suas melodias a produção do som. das mais variadas espécies de plantas cultivadas para o conde jazz com notas agudas Analisaram melodias sumo humano, que talvez assim sejam salvas da extinção. e cortantes, que apenas tocadas por oito saxofonistas

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LABORATÓRIO BRASIL

O canto do pula-pula-assobiador CANTADAS COM (Basileuterus leucoblepharus) não DESTINO CERTO é um trinado qualquer. Reproduzindo gravações naturais experimentalmente modificadas de cantos do pula-pula na floresta, pesquisadores franceses e brasileiros decifraram recentemente a complexa comunicação dessa ave que habita a Mata Atlântica. Cada parte de seu repertório tem características acústicas que se propagam de maneira diferente e por isso transmitem informações específicas. Notas que identificam a espécie do cantador, uma informação pública, atingem uma ampla área da floresta. Já a estrofe que identifica o indivíduo é reservada a vizinhos e não chega tão longe, constatou a equipe, formada por grupos da Universidade Estadual de Campinas, da Universidade Federal do Pará e da Universidade de São Paulo. Modulações acústicas permitem também que um pula-pula, ao ouvir um chamado, localize seu interlocutor (PloS One). Segundo os autores do estudo, o canto dessa espécie é um exemplo de adaptação evolutiva a um ambiente como a Mata Atlântica, em que a floresta fechada impõe desafios à comunicação.

Pula-pula: trechos da melodia identificam o cantor

as folhagens Jean-Philippe Boubli embrenha-se na Amazônia desde 1991 em busca dos discretos uacaris-pretos (Cacajao melanocephalus). Desde o início, quando morava na floresta, o antropólogo brasileiro sempre teve de contar com a ajuda de índios locais para encontrar grupos desse macaco no alto das árvores – ou, para seu desgosto, ver seu objeto de pesquisa virar almoço da tribo. Essa colaboração acaba de mostrar como ainda há muito a descobrir sobre a Floresta Amazônica. Os índios sempre conheceram mais de um tipo de uacari-preto, mas para primatólogos a novidade será apresentada no International Journal of Primatology. Agora professor na Universidade de 54

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Auckland, na Nova Zelândia, Boubli e alguns colegas acabam de descrever um novo uacari-preto: Cacajao ayresi, que vive às margens do rio Aracá, um afluente do rio Negro. O nome homenageia o primatólogo José Márcio Ayres, pioneiro no estudo dos uacaris e criador das reservas de Mamirauá e Amanã, ÍTALO MOURTHÉ/UFMG

> Surpresa entre

no Amazonas. Boubli espera que a descoberta inspire a criação de uma reserva que proteja a nova espécie primata com a participação dos ribeirinhos. No artigo em que descreve o C. ayresi, o pesquisador também defende que o que se acreditava ser uma subespécie de C. melanocephalus do Pico da Neblina é, na verdade, uma terceira espécie, agora batizada com o nome que os ianomâmis dão para esses macacos: C. hosomi.

> Sensibilidade e resistência

Timidez vencida: uacari descoberto na Amazônia

O risco de câncer de mama ou ovário aumenta muito quando uma mutação inativa o gene BRCA2, responsável por fazer reparos no material genético

REPRODUÇÃO DO LIVRO AVES BRASILEIRAS E AS PLANTAS QUE AS ATRAEM

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das células. Uma colaboração entre o pesquisador britânico Alan Ashworth e o patologista brasileiro Jorge Reis-Filho, ambos do Centro Breakthrough de Pesquisa em Câncer de Mama, em Londres, demonstrou que uma outra alteração nesse mesmo gene torna o tumor resistente aos medicamentos usados para combatê-lo, como a carboplatina e os inibidores de PARP. A carboplatina causa uma segunda mutação no BRCA2, tornando-o novamente ativo. O gene passa a consertar os danos causados naturalmente no material genético e aqueles provocados pela quimioterapia. “É irônico que o mesmo mecanismo que causa sensibilidade à medicação também provoque a resistência

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ELLIOT W. KITAJIMA/USP

UMA PROTEÍNA VERSÁTIL

A bactéria Xylella fastidiosa, que causa nos citros uma doença conhecida como amarelinho, usa para se defender a própria arma com que a planta tenta atacá-la: a proteína hidroxinitrila liase. As laranjeiras se valem dessa proteína para fabricar o ácido cianídrico, substância tóxica contra microorganismos invasores. Já a Xylella usa essa proteína possivelmente para reverter a síntese do ácido cianídrico que enconXylella no interior de vasos de planta tra ao invadir laranjeiras, limoeiros ou pés de tangerina, constatou Célia Sulzbacher Caruso, da Universidade de São Paulo em São Carlos. Essa descoberta explica por que o amarelinho também pode resistir aos pesticidas à base de precursores do ácido cianídrico. “Com os próximos estudos voltados para o bloqueio do gene da Xylella responsável pela produção dessa proteína, poderemos chegar a uma alternativa para erradicar a bactéria”, comenta Célia, que acredita que possam existir moléculas capazes de inibir a ação da hidroxinitrila.

> Pterossauro

sobre esta página, causou surpresa. Nemicolopterus crypticus, nome que significa habitante oculto das florestas, viveu em florestas primitivas que existiam onde hoje é o nordeste da China. O fóssil de N. crypticus, descrito recentemente por

chinês Por volta de 120 milhões de anos atrás, pequenos répteis empoleirados no alto das árvores espreitavam insetos. Descobrir um pterossauro que, de asas abertas, caberia

JOTAFREITAS/BAHIATURSA

ao tratamento”, comenta Reis-Filho, que publicou a descoberta em fevereiro na Nature. Reis-Filho e Ashworth identificaram esses efeitos primeiro em cultura de células em laboratório e depois em tecido extraído de portadoras de câncer ovariano. O achado pode abrir o caminho para vencer a resistência desses tumores aos medicamentos e ajudar a prever qual tratamento será mais eficaz para cada paciente.

Epidemia histórica: dengue se espalhou por Salvador

pesquisadores chineses e brasileiros na revista PNAS, está quase completo e permite observar, além do tamanho reduzido de um animal adulto, dedos curvos jamais vistos em outro pterossauro. Indicam que era capaz de pousar em árvores.

Salvador entrou em alerta em 1995. Casos ONTEM de dengue começavam a se disseminar E AMANHÃ pela cidade, na primeira epidemia da doença na capital baiana. Mais de 10 anos depois, um estudo liderado por Florisneide Barreto, do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia, tenta entender o padrão de dispersão da epidemia passada para evitar o ressurgimento do problema no futuro. A análise dos casos, publicada em fevereiro na revista BMC Public Health, mostra que o epicentro da dispersão do vírus provavelmente foi a península de Itapagipe, na porção oeste da capital baiana. Dali a doença se espalhou praticamente por toda a cidade. A partir desses resultados, os autores ressaltam a importância de criar mecanismos mais eficazes de vigilância e controle da doença. Quando casos são detectados precocemente em seu ponto inicial, é possível traçar estratégias para conter o avanço da epidemia. PESQUISA FAPESP 145

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CIÊNCIA

FARMACOLOGIA

Contra o tempo

E

m apenas 24 horas proteínas comuns no cérebro assumem uma estrutura anômala e se emaranham. Parecem ouriços-do-mar encaixados entre as células cerebrais, que em resposta incham e se retorcem. Uma semana depois essas placas já têm seu tamanho final, flagrado em pacientes com mal de Alzheimer, a causa mais comum de perda de memória e de capacidade intelectual em pessoas com idade avançada. A rapidez surpreendeu os pesquisadores norte-americanos que usaram um microscópio especial – multifotônico – capaz de acompanhar em tempo real a deposição dessas placas em camundongos vivos. As imagens, publicadas em fevereiro na revista Nature, reforçam a idéia de que essa proteína, a amilóide, tem papel central no Alzheimer, mas há controvérsia. Há pessoas que morrem com sintomas de Alzheimer e não têm placas no cérebro, e muitas têm placas no cérebro, mas não desenvolvem a doença.

“Na vizinhança das placas há outros agregados de amilóide, bem menores e solúveis, que não são visíveis pela maioria das técnicas de análise”, explica Sergio Teixeira Ferreira, bioquímico da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ele acredita que são esses os vilões – as placas na verdade indicam um excesso da proteína nos meandros do cérebro. Em busca de desvendar o mistério dessa doença que no mundo gera um novo caso a cada 7 segundos, de acordo com dados de 2005 da Organização Mundial da Saúde, o grupo do farmacologista Cristoforo Scavone, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP), tem esmiuçado a bioquímica do Alzheimer para detectá-lo antes que sintomas se manifestem e, principalmente, encontrar uma forma de contê-lo – até agora a medicina se limita a retardar a perda de cognição.

Foi por isso que Elisa Kawamoto, do grupo de Scavone, se concentrou em investigar como a amilóide altera a bioquímica das células e acaba por matá-las. Com a colaboração de Maria Christina Avellar, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ela descobriu que, em concentração abaixo da tóxica, a amilóide estimula uma proteína, o fator de transcrição kappa B (NF- B), a entrar em ação.

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Equipe identifica como proteína essencial no cérebro causa morte celular no paciente de mal de Alzheimer

MARIA GUIMARÃES F O TO S E D UA R D O C E S A R

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O biólogo norte-americano Mark Mattson, um dos líderes mundiais na pesquisa sobre demência ligada ao envelhecimento, acredita que o NF- B protege o cérebro contra a perda de neurônios que vem com a velhice. Elisa fez parte de seu trabalho no laboratório de Mattson no Instituto Nacional sobre Envelhecimento. Daí saiu uma colaboração produtiva, que ajudou o grupo da USP a mostrar que a relação não é assim tão simples. Em concentrações normais, a proteína induz o cérebro a recrutar substâncias protetoras. Mas no desequilíbrio causado pelo excesso de amilóide o NF- B acaba ativando genes ligados à morte celular. Já se sabia que a amilóide causa danos no cérebro, provocando esquecimentos típicos do Alzheimer como sair de casa e não lembrar o caminho de volta ou deixar de reconhecer parentes próximos. Mas Elisa e Scavone queriam entender mecanismos naturais de resistência contra esses efeitos deletérios. Ela então cultivou em laboratório células cerebrais de ratos, de uma região naturalmente resistente à degeneração por Alzheimer – o cerebelo, centro que controla o equilíbrio e o movimento fino como virar as páginas de uma revista. “Queríamos saber por que o Alzheimer só ataca algumas regiões”, conta Scavone. Ao incubar com amilóide essa cultura composta em 90% por neurônios e só 10% de outras células cerebrais, Elisa demonstrou que a proteína de fato age nos neurônios, as células que transmi-

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tem informação e são minoria no cérebro. A neuróglia, composta por células dez vezes mais abundantes, dá estrutura ao cérebro e não é afetada da mesma forma pela proteína. Os resultados do trabalho do grupo da USP estão na edição deste mês do Journal of Neuroscience Research. “Provar que a ação acontece nos neurônios é um avanço grande para a área”, comemora Scavone. Fechar as portas - Para se comunicar

com o interior das células, a amilóide em volta dos neurônios envia sinais através dos receptores N-metil D-aspartato, ou NMDA. O grupo da USP descobriu o que acontece depois: os receptores ativam o NF- B, que migra para o núcleo das células e ali influencia a atividade genética. Descobrir isso foi essencial porque sugere uma forma de bloquear a via de sinalização, desencadeada pela amilóide, que leva à morte celular: bloquear os receptores. Sergio Ferreira e Fernanda De Felice, ambos da UFRJ, já haviam demonstrado o papel dos receptores em artigo publicado no Journal of Biological Chemistry em 2007. Agora o grupo carioca está na pista de como interferir nessa sinalização. Uma das possibilidades é o aminoácido taurina, que existe em altas concentrações no cérebro jovem – concentração que cai com o envelhecimento e o Alzheimer. Ferreira mostrou, em artigos publicados em 2004 no Faseb Journal e em 2005 na revista Neuropharmacology, que a taurina, presente em bebidas energéticas, protege os neu-

rônios contra a toxicidade da amilóide. “Funciona como um antídoto à ativação dos N-metil D-aspartato”, explica o bioquímico. Seu grupo agora investiga as possibilidades da taurina como arma de combate ao Alzheimer. Em colaboração com o Projeto de Envelhecimento Cerebral da USP, que mantém um banco de cérebros de idosos e cede esse material para pesquisadores associados, o bioquímico da UFRJ está comparando teores de taurina em cérebros de pessoas que morreram com mais de 50 anos de idade, com e sem Alzheimer. Os resultados iniciais mostram uma diferença, mas ainda não é possível afirmar com rigor estatístico. Mas os mecanismos de defesa do cérebro contra a amilóide não se restringem à produção do NF- B. Elisa e Scavone verificaram no cerebelo uma atividade dos genes que produzem o fator neurotrófico derivado do cérebro (BDNF) maior do que o esperado em comparação a outras partes do cérebro. O farmacologista Iván Izquierdo, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), já havia mostrado que essa proteína é essencial para a retenção de memória. O grupo da USP agora reforça sua relação com Alzheimer: eles acreditam que esse potencial de produzir mais dessa proteína da memória é exatamente o que protege as células do cerebelo. Nas regiões do cérebro sensíveis ao Alzheimer, como o hipocampo e o córtex pré-frontal, o NF B inibe a produção do fator neurotrófico. No cerebelo acontece o oposto. “O cerebelo é capaz de produzi-lo por outras vias”, completa Scavone.

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As descobertas favorecem a idéia de que a perda da proteína esteja ligada ao surgimento do Alzheimer. As áreas do cérebro em que o NF- B é mais eficaz em inibir a produção da substância protetora, o córtex pré-frontal e o hipocampo, são responsáveis, respectivamente, por processar comportamentos complexos e pelo armazenamento de memória – capacidades que gradativamente se perdem em pacientes com a doença. Na edição de fevereiro da Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), Izquierdo provou que injetar BDNF no hipocampo é suficiente para devolver a memória a ratos nos quais uma deficiência em produção de proteínas fazia com que as lembranças se perdessem. Mas ainda é cedo para comemorar e procurar comprimidos para memória à base de fator neurotrófico derivado do cérebro. “A proteína tem que ser injetada diretamente no hipocampo, e não se pode fazer isso em seres humanos”, adverte Izquierdo. Além disso, ela age promovendo o crescimento dos pontos de comunicação entre os neurônios – as sinapses. Em doses altas, pode dar origem a tumores. Há no cérebro substâncias que protegem as células e outras que as agridem, mas Scavone e sua equipe acreditam que, por mais que entendam as vias bioquímicas, interrompê-las pode ter efeitos adversos sérios. O NF- B, por exemplo, pode promover ou evitar a morte celular, dependendo da concentração e da região do cérebro em que se encontra. Scavone explica: “Todos os compostos têm efeitos positivos em algumas concentrações e nocivos em outras”. Por isso, Ferreira reforça, é difícil prever o que acontecerá quando se interfere no equilíbrio químico, seja com substâncias naturalmente produzidas no organismo ou externas. Para equilibrar as vias bioquímicas a resposta mais segura parece não estar

em medicamentos que alterem a concentração de proteínas, mas na dieta. A restrição calórica, único procedimento que a ciência já provou prolongar a vida de animais de laboratório, parece desligar genes que disparam processos inflamatórios. Ela também aumenta os teores do fator neurotrófico e a atividade da proteína WNT, que o grupo de Ferreira mostrou, em artigo publicado este ano no Journal of Biological Chemistry, ser inibida por altos teores de amilóide. A WNT é outra dessas substâncias com ação variável: em doses pequenas previne a formação de placas de amilóide e pode dar origem a câncer quando mais abundante. Agora pós-doutoranda no laboratório de Scavone, Elisa testa os efeitos da restrição calórica em ratos submetidos a uma dieta rigorosa: durante um mês, alterna períodos de 24 horas em jejum e 24 horas com comida. Os dados ainda são preliminares – ela só

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O PROJETO 1. Alterações da via glutamatoóxido nítrico na modulação do NF- B pelo peptídeo amilóide 2. Sinalização pela proteína WNT e a neurotoxicidade induzida pelo peptídeo amilóide em cultura de células primárias de neurônios do hipocampo.

MODALIDADE

Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa COORDENADOR

CRISTOFORO SCAVONE – USP INVESTIMENTO

1. R$ 154.040,99 (FAPESP) e R$ 35.000 (CNPq) 2. R$ 153.271,19

testou quatro animais de 4 meses de idade e quatro de 24 meses – mas animadores. Nos ratos mais jovens, que correspondem a adultos humanos por volta dos 30 anos, a restrição calórica reduz a inflamação induzida experimentalmente no hipocampo e aumenta nesse tecido a concentração do fator neurotrófico derivado do cérebro, proteína que protege os neurônios e favorece a formação da memória. Para envelhecer bem - Mas ao menos entre os roedores esse efeito não é sempre benéfico. A restrição calórica nos ratos idosos que não fizeram dieta na juventude causa estresse oxidativo, que junto com processos inflamatórios acaba causando a morte das células cerebrais. Talvez a restrição tenha que ser constante ao longo da vida, ou quem sabe falte encontrar um nível de restrição calórico adequado para idades avançadas. Afinal, dietas rigorosas impõem um estresse fisiológico que pode ser excessivo na velhice. Já em jovens o estresse pode fortalecer o organismo. “É como a história do rei que, por medo de ser envenenado, tomava um pouco de veneno todos os dias”, compara Scavone. Por enquanto parece que, chegada a meia-idade, já não adianta começar uma dieta para evitar a degeneração do cérebro. “É preciso mudar os hábitos alimentares da população”, diz Scavone, que enche de frutas as lancheiras que os filhos levam para a escola. Para ele, medicamentos são o último recurso, não o primeiro. Numa população cada vez mais velha é essencial cuidar da saúde desde a infância. ■ PESQUISA FAPESP 145

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> BIOLOGIA MOLECULAR

O DNA do guaraná

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no órgão da planta usado para fabricar extratos. A estratégia permitiu descobrir que os frutos do guaranazeiro, onde estão as cobiçadas sementes a partir das quais se fazem extratos para a produção de bebidas e outros produtos, expressam 8.597 pedaços de genes durante seu processo de amadurecimento. Entre esses segmentos de genes ativos, tecnicamente denominados etiquetas de seqüência expressa (ESTs, na sigla em inglês), há muitos ligados à síntese de flavonóides, substâncias com potencial antioxidante, e de alcalóides, como a cafeína. Também se destacam genes que parecem ser importantes para as reações da planta em situações de estresse ambiental, como secas, agressão de insetos e reação a microorganismos. Flavonóides antioxidantes - Os da-

dos da Realgene batem, em linhas gerais, com resultados recentes de pesquisas que tentam confirmar propriedades terapêuticas, novas ou antigas, normalmente imputadas ao guaraná. Esse era, aliás, o objetivo central do trabalho de seqüenciamento dos genes expressos, chamado no jargão técnico de transcriptoma, pelo fruto da planta ao longo de seus estágios de desenvolvimento. “Tentamos encontrar alguma base molecular para o que já sabia sobre o guaraná”, explica a pesquisadora Paula Ângelo, da Embrapa Amazônia Ocidental, de Manaus, primeira autora do estudo publicado na Plant Cell Reports. Nesse contexto, faz todo sentido, por exemplo, existir no genoma da espécie amazônica alto nível de expressão de genes que fabricam enzimas relacionadas à síntese de cafeína (99 ESTs detectadas). Afinal, a substância estimulante está presente num teor que varia de 3% a 6% do peso seco das sementes de P. cupana, proporção três vezes maior

MURILO RODRIGUES DE ARRUDA/EMBRAPA AMAZÔNIA OCIDENTAL

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spécie nativa da Região Norte que virou sinônimo de refrigerante tipicamente brasileiro e importante ingrediente de extratos e pós destinados aos mais variados fins, nem todos com comprovação científica, o guaraná começa a ser entendido no que tem de mais íntimo: o DNA. Dois trabalhos recém-publicados em revistas internacionais por membros da Rede da Amazônia Legal de Pesquisa Genômica (Realgene) mostram facetas desconhecidas da biologia molecular dessa planta trepadeira, cultivada há séculos como estimulante por tribos da Amazônia central, como os maués e os andirás, e hoje pelo homem contemporâneo também em outras partes do país, como na Bahia, maior estado produtor de guaraná. O primeiro estudo, que ganhou as páginas do Journal of Plant Research em maio do ano passado, revela a existência de 210 cromossomos na variedade sorbilis da Paullinia cupana, o tipo de guaraná que os pesquisadores analisaram. O número chamou a atenção, ainda mais se comparado ao encontrado em outras sete espécies do gênero Paullinia, todas com 24 cromossomos. “Alguns colegas diziam que o guaraná tinha tantos cromossomos que era praticamente impossível contá-los”, comenta o biólogo molecular Spartaco Astolfi-Filho, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e coordenador da Realgene. Mas, com o apoio de Carlos Roberto de Carvalho, da Universidade Federal de Viçosa (UFV), o biólogo Danival Vieira de Freitas da Ufam, primeiro autor do estudo, logrou tal feito. Embora não seja inédita, a presença de tantos cromossomos em plantas é um evento raro. No artigo, os pesquisadores acreditam que o processo de domesticação do guaraná, levado a cabo pelos primeiros indígenas, pode ter favorecido a seleção de exemplares da planta com muitos cromossomos. Dessa forma, os povos da floresta teriam sido os responsáveis pela criação e propagação da variedade sorbilis da P. culpana, atualmente a mais cultivada no país. O segundo trabalho saiu agora em janeiro na Plant Cell Reports e vai ainda mais fundo no material genético desse cipó amazônico. Em vez de seqüenciar todos os genes do guaraná, uma tarefa difícil devido ao enorme tamanho do genoma da planta, cerca de três vezes maior que o do homem, os pesquisadores optaram por procurar apenas pelos genes ativados

Guaraná: genes importantes para produção de flavonóides

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Com 210 cromossomos, genoma da planta amazônica fornece pistas sobre suas propriedades terapêuticas M A R C O S P I V E T TA

do que a verificada nos próprios grãos de café. A maior surpresa do trabalho talvez tenha sido a identificação de 129 ESTs relacionadas ao metabolismo de flavonóides. Muitos dos eventuais efeitos benéficos à saúde do consumo de chás e de pequenas doses de vinho tinto – proteção contra certos tipos de câncer e inflamações e melhoras no sistema cardiovascular, entre outros – são atribuídos atualmente a esse vastíssimo grupo de compostos naturais, que incluem substâncias como os taninos, as catequinas e as antocianinas. Os artigos publicados representam apenas o início, não o fim, dos esforços da Realgene, que reúne cientistas de mais de uma dezena de universidades e institutos de pesquisa da Amazônia e de outras partes do país. Serviço não falta-

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rá aos membros da rede genômica, cujos trabalhos nos últimos 5 anos contaram com financiamento de R$ 1,5 milhão do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e de R$ 300 mil da Fundação de Amparo à Pesquisa do Amazonas (Fapeam). Eles terão de checar se o guaraná fabrica mesmo e em que nível as proteínas de maior interesse científico ou comercial apontadas no artigo sobre o transcriptoma dos frutos da planta. Também tentarão verificar como é o perfil de ativação de genes em outros tipos de tecidos da P. cupana, sobretudo nas folhas e raízes. “Ao final de nossos estudos, gostaríamos de melhorar ainda mais o status do guaraná como planta medicinal no mundo”, diz o otimista Astolfi-Filho. Tudo isso além de continuar os trabalhos de seqüenciamento para mapear genes expressos em organismos tão diversos como o mosquito Anopheles darlingi, principal transmissor da malária no Brasil, e o camu-camu (Myrciaria dubia), fruta da Amazônia com 60 vezes mais vitamina C do que a laranja e o dobro da acerola. ■

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Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org

Notícias Em fevereiro, novos periódicos foram disponibilizados no portal da Rede Scielo. São eles: Saúde e Sociedade, do Brasil, Estudios de Economía, do Chile, Gaceta Médica de Caracas, da Venezuela, Humanidades Médicas e Revista Cubana de Salud Pública, de Cuba, Motricidade, de Portugal, Quinto Sol, da Argentina, Revista Colombiana de Entomología, da Colômbia, Revista Española de Sanidad Penitenciaria, da Espanha, e Revista Internacional de Contaminación Ambiental, do México.

Pneumologia

Características do fumante O artigo “Características psicológicas associadas ao comportamento de fumar tabaco”, de Regina de Cássia Rondina, da Faculdade de Ciências da Saúde/Associação Cultural e Educacional de Garça, Ricardo Gorayeb, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, e Clóvis Botelho, da Universidade Federal de Mato Grosso, apresenta uma revisão da literatura sobre a psicologia do tabagismo, destacando características de personalidade do fumante como um dos obstáculos à cessação do tabagismo. Descreve-se a relação entre tabagismo e personalidade e, a seguir, a relação do tabagismo com os principais transtornos psiquiátricos. Estudos revelam que os fumantes tendem a ser mais extrovertidos, ansiosos, tensos, impulsivos e com mais traços de neuroticismo e psicoticismo, em comparação a ex-fumantes e nãofumantes. A literatura revela, ainda, forte associação entre tabagismo e transtornos mentais, como esquizofrenia e depressão, entre outros. JORNAL BRASILEIRO DE PNEUMOLOGIA – V. 33 – Nº 5 – SÃO PAULO – SET./OUT. 2007 www.revistapesquisa.fapesp.br/scielo/145/pneumologia.htm

Economia

Agroindústria canavieira A produção e o consumo de açúcar são bastante antigos, assim como as práticas dos países desenvolvidos destinadas a apoiar e proteger seus mercados deste bem, o que se ampliou após a crise de 1929, passando a existir tanto o mer-

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cado livre mundial como os mercados preferenciais. O estudo “Os mercados mundiais de açúcar e a evolução da agroindústria canavieira do Brasil entre 1930 e 1980: do açúcar ao álcool para o mercado interno”, de Pedro Ramos, da Universidade Estadual de Campinas, analisa estas relações com a evolução da agroindústria canavieira do Brasil, mostrando que as exportações alcançaram um novo patamar apenas depois da entrada do nosso açúcar no mercado norteamericano, já que, até então, a produção de açúcar esteve voltada ao consumo interno e a ela esteve associado o mercado de álcool carburante. ECONOMIA APLICADA – V. 11 – Nº 4 – RIBEIRÃO PRETO – OUT./DEZ. 2007 www.revistapesquisa.fapesp.br/scielo/145/economia.htm

Fertilização

Debate sobre embriões Com o advento das técnicas de fertilização in vitro no final da década de 1970, abriu-se um debate mundial sobre o estatuto do embrião produzido em laboratório, assim como sua manipulação experimental na pesquisa científica. O objetivo do artigo “Nas fronteiras do ‘humano’: os debates britânico e brasileiro sobre a pesquisa com embriões”, de Letícia da Nóbrega Cesarino, da University of California, é analisar comparativamente dois desses debates no âmbito dos parlamentos britânico e brasileiro. O primeiro resultou na Human Fertilisation and Embriology Act de 1990, e o segundo, nas disposições da Lei de Biossegurança de 2005 relativas às células-tronco embrionárias. A análise, partindo da literatura antropológica sobre o tema, pretendeu demonstrar não só a abertura das fronteiras do “humano” a uma negociação explicitamente política, como também os principais vetores que vêm conformando tais negociações no caso da pesquisa científica com embriões humanos. MANA – V. 13 – Nº 2 – RIO DE JANEIRO – OUT. 2007 www.revistapesquisa.fapesp.br/scielo/145/fertilizacao.htm

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Saúde

Crianças obesas O trabalho “Excesso de peso de escolares em região do Nordeste brasileiro: contraste entre as redes de ensino pública e privada”, de Lana do Monte Paula Brasil e Hélcio de Sousa Maranhão, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, e Mauro Fisberg, da Universidade Federal de São Paulo, estima a prevalência de excesso de peso em escolares na cidade de Natal (RN). Foi feito estudo transversal com 1.927 crianças, de 6 a 11 anos de idade, de escolas públicas e privadas nas diferentes zonas da cidade. Foram analisadas as variáveis (sexo, faixa etária, tipo de escola e zonas da cidade) e considerados com excesso de peso os escolares com índice de massa corporal para sexo e idade igual ou superior ao percentil 85. Os resultados indicam excesso de peso encontrado em 33,6% das crianças. Não houve diferenças significantes entre os sexos e faixas etárias. Nas escolas privadas, a prevalência de excesso de peso foi 54,5%; nas públicas, 15,6%. Maior prevalência de excesso de peso foi encontrada nas escolas das zonas de melhor índice de qualidade de vida da cidade, isto é, zonas leste-sul (41,3%), quando comparadas às zonas norte-oeste (28,4%). Concluiu-se que a prevalência de excesso de peso em escolares se mostrou alta, demonstrando a necessidade de programas de intervenção e prevenção. A maior prevalência nas escolas privadas, reforçada pelo mesmo achado nas crianças de escolas situadas nas zonas de maior poder aquisitivo da cidade, reflete a importância da associação entre os níveis socioeconômicos mais altos e o excesso de peso, sobretudo o sobrepeso, em regiões em desenvolvimento. REVISTA BRASILEIRA DE SAÚDE MATERNO INFANTIL – V. 7 – Nº 4 – RECIFE – OUT./DEZ. 2007 www.revistapesquisa.fapesp.br/scielo/145/saude.htm

Psiquiatria

FOTOS EDUARDO CESAR

Nise da Silveira No decorrer da década de 1940, a psiquiatria hegemônica brasileira voltou-se para as inovações científicas e tecnológicas e para a sedimentação de uma visão orgânica da doença mental. Nesse contexto, Nise da Silveira pesquisou o desenvolvimento de uma prática clínica em terapia ocupacional, examinando os resultados com inteligência livre de enquadramentos limitadores. Organizou e cuidou dos espaços e tempos para o desenvolvimento das capacidades criativas, da experimentação e do aprendizado artístico dos loucos. Devido à quantidade de desenhos e pinturas e à qualidade das obras produzidas, seus ateliês adquiriram e aglutinaram grande interesse científico e artístico. O artigo “Resistência, inovação e clínica no pensar e no agir de Nise da Silveira”, de Eliane Dias de Castro e Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima, da Universidade de São Paulo, mostra que o trabalho de Nise da Silvei-

ra produziu um deslocamento nas atividades realizadas como ocupações monótonas e repetitivas, mantenedoras da lógica asilar; aproximou-as das necessidades reais dos pacientes, abrindo novas possibilidades de ação e participação no mundo para essas pessoas. Sua história é referência para práticas atuais na terapia ocupacional. A partir dela arte, cultura e loucura ganham novos sentidos. INTERFACE - COMUNICAÇÃO, SAÚDE, EDUCAÇÃO – V. 11 – Nº 22 – BOTUCATU – MAIO/AGO. 2007 www.revistapesquisa.fapesp.br/scielo/145/psiquiatria.htm

Agronomia

Cafeeiros adensados Buscando obter maior produtividade inicial da lavoura cafeeira é comum fazer plantio adensado. Porém devido a esse adensamento e outras causas a produtividade reduz-se a partir da quarta ou quinta colheita. Essas são algumas das causas do “fechamento” da copa das plantas, o que torna necessário fazer a eliminação de linhas de café. Assim, o trabalho “Eliminação de linhas em cafeeiros adensados por meio semimecanizado”, de Ezequiel de Oliveira, do Centro Federal de Educação Tecnológica de Bambuí, Fábio Moreira da Silva e Rubens José Guimarães, ambos da Universidade Federal de Lavras, e Zigomar Menezes de Souza, da Universidade Estadual de Campinas, teve por objetivo avaliar a eficiência operacional e viabilidade econômica de diferentes métodos de eliminação das linhas de cafeeiros adensados. O trabalho foi desenvolvido no município de Lavras, MG, em área de 1 hectare, sendo os ensaios realizados utilizando o delineamento inteiramente casualizado, com três repetições, em parcelas aleatórias com 50 metros de comprimento. Os tratamentos foram: palitamento e arranquio usando trator com gancho, palitamento com foice e corte com motosserra e palitamento com foice e corte com serra circular. O tratamento palitamento com foice e corte com serra circular apresentou melhor eficiência operacional de campo, sendo 41,8% mais eficiente que o tratamento palitamento e arranquio usando trator com gancho. O uso palitamento com serra circular ou motosserra é técnica e economicamente mais viável que o uso do palitamento e arranquio usando trator com gancho. No caso da venda dos troncos como lenha, os três métodos de eliminação das linhas dos cafeeiros resultaram em receitas líquidas, sendo maior para o palitamento e corte usando serra circular. CIÊNCIA E AGROTECNOLOGIA – V. 31 – Nº 6 –LAVRAS – NOV./ DEZ. 2007 www.revistapesquisa.fapesp.br/scielo/145/agronomia.htm

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LINHA DE PRODUÇÃO MUNDO

Já pensou se, um dia, existissem aparelhos capazes de gerar energia elétrica a partir dos movimentos naturais do nosso corpo? Pois o que há alguns anos parecia improvável está para se tornar realidade. Cientistas da Simon Fraser University, do Canadá, desenvolveram uma tecnologia que produz energia a partir do movimento dos joelhos. O aparelho coleta a energia do final da passada, quando os músculos estão trabalhando para desacelerar o movimento da perna – mais ou menos como fazem os carros híbridos que retiram energia de suas freadas. Ao “vestir” um desses geradores biomecânicos em cada perna, uma pessoa pode gerar até 5 watts de energia sem nenhum esforço físico adicional. Caminhadas mais Imagem microscópica de fibras dos nanofios aceleradas produzem o equivalente a 13 watts de eletricidade. Nessa taxa, um minuto de caminhada gera energia suficiente para manter um celular em funcionamento por meia hora. Um primeiro protótipo do equipamen> Inspirado to, a ser produzido pela empresa Bionic Power, uma spin-off da universidade, deverá estar pronnas lagartixas to dentro de um ano e meio. Outro aparato desenvolvido na mesma linha saiu dos laboratórios Um novo adesivo criado por do Instituto de Tecnologia da Geórgia, nos Estados Unidos. Lá, uma equipe liderada pelo cientista Zhong Lin Wang conseguiu criar nanofios geradores de energia elétrica que, no futuro, podecientistas da Universidade da Califórnia, em Berkeley, rão ser empregados na fabricação de roupas. A novidade desses nanofios, feitos de óxido de nos Estados Unidos, é zinco, é sua capacidade de produzir eletricidade quando recebem uma pressão mecânica. No provavelmente o material caso de uma roupa, tal pressão pode ser simplesmente o movimento da pessoa que a veste ou que mais se aproxima o bater do vento. Um desafio dos pesquisadores é criar um protótipo lavável.

ENERGIA DO MOVIMENTO

ZHONG LIN WANG/INSTITUTO DE TECNOLOGIA DA GEÓRGIA

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da estrutura existente nas patas das lagartixas, que conseguem se deslocar em paredes e tetos sem cair ou escorregar. Os pesquisadores acreditam que o produto, em fase final de desenvolvimento, poderá ser usado na construção de robôs capazes de escalar paredes e outras superfícies verticais. Parecido com outro material antiderrapante criado pelo mesmo grupo em 2006, chamado de microfibras de altíssima fricção, o superadesivo tem a estrutura de um “tapete” formado por milhões de microfibras de 64

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polipropileno, cada uma delas com 20 micrômetros de comprimento (aproximadamente um quinto da espessura de uma folha de papel) e 0,6 micrômetro de diâmetro (1 centésimo do diâmetro do fio de cabelo humano). Um pedaço de apenas 2 centímetros quadrados suporta um objeto com 400 gramas, mostraram as pesquisas. O próximo desafio é fazer com que o adesivo grude em qualquer superfície e não apenas naquelas lisas e limpas, como o vidro.

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RANDY MONTOYA/SANDIA

Espelhos coletores altamente reflexivos

> Um novo recorde solar

> A saída é o hidrogênio Um estudo publicado no final de fevereiro por pesquisadores europeus mostrou que a introdução do hidrogênio combustível na matriz energética do continente poderia reduzir em até 40% o consumo de petróleo e seus derivados pelo setor

de transporte. Denominado HyWays, o projeto contou com a participação de representantes do setor industrial, de institutos

Há dois anos, um comitê internacional formado por alguns dos mais respeitados engenheiros e cientistas do mundo decidiu encarar uma ousada tarefa: enumerar os principais desafios da engenharia no início do século XXI para aumentar a qualidade de vida da humanidade e tornar o mundo um lugar melhor para se viver. O resultado, revisto por mais de 50 especialistas, foi divulgado recentemente e contempla quatro grandes áreas: sustentabilidade, saúde, redução de vulnerabilidades e aumento da alegria de viver. No total, 14 desafios foram listados, entre eles tornar a energia solar mais acessível, criar métodos de seqüestro de carbono, desenvolver melhores medicamentos e prevenir o terror nuclear – a lista completa pode ser conferida no site www.engineeringchallenges.org. O comitê decidiu não listar os desafios por ordem de prioridade, mas a Academia Nacional de Engenharia dos Estados Unidos, que patrocina a iniciativa, está fazendo uma votação pelo site do projeto para identificar qual delas, na opinião do público, é a mais importante.

DESAFIOS DO FUTURO

ILUSTRAÇÕES LAURABEATRIZ

Num típico dia de inverno no estado do Novo México, nos Estados Unidos, engenheiros do laboratório Sandia e da empresa Stirling Energy comemoraram um novo recorde mundial na eficiência da conversão de energia solar para eletricidade com um índice de 31,25% – o recorde anterior, de janeiro de 1984, era de 29,4%. A eficiência de conversão é calculada medindo-se a energia líquida enviada para a rede de transmissão e dividindo-a pela energia solar que alcança os espelhos parabólicos do sistema coletor. Para Bruce Osborn, presidente da Stirling Energy, o ganho na eficiência de conversão

coloca o sistema à frente de qualquer concorrente e muito próximo de sua comercialização. O avanço obtido na produção dos espelhos coletores é o principal responsável pelo feito. Eles são fabricados com um vidro com baixo teor de ferro e recobertos por uma película de prata, o que os torna altamente reflexivos.

de pesquisa e de agências governamentais de dez países, entre eles França, Inglaterra, Alemanha e Itália. Um dos maiores desafios apontados pelos especialistas é transformar o hidrogênio em um combustível economicamente viável. Para isso, o estudo examinou diferentes formas de produção e encontrou visões divergentes. Todos os países, no entanto, concordaram que sua produção poderá ser feita a partir de gás natural, biomassa ou energia eólica. Segundo o projeto, a frota movida a hidrogênio em 2030 será de 16 milhões de carros, o que terá representado um investimento em infraestrutura de € 60 bilhões.

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LINHA DE PRODUÇÃO BRASIL

DOCE ENGANO

Mesmo com certificação, parte do mel produzido e comercializado no país tem sido adulterada com glicose de milho ou de canade-açúcar, como mostram dois estudos conduzidos no Centro de Isótopos Estáveis, unidade do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista em Botucatu, no interior paulista, com lotes do produto recolhidos em apiários e supermercados. Uma das pesquisas, feita pela agrônoma Elvira Maria Arauco em sua tese de doutorado defendida no Programa de Pós-graduação em Zootecnia da Faculdade de Medicina Veterinária, avaliou o grau de pureza de 211 amostras de mel compradas de apicultores de 15 estados brasileiros. Do total, 8% apresentavam adulterações, que comprometem não só a qualidade como também a composição do produto, já que, durante o aquecimento para a adição de Adulterações comprometem mel glicose, o mel perde proteínas, minerais, vitaminas e enzimas importantes. As amostras de mel vendidas em supermercados de sete estados brasileiros também apresentaram adulsulfato de cálcio hidratado. terações. De um total de 61 pequenas porções, 11 delas (18%) “Como a produção de gesso continham glicose de milho ou de cana-de-açúcar, segundo no pólo fica em torno de 1,2 pesquisa realizada por Cibele Regina de Souza para a monomilhão de toneladas por ano, grafia de conclusão do curso de ciências biológicas do Institusão liberados para a atmosfera to de Biociências da universidade. Os estudos foram realizados cerca de 220 milhões de litros tendo como base a diferença do valor padrão dos átomos de de vapor de água provenientes carbono 13 e 12 do mel puro e dos produtos analisados. da gipsita”, diz o professor

> Eficiência térmica Um forno inovativo e compacto para a produção de gesso que apresenta alta eficiência térmica, cerca de 90%, e no processo de queima, em vez da madeira, utiliza gás natural ou biodiesel foi desenvolvido no Departamento de Engenharia Mecânica da Universidade Federal de Pernambuco 66

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(UFPE) especialmente para o pólo gesseiro de Araripe, no sertão pernambucano, que reúne cerca de cem empresas. Outra vantagem do forno, que tem capacidade estimada de 30 toneladas por dia, é a possibilidade de condensação do vapor de água liberado no processo de transformação da gipsita em gesso. A água faz parte da composição da gipsita, que nada mais é do que

Armando Shinohara, coordenador do projeto na universidade, que teve apoio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). “Essa quantidade de água daria para abastecer uma cidade com 12 mil habitantes por ano.” Para obter gesso de qualidade controlada, o forno será monitorado por computador. O equipamento foi produzido pela empresa Menkaura, fabricante de fornos de calcinação, que já começou a receber encomendas do pólo.

MIGUEL BOYAYAN

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> Sensores no caminho Uma bengala eletrônica com sensores semelhantes a um sonar, que avisam por meio de vibrações no próprio cabo sobre obstáculos como orelhões, caixas de correio e poças d’água, foi criada na Universidade do Vale do Itajaí (Univali), de Santa Catarina, para ajudar na locomoção de deficientes visuais. O projeto teve início em 2003, quando o professor Alejandro Rafael Garcia Ramirez, da Faculdade de Engenharia da Computação, campus de São José, entrou em contato com a Associação Catarinense para Integração do Cego, onde posteriormente foram feitos os testes do primeiro protótipo. O projeto, que recebeu cerca de R$ 30 mil da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) para ser aperfeiçoado, utiliza a tecnologia conhecida como haptics, criada para auxiliar cegos a usar computadores e empregada, no caso, para realimentação tátil com o auxílio de sensores. A bengala eletrônica, que deverá custar em torno de R$ 500,00, já tem um novo protótipo em fase de testes para posteriormente ser apresentado a empresas. O produto similar importado custa cerca de US$ 1.400,00.

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sustentáveis

EDUARDO CESAR

Um livro que reúne o histórico e os princípios norteadores dos estudos sobre construções e projetos mais sustentáveis desenvolvidos por integrantes do Núcleo Orientado para a Inovação na Edificação (Norie), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), intitulado Habitações

O entulho produzido na construção civil pode ser transformado em areia e rochas britadas de alto desempenho mecânico. A técnica inovadora para a obtenção dos produtos de alto valor agregado, que podem ser usados como concreto estrutural para a construção de casas e edifícios, foi desenvolvida por Vanderley John, professor do departamento de engenharia de construção civil, e Carina Ulsen, pesquisadora do laboratório de caracterização tecnológica, ambos da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. No entulho da construção civil, a rocha geralmente está contaminada por pasta de cimento, que possui alta porosidade e baixa resistência, o que torna o agregado reciclado inadequado para o concreto estrutural. A areia também pode ter contaminantes, o que impossibilita o seu uso em argaNovos destinos para o entulho massas. Na pesquisa, os materiais foram separados conforme suas características físicas e químicas, atendendo às exigências de cada aplicação na construção civil. Segundo dados do Departamento Nacional de Produção Mineral, são gerados hoje cerca de 70 milhões de toneladas por ano de resíduos da construção civil e demolição. Esses resíduos têm como destino produtos de baixo valor agregado ou depósito em aterros, muitos dos quais ilegais. A próxima etapa prevê o levantamento de custos e a adaptação do projeto para implantação em escala comercial.

CONSTRUÇÃO RECICLADA

> Projetos

Experiências construtivas

> Solução rápida Um aparelho que permite solucionar rapidamente a interrupção de energia na rede elétrica foi desenvolvido pela Lupa Tecnologia, empresa de base tecnológica residente no Centro Regional de Inovação e Transferência de Tecnologia

MIGUEL BOYAYAN

de baixo custo mais sustentáveis: a Casa Alvorada e o Centro Experimental de Tecnologias Habitacionais Sustentáveis, foi lançado pelo Programa de Tecnologia de Habitação (Programa Habitare) e está disponível para download gratuito em http://www.habitare.org.br

Sistema identifica problemas na cana-de-açúcar

(Critt), incubadora da Universidade Federal de Juiz de Fora, em Minas Gerais. Chamado de Altere (sigla de atualização tecnológica de religadores hidráulicos), o equipamento, instalado nas redes de distribuição, é utilizado para religar energia e indicar possíveis falhas no sistema. Uma unidade

remota, instalada junto ao religador, avisa, por meio de rádio, telefonia móvel ou fixa, um centro de operações quando a energia elétrica é interrompida, permitindo a operação remota do religador. A demanda pelo sistema surgiu de uma iniciativa da Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig).

Um guia completo, que permite identiDIAGNÓSTICO ficar as desordens nutricionais em canaNUTRICIONAL de-açúcar, pode ser acessado gratuitamente no site do Centro Nacional de Pesquisa e Tecnologia de Informática para Agricultura, órgão da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), no endereço http://diagnose.cnptia.embrapa.br/cana/ A criação do Sistema Especialista de Diagnose Nutricional para Cana-de-açúcar foi uma das últimas contribuições do professor Euripedes Malavolta, ex-diretor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo e especialista em nutrição mineral de plantas, falecido em janeiro deste ano. O sistema sintetiza os conhecimentos históricos da fisiologia, nutrição mineral e fertilidade do solo na cultura de cana-de-açúcar. PESQUISA FAPESP 145

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TECNOLOGIA

EMPREENDEDORISMO

Nascedouro de negócios Incubadoras de empresas crescem no país e agora querem novo patamar de desenvolvimento econômico e de sucesso empresarial MARCOS

DE

ROBERT LLEWELLYN/CORBIS

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OLIVEIRA

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FABRÍCIO MARQUES

m ambiente com muitas salas, umas maiores outras menores, lado a lado em pequenos prédios ou galpões marca o visual das incubadoras de empresas. Dentro delas, a gestação de algo novo que, como nas incubadoras destinadas a chocar ovos, espera-se, cresça forte e saudável. São negócios com base tecnológica formulados a partir de uma ou mais idéias que, quando concretizadas, se transformam em inovação. Tecnologia em grande parte nascida nas universidades e institutos de pesquisa do país. Cerca de 87% das incubadoras, que já somam 393 unidades no país, estão ligadas formal ou informalmente a ambientes acadêmicos de onde saem muitos dos candidatos a empreendedores. Há quase 8 anos, quando Pesquisa FAPESP, na sua edição 56, publicou a sua primeira reportagem sobre esses empreendimentos, elas somavam 135, um aumento de quase 37 incubadoras inauguradas por ano. O número de empresas incubadas atingiu 2.775 no final do ano passado e seu faturamento anual chegou aos R$ 400 milhões. Nada mau para um grupo de micro e pequenas empresas em que a metade não ganhou um centavo porque simplesmente ainda não terminou suas pesquisas e desenvolvimentos, ou seja, ainda não vendeu produtos. Entre aquelas que já saíram da incubadora prontas para o mercado, chamadas de graduadas, o faturamento atingiu R$ 1,8 bilhão em 2007, segundo cálculos da Associação Nacional das Entidades Promotoras de Empreendimentos de

Tecnologias Inovadoras (Anprotec). Elas somam cerca de 1.980 empresas e junto com as incubadas já absorvem mais de 30 mil postos de trabalho, com alto índice de profissionais com mestrado e doutorado. São números grandiosos mas ainda pouco significativos para a economia brasileira. Se considerarmos o Produto Interno Bruto (PIB), a participação das empresas ainda é minúscula e somente uma delas tornou-se realmente grande e significativa do ponto de vista econômico, a Bematech, desenvolvedora e produtora de impressoras fiscais em Curitiba, no Paraná (veja quadro na página 73), que se apresenta hoje como um símbolo do alto patamar em que as empresa nascidas em incubadoras podem chegar porque já ultrapassou a barreira dos R$ 100 milhões em faturamento (ela faturou em 2007 R$ 240 milhões). Muitas buscam a marca do R$ 1 milhão, como a empresa PAM, do Rio de Janeiro, produtora de membranas para filtragem de água, que deve atingir esse patamar neste ano (veja quadro na página 70). Algumas já ultrapassam a casa dos R$ 10 milhões, como a Audaces, empresa de Santa Catarina, produtora de softwares para a indústria têxtil. Para atingir novos patamares econômicos e de sucesso empresarial o movimento de incubadoras do país se prepara para dar saltos de qualidade. “Elas formam uma nova geração de empreendedores em negócios em que a inovação tecnológica é o eixo estruturante, o que pode contribuir para uma mudança cultural e econômica dos empresários bra-

sileiros. Mas ainda é difícil medir tudo isso”, diz Guilherme Ary Plonski, presidente da Anprotec e professor da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (USP). Para atingir níveis de sucesso maiores, além de analisar de forma mais profunda o desempenho de empresas e incubadoras, a entidade, que congrega esses empreendimentos e mais os parques tecnológicos, aposta na aceleração do processo de crescimento de, pelo menos, cem empresas e num novo sistema de avaliação. “Vamos convocar os parceiros como o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), as fundações de amparo à pesquisa, a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e outras entidades para escolher e apostar em cem empresas e injetar recursos financeiros e de consultoria, como vitaminas para corredores de maratona, para que elas cresçam alto e rápido”, diz Plonski. A escolha deve acontecer neste ano. “O nosso ideal é saber quanto é possível acelerar o processo de incubação para que possamos conseguir colocar os produtos no mercado”, diz Luís Afonso Bermúdez, ex-presidente da Anprotec e diretor do Centro de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico (CDT) da Universidade de Brasília. “Queremos que novas empresas se transformem em novas Bematechs”, diz Plonski. Ele espera contar também com as empresas associadas, o terceiro tipo de empreendimento que atua nas incubadoras, embora não estejam instaladas dentro delas. A Anprotec já contabiliza 1.493 empresas PESQUISA FAPESP 145

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Membranas seletivas

mento e à incubadora, de financiamentos a faturamento. “Ao final vamos ter um quadro com número de empresas, funcionários, investimentos e impostos, quanto deles foi colocado na incubadora e quanto foi gerado”, diz Tony Chierighini, diretor executivo da Centro Empresarial para Laboração de Tecnologias Avançadas (Celta), de Florianópolis, em Santa Catarina. “Isso vai servir principalmente aos parceiros como o Sebrae, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que financia bolsas de estudo, as fundações de amparo, com aportes sobretudo nas empresas, além da Finep, com financiamentos variados para incubadoras e empresas. “Vamos medir o impacto local da incubadora e suas empresas, além de mostrar resultados e vocações regionais para bioenergia, por exemplo, ou TV Digital”, diz Bermúdez. “As incubadoras têm que ser um pólo de conhecimento e apoiar também empresas que não estão instaladas dentro delas. Elas não são uma ilha e devem estar articuladas com os mecanismos de desenvolvimento de cada região”, diz Plonski. ma forma de dar mais musculatura às incubadoras é apostar em nichos específicos. “É preciso identificar áreas em que tenhamos vantagens competitivas e fazer investimentos mais pesados neles. Imagino áreas como, por exemplo, os biocombustíveis e o agronegócio. As incubadoras são formas eficazes de organizar a inovação tecnológica. Mas não basta criar a incubadora. É essencial ter uma política de acompanhamento e vontade de fazer”, diz João Steiner, diretor do Instituto de

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PAM

A vencedora na categoria Empresa Incubada em 2007, do Prêmio Nacional de Empreendedorismo Inovador promovido pela Anprotec, foi uma empresa que demorou pelo menos 15 anos para ser formada. A tecnologia de membranas para microfiltração para tratamento de efluentes e de água já estava quase pronta, mas não havia mercado. “A água era muito barata, não existia economia, principalmente industrial”, diz o professor Ronaldo Nóbrega, que trabalhou até se aposentar no Laboratório de Processos de Separação por Membranas da Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe/UFRJ) e formou a PAM Membranas Seletivas em 2002, instalada na incubadora da própria Coppe. “Hoje existe uma grande preocupação ambiental, por economia e reúso de água, e o nosso sistema de filtragem com material polimérico capaz de remover bactérias e outros microorganismos está sendo bem aceito na área industrial.” A água filtrada é depois usada para lavar pisos ou em caldeiras, por exemplo. Para ele, a incubadora foi uma escola. “A incubadora nos deu suporte, fizemos cursos e tivemos contato com vários outros empreendedores.” No ano passado a empresa faturou R$ 300 mil. Este ano a previsão é de ultrapassar a barreira do R$ 1 milhão.

que aproveitam de todas as consultorias administrativas, jurídicas e da interação e troca de experiências existentes entre os empresários incubados. Outras duas iniciativas também podem servir para que as empresas incubadas alcem novos vôos. Uma é um projeto do Sebrae, de nível nacional, que prevê aumentar os negócios das empresas incubadas por meio de um apoio inicial, neste ano para 40 a 50 empresas que faturam entre R$ 100 mil e R$ 1 milhão por ano, com o compromisso de duplicar o faturamento em 3 anos. “É um projeto ambicioso, inicialmente com R$ 4 milhões ou R$ 5 milhões por ano, pensado para acelerar os negócios. No total, vamos apoiar de 400 a 500 empresas”, diz Paulo Alvim, gerente de inovação do Sebrae nacional. Ele conta que mais R$ 20 milhões serão destinados a nove incubadoras para que invistam nas empresas em consultoria e capacitação. No Brasil, o Sebrae apoiou o surgimento de 250 incubadoras desde o ano de 1998. “Agora estamos fortalecendo as incubadoras existentes permitindo que elas tenham um compromisso com geração de renda, postos de trabalho e desenvolvimento local”, diz Alvim. A Finep está prestes a lançar o Programa Primeira Empresa (Prime), que prevê recursos de R$ 150 milhões injetados diretamente nas empresas incubadas sem reembolso, no âmbito do Plano de Ação 2007/2010 de Ciência e Tecnologia e Inovação para o Desenvolvimento Nacional. A Anprotec também finaliza um sistema único de avaliação ou acompanhamento, que as empresas incubadas e graduadas vão preencher via internet, de tudo relacionado ao empreendi-

Feixe de fibras da empresa PAM: coladas lado a lado, formam a membrana (em microscopia eletrônica, ao lado) para filtrar a água

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Estudos Avançados (IEA-USP) e coordenador do recém-desenhado projeto de implantação do Sistema de Parques Tecnológicos do Estado de São Paulo. Ele sustenta que o vigor das incubadoras será essencial para garantir o futuro do sistema de parques. “Num primeiro momento nos preocupamos em atrair grandes empresas âncoras, como é o caso da presença da Embraer e da Vale no parque de São José dos Campos. Mas, no longo prazo, a rota da incubação é a mais importante para dar sustentabilidade aos parques e garantir a sua renovação”, afirma. Para Steiner, uma fragilidade do sistema de incubadoras é a pulverização das iniciativas. Pouquíssimas vozes não acreditam no potencial futuro das incubadoras de empresas. Uma delas é de Renato Peixoto Dagnino, professor do Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Um país que possui um padrão econômico-produtivo dependente e mimético e uma altíssima concentração de renda não tende a gerar estímulos de mercado à inovação empresarial. Não é à toa que 81% das empresas brasileiras que promoveram algum tipo de inovação o fizeram importando má-

quinas e equipamentos. Não creio que iniciativas como as incubadoras tenham força para reverter esse padrão. Parece que somos super-homens e vamos conseguir enfiar goela abaixo do setor produtivo algo em que ele não acredita”, afirma Dagnino. Para Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, professor do Instituto de Economia da Unicamp, o desempenho das incubadoras foi fortemente influenciado pelos problemas econômicos do país. “Não vejo equívocos no projeto das incubadoras. Elas surgiram para tentar combater um problema, que era a baixa inclinação da indústria brasileira à inovação”, diz. “A questão é que elas tiveram de se desenvolver num ambiente hostil, em que a economia tinha baixo

dinamismo e houve atrofia do setor industrial”, afirma o economista, que empunhou a bandeira das incubadoras e dos parques tecnológicos quando foi secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, entre 1988 e 1990. Belluzzo sugere aperfeiçoamentos. “Se a economia cresce, a tendência é reduzir os entraves. Mas é preciso saber escolher os setores em que se vai gastar. Em vez de fazer algo horizontal, é melhor escolher áreas que sejam mais interessantes para o país. Agronegócio e biomedicina são setores em que temos massa crítica, em que tivemos avanços. Mas não creio que se deva abandonar certas áreas, como a de eletroeletrônicos, em que há um mercado importante no Brasil”, diz Belluzzo. s incubadoras, na sua esmagadora maioria, funcionam pela demanda das empresas que querem se instalar em suas dependências. Depois de responderem a um edital, o perfil empresarial ou as idéias e planos de negócio dos futuros empreendedores são analisados e, se aceitos, a empresa entra na incubadora. “É fundamental para a empresa ter uma relação com o conhecimento, vindo das universidades, de teses de doutorado, dissertações ou tra-

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Uma série de colas e adesivos que servem tanto para consertos caseiros como para indústrias e a construção civil está ganhando mercado para uma pequena empresa que nasceu no Centro Incubador de Empresas Tecnológicas (Cietec), em São Paulo, em 2001, quando recebeu financiamento do Programa Pesquisa Inovativa na Pequena e Micro Empresa (Pipe) e se graduou em 2005. A Adespec desenvolveu adesivos à base de polímeros híbridos isentos de solventes, compostos orgânicos voláteis e isocianatos, substâncias prejudiciais à saúde e ao ambiente. “Além disso, os nossos adesivos não são prejudicados pela umidade, fator que causa prejuízo ao desempenho do poliuretano. Com umidade, o nosso produto cola ainda melhor”, diz Flávio Teixeira Lacerda, diretor da Adespec. Com essas qualidades, o adesivo ganha mercado principalmente na construção civil para unir juntas de dilatação e na colagem de vidros. No mercado ao consumidor, já briga com a Super Bonder e outras do gênero, e o faturamento atingiu, em 2006, R$ 3 milhões. Para ele, a incubadora foi fundamental para focar apenas o desenvolvimento, deixando preocupações como segurança, limpeza, portaria e informática para o Cietec. Em março de 2007, depois de 2 anos de negociação, a empresa recebeu um aporte de capital do Fundo de Investimentos Investech II, administrado pela Rio Bravo Venture Partners, que tem entre seus sócios o ex-presidente do Banco Central, Gustavo Franco. “Por contrato, não podemos revelar valores, mas continuamos majoritários”, diz Lacerda. “Nosso desafio é atingir R$ 50 milhões de faturamento e exportar até 2013.”

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Cola sem cheiro

Preparo de adesivo na fábrica da Adespec

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balhos na graduação”, diz José Eduardo Fiates, superintendente de inovação da Fundação Certi, parque tecnológico de Florianópolis que abriga o Celta, e expresidente da Anprotec. Para ele, as incubadoras no Brasil são fundamentais num processo histórico. “O país não tem história na área de inovação, cresce no campo científico, mas tem gargalos na transferência do conhecimento para o mercado.” Fiates acredita que o movimento das incubadoras desenvolveu a criação do setor de empresas de base tecnológica ligadas às universidades. Antes era raro existir essa ligação. Agora cerca de 50% das empresas que circulam no âmbito das incubadoras (6.300) nasceram ou estão ligadas a universidades e institutos de pesquisa, inclusive os centros federais de educação tecnológica (Cefets). Fiates acredita também que com o sistema único de avaliação será possível medir melhor a atuação das incubadoras e avançar ainda mais. “Nos Estados Unidos, onde existem 1.500 incubadoras, o pessoal envolvido na área está nesse momento tentando dimensionar qual é o impacto das inovações em outras empresas. Por exemplo, uma empresa incubada desenvolve uma enzima para melhorar determinado alimento industrial e vende esse produto por US$ 10 milhões a uma indústria maior, que, com essa enzima, vai faturar US$ 300 milhões com ela.

“Não dá para dizer apenas que o impacto foi de US$ 10 milhões para o setor de incubação. Será preciso qualificar melhor esse impacto indireto tanto para o setor como para o PIB. É um desafio para os economistas.” esafio também é manter as incubadoras funcionando. Grande parte depende, para sua manutenção e gerenciamento, dos gestores e de outros parceiros. “De 30 a 50% do custo real é institucional, dos gestores, como universidades, prefeituras e institutos de pesquisa, onde normalmente as incubadoras estão instaladas”, diz Fiates. A outra parte é mantida pelas empresas, na forma de pagamentos de condomínios, e por outras fontes como Sebrae, Finep e prefeituras. No Cietec (Centro Incubador de Empresas Tecnológicas), que completa 10 anos de existência em abril, o custo para a empresa varia de R$ 380 para as iniciantes a R$ 2.600,00 no terceiro ano de vida incubada, não importando o tamanho das dependências usadas pela empresa. A maior incubadora do país está em um prédio do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), em São Paulo, na Cidade Universitária, onde também estão a USP e o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT). “Atualmente aqui dentro são uma centena de doutores (entre empresários e funcionários) com intensa interação

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com o conhecimento acadêmico (de professores e pesquisadores das instituições parceiras e vizinhas) e com outras empresas do mercado”, diz Sergio Risola, gerente do Cietec, que contabiliza na incubadora 122 empresas, sendo 85 incubadas e 37 associadas. “O pagamento do condomínio dá direito a internet, secretaria, correio, copiadora, cursos e consultorias jurídicas, administrativas e de design”, diz Risola. No Celta, em um prédio de 10 mil metros quadrados (m²), onde estão 38 empresas, o condomínio varia de R$ 12 o m² para as iniciantes a R$ 20 o m² para as que estão de saída. Lá o custo total da incubadora é de R$ 800 mil por ano. “Conseguimos a auto-sustentação desde 1994, por meio dos condôminos e de aluguéis para restaurantes, três agências

Instalada na Incubadora de Empresas de Base Tecnológica do Instituto de Tecnologia de Pernambuco (Incubatep), em Recife, a Biologicus é uma empresa voltada para a produção de cosméticos feitos com extratos vegetais e kefir, uma bebida elaborada com leite composto de lactobacilos e leveduras, originária da fronteira da Europa com a Ásia. A empresa tem à frente o médico Djalma Marques, ex-professor da Universidade Federal da Paraíba, e a sua esposa, a engenheira química Fátima Fonseca. “Minha experiência acadêmica no Brasil e o doutorado feito na Espanha, na Universidade de Barcelona, e de Fátima, na Universidade de Cádiz, onde também trabalhamos como pesquisadores, abriram as possibilidades de nós montarmos a empresa, em 2004, para pesquisa e desenvolvimento de produtos demartológicos e alimentos probióticos, dotados de compostos de microorganismos benéficos à saúde”, diz Marques. “O kefir é muito importante para manter a longevidade e baixar os índices de doenças degenerativas. Daí passamos a analisar os microorganismos encontrados na bebida e contamos mais 78, entre bactérias e leveduras importantes para o consumo humano.” Depois de 10 anos de pesquisa, eles elaboraram um kefir feito de frutas como uva, abacaxi e ameixa. O extrato dessa bebida também é usado nos cremes. “A incubadora foi importante para nos dar credibilidade e recebermos o conhecimento do Itep, como cursos e laboratórios.” Por enquanto, o faturamento de R$ 30 mil mensais vai para manutenção e investimento na própria empresa.

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BIOLOGICUS

Saúde nos negócios

Kefir de frutas da Biologicus

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pergunta Fonseca. Ele defende que para suprir parte do orçamento das incubadoras as graduadas paguem royalties durante certo período sobre faturamento ou outra forma de remuneração. “Muitas vezes, as empresas, depois que alçam vôo, viram as costas para a incubadora que a ajudou”, conta. onseca estuda os projetos de incubadoras de empresas desde seu doutorado nos anos 1990 e chegou a fazer um sistema de avaliação que ainda está em gestação. Em dois projetos de Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa financiados pela FAPESP, sendo que no último, que está na fase final e tem o nome de Aperfeiçoamento de indicadores de desempenho de incubadoras mistas (empresas de tecnologia e tradicionais): desafio para a construção de um modelo, ele traça oito indicadores para avaliação como estratégia de ocupação, em que se estuda o projeto de implantação e o perfil das empresas, e outros como sustentabilidade ambiental, índice de mortalidade de empresas e causas, índices de desempenho empresarial e das incubadoras, geração de emprego e capacidade de promover a graduação e, finalmente, indicador de incorporação de inovação em seus produtos, mesmo em incubadoras tradicionais, aquelas em que existem negócios com pouca atividade inovadora. Mas a falta de grandes sucessos empresariais e as dúvidas sobre a avaliação e os caminhos que as incubadoras devem seguir talvez ocorram porque elas ainda estão em plena juventude. As primeiras incubadoras de empresas surgiram no Brasil a partir da Resolução 084/84 do então Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CNPq) assinado

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A Bematech, de Curitiba, é um exemplo raro de empresa nascida numa incubadora a ultrapassar a marca de R$ 100 milhões em faturamento. Em 2007 teve receita de R$ 240 milhões. A empresa foi criada em 1990 pelos engenheiros Marcel Malczewski e Wolney Betiol dentro de uma incubadora vinculada ao Instituto de Tecnologia do Paraná (Tecpar). “Lá dentro dispúnham os de um laboratório de eletrônica cujos equipamentos valiam pelo menos US$ 1 milhão. Que pequena empresa poderia dispor disso?”, recorda-se Betiol. “A incubadora foi criada por várias instituições e cada uma ajudava a empresa de uma maneira. O Instituto Euvaldo Lodi garantia bolsas para pesquisadores. Também recebíamos apoio tecnológico e de gestão”, diz Betiol. Ao deixar a incubadora, a Bematech foi enfrentar as dificuldades comuns a todo tipo de empresa. A aposta na automação bancária, responsável pela expansão nos primeiros anos, esgotou-se em meados dos anos 1990. Isso levou a empresa a diversificar e investir no mercado de automação do pequeno e médio varejo. A criação de uma impressora cuja segunda via do documento, aquele destinado ao Fisco, é armazenada num cartão de memória desbravou um novo mercado.

Impressora da Bematech: automação no varejo BEMATECH

de bancos, correios, escritórios de contabilidade”, diz Chierighini. No Cietec o custo é de R$ 1,74 milhão por ano, num prédio que está em constante ampliação para abrigar novas empresas e sem lugar para locação de qualquer espaço. Como no caso de muitas incubadoras do estado, além dos condomínios, o financiamento vem principalmente da unidade paulista do Sebrae. No ano passado, R$ 945 mil vieram dessa entidade. Fora o custo de funcionamento da incubadora, existe o investimento direto para pesquisa nas empresas, em que a FAPESP, em 2007, financiou R$ 4,1 milhões em projetos do Programa Pipe. “Ao todo já contabilizamos 89 projetos do Programa Pesquisa Inovativa na Pequena e Micro Empresa (Pipe) no Cietec”, diz Risola. Em 2007, o Sebrae-SP apoiou 79 incubadoras no estado de São Paulo, num total de R$ 7,7 milhões, atingindo 1.356 empresas. “A participação do Sebrae em São Paulo faz parte de um alinhamento estratégico em apoiar a aproximação do conhecimento da universidade com as micro e pequenas empresas”, diz Marcelo Dini, gerente de inovação e acesso a tecnologia do Sebrae-SP. Essa relação próxima entre incubadoras e Sebrae gera também desconfianças futuras. “As incubadoras são altamente dependentes das instituições que as apóiam e isso cria laços de subserviência à estratégia dos apoiadores”, diz o professor Sergio Azevedo Fonseca, do Departamento de Administração Pública da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Araraquara. “E se amanhã o Sebrae (em governos ou administrações diferentes) resolve mudar de posição e não apoiar mais como faz hoje?”,

Um caso exemplar

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em 1984 pelo presidente da entidade, professor Lynaldo Cavalcanti, criando o Programa Brasileiro de Parques Tecnológicos, embora o que tenha prevalecido inicialmente tenha sido as incubadoras ainda sem parque. “Tínhamos informações da instalação de parques tecnológicos na França e principalmente nos Estados Unidos, com o sucesso de Boston e do Vale do Silício, além da Inglaterra. A idéia inicial era não ficar atrás deles”, diz Cavalcanti, hoje secretário executivo da Associação Brasileira dos Institutos de Pesquisas Tecnológicas (Abpti). A resolução abriu a porta para cinco fundações tecnológicas, a que seria o Parqtec, em São Carlos, a primeira porque começou a funcionar em dezembro daquele ano, além de Florianópolis, que resultaria no Celta, e outras em Campina Grande, na Paraíba, em Manaus, no Amazonas, e Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.

Roupas bem cortadas Muitas indústrias de confecções do Brasil, de outros países da América do Sul, da Europa e da Ásia, inclusive a China, utilizam sistemas de automação desenvolvidos pela empresa Audaces, com sede em Florianópolis, Santa Catarina, para processos de criação, corte e modelagem de roupas. Com o software, as empresas ganham em produtividade e melhoram a qualidade dos produtos por meio da digitalização dos moldes feita por máquinas digitais de fotografia. “A empresa passa a produzir mais, com acabamento melhor e com o mesmo número de funcionários”, diz Claudio Grando, diretor de negócios da empresa. Ele e o diretor de tecnologia, Ricardo Cunha, se formaram, em 1991, em Ciências da Computação na Universidade Federal de Santa Catarina. Em 1992 eles montaram a Audaces numa sala alugada para trabalhar com corte e modelagem de móveis. Só em 1997 a empresa foi incubada no Centro Empresarial para Laboração de Tecnologias Avançadas (Celta) e lá ficou até 2005, período em que se especializou na indústria têxtil. A empresa possui 97 funcionários e ganhou o prêmio de empresa graduada da Anprotec em 2007, quando faturou R$ 10 milhões, sendo que 40% em exportações. AUDACES

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Fotografia digital no sistema da Audaces para a indústria têxtil

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ulando de duas incubadoras em 1988 para cem, em 1999, esses empreendimentos, mesmo naquelas mais jovens, buscam se reorganizar e encontrar novos caminhos para avançar. É o caso da Incubadora de Empresas de Base Tecnológica (Incamp) da Unicamp, criada em 2002, que pretende promover aperfeiçoamentos em seus próximos processos seletivos. Davi Sales, gerente da Incamp, considera necessário mesclar as propostas nascidas do meio acadêmico – perfil que marca boa parte das empresas que passaram pela incubadora – com iniciativas oriundas do meio empresarial. “Seria interessante se tivéssemos aqui dentro, por exemplo, spin-offs (empresas oriundas de outras maiores ou originadas nas universidades) de companhias já consolidadas, que trariam uma densa bagagem empreendedora e ajudariam a disseminar essa cultura entre as demais empresas incubadas”, afirma Sales. Não que seja ruim a experiência da Incamp nesses 6 anos de atividade. De 25 empresas já graduadas ou que ainda se encontram incubadas, 21 estão com produtos lançados. Sales não considera que os quatro casos restantes sejam fracassos. “Três foram desistências. Os responsáveis concluíram que a idéia não tinha futuro e a encerraram antes que desse errado. E o outro deveu-se a um problema de saúde do empreendedor.”

O que preocupa os dirigentes da Incamp é a pouca capacidade exibida por muitas empresas incubadas de superar as dificuldades do mercado. “Temos um trabalho forte para estimular o empreendedorismo, mas muitos responsáveis pelas empresas incubadas, por virem do meio acadêmico, resistem a correr riscos. A gente fala, por exemplo, para eles lançarem logo o produto e corrigirem os problemas no caminho, mas é comum que tentem adiar enquanto não consideram a situação perfeita”, diz Sales. Por causa disso, as empresas demoram a emitir sua primeira nota fiscal e quase a totalidade delas ostenta faturamentos minguados. O gerente da Incamp ressalta que um perfil empreendedor mais agressivo é essencial para driblar as pedras no caminho do crescimento de uma empresa. “Nada é fácil para elas. O período de incubação, de apenas 3 anos, é curto para uma empresa de base tecnológica. É comum que, em momentos cruciais, elas não consigam dinheiro para desenvolver ou lançar seu produto e isso afete suas perspectivas. Daí a necessidade de melhorar o perfil empreendedor das nossas selecionadas”, afirma Sales. A preocupação da Incamp tem fundamento, como mostra o exemplo de sucesso da Bematech, empresa de automação nascida em 1990 numa incubadora tecnológica do Instituto de Tecnologia do Paraná (Tecpar), de Curitiba. Ela teve receita líquida de R$ 240 milhões em 2007, possui 1.050 funcionários e mantém subsidiárias na Argentina, em Taiwan e na Alemanha. Segundo o engenheiro Wolney Betiol, um dos fundadores da empresa, a arrancada do negócio deveu-se ao seu esforço, ainda nos tempos de incubadora, de atrair investidores. “Demos sorte. Um professor nosso conheceu por acaso um investidor

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que se sentou ao lado dele no avião. Esse homem, que era líder de um grupo de investidores em empresas de agronegócios e de construção civil, pediu uma indicação de empresa tecnológica nascente para investir, pois queria diversificar. Foi assim que conseguimos os US$ 150 mil de capital semente que fizeram toda a diferença”, recorda-se Betiol. as, sustenta o empreendedor, apenas a sorte não explica o sucesso da empresa. “A verdade é que já procurávamos investidores, pois sabíamos que isso era essencial para crescer. Acabaríamos conseguindo de uma forma ou de outra. Outras empresas que se instalaram na incubadora na mesma época não se empenharam da mesma forma e pareciam temer os investidores. Eram comandadas por gente criada no ambiente acadêmico que estabelecia uma relação muito apaixonada com seu objeto de pesquisa. Isso limitava muito a capacidade deles de se abrir e de mudar”, opina. A capacidade de mudar continuamente e alinhar-se às necessidades do mercado foi importante para a empresa sobreviver após deixar a incubadora. Em seus primeiros anos, a Bematech apostou pesadamente no desenvolvimento de equipamentos de automação bancária. Quando esse mercado deu sinais de esgotamento, a empresa mudou o rumo e passou a desenvolver equipamentos para automação do pequeno e médio varejo.

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duadas, já passaram 195 empresas, sendo que apenas uma, a Adespec, conseguiu investimento de capital de risco. “O que temos são 25 angels, ou anjos, investidores individuais que apostaram suas economias em empresas do Cietec. Os valores do aporte variaram de R$ 300 mil a R$ 1 milhão”, diz Risola. Com tanta dinâmica e possibilidades a serem exploradas, as incubadoras suscitam também modelos para o futuro educacional acadêmico. O professor Ary Plonski acredita que elas possam ser um dos próximos ambientes primordiais das universidades, além até do que já está acontecendo com muitas universidades no Brasil que criam esse tipo de instituição no próprio campus. “No início da criação das universidades, ainda no século XII, surgiram as salas de aula, com a reprodução do conhecimento, depois no século XIX apareceram os laboratórios, que fizeram incorporar as pesquisas. Agora acredito que as incubadoras enriqueçam o modelo de universidade, transformando conhecimento em produtos e serviços. Imagino que as incubadoras possam se incorporar aos laboratórios e às salas de aula no conjunto básico educacional.” ■

Para Thomás Tosta de Sá, ex-presidente da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e dirigente da Associação Brasileira de Private Equity e Venture Capital (ABVCAP), é injusto atribuir às incubadoras ou a suas empresas toda a responsabilidade pelos resultados ainda limitados. “O problema é que o setor de capital de risco é novo no Brasil. Mas está crescendo e a expectativa é de que avance a atuação dos fundos de capital semente, que ajudam as empresas de base tecnológica a dar o salto inicial”, afirma. Ele vê semelhanças entre a situação do Brasil hoje e a dos Estados Unidos nos anos 1980 e 1990, quando um ciclo de crescimento impulsionado pelo mercado de capitais e o investimento de risco propiciaram a capitalização de mais de 30 mil empresas. Sá conta que, em 1981, ajudou a organizar no Brasil um seminário internacional sobre capital de risco. “Evoluímos muito. Naquela época não havia sequer uma universidade com incubadora ou que oferecesse cursos de empreendedorismo no país”, afirma. Mas na verdade ainda é pouco o investimento do chamado capital de risco, em que investidores por meio de uma empresa constituída entram no capital ou na composição societária de uma empresa com o intuito de se desfazer da compra quando ela estiver lucrando bem, acima do que o mercado financeiro oferece. No Cietec, se computadas as incubadas atuais e as gra-

A dificuldade de importar ou adquirir anticorpos monoclonais e policlonais, utilizados em laboratórios e na produção de testes de diagnóstico, inspirou a criação, em 2004, da Imuny Biotechnology, empresa vinculada à Incubadora de Empresas de Base Tecnológica da Unicamp (Incamp) que se especializou na produção destes insumos. A empresa não se instalou dentro da incubadora, mas num espaço na Faculdade de Ciências Médicas da universidade em que foi montado um laboratório. Hoje, já graduada, prepara-se para transferir a planta a outro local. Segundo a bióloga Fernanda Alvarez Rojas, fundadora da

Imuny, a incubação foi fundamental para converter uma idéia nascida no ambiente acadêmico num negócio. “No final dos 3 anos, com o apoio da incubadora, iniciamos o contato com uma empresa de participações para nos auxiliar em ações de mercado, que foram de grande utilidade para definir nosso modelo de negócios”, afirma Fernanda. Nos primeiros tempos, os investimentos feitos pelo Programa Pesquisa Inovativa na Pequena e Micro Empresa (Pipe) da FAPESP lastrearam a pesquisa e o desenvolvimento da Imuny. Em 2006, com 12 clientes fixos, a empresa precisava de mais capital. A injeção

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Insumos para laboratórios

Teste de diagnóstico: anticorpos nacionais de R$ 200 mil para organizar a gestão da produção, realizada por uma empresa e um investidor anjo, foi crucial. A Imuny conta hoje com uma distribuidora de anticorpos nacionais voltada para competir com importadores. A briga agora é ampliar o estoque, que garantirá as vendas e o aumento da receita. Só as encomendas da própria Unicamp garantiriam à Imuny uma receita de US$ 15 mil por mês.

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Código de Trânsito Brasileiro não exige a utilização de lanternas instaladas no vidro traseiro dos veículos, conhecidas como brake lights, que se acendem quando o freio é acionado. Mas elas estão cada vez mais presentes nos carros fabricados no país, tanto instaladas pelas montadoras como pelo próprio consumidor em busca de mais segurança no trânsito. O mercado é disputado por, pelo menos, quatro marcas estrangeiras e 14 fabricantes nacionais, entre eles a paulista Racetronix Engenharia, da cidade de Bauru. Em meados do ano passado, a empresa concluiu, com recursos do programa Pesquisa Inovativa na Pequena e Micro Empresa (Pipe), da FAPESP, o desenvolvimento de um novo sistema para a fabricação de brake lights com LEDs – de light emitting diodes, ou diodos emissores de luz, produzidos com material semicondutor que se acendem ao receber uma carga elétrica – usando redes neurais artificiais e componentes do tipo SMD, abreviaENGENHARIA ELÉTRICA tura, em inglês, de surface mounted device, ou dispositivo de montagem de superfície. Desde que o brake light da Racetronix foi lançado, cerca de 4 mil unidades Redes neurais artificiais para já foram comercializadas em lojas fabricar brake lights automotivos de autopeças, segundo o tecnólogo Y U R I V A S C O N C E LO S Antonio Vanderlei Ortega, diretor da Racetronix. Brake lights com LEDs não constituem exatamente uma novidade. Eles já existem no Brasil desde o início dos anos 1990. A inovação da Racetronix está no uso das redes neurais artificiais e da montagem industrial dos aparelhos usando a técnica SMD. Esses sistemas ajudaram Ortega a resolver problemas relacionados à intensidade luminosa dos LEDs e ao número desses diodos que foram instalados no equipamento. As redes neurais artificiais nada mais são que modelos matemáticos, normalmente implementados de forma computacional, onde a lógica de funcionamento de cada parte do processo lembra os neurônios do cérebro, interligados em formas de nós, com diversas conexões que fazem o processamento das informações e facilitam a tomada de decisões.

Segurança iluminada

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Ortega usou o componente eletrônico SMD porque ele se diferencia do tradicional por não possuir terminais para inserção em furos na placa do circuito impresso. A colocação desse dispositivo é feita de forma automatizada e a soldagem realizada no mesmo lado em que o componente foi colocado, ou seja, na superfície da placa. “De um lado, as redes neurais artificiais mapeiam as variáveis do processo e permitem gerar várias possibilidades de brake lights, dentro das características desejadas, permitindo a seleção de menor custo. De outro, o emprego de componentes SMD reduz o custo de fabricação ao permitir a eliminação de duas etapas do processo de montagem eletrônica – a pré-forma de terminais e o corte de terminais”, explica Ortega. O produto da Racetronix é vendido no varejo a um preço entre R$ 27,00 e R$ 34,00. Existem mais baratos, até de R$ 9,00, mas não com 24 LEDs como o equipamento de Ortega. Ele garante que seu produto está entre os mais baratos do mercado. O preço, em muitos casos, é menor que R$ 10 no atacado, dependendo do prazo de pagamento e quantidade comprada. Para ele, é preciso comparar esse preço com produtos, como o dele, que obedeçam a critérios de engenharia e atendam às normas do Conselho Nacional de Trânsito (Contran). “Por isso o correto é comparar o preço dos produtos da Racetronix com os da Arteb e da Cibie (grandes fabricantes de lanternas e faróis). Meus produtos, que contêm 24 LEDs, não são melhores do que os deles, mas mais baratos.”

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O PROJETO Confecção de brake lights utilizando redes neurais artificiais e componentes do tipo SMD

MODALIDADE

Programa Pesquisa Inovativa na Pequena e Micro Empresa (Pipe) COORDENADOR

ANTÔNIO VANDERLEI ORTEGA – Racetronix INVESTIMENTO

R$ 97.741,86 (FAPESP)

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estudo feito em 1998 pelo Departamento de Transportes dos Estados Unidos – onde o dispositivo é obrigatório desde 1986 em carros de passageiros – concluiu que a presença de brake lights evita a ocorrência de 92 mil a 137 mil colisões anualmente no país. Desse total, de 58 mil a 70 mil provocariam ferimentos nos ocupantes dos veículos. Ao evitar esses acidentes, de acordo com o estudo, economiza-se algo em torno de US$ 655 milhões por ano em danos patrimoniais. Rumo às montadoras - Embora o brake light da Racetronix seja direcionado ao segmento de reposição de peças automotivas, a empresa tem como meta, no médio prazo, fornecê-lo para as montadoras de veículos. Em breve, Ortega também pretende apresentar duas

FOTOS EDUARDO CESAR

Cinco anos de pesquisa foram necessários para a concretização do produto. Os primeiros esboços foram feitos em 2002. Antes disso, Ortega trabalhou numa multinacional que fabricava LEDs, entre outras coisas. “Eu era responsável pelo controle de qualidade dos LEDs e já conhecia seu comportamento complexo de emissão de luz.” A idéia de mapear esses efeitos surgiu durante o mestrado em engenharia industrial na Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Bauru. Foi quando Ortega teve contato com as redes neurais artificiais por meio de seu orientador, o professor Ivan Nunes da Silva. “Fizemos buscas em artigos científicos e não encontramos nada relativo ao uso de redes neurais na produção de brake lights”, lembra Ortega. No doutorado, ele expandiu a técnica para aplicá-la a lanternas traseiras de freio utilizando LEDs. Devido à sua complexidade, as redes neurais não foram suficientes para mapear todas as variáveis envolvidas e, por isso, surgiu a necessidade de utilizar outro sistema, chamado de lógica fuzzy, ou sistemas de interferência fuzzy. Essa teoria foi criada na década de 1960 com o objetivo de desenvolver uma técnica para tratar informações imprecisas ou vagas. O projeto Pipe da FAPESP foi desenvolvido entre o mestrado e o doutorado. “No primeiro momento, ele serviu para aprimorar e colocar em prática o que foi desenvolvido no mestrado, como testar outros modelos de redes, usar componentes do tipo SMD e gerar um produto completo. Na etapa seguinte, os equipamentos adquiridos no projeto foram usados para gerar amostras utilizadas no doutorado, realizar medições de intensidade luminosa e promover testes de controle de qualidade.” A principal função do brake light é aumentar a segurança do veículo, reduzindo o risco de colisões traseiras. Um

outras novidades ao mercado: um brake light com luz de ré e lanternas traseiras que usam LEDs. O primeiro será voltado às revendedoras de autopeças, mas as lanternas devem despertar o interesse das montadoras instaladas no país, seguindo a tendência mostrada em alguns carros importados que já utilizam LEDs nas luzes traseiras em substituição às lâmpadas incandescentes convencionais. “Como para fornecer às montadoras é preciso ter um rígido sistema de controle de qualidade, do tipo ISO 9000 ou QS 9000, nosso próximo passo será implementar um desses sistemas e sua respectiva certificação”, conclui Ortega. ■

Brake lights da Racetronix: LEDs em vermelho para freio e branco para a marcha à ré no mesmo aparelho

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> AGRICULTURA

Por dentro da planta Técnica permite traçar rota percorrida pelo silício aplicado como fertilizante | D I N O R A H E R E N O

MIGUEL BOYAYAN

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adubação de cana-de-açúcar, batata, arroz e outras culturas com silício tem ajudado a melhorar a produtividade e a qualidade da colheita. Estudos realizados mostram que a absorção de silício pela planta aumenta a tolerância à falta de água, a capacidade de fotossíntese e a resistência ao ataque de pragas e doenças. Pesquisadores do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena) da Universidade de São Paulo (USP), em Piracicaba, no interior paulista, foram além e desenvolveram uma metodologia que permite traçar todo o caminho percorrido pelo silício fertilizante e estudar os processos de absorção, transporte e redistribuição do elemento dentro da planta (leia matéria sobre silício na agricultura na edição 140 de Pesquisa FAPESP). “O primeiro passo para conseguir fazer esse estudo é aplicar uma fonte enriquecida em um dos isótopos de silício, chamado de traçador, com composição isotópica diferente da natural”, diz o professor José Albertino Bendassolli, do Laboratório de Isótopos Estáveis do Cena, coordenador da pesquisa. Os isótopos são átomos de um mesmo elemento químico que se diferenciam pelo número de massa, ou seja, a quantidade de prótons e nêutrons presentes no núcleo. O número de prótons caracteriza, por exemplo, o nitrogênio, o carbono, o enxofre ou o silício, enquanto a variação no número de nêutrons distingue os isótopos de cada um deles. Esses isótopos respondem pelas pequenas diferenças nas propriedades físicas de um mesmo elemento químico. O hidrogênio, por exemplo, o átomo mais simples do ponto de vista estrutural, possui três isótopos: o hidrogênio com massa 1 responde por mais de 99% do total desse gás na natureza, o deutério com massa 2, constituinte da água pesada, empregada na refrigeração de reatores nucleares, e o trítio, com 3, instável e radioativo. “O método do traçador com uso de isótopos estáveis, que não emitem nenhum tipo de partícula ou radiação, possibilita avaliar as transformações e o caminho percorrido por um elemento na natureza de forma quantitativa e qualitativa”, diz o pesquisador. Isso significa que a metodologia permite acompanhar como o silício se desloca pela planta, ou seja, onde se acumula, se ele consegue sair de uma folha e ir até outra carente do micronutriente. “O marcador permite ainda fazer um estudo do metabolismo

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da planta, da parte celular e genética, como, por exemplo, se determinado aminoácido é precursor de uma proteína”, diz Josiane Toloti Carneiro, que também participou da pesquisa com um projeto de pós-doutorado financiado pela FAPESP. Absorção restrita – O silício é o segundo elemento mais abundante na crosta terrestre, mas não está totalmente disponível. “A forma como a planta consegue absorvê-lo naturalmente é restrita, por isso se faz a adubação”, diz Josiane. Atualmente existem muitas empresas que usam resíduos de escória de siderurgia, provenientes de vários materiais, como fonte de silício na agricultura. A importância desses fertilizantes tem crescido nos últimos 10 anos, embora países como Japão, China e Coréia utilizem há décadas quantidades elevadas desse elemento químico em plantações de arroz. A curiosidade científica para saber o que esse elemento de símbolo Si representa na agricultura também tem aumentado. Tanto que desde 1999 o tema tem sido discutido em um congresso mundial. Este ano, na sua quarta edição, deverá ser realizado na África do Sul. Os estudos feitos no Cena concentraram-se em duas espécies distintas, arroz (gramínea) e feijão (leguminosa), acumuladoras de silício. O milho, inicialmente selecionado para ser estudado, foi substituído pelo feijão. As pesquisas consistiram em analisar as duas plantas cultivadas em solução nutritiva sem aplicar o silício enriquecido e com aplicação do isótopo 30Si, o mais pesado dentre os três isótopos estáveis do Si

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O PROJETO Determinação isotópica de Si por espectrometria de massas para estudos de absorção e mobilidade nas culturas de arroz e milho

MODALIDADE

Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa COORDENADOR

JOSÉ ALBERTINO BENDASSOLLI – USP INVESTIMENTO

R$ 58.941,87 (FAPESP)

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(massas 28, 29 e 30) e encontrado em menor quantidade na natureza. “Percebemos que quando o silício era aplicado na planta praticamente toda a quantidade absorvida era direcionada para as folhas em curto espaço de tempo”, diz Josiane. Em outras partes foi detectada uma quantidade baixa do elemento. Quando ele ficou acumulado em grande quantidade, os pesquisadores tiraram a fonte de silício disponível nas folhas velhas e deixaram crescer folhas novas para ver se ele iria ser redistribuído, o que não aconteceu. “Não houve nenhuma absorção pelas plantas novas, ao contrário de outros fertilizantes”, diz Bendassolli. Se uma parte da planta está precisando de nitrogênio, por exemplo, ele migra de onde está acumulado para onde é mais necessário naquele momento. “A metodologia é uma ferramenta importante porque o silício tem sido aplicado como fertilizante, mas não se sabe exatamente qual a função fisiológica desse elemento químico na planta”, diz a bióloga Lílian Aparecida de Oliveira, que faz doutorado no Cena e participa do projeto. A análise das plantas é feita em um espectrômetro de massas, equipamento que faz a determinação da abundância isotópica do elemento químico de interesse apenas com frações gasosas. O espectrômetro utilizado no Cena é um exemplar único fabricado na Alemanha na década de 1960. A análise começa com a coleta e o tratamento das amostras do solo ou da planta. As impurezas são removidas com um ataque químico ácido, que separa a fração de silício contida na amostra. Em seguida, alguns reagentes são colocados na fração para que o silício precipite e possa ser transformado em um sal, posteriormente decomposto em alta temperatura em uma linha de vácuo para produzir e separar o gás tetrafluoreto de silício. Depois ele é introduzido no espectrômetro de massas para as análises isotópicas. O método para determinação espectrofotométrica de silício em amostras agronômicas foi publicado na revista Communications in Soil and Plant Analysis, da Universidade da Geórgia, Estados Unidos, em junho de 2007. A parte que trata da técnica para determinação isotópica de silício foi aceita pela revista Analytical Letters, de Nova York, e está aguardando publicação. ■

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LEDA CATUNDA, RETRATO, 2002, ACRÍLICA SOBRE TELA E VOILE, CORTESIA GALERIA FORTES VILAÇA


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HUMANIDADES

SOCIOLOGIA

Mulher solteira não procura mais Estudo sobre “mulheres sós”, na contramão de Wave, prova que é “possível ser feliz sozinho” e ainda ter amor C A R LO S H A AG

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ob o título sugestivo de “A tragédia das solteironas”, uma matéria da Revista da Semana, de 1937, é exemplar na forma de abordar o “tema”: “Todas têm ódio às moças que se casam. Possuem, em maior ou menor dose, o instinto da maldade. A história de milhares de tragédias conjugais nasce dessas almas torvas, às quais tudo se deve perdoar pelo muito que penaram. Casais felizes devem fugir das solteironas como o diabo da cruz. A Medicina sabe que os enfermos de certas doenças contagiosas têm um prazer satânico em transmitir sua doença às pessoas sadias. Existe, na psicopatologia das solteironas, fenômeno análogo”. O tom, dramático e antiquado, pode ter mudado, mas a essência dessas idéias, infelizmente, ainda permanece viva. “A solteirice tem sido recorrentemente representada como uma falta essencial, uma anomalia social, jamais um caminho, entre outros, escolhido como parte de um projeto de vida que pode ser vivido positivamente”, explica Eliane Gonçalves, autora da tese de doutorado recém-defendida na Unicamp “Vidas no singular: noções sobre ‘mulheres sós’ no Brasil contemporâneo”, orientada por Adriana Piscitelli. Após trabalhar com um grupo de mulheres com idades entre 29 e 53 anos, sem filhos e morando sozinhas há mais de 2 anos, a pesquisadora “contesta a idéia de que as mulheres estão sós porque esperam seu príncipe encantado, foram preteridas em função das mais jovens ou por motivos afins”, afirmando que “há escolhas que elas vão fazendo ao longo da vida, como privilegiar a carreira para marcar seu lugar no mundo”. Segundo Eliane, sob a lógica do “familismo”, que pressupõe o

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par e o casamento com lugares privilegiados de saúde e felicidade, a mulher “só” é percebida como solitária e infeliz, frustrada e insatisfeita, já que sua existência seria medida e avaliada segundo a perspectiva da mulher casada ou que possui um par masculino. Ainda segundo o estudo, tais conceitos não seriam coisas do passado, como no texto acima. “Nos estudos de população e na mídia, as noções mais proeminentes que atravessam a teoria social e, em menor escala, alguns estudos feministas estão associadas à idéia de ‘falta’, cristalizada na noção de solidão”, avalia. Para a demografia, continua, a solidão seria efeito de uma diferença culturalmente produzida e materializada na desproporção sexo/idade no mercado matrimonial. Após analisar vários “clássicos” demográficos, entre os quais Pirâmide da solidão? (1986), de Elza Berquó, a pesquisadora teria percebido “as limitações de categorias clássicas consideradas, atualmente, por estudiosos dos estudos de população, insuficientes para analisar e compreender as transformações ocorridas na sociedade brasileira nas últimas décadas”. A mídia, por sua vez, continua, “traduz e reinterpreta noções inspiradas nos discursos acadêmicos da demografia ou dos estudos de população e outras áreas disciplinares”. Segundo Eliane, atenção especial é igualmente concedida, na mídia, ao que aparece de modo incipiente ou está ausente dos estudos de população: a idéia de sociabilidade como marca de um certo estilo de vida das pessoas que moram sozinhas e a expressão “novas solteiras”, caracterização aparentemente restrita a essas produções. “Mídia e demografia apresentam confluências nas análises sobre a necessidade de alguma forma de intervenção externa para favorecer o encontro par/marido, chegando mesmo a fazer sugestões explícitas. Ambas convergem também na forma de analisar o ‘morar só’ como uma expressão do individualismo que se acentua nessa fase da modernidade, aspecto reforçado por vozes de intelectuais das ciências sociais e das áreas ‘psi.’” Os números parecem acompanhar a tendência. Segundo o mais recente World Fertility Report, da ONU, a média global de idade de casamento entre as mulheres pulou de 21,2 anos nos anos 1970 para 23,2 hoje. Nos países desenvolvidos a diferença é ainda maior: de 22 para 26,1 anos atualmente. No Brasil, a pesquisa Sexo, casamento e economia, feita pela Fundação Getúlio Vargas, indicou a presença de cerca de 19 milhões de mulheres com mais de 20 anos que vivem sem marido ou companheiro e que, por isso, têm renda 62% superior à recebida pelas casadas ou informalmente unidas, o que levou a um aumento na 82

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A ampliação da autonomia

deu a chance a um grupo de “solteirice” de 35% para 38%. Há 30 anos, seis em cada dez mulheres eram casadas. Na base de tudo estão as conquistas feministas. “Várias das noções atribuídas às mulheres ‘sós’ nos distintos contextos remetem a algumas idéias proclamadas pelo feminismo. Nos estudos de população, na mídia e nas percepções das minhas entrevistadas, educação e trabalho qualificado e remunerado são considerados a via privilegiada pela qual as mulheres adquirem independência e conquistam autonomia”, nota Eliane. Essa ampliação da autonomia, continua a pesquisadora, deu a chance a um grupo de mulheres, educadas e profissionais, de decidir por si mesmas e ter o poder de, inclusive, romper com os estereótipos clássicos da “solteirona”. No entanto, segundo ela, é possível observar o efeito da importância dada à conjugalidade e à família quando o morar só, que não modifica o estado civil de alguém, é percebido como um ato de isolamento social, de enfraquecimento das regras de aliança. Assim, observa Eliane, a demografia, mesmo concedendo o conceito do ganho das mulheres, salienta “a problemática da mulher madura, com mais de 30 anos, colocando-a como vítima do excedente de mulheres que disputam, em desvantagem com as mais jovens, reforçando a necessidade do par”. É a “pirâmide da solidão”. O C O N C E I TO FA L A DA S C H A N C E S D E C R E S C E N T E S D E mulheres mais velhas de se casarem considerando-se as normas sociais vigentes, nas quais os homens procuram parceiras mais jovens, o que traz para as outras faixas etárias superiores o prognóstico de que continuem a viver sozinhas. “Considerar como fatalidade uma mulher que não se casa, qualquer que seja a motivação, denota a centralidade dada ao estatuto do casamento como um valor em si mesmo. A eleição pelo casamento envolve estratégias políticas”, adverte a autora. Para ela, a própria Berquó, analisando dados do Censo de 1980, observou que as moradias unipessoais eram ocupadas por homens solteiros e mais jovens e por mulheres mais velhas com maior escolaridade, o que permitiria concluir que, mais do que um desequilíbrio do mercado matrimonial, estaria em ação, nas grandes cidades, uma mudança de estilo de vida. Mas o conceito da pirâmide ganhou vida própria e, por vezes, até vulgarizado e mal compreendido, passou a ser usado de forma indiscriminada como panacéia explicativa. Há agravantes. Na medida em que a reprodução é considerada em alguns pressupostos demográficos uma função a ser realizada pela família, taxas baixas de fecundidade, vistas como resultado de processos

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crescentes de escolarização ou profissionalização das mulheres, são encaradas com preocupação pelos demógrafos, um ideal que, observa Eliane, foi abraçado pela mídia que o transforma em valor universal. “Embora Berquó afirme que a demografia tome o indivíduo com unidade de análise, ‘família’ emerge como uma noção central para os estudos de população, tornando necessário entender como esta noção é usada para caracterizar as ‘solteiras’ que moram sozinhas.” Se o homem solteiro não é questionado, já que sua “solteirice” é presumida como fase transitória livremente escolhida, a “solidão” feminina, por sua vez, é reiteradamente acentuada, nos estudos mais diversos, a partir das informações estatísticas e das noções demográficas. “A ‘pirâmide da solidão’ passou a ser tratada como verdade inquestionável, uma matriz geradora ou categoria explanans, usada para explicar fenômenos distintos, como o machismo brasileiro, a ‘solidão’ de jovens sem namorados, de idosas viúvas e, até mesmo, o aumento de venda de vibradores em sex shoppings.” Para Eliane, “ao generalizar conclusões a partir de estudos de base populacional, a demografia contribui para a naturalização de seus pressupostos e estes estimulam a regulação social, como ocorre nas estratégias de intervenção nos assuntos de casamento e da família”. Ainda segundo a pesquisadora, o apelo ao “equilíbrio no mercado matrimonial” no paradigma demográfico, cuja preocupação é a reprodução da população, pode ser lido como impositivo, na medida em que incide sobre a elaboração de políticas sociais que reforçam a centralidade da família e contribuem para apagar outras formas de viver, uma tendência em pesquisas nacionais e estrangeiras. “O estar solteira, na mídia, é visto com mais simpatia quando percebido como um momento transitório de investimento pessoal, e o casamento como um sonho idealizado. Contra a imagem de ‘solitária’ criou-se a figura da mulher executiva, liberada e autosuficiente, que presumivelmente não ‘sofre’ de solidão ou dela escapa, refugiando-se no trabalho e no consumo.” Os estudos de Eliane revelam que as matérias sobre as “novas solteiras”, terminologia muito usada pelos jornalistas, parecem contestar a imagem estereotipada da “solteira do passado”, inovando na descrição das mulheres desacompanhadas (de parceiros homens) por meio de polarizações contrastivas. Elas agora seriam “independentes”, “estudadas”, “bemsucedidas”, “viajadas”, “malhadas”, “elegantes”, com “intensa vida social”. Assim, continua a autora, essas “novas solteiras” estariam colhendo os frutos das

mesmas e ter o poder de romper com os estereótipos clássicos

mulheres de decidir por si

conquistas da revolução feminina e feminista e suas falas conferem positividade à “solteirice”. “Um outro aspecto contradiz, em termos, as positividades de se estar só, pois recoloca a falta do par, embora expresse uma crítica ao casamento: ‘adoro ser independente, mas sinto falta de um companheiro’. Essas noções contraditórias, recorrentes também nos estudos de população, são reforçadas na mídia ao enfatizar que escolaridade e renda funcionam como armas da independência da mulher face ao casamento, mas criam barreiras na conquista de parceiros estáveis.” H Á N A S E N T R E L I N H A S A P R E S E N Ç A I N C Ô M O DA D O “sofrimento” e da necessidade do “refúgio” no escritório ou no shopping center como forma de “compensação” pela escolha. “A natureza da falta é apresentada como o não preenchimento dos altos requisitos do ‘homem ideal’ desejado pelas ‘novas solteiras’.” Dessa forma, assinala Eliane, a noção mais desenvolvida nos textos da mídia é a da nova solteira que está à “procura de”, mas, de certo modo, tanto faz se encontrar ou não um parceiro. Esse tipo de mulher seria enquadrada na categoria de “satisfeita resignada”, mulher que deseja, mas não quer abrir mão de certas conquistas para ter a seu lado um “sapo qualquer”. “Atualmente a mulher altamente escolarizada e qualificada profissionalmente ainda é pressionada socialmente para casar-se e sua autonomia é apresentada como conflitante com o ‘mercado matrimonial’, um paradoxo (quase um clichê) recorrente nos discursos da mídia, da demografia e também das mulheres entrevistadas”, observa. Como, então, dar conta da autonomia, em especial, como lembra a pesquisadora, nos moldes de A room of one’s own (Um teto todo seu), texto de Virginia Woolf, que traduzia a preocupação com a renda anual própria e ao espaço para o desenvolvimento de um trabalho criativo? “A metáfora do quarto ou do teto para si parece uma evocação apropriada no contexto da minha pesquisa, porque, reitero, a experiência de morar só tende a ser mesclada às noções da ‘nova solteira’ ou da mulher ‘independente’ e ‘moderna’ no corpus de noções analisadas”, analisa Eliane. Curioso paradoxo essa imposição a um retorno forçado, após o longo caminho percorrido pela mulher para chegar, com independência, ao mercado de

da “solteirona”

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LEDA CATUNDA, ENTRELAÇAMENTO II, 2003,COLAGEM SOBRE PAPEL, CORTESIA GALERIA FORTES VILAÇA

“Se o single lifestyle continuar a se

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impor como tendência, talvez as

S E O B S E RVA R M O S , E N T Ã O , O P RO C E S S O H I S T Ó R I C O , como propõe Lipovetsky, esse estilo de vida, que se firma cada vez mais nos grandes centros urbanos, sobretudo nas camadas médias, estaria, por sua vez, relacionado com o processo de individualização crescente que se observa nesses segmentos, uma característica da modernidade. Como nota Berquó, este mundo transformado pelas lutas feministas impulsionaria as mulheres “independentes” à autodeterminação, favorecendo determinadas “escolhas” e investimentos em outros projetos individuais e não apenas no casamento. Essa dualidade entre “vida simples comunitária” e “individualismo moderno” pode trazer valorações diferenciadas, em que a primeira opção, cercada de solidariedade, se contraporia à segunda, de caráter “objetivo”, “egoísta”, “competitivo”. Eliane tem ressalvas a essas dicotomias. “Se o individualismo for compreendido como uma busca orientada prioritariamente para si mesmo e não como atomização social, autocentramento ou isolamento, esta noção encontra ressonância nas histórias das mulheres ‘sós’ entrevistadas”, continua a pesquisadora. “Ao lado de um processo de individua-

solteiras estejam reinventando a ‘solidão’, transformando-a em

trabalho. “Afinal, se o homem encarna a nova figura do indivíduo livre, solto, senhor de si, a mulher, até há algumas décadas, continuou a ser pensada como um ser naturalmente dependente, vivendo para os outros. A ideologia da mulher no lar foi edificada na recusa de generalizar os princípios da sociedade individualista moderna. Identificada ao altruísmo e à comunidade familiar, a mulher não seria do domínio da ordem contratualista da sociedade, mas da ordem natural da família”, observa o filósofo francês Gilles Lipovetsky em seu A terceira mulher. Só recentemente, porém, “o trabalho feminino não aparece como um último recurso, mas como uma exigência individual e identitária, uma condição para realizar-se na existência, um meio de auto-afirmação”, afirma Lipovetsky. Dessa transformação sem precedente no modo de socialização e de individualização do feminino, uma generalização do princípio do livre-governo de si, uma nova economia dos poderes femininos nasceria a chamada “terceira mulher”. “A primeira era diabolizada e desprezada; a segunda, adulada, idealizada, instalada num trono; nos dois casos, subordinada ao homem, pensada por ele, definida em relação a ele. A terceira, por sua vez, é uma autocriação feminina.” A liberdade, nota Eliane, “tem sido historicamente considerada uma prerrogativa masculina. No entanto, a liberdade retratada pelas minhas entrevistadas é simbolizada pelo ato repetitivo de circular livremente em um espaço que elas dominam. Sozinhas, elas aprendem a dar conta de si mesmas”.

lização – por exemplo, a idéia de um projeto focado na carreira, que as leva à decisão de morar sozinhas, a princípio por necessidade, depois por adaptação e finalmente por prazer – elas mantêm sólidas relações amorosas, sexuais, de amizade e familiares.” Ainda assim, “embora adotado como um estilo de vida, que as distingue socialmente como mulheres independentes, autônomas e senhoras de si, o morar só não existe fora da vida social mais ampla e está marcado por outros tipos de dependência e contingenciamentos”. É possível amar e ser sozinho ao mesmo tempo. Morar só não significa ficar sem par para relações e Eliane é uma crítica ferrenha da insistência da mídia em vincular as mulheres “sós” como privadas de vínculos amorosos e sexuais. Ou, nas palavras da socióloga americana Kay Trimberger, da Universidade da Califórnia, autora de The new single woman, como o estudo de Eliane, baseado em entrevistas com mulheres que vivem sozinhas, “mesmo que elas sintam que gostariam de ter um companheiro (a) fixo (a), elas estão certas de que suas vidas não dependem disso e que há outras formas de viver” e que “a ‘solteirice’, no futuro, será vista como algo mais do que apenas um intervalo entre relações matrimoniais, se transformando num way of life, com muitas variações, mas um caminho de vida satisfatório com suas demandas e recompensas”. As pesquisas de Eliane também mostraram que a mulher “só” não necessariamente abre mão da maternidade. Afinal, o que nos governa, como nota Lipovetsky, não é um modelo de reversibilidade entre os sexos, mas um duplo modelo individualista, reinscrevendo a diferença masculino/feminino. Dessa forma, o francês também não acredita que a maternidade possa ser abolida desse novo esquema. “As mudanças de excepcional amplitude na condição feminina não modificarão essa constância. Declínio progressivo do papel materno em benefício dos valores profissionais? Nada permite afirmá-lo. Há uma reciclagem histórica do papel materno, não o abandono do modelo.” Mais: escolher viver uma estética particular que privilegia o silêncio, o distanciamento calculado e as relações de amor e amizade em bases igualitárias é uma possibilidade acessível a apenas algumas mulheres altamente escolarizadas, profissionais e independentes financeiramente, que podem transitar entre contingências e desejos, avisa Eliane. “Se o single lifestyle e as residências de uma pessoa continuarão a se impor como uma tendência, não tenho uma conclusão, mas, talvez, as solteiras estejam reinventando a ‘solidão’, transformandoa em ‘aventura’”, completa a pesquisadora. Nem só, nem mal acompanhada. ■

‘aventura’”

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Desespero: Judith Villegas, que teve os sobrinhos recrutados pelas Farc

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> HISTÓRIA

A ORDEM DA GUERRA

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passagem do ano foi celebrada ao som do nome das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), em razão da malograda, porém largamente coberta pela mídia, Operação Emanuel, que reuniu figuras díspares como o cineasta Oliver Stone e o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, na tentativa de recuperar alguns dos muitos reféns seqüestrados pelo grupo guerrilheiro, que, dependendo do interlocutor, é visto das maneiras mais diversas. Para o Estado colombiano e, em especial para os EUA pós11 de Setembro, elas são um grupamento de terroristas. Para parte da mídia, eles não passariam de uma organização que, depois da queda dos cartéis, monopolizou o narcotráfico. Para tentar decifrar o enigma, alguns pesquisadores estão analisando a atuação do grupo guerrilheiro, como o sociólogo colombiano Jesus Izquierdo, que defendeu sua tese de doutorado Meninos não choram: formação do habitus guerreiro nas Farc-EP na Universidade Federal do Ceará, recémpublicada em livro pelas edições UFC. “Com acusações mútuas e desconfiança, guerrilha e Estado, numa conversa de surdos, não conseguem definir os termos adequados para acabar com a guerra. Enquanto o conflito se alastra porque seus protagonistas querem vencer pela força das armas, essa luta ganha sempre fôlego e se orienta a um fim imprevisível e o habitus guerreiro das Farc só se reafirma.” Segundo ele, é preciso tentar entender como um grupo exíguo de 48 homens que enfrentaram as Forças Armadas em maio de 1964, em Marquetalia (local e data místicas para a guerrilha), conseguiu se constituir num exército de mais de 20 mil homens e mulheres que se espalha por todo o território colombiano. Em suma, como o grupo evoluiu de um movimento de autodefesa camponesa, nos anos 1950 e 1960, para uma oposição feroz ao atual regime, chegando mesmo a tentar tomar o poder na Colômbia. Ao mesmo tempo, o grupo chega a quase 4 décadas de existência sem cumprir seus principais objetivos políticos que, observa, dados o baixo nível cultural de seus membros, a escassa formação política, uma resistência a mudanças, o predomínio do centralismo em detrimento da democracia e os altos custos político-éticos de suas decisões organi-

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As Farc podem ter se transformado em “gigante militar, mas anão político e democrático” zacionais, pode dar razão a quem diz que as Farc são “um gigante militar, mas um anão político”. Isso não é, porém, uma novidade: “A existência da guerrilha no país é um fato evidente e antigo, datando do início do século XIX na forma de grupos que defendiam camponeses de intervenções violentas do Estado, em especial durante o longo governo do Partido Conservador”, explica Izquierdo. Até a década de 1960, a população se concentrava majoritariamente nas zonas rurais, em que a terra era administrada por latifundiários sem fiscalização do Estado. Em 1930, com a derrota dos conservadores, o Partido Liberal assumiu o poder para, após 16 anos de governo, pouco se diferenciar, nota o pesquisador, do seu rival político. “A acumulação do capital se deu em setores de produção, como o cafeeiro, excluindo amplas bases sociais. Em meio a isso, surgiram líderes camponeses com grande força de articulação social, o que levou os latifundiários a pressionar o governo para controlar a situação nas áreas rurais de forma violenta.” Diante desse quadro “quase feudal”, surgiu a figura de Jorge Gaitan, um liberal extremado e caudilhista que acirrou o discurso dos camponeses na luta pelo equilíbrio das relações do trabalho agrário, gerando movimentos como as Ligas Camponesas, instrumento de coesão do setor rural para expressar suas demandas. Em pouco tempo, de defensora dos camponeses, as Ligas ampliaram sua luta para mudanças radicais na sociedade. Iniciaram-se invasões de terras, o que levou o conflito de idéias para o conflito armado em ambos os lados, camponeses e latifundiários. Com o retorno dos conservadores, em 1946, muitos camponeses, observa Izquierdo, se voltam para o Partido Comunista Colombiano (PCC), “mas, mais do que a ideologia, foi o peso da exclusão social que motivou a Liga a se opor ao sistema”. Após o assassinato de Gaitan, em 1948, iniciouse o período chamado de Violência, que se estendeu por 20 anos na Colômbia, uma guerra civil entre o setor rural e os proprietários de terra com proteção do Estado, para quem a união de camponeses em assentamentos comunistas estaria criando Repúblicas independentes, ameaça à soberania do país. Um desses lugares, Marquetalia, foi atacado em maio de 1964, por grande contingente de soldados que foram rechaçados por 48

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indicação de apoio geral; antes revelam como “a miséria colombiana praticamente empurrou grupos menos favorecidos para o discurso insurgente como forma de um futuro supostamente alternativo”. Izquierdo concorda. “Crianças e jovens mostram-se mais disponíveis para trilhar os caminhos da revolução. A falta de oportunidades pode ser o motivo para que o jovem camponês veja na guerrilha uma oportunidade de romper com o ciclo de poucas oportunidades de trabalho”, afirma. Num triste paradoxo, notam Medina e Graciela, “a falta de controle das Farc, com sérios problemas de formação política, se traduz em práticas autoritárias e em fonte de violação de direitos humanos”. ais, notam os autores, “o baixo nível educacional de boa parte de seus membros, somado à primazia das ações militares, leva a um empobrecimento do debate político e ao estabelecimento de um grande abismo entre os comandos mais elevados e a base imensa dos combatentes. Daí a opção pelo afastamento do PCC e a ligação com uma espécie de bolivarismo, que esconde “uma tensão permanente entre campo e cidade, em que se escancara o desprezo dos guerrilheiros pelos problemas urbanos e por seus cidadãos, vistos como inferiores ao soldado-camponês, com sua destreza superior e sua capacidade

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homens. Nascia o imaginário das Farc. “O movimento guerrilheiro foi o resultado do processo de transformação de um movimento agrícola que, nos percalços da luta armada, se deparou com a necessidade de procurar uma ideologia que desse consistência a seu projeto político. Daí a entrada do PCC como base social das Farc.” Nas regiões onde a ausência do Estado era quase total eles exerciam grande influência sobre as comunidades, passando a delimitar padrões sociais e estabelecer e afirmar valores, nota Izquierdo. Segundo ele, os guerrilheiros ostentavam poder e viraram referencial de autoridade em meio a focos de pobreza. “Com o passar do tempo, esse poder se consolidou e mostrou aos guerrilheiros que as práticas violentas, inicialmente justificadas como necessidade de proteção, eram um instrumento de conquistar visibilidade e reconhecimento social.” As comunidades pobres e afastadas tornaram-se o seu alvo para ampliação de quadros e, assim, o maior número de integrantes das Farc é de origem camponesa, incluindo-se aí uma prática crescente do grupo, que é o recrutamento forçado, até mesmo de adolescentes. Em El orden de la guerra, estudo referencial sobre a guerrilha, organizado por Juan Medina e Graciela Ramón, os pesquisadores alertam que é um erro afirmar que os altos níveis de recrutamento das Farc sejam

Guerrilha armada: muita luta e pouca política

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de suportar as agruras cotidianas da guerrilha e seu conhecimento do povo e do território de ação”. Essa postura, aliás, apontam os pesquisadores, é um calcanhar-de-aquiles do grupo, que não sabe apresentar propostas para políticas urbanas contemporâneas, perdendo apoio significativo das cidades, o que leva a um prolongamento indefinido do conflito. Outro é a ligação com o narcotráfico em que as Farc, para sustentar o crescimento de seu efetivo, sacrificaram sua legitimidade política e reconhecimento ético como organização que se propõe a conduzir a sociedade. “Ao cobrarem impostos, regularem o comércio e servirem de interface aos traficantes, os guerrilheiros sustentam de forma autônoma a guerra, mas, ao mesmo tempo, corroem a legitimidade ética do movimento.” Daí a reação cada vez mais forte da sociedade civil colombiana contra as extorsões, os seqüestros, os assassinatos de civis e a interface com o narcotráfico, levando a marchas de protesto contra as Farc, fortalecendo os grupos paramilitares de extrema direita, ligados, em boa parte, ao tráfico de drogas. Ou, como observa Izquierdo, “no fogo cruzado entre Farc e seus inimigos, formou-se um círculo vicioso entre a necessidade da guerra para gerar lucros e necessidade de lucros para robustecer o aparato da guerra”. Mais: a avidez pelo dinheiro do narcotráfico reforçou a violência entre a guerrilha e os paramilitares, fenômeno criado pela junção de interesses de militares do Estado, comunidades locais, latifundiários, empresários e grupos de narcotraficantes cuja missão é aniquilar as Farc. “Guerrilheiros de extrema esquerda e paramilitares de extrema direita disputam na arena da guerra os lucros gerados pela produção e comercialização de cocaína.” No meio dessa disputa, sem dimensão ideológica, está a população, que, nota o cientista político Boris Salazar em seu La hora de los dinosaurios, “é disputada pelos grupos como fonte de apoio e crescimento; assim, a interação entre Estado, insurgência e grupos paramilitares é que o povo e a economia civil se converteram em objetivo militar central de um enfrentamento cujo curso se afasta cada vez mais das normas que regulam os conflitos convencionais”. É nesse contexto, afirma Irina Gato Aranol, da Universidade Autónoma de Occidente, em seu artigo “El secuestro como ato de

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local ou regional (empresas, partidos políticos, organismos do Estado etc.). Finalmente, se estabeleceu a cultura do enriquecimento rápido por toda a sociedade colombiana, do risco, do prêmio ao mais ousado, relegando o trabalho duro, a acumulação lenta, o esforço produtivo, a um lugar inferior.” A cultura da captura de rendas especulativas e de apropriação privada de bens públicos, o familismo amoral, se fez dominante em amplos setores da sociedade colombiana. violência se transformou em “arma de persuasão” dos dois protagonistas, Estado e guerrilha, sem qualquer consideração humanitária ou pelos interesses sociais e econômicos dos grupos afetados pela luta, avisa Pécaut. “Isso vem levando a população a adotar posturas oportunistas de curto prazo, por razões de sobrevivência e aferição de vantagens, o que se expressa em organizações civis dispostas a acordos regulados pela violência da coação armada, destruindo valores sociais que poderiam servir como freio aos conflitos, cada vez de mais de difícil resolução.” Para o pesquisador francês, “a primazia dada à obtenção de recursos financeiros relegou a um plano secundário a fonte de construção de apoios sólidos no seio da população e, assim, o trabalho de politização fica cada vez mais precário”. Restaria, continua, ao grupo manter para sempre a postura militarista e violenta e esperar o apoio da conjuntura de países vizinhos, como a Venezuela de Chávez, que, igualmente bolivaristas, seriam uma forma de tirar as Farc do vácuo de futuro em que se encontram. Mas haveria um outro futuro? Um decreto de 2002 garante aos desertores de grupos armados a proteção da lei. “O grande desafio será a desconstrução do habitus guerreiro no processo de reconciliação nacional. Como fazer para que homens de guerra, que viveram anos na clandestinidade, tornem-se cidadãos da pátria e prescindam da mediação da violência. Será preciso muito esforço para acolher e facilitar a inserção à vida civil dos ex-combatentes, pela combinação de esforços conjuntos de todas as instâncias sociais”, afirma Izquierdo. Os meninos precisam rea■ prender a chorar.

A Passeata contra a violência das Farc na Colômbia

violácion de derechos em el conflicto colombiano”, que devem ser vistos os seqüestros feitos pelas Farc. “O ato do seqüestro, além de fonte de dinheiro, é uma demonstração de força da guerrilha que quer mostrar a solidez do seu trabalho logístico militar, reiterando a já mais não tão nova estratégia dos grupos armados guerrilheiros para desequilibrar o governo”, analisa a pesquisadora. “Trata-se de levar o Estado, por meio de ações de terror contra a população, a uma negociação nos termos definidos pelas Farc nos últimos anos. O objetivo fundamental, agora, não é mais a derrota militar das Forças Armadas regulares, mas a erosão contínua e crescente da capacidade do governo para proteger os cidadãos até fazê-lo inviável em sua dimensão fundamental: a segurança de todos”, observa Salazar. “Há nisso uma espécie de inércia no movimento, pois aumenta cada vez mais o fosso entre a capacidade militar e a credibilidade política dos guerrilheiros. Estar apenas ‘contra o Estado’, sem outras propostas efetivas, vai levar apenas mais miséria e sofrimento ao povo colombiano, sem perspectiva de mudanças democráticas”, nota Daniel Pécaut, da Escola de Altos

Estudos em Ciências Sociais de Paris, em seu artigo “Les Farc: puissance militaire, carences politiques”. Para o pesquisador, o que está em jogo é uma forma de “proteção nos moldes da máfia siciliana que repousa sobre a imposição de um constrangimento coletivo em que os custos que isso implica em termos de perda de liberdade seriam compensados, na lógica guerrilheira, pelos benefícios em termos de interesses”. “As Farc podem suprir a ausência do Estado, mas à medida que vão consolidando suas ligações com a economia ilegal da coca e dos seqüestros têm mais e mais incentivos para deixar o Estado de lado. É uma guerra por mais Estado, contra o Estado”, notam Medina e Graciela. Isso também vale em suas relações com o narcotráfico, não restritas apenas ao cultivo e aos impostos cobrados para servir de interface de traficantes. “A economia do narcotráfico desestruturou a unidade e funcionalidade da família camponesa que estava nas zonas cocaleiras, antes das Farc, e, infelizmente, continua a fazê-lo, gerando outro círculo vicioso terrível. Logo penetrou em outras instituições e organizações que davam sentido à ordem social e política

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> LITERATURA

Ditadura kafkiana Autor tcheco foi lido como escritor que poderia lançar luzes sobre a vida nacional durante o regime militar G O N Ç A LO J U N I O R

REPRODUÇÕES DO LIVRO KAFKA DE CRUMB

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ranz Kafka (1883-1924) foi, provavelmente, o escritor mais influente do mundo no século XX. Mesmo que nem todos confessem ou percebam a inspiração, que pode ter vindo por meio de terceiros. Embora ainda considerado de leitura “difícil”, o escritor tcheco até poderia ser chamado de ícone pop. Nos EUA, ainda na década de 1960, por exemplo, Kafka teve sua estampa difundida pelo pai da pop art, Andy Warhol. O episódio “Little Girl in the Big Ten”, do desenho The Simpsons, exibido em 2002, mostrava Lisa Simpson freqüentando um bar de intelectuais chamado Café Kafka – quase o mesmo nome que Erico Verissimo deu ao seu bar no romance Incidente em Antares: Kafé Kafka. Quem passar numa livraria encontrará adaptações nacionais e estrangeiras de seus contos e romances para os quadrinhos. Um dos grandes sucessos da década de 1980 foi a música Uma barata chamada Kafka, do grupo Inimigos do Rei. No caso do Brasil, essa popularidade, no entanto, é um fenômeno relativamente recente. Basta considerar que somente três décadas depois da morte de Kafka seus livros começaram a ser discretamente publicados aqui. Exatamente no momento em que o país entrava numa ditadura, Kafka ganhou mais espaço nas livrarias. Teria sido mera coincidência? Talvez. Eduardo Manoel de Brito, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP e doutor em letras, língua e literatura alemã, investigou essa relação em seu doutorado “Quando a ficção se confunde com a realidade: as obras A colônia penal e O processo como filtros receptivos da ditadura civil-militar brasileira”, orientado por Celeste H. M. Ribeiro de Sousa. Conclui que Kafka foi lido, apesar de não exclusivamente, mas de fato, como um escritor que poderia lançar luzes sobre a situação política vivida pelos brasileiros durante os anos da ditadura. Outros também o consumiram porque sua obra refletia sobre questões existenciais fundamentais – o ser lançado no mundo, o vazio da existência, o sentimento de uma culpa adâmica nunca superado. Contudo, explica ele, os textos O processo e A colônia penal tiveram como uma de suas razões de recepção mais fortes o fato de que mostravam literariamente o que vários brasileiros viviam e sentiam PESQUISA FAPESP 145

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na pele. “Não por acaso, a tortura está presente em ambos os textos kafkianos”, observa. De acordo com Brito, a junção das fontes comprovadoras da tese, como artigos de jornais e revistas (acadêmicos e não-acadêmicos), as entrevistas e a análise da propriedade mesma do texto ser interpretável como uma espécie de crítica à violência, mostra que críticos intelectuais brasileiros leram e divulgaram textos kafkianos como formas de refletir e criticar a política repressora da época. Primárias - A demora para

Kafka ser traduzido no Brasil, revela o pesquisador, aconteceu porque havia informações primárias ou desconhecimento sobre o escritor que poderiam criar a idéia de que ele seria um autor quase intraduzível. O tradutor Modesto Carone chegou a mencionar em entrevista a Brito que leu em algum lugar que Kafka teria escrito suas obras em tcheco. “O mercado parece que não estava muito animado a traduzi-lo, visto ser ele considerado complexo. Mas, na década de 1960, havia já bastante informação sobre o autor. Ajudou nesse sentido a publicação de A metamorfose nos anos de 1950. Portanto, era possível um risco calculado para sua publicação mais sistemática.” A motivação inicial que veio depois, acredita Brito, foi mercadológica. Sua pesquisa, porém, é uma tentativa de mostrar o uso possível da literatura estrangeira como um instrumento capaz de varar o “silêncio” instaurado pela Censura. “Naturalmente, a ditadura impunha um silenciamento à crítica, em especial depois de 1969, com o AI-5. Assim, ler situações de tortura, perseguições sem sentido, mortes praticadas por um sistema político na obra de Kafka eram formas de superar o silenciamento imposto pelo regime e levar as pessoas a encontrarem no texto literário aquilo que era proibido de ser discutido abertamente.” Desse modo, acrescenta, quando alguns críticos falavam da ditadura soviética, relacionan92

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do textos kafkianos com o ambiente ditatorial brasileiro, eles varavam o silêncio imposto, driblavam o regime de perseguição política brasileiro. No fundo, nas entrelinhas, a crítica era ao sistema brasileiro. Brito afirma que há textos que explicitamente relacionam Kafka com violências praticadas no Brasil. Mesmo quando as palavras “Brasil” e “ditadura civil-militar brasileira” estão ausentes. Um bom exemplo disso é o artigo de Antonio Candido “A verdade da repressão”, de 1972. No ensaio, a questão é apresentar a polícia que tortura. “Não há menção à polícia brasileira, mas, dentro da generalidade do texto, é bem perceptível a crítica à polícia que torturava e tentava criar sua verdade a partir do discurso daquele que era torturado.” Além disso, com a dissolução do regime no final dos anos 1970, surgiram artigos mais explícitos, relacionando Kafka e a ditadura nacional, até chegar aos anos 1990, com a obra Os leopardos de Kafka, de Moacyr Scliar, que trata explicitamente do assunto. O pesquisador não encontrou registro que indicasse que tenha havido algum controle sobre a obra de Franz Kafka pelo governo – leia-se, Censura. “Na verdade, o escritor seria hermético demais para ser diretamente relacionado com situações políticas brasileiras.” Moacyr Scliar trata disso no seu livro, quando um policial mostra o quanto podia ser chucro diante de um texto literário de alto nível. O mesmo, contu-

do, não aconteceu na Europa: Kafka foi censurado na ditadura nazista e foi um problema real na ditadura soviética. “Durante o nazismo, Kafka foi censurado por ser um escritor judeu. Na ditadura soviética, tornou-se um problema diante do realismo soviético, tendo havido, inclusive, congressos para definir como tratá-lo dentro do contexto da literatura a ser apresentada nos países comunistas.” Violência - O doutorado de Brito foca

o tema a partir de três pontos principais: o conceito de violência, literaturidade e função social da literatura. Ele observa que, no primeiro caso, recorreu ao conceito de Hannah Arendt, mas dialoga com Walter Benjamin (Crítica da violência, crítica do poder) e Michel Foucault (Vigiar e punir) e a questão dos micropoderes. “Estes autores possibilitaram uma reflexão sobre a violência e a questão da violência do Estado.” A idéia de literaturidade vem do formalismo russo e seria a idéia de buscar o especificamente literário no texto de literatura. “Ou seja, por mais que eu faça uma interpretação social do texto, a fundamentação crítica, a análise profunda do texto é literária.”

Sua preocupação era tratar a crítica da obra kafkiana como um estudioso de literatura, e não como um sociólogo, por exemplo. “A função social da literatura eu a encontrei em estudos de Antonio Candido, com quem eu também mantive uma correspondência breve durante os primeiros anos da escritura do meu trabalho. Era importante para mim a discussão sobre qual a função da literatura – buscando o enfoque social – sem abrir mão da crítica literária específica, daí a fidelidade aos princípios defendidos pelo formalismo russo.” Ele encontrou isso no crítico Antonio Candido, que não instrumentaliza a literatura em favor de outra coisa que não o valor literário estético, mas que parte da obra literária para tocar a vida em sociedade. ■

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RESENHA

O judeu em cada um de nós Estudo revela presença da descendência dos cristãos-novos brasileiros L É A V I N O C U R F R E I TAG

sta obra do historiador Paulo Valadares foi originalmente feita sob a orientação da professora Anita Novinsky, o que confere um aval respeitável em termos de trabalho acadêmico. O autor realizou uma investigação paciente e fecunda, analisando documentos na Biblioteca Municipal Mário de Andrade, Centro Cultural Vergueiro, PUCCamp, IFCH-Unicamp e FFLCHUSP (São Paulo), Real Gabinete Português de Leitura carioca, Arquivos Distritais portugueses, Biblioteca Pública Municipal do Porto e Bibliotecas Nacionais de Lisboa e Madri. Valadares é um nome de destaque na linha de pesquisa histórica e genealógica, co-autor do Dicionário sefaradi de sobrenomes, ao lado de Guilherme Faiguenboim e Anna Rosa Bigazzi, premiado em 2003 como “o melhor livro de referência judaica”. Pertence a Sociedades Genealógicas Nacionais e Internacionais e vem publicando trabalhos em revistas especializadas, com temas instigantes, como “Os Mesquitas do Estadão vistos pela genealogia judaica”. A presença oculta é o primeiro trabalho acadêmico que buscou responder a uma questão central na história da formação nacional: o que aconteceu aos descendentes dos cristãos-novos no país? “Com o fim da Inquisição terminou a perseguição à cultura dos cristãos-novos no Brasil, mas continuou a existir o estigma que satanizou o judeu. Tanto que os poucos judeus que chegam no período a seguir não se identificam como tal: eram “hebreus”, “israelitas”, “russos”, “alemães”, “franceses” etc. O mesmo se deu com o nome das instituições judaicas, que preferiram denominar-se “israelitas”.

E A presença oculta Paulo Valadares Fundação Ana Lima 292 páginas

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Nos anos 1930 e 40 o anti-semitismo difundiu-se no Brasil, inclusive pela influência do integralismo. Fernando Raja Gabaglia, diretor do respeitado Colégio Pedro II e descendente da cristã-nova Branca Dias, foi questionado pelo ministro Gustavo Capanema sobre a forte presença judaica na instituição – soube contornar o problema defendendo a liberdade religiosa e a integração dos seus alunos. Um dos expoentes da diplomacia brasileira no pós-guerra foi Hugo Gouthier de Oliveira Gondim, falecido em 1992, da linha genealógica de Branca Dias. Chegou ao posto de embaixador brasileiro na Itália, comprou e restaurou o Palácio da Piazza Navona, em Roma, mantendo amizade com grandes personalidades internacionais, como Kennedy. Foi aposentado compulsoriamente em 1964 e teve os direitos políticos cassados. Nomes ilustres da sociedade brasileira têm suas origens ligadas a cristãos-novos: “Antônio Henrique Cunha Bueno, neto materno de Maria Cursina de Leão, baiana de Macaúbas, foi deputado federal por São Paulo. Defendeu a comunidade judaica durante os seus mandatos legislativos e membros de sua família são voluntários em instituições judaicas”. O historiador Sérgio Buarque de Holanda, autor de Raízes do Brasil, pai de Chico Buarque, chegou a ser inquirido pelo regime nazista, quando estudou na Alemanha. Aparece nas pesquisas genealógicas como descendente de Abraham Senior. Outras personalidades dos meios econômicos e empresariais citados por Paulo Valadares são Luís Eulálio de Bueno Vidigal e Gastão Vidigal, este último presidente do Banco Mercantil. Referindo-se aos “profetas hebreus que nos espiam das Gerais”, Valadares vê na cultura cristã-nova das serras mineiras uma opção pelos profetas judeus, mais do que pelos apóstolos cristãos. Em Congonhas do Campo os profetas estão fora da igreja e são imagens dessacralizadas – os católicos preferem cultuar sua fé dentro da igreja. Nessa linha de idéias, o autor observa também uma aproximação dos carmelitas com os judeus, exemplificando com os fundadores da Ordem, santa Teresa d’Ávila e são João da Cruz, ambos de origem cristã-nova. Em Ouro Preto o profeta Elias é reverenciado na Igreja N.S. do Carmo, e é comum encontrar nas igrejas imagens de Abrão e Moisés. LÉA VINOCUR FREITAG é professora titular pela Escola de Comunicações e Artes (USP) e doutora em Ciências Sociais (USP).

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LIVROS

Logística e transporte no processo de globalização: oportunidades para o Brasil Josef Barat (org.) Editora Unesp / IEEI 256 páginas, R$ 36,00

Michel Zaidan Filho e Otávio Luiz Machado (orgs.) Editora Universitária UFPE 260 páginas, R$ 30,00

Josef Barat reúne em seu livro pesquisas que contribuem para a discussão sobre a logística de transporte, fator cada vez mais relevante para o aumento dos PIB nacionais. A obra atenta para o panorama atual de mudanças no processo produtivo decorrentes da globalização dos mercados e abertura de países da periferia ao capital internacional.

Pesquisadores de diversos campos de conhecimento que estudaram ou vivenciaram o movimento estudantil brasileiro a partir de 1950 buscam empreender uma análise histórica e sociológica de diversos aspectos referentes à formação política de jovens, o papel da universidade na educação brasileira, a reforma universitária, entre outras questões.

Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br

Editora Universitária UFPE (81) 2126-8397 www.ufpe.br/editora

Mídia e Poder Judiciário: a influência dos órgãos da mídia no processo penal brasileiro

O diário de Jonathas Abbott

Fábio Martins de Andrade Lumen Juris Editora 445 páginas, R$ 75,00

Levantando questões como o conceito de opinião pública, o caráter empresarial da imprensa, a notícia como produto das atividades jornalísticas, o papel ocupado pela mídia no cenário atual, a questão ética e a responsabilidade pessoal do jornalista, o livro procura demonstrar a influência da mídia no trâmite do processo penal. Lumen Juris Editora (11) 5908-0240 www.lumenjuris.com.br

Soldados da pátria: história do Exército brasileiro 1889-1937 Frank D. McCann Companhia das Letras 707 páginas, R$ 69,50

FOTOS EDUARDO CESAR

Movimento estudantil brasileiro e a educação superior

Fernando Abbott Galvão Francisco Alves Editora 525 páginas, R$ 44,00

O diário do médico inglês que aportou em Salvador em 1812 relata principalmente a viagem que ele fez à Europa, entre 1830 e 1832, para conhecer e aprender as últimas técnicas com os grandes médicos da época. Entre descrições de procedimentos cirúrgicos, viagens acidentadas, reencontros, o jovem londrino faz um registro das aventuras de seu tempo. Francisco Alves Editora (21) 2240-7989 falveseditora@globo.com

A ditadura militar argentina 1976-1983: do golpe de Estado à restauração democrática Marcos Novaro e Vicente Palermo Edusp 747 páginas, R$ 81,00

Numa narrativa que começa com a queda do Império, percorre toda a República Velha e vai até a instauração da ditadura do Estado Novo, em 1937, Soldados da pátria enfoca quase meio século da história do Exército brasileiro, atentando não só para os acontecimentos marcantes da história, mas também para as idéias, motivações e atitudes dos militares.

Os autores deste livro dedicam-se a levantar questões sobre os 7 anos de ditadura na Argentina através de inúmeras fontes, tanto aquelas produzidas pelos dirigentes do processo ou textos jornalísticos, como também aquelas de fonte testemunhal ou analítica. As mudanças nos rumos que a economia argentina vinha adotando desde 1930, as quais permanecem até os dias atuais, também são analisadas na obra.

Companhia das Letras (11) 3707-3500 www.companhiadasletras.com.br

Edusp (11) 3091-4008 www.edusp.com.br

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FICÇÃO

Vênus e Marte

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professor doutor Paulo Schmidt, livre-docente do Departamento de Microbiologia de uma das mais respeitadas universidades do Brasil; reconhecido mundialmente por seus achados científicos; famoso pelas polêmicas com os colegas; querido por alguns; detestado por muitos; em uma manhã calorenta do mês de dezembro enviou um e-mail ao também professor doutor Silvio Nogueira, publicamente seu adversário acadêmico e, privadamente, seu rival em uma questão amorosa, propondo que após mais de 25 anos de hostilidades intelectuais e de um rompimento pessoal, escrevessem e publicassem juntos um trabalho científico. Quando o professor Nogueira recebeu a mensagem, imediatamente a lembrança de Laura veio à sua mente. Como ela estaria? Trazia sua imagem congelada na memória, o que a conservava intocada pela idade. O outro era um homem prático; um tanto tímido pessoalmente, mas um adversário formidável nas querelas científicas. Leu a mensagem duas vezes, e adquiriu a certeza de que ali havia mais do que estava escrito. Sabia o que fazer: em poucos minutos havia encontrado o número do telefone do professor Paulo. Quando foi atendido não soube como cumprimentar o antigo amigo. Mas teve suas suspeitas confirmadas: tratavase muito mais do que a publicação de um paper. O professor Paulo revelou-lhe que tinha a confirmação, já fazia dois meses, de ser portador de um tipo particularmente agressivo de câncer e sua esperança de vida era pequena. Esta era a notícia ruim. A notícia boa era que havia encontrado um tipo de enzima que possuía um enorme interesse científico e econômico, pois viabilizava a transformação de celulose em etanol, com uma eficiência sem paralelo. Mas, com a doença, não estaria, brevemente, em condições de continuar seus trabalhos. Propunha, enfim, que ele assumisse seu lugar, como líder daquele projeto. — A troco de quê, Paulo? — perguntou, agressivo. — A troco de minha paz. Não quero que você me perdoe

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pelo passado. Mas não vou morrer em paz se deixar este projeto na mão dos incompetentes daqui e dos aproveitadores de fora. Só você pode terminar o projeto, cuidando de uns e de outros. Respondeu que iria meditar. Desejou boa sorte ao colega e desligou o telefone. Em casa, o professor Nogueira sentiu-se confuso para narrar aquele dia ímpar para sua mulher. Quando terminou, Bia lhe fez a pergunta inevitável, se Paulo havia mencionado Laura. Não; não mencionou o nome dela, eu também não perguntei. Ah! Bom..., fez ela introspectivamente, o faro de mulher desconfiando. O que ele iria fazer? Não sabia. Ou melhor: sobre Paulo Schmidt sabia tudo; conhecia em detalhes sua linha de pesquisa, desde a graduação seguiam caminhos paralelos. Compartilhavam o mesmo interesse pelas enzimas e tinham um passado em comum. Haviam morado na mesma república nos tempos da faculdade. Paulo havia lhe roubado Laura, que era a sua namorada. Não sentia culpa quando, como “assessor” e protegido pelo anonimato, emitia pareceres cáusticos sobre os trabalhos dos orientandos de Paulo. Uma vez, no comitê científico de que fazia parte, havia dado um parecer desfavorável a um pedido do próprio Paulo. Não julgava isso um mal; ou uma desonestidade. Eram as regras de um jogo que o próprio Paulo também jogava. Assim, eram rivais na ciência e na vida. Lembrava-se de Paulo, na época da república, recémchegado de Paris, proclamando um exílio político nunca comprovado. Exibia o charme do romantismo ideológico da época; falava do socialismo e do Instituto Pasteur. Ele nunca tinha saído do Brasil; não tinha os dotes e os encantos do colega; não sabia música e dançava sem jeito. Era apenas um bom aluno, e tinha o senso pragmático que o levou a ser bem- sucedido na carreira; não era um romântico. Para Laura, a escolha foi fácil. Casou-se com Paulo, tiveram dois fi-

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LUANA GEIGER

lhos, e apesar de sua fama de garanhão da universidade, eles se mantiveram juntos por quase três décadas. Passou a dormir mal. Como católico praticante, confessou e comungou. Mas a confissão não o aliviou e, uma noite, tentou sair de uma amargura que imaginava apagada pelo tempo, narrando para o filho como ele mesmo havia apresentado Laura a Paulo. Era 1975. Uma noite, chegou na república com Laura na hora em que Paulo tentava reproduzir no violão os acordes de Venus and Mars, do Paul McCartney. Ela conhecia a canção. Em pouco tempo, Paulo a acompanhava, enquanto ela, sentada no tapete, as pernas cruzadas, cantava: Standing in the hall of the great cathedral, Waiting for the transport to came, Starship 2IZNA9, A good friend of mine studies the stars Venus and Mars are alright tonight. Viu, então, surgir o encanto mútuo; o Paulo; a Laura. Tentou o que pôde, mas era uma luta perdida. O resto o filho já sabia. O professor Paulo Schmidt faleceu quatro meses depois. O próprio filho do amigo de juventude telefonou dando-lhe a notícia. Teve que suportar o murmúrio que sua chegada provocou no velório, acompanhado por Bia e os dois filhos. Lá estava Laura com os cabelos grisalhos, desmentindo com sua velhice viva a fotografia congelada de sua memória, serena, que abraçou ele e Bia, e ele viu que era sincera ao agradecer por terem comparecido: – Por favor, Bia, acredite. Paulo sempre se considerou amigo de seu marido. Algum tempo depois, atendeu em sua sala o diretor da faculdade onde o professor Paulo havia lecionado. Laura havia pedido que lhe entregasse o computador pessoal do falecido professor Paulo Schmidt, o qual continha todos os dados e anotações de suas pesquisas com enzimas. O dire-

tor piscou os olhos quando falou: porém o computador está travado com uma senha. O professor Paulo havia dito a Laura, antes de morrer, que era uma precaução para que aqueles dados não caíssem “nas mãos de aventureiros e incompetentes”. O professor Silvio Nogueira suspirou antes de perguntar: — E o que mais? O diretor enxugou o suor da testa com um lenço: — O professor Schmidt disse para sua esposa, Laura, que o senhor saberia como destravá-lo. Disse que o senhor sabe a senha. Então, tudo terminava ali. A ele caberia o epílogo daquela vida que ele conhecia, agora, em sua inteireza, do começo ao fim. Aquela vida, cristalizada em trabalho, estava ali, tudo estava em suas mãos. — O que mais ele disse? — perguntou, fazendo-se de ingênuo. — Que o senhor compreenderia quando lhe dissessem que tudo está entre o amor e a guerra. Suspirou mais uma vez. Despediu o diretor dizendo que não era bom em enigmas, mas faria o possível. Fechou a porta da sala, e resmungava, enquanto se dirigia para o computador, que eram mesmo uns incompetentes, oras! Amor e guerra, e nem conhecem rock antigo. Amor e guerra, Vênus e Marte. Ligou o computador, quando a máquina pediu-lhe a senha, sem vacilar, digitou: 2IZNA9. O computador zumbiu alegremente enquanto começava a dar acesso aos seus segredos, e o professor Silvio Nogueira ficou um longo tempo olhando por sua janela. CARLOS EDUARDO VIEGAS, economista pela Unicamp, é professor temporário no campus da USP em Pirassununga-SP. Doutorando em ciências sociais pela UFSCar-SP, pesquisa a teoria da guerra e aventura-se na ficção. PESQUISA FAPESP 145

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