V ENDA P ROIB IDA
ASSINANT E
Nº 148 ■
EXEMPLAR DE
Junho 2008
Junho 2008 Nº 148 ■
Ce ´ l u l a s - t r o n c o e m b r i o n a´ r i a s STF da´ aval `a primeira linhagem
ENT REV IST A
NEWTON DA COSTA
P E SQ U ISA
FAPESP
POR QUE OS CIENTISTAS SAO APAIXONADOS PELO QUE FAZEM
PRÍ ON
Ap r o t e ín a a m b iv a le n t e A mesma molécula que provoca o mal da vaca louca protege o cérebro > capa pesquisa assina-148.indd 1
ESPECIAL EXPOSICAO REVOLUCAO GENÔMICA III 5/30/08 8:07:48 PM
A revista
Pesquisa Fapesp convida para as palestras:
CIÊNCIA DO SISTEMA TERRESTRE E A SUSTENTABILIDADE DA VIDA NO PLANETA Carlos Nobre PESQUISADOR DO INPE E INTEGRANTE DO PAINEL INTERGOVERNAMENTAL SOBRE MUDANÇAS CLIMÁTICAS (IPCC)
> dia 14 de junho, sábado, às 15h
GENÔMICA NO MUSEU Rob DeSalle CURADOR DA SEÇÃO DE ZOOLOGIA DE INVERTEBRADOS DO MUSEU DE HISTÓRIA NATURAL DE NOVA YORK E CURADOR DA EXPOSIÇÃO REVOLUÇÃO GENÔMICA
> dia 15 de junho, domingo, às 11h
EXPANSÃO INTERNACIONAL DA ANTROPOLOGIA AMBIENTAL: EXPERIÊNCIAS NA AMAZÔNIA Emilio Moran PROFESSOR DE ANTROPOLOGIA E DIRETOR DO CENTRO ANTROPOLÓGICO PARA TREINAMENTO E PESQUISA EM MUDANÇAS AMBIENTAIS GLOBAIS DA UNIVERSIDADE DE INDIANA, NOS ESTADOS UNIDOS
DEBATE
CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS E MÍDIA Mayana Zatz [segundo nome a confirmar] GENETICISTA, É PROFESSORA DO INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS DA USP, PRÓ-REITORA DE PESQUISAS DA UNIVERSIDADE E COORDENADORA DO CENTRO DE ESTUDOS DO GENOMA HUMANO
> 06 de julho, domingo, às 15h
UMA VISÃO GENÔMICA DA EVOLUÇÃO HUMANA Wen-Hsiung Li PESQUISADOR DO DEPARTAMENTO DE ECOLOGIA E EVOLUÇÃO DA UNIVERSIDADE DE CHICAGO. ESTUDA MECANISMOS DE EVOLUÇÃO MOLECULAR E GENÔMICA
> 12 de julho, sábado, às 15h
GENOMAS E EVOLUÇÃO Michael Lynch BIÓLOGO DA UNIVERSIDADE DE INDIANA. ESTUDA OS MECANISMOS DA EVOLUÇÃO EM DIVERSOS NÍVEIS — GENE, GENOMA E ORGANISMO
> dia 21 de junho, sábado, às 15h
> 13 de julho, domingo, às 11h
ARROZ: UM EXEMPLO DE COMO A GENÔMICA PODE MUDAR AS ABORDAGENS DA CIÊNCIA Robin Buell
Parque do Ibirapuera, portão 10 pavilhão Engenheiro Armando de Arruda Pereira
PESQUISADORA DO DEPARTAMENTO DE BIOLOGIA VEGETAL DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MICHIGAN
> entrada franca
> dia 22 de junho, domingo, às 11h
GENÔMICA, SAÚDE E REPARAÇÃO CARDÍACA UTILIZANDO CÉLULAS-TRONCO José Eduardo Krieger
veja a programação completa de palestras e debates no site www.revistapesquisa.fapesp.br
ESPECIALISTA EM HIPERTENSÃO, É MÉDICO E PROFESSOR DA FACULDADE DE MEDICINA DA USP E DIRETOR DO LABORATÓRIO DE GENÉTICA E CARDIOLOGIA MOLECULAR DO INSTITUTO DO CORAÇÃO, INCOR
> dia 29 de junho, domingo, às 11h
ORGANIZAÇÃO
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FUNAI / FRENTE DE PROTEÇÃO ETNO - AMBIENTAL ENVIRA
IMAGEM DO MÊS
Saudades do
Brasil A Amazônia Legal ainda esconde 68 grupos indígenas vivendo em completo isolamento, sem nenhum contato com o Brasil que bate recordes na produção de automóveis e comemora a conquista do grau de investimento. Um desses grupos foi fotografado pela primeira vez por uma equipe da Fundação Nacional do Índio (Funai), próximo à fronteira do Acre com o Peru. De acordo com o sertanista José Carlos Meirelles, que monitora os índios há quase 20 anos, eles vivem em malocas e plantam mandioca e banana, mas não se sabe a que etnia pertencem. O grupo recebeu a flechadas o rasante do avião da Funai.
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GLAUCIA HAJJ/LICR
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CAPA
EDUARDO CESAR
ROBERTO SCOLA
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> CAPA
> ENTREVISTA
> POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA
16 Equipe brasileira
explica o funcionamento da forma saudável do príon, essencial para a proteção das células nervosas
10 Newton da Costa,
matemático criador da lógica paraconsistente, tem três livros reeditados > ESPECIAL III
28 JUSTIÇA
Decisão histórica do STF abre caminho para a primeira linhagem brasileira de células-tronco embrionárias
61 REVOLUÇÃO GENÔMICA
Debates e embates da ciência
30 SOCIOLOGIA
Por que a satisfação dos cientistas com seu trabalho é tão grande 34 DIFUSÃO
Exposição em Berlim mostra a riqueza da biodiversidade brasileira
38 UNIVERSIDADES
O emirado árabe de Dubai investe US$ 10 bilhões para virar um pólo internacional de ensino superior > AMBIENTE 40 FISIOLOGIA
Avidez das plantas por gás carbônico abre perspectivas de produzir mais alimento em menos espaço e de amenizar o aquecimento global
> SEÇÕES 3 IMAGEM DO MÊS 6 CARTAS 7 CARTA DA EDITORA 8 MEMÓRIA 22 ESTRATÉGIAS 50 LABORATÓRIO 83 SCIELO NOTÍCIAS ...........................
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> EDITORIAS
> POLÍTICA C&T
> AMBIENTE
> CIÊNCIA
> TECNOLOGIA
> HUMANIDADES
WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR
LAURA DAVIÑA
ADAO NASCIMENTO/AE
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EDUARDO CESAR
60 88
46 AGRICULTURA
Bactérias substituem fertilizantes nitrogenados como promotores do crescimento da cana-de-açúcar
> CIÊNCIA 54 FÍSICA
As palavras de ordem da e-Science são as mesmas dos heróis de Alexandre Dumas: um por todos, todos por um
> TECNOLOGIA
> HUMANIDADES
88 ESPAÇO
Câmera para fotografar superfície terrestre, feita por empresa brasileira, vai equipar o satélite sino-brasileiro Cbers-3
98 RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Pesquisa mostra as dificuldades das relações entre o Brasil e os Estados Unidos
48 MUDANÇAS CLIMÁTICAS
Ar mais limpo no hemisfério Norte poderá intensificar secas na Amazônia a partir de 2025
58 ZOOLOGIA
Comportamento do tangará-dançarino determina sua variabilidade genética
92 INFORMÁTICA
104 HISTÓRIA
Softwares livres atraem cada vez mais empresas e pesquisadores
Biografia do general Osório resgata a importância do militar no Segundo Reinado
94 ENGENHARIA 60 NEUROLOGIA
Ritmo de funcionamento cerebral pode indicar maior capacidade de aprendizagem
Equipamento de raios X desenvolvido por empresa paulistana revela impurezas em alimentos
............................ 84 LINHA DE PRODUÇÃO 108 RESENHA 110 LIVROS 112 FICÇÃO 114 CLASSIFICADOS
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CAPA MAYUMI OKUYAMA FOTO SPL/LATINSTOCK
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CARTAS cartas@fapesp.br
As reportagens de Pesquisa FAPESP mostram a construção do conhecimento essencial ao desenvolvimento do país. Acompanhe essa evolução. ■
Para anunciar Ligue para: (11) 3838-4008
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Assinaturas, renovação e mudança de endereço Envie um e-mail: fapesp@teletarget.com.br ou ligue: (11) 3038-1434 Mande um fax: (11) 3038-1418
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Edições anteriores Preço atual de capa da revista acrescido do valor de postagem. Envie e-mail para rute@fapesp.br ou ligue (11) 3838-4304
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Site da revista No endereço eletrônico www.revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP na íntegra e um arquivo com todas as edições da revista, incluindo os suplementos especiais. No site também estão disponíveis asreportagens em inglês e espanhol.
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Opiniões ou sugestões Envie cartas para a redação de Pesquisa FAPESP Rua Pio XI, 1.500 São Paulo, SP 05468-901 pelo fax (11) 3838-4181 ou pelo e-mail: cartas@fapesp.br
Ações afirmativas Cumprimento Pesquisa FAPESP por abordar as ações afirmativas (“Limites desafiados”, edição 146) sem preconceitos e baseada em pesquisas na área. No entanto, uma das pesquisas citadas, a da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), não trazia o nome dos autores nem referência para que fosse buscada. Foi a única em que não houve citação nominal dos autores (e eu sou um deles), nem do fato de ter sido publicada nos Cadernos de Pesquisa de maio-agosto de 2006, periódico Qualis A internacional da área de educação. Isso prejudica o contato do leitor com a fonte primária, o artigo, que aliás contém conclusões mais profundas, como o fato de cotas para escolas públicas não mudarem o perfil étnicoracial da UFSC, ao contrário do senso comum que diz que a questão racial se resolve automaticamente com a inclusão socioeconômica. Marcelo H. R. Tragtenberg UFSC Florianópolis, SC
Parabéns pela reportagem “Limites desafiados”. Tenho um comentário a fazer: refere-se ao estudo desenvolvido pela Universidade Federal de Santa Catarina, citado no texto. Tive acesso a esse estudo e recomendo à revista publicar uma referência para quem tiver interesse em conhecê-lo, pois vale a pena! Trata-se de uma proposta que, a meu ver, deveria ser realizada por todas as universidades que pretendem implantar algum programa de inclusão. Ana Inoue Centro de Estudar Acaia Sagarana São Paulo, SP
Mais verde
MIGUEL BOYAYAN
Parabéns pela reportagem “Mais verde do que imaginávamos” (edição 145). É de extrema importância abrir a discussão no meio acadêmico sobre a substituição dos ecossistemas natu6
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rais por culturas agrícolas e pastagens, ritmo que vem se intensificando dada a atual corrida por biocombustíveis, com destaque para o etanol. Não se questiona que o desenvolvimento de novas tecnologias do agronegócio seja essencial para o desenvolvimento do país e a qualidade de vida da população, mas não dá para aceitar que remanescentes de florestas nativas ainda sejam eliminados para o avanço da agricultura, uma vez que já existem extensas áreas desmatadas, muitas abandonadas ou subutilizadas, que somadas são maiores que alguns países europeus. Em Minas Gerais a situação não é diferente do restante do país: grandes áreas das regiões mais planas de Cerrado no Triângulo e no norte cederam espaço para culturas como a soja e para a pecuária de corte, e nas regiões montanhosas como o sul e a Zona da Mata a cultura do café e a pecuária leiteira reduziram as florestas nativas a fragmentos degradados e isolados em encostas e topos de morro de difícil acesso. Contudo, em Minas, iniciativas vêm sendo tomadas no sentido de frear o processo de conversão dos ecossistemas naturais em áreas antropizadas, entre elas cabe destacar a criação recente na Universidade Federal de Viçosa do Pólo de Excelência em Florestas pelo governo estadual. Através do Pólo de Florestas da UFV/governo de Minas será possível realizar treinamentos de técnicos ligados às instituições estaduais e federais sobre restauração florestal das áreas de preservação permanente já desmatadas e conservação de áreas protegidas, bem como monitorar e direcionar a atividade florestal do estado, visando à adequação ambiental das empresas agropecuárias, florestais e mineradoras. Sebastião Venâncio Martins Universidade Federal de Viçosa Viçosa, MG Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br, pelo fax (11) 3838-4181 ou para a rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP, CEP 05468-901. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.
PESQUISA FAPESP 148
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CARTA DA EDITORA FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO
CELSO LAFER
PRESIDENTE JOSÉ ARANA VARELA
Conhecimento, medo e paixão
VICE-PRESIDENTE CONSELHO SUPERIOR CELSO LAFER, EDUARDO MOACYR KRIEGER, HORÁCIO LAFER PIVA, JACOBUS CORNELIS VOORWALD, JOSÉ ARANA VARELA, JOSÉ DE SOUZA MARTINS, JOSÉ TADEU JORGE, LUIZ GONZAGA BELLUZZO, SEDI HIRANO, SUELY VILELA SAMPAIO, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO
Mariluce Moura - Diretora de Redação
CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO RICARDO RENZO BRENTANI
DIRETOR PRESIDENTE CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ
DIRETOR CIENTÍFICO DIRETOR ADMINISTRATIVO
ISSN 1519-8774
CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADOR CIENTÍFICO), CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTONIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, MÁRIO JOSÉ ABDALLA SAAD, PAULA MONTERO, RICARDO RENZO BRENTANI, WAGNER DO AMARAL, WALTER COLLI DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA
EDITOR CHEFE NELDSON MARCOLIN EDITORA SÊNIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS EDITORES EXECUTIVOS CARLOS HAAG (HUMANIDADES), FABRÍCIO MARQUES (POLÍTICA), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA), RICARDO ZORZETTO (CIÊNCIA) EDITORES ESPECIAIS CARLOS FIORAVANTI, MARCOS PIVETTA (EDIÇÃO ON-LINE) EDITORAS ASSISTENTES DINORAH ERENO, MARIA GUIMARÃES REVISÃO MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO EDITORA DE ARTE MAYUMI OKUYAMA ARTE JÚLIA CHEREM, MARIA CECILIA FELLI FOTÓGRAFOS EDUARDO CESAR, MIGUEL BOYAYAN SECRETARIA DA REDAÇÃO ANDRESSA MATIAS TEL: (11) 3838-4201 COLABORADORES ANA LIMA, ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS), DANIELLE MACIEL, DÉBORA PINHEIRO, GEISON MUNHOZ, HÉLIO DE ALMEIDA, LAURABEATRIZ, LAURA DAVIÑA, LEANDRO RODRIGUES E YURI VASCONCELOS.
OS ARTIGOS ASSINADOS NÃO REFLETEM NECESSARIAMENTE A OPINIÃO DA FAPESP É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO
PARA ANUNCIAR (11) 3838-4008 PARA ASSINAR FAPESP@TELETARGET.COM.BR (11) 3038-1434 GERÊNCIA DE OPERAÇÕES PAULA ILIADIS TEL: (11) 3838-4008 e-mail: publicidade@fapesp.br
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FAPESP RUA PIO XI, Nº 1.500, CEP 05468-901 ALTO DA LAPA – SÃO PAULO – SP SECRETARIA DO ENSINO SUPERIOR GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO
INSTITUTO VERIFICADOR DE CIRCULAÇÃO
e o prazer, a euforia, a excitação extrema são as emoções mais constantes de um pesquisador criativo no limiar do que ele, pelo menos, julga ser uma grande descoberta, um achado extraordinário, tenho a impressão de que o medo é o sentimento mais comum e banal, o mais freqüente, ante as descrições dos cientistas sobre algo novo e potencialmente ameaçador à vida que, de súbito e por acaso ou depois de um longo e calculado esforço, finalmente, encontraram. Pode ser a hipotética identificação de um meteorito cuja rota bem calculada indica seu choque dramático com a Terra dentro de alguns meses ou a previsão de um gigantesco e incontrolável tsunami em águas antes calmas do oceano Pacífico. Mas, na verdade, nada originário da seara dos cientistas é mais repetidamente aterrador do que suas descrições de novas e insuspeitadas doenças que se abatem sobre a espécie humana. Para ficar apenas em alguns exemplos das últimas décadas do século XX, podemos lembrar da Aids, de uma infecção mortal causada pelo vírus Ebola na África ou a forma humana do mal da vaca louca na Europa desde os últimos anos da década de 90, avançando pela primeira década do século XXI. Os saberes dos cientistas, julga o senso comum, se produzem medo quando nos conecta com a consciência individual de nossa indesejada finitude, também devem provocar imenso alívio quando informam sobre o achado dos antídotos para os males anunciados. Ou, ao menos, quando relativizam e situam em novo contexto aquilo que de início parecia apenas a encarnação do mal absoluto na natureza. É sempre gratificante, afinal, a notícia de que seguimos sobreviventes. E é disso, em certa medida, desse alívio face à relatividade do mal, que trata a reportagem de capa desta edição. Em termos mais concretos, ela relata como um grupo de pesquisadores brasileiros conseguiu explicar o funcionamento da forma saudável do príon, o chamado príon celular, espécie de contraface da proteína per-
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JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER
versa que provoca o mal da vaca louca. Melhor que isso, a equipe mostrou que o príon saudável é essencial para o crescimento das células nervosas, a formação da memória e a regulação do sistema imunológico. Mais ainda, como explica nosso editor de ciência, Ricardo Zorzetto, a partir da página 16, esses pesquisadores de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, coordenados pelo oncologista Ricardo Renzo Brentani (diretor presidente da FAPESP, registrese), apresentaram em artigo publicado em abril último na Physiological Reviews a mais ampla revisão sobre os agentes infecciosos da doença de Creutzfeldt-Jakob, “com informações que podem influenciar a terapia dessa enfermidade que se instala sorrateiramente ao longo de 2 ou 3 décadas e evolui a uma velocidade assustadora, levando a uma morte trágica”. Esclareçamos que essa doença tem quatro formas, uma das quais é a versão humana do mal da vaca louca. Mas há vários outros detalhes no texto de Zorzetto que tornam indispensável sua leitura. Gostaria de aproveitar para recomendar aqui insistentemente a leitura da entrevista de Newton da Costa a partir da página 10, feita por nosso editor-chefe, Neldson Marcolin, da reportagem sobre a revisão da vida e do papel do general Osório na Guerra do Paraguai, elaborada pelo editor de humanidades, Carlos Haag (página 104), e da reportagem sobre o maior combustível que move os cientistas dos anos 1970, de hoje e talvez de sempre, preparada pelo editor de política científica e tecnológica, Fabrício Marques: a paixão de entender, saber, compreender (página 30). E sugiro que façam uma viagem pelos textos das palestras ligadas à exposição Revolução genômica – o terceiro de uma série de cinco. Para concluir, resta o regozijo pela derrubada da ação de inconstitucionalidade da Lei de Biossegurança, no tocante ao uso das células-tronco embrionárias (página 28). Venceu o direito ao conhecimento que beneficia a vida. PESQUISA FAPESP 148
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() M E M Ó RIA
Ajuda do passado Q uatro pequenas centrais hidrelétricas que se tornaram museus voltam a gerar eletricidade Neldson Marcolin
A
partir de 1999 a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) recebeu quatro pedidos de concessão para geração de eletricidade. Ao contrário de outras solicitações rotineiras, daquela vez os executivos da agência não souberam, de imediato, como agir. Pela primeira vez, a solicitação partiu de uma instituição sem fins lucrativos. Mais: tratava-se de reativar pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) históricas, consideradas obsoletas e desativadas havia muitos anos. As PCHs para as quais foram pedidas a concessão a partir de 1999 eram as usinas Corumbataí, de Rio Claro, São Valentim, de Santa Rita do Passa Quatro, Jacaré, de Brotas, e Salesópolis, da cidade do mesmo nome, todas do interior de São Paulo. Desde 1998 as quatro pertencem à Fundação Energia e Saneamento,
Serviço de aterramento da Usina de Salesópolis, em 1939 8
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FOTOS ACERV O DA FUNDAÇ Ã O ENERGIA E SANEAMENTO
Construção da barragem da Usina de Jacaré, na década de 1940
instituição paulista criada na mesma época em razão da privatização das empresas de energia. “Havia uma preocupação do governo em evitar que o vasto acervo acumulado desde o século XIX pelas companhias se perdesse quando elas mudassem de dono”, diz Márcia Pazin, supervisora de Serviços e Projetos Especiais da fundação, para quem as PCHs foram doadas. As hidrelétricas passaram a ser administradas como usinas-parque, onde os visitantes aprendem a história da energia da região e participam de atividades de educação ambiental. Dois fatores levaram à reativação das usinas, aprovadas pela Aneel. Como instituição privada, sem fins lucrativos e sem mantenedores fixos, os recursos com a venda da energia ajudariam na sustentabilidade dos projetos culturais e educativos da fundação. A demanda cada vez maior por energia em São Paulo também incentivou a retomada da geração. Foi então aberta uma concorrência pública. Dos 25 interessados, a Herber Participações, do grupo Bertin, foi a que atendeu a todos os requisitos e ofertou o melhor retorno. O investimento nas quatro PCHs é de R$ 14 milhões. Em março deste ano a hidrelétrica do Museu da Energia Usina-Parque de Salesópolis voltou à vida. Nos próximos meses será a vez das outras três. A mais
antiga é de Corumbataí, inaugurada em 1895 e reformada e reinaugurada em 1900. A São Valentim é de 1910, a Salesópolis, de 1913, e a mais nova, Jacaré, de 1944. Todas foram desativadas entre os anos 1970 e 1980. Com a reativação, as usinas
deverão gerar 36 mil megawatts hora por ano (MWh/ano) suficientes para atender 15 mil residências de padrão médio com um consumo mensal de 200 quilowatts hora por mês (kWh/mês). A energia das PCHs complementará a que é
fornecida por outras concessionárias. Em paralelo à reativação, especialistas da fundação, junto com historiadores da Universidade de São Paulo e Universidade Estadual Paulista, trabalham em projeto apoiado pela FAPESP para catalogar e divulgar o acervo histórico da energia elétrica de São Paulo. No site www.museudaenergia.org.br estão disponíveis algumas séries de fotos. Deverão ser publicados on-line, ainda, plantas, mapas, projetos técnicos, documentos de relações com o poder público e o patrimônio arquitetônico e industrial do setor. “Tudo estará disponível para pesquisadores e interessados na memória paulista da eletricidade”, revela Isabel Felix, historiadora da fundação.
Usina de Corumbataí na década de 1890, cercada pela população do município de Rio Claro
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N ew ton da Costa
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Matemático criador da lógica paraconsistente tem três livros reeditados
FOTOS ROB ERTO SCOLA
O
matemático e lógico Newton da Costa compartilha com outros pesquisadores a mesma paixão pelo que fazem. Com freqüência, se emociona ao falar de assuntos que parecem estranhos àqueles alheios a sua paixão. Alguns geólogos sentem ternura por pedras que contam histórias de outras eras e entomólogos têm grande carinho por insetos repugnantes. Costa vê beleza em cálculos intrincados, problemas sem solução e teorias que, de tão abstratas, só são entendidas por um número pequeno de pessoas. Newton Carneiro Affonso da Costa, paranaense nascido em Curitiba há 78 anos, casado, pai de uma filha e dois filhos e avô de duas netas, talvez tenha mais motivos que os demais pesquisadores para se entusiasmar ao falar do próprio trabalho. Ele é reconhecido no Brasil e exterior – provavelmente mais no exterior – como autor de uma teoria original criada a partir de 1958, mas muito citada e aplicada de 1976 para frente, quando finalmente ganhou o nome pelo qual ficou conhecida, a lógica paraconsistente. Trata-se de uma teoria que permite trabalhar com situações e opiniões contraditórias. Não à toa, é chamado pelos discípulos e colaboradores de “pensador da contradição”. Costa formou-se engenheiro na Universidade Federal do Paraná (UFPR) em 1952 e chegou a trabalhar por 1 ano no ramo, na empreiteira do pai de sua mulher. Mas parou de resistir à própria vocação e cursou matemática, fez licenciatura na mesma área e virou professor e pesquisador em tempo integral na UFPR, ganhando menos da metade do que ganhava na empreiteira. Lá fez seu doutorado e virou catedrático. Nos anos 1960 migrou para o Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (IME/USP) e ficou 2 anos na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Nos dois lugares foi professor titular. Passou por instituições da Austrália, França, Estados Unidos, Polônia, Itália, Argentina, México e Peru como professor visitante ou pesquisador. Tem mais de 200 trabalhos publicados entre artigos, capítulos e livros. Entre outros prêmios, ganhou o Moinho Santista e o Jabuti em Ciências Exatas. Na segunda quinzena deste mês, a editora Hucitec vai relançar três de seus livros esgotados há muitos anos. São eles: Introdução aos fundamentos da matemática, de 1961, Ensaio sobre os fundamentos da lógica, de 1979, e Lógica indutiva e probabilidade, de 1990. Quando se aposentou do IME/USP, Newton da Costa tornouse professor titular da Faculdade de Filosofia, Ciências Humanas e Letras da USP e passou a estudar e ensinar filosofia da ciência. Há 4 anos decidiu morar perto dos dois filhos em Florianópolis e lecionar filosofia na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Sua paixão pela pesquisa e ensino continua intacta. Quando fui entrevistá-lo em seu apartamento no centro de Florianópolis, ele entregou um artigo sobre lógica, escrito especialmente para a revista. PESQUISA FAPESP 148
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Logo abaixo, nesta página, publicamos a parte referente à lógica paraconsistente. No site da revista www.revistapesquisa. fapesp.br o leitor poderá ler o artigo completo. Newton da Costa prefere escrever à mão e admite ter grande aversão em lidar com computadores. O que torna ainda mais curioso um dos seus últimos trabalhos, ainda não publicado. O título é How to build a hypercomputer (Como construir um supercomputador) e trata de uma investigação sobre os limites da teoria da computação. Abaixo, os principais trechos da entrevista. ■ O senhor se formou em engenharia, fez
carreira na matemática e terminou na filosofia. Como foi isso? — Quando eu tinha uns 15 anos, mais ou menos, dois acontecimentos foram fundamentais para mim. Primeiro, ler o Discurso do método, de Descartes, que se tornou minha bíblia. Em segundo Sobre a lógica paraconsistente A lógica clássica, bem como várias outras lógicas, não é apropriada para a manipulação de sistemas de premissas ou de teorias que encerram contradições (nas quais sem a proposição e sua negação são ambas teoremas da teoria ou conseqüências dos sistemas de premissas). Porém, nas ciências figuram contradições que são difíceis ou impossíveis de ser eliminadas (o que ocorre, por exemplo, em física, onde a teoria da relatividade geral e a mecânica quântica são logicamente incompatíveis, em direito, onde os códices jurídicos sempre apresentam inconsistências etc.). Por isso, tornou-se imperativo que se criassem lógicas que pudessem “suportar” contradições: tal é essa essência da paraconsistência. Em geral, uma lógica paraconsistente não implica que a clássica está errada, mas a generaliza. A lógica paraconsistente engloba a lógica fuzzy e tem encontrado as mais variadas aplicações, tanto teórica como prática. Em especial, ela inspirou uma nova filosofia da ciência e estendeu o campo da razão. Newton da Costa 12
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lugar, a convivência com meu tio Milton Carneiro, professor da Universidade Federal do Paraná. Nós discutíamos muito sobre filosofia e ciência. Ele me deu dois livros que nunca mais saíram da minha cabeça, O sentido da nova lógica, de W.O. Quine, de 1944, publicado naquela época no Brasil, e Logique, de L. Liard, um livro de lógica absolutamente clássico, embora tenha uma parte sobre metodologia científica. ■ Pode-se dizer então que seu maior trabalho, sobre a lógica paraconsistente, começou a brotar naqueles momentos? — Acho que custou um pouco ainda. As conversas com o meu tio e ler Descartes obviamente ajudaram. Meu problema central sempre foi pensar sistematicamente o que é o conhecimento. Especialmente o que é o conhecimento científico. Até hoje penso nisso. Então percebi perfeitamente que teria que estudar lógica, matemática e alguma ciência, como física. Pouco tempo depois comecei a ler Bertrand Russell por sugestão da minha mãe. Russell motiva qualquer um a estudar questões desse tipo. Foi quando notei que precisava conhecer também as aplicações da matemática, não só matemática. Por isso, estudar engenharia seria interessante. Mas precisava, especialmente, conhecer matemática melhor. E cursei matemática. Finalmente percebi que tudo isso, no fundo, tem a ver com filosofia – que, aliás, é o que eu mais gostava mesmo.
Mais do que a matemática? — Ah, muito mais. A matemática e a lógica são para mim instrumentos para entender o que é o conhecimento científico. O que vai levar, depois, ao que é o conhecimento em geral e se há conhecimento metafísico. Daí a necessidade de me embrenhar na filosofia. Ainda não cheguei à metafísica porque preciso compreender direito o conhecimento científico.
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■ Eu gostaria de entrar na lógica paraconsistente. Como o senhor a explicaria para alguém que não entende nem de lógica nem de matemática? — Em 1874, um matemático russo chamado Georg Cantor criou a teoria dos conjuntos. Em pouco tempo se viu que toda a matemática padrão poderia ser construída sobre a teoria dos conjuntos e ela se tornou essencialmente a ba-
se da matemática. Convém observar, no entanto, que a noção de conjunto é algo extremamente abstrato e não se confunde com o sistema de objetos ou totalidades da vida cotidiana. Mas cerca de 30 anos depois começaram a surgir paradoxos nessa teoria. O paradoxo de Russell, o paradoxo de Burali-Forti e vários outros, que não convém explicar aqui porque levaria muito tempo. Essas questões se tornaram um problema filosoficamente incrível: como eram possíveis paradoxos na matemática e na lógica tradicionais, até então o exemplo mais perfeito de conhecimento? Aquilo era aterrador, completamente estranho, ninguém conseguia explicar, causou um rebuliço. Essa foi considerada a terceira grande crise da história da matemática. A primeira foi com os pitagóricos, quando descobriram os números irracionais. A segunda foi com o cálculo diferencial e integral, que era uma área completamente sem fundamento lógico, mas também foi superada. E, finalmente, a terceira grande crise foi a cantoriana, quando se descobriu que a teoria dos conjuntos era inconsistente e contraditória, não se sustentava. Tentou-se então resolver a questão mantendo a lógica clássica e imaginando quais as modificações que poderíamos fazer na teoria dos conjuntos para superar os paradoxos. A lógica clássica é essencialmente a lógica que nasceu com Aristóteles e teve sua formulação atual por Gottlob Frege e Russell por volta de 1870 e 1914, respectivamente. O problema da contradição é absolutamente fundamental para a lógica clássica, que não a admite. ■ A idéia era corrigir a teoria dos conjuntos
sem destruí-la ou abandoná-la? — Era isso. Em meio a esses estudos e análises surgiu algo interessantíssimo. Ficou claro que havia caminhos alternativos para superar essas dificuldades, que não eram equivalentes entre si. Ou seja, havia várias teorias de conjuntos possíveis baseadas na lógica clássica. A idéia básica quando se começou a estudar essas questões era manter a lógica clássica nas soluções usuais desses paradoxos e mudar os princípios da teoria ingênua dos conjuntos. Baseado numa frase do próprio Cantor – “A essência da matemática radica na sua completa liberdade” –, pensei, “Por que não fazer o contrário?”. Eu quero manter o máximo possível dos
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princípios da teoria dos conjuntos, mas mudar a lógica subjacente clássica. ■ O que isso quer dizer? — Significa que essa lógica tem de suportar contradição. Na lógica clássica, a razão básica de ela não aceitar a contradição, do ponto de vista técnico, é que a mais simples contradição numa teoria a destrói, porque tudo vira teorema. Era preciso mudar e eu comecei a construir várias lógicas. Demonstrei que existem infinitas lógicas que satisfazem essas condições e que existem infinitas teorias dos conjuntos correspondentes. Comecei a desenvolver e aplicar a lógica em outras coisas. Mas, na verdade, a saída, o pontapé inicial, foi um ponto puramente matemático relativo aos fundamentos da teoria dos conjuntos da obra cantoriana. ■ Não o acusaram de destruir a lógica clássica? — Todo mundo já disse isso, especialmente no começo, quando apresentava minha teoria por aqui. É uma das coisas que mais me deixam amolado. ■ Por quê? — Eu seria um idiota se achasse que a lógica clássica está errada. O que acredito é que ela tem um domínio de aplicações, mas, em certas circunstâncias, não se aplica. Vou dar só um exemplo: a teoria geral da relatividade e a mecânica quântica são duas das teorias mais assombrosas que apareceram na história da cultura até hoje – pelas aplicações, pela precisão das medidas, por tudo enfim. É uma loucura o que elas explicam. Por exemplo, mecânica quântica explica o laser, o maser, a estrutura química... No entanto, essas duas teorias, se você olhar bem de perto, são logicamente incompatíveis. Só tem uma maneira de juntar as duas e os físicos fazem isso com freqüência, embora não saibam como isso se faz, do ponto de vista lógico. ■ Quer dizer, eles juntam as duas teorias naturalmente para resolver problemas que surgem, sem saber que estão usando uma lógica diferente? — Exatamente. Essa lógica é a lógica paraconsistente. No momento estou trabalhando nisso, esclarecendo que a lógica da física tem de ser uma lógica paraconsistente. Ela é localmente clássica, mas globalmente paraconsistente. A física
atual, que trabalha com uma combinação de teorias incompatíveis, só é possível porque existe a lógica paraconsistente. Por exemplo, a teoria do plasma tem muitas aplicações e envolve três outras teorias: a mecânica clássica, o eletromagnetismo e a quantização. Duas a duas, elas são contraditórias. No entanto, são usadas. Todo o estudo que faço no momento utiliza a teoria quântica de campo, a mecânica quântica, a relatividade e outras, para sistematizar a ciência. Essa é uma das tarefas do filósofo da ciência, sistematizar diversas ciências e compará-las. Não há solução se não fizermos isso com uma lógica diferente da lógica tradicional. Não nos dias de hoje. E quanto às aplicações da lógica paraconsistente? — Durante uns 30 anos desenvolvi a lógica paraconsistente do ponto de vista puramente abstrato. Interessado apenas na beleza matemática que ela implica. Qual não foi minha surpresa quando comecei a receber do exterior, principalmente dos Estados Unidos, informações sobre aplicações em economia, na computação, em robótica, nos sistemas especialistas... No Brasil, o grupo de Jair Abe, da Universidade Paulista (Unip), tem obtido resultados muito interessantes em inteligência artificial. Recentemente um amigo japonês, Kazumi Nakamatsu, esteve comigo e mostrou as aplicações de certo tipo de lógica paraconsistente para o controle de tráfego de trens, no Japão.
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Nada mais prático do que isso. — Já se sabe que se pode usar a lógica paraconsistente no controle do tráfego aéreo também. Quando se tem muitos aviões que não podem aterrissar, por exemplo, por mau tempo, o controlador de vôo recebe e manda informações. Elas nunca são exatas porque não se sabe exatamente a qual altura o avião está. A altura sempre tem um pequeno erro. Logo, deve ser corretamente interpretada pelo computador do controlador para evitar acidentes. A lógica paraconsistente é uma das maneiras pensadas para resolver o problema.
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A lógica paraconsistente é, então, uma teoria que aceita e acomoda situações contraditórias? — Situações e opiniões contraditórias. Hoje há centenas de pessoas que se dedicam à lógica paraconsistente no mundo inteiro. Alguns são fundamentalistas. Acham que é a única lógica verdadeira e a lógica clássica não passa de besteira. Um dos meus melhores amigos, que foi professor na Universidade Nacional da Austrália e esteve várias vezes no Brasil, professor Richard Routley, todos os dias pela manhã quando me encontrava lá em Canberra ou mesmo em São Paulo, me saudava dizendo, “A lógica clássica está acabada”. Eu dizia sempre que não, as duas têm seu campo. A lógica clássica é a mãe da lógica paraconsistente.
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Poderia ser usada também em outros campos, como na psicanálise?
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— Segundo vários psicanalistas, especialmente os lacanianos, ela tem uma aplicação enorme nessa área. Já existe uma literatura grande na psicanálise sobre isso. ■ A repercussão da lógica paraconsistente pa-
rece não ter arrefecido após tantos anos. — Isso é algo inacreditável para mim até hoje. Pensava nisso quando era muito jovem, em 1949, 1950, meus primeiros trabalhos começaram em 1958, mas só comecei a publicar na França em 1963. Até que, lá por meados dos anos 1970, escrevi uma carta para um grande amigo, o filósofo da ciência Francisco Miró Quesada, ex-ministro da Educação no Peru. Pedi a ele, “Preciso de um nome para essa minha lógica”. Quesada foi um dos primeiros a defender a teoria pelo mundo afora, quando era embaixador. Ele me sugeriu “paraconsistente”, “ultraconsistente” ou “metaconsistente”. Escolhi paraconsistente. Depois que comecei a escrever com esse nome, não se passou 1 ano e todo o mundo da lógica começou a falar de lógica paraconsistente. Da França à ex-União Soviética, dos Estados Unidos
ao Japão surgiram artigos citando de alguma forma a lógica paraconsistente. Essa é uma daquelas coisas muito difíceis de acontecer outra vez. Quesada passou a brincar dizendo, “Newton, na verdade o criador da lógica paraconsistente fui eu, porque uma coisa só existe depois que tem nome. Está na Bíblia, ‘No começo foi o verbo...’”. O que o atraiu exatamente na palavra paraconsistente? — “Para” quer dizer “ao lado”. Eu nunca quis destruir a lógica clássica. É “ao lado de”, “complemento de”. Assim como a relatividade geral não destruiu a mecânica newtoniana. Nem a mecânica quântica acabou com a mecânica newtoniana. E elas não existem sem a mecânica newtoniana.
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Qual era o nome da lógica antes de ser batizada pelo Quesada? — Teoria dos sistemas formais inconsistentes. Comprido demais.
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As muitas aplicações de sua teoria fez o senhor ganhar algum dinheiro com ela? — Viajei muito, conheci o mundo inteiro e nunca despendi um tostão. Agora ganhar dinheiro mesmo não. Teoria não tem patente. Mas quando chegava à ex-União Soviética, por exemplo, eu tinha um automóvel com motorista à disposição, um intérprete, um quebragalho para tudo.
Aos 78 anos o senhor parece seguir mantendo suas atividades de pesquisa com vigor. — Fazer o que faço é um prazer tão grande que sou capaz de pagar para continuar fazendo. O dia em que não puder estudar o que gosto, dar minhas aulas, é melhor morrer mesmo. Aliás, contam que para Einstein parecia que a diferença entre estar vivo e estar morto era que enquanto ele estava vivo tinha certeza de que podia fazer física. Depois de morto não sabia se dava para fazer. Por que saiu da UFPR? — Jamais quis sair do Paraná. Minha família toda é de lá e eu estava bem na UFPR. Mas gostaria de montar um grupo de lógica e fundamentos da ciência. Aos poucos, porém, cheguei à conclusão de que isso era inexeqüível lá, nos anos 1950 e 1960, por mais que eu me esforçasse.
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Foi para a USP, mas passou primeiro pela Unicamp, não é? — Rapidamente. Tenho uma relação muito grande com a Unicamp. Quando fui professor do IME era permitido acumular por 2 anos tempo integral na USP e tempo parcial na Unicamp, desde que fosse bem justificado. Fiquei nos dois lugares e, surpreendentemente, consegui formar um grupo muito maior de pesquisa na Unicamp. Posteriormente doei minha biblioteca e arquivos para o Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência da Unicamp.
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Qual a razão? — Acho que, com exceção da USP, nenhuma outra universidade dava condições para se fazer um trabalho de nível internacional em lógica e matemática no Brasil. Convidar professores estrangeiros, passar temporadas no exterior, mandar jovens para estudar em outros países. Eu me tornei catedrático na UFPR, mas, por mais boa vontade que tivessem comigo, eu me sentia patinando, sem sair do lugar.
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O senhor é um daqueles cientistas que consideram matemática e física mais difíceis de entender do que as demais ciências? — Não sei se são mais difíceis. Sei que para alguns trabalhos nessas duas áreas é preciso ter um grande senso de abstração, principalmente em física-matemática e física teórica. É preciso dizer que há um sentido de beleza nessas teorias. Edgar Allan Poe dizia, “A beleza é aquilo que resiste à familiaridade”. Quanto mais voltamos a ela, mais somos atraídos a voltar. E sempre que voltamos percebemos coisas novas. A música de Bach é eterna porque se pode ouvir milhões de vezes sem cansar. Sempre veremos um aspecto novo nela. Se ouvirmos uma música comum qualquer ela não desperta novas idéias, basta repetir três ou quatro vezes e ela não oferece nada a mais. Já Bach, Beethoven, Brahms jamais cansam. Um artigo de matemática trivial você lê e não se interessa mais. Agora, a um bom artigo podemos voltar dezenas, centenas de vezes. Sempre tem mais uma coisinha, mais uma idéia, mais um aspecto que não percebemos antes. Sempre digo aos meus alunos que a matemática tem uma suprema beleza exatamente por isso. Mesmo em obras como a de Isaac Newton, em que ninguém mais vai estudar mecânica, nem
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astronomia pelos princípios já muito conhecidos e, algumas vezes, superados, isso ocorre. Mas se voltarmos lá e entrarmos nos detalhes da obra vai ver que lá não tem fim. É uma sinfonia à la Bach. E, veja, não importa o tamanho da obra. O doutorado do matemático americano John Nash, Prêmio Nobel de Economia, tinha cinco páginas. É genial. Eu andava com cópias na minha pasta para distribuir aos alunos e mostrar que tamanho não significa nada. Se Nash tivesse escrito essa tese na USP, não teria sido aprovado porque hoje parece que exigem pelo menos cem páginas. ■ Como vê o baixo nível do ensino e apren-
dizagem de matemática no Brasil? — É uma barbaridade. Convivi com o ensino secundário dos Estados Unidos, na escola pública de Berkeley. Lá existe o que eles chamam de honour courses, cursos de honra. Os alunos que querem fazer cursos técnicos, como mecânica de automóveis, têm um mínimo de aulas de inglês, história etc. Depois, se quiserem, podem completar os créditos com os outros cursos. Mas os honour courses só fazem aqueles que querem ir para a universidade. São turmas pequenas, de 10, 12 alunos, com professores em tempo integral. O ensino envolve cálculo diferencial, cálculo integral, computação, geometria analítica... A pessoa entra de livre e espontânea vontade e se compromete a não ter nota baixa. Se não acompanhar, sai. Depois que acaba o curso, bastam duas cartas de recomendação dos professores para entrar na universidade. Se o aluno for bom nesses cursos, já está na universidade. Por várias vezes sugeri fazer algo semelhante aqui, mas sempre me dizem que não é democrático, que é elitista... O senhor é contra essa espécie de cobrança social que há no Brasil para todos cursarem universidade, mesmo os que não têm nenhuma vontade ou vocação? — Nivelar todos é impossível. Não dá. Os honour courses e os demais cursos disponíveis são um jeito de contemplar todos os interessados. Faz quem quer. Vi lá, também em Berkeley, um ótimo curso de mecânica de automóveis. Os alunos pegavam um automóvel e o desmontavam inteiro, parafuso por parafuso, para depois reconstruí-lo sem deixar nenhuma peça sobrando. O estudante sai entendendo
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N unca quis destruir a lógica clássica. Assim como a relatividade geral não destruiu a mecânica new toniana de carro, vira um excelente mecânico e pode ser tão feliz no trabalho quanto alguém que passa a vida estudando algo muito teórico e abstrato. Havia um encanador no campus da Universidade da Califórnia, quando trabalhei lá, tão competente e eficiente que ganhava mais do que um dos meus colegas mais brilhantes, o professor polonês Alfred Tarski, um grande lógico e o melhor salário do departamento. ■ Gostaria que falasse sobre filosofia da ciência. Como é o conceito quase verdade ou verdade parcial? — Acho que a ciência hoje não é algo que procura retratar o real. Quando uma proposição quer refletir o real como ele é, isso se chama teoria da correspondência da verdade. Quer dizer, o pensamento corresponde à verdade. Eu acho que a ciência não é assim, ela reflete apenas em parte o real. Ela é uma quase verdade. A mecânica quântica funciona por quê? Porque ela diz que, em certas circunstâncias, se eu apertar um parafuso, obtenho certo resultado. As grandes proposições, as grandes teorias, tudo se passa no Universo como se isso fosse verdade. Formalizei essa noção de verdade – é uma generalização da noção clássica de verdade. Ela é uma generalização da definição clássica de verdade de Tarski. Esse lógico deu uma definição notável para se poder tratar da noção de verdade em matemática, que é onde funciona. Quando se trata de física, é preciso de algo mais elástico. Propus
para isso o conceito de quase verdade ou verdade parcial. Mas acho que minha concepção de verdade, rigorosamente, que é matemática, reflete mais ou menos as idéias de Charles Sanders Peirce [1839-1914], um dos maiores filósofos de todos os tempos. E acho que as grandes teorias, como a teoria quântica de campo, a mecânica quântica, a mecânica clássica de Newton, todas elas são quase verdadeiras, por exemplo. É comum dizerem que a relatividade desbancou a mecânica newtoniana. Isso é falso. Um avião ou uma ponte, por exemplo, são calculados pela mecânica newtoniana. E a mecânica quântica e a relatividade precisam da mecânica newtoniana. Senão, não funcionam. Como algo falso é usado em ciência? Exatamente porque, embora seja falso, é quase verdadeiro entre certos limites. ■ Porque ela funciona para algumas coisas
em algumas situações. — Exatamente, tudo se passa em certas circunstâncias como se ela fosse verdadeira. É o “como se”. E isso é expresso matematicamente. — Matematicamente. Sistematizei a teoria da ciência atual na quase verdade. Todas as grandes teorias físicas não são verdadeiras ipsis litteris, são quase verdadeiras. Se compararmos exatamente a relatividade com a realidade, há divergências. E, mesmo que ela refletisse exatamente a realidade, como é que saberíamos que ela reflete? Não dá para comparar teoria com realidade, estritamente falando.
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De quando é essa sua teoria? — Da década de 1980, já faz algum tempo. E, note o seguinte, para a mesma teoria quase verdadeira há infinitas outras teorias quase verdadeiras, posso provar isso. E essas infinitas teorias quase verdadeiras são incompatíveis entre si. Então, a lógica da quase verdade é uma lógica paraconsistente.
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Para terminar, o que é o conhecimento científico? — Penso que conhecimento científico é uma crença quase verdadeira e justificada. Essa é minha versão da concepção clássica de conhecimento que remonta a Platão. Nesta, o conhecimento deveria ser verdade estritamente falando; o que fiz foi subs■ tituir verdade por quase verdade.
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fu n d a m e n t a l Equipe brasileira explica o funcionamento da forma saudável do príon,essencial para a proteção das células nervosas Ricard o Zorzet to
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m maio de 1990 o ministro da Agricultura da Inglaterra, John Gummer, fez uma aparição pública desastrosa. Posou para fotógrafos e cinegrafistas saboreando um suculento hambúrguer ao lado de sua filha de 4 anos. Tinha a intenção de mostrar aos ingleses e ao resto do mundo que o consumo de carne bovina continuava seguro mesmo em meio à mais grave crise que a pecuária de seu país atravessava nos últimos tempos: a contaminação de parte do rebanho com a doença da vaca louca, a encefalopatia espongiforme bovina, que se espalhou pela Europa, pelos Estados Unidos e pelo Canadá e de 1987 até agora já obrigou a eliminação de 180 mil bois e vacas infectados. Seis anos depois daquele hambúrguer os ingleses se lembrariam de Gummer e se sentiriam traídos quando começaram a surgir os primeiros casos da doença em seres humanos, provavelmente contraída pelo consumo de carne contaminada. A versão humana do mal da vaca louca era uma nova forma – a quarta conhecida – de uma enfermidade bastante rara e sem cura: a doença de Creutzfeldt-Jakob, que mata as células do sistema nervoso (neurônios) e deixa o cérebro cheio de buracos como uma esponja. Descrita na Alemanha nos anos 1920 pelos neurologistas Hans Gerhard Creutzfeldt e Alfons Maria Jakob, essa enfermidade, que reduz o cérebro à metade de seu tamanho original, ganha nova explicação a partir de estudos recentes conduzidos no Brasil e no exterior. Em artigo publicado em abril na Physiological Reviews, o grupo de pesquisadores de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul coordenado pelo oncologista Ricardo Renzo Brentani, do Hospital A.C. Camargo, em São Paulo, apresenta a mais ampla revisão sobre os agentes infecciosos dessa doença, com informações
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Príon celular, em verde: abundante no neurônio (esquerda) e no astrócito (acima)
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lém da forma contraída pelo consumo de carne contaminada – a chamada nova variante de Creutzfeldt-Jakob – e da versão genética, passada de pais para filhos, há ainda outros dois tipos dessa doença que corrói o sistema nervoso central. O mais comum, dito espontâneo, surge ao acaso por razões desconhecidas e atinge uma pessoa em cada 1 milhão. O quarto tipo é transmitido pelo uso de equipamentos infectados em cirurgias, por transfusão sangüínea e até anos atrás também pela aplicação de hormônio do crescimento produzido a partir de cérebros de cadáver, hoje substituído pelo hormônio sintético para tratar distúrbios de crescimento. O avanço da vaca louca nos pastos da Europa e da América do Norte e o surgimento da nova forma da doença em humanos – desde 1996 a nova variante de Creutzfeldt-Jakob matou na Inglaterra e nos países vizinhos 160 pessoas, entre elas a filha de um amigo do ex-ministro John Gummer – intensificaram a busca pela causa da enfermidade. O principal suspeito de provocar esse grupo de doenças desafiou por décadas os médicos e biólogos. Diferentemente do que acontece com outras doenças infecciosas, o causador da Creutzfeldt-Jakob não é, como se pensou por muito tempo, um vírus. Muito menos bactéria ou protozoário,
microorganismos que se multiplicam por conta própria e são facilmente passados adiante. Hoje se acredita que uma proteína defeituosa conhecida como príon (sigla de partícula infecciosa proteinácea) provoque a doença. O simples contato do príon com uma proteína saudável encontrada em abundância na superfície dos neurônios a induziria a assumir a forma alterada, como uma pedra de dominó que tomba e derruba as demais da fileira sem que nada as possa deter. Mais estáveis que a proteína saudável, as moléculas deformadas aderem umas às outras, gerando longas fibras tóxicas para os neurônios. A identificação do príon no cérebro de ovelhas com um tipo de encefalopa-
tia espongiforme chamada scrapie e a explicação de como ele deformaria as proteínas normais renderam ao pesquisador norte-americano Stanley Prusiner o Nobel de Medicina de 1997 e levaram cientistas do mundo todo a investigar a proteína defeituosa e seus efeitos sobre o organismo. Enquanto só se tinham olhos para o príon, outra questão básica – e talvez mais importante – ecoava baixinho. O que fazia a proteína normal, a proteína príon celular, encontrada na superfície de todas as células do corpo e em maior quantidade no sistema nervoso central? Ninguém sabia, nem parecia se importar muito. Até havia motivo para não se dar atenção ao príon celular. Por volta REP RODUÇ Ã O TH E LIB RARY O F GREAT PAIN TERS/B O S C H
que podem influenciar a terapia dessa enfermidade, que se instala sorrateiramente ao longo de 2 ou 3 décadas e evolui a uma velocidade assustadora, levando a uma morte trágica. Os primeiros sinais surgem de forma sutil, como cansaço ou depressão. Em seguida, a falta de equilíbrio para caminhar ou manipular objetos aumenta progressivamente, os movimentos se tornam lentos e a visão embaralhada. Perde-se a fala, a memória para fatos recentes e fica cada vez mais difícil encontrar o caminho pelas ruas ou os objetos dentro de casa. “Em menos de 1 ano nove de cada dez pessoas infectadas se tornam debilitadas a ponto de não sair da cama e morrem”, afirma o neurologista Ricardo Nitrini, da Universidade de São Paulo (USP), que há 11 anos identificou o primeiro caso brasileiro de uma forma da doença causada por alteração genética.
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A extração da pedra da loucura, de Hieronymus Bosch (1475-1480)
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de 1990 o biólogo molecular Charles Weissmann criou uma linhagem de camundongos que não produziam essa proteína. Os animais não desenvolviam a doença espongiforme e aparentemente sobreviviam sem prejuízo à saúde. Por isso, acreditou-se que ela não desempenhasse papel importante no organismo. “Era uma visão limitada”, diz Brentani.
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uspeitando de que a natureza não desperdiçaria tempo nem energia para gerar uma proteína sem atividade biológica, Brentani apostou em sua intuição e seguiu contra a corrente. “Era a oportunidade de entrar em uma área de estudos quente pela qual ninguém havia se interessado”, conta. Uma carta publicada em 1991 na Nature estimulou-o a ir adiante. Três anos antes Brentani havia proposto uma teoria segundo a qual as duas fitas da molécula de ácido desoxirribonucléico (DNA) conteriam a receita para a produção de proteínas – e não apenas uma delas, como se imaginava. Também afirmava que as proteínas codificadas por trechos complementares das fitas de DNA teriam papéis complementares: seriam capazes de interagir quimicamente e se encaixar uma na outra como uma chave na fechadura. Do ponto de vista evolutivo, fazia sentido que os trechos de DNA que codificam uma proteína e a que se liga a ela estivessem próximos, já que é maior a probabilidade de migrarem juntos para outra região do material genético caso ocorra seu reposicionamento. Mas essa era uma hipótese em que, segundo Brentani, ninguém acreditava – exceto ele, claro. Até que surgiu a carta da Nature. Nela o pesquisador Dmitry Goldgaber, da Universidade Estadual de Nova York, Estados Unidos, descrevia como o príon celular deveria interagir com a água – uma das características químicas das
proteínas – e afirmava que, se Brentani estivesse certo, o trecho do DNA complementar ao do gene do príon celular conteria informação sobre a proteína que possivelmente o acionaria. Era uma pista a não se desperdiçar. Então estudioso de proteínas associadas ao câncer, Brentani resolveu analisar o príon e a molécula que funcionava como seu interruptor. Ele, a bioquímica Vilma Martins, do Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer (LICR), e o bioquímico Vivaldo Moura Neto, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), deduziram a estrutura dessa outra proteína e a descreveram em 1997 na Nature Medicine. A proteína por eles apresentada – mais tarde identificada como STI-1, sigla de stress inducible protein 1 – era composta por 543 aminoácidos (os blocos formadores das proteínas) e quase duas vezes maior do que o príon celular. Faltava descobrir o que ambas faziam. “Tínhamos duas hipóteses: ou não serviam para nada ou eram fundamentais para fenômenos importantes para os neurônios, como o processo de neuritogênese [formação das ramificações que conectam os neurônios entre si]”, comenta Brentani. Como neurônios não era a especialidade do grupo, ele e Vilma convidaram o neurocientista Rafael Linden, do Instituto de Biofísica da UFRJ, para colaborar nos testes seguintes. O complexo formado pelo príon celular e a STI-1 se mostrou essencial tanto para o amadurecimento e a formação dos prolongamentos dos neurônios
Uma proteína, duas formas: o príon celular (no alto) e sua forma infecciosa
como para protegê-los da morte celular programada, a apoptose (ver Pesquisa FAPESP nº 94). Mas essas não eram as únicas funções da dupla. Experimentos com camundongos feitos em parceria com Iván Izquierdo, um dos mais respeitados estudiosos de memória no mundo e atualmente pesquisador da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), revelaram que o príon celular e a STI-1 são fundamentais para a formação da memória. Sem eles, os animais têm dificuldade de lembrar algo que aprenderam horas antes (memória de curto prazo) e também dias atrás (memória de longo prazo). Testes com camundongos geneticamente alterados para não produzir o príon celular, como os criados por Charles Weissmann, comprovaram que esses animais só eram aparentemente normais. Quando envelheciam, apresentavam mais dificuldades de memória do que os camundongos que fabricavam o príon celular. grupo brasileiro também viu que a forma saudável do príon gera efeitos distintos em tecidos diferentes. Na UFRJ a equipe de Linden constatou que essa proteína modula a resposta do sistema imunológico às inflamações, ora aumentando, ora reduzindo a atividade das células de defesa. O príon celular estimula a ação dos neutrófilos, as células de defesa mais abundantes no organismo. Produzidas a uma quantidade de 100 bilhões por dia no interior dos ossos longos, são as primeiras a chegar ao local da inflamação, onde rapidamente englobam e destroem microorganismos invasores como bactérias. Quando Linden provocava uma inflamação em camundongos, observou que os animais geneticamente alterados para não produzir o príon celular apresentavam um número menor de neutrófilos, que também eram mais lentos do que os roedores normais. Um efeito nada desejável no caso de uma infecção. Verificou-se o efeito oposto com os macrófagos, células do sistema de defesa que atuam como uma espécie de lixeiro, eliminando células mortas. Camundongos sem o príon celular tinham macrófagos mais ativos do que os animais que fabricavam a proteína, um resultado que nem sempre favorece os
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preliminares sugerem que os portadores da forma variante do príon celular eram mais suscetíveis aos efeitos tóxicos do composto do que aqueles com a versão normal da proteína. À medida que os resultados brotavam no laboratório, tornava-se evidente que o príon celular era fundamental para manter o organismo saudável, nada mau para uma molécula que até poucos anos atrás era considerada sem importância biológica. Mas ainda não se compreendia por que, em determinadas situações, ela protegia e em outras danificava os tecidos. Um passo importante era saber como essa proteína em forma de balão de festa com um barbante pendurado, que fica na superfície externa das células, se comunicava com o interior.
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animais geneticamente alterados, pois a ação exagerada dos macrófagos pode causar lesões nos tecidos saudáveis. “A resposta à inflamação e à presença de células mortas depende de um ajuste fino”, explica Linden. “Não é desejável que sejam ausentes nem exacerbadas. Sem resposta inflamatória o corpo não resiste a infecções, mas inflamação em excesso também pode matar.” Também há evidências de que o príon celular protege as células do coração contra a agressão química. No Hospital A.C. Camargo, Vilma e a médica Beatriz de Camargo analisaram a presença de uma forma ligeiramente alterada (variante) das proteínas príon celular em 160 pacientes tratados na infância com adriamicina, medicamento que pode causar lesões cardíacas. Dados 20
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ilma, Brentani e Linden recorreram então à ajuda do biólogo celular Marco Antonio Prado, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que investiga o transporte de moléculas no interior das células. Em parceria com Vilma e Kil Sun Lee, do Ludwig, Prado e Ana Maria Magalhães marcaram o príon celular de neurônios com um corante verde fluorescente para acompanhar o caminho que percorria e levaram as células ao microscópio confocal, que permite observá-las vivas. Em seguida, com o auxílio de Byron Caughey, dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos, marcaram o príon infeccioso e viram sua entrada nos neurônios (ver Pesquisa FAPESP nº 115). Ancorado em regiões mais espessas da superfície celular por uma longa molécula de açúcar e lipídios em forma de barbante, o príon celular desliza para
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O P ROJ E T O Pa p e l d a p r o t e í n a p r í o n c e lu la r e m p r o c e s s o s f i s i o l ó g i c o s e p a t o l ó g i c o s II
M OD ALID AD E
P rojeto Temático C O OR D EN AD OR A
VILMA REGINA MARTINS – INSTITUTO LUDW IG IN V EST IM EN TO
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áreas mais delgadas da membrana dos neurônios. Ali é tragado para o interior de vesículas contendo ácidos, onde se conecta a outras proteínas e envia comandos para o núcleo ou outras regiões. Do início do mergulho até a emersão na superfície, o príon celular não gasta mais do que 1 hora e meia. ão é um deslocamento ao acaso, como constatou o grupo brasileiro. O príon celular só se move na superfície dos neurônios depois que proteínas específicas se acoplam a ele, ativando-o. Como um anfitrião que recebe os convidados em uma festa, o príon saudável conduz outras proteínas para o interior dos neurônios. Uma vez no interior da célula, o complexo formado pelo príon e sua proteína ativadora envia sinais químicos que ordenam a emissão de prolongamentos ou a produção de compostos que protegem o neurônio da morte, detalham os pesquisadores em um artigo a ser publicado nos próximos meses no Journal of Neuroscience. “Sem esse mergulho no interior da célula a comunicação mediada pelo príon celular fica truncada”, diz Linden. Quanto mais se descobria sobre o príon celular, mais dúvidas surgiam. No final de 2006 Linden, Vilma, Prado, Izquierdo e Brentani começaram a rever tudo o que havia sido publicado sobre o príon saudável e o defeituoso com o objetivo de chegar a um quadro geral mais claro. Da análise de 597 artigos, emergiu a mais ampla revisão sobre o tema, publicada em abril na revista Physiological Reviews, com uma visão unificada sobre o funcionamento do príon celular e uma nova interpretação de como surgem enfermidades como a doença de Creutzfeldt-Jakob e o mal da vaca louca. No trabalho intitulado “Physiology of the prion protein”, as equipes de São Paulo, Rio, Minas e Rio Grande do Sul propõem que o príon celular funcione como um ímã seletivo ao qual só aderem certas moléculas encontradas no organismo. A STI-1, claro, não é a única. Estudos feitos no Brasil e no exterior identificaram outras 30 proteínas que se ligam ao príon celular, acionando diferentes cascatas de reações químicas que representam comandos celulares distintos. “Acreditamos que o príon celular ajude a organizar os sinais do ex-
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dades neurodegenerativas como o mal de Alzheimer, associado à aglomeração de uma proteína cuja produção é controlada pelo príon saudável. “As abordagens terapêuticas que se basearam exclusivamente no que se conhece sobre a forma defeituosa do príon não produziram bons resultados”, conta Linden. Um medicamento usado na década de 1930 contra a malária, a quinacrina, havia se mostrado capaz de impedir a agregação do príon infeccioso nos experimentos com neurônios in vitro. Mas não impediu o avanço da enfermidade quando testado em seres humanos. “Até o momento, não há tratamento eficaz”, afirma Ricardo Nitrini, da USP. om Hélio Gomes e Sérgio Rosemberg, da USP, e Leila Chimelli, da UFRJ, Nitrini e Vilma integram a equipe responsável no país pelo diagnóstico de doenças causadas por príon, cuja notificação é obrigatória desde 2005. É uma medida fundamental para conhecer as regiões mais afetadas e as populações mais suscetíveis às quatro formas da doença de Creutzfeldt-Jakob. De 2005 a 2007, o grupo analisou 35 casos suspeitos, dos quais 26 foram considerados prováveis – a confirmação é feita pela análise do tecido cerebral após a morte. Eram pessoas que haviam desenvolvido a doença espontaneamente. Nenhum caso surgiu pelo consumo de carne infectada. “Certamente há subnotificação da doença no país, onde se espera que surjam até 200 casos por ano”, diz Vilma. Em paralelo, a equipe de Vilma no Ludwig segue com os estudos sobre a ação da STI-1. Nos últimos anos, o grupo constatou que um fragmento dessa molécula, um peptídeo de 16 aminoácidos, desempenha a mesma função que a proteína inteira e favorece a formação da memória em camundongos. Testes iniciais com células em uma placa de vidro também sugerem que o peptídeo impeça o desenvolvimento de um tumor cerebral agressivo, o glioblastoma, que mata em 6 meses, razão por que esse trecho da molécula foi patenteado pelo Ludwig em 2007 nos Estados Unidos. “São dados promissores”, afirma Vilma. Por enquanto, não se pode dizer mais do que isso até que sejam feitos testes com animais de laboratório e, se tudo der certo, em seres humanos. ■
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Rede de neurônios: príon celular (verde) favorece a conexão entre as células
terior antes de serem enviados para o interior das células”, diz Prado. Segundo Linden, esse papel de ímã seletivo ou plataforma de montagem de complexos de sinalização permite explicar resultados experimentais até então contraditórios, como a proteção contra a morte celular em determinadas situações e ou a ação tóxica em outras. “Essa atividade de plataforma de montagem de sinais químicos é tão essencial para a vida que possivelmente outras proteínas desempenhem o mesmo papel no organismo”, diz Brentani. “Por essa razão os camundongos geneticamente alterados para não produzir o príon celular sobrevivem aparentemente sem prejuízo”, explica. Esse novo papel altera a compreensão de como se instalam as doenças cau-
sadas por príons. De acordo com a nova interpretação, na doença de Creutzfeldt-Jakob os neurônios não morreriam apenas porque a adesão dos príons infecciosos gera aglomerados tóxicos. O grupo brasileiro aposta que a morte celular ocorra também pela perda de moléculas saudáveis de príon, que deixaria os neurônios desprotegidos contra agressões químicas. Segundo Prado, é possível que o efeito tóxico do príon infeccioso se intensifique com a perda do príon celular. “Só saberemos se estamos certos à medida que as idéias apresentadas nesse trabalho começarem a ser testadas”, diz Linden. A expectativa é que a compreensão de como funciona o príon celular leve a alternativas de tratamento para doenças causadas por príons e enfermi-
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no exterior A presidente do Chile, Michelle Bachelet, anunciou a criação de um fundo de US$ 6 bilhões para financiar um ambicioso programa de bolsas de pós-graduação
Um g r u p o d e d e s t a c a d o s c i e n t i s t a s APR EN D IZ AD O c h i neses mandou uma carta às autoriTAR D IO dades educacionais do país alertando para a necessidade de aperfeiçoar a formação científi ca nas escolas primárias. “Na contramão da mobilização para formar novos pesquisadores, a educação em ciências nas escolas primárias está em franco declínio”, disse um dos signatários da carta, o ex-vice-ministro da Educação W ei Y u, segundo a agência de notícias S ciD ev.N et. Enquanto países europeus já avaliam a viabilidade de antecipar as primeiras noções sobre ciências já para alunos de 5 anos de idade, a China desde 2001 retirou a disciplina do currículo do início da formação fundamental. Só a partir dos 10 anos é que os chineses têm contato com conceitos científi cos. Li Daguang, da Academia Chinesa de Ciências, explica que, na China, a ciência é vista sob uma lógica utilitária, não como um meio de expandir o raciocínio, razão pela qual não se vê motivo para ensiná-la a crianças pequenas. 22
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e de formação de pessoal tecnológico altamente especializado tanto no país quanto no exterior. O fundo permitirá que o número de bolsas para pós-graduandos chilenos em universidades estrangeiras cresça das
1.000 atuais para 2.500 em 2009 e 6.500 em 2012. Também haverá um aumento expressivo das bolsas de aperfeiçoamento no exterior para técnicos que desempenham atividades em áreas consideradas prioritárias.
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> Mais bolsas Thomson, Provonost e Venter (acima), Susan Salomon e Griffi n
Ar e la ç ã o d e c ie n t is t a s c it a d o s e n t r e a s c e m p e r s o n a lidades mais infl uentes do planeta, divulgada pela revista Time, traz rostos conhecidos e outros nem tanto. No rol dos famosos, o destaque foi Craig Venter, que liderou esforços para decodifi car o genoma humano em 2001. Ele entrou na lista de 2008 por ter anunciado a criação do genoma sintético de uma bactéria. O utra personalidade conhecida é Michael Griffi n, 58 anos, chefe da agência espacial norteamericana, a Nasa, lembrado por oxigenar a estrutura do órgão. Susan Solomon, 52 anos, pesquisadora que nos anos 1980 alertara para a destruição da camada de ozônio, voltou agora à berlinda ao fazer parte do Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas (IPCC). A relação também traz rostos jovens, como Peter Pronovost, 43 anos, criador de um método que derrubou índices de infecção hospitalar nos Estados Unidos;Shinya Yamanaka, 45, e James Thomson, 49, que obtiveram avanços na pesquisa de células-tronco;o neurocirurgião Nicholas Schiff, 42, que aperfeiçoou uma técnica capaz de recuperar lesões cerebrais;Jeff Han, 32, inovador da ciência da computação;e Jill Bolte Taylor, 48, neuroanatomista.
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Ciência para os chineses: quanto mais cedo melhor
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Hoje há 150 bolsas. Em 2010 chegarão a 2 mil. Jorge Allende, vice-reitor de pesquisa da Universidade do Chile, disse ao jornal El Mercurio que é preciso estudar com profundidade a questão das bolsas no exterior. “É recomendável que as bolsas se concentrem em áreas nas quais o Chile tenha deficiência e em temas de importância estratégica para o país”, afirmou Allende.
> Cerco à
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pesquisa Duas universidades da Alemanha sucumbiram a pressões políticas e decidiram interromper experiências com plantas geneticamente modificadas. “A decisão também não me agrada”, disse à revista Nature Stefan Hormuth, presidente da Universidade Justus Liebig, da cidade de Giessen. “Mas a oposição dos políticos e da população local se tornou insuportável.” No mês passado, ativistas
ocuparam a área de 1.500 metros quadrados onde a universidade faria experimentos com um tipo de milho resistente a insetos. Em abril, o economista e reitor Werner Ziegler, da Universidade Nürtingen-Geislingen, em Baden-Württemberg, também determinou a interrupção de experimentos com milho transgênico resistente a insetos e a fungos. “As coisas fugiram do controle. São ataques por e-mail, vandalismo, intimidação e ameaças pessoais”, disse ele. Em ambos os casos, a segurança das pesquisas havia sido assegurada por órgãos técnicos.
> Vagas para astronautas A Agência Espacial Européia (ESA) está recrutando novos astronautas, na primeira seleção do gênero desde
1992. Podem concorrer cidadãos de algum dos 17 estados membros da agência: Alemanha, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Espanha, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Noruega, Portugal, Reino Unido, Suécia e Suíça. Os escolhidos passarão por avaliações profissionais e psicológicas (como testes comportamentais e cognitivos), baterias de exames médicos e entrevistas. O resultado sairá em 2009. Serão escolhidos quatro candidatos, que iniciarão treinamento no Centro de Astronautas Europeu, em Colônia, na Alemanha. “Trata-se de uma oportunidade rara de estar à frente dos programas de vôo espacial tripulados, o que inclui futuras missões à Estação Espacial Internacional (ISS), à Lua e além”, informou um comunicado da ESA. Os aspirantes precisam exibir competência em disciplinas como ciências da vida, física, química e medicina, ou experiência como piloto de testes. Fluência em inglês é obrigatória e conhecimento em russo, desejável.
ESA/NASA
LAURAB EATRIZ
V ER B AS À
ITAL IAN A
Pe s q u i s a d o r e s i t a l i a n o s d e d i versos campos, da astronomia à oncologia, assinaram uma petição que exige do governo do país mais transparência na destinação de verbas para a pesquisa. “Na Itália, apenas uma pequena proporção de fundos para a pesquisa científi ca é distribuída de acordo com o sistema de avaliação por pares”, diz a petição, segundo a revista N ature. O desconforto dos cientistas começou no ano passado, quando se soube que € 3 milhões prometidos no orçamento para a pesquisa com células-tronco haviam sido gastos em outras fi nalidades. Parte da preocupação resulta do fato de que o governo ainda não apresentou ofi cialmente as regras para alocação de verbas de um fundo para pesquisa estratégica que irá distribuir € 300 milhões em 2008 e 360 milhões em 2009. Um documento atribuído ao governo diz que 70% desse dinheiro será destinado a tópicos escolhidos pelas autoridades e só o restante caberá a projetos chancelados por especialistas. O s cientistas também estão preocupados com uma nova lei, criada para centralizar a distribuição de verbas para as universidades, que deve entrar em vigor neste ano. Teme, mais uma vez, favorecimento.
O astronauta alemão Hans Schlegel, em fevereiro
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> Fase de calmaria O fluxo de investimentos na frota norte-americana de navios de pesquisa enfrenta uma fase de calmaria que ameaça projetos em vários cantos do planeta, de acordo com reportagem publicada na revista Nature. O número de embarcações está diminuindo. Há 23 navios em operação. Em 2002 eram 27. Projeta-se que haverá apenas 15 em 2017 e 11 em 2025. Os custos são elevados: cada dia de pesquisa no mar custa cerca de US$ 50 mil. Para economizar, o número
de dias por ano dedicados pelo conjunto da frota à pesquisa caiu de 5 mil nos anos 1990 para 4 mil atualmente. A frota é supervisionada por um consórcio de 61 institutos de pesquisa e é mantida por recursos da ordem de US$ 80 milhões por ano, vindos do orçamento federal. Esse montante não contempla as verbas para os projetos individuais de pesquisadores, patrocinados por agências como a National Science Foundation (NSF). Não faltam projetos para substituir a frota atual. O que há é uma enorme dificuldade de tirá-
los da prancheta. Faz mais de 4 anos que a NSF tenta viabilizar a construção de um navio para a região do Alasca a fim de substituir uma embarcação obsoleta. Até hoje a agência não conseguiu convencer o Congresso a patrocinar o projeto, avaliado em US$ 123 milhões.
> Suécia apóia pesquisa boliviana Um convênio firmado entre os governos da Suécia e da Bolívia permitirá que a comunidade acadêmica boliviana tenha acesso
Navio de pesquisa L. M. Gould, na Antártida: US$ 50 mil por dia
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a periódicos científicos de várias áreas do conhecimento nos próximos 3 anos. O investimento sueco será de US$ 460 mil, segundo documento assinado pela ministra do Planejamento do desenvolvimento da Bolívia, Graciela Toro Ibáñez, e a conselheira-chefe de cooperação da Embaixada da Suécia em La Paz, Ulla Brito Hedvall. O vice-ministro de Ciência e Tecnologia, Camilo Morales, explicou à Agência Boliviana de Notícias que universidades, centros e institutos de pesquisa públicos e privados se beneficiarão do convênio.
MARIA V ERNET
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Ap ó s 12 a n o s d e t r a m i t a ç ã o ,u m p r o j e to de lei que regulamenta a experimentação com animais no Brasil foi aprovado na Câmara Federal no dia 20 de maio e seguiu para a apreciação do Senado. Conhecido como Lei Arouca, referência ao seu autor, o sanitarista e deputado federal Sérgio Arouca (1941-2003), o projeto estabelece regras para o uso de animais em pesquisas no Brasil e propõe a criação do Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea), cuja tarefa seria a criação de normas específi cas para funcionamento de centros de criação, de viveiros de cobaias e de laboratórios de experimentação. Caso seja aprovada, a lei pouco mudará a rotina das principais universidades e centros de pesquisa do país, cujos projetos que envolvem o uso de animais já são submetidos ao crivo de comissões de ética. O projeto foi reabilitado graças à mobilização de entidades científi cas como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a Academia Brasileira de Ciências e a Federação das Sociedades de Biologia Experimental (Fesbe). Elas defendem a criação de um marco na legislação federal sobre o assunto, capaz de se sobrepor a leis municipais aprovadas em cidades como o Rio de Janeiro e Florianópolis que tentam banir localmente o uso de animais em pesquisa (ver Pesquisa FAPESP nº 14 4 ).
MIGUEL B OYAYAN
L EI AR O UC A É APR O V AD A
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Animal de laboratório: regras
> Chamada bilíngüe A FAPESP e o Institut National de la Recherche Agronomique (Inra), da França, lançaram em 28 de maio uma chamada de propostas bilíngüe (português e francês) para seleção de projetos cooperativos de pesquisa científica e tecnológica no campo das ciências agronômicas e da vida. As duas instituições, que firmaram convênio de cooperação em abril passado, vão dividir de forma igualitária o financiamento dos projetos aprovados. Apesar de o edital não excluir propostas de nenhuma área das ciências agronômica e da vida, será dada prioridade a projetos que se insiram num dos seis grandes temas de interesse da FAPESP e do Inra: biologia avançada
e biotecnologias; desenvolvimento sustentável, relação agricultura-meio ambiente-sociedade; bioenergia e química verde; nanotecnologias aplicadas à agricultura; modelagem fundamentada em ciências sociais, ciência política, estudos demográficos e outros; e economia rural. “Queremos aumentar a colaboração entre dois países que já têm uma boa base científica”, disse Marion Guillou, diretora presidente do Inra, que comandou a visita de uma delegação do instituto francês à FAPESP. Pesquisadores de instituições públicas e privadas de ensino superior e pesquisa do estado de São Paulo e de unidades do Inra podem submeter projetos até o dia 5 de agosto. O resultado do edital será divulgado em 5 de dezembro.
> O s vencedores do Prêmio FCW A Fundação Conrado Wessel anunciou os vencedores do Prêmio FCW de Ciência e Cultura 2007. O neurocientista Iván Izquierdo, que dirige o Centro de Memória do Instituto de Pesquisas Biomédicas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, foi o escolhido pela comissão julgadora na categoria Ciência Geral. Em Ciência Aplicada, a ganhadora foi
Hisako Gondo Higashi, diretora da Divisão de Desenvolvimento Tecnológico e de Produção do Instituto Butantan. O cirurgião plástico Ivo Pitanguy foi o ganhador em Medicina e o poeta mineiro Affonso Ávila na categoria Literatura. Cada um dos homenageados receberá R$ 200 mil. A fundação é uma instituição criada por Ubaldo Conrado Wessel (1891-1993), fotógrafo e químico, inventor na década de 1920 do primeiro papel fotográfico brasileiro.
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R ED ES C O M PAR T IL H AD AS
Qu a t r o i n s t i t u i ç õ e s b r a s i l e i r a s f o r m a l i z a r a m u m a p a r ceria com a Global Lambda Integrated Facility (Glif), colaboração que reúne gestores de redes de diversos países voltadas para o compartilhamento do tráfego de redes ópticas para a pesquisa. São elas a Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD), a Rede ANSP (Academic Network at São Paulo) e o projeto KyaTera – os dois últimos ligados à FAPESP. No Glif, o tráfego é encaminhado através de circuitos virtuais fi m a fi m, usados para aplicações que necessitam de grande capacidade de transporte – como as de vídeo de alta defi nição. Esses circuitos são implementados através de um encadeamento de lambdas (um lambda é um entre vários feixes de luz de cores diferentes em uma única fi bra óptica) ou de redes locais virtuais (VLANs). O envolvimento das redes brasileiras torna a iniciativa acessível a instituições localizadas em 23 cidades dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Ceará, Bahia e Pernambuco, além do Distrito Federal, servidas pelo núcleo multigigabit da rede Ipê, pela rede experimental do projeto Giga – coordenado pela RNP e pelo CPqD – e pela rede K yaTera, que mobiliza 400 pesquisadores paulistas.
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> A expansão da Unicamp O Conselho Universitário da Unicamp aprovou a implantação, em 2009, dos oito primeiros cursos de graduação que serão ministrados no novo campus da instituição em construção no município de Limeira. As 480 vagas distribuídas por oito cursos elevam de 2.830 para 3.310 o número de vagas oferecidas no vestibular
da Unicamp, representando um acréscimo de 17%. O projeto do novo campus prevê um total de mil vagas na graduação para os próximos anos. Com a implantação total do campus e a inclusão futura de outros cursos previstos, a Unicamp terá aumentado em um terço o número de vagas em seus cursos de graduação. Os cursos que entrarão em funcionamento em 2009 são: engenharia de produção, engenharia de manufatura, nutrição, ciência do esporte, gestão de agronegócio, gestão de comércio internacional, gestão de políticas públicas e gestão de empresas. As vagas iniciais serão distribuídas eqüitativamente
A rede Glif (acima) e seu braço brasileiro
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> Patamar mínimo A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal aprovou uma proposta de emenda constitucional que estabelece recursos mínimos às atividades de pesquisa e desenvolvimento. O texto estabelece que o investimento anual em atividades de pesquisa básica e aplicada e de desenvolvimento tecnológico deverá ser gradualmente elevado ao patamar mínimo de 2% do PIB. A proposta será levada ao plenário. De acordo
com a Agência Senado, o senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA) já anunciou que apresentará uma emenda estabelecendo que parte dos recursos seja aplicada na região Amazônica.
Cerrado: em busca de plantas aromáticas e medicinais
> Recursos para a Rede-Clima A Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) aprovou o financiamento de R$ 10 milhões para a implantação
LAURAB EATRIZ
nos períodos diurno e noturno. Para abrigar os oito novos cursos, a Unicamp já realizou 10 mil metros quadrados de obras físicas no novo campus. De acordo com o reitor José Tadeu Jorge, a formação do corpo docente é um capítulo importante do projeto. “O novo campus terá o mesmo perfil de excelência conquistado pela Unicamp ao longo dos anos”, disse.
ELZ A FIÚ Z A/AB R
Pe s q u i s a d o r e s d a Em b r a p a e d a Universidade do Mississippi, nos Estados Unidos, negociam uma parceria que envolverá estudos sobre plantas medicinais do Cerrado e da Caatinga. Entre os temas prioritários estão o desenvolvimento de medicamentos, fungicidas, repelentes de insetos e pesquisas em nutracêutica, ciência que estuda os componentes presentes em frutas, legumes, vegetais, entre outros. O utro destaque será a coleta e conservação de recursos genéticos de plantas aromáticas e medicinais. Uma das possibilidades cogitadas é a criação de um sistema de informação que associe referências obtidas das espécies dos dois biomas com outras de famílias próximas que possam ser substituídas. A cooperação está sendo articulada pelo Laboratório da Embrapa no Exterior (Labex), nos Estados Unidos, sediado em Beltsville, Maryland, e prevê intercâmbio científi co e execução de atividades relacionadas à pesquisa e transferência de tecnologia.
A R IQUEZ A D E D O IS B IO M AS
da Rede Brasileira de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas (Rede-Clima), coordenada pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Os recursos, que serão repassados ainda em 2008, devem viabilizar a criação de uma estrutura básica da rede, ligada ao Ministério da Ciência e Tecnologia. A Rede-Clima envolve diversas instituições brasileiras voltadas para estudos na área de mudanças climáticas ligados a diversos setores e sistemas, como biodiversidade, agricultura, energias renováveis, zonas costeiras, recursos hídricos, saúde humana, desastres naturais e políticas públicas. O projeto, além de produzir conhecimento e tecnologia, terá a missão de gerar os dados para apoiar a diplomacia brasileira nas negociações sobre o regime internacional de mudanças do clima. A rede deverá atuar ainda na realização de estudos sobre as vulnerabilidades do país às mudanças climáticas, além de estudar alternativas de adaptação. A secretaria executiva da Rede-Clima caberá ao Inpe.
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JUST IÇ A
Li b e r d a d e p a r a a v a n ç a r Decisão histórica do STF dá aval à busca da primeira linhagem brasileira de células-tronco embrionárias
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W ILSON DIAS/AB R
oi o mais importante julgamento em mais de cem anos de história do Supremo Tribunal Federal (STF), na avaliação de Celso de Mello, um de seus ministros. Na tarde do dia 29 de maio, os 11 juízes da Corte autorizaram o prosseguimento das pesquisas com células-tronco extraídas de embriões humanos no Brasil ao rejeitarem a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) proposta pelo ex-procurador-geral da República Cláudio Fonteles contra um dos artigos da Lei de Biossegurança (nº 11.105). Seis dos votos declararam a improcedência da Adin. Os outros cinco ministros, embora não tenham considerado inconstitucional a lei, fizeram ressalvas que, em maior ou menor grau, poderiam impor limites à atividade científica. Mas foram votos vencidos. Com a decisão histórica, o Supremo deu aval para a retomada das pesquisas brasileiras com células-tronco embrionárias, que permaneciam em banho-maria devido à incerteza causada pela Adin. “Esse julgamento tirou uma espada de nossas cabeças”,
Cadeirantes celebram a liberação das pesquisas em frente ao ST F
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afirma a geneticista Lygia da Veiga Pereira, que espera obter em seu laboratório na Universidade de São Paulo (USP) a primeira linhagem brasileira de um tipo especial de célula. Capazes de originar diferentes tecidos do corpo – como pele, ossos ou neurônios –, as células-tronco embrionárias despertam há tempos o interesse de pesquisadores e da população no mundo todo por representarem uma esperança de tratamento para problemas graves contra os quais medicamentos não surtem o efeito desejado. A produção de uma linhagem nacional de células-tronco embrionárias humanas é um passo importante para a ciência brasileira. “Ela deve garantir autonomia ao país, que pode deixar de depender da importação de linhagens produzidas no exterior”, diz Lygia, que trabalha nessa missão desde 2005 com Stevens Rehen, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Segui em frente acreditando no bom senso do STF”, conta Lygia. Não é uma tarefa simples. Desenvolver uma linhagem significa extrair células de um embrião em estágio inicial de desenvolvimento e fazê-las se reproduzir em laboratório sem que percam sua característica mais interessante: a pluripotência, capacidade de originar outras células do corpo. Usando uma técnica inovadora – em que se cultivam células de embriões humanos sobre fibroblastos humanos –, Lygia e Rehen já conseguiram gerar uma linhagem brasileira, mas os resultados ainda não foram plenamente satisfatórios. Agora pretendem repetir o experimento adotando o método clássico usado no mundo todo, em que essas células são cultivadas sobre fibroblastos de camundongos. “Elas serão adequadas para uso em pesquisa, mas não para tratamentos”, explica Lygia, que pretende repassar a técnica para outros laboratórios do país tão logo ela seja dominada.
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“Esse é um aprendizado novo”, diz o médico Antonio Carlos Campos de Carvalho, pesquisador do Instituto Nacional de Cardiologia e da UFRJ, onde também trabalha com linhagens de células-tronco embrionárias humanas importadas. Carvalho e outros quatro grupos da UFRJ tentam desde 2005 aumentar a obtenção de determinados tipos de células maduras, que poderiam ser usadas no reparo de algum tecido danificado. “Com a decisão do STF, ganhamos tranqüilidade para colocar estudantes de mestrado e doutorado para trabalhar nesses projetos”, afirma Carvalho. A geneticista Mayana Zatz, líder da mobilização em favor da liberação das pesquisas, diz que o potencial terapêutico das células-tronco embrionárias é imenso. “Mas é preciso ter paciência: não se sabe quando e nem quais doenças poderão realmente ser tratadas”, adverte. “Os pesquisadores já estavam trabalhando com células-tronco embrionárias, tanto importadas como brasileiras – porque não era proibido. Mas ninguém estava investindo muito nisso porque não se sabia se elas seriam interrompidas. Agora os pesquisadores vão se lançar nesse caminho: submeter projetos, conseguir financiamento, fazer pesquisa”, diz Mayana. A pesquisadora ressaltou que o aval do STF não significará uma redução da pesquisa com as células-tronco adultas, que podem ser extraídas de vários órgãos, mas não têm a versatilidade das embrionárias. “A pesquisa com células adultas trará resultados a curto prazo, mas as embrionárias
permitirão tratar uma gama mais ampla de doenças”, afirmou. O ministro da Ciência e Tecnologia, Sérgio Rezende, lembrou que as pesquisas com células-tronco apoiadas pelo governo federal desde 2004 poderão ter os primeiros resultados em 2009. Até agora esses projetos receberam cerca de R$ 24 milhões. “É certo que, para os primeiros resultados concretos, temos uma longa estrada pela frente. Mas é preciso destacar que essas pesquisas buscam trazer respostas para agravos como as lesões raquimedulares, diabetes e doenças genéticas”, explicou o ministro. C l o n a g e m p r o i b i d a - As pesquisas com células-tronco embrionárias estão previstas na Lei Nacional de Biossegurança, sancionada em março de 2005 (ver reportagem de capa de Pesquisa FAPESP nº 110). O uso de embriões foi liberado em condições restritas: só é permitido o uso de células-tronco de embriões excedentes dos processos de fertilização in vitro – mesmo assim caso se mostrem inviáveis para reprodução ou se estiverem congelados há pelo menos três anos. Ficou proibida a clonagem de embriões que, na teoria, poderia gerar células e tecidos feitos sob medida para tratar um indivíduo. Mas logo que a lei entrou em vigor surgiu o impasse jurídico. Em maio de 2005 o então procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, propôs a Adin ao STF. Ele contestou o artigo 5º da lei, justamente o que dispõe sobre a utilização
de embriões armazenados em clínicas de reprodução (ver Pesquisa FAPESP nº 113). Na avaliação de Fonteles, tais dispositivos chocavam-se com a proteção que a Constituição confere à vida humana. A ação suscitou a primeira audiência pública feita na história do Supremo (ver Pesquisa FAPESP nº 135). Por iniciativa do ministro relator, Carlos Ayres Britto, o STF reuniu 22 cientistas em Brasília para debater a seguinte questão: quando começa a vida? O julgamento só teria início no dia 5 de março, com a leitura do voto de Ayres Britto, que refutou a tese de Fonteles. “Deixar de contribuir para devolver pessoas à plenitude da vida não soaria como desumana omissão de socorro?”, indagou Britto. A então presidente da corte, a ministra Ellen Gracie, acompanhou o voto do relator, mas a sessão foi interrompida por um pedido de vista do ministro Carlos Alberto Menezes Direito, e só retomada em 28 de maio. Direito, que pertence à União dos Juristas Católicos do Rio de Janeiro, propôs em seu voto que a extração de células-tronco estaria condicionada à não destruição do embrião congelado. Além dele, os ministros Ricardo Lewandowski, Eros Grau, Gilmar Mendes e Cezar Peluso fizeram ressalvas que previam limites à pesquisa. Mas prevaleceu a tese do relator, apoiada também pelos ministros Marco Aurélio Mello, Ellen Gracie, Celso de Mello, Cármen Lúcia e Joaquim Barbosa, que votaram pela liberação das pesquisas nos termos da Lei de Biossegurança, sem restrições. ■ PESQUISA FAPESP 148
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Imagens de uma seqüência de célula se dividindo: pesquisas com células-tronco têm um longo caminho a percorrer
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que leva uma pessoa a escolher a carreira de cientista se a ocupação exige um enorme esforço intelectual mas não rende um status econômico à altura de seus desafios? Como os cientistas conseguem se manter estimulados apesar das incertezas que permeiam a missão de fazer avançar o conhecimento? Costuma-se atribuir essa motivação a um chamado vocacional quase religioso, como escreveu Max Weber em Ciência e política: duas vocações: “Sem essa embriaguez singular, de que zombam todos os que se mantêm afastados da ciência, sem essa paixão, sem essa certeza de que milhares de anos se escoaram antes de você ter acesso à vida e milhares se escoarão em silêncio se você não for capaz de formular aquela conjetura; sem isso, você jamais possuirá a vocação de cientista e melhor será que se dedique a outra atividade”. Investigações mais recentes da sociologia mostram que, se o senso comum não está propriamente equivocado, também existe uma dinâmica a explicar as singularidades da profissão de cientista para além da idéia de que eles são gênios excêntricos, absortos na resolução de problemas às vezes intangíveis e avessos às misérias cotidianas. A profissão garante uma elevada satisfação pessoal, derivada da liberdade de poder organizar o próprio trabalho e do gosto de colher os frutos. “Enquanto o trabalho industrial tornou-se alienante, por fracionar etapas e impor tarefas monótonas e fatigantes, a ocupação do cientista, assim como outras de caráter intelectual, é essencialmente criativa e conseguiu preservar o controle sobre todo o seu processo produtivo”, diz a socióloga Neide Hahn, autora de um estudo de referência sobre o tema.Um dos principais motores da profissão, mais do que os cifrões no contracheque, é o prestígio – auferido na forma de reconhecimento dos pares e da sociedade e na capacidade de obter recursos para prosseguir suas pesquisas. Em 1975, Neide Hahn defendeu uma dissertação de mestrado intitulada Cientista: o indivíduo e a ocupação, que pela primeira vez no Brasil caracterizou o trabalho de cientistas e avaliou as motivações desse grupo social. Orientada pelo sociólogo Leôncio Martins Rodrigues, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), a pesquisa foi baseada em entrevistas com 120 cientistas de diversas
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áreas do conhecimento, ligados a universidades e centros de pesquisa do estado de São Paulo, que haviam recebido nos anos anteriores auxílios da FAPESP. Um dos dados mais eloqüentes diz respeito às vantagens da carreira apontadas pelos entrevistados. A satisfação intelectual, traduzida na habilidade de contribuir para o avanço do conhecimento e na solução de problemas, foi a motivação central citada por 57,5% dos pesquisadores. Em segundo lugar, com um índice de 13,3%, vinha a possibilidade de resolver problemas sociais, seguida pela liberdade no trabalho (11,7%) e a chance de receber recompensas sociais ou materiais (6,7%). “Os pesquisadores se sentem realizados no que diz respeito ao alvo principal de sua atividade: a busca do conhecimento, a solução de problemas, a satisfação da curiosidade intelectual, enfim”, escreveu Neide Hahn. A auto-imagem expressada pelos pesquisadores também merece menção. Eles disseram que as condições essenciais para o desempenho da ocupação são, em primeiro lugar, uma personalidade adequada, calcada no conceito de honestidade intelectual, além de inteligência e esforço individual. A dissertação sugere que o trabalho científico se aproxima do modelo descrito pelo sociólogo americano Charles Wright Mills (1918-1962) como “artesanal”:
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Por que a satisfação dos cientistas com seu trabalho é tão grande Fabrício Marques
Inauguração de laboratório da Faculdade de Engenharia Industrial (1977)
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LUCRÉ CIO/AE
Laboratório da Faculdade de Medicina e Enfermagem de Ribeirão Preto (1971)
ao mesmo tempo que é uma necessidade de ganhar a vida também se trata de um ato artístico capaz de trazer a tranqüilidade interior. As características da profissão mais valorizadas foram a oportunidade de exercer a própria vocação e o prazer intelectual de solucionar problemas teóricos. Tr a b a l h o e l a z e r - A caracterização feita dos cientistas entrevistados traz algumas informações curiosas. De modo geral eram moderados no consumo, faziam poupança e investiam sobretudo em imóveis. Num sinal de que as fronteiras entre trabalho e lazer são tênues, 42,5% declararam que seus melhores amigos são os colegas de profissão e 18,3% informaram que usam o tempo livre para leituras e outras atividades ligadas à profissão. Apenas 3 dos 120 pesquisadores eram solteiros. Dois eram viúvos e outros 2, desquitados. Como se vê, muitos eram casados, em geral com mulheres com nível de instrução superior à média das mulheres brasileiras da época – 62% delas tinham curso superior, freqüentemente na mesma área de formação dos maridos. Ainda que a recompensa em dinheiro despontasse como uma vantagem central apenas secundária, não se pode 32
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dizer que fossem mal remunerados. “Embora se constituam num grupo ocupacional razoavelmente bem pago, em cotejo com algumas outras ocupações liberais, os cientistas recebem menor remuneração. Outra hipótese é de que tenham aspirações salariais altas, o que faz supor uma autovalorização da atividade que exercem”, escreveu Neide. Mais de dois terços (72%) se declararam insatisfeitos com sua renda (entre 15 e 37 salários mínimos da época). Mas o fato é que a profissão representara, para eles, um meio de ascensão social. “De modo geral, a amostra ascendera da classe média média para a camada média alta”, disse na época Neide Hahn. É certo que, naquela épo-
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O P ROJ E T O C i e n t i s t a :o i n d i v í d u o e a o c u p a ç ã o
M OD ALID AD E
B olsa de Mestrado (1975) OR IEN TAD OR
LEÔ NCIO MART INS RO DRIGUES – FFLCH/USP
ca, vários setores beneficiaram-se de mecanismos da mobilidade social. Mas 64% dos entrevistados declararam que se consideravam em condições melhores que as vividas por seus pais. A pesquisa de Neide Hahn foi feita há mais de 3 décadas, mas se pode afirmar que vários de seus resultados permanecem atuais. Segundo Elizabeth Balbachevsky, professora do Departamento de Ciência Política da FFLCH/ USP, a satisfação do cientista com sua profissão é um fenômeno mundial e não sofreu abalos com a evolução do papel dos pesquisadores, cuja autonomia vem sendo desafiada por uma pressão para que tenham uma interface maior com o setor produtivo e, com freqüência, são avaliados pelo volume de recursos que conseguem atrair. Em janeiro passado, a professora participou de uma conferência internacional em Hiroshima, no Japão, em que foram apresentados resultados de um projeto internacional que acompanha a evolução da profissão acadêmica em vários países – Elizabeth e o professor Simon Schwartzman são os representantes brasileiros dessa rede. “Ficamos surpresos com os resultados obtidos mesmo em países que sofreram reformas profundas em seu sistema de educação superior. Ainda assim, a satisfação profissional permanece elevada”, diz, referindo-se, por exemplo, à Austrália, cujo sistema de financiamento passou a exigir que os pesquisadores busquem parte do dinheiro para seu custeio no setor privado. “Na Holanda, a tenure, que é a contratação definitiva do professor, não faz mais parte das regras das universidades e os pesquisadores têm de mostrar produtividade continuamente. As pressões vêm de todos os lados e algumas delas não são controladas pela academia. Hoje muitos pesquisadores são obrigados a negociar com interlocutores que, até bem pouco tempo atrás, não seriam aceitáveis, como, por exemplo, as organizações mais radicais de defesa dos animais, que impõem restrições ao uso de animais em pesquisa”, afirma. Diante do quadro que se apresenta em muitos países desenvolvidos, a situação do Brasil pode ser considerada bastante satisfatória em muitos sentidos. “As pressões de índole produtivista são menores. No caso das universidades estaduais paulistas, que recebem um
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Pr e s s ã o p a r a p u b l i c a r - Na opinião de Shozo Motoyama, professor titular da FFLCH/USP e diretor do Centro Interunidades de História da Ciência da universidade, a profissão de pesquisador está em transformação, mas isso não mudou o prazer obtido pela ocupação. “O número de cientistas aumentou muito e, em função da importância que as novas tecnologias ganharam, vários deles desenvolveram habilidades que os tornaram capazes, por exemplo, de abrir empresas e ganhar dinheiro fora do ambiente acadêmico”, afirma o professor. “Eles já não são mais aquele tipo de elite intelectual que vivia em seus laboratórios alheios à vida comunitária. Mas eles continuam sendo elite intelectual e ainda se beneficiam da máxima do geneticista Crodowaldo Pavan sobre seu trabalho. Ele sempre diz: ‘Eu me divirto e alguém paga para eu me divertir’”, afirma Motoyama. Muitos pesquisadores se queixam de uma mudança no perfil de seu trabalho, que é a crescente pressão por publicar artigos acadêmicos em grande quantidade, resumida no slogan “Publique ou pereça”. Embora de fato a pressão para publicar fosse menor na década de 1970, os dados levantados por Neide Hahn em sua dissertação de 1975 mostram que a preocupação em divulgar seus trabalhos era forte. Em média, os cientistas
entrevistados que eram professores titulares haviam publicado na carreira um número médio de 76 trabalhos. Esse índice caía para 48,2 entre os professores adjuntos, 42 para os livres-docentes, 16,9 para os doutores e 23 para os mestres. “Principalmente os professores titulares tinham uma produtividade elevada, num momento em que a pressão por publicar era muito menor que a de hoje”, elogia o professor Rogério Meneghini, coordenador científico da biblioteca eletrônica SciELO Brasil. A performance não surpreende a cientista política Elizabeth Balbachevsky, da USP. Em primeiro lugar, ela lembra que se trata de uma amostra peculiar. “A FAPESP sempre foi rigorosa na concessão de recursos e bolsas e o fato de terem recebido auxílio da Fundação é um indicador de um profissional com perfil diferenciado”, afirma. De outro lado, a professora lembra que dar publicidade aos achados é uma preocupação muito antiga, parte do ethos da ciência. “Já naquela época, principalmente nas áreas de ciência pura, quem não publicava em revistas especializadas
simplesmente não era reconhecido por seus pares como cientista”, afirma. “O que é novo não é a necessidade de publicar, mas o advento dos indicadores que mensuram o impacto das revistas especializadas e de seus artigos e que dão precisão à avaliação da importância da produção acadêmica”, diz Elizabeth Balbachevsky. O sociólogo americano Robert Merton (1910-2003), que foi um pioneiro da sociologia da ciência, ao estudar o modo como os cientistas se comportam e suas motivações, já havia apontado a necessidade de submeter os achados aos pares como característica essencial da ocupação do cientista. Segundo Merton, entre as principais normas culturais internalizadas pelos pesquisadores estão a submissão a critérios impessoais de julgamento e a idéia de que as descobertas são produto de colaboração social, devendo, portanto, ser divulgadas e submetidas ao julgamento de seus pares. Publicar, como se vê, está na essência do trabalho do cientista. E perecer está fora de cogitação para indivíduos tão motivados com a profissão que escolheram. ■
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porcentual fixo de verbas e gozam de autonomia para usar esses recursos, a liberdade de trabalho dos pesquisadores não sofreu reveses. Os recursos da FAPESP também contribuem para esse diferencial”, afirma a professora. É provável que o prazer proporcionado pelo trabalho científico não esteja vinculado apenas à liberdade e à proteção do ambiente acadêmico. Um levantamento divulgado em 2005 pela revista norte-americana The Scientist avaliou a satisfação de cientistas contratados para fazer pesquisa em grandes corporações dos Estados Unidos, do Canadá e de países europeus. Os dados mostraram que eles pensam como os colegas que militam na academia: tiram elevada satisfação de seu trabalho por considerá-lo muito importante. A satisfação aumenta se outros fatores estiverem presentes, como o fato de trabalhar com colegas íntegros e os padrões éticos demonstrados pela companhia.
Pesquisa de campo na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (1960)
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DIFUSÃ O
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MARIA DAS GRAÇ AS LAPA W ANDERLEY
Exposição em B erlim mostra a riqueza da biodiversidade brasileira registrada por projetos da FAP ESP
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Museu do Jardim Botânico de Berlim recebe até o dia 14 de setembro uma inédita mostra sobre a biodiversidade brasileira que se baseia em imagens e dados oriundos de três projetos financiados pela FAPESP: a Flora brasiliensis on-line, a Flora fanerogâmica do estado de São Paulo e o Biota-FAPESP. A exposição, cujo título é Brazilian nature mystery and destiny (Natureza brasileira: mistério e destino), dispõe de painéis com reproduções de imagens, ilustrações e textos explicativos. “Um significado especial da exposição é mostrar que o Brasil está atento à sua biodiversidade e que faz isso por meio de programas de pesquisa bem organizados e bem preparados”, disse Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP. Os 37 painéis da exposição, programada para ter início no dia 4 de junho, espalham-se pelo terceiro andar do museu alemão e também pelos quatro lances de escada que dão acesso ao pavimento. Os textos explicativos são todos em inglês, pois há a intenção de que a mostra viaje por outros países, mas foi preparado um catálogo da exposição em alemão. O conteúdo foi compilado com a ajuda de representantes dos três projetos. O Flora brasiliensis on-line,
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que há 2 anos disponibilizou no endereço da internet florabrasiliensis.cria.org.br a versão integral do mais completo e abrangente levantamento da flora nacional já realizado, é representado na exposição por uma seleção de imagens de espécies e de cenários produzidos, na maioria, no século XIX. O acervo de 3.840 pranchas e 10.207 páginas com os textos das descrições das quase 23 mil espécies foi feito sob a liderança do botânico Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868). Além das imagens históricas, o projeto Flora brasiliensis on-line contempla a atualização dos nomes das espécies e o acréscimo de informações mais recentes. Cada desenho levado à exposição tem a companhia de uma fotografia atual das espécies ou ecossistemas retratados, num esforço para mostrar que boa parte do que Von Martius viu em sua viagem de 10 mil quilômetros pela Mata Atlântica, a Caatinga, o Cerrado e a Floresta Amazônica, ainda pode ser vislumbrada. A produção ou pesquisa das novas imagens ficou a cargo da equipe de Maria do Carmo Amaral, do projeto Flora brasiliensis on-line. Além da FAPESP, o projeto teve o patrocínio da Fundação Vitae e da empresa de cosméticos Natura. O projeto Flora fanerogâmica teve início em 1993 e contou com a participação de mais de 200 pesquisadores, que descreveram cerca de 2 mil espécies fanerógamas – que produzem flores – na vegetação nativa paulista. Dessas, pelo menos 20 jamais haviam sido identificadas antes. Estima-se que os ecossistemas paulistas guardem 7,5 mil espécies de plantas desse tipo. O levantamento já resultou na publicação de cinco volumes com ilustrações e informações sobre plantas de todo tipo presentes no estado de São Paulo. Outros dez volumes serão publicados nos próximos anos. As dezenas de imagens apresentadas na exposição foram compiladas sob a coordenação de George Shepherd, do Instituto de Biologia da Unicamp e coordenador adjunto do programa Flora fanerogâmica do estado de São Paulo. Já o programa Biota-FAPESP permitiu, desde sua criação em 1999, a descrição de mais de 500 espécies de plantas e animais espalhados pelos 250 mil quilômetros quadrados do território paulista. Também produziu 75 projetos de pesquisa, 150 mestrados e 90 doutorados, além de gerar 500 artigos em 170 periódicos, 16 livros e dois atlas. Recentemente, os dados científicos foram transformados em mapas, que passaram a
Q uesnelia humilis (esq.) e Ep iphyllum phyllanthus, da fl ora fanerogâmica de São Paulo
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Mata inundável no Pará, desenhada por Von Martius e um cenário semelhante...
à frente das atenções da comunidade internacional”, disse Seixas Corrêa, referindo-se à 9ª Conferência dos Estados Signatários da Convenção sobre a Diversidade Biológica (COP 9), que se realizou em Bonn entre os dias 19 e 30 de maio. O encontro anterior, a COP 8, foi realizado em Curitiba em 2006. A trajetória da exposição, por sinal, remonta à conferência de Curitiba, quando um evento realizado pela FAPESP
REP RODUÇ Ã O DO LIV RO FLO RA B RAS ILIEN S IS DE CARL FRIEDERICH P HILLIP V ON MARTIUS
fronteiras agrícolas, a FAPESP nos dá a oportunidade valiosíssima de mostrar a nossa seriedade em torno da preservação do meio ambiente, trazendo exemplos claros do passado e do presente e do que será o futuro”, disse o diplomata, que visitou a sede da FAPESP no dia 16 de maio. “Além de ter impacto do ponto de vista de nossa imagem na Alemanha, a exposição ocorre num momento especial, em que o tema da biodiversidade estará
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B i o c o m b u s t í v e i s - O embaixador do Brasil em Berlim, Luiz Felipe de Seixas Corrêa, destaca a importância da exposição. “Num momento em que cresce na Europa o debate sobre os biocombustíveis e os riscos que impõem às
REP RODUÇ Ã O DO LIV RO FLO RA B RAS ILIEN S IS DE CARL FRIEDERICH P HILLIP V ON MARTIUS
orientar os critérios de preservação da vegetação nativa paulista. O trabalho de seleção de imagens esteve a cargo do botânico Carlos Joly, professor da Universidade Estadual de Campinas, que por vários anos foi o coordenador do Biota-FAPESP. “O Museu de Berlim tem várias espécies brasileiras e é uma referência para nós”, diz Joly. “Quando vamos fazer alguma revisão taxonômica, é comum termos de ir a Berlim para avaliar esse acervo. Por isso é especialmente importante podermos levar a exposição até lá e mostrarmos aos pesquisadores alemães que fazemos pesquisa de primeira linha”, afirma. A escolha do nome da exposição se explica. “Mistério, porque ainda há muito a ser descoberto na biodiversidade brasileira, bem ao contrário do que acontece na Europa, que há muito tempo deixou de identificar novas espécies”, diz a jornalista Maria da Graça Mascarenhas, gerente de comunicação da FAPESP e curadora da mostra. “E destino, porque cuidar desse patrimônio, afinal, depende de nós”, complementa.
Tipo de M elocactus fotografado na Bahia (esq.) e planta semelhante descrita no século XIX
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V OLK ER B ITTRICH MIGUEL B OYAYAN
...registrado nos arredores de Manaus
apresentou os resultados da digitalização do acervo da Flora brasiliensis aos pesquisadores de todo o mundo presentes ao encontro. No ano passado, Wanderley Canhos, diretor presidente do Centro de Referência em Informação Ambiental (Cria), entidade responsável pela organização do banco de dados do projeto, foi procurado por pesquisadores alemães interessados em levar para a Alemanha uma exposição com as pranchas de Von Martius. A FAPESP sugeriu ampliar o escopo da exposição e incluir, além do acervo da Flora brasiliensis, imagens de outros importantes projetos no campo da biodiversidade, como a flora fanerogâmica do estado de São Paulo e o Biota. Em seguida, uma equipe da Fundação passou a trabalhar no roteiro da exposição. Para compor os painéis, os organizadores tiveram de vencer algumas dificuldades. Foi preciso, por exemplo, obter autorizações de uso da imagem assinadas pelos autores de todas as fotografias exibidas, sem o que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional não permitiria o envio dos painéis para a Alemanha. “Tivemos problema, por exemplo, na hora de aproveitar imagens exibidas em exposições anteriores. Algumas fotos haviam sido cedidas por nossas equipes, mas já não se sabia exatamente quem era o autor”, lembra o botânico Carlos Joly. “O jeito era substituir por outra”, afirma. ■
Fabrício Marques
Muriqui (B rachyteles arachnoides), macaco que habita a Mata Atlântica
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UNIVERSIDADES
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m enclave de 2,3 quilômetros quadrados na periferia de Dubai, um dos sete Emirados Árabes Unidos, tornou-se uma espécie de zona franca da educação de qualidade internacional numa região onde, até poucas décadas atrás, havia apenas o deserto. Nos últimos 3 anos, pelo menos duas dezenas de universidades de países como Estados Unidos, Reino Unido, Austrália, Bélgica e Índia abriram sucursais de seus campi na área, batizada de Cidade Acadêmica Internacional de Dubai. A partir do segundo semestre dois novos participantes abrirão suas portas em Dubai: a Universidade do Estado de Michigan e o Rochester Institute of Technology, do estado de Nova York, cujas sedes estão quase prontas. Eles se somarão a instituições como a
N O D E SE RT O
O emirado árabe de Dubai investe US$ 10 bilhões para tornar-se um pólo internacional de ensino superior australiana Murdoch University International, conhecida por seus programas na área de mídia e comunicações; a Hult International Business School, que oferece cursos de MBA em negócios e finanças em Boston; ou ainda a londrina Universidade Middlesex. Harvard também está presente no emirado. Sua escola de medicina estabeleceu um hos-
DIV ULGAÇ Ã O/MIDDLESEX UNIV ERSITY
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F RA N C A
pital e uma fundação de pesquisa numa zona criada em 2002 para abrigar hospitais e clínicas de alta qualidade. Na cidade acadêmica, cerca de 10 mil estudantes freqüentam cursos de 1 a 4 anos de duração, em áreas como engenharia, ciência da computação, moda e design, biotecnologia, meio ambiente e negócios. A intenção é chegar a 30 mil nos próximos 5 anos. “A lista cada vez maior de instituições mostra que seremos uma base regional para educação superior de alta qualidade”, comemora Ayoub Kazim, diretor executivo da cidade. O que acontece em Dubai simboliza uma nova tendência vivida pelas universidades de classe mundial. Suas estratégias de internacionalização, que se justificam pela necessidade de preparar alunos para o mundo globalizado e atrair talentos internacionais, já não se baseiam apenas em programas de intercâmbio, formação de redes de pesquisa ou cursos a distância como antigamente. Está crescendo o número de instituições que criam sucursais no exterior, sobretudo no Oriente Médio. Em Doha, capital do Qatar, é possível estudar medicina num campus avançado de Cornell ou ciência da computação na sucursal de outra instituição americana, a Universidade Carnegie Mellon. A Universidade de Nova York vai abrir em 2010 um campus dedicado a artes e humanidades em Abu Dhabi, o maior dos emirados árabes, depois de receber uma dotação de US$ 50 milhões do xeque local. A tendência é estimulada pelas grandes dotações oferecidas às instituições. No caso de Dubai, as universidades
Formatura no campus da Universidade Middlesex em Dubai, aberto em 2005
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internacionais são seduzidas por um pacote de vantagens que inclui isenção total de impostos, garantia de repatriação integral dos lucros obtidos e facilidades burocráticas para estudantes, professores e funcionários vindos de fora. Sem falar na infra-estrutura da cidade acadêmica, dotada de restaurantes, cinemas, ginásios esportivos e áreas de lazer. A intenção do xeque de Dubai, Mohammed AlMaktoum, é transformar o país num pólo de atração de estudantes estrangeiros. O emirado tem pouco petróleo, ao contrário dos vizinhos, e a ambição de seu mandatário é convertê-lo num grande centro de turismo e tecnologia. Além da construção de hotéis de arquitetura exótica e do aterramento de um pedaço do seu litoral com a sugestiva forma de uma palmeira, o governo criou a Cidade da Internet, inaugurada em 2000, que conta com instalações de empresas como Microsoft, Siemens e IBM, e planeja lançar um pólo de labo-
At i v o d i p l o m á t i c o - Embora as universidades com campus no exterior insistam na tese de que oferecem a mesma qualidade de ensino da matriz, muitos funcionários e professores são contratados localmente, com contratos de curto prazo. “Muitos desses gestores de universidades estão tentando se apresentar como benevolentes e altruístas quando, na verdade, querem é arrecadar dinheiro”, disse ao jornal The New York Times a deputada Dana Rohrabacher, republicana da Califórnia, crítica dessa onda internacionalista. David Skorton, reitor da Universidade Cornell, defende a estratégia e diz que ela traz benefícios para os Estados Unidos. “A educação superior é o ativo diplomático mais importante que nós
temos. Eu acredito que esses programas podem reduzir a fricção entre países e culturas”, afirmou Skorton. Não é novidade que a educação de classe internacional tenha virado uma mercadoria disputada – e que os Estados Unidos talvez sejam o país mais habilitado para vendê-la. Alunos estrangeiros admitidos em universidades norte-americanas injetaram US$ 14,5 bilhões no país no ano passado em anuidades escolares, despesas com moradia e compra de livros, US$ 1 bilhão a mais que no ano anterior. Esse valor poderia ser maior não fosse o aumento das restrições ao ingresso de estudantes estrangeiros após os atentados de 11 de setembro de 2001. O principal embaraço atingiu estudantes do Oriente Médio, cujo contingente caiu 10% em 2002 e outros 9% em 2003 e só voltou aos níveis pré-atentados no ano passado. Abrir campus no exterior não deixa de ser uma forma de atender a essa demanda sem fomentar a imigração. ■
Fabrício Marques DIV ULGAÇ Ã O/RIT
DIV ULGAÇ Ã O/MSU
ratórios farmacêuticos. Para o projeto da cidade acadêmica foram destinados US$ 10 bilhões. Dubai tem 1,5 milhão de habitantes espalhados por uma área de menos de 3,8 mil quilômetros quadrados – o equivalente a pouco mais do que duas cidades de São Paulo.
Ob ras dos prédios da Universidade de Michigan (alto) e do Rochester Institute of Technology
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FISIO LO GIA
Ma is a lim e n t o e fl orestas no ar Carlos Fioravanti
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experimento. Suas estimativas indicam que os canaviais de todo o país absorveriam apenas 1 milésimo dos 3 bilhões de toneladas de CO2 liberados todo ano nas queimadas da Amazônia. A soja, que ocupa uma área três vezes maior que a da cana, faz ainda mais fotossíntese e aproveita a água de modo ainda mais eficiente, quando submetida à mesma concentração de
DETALHE DE AB AC AX I E MAMÃ O ,Ó LEO SOB RE TELA DE ALB ERT ECK HOUT
atual safra de estudos sobre a cana-de-açúcar confere uma tarefa a mais para a planta usada para produzir o açúcar indispensável à maioria dos brasileiros e o álcool que atrai o olhar do mundo e move quase metade dos automóveis no país. A cana emerge agora como uma possibilidade de deter o aquecimento global: o contínuo acúmulo de gás carbônico (CO2) na atmosfera, que tende a elevar a temperatura do planeta, é inquietante para a humanidade, mas ótimo para as plantas, entre elas a cana. O mesmo CO2 que vemos como poluição é uma forma de adubo para as plantas. Portanto, a cana, outras culturas agrícolas e muitas espécies de árvores poderiam se beneficiar e crescer mais rapidamente em um ar mais poluído. A bióloga Amanda Pereira de Souza trabalhou com cana durante 5 anos no Instituto de Botânica, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e na Universidade de São Paulo (USP). Fez uma série de experimentos e, por fim, demonstrou que a cana mantida em um ambiente com o dobro da concentração atual de CO2 realiza 30% a mais de fotossíntese e produz 30% mais de açúcar do que a que cresce sob a concentração normal de CO2. Das câmaras que mantinham esse ar rico em gás carbônico saíram plantas também mais altas e mais encorpadas, com 40% a mais de biomassa. A soja e a batata apresentaram resultados próximos, em experimentos semelhantes. A conclusão que ganha força é que a maioria das outras plantas, incluindo as árvores, deve se beneficiar do provável excesso de gás carbônico, um dos ingredientes essenciais para ocorrer a fotossíntese, embora algumas mais do que outras (ver tabela na próxima página). Os resultados poderiam representar uma vantagem para o Brasil, a Índia e a China, os maiores produtores de canade-açúcar, em um cenário de maior concentração de gás carbônico. Essa conclusão merece, porém, ser examinada com cautela para evitar que a expansão de canaviais como forma de limpar o ar e ao mesmo tempo de produzir riquezas. O papel dos canaviais para retirar gás carbônico do ar seria muito modesto, se comparado ao das florestas tropicais, alerta Marcos Buckeridge, botânico da USP e coordenador desse PESQUISA FAPESP 148
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Avidez das plantas por gás carbônico abre perspectivas de produzir mais alimento em menos espaço e de amenizar o aquecimento global
CO2, de acordo com os experimentos coordenados por Carlos Martinez na USP de Ribeirão Preto. Segundo ele, as plantas com estruturas de armazenamento de açúcares – como a cana, a batata, o tomateiro, a soja e o milho – podem crescer até 40% com mais CO2. “No entanto”, ressalta, “só o excesso de CO2 não elevará a produtividade das plantas. As outras condições, como água,
nutrientes, luz e temperatura, também têm de ser favoráveis”. Dois especialistas em fisiologia de plantas, Jon Lloyd, da Inglaterra, e Graham Farquhar, da Austrália, alertam em um estudo recente para a possibilidade de a taxa de fotossíntese cair quando a temperatura ultrapassar 30° Celsius. Até agora os experimentos foram feitos em laboratório: as plantas crescem
em vasos cercados por câmaras transparentes cilíndricas e de topo aberto, com bastante gás carbônico, água, luz e nutrientes. Falta testar em condições reais – em campo, quando as plantas se submetem a variações diárias de água e temperatura. Desde já parece certo, porém, que o excesso de CO2 atmosférico deve alterar a biodiversidade e a composição das florestas. Espécies de
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árvores pioneiras como o feijão-do-mato e a embaúba, as primeiras a ocuparem os novos espaços, tendem a crescer ainda mais rápido que as espécies definitivas e de vida mais longa como o jacarandáda-baía e o jatobá. Por sinal, foi com o jatobá, em um estudo pioneiro, que Buckeridge demonstrou em 2001 que uma planta pode crescer mais e mais rapidamente sob concentrações mais elevadas de gás carbônico. Esses e outros estudos feitos no Brasil e em outros países valorizam a cana-deaçúcar como fonte de etanol, um combustível verde e renovável, diferentemente dos de origem fóssil como o petróleo. O milho, a matéria-prima para o etanol nos Estados Unidos, até agora não se mostrou tão ávido por CO2 quanto a cana. Além disso, saber que a cana cresce mais com mais gás carbônico tornaria possível obter o mesmo rendimento em metade da área plantada, aproveitando a outra metade para plantar feijão, arroz ou milho, por exemplo. “Podemos produzir mais e de modo sustentável”, acredita Buckeridge. Ele defende a idéia de um canavial com floresta: a área que deixaria de ser ocupada por cana poderia ser aproveitada com matas de uso sustentável, que ajudariam a gerar renda, a reter CO2 e a deter os impactos ambientais da cana. “Por que não pensar também em como
usar o gás carbônico liberado nas dornas de fermentação da cana nas usinas para irrigar o canavial e aumentar a produtividade e o teor de açúcar?” Os biólogos da USP, em conjunto com colegas da Unicamp, do Instituto de Botânica e de uma instituição privada, o Centro de Tecnologia Canavieira, verificaram que a cana capta não só mais CO2, mas também mais luz, outro ingrediente essencial à fotossíntese. Em seguida, identificaram quatro genes associados à maior absorção da luz e dois que expandem a parede celular, que guarda quase metade do carbono obtido com a incorporação do CO2. Encontrar genes como esses não é nada trivial: a cana-de-açúcar, geneticamente, é bastante complexa. As variedades de cana hoje mais utilizadas para produzir açúcar, álcool, aguardente, caldo de cana e rapadura têm um número variável de cromossomos – de 100 a 130. Cada célula mantém pelo menos parte da herança genética das espécies originais, a Sacharum spontaneum, cujo número de cromossomos varia de 36 a 128, e a Sacharum officinarum, com 70 a 140 cromossomos. E cada cromossomo tem de seis a dez cópias – nem sempre iguais. Não há mais por que se perder nesse labirinto. De 1999 a 2003, quase 250 pesquisadores de instituições paulistas,
pernambucanas e fluminenses trabalharam no Genoma Cana ou Sucest e identificaram 90% dos estimados 80 mil genes da cana, representados por 43 mil seqüências ativas de genes. “Conseguimos acompanhar passo a passo o desenvolvimento internacional em genética molecular de plantas”, observa Marie-Anne Van Sluys, pesquisadora da USP que participou do Sucest. G e n e s ú t e i s - Tanta informação sobre a
genética da cana tem ajudado a validar e a orientar o melhoramento genético clássico, que começou no início do século em instituições como o Instituto Agronômico de Campinas (IAC) e hoje corre também em universidades de todo o país. Em um artigo recente a equipe do Sucest apresenta os genes que podem ajudar a apurar características agronômicas desejáveis, como teor de açúcar ou resistência a pragas ou a doenças, ou como potenciais identificadores moleculares para as características mais procuradas da cana; outro trabalho descreve os genes e os mecanismos bioquímicos por meio dos quais uma das variedades atuais de cana acumula sacarose. “Pela primeira vez”, diz Marie-Anne, “há um esforço conjunto de geneticistas, bioquímicos e agrônomos para identificar genes que possam acelerar a identificação de
C r e s c e r e m u l t i p l i c a r -s e Cultivos agrícolas e espécies de árvores nativas sob concentração de CO2 de 720 partes por milhão e condições ótimas de água e nutrientes
CANA-DEAÇ Ú CAR
B ATATA
SOJA
GUAP URUV U (S c h i z o l l o b i u m p a ra h y b a )
Fotossíntese
+30%
+ 55%
+78%
+ 52%
+ 50%
+30%
+ 57%
+ 75%
Eficiência de uso na água
+ 60%
+ 80%
+150%
+ 89%
+ 90%
+ 84%
+ 94 %
+ 117%
B iomassa total
+ 40%
+36%
+25%
+ 63%
+30%
+20%
+ 20 %
+ 24 %
Altura
+17%
+30%
+25%
+ 3,2%
+10%
+15%
+ 0,6%
+ 9,1%
P rodução de caules/tubérculos ou sementes
+ 50%
+ 40%
+30%
ND
ND
ND
ND
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Respiração
-32%
+22%
ND
+ 9,5%
-10%
-30%
-3,6%
-31%
ND= Não determinado
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EMB AÚ B A (C e c r o p i a p a c h y s ta c h y a )
GUARANTÃ (Es e n b e c k i a le io c a r p a )
JACARANDç JATOB ç DA-B AÍA (H y m e n a e a (Da l b e r g i a n i g r a ) c o u r b a r i l )
Fontes:Marcos B uckeridge e Carlos Martinez/USP
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novas variedades e facilitar a seleção das plantas mais promissoras”. Desse caminho de mão dupla entre geneticistas e melhoristas saem também as canas transgênicas ou modificadas geneticamente, com mais açúcar ou mais resistentes à seca, que poderiam aumentar a produtividade e conter a expansão sobre o Cerrado, uma das vegetações naturais que mais tem sido substituída pela agropecuária. Algumas dessas variedades experimentais já passaram pelo primeiro vestibular: os testes realizados em casas de vegetação de universidades ou de empresas de biotecnologia nacionais. Em um dos experimentos só passaram duas das 40 plantas que poderiam fornecer mais sacarose que as variedades em uso. Essas novas plantas vão agora
para a prova de fogo: os testes em campo, sob as variações de sol, chuva e umidade, além das pragas, a que as plantas se submetem normalmente. Mesmo os mais otimistas não apostam que esses experimentos em campo vão dar certo: até agora a maioria das plantas modificadas geneticamente decepciona quando chega às condições reais de plantio. Uma série de artigos e reportagens sobre genomas de plantas publicados na Science de 25 de abril (www.sciencemag.org/ plantgenomes/) demonstra que nem sempre o otimismo é recompensado. O arroz geneticamente modificado para evitar cegueira e morte por falta de vitamina A em milhões de crianças continua uma promessa, quase 8 anos depois de ter aparecido na capa da Time.
Mesmo assim, o engenheiro agrícola e professor da Unicamp Luís Augusto Cortez não desanima fácil. Há 15 anos ele cultiva a idéia de extrair da cana muito mais do que açúcar e álcool. Insistiu e, com sua equipe, construiu uma planta piloto que transforma 200 quilos de bagaço em 80 quilos de óleo que poderia substituir o diesel em turbinas e caldeiras, entre outras aplicações, e 50 quilos de carvão que poderia servir como combustível ou aditivo de solo. Tanto a matéria-prima quanto os produtos finais são versáteis, já que o engenheiro químico Juan Pérez assegura que outros resíduos agrícolas, como o bagaço de laranja e serragem, poderiam ser usados no lugar da cana, com os mesmos resultados.
Erosã o e poluiç ã o cana também produz controvérsias. Enquanto uma parte dos pesquisadores enfatiza os benefícios da cana-de-açúcar, outra alerta para um lado amargo: os impactos ambientais e sociais provocados por métodos de produção que pouco mudaram em quase 5 séculos, quando essa planta começou a ser cultivada no país. O interesse do mundo pelo etanol da cana motiva esse debate – sem questionar o fato de esse combustível ser hoje uma alternativa mais adequada que o petróleo – e pode acelerar a implantação de propostas e leis já à mão, que reduziriam os impactos da produção de açúcar e álcool. “Do jeito como é produzido hoje, o etanol não é verde, mas cinza”, observa o agrônomo Luiz Antonio Martinelli, professor do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena) da USP e autor de um estudo de revisão sobre os impactos ambientais e sociais do cultivo da cana-de-açúcar no país. “Não podemos mais fazer usinas derrubando matas”, diz José Goldemberg, físico da USP que coordenou outro estudo de revisão, assim chamado por avaliar as tendências indicadas por dezenas de estudos anteriores. Goldemberg lembra que as primeiras usinas que se instalaram em pólos como Ribeirão Preto não estavam sujeitas a limitações ambientais. “Os proprietários atuais ainda reclamam, alegando que os avós deles não tinham essas restrições.”
EDUARDO CESAR
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Jatobá: uma das plantas benefi ciadas com o possível excesso de gás carbônico na atmosfera
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Preocupação com a redução dos impactos ambientais e sociais gerados pelas formas tradicionais do cultivo da cana volta à tona
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a produção de açúcar e álcool vive uma crescente desnacionalização: de 2006 para 2007 a participação estrangeira passou de 5,7% para 12% e somente no ano passado o Banco Central registrou investimentos de US$ 6,5 bilhões nessa área, de acordo com um dossiê sobre o agronegócio sucroalcooleiro assinado pela socióloga Maria Aparecida de Moraes Silva, professora da Universidade Federal de São Carlos (UFScar) e da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Chegam também mais pressões por mudanças. Em maio, representantes da Comunidade Européia anunciaram que pretendem condicionar a compra de etanol brasileiro ao cumprimento de critérios ambientais e sociais aceitáveis. Fábio Feldmann, um dos coordenadores do Fórum Paulista de Mudanças Climáticas, acredita que o mercado internacional, em especial o europeu, deve motivar os produtores a batalharem pela certificação ambiental e social, hoje voluntária. Não seria preciso criar muito para pôr mais ordem no canavial, porque já existem propostas, leis e soluções à mão. “Temos de fazer como o Mato Grosso do Sul, que é zonear (delimitar as áreas a serem cultivadas)”, diz Goldemberg. Cortez concorda, embora note resistências: “Os próprios órgãos públicos que deveriam estar zelando pelo ambiente é que autorizam a instalação de novas usinas”. Definir onde pode e onde não pode plantar talvez ajudasse a conter a expansão dos canaviais sobre outros espaços. De acordo com um estudo do Cena e do Instituto Florestal, canaviais e pastagens ocupam 75% da área que margeia os rios das sete maiores bacias hidrográficas no estado de São Paulo. De acordo com a lei, a área que bordeja os cursos d’água deveria ser mantida com a vegetação natural. “A produção pode se adequar às exigências ambientais por meio de medidas simples e do cumprimento de leis que já existem”, diz Martinelli. Quem quiser cumprir a lei restaurando a vegetação
original conta com abordagens diversas, algumas de eficácia já demonstrada (ver Pesquisa FAPESP nº 144, de fevereiro de 2008). E, relativamente aos ganhos gerados pela terra, não seria caro. Uma equipe da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP desenvolveu uma dessas metodologias e estimou em R$ 3.500 por hectare o custo de restauração da vegetação original. Esse valor equivale a menos de 10% da receita obtida com a agricultura e a indústria nas regiões drenadas pelas bacias dos rios Piracicaba e Mogi, dois extremos de ocupação agrícola, com menos de 20% das matas originais. m março o governo federal anunciou a intenção de investir R$ 9 bilhões para ampliar a produção atual de etanol de 17,7 bilhões de litros para 23,3 bilhões de litros até 2010. “Se mantivermos o mesmo modelo de produção, os danos ambientais e sociais serão ainda maiores”, alerta Martinelli. Para cada litro de etanol, lembra ele, as usinas produzem de 10 a 12 litros de vinhaça, um resíduo marrom, de cheiro forte, corrosivo e rico em matéria orgânica. Portanto, quem enche o tanque com 50 litros de álcool consome o resultado de 40 minutos do trabalho de um cortador de cana e a produção de pelo menos 500 litros de um resíduo de destino incerto. “Poucas usinas têm capacidade para usar como fertilizante nos próprios canaviais toda vinhaça que produzem”, diz ele. “Quando os tanques de armazenamento se rompem e a vinhaça chega aos rios, o oxigênio cai a zero e os peixes morrem. É o mesmo efeito do esgoto.” Na época das queimadas – entre novembro e abril – as internações nos hospitais das cidades próximas aos canaviais, motivadas por problemas respiratórios, triplicam, de acordo com Eduardo Cançado, da Faculdade de Medicina da USP. As partículas empurradas pelo vento e pela chuva podem transportar pesticidas. Um deles são os organoclorados, proibidos em 1985,
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MIGUEL B OYAYAN
artinelli e Goldemberg mostram que os efeitos negativos do atual modo de produção de açúcar e álcool não se limitam à época da colheita, quando a fumaça das queimadas que antecedem o corte da cana agrava doenças respiratórias como a asma, principalmente em crianças e idosos. Outras repercussões são mais sutis e persistem por todo o ano: a erosão e compactação de solos, a poluição dos rios com fertilizantes e resíduos da produção de açúcar e álcool e a eliminação das florestas nativas que ajudam a estabilizar a temperatura e o abastecimento de água nas cidades. Atenta às possibilidades de mudanças, a bioquímica da USP Gláucia de Souza diz que o Programa Bioenergia FAPESP (Bioen), que ela coordena e deve ser anunciado publicamente, deverá apoiar pesquisas sobre novas formas de reduzir os impactos do cultivo e do processamento industrial da cana. Segundo ela, os projetos de pesquisa em biomassa tentarão aumentar a produtividade da cana por hectare plantado e assim produzir mais sem ocupar mais terras. “Temos de mudar de um modelo de produção que nos trouxe até aqui para um modelo ambientalmente sustentável, que utilize menos água e menos fertilizante, com mais cérebro do que força”, afirma Cortez, que coordena um projeto de políticas públicas em parceria com a Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (Apta) e a colaboração de universidades, empresas e institutos de pesquisa públicos e privados (os resumos de debates e estudos dessas e outras equipes podem ser encontrados em www.apta.sp.gov.br/cana). “Nosso objetivo é mostrar o que precisa ser estudado e feito.” Enquanto corre o debate sobre o que fazer, empresários estrangeiros se aproximam dos canaviais: em abril, depois de norte-americanos e franceses, foi a vez de os ingleses anunciarem a compra de usinas produtoras de etanol no Brasil. Não são movimentos isolados porque PESQUISA FAPESP 148
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mas encontrados em 1997 em peixes da bacia do Piracicaba, segundo Martinelli e Fernando Lanças, da USP em São Carlos. Os organoclorados reapareceram em 2003 em riachos próximos a canaviais na região central do estado. s resultados dos levantamentos de Martinelli e de Goldemberg nem sempre coincidem: o primeiro concluiu que a cana utiliza de 80 a 100 quilos de nitrogênio como fertilizante por hectare por ano, enquanto o segundo sustenta que são 50. Ambos, porém, reconhecem que seria sensato aproveitar esse momento histórico de uma indústria já madura e de produtividade crescente para promover ajustes nos métodos de produção. De 1960 a 2007 a produtividade saltou de 45 para 75 toneladas de cana por hectare, em conseqüência do uso de melhores técnicas de cultivo e do melhoramento genético das variedades plantadas. O cortador de cana também está rendendo mais: em 1950 cortava em média 3 toneladas de cana por dia, chegou a 6 toneladas em 1980 e hoje passa o facão em 10 toneladas por dia. “Temos de encontrar alternativas mais dignas, que paguem mais e não prejudiquem a saúde”, propõe Cortez. Ele sugere um olhar abrangente: o açúcar e o álcool como resultados de uma cadeia produtiva, merecendo mais, portanto, do que estudos focados em aspectos isolados do plantio ou da produção. Maria Moraes propõe uma abordagem ainda mais ampla. “Se não entendermos a situação do país, sempre ficaremos com conhecimento muito parcelado da realidade.” Em abril do ano passado ela passou muitas horas ouvindo os moradores dos bairros periféricos de Timbiras e Codó, duas cidades do Maranhão cercadas por florestas de babaçu. Seu objetivo era descobrir por que centenas de homens deixavam as famílias e viajavam três dias e três noites para cortar e puxar cana no interior paulista. Maria Moraes descobriu que os homens migravam para São Paulo porque haviam sido expulsos de terras que cultivavam em municípios ainda mais distantes. Representantes de empresas que criam gado queimaram as roças de arroz, feijão e milho, as matas de babaçu, os animais de criação e as casas das famílias que moravam por lá. Depois os ameaçaram de morte caso não deixassem as terras de que não eram donos. Os 85 processos judiciais que ela consultou descrevem o que aconteceu, questionam a legitimidade das escrituras de posse da terra usadas como argumento para essas atitudes e relatam o esforço das famílias para voltar às terras que cultivavam. ■
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AGRICULT URA
A d u b o
b io ló g ic o B actérias substituem fertilizantes nitrogenados como promotores de crescimento da cana-de-açúcar Dinorah Ereno
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inco espécies de bactérias fixadoras de nitrogênio são a base de um novo produto, um fertilizante biológico que substitui o uso de adubos nitrogenados na cana-de-açúcar, utilizados como promotores de crescimento da planta. A aplicação do inoculante biológico desenvolvido por pesquisadores da Embrapa Agrobiologia, unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária em Seropédica, no Rio de Janeiro, vai propiciar substancial redução de gastos com adubos nitrogenados no país. Inicialmente, as pesquisas concentraram-se na substituição de nitrogênio na cana do primeiro plantio, também chamada de cana-planta. Com mais de 6 milhões de hectares de área plantada e uma produção que chega a 426 milhões de toneladas por ano, o Brasil é o maior produtor mundial de cana. Em função da queda de produtividade da planta após quatro cortes, cerca de 20% da área plantada é renovada anualmente, o que corresponde a 1,2 milhão de hectares com potencial para receber o fertilizante biológico. “Se a dose aplicada for de 30 quilos de nitrogênio por hectare, que é a quantidade mínima utilizada, poderemos ter uma economia de 50 mil toneladas de fertilizante nitrogenado por ano, sem queda de produtividade”, diz a pesquisadora Veronica Massena Reis, coordenadora do grupo da Embrapa Agrobiologia que estuda o inoculante à base de bactérias. A economia estimada considera apenas a cana de primeiro ano, que necessita de nitrogênio em quantidades bem menores do que os 80 quilos por hectare demandados pela cana-soca – rebrota da cana do primeiro plantio que pode ser cortada até quatro vezes. Essa significativa diferença se explica porque, quando a terra
Resultado no campo: cana com fertilizante biológico (à esquerda) e sem o inoculante
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FOTOS EMB RAPA AGROB IOLOGIA
é aberta com a aragem e a gradagem (nivelamento da área para plantio), o solo é revolvido e há a liberação desse elemento químico, que fica disponível para a cultura do primeiro ano. Quando a cana fica no solo e é cortada para rebrotar, todo o nitrogênio disponível é deslocado para a parte aérea da planta. Ao contrário do carbono e do oxigênio, o nitrogênio é pouco reativo do ponto de vista químico, e somente algumas bactérias e algas-azuis possuem a capacidade de assimilá-lo da atmosfera e transformá-lo para que possa ser usado pelas células das plantas. A deficiência de nitrogênio consiste, em muitos casos, no principal fator limitante do crescimento vegetal. Para gramíneas como cana-de-açúcar, milho e sorgo, que são plantas de crescimento rápido, o nitrogênio é o mais necessário de todos os elementos requisitados. No entanto, calcula-se que em torno de 50% do nitrogênio aplicado no solo se perde. Isso porque, como é um elemento de grande mobilidade, quando não é absorvido pela planta pode ser carregado pela chuva até os córregos e rios, causando contaminação, ou voltar para o ar em forma de amônia. Como o processo de produção desses fertilizantes necessita de alto consumo energético de combustíveis fósseis derivados de petróleo, produto que tem batido sucessivos recordes de preço no mercado internacional, sua substituição pelo inoculante composto pelas bactérias fixadoras de nitrogênio representará significativa redução de custos na produção da cana-de-açúcar. Esse foi o caminho percorrido pela soja brasileira, que só se tornou competitiva após pesquisadores da Embrapa desenvolverem linhagens da bactéria do gênero Rhizobium, que retira o nitrogênio do ar e transfere para as raízes da soja (ver Pesquisa FAPESP nº 85). Os estudos que deram origem a essa técnica foram iniciados na década de 1950 pela pesquisadora Johanna Dobereiner (1924-2000), no antigo Centro Nacional de Ensino e Pesquisas Agronômicas, do Ministério da Agricultura, que deu origem à Embrapa Agrobiologia. Veronica Reis iniciou as pesquisas nessa área em 1982, quando entrou na instituição para trabalhar com gramíneas e aprendeu a técnica com a
Antes do plantio, caules fi cam mergulhados no inoculante por 1 hora
própria Johanna. A dificuldade para utilizar inoculantes em gramíneas é que nelas as bactérias se distribuem por toda a planta, sendo encontradas principalmente nos espaços intercelulares e tecidos do sistema vascular, enquanto nas leguminosas, como soja e feijão, se localizam em uma região específica da raiz. Ab s o r ç ã o d e n i t r o g ê n i o - “Hoje temos uma coleção com mais de 8 mil bactérias”, conta Veronica. Para chegar à mistura ideal, os pesquisadores escolheram inicialmente as mais promissoras bactérias fixadoras de nitrogênio isoladas de cana-de-açúcar. “Começamos testando individualmente cada uma delas e em seguida fizemos uma mistura com três e outra com cinco bactérias. A contribuição do processo biológico foi avaliada em um aparelho que mede quanto o microorganismo absorve de nitrogênio do ar”, explica. A mistura composta de estirpes de cinco bactérias – Gluconacetobacter diazotrophicus, Herbaspirillum seropedicae, Herbaspirillum rubrisubalbicans, Azospirillum amazonense e Burkholderia tropica – foi a que mais contribuiu para a fixação biológica do nitrogênio. Essas bactérias foram isoladas de tecidos de cana plantada na região da Mata Atlântica. Para a obtenção do produto inoculante é preciso primeiro providenciar o crescimento de todas as bactérias separadamente, porque cada uma tem uma fisiologia diferente, em meio de cultivo apropriado. Transposta essa etapa, as bactérias são inoculadas em turfa estéril,
resultante da decomposição de matéria orgânica em regiões alagadas, e distribuídas em sacos plásticos de 250 gramas. A turfa serve como um meio de transporte do produto para o campo. A mistura dos cinco pacotes do inoculante microbiano de cor preta e consistência pastosa é feita em 100 litros de água. Para utilizar o produto basta mergulhar os caules usados para plantio – normalmente os produtores utilizam hastes com três gemas – nesse caldo de bactérias por uma hora. Feito isso, eles já podem ser plantados. A estimativa é que cada dose do inoculante custará entre R$ 15,00 e R$ 20,00. Como para o plantio de primeiro ano serão necessárias entre uma e duas doses por hectare, o gasto com o fertilizante biológico ficará em torno de R$ 30,00 a R$ 40,00, no máximo, por hectare. Uma significativa economia em relação aos custos dos adubos nitrogenados. “Os 30 quilos de uréia necessários por hectare na realidade correspondem a 60 quilos, já que metade se perde”, explica Veronica. O quilo de uréia, um dos fertilizantes nitrogenados mais baratos, custa entre R$ 0,80 e R$ 1,00, o que representa um gasto total por hectare entre R$ 48,00 e R$ 60,00, sem os custos de aplicação do adubo. Os estudos de campo abrangem atualmente 11 experimentos, feitos em parceria com usinas de São Paulo, Rio de Janeiro, Alagoas, Sergipe, Pernambuco e Piauí. A estimativa é de que em 2 anos o fertilizante biológico estará no mercado. Para isso, a próxima etapa é a transferência da tecnologia para o setor industrial, já que como o produto tem em sua composição microorganismos não pode ser patenteado. Um dos desafios industriais desses inoculantes é a falta de legislação específica para o controle de qualidade desses produtos. Os pesquisadores também querem estender essa tecnologia para que o efeito obtido com a cana de primeiro plantio continue por todo o ciclo produtivo, até a cana-soca. “Temos ainda um produto para o milho e outro para o arroz e estamos aperfeiçoando um inoculante para o sorgo”, diz Veronica. No caso do milho, como a pesquisa está bastante adiantada, já foi feito o repasse da tecnologia para duas empresas, que por enquanto preferem não ter os nomes revelados. ■ PESQUISA FAPESP 148
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Aerossóis sobre o leste dos EUA: poluente resfria o clima
Sistema Terrestre do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), um dos autores do estudo, feito em parceria com ingleses da Universidade de Exeter e do Centro Hadley de Meteorologia. Como chove entre 2.500 milímetros por ano, às vezes até mais, em vastas porções da Região Norte, falar em desertificação ali é rematado exagero. No entanto, com menos águas à disposição, partes da Amazônia poderão passar a abrigar uma vegetação semelhante à savana onde antes havia uma exuberante floresta. Com perdão do trocadilho, é possível
MUDANÇ AS CLIMç T ICAS
A fl oresta
n o s u fo c o
Ar mais limpo no hemisfério Norte poderá intensifi car secas na Amazônia a partir de 2025 Marcos Pivet ta
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especular que a estiagem profunda de 3 anos atrás talvez tenha sido um divisor de águas entre o clima do passado e o do futuro na Região Norte. Não são só as projeções dos cientistas que parecem chocantes para quem associa automaticamente a Floresta Amazônica com chuvas abundantes. Os pesquisadores identificaram o “maior culpado” de toda essa bagunça que poderá se instalar no regime pluviométrico da Região Norte: a melhora da qualidade do ar no hemisfério Norte. Mais especificamente a redução crescente nos Estados Unidos e na Europa da emissão de um tipo de poluente atmosférico, as partículas de aerossóis de sulfato. Essa forma de aerossol pode ser produzida de maneira espontânea na natureza, por vulcões, por exemplo, e também pelo homem, em decorrência de processos industriais que envolvem a queima de enxofre e da fumaça emitida pelos automóveis. “A relação dos aerossóis do hemisfério Norte com a diminuição de chuvas na Amazônia é indireta”, explica o climatologista Carlos Nobre, do Inpe, outro autor do estudo. Entre todos os tipos de aerossóis, que podem ser definidos como um conjunto de diminutas partículas sólidas ou líquidas em suspensão num gás, os de
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ntre maio e setembro de 2005 a parte ocidental da Amazônia enfrentou a maior seca dos últimos 103 anos. Rios esvaziaram, peixes morreram, incêndios florestais se disseminaram e pelo menos 250 mil pessoas ficaram isoladas e sem trabalho nos estados do Amazonas e do Pará. Numa região famosa mundialmente por abrigar a maior porção remanescente de “floresta da chuva” da Terra – rainforest é a expressão comumente utilizada em inglês para designar florestas tropicais como a amazônica – não choveu por 3 meses seguidos em certas localidades. Até agora esse cenário desolador decorrente de uma estiagem extrema representa eventos raros, de exceção, na história do clima recente da Região Norte. Mas, segundo um estudo feito por meteorologistas brasileiros e ingleses publicado na edição de 8 de maio da revista científica britânica Nature, o que era exceção poderá se tornar bem mais freqüente daqui a 20 anos e simplesmente virará regra na segunda metade deste século. A partir de 2025 secas semelhantes à de 2005, que costumavam ocorrer uma vez a cada 2 décadas, deverão assolar a paisagem local ano sim, ano não. Em 2060, se as projeções do trabalho científico se concretizarem, haverá uma redução acentuada das chuvas na região em 9 de cada 10 anos. “Pode haver uma diminuição entre 25% e 50% na quantidade de chuva que cairá sobre a Amazônia”, estima o meteorologista José Marengo, do Centro de Ciência do
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Pr e v i s õ e s d e s u p e r c o m p u t a d o r - Os prognósticos de estiagens mais freqüentes na Amazônia Ocidental saíram do supercomputador do Centro Hadley de Meteorologia. Os ingleses têm um dos modelos climáticos mais complexos e respeitados pela comunidade científica, capaz de fazer estimativas de longo prazo sobre os efeitos do aquecimento global e de qualquer anomalia atmosférica em várias partes do planeta. “Nosso supercomputador também teria condições de rodar o modelo, mas não tínhamos tempo de uso de máquina disponível para essa tarefa”, explica Marengo. Essa limitação será superada em 2009 com a chegada do novo supercomputador do Inpe, 30 vezes mais potente que o atual. Mas um dado crucial para que as previsões de longo prazo do estudo pudessem ser feitas foi fornecido pelos brasileiros. Foi a equipe de Marengo e Nobre que conseguiu relacionar a grande seca de 2005 na Amazônia ao aquecimento das águas superficiais no Atlântico Tropical Norte. Normalmente, costuma se associar a falta de chuva na Região Norte ao fenômeno conhecido como El Niño, caracterizado pelo aumento de temperatura nas águas do Pacífico Equatorial. No caso do evento extremo de 3 anos atrás, os pesquisadores do Inpe demonstraram que a causa da anomalia estava em outro oceano, no Atlântico, e não no Pacífico.
Com esse pressuposto em mente, os meteorologistas rodaram o modelo climático, que se utiliza de uma série de variáveis, como os níveis cada vez maiores de gases de efeito estufa e as taxas declinantes de emissão de aerossóis, para criar cenários futuros. O resultado foi preocupante: devido à diminuição progressiva dos níveis de partículas de sulfato na atmosfera do hemisfério Norte, o Atlântico Tropical Norte vai aquecer com maior assiduidade. E, quando isso ocorre, dizem os cientistas, chove menos na Amazônia. Como ninguém em sã consciência po-
de ser a favor do aumento na produção de aerossóis, um poluente terrível que rouba alguns anos de vida dos habitantes de grandes cidades, apenas para, em tese, não alterar o balanço das águas na Região Norte, resta uma única saída: combater o aumento dos gases de efeito estufa. “Não há nenhuma justificativa moral para a manutenção dos aerossóis porque eles momentaneamente estão represando o efeito máximo do aquecimento global”, afirma Nobre. “O que temos de fazer é acelerar ainda mais o cronograma de redução da emissão dos gases do efeito estufa.” ■
LALO DE ALMEIDA/FOLHA IMAGEM
sulfato são os que mais refletem a luz solar. Eles exercem um leve efeito de resfriamento sobre o clima, atuando, na prática, como um contrapeso capaz de mitigar parcialmente, mas não totalmente, a elevação de temperatura decorrente do aumento do efeito estufa. Portanto, a diminuição crescente da quantidade desses aerossóis sobre o Atlântico Tropical Norte, numa zona logo acima da linha do equador, torna esse ponto do oceano mais quente do que o normal. A anomalia parece desviar para essa zona marítima boa parte da chuva que cairia na Amazônia Ocidental. Ou seja, num ambiente de aquecimento global dos oceanos devido ao aumento do efeito estufa, secas na Região Norte do Brasil como a de 2005 são um efeito colateral do avanço no combate à poluição causada pelos aerossóis, emitida em grande parte no hemisfério Norte.
Seca de 2005 no Baixo Solimões: estiagens deverão ser mais freqüentes
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Em 2 001 o s t a l i b ã s c h o c a ram o mundo ao explodir duas gigantescas estátuas de Buda na região de Bamian, no Afeganistão. Em meio à destruição, recentemente pesquisadores europeus, japoneses e norte-americanos identifi caram verdadeiros tesouros pictóricos. Por trás das estátuas havia cavernas com imagens de seres mitológicos e de Buda sentado sobre folhas de palmeiras, usando um manto vermelho-vivo, pintadas entre os séculos V e IX. Mais importante: várias imagens do século VII foram pintadas com tinta a óleo, muito antes de esta técnica ser conhecida no O cidente – acredita-se que as tintas possam ter sido produzidas a partir de nozes ou sementes de plantas da família das papoulas (Journal ofA nalytical A tomic S pectrometry). Vários livros de história da arte registravam o surgimento dessa técnica de pintura na Europa no século XV. A análise das tintas foi realizada no Laboratório Europeu de Radiação Síncrotron, usando raios X e radiação infravermelha. Além de camadas de tinta a óleo, os pesquisadores identifi caram resinas naturais, proteínas, gomas e camadas de um material semelhante ao verniz. “Estas são as pinturas a óleo mais antigas do mundo, embora óleos secantes já fossem usados pelos romanos e egípcios do mundo antigo em cosméticos e medicamentos”, disse Yoko Taniguchi, líder da equipe.
UNESCO
A O R IG EM D AS PIN T UR AS A Ó L EO
> Pato, porco ou urso Eles têm bico, pés como nadadeiras e seus filhotes nascem de ovos, mas não são patos. Também são peludos e usam o bico para chafurdar na lama dos rios em busca de comida. E não são ursos nem porcos. São os ornitorrincos: mamíferos primitivos (os filhotes lambem leite que escorre na pele da mãe) da Austrália, distantes evolutivamente dos seres humanos. Quase cem pesquisadores analisaram o genoma desse estranho mamífero e concluíram que sua constituição genética é uma colcha de retalhos (Nature). Seu genoma guarda características de aves, 50
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mamíferos e répteis. Entre as curiosidades estão cinco pares de cromossomos com seqüências de DNA semelhantes às das aves que determinam o sexo – nos outros grupos animais um par de cromossomos determina o sexo. As proteínas do veneno produzido pelos machos são semelhantes às do veneno de serpentes.
futuro. Mas é preciso ir devagar com o andor, sugere estudo publicado na Nature Nanotechnology. Certos tipos de nanotubos de carbono podem estar na origem do mesmo tipo de câncer ALEX PARLINI/P RO JEC T O N EMERGIN G N AN O TEC H N O LO GIES
Estátua de Buda destruída por talibãs
> Danos aos pulmões Os nanotubos, cilindros de poucos nanômetros de diâmetro formados exclusivamente por átomos de carbono, são a aposta da indústria tecnológica para o
Nanotubos: risco de infl amação
causado pelas fibras de amianto, usadas na produção de telhas e caixas-d’água. O grupo de pesquisadores britânicos injetou nanotubos longos de parede múltipla na cavidade torácica de camundongos e observou efeitos semelhantes aos causados pela exposição ao amianto: uma reação inflamatória nas células que revestem os pulmões que pode evoluir para um tipo letal de câncer (mesotelioma). Segundo os autores, o resultado da descoberta é um alerta para que se investiguem possíveis efeitos danosos dos nanotubos antes que ganhem uso tecnológico. Nanotubos curtos ou emaranhados não parecem ter efeitos nocivos à saúde.
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> Câncer de útero nas Américas Em uma conferência no México, pesquisadores exaltaram a necessidade de reduzir o preço da vacina contra o papilomavírus humano (HPV), cuja dose custa US$ 360 nos Estados Unidos. Um estudo feito em 16 países da América Latina mostrou que 33 mil
To d o m u n d o a c r e d i t a v a q u e a p r e V ID A EM guiça fosse, de fato, um animal, C Â M ER A L EN TA digamos, preguiçoso. Havia uma razão para a suspeita. O bservações na natureza e em cativeiro indicavam que dormiam 16 horas por dia. Agora o grupo de Niels Rattenborg, do Instituto Max Planck, na Alemanha, mostra que a fama é injusta. No Panamá, os pesquisadores instalaram capacetes com aparelhos de eletroencefalografi a em três preguiças-de-garganta-marrom (B radypus variegatus) e, em seguida, as devolveram à natureza. Cinco dias depois, eles as recapturaram e analisaram os registros dos aparelhos. Surpresa: os animais dormiam apenas 9 horas e meia por dia, segundo resultados publicados on-line na B iology Letters. É possível que em cativeiro elas durmam mais porque não precisam fi car alertas para detectar predadores nem para encontrar folhas suculentas. O u que, diante do tédio, não lhes reste alternativa a não ser tirar longas sonecas. O trabalho também comprova que realmente elas se movem muito devagar — as observações em campo anteriores eram imprecisas.
RAFAEL OLIV EIRA
ANTOINE-JEAN GROS (1804)/MUSEU DO LOUV RE
PO R QUE A PEST E É T Ã O L ETAL
Na d a a p a v o r o u m a is a humanidade na Idade Média do que a peste negra ou bubô nica, infecção causada por uma bactéria que surgiu na ç sia e no século XIII se disseminou pelo norte da ç frica e pela Europa, matando, entre reis e plebeus, milhões de pessoas. Transmitida pela picada de uma pulga de roedores, a bactéria Yersinia pestis se aloja nos vasos do sistema linfático, onde se multiplica e debilita o sistema de defesa. A infecção causa inchaço dos gânglios, febre alta, Napoleão visita soldados com a peste na Síria dor e vômitos. Também pode atingir os pulmões ou se espalhar pelo sanmulheres morrem por ano gue. Agora a equipe de Robert Brubaker, da Universidade de com câncer de colo Chicago, Estados Unidos, acredita ter descoberto por que a do útero, causado pelo HPV. Yersinia pestis é tão mais agressiva do que a espécie que a O preço das vacinas, que originou há 20 mil anos, a Yersinia pseudotuberculosis. Comparando o material genético delas, o grupo constatou que a Y. protegem contra as cepas mais comuns do vírus, pestis tem uma alteração genética que a impede de produzir ainda é proibitivo para a enzima aspartase, ausente em outras bactérias patológicas a vacinação em massa. (M icrobiology). Sem aspartase, a bactéria não digere o amiCalcula-se que, se em noácido ácido aspártico, que é liberado no organismo humano 1 década, 70% das meninas provocando um desequilíbrio químico. “Se isso de fato aconcom 12 anos fossem tece, talvez sejamos capazes de diminuir a mortalidade dessas vacinadas, meio milhão infecções com uma terapia que remova o excesso de ácido de mortes seria evitado. aspártico”, disse Brubaker.
Preguiça: só 9 horas de sono por dia
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Ac o r d a r d e r e s s a c a e n ã o t e r i d é i a d o q u e aconteceu na véspera não é a pior conseqüência do consumo de bebidas alcoólicas. Vários estudos mostraram que o álcool é um fator de risco importante para vários tipos de câncer dos tratos respiratório e digestivo superior, como os tumores de boca, faringe, laringe e esôfago. Um grupo internacional que incluiu pesquisadores do Hospital Araújo Jorge, em Goiânia, da Escola Nacional de Saúde Pública do Rio de Janeiro, da Universidade de São Paulo e da Universidade Federal de Pelotas avaliou o efeito sobre o desenvolvimento desses tumores de sete genes ligados à produção da enzima álcool desidrogenase (ADH), que digere o álcool e reduz seu efeito danoso ao organismo. A comparação do perfi l genético de 3.876 pessoas com câncer e 5.278 sem a doença revelou que dois dos sete genes ligados à produção da enzima estão fortemente associados ao surgimento desses tumores (N ature G enetics). Algumas formas desses genes protegeram contra o álcool e esse efeito protetor aumentou com o crescimento do consumo – em abstêmios essas variantes não infl uenciaram o risco de câncer. Segundo os autores, essas variantes combatem o efeito carcinogênico das bebidas alcoólicas.
Enzimas favorecem degradação alcoólica
> O preço do combate à dor Agora se tem uma idéia mais precisa de quanto custa para a sociedade o tratar um portador de artrite reumatóide, inflamação progressiva das articulações que provoca dor intensa e atinge 2 milhões de brasileiros. Gustavo Chermont, Rozana Ciconelli, Sérgio Kowalski e Marcos Bosi Ferraz, da Universidade Federal de São Paulo, contabilizaram os gastos de cem portadores de artrite atendidos no ambulatório de reumatologia da universidade, a grande maioria (80%) de baixa renda. Somadas as despesas com medicamentos, visitas aos médicos, exames laboratoriais, sessões de fisioterapia e transporte, cada pessoa consumiu em média em 1 ano US$ 400 ou R$ 700 – os remédios 52
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responderam por 60% dos gastos. É um valor baixo, comparado ao que se gasta nos Estados Unidos e na Inglaterra, mas elevado demais para o Brasil, onde os gastos anuais de saúde por cidadão são de US$ 255 (Clinical and Experimental Rheumatology).
> Matar a fome sem engordar Para manter a linha ou recuperá-la, o melhor é trocar os biscoitos da hora do lanche por frutas, constatou a nutricionista Maria Conceição de Oliveira, da Universidade Federal do Amazonas. Durante 10 semanas, ela ofereceu três dietas distintas para Frutas: volume maior, mas menos calorias
enquanto as que degustaram os biscoitos engordaram 200 gramas (Appetite). A razão da diferença não é a quantidade total de energia dos alimentos, mas a densidade: cada grama de biscoito é mais energético que a mesma quantidade de fruta. Quem come fruta ingere volume maior de alimento menos energético, mas que parece saciar mais.
49 mulheres com o peso acima do ideal. Um grupo consumiu uma maçã em cada um dos três lanches do dia, além das refeições habituais. Outro comeu uma pêra para matar a fome e o terceiro grupo, em vez das frutas, três biscoitos de aveia. Tanto as frutas como os biscoitos continham a mesma quantidade de energia, 200 quilocalorias. Ao final do experimento, as mulheres que comeram frutas (pêra ou maçã) haviam emagrecido em média 1 quilograma,
> Nitrogênio em excesso
EDUARDO CESAR
EDUARDO CESAR
PR O T EÇ Ã O C O N T R A O Á LC O O L
Em outubro de 2007 pesquisadores de diversos países se reuniram na Costa do Sauípe, na Bahia, para discutir os efeitos do aumento da produção de nitrogênio sobre a saúde do planeta. De 1860 a 1995, a produção de nitrogênio cresceu dez vezes e chegou a 156 milhões de toneladas por ano. Parte desse
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> Para comemorar
CARLY V Y NNE
REINALDO LOURIV AL/CI
e pensar
HAROLDO DE CASTRO
> Amigo
encontrar pistas que dificilmente acharia. A partir das fezes, ela descobre a espécie do animal e a dieta. Também identifica o indivíduo, nível de estresse e estágio reprodutivo. Parte do doutorado de Carly na Universidade de Washington, em colaboração com a Conservação Internacional do Brasil e o Fundo para a Conservação da Onça-Pintada, os dados devem ajudar a estimar a população de espécies ameaçadas do parque e delimitar áreas de proteção.
farejador O cão fareja campo afora e de repente pára satisfeito. Encontrou fezes de lobo-guará, onça-pintada, suçuarana ou tamanduábandeira e ganhará um afago e uma bola de tênis como recompensa. No Parque Nacional das Emas, reserva de Cerrado entre Goiás e Mato Grosso do Sul que abriga a maior concentração de espécies ameaçadas de extinção no país, a bióloga Carly Vynne usa cães para
N o s m o r r o s d a c o m u n i d a d e b a i a n a d e Pa u d a L i m a , n a periferia de Salvador, vivem 2,5 milhões de pessoas apinhadas nas condições típicas das favelas brasileiras. Ali o grupo liderado pelo pesquisador Albert K o, da Fundação O swaldo Cruz de Salvador e da Universidade Cornell, nos Estados Unidos, investigou como varia o risco de contrair leptospirose, infecção provocada por uma bactéria encontrada na urina de roedores que atinge 10 mil pessoas por ano no Brasil – e mata quase 1 mil. O s pesquisadores notaram que a probabilidade de contrair leptospirose é maior entre as pessoas mais idosas, as de nível socioeconômico mais baixo e aquelas que trabalham em ambientes contaminados. O s homens correm mais risco do que as mulheres. A probabilidade de contrair a doença também foi maior entre aqueles que vivem a menos de 20 metros de esgoto a céu aberto ou de depósitos de lixo, ou ainda que relataram ter visto dois ou mais ratos em casa (P LoS N eglected Tropical D iseases).
MIGUEL B OYAYAN
C O M O PER IG O AO L AD O
nitrogênio – gerado pelo consumo de combustíveis fósseis e pelo uso de fertilizantes químicos na agricultura – contamina a terra, a água e o ar e contribui para o surgimento de problemas respiratórios e desequilíbrios ecológicos, como a acidificação dos oceanos. Não são os únicos problemas que os pesquisadores – entre eles, Luiz Martinelli, da USP – apontam no alerta publicado em maio na Science. O consumo de nitrogênio no mundo é bastante desigual. Enquanto algumas nações lançam toneladas do gás ao ar, outras não dispõem da quantidade mínima de nitrogênio necessária para suas parcas lavouras.
Faro fi no: cão ajuda a detectar vestígios de onças e tamanduás
A área de Mata Atlântica derrubada entre 2000 e 2005 foi 69% menor do que entre 1995 e 2000, segundo levantamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais e da Fundação SOS Mata Atlântica, divulgado em maio. Restam 17.875 trechos dessa vegetação com área superior a 1 quilômetro quadrado. Somados, totalizam 97,6 mil quilômetros quadrados de Mata Atlântica ou 7,26% da área original dessa vegetação – se somadas áreas menores, a proporção chega a 10,6%. O ritmo de derrubada diminuiu em oito dos dez estados analisados em 1995-2000 e em 2000-2005. Aumentou em Goiás e Santa Catarina. Segundo Márcia Hirota, da SOS Mata Atlântica e coordenadora da pesquisa, parte da redução se explica pela mobilização da sociedade ou adoção de políticas públicas. Muito do que restou da floresta continua de pé por estar em lugares de difícil acesso.
Lixo: atrai roedores e eleva risco de leptospirose
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Produção simulada do bóson de Higgs no detector CMS: esforço mundial para elucidar o quebra-cabeça de partículas atômicas
C IÊ N C IA
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o c i m ô t s a o r i o e d t n e u As palavras de ordem da u q m s do crescente e -Sc i e n c e são as o mesmas dos heróis do sm livro de Alexandre Dumas: um por todos,todos por um
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s físicos que estudam a formação e a organização das partículas atômicas saíram na frente dos especialistas de outras áreas e adotaram uma forma nova de fazer ciência: trabalhar em problemas grandes e comuns por meio de computadores poderosos espalhados em muitas cidades do mundo e conectados entre si de modo que funcionem como se fossem um só, em uma escala mais ampla, integrada e autônoma que a realizada até agora para estudos de genomas e proteínas. O pioneirismo pode não ter sido proposital. “Não foi porque queremos, mas porque precisamos”, diz Sergio Ferraz Novaes, professor do Instituto de Física da Universidade Estadual Paulista (Unesp). “Não podemos demorar 50 anos para analisar os dados produzidos em apenas 1 ano de trabalho.” Novaes coordena o braço paulista de uma rede internacional de computadores que filtram e organizam os resultados das colisões atômicas geradas em aceleradores de partículas em uma escala tão grande que nenhum computador sozinho daria conta da tarefa. Por meio do São Paulo Regional Analysis Center (Sprace), construído com R$ 710 mil da FAPESP e dotado de uma capacidade de processamento equivalente a quase cem computado-
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res de última geração, físicos de São Paulo participam desde 2004 da análise das propriedades dos milhões de partículas que nascem ou morrem quando se chocam em altíssima velocidade nos túneis do Fermilab, nos Estados Unidos. Agora dois grupos de físicos – um de São Paulo e outro do Rio de Janeiro, sob a coordenação de Alberto Santoro – afinam as máquinas e tomam fôlego para entrar em uma aventura ainda maior: garimpar as informações que a partir do próximo ano devem chegar, em um volume ainda maior, do Large Hadron Collider (LHC), o maior acelerador de partículas do mundo, que absorve o trabalho de 10 mil físicos e engenheiros de cerca de 50 países (ver Pesquisa FAPESP nº147, de maio de 2008). Além de gerar uma produção científica intensa, que em um ano ou outro pode chegar a dezenas de artigos publicados em revistas especializadas, sem contar as noites sem dormir à frente do computador, a experiência de trabalhar com colegas de todo o mundo em máquinas que funcionam dia e noite inspirou a implantação de uma estrutura ainda maior, da própria Unesp, com 368 computadores capazes de realizar o impressionante volume de 33,3 trilhões de cálculos por segundo. As
CERN
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máquinas dessa rede de R$ 4,4 milhões, financiados pelo governo federal, devem ser instaladas a partir de julho, tão logo comecem a chegar, e ocupar um andar inteiro da nova sede da Unesp, no bairro da Barra Funda, na capital paulista, que abrigará também a equipe de operações e um centro de treinamento. Aos poucos devem tomar forma as possíveis conexões com os computadores de dezenas de universidades nos Estados Unidos, na Europa, na China ou na Austrália que já adotaram estratégias semelhantes de trabalho. Assim, a rigor nada impedirá que uma equipe do campus da Unesp em Ilha Solteira pergunte aos colegas de Harvard se eles têm espaço extra no computador para ajudar a resolver um problema que sobrecarregou os computadores daqui. “Se quisermos acompanhar o que o mundo está fazendo”, diz Novaes, “não dá mais para ser bairrista nem pensar pequeno”. Assim é a e-Science: não importa mais onde você está nem que computadores estão depurando e examinando os dados de seu valioso experimento. Criado em 1999 para descrever um projeto que
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O grande volume de informações gerado em experimentos como a colisão de partículas ” um problema em si que impõe a necessidade de novos conceitos de trabalho”
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começaria a tomar forma no ano seguinte na Inglaterra, o termo e-Science designa as atividades científicas que dependem de uma elevada capacidade de armazenamento e de processamento de informações como a física de partículas, embora outras áreas também possam se beneficiar. No livro Da internet ao grid – A globalização do processamento, Novaes e Eduardo Gregores apostam nessa expansão: “Podemos esperar que, da mesma forma como ocorreu com a internet, aplicações do grid irão muito além do que podemos supor nesse momento”. A rede de computadores da Unesp, por sinal, deve explorar outros universos – da formação de tumores à supercondutividade em cerâmicas. Nos Estados Unidos, os grids (grades) de computadores embasam projetos ambiciosos, que não tratam apenas de problemas urgentes como a busca de novos tratamentos contra o câncer. A meta de um deles, o National Virtual Observatory, é simplesmente pôr no computador toda informação já coletada sobre os milhões de estrelas e galáxias que formam o firmamento. A e-Science poderia ir além e ajudar a resolver problemas mundiais, de acordo com o editorial de 15 de março da revista Nature, que propõe que os governos trabalhem juntos para construir os supercomputadores que possam fazer previsões do tempo mais apuradas e descubram assim como agir para evitar as prováveis catástrofes causadas pelas mudanças climáticas. Talvez mais do que os especialistas de outras áreas, os físicos de partículas hoje dependem de computadores poderosos em rede tanto quanto os taxistas não passam mais sem o GPS, sigla de Global Positioning System. De outro modo, não haveria como analisar tanta informação que têm à mão – nem como localizar rapidamente endereços em uma cidade estranha. Nos próximos 5 anos os quatro detectores do LHC devem gerar um volume de informações equivalente a 1,4 bilhão de CD’s que, se empilhados “sem a caixinha”, diz Novaes, formariam uma torre 4,7 mil vezes mais alta que o Pão de Açúcar, o famoso cartão-postal do Rio. “O grande volume de informações é um problema em si que impõe a necessidade de novos conceitos de trabalho”, diz Novaes. Por sorte, nos últimos anos a velocidade de transmissão de dados cresceu em ritmo
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maior que a velocidade de processamento, levando a uma nova forma de organização de computadores, o grid, em que máquinas distantes funcionam como se fossem uma só. Além do software e do hardware, apareceu então o middleware, os recursos que distribuem as tarefas localizando as máquinas livres. ambém entre as máquinas há uma hierarquia. As informações sobre as partículas a serem desfeitas ou formadas nas colisões devem sair dos detectores que cercam o túnel circular de 27 quilômetros de extensão do LHC, a 100 metros abaixo do solo, e chegar primeiramente aos computadores do Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (Cern) em Genebra, na Suíça. Os dados do Compact Muon Solenoid (CMS), o detector do LHC de que essas equipes do Rio e de São Paulo participam, seguirão então para centrais de computadores chamadas Tiers-1, espalhadas em 8 países, e depois para outros 23 grupos de computadores ao redor do mundo – do Brasil ao Paquistão – que formam as Tiers-2. “Não estamos mal”, observou Novaes, ao comparar o desempenho do grid brasileiro com o das máquinas dos colegas da China, Itália, Inglaterra e Estados Unidos. Todo o grupo participa de simulações de transmissão de dados, com progressos visíveis: a capacidade de operação das máquinas passou de 20% em 2006 para 50% em 2007 e tenta-se hoje atingir 100% do que será exigido quando o LHC entrar em operação. As dificuldades também são maiores. Novaes conheceu os problemas novos que podem interromper a transmissão de dados ao ler rapidamente os 350 e-mails que chegaram na véspera do feriado de final de maio em mais um teste de transmissão de dados ainda simulados que partiram do LHC. “Todos se comunicam com todos”, diz ele. “A colaboração agora é essencial porque, se um falhar, todos falham.” Os físicos construíram esse ambiente mundial de pesquisa e as cavernas monumentais do LHC para encontrar experimentalmente uma partícula atômica que até agora só existe na teoria: o bóson de Higgs (bósons são partículas que transmitem forças ou mantêm as outras partículas unidas, e Higgs é o sobrenome do físico escocês que previu essa partícula em 1964). Se de fato
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SP RACE
A forma da e-S cience: computadores em São Paulo desvendando colisões atômicas
identificado, o bóson de Higgs poderia explicar por que as partículas elementares da matéria apresentam massas tão diferentes entre si (a massa de um nêutron, que forma o núcleo atômico, é 1.800 vezes maior que a de um elétron, que orbita ao redor do núcleo).
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anta gente e tanto trabalho se explica porque o bóson de Higgs pode ser a peça que faltava para completar o quebra-cabeça das partículas atômicas. No início do século passado só havia uma partícula, o elétron. Logo surgiram evidências do núcleo atômico, formado por partículas bem maiores, e lá por 1950 os físicos já haviam identificado dezenas delas. “Era o caos”, conta Novaes. “Ainda não havia nenhuma organização entre as partículas.” Aos poucos os físicos desvendaram as forças que mantêm as partículas e os átomos unidos, mas ainda não era o bastante. Quando os aceleradores de partículas começaram a funcionar e exibiram dimensões ainda mais profundas da matéria, os físicos verificaram que todo o zoológico de partículas dos anos 1950 poderia ser organizado por meio de apenas três partículas, os quarks
up, down e strange. Nos anos seguintes mais três quarks – charm, bottom e top – foram descobertos. Esses seis quarks, combinados em pares quark-antiquark, ou em trios, compõem todas as partículas sujeitas a uma das forças fundamentais da natureza, a interação forte, que mantém o núcleo atômico coeso. Apareceram partículas de nomes estranhos e pouco conhecidas para a maioria das pessoas, como káon, eta, chi, lambda, sigma ou J-psi, mas não eram mais centenas, apenas rearrumações dos mesmos elementos básicos. Mais do que partículas isoladas, agora existem categorias: prótons e nêutrons, que formam o núcleo atômico, são chamados de hádrons (hadrós em grego significa maciço, forte). O próprio núcleo perdeu o hipotético bucolismo e se revelou um ambiente tempestuoso, com nuvens de partículas que surgem e desaparecem a todo momento cercando prótons e nêutrons. O LHC pode eventualmente lançar luz também sobre dimensões extras, além das quatro conhecidas (três espaciais, comprimento, largura e altura, e uma temporal); ninguém provou ainda que elas realmente não existam e uma parte
dos físicos precisa delas para manter suas teorias em pé. Mesmo assim, Novaes acha pouco. “Espero que do LHC surjam coisas diferentes, que nos levem a outros desafios”, diz ele. “Pode ser que o novo seja totalmente novo, sem nenhuma vinculação com as propostas teóricas atuais.” Como os resultados são imprevisíveis, podem surgir até mesmo outras coisas importantes além de novas explicações sobre o Universo. Em 1990 o físico suíço Tim-Bernes Lee criou uma linguagem de computador para facilitar a vida de quem trabalhava no Cern, sem imaginar que sua invenção, o hipertexto, seria essencial para a expansão da internet. Faz tempo que os físicos perseguem o bóson de Higgs. O próprio Novaes, em 1979, ainda no mestrado, estudou um dos mecanismos de produção dessa partícula por meio de colisões entre prótons.“O que era um problema naquela época continua na agenda, mostrando a dificuldade da física de partículas em avançar nas últimas 3 décadas.” Espera-se que e-Science ajude a resolver. “A e-Science é aberta e veloz e representa outro modo de fazer ciência”, diz Novaes. “Temos que pensar de outra forma e ser ousados.” ■ PESQUISA FAPESP 148
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D anç a da
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a ponta de um galho, a pequena tangará verde-oliva observa a fila de machos que se preparam para o ritual de cortejo. O primeiro levanta vôo, paira no ar por alguns segundos e mostra à donzela as penas vermelhas do topo da cabeça antes de pousar no final da fila. Em alta velocidade, um macho sucede ao outro nessa manobra de conquista que parece uma disputa entre rivais, mas é na verdade um balé organizado (ver vídeo no site www. revistapesquisa.fapesp.br). A dança coordenada continua até que um deles solta um agudo ti-ti-ti-ti-ti! É o líder do bando – ou macho alfa, para os biólogos – que anuncia o fim da festa. Se for bem-sucedido, ele voará para a privacidade da floresta em companhia da pretendida. No palco de exibição, que os especialistas chamam de lek, quem manda é sempre o mesmo macho. Mas sem um corpo de baile formado por mais um a sete machos subordinados, ele não tem chance de atrair a atenção de uma fêmea. A tarefa é árdua: durante o período de reprodução, eles dançam todos os dias o dia todo. Já no frio do inverno, quando não é época de filhotes, limitam a exibição a uma ou duas vezes a cada manhã. “As fêmeas avaliam a capacidade dos machos de manter um grupo organizado”, explica o biólogo Mercival Francisco, do campus de Sorocaba da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Mas o que os figurantes ganham com isso? Essa
sedução
Z O O LO GIA
Comportamento do tangarádançarino determina sua variabilidade genética Maria Guimarães
é uma das perguntas que têm ocupado Mercival, que também busca identificar como a composição genética dos tangarás-dançarinos (Chiroxiphia caudata), pássaro símbolo de Ubatuba, varia ao longo da sua distribuição. Ele investigou esses pássaros – 13 centímetros de corpo azul, asas e cabeça pretas com o boné vermelho que exibem com tanto orgulho – no mais longo trecho que resta da Mata Atlântica, floresta que já acompanhou a costa brasileira praticamente inteira. Essa faixa contínua está quase toda no estado de São Paulo, onde Mercival escolheu cinco áreas em zonas de preservação para amostrar a diversidade genética dos tangarás: o Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira (Petar), quase na fronteira com o Paraná, o Parque Estadual Carlos Botelho, próximo a Sorocaba, e os núcleos Cubatão, Caraguatatuba e Picinguaba do Parque Estadual da Serra do Mar – todos administrados pelo Instituto Florestal. Os animais afortunados que vivem nos 415 quilômetros que separam o Petar e o Núcleo Picinguaba têm à sua disposição mais de 17.300 quilômetros quadrados de floresta. Para o pesquisador, uma oportunidade única de estudar o comportamento das aves dançarinas quando não estão restritas a ilhas de floresta cercadas por canaviais ou áreas urbanas. Nas cinco áreas selecionadas, Mercival coletou sangue de machos que participavam de grupos dançarinos e analisou dez trechos de DNA selecionados para
medir parentesco. A idéia era testar se laços de família, que explicam muito da solidariedade animal, estão por trás dessa dança – ajudar irmãos é visto por biólogos como uma forma indireta de perpetuar os próprios genes, estratégia que seria favorecida pela evolução. Contudo, os resultados mostram que não é o que acontece com os tangarás. Grupos de dançarinos podem incluir machos aparentados, mas não é isso que os reúne. “Eles ficam onde nasceram, e por acaso às vezes acabam num lek onde há parentes”, conta o biólogo. - A descoberta não é de todo surpreendente. O mesmo padrão já foi visto em outros tangarás, como os da espécie Chiroxiphia lanceolata, habitantes da Amazônia e da América Central parecidos com os tangarás da Mata Atlântica, mas neles a cor azul se limita às costas, como uma capa. Estudados desde 1999 no Panamá pela bióloga norteamericana Emily DuVal, da Universidade Estadual da Flórida, esses pássaros dançam em pares, que também não se formam por laços de parentesco. Observando os pas de deux emplumados ano após ano, Emily desvendou o estímulo mais forte do que a solidariedade fraterna: os machos subordinados têm maior chance de ascenderem ao posto de alfa do que um macho qualquer que não tenha entrado na dança. Mercival acredita que as regras do jogo sejam as mesmas entre os seus tangarás. “A chance de se reproduzir é zero para machos que não
To d o s p o r u m
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MARIA GUIMARÃ ES
integram um lek. Para os que participam as oportunidades são raras, mas existem.” O pesquisador pretende continuar em estudos detalhados para entender como funciona a sucessão dentro dos corpos de baile dos tangarás-dançarinos. Mas ele se preocupa com o desflorestamento da Mata Atlântica, que isola animais e plantas em ilhas de floresta. Em artigo publicado no final de 2007 na revista Molecular Ecology em parceria com Pedro Galetti Junior, do campus de São Carlos da UFSCar, e com o norte-americano Lisle Gibbs, da Universidade Estadual de Ohio, Mercival
Cores vistosas não bastam: tangarás têm que rebolar para atrair parceiras
comparou a diversidade genética em suas cinco áreas de estudo e mostrou que, quanto mais geograficamente distantes, mais diferentes as populações são do ponto de vista genético – indicação de que os tangarás ficam perto de onde nasceram em vez de migrar longas distâncias e disseminar seu material genético. “Em todos os locais que estudamos havia alelos únicos”, conta
o biólogo se referindo às diferentes formas que cada gene pode assumir. Isso significa que toda floresta perdida leva consigo parte da diversidade genética do tangará-dançarino. Em áreas onde a variabilidade genética já não é grande perder essa pouca diversidade pode dar origem a populações altamente suscetíveis a deformidades e doenças causadas por genes defeituosos – pelo mesmo motivo que se evitam casamentos consangüíneos em seres humanos. Com mais desmatamento, o termo “dançar” corre o risco de assumir seu sentido figurado para os tangarás. ■ PESQUISA FAPESP 148
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A s o n d a s da inteligê ncia
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epois de quase 5 anos de trabalho o neurocientista Lucas Santos acredita, por fim, ter obtido as primeiras evidências de que a atividade elétrica do cérebro permite estimar a capacidade de aprender. Não foi fácil. Durante 3 anos ele teve de freqüentar a Universidade de São Paulo (USP) em horários nada convencionais. Chegava pela manhã e só ia embora por volta das 3 da madrugada, bem depois de os professores e os alunos terem deixado a Cidade Universitária. No laboratório de Maria Teresa Silva, no Instituto de Psicologia da USP, Santos passava horas treinando ratos-brancos – animais que dormem de dia e gostam de passear à noite – a apertar uma alavanca para receber gotas de uma mistura de água com açúcar como recompensa. Ele submeteu os ratos a testes para verificar se descobriam como e quando pressionar a alavanca para ganhar a recompensa. Em seguida, registrou com um aparelho de eletroencefalografia a atividade elétrica das células nervosas (neurônios) de uma região cerebral chamada hipocampo, que coordena a aquisição da memória e o grau de atenção, essenciais para a aprendizagem.
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Santos constatou que as células do hipocampo dos roedores que aprenderam mais ou mais facilmente disparavam a cada segundo um número maior de sinais elétricos de comunicação com outras áreas cerebrais do que as dos ratos que demoravam a descobrir como se alimentar durante os experimentos. Em média a atividade elétrica do hipocampo dos animais mais espertos foi quase 30% superior à dos roedores com pior desempenho nos testes. R e d e e l a b o r a d a - No registro eletro-
encefalográfico, os sinais elétricos do hipocampo apareceram na forma de ondas teta, identificadas pela primeira vez em 1938 pelos fisiologistas alemães Richard Jung e Alois Kornmüller e um dos quatro tipos de ondas elétricas cerebrais conhecidas. No caso dos ratos com melhor desempenho nos testes de aprendizagem, as ondas teta alcançaram em média a freqüência de 9 hertz, o equivalente a nove disparos por segundo. Já a dos outros animais foi de aproximadamente 7 hertz, ou sete descargas elétricas por segundo, como descreveram Santos e seus colaboradores em artigo publicado eletronicamente em fevereiro na revista Behavioural and Brain Research.
Para Santos, o ritmo de funcionamento acelerado do hipocampo pode ser reflexo de uma rede de células nervosas mais bem desenvolvida. “Os animais mais espertos devem ter circuitos mais elaborados, base neurológica que pode permitir maior nível de atenção e facilidade de aprender nessas e em outras situações”, comenta o neurocientista brasileiro, hoje pesquisador na Universidade Brown, nos Estados Unidos. Numa próxima etapa, Santos pretende repetir os testes com animais maiores e evolutivamente mais próximos do ser humano, como gatos, cães e macacos – e, quem sabe, desenvolver experimentos até com pessoas. Se novos testes confirmarem esses resultados, ele terá comprovado uma hipótese lançada há quase 5 décadas pelo professor César Timo-Iaria, um dos mais importantes e respeitados neurocientistas brasileiros, morto em 2005, com quem Santos trabalhou de 1997 a 2004. “O professor César gostava de usar a palavra ‘inteligência’, um termo polêmico, para descrever o aprendizado adquirido”, recorda Santos. “Se ele estiver correto, as ondas teta seriam uma medida do nível de inteligência.” ■
LAURA DAV IÑ A
Ritmo de funcionamento cerebral pode indicar maior capacidade de aprendizagem
Ricard o Zorzet to
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especial: revolução genômica iii
Ciência, embates e debates 62 Apresentação 63 Jan Hoeijmakers Envelhecimento e longevidade: quanto duram os seus genes? 66 Luiz Hildebrando Pereira da Silva Revolução genômica e saúde pública 70 Walter Colli e Herton Escobar Trânsgênicos e mídia 73 Niède Guidon Primeiros habitantes do Brasil: as descobertas de São Raimundo Nonato 76 Carlos Joly O programa Biota-Fapesp: uma referência para estudos de biodiversidade
MARCIA MINILLO
79 Mario Eduardo Costa Pereira e Sidarta Ribeiro Freud e neurociência
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Apresentação Os vastos tempos da ciência Contra o tempo apertado, amesquinhado, esse tempo tão dolorosamente comprimido de nosso cotidiano, vimos algumas vezes – deveria dizer, talvez, sentimos? – o tempo se expandir desmesuradamente ante nossos olhos nas últimas semanas. Vimo-lo perder-se em fronteiras imemoriais, ora ganhar sólida densidade histórica, ora espantosa largueza e profundidade arqueológicas. Pudemos olhá-lo como invenção, recriação da memória, para adiante vê-lo dividir-se sem aflição entre Kronos, esse deus que parece, e apenas parece, tornar o tempo tangível em sua cronologia, e Kairós, a divindade do acontecimento que subverte, corta a cronologia, refaz o próprio tempo, reinventa mundos. Essa extraordinária viagem entre tempos se deu no percurso das palestras da programação cultural da exposição Revolução genômica de fins de abril e boa parte de maio que estão apresentadas nas próximas páginas desse encarte especial de Pesquisa FAPESP. Enquanto o seguia, pensei às vezes que não haveria trilha sonora mais adequada a tal caminho do que a intensa poesia da Oração ao tempo de Caetano Veloso (“... e quando eu tiver saído para fora do teu círculo, tempo, tempo, tempo, não serei nem terás sido...”). Em outros momentos imaginei que melhor pano de fundo para o que estávamos a vislumbrar seria a espessa linguagem filosófica de Heidegger em Ser e Tempo
atingindo os nossos ouvidos como uma hipnótica litania. Só se é no tempo? Que seja. Embrenhar-se por horas em digressões sobre o tempo parecia apenas natural depois de acompanharmos a brilhante exposição da arqueóloga Niède Guidon sobre os trabalhos de pesquisa e conservação das criações pictóricas e esculturas em São Raimundo Nonato, no Piauí, que propiciam um recuo de até 100 mil anos atrás, quem sabe, para lá encontrar os primeiros grupos de Homo sapiens na América do Sul. E nada mais estimulante do que saltar daí para o tempo histórico do duro combate contra as doenças infecciosas, tornado tão claro pela aula magistral do parasitologista Luiz Hildebrando Pereira, capaz de iluminar, em 1 hora, do gênio de Louis Pasteur, que pavimentou todo o caminho das vacinas ainda hoje mais eficazes, aos desafios que agora estão propostos em termos de conhecimento básico para que as promessas da revolução genômica se realizem, de fato, em relação a essas doenças. Um salto vertiginoso para trás, de nada menos que 200 milhões de anos, nos propôs, então, numa ensolarada manhã de domingo o biólogo Carlos Joly, antes de nos mostrar as consistentes produções do Programa Biota-FAPESP. Todos os continentes unidos em tempos geológicos imemoriais serviam ao propósito de que melhor compreendêssemos os fundamentos e a riqueza dos biomas abrigados no vasto território do Brasil. E um tempo muito diferente, um tanto arbitrário e ficcional, tecido com a mais fascinante matéria dos sonhos, foi trazido à cena no pavilhão Armando Arruda Pereira pelas mãos do neurocientista Sidarta Ribeiro e do psicanalista e psiquiatra Mario Eduardo Pereira. Por fim, fomos ejetados de chofre ao futuro na palestra do geneticista holandês Jan Hoeijmakers, que, via reparos do DNA, ousa acenar com a possibilidade de termos muito mais vida plena em nossos anos de longa velhice. Na verdade, todos os pesquisadores que aparecem nas próximas páginas, a par de familiarizarem o público que os ouviu com as fronteiras históricas e atuais dos campos de conhecimento em que estão mergulhados, a par de lhe mostrar suas antevisões do futuro, em conjunto lhe ofereceram uma aula magistral sobre a plasticidade do tempo, algo que tem a ver com a ciência, mas também com a arte e a filosofia. É tempo de lhes agradecer. Mariluce Moura
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Jan Hoeijmakers Geneticista holandês apresenta as bases moleculares do envelhecimento e os camundongos mutantes que criou para entender melhor a senilidade prematura
FOTOS MARCIA MINILLO
Carlos Fioravanti
O geneticista holandês Jan Hoeijmakers não se contenta com o fato de a longevidade da espécie humana, nos últimos mil anos, ter aumentado o equivalente a 15 minutos a mais a cada hora vivida. “Mais importante do que acrescentar mais anos à vida é acrescentar mais vida aos nossos anos”, comentou ele durante a palestra “Envelhecimento e longevidade: quanto duram nossos genes?”, apresentada no dia 18 de maio no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, dentro da programação cultural da exposição Revolução genômica. Envelhecer, lembrou ele, ainda implica a sujeição a doenças de controle árduo, quando não impossível, como osteoporose, diabetes ou Alzheimer. Hoeijmakers persegue o ideal de um envelhecimento mais saudá-
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vel aprofundando-se com sua equipe de biólogos da Universidade Erasmus, em Roterdã, na Holanda, na área em que ele é uma das maiores autoridades mundiais: o reparo da molécula de DNA, realizado por um orquestrado conjunto de proteínas incumbidas de um saneamento contínuo, já que todo dia o DNA de cada célula sofre em média 50 mil lesões, causadas por radiação solar, por compostos químicos ou pela simples colisão com outras moléculas. Quando os guardiões do DNA não conseguem mais segurar as pontas, o organismo perde o passo habitual e instaura-se um caos que poderá tanto permitir o desenvolvimento de um câncer quanto acelerar o envelhecimento. Hoeijmakers acredita que o envelhecimento correria mais devagar,
por dentro e por fora do corpo, se esse mecanismo de conserto das moléculas de DNA se mantivesse afinado. Seu grupo de trabalho inaugurou uma linha de pesquisa nessa área ao desenvolver camundongos mutantes, incapazes de produzir uma ou mais de uma das proteínas de reparo. De acordo com as imagens que mostrou, os efeitos são notáveis: os animais com essas deficiências genéticas crescem menos e apresentam sinais de envelhecimento precoce, como a cifose, uma curvatura acentuada da coluna vertebral, a osteoporose e degenerações neurológicas, além de viverem menos que os animais normais. Os animais mutantes tornaram-se um modelo de estudo para entender melhor o que se passa nos seres humanos, às vezes abatidos desde o nascimento por uma produção insuficiente das enzimas de reparo do DNA. Hoeijmakers já verificou que o organismo dos camundongos com deficiências na produção das enzimas de reparo do DNA prioriza, tanto quanto possível, a defesa da integridade do DNA em vez de gastar energia no crescimento e desenvolvimento corporal. “É melhor permanecer pequeno e viver mais, porque, se investir em crescimento, viverá menos.” Dessas pesquisas não sai só mais ciência, mas também al-
Hoeijmakers: objetivo é viver mais, com mais qualidade de vida
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guns sonhos que tomam forma pouco a pouco. “No futuro”, comentou, “esperamos promover o envelhecimento saudável”. As pesquisas de Hoeijmakers o levaram a criar em 2004 a empresa DNAge, adquirida 2 anos depois pela Pharming Group NV, com o propósito de desenvolver medicamentos capazes de deter o envelhecimento precoce principalmente em portadores de síndromes de origem genética. O primeiro deles deve entrar este ano na primeira etapa de testes em seres humanos, para avaliar a segurança de uso, depois de apresentar resultados satisfatórios em camundongos portadores da síndrome de Cockayne, uma das formas mais comuns de envelhecimento prematuro, contra a qual ainda não há remédios.
Fecundação
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Hoeijmakers começou a palestra falando do início da vida – a fecundação, quando uma célula reprodutiva feminina, o óvulo, funde-se com uma célula reprodutiva masculina, o espermatozóide. Segue-se a multiplicação e diferenciação das células que vão formar os músculos, o cérebro e todas as outras partes do corpo. Em seguida, ele mostrou que cada célula contém um núcleo – lá estão os 46 cromossomos, estruturas formadas por proteínas e a molécula do DNA, em forma de hélice
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dupla, feita de apenas quatro blocos de construção representados pelas letras G, T, C e A. “Sempre temos um C oposto a um G, considerando cada um dos lados da hélice. Se houver um T em uma das fitas, teremos um A na fita oposta. Então, se tivermos a seqüência dos blocos em uma das fitas, podemos deduzir a seqüência dos blocos na fita oposta”, disse, mostrando em seguida a imagem de uma molécula de DNA. Para ilustrar a grandiosidade dessa molécula, fez a seguinte comparação: “Se imprimíssemos as seqüências dos blocos de construção de um único núcleo, essa impressão se estenderia de São Paulo a Johanesburgo. Se iniciássemos sua leitura, letra por letra, levaríamos 11 anos para completá-la. É uma quantidade de informação enorme”. Hoeijmakers contou que o DNA guarda informações sobre qualquer ser humano por meio dos blocos A, C, T e G, cuja ordem forma “a língua de nossos genes”, disse ele, sem hesitar em recorrer a outras metáforas. “Essa ordem forma letras, que formam palavras, que representam instruções. Cada instrução equivale a um gene.” O DNA humano, por exemplo, contém 25 mil genes. Ao usar um gene, a célula faz uma cópia por meio de uma molécula de RNA mensageiro. O RNA vai ao citoplasma e é traduzido em
proteína. Cada gene, assim, carrega instruções para proteínas específicas; algumas delas, as enzimas, podem acelerar uma reação química, convertendo glicose em energia, por exemplo. Outras proteínas estão relacionadas à divisão celular e outras reparam danos do DNA. “Todas as funções celulares ocorrem através das proteínas codificadas no DNA. É dessa forma que a vida funciona”, sintetizou. Hoeijmakers apresentou dois filmes curtos mostrando como uma célula se divide e em seguida concluiu: “O câncer nada mais é que a divisão descontrolada das células, devido a erros nas instruções contidas nos genes”. Esses erros aparecem quando falham os mecanismos de reparo das moléculas de DNA, igualmente regidos por grupos específicos de proteínas. Em um trecho mais denso de sua apresentação, o geneticista expôs os mecanismos básicos pelos quais a molécula de DNA é danificada, até mesmo perdendo pedaços, abdicando assim de instruções para o funcionamento normal do organismo. Algumas proteínas específicas produzidas no citoplasma agem o tempo todo como guardiãs do DNA, para consertar esses estragos. Às vezes, porém, essa vigilância falha: é quando surgem doenças genéticas, algumas delas inatas. Hoeijmakers apresentou três delas. A primeira é a xeroderma pigmentosum (XP), cujos portadores apresentam uma extrema sensibilidade à luz solar. “Bastam 5 minutos sob o sol para ficarem com a pele completamente queimada”, contou. Defeitos em genes de reparo de DNA como o XPA e o XPG aumentam em mais de 2 mil vezes o risco de câncer de pele em portadores de XP.
Falha no reparo Outra doença causada por falhas em outros genes de reparo de DNA, conhecidos pelas siglas XPB, XPD, CSA e CSB, é a síndrome de Cockayne, caracterizada por uma extrema sensibilidade à luz, embora sem maior incidência de câncer de pele, e por sintomas específicos, como problemas neurológicos e musculares e deficiências no crescimento: as crianças com essa síndrome vivem em média até os 12
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anos de idade. A terceira doença é conhecida pela sigla TTD, de tricotiodistrofia, marcada igualmente por sensibilidade à luz solar, por problemas neurológicos, por baixa estatura e por um traço peculiar, as unhas e cabelos quebradiços. A TTD resulta de falhas em outro grupo de genes de reparo, os XPB, XPD e TTDA. Depois de estudar bastante os genes que causavam essas doenças, Hoeijmakers e seu grupo em Roterdã provocaram o mesmo defeito em camundongos, criando animais geneticamente modificados, incapazes de produzir uma ou outra dessas proteínas que consertam o DNA, que se tornaram um modelo de estudo para entender melhor não só o desenvolvimento dessas doenças genéticas em seres humanos como também o envelhecimento. Ele mostrou algumas imagens desses animais e impressionou ao ressaltar o pêlo acinzentado de um camundongo geneticamente deficiente, um sinal de senilidade ausente no animal normal. “Provocamos nos camundongos a mesma mutação presente no paciente com TTD – no ponto R722W da proteína XPD.” Hoeijmakers contou que ele e sua equipe ficaram desapontados no início, porque os animais tinham pelagem normal, diferentemente dos cabelos quebradiços dos seres humanos com TTD. Duas semanas mais tarde, a pelagem dos animais começou a ficar rala e, em mais 2 semanas, desapareceu completamente. “Vimos que o mesmo defeito no gene XPD também faz com que a pelagem dos camundongos fique quebradiça, assim como suas unhas.” Os animais com TTD morriam precocemente, após viverem em média 1 ano e meio, enquanto os animais normais podem viver 2 anos ou mais. Nos seres humanos, ele lembrou, a doença é ainda mais severa e as pessoas morrem com cerca de 5 anos. Os animais apresentaram também uma característica inesperada: tornavam-se grisalhos. “Considerando-se os pacientes humanos, nunca se pensou que eles estivessem sofrendo de envelhecimento acelerado”, contou o geneticista. Ele e sua equipe analisaram todos os órgãos dos animais e con-
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cluíram que eles estavam, de fato, envelhecendo: apresentaram cifose e osteoporose, tornaramse caquéticos e perderam massa muscular.
Qualidade de vida
“Se um camundongo tiver um defeito no hormônio do crescimento, ele ficará bem pequeno, mas viverá muito mais, por até 4 anos, enquanto os normais vivem apenas 2,5 anos”
Hoeijmakers lembrou que da Idade Média para cá, porém, a longevidade aumentou o equivalente a 15 minutos extras para cada hora vivida. “Muitas vezes, porém, envelhecer implica perda da qualidade de vida”, concluiu. “Temos mais anos de vida, mas não necessariamente mais vida em nossos anos. Na verdade, gostaríamos de permanecer jovens, mas ao envelhecermos desenvolvemos várias doenças.” O envelhecimento pode também ser o resultado de uma programação biológica, que determinaria o momento de um organismo parar de funcionar, ou de uma catástrofe causada pelo acúmulo de erros de todo tipo. Hoeijmakers comentou a possibilidade, já colocada em prática, de cruzar animais com diferentes tipos de deficiências nos genes de reparo de DNA e ver o que acontece. Dos estudos em laboratório, somados ao conhecimento acumulado sobre o envelhecimento humano, oferecem algumas respostas e, melhor ainda, levantam muitas dúvidas. O geneticista holandês expôs algumas delas: “Quais as conexões entre as falhas nos mecanismos de reparo de DNA e o envelhecimento acelerado? Em que medida essas falhas refletem o envelhecimento natural?”. Os pesquisadores já verificaram que os camundongos mutantes,
em comparação com os normais, direcionam a energia que seria gasta com o crescimento e desenvolvimento para manutenção e reparo de DNA – por essa razão é que permanecem pequenos, como as pessoas acometidas por essas síndromes. “A mesma estratégia de investimento na manutenção e no reparo está relacionada com a longevidade”, disse Hoeijmakers. “Se um camundongo tiver um defeito no hormônio do crescimento, ele ficará bem pequeno, mas viverá muito mais, por até 4 anos, enquanto os normais vivem apenas 2,5 anos”, afirmou o cientista holandês. Animais submetidos a dietas limitadas a 70% das calorias habituais também permanecem pequenos e vivem por até 4 anos. O oposto também é verdadeiro: animais dotados de uma cópia extra do gene do hormônio do crescimento crescem mais, mas vivem menos. “O fenômeno, então, se dá em ambas as direções: se houver muito investimento em crescimento, vive-se menos; se, por outro lado, houver investimento em manutenção e reparação, vive-se mais e com mais saúde.” Ele acredita que esse mecanismo, chamado de resposta de sobrevivência, pode ser importante para promover um envelhecimento saudável. “É exatamente isso que gostaríamos de fazer.” Para Hoeijmakers, a lógica do envelhecimento começa a se tornar mais clara. Fontes externas como elementos químicos e radiação fazem o organismo produzir espécies reativas de oxigênio que danificam o DNA e as células. Se não detidos pelas defesas do organismo, esses danos podem causar mutações e anomalias cromossômicas, além de iniciar a morte das células, que provocará o envelhecimento. “Os danos ao DNA impõem uma escolha entre o envelhecimento e o câncer. Felizmente podemos encontrar agentes que reduzem os danos ao DNA”, comentou. “Se tivermos sucesso, não envelheceremos demais nem teremos câncer. No futuro, esperamos promover um envelhecimento saudável através da compreensão do processo de envelhecimento normal permitindo que as pessoas atinjam uma idade mais avançada.” ■
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Luiz Hildebrando Pereira da Silva Parasitologista diz que ainda falta conhecimento para tornar a genômica mais eficaz contra as doenças infecciosas
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Neldson Marcolin
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A genômica vem proporcionando grandes progressos e vantagens na pesquisa em doenças infecciosas, em particular na identificação de genes de vírus e bactérias responsáveis pela ação patogênica, mas hoje há certa decepção no ar. A análise dos genomas dos agentes patogênicos pode permitir a identificação de fatores responsáveis pelas doenças e sugerir as melhores armas para atacá-las. Ocorre que a expectativa de que as ferramentas da genética pudessem resolver boa parte dos problemas das doenças infecciosas ainda não se confirmou. “A culpa por isso não é da genômica, mas dos pesquisadores, que não entenderam tudo dessa área para poder intervir com sucesso”, afirmou o parasitologista Luiz Hildebrando Pereira da Silva. “Temos de ser suficientemente humildes para assumir que ainda nos falta conhecimento básico.” Criador e diretor do Instituto de Pesquisa em Patologias Tropicais (Ipepatro), de Rondônia, e ex-diretor do Departamento de Imunologia do Instituto Pasteur de Paris, ele falou sobre o tema “Revolução genômica e saúde pública”, dia 26 de abril. Hildebrando lembrou que para entender o valor da genômica é importante saber o que havia antes dela: as eficientes vacinas já desenvolvidas que, aplicadas extensivamente nas populações, diminuíram drasticamente o número de doentes de moléstias infecciosas em todo o mundo. No caso dos Estados Unidos, por exemplo, a difteria afetou 207 mil pessoas em 1921 e apenas 1 em 2003; o sarampo derrubou 894 mil em 1941 e 42 em 2003; a coqueluche atingiu 265 mil em 1934 e
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8.483 em 2003; a rubéola atacou 58 mil em 1969 e 8 em 2008; a poliomielite deixou seqüelas em 21 mil pessoas em 1952 e em 2003 não houve casos nos Estados Unidos nem em outros países – a doença foi erradicada. Todas essas vacinas apresentam eficácia de 96,8% a 100%. Entretanto, elas foram elaboradas antes da era genômica ou, se depois disso, com metodologias anteriores a ela. Em comum, todas foram feitas pelo tradicional método pasteuriano. Nenhuma delas – com exceção da hepatite B, com 75% de eficácia, – é gênica, ou seja, produzida com os conhecimentos obtidos a partir da genômica.
Epidemias “Depois da descoberta da estrutura do DNA e do código genético criou-se um dogma, o princípio que vem norteando a atividade dos biólogos moleculares desde os anos 1960, que levou a certos problemas”, disse Hildebrando. O dogma, neste caso, é que a informação genética se reduz à contida no DNA pelas seqüências específicas dadas pelas purinas e pirimidinas, que identificam pelo código genético a presença de aminoácidos correspondentes na proteína que se forma a partir dessa informação. Esses dados vêm por meio de uma mensagem – o RNA mensageiro – feita através da transcrição da informação de uma das cadeias de DNA, na qual essa informação genética está contida. Toda a informação genética do DNA seria transcrita em termos de RNA e traduzida em proteínas a partir do código genético. “Mas essas informações ainda são insuficientes, até agora, para termos uma
resposta eficiente contra as infecções transmissíveis”, alertou. “Ainda é preciso aprofundar os conhecimentos científicos de base da imunologia e dos mecanismos patogênicos para encontrarmos soluções tão boas quanto as oferecidas pelas vacinas tradicionais.” Luiz Hildebrando chamou a atenção para o fato de sermos todos sobreviventes ao que aconteceu antes de nós. Com isso, quis dizer que os progressos que a genômica pôde trazer para o estudo das doenças infecciosas aconteceram recentemente e se sucederam a outros avanços que a humanidade incorporou da fase pasteuriana do desenvolvimento da ciência na área da saúde. Ele explicou que há 200 anos o mundo estava submetido à pressão seletiva das grandes epidemias e doenças endêmicas que matavam milhões de pessoas em todos os continentes. Entre elas, as mais devastadoras eram a cólera, a varíola, a febre amarela e a gripe. Em Nova York, por exemplo, morreram de cólera 3.600 pessoas em 1831 quando a população da cidade era de 200 mil habitantes. Se fosse hoje, como a cidade tem 8 milhões de pessoas, teriam morrido 100 mil. Outra epidemia a transitar livremente pelo planeta durante várias períodos da história foi a varíola, que atingiu personalidades como Ramsés V, no Egito, o imperador Shunzhi, do Japão, Luís XV, na França, Pedro II, da Rússia, dom José, o verdadeiro sucessor de dom João XI, herdeiro do trono de Portugal, e Abrahão Lincoln, em 1863, entre outros tantos. A peste – outra doença – estava ativa há 200 anos, embora em fase menos virulenta. A peste bubônica caracterizou a Idade Média e ocorreu em razão do progresso da agricultura e da formação de estoques de alimentos. O ambiente era propício para o rato, que nunca teve tanta comida disponível. O problema é que ele carregava a pulga vetora da bactéria Yersinia pestis, causadora da doença no homem e responsável por mais de 25 milhões de mortes, em especial na Europa. “A febre amarela, que voltou a crescer no país nos últimos anos, mas apenas sob a forma silvestre, foi responsável por grandes epide-
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mias urbanas até o início do século XX. Em 1898, 3% da população de Campinas morreu vítima da febre. A gripe, hoje sob melhor controle, matou milhões. A primeira pandemia começou na África em 1510 e se espalhou pela Europa. Posteriormente houve a gripe asiática, em 1889 e 1890, e a mais conhecida e virulenta de todas, a gripe espanhola, de 1918-1919. Com ela, 17 milhões morreram na Índia, 500 mil nos Estados Unidos, 200 mil na Inglaterra e 35 mil no Brasil.
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Pasteur, um gênio O século XIX teve todas essas pandemias, mas teve também Louis Pasteur (1822-1895), “um grande gênio da humanidade”, no dizer de Hildebrando. “Pasteur não era nem médico, nem biólogo, mas um físico-químico, cujas contribuições fundamentais começaram pela química.” A primeira descoberta foi a isomeria ótica do tartarato, algo muito específico e com importância para a química. A segunda contribuição foi provar que a geração espontânea não existe. “Até a época do Pasteur se acreditava que bastava colocar pedaços de carne misturados com raízes numa panela fechada e esperar alguns meses para brotar várias espécies de vermes e de insetos, às vezes, até de ratos”, explicou. Essa hipótese era admitida entre os médicos e biólogos. Pasteur demonstrou a inexistência da geração espontânea por meio de
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“Depois da descoberta do DNA e do código genético criou-se um dogma, que levou a certos problemas”
experiências de laboratório, utilizando frascos pescoço-de-ganso que permitiam a passagem do ar, mas impediam a penetração das poeiras e germes. Resultado: os meios de cultura se conservavam inteiramente límpidos, sem crescimento de germes no seu interior. A terceira grande descoberta de Pasteur foi a fermentação, base da produção de bebidas alcoólicas, como vinho e cerveja. Os vinicultores e cervejeiros tinham problemas com esse processo porque, não raro, resultava em uma bebida ácida ou completamente amarga. O cientista francês verificou que o processo da maturação era causado por grupos de microorganismos, observados ao microscópio. Para o vinho e a cerveja ter qualidade era necessário usar um microorganismo par ticular, o levedo. Com isso, ele resolveu o problema das doenças que ocorriam nas vinhas e plantações de cevada. E que, para evitar as contaminações com outros
microorganismos que davam resultados indesejáveis, se deveria usar a inativação térmica. Essa técnica os eliminava e permitia usar apenas a levedura apropriada para obter o processo de maturação correto. A técnica ficou conhecida como pasteurização e passou a ser usada imediatamente para a produção de laticínios como um método de esterilização preliminar. A experiência com microorganismos convenceu Pasteur de que eles provocavam “doenças” não apenas no vinho e na cerveja, mas também nos homens e animais e passou a estudar o bicho-da-seda, cuja doença estava acabando com a produção de seda na França. Logo percebeu que as larvas dos insetos tinham um mal transmissível e isolou as linhagens saudáveis das infectadas. Foi o suficiente para resolver o problema dos produtores de seda. Em seguida, em 1881, tratou da cólera das galinhas, causada por uma bactéria. E fez mais uma descoberta importante. Pasteur verificou que se cultivasse a bactéria no meio de cultura no laboratório por várias gerações obteria bactérias fracas que, uma vez injetadas na galinha, a protegiam contra a cólera em vez de provocar a doença. Depois de resolver o problema das galinhas, ele se voltou para a raiva. “Embora não tenha sido uma epidemia, a raiva era sempre mortal quando alguém era atacado por um cachorro infectado”, disse Hilde-
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Ilustração do New York Times de 1831 mostra cidade sob a epidemia de cólera
brando. Dessa vez, o químico não encontrou micróbios visíveis que pudesse ser relacionado com a doença – nenhuma bactéria, levedura ou estrutura que pudesse ser visível no microscópio. Mas ele sabia que existia um processo, um agente invisível que provocava a doença, porque era possível notar que quando se injetava a saliva de um cão doente em outro saudável, este último passava a ter os mesmos sintomas.
Postulados de Pasteur-Koch Junto com Koch, Pasteur então formulou os princípios básicos da formação e da identificação de um agente responsável por uma doença, chamados de postulados de PasteurKoch (Roberto Koch, 1843-1910, bacteriologista alemão). O primeiro postulado reza que se deve isolar da pessoa, do animal ou do vegetal doente um microorganismo ou um agente que seja sempre o mesmo quando isolado de diferentes indivíduos com a mesma doença. Segundo postulado: manter em laboratório e produzir sucessivas gerações desse microorganismo fora do indivíduo doente. Terceiro: provocar a doença experimental inoculando o agente patogênico num animal-testemunha sadio da mesma espécie, de modo a provocar a mesma patologia. No caso da raiva, ele não conseguia ver nada no material isolado. Mas o pesquisador era capaz de manter a substância isolada, passando de um tecido para outro e depois
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provocar a doença em um cão sadio injetando esse agente nele. Ocorre que Pasteur não conseguia cultivar o que não via, como fazia com as bactérias. “Os vírus da febre amarela e da varíola só foram visualizados depois da invenção do microscópio eletrônico em 1932”, contou. O que Pasteur conseguia fazer era preparar um extrato da medula de cães raivosos e injetar em outros cães. Experimentou injetar em coelho e conseguiu produzir um coelho doente. Transmitindo a doença de coelho em coelho, obteve finalmente um extrato de medula que, injetada no coelho, produzia uma infecção com ausência de sintomas. Pasteur injetou nos cães essa preparação e não produziu nenhuma doença neles, mas verificou que ela os protegia da raiva. “Quando injetava saliva de cão raivoso, ele descobriu duas coisas formidáveis: primeiro, a demonstração dos seus postulados com Koch; segundo, o princípio da atenuação”, relatou Hildebrando. Todas as experiências bem-sucedidas o levaram a testar o extrato de medula no homem, com o agente patológico atenuado, para ver se podia provocar uma reação positiva de resistência, em 1885. O candidato foi o jovem alsaciano Joseph Meister, mordido por um cão raivoso. Deu certo. A isso se seguiu um sucesso internacional enorme. Chegaram a levar da Rússia para a França um jovem que tinha também sido infectado. Vacinado, foi salvo. Pouco depois, em 1888, nas-
cia o Instituto Pasteur. “O instituto tornou-se num centro mundial de estudos pela procura de vacinas contra doenças transmissíveis.” O interesse pelo saneamento como medida profilática contra doenças interessou dom Pedro II. O imperador se correspondia com o cientista francês e pediu-lhe que se ocupasse da febre amarela, então um dos graves problemas de saúde brasileiros. Pasteur tinha conseguido fazer a vacina contra a raiva por meio de um processo gradativo de adaptação e diminuição da virulência do agente infeccioso. Com a febre amarela não foi possível. A grande contribuição contra a doença foi dada inicialmente pelo médico cubano Carlos Finley (1833-1915), em 1894, que formulou a hipótese da transmissão por mosquitos. Ele fez essa dedução por causa da relação entre a epidemia crescente e o aumento da população de mosquitos. A hipótese de Finley não tinha como ser demonstrada porque não se conseguia isolar o agente. O italiano Giuseppe Sanarelli (1864-1940) contestou o cubano, acreditando que o agente etiológico era o bacilo icteróide. Em 1900, o setor de saúde do Exército norte-americano nomeou o médico Walter Reed (1851-1902), que foi a Cuba e ao Panamá para estudar a transmissão da febre amarela. Reed e voluntários se deixaram picar pelo Aedes aegypti, que se infectava picando pacientes com a febre, e conseguiram demonstrar a
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FOTOS SMITHSONIAN INSTITUTION LIBRARIES E REPRODUCÃO
relação entre a doença e o mosquito. “Naquele tempo os cientistas eram um pouquinho mais dispostos a provar suas hipóteses se oferecendo como voluntários”, observou. “Hoje o código de ética impede isso, mas nem precisava proibir porque não se encontra mais esse tipo de voluntário entre nós.” No Brasil existiram cientistas com espírito semelhante. Adolpho Lutz (1855-1940) e Emílio Ribas (1862-1925) também foram voluntários com outras pessoas para experiências de transmissão da febre amarela pelo Aedes aegypti em 1902, quase na mesma época em que Reed. De um grupo de voluntários, três se infectaram. Também os brasileiros confirmaram a hipótese de Finley. Foram essas experiências que possibilitaram a erradicação da febre nos Estados Unidos e a abertura do canal do Panamá, em 1906. Elas encorajaram Oswaldo Cruz (1872-1917) a realizar a grande campanha de febre amarela no Rio de Janeiro, que levou praticamente à eliminação da doença na cidade no começo do século XX. O vírus da família Rhabdoviridae, gênero Lyssavirus, só foi descoberto em 1930 por Max Theiler (1899-1972), um sulafricano que trabalhava nos Estados Unidos. Ele o cultivou em embrião de galinha e produziu a vacina com o vírus atenuado. Além de Pasteur, outros cientistas tiveram papel importante nas descobertas que precederam a era genômica. O alemão Paul Ehrlich (1854-1915), por exemplo, foi o pre-
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“Enquanto não entendermos melhor o sistema imunológico e as mutações adaptativas talvez não consigamos vencer o grande desafio da patologia infecciosa”
decessor da descoberta dos grandes compostos químicos e é tido como o pai da quimioterapia. Já o polonês Rudolf Virchow (1821-1895) desenvolveu as bases da patologia celular. Além disso, a criação de algumas tecnologias, em particular a espectrometria de massa (1919), a cristalografia de raios X (1920) e a microscopia eletrônica (1932) contribuíram significativamente para o desenvolvimento dessa área científica. “A criação dessas três estruturas permitiram o nascimento da genômica, da era da biologia molecular”, afirmou Hildebrando, ele próprio um pesquisador da genética de microorganismos desde o início dos anos 1960. A descoberta da estrutura molecular do DNA em 1953 por Francis Crick (1916-2004) e James Watson (1928) levou à possibilidade de compreender a natureza da informação genética. Com ela houve o desenvolvimento, a partir de 1960, do código genético, fruto das descobertas de Sydney Brenner, coautor de estudo junto com Crick, que levou à descrição do código co-
mo sendo determinado por trinca de bases. Os pesquisadores do Instituto Pasteur André Lwoff (1902-1994), Jacques Monod (1910-1976) e François Jaboc (1920-), ganhadores do Nobel de 1965, formularam a teoria pela qual se entende a transcrição e a regulação da informação genética. Essa informação não é expressa e transmitida para o citoplasma e por organismos de uma maneira explosiva, tudo ao mesmo tempo – ela é transmitida ordenadamente por meio de um programa sucessivo de expressão e repressão das informações, de maneira a constituir um ciclo progressivo de acumulação de informações que vai formando o organismo, seja o de uma bactéria ou de um mamífero superior, como os primatas. A ciência evoluiu nesses períodos com uma vasta colaboração entre os institutos de vários países. “Eram umas 20 ou 30 pessoas conversando constantemente e simultaneamente desenvolvendo a biologia molecular”, contou Hildebrando. Até que, em 1975-76, surgiram os trabalhos de Frederick Sanger, que desenvolveu a técnica de seqüenciamento com Walter Gilbert e Paul Berg. O método permite analisar a informação genética existente em uma seqüência de DNA. Sanger ganhou o Nobel de Química duas vezes. Em 1958, por ter determinado a estrutura molecular da insulina, e em 1980, pelos trabalhos com Gilbert e Berg. Pode-se dizer que a técnica criada por eles permitiu o nascimento da genômica.
Louis Pasteur, Fred Sanger e Paul Ehrlich: contribuições essenciais para a ciência
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Com técnicas automatizadas foi possível fazer o primeiro seqüenciamento do genoma humano, concluído em 2003 ao custo de US$ 3 bilhões. “Hoje a previsão é de chegarmos a um seqüenciamento do genoma de um homem, com várias outras técnicas, por US$ 1 mil em 24 horas.” Também é possível seqüenciar os agentes patogênicos com rapidez. Já foi feito o seqüenciamento completo, por exemplo, do vírus Hemofilus influenzae, responsável pelas pneumonias que ocorrem na gripe. “É neste momento que sinto certa decepção”, admitiu o cientista brasileiro. “Ainda falta muita coisa para entender.” Hildebrando chama de dogma a crença em vigor até há pouco tempo de que a genômica tudo explica pelo trio DNA-RNAproteína e com isso é possível entender e proteger a humanidade contra as doenças atuais e as que ainda aparecerão. “Quando trabalhava no Pasteur convivendo com vários ganhadores do Nobel, estava convencido de que tinha a verdade na mão e iria resolver o problema da malária”, contou. “Eu dizia, nas entrevistas, que teria a vacina pronta em 5 anos, no máximo em 10 anos.” Essa crença no poder da genômica simplificada era partilhada por chefes de laboratórios importantes, do mundo inteiro, afirmou. “Ocorre que ainda estamos esperando por essa vacina realmente eficaz feita a partir das pesquisas genômicas.” Existem hoje vacinas contra a malária, que provocam alguma imunidade em alguns grupos de pessoas – mas são imunizantes produzidos pelo velho método pasteuriano. A expectativa nos anos 1980 e 1990 era de que bastava definir os alvos moleculares e com isso a maneira pela qual tinha que desenvolver a droga eficiente, como se toda a informação científica necessária para resolver o problema estivesse dada. “A realidade parece mostrar que ainda falta conhecimento.” Os cientistas tentam, por exemplo, compreender o real significado do chamado DNA não codificante, que constitui mais de 80% do genoma, já foi considerado lixo ou DNA de reserva, mas hoje, sabe-se, é bastante conservado em suas seqüências. “Se ele é conservado, diria papai Darwin,
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deve servir para muita coisa que ainda não sabemos”, afirmou. Para Hildebrando, existe certa ilusão no Brasil de que a ciência brasileira evoluiu muito na parte fundamental, mas não na de aplicações. “Então se estimula a todos a correr para fazer ciência aplicada.” A síntese do recado passado pelo veterano cientista é um pedido especial de atenção com a ciência fundamental e com o desenvolvimento de informações básicas de conhecimento científico. “São os
futuros pesquisadores que terão de resolver essas questões e fazer a genômica funcionar melhor nas questões de saúde”, afirmou. “Enquanto não entendermos melhor o sistema imunológico e as mutações adaptativas talvez não consigamos vencer o grande desafio da patologia infecciosa, que é de nos livrar de uma maneira definitiva dos agentes patogênicos.” O parasitologista espera que as gerações futuras tenham um projeto um pouco mais seguro de sobrevivência da espécie. ■
Walter Colli e Herton Escobar Professor e jornalista discutem acertos e deslizes da imprensa na cobertura dos alimentos transgênicos Fabrício Marques
Parte da imprensa brasileira assumiu de forma acrítica a visão de alguns ambientalistas, abrigados em ONGs, na cobertura sobre os polêmicos alimentos transgênicos. Mas a transparência nas reuniões da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), órgão colegiado incumbido de avaliar solicitações para realização de pesquisas e comercialização dos organismos geneticamente modificados, além do esforço de pesquisadores para disseminar informações científicas sobre o tema, ajudou os jornalistas a produzir uma abordagem um pouco mais equilibrada. “Nós fizemos um plano para chamar a mídia toda vez que houvesse uma reunião da CTNBio. E a mídia, de certa forma, começou a responder”, disse Walter Colli, presidente da comissão e professor do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), em debate realizado no dia 10 de maio com o jornalista Herton Escobar, especialista em assuntos científicos do jornal O Estado de S. Paulo. O encontro fez parte do ciclo de palestras e deba-
tes que acompanha a exposição Revolução genômica. Colli expôs as dificuldades da imprensa para compreender o funcionamento e as deliberações do órgão, que é vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia. Em 2006, quando assumiu a presidência da comissão, ele se surpreendeu com os equívocos que permeavam a cobertura, escassa, por sinal, sobre as atividades do órgão. Uma nota publicada por um colunista sugeria que os membros do órgão usufruíam de mordomias, como viagens ao exterior e hospedagem em hotéis cinco estrelas. Tudo falso. Na avaliação do pesquisador, a cobertura era o resultado do racha que havia – e ainda persiste – dentro do governo em relação aos transgênicos, que se transpôs para o plenário da comissão. De um lado estão representantes de ministérios e secretarias contrários, por princípio, aos organismos geneticamente modificados. De outro perfilam-se representantes da comunidade científica e os indicados pelos ministérios da Agricultura, da Ciência
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e Tecnologia, da Defesa e das Relações Exteriores, que preferem avaliar caso a caso os benefícios e perigos embutidos em cada pedido de pesquisa e em cada solicitação de uso comercial. “Um jornal diário começou a dar destaque às divergências internas da CTNBio, pautado por um membro da comissão notoriamente contra qualquer transgênico e com grande capacidade de articulação”, lembra Colli. Uma das reportagens criticava o quórum baixo de uma reunião que tomou decisões importantes – na verdade, o autor da reportagem somou erradamente o número de membros titulares (27) e suplentes (27) para concluir que “menos da metade” havia votado, quando na verdade são apenas 27 os votos válidos. “Resolvi, juntamente com uma assessora de imprensa do Ministério da Ciência e Tecnologia, convocar a mídia a cada reunião mensal. Principalmente um jornal de São Paulo começou a dar cobertura igual ou maior que este jornal anterior, mas relatando de forma absolutamente isenta o que acontecia”, diz o professor. Até mesmo algumas redes de TV passaram a se interessar, como o Canal Rural, emissora de TV a cabo voltada para agricultores. “Mas as grandes redes abertas, em geral, ignoram as atividades da comissão. Recentemente, quando duas variedades de milho transgênico foram aprovadas, as redes abertas deram a notícia. Apareceu o ministro da Ciência e Tec-
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nologia, Sérgio Rezende, falando: “Nós concluímos que esses produtos não fazem mal...”. Saiu o ministro e entrou em seguida um ambientalista falando por muito mais tempo que o milho poderia fazer mal à saúde”, diz Walter Colli. “Houve um processo submetido à comissão, cujos pareceres encomendados a especialistas fizeram restrições. Nós só não votamos contra porque a empresa retirou de pauta. Não quis ser derrotada. A imprensa não deu isso. O que dá notícia é o seguinte: a CTNBio aprovou mais um milho transgênico e dizem que vai fazer mal para o estômago, e coisa e tal, o que é inteiramente inexato e não verdadeiro”, afirma.
Anticiência O pesquisador identifica uma articulação anticiência no combate aos transgênicos. “Se o médico diz que você precisa operar, é possível perguntar a opinião de outros quatro médicos, mas ninguém é louco de pedir a opinião de um não-médico. E, no fim, se você tiver que operar, vai operar com quem? Com um médico, é claro, pois no fundo se acredita no conhecimento específico dessa pessoa”, disse Colli. “Mas
em outras áreas não funciona assim. O Ministério da Ciência e Tecnologia pediu para a Academia Brasileira de Ciências, que reúne os melhores cientistas do país, a indicação de nomes para as posições da comissão. Mas se eles consideram razoável liberar a comercialização de um transgênico, tem gente que não acredita e ainda surgem insinuações tentando nos desqualificar. Mas a principal dificuldade da imprensa, afirmou Colli, é a mesma da sociedade: distinguir o real significado dos transgênicos da versão demonizada apresentada por alguns movimentos ambientalistas. “A transgenia é um método. Pode-se com esse método, que é poderoso, fazer coisas úteis para o homem, para os animais, para o ambiente. Também se podem fazer coisas deletérias”, explica o pesquisador. “A transgenia consiste simplesmente em pegar um gene de um ser vivo e pôr no outro, pegar de uma planta e pôr na outra. E depois verificar se haverá problemas. Apenas isso.” O jornalista Herton Escobar iniciou sua apresentação fazendo um passeio pela internet. Digitou no site de buscas Google a expressão “transgênicos”. A platéia pôde
Escobar e Colli: o desafio de enfrentar a guerra de informação que envolve os transgênicos
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observar que boa parte das páginas dedicadas ao assunto apresenta informações sem respaldo científico – como a suposta ligação dos transgênicos com câncer ou a hipotética interferência na ação de medicamentos. “Eu abri todos os links que aparecem na primeira página do Google. Dos dez, apenas um ou dois tinham alguma coisa, vamos dizer, imparcial. Todas as outras eram páginas de organizações ou de blogs claramente contra os transgênicos”, observou Escobar. “Dá para perceber que quem quiser se informar pela internet vai receber mais dados contra os transgênicos do que a favor. E muitas dessas informações não são verdadeiras. Eu, como profissional de um meio de comunicação sério, tenho que estar atento e tentar focar no que é fato, que tem dado científico”, disse.
Desconhecimento
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Para Escobar, uma das principais dificuldades para escrever sobre transgênicos é o desconhecimento das pessoas sobre assuntos científicos. “Você fala que tirou um gene daqui e botou um gene ali, mas isso não significa nada para 99% da população”, afirmou. Ele citou uma pesquisa de opinião feita na Itália, em que se perguntava se tomate tinha DNA. “A maioria respondeu que não, que tomate não tem DNA. Já o tomate transgênico, disseram, esse sim tinha DNA. E as pessoas não queriam comer o tomate transgênico, com medo de comer DNA. Isso mostra a ignorância das pessoas com relação aos princípios mais básicos da biologia molecular.
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E aí vêm pesquisas de opinião dizendo que tantos por cento dos brasileiros não querem transgênicos e usam isso como uma justificativa para não se aprovar.” Outra dificuldade, segundo o jornalista, é situar-se em meio à selva de informações e contra-informações sobre o assunto. “Qual é o principal argumento dos movimentos que são contra os transgênicos? Que não foram feitos estudos suficientes, não há provas de que eles sejam benéficos, há uma série de indícios de que eles possam ser maléficos, tem o risco de monopólio das empresas. Mas, quando você pergunta mais a fundo, a discussão empaca. Se forem feitos mais estudos e os resultados forem positivos, aí pode liberar? Aí, eles dizem: “Não, veja bem, nós achamos que os transgênicos não são uma boa opção”. Então não é que sejam necessários mais estudos, você é contra e ponto final. E a pessoa nunca diz isso”, disse Herton Escobar. “E o mesmo vale para as empresas. Elas fazem muita propaganda enganosa, dizem que os transgênicos vão ajudar a acabar com a fome no mundo, vão tirar os pequenos agricultores da pobreza. O fato é que a empresa desenvolveu uma tecnologia e quer lançá-la para ganhar dinheiro.” Em sua experiência cobrindo o assunto, Escobar surpreendeu-se com a reação que enfrentou por exercitar um princípio do jornalismo, que é ouvir os dois lados da história. “Na maioria das reportagens sobre transgênicos apenas os ambientalistas eram ouvidos. Nin-
guém ouvia as empresas criticadas. Como eu resolvi ouvir as empresas, enfrentei insinuações em blogs e emails de jornalistas da área ambiental sobre a isenção do jornal em que trabalho. Acho isso um absurdo, porque parece que um lado é o dono da verdade e o outro lado está sempre mentindo”, afirmou. Da platéia surgiram perguntas sobre a existência de estudos que apontam problemas nos transgênicos.O jornalista Herton Escobar fez uma comparação com as pesquisas sobre o aquecimento global. “Uma vasta maioria dos cientistas acredita que o aquecimento global está sendo causado pela ação do homem, mas também tem os chamados céticos, que formam um grupo pequeno. Eles acham que o fenômeno é natural. O que eu faço como jornalista? Bom, existe o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, que fez revisões gigantescas da literatura científica e concluiu ser muito provável que o aquecimento seja causado pela ação do homem”, disse Escobar. “O jornalista não deve deixar de reportarse ao que dizem os céticos, mas deve esclarecer que a maioria não concorda com eles. Nos transgênicos é a mesma coisa. A grande maioria da literatura científica aprova os transgênicos, a ONU aprova, a Organização Mundial da Saúde aprova. Mas, se um cientista apresentar um estudo bem embasado mostrando problemas com os transgênicos, não tenho nenhum problema em reportar isso.” O professor Colli respondeu a indagações sobre a viabilidade de ampliar a quantidade de estudos, como os de impacto ambiental, a fim de reduzir os temores sobre o surgimento de eventuais efeitos colaterais dos transgênicos não captados pelas pesquisas experimentais. “Se você vai construir uma represa, sabe exatamente qual será a área alagada, os bichos e as árvores atingidos. Então é possível fazer uma avaliação do que vai ocorrer. Mas com planta não tem isso. Para fazer um estudo de impacto ambiental, seria preciso plantar uma grande extensão e ver o que acontece – mas aí você já plantou. Por isso, o que se faz são experimentos controlados em terrenos menores.” ■
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Niède Guidon Arqueóloga diz que o Homo sapiens já estava no Piauí há 100 mil anos Marcos Pivetta
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era muito menor e havia muito mais ilhas”, disse Niède, hoje com 75 anos, na palestra que fez no dia 11 de maio no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, para a programação cultural da exposição científica Revolução genômica. As teses de Niède se chocam com a arqueologia mais tradicional, dominada pela visão dos norte-americanos, que situam a chegada do homem nas Américas há cerca de 13 mil anos, vindo da Ásia via estreito de Bering.
Niède Guidon: homem saiu da África e chegou ao Piauí por via marítima, atravessando o Atlântico de ilha em ilha
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Em 1973, a brasileira Niède Guidon, então pesquisadora do Centre National de La Recherche Scientifique (CNRS) em Paris, era assistente da grande arqueóloga francesa Annete Emperaire, que procurava vestígios do homem mais antigo das Américas. Annete já havia estado na Patagônia e, em solo brasileiro, seu maior interesse era a região de Lagoa Santa, nos arredores de Belo Horizonte, onde se acreditava estarem os resquícios mais antigos de ocupação humana em terras nacionais. “Detesto essa pesquisa para ver quem é o mais antigo. Gosto do Piauí por causa das pinturas (rupestres), que são muito bonitas”, disse então Niède a Annete. “Preparo tudo para você ir a Lagoa Santa, mas vou para o Piauí.” Foi e nunca mais saiu da região de São Raimundo Nonato, no sudeste do estado. Para sua surpresa, além de incontáveis manifestações de arte pré-histórica em mais de mil sítios arqueológicos descobertos, deparou – que ironia – justamente com o que dizia tanto odiar: indícios de presença humana no Nordeste muito mais antigos do que jamais alguém esperaria achar. Segundo Niède, o material arqueológico resgatado até agora no Piauí – alvo de controvérsias entre os estudiosos – indica que o homem chegou à região há cerca de 100 mil anos. A pesquisadora acredita que o Homo sapiens deve ter vindo da África por via oceânica, atravessando o Atlântico. Houve uma grande seca na África e o homem teria ido para o mar procurar comida. Tempestades o empurraram oceano adentro. “O mar estava então 140 metros abaixo do nível de hoje, a distância entre a África e a América
Em sua apresentação, Niède fez um resumo dos 36 anos dos trabalhos científicos e de preservação cultural e ambiental desenvolvidos no Parque Nacional Serra da Capivara, criado em 1979 e considerado patrimônio cultural da humanidade pela Unesco. Começou falando da localização geográfica do parque, que compreende uma área de 129 mil hectares administrada pela Fundação Museu do Homem Americano (Fundham), entidade criada (em 1986) e presidida até hoje por Niède. O parque é vizinho de outro, de nome auto-explicativo, que fica à sua direita, o Parque Nacional da Serra das Confusões, com área de 516 mil hectares. “Na realidade, sempre quisemos que a serra da Capivara e a serra das Confusões formassem um só parque”, afirmou. A idéia não vingou devido à cobiça de políticos e grandes empresários que conseguiram doações, desmataram uma parte da região e separaram os dois parques, segundo a arqueóloga.
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Antes de assentamentos de semterra terem tomado o entorno do Parque Nacional Serra da Capivara, havia um corredor natural que permitia a passagem de animais de um parque a outro. Mais úmida do que a serra da Capivara, a serra das Confusões atraía os bichos na época de seca. Os animais migravam e, com a volta da estação das águas, retornavam à serra da Capivara. “Até brincávamos que os animais recebiam um telegrama avisando que choveu na Capivara”, comentou Niède. Com o desmembramento total dos dois parques, as movimentações da fauna local se tornaram complicadas e perigosas. “Se saem do parque (serra da Capivara), os animais morrem”, sentenciou. Para matar a sede dos bichos na estiagem, a Fundham fez uma série de reservatórios para captar água da chuva. Até comida foi necessário dar aos bichos nos 2 últimos anos de seca mais acentuada. “Estamos em negociação com o governo federal para ver a possibilidade de estabelecer um corredor entre os dois parques”, disse.
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Entre dois biomas A chuva, que faz o verde brotar numa paisagem normalmente associada a tons de marrom, é de suma importância para o equilíbrio da serra da Capivara, dominada por vegetação de caatinga. “Já passei até 6 anos sem ver chuva”, contou a arqueóloga. “Acho temerário fazer assentamento de sem-terra, que quer plantar comida, num local onde pode ficar tanto tempo sem chover.” Niède não é contra os semterra, que vivem em casas minúsculas, sem reboque, rodeadas de lixo, “favelas na zona rural” nas palavras da arqueóloga. Apenas acha que eles deveriam se dedicar a plantar flores ornamentais e certos tipos de cactos, que têm alto valor comercial no mercado, em vez de desmatar para cultivar alimentos. A arqueóloga explicou que a região, dona de belos cânions, é uma fronteira entre duas formações geológicas brasileiras, um planalto do permiano-devoniano e a planície do São Francisco, que é do pré-cambriano. “Nossas pesquisas demonstraram que, há 10 ou 9 mil anos, nessa região se dava
o contato entre dois biomas: a Floresta Amazônica e a Mata Atlântica”, explicou. “Até hoje, nas regiões mais protegidas do parque, mais úmidas, temos espécies animais e vegetais desses dois biomas.” A fauna da serra da Capivara, que voltou a ser alvo de caçadores devido à redução no número de funcionários do parque (de 270 empregados em 2004 para os atuais 84), costuma ser ofuscada pelas espetaculares pinturas rupestres e sítios arqueológicos da região. Mas não lhe faltam encantos. “A Caatinga, ao contrário do que se diz, tem uma biodiversidade muito grande”, afirmou Niède. Há muitos anfíbios, cobras e, segundo um estudo da Universidade de Brasília (UnB), a densidade de felinos na unidade de conservação é maior do que na Mata Atlântica. “Descobriram 60 onças no parque”, disse. Os macacospregos rendem uma história à parte. A arqueóloga contou que eles são tão habilidosos que, em alguns sítios pré-históricos, os arqueólogos encontram ferramentas feitas pelos símios e pensam que esses
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Pinturas rupestres da serra da Capivara: região tem mais de mil sítios arqueológicos
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artefatos foram talhados por mãos humanas. “Nossos macaquinhos são muito inteligentes e enganam até os arqueólogos”, comentou. Os cortes nas verbas federais, que obrigaram à demissão de muitos funcionários, deixam todo o patrimônio natural do parque à mercê de uma exploração sem limites. “Algumas espécies desapareceram totalmente e os caçadores ultimamente estão ganhando a parada”, comentou Niède, que precisa de meros R$ 400 mil reais por mês para tocar o parque com o número adequado de funcionários. “Quando comecei a trabalhar na região, não andava 10 minutos sem ver um tamanduá-bandeira. Hoje, em toda a área do parque, temos somente três.” Também faltam especialistas para estudar alguns animais da serra da Capivara, como os insetos. No caso dos fungos, que muita gente julgava inexistentes na Caatinga, uma pesquisadora está se dedicando ao seu estudo. Fungos exuberantes, com até 80 centímetros de diâmetro, já foram encontrados na região. Na área de botânica, várias espécies novas foram descobertas, inclusive de árvores com mais de 8 metros de altura.
Os sítios arqueológicos A essa altura da palestra, Niède se pôs a falar do que tornou a serra da Capivara conhecida internacionalmente: seus sítios arqueológicos, com possíveis implicações para a história da colonização das Américas. Em 1973, durante a primeira missão franco-brasileira, da qual também fazia parte a pesquisadora Silvia Maranca, da Universidade de São Paulo (USP), não havia estra-
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das ou coisa alguma no que hoje é o parque. “Tínhamos de andar, às vezes, 50 quilômetros carregando tudo”, disse a arqueóloga. Até urnas funerárias. A população local ajudava os pesquisadores e indicava onde estavam as pinturas rupestres, como as do sítio da Pedra Furada, o mais antigo do parque e um de seus cartões-postais. “Na primeira vez que fui ao Piauí descobri 55 sítios com pinturas”, lembrou. Naquela época, Niède ainda trabalhava em tempo integral na França e só ia ao Piauí nas férias. Naquele tempo, todos os pesquisadores diziam que não havia material arqueológico muito antigo no Nordeste, uma região seca e desfavorável à presença humana. Niède teve uma grande surpresa quando saiu o resultado de uma datação feita na França que estimou em 18 mil anos a idade de um carvão (resquício possivelmente de uma fogueira humana) encontrado em Pedra Furada. “Chamei o laboratório e disse: ‘Vocês misturaram os carvões. Nessa região não tem nada antigo’. Aí a chefe do laboratório me respondeu: ‘A datação é do seu carvão. Volte lá e amplie sua pesquisa porque tem alguma coisa diferente ali’’’, relembrou Niède. Nos 10 anos seguintes, a equipe da arqueóloga escavou 750 m² até bater na rocha de base, a quase 8 metros de profundidade. Niède mostrou à platéia imagens ampliadas até 500 vezes por microscopia eletrônica de um artefato em pedra lascada que teria sido feito pelo homem há 100 mil anos. A peça tem marcas que indicam seu uso em dois sentidos, um na transversal e outro na vertical. Alguns estudiosos,
no entanto, não atribuem essas diminutas ranhuras ao manuseio humano, crítica que a arqueóloga brasileira considera descabida. Niède disse que o aparecimento de material feito em pedra polida e da cerâmica na serra da Capivara se deu há cerca de 9 mil anos. “A cerâmica aparece lá no mesmo momento em que é criada no Oriente Próximo e na África”, explicou. Nesse ponto da palestra, Niède fez uma revelação, ainda não publicada em trabalhos científicos: uma das pinturas do parque pode ser a mais antiga do mundo, com 34 mil anos, segundo datações preliminares feitas no Brasil e na França. Ela mostrou uma das pinturas que faz parte do lote das mais antigas. “Esses buracos nas figuras são de tiros de espingarda de caçadores”, comentou. Grande parte das pinturas da serra da Capivara contém representações de animais em movimento, sobretudo de capivaras (animal que dá nome ao parque, embora não exista na região desde antes da chegada de Niède) e de veados. Desenhos de figuras humanas também não são raridades. “Vemos humanos muito expressivos, em atos do dia-a-dia”, exemplificou. “Temos muitas representações sexuais, de parto, de danças. É uma verdadeira história em quadrinhos gravada na pedra.” Às vezes, sinais geométricos ou mãos usadas como carimbo aparecem nas pinturas. Niède está convencida de que o homem pré-histórico se espalhava por uma região muito maior do que a serra da Capivara. Há 2 anos, pesquisadores da Fundham passaram 15 dias na serra das Confusões e encontraram 120 sítios arqueológicos.
Paisagens, fauna, flora e habitantes da serra da Capivara: cenários turísticos
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“Uma quantidade absurdamente fantástica”, comentou Niède. “No total (somando Capivara e Confusões) temos hoje mais de 1.300 sítios.” Segundo a arqueóloga, as antigas populações de caçadores e coletores tinham poucos membros e não teriam como ter ocupado uma área tão grande se tivessem chegado ali há apenas 15 mil anos. “Já descobrimos o que chamamos de oficina lítica, um lugar onde eles buscavam matéria-prima e trabalhavam”, contou. No local os cientistas encontraram 80 mil peças. Visitar a serra da Capivara requer paciência e determinação. A cidade mais próxima do parque servida por aeroporto é a pernambucana Petrolina, distante 300 quilômetros. Há mais de 1 década, foi feito um estudo internacional mostrando que a grande vocação econômica da serra da Capivara é o turismo. “Em 1996, o governo federal criou por lei um aeroporto internacional e, em 1998, foram liberados US$ 15 milhões para a construção da obra. Como em Teresina faz muito calor, o dinheiro chegou de Brasília e derreteu todinho”, disse Niède. “O aeroporto começou a ser construído no ano passado. Essa corrupção terrível parece ser a regra.” Dentro do parque há uma boa estrutura para fazer pesquisa ou turismo. A unidade de conservação conta com 400 quilômetros de estradas e dispõe de passarelas que facilitam o trabalho de preservação e o acesso dos turistas a pinturas situadas em locais elevados. Ali a Fundham, que também promove atividades de cunho social para os moradores da região, mantém um museu. Sua coleção de fósseis paleontológicos e arqueológicos soma mais de 1 milhão de peças, como um cristal de quartzo de 9.800 anos e uma flauta de madeira de 1.300 anos, a única da arqueologia nacional. A fundação mantém centros de geoprocessamento e de documentação e laboratórios para análise de material lítico, de cerâmica, de vestígios paleontológicos e biológicos. As pesquisas nos sítios pré-históricos do Piauí levaram a arqueóloga a defender idéias polêmicas, mas instigantes sobre a evolução humana. “Estamos demonstrando
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que o homem, em um determinado momento, começa a inventar as mesmas tecnologias, seja aqui, seja na Europa, na Ásia ou na África”, comentou. “Não podemos esquecer que o Homo sapiens apareceu na África por volta de 130 mil anos, período em que esse continente passou por uma seca muito grande, que quase dizimou integralmente nossa espécie. Foi aí que eles começaram a migrar.” Por mar, onde foram buscar alimento, diz Niède. Empurrados por tempestades, parando de ilha em ilha, numa época em que África e América estavam mais próximas, os primeiros humanos se espalharam pelo globo. Essa é a hipótese de Niède. A descoberta de vestígios muito antigos do
Homo erectus – hominídeo extinto que é um dos antepassados do Homo sapiens – no México e na Ilha das Flores, na Indonésia, indica que a navegação é mais antiga do que se pensa, segundo a arqueóloga. Uma das dificuldades dos pesquisadores é datar as ossadas humanas encontradas na serra da Capivara. Quase não há matéria orgânica nos esqueletos, um entrave para a datação por carbono 14. Novos métodos de análise, no entanto, podem em breve contornar esse obstáculo. “Paleontólogos que trabalham no Acre descobriram macacos que passaram da África para o Brasil há 20 milhões de anos”, disse. “Se os macacos passaram, será que o Homo sapiens não foi capaz de passar?” ■
Carlos Alfredo Joly Levantamento da biodiversidade paulista transcende universidades e chega à prática Maria Guimarães
Com a maturidade conquistada em 8 anos de atividade, um levantamento de biodiversidade hoje informa políticas de conservação e busca compostos biológicos para a indústria farmacêutica. “Um dia seremos auto-sustentáveis com os recursos que ganharemos comercializando fármacos”, apostou Carlos Joly no dia 27 de abril, durante balanço das realizações do programa Biota-FAPESP. Principal nome por trás do Biota e chefe do Departamento de Botânica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Joly idealizou e até 2004 coordenou o programa que aproximou pesquisadores de todo o estado de São Paulo para produzir inventários da fauna e flora dos ambientes aquáticos e terrestres – levantamentos cada vez mais urgentes diante das extinções que vêm dizimando uma biodiversida-
de preciosa também por motivos práticos – como fonte de novos fármacos, cosméticos, defensivos agrícolas e alimentos. “Acho fundamental voltarmos no tempo e entendermos por que a biodiversidade é tão importante e exuberante no Brasil e, particularmente, no estado de São Paulo”, afirmou o botânico. A volta no tempo não foi modesta: 200 milhões de anos, quando América do Sul, África, Índia, Austrália e Antártida eram um único continente. Há 65 milhões de anos os dinossauros já encontraram uma América do Sul isolada, e surgiram os mamíferos que acabaram por dominar a fauna de vertebrados. No estado de São Paulo, “há mais ou menos 15 mil anos teríamos florestas ao longo da serra do Mar, depois teríamos florestas ao longo das cuestas [relevo semelhante a chapadas encontrado em Botucatu], por cau-
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sa da umidade dessas regiões. No resto do estado teríamos áreas de caatinga em boa parte do litoral e savana no interior”, descreveu. Mas segundo Joly ainda não se sabe como esses ecossistemas se alteraram ao longo do tempo. “De qualquer forma, os limites dos ecossistemas já foram muito diferentes e isso, certamente, afetou o processo de formação de espécies.” O desaparecimento das espécies – não só sua formação – sofreu influência desses processos de expansão e redução dos ecossistemas. Quando temperaturas e umidade subiram e as florestas voltaram a se estender por áreas de cerrado, animais como a preguiça-gigante e o tatu-gigante, que dependiam de vegetação de savana típica do Cerrado, acabaram extintos. Esse processo sofreu também com a influência do homem, que nessa época se instalava no continente americano com lanças e técnicas de caça. O projeto Biota se concentrou no estado de São Paulo, mas não só o financiamento da FAPESP justifica esse foco. “É uma região particularmente rica em biodiversidade porque, além de toda essa história, ela é o limite sul das áreas de cerrado, o limite norte da floresta de araucária, tem uma extensa floresta densa ao longo do litoral e uma floresta estacional semidecídua no interior. Há muitas áreas de contato entre essas formações”, explicou Joly. “Em cima disso, a geomorfologia – a planície costeira, o planalto atlântico, a depressão periférica, a zona de cuestas e o planalto ocidental – cria diferentes tipos de hábitat, de condições para o aparecimento e a manutenção de espécies.” Na história mais recente, a mudança na cobertura natural do estado foi drástica, não mais devido a processos naturais. “Se juntarmos toda a história evolutiva com a história da ocupação de São Paulo, veremos que o estado tinha 85% da sua área cobertos por florestas e entre 13% e 14% cobertos por cerrado.” A floresta começou a ser cortada mais intensamente a partir do início do século XIX, com a entrada do café que gradativamente ocupou as áreas florestais.
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MARCIA MINILLO
Riqueza paulista
“Um dia seremos autosustentáveis com os recursos que ganharemos com fármacos”
“Com o plantio de cana entre 1970 e 2000, destruímos 98% do Cerrado paulista.” O ecossistema já quase não existia quando, em 1995, a Secretaria do Meio Ambiente do estado criou o Probio, para conservação da biodiversidade, e o Proclima, voltado para mudanças climáticas. Nesse ano, um workshop reuniu pesquisadores, técnicos da Secretaria do Meio Ambiente, representantes da indústria, das Cooperativas de Cana e do Movimento dos Sem Terra – atores da ocupação do Cerrado. O produto final foi um mapa definindo áreas que deveriam ser preservadas. “Em 1996 também foi produzida a lista oficial das espécies ameaçadas do estado de São Paulo, mas chegamos a um impasse, pois conseguimos transformar informação
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científica em legislação, mas não conseguimos envolver os pesquisadores na geração de mais conhecimento”, contou. “Não se coloca sua linha de pesquisa ou alunos que fazem mestrado e doutorado em algo que depende de vontade política, pois o secretário muda, mudam as políticas e não se consegue terminar o que foi iniciado.” Veio daí a idéia de criar um programa de pesquisa em conservação da biodiversidade – proposta de Joly que não foi de imediato acatada pela FAPESP. Era preciso provar que a idéia representava mais do que a mania de grandeza de poucos. José Fernando Perez, então diretor científico da FAPESP, convocou uma reunião com cerca de cem pesquisadores em biodiversidade. “O grupo foi unânime em dizer que aquilo era importante e que valeria a pena investir num programa especial de pesquisa.” Desde o início, Joly e sua equipe definiram que os dados levantados pelos grupos associados estariam disponíveis para a comunidade científica e a sociedade na internet. “Em 1997 fizemos um workshop com 120 pessoas em Serra Negra. Todos que participaram ainda pensam em entrar com ação contra o organizador porque eu tranquei todos no hotel, confisquei a chave dos carros e disse, ‘Não se sai daqui enquanto o programa não estiver definido’”, relembrou divertido. Logo de início, ao reunir o conhecimento que existia mas estava disperso em publicações menores e em arquivos pessoais de pesquisadores, a iniciativa resultou em sete livros publicados que cobriam todo o espectro da diversidade biológica e sobre as Unidades de Conservação do estado. Assim, o Biota foi concebido, estruturado e planejado pela comunidade científica que depois elaborou projetos de levantamento da fauna e flora de São Paulo. Tudo isso com o cuidado de definir biodiversidade de maneira a acomodar pesquisadores que se embrenham no mato em busca de plantas ou bichos, que passam seus dias em laboratórios e diante do computador para classificar a diversidade biológica, que estudem ecologia da paisagem, que delimitam áreas de
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conservação e os que procuram incluir populações humanas que fazem uso tradicional do ambiente. “Não estamos interessados apenas em catalogar as espécies, mas nos processos e na manutenção desses processos, em sistematizar as informações para que elas também possam ser usadas por aqueles que tomam decisões políticas.”
Mão na massa Aprovado o programa, a primeira dificuldade foi padronizar as coletas e o armazenamento dos dados – fazer com que alguém que trabalhe com microorganismos adote o mesmo protocolo de coleta usado para aves ou com plantas. Com esse intuito, pesquisadores das diversas especialidades elaboraram um formulário único para todos. Outro problema: os mapas detalhados mais recentes eram de 1972. “Em 1972, o Tietê era um rio, hoje ele é uma seqüência de barragens; Campinas, que hoje tem 1,2 milhão habitantes, tinha 450 mil habitantes; não existia a Bandeirantes nem a Imigrantes. Tudo mudou de lá para cá, inclusive, logicamente, o que sobrou de vegetação nativa.” Em parceria com a equipe de Francisco Kronka, do Instituto Florestal, o grupo do Biota partiu de mapas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, que atualizaram com fotografias do satélite Landsat. O mapa que resultou foi inserido na internet, com todos os 696 municípios de São Paulo – que até 1904 eram 13 – demarcados. No site www.biota.org.br hoje é possível buscar informações no Atlas de espécies, consultar a revista Biota Neotropica ou o banco de dados. “Temos um sistema que não exige máquinas de grande porte, com alimentação on-line, acesso público e, principalmente, montado para ser conectado com outras iniciativas no Brasil e no exterior”, comemora o pai do programa. Com isso, a situação periclitante do Cerrado, por exemplo, agora é conhecida: sobraram 8.500 fragmentos, mas apenas 10 com mais de 1.000 hectares. “Mil hectares é o tamanho mínimo para manter um casal de lobos-guará. Então, não temos mais área de Cerrado que comporte fauna de grande porte.”
O programa ultrapassou as fronteiras iniciais. Um filhote é o projeto Species Link, que integra coleções biológicas de diferentes instituições de ensino e pesquisa. “Ele começou integrando 35 coleções no estado de São Paulo, depois se conectou ao Rio de Janeiro e ganhou vida própria. Hoje ele é financiado por agências nacionais e internacionais e reúne 135 coleções com 2,4 milhões de registros.” Outro é a revista científica Biota Neotropica, indexada internacionalmente. “Publicamos artigos, inventários, revisões temáticas, chaves de identificação, revisões taxonômicas e notas; os trabalhos são publicados em português, espanhol e inglês. Ela deixou de ser uma revista do programa, é nacional.” O programa Biota deu também origem ao Bioprospecta, uma rede para identificação de plantas e animais que possam gerar novos produtos como fármacos, cosméticos ou defensivos agrícolas. Joly defende que o Brasil detenha a patente desses princípios ativos e faça parcerias com multinacionais para desenvolver os produtos. “A diferença é garantirmos que o uso comercial retorne em recursos para o Brasil.” Outro objetivo é que uma parte dos rendimentos seja revertida para conservação do ecossistema onde a espécie ocorre e para programas de pesquisa como o Biota. E o objetivo principal do programa parece próximo de se realizar. Uma parceria com a Secretaria do Meio Ambiente, o Instituto Florestal, a Fundação Florestal e a Conservation International definiu áreas prioritárias para conservação. “Na região noroeste do estado de São Paulo, por exemplo, se tivermos um projeto de recuperação de matas ao longo dos rios, conseguiremos reconectar fragmentos de florestas e de cerrado que sobraram. Ali usaremos os modelos que já existem para replantar vegetação nativa.” Em março deste ano o mapa produzido pelo Biota foi adotado pela Secretaria do Meio Ambiente para guiar políticas de conservação. “De fato, a informação científica trabalhada ao longo desses 8 anos se transformou em política do estado de São Paulo para conservação e restauração da biodiversidade”, comemorou. ■
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Psicanalista e neurocientista debatem sobre o diálogo hoje possível entre os seus campos de conhecimento Mariluce Moura
Se a medicina, a neurologia e a psiquiatria do século XIX constituíram o solo original da teoria freudiana, Sigmund Freud teve que, serena e incisivamente, operar uma ruptura radical em relação a essa origem – a esse pai, poderíamos dizer – para desenvolver, de fato, a psicanálise, seus princípios fundamentais, postulados e propostas terapêuticas e, nesse movimento, inventar um campo próprio de conhecimento. Tão fecundo, aliás, que aos poucos sua produção extravasou completamente o âmbito clínico, se difundiu de forma espantosa e penetrou a cultura ocidental com tamanha força que a linguagem cotidiana e até a noção de sujeito, para certa exasperação dos filósofos, viram-se cada vez mais carregadas das visões freudianas do inconsciente ao longo do século XX. Em paralelo, medicina, psiquiatria e neurologia seguiram seus próprios cursos, ignorando essa espécie de filha espúria que não cabia no
campo científico tradicional. Nada é tão simples, entretanto, na história real da evolução do conhecimento – não se trata de algo comparável à decisão de duas pessoas que cortam relações pessoais porque simplesmente não se bicam. E tanto é assim que com os enormes avanços da neurociência nas últimas décadas, a par de um aparente cansaço de alguns postulados originais de Freud, seguidamente reinterpretados por novos pensadores da psicanálise, muitas vezes em sério confronto teórico, alguns contatos timidamente começaram a se insinuar entre os dois lados. Não foi difícil caminhar daí até a indagação, por exemplo, quanto à possibilidade real de imagens do funcionamento do cérebro de uma pessoa no momento em que sonha, flagradas com precisão crescente graças às tecnologias que fazem parte do arsenal da neurociência contemporânea, darem fundamento biológico e suporte científico stricto sensu às noções de Freud sobre o papel dos
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Mario Eduardo Pereira e Sidarta Ribeiro
sonhos na vida do indivíduo – basilares em seu pensamento. E, por fim, avançar até a interrogação sobre as possibilidades de um encontro produtivo entre neurociência e psicanálise em benefício de mais uma visão nova e rica a respeito do que é especificamente ser humano – essa questão jamais esgotada – na confluência incontornável entre o biológico e o cultural. E em benefício também, para ficar no terreno da prática, de tratamentos mais eficazes das tantas neuroses, desordens, síndromes, transtornos e – por que não? – doenças mentais, enfim, que afligem homens e mulheres do século XXI. Impossível não é. Mas a julgar pelo debate dos “Novos fundamentos neurológicos para a teoria freudiana”, comandado pelo neurocientista Sidarta Ribeiro, 37 anos, e pelo psiquiatra e psicanalista Mario Eduardo Costa Pereira, 48 anos, na tarde do sábado, 17 de maio, no Pavilhão Armando de Arruda Pereira, Parque do Ibirapuera, dentro da programação cultural da exposição Revolução genômica, as possibilidades efetivas de um tal encontro não parecem exatamente fáceis no curto prazo. Até porque psicanálise e neurociência são ambas campos de conhecimento autônomos, com objetos, métodos e linguagens bem diversos, um aparentemente mais confortável hoje entre as humanidades e o outro solidamente plantado na área das ciências biomédicas, e não há nenhum desejo manifesto
Sidarta Ribeiro e Mario Eduardo Costa Pereira: diálogo em vez de confronto
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REPRODUÇÃO DO LIVRO RAFFAELLO - L’OPERA PITTORICA, DE KONRAD OBERHUBER
Afresco de Rafael: Escola de Atenas, no palácio do Vaticano
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dos seus especialistas de ver um absorvido pelo outro. Na verdade, Sidarta Ribeiro, diretor científico do Instituto Internacional de Neurociência de Natal Edmond e Lily Safra, detalhou durante o debate determinadas experiências recentes no campo da neurociência que, em sua visão, dão suporte a cinco proposições centrais de A interpretação dos sonhos, a bela pedra fundamental do edifício freudiano. E Mario Eduardo Costa Pereira, livre-docente do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador do Serviço de Psicanálise do Hospital das Clínicas da mesma universidade, depois de resumir as idéias de Freud sobre a questão da hereditariedade, procurou mostrar em que dimensão o criador da psicanálise faz um debate com os temas da genética psiquiátrica contemporânea. Em seu entendimento, Freud em nenhum momento da construção de sua teoria e de sua proposta terapêutica descartou os elementos biológicos, de tal modo que situou mesmo a hereditariedade entre as precondições da neurose. Entretanto, observou, questão crucial em Freud, que é a tomada de posição do sujeito, jamais se resolveria no campo do ex-
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perimento genético, mas só no campo da clínica e da escuta. Sidarta, na defesa de que proposições essenciais de Freud são passíveis de demonstração neurofisiológica, referiu-se, por exemplo, a um experimento publicado em 2003, controlado por ressonância magnética funcional, em que se submetiam imagens embaralhadas ao olho dominante de um paciente e imagens claras de um objeto ao olho não dominante durante frações de segundo, e em seguida fundiam-se as imagens, obtendo algo embaralhado com um objeto no meio, e o resultado era que o paciente não tomava consciência de que vira o objeto. “O experimento se vale de um fenômeno chamado rivalidade binocular. É uma maneira de você fazer uma estimulação sensorial invisível. O objeto está lá, mas a pessoa não tem consciência dele”, explicou enquanto exibia as imagens. Em seguida ele mostrou imagens de ativação de duas regiões cerebrais visuais com funções diferentes, uma chamada via dorsal e a outra via ventral. “A dorsal é uma via mais ativada por movimentos e quando se apresenta a alguém objetos fixos, por exemplo, faces e ferramentas, ela tem uma preferência pelas últimas. Acreditamos que é porque ferra-
mentas têm implícito nelas o movimento, o uso. Já a via ventral é mais ativada por faces.” O experimento a que ele se referia incluiu, assim, estímulos por frações mínimas de segundo, em que a imagem do objeto apresentada dentro da imagem embaralhada era uma ferramenta, primeiro, e depois uma face. “Do ponto de vista da consciência, a pessoa está sempre vendo uma imagem embaralhada, não tem consciência de que está vendo faces ou ferramentas. Mas qual é o resultado da ressonância?”, ele indaga e mostra um novo slide com barras pretas e cinzas ao público: “Na via dorsal, as barras cinzentas são para a situação visível e as barras negras para a invisível, quando o olho dominante está com a imagem embaralhada. O que vocês estão vendo é o seguinte: para faces, tem muito pouca ativação quando se utiliza a condição invisível, que são as barras pretas bem baixinhas. E tem bastante ativação para faces quando você utiliza a condição visível. Quando se utilizam as ferramentas, o que acontece? A visível cresce um tanto, mas também tem muita ativação na condição invisível”. A pergunta é então: “Isso significa o quê? Que embora a pessoa não tenha a menor consciência do que está vendo, o córtex visual dorsal dela sabe que aquilo é uma ferramenta e não uma face”. Para Sidarta Ribeiro, esse é “um exemplo concreto, mensurável, quantitativo, de um processamento inconsciente. No caso, um processamento sensorial inconsciente. Você pode perceber que o cérebro tem a informação, mas o ego consciente não tem a informação”. O pesquisador acrescenta para a platéia atenta: “Imagino que é o tipo de experimento que Freud faria se tivesse acesso à ressonância magnética funcional em sua época”.
A posição do sujeito Em sua fala, que intitulou “Freud e a genética psiquiátrica”, Pereira começou por situar o médico Freud, formado na Faculdade de Medicina da Universidade de Viena, e que estudou “na maior parte do tempo junto com o grupo de Ernest Bruck, ou seja, um dos representantes da escola fisicalista da fisiologia em Viena”. Era um pesquisador de ban-
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rio Eduardo Pereira ressaltou que Freud comparou a ação da hereditariedade “ao multiplicador num circuito elétrico, que exagera o desvio visível da agulha, mas não pode determinar a sua direção”. E observou então que um dos pontos centrais do debate entre genética e psicanálise, muitas décadas depois, será a questão da posição do sujeito. “A questão é se ele é o responsável por suas ações ou se utilizará a genética como uma espécie de grande álibi biológico em que o sujeito padece de uma herança.” Nesse ponto Pereira deixou Freud um pouco à margem, para abordar a crise em que se abismou a psiquiatria dos anos 1950 aos 1980. Foram quatro, segundo ele, os fatores principais dessa crise profunda. Primeiro, dado que a psicanálise passara a ocupar um papel cada vez mais importante na psiquiatria, as concepções sociológicas, comunitárias, o papel central da figura do médico começaram a perder poder. Em segundo lugar, a psiquiatria não tinha uma boa eficácia terapêutica: os primeiros medicamentos funcionavam com muitos efeitos colaterais e o tratamento mirava só os sintomas, ainda que tenham permitido uma revolução no campo do tratamento das psicoses e a redução drástica das internações. Também os diagnósticos psiquiátricos não eram confiá-
veis, “e vários estudos mostraram que diferentes países e culturas atribuíam a mesma nomenclatura para fenômenos muito diversos”. E, por fim, a própria definição de doença mental entrou em crise. Pereira lembrou aí a figura de Kurt Schneider, que na década de 1950 propõe que doença mental é uma contradição em termos, porque se algo é doença, não é mental, idéia que Thomas Szasz, hoje vivo ainda, leva às últimas conseqüências ao argumentar que os critérios de definição de doenças mentais são éticos e sociais e não médicos. “Ou seja, para ele trata-se de uma má metáfora, mas com conseqüências práticas e políticas muito intensas. Não podemos utilizar a noção de doença mental impunemente.” É a partir de então que entra em cena a expressão mental disorder. “O termo mental disorder passará a designar um instrumental de natureza pragmática, prática. Nós, sociedade civil organizada, vamos deliberar que fenômenos desejamos ou não que a psiquiatria aborde com uma visão médica, vamos estabelecer critérios objetiváveis para identificar esses fenômenos, vamos colocar um rótulo nesse grupo de critérios e isso vai ser uma disorder. Ou seja, não tem qualquer caráter ontológico, não tem qualquer caráter substancial, é um instrumento prático para intervir psiquiatrica-
MARCIA MINILLO
cada que depois se dedicou à pesquisa neuropatológica. Lembrou que num texto de 1896, “A hereditariedade na etiologia das neuroses”, Freud afirmava que “a opinião sobre o papel etiológico da hereditariedade das doenças nervosas deve decididamente basear-se num exame estatístico imparcial e não em petições de princípio”. Ou seja, nem no início nem em momento algum de sua obra, disse Pereira, “Freud descartou a participação dos elementos biológicos na necessidade da descrição dos fatos anímicos que pretendia descrever”. Falava evidentemente não de uma hereditariedade genética tal como é pensada hoje, mas dentro de uma tradição francesa segundo a qual “aquilo que, num certo grupo humano, se inscrevesse como desvio, como tara, como algo maléfico, inclusive do ponto de vista moral, se transmitiria de geração para geração. Freud também não pensava na herança num contexto darwinista, “tinha da transmissão uma concepção lamarckista, ou seja, a idéia de que certos elementos importantes para a espécie que pudessem ser assimilados em dado momento histórico se transmitiriam de geração a geração”. E Jean-Martin Charcot, o grande nome nos estudos da histeria, com quem Freud foi estudar em Paris, queria demonstrar que essa era uma doença neurológica como as outras, cujo elemento principal seriam “as famílias neuropáticas”, enquanto os demais fatores etiológicos não passariam de causas incidentais. Era mais ou menos esse o panorama dominante na virada do século quando Freud entrou no debate e o retomou propondo que a hereditariedade era precondição na patogênese das grandes neuroses. “Não poderia prescindir da colaboração de causas específicas, mas a importância da predisposição hereditária estava comprovada, conforme sua visão, pelo fato de que as mesmas causas específicas agindo num indivíduo saudável não produziam efeito patológico manifesto, ao passo que numa pessoa predisposta provocavam a emergência da neurose.” Assim, “é necessário compreender a inscrição dessa herança num certo contexto, que é ao mesmo tempo simbólico, histórico e cultural”. Ma-
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mente em questões humanas concretas”, resume o pesquisador. Inumeráveis problemas vão marcar essa opção que se fortalece nos anos 1970 e Pereira lembra, a propósito, que o comportamento homossexual foi excluído da lista de transtornos psiquiátricos pelo voto, por pressão da sociedade civil, no famoso Congresso da Associação Psiquiátrica Americana em 1974. Não que a exclusão lhe pareça mal, o exemplo serve para demonstrar a crescente perda de autoridade ou de legitimidade científica do psiquiatra. A palavra desordem também abre espaço para a noção de ordem mental que jamais é explicitada. O que se consolida, na visão do pesquisador, é a vitória de Szasz, com as desordens mentais ocupando o lugar de uma categoria pragmática, operacional e intencionalmente aberta. E se assim é, se não remete a nenhum elemento propriamente ontológico substancial de doença, por que o médico se ocuparia disso? Por que se ocuparia de categorias éticomorais? “Então, nesse sentido a psiquiatria não seria uma especialidade médica e biológica, mas seria simplesmente uma instrumentalização biológica de intervenção de práticas políticas.” Ora, uma vez constatada essa contradição, “ela causa um incômodo no campo psiquiátrico que muitos psiquiatras respondem de uma maneira muito apropriada: isso que se descobre na psiquiatria simplesmente é a causa secreta de toda a medicina. Só que na psiquiatria aparece antes e mais claro”. Em meio ao enfraquecimento da psiquiatria, a genética psiquiátrica é vista como “uma espécie do farol que promete o repatriamento daquelas instâncias que foram delegadas ao conceito de disorder, ao campo da medicina dura fundada em entidades autônomas de natureza biológica”. Entretanto, por mais promessas que venham dessa fundamentação genética, o problema retorna ao ponto de partida, diz Pereira, depois de relatar uma série de histórias hipotéticas em que está sempre em jogo a tomada de posição de uma pessoa frente às circunstâncias que a desafiam, para o qual o experimento genético em nada contribui. Sidarta Ribeiro em sua fala retomou novos aspectos da vida de
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Freud, sua infância, sua relação com a família, antes de observar que o estado-da-arte em neurociência quando Freud se formou médico, para quem estava interessado no cérebro e no comportamento, era a anatomia. A fisiologia estava em seus primórdios, “o que já existia bastante no século XIX era a prática de matar um animal, retirar o seu cérebro, fixar aquele tecido, cortar bem fino e olhar no microscópio. E foi o que Freud fez por muitos anos E nesse sentido ele passou muito perto de grandes descobertas da anatomia que outros cientistas fizeram, da descoberta do neurônio, por exemplo, em 1878, mas ele estava mais interessado no tecido vivo, não no tecido morto, daí por que se orienta para estudos de fisiologia”.
Expulsão e reabsorção Sidarta Ribeiro se refere também ao estágio em Paris como o grande ponto de virada de Freud, de seu retorno a Viena, quando ela já constata que “existem de fato disfunções psicológicas que são de origem orgânica”, mas mira outras enfermidades que, embora tenham sintomas muito graves, ele crê que poderá resolver pela palavra ou pelo comportamento. Faz referência às várias fases da evolução da obra teórica e clínica de Freud, ao grande marco que é A interpretação dos sonhos. “O que acontece nesse momento”, diz,“é que ele de fato se descola da neurociência de seu tempo, da neuroanatomia, da fisiologia, e cria uma série de conceitos novos, uma teoria nova, que lhe permite falar de fenômenos que a neurociência de seu tempo não permitia”. Ribeiro detalhou para o público, com farta citação de autores, muitas passagens da vida de Freud, até sua morte no começo da guerra em 1939, para em seguida falar de duas descobertas que no pós-guerra foram vistas como fatos científicos que contribuíam para fragilizar a teoria freudiana, mas que, em sua visão, décadas depois, na verdade contribuíram para lhe dar mais suporte científico: a descoberta em 1953 do sono REM em bebês (da sigla rapid eyes movements), acompanhada da constatação de que nessa fase do sono os adultos sonhavam, e a descoberta, em 1958, das drogas
antipsicóticas, a partir do haloperidol, um antagonista do receptor dopaminérgico do tipo 2. Vários outros exemplos ligados à evolução do conhecimento neurocientífico que investem contra Freud foram examinados pelo pesquisador, até chegar aos experimentos que já nos final dos anos 1990 e neste começo de século XXI, em seu entendimento, revertem esse quadro. Além do experimento já citado que serviria de apoio à idéia de que grande parte do processamento mental é inconsciente, Sidarta Ribeiro detalhou várias outras experiências que se relacionam a quatro outras assertivas da teoria freudiana. E resumiu no final a relação entre psicanálise e neurociência nestas palavras: “A primeira frase: ‘Grande parte do processamento mental é inconsciente’. Não preciso nem reformular essa frase, é um fato que pode ser verificado empiricamente, com experimentos, separando sujeito de objeto. Próxima: ‘Pensamentos indesejados podem ser reprimidos e se tornar inconscientes’. Vamos dizer que o córtex pré-frontal controla a supressão intencional de memórias por meio da desativação do hipocampo e da amídala. Próxima: ‘Sonhos contêm restos diurnos’. Podemos dizer que os sonhos reverberam memórias em nível eletrofisiológico e molecular. Mais uma: ‘Alucinações psicóticas são semelhantes a sonhos’. Vamos dizer que a vigília, em um modelo animal de psicose, é eletrofisiologicamente similar ao sono REM por causa de um aumento de dopamina. Mais uma: ‘Sonhos satisfazem desejos e antidesejos’. Que tal ‘os sonhos concatenam fragmentos de memórias de forma a simular expectativas futuras de recompensa e punição mediadas por dopamina’? Mais uma: ‘Sonhos são conglomerados de formações psíquicas’. Isso é muito belle-époque. Que tal ‘os sonhos são conglomerados de memórias’? E mais uma: ‘Sonhos são o caminho real para o inconsciente’. Que tal ‘os sonhos permitem acessar o banco de memórias’?”. Nessa concepção, ele concluiu, “o inconsciente tem uma definição biológica clara, ele é a coleção de todas as memórias que temos e de todas as suas combinações possíveis”. ■
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Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org
Notícias Ps i c o b i o l o g i a
EDUARDO CESAR
Dependência de droga e religião O estudo “Intervenção religiosa na recuperação de dependentes de drogas”, de Zila van der Meer Sanchez e Solange Aparecida Nappo, da Universidade Federal de São Paulo, analisa intervenções religiosas para recuperação de dependentes de drogas. Foi feita pesquisa qualitativa em São Paulo (2004 e 2005), com 85 entrevistados exusuários de drogas que haviam utilizado recursos religiosos não-médicos para tratar a dependência e abstinentes há pelo menos 6 meses. Os grupos analisados eram católicos, evangélicos e espíritas. As entrevistas continham questões sobre dados sociodemográficos, religiosidade do entrevistado, história do consumo de drogas, tratamentos médicos para dependência, tratamento religioso e prevenção ao consumo pela religião. Os evangélicos foram os que mais utilizaram a religião como forma exclusiva de tratamento, apresentando repulsa ao papel do médico e ao tratamento farmacológico. Os espíritas buscaram mais apoio terapêutico à dependência de álcool, simultaneamente ao tratamento convencional, justificado pelo maior poder aquisitivo. E os católicos utilizaram mais a terapêutica religiosa exclusiva, mas relataram menos repulsa ao tratamento médico. A importância dada à oração como método ansiolítico era comum entre os três tratamentos. A confissão e o perdão – por meio da conversão ou das penitências, respectivamente para evangélicos e católicos – exercem apelo à reestruturação da vida e aumento da auto-estima. Segundo os entrevistados, o que os manteve na abstinência do consumo de drogas foi mais do que a fé religiosa. Contribuíram para isso o suporte, a pressão positiva e o acolhimento recebido no grupo, e a oferta de reestruturação da vida com o apoio dos líderes religiosos. Revista de Saúde Pública – v. 42 – nº 2 – São Paulo – abr. 2008
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Co m u n i c a ç ã o
Transformação da linguagem Jornalistas, cientistas e analistas do discurso concordam que há uma transformação da linguagem especializada do discurso científico para a linguagem não especializada no processo de
divulgação científica para o público leigo. Consideram essa transformação como recodificação, reformulação, formulação de um novo discurso ou, no caso específico do jornalismo científico, textualização jornalística do discurso científico. Com o apoio da linha francesa da Análise do Discurso, o trabalho “Do científico ao jornalístico: análise comparativa de discursos sobre saúde”, de Rodrigo Bastos Cunha, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), faz uma análise comparativa de dois discursos jornalísticos envolvendo questões de saúde pública, da seção de notícias da revista eletrônica ComCiência, em relação aos respectivos discursos científicos que serviram de fonte para elaboração das notícias. Interface (Botucatu) – v. 12 – nº 24 – Botucatu – jan./mar. 2008
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Sa ú d e m e n t a l
Lima Barreto Escritor fervoroso, suburbano, negro, aguerrido, irônico, combativo, maldito e incompreendido por seus contemporâneos, Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) desceu ao inferno, conhecendo o desprezo de críticos, o fracasso como escritor e a indiferença familiar por sua vocação literária. Inquieto na dor, ríspido com os hipócritas, teve diante de si a tragédia da loucura, do alcoolismo e do preconceito. Autor de Recordações do escrivão Isaías Caminha e o Triste fim de Policarpo Quaresma, afogou-se em bebedeiras e em profunda depressão numa época em que assumir a condição de negro era um ato de coragem. A sua expressão consciente acerca dos médicos, dos loucos e da loucura constitui o ponto inicial deste artigo, baseado na experiência de vida do escritor no Hospício Nacional e no levantamento de trechos expressivos de sua produção literária. Tais temas orientam-se pela construção de uma estética da existência, cuja vida em questão é analisada como obra de arte, de acordo com o artigo “Hospício de doutores”, de Marco Antonio Arantes, do Centro Universitário Moura Lacerda, Ribeirão Preto.
EDITORA AGIR
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História, Ciência, Saúde-Manguinhos –v. 15 – nº 1 – Rio de Janeiro – jan./mar. 2008
> O l i n k para a íntegra dos artigos citados nestas páginas estão disponíveis no s i t e da Pe s q u i s a FAP ESP ,www.revistapesquisa.fapesp.br
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D E P R OD U ÇÃO M U N D O
Um a r o u p a r o b ó t i c a c a p a z d e a u m e n t a r e m AR M AD UR A 2 0 vezes a força de quem a veste foi mostraIM B AT Í V EL d a recentemente pela norte-americana R aytheon,empresa com atuação no setor de defesa e de radares. D esenhada para militares do E xército dos E stados U nidos,a armadura batizada de E xoskeleton,como os esqueletos externos existentes nos invertebrados,“amplifi ca”,quase instantaneamente,os movimentos e a resistência de seu usuário,permitindo que ele carregue um homem nas costas ou levante um objeto de 9 0 quilos várias vezes sem fi car cansado. E o que é melhor: sem perda de agilidade. O traje futurístico começou a ser projetado no ano 2 000 e foi desenvolvido com uma combinação de sensores,controladores e atuadores. E le tem ainda uma série de sensores que são responsáveis pelos movimentos de cada uma das articulações do corpo humano. P ara o cientista S tephen J acobsen,que lidera o projeto,a armadura é uma combinação de arte,ciência,engenharia e design. N em a R aytheon nem o E xército norte-americano anunciaram quando o traje estará pronto para ser usado em combate.
R A Y T HEON
E squeleto externo permite erguer objetos pesados com agilidade
> M embrana energética Engenheiros do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) desenvolveram um novo tipo de dispositivo para células a combustível capaz de melhorar o rendimento desses equipamentos em 50%. Semelhantes a baterias, as células transformam hidrogênio em energia elétrica com ampla vantagem ambiental sobre outras alternativas porque apenas emitem vapor d’água. O novo material é um tipo de membrana 84
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formada por filmes poliméricos finos que funcionam melhor como cobertura ou na substituição do náfion, membrana polimérica criada pela empresa DuPont, para permitir a passagem de prótons de hidrogênio no interior da célula. Segundo os pesquisadores liderados por Paula Hammond, em comunicado do MIT, o novo material será útil para equipamentos do tipo célula a combustível de metanol direto (DMFC na sigla em inglês) em que o hidrogênio é absorvido pela célula diretamente desse tipo
de álcool, alternativa prevista para abastecer baterias de equipamentos eletrônicos num futuro próximo. O problema é que o metanol é líquido e o náfion torna-se permeável, provocando perda de combustível e baixo rendimento energético. Com a cobertura do náfion pelo novo produto, o rendimento de energia elétrica cresce. As pesquisas foram financiadas pela DuPont e pela Fundação Nacional de Ciência (NSF).
> Investimento em farmácia Colocar a Europa na vanguarda da inovação farmacêutica é o objetivo da Iniciativa de Medicamentos Inovadores (IMI), coordenada pela Comissão Européia e pela Federação Européia de Indústrias e Associações Farmacêuticas. Foram estabelecidas como prioridades científicas na primeira chamada de propostas o reforço
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> Nanofi os em chips
nanofios. Embora os pesquisadores consigam sintetizar nanofios semicondutores – estruturas com o diâmetro aproximado de 1 milésimo da espessura de um fio de cabelo – em grande quantidade recorrendo a métodos químicos economicamente viáveis, estratégias confiáveis para montá-los em circuitos integrados
funcionais permanecem como um grande desafio a ser superado. Para criar a nova tecnologia, os pesquisadores de Harvard recorreram a uma técnica conhecida como spin-on glass (SOG), já empregada na fabricação de chips, e à fotolitografia, método que consiste na gravação de informações em um determinado substrato com LAURAB EATRIZ
Pesquisadores da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, em colaboração com colegas das universidades alemãs de Jena, Gottingen e Bremen desenvolveram uma técnica que poderá ser utilizada na fabricação de circuitos integrados eletrônicos e fotônicos com
O laptop XO da organização não-governamental One Laptop Per Child (OLPC, Um laptop por criança), criada pelo pesquisador Nicholas Negroponte, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), tem uma nova versão. É o XO-2, que deverá ser lançado em 2010 novamente para o sistema educacional de países em desenvolvimento. Ele terá metade do tamanho do XO, telas sensíveis ao toque e poderá ser usado no formato de laptop ou como um livro. Deverá custar US$ 75, menos que os anunciados US$ 100 da primeira versão que já atinge os US$ 188. O novo modelo terá o sistema operacional Windows depois que a OLPC teve dificuldades em distribuir para alguns governos o computador com o sistema Linux (SciDev).
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UNIV ERSIDADE DE W ISCONSIN-MADISON
Já f a z a l g u m t e m p o que os pesquisadores sabem como produzir nanofios, estruturas altamente resistentes e fi nas, medindo entre 3 e 5 nanômetros de diâmetro, que podem ser usadas em diferentes dispositivos. Mas uma novidade, divulgada no início Nanoárvore: estruturas resistentes e fi nas de maio pela Universidade de W isconsin-Madison, nos Estados Unidos, causou surpresa: um uso de luz. Para demonstrar nanofi o espiralado com a forma de um pinheiro. O s autores que a nova tecnologia da invenção foram o professor Song Jin e seu aluno Matthew funciona em larga escala, Bierman. O s dois desenvolveram a “nanoárvore” fazendo os pesquisadores uma pequena modifi cação na síntese da técnica conhecida fabricaram nanoLEDs como deposição química a vapor (ou CVD, sigla em inglês ultravioleta colocando de chemical vapor deposition). Hin e Bierman acreditam nanofios de óxido de zinco que o novo método de crescimento de nanofi os inventado em uma placa de silício. por eles dará aos pesquisadores de vários setores meios mais efi cazes de criar novos nanomateriais para aplicações como circuitos integrados de alto desempenho, biossenso> Computador res, células solares, LEDs e lasers. para crianças
FO R M A D E PIN H EIR O
do acompanhamento dos benefícios e riscos dos medicamentos, investigação sobre células pancreáticas, ferramentas novas para o desenvolvimento de tratamentos para transtornos psiquiátricos e outros temas. Durante os próximos 5 anos, cada uma das instituições coordenadoras destinará € 1 bilhão para a iniciativa. A indústria farmacêutica européia responde por 35% da produção mundial, mas apenas três de cada dez medicamentos novos são desenvolvidos no continente. A IMI é a quarta iniciativa tecnológica entre países europeus. As outras tratam de sistemas informáticos (Artemis), tecnologias nanoeletrônicas (Eniac) e aeronáutica e transporte aéreo (Clean Sky).
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M O B IL ID AD E C O L ET IV A
Um t e l e f o n e p ú b l i c o c o m t e c nologia GSM (sistema global para comunicações móveis), para uso em veículos de transporte coletivo, está pronto para ser lançado comercialmente. O Telo, sigla de Telefone Público Veicular, foi desenvolvido pela PV Inova, empresa incubada no Instituto Gênesis, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. As ligações são feitas com um cartão telefônico comum. “Uma das vantagens do aparelho em relação ao celular é que ele possui uma tecnologia de supressão de ruídos que assegura a qualidade da ligação”, diz Leonardo Sampaio, diretor de marketing e um dos três sócios da empresa. Para chegar ao produto fi nal, certifi cado pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), foram 4 anos de pesquisas. “Hoje no Brasil são cerca de 1 bilhão de passageiros transportados todos os meses, dos quais 900 milhões usam ônibus urbanos”, diz Sampaio. Muitos desses passageiros têm celular prépago, mas a maioria usa os orelhões para fazer ligações, por causa do preço da tarifa. Para testar a aprovação do Telo pelo público, desde fevereiro de 2007 o aparelho está instalado em 20 ônibus urbanos da empresa Carris, de Porto Alegre, em parceria com a Brasil Telecom. Agora a PV Inova espera colocar o produto no mercado até o fi nal deste ano.
> Capital semente na biotecnologia Combater pragas agrícolas com a substituição de agrotóxicos por produtos biotecnológicos, que não causam danos ao ambiente e às pessoas, é a proposta de empresa Rizoflora, criada a partir de pesquisas coordenadas pelo professor Leandro Freitas, da Universidade Federal de Viçosa (UFV), em Minas Gerais. A empresa acaba de receber R$ 1 milhão do Criatec, um fundo de capital semente, para empresas 86
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iniciantes, apoiado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Com esse recurso, a empresa vai construir a biofábrica. A novidade elaborada no Laboratório de Controle de Fitonematóides da UFV é um bionematicida que contém um fungo mortal para alguns tipos de vermes chamados de nematóides. O produto será útil e poderá tornar mais barato o combate a essa praga em culturas como soja, banana, café e tomate. A Rizoflora é a primeira empresa apoiada
pelo fundo que possui em carteira R$ 100 milhões, sendo R$ 80 milhões do próprio banco e R$ 20 milhões dos fundos privados Antera Gestão de Recursos e Instituto de Inovação.
Telefone público instalado em ônibus da capital gaúcha
RODRIGO MAIA/P V INOV A
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> Guia prático para tratar águas Diversos processos de tratamento de águas são abordados no livro Manual prático de tratamento de
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Exercícios selecionados
> Empresa na lista mundial
LAURAB EATRIZ
águas residuárias, de Edson José de Arruda Leme, especialista em recursos hídricos pela Universidade do Colorado, nos Estados Unidos, publicado pela Editora da Universidade Federal de São Carlos. Normas e procedimentos para o dimensionamento e a elaboração de projetos de unidades de tratamento estão contemplados no livro por meio de exercícios práticos. O manual é dividido em duas partes. A primeira, constituída por três capítulos, aborda conceitos sobre a água e o seu uso, um resumo da teoria e a situação atual do tratamento dos esgotos domésticos no Brasil. A segunda parte consiste de 12 capítulos, com 75 exercícios selecionados sobre tratamento de águas residuárias, com plantas, gráficos e outros instrumentos necessários para a realização de projetos.
Um material eletroluminescente com maior eficiência de iluminação e economia de energia foi desenvolvido no Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), como resultado da tese de doutorado de Rafael Di Falco Cossiello. “Fizemos uma estratégia para sintetizar um polímero com algumas características bem definidas e misturá-lo a um material eletroluminescente, com ajustes na proporção dessa mistura”, relata a professora Teresa Dib Zambon Atvars, do Instituto de Química e pró-reitora de Pós-graduação da universidade, orientadora da tese. “Conseguimos aumentar em quatro vezes a eficiência de emissão e diminuir em quatro vezes a tensão de energia necessária para o dispositivo acender”, completa. Com isso há uma redução no consumo energético sem perda de eficiência de iluminação do dispositivo. As aplicações desse tipo de polímero já permitem a obtenção de telas mais finas, em alguns casos flexíveis e com melhor qualidade de imagem e luminosidade, que poderão ser usadas na fabricação
Mais uma vez, a empresa de software CI&T, de Campinas, está entre as dez melhores prestadoras de serviços de outsourcing nas áreas de mídia e entretenimento do mundo, segundo a revista norteamericana Fortune. A empresa, também escolhida em 2007, é a única da América Latina contemplada na lista The 2008 Global Outsourcing 100 da revista que apresenta as cem melhores companhias mundiais em serviços de tecnologia da informação, setor que traduz a palavra outsourcing. A empresa com 10 anos de existência cresceu, em média, 40% ao ano e a participação atual nas exportações representa 30% dos negócios. Com escritórios nos Estados Unidos e na Inglaterra, ela mantém no Brasil parcerias com várias universidades e institutos de pesquisa. Em fevereiro deste ano, junto com a empresa DigitalAssets, assinou com a FAPESP um convênio de cooperação científica e tecnológica no total de R$ 3,6 milhões para financiamento de projetos.
Ap r i m e i r a e t a p a d e f a bricação em escala préindustrial de módulos fotovoltaicos com tecnologia nacional, para transformação da energia solar em elétrica, foi concluída na planta piloto instalada no Parque Científi co e Tecnológico da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre. No mês de maio, fi cou pronto o primeiro mó dulo inteiramente produzido no Núcleo Tecnológico de Energia Solar, como resultado do projeto iniciado em 2005, coordenado pelos professores Izete Z anesco e Adriano Moehlecke (leia mais nas edições 85 e 110 da revista Pesquisa FAPESP). “O alto valor de radiação solar e as importantes reservas de quartzo em território brasileiro, usado para fabricar a lâmina de silício que compõe as células solares, são dois fatores fundamentais para a produção de módulos fotovoltaicos no Brasil”, diz Izete.
EN ER G IA D O SO L
de telas de televisão, computador, celulares e até para o papel eletrônico. Ele também poderá ser utilizado em sensores ambientais, que detectam, por exemplo, vapor de ácidos. “A emissão de luz se modifica pela presença de substâncias em determinados ambientes”, explica Teresa. O trabalho, publicado no mês de maio na revista Synthetic Metals, foi a capa da publicação.
efi cientes
MARCOS COLOMB O/P UCRS
EDUARDO CESAR
> Polímeros
Módulo com células solares em Porto Alegre
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Lentes em tratamento anti-refl exo na O pto Eletrônica
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T E C N OLOG IA
ESPAÇ O
Uma câmera feita no B rasil para fotografar a Terra vai equipar o satélite sino-brasileiro Cbers-3 Yur i Vasconcelos
FOTOS EDUARDO CESAR
O
lançamento do próximo Satélite Sino-Brasileiro de Recursos Terrestres (Cbers-3), previsto para abril de 2010, será um momento importante não apenas para o programa espacial brasileiro – já que este é o quarto artefato da série e boa parte dele está sendo desenvolvida no país –, mas também para a Opto Eletrônica, empresa com sede em São Carlos, no interior paulista, responsável pelo projeto e fabricação de uma das câmeras do satélite capaz de fotografar a crosta terrestre. O aparelho, batizado de câmera multiespectral MUX, representa um importante salto tecnológico para a indústria nacional, porque é o primeiro do gênero a ser inteiramente feito no país. As imagens geradas dos territórios do Brasil e da China serão destinadas ao monitoramento ambiental e ao gerenciamento de recursos naturais. Para conseguir tal feito, a imagem terá uma resolução da superfície terrestre de 20 metros de lado, característica responsável pela nitidez, num parâmetro que não é pouca coisa, levando-se em conta que o Cbers-3 será colocado em órbita a 800 quilômetros de altitude. Isso equivale a enxergar um trem na superfície da Terra ou uma mosca a cerca de 400 metros. A faixa de largura imageada, que é a extensão do território visto em uma linha na imagem, é de120 quilômetros de largura. “A fabricação da MUX pela Opto atende à diretriz do programa espacial brasileiro de fomentar o desenvolvimento de tecnologia de ponta dentro da indústria do país, capacitando nossas empresas para participar de forma competitiva no mercado espacial internacional”, ressalta o engenheiro Mario Selingardi, responsável técnico pelo projeto no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Além disso, a fabricação desse subsistema do Cbers-3 por um parceiro nacional auxilia o país a obter independência tecnológica
em áreas altamente sensíveis do ponto de vista estratégico. A fase atual do desenvolvimento da câmera é a de realização de testes funcionais no modelo de engenharia da MUX. Esse modelo é um protótipo que vem antes do modelo de qualificação e do equipamento que efetivamente vai voar. O modelo de engenharia deve seguir até o mês de julho para a China, onde vai passar por testes elétricos na integração com outros sistemas. Nos experimentos realizados aqui a câmera é submetida a ensaios destinados a confirmar se suporta as cargas de lançamento e as condições de temperatura e vácuo no espaço, além de verificar se ela atende aos requisitos de envelhecimento e compatibili-
dade eletromagnética mantendo seu desempenho funcional. Segundo o Inpe, os ensaios, feitos no Laboratório de Integração e Testes do instituto, mostraram que não houve degradação do desempenho óptico do equipamento. “A câmera tem passado com sucesso pelos testes”, informa Selingardi, do Inpe. A realização desses experimentos é um importante passo na longa caminhada iniciada em dezembro de 2004, quando a Opto venceu a licitação internacional para fabricação da câmera. A MUX começou a ser projetada já no mês seguinte e a primeira etapa do trabalho (a conclusão do projeto preliminar) ficou pronta no final daquele ano. Para ter idéia da complexidade
Câmera MUX: 115 quilos e 1,10 metro de comprimento
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do projeto preliminar, basta dizer que ele foi composto por mais de 450 documentos e 16 mil páginas. “Uma grande dificuldade que enfrentamos foi transformar essa montanha de relatórios e análises em um projeto de equipamento que funcionasse”, conta o engenheiro Mário Stefani, diretor da Opto que coordena o projeto da MUX. “As análises eram minuciosas, pois tinham que prever com exatidão o funcionamento da câmera e se ela suportaria o tempo de vida necessário no ambiente hostil do espaço”, diz ele. Pr o j e t o r o b u s t o – A câmera lembra muito pouco as congêneres de uso pessoal e mesmo profissional. Ela pesa nada menos que 115 quilos e mede 1,10 metro de comprimento por 80 centímetros (cm) de largura e 55 cm de altura. É um artefato robusto e altamente sofisticado e está dividido em três módulos. A câmera propriamente dita, conhecida pela sigla RBNA, é composta pelas lentes, plano focal, sistema térmico, radiadores, aquecedores e blindagens, entre outras peças. O segmento RBNB responde pelo controle de temperatura e do sistema de ajuste focal, enquanto o RBNC processa e acondiciona as imagens para envio à Terra. Toda estrutura óptica e mecânica da câmera assim como os equipamentos de teste estão sendo projetados e desenvolvidos pela equipe de
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Conjuntos de lentes especiais produzidas em São Carlos
engenheiros da Opto. O desenho eletrônico também foi feito pela empresa, embora os componentes sejam importados. Já o sensor de imagem da câmera e os chips eletrônicos qualificados para uso espacial são fornecidos pelo Inpe. “No Cbers-2 (em órbita desde setembro de 2007) havia uma câmera, chamada WFI (sigla em inglês de imageador de amplo campo de visada), cuja eletrônica foi desenvolvida no país, mas seu módulo óptico, plano focal e eletrônica de proximidade foram importados dos Estados Unidos. Hoje a Opto também integra, junto com a Equatorial Sistemas, de São José dos Campos, o consórcio responsável por esta câmera na sua versão ampliada para o Cbers-3. Somos a empresa responsável pelo projeto e construção do bloco optoeletrônico”, informa Stefani. Além da MUX e da WFI, outras duas câmeras farão parte da carga útil do Cbers-3: a PAN, com banda pancromática, e a IRS, sigla em inglês de imageador de varredura de média resolução, que estão sendo feitas por empresas chinesas. A China também foi responsável pela fabricação da câmera MUX que integrou o Cbers-2B, lançado em setembro do ano passado. Há, no entanto, uma diferença entre esse equipamento e o que está sendo produzido agora na Opto. A câmera brasileira “enxerga” em quatro cores,
registrando imagens no azul, verde, vermelho e infravermelho, enquanto a chinesa não possuía a banda espectral azul. “A inclusão da banda azul, simultânea às outras três originalmente previstas, foi polêmica e custosa. Sem falar que a complexidade do projeto óptico aumentou muito, exigindo maior precisão e controle de fabricação”, afirma Stefani. Tamanho esforço tem justificativa. A banda azul permite a captação de imagens mais bem definidas da cobertura vegetal e dos recursos hídricos, colaborando para um melhor acompanhamento da produção agrícola. Quando estiver operando, a MUX irá gerar imagens que poderão ser usadas no controle e monitoramento hidrológico, florestal, agrícola, perimetral, urbano e mineral. Esses dados ajudarão na identificação de queimadas, desmatamento ou ocupação ilegal do solo e no planejamento sustentável. Em razão do ineditismo da empreitada e da complexidade da MUX, vários desafios precisaram – e ainda precisam – ser vencidos para a fabricação do subsistema. Um dos principais diz respeito ao elevado grau de precisão óptica da câmera, que exige que as lentes sejam construídas com a exatidão de décimos de milésimos de milímetro. A montagem das lentes, além de obedecer a um rígido posicionamento, precisa ser confiável o suficiente para
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suportar as cargas de lançamento pelo foguete, em que os níveis de vibração chegam a 56 G (ou 560 m/s2). O sensor de imagem, composto por cerca de 6 mil minúsculas placas quadradas com cerca de 13 milésimos de milímetro de cada lado, também exigiu muita perícia dos engenheiros da empresa. Um grão de poeira que se deposite sobre o sensor pode fazer “sombra” ou “cegar” este elemento de imagem. Por isso, a montagem e o teste da câmera precisam ser feitos em ambiente sem poeira. “A Opto construiu 450 metros quadrados de salas limpas, destinadas à manipulação dos sistemas ópticos de precisão. Nelas, a contagem de partículas é menor que mil por metro cúbico, e as medidas delas menores que 1 mícron”, diz Stefani. Le i r í g i d a – Outra dificuldade superada foi o boicote de empresas norte-americanas a algumas peças e componentes usados na câmera, por conta da lei Itar (sigla de International Traffic in Arms Regulation ou normas sobre o tráfego internacional de armas). Essa norma determina explicitamente, entre outras propostas, que satélites ou câmeras de sensoriamento remoto, mesmo que para emprego civil, atendam aos interesses estratégicos e de segurança dos Estados Unidos. Caso um programa seja considerado contrário a esses interesses, soluções ou componentes americanos são impedidos por lei de serem disponibilizados. A lei Itar é rígida, podendo levar a multas milionárias e prisão para os engenheiros envolvidos. “Uma série de componentes críticos, tidos como essenciais para uso no Cbers, foram subitamente impedidos de serem comercializados. No caso da MUX, tivemos vários casos de embargo. Um deles foi um conversor de voltagem para uso espacial. Após o produto ser encomendado, pago e providenciado o embarque, ele não pôde ser enviado ao Brasil e o fornecedor acabou devolvendo o dinheiro. A parte afetada do projeto teve que ser inteiramente refeita”, relata o físico Jarbas Caiado de Castro Neto, presidente da Opto. “Na época, a decisão causou um grande problema, mas hoje entendemos que a lei Itar é uma oportunidade para desenvolvermos soluções próprias e novas abordagens do projeto.” Uma equipe formada por 45 pessoas, entre físicos, engenheiros mecânicos,
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eletrônicos, de materiais e de produção e técnicos ópticos, eletrônicos e mecânicos, participa da construção da MUX. Ao final dos testes com o modelo de engenharia, construído com componentes similares e mais baratos, será iniciada uma nova fase do projeto, que consiste na fabricação do modelo de qualificação. Trata-se do mesmo projeto, mas já com materiais e componentes próprios para uso espacial. Esse novo modelo, previsto para ficar pronto em julho de 2008, deve passar por uma bateria de ensaios e ser considerado apto a subir e operar no espaço. Após ser aprovado, o modelo de qualificação fica “condenado”, porque seus componentes terão sido submetidos a severas cargas mecânicas, térmicas e eletrônicas, não possuindo mais qualidade e confiabilidade para ir ao espaço. A Opto, por fim, estará habilitada para construir o modelo de vôo que será integrado ao satélite. “Ele deverá ser fabricado exatamente com os mesmos processos, ferramental e seqüência de operação utilizados na fabricação do modelo de qualificação”, explica Selingardi, do Inpe. Três modelos de vôo serão fabricados, um para o Cbers-3, outro para o Cbers-4, com lançamento previsto em 2013, e um terceiro de reserva. O contrato do Inpe com a Opto é de R$ 75 milhões. A fabricação da MUX é o principal projeto da Divisão Aeroespacial da Opto,
criada em 1994 com o objetivo de fazer pesquisa e desenvolvimento de produtos e prestar consultoria optoeletrônica e sobre lasers na área aeroespacial. No total, a empresa faturou R$ 45 milhões em 2007. “Nossa tecnologia se baseia no tripé óptica, mecânica fina e eletrônica, o que nos permite desenvolver produtos para as áreas oftálmica, de filmes finos, aeroespacial e defesa”, destaca Castro. A empresa fabrica produtos como retinógrafos, lasers cirúrgicos para retina, filmes finos anti-reflexo para uso oftálmico e odontológico, microscópicos cirúrgicos, medidores de distância a laser, além de sistemas para a área de defesa. “Temos milhares de clientes nas áreas de filmes finos, em sua maioria fabricantes e lojas de óculos. Com o mesmo produto, dentro do segmento para refletores para uso odontológico, chegamos a ter quase 50% do mercado mundial, porém, devido à concorrência chinesa, nossa participação sofreu acentuada queda nos últimos anos”, diz o presidente da Opto. Na área de equipamentos médicos, a Opto está presente em 64 países, com filiais ou por intermédio de distribuidores. A empresa, fundada por cinco amigos em 1985, se baseia na qualificação de seu corpo funcional. Dos 345 empregados, 42 possuem mestrado, doutorado ou título de MBA e os demais são graduados ou com formação técnica. ■
Uma das lentes que compõem o protótipo da câmera MUX
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C ó digo aberto So f t w a r e s l i v r e s g a n h a m n a s e m p re s a s e ta m b é m e n t r e p e s q u is a d o r e s
E
fo rç a
studar e alterar o código-fonte de um software é um trabalho que seduz cada vez mais os usuários de sistemas informatizados, tanto no meio científico como nas empresas. Essa tendência acaba de ser confirmada durante o Fórum Internacional do Software Livre (Fisl) 9.0, que aconteceu em abril em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Reunindo mais de 7,4 mil pessoas de 21 países, o encontro atraiu empresários, profissionais da área, estudantes e professores. A atração dos softwares livres é mesmo o códigofonte, que traz as instruções para o funcionamento do programa, aberto e passível de modificações e adaptações, enquanto os chamados programas proprietários têm o código fechado e prevêem cobrança de licença pelo uso. Já longe de ficar restrito a pequenos grupos, muitas empresas, como mostrou o evento, também revelaram grande interesse nesse sistema como Google, Telefônica, Intel, Sun Microsystems e Yahoo Brasil. Não há contradição em usar o software livre para fazer dinheiro, dizem os empresários que circularam pelos stands do Fisl. Para o diretor sênior de estratégias para governo da Sun Microsystems nas Américas, Luiz Fernando Maluf, a opção pelos sistemas abertos é um modelo de negócio. “Posso provar matematicamente que funciona”, diz, dando como exemplo o programa aberto Java, criado pela Sun e que conta hoje com
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cerca de 30 milhões de desenvolvedores espalhados pelo mundo. A seu ver, a Sun não atingiria o patamar atual – a companhia conquistou o terceiro lugar no mercado global de servidores – se tivesse optado por obter lucro em cima de registro de patentes. Ele explica que o envolvimento de tanta gente com o programa reduz o custo do desenvolvimento e acelera a chegada de um produto ao mercado. O modelo em questão, baseado na venda de serviços e não mais em patentes, explica o trabalho de sedução feito por grandes empresas na busca por talentos principalmente no Brasil. A Google, por exemplo, criou o Google Summer of Code, um programa de estágio internacional que reúne cerca de 1.500 estudantes, de graduação e pós-graduação, e 2 mil orientadores de quase cem países para trabalhar em projetos envolvendo código livre e aberto. Os projetos selecionados pela Google são sugeridos por empresas ou entidades do mundo inteiro. Na última competição, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) foi a segunda universidade em inscrições do mundo, com uma das melhores taxas de aceitação. Dos 29 candidatos da universidade, 10 tiveram seus
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projetos aceitos. Para o professor Ricardo Anido, do Instituto de Computação da Unicamp, o Brasil tem a capacidade de se posicionar bem numa fatia de mercado mais nobre do que a simples geração de código. Mais do que programadores, os brasileiros têm qualificação para agregar mais conhecimento ao projeto, oferecendo soluções mais completas. “Competir em preço com Índia e China é difícil. Mas podemos oferecer melhor qualidade”, avalia. A capacidade brasileira no desenvolvimento e na disseminação dos softwares livres ficou evidente na Fisl. “O papel de liderança do Brasil nessa área é fruto de uma parceria bem-sucedida entre o governo, a indústria e a comunidade de desenvolvedores”, disse o presidente da Linux International, Jon “Maddog” Hall, uma associação sem fins lucrativos que promove softwares livres. Para ele, a queda dos preços dos computadores destoa do alto custo de softwares e o Brasil é exemplar ao desenvolver soluções em larga escala com programas de código aberto, diminuindo custos. Ele cita a Caixa Econômica Federal (CEF) como um dos exemplos mais emblemáticos. Quem paga contas ou vai fazer uma aposta usando terminais instalados nas Casas Lotéricas da CEF usa o sistema operacional Linux. “Saber isso não faz diferença”, diz o gerente de tecnologia da informação Júlio Schneiders Neto, da Caixa. Para ele, o importante para o usuário é perceber que o uso do código aberto deixou os terminais mais ágeis e aumentou a qualidade das transações nos momentos de pico. “Antes de migrarmos para o código aberto
InV esalius: programa livre para mostrar imagens médicas em formato tridimensional f
uma transação durava em média 8 a 10 segundos. Agora a média fica entre 3 e 4 segundos”, conta Schneiders Neto. “Só com licenças coorporativas, que deveriam ser pagas pelo uso de softwares proprietários, economizamos cerca de R$ 10 milhões desde 2006.” C i ê n c i a b a r a t a - O Fórum de 2008
também se destacou pela presença de pesquisadores que optaram pelo software livre e levaram seu trabalho para o domínio público. Um dos exemplos bem-sucedidos é um software usado para fazer imagens médicas tridimensionais, o InVesalius. O programa foi criado em 2000, quando já existiam softwares proprietários comerciais que permitiam a reconstrução tridimensional de imagens de tomografia computadorizada. “Em 2002, quando vi o programa, percebi que ele representava um avanço pela facilidade na obtenção de imagens em 3D, na evolução nos diagnósticos, nos planos de tratamento e na realização de cirurgias”, diz o cirurgião-dentista Francisco Roland, pesquisador associado ao Centro de Pesquisas Renato Archer (CenPRA), da cidade de Campinas, onde o software foi concebido. No caso do InVesalius, a equipe do Cenpra rebateu as críticas feitas aos softwares livres de que ele sai barato por estar aquém da qualidade dos softwares proprietários. Ele foi comparado com o Vitrea, cuja licença de uso está na casa dos milhares de dólares. “Após análise estatística dos dados verificamos que o desempenho do módulo de craniometria 3D do InVesalius 2.0 não apresentou diferenças estatísticas, tanto nas medidas
lineares quanto nas angulares, quando comparadas ao padrão e nem ao Vitrea 3.8.1.1”, conta Marcelo Sales, pesquisador do Labi3D da Radiologia da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (USP). Ambos permitem que cirurgiões realizem planejamentos mais detalhados, facilitando o diagnóstico de casos complexos. O InVesalius pode ser baixado no portal do Software Público Brasileiro (www.softwarepublico.gov. br). Além do uso na saúde humana, o código aberto dele permitiu que fosse adaptado para outras áreas, como veterinária, arqueologia e paleontologia. “A tendência é que, com o tempo, a qualidade do InVesalius, a exemplo de outros softwares livres, torne-se superior à dos softwares proprietários, porque a comunidade de colaboradores aumenta e constantemente aprimora o código”, diz a engenheira de computação Tatiana Martins, programadora do InVesalius. Os softwares livres não são desprovidos de problemas. “Alguns deles podem desanimar o usuário porque ainda têm interface gráfica pobre, o que dificulta a interação do usuário com o programa”, lembra Wellington Martins, professor do Departamento de Computação da Universidade Católica de Goiás, que falou sobre o projeto BioPerl, utilizado para a implementação das fases de processamento em projetos Genoma. Martins considera que os softwares livres se revelam estratégicos e que, no caso dos estudos genômicos, vários deles já são considerados padrões na área. ■
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ENGENHARIA
Empresa paulistana desenvolve equipamento de raios X para detectar metais, vidros e pedras em alimentos Marcos de Oliveira
rovavelmente a maioria dos consumidores não sabe, mas a trajetória de grande parte dos produtos alimentícios existentes no supermercado passa por uma máquina que detecta metais no local onde são fabricados. Isso acontece com o produto já pronto e embalado para verificar se há pequenos pedaços de peças, parafusos ou outros contaminantes metálicos nas matérias-primas. Assim, um pacote de pão de fôrma, outro de biscoitos, uma sopa instantânea ou ainda uma caixa de sabão em pó, por exemplo, são averiguados quanto à presença de indesejáveis “ingredientes” metálicos. Grande parte dessas máquinas no Brasil é fabricada pela empresa paulistana Brapenta que está prestes a lançar um equipamento inovador para esse nicho do mercado industrial brasileiro. Ele utiliza raios X para identificar não apenas metais, mas também pedras, plásticos e vidros, ou tudo o que saia da densidade típica, como a de um pedacinho de osso num hambúrguer. Os materiais inconvenientes do tamanho de até 1 milímetro poderão ser visualizados e o produto retirado de circulação antes de sair da fábrica. O novo modelo da Brapenta, chamado de Spectra, traz componentes elaborados para tornar o equipamento mais barato
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e funcional. “Ele vai custar entre R$ 80 mil e R$ 100 mil com impostos, enquanto os equipamentos similares importados custam entre R$ 150 mil e R$ 200 mil ou mais com impostos”, diz o engenheiro eletrônico Martín Izarra, diretor-presidente da empresa. Mas a importância do projeto ultrapassa os benefícios que o novo equipamento trará para a indústria do país ou para a própria empresa porque é um exemplo de sinergia entre institutos de pesquisa e empresas e o próprio laboratório de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) da Brapenta. “Temos aliados tanto na área comercial como na tecnológica porque inovar é criar uma rede de parcerias”, diz Izarra, também diretor da Associação Nacional de Pesquisa, Desenvolvimento e Engenharia das Empresas Inovadoras (Anpei). Idealizado em 2003, o projeto começou a se tornar realidade no mesmo ano com a aprovação de viabilidade técnica no Laboratório de Sistemas Integráveis da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. “Ali vimos que a idéia era viável”, conta Izarra.“Depois começamos a tocar o projeto sozinhos trabalhando com uma tecnologia que não conhecíamos.” A mudança de patamar seria trocar para a tecnologia de raios X e deixar a de campo eletromagnético até agora usada pela Brapenta, a mesma
presente nas portas de banco ou prisões para detectar metais, produto que a empresa também fabrica em menor escala. O desafio em utilizar raios X envolve a própria geração dessa radiação e o seu controle. Somou-se a essas necessidades a viabilidade de uma série de agregados para que o equipamento funcionasse. O aparelho precisava ler o produto como um scanner traduzindo os raios X em sinais elétricos e depois converter o resultado em luz visível numa tela, além de ser dotado de softwares e painéis de controle. Entre os elementos agregados essenciais para a execução do projeto estão os cintiladores, sensores compostos de um cristal, no caso o iodeto de césio. Por enquanto, eles estão sendo importados do Japão e da França, com custo ainda alto, e depois de muita negociação porque é um produto que pode ser usado, por exemplo, em aplicações nucleares para medir radiações. Com isso, países que detêm essa tecnologia dificultam a exportação. Para ter o produto mais barato e feito no Brasil, a empresa firmou um contrato de intercâmbio com o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares ( Ipen) para a produção dos cintiladores. No currículo da Brapenta já conta uma boa parceria tecnológica com o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) em 2004 para o desenvolvimento
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BRAPENTA
de algoritmos, um conjunto de soluções matemáticas elaboradas para resolver determinado problema para outro tipo de máquina da empresa que mede o peso dos produtos ao passar por uma esteira numa velocidade de 2 metros por segundo. A função dela é verificar produtos que estejam abaixo ou acima do peso estipulado na embalagem. Outro parceiro de longa data da Brapenta é o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), onde os equipamentos da empresa passam por testes de interferência eletromagnética no Laboratório de Integração e Testes (LIT). “Em todas as parcerias nós aprendemos com eles, mas eles também aprendem com a gente”, diz Izarra. No caso dos cintiladores produzidos no Ipen, eles não eram usados para um equipamento industrial. “No Ipen nós temos a tecnologia de crescimento dos cristais para fins acadêmicos e para uso em detectores de radiação X ou gama”, conta Carlos Henrique de Mesquita, pesquisador aposentado do Ipen que está coordenando para a Brapenta um projeto do programa de Pesquisa Inovativa na Pequena e Micro Empresa (Pipe) da FAPESP. “Esses sensores convertem a radiação dos raios X em fótons de luz que sensibilizam outros sensores chamados de fotodiodos que, por sua vez, convertem os fótons em
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Teste na Brapenta compara densidade de um carretel de plástico com fios de cobre
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Raios X: pedaço de carne com contaminantes metálicos, pão com metal e vidro e um pacote de sopa com grampo e um parafuso
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sinal elétrico e depois nas imagens elaboradas por um software”, explica. Para Mesquita, o desenvolvimento realizado no Ipen vai reduzir em 30% o preço dos cintiladores para a Brapenta. Quando Mesquita finalizar o projeto no início do segundo semestre deste ano, a Brapenta vai poder comprar os cintiladores do próprio Ipen, da mesma forma que o instituto produz e fornece radiofármacos para uso em procedimentos de medicina nuclear. “Entre as alternativas estão a criação de uma empresa para produzir os cintiladores ou a própria Brapenta fabricá-los”, diz Mesquita. Quanto aos fotodiodos, eles são comprados no mercado normalmente.
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Empresas parceiras - No processamento das imagens geradas dos cintiladores, a Brapenta tem como parceira a Kognitus, instalada na incubadora de empresas da Coordenação dos Programas de Pósgraduação de Engenharias (Coppe) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Nascida no Departamento de Ciência da Computação do Instituto de Matemática da universidade, a empresa desenvolve softwares de análise dos produtos e reconhecimento de padrões de imagem. Outra empresa também incubada na Coppe e que colabora no projeto da Brapenta é a Inovax, responsável pelo software que serve ao painel de controle do equipamento bem como empresas como a JR Informática, da cidade de São José dos Campos, em São Paulo, na área de processamento digital de sinais, e a Gauss, de Florianópolis, em Santa Catarina, que desenvolveu as resistências para alta-tensão com tecnologia de filme espesso. Com todas essas colaborações a área de P&D da empresa, composta por três engenheiros, fica com o desenvolvimento do gerador de raios X e a integração dos sistemas, além do software controlador de
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O equipamento também será destinado às indústrias de medicamentos, bebidas e para aeroportos na verificação de bagagens, além de servir para inspecionar detentos e visitantes nas prisões
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OS PROJETOS 1. Desenvolvimento de cristal de CSL(TI) e plástico cintilador para fins de inspeção em tempo real com raios X em equipamento nacional 2. Sistema de inspeção por raios X e inovação de equipamentos para alimentos seguros 3. Sistema de inspeção por raios X
MODALIDADES
1. Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas e Micro Empresas (Pipe) 2. Programa de Subvenção Econômica a Empresas 3. Programa de Capacitação de Recursos Humanos (Rhae Inovação) COORDENADORES
1. CARLOS HENRIQUE DE MESQUITA – IPen/Brapenta 2. MARTÍN IZARRA - Brapenta 3. ALBERTO SUÁREZ VELASCO E MARTÍN IZARRA - Brapenta INVESTIMENTOS
1. R$ 94.018,00 (FAPESP) 2. R$ 1.283.160,00 (FINEP) 3. R$ 257.099,52 (CNPq)
todo o equipamento. “Nossa estratégia para reduzir custos implica desenvolver todas as partes do sistema, com parcerias, porque os outros fabricantes simplesmente compram peças e integram e isso fica muito caro”, diz Izarra. Ele acredita que dentro de 2 anos poderá exportar o Spectra. Com previsão de lançamento até o final do ano, o equipamento deverá ficar instalado gratuitamente por cerca de 3 meses em empresas parceiras, que já são clientes e pretendem comprar a nova máquina. No total, o investimento em P&D no produto vai atingir R$ 2,5 milhões até 2010. Desse total, cerca de 40% serão da própria empresa e o
restante de financiamentos de órgãos de fomento como a FAPESP, no Pipe, e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) do MCT, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), com recursos não reembolsáveis, além de benefícios fiscais ligados à Lei da Informática. Izarra acredita que o equipamento também será destinado a outros setores, além da indústria alimentícia ou produtos de limpeza. O Spectra poderá ser usado na linha de produção de fármacos para detectar se um blister (a embalagem de alumínio que acondiciona comprimidos) contém todos os comprimidos e se há algum danificado. Na indústria de bebidas servirá para verificar o nível das latinhas de cerveja e refrigerantes. Outra possibilidade é o uso em aeroportos, com outra configuração, para verificação de bagagens. “Uma das primeiras consultas sobre esse tipo de máquina com raios X partiu da Infraero (Empresa Brasileira de Infra-estrutura Aeroportuária), porque as máquinas que eles têm são importadas e de manutenção cara”, diz Izarra. Nesse caso, existe a necessidade de um operador para visualizar as bagagens enquanto na máquina industrial não é preciso, porque ao constatar um produto com problemas ela automaticamente faz a separação. A mesma configuração para aeroporto poderá ser usada em prisões, também na forma de scanner, para inspecionar detentos e visitantes. Com 65 funcionários e instalada no bairro de Santo Amaro, em São Paulo, a empresa tem produtos em 28 países como Estados Unidos, Espanha, Irã, Egito, Angola e África do Sul. São países que importam diretamente ou por meio de empresas integradoras, que instalam todo o conjunto de máquinas e equipamentos de uma fábrica,
por exemplo. A empresa também tem representantes em todos os países da América Latina. Além das máquinas detectoras de metal para a indústria alimentícia, a empresa vende no exterior equipamentos para inspeção na área de mineração, usadas na verificação das matérias-primas da produção do cimento, porque pequenos pedaços de metal podem pôr a perder o moinho onde se prepara esse produto. Caminhos próprios - A história da
Brapenta começa quando Martín Izarra durante a graduação em engenharia eletrônica na Argentina, país de nascimento, fez um projeto para sistemas de medição de gás carbônico (CO2) em grandes tanques por meios eletrônicos. “A empresa, subsidiária da General Dynamics, que produzia peças para reatores nucleares e produtos químicos, gostou, depositou a patente e me pagou uma quantia suficiente para comprar um carro, e ainda me contratou. Comecei trabalhando na área de P&D deles inclusive nos Estados Unidos”, lembra Izarra. “Mas passei pelo Rio de Janeiro e resolvi ficar. Antes tirei férias e vim estudar o Brasil. Adotei o país e me naturalizei.” Em São Paulo Izarra foi gerente de projetos da AEG Sistemas, empresa alemã de automação industrial, e logo depois resolveu montar uma subsidiária da empresa Penta da Argentina no Brasil. Com um dos cinco sócios da empresa argentina, ele montou, em São Paulo, a Brapenta em 1979. O primeiro produto foi um detector de metais para área de mineração. “Mas, 3 anos depois, a tecnologia já estava obsoleta. A velocidade das inovações é muito rápida e resolvi comprar a parte do sócio e trabalhar em cima de tecnologias próprias para acompanhar a velocidade do desenvolvimento tecnológico. Isso foi e está sendo um processo de aprendizagem.” ■ PESQUISA FAPESP 148
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U MAALIANÇ A S EM P R OGR ES S OS PESQUISA MOSTRA AS DIFICULDADES DAS RELAÇÍ ES ENTRE BRASIL E ESTADOS UNIDOS Carlos Haag
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ausou polêmica um discurso feito recentemente pelo presidente Lula em que ele afirmava: “Eu liguei e disse: ‘Bush, o problema é o seguinte, meu filho, nós ficamos 26 anos sem crescer. Agora que a gente está crescendo vocês vêm atrapalhar, pô? Resolve a tua crise’”. Apesar do tom casual, a frase revela algumas das muitas complexidades das relações entre Brasil e EUA. Somos, assim, tão próximos do “grande irmão”, como se dizia nos tempos da Guerra Fria? Os EUA tentam mesmo “atrapalhar” o Brasil ou nos vêem com relativa indiferença? “Os dois países são um casal estranho em suas relações bilaterais. Em Brasília ainda há uma enorme resistência a pensar um programa de engajamento cooperativo com Washington. Para grande parte da opinião pública brasileira, o governo Bush tem um projeto imperialista que terminará por limitar a autonomia daqueles países que expressam valores e interesses alternativos”, observa Matias Spektor, professor de relações internacionais da Escola Superior de Ciências Sociais/CPDOC e coordenador do MBA em relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas. “Como não há uma visão comum em Brasília e em Washington sobre o valor estratégico do eixo bilateral, suas lideranças não têm um mapa para guiar o relacionamento. O Brasil fica preso à visão de que os EUA são sempre um obstáculo e nunca uma oportunidade e chegamos ao século XXI sem um fórmula satisfatória para conduzir os negócios com a maior potência do planeta”, avisa. Por que os dois maiores países do hemisfério Ocidental não conseguem estabelecer uma cooperação de alto nível no longo prazo?, pergunta-se o pesquisador. De uma coisa Spektor tem certeza: não concorda com a “tese da rivalidade emergente” (a visão de que o Brasil, ao industrializar-se, transformou-se em ameaça ao Norte), que pauta várias das respostas ao dilema do “casal” diplomático. O pesquisador encontrou outra via ao trabalhar em sua tese de doutorado, “Equivocal engagement: Kissinger, Silveira and the politics of US-Brazil relations (1969-1983)”, defendida no ano passado na Universidade de Oxford, Inglaterra. “A relação entre as duas nações foi pautada pela barganha mais do que por uma relação séria e o projeto foi motivado por ambições políticas e sujeito a objetivos que variaram ao longo da interação bilateral”, afirma. “O ponto crucial foi a assimetria entre os dois:
Ki ssinger em visita ao B rasil: fazendo de tudo para conquistar diplomatas
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“O Brasil é a chave do futuro”, afirmou, em 1971, Nixon. Um dos primeiros presidentes americanos a “acreditar” nisso, ele, em verdade, seguia o novo ideal de visão global da Casa Branca pregado por Kissinger, que defendia a necessidade de os EUA manterem relações especiais com poderes-chave regionais. “Ele estava preocupado com o desenvolvimento potencial de ruptura do mundo pós-colonial, procurando uma fórmula para lidar com isso que não se baseasse apenas na coerção. Daí o conceito de ‘devolução’, visto como uma hegemonia benigna: devolver poder e responsabilidade para um grupo de Estados regionais influentes, uma transferência de uns EUA fortemente engajados na periferia para um mundo em que a estabilidade não teria que ser mantida por uma intervenção americana direta.” Nações como Brasil, Irã, Turquia, África do Sul, Indonésia, entre outras, foram reconhecidas como parceiras potenciais, capazes de levar à frente essa nova forma de hegemonia em nome da América. Daí, nota Spektor, o interesse inusitado (e problemático, já que boa parte da diplomacia americana discordava da importância brasileira) A FP FILES
NIXON FOI UM DOS PRIMEIROS PRESIDENTES AMERICANOS A “ ACREDITAR” NO NOVO IDEAL DE VISÃO GLOBAL DE KISSINGER
se os EUA foram um elemento central na grande estratégia do Brasil, nós só aparecemos tangencialmente na grande narrativa das relações internacionais americanas do período.” A narrativa a que Spektor se refere inicia-se com a indicação de Henry Kissinger como conselheiro de segurança nacional da administração Nixon, em 1969, e termina com a saída, em 1983, do diplomata brasileiro Azeredo da Silveira do cargo de embaixador brasileiro em Washington, passando por 5 anos como ministro das Relações Exteriores do governo Geisel. O foco nas duas figuras não é casual, pois, para o autor, o ponto “fraco” das tentativas de aproximação entre Brasil e EUA é sua quase total dependência do empenho pessoal desses dois personagens. Com suas saídas de cena, nos governos Carter/Reagan e Figueiredo, as relações bilaterais, observa, se estagnaram. “É verdade que são melhores do que nas décadas de 1970 e 1980, quando os dois países passaram da hostilidade à apatia mútua. Nos anos 1990 teve início um processo de sintonia fina que dura até hoje, mas parece que daí não passa.”
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ara Kissinger, ganhar o apoio desses Estados era uma forma de legitimar a hegemonia americana e isso significava fazer concessões, usar a linguagem da ‘igualdade’ e do ‘respeito’, em suma, abrir um canal direto entre Washington e essas nações periféricas para, em troca, consolidar a posição dos EUA no mundo. Daí a atenção dada ao Brasil”, afirma Spektor. Tanto fazia se esses países, entre eles o Brasil, não eram governos democráticos. “Para Nixon e Kissinger, esses regimes eram aliados melhores, pois, pensavam, democracias estavam sujeitas às mudanças da opinião pública. Mas não era apenas o anticomunismo dos tais países-chave que os transformava em alvo de interesse da diplomacia americana; antes, era fundamental sua capacidade em oferecer aos EUA um grau de estabilidade e previsibilidade na conduta cotidiana das relações bilaterais.” Aqui, porém, o tom era outro. “Quando se inicia a aproximação entre os dois países, predominava, entre os brasileiros, a idéia de que era possível ao Brasil ganhar mais poder e influência global com essa relação e, ao mesmo tempo, reafirmar sua autonomia: em troca de pouco, esperávamos conseguir muito.” Segundo o pesquisador, para apoiar esses cálculos diplomáticos do Brasil havia o fato de que o engajamento com os EUA permitiria aos generais manter controle em casa sem alienar a opinião pública nacionalista. “Nesse sentido, para os brasileiros, essa ligação foi uma ferramenta para construir uma política nacionalista conservadora com apoio dessa suposta relação ‘especial’ entre
A R Q UIV O A G Ê NC IA ESTA DO
da administração Nixon pelo Brasil, a ponto de lançar uma nova política para o país. A escolha, diz o pesquisador, também se ligava com a preocupação crescente americana pelo decréscimo de sua influência na América Latina e as prováveis conseqüências disso em tempos de Guerra Fria. Segundo a nova visão da Casa Branca, esse declínio não se explicava apenas em razão da rivalidade com a União Soviética, mas, acima de tudo, pela ascensão de um nacionalismo, de um ativismo econômico em países como o Brasil, bem como pela influência que Europa e Japão passaram a exercer, em detrimento de interesses americanos.
Az e r e d o d a Si l v e i r a : p a r c e i r o d o s EUA, m a s d e f e n s o r n a c i o n a l
Brasil e EUA.” A reforçar esse pensamento estava a dificuldade americana em traduzir poder em influência na América Latina, o que levou as administrações a prestar atenção no Brasil por sua geografia, recursos, desenvolvimento industrial, postura anticomunista etc. Já para a liderança brasileira, observa o autor, o crescimento da economia trouxe novas ambições internacionais, o que deu à aproximação americana um interesse renovado. “Em Brasília, passou-se a ver os EUA como instrumental mais do que detrimental para o desenvolvimento nacional e para o objetivo de maior inserção global.” O início foi pouco promissor, no entanto. “A administração Médici aceitou a abertura americana com a intenção de
legitimar o acirramento do controle interno. Quando o general visitou a Casa Branca, estava mais interessado em aparecer numa foto com Nixon do que discutir política mundial.” Apesar da melhoria no nível da interlocução entre os países, a chegada em cena de Geisel e Silveira, em 1974, marcou a consolidação de uma política internacional ativista por parte do Brasil, o que trouxe nova complexidade ao projeto bilateral. “Geisel via a melhoria nas relações entre as duas nações como uma chance de abrir portas para o ativismo brasileiro no mundo”, nota Spektor. Ainda assim, era um momento histórico: “Nunca antes essa dupla tentou coordenar tão estreitamente suas respectivas políticas externas e nunca PESQUISA FAPESP 148
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antes seus diplomatas observaram-se tão mutuamente para acertar o passo”. Tudo, porém, estava centralizado nas figuras de Kissinger e Silveira, ou seja, a aproximação se dava a despeito da burocracia diplomática dos dois países, e não em função dela. “E relações pessoais dificilmente são suficientes para transformar relações entre Estados.” Para piorar, Azeredo, em sintonia com Geisel (que rejeitou vários convites para visitar os EUA), estava “obcecado com a soberania e autonomia nacionais”. Ele acreditava, nota Spektor, que a defesa do interesse nacional estava na entrada do Brasil no clube seleto dos Estados influentes do planeta. “O Brasil, segundo ele, merecia um status especial pelo que era e não pelo que poderia ser para os EUA. Para os brasileiros, o engajamento era também sobre controlar a política doméstica: relações com os EUA era palatável para o nacionalismo, forçamotriz da transição lenta e negociada desejada por Geisel.” oram anos de protocolos, encontros, agendas, correspondências, negociações difíceis, sem que se chegasse a um consenso de como se estabelecer essa relação bilateral. Não se pode negar o esforço de Kissinger para que ela funcionasse, aceitando muitas exigências brasileiras e “engolindo sapos” diplomáticos, que incluíram a expansão, por parte do Brasil, da agenda bilateral muito além dos seus limites previstos, com a inserção de tópicos espinhosos para a América como as revolucionárias Cuba e Portugal e a independente Angola; proliferação nuclear (com a compra de tecnologia nuclear alemã, apesar de pressões americanas para impedir o acordo entre os dois países); situação no Oriente Médio; direitos humanos etc. “O Brasil resistiu a qualquer discussão sobre questões sul-americanas, rejeitou qualquer comprometimento na luta anticomunista e enfatizou um status de prestígio nas relações internacionais.” Kissinger, em boa parte, observa o autor, aceitou essas novas orientações. O Brasil começava a se aventurar em áreas em que nenhum outro país latino-americano havia ousado, com exceção de Cuba. “Como previu um relatório da CIA: ‘Há uma sensação de que o Brasil ‘chegou’, o que vai levá-lo a diferir mais e mais com os EUA em mais e mais assuntos’.” Isso
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O BRASIL COMEÇAVA A SE AVENTURAR EM ÁREAS EM QUE NENHUM OUTRO PAÍS LATINOAMERICANO HAVIA OUSADO, COM EXCEÇÃO DE CUBA
não ajudou muito a situação já precária de Kissinger, fustigado pela burocracia americana que não concordava com seus esforços em conceder um status privilegiado ao Brasil. om o aumento da rejeição da opinião pública e do Congresso americanos a alianças com regimes ditatoriais, continua o pesquisador, caíram as esperanças de consolidar efetivamente uma parceria entre as duas nações. O novo presidente, Jimmy Carter (que assume em 1977), já em sua campanha eleitoral, falou duramente contra um engajamento com o Brasil, quanto mais de dar a ele qualquer privilégio diplomático. Temas como poder nuclear e direitos humanos criaram tensão à incipiente ligação bilateral, que levou as relações entre Brasil e EUA ao seu nível mais baixo. “Os brasileiros se sentiram alienados pela forma e pela substância da política exterior de Carter, transformando as instituições de engajamento em escudo para resistir a pressões americanas. Apenas nos 2 últimos anos da administração Carter é que se retomou o ideal da devolução e se tentou retomar um contato Brasília-Washington.” A chegada de Reagan ao poder colocou uma pá de cal nessa aproximação, já que as prioridades do novo presidente deslocaram-se da América do Sul para a América Central, onde o Brasil tinha pouco a dizer ou fazer. “Passaram-se décadas desse projeto malfadado, mas muitos dos problemas que afligem a ligação Brasil-EUA permanecem análogos”, observa Spektor. Apesar dos elogios feitos pela administração de George W. Bush ao país, “o gap entre as manifestações oficiais e a realidade das relações bilaterais permanece grande e com muitas dificuldades”. Para Spektor, é possível mesmo se observar hoje nos EUA um tímido reavivar do “devolucionismo”. Mas o Brasil permanece aferrado ao espírito ativista dos tempos da dobradinha Geisel-Silveira, aliás, nota o autor, elogiada pelo atual governo. “É uma pena, pois a noção de autonomia, com sua ênfase no desenvolvimento doméstico mais do que na produção da ordem internacional, permanece hoje como há 30 anos. E apesar das ambições do Brasil de ter status especial, o argumento de que ele tem algo diferente a contribuir para a sociedade internacional nunca é decifrado com clareza.” ■
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A FP P HOTO/SA UL LOEB
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Osório nunca precisou ser um caxias B i o g r a fi a d o m i l i t a r r e v e l a fa lá c ia s d a m e m ó r ia
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olstoi estava tristemente correto ao escrever que um povo feliz não tem história. Daí lançar-se mão para lembrar as pessoas de que elas têm motivos para estarem infelizes e que é preciso “remediar” o passado. “O Brasil tem uma dívida histórica com o Paraguai, que se pode pagar com a concessão de um tratamento diferenciado nas relações entre os dois países. No caso de Itaipu, o Brasil deveria pagar a preço de mercado – e não a preço de custo, como prevê a parceria – a energia excedente que o Paraguai não consome”, afirmou, em entrevista, o novo presidente paraguaio, Fernando Lugo, invocando, em nome de questões atualíssimas, a velhíssima Guerra do Paraguai (1865-1870). “O presidente Hugo Chávez recordou ao presidente Lugo sua admiração pela luta histórica do povo paraguaio, digno herdeiro da memória do marechal Francisco Solano López, e coincidiram na necessidade de continuar construindo a União de Nações Sul-americanas sobre a base da reivindicação da história de luta de nossos povos”, reitera a nota emitida pela chancelaria venezuelana sobre o telefone dado por Chávez ao colega recém-eleito. “López foi o grande patriota latino-americano, humilhado pela aliança da tríplice traição a América Latina, seus homens e suas mulheres”, declarou recentemente a presidente argentina, Cristina Kirchner, que batizou uma unidade do Exército argentino em homenagem a López. A tese da “dívida histórica” é dividida também por brasileiros, como o senador Cristovam Buarque, que defende mudanças no acordo sobre Itaipu: “Não podeJUNHO DE 2008
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mos simplesmente negar ao Paraguai o direito de pedir o reajuste. Nós não podemos esnobar o Paraguai. Até porque temos uma dívida com esse nosso país vizinho, já que há 138 anos matamos 300 mil de seus cidadãos na Guerra do Paraguai. Em proporção, seria como se matassem 9 milhões de brasileiros”. Não é de hoje que ditadores, como Stroessner, e militantes de esquerda se unem na condenação da Guerra do Paraguai como um “massacre imperialista” feito pelo Brasil, em suposto conluio com a Inglaterra, que teria dizimado as chances de grandeza paraguaia, ou nas palavras de Lugo: “Há um reconhecimento da dívida histórica com o Paraguai. Acreditamos na Justiça e o Paraguai deveria voltar a ocupar o lugar que ocupava: o país mais desenvolvido,
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R EP R ODUÇ Ã O DO LIV R O MALDITA GUERA/Ó LEO S OB R E T ELA DE C A NDIDO LOP EZ ,189 1
V ista do interior de C uruzú, 2 0 de setembro de 186 6
o mais unido, que tinha um projeto econômico diferenciado”. Assim, por mais inusitado que possa parecer, o presente é um ótimo momento para voltar a falar de figuras-chave de um conflito tão antigo. Como na nova biografia do general Osório (General Osório, Companhia das Letras, 262 páginas, R$ 35,50), lançada no bicentenário de seu nascimento, escrita pelo historiador Francisco Doratioto, autor de Maldita guerra, uma história revisionista da Guerra do Paraguai, que põe abaixo mitos como o extermínio
da população masculina paraguaia, os ideais modernizantes de López e a vitimização do Paraguai. “Quem fala em traição ou está mal informado ou tem segundas intenções. López foi o agressor, que invadiu os vizinhos. Não houve a tal industrialização paraguaia e nunca existiu a tal idade de ouro do Paraguai. López não era um paradigma de progresso, de luta contra o imperialismo, nem um construtor de sociedades modernas”, explica. “O revisionismo argentino e uruguaio é de esquerda e o paraguaio era um nacionalismo de
direita que buscava legitimar um ditador como Stroessner usando a figura de outro ditador, López.” A história não foi bem servida em nenhum dos casos. “No Paraguai, a exaltação de López serviu à ditadura; no Brasil, a satanização da guerra e do comando brasileiro serviu de arma de combate à ditadura”, observou, com sabedoria, José Murilo de Carvalho. A confusão sobre a real dimensão do conflito e de seus personagens, porém, não se restringe apenas a interesses comerciais ou oportunismo político. PESQUISA FAPESP 148
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E xército brasileiro desembarcando no território paraguaio
O comandante do Exército brasileiro no Paraguai, Osório, também sofreu com a reescrita interessada da história. “O Exército de Caxias, como se autodenomina hoje a instituição, foi por um bom tempo o Exército de Osório e essa mudança só pode ser entendida se relacionadas as trajetórias política e militar dos dois generais com o contexto histórico em que foram adotados como personagens paradigmáticos”, avisa Doratioto. “Afinal, embora nos dias atuais eles sejam lembrados como militares, também foram políticos e, em certas épocas, se dedicaram mais à política que ao Exército.” O Partido Conservador, pelo qual Caxias se elegeu senador, defendia o Estado centralizado e a manutenção da ordem social. Osório era do Partido Liberal, que priorizava a descentralização do poder e a maior participação dos cidadãos no processo político. Caxias era o Exército de elite, formado na Academia, enquanto Osório era o Exército que vinha de baixo (e que, na velhice, confessou seu horror pela vida militar) e que relevava pequenas transgressões, formalismos e aparências. Daí a razão da jovem República, feita por golpe militar, nota Doratioto, sem ter símbolos, ter que descobrir em Osório o “pré-republicano”, a ponto de, em 1894, Floriano Peixoto dirigir uma manifestação popular para a inauguração da estátua do general no Rio de Janeiro, na atual Praça XV. 10 6
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“Foi o primeiro general brasileiro a pisar no território paraguaio e enquanto Caxias e outros militares e políticos brasileiros desconfiavam do presidente argentino Mitre (o líder da Tríplice Aliança contra o Paraguai), afirmando que ele agia para prolongar o conflito, quer devido a ganhos financeiros que proporcionava à Argentina, quer para enfraquecer o Império, Osório foi um dos poucos militares brasileiros que não partilhavam desse sentimento”, afirma Doratioto. O aventureiro inglês Richard F. Burton, cônsul inglês em Santos e observador britânico no cenário da guerra, relatou que os soldados admiravam Osório e acreditavam que “ele tinha o corpo fechado e, depois dos combates, sacudia o poncho para as balas caírem”. O general era visto, pelos colegas de hierarquia, como “irresponsável” pela maneira como colocava a vida em risco durante os combates. Na Batalha do Avaí, um tiro destruiu seu maxilar, mas, mais tarde, quando Caxias foi substituído pelo conde d’Eu no comando militar das tropas, não fugiu ao dever e voltou ao fronte para lutar. No ataque à fortaleza de Humaitá, principal baluarte de defesa de López, Osório foi enviado por Caxias para averiguar o sucesso do bombardeio fluvial feito pela esquadra aliada. Enfrentando resistência, afirmou ter recebido ordens de Caxias (que nunca confirmou ter dado
tal comando) para recuar, provocando pesadas perdas. “O episódio deixou feridas, exploradas por lideranças liberais, que passaram a apresentar Osório como vítima de Caxias, porque este o veria como rival”, observa o autor, que lembra como, ao fim do conflito, “Osório era, à exceção de Pedro II, o brasileiro mais popular, um fato desconfortável para o governo conservador”. Logo, é fácil compreender por que durante 4 décadas a principal comemoração militar brasileira ocorria no aniversário da Batalha de Tuiuti, onde Osório foi o herói do dia. Mais complexo é entender o “rebaixamento” do general a partir dos anos 1920 seguida pela elevação de Caxias, até então uma figura secundária, ao posto de Patrono do Exército. R e i n v e n ç ã o - “Em contraponto ao
‘esquecimento’ de Caxias, havia uma celebração de Osório como grande militar, um culto em boa medida espontâneo”, avalia o historiador Celso Castro, para quem as razões dessa mudança estão na preocupação do Exército com as agitações “tenentistas”, que levariam à Revolução de 1930. “Mais do que a reorganização de uma instituição fragmentada, ocorreu uma reinvenção do Exército como instituição nacional, herdeira de uma tradição específica e com um papel a desempenhar na construção da nação brasileira”, afirma Castro. Para tanto, foi
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tons: “Passou-se a ressaltar as qualidades do duque como chefe militar a serviço do Estado forte e centralizado, tal qual o da ditadura de Vargas”, avalia Doratioto. Essa instrumentalização persistiu após 1964, quando os militares no poder colocaram em relevo as características de Caxias que interessavam à situação vigente, como a de ter sufocado movimentos revolucionários. “Essas foram de fato suas características e, à exceção do princípio da centralização, também as de Osório. Contudo os dois generais tinham ainda como características a subordinação ao poder civil, a aversão ao caudilhismo e a repulsa ao militarismo, mas estas os ideólogos do autoritarismo não tinham interesse em lembrar e os da democracia negligenciaram em recuperar.” Infelizmente, por vezes, é mais conveniente esquecer a frase de Tolstoi e trocá-la pelo pragmatismo de um Bismarck: “A história é um simples pedaço de papel impresso; o principal é fazer história, e não escrevê-la”. ■
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Em contraponto ao ‘esquecimento’ de Caxias, havia uma celebração de Osório como grande militar, um culto em boa medida espontâneo”, diz Castro
Carlos Haag
REP RODUÇ Ã O DO LIV RO MALDITA GUERRA
preciso “inventar” um Caxias adequado ao novo papel simbólico exigido. “Os predicados atribuídos a Caxias – de um general disciplinado e apolítico – são parte dessa imagem criada no século XX, atendiam a interesses de uma República nacional conservadora que se esforçava para conter a indisciplina militar. Esses predicados, porém, caracterizam um ‘ser militar’ que não existia no século XIX”, analisa a historiadora Adriana Barreto de Souza, autora da tese de doutorado O Duque de Caxias e a formação do Império brasileiro. “Entronizado nesse panteão, e após 21 anos de ditadura militar, o diálogo com Caxias se tornou mais difícil, pois ele era ou tratado com admiração irrestrita por militares, ou demonizado como patrono do Exército pela oposição que se fazia ao golpe de 1964. Ele virou o “duque-monumento”, observa Adriana. Se de início a troca da guarda Osório por Caxias serviu como forma de valorizar a legalidade e o afastamento da política, a partir do Estado Novo varguista essa mudança, embora mantida, adquiriu novos
Trincheiras de Tuiuti, batalha de 24 de abril de 1866
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Fazer e ajudar a fazer ciência Livro fundamental para entender o campo científico Mariluce Moura
ais de 3 décadas de observação fina e engajada da política científica e tecnológica no Brasil, algumas vezes a partir de postos francamente privilegiados ocupados pelo autor para examinar suas engrenagens endógenas, sem perder de vista influências internacionais que ajudavam a conformá-la, resultaram num livro indispensável para quem precisa ou simplesmente quer entender o atual campo institucional da ciência e tecnologia no país, como chegamos a ele e suas relações com algumas áreas-chaves das atividades humanas, a exemplo da educação. O livro é Ciência em tempo de crise: 1974-2007, de José Israel Vargas, organizado por Márcio Quintão Moreno e lançado no final do ano passado pela editora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Em suas 380 páginas estão reunidos textos de palestras, conferências e artigos para publicações especializadas produzidos pelo ex-ministro da Ciência e Tecnologia no governo Itamar Franco que, a par de revelar muito das suas inquietações políticas e éticas ante os desafios propostos por diferentes projetos de desenvolvimento consistente para o país, repõem em termos factuais o desdobramento de programas e políticas de grande impacto das últimas décadas, para o bem ou para o mal, a exemplo do programa nuclear e do Proálcool. Os 20 capítulos do livro se organizam por quatro partes: Educação, Política científica e tecnológica, Energia e meio ambiente e Ética e cooperação internacional. São títulos que mostram a universalidade do pensamento de Vargas. O alcance tanto pode abranger Minas Gerais, o estado natal do autor, com seus bons cientistas e intelectuais, quanto o planeta com seus desafios energéticos e ambientais – mais freqüentemente, no entanto, circunscreve o país. E aí transita de remotas raízes históricas
M Ciência em tempo de crise: 1974-2007 José Israel Vargas 380 páginas R$ 45,00
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que parecem estar na base da fragilidade da evolução do pensamento científico entre nós a inspiradas antecipações de questões que têm papel crucial nos debates contemporâneos sobre o desenvolvimento do país. Na parte sobre Energia e meio ambiente, por exemplo, Vargas diz a certa altura que “a produção de etanol tem interesse estratégico óbvio” e argumenta que “é fundamental ocupar-se o país com melhorias na tecnologia de produção de álcool, desde a maior racionalização da exploração agrícola até o emprego de novos procedimentos técnicos que se encontram em desenvolvimento aqui e em vários países, com vistas à diminuição do custo desse produto, sob pena de se acumularem novos óbices ao nosso desenvolvimento econômico”. Inclui a seguir, entre os exemplos marcantes de melhoramentos possíveis, “a introdução de novas variedades mais produtivas de cana-de-açúcar na agricultura brasileira” e “a utilização de hidrólise ácida, microbiana e viral da celulose proveniente de várias fontes” (pp. 232-233). O que causa espanto é que essas palavras, tão atuais nas pesquisas sobre bioenergia, foram proferidas na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) há quase 30 anos. Em relação a mudanças climáticas globais, nota-se essa mesma capacidade de pensar para o futuro, e já em 1990, numa conferência realizada na Fundação Biominas, Vargas previa que seria exigido da comunidade internacional “maior cooperação multilateral” e um “estilo de desenvolvimento crescentemente condicionado ao respeito do meio ambiente, patrimônio de todos, e indispensável atenção aos interesses vitais das gerações futuras” (p. 244). Licenciado em química pela Universidade Federal de Minas Gerais em 1952, mas ligado posteriormente à física, campo em que sua formação se consolidou na Universidade de São Paulo (USP) e no Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), com doutorado em ciências nucleares pela Universidade de Cambridge, Israel Vargas faz desfilar por seu livro nomes fundamentais da constituição da física no Brasil, rendendolhes homenagens. É entretanto extremamente crítico com políticos que em seu entendimento contribuíram de maneira dramática para os descaminhos da pesquisa científica no país. E entre reflexões e projeções socioeconômicas amparadas em tabelas, gráficos e fórmulas de prospecção, algumas que já hoje parecem padecer de excesso de determinismo matemático, o ex-presidente da Academia de Ciências do Terceiro Mundo, entre muitos outros cargos científicos, acadêmicos e diplomáticos dentro e fora do Brasil, reaparece neste livro, para usar uma definição a seu respeito de sua própria lavra, como um homem que fez ciência, primeiro, e depois ajudou muitos outros a fazer ciência.
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Delicada relação entre nós e a natureza Novo estudo de Emilio Moran chega agora ao Brasil Ricardo Ventura Santos
ós e a natureza é o mais recente livro em português de um dos mais proeminentes antropólogos norteamericanos especializados em estudos sobre as relações entre as sociedades humanas e o ambiente. Emilio Moran, professor da Indiana University e diretor do Centro Antropológico de Treinamento e Pesquisa em Mudança Ambiental Global daquela universidade, vem se dedicando a pesquisas sobre questões ecológico-humanas desde a década de 1970, quando em seu doutorado realizou estudo pioneiro sobre a colonização da Transamazônica. Ao longo das últimas 4 décadas, Moran produziu uma vasta obra cujo fio condutor tem sido a análise das interações recíprocas entre as pessoas e a natureza. Nós e a natureza mostra a maturidade de seu pensamento em um momento quando, mais do que nunca, as mudanças ecológicas globais estão na linha de frente de importantes debates acadêmicos e políticos. No plano teórico, um dos principais pontos do livro é que os seres humanos, ao longo de sua história, tenderam a pensar e agir localmente, o que Moran caracteriza como uma “marca registrada” de nossa espécie. Não obstante, o que se configura no presente é que o impacto das ações humanas, por sua dimensão cumulativa, atingiu uma escala global. Para o autor, do ponto de vista cognitivo, há a imediata necessidade de um importante passo: que as sociedades humanas, em toda sua diversidade, compartilhem da noção de que a problemática ambiental não é individual ou local, mas coletiva e planetária. Moran argumenta que o atual padrão de relação entre os seres humanos e a natureza é ecologicamente insustentável. Se não houver modificações a curto prazo nas formas de exploração e utilização dos recursos, caminha-se, irreversivelmente, para uma crise com graves repercussões. Segundo ele, esta
N Nós e a natureza Emilio F. Moran 302 páginas R$ 65,00
crise já se anuncia com todos os seus contornos, o que inclui as taxas exponenciais de redução do ozônio na atmosfera, as perdas aceleradas das florestas tropicais, os aumentos nas freqüências de desastres naturais e das extinções de espécies, entre outras evidências. Se não são poucos os livros disponíveis que exploram temáticas afins aos discutidos em Nós e a natureza, Moran as aborda transitando por searas próprias. Ele tem sua âncora, teórica e metodológica, na antropologia, sobretudo aquela de vertente ecológica. Adicionalmente, transita com desenvoltura em áreas tão diversificadas como a ecologia, sociologia, economia, história e ciência política. Dentro da antropologia, uma disciplina cada vez mais multifacetada, o autor constrói seus argumentos com elementos não somente da antropologia social, como também da arqueologia e da antropologia biológica. Menos que recortes disciplinares, o que interessa a Moran é a complexa tessitura histórica, socioeconômica, ecológica e política necessária para compreender os processos ecológico-bumanos envolvidos nas transformações ambientais de escala global. Moran enfatiza que é absolutamente necessário que as sociedades, e a norte-americana em particular, modifiquem seu padrão de uso de recursos. Uma das vias, segundo ele, seria a redução do consumo. Ele aposta nas ações dos indivíduos, com sua agência (ou agency em inglês), como uma das pedras de toque de processos de transformação. Ou seja, o enfoque deve ser estimular que os indivíduos façam escolhas para mudar comportamentos quanto a prioridades de consumo. A certa altura, o próprio Moran reconhece que sua proposição sobre as vias para garantir a sustentabilidade podem soar ingênuas (p. 31). Não obstante, argumenta que talvez não seja algo tão utópico, já que cresce o número de pessoas e organizações que começam a questionar os efeitos desastrosos do atual modelo econômico. A matriz antropológica de Moran manifesta-se claramente ao discutir as vias possíveis: ele enfatiza que, apesar de o problema ser global, não existem soluções universais para os dilemas ambientais modernos, mas sim uma diversidade de vias para alcançar a sustentabilidade. Nós e a natureza, com seu texto agradável e que continuamente articula múltiplos campos do conhecimento, além de buscar estreitar teoria e implicações práticas, é um livro intelectualmente importante e que deve ser lido por todos aqueles interessados na temática das transformações ecológicas globais. Ricardo Ventura Santos é antropólogo e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz e Museu Nacional/ UFRJ. PESQUISA FAPESP 148
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Luís Viana Filho Editora Unesp/ Edufba 430 páginas, R$ 55,00
O livro de Luís Viana Filho não se debruça sobre a obra literária de José de Alencar, um dos principais autores do romantismo brasileiro, mas sim sobre sua vida. Valendo-se da correspondência do escritor e de materiais fornecidos pelo seu bisneto, a obra traça, além do perfil do Alencar escritor, o perfil do político – como deputado e ministro da Justiça –, a faceta menos estudada do biografado. Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br
Sexo à moda patriarcal: o feminino e o masculino na obra de Gilberto Freyre Fátima Quintas Global Editora 184 páginas, R$ 32,00
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Bernardo Ricupero Alameda Casa Editorial 224 páginas, R$ 34,00
“Existe um pensamento político brasileiro?” É com esta pergunta que Ricupero orienta suas incursões às obras dos principais intérpretes da realidade brasileira. Diante da necessidade de conhecer melhor a singularidade do país, o autor se propõe a reexaminar as obras de seis grandes pensadores: Oliveira Vianna, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., Raymundo Faoro e Florestan Fernandes. Alameda Casa Editorial (11) 3862-0850 www.alamedaeditorial.com.br
América Afro-Latina, 1800-2000 George Reid Andrews EdUFSCar 320 páginas, R$ 36,00
Com base na obra freyriana, Fátima Quintas analisa as relações de gênero, em especial o papel das mulheres na vida cotidiana dos engenhos de cana-de-açúcar. Relegadas a segundo plano na historiografia tradicional, nesta obra essas mulheres ressurgem em fragmentos: ora sensuais, ora maternais, mas sempre presentes na construção da sociedade colonial.
George Reid conta a diáspora africana na América Latina. Cobrindo o período de emancipação até os dias de hoje, o trabalho sintetiza a história das pessoas de descendência africana em cada país latino-americano. Ele examina, ainda, como ocorreram os processos que conduziriam estes povos da escravidão à liberdade e como moldaram e responderam às mudanças políticas, econômicas e culturais em suas sociedades.
Global Editora (11) 3277-7999 www.globaleditora.com.br
EdUFSCar (16) 3351-8137 www.editora.ufscar.br
Espaço público: do urbano ao político
Balmaceda
Sérgio Luís Abrahão Annablume/ FAPESP 194 páginas, R$ 35,00
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Sete lições sobre as interpretações do Brasil
Joaquim Nabuco Cosac Naify 272 páginas, R$ 47,00
O livro aborda o processo de contínua ressignificação pelo qual passa o conceito de espaço público urbano. Focando o contexto brasileiro, desde a construção de Brasília à emergência dos movimentos democráticos, o autor recupera algumas das principais vertentes ideológicas que têm em comum a concepção dos espaços públicos urbanos como expressão material dos dilemas políticos e sociais.
Joaquim Nabuco, a partir da leitura do livro Balmaceda, su gobierno y la revolución de 1891, de Julio Bañados Espinosa, discorre sobre o mandato do presidente chileno José Manuel Balmaceda, que se suicidou após a derrota na sangrenta guerra civil de 1891. Em uma série de artigos publicados no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, Nabuco concluiu que o drama chileno estava cheio de lições para o Brasil. É surpreendente a semelhança entre a morte do chileno e a de Vargas.
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FOTOS EDUARDO CESAR
A vida de José de Alencar
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Música em debate: perspectivas interdisciplinares
Em nome da América: os corpos da paz no Brasil (1961-1981)
Samuel Araújo, Gaspar Paz, Vicenzo Cambria (orgs.) Mauad X 256 páginas, R$ 39,00
Cecília Azevedo Alameda Casa Editorial 392 páginas, R$ 56,00
Desde 2004, o Laboratório de Etnomusicologia da UFRJ vem realizando debates cujo propósito é a tematização da música sob as mais variadas perspectivas. Reunindo pesquisadores dos campos da etnomusicologia, antropologia, gestão cultural e direito, o livro apresenta as intervenções realizadas durante as três primeiras edições do evento e constitui rica contribuição àqueles que se interessam por uma reflexão contemporânea do assunto. Mauad Editora (21) 3479-7422 www.mauad.com.br
Através da análise de fontes oficiais e privadas, o livro narra a história de voluntários de uma agência de missão assistencialista, criada no governo Kennedy, cujo fim era atuar nas áreas sociais de comunidades pobres da América Latina – consideradas propícias ao avanço da “ameaça comunista” – e assegurar disseminação dos valores da sociedade norteamericana. A autora mostra a importância que esse tipo de ação teve na legitimação das políticas externas dos EUA. Alameda Casa Editorial (11) 3862-0850 www.alamedaeditorial.com.br
Revista Estudos Avançados/USP O século perdido: raízes históricas das políticas públicas para a infância no Brasil Irene Rizzini Cortez Editora 200 páginas, R$ 28,00
Irene Rizzini se dispõe a traçar a trajetória dos malogros das políticas públicas nacionais referentes ao tratamento da população infanto-juvenil brasileira. O livro traz uma análise da legislação proposta e em vigor nos séculos XIX e XX, dos discursos parlamentares e de fontes diversas, tais como jornais e obras de ficção. Cortez Editora (11) 3864-0111 www.cortezeditora.com.br
Instituto de Estudos Avançados IEA 384 páginas, R$: 27,00
A revista Estudos Avançados traz em seu número 62 o dossiê Nação/nacionalismo. Esta edição aborda os aspectos políticos e econômicos que permeiam o tema e procura retomar e aprofundar questões candentes do contexto internacional de nossos dias. Além de 16 artigos de autores como István Jancsó e Bresser-Pereira, a revista quadrimestral contém uma entrevista sobre economia solidária, com o professor Paul Singer. Instituto de Estudos Avançados (11) 3091-1675 www.iea.usp.br/iea/revista/
Crônicas inéditas I, 1920-1931
Pateo do Collegio – Coração de São Paulo
Manuel Bandeira Cosac Naify 464 páginas, R$ 65,00
Hernâni Donato Edições Loyola 276 páginas, R$ 90,00
Dando continuidade à obra em prosa do poeta Manuel Bandeira, iniciada com o clássico Crônicas da província do Brasil (2006), o livro reúne 113 crônicas, escritas entre o período de 1920 e 1931, e aborda os mais diversos temas como música, literatura, cinema, arquitetura e política, além do Carnaval e os concursos de miss.Tudo narrado na forma peculiar de Bandeira.
O jornalista Hernâni Donato faz um relato histórico e fartamente ilustrado dos principais acontecimentos, desde a construção até os dias de hoje, do colégio que é o marco da fundação da cidade de São Paulo. O autor acompanha detalhadamente as transformações e reformas pelas quais passou este monumento que deu origem àquela que viria a ser a maior metrópole do país.
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FICÇÃO
G erúndio
Leandro Rodrigues
relógio permanece no gerúndio. Não fazia diferença o horário em que a moça entrou na sala. Não faz diferença, nunca fez. Alguma reflexão dessa natureza, sobre o tempo ou sobre os verbos, flutuava naquela hora em minha cabeça e quase não a teria notado, não fosse o tom de sua voz. Triste, humilde, mas com a ousadia dos desesperados. Pensou que eu fosse médico. Era um pesquisador, mas meu jaleco branco justificava o engano facilmente. Não, minha senhora, não acho que esteja com dengue. Em todo caso, está aqui para fazer exames, não é? Não, não sou médico. Não tem problema. Não incomodou. Existem muitos tipos de mosquito, pode não ser nada. Claro, faça isso, é melhor prevenir mesmo. Não precisa se desculpar. Pode ir por ali. Ela tinha a pele manchada. Estava doente, os olhos e o nariz avermelhados. Curiosamente, as pesquisas que eu realizava naquela época eram destinadas ao departamento de virologia. O que não me conferia qualquer atributo de médico ou vidente que pudesse validar um diagnóstico para a mulher. Mas, lá com os botões de meu jaleco, minha tese era que ela, na verdade, padecia de pobreza. O hospital, vinculado à faculdade de medicina, recebia por dia milhares de enfermos que sofriam dessa mesma chaga. Vinham apresentando sintomas diversos, estado febril, purulências, dores, velhice. Mas a todos eles era comum o tumor inexpugnável da pobreza. Sentei-me outra vez, o relógio trabalhando no meu pulso, já me distanciando do olhar assustado da mulher e de sua lembrança incômoda. Não havia muito tempo. Os vírus talvez me consumissem, a mim e a toda a humanidade, o que, cá entre nós, seria ótimo para o planeta. No entanto, eu trabalhava a favor dos meus, sempre, seguindo o que fora ensinado na casa de meu pai. Defender os irmãos contra qualquer um, em qualquer situação. Pelo menos, era minha justificativa à época da faculdade e nos primeiros anos de laboratório. O tempo, porém, consumiu
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boa parte de minha segurança nos méritos de se trabalhar para compreender melhor o mundo, em prol de uma sanha de dominação e sobrevivência da qual já não partilhava completamente no dia em que a mulher manchada entrou por engano na sala onde eu estava. Segurando uma caneta, minha mão saltou à minha vista e afastou os pensamentos do vírus e da possibilidade de aniquilamento. Interessante é que, então, velho e já não me restando tanto tempo, minha capacidade de concentração era tamanha que beirava a neurose, muito diferente dos dias em que eu fora um homem livre de calendários, quando datas eram conceitos de sentido apenas social, nunca existencial. Tinha dificuldade em me libertar de qualquer pensamento, sobretudo daqueles que me distraíam de minha atividade cotidiana e me conduziam para mais perto do centro de minha inquietude. Naquele momento, a mão. A mão que riscava e atravessava o tempo. A mão que se apoiava no presente ainda com firmeza, apesar da idade. A mão que servia de parâmetro para a passagem do tempo. Havia uma série de manchas e pintas que eu evitara durante anos – estavam todas ali, zombando de minha displicência. Os nós dos dedos permaneciam belos, era próximo do punho que o tal fizera melhor seu trabalho. Einstein. Bailava em minha memória, mas à sua caricatura divertida somava-se o conceito de morte. Estava morto. Lorentz, Einstein. O tempo acabara com eles? O tempo deles se acabara? O meu, próximo do fim. A mulher manchada, perdida em corredores de hospital. Todos nós, atônitos à passagem do tempo, cobertos de sonhos que nos permitam esquecê-lo. Três dimensões do espaço, mais o tempo: quarta dimensão. Uma dimensão, um conceito, uma linha num gráfico, nada. E minha mão manchada – como a mulher perdida. Talvez estivéssemos todos perdidos. Santo Agostinho me valesse naquele momento, minha mão não deixava dúvidas: o tempo não existia fora de nós.
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HÉ LIO DE A LM EIDA
Ele estava ali, impresso em manchas senis, naquela mão que segurava a caneta. Pousei-a na mesa. Abri os dedos. A mulher tinha a pele manchada, mas era jovem. Estava inevitavelmente carente de algo, não fosse de saúde seria de dignidade, de fé ou de um pai. Fazia 30 mil anos que o homem marcava o tempo, o tempo cíclico, o tempo linear. Marcava a passagem do sol sobre nossas cabeças, da trajetória dos filhos de Caim até o apocalipse. O tempo de vida, o tempo de espera e o tempo de colher. Mas o tempo não passa, ó deus, nós é que passamos. Eu e todos os que vieram antes, e os que nem sonhamos que virão. Passamos e nos amparamos num conceito, numa divindade a quem culpar pelas manchas que nos nascem nas mãos, pelas perdas e pelo fim. Pulgas ousando no éter, carregamos atada ao pulso ou exposta na parede uma estimativa do futuro próximo e uma esperança de longevidade. De fato, apenas o que importava ali, naquele solilóquio frente a anotações e à mão pesada do presente, era a mulher que eu abandonei à deriva naquele imenso laboratório que era o hospital. Ciente do nosso abandono, ergui o corpo pesado, tentando ser rápido. Dediquei a vida ao ensinamento de meu pai, defender os irmãos. Estudar as pestes que pudessem se aventurar em atrapalhar a nossa caminhada sobre o planeta. Mas não hesitei em abandoná-la, aquela que precisou de mim no momento presente e dentro das três dimensões do espaço. Enquanto eu deixava minha sala, entravam em minha mente as sombras inconvenientes de outras mulheres e homens que eu deixara pra trás. Caminhávamos todos juntos, eu talvez me houvesse dado conta disso tarde demais. Os corredores eram longos. Passei a correr. Um labirinto que eu conhecia bem até a área de atendimento de emergência. Embora não fosse médico, minha assiduidade naquele prédio me aproximava mais dos minotauros brancos que dos
que perambulavam por ali, manchados, à espera de uma informação. De uma esperança. Esbarrei em um enfermeiro. Já estava o medo do enfarto rondando minha mente sexagenária. O relógio em meu pulso não parava, os ponteiros venciam a disputa com as pernas. Cheguei à sala lotada e não a vi. Em meu íntimo, eu sabia que nunca mais a veria. Viva ou morta, espaço e tempo seriam para nós a partir de então um obstáculo translúcido, mas intransponível. Percorri com o corpo e com a vista as filas de bancos onde estavam homens, mulheres, crianças. Eles transbordavam dos assentos, havia gente em pé, gente nas paredes, fumantes no pátio de entrada. Eu sabia que ela não estava ali, mas procurei. Perguntei às atendentes, que fingiram me dar atenção em respeito ao meu cargo. Fui informado gentilmente de que seria impossível, pela descrição, saber se uma mulher passara por ali. Eram centenas, foram centenas. Nas entrelinhas do discurso, o convite para que eu me retirasse era onipresente. Abandonei o hospital decidido a me aposentar de fato. Já o teria feito, não fosse a obediência ao ensinamento familiar – como não continuar trabalhando, eu que tinha tanto a contribuir, era a questão que em silêncio meus próprios amigos me repetiam. Sem jaleco e sem certeza, parei no primeiro boteco, ali mesmo, na rua. Havia muitos homens esquecendo o batente ou se lembrando vagamente do que um dia fora trabalhar. Quase todos jovens. Um deles, embriagado, me perguntou: “E aí, tio, quem ganha o jogo hoje?”. Sorri, pedi uma cerveja. “Nós, claro.” O relógio permanece no gerúndio. Eu envelheço. Leandro Rodrigues nasceu em 1977, em São Paulo. Paralelamente às suas atividades como professor de língua portuguesa e assistente editorial, escreve contos. PESQUISA FAPESP 148
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